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PERIGOSAS NACIONAIS

Meu Conselheiro
De Luz

MILA WANDER

Edição Digital
2016

PERIGOSAS ACHERON
PERIGOSAS NACIONAIS

Capa: Mila Wander


Direito de Imagem concedido por Shutterstock.com
2016
Diagramação: Josy Stoque

Copyright © 2016 Mila Wander

Todos os direitos reservados. É proibido o


armazenamento ou a reprodução de qualquer parte
desta obra, qualquer que seja a forma utilizada —
tangível ou intangível —, inclusive distribuir
gratuitamente e de maneira remunerada sem o
consentimento escrito da autora.

PERIGOSAS ACHERON
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Índice

Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14

PERIGOSAS ACHERON
PERIGOSAS NACIONAIS

Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Agradecimentos
Biografia

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Para Lívia,
Minha querida irmã e primeira leitora.
Obrigada por não me deixar desistir.

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“Se erraste, pensa no auxílio que podes prestar aos


outros e corrigi-te.
Trabalhando, não te condenes.
Serve mais.”
Emmanuel

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Prólogo

A mentira

NUNCA COGITEI o que poderia acontecer depois


da minha morte. Para onde eu iria? Será que o nada
realmente existia ou havia outra dimensão? Quero
dizer, eu sabia que existiam várias teorias que
tentavam explicar o que acontecia depois que
passávamos para o “outro lado”, mas a verdade é
que sempre achei esse assunto uma enorme perda
de tempo. Não me culpe, era difícil pensar em
morte quando a vida pulsava vibrante, cheia de
glamour e vitalidade.
Toda ideia contrária à realização de planos e
desejos parecia inimaginável para uma garota como
eu. Linda, loira e rica, minha rotina era perfeita
demais, e tudo o que eu gostava de pensar se
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resumia a que roupa vestiria quando Kevin me


convidasse para sair. No fim de cada situação, das
mais fáceis às mais difíceis, eu sempre conquistava
o que queria. Não que a vida de uma adolescente de
dezessete anos tivesse tantos problemas assim.
Confesso que achava simples demais me preocupar
apenas com roupas, sapatos, passeios ao shopping
e, claro, meninos.
Eu não era apenas a garota mais popular da
escola, era também a mais invejada e a que lançava
moda apenas ao pentear meus cabelos de forma
diferente em alguma manhã específica. Quem era a
mais cobiçada entre os rapazes? Euzinha aqui.
Como se nada disso bastasse, ainda conseguia me
dar bem em todas as disciplinas escolares. Era de se
esperar que eu não tivesse motivo algum para
reclamar da minha vida, mas uma simples unha
quebrada parecia o fim do mundo. Perder uma
liquidação, então? O fim da picada. Passava dias de
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mau humor.
O orgulho que me cegava fazia com que eu
me considerasse muito especial. Quer saber de uma
coisa? Eu gostava de ser referência. Algumas
pessoas ao meu redor tinham consciência disso,
outras nem tanto, porém todas elas compactuavam
para que aquele sentimento continuasse inabalável
dentro de minhas concepções. Sendo assim,
utilizava todo o poder que me era fornecido de
acordo com minhas vontades. Devo confessar que
nem sempre elas eram nobres. A maioria provinha
de atos egoístas e mesquinhos.
A morte, para mim, era inalcançável. Não
que eu não pudesse alcançá-la, já que a vida me
mostrava que nada estava fora do meu alcance,
muito pelo contrário, acreditava que ela não teria a
coragem, ou a insensatez, de me encontrar.
Principalmente tão cedo. Eu estava enganada,
muito enganada.
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Em meus dezessete anos de vida, eu já era


rainha de mim mesma e de todos aqueles que
tinham facilidade em me coroar. Dona de meu
próprio nariz e do nariz de muitas garotas que me
acompanhavam, ninguém me dizia como eu deveria
pensar ou o que era certo fazer. Talvez seja por este
motivo que sempre achei legal passar por cima das
pessoas. Adorava menosprezar os “seres” que
considerava inferiores a mim.
Desde o Ensino Infantil, transformava a vida
de Carla, uma garota da escola, em um verdadeiro
inferno. Eu a humilhava por ela sempre se vestir de
um modo esquisito, por usar seus cabelos horríveis
sempre despenteados, cobrindo metade de seu rosto
como se fosse algum tipo de criatura maligna. Nós
éramos tão diferentes! Considerava uma afronta
estar na presença daquela menina digna de pena.
Mesmo assim, pena era tudo o que eu não
conseguia sentir por alguém. Não tive nem um
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pouco de pesar em destratá-la por anos, em todos


os dias do período letivo. Qualquer um que ficasse
do lado dela, seria destratado também.
Em pouco tempo, muito menos do que possa
imaginar, quase ninguém a notava mais, de tão
insignificante que era a sua presença. Adorava
fazer parte daquilo, afinal, eu era Rafaela Satto, a
rainha de toda a escola, a pessoa que mandava e
desmandava em tudo e em todos. Pode parecer
loucura, mas achava muito importante ser a mais
temida e copiada. Meu ego inteiro era equilibrado
sobre meu nível de popularidade.
A morte prematura não era para pessoas
como eu. Sempre acreditei que fosse para alguém
esquisita como Carla. Suas roupas pretas e
estranhas combinavam com o clima fúnebre e
azedo que a acompanhava para onde quer que ela
fosse. Sua expressão cotidiana era de luto eterno.
Eu duvidava que alguém em toda a escola fosse
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capaz de notar se ela simplesmente sumisse e nunca


mais desse as caras.
É importante que saiba que nunca fui uma
boa pessoa. No entanto, muitas coisas me fizeram
mudar de ideia de uns tempos para cá. Os
acontecimentos podem nos surpreender de uma
maneira sem igual. Descobri da pior maneira que
ninguém está imune ao decorrer dos fatos, ninguém
passa despercebido pelas forças amargas do
destino. Não tem como fugir, não tem para onde
correr. Podemos ser donos do nosso hoje, mas não
somos donos do amanhã.
Como muitos costumam dizer, e eu concordo
piamente, o mundo gira e tudo muda. O meu
mundo deu uma volta de trezentos e sessenta graus.
Foi um rodopio tão grande que me levou a um
lugar totalmente desconhecido e impensado, capaz
de romper todas as estruturas que mantinham meu
ego de pé, toda a base que deixava meu orgulho
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elevado. Tudo o que eu conhecia sobre o mundo


acabou e se transformou em dúvidas e confusão.
Não foi fácil ou rápido, mas finalmente
percebi que a minha existência fora uma grande
mentira construída por mim mesma, que só fez com
que eu me afundasse ainda mais nas trevas e na
escuridão. Minha vida foi tomada por erros atrás de
erros. Quando finalmente os entendi, tudo o que
pude sentir se resumia a angústia, culpa e uma
tristeza sem limites.
Apesar de todos os meus atos errôneos,
aprendi que entre a escuridão sempre existe a Luz,
e esta pode ser encontrada por qualquer um que a
desejar profundamente. Nunca consegui explicar
como e nem por quê, mas a Luz que rege todo o
meu ser surgiu clara e absoluta, traduzida em um
par de olhos castanhos.

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Capítulo 1

O aviso

PASSEI UM bom tempo encarando os olhos


esverdeados de Daniele, minha melhor amiga e
confidente. Ela não acreditou nas novidades que eu
acabara de lhe contar. Esperei que se recompusesse,
quase sem paciência. Às vezes Dani me enchia de
tédio com sua mania de ser passional demais.
— Não acredito, Rafa! Você não fez isso! —
ela gritou, por fim. Olhou para mim como se eu
tivesse perdido o juízo. Eu já me sentia convencida
de que ela estava certa, mas claro que não deixaria
transparecer, pois não era de meu feitio.
— Fiz e faço quantas vezes quiser. — Cruzei
os braços na frente do meu corpo, como se não
estivesse me importando com aquilo. — Se Kevin
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acha que vou lamber o chão onde ele pisa, está


muito enganado.
— Mas... Acabar o namoro, assim, sem mais
nem menos... — Daniele abriu bem os olhos e
chacoalhou os ombros.
A notícia veio mais como um susto do que
como uma fofoca entre amigas. Acho que ela não
seria capaz de ficar tão assustada se eu lhe dissesse
que a liquidação da Victoria’s Secret tinha acabado
sem que ela conseguisse “tomar emprestado” o
cartão de crédito de seus pais.
— Olha para mim, Daniele! — Minha amiga
obedeceu prontamente. — Tenho cara de quem vai
assistir a todos os jogos de futebol da estação?
Tenho mais o que fazer! Além de tudo, você e eu
sabemos que esse namoro não daria certo mesmo.
— Tentei fingir que estava prestando atenção nos
alunos que passavam da cantina para o pátio da
escola em que estudávamos. — Nós somos muito
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diferentes. De qualquer forma, eu já o conquistei.


Não tem mais graça. Vou partir para outra.
Daniele apertou seus lábios com tanta força
que fiquei esperando um filete de sangue escapar
deles. Não aconteceu. Eu sabia muito bem que ela
estava acostumada a ouvir aquilo de mim. Eu nunca
ficava plenamente satisfeita com nenhum namorado
ou ficante. Não sabia explicar direito, mas depois
de uma semana, qualquer relacionamento que eu
tivesse ficava extremamente chato. O namoro com
Kevin já passava dos dois meses, e eu não
aguentava mais tanto tédio. O bom de namorar
alguém era a conquista, o desafio. Depois que eu
ganhava e levava a melhor, nada mais me
interessava.
O sol brilhava forte, obrigando-me a sentir
calor. Eu detestava suar, por isso comecei a abanar
minhas mãos. O pátio da escola estava iluminado e
lotado de alunos, como em todos os intervalos. As
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pessoas nos cumprimentavam ao passar por nós e


se sentavam às mesas do refeitório que, com toda
certeza, estava servindo comida ruim. Eu sempre
levava meu lanche, assim como Daniele, pois não
estávamos a fim de nos contaminar com tanta
porcaria. Seguíamos uma dieta bem regrada, nosso
sonho de ser modelo não podia morrer. O fato era
que, na verdade, as pessoas só cumprimentavam
Daniele porque ela estava na minha companhia. Era
o que sempre acontecia, não dava para evitar e eu
sabia que minha amiga tinha consciência disso. Ela
não parecia achar ruim, como eu certamente
acharia se fosse comigo.
Não me leve a mal, Daniele era realmente
uma garota muito bonita. Seus cabelos castanhos
meio avermelhados eram sensuais e combinavam
perfeitamente com seus olhos muito claros. Ela
também era a única pessoa da escola que tinha
senso de moda, assim como eu. Não demorou
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muito para que nos tornássemos melhores amigas.


Nós jogávamos no mesmo time.
Depois de um tempo apenas absorvendo o
que eu lhe contei, Daniele se virou na minha
direção e abriu a boca, como que para falar algo
importante, porém desistiu no último segundo. Ela
pensou mais um pouco e se lembrou de algo que eu
obviamente esquecera: o baile de conclusão do
Ensino Médio.
— Com quem você vai ao Baile? Tipo assim,
se você não vai com o Kevin e todos os garotos
legais já não te interessam mais... — Diminuiu sua
voz gradativamente, até se transformar num
sussurro.
Tentei não fazer alarde e manter meu nariz
apontado para o teto. Dani não podia saber que eu
tinha me esquecido de uma coisa tão importante
quanto o baile. Nós praticamente não falávamos
sobre outra coisa.
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— Você não se lembrou de um pequeno


detalhe. — Segurei seu ombro direito com uma
mão e encarei seus olhos felinos. — Eu sou Rafaela
Satto, esqueceu? Companhia para o baile não é
problema. Qualquer cara adoraria sair comigo. —
Sorri para ela, convicta, e caminhei tranquilamente
em direção aos corredores, ignorando todos os
olhares masculinos apontados para mim. Um garoto
foi jogado por membros da equipe de vôlei numa
lata de lixo, perto do banheiro feminino. Otário!
Enquanto andava tranquilamente, pensei
sobre o que Daniele dissera. Companhia para o
baile não era mesmo problema, certo? Com certeza
qualquer garoto que eu demonstrasse estar
interessada me levaria ao baile, mesmo que
significasse desmarcar com alguma outra garota.
Mas eu tinha que admitir que meu tempo era muito
curto para conquistas elaboradas. A festa já era dali
a duas semanas. Finalmente o ano letivo estava
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acabando, e eu ficaria livre de uma vez por todas do


Ensino Médio. O vestibular estava batendo na
minha porta e eu já tinha bolsa de estudos em duas
faculdades particulares conceituadas. Não dava
para vacilar. Pessoas grandes são pessoas
instruídas, pelo menos era o que o meu pai repetia
incansavelmente. Eu não queria ser um rostinho
bonito pelo resto da vida, afinal, as rugas um dia
apareceriam. Precisava estudar mais e levar o meu
futuro a sério.
Foi pensando no vestibular e no fim de
semana em que teria que passar estudando, em vez
de fazendo compras ou pegando um bronze na
praia, que Carla apareceu bem na minha frente. Sua
expressão diante da minha presença era de
completo espanto. Seus braços estavam em volta do
próprio corpo, como se o clima não estivesse
quente o suficiente para lhe aquecer. Pela primeira
vez na vida, resolvi não fazer nenhum comentário
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maldoso sobre sua triste figura e fingir que eu nem


estava ali. Assim que decidi sair do seu caminho,
ela me fez mudar de ideia ao se aproximar
perigosamente, até quase beijar meu rosto. Eca!
O que aquela anormal queria comigo?
— Retardada! Sai da frente. — Empurrei-a
com a maior força que consegui reunir. Ela deu
alguns passos para trás, completamente
desequilibrada, mas não chegou a cair de fato. Uma
das paredes do corredor lhe serviu como ponto de
equilíbrio.
— Sua hora está chegando. — Carla olhou
em meus olhos de um jeito sinistro. A voz dela saiu
rouca e baixinha, como uma bruxa velha. Nunca a
vi irradiar tanta repulsa quanto naquele instante.
O olhar que me ofereceu era tão penetrante
que um arrepio cruzou o meu corpo inteiro. Seu
meio sorriso sarcástico me fez lembrar a face de um
psicopata que eu vira na TV na noite anterior. Os
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cabelos escorridos, compridos e extremamente


negros, jogados sem pudor sobre o seu rosto, me
fizeram associá-la à personagem Samara, do filme
de terror “O chamado”. Era constrangedor, ao
mesmo tempo horripilante, observá-la tão de perto.
Olhei ao redor e só então percebi que estávamos
sozinhas no corredor largo. O sinal para
retornarmos às aulas já havia tocado, portanto todos
os alunos já deviam ter entrado em suas respectivas
salas.
— Você está ficando louca, garota. Por que
seus pais não a internam num hospício de uma vez
por todas? — Eu a encarei com severidade.
Como não obtive respostas e seu semblante
não pareceu se abalar com minha provocação, dei
as costas, seguindo até a sala de aula mais próxima.
Não queria ficar na presença dela por mais nem um
segundo, e apostava o que fosse que aquele
sorrisinho besta ainda estava estampado em seu
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rosto, pois pude senti-lo queimando minha nuca


assim que me virei.
Mais tarde, ainda na escola, contei a Daniele
o que tinha acontecido. Ela realmente levou a sério
o que a idiota me falou. Não que eu não tenha
ficado assustada, para ser sincera, não pensei em
outra coisa durante a aula de Matemática inteirinha.
Não conseguia tirar da minha memória a maneira
esquisita com que Carla me olhou. Contudo, levar o
que disse a sério era demais para mim!
— Você tem que tomar cuidado com essa
louca, Rafa. Qualquer dia ela pode fazer algo cruel,
tipo te sequestrar e te amordaçar com fita adesiva
em algum galpão abandonado. — Daniele estava
preocupada de verdade enquanto caminhávamos de
volta para casa. Morávamos tão perto do colégio
que não precisávamos utilizar qualquer transporte,
muito menos público, ainda bem. Passei um tempo
refletindo sobre o quanto minha melhor amiga
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andava assistindo a filmes de ação. — Quero dizer,


olha as roupas dela! Carla deve ser filha do satã.
Revirei os olhos, já começando a ficar
impaciente. Nunca gostei de me sentir ameaçada,
não era naquele dia que mudaria de postura.
— Sequestrar? Fala sério, Dani — suspirei
ruidosamente. Aquela historinha estava me
deixando cansada. — Carla não é satânica. Ela é
doida, sempre foi. Além do mais, neste fim de
semana vou apenas estudar, não tem chance alguma
de eu ser sequestrada em casa.
Daniele pareceu se convencer depois da
minha curta e irracional explicação. Ela sempre se
convencia de tudo o que eu dizia. Mas isso não
importava, o que interessava mesmo era que eu
realmente tinha muito para estudar no fim de
semana. Não ficaria me preocupando com
previsões sinistras de retardadas estilo Samara. O
que ela podia fazer? Ligar para minha casa e avisar
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que eu só tinha sete dias de vida? Sair de um poço,


atravessar a minha TV e me perseguir?
Fala sério!

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Capítulo 2

O susto

CHOVEU A manhã inteira do sábado. Agradeci


por isso, pois eu não conseguiria estudar direito
sabendo que metade das minhas amigas poderiam
estar na praia. Acabou que todo mundo ficou em
casa também, e eu pude manter minha consciência
tranquila e minha vida social intacta.
Eram mais ou menos dez horas da manhã
quando escutei um barulho de passos na sala de
estar. Meus pais estavam viajando, e em dias de
sábado Mafalda não fazia limpeza em nossa casa.
Tirei os olhos do meu livro de física. Prestei mais
atenção no que eu estava ouvindo. Os passos
pesados continuaram seguindo de canto a canto da
sala, no andar de baixo, como se alguém estivesse
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preocupado com alguma coisa. Ou querendo


alguma coisa.
— Mãe! Pai! — gritei, na esperança de ouvir
alguma resposta.
Silêncio.
Os passos cessaram, e a única coisa que
consegui ouvir claramente foi a minha própria
respiração ficando cada vez mais acelerada pelo
medo. O tempo pareceu ter parado, por alguns
segundos, sem que nada acontecesse. Eu estava
debruçada em minha cama, com os pés para cima e
uma montanha de livros ao meu redor. Meus braços
começaram a formigar, cansados da posição, mas
eu estava com tanto medo de me mexer que
permaneci quieta.
Eu sabia muito bem o que tinha ouvido, por
isso a certeza de que não estava ficando louca.
Havia alguém na sala, não era impressão minha.
Meus sentidos sempre foram muito aguçados, e
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meus instintos eram melhores ainda. Talvez a


pessoa decidira se esconder depois que eu gritei.
Talvez fosse um assaltante. Talvez fosse Carla
tentando me sequestrar.
A última teoria foi rapidamente descartada.
— Mafalda, traz uma limonada para mim! —
O grito que dei teve o único objetivo de fingir que
eu não estava sozinha. Se fosse mesmo um
assaltante, seria melhor que pensasse que havia
outras pessoas na casa, assim ele acabaria indo
embora. Pelo menos era o que eu esperava.
A única resposta que obtive foi o silêncio
total. Passei uma eternidade reunindo coragem para
me levantar da cama, esperando a respiração ficar
mais controlada. Eu não suportava o nó que crescia
em meu estômago, a maior prova de que eu estava
com medo. Sempre odiei sentir medo, talvez por
este motivo decidi fazer uma coisa que só acontecia
com mocinhas em filmes de terror: fui lá embaixo
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conferir pessoalmente se tinha alguém.


Desci as escadas com cautela, tentando não
provocar ruídos. Foi muito difícil realizar essa
tarefa, visto que, a cada degrau que eu descia, podia
ouvir o rangido característico do piso de madeira.
Mesmo assim, não desisti de tentar ser o mais
discreta possível. Peguei um vaso muito caro que
estava em um dos móveis à beira da escada. Sabia
que mamãe me mataria se eu quebrasse aquele
vaso, se bem que ela não faria nada se eu
argumentasse que o havia quebrado na cabeça de
um assaltante que invadira nossa casa em plena luz
do dia.
Os raios de sol enriqueciam a sala de estar
com um brilho alegre e aconchegante. O clima
começara a esquentar de novo, e os vestígios da
chuva estavam indo embora. Eu sabia que era só
questão de tempo para que a cidade ficasse tão
quente que seria impossível acreditar que tinha
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chovido de manhã. Nada na sala parecia sinistro, o


que de algum modo foi um alívio para o meu
estômago, já que naquela altura do campeonato o
coitado estava quase reduzido a pó. Olhei atrás de
cada cortina, abri todas as portas e janelas,
verifiquei se havia algo fora do lugar.
Nada. Não tinha nada ali embaixo.
Quando eu estava subindo as escadas, com o
coração batendo normalmente e o nó no estômago
dissolvido, o telefone tocou e provocou um barulho
mais alto do que de costume, devido ao silêncio
que tomava conta da casa. Foi por pouco que não
derrubei o vaso da minha mãe no chão. Com
certeza ela não iria ficar feliz quando eu dissesse
que peguei o vaso para quebrar no assaltante e
acabei o deixando cair quando o telefone tocou.
Aaah, por sinal, não havia assaltante algum,
mamãe!
— Alô? — Atendi pedindo a Deus que não
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fosse nenhum tipo de ligação avisando que eu


morreria em sete dias.
— Rafa? — A voz agitada de Daniele me fez
relaxar e suspirar aliviada. — Você está bem?
— Claro que sim, Dani, e você? — Menti
muito feio. Eu não estava nada bem, meu coração
quase escapulia pela minha boca.
— Eu não sei direito. Acabei de acordar.
Sonhei contigo e resolvi te ligar. — Pude sentir
certo ar de espanto em sua voz. O nó em meu
estômago ressurgiu.
— Sonho? Que tipo de sonho?
— Sonhei que eu atirava uma flor sobre uma
sepultura e chorava muito. Quando a cova se
fechou, pude ver a lápide e era seu nome que estava
escrito nela. — Daniele estava mesmo desesperada.
Sinceramente, achei que ela tivesse começado a
chorar.
Achei melhor não dar corda. Minha amiga se
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impressionava com muita facilidade. O que Carla


me disse com certeza mexeu com os nervos dela.
Sonho é sonho, não significava que aconteceria,
certo? Daniele sempre foi meio atacada e
supersticiosa.
— Quer saber, Dani? Chega de estudos.
Vamos ao shopping. — Decidi sair de casa o mais
rápido possível. Aquele clima de velório precisava
ter fim. Nada como fazer compras!
Minha amiga ainda estava preocupada ao
telefone, até que com muito jeitinho acabei
convencendo-a em dormir comigo naquela noite,
depois de irmos ao shopping. Deste modo,
ficaríamos praticamente o fim de semana inteiro
juntas.
— Está bem, te vejo daqui à uma hora no
point da turma! — sugeri e coloquei o telefone no
gancho antes que ela mudasse de ideia.
O point da turma era um Mc Donald’s que
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ficava bem em frente ao principal shopping da


cidade. Sempre tinha gente da escola no local, em
qualquer horário que fosse. Ali era um ótimo lugar
para paqueras e, quando eu chegava, todos se
esqueciam do que estavam fazendo para
simplesmente me verem passar. Sendo assim, tive
que refazer a chapinha e escolher um visual bem
bacana, que provavelmente seria copiado pelas
garotas na segunda-feira.
Resolvi tomar um banho quente e rápido, mas
a sensação repentina de estar sendo observada se
manteve muito forte, não dava para ignorar. Eu não
fazia ideia de quem estava me observando, mas não
estava em meus planos ficar sozinha em casa para
descobrir. Tentei agilizar meus movimentos, e sem
querer meu cotovelo bateu no aparato que
equilibrava os meus produtos de beleza. O
shampoo caiu no chão, fazendo um barulho
absurdo e ecoando em todo o banheiro. Meu
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coração quase saiu pela boca.


— Carla, sua idiota! — gritei alto, assustada
comigo mesma. A culpa de todo aquele medo em
meu peito era dela. Seus olhos de bruxa foram
capazes de colocar caraminholas na minha cabeça,
não tinha outra explicação.
Depois daquela ceninha no corredor, fiquei
assustada com qualquer ruído metido a besta. O
fato de estar sozinha em casa também não ajudava
em nada. Eu precisava sair dali o mais depressa
possível. Enxuguei-me com uma toalha fofinha,
depois escolhi uma roupa rapidamente, pois era mil
vezes melhor sair de casa fora de moda do que ficar
sozinha por alguns minutos a mais. Minha sorte foi
ter comprado roupas novas recentemente, que
estavam em meu armário ainda com etiquetas.
Aquelas mesmas roupas que eu pretendia não usar
e acabariam doadas a alguma instituição quando
minha mãe resolvesse separá-las. Com muita sorte,
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parariam nas mãos de uma das filhas de Mafalda.


O point da turma não ficava tão longe assim
da minha casa, por isso tomei a decisão de ir
caminhando mesmo. Meus pais não me
autorizavam usar o carro, pois eu ainda não tinha
carteira de habilitação. E o motorista da família
estava de folga, pegar um ônibus: nem pensar. Não
fiquei nem mesmo desanimada com a ideia de
chegar ao point sem fôlego ou com resquícios de
suor na pele. Seria uma caminhada para pensar nos
últimos incidentes, além de ser a forma mais rápida
de sair de casa.
Depois que dobrei a primeira esquina, não
parei de pensar em um monte de coisas ao mesmo
tempo. Tudo bem, eu estava sem namorado e o
baile de conclusão seria dali a duas semanas. Voltar
para Kevin estava fora de cogitação, apesar de que
havia umas trezentas ligações não atendidas dele
em meu celular. Eu não era uma garota de voltar
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atrás. Quando eu decidia o que queria, ia até o fim.


Os olhos doentios de Carla não saíam de
minha mente. Algo no que ela havia dito me dava
arrepios na espinha. Todas as lembranças que eu
tinha dela se voltaram para o último encontro que
tivemos. Aquela criatura jamais abalou tanto o meu
psicológico, era eu quem sempre a abalava.
Recordar o seu olhar desumano, marcante e
inexplicável me causou mais um monte de arrepios.
Eu também não tinha engolido direito aqueles
passos que andavam pela minha casa. Sem falar
naquelas sensações estranhas e no sonho de
Daniele. Tudo estava tão esquisito!
Foi pensando em como Carla havia me
assustado, no suposto assaltante e em como eu faria
para conquistar algum gatinho para ir ao Baile
comigo, que o impensável aconteceu. O começo do
meu fim.
Eu realmente não prestei atenção naquele
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semáforo. Nem mesmo saberia dizer se estava


atravessando a pista na faixa ou não. Estaria
mentindo se dissesse que olhei para os dois lados
da avenida antes de prosseguir. A única coisa real
em que me concentrei durante todo o percurso foi
no ruído de meus saltos, ora na calçada, ora no
asfalto, quando eu atravessava alguma pequena rua
ou cruzamento.
A minha última ação foi constatar que o point
estava bem na minha frente, depois da avenida
larga e movimentada. Com certa pressa em chegar
logo e poder desabafar tudo o que eu estava
sentindo para Daniele, e quem sabe descolar um par
para o baile, eu me esqueci completamente que
existia uma pista me separando de meus objetivos.
Depois, a única coisa que pude ouvir foi um freio
ensurdecedor e um baque oco terrível.
Em seguida, veio a dor. Senti uma pontada
aguda tão insuportável no lado esquerdo do meu
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corpo que me imaginei flutuando no ar, como se


estivesse voando. De fato, o chão me pareceu
distante por alguns segundos. Ouvi gritos, mas eles
foram embora tão logo o chão se aproximou do
meu corpo novamente. O nada tomou conta da
minha existência, um vazio aterrador que me
removeu do meu próprio eu para me transformar
em escuridão. Na mais pura e completa escuridão.

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Capítulo 3

O despertar

— ELA NÃO devia estar aqui tão cedo — ouvi um


timbre muito suave sussurrar bem perto do meu
ouvido. Era uma voz feminina que parecia estar
calma como alguém acostumada a repetir tais
palavras. — É um absurdo.
Eu estava deitada em algum lugar
desconhecido, não conseguia me mexer nem
mesmo abrir meus olhos. Tentei usar de toda minha
força para me mexer. Não aconteceu nada,
continuei imóvel. Era como se eu tivesse perdido o
controle do meu próprio corpo. Só consegui
perceber que além de meus olhos o ambiente estava
claro por causa da cortina de luz que me fazia
franzir o cenho. Senti um cheiro forte de alfazema.
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De algum modo, aquele odor me fez manter a


calma e me sentir mais protegida.
— Ela despertou, porém ainda não tem
controle de si — falou serenamente um homem. A
voz rouca indicava que provavelmente ele era um
idoso.
— Talvez devamos mandá-la de volta — a
mulher com a voz maravilhosa tornou a murmurar
bem perto de mim. Eu queria muito abrir os meus
olhos para conferir quem era aquela pessoa, no
entanto nada que eu tentasse parecia o bastante para
conseguir me mover.
— É tarde demais — respondeu o velho. —
O corpo dela não suportaria.
Onde eu estava, afinal? Quem eram aquelas
pessoas?
Comecei a achar, buscando um pouco de
sobriedade, que ali podia ser algum tipo de
hospital. Será que eu estava em coma? Isso podia
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explicar aquela paralisia bizarra que só não me


angustiava porque a alfazema me trazia uma
tranquilidade sobrenatural. Eu sentia muita sede.
Minha boca estava seca, e minha garganta, áspera.
Tentei pedir água, pois se tratava de uma sede fora
do comum. Nada. Não consegui fazer nenhum
movimento.
— Se acalme, Rafaela, você vai ficar bem
logo — disse outro homem, agora parecendo ser
bem mais jovem. Sua voz, de alguma maneira, foi o
suficiente para me fazer sentir melhor. Parei de
tentar me mover.
Depois de me acalmar consideravelmente,
pensei na minha atual situação, já que meu cérebro
parecia funcionar muito bem. Demorei um pouco,
mas cheguei à conclusão de que eu sofrera um
acidente e parei no hospital. Aquelas pessoas eram
médicos, talvez fazendo algum tipo de cirurgia e
por isso eu não conseguia me mexer ou sentir o
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meu corpo. Aspirei profundamente um pouco da


alfazema. Meu suspiro foi como um interruptor que
apagou o meu cérebro sem que fizesse qualquer
esforço, e então tudo em mim adormeceu.
Quando abri os olhos, tive a sensação de que
estive dormindo há dias um sono pesado, sem
sonhos e sem pesadelos. Eu estava deitada no que
parecia uma cama normal, dentro de um quarto
comum que não era o meu. Aquele tinha as paredes
pintadas em um tom bonito de rosa-claro, além de
apenas uma janela e uma porta, ambas fechadas. Os
móveis se resumiam a um criado-mudo ao lado da
cama e uma cadeira encostada na parede. O
ambiente estava bem iluminado, porém eu não
conseguia ouvir qualquer ruído. Tudo estava no
mais completo silêncio, exceto pela minha
respiração.
Não havia tubos em meu corpo, e nem uma
máquina de medir os batimentos cardíacos. Na
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realidade, não existia aparelho hospitalar algum por


perto, o que me fez estranhar bastante. Se passei
por uma cirurgia por ter sofrido um acidente que
me deixara imóvel durante um tempo, certamente
eu deveria receber cuidados médicos
especializados.
Que tipo de hospital era aquele?
Eu me sentei na cama bem devagar, aliviada
por conseguir me mexer normalmente. Os lençóis
eram brancos e pareciam bem limpos. Percebi que
eu vestia uma camisola fina de algodão rosa com
botões na frente. Pus as mãos em meus cabelos,
achando que eles estariam horríveis. Para minha
surpresa, os fios soltos mantiveram a última
chapinha que fiz ainda em casa.
Talvez eu não tivesse dormido tanto, afinal.
Ao lado da cama, notei a presença de
pantufas brancas e felpudas, semelhantes a dois
coelhinhos bem fofinhos. Calcei-as, decidida a me
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levantar e descobrir de uma vez por todas onde eu


estava. Sobre o criado-mudo havia uma jarra e um
copo de água, muito bem-vindos em minha boca
seca e em meus lábios rachados. Tomei quase todo
o conteúdo disponível e me pus de pé, bem
devagar.
Assim que levantei, alguém abriu a porta.
— Rafaela? Ah, você acordou! Esperávamos
pela sua recuperação. — Uma mulher com longos
cabelos pretos se aproximou da beirada da cama.
Ela aparentava ter mais ou menos uns quarenta
anos de idade. Seus olhos claros eram marcantes e
inspiravam muita tranquilidade, porém o mais legal
ainda eram os seus cabelos: eles desciam em
cachos volumosos até além de sua cintura.
Senti uma paz tão intensa em meu coração
que não pude conter um sorriso ao observar aquela
mulher adorável. Tomei meu comportamento
abobalhado como uma prova concreta de que meus
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sentimentos estavam mesmo muito conturbados.


Onde já se viu sorrir feito idiota para uma
mulher que provavelmente era enfermeira de um
hospital?
Se bem que as roupas que ela usava eram
muito esquisitas para pertencerem a uma
enfermeira. A bela mulher trajava um vestido
branco com faixas de seda prateadas. O vestido
escorria até o chão, de modo que não dava para ver
seus pés. Nenhuma enfermeira usaria algo assim
em seu ambiente de trabalho, nem nos mais
modernos dos hospitais.
Apaguei o sorriso instintivamente. Meus pais
deviam estar pagando muito caro por aquele
serviço, portanto eu não me via na obrigação de
sorrir para ninguém. Fechei a cara e me recompus.
— Onde estou? — Quase não reconheci a
voz rouca e cansada que saiu da minha boca.
— Não faça perguntas agora, Rafaela, você
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ainda não está totalmente curada. — A


desconhecida me tocou nos braços e tentou me
fazer deitar na cama novamente. Obedeci sem
pestanejar. Quero dizer, eu tinha escutado minha
própria voz, claro que eu não estava nada bem.
A única coisa que me preocupava eram os
ferimentos. Não encontrei nenhum hematoma pelo
meu corpo, mas será que havia machucados em
meu rosto? De qualquer forma, eu não estava
sentindo dor alguma. A anestesia que me deram era
das boas.
Pensei no baile de formatura ao imaginar
meu rosto todo deformado. Nem pensar! Eu nunca
sairia de casa me sentindo horrorosa, de jeito
nenhum.
— Preciso de um espelho, um bem grande.
— Gesticulei com os braços. — E de roupas
também. Essa camisola é muito infantil, já tenho
quase dezoito anos. — Olhei para as pantufas em
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meus pés, tentando ignorar a face serena daquela


mulher.
— Não se preocupe, você está ótima. Pode
ver a si mesma. — Ela apontou para o criado-
mudo, no qual pude ver um espelho de mão
prateado.
Avancei sobre o objeto para pegá-lo sem
precisar me levantar totalmente da cama. Só depois
que me lembrei de que ali não havia espelho algum
quando acordei. Ou então eu não tinha percebido
tamanha a sede que sentia.
Sem fazer perguntas, peguei-o e olhei o meu
reflexo. A mulher tinha razão, não havia nada
anormal em meu rosto. Os olhos verdes
continuavam iguais, exceto por um brilho especial
contido na íris, algo que não consegui identificar
direito. Eu estava sem maquiagem, mas minha pele
continuava bonita, sem olheiras, graças aos céus.
Os lábios mantinham uma coloração rosa-bebê.
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Meus cabelos loiros e compridos escorriam como


se eu tivesse feito chapinha naquele exato
momento. A franja estava tão perfeita como jamais
nenhum salão de beleza soube deixar.
Sorri, satisfeita com a minha imagem.
— Viu? Você está bem. Daqui a uma hora
estará bem melhor, e então poderá vestir suas
roupas. Virei te buscar assim que estiver pronta.
Fiz uma careta, desviando o rosto do espelho
só para encarar a suposta enfermeira.
— Vou ter alta? Cadê meus pais, não
puderam chegar ainda da viagem?
A mulher não teve a mínima decência de me
responder. Apenas me cobriu com os lençóis
brancos e sorriu. Logo em seguida, caminhou em
direção à porta e me disse para dormir um pouco
mais. Pensei em não fazer o que ela pediu, mas
ainda podia sentir meus olhos pesados.
Como se fosse mágica, apaguei novamente.
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Notei uma coisa esquisita em meus pés, e


talvez por este motivo abri os olhos de uma vez.
Sentei na cama e visualizei uma caixa branca,
enrolada com uma fita de seda vermelha, como se
Papai Noel tivesse deixado algum presente. Eu me
recordei de meus tempos de criança, meus pais
sempre faziam aquilo na manhã de natal.
Havia luz entrando pelo vidro da janela, sinal
de que ainda era dia. Não tinha relógio algum por
perto, e eu não fazia a menor noção da data, da hora
e nem do mês. Abri a caixa branca com muito
cuidado, presumindo que fosse alguma encomenda
enviada por meus pais, mesmo que eu não tivesse
encontrado um bilhete.
Resfoleguei assim que percebi que se tratava
de um vestido. Era um daqueles que só se viam em
princesas de filmes e desenhos animados. O tecido
era simples, leve e da mesma tonalidade da
camisola que eu vestia. De início, não quis colocá-
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lo, mas depois mudei de ideia. Sair do hospital


vestida de princesinha talvez fosse bom. Pelo
menos sairia dignamente daquele lugar esquisito.
O vestido cabia perfeitamente em meu corpo,
como se cada detalhe tivesse sido costurado
pensando em mim. Era uma peça comprida, por
isso ela quase batia no chão. A única pessoa que
sabia todas as minhas medidas exatas era Mafalda,
portando conclui que fora ela quem o mandou para
mim.
Andei um pouco pelo quarto, descalça
mesmo, já que as pantufas haviam sumido, mas
logo percebi que em seu lugar havia sapatilhas cor-
de-rosa muito confortáveis. A pessoa que as
colocou ali estava realmente querendo me ver usá-
las com o vestido, visto que combinavam bastante.
Eu estava um pouco cansada para contrariar, o que
me fez calçar as sapatilhas sem soltar qualquer
reclamação. Eu me olhei novamente no espelho.
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Estava ótima, ainda melhor que antes.


Coloquei a camisola dentro da caixa que
acomodava o vestido, visto que não encontrei
nenhum tipo de armário, quando a mulher entrou
no quarto.
— Vejo que está pronta, Rafaela. Agora,
podemos ir. — Ela sorriu, pegou minhas mãos e me
obrigou a acompanhá-la porta afora. Minha
curiosidade fez com que eu a seguisse sem fazer
perguntas.
Assim que deixamos o quarto, fiquei
admirada com o tamanho daquele hospital.
Passamos por um corredor muito largo e comprido,
repleto de portas de madeira pintadas de branco.
Era tudo muito claro naquele lugar, e ficou ainda
mais esquisito quando percebi que não havia
lâmpadas no teto. O sol devia estar brilhando muito
forte àquela hora, mas eu não fazia ideia de como
aquele hospital funcionaria à noite.
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Pensei em perguntar à mulher onde estavam


todas as lâmpadas, mas tive medo de fazer papel de
boba, pois provavelmente eles tinham um sistema
de iluminação diferente. Aquele hospital devia
realmente custar uma fortuna, meus pais não
poupariam dinheiro para me ver bem e com saúde.
Chegamos ao fim do grande corredor. Não
havia recepção ou elevadores como imaginei,
apenas uma porta grande que estava aberta e dava
diretamente para a saída do estranho hospital.
Fiquei imediatamente impressionada. Tudo
era muito iluminado e verde lá fora. Demorei um
pouco a me acostumar com a claridade. Quando,
enfim, meus olhos conseguiram se abrir
completamente, reparei nas muitas árvores e no sol,
que brilhava tão forte que não dava para ver
exatamente a posição dele. A mulher continuou a
andar pela rua tranquilamente, e eu apenas a segui.
Não parei de me admirar com o ambiente. Não
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havia carros, bicicletas ou motos circulando pelas


ruas. As pessoas, sempre sorridentes, andavam
vestidas com roupas simples, de coloração leve.
Algumas criancinhas brincavam em um parque
extremamente florido adiante. A sensação de paz
pulsava em meu peito de modo sufocante. Comecei
a chorar de repente, mal podendo suportar o aperto
em meu coração.
— É assim mesmo, Rafaela, é muito
emocionante. — A mulher riu para mim. Eu estava
completamente envergonhada por ter aberto o
maior berreiro na frente de alguém, mas as dúvidas
eram muito maiores do que a vergonha.
— Onde estamos, afinal? Tiveram que me
transferir para algum hospital em outro país? — Eu
não conseguia entender o que acontecia comigo.
Era horrível estar em um local totalmente
desconhecido, com uma pessoa que nunca vi na
minha vida.
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E por que diabos eu estava chorando? Dá


licença, não sou de chorar.
— Suas respostas chegarão. Tenha calma e
admire o caminho até a Casa de Viagens. — Ela
pareceu ingerir uma dose de seriedade repentina.
Não ousei fazer mais nenhuma pergunta. Apenas
chorei e chorei, sentindo uma alegria muito grande
e uma tristeza igualmente enorme.
Uma sensação de... vazio.
Caminhamos por algumas ruas alegres e
coloridas. Todas as casas seguiam o mesmo padrão:
eram todas simples, porém inspiravam conforto e
possuíam vastos jardins. As casas não tinham
muros, nem portas, nem janelas. Ninguém tentava
manter nada trancado do lado de dentro, nem solto
do lado de fora. Que estranho!
Algumas pessoas que passavam por nós
cumprimentavam a mulher, sorrindo abertamente.
Naquele momento, coloquei em minha mente que
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com toda certeza estávamos em uma espécie de


condomínio privado. Talvez meus pais tenham
optado por realizar minha recuperação em um
ambiente mais alegre e calmo. A cidade grande não
era um bom lugar para respirar saudavelmente.
Após uma longa caminhada, entramos em
uma construção muito maior do que as outras.
Antes de entrarmos, no entanto, consegui ler a
placa fincada no gramado verde localizado bem na
entrada: “Casa de Viagens”. Seguimos por um
corredor similar ao do hospital, passando por
diversas portas, todas iguais, até pararmos em uma
identificada como “Retornos Especiais”.
A mulher pegou um enorme molho de chaves
do bolso de seu longo vestido, e não demorou
nadinha a identificar qual era a que correspondia
àquela porta. Tipo assim, ela devia ter as chaves de
todas aquelas portas, inclusive as do hospital, e
mesmo assim não errou! Resolvi continuar sem
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fazer perguntas. Afinal, tudo estava muito estranho


mesmo, e as respostas provavelmente se
encontravam além daquela porta.
Entramos em uma sala grande, com uma
mesa de reuniões no centro. Havia algumas
cadeiras ao redor dela. Era um ambiente que
poderia facilmente pertencer a uma empresa
importante. Porém, o que mais me admirou foi a
presença de um velhinho, que parecia estar bem
cansado, e de um rapaz com um sorriso bonito,
ambos sentados ao redor da mesa. Eles
interromperam o assunto que estavam discutindo e
me olharam intensamente assim que entrei no
recinto.
Os dois homens vestiam roupas brancas e
leves, como se naquele lugar as pessoas cultuassem
alguma cultura hippie baseada na paz e no amor,
bicho. Eu até que achava legal, mas também muito
esquisito para um hospital privado. A mulher
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desconhecida me guiou para uma das cadeiras,


obrigando-me a sentar. Os homens não pararam de
me encarar até que todos estavam acomodados.
— Sei que tem muitas perguntas a fazer,
Rafaela. Responderemos a todas que pudermos —
o velhinho teve dificuldade para falar.
Ele parecia estar mais morto do que vivo,
coitado. Como deixavam um ancião trabalhar no
hospital? Quero dizer, ele devia estar aposentado há
muitos anos.
— Sim. — Arquejei, projetando o meu corpo
para frente. — Não pude deixar de notar que tudo
aqui é meio esquisito. Onde estou? Aqui é algum
tipo de condomínio? — Tentei manter o controle da
situação sem fazer papel de idiota. Até porque o
rapaz que estava na sala era bem bonito e não
parava de olhar para mim.
Tudo bem, sabia que aquele não era lugar
para paqueras, mas eu não era cega e não fui eu que
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comecei a dar mole.


— Rafaela, todos os encarnados
desconhecem este lugar. — O rapaz bonito entrou
na conversa. Ele tinha uma bela voz. Caramba...
Tinha mesmo! — Apenas os desencarnados podem
alcançá-lo. —Seus olhos escuros pareciam me
cravar a carne.
Passei um tempão olhando para o sujeito.
Quase o chamei para me acompanhar no baile de
formatura. As meninas do colégio morreriam de
inveja. O rapaz parecia ser bem mais velho que
todos os babacas do terceiro ano.
— Rafaela? — A mulher me trouxe de volta
para a realidade.
— Hã? — Pisquei os meus olhos, lamentando
não ter nem um pingo de rímel em meus cílios.
Será que aquele cara se interessaria por mim,
mesmo sem maquiagem?
— Você agora pertence ao grupo dos
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desencarnados — ela disse, sorrindo. Imaginei que


aquele grupo fosse bem popular, embora o nome
fosse estranho. Acho que eu devia sugerir outro
nome, algo como...
O quê? Espera aí!
— Desencarnados? — Ofeguei, sentindo o
meu coração bater bem depressa. — Tipo... Quem
já morreu?
Eu sabia muito bem o que significava a
palavra “desencarnado”. Mafalda me contara em
um dia qualquer que, quando uma pessoa morria,
sua alma saía do corpo. No fim das contas, apenas
ele morria de verdade, já a alma era eterna. Pelo
menos eu achava que tinha sido aquilo que Mafalda
tentara me dizer uma vez. Eu não estava prestando
muita atenção naquela ladainha. Coisa que tivesse a
ver com defuntos nunca me interessou.
— Justamente. — O velhinho fez uma careta,
ressaltando mais rugas do que dava para ver antes.
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— Eu... — Parei. Tentei falar mais alguma


coisa, porém meu corpo travou todo. Fiquei com a
boca escancarada durante algum tempo, até que a
fechei.
Aqueles malucos tentavam me dizer que eu
morri? Tipo assim, morri? Morte morrida,
mortinha? Mortinha da Silva?
— E-eu m-morri? — Abri os meus olhos ao
máximo. Aquele nó no estômago voltou, e daquela
vez com força total. Eu não podia ter morrido!
Não eu. Não, não e não.
— Infelizmente, sim. Muito cedo, foi um
acidente. Não era para você estar aqui agora,
Rafaela. — O rapaz que eu estava paquerando
tentava sorrir, mas a seriedade do assunto não
permitia. — Escute. Você tem muito que aprender
ainda, mas se está aqui é por algum motivo. Nada é
por acaso.
Seus olhos continuaram mexendo comigo, e
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sua boca falava de um modo maravilhoso, de tal


forma que era impossível não querer beijá-la
durante um bom tempo. Se estivéssemos no point
da turma, com certeza ele seria a presa escolhida
para me levar ao baile. Porém, apesar de tudo eu
não podia pensar em bailes depois de ouvir terríveis
palavras passando por aqueles lábios perfeitos.
Afinal, eles me diziam o inacreditável, o
impossível.
— Vocês estão mentindo! — Bati minhas
mãos na mesa e me levantei, descontrolada. — Não
posso estar morta, não posso morrer! — Comecei a
chorar como uma criança. De novo. — E os meus
pais? Meu Deus, eu tenho que ir ao baile! Só tenho
dezessete anos!
— Acalme-se, Rafaela. — A mulher se
ergueu para me fazer sentar novamente. Eu estava
tão molenga que deixei meu corpo cair de vez sobre
a cadeira. — Você tem que ser forte e encarar os
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fatos. A morte não é tão ruim assim, e não é o fim


de tudo.
Não fui capaz de responder àquilo. Apenas
chorei. Solucei incontáveis vezes.
Não era possível. Não podia ser!
Aquilo não estava acontecendo comigo. Eu
era Rafaela Satto, não podia morrer. Eu era muito
nova para bater as botas.
— E os meus pais? — Choraminguei sem
qualquer dignidade.
— Eles vão ficar bem, não se preocupe. — A
mulher passou a afagar os meus cabelos. — Sua
jornada ainda não acabou. Você precisa ouvir o que
temos a dizer com muita atenção, Rafaela.
Eu me desvencilhei das mãos afáveis daquela
maluca.
— Quem são vocês? — perguntei quase
gritando. Aquele povo esquisito não me diria o que
fazer sem mais nem menos.
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— Meu nome é Magnólia. Este é Severino —


ela apontou para o velhinho debilitado — e este é
Leonardo — indicou o lindo rapaz. Ele ainda me
olhava com muita intensidade. — Somos
Conselheiros de Luz.
— Que tipo de conselheiros vocês são? Eu
não preciso de conselho algum, só quero ir para
casa!
— Não temos mais tempo, Mag. — Severino
encarou Magnólia com pesar. Ela pareceu aflita,
olhando incessantemente para os lados.
— Escute, Rafaela... — Leonardo se levantou
da cadeira e se aproximou com tranquilidade. Ele
parecia desfilar, era lindo o jeito como se movia.
Fiquei embasbacada, observando-o com o coração
na mão, sentindo-me flutuar junto a ele, ao mesmo
tempo em que estava indignada por causa do que
todos estavam me dizendo. — Você tem que voltar.
No entanto, seu corpo morreu, ele não serve mais
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para você.
— O... O que aconteceu com ele?
— Você terá que voltar para a Terra como
desencarnada. — Leonardo ignorou a minha
pergunta. Parou diante de mim, e mal contive um
suspiro. Poucas vezes tinha visto um homem tão
gato, alguém como ele só existia em revistas e
filmes.
Olhei para todos os presentes. Os três
pareciam bem sérios. Apenas Magnólia mantinha
uma seriedade aflita, como que preocupada de
verdade comigo.
— Voltar para a Terra? Mas... Como? Vocês
dizem que morri, e agora que devo voltar? Que tipo
de pegadinha é essa? Não tem graça! — Procurei
por alguma câmera escondida nas extremidades da
sala. Sem dúvida aquilo era alguma pegadinha que
colocariam no Youtube depois.
— É a mais pura verdade, Rafaela, e você
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terá que aceitar. Sua missão é muito importante. —


Leonardo se acocorou diante de mim, como os
adultos fazem quando uma criança mimada faz
birra. Só não reclamei porque fiquei vidrada em
seus olhos brilhantes, encantada pela calma que
emanava dele. — Você ajudará uma pessoa,
trabalhará como Guia Protetor. É um cargo de
muita responsabilidade, Rafaela, mas sei que
conseguirá. E, quando conseguir, voltará para cá e
viverá com seus iguais.
— Como descobriu isso, Leonardo? —
Magnólia olhou para ele com ar de preocupação.
— Eu pesquisei, é claro. — Ele sorriu de um
modo peculiar, tão perto de mim que tive a
impressão de ver uma faixa de luz brilhante saindo
de seus lábios.
— Não sabia que você ficaria com este caso.
— Magnólia fazia caretas que não combinavam
muito com sua delicadeza. — Pensei que seria
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minha responsabilidade.
Leonardo se afastou, infelizmente, erguendo-
se para observar Magnólia.
— Eu também não, você sabe como as coisas
andam um tanto complicadas... — Ele parou de
sorrir, dando lugar a um olhar vazio. — Mas
Severino me informou que este caso devia ser meu.
— Não creio que seja muito apropriado... —
A mulher permaneceu bem desconfiada, e eu ainda
tentava entender do que aquela gente estava
falando.
— Confie, Magnólia. Este caso é de
Leonardo — Severino interrompeu o debate.
Aquele bando de gente doida só fazia me
confundir. Cheguei à conclusão de que eu estava
sonhando ou tendo um pesadelo muito ruim.
Magnólia olhou para Severino
demoradamente, e ele apenas devolveu o olhar sem
nada a declarar. Vinda de lugar algum, uma forte
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luz surgiu de uma das paredes da sala, como que


por encanto. Ela era tão forte e clara que tive que
pôr minhas mãos em meu rosto, protegendo meus
olhos daquela luminosidade repentina.
— Chegou sua hora, Rafaela. — Severino se
levantou da cadeira na maior dificuldade.
— Venha, querida, eu te levarei até o portal.
Não tenha medo. — Magnólia me puxou pelas duas
mãos, guiando-me em direção à parede iluminada.
Só aceitei ir com ela porque tive esperança de
acordar do pesadelo assim que eu me encostasse
àquela luz misteriosa.
— Quando precisar, você não estará sozinha.
Confie em si mesma. — Magnólia me empurrou de
leve, e senti meu corpo se comprimir e ser tomado
por toda aquela luminosidade.
— Você pode me chamar a qualquer
momento, Rafaela. — Leonardo também se
aproximou. Seus olhos não largaram os meus até
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que a luz me tomou por completa, impedindo-me


de continuar o encarando.
Eu perdi a consciência de mim mesma por
algum tempo. Aquela claridade rodopiava em volta
do meu corpo, e eu me sentia como se estivesse
flutuando no espaço, perdida em uma dimensão
desconhecida.
Quando menos imaginei, me vi parada na
mesma avenida em que sofri o acidente. Os carros
passavam sem notar a minha presença no meio da
pista, seguindo livremente por dentro do meu
corpo, que agora nada mais era do que uma leve
membrana fina e sutilmente iluminada.
Eu não era real.

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Capítulo 4

O regresso

ATRAVESSEI A avenida correndo, estava muito


assustada com aqueles veículos passando por
dentro de mim sem me atingirem. Meu coração
batia acelerado no peito, quase saindo pela boca.
Eu não podia acreditar naquela situação surreal.
Certamente aquele era, de longe, o pior pesadelo
que já tive. Qualquer hora eu sabia que acordaria
no aconchego da minha cama. Como uma louca,
tentei me beliscar algumas vezes, mas mesmo
assim continuei à beira daquela avenida
movimentada. Soltei alguns gritos, clamando por
socorro, mas nenhum transeunte pareceu me
escutar.
Não tive qualquer opção além de vagar pelas
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ruas, pensando em tudo o que aquelas três pessoas


haviam me dito na Casa de Viagens. Eu ainda
usava aquele vestidinho rosa de princesa e as
sapatilhas combinando, prova de que minha
passagem por aquele lugar esquisito realmente
aconteceu. Não sabia para onde ir ou o que fazer
para acordar de vez, estava perdida, desnorteada,
mas o pior de tudo era ser ignorada por todas as
pessoas que passavam por mim.
Seria mesmo verdade que morri? Impossível.
Olhei para as minhas mãos. Elas agora
estavam envoltas em uma luminosidade bem sutil.
O desespero completo quase invadiu a minha
mente. Podia sentir o meu rosto esquentando de
puro pavor. Não existia outra explicação para que
acontecera com o meu corpo; aquilo tudo só podia
mesmo ser um pesadelo proveniente do meu senso
de criatividade.
Caminhei vagarosamente até a minha casa,
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com medo do que poderia encontrar quando lá


chegasse. Sabia que precisava de um descanso, e no
meu quarto eu sempre conseguia pensar em uma
saída para qualquer problema. Quem sabe meu
corpo voltasse ao normal depois de um bom banho?
Talvez só estivesse cansada e abalada, imaginando
coisas que não existiam.
A minha casa sempre foi bonita e tinha um
jardim muito sofisticado logo na frente, porém,
quando me aproximei, a única coisa que notei foi a
quantidade de carros estacionados. Identifiquei
alguns veículos, o Sandero pertencia ao tio Ricardo,
já a pick-up era da tia Betty. A porta estava
estranhamente aberta e, por isso, entrei sem
nenhuma dificuldade. Ainda bem, pois havia
perdido a minha bolsa e estava sem as chaves.
O hall de entrada, bem como a sala de estar e
a cozinha estavam lotadas de gente vestida de
preto. Eu vi todos os meus familiares ali,
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circulando vagarosamente pelos cômodos. O


ambiente extremamente escuro me chocou, depois
de um tempo percebi que na verdade não era o
ambiente que me incomodava, mas sim as pessoas
com suas vestes carregadas demais. Mamãe
chorava sem parar, sentada em um de nossos sofás,
consolada por tia Sofia e por minha prima Carolina.
— Ela era tão jovem... — Minha mãe
irrompeu em inúmeros soluços.
Meu coração pareceu ter congelado de
imediato.
— Shhh... Ela está em um lugar bem melhor
agora, querida, acredite. — Embora fizesse papel
de consoladora, titia também chorava tristemente.
Alguns familiares assistiam à TV, entediados.
Meu pai estava com uma cara péssima, como se
não tivesse dormido há vários dias, e conversava
com tio Ricardo num canto da sala de jantar. Tinha
gente que eu nem conhecia cochichando baixinho
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pelos cantos da casa. O mais espantoso era o fato


de ninguém ter notado minha presença até então.
— O que está acontecendo aqui? — gritei
furiosamente, disposta a chamar a atenção de todos.
Eu estava ficando desesperada com aquela cena
toda. O pesadelo parecia não ter fim.
Ninguém teve a decência de responder à
minha pergunta. Gritei ainda mais alto logo em
seguida, questionando se alguém pararia de me
ignorar. Nada. As pessoas não me enxergavam
plantada bem no meio da sala de estar. Aquilo só
podia significar uma coisa: eles não me viam e nem
me ouviam mesmo. Porque eu estava morta. Era um
fantasma agora. E eles estavam todos ali, em luto
pela minha morte.
Aquela verdade congelou cada fibra do meu
ser.
Minha primeira reação foi gritar muito alto.
Nunca gritei tão alto na minha vida. Gritei até
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sentir que não podia mais, até todo o meu corpo


ficar bem quente e o ar faltar em meus pulmões. De
repente, parei. Tia Betty, que se sentava mais
próxima de onde eu estava, olhou na minha
direção. Seus olhos redondos encontraram algo
além de mim.
— Estou sentindo uns arrepios, Mafalda, cruz
credo! — Ela abraçou a si mesma.
Mafalda estava com os olhos tão vermelhos
que dava dó. As olheiras profundas e salientes lhe
atribuíam um ar de tristeza absoluta. Olhou ao
redor, como que procurando por alguma coisa, mas
também não conseguiu me ver. Suspirei de
decepção, pois tinha fé que ao menos ela não me
ignorasse.
— Temos que rezar bastante, Elizabeth. A
alma de Rafa precisa de orações — murmurou a
secretária do lar, com uma voz que achei
irreconhecível. Mafalda era sempre tão alegre e
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serena e, no entanto, estava afogada num poço de


tristeza. Por minha culpa.
Não consegui permanecer naquela casa por
nem mais um segundo. Aquele clima fúnebre era
angustiante, aterrador. Corri porta afora aos
prantos, desesperada por causa da situação
inimaginável. Gritei pelas ruas sem que ninguém
pudesse me ouvir, sem que ninguém se importasse
com meu pranto. Sentia uma tristeza cada vez mais
profunda, uma melancolia sem limites. Após o que
achei ser uma eternidade vagando pelas ruas, sem
direção, percebi que eu ficava cada vez mais
infeliz.
Se existisse um inferno, sem dúvidas seria
exatamente ali, na Terra. Aquele era o meu carma.
Eu tinha morrido, mas não pude ficar no céu e fui
exilada como um cachorro sarnento.
Era óbvio. Como não havia pensado nisso
antes?
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Eu estava condenada a passar o resto da


minha existência vagando sem rumo em um mundo
cruel onde ninguém me notava. Não existia nada
pior do que aquela sensação de vazio e solidão.
Suspirei alto, tentando manter meus pensamentos
em ordem. Eu precisava me controlar.
Tudo bem, Rafaela, você tem que ser
positiva.
Contei até dez, tentando ao máximo não
deixar o medo transformar aquilo tudo em algo pior
do que era, embora não conseguisse pensar em
nada mais frustrante. No entanto, utilizando-me da
teoria de que algo ruim sempre possui suas
vantagens, tentei pensar em quais eu tinha. Pelo
menos na Terra não havia criaturas das trevas, nem
fogo ou pessoas moribundas ardendo e gemendo
como no inferno dos filmes. Aquela sem dúvida era
uma vantagem e tanto.
Até que esse inferno não é tão ruim assim.
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Afinal, eu podia andar pelas praças, conhecer


museus, shoppings, ir a shows sem pagar
ingressos... Além do mais, não precisaria fazer
chapinha de novo. Nunca precisei de absolutamente
ninguém para viver, sempre fui autossuficiente.
Não me interessava se ninguém podia me ver ou
falar comigo. A maioria das pessoas é idiota
mesmo.
Pensar nas vantagens parecia a coisa certa a
ser feita, mas não adiantou muito. Assim que algum
resquício de felicidade quis tomar conta do meu
ser, ele foi imediatamente bloqueado por uma
angústia sem limites. A tristeza era tamanha que
comecei a chorar. Sentei no banco de uma praça
qualquer, sem reparar em nada que estava ao meu
redor, e chorei. Nenhuma outra vantagem que eu
pudesse pensar me fazia ficar bem de novo. Eu
soube daquilo a partir do momento em que
imaginei várias e nada mudou. Nada mais servia de
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consolo.
— Meu Deus... Me ajuda — murmurei entre
prantos, olhando para o céu que estava
extremamente azul. Era um dia particularmente
bonito, mas eu não fazia mais parte dele. A beleza
daquele dia não servia para mim. Serviria para os
vivos, somente.
Acredito que passei um tempão naquele
banco, sem saber para onde ir, o que fazer ou que
pensar. Minhas lágrimas estavam prestes a secar.
Dava para sentir pelo modo como meus olhos
doíam e a cabeça latejava. Mesmo que as árvores
estivessem exalando um cheiro agradável e a brisa
da manhã estivesse batendo suave e morna em
minha pele, não conseguia me sentir bem.
Como poderia me sentir bem? Eu estava
morta.
— Rafaela? — Escutei uma voz suave muito
próxima a mim.
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Levantei a cabeça num pulo, saindo do estado


de transe em que eu nem sabia que havia entrado.
Então, pude ver o rapaz bonito bem na minha
frente. Era o Conselheiro de Luz que eu tinha
paquerado na maior cara de pau.
— Le... Leonardo? — Minha voz saiu
vacilante e fraca, devido às lágrimas.
Ele se sentou no banco ao meu lado, sem ao
menos pedir licença. Seu corpo inteiro estava
envolto com a mesma camada luminosa que cobria
o meu, porém a luz que emanava dele era de longe
muito maior e mais brilhante. Sua pele morena
combinava perfeitamente com aquele véu de luz,
dando suavidade ao rosto benfeito, que não
aparentava mais do que vinte anos de idade. Ele
trajava calças e camisas brancas de um tecido
muito fino, semelhante ao meu vestidinho rosa-
princesa. Seus olhos eram escuros e muito
profundos, queimavam minha pele quando
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colocados sobre mim.


O sorriso em sua boca bem desenhada
parecia um fator constante, como se ele não fosse
capaz de sentir nenhum tipo de tristeza há anos. Os
cabelos, castanhos como os olhos, cacheavam
iguais aos de um anjo protetor. Na verdade,
comecei a achar que os Conselheiros de Luz eram
mesmo anjos.
— O que faz aqui? — resolvi perguntar, já
que ele nada falou, apenas sorriu amistosamente.
Uma onda de paz e tranquilidade emanavam de
seus lábios perfeitos.
— Você me chamou.
— Espera aí, eu não chamei você — foi então
que eu me lembrei de ter perdido ajuda. — Você é
Deus? — O meu fôlego escapou imediatamente.
Esperei por uma resposta negativa. Deus devia ser
muito poderoso, mas não podia ser tão gostoso
quanto Leonardo. Quero dizer, eu não podia
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paquerar Deus daquela forma!


Que tipo de garota eu seria se paquerasse
uma divindade?
— Claro que não, Rafaela! — Leonardo
gargalhou de um jeito bonito. — Estou bem longe
de ser Ele. Nenhum ser é capaz de representar
completamente tamanha bondade.
Senti um alívio absurdo. Até segurei o meu
coração de tanto alívio que senti.
— E então? — Dei de ombros. Se Leonardo
não era Deus, por que falou que o chamei quando
na verdade não pedi ajuda a ele em específico?
— Você já sabe que sou um Conselheiro. É o
meu trabalho ajudar almas como você a encontrar a
Luz. Deu para entender? — Fiquei observando seu
rosto por alguns instantes. Tive a impressão de ter
encontrado a tal Luz só de encará-lo de perto.
Estava explicado porque enviavam um gato
daqueles para salvar almas. Eu já me sentia salva
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pra caramba. — Rafaela?


Pisquei os olhos e balancei a cabeça em
negativa.
— Almas como eu? — pensar na minha
condição como fantasma me deixou, de repente,
bastante irritada.
— Sim. Se estou aqui agora, é porque você
precisa de mim. O meu dever é te ajudar. — Sua
serenidade simplesmente não tinha fim. Imaginei
como deveria ser chato oferecer ajuda com aquele
sorriso estampado no rosto. Eu estaria resmungona
e doida para largar o serviço mais cedo.
Meio chateada por representar um estorvo na
vida do bonitão, não consegui ser delicada.
— Eu não preciso da sua ajuda. — Desviei o
rosto, finalmente me esquivando daquele olhar
sedutor.
Comecei a sentir uma raiva imensa só de
saber que aquele ser iluminado na verdade tinha
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pena de mim. Eu nada mais era do que uma pedra


em seu sapato, um carrapato incômodo lhe coçando
a nuca. Jamais na minha vida alguém sentiu pena
de mim. As pessoas sentiam inveja. Pena, não,
nunca.
— Tem certeza, Rafa? Posso te chamar de
Rafa? — Leonardo se aproximou tanto que sua
perna tocou a minha. Foi um choque que me deixou
embasbacada. Observei o ponto onde nos
encostávamos, parecia que uma energia vibrante
saía dele e me alcançava através daquele mísero
toque.
Que impressionante!
Ergui a cabeça para continuar observando-o.
Para minha surpresa, Leonardo tinha parado de
sorrir e apenas me analisava como se eu fosse
objeto de estudo. A energia vinda dele ainda me
perturbava, por isso me afastei por puro instinto e
cruzei os braços na frente do meu corpo, na minha
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forma mais encrenqueira.


— Não, não pode. Eu não o conheço e não
quero sua ajuda. Posso me virar sozinha. — Eu me
levantei do banco apressadamente e segui pela
calçada.
Leonardo me alcançou bem depressa. Foi tão
rápido que não teve muita lógica. Digo, em um
segundo ele estava sentado no banco, e no outro já
se encontrava logo ao meu lado, segurando meu
braço com suas belas mãos.
— Espere. Aonde você vai? — Impediu-me
de prosseguir minha caminhada.
Olhei para as mãos que me seguravam. Era
incrível. Não dava para descrever direito o que
acontecia. Nunca alguém me tocou daquela forma,
fazendo-me sentir uma paz impressionante, uma
vontade de viver e ser feliz que mal cabia em meu
peito.
Leonardo também olhou para as próprias
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mãos.
— Me solta, garoto! — Eu me desvencilhei,
assustada e bastante irritada com aquelas sensações
boas. Não queria aquele Conselheiro maravilhoso
pegando em mim à toa. Já era difícil ter raiva dele
com aquele sorriso, e ele ainda queria ficar me
pegando?
Nem pensar.
— Tudo bem, Rafaela. Eu te deixarei à
vontade. — Leonardo soltou um pesaroso suspiro.
— Só peço que siga seus instintos e encontre a
pessoa que você deve guiar. Seu papel é muito
importante aqui. Se falhar, as consequências serão
devastadoras tanto para você quando para ela.
— Quem é essa pessoa? — Fiz uma careta
enorme. Eu não estava nem um pouco a fim de
procurar por ninguém, muito menos para ajudá-la a
fazer sei lá o quê.
— Terá que descobrir sozinha. — Leonardo
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deu um passo na minha direção, porém recuei


instintivamente.
— Que ótimo Conselheiro você é! — Bufei,
desdenhado de sua boa vontade para comigo. — Se
tenho que descobrir sozinha, pra quê preciso de
você?
Ele ficou muito sério. Colocou as mãos no
bolso da calça branca.
— Nem pense em ignorar o que te falei,
Rafaela. A tristeza e a dor só aumentarão caso não
cumprir com a sua tarefa. — A seriedade de
Leonardo me deixou espantada, de forma que me
arrependi de ter sido grossa com ele. Mesmo assim,
minha teimosia não foi capaz de me largar.
— Não me parece um conselho, está mais
com cara de ameaça. — Cruzei os braços e sorri
ironicamente.
Leonardo se aproximou, e daquela vez não
tive tempo de me desvencilhar. Ele segurou os
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meus ombros, ainda me observando com seriedade.


Senti meu corpo querer flutuar diante do toque tão
acolhedor. As mãos dele me fizeram acreditar que
eu era capaz de voar com muita facilidade.
— Ninguém quer o seu mal, Rafaela —
murmurou, e meu coração quase saiu pela boca
diante da maciez de sua voz. — Não é uma ameaça.
É a Lei. Alguém que planta milho não colhe feijão.
Não seria justo.
Eu não soube o que responder, mesmo
quando escancarei a boca. Quero dizer, eu não
entendi nada, como podia respondê-lo? Não sabia
como milhos e feijões entraram em uma conversa
que não tinha nada a ver com comida. Foi por me
sentir perdida que fiz a coisa que achei mais óbvia
para aquele momento: comecei a chorar.
Foi assim mesmo, bem rápido. Num instante
eu estava normal, tentando compreender Leonardo
para lhe dar uma boa resposta, e no outro eu
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simplesmente não conseguia controlar a velocidade


que as lágrimas escorriam em meu rosto. Sentindo-
me uma completa idiota por desabar na frente dele,
saí correndo sem olhar para trás, desvencilhando-
me do poder avassalador da energia que dele
sobressaía.
Devo confessar que eu meio que esperei que
Leonardo me seguisse e tentasse me deixar mais
calma com sua aura brilhosa. Quem sabe eu até
permitisse que me tocasse de novo? No entanto,
antes de virar a primeira esquina, espiei um pouco a
minha retaguarda e ele já não estava mais lá.
Conselheiro estúpido.
Continuei vagando sem destino pelas ruas da
cidade. Passei pelas pessoas sem que me notassem.
Algumas sentiam pequenos arrepios quando eu
chegava muito perto, mas não passava disso. Não
sabia para onde ir, só entendia que não poderia
voltar para casa e encarar todo aquele clima de
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funeral. Do meu funeral.


Foi pensando justamente para onde eu iria
que me lembrei do que Magnólia e depois
Leonardo me disseram. Minha missão era ajudar
uma pessoa e procurá-la usando os meus instintos.
O único problema era que eu não tinha instintos,
simplesmente. Estava perdida. Como acharia uma
pessoa naquela cidade enorme sem ao menos saber
seu nome ou endereço? Era como procurar por uma
agulha num palheiro. Mesmo que fosse algum tipo
de missão importante, fala sério! Bastava apenas
um olhar para perceberem que eu não era o tipo de
pessoa mais indicada para o caso. Nunca fui muito
boa em ajudar alguém, exceto quando Daniele e eu
resolvemos renovar o guarda-roupa de Alícia, uma
menina novata que tinha péssimo senso de moda.
Foi pensando no dia em que ajudamos a
novata que me lembrei de Daniele. Eu estava com
muitas saudades dela. Minha melhor amiga era o
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único ser vivo ou morto capaz de me entender.


Bem, nem sempre, mas todas as vezes que ela não
me entendia, pelo menos me escutava. Sentia falta
de alguém mais próximo para conversar, e o
engraçado era que eu nunca imaginei que falar com
alguém fosse tão importante assim. Muito menos
que um dia seria capaz de sentir falta de Daniele.
Diante de todo aquele impasse, a única coisa
que pude sentir foi tristeza. Solidão. Raiva. Era um
misto inexplicável de maus sentimentos. Jamais
senti algo tão forte e devastador. Minhas emoções
nunca estiveram tão conturbadas. Era como se tudo
o que eu conhecia sobre mim mesma e sobre as
coisas estivesse totalmente errado.
Eu estava absorta em meus pensamentos
quando, de repente, parei na esquina de uma rua
típica de bairro de classe média. Havia alguns
carros estacionados, e crianças brincavam seguindo
marcações feitas a giz no asfalto. Era uma rua
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bonita, bem arborizada e parecia tranquila de se


morar. Porém, o que mais me chamou atenção foi
uma casa específica. Não que ela fosse bonita, era
apenas diferente. Não tinha nada de errado em sua
arquitetura: um pequeno jardim meio mal cuidado e
uma pequena varanda iluminada com grades
brancas ao redor. Nada que pudesse chamar minha
atenção de um modo especial. Mesmo assim, senti
um pulsar convidativo dentro de mim, ficando cada
vez mais forte a cada passo que eu dava em direção
ao portão. A ideia de sair dali sem entrar nela era
aterradora, como se fosse algo impossível de
acontecer.
Eu me lembrei instantaneamente do que
Leonardo havia dito.
Será que o que eu estava sentindo era o meu
instinto?
Será que ali morava a pessoa na qual eu
deveria ajudar? Muito provavelmente. Como
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Leonardo me avisou para não ignorá-lo, resolvi


fazer exatamente o contrário e simplesmente ir
embora. Afinal, aquele Conselheiro de meia tigela
não ficaria me dizendo para onde eu devia ir. Dá
licença, eu mesma teria que tomar minhas decisões.
Sair de perto daquela casa foi um sofrimento,
por isso quase desisti de ser tão teimosa. Cada
segundo que me distanciava, mais angústia sentia.
Meu peito ficava apertado como se fosse esmagar
meu coração, que não parava de bater forte a todo
instante. Lágrimas rolavam livremente em minha
face, escorrendo em meu pescoço e às vezes
manchando a pequena gola do meu vestido de
princesa. Resolvi ignorar aquelas lágrimas, pois
chorar não era do meu feitio. Jamais chorei daquele
jeito e não seria o fato de ter morrido que me faria
mudar.
Tentei me manter atenta às ruas por onde eu
seguia, a fim de esquecer a sensação ruim, no
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entanto nada me parecia familiar. A noite já estava


se aproximando, o que me fazia pensar no quanto o
dia tinha passado rápido. O sol deixava apenas tons
de um alaranjado vibrante muito bonito no céu. Eu
curtiria mais o pôr do sol se não tivesse coisas mais
importantes para pensar.
Passei em frente a uma lanchonete e senti
meu estômago reclamar com o cheiro de comida
gostosa. Não passou pela minha cabeça se os
mortos comiam ou não, apenas entrei na
lanchonete, e pronto. Afinal, se era para viver na
Terra, eu esperava pelo menos comer fora todos os
dias, sem me preocupar com qual seria a gororoba
que a Mafalda faria no jantar. Também não
precisaria me preocupar em engordar, pois nunca
ouvi falar em dieta além do túmulo.
A lanchonete estava vazia, talvez pelo
horário avançado. Era um lugar espaçoso e arejado,
contendo características básicas, bem simples.
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Acreditei que aquela lanchonete seria o point de


algum colégio das redondezas, pois havia cartazes
de eleição para presidente de turma colados nas
paredes.
Caminhei até o balcão, sem esperar que
alguém me visse. Atravessei-o sem abrir porta
alguma. Simplesmente passei por dentro dele, nada
sentindo com a travessia. Dentro de um
compartimento onde os alimentos se mantinham
sempre quentes, havia alguns salgados que
pareciam apetitosos. Disposta a pegar algum,
aproximei-me e tentei abrir a portinha. Apenas
tentei, claro, porque não consegui. Quero dizer,
minha mão passava direto e a atravessava.
Tentei inúmeras vezes até finalmente entrar
em desespero pela milionésima vez naquele dia, só
para variar. Se eu não conseguia abrir a portinha,
muito provavelmente também não conseguiria
pegar o próprio salgado.
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E agora? Como eu ia comer?


Será que existia algum tipo de comida para os
mortos? Se existisse eu desconhecia, pois ninguém
tinha mencionado em momento algum.
Que ótimo, Leonardo, grande ajuda você me
deu!
Ele disse um monte de balela e não me falou
sobre como arrumar comida. Incompetência.
Depois eu precisava me lembrar de reclamar dele
no departamento de Conselheiros. Se é que existia
um.
O fato de não poder abrir o compartimento de
salgados me deixou curiosa. Além de desesperada,
sem dúvidas, porém muito curiosa. Será que eu não
tocaria em nada, nunca mais? Viveria na Terra com
tudo ao meu redor me ignorando, inclusive os
objetos? Comecei a achar que aquele inferno
terrestre talvez fosse mesmo pior do que o mundo
de fogo ardendo e criaturas chifrudas.
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Tentei pegar nas panelas que estavam


guardadas por detrás do balcão, a fim de encontrar
alguma coisa que não ignorasse minha presença
física. Não obtive sucesso. Logo em seguida, tentei
desesperadamente tocar nas paredes, mas de nada
adiantou. Saí da lanchonete correndo, absorvida
pela minha própria teimosia, atravessando paredes
e portas da vizinhança sem conseguir tocar em
nada. Passei através de tudo sem que absolutamente
nada me impedisse. Sai e entrei em cômodos sem
nenhuma dificuldade.
Depois de percorrer várias casas, parei,
ofegante, convencida de que não era capaz de tocar
em nada mesmo. Alcancei a rua, com lágrimas nos
olhos. Eu estava simplesmente morta de fome.
Literalmente, morta. Porém a tristeza, a sensação
de inutilidade e o medo do porvir estavam maiores
do que qualquer fome que alguém pudesse sentir.
— O que vou fazer? — sussurrei para mim
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mesma. — Quando isso vai parar? — Senti pena de


mim mesma. Eu estava no fim do poço.
Avistei a mesma praça que eu tinha me
encontrado com Leonardo mais cedo, o que me fez
constatar que andei em círculos o tempo todo.
Resolvida a não deixar que nada me abalasse mais
do que a situação inteira já me abalava, sentei-me
no mesmo banco de antes. Observei as pessoas
deixando seus trabalhos, apressadas para chegarem
logo em casa. Eram rostos desconhecidos,
descontentes em sua grande maioria. Eu também
ficava descontente daquele jeito quando estava
viva. Tudo parecia me irritar e nada me satisfazia.
Todavia, naquele instante, lá estava eu. Sozinha.
Morta. Perdida. O que mais queria era a minha vida
descontente de volta.
Permaneci sentada durante horas, aprendendo
o verdadeiro sentido do ditado popular “só damos
valor as coisas quando as perdemos”. A cada
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minuto que passava, mais as ruas ficavam desertas


e escuras. Percebi algumas pessoas mal encaradas
passando, adentrando becos e áreas escuras que
contornavam a praça. Senti medo como que por
impulso, porém logo me lembrei de que nada mais
podia me alcançar, nem mesmo a violência urbana.
Ninguém podia me ver.
— O que faz aqui, menina? — Um homem se
aproximava do banco.
No início, pensei que não era comigo, mas
ele continuou me encarando fixamente. Era um
homem grande e intimidador, que vestia roupas
bizarras na cor preta. Estremeci apenas ao observá-
lo. Meu estômago se encolheu e retorceu como que
tentando me alertar do perigo iminente.
Como aquele homem podia me ver?
A resposta veio rapidamente quando percebi
que, ao redor de seu corpo musculoso, havia uma
pequena membrana iluminada e fina. Ele também
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estava morto. Como eu, era um fantasma que


vagava.

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Capítulo 5

O resgate

— ESTOU FALANDO com você garota, está


surda? — O homem ficava mais impaciente a cada
passo que dava na minha direção. Eu me sentia
meio que enraizada no banco daquela praça, sem
saber direito como reagir.
Seria estranho se dissesse que eu tinha medo
de ver um fantasma bem na minha frente? Não
fazia muito sentido, afinal, eu estava tão morta
quanto ele, mas o medo existia mesmo assim.
— Já... Já estou indo embora. — Eu me
levantei do banco na maior dificuldade.
— Nada disso, menina. — O homem venceu
a distância que nos separava em um segundo e
agarrou meu braço com uma força fora do comum.
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— Você vem comigo. — Seu olhar cruel me


causou verdadeiro pavor.
Minhas pernas começaram a tremer, mas não
permiti que aquele idiota me tocasse. Quero dizer,
eu já tinha morrido, o que ele poderia me fazer de
tão mal? Foi pensando nisso que puxei meu braço
com a maior força que consegui juntar. O homem
grande ficou surpreso com minha atitude,
provavelmente porque não estava acostumado às
reações controversas.
— Tire o cavalo da chuva, seu otário! —
gritei e me pus a correr para longe dele. Não ficaria
ali para descobrir o que o sujeito queria comigo.
Eu mal virei a primeira esquina e lá estava o
mesmo homem enorme e horroroso, bem na minha
frente. Não tinha a menor lógica física, é claro. Não
que eu gostasse de física, mas sabia muito bem que
o mesmo corpo não poderia ocupar dois lugares no
espaço simultaneamente. A não ser, é claro, que
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aquele homem horroroso tivesse o poder de correr


na velocidade da luz ou de aparecer onde quisesse,
do nada. De todas as teorias que poderiam explicar
aquilo, nenhuma delas era considerada normal.
— Resposta errada, mocinha. — O homem
me agarrou pela cintura brutalmente, puxando-me
para si. Seus braços eram extremamente fortes, e o
cheiro que emanava dele era terrível. Senti nojo,
repulsa, vontade de vomitar e gritar ao mesmo
tempo. — Já vi que você é nova por aqui, não é,
menina? Vou te mostrar como a banda toca.
— Me solta! — Tentei me desvencilhar mais
uma vez, porém não consegui. O desespero tomou
conta do meu cérebro, nebulando meus
pensamentos.
Quando as estranhezas teriam fim?
— Você até que é corajosa, mas isso não
salvará o seu espírito. Eu sei que você não é
inocente e muito menos uma boa menina, apesar
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desse rostinho bonito — o homem cuspiu as


palavras na minha cara, segurando minhas mãos e
aparando todos os golpes que eu dava a fim de
escapar. — Vou te mostrar uma coisa que você vai
adorar.
Ter sido julgada por ele me encheu de raiva,
mas sua força era tão descomunal com relação à
minha que eu estava prestes a me dar por vencida.
Sempre fui uma boa menina, sim, senhor! Pensei
em algum modo de retrucar suas palavras odiosas
quando ouvi a voz que eu estava começando a
reconhecer.
— Solte-a.
Olhei ao redor, bem como o homem grande,
procurando de onde veio o timbre firme,
extremamente decidido, que soou pela rua escura.
No entanto, o desconhecido me prendeu com ainda
mais força e eu nada pude ver, pois fiquei
praticamente coberta por braços enormes e
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imundos. O cara pareceu vacilar por alguns


instantes, mas logo em seguida voltou a me agarrar
com força, quase me sufocando. Gemi de dor e não
consegui mais conter as lágrimas. Eu só queria que
o pesadelo tivesse fim.
— Mandei soltá-la. Vamos, agora. — Eu
conhecia aquela voz. Era profunda e doce ao
mesmo tempo, apesar da firmeza que emanava
naquele instante.
— Não interfira, Conselheiro! — bradou o
homem imundo. Tentei me soltar mais uma vez,
porém ele não estava disposto a facilitar para mim.
— Quieta!
Alguns segundos de silêncio me fizeram
quase ter um troço.
— Não interfira no meu trabalho. — Tive
certeza de que se tratava de Leonardo porque eu
quase podia ver seus olhos ardentes me observando
de tão forte que minha imaginação trabalhou ao
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ouvi-lo. — Não se meta com as ordens do


Conselho.
— Ah, ela é uma protegida? — O cara riu
como se tivessem lhe contado uma piada. — Não
sabia. A energia que emana dela é suja. — Ele
cheirou os meus cabelos, e eu me senti mais
enojada ainda, por isso soltei um choramingo de
pavor. — Eu adoro!
— Já mandei soltá-la! — Leonardo falou tão
mais alto que até eu me assustei.
— E se eu não quiser? — O homem riu
patologicamente, ainda enfiando seu nariz maldito
em meus cabelos.
Leonardo não respondeu nada. Temi que
tivesse desistido de me salvar e ido embora de uma
vez, me deixando à mercê do maníaco, porém uma
forte luz atravessou a escuridão e tomou
completamente a rua. Foi apenas um segundo de
claridade intensa, mas deve ter significado alguma
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coisa, pois o homem gritou tão desesperado quanto


eu estava. Subitamente, fui atirada com força no
chão da calçada. Caí sem jeito, jogando meus
braços no chão para proteger o rosto. Por pouco
não bati a cara nas lajotas.
Nunca fui tão destratada em toda minha vida.
Tive vergonha de me levantar e ter que encarar o
dono da voz que me salvara. Eu tremia do dedão do
pé até o último fio de cabelo, uma pequena parte
por causa do frio e a outra, um tanto maior, de puro
terror. O silêncio voltou, e eu ainda não queria
conferir o que havia acontecido.
Senti mãos quentes alisarem as minhas
costas. Tremi ainda mais diante do forte aconchego
oferecido por aquele toque. Um calafrio percorreu
minha espinha. O medo foi embora de um segundo
para o outro. Simplesmente parei de chorar. Fiquei
calma e tranquila, como se minhas energias
tivessem sido renovadas.
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— Rafaela? Você está bem? — A voz doce


vinha de tão perto que pude sentir seu hálito em
meu ouvido. As mãos me levantaram do chão com
cuidado. — Não tenha medo. Ele foi embora.
Deixei que Leonardo me levantasse
praticamente sozinho. Eu estava confusa demais,
totalmente estarrecida. Não bastava o meu dia ser
desastroso, tinha que me aparecer um alucinado dos
infernos! Todos aqueles acontecimentos horríveis
pareciam fazer parte de um pesadelo sem fim que
me levavam ao extremo do desespero e da agonia.
Portanto não me culpe de não ter conseguido fazer
uma forcinha sequer para me levantar. Também
não me julgue por ter praticamente me atirado nos
braços do único ser capaz de manter nem que seja
um pingo de esperança em meu coração.
— Me ajuda... — sussurrei em seu ouvido,
chorando feito uma pirralha. Eu não estava nem um
pouco a fim de deixá-lo ir embora outra vez.
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Mantive meus braços em volta de sua nuca,


sofregamente, para garantir que não se distanciasse.
Seus braços me envolveram de prontidão. — Eu
não consigo sozinha, não aguento mais. Me ajuda,
por favor, Leonardo. Você é a única chance que
tenho.
Chorei bastante sem que ele nada fizesse
além de intensificar o abraço. Só aquilo foi o
bastante para me deixar mais tranquila.
— Calma, Rafaela. — Ele alisou os meus
cabelos, depois os soltou e segurou meus ombros.
Acho que tinha um pouco de dúvida sobre onde me
tocar. — Vai ficar tudo bem, prometo. Você vai
conseguir.
— Eu fiquei perdida e eu não consigo comer
eu senti umas coisas tem uma casa na outra rua só
que eu não entrei e... Eu sou uma idiota! — falei
tudo de uma vez, sem vírgulas e sem nexo.
Parabéns, Rafaela, você é uma babaca.
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Ergui a cabeça para vê-lo de perto. Quase não


acreditei que ele sorria. Eu estava toda ferrada e
Leonardo ria de mim?
— Vamos, vou te levar a um lugar mais
calmo para você descansar esta noite — ele se
curvou e sussurrou tão perto do meu ouvido que o
hálito agradável me fez cócegas. — Depois
conversamos sobre o que aconteceu. Aqui não é
seguro. — Leonardo olhou ao redor com um
semblante meio preocupado, mesmo que estivesse
tentando disfarçar com aquele sorriso. — Feche os
olhos.
Não tive tempo de discutir, apenas fechei
meus olhos e esperei uma nova ordem para abri-los
de novo. Aproveitei aquele período para abraçá-lo
ainda mais forte e sentir seu calor tranquilizante
envolver o meu corpo. Nem me importei por ele ter
rido de mim. Deitei minha cabeça em seu peitoral e
senti um cheiro inexplicavelmente gostoso e
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convidativo, sem sentir nenhum pingo de pressa em


me separar dele.
— Chegamos. Espero que goste daqui. —
Leonardo, infelizmente, se afastou.
Abri os olhos e me assustei, pois não
estávamos mais na rua deserta, e sim em um quarto
muito arrumado, com móveis simples. Andei pelo
cômodo, ainda abismada pela mudança no
ambiente. Pelos tons predominantes de azul, supus
que era um quarto que pertencia a um homem.
Havia alguns pôsteres de bandas de rock e uma
guitarra pendurada em uma das paredes.
— Este é o seu quarto? — Comecei a rir. Até
os caras mortos queriam levar as meninas mortas
para o seu quarto? Fala sério!
Não adiantou de nada ter evitado o quarto de
Kevin.
— Não exatamente. — Leonardo ignorou a
minha risada que, para ele, devia ter sido sem
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sentido.
— Como assim? — Observei cada objeto que
estava numa prateleira muito organizada, e que
parecia ter sido limpa recentemente, pela ausência
de poeira.
Tinha um porta-retrato prateado em cima de
um móvel onde descansava o computador. Conferi
a fotografia de um rapaz lindo trajando roupas de
formatura. Leonardo. Ele sorria amplamente,
porém aquele sorriso não tinha nem um por cento
do encanto que emanava do atual Conselheiro de
Luz. Que estranho!
— Este quarto era meu, mas hoje não
pertence a ninguém. Minha mãe o mantém assim
desde que morri. — Seu olhar agora parecia muito
distante. — Ninguém vem aqui, ela está tentando
evitar. Limpa uma vez a cada quinze dias e só.
Você ficará segura por enquanto.
Andei um pouco mais pelo cômodo, e vi a
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porta de seu armário entreaberta. As roupas ainda


estavam lá, intactas. Tinham um cheiro forte de
naftalina, provavelmente para que o tempo não as
destruísse. Era interessante observar aquele quarto,
e ao mesmo tempo muito triste. A mãe de Leonardo
devia sofrer muito com a sua morte.
— Quando aconteceu? — perguntei com
curiosidade.
— O quê? — Leonardo estava distraído,
envolto em seus próprios pensamentos.
— Quando você morreu? Faz muito tempo?
— Eu me aproximei de onde ele estava.
— Quatro anos.
Fiquei parada, olhando com muita surpresa
para aquele rosto impecavelmente belo. Quatro
anos? A mãe dele mantinha o quarto intacto há
quatro anos? Só podia ser brincadeira! Apostaria o
que quisessem que sua mãe não fazia ideia de que o
filho ainda vagava por este mundo, ajudando almas
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perdidas como eu. Tive certeza de que, se ela


soubesse, ficaria muito orgulhosa.
— Como você se transformou em um
Conselheiro de Luz?
— Rafaela... — Eu gostava do meu nome
saindo da boca dele. Era afável e profundo. — Não
vamos falar sobre mim agora, por favor. São longos
anos de histórias chatas e desinteressantes. Deite-se
aqui. — Ele removeu o lençol que estava esticado
sobre a cama e pegou um travesseiro dentro do
pequeno armário ao lado. Não pude deixar de notar
a facilidade com a qual segurava as coisas e as
movia.
— Espera um pouco... Você pode tocar nos
objetos! Como consegue? Eu não consigo pegar em
nada!
Ele riu de leve.
— Se me permitir, te ensinarei tudo o que
você precisa saber, porém no tempo certo. Quero
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que descanse agora. Nenhum espírito consegue


fazer nada direito se estiver entregue ao desespero.
— Ele puxou minhas mãos e fez com que eu me
deitasse sobre a cama. — Hoje foi um dia e tanto
para você, e confesso que fiquei chateado quando
não consegui te oferecer apoio. Eu devia ter te
acompanhado melhor, mas não pude. Só podemos
ajudar aqueles que querem ser ajudados. — Pegou
o lençol, me cobriu e depois se sentou ao meu lado
na cama. Fiquei meio surpresa por ter conseguido
sentir o lençol sobre o meu corpo. Por um instante,
pensei que o tecido fosse me ignorar também.
— Você vai ficar aqui até eu dormir? —
Naquele instante, prometi a mim mesma que não
dormiria nada para que assim ele não fosse embora
de novo.
Leonardo olhou para minha cara como se eu
tivesse ficado totalmente sem juízo. Depois,
começou a rir. Isso mesmo, ele riu de mim mais
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uma vez!
— Dormir? Você não vai dormir, apenas
descansar. A gente não dorme.
— Não dorme? Mas estou com sono... — Eu
me espreguicei só para confirmar aquela
informação. — E com muita fome. Nossa, estou
faminta! — Meu estômago revirou.
Leonardo continuou sorrindo.
— Você não está com fome, apenas pensa
que está. Não precisamos comer. — Ele se inclinou
e falou bem perto do meu rosto: — Agora,
descanse.
Eu tinha prendido a minha respiração, mas
soltei de uma só vez.
— Não quero que você vá. — Pisquei os
meus olhos umas trezentas vezes. Confesso que lhe
ofereci o meu olhar fulminante paquerador.
Nenhum cara resistia a ele. Toda vez que eu olhava
para alguém daquela forma, conseguia exatamente
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o que queria.
Leonardo apenas me olhou demoradamente.
Seu sorriso apagou por tanto tempo que tive medo
de tê-lo magoado de alguma forma. Ele parecia ler
cada palavrinha que estava escrita no livro da
minha mente. Não tive coragem de desviar o olhar,
embora estivesse tão constrangida que quase não
consegui permanecer encarando-o.
Uma paquera tinha regras muito simples. Eu
apenas encarava e pronto, o cara já ficava caidinho.
Era natural para mim encarar um rapaz sem outras
intenções e fazê-lo se apaixonar. Poucos eram os
que eu correspondia de verdade. Sempre fui a
garota que encarava firmemente e não a que era
encarada e virava o rosto. Foi exatamente aquilo
que Leonardo fez. Ele ficou me observando,
esperando para ver se eu me mantinha firme ou
não.
Quando eu já não sabia mais o que fazer com
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aquele minuto de silêncio total, Leonardo sorriu de


novo. Dei graças a Deus.
— Na verdade, tenho que ir, Rafaela —
suspirou fundo, e seu sorriso foi embora outra vez.
— Magnólia cuidará de você de agora em diante.
— Magnólia? Mas, por quê? — Sentei-me na
cama, super irritada com aquela mudança de
planos. Leonardo era o Conselheiro responsável por
me ajudar, então por que ele queria mudar de
“turno” com Magnólia?
Ele passou as mãos pelos cabelos, parecia
meio preocupado.
— Acredito que ela te guiará bem melhor do
que eu.
— Não tenho escolha? Você acabou de dizer
que me ajudaria! Não quer me ajudar, é isso,
Leonardo?
— Não é isso, Rafaela.
— Está transferindo o seu trabalho para outra
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pessoa porque não quer ter de suportar a menininha


chata e idiota que só sabe falar besteira e se meter
em confusão? — berrei, malcriada, já com lágrimas
nos olhos.
— Não é nada disso. Absolutamente nada
disso. — Ele olhou para o teto, fazendo alguns de
seus cachos castanhos caírem para trás.
— É o que parece. Mas sabe o quê mais? Eu
não me importo. Tanto faz. — Deitei-me
novamente e comecei a chorar feito uma idiota.
Senti aquele vazio aterrador novamente. O
desespero. A angústia. Todos os sentimentos ruins
estavam de volta como se eu tivesse acordado de
um sonho bom e voltado para a mais triste
realidade; a de que eu tinha morrido e não sabia o
que fazer. Solucei muito, não consegui espantar o
chororô.
Leonardo nada falou, apenas assistiu à minha
nova crise de tristeza. Fez menção de que falaria
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alguma coisa, mas se calou. Passei um tempão


chorando sem parar, com o rosto virado no sentido
do travesseiro, sem que ele nada fizesse. Mesmo
assim, eu sabia que estava ali apenas esperando
meu rompante passar.
— Rafaela... Você precisa de verdade seguir
a sua missão. — Ele me puxou pelos braços, e me
sentei na cama, olhando-o de muito perto. — Nada
pode te impedir ou atrapalhar. Se você falhar, sabe
o que vai acontecer?
— Não... — Balancei a cabeça, ainda
chorando.
— Será julgada pelos seus atos em vida e
condenada a viver em um mundo que... Bom,
quando você acordou, estava num lugar
maravilhoso, lembra? — Seus olhos permaneceram
apontados para os meus firmemente.
— Lembro — respondi chorosa, relembrando
o momento em que Magnólia me levou para o
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Salão de Viagens.
— Você viverá em um mundo que é o oposto
daquilo. — Leonardo fez uma pausa dramática
antes de prosseguir: — Terá que entender cada um
dos erros que cometeu de uma forma ainda mais
difícil. Neste outro mundo, nem eu, nem Magnólia
e nenhum outro Conselheiro tem permissão para te
ajudar.
Meu queixo deve ter caído, pois não consegui
reagir àquelas novas informações.
— Não quero que nada te desconcentre de
seu objetivo — continuou Leonardo, ainda muito
sério. — Irei te ajudar com o maior prazer do
mundo, desde que você se concentre na missão e
nos ensinamentos que te passarei. Você promete?
Soltei um longo suspiro. Tive medo de tudo,
inclusive de mim mesma.
— Eu prometo. — Abracei meu próprio
corpo.
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— Caso perceba sua desconcentração,


chamarei Magnólia ou Severino para te
acompanhar nessa caminhada. — Só de pensar em
ser ajudada por Severino fiquei com medo de me
“desconcentrar”.
Fala sério, como um velhinho fraco poderia
me ajudar?
— Já entendi. — Eu não era idiota, tinha
compreendido o que Leonardo queria dizer.
Significava nada de paquera, nada de encaradas,
nada de abraços ou coisas do tipo. Aquele era um
fora dos grandes. Ele estava me dispensando. Eu,
Rafaela Satto, a garota que nunca foi dispensada.
— Não se preocupe, não estou inclinada a me
desconcentrar com bobagens, apesar de ter sido
uma boba até agora.
Um fora de um fantasma. Que ótimo, eu não
precisava de mais nada.
O que faltava acontecer? Chover canivete em
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cima de mim?
— Ótimo. Agora, descanse. Ficarei sentado
naquela poltrona — apontou para o canto do
quarto. — Se precisar, me chame.
De fato, as horas de descanso me fizeram
muito bem. Senti-me sonolenta o tempo todo, mas
realmente não consegui dormir. A fome tinha
passado, e eu já me sentia bem mais disposta.
Fiquei impressionada, pois descansei apenas umas
três horas e já me sentia revigorada, como se
tivesse dormido durante dez horas.
— Acho que já estou melhor.
Leonardo ainda estava sentado na poltrona
que parecia superconfortável. No princípio achei
que ele tivesse dormido, pois seus olhos estavam
fechados, mas assim que falei, ele os abriu de
prontidão. Não pude deixar de admirar toda a sua
beleza. A luz que o envolvia estava mais brilhante
do que de costume. Seus cachinhos de anjo estavam
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bagunçados de uma forma calculada. O cálculo era


justamente a medida certa para me deixar
totalmente a fim dele. Mas eu não o paqueraria de
novo. Nunca mais. Não depois do fora da
desconcentração.
Ele se aproximou de mim e sentou na cama.
Também me sentei e afastei os lençóis, deixando as
pernas em posição de borboleta.
— Quero que me conte tudo o que puder
contar sobre o que eu devo fazer aqui — pedi
secamente. Eu estava disposta a ser fria com ele.
Afinal, não queria que pensasse que eu estava me
desconcentrando.
O tom que usei pareceu surpreendê-lo. Ele
olhou, com estranheza, para o pequeno abajur que
estava ao meu lado, e passou as mãos no cabelo
suavemente.
— Tem coisas que simplesmente não posso
falar, pois sou apenas alguém que está aqui para te
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ajudar, e não para fazer por você. — Ele ainda


encarava o abajur.
— Pois então me diga o que pode dizer.
— Sua alma teve uma chance, uma
oportunidade de se redimir, e por isso você está
aqui. Seu corpo morreu muito jovem, Rafaela.
Você tinha muito que aprender sobre a vida e as
pessoas ao seu redor. — Agora ele olhava para o
lençol que cobria a cama. Parecia querer olhar para
todo canto, menos para mim. — Você tem uma
nova chance agora e, se desperdiçar, passará pelo
Julgamento e terá que pagar seriamente pelo que
andou fazendo.
— Mas o que fiz de tão grave? Tenho apenas
dezessete anos. — Aquela história estava muito
mal contada. Eu não era uma bandida para ser
julgada como tal. — Eu até ia à igreja quando
minha mãe pedia. Nunca matei ninguém. Tudo bem
que roubei um kit de maquiagens de uma loja uma
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vez, mas...
— Não sei exatamente o que você fez,
Rafaela, mas alguém lá em cima não está nada
satisfeito contigo.
Eu o observei por algum tempo, até que
balancei a cabeça, revoltadíssima.
— Não mereço isso. Eu devia estar no céu ou
naquele lugar onde acordei. Ali é o céu?
Leonardo sorriu. Como conseguia? Minha
revolta aumentou consideravelmente.
— É e não é. Existem vários mundos, uns são
bons de viver e outros são ruins. O que importa é
que as pessoas só estão em um mundo, seja ele qual
for, quando realmente merecem estar.
— Ah, é? E quem decide isso? — Cruzei os
braços na frente do meu corpo.
— Tem coisas que as pessoas não conseguem
escolher com justiça. Mas de uma maneira ou de
outra, sempre existe uma forma para que ela seja
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feita.
Fiz uma careta. Não entendi aquela resposta.
— Tá, não importa, o que eu devo fazer? —
Joguei as mãos pelos ares, já impaciente. — Você e
Magnólia mencionaram uma pessoa a quem devo
ajudar. É algum doente ou idoso, ou algo do tipo?
— Eu estava com pressa e aquela ladainha
demorava muito. Se eu tinha que cumprir com
dever social, que fosse logo de uma vez.
— Você deve descobrir sozinha. Como eu
disse mais cedo, seus instintos te guiarão até a sua
tarefa. E quando descobrir, deve abraçá-la com
responsabilidade.
Leonardo se levantou da cama e passou a
andar pelo quarto.
— Senti umas coisas esquisitas quando me
aproximei de uma casa. Como se fosse algo me
mandando entrar, mas ignorei o instinto por pura
teimosia. Desculpa. — Olhei para baixo, sentindo
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minhas bochechas arderem de vergonha. — Eu


sabia que me arrependeria, mas na hora me pareceu
a coisa certa a fazer.
— Não é a mim que você deve se desculpar,
mas a si mesma. — Leonardo parou diante do
armário e me encarou. — Esse sofrimento, essa
tristeza sem fim que você sente... Tudo é
proveniente da pessoa que necessita da sua ajuda.
Vocês agora compartilham das mesmas sensações,
e ficarão ligadas até o seu Julgamento. — Seus
olhos brilhantes tinham o poder de prender minha
respiração. Eu ainda não conseguia entender por
que meu corpo reagia de uma maneira tão esquisita
ao olhar de Leonardo. — Você teve sorte em estar
ligada a pessoa. De certa forma, é muito mais fácil
assim. Provavelmente existem coisas que você
precisa sentir para evoluir seu espírito.
— Você já é evoluído? — perguntei, curiosa.
— Acho que você é tipo um anjo. — Leonardo
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sorriu abertamente. — Um anjo puro que não


possui nenhum tipo de maldade.
Ele se aproximou com cautela. Sentou-se na
cama novamente.
— Tive que aprender umas coisas e passar
por outras, mas estou longe de ser perfeito. Meu
trabalho serve como uma correção de vários erros
que cometi no passado. Posso ajudar as pessoas e
fazer algo útil, isso significa muito no meu
processo de evolução. — Tive impressão de que a
luz de sua aura se intensificou enquanto ele falava.
— Bom, vou começar logo de uma vez.
Assim termino rapidinho e fico logo livre. — Eu
me levantei da cama e me espreguicei.
Leonardo também se levantou.
— Não é simples como imagina. Só, por
favor, evite lugares vazios, cemitérios e casas
abandonadas também. Você não é a única na Terra,
existem inúmeras outras almas. Algumas estão
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perdidas nas trevas, com ódio e raiva no coração.


Aquele homem que te atacou era uma delas.
— Tudo bem. — Lembrei-me daquele
homem horrível e fedido que me atacou para fazer
não se sabe o quê comigo. Ele exalava ódio e terror
pelos poros. Se Leonardo era similar a um anjo,
aquele cara era como um demônio. — Você tem
namorada?
Leonardo fez uma expressão esquisita e
surpresa. Droga.
Eu não podia me desconcentrar!
— Rafaela... — Seu semblante indicou que
achou minha pergunta engraçada, mas também que
ficou um pouco chateado.
— É uma dúvida simples. Almas podem
namorar e tudo mais? — perguntei feito idiota. A
promessa de não me desconcentrar ia por água
abaixo.
Será possível que eu só conseguia pensar
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naquilo?
Leonardo deu de ombros.
— Acho que podem, se houver amor
verdadeiro entre as duas partes.
Percebi que ele ficou meio envergonhado.
Resolvi mudar de assunto. Pena que ele não tinha
respondido à minha primeira pergunta.
— Vou começar de uma vez.
Atravessei a parede do quarto onde havia a
janela. Dei de cara com uma rua bonita,
provavelmente de um bairro de classe média.
— Rafaela, terei de te deixar sozinha nessa
busca. — Leonardo me seguiu e segurou minha
mão para que eu o esperasse. — Mas não se
preocupe, se precisar, estarei à disposição.
Não pude retrucar, pois Leonardo
simplesmente sumiu. Em um momento ele estava
ali, pegando em minha mão, e no outro já tinha
evaporado como fumaça. Eu tinha que aprender
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aquele truque, era genial. Também tinha que,


definitivamente, não me atirar em cima dele. Nós
nunca daríamos certo, visto que as almas só tinham
algum tipo de relação se houvesse amor. E, bem,
amor nunca teve nada a ver comigo.
Vaguei meio sem rumo, apenas me desviando
das pessoas como que por costume. A paisagem
não me interessava, eu só pensava nos últimos
acontecimentos. Quem diria: eu, morta? Ainda era
difícil engolir aquela ideia. Poxa vida, eu tinha
tantos planos para o futuro. No entanto, estava ali,
perdida, vagando sem rumo pelas ruas com um
fantasma bonitão querendo apenas me ajudar. Sem
contar que fui atacada por um espírito maluco.
Senti embrulhos no estômago assim que
avistei a mesma rua onde se localizava a casa que
me chamava quase aos berros, convidando-me para
entrar. Não fazia ideia do que encontraria. Daquela
vez, não havia nenhuma criança brincando na rua.
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Já era muito tarde da noite.


A casa estava com algumas luzes acesas,
prova de que seu morador estava acordado. Um
pouco de sorte! Eu estava determinada a entrar,
resolver o assunto de uma vez por todas e viver em
paz no céu. Lá parecia um lugar muito bom de
morar. Pelo menos ninguém me ignorava como na
Terra.
Eu não sabia exatamente como entrar naquela
casa. Sentia-me uma mal-educada simplesmente
atravessando as paredes e invadindo a privacidade
das pessoas.
E se ela estivesse no banho, como eu ficaria?
E se ela fosse ele e estivesse no banho?
Piorou.
Além do mais, como ajudaria a criatura já
que ninguém podia me ver? De qualquer forma,
precisava encarar a situação de frente. Foi o que fiz.
Só que não atravessei as paredes, atravessei a porta.
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Senti-me mais educada assim, apesar de não


conseguir bater ou tocar alguma campainha.
A pequena saleta estava meio escura e
sombria. Ao perceber aquele cenário bizarro, senti
calafrios percorrer todo o meu corpo. O ambiente
se encontrava completamente destruído. Os móveis
jaziam revirados pelo chão, e objetos se
misturavam como se nenhum tivesse o mínimo
valor. A pequena TV estava ligada e chiava,
sintonizada em canal algum.
Eu me aproximei e vi que tinha um homem
deitado no sofá. Ele dormia e roncava muito alto,
fazendo um barulho semelhante a um porco. Uma
garrafa, que supus ser de algum tipo de bebida
alcoólica, jazia no chão, completamente seca.
Aquele homem moribundo realmente precisava de
ajuda, mas eu não estava muito inclinada a curar
bebedeira. Quero dizer, quem ajudava alcoólatra
eram os alcoólicos anônimos e não eu. Será que eu
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teria que participar de inúmeras sessões mesmo


sem ter posto um pingo sequer de álcool na boca
em toda a minha vida?
Foi pensando nisso que escutei um barulho
alto, vindo de outro cômodo. Foi um baque terrível.
Meu impulso foi correr depressa, com o coração
agitado. Entrei em um quarto igualmente sombrio,
combinando com o restante da casa. Havia poucos
móveis, todos eles revirados e os que estavam de pé
eram velhos e não atribuíam nenhuma vida ao
ambiente. A cama estava surrupiada, maltratada em
todos os sentidos. Havia pedaços de madeira e
pregos afiados espalhados por toda parte.
Observei uma menina em cima dela,
chorando compulsivamente. Não dava para ver
quem era, pois estava deitada com a face voltada
para o travesseiro. A garota chorava baixinho e,
mais do que de repente, lágrimas também
começaram a escorrer pelos meus olhos.
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Era ela.

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Capítulo 6

O pesadelo

UM EMARANHADO de cabelos pretos e longos


estava despejado em um travesseiro velho, e subia e
descia conforme a garota chorava. Acho que
aqueles fios nunca viram um pente na vida, muito
menos um secador. Ela estava vestida com roupas
pretas muito folgadas, e a visão daquela menina
chorando em sua cama trouxe ao meu peito a maior
tristeza que já pude experimentar, tanto na minha
vida quanto na minha morte. A cena era chocante.
Confesso que eu estava apavorada.
Tentei me aproximar devagar, com minhas
mãos trêmulas erguidas para frente. Eu não tinha
certeza se queria tocá-la, porém a curiosidade e o
espanto me levaram a não refletir direito. Ela
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pareceu ter percebido minha aproximação, pois se


assustou, sentando-se na cama apressadamente. A
desconhecida se encolheu contra a parede
desgastada.
— Saia daqui! — gritou, com os olhos
cerrados e se abraçando como que tentando se
proteger de algo muito ruim.
Reconheci a voz e a menina prontamente.
Apesar de seu rosto estar totalmente desfigurado
pela dor, pude identificá-la. Carla. A esquisitona da
escola. Naquele momento, não pude sequer
acreditar que eu havia sido escolhida para ajudar
alguém tão desprezível. Não acreditava que os
meus instintos me trouxeram até ela.
Eu estava ali, de pé, totalmente surpresa,
quando Carla, enfim, resolveu abrir os olhos para
verificar se realmente havia alguém no quarto. Não
esperava pelo que veio em seguida.
— O que faz aqui? — berrou, e eu não
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entendi direito o porquê, mas ela estava olhando


para mim. — Impossível... — Carla me encarou
com os olhos bem abertos, parecia aterrorizada.
— Você pode me ver? — Segurei meu
coração com as duas mãos, talvez ainda mais
surpresa do que ela.
No fundo, não sabia por que eu tinha ficado
tão admirada. Sempre foi muito óbvio que aquela
garota ridícula era algum tipo de bruxa. Afinal, ela
mesma me avisou que eu morreria um dia antes do
ocorrido. Eu me lembrava perfeitamente de sua
ameaça cruel.
— Você não tinha morrido, sua palhaça?
Inventou a própria morte para os outros sentirem
pena? Bem típico de você. — Carla bufou alto,
cuspindo as palavras enlouquecidamente. — Saia
desta casa, agora! Quem te deixou entrar?
Eu me senti humilhada, como um cachorro
sarnento sendo enxotado de uma lanchonete de
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quinta categoria. Quem aquela idiota pensava que


era para falar comigo naquele tom?
— Eu morri mesmo, retardada, não está
vendo? Estou brilhando! — Mostrei a ela os meus
braços iluminados pela fina película florescente.
Meu coração batia em descompasso, e eu tremia
dos pés à cabeça. Nenhum pensamento racional
conseguia ser produzido pelo meu cérebro.
Carla abriu a boca, de queixo caído, quando
prestou atenção no meu pequeno foco de luz. Não a
culpei, afinal, eu ficaria tão chocada quanto ela se
visse um fantasma de alguém assim, do nada,
assombrando o meu quarto.
— Cara, você não se contentou em me
destruir em vida e agora morreu só para puxar o
meu pé? — murmurou, tão baixo que meu coração
doeu. A tristeza que emanou de cada palavra me
deixou arrasada.
— Eu...
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— Saia daqui, sua assombração! Vaza! —


Carla me interrompeu aos gritos. Acho que sentia
um misto de medo pela minha aparição e raiva por
ter sido justamente eu o fantasma que estava vendo.
Ela chorava e soluçava bastante.
— O que está acontecendo aqui? — O
homem que estava dormindo na sala entrou pela
porta sem ter a decência de bater. Ele era gordo,
muito peludo e estava sem camisa. E ainda por
cima fedia a comida enlatada e álcool. — Está
gritando sozinha para o nada, maluca? — Seu rosto
inspirava o mais puro ódio. Fiquei com muito medo
daquele homem, tanto medo que minha visão até
falhava, como se eu tivesse prestes a desmaiar.
Meu coração batia forte e sem ritmo, querendo
pular para fora do meu corpo.
Olhei para Carla. Ela se encolheu contra a
parede e olhou para o homem com os olhos muito
abertos, sem ousar piscar.
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— Fique quieta! Não quero mais ouvir seus


gritos! — Ele se retirou do quarto, batendo a porta
com força e provocando um barulho enorme, que
ecoou por alguns segundos.
Aquela sensação de medo pareceu ter certo
alívio, mas não o suficiente para que eu não
começasse a chorar. Ouvi os soluços de Carla logo
em seguida. Ela estava em um estado deplorável de
angústia, tristeza e absoluto desespero.
— Saia daqui — sua voz soou como um
sussurro rouco e sofrido. — Por favor, tenha
piedade, saia daqui. Me deixe em paz pelo menos
uma vez.
Foi exatamente o que fiz. Quero dizer, apesar
de sofrer mais ainda ao me distanciar daquela casa,
não pude permanecer nela nem por mais um
segundo. Não mesmo. Atravessei várias paredes,
depois caminhei pelas ruas, chorando sem parar,
pela milionésima vez desde que morri.
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Deixei algum tempo passar, e então resolvi


não ficar vagando sem rumo, pois Leonardo tinha
me dito que podia ser muito perigoso. Estava tarde
pra caramba e eu não precisava de nenhum
maníaco me agarrando de novo. A dor em meu
peito era muito, muito forte. Se eu fosse atacada,
provavelmente não teria forças para me defender de
nenhuma maneira, tamanha a vulnerabilidade que a
tristeza me causava.
Segui em direção à minha antiga casa,
rezando para que a família já tivesse ido embora.
Eu não conseguiria suportar aquelas pessoas
chorando pela minha morte, era apavorante.
Pretendia deitar na cama e rezar para que eu
acordasse vivinha da Silva no dia seguinte. Tentei
imaginar o tamanho do alívio que sentiria quando
despertasse daquele sonho cruel, onde fantasmas
me davam fora e meu carma era ajudar uma
esquisitona com sérios problemas psicológicos.
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Assim que eu acordasse no aconchego do meu lar,


com certeza ligaria para Daniele e marcaria um
passeio no Shopping. Definitivamente, precisava de
compras. Seria como renascer para uma nova vida,
logo, tinha que renovar o meu guarda-roupa.
Pensei inclusive na possibilidade de tirar
alguns dias de férias e viajar para um lugar bem
badalado, apesar de estar na reta final do último
ano na escola. Sinceramente, as aulas pouco me
importavam. Fazer novas amizades e respirar ares
diferentes era uma nova prioridade na minha vida.
Aquele pesadelo só podia significar estresse. Achei
muito mais cômodo acreditar que meu cotidiano
estava se tornando tão tedioso que minha mente
acabou fantasiando aqueles pesadelos absurdos.
Quem dera que fosse apenas isso!
Cheguei até a minha casa e, para meu
absoluto alívio, não havia nenhum carro de familiar
estacionado na garagem. Atravessei os portões da
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entrada e a porta da frente. Eu não quis verificar o


que os meus pais estavam fazendo. Apesar de estar
com saudades, tudo o que eu menos queria era
motivo para me magoar. A única coisa que ouvi foi
o barulho da TV da sala ligada, mais nada.
Atravessei a porta do meu quarto sem nenhuma
dificuldade. Tudo ainda estava como eu tinha
deixado, exatamente no mesmo lugar. Fiquei
satisfeita. Tive esperanças de que as coisas
pudessem voltar ao que eram antes.
Eu não podia tocar em nada, então decidi não
trocar o meu vestido cor-de-rosa. Ele estava
começando a me incomodar, pois passava uma
impressão errada da minha personalidade. Não
pude ligar a TV. Nem ouvir música no iPod. Nem
abrir o chuveiro para um banho quente e
revigorante. Eu precisava me lavar, afinal, fazia um
tempo que vagava por aí, passando por tudo quanto
era tipo de situação. Devia estar bem fedida. Desde
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que acordei no céu, usava aquele vestido


presenteado por alguém desconhecido. Levantei os
braços e conferi minhas axilas. Inexplicavelmente,
exalavam um cheiro suave de alfazema. Nenhum
cheiro desagradável.
Ótimo! Fantasmas não fedem.
Olhei-me no espelho. Meus cabelos
continuavam intactos, apesar de eu ter sido morta,
atacada, jogada ao chão, humilhada, tomado um
fora e outras coisas mais. Agradeci bastante por
continuar bonita, pois eu não conseguiria mesmo
pegar uma escova ou um pente, muito menos uma
chapinha.
Deitei-me na cama, decidida a não dar
ouvidos à explicação de Leonardo sobre os mortos
não dormirem. Contudo, não consegui tirar nem um
cochilo. Eu devia estar com insônia. Ou então não
podia dormir porque já estava dormindo! Só podia
ser aquilo. Fiquei de olhos fechados pelo que
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pareceu uma eternidade, descansando e tentando


não pensar em nada. Esperava ansiosamente pelo
momento em que eu acordaria e tudo ficaria bem.
Depois de ficar cansada de todas as posições,
passei mais algumas horas de olhos abertos, apenas
observando o quarto e cada detalhe que existia nele.
Tudo ali dentro era reconhecível: minha coleção de
revistas, os estojos de maquiagens ainda abertos na
penteadeira, um mural de fotografias. O tempo
parecia passar lentamente, e o tédio já me
alcançava com força total. O que os mortos faziam
quando todo mundo estava dormindo? Devia ser a
falta de atividades interessantes que fazia com que
os fantasmas balançassem correntes por aí. Quero
dizer, não tinha nada melhor para fazer!
Se eu ao menos pudesse tocar nas coisas...
Reparei em uma revista em cima do criado-
mudo. Falava sobre moda, e foi comprada
recentemente, eu ainda nem tinha começado a ler.
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Tentei pegá-la, porém minha mão passava por ela,


e por quase metade do móvel, sem mexer nem um
milímetro. Não desisti. Na segunda tentativa, me
concentrei.
Encarei-a por alguns minutos, mantendo
contato visual. Eu queria muito ler, então leria.
Sempre fui decidida, se existisse a possibilidade
remota de fazer alguma coisa, eu faria sem
objeções. Leonardo conseguia mover os objetos,
prova de que qualquer um poderia também. Fechei
os olhos bem devagar e tentei pegá-la novamente.
Quando os reabri, a revista estava lá, em minhas
mãos. Não pude conter uma gargalhada.
Senti-la em minhas palmas foi algo tão
emocionante quanto meu primeiro beijo. Sua
superfície fria e plastificada me fez marejar.
Segurar uma maldita revista nunca me deu tanto
prazer, obviamente me considerei uma estúpida por
causa daquilo, porém uma estúpida muito feliz.
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Peguei-a com muito cuidado, como se ela


fosse uma joia muito rara, e li as novas tendências
da estação. Claro que não foi uma boa ideia realizar
aquela leitura, visto que a minha roupa estava fora
de moda e eu não sabia se poderia trocá-la algum
dia.
— Essa foi boa. — Aquela voz fez meu
corpo inteiro ferver. Começou pelas bochechas e
terminou lá no dedinho do meu pé. Tudo ficou
muito quente de uma hora para outra, apenas com o
soar daquele timbre.
Virei meu rosto, meio assustada, e vi
Leonardo de pé no meio do quarto, sorrindo da sua
maneira angelical.
— Nunca pensei que segurar uma revista
fosse tão importante. — Retribui o sorriso, só que
sem deixar de me sentir um pouco envergonhada.
Eu ainda estava deitada na cama, e Leonardo
permaneceu parado em frente ao meu closet,
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olhando para todos os lados, tentando decidir o que


estava chamando mais atenção para uma
bisbilhotada. Era a vez de ele observar cada
minúcia do meu quarto.
Ele mexeu em cada objeto com muito
cuidado, sempre os devolvendo ao local original.
Senti uma pontada de inveja, pois eu não tinha
paciência para levantar tantos objetos com a mesma
facilidade.
— Escute, Leonardo. — Eu me sentei na
cama, largando a revista de volta ao criado-mudo.
— Acho que não vai dar para ajudar a pessoa que
eu tenho que ajudar — decidi confessar a ele a
gravidade da minha situação. Eu nunca ajudaria
Carla. Ela me odiava, e era recíproco.
Leonardo parou de mexer na minha coleção
de ursinhos e se virou para me observar
atentamente.
— Conseguiu encontrar a pessoa? — Ele
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pareceu admirado.
— Sim, mas não posso ajudá-la. Ela não
quer, e muito menos eu.
Leonardo fez uma expressão confusa.
— Ela não quer?
— O nome dela é Carla, a garota mais
esquisita da escola. Eu a detesto!
— Rafaela... Como ela pode não querer a sua
ajuda se não sabe que será ajudada? — Ele se
sentou ao meu lado na cama.
— Ah, esqueci de dizer! Ela consegue me
ver, Leonardo! Foi horripilante!
Achei que ele ficaria absolutamente surpreso
com aquela informação, mas apenas aquiesceu,
compreensivo. Logo em seguida, fez uma careta tão
grande que sua testa ganhou algumas dobrinhas.
— Ela pode te ver? — Sua voz mal saiu, foi
como se ele tivesse perguntando a si mesmo, não a
mim.
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— É incrível, mas pode! Carla é uma bruxa,


tenho certeza absoluta!
— Como você disse que ela se chamava
mesmo?
— Carla. — Leonardo fez outra careta, uma
ainda mais esquisita. — O nome dela é Carla. Só
que eu não vou poder ajudá-la, não vai dar certo.
Definitivamente, não conseguirei.
Ele soltou um suspiro prolongado.
— É uma questão de escolha, Rafaela, ou
você faz ou não faz. No entanto, haverá
consequências cruéis se não fizer.
— Eu arco com as consequências. Faço
qualquer coisa e vou para o quinto dos infernos,
mas não ajudarei, de forma alguma, aquela...
pessoa. — Eu sabia que estava agindo com
teimosia, mas ninguém podia me obrigar a fazer
uma coisa que não queria, nem Leonardo e nem
ninguém tinha aquele poder.
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— Rafaela... — Ele colocou as duas mãos ao


redor do meu rosto, obrigando-me a encará-lo de
perto. — Entenda que você vai sofrer muito se não
o fizer. Escute este conselho: não fuja das
responsabilidades. Não era para eu te dizer isso,
mas não consigo te ver agindo por impulso.
Eu o observei por alguns segundos. Bem que
tentei, mas não consegui não olhar para a sua boca.
Ela estava muito perto. Ergui os meus olhos para
que ele não pensasse que eu estava desconcentrada,
embora estivesse, e me admirei ao perceber que
Leonardo também tinha abaixado os olhos escuros
para analisar os meus lábios. Soltei um arquejo, e
acho que ele se assustou, pois me largou no mesmo
instante.
Tentei encontrar algum assunto para acabar
com o silêncio constrangedor que se formou entre
nós.
— Mas e quanto a ela conseguir me ver?
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Você não comentou sobre isso.


O Conselheiro se levantou da minha cama,
afastando-se de vez. Droga!
— É meio raro, mas acontece. Talvez seu
carma seja ajudá-la de modo que Carla saiba que a
ajuda veio de você. — Ele ficou tão sério! — Ela
provavelmente tem a capacidade de ver e falar com
os mortos.
Era só o que me faltava!
Eu não sabia o que dizer, então fiz o que
estava morrendo de vontade há algum tempo:
comecei a chorar, e não foi pouco. Solucei dezenas
de vezes, morrendo de medo e angústia. Uma dor
sufocante invadiu meu peito, como que para me
fazer entender que eu não era tão forte quanto
pensava. Foi muito estranho, até porque eu não
devia estar tão desolada. Leonardo tinha olhado
fixamente para a minha boca! Aquilo certamente
significava alguma coisa.
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A ideia de ir para o quinto dos infernos era


aterrorizante enquanto aquela dor remexia o meu
peito. Toda a coragem me foi roubada. Leonardo
puxou minhas mãos, levantando-me, e me abraçou
forte, tomado pela compaixão. A onda de calor e
conforto proveniente de sua pele me ajudou a
aliviar tudo o que eu estava sentindo.
Ergui a cabeça para observar seus lábios de
novo, quem sabe assim ele tomasse uma atitude
diferente? Entretanto, aquele Conselheiro de meia
tigela me largou tão logo nossos olhos se
encontraram.
— O que ela sente você sente.
Balancei a cabeça, meio irritada e apavorada.
— Quer dizer que Carla está sentindo essa
tristeza toda neste momento?
Quem seria capaz de sentir algo tão forte e
doloroso o tempo todo? Só uma doida perturbada
feito ela!
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— Sim, provavelmente. — Leonardo deu


alguns passos para trás, creio que fugindo de mim.
— A diferença é que você pode se acalmar, pode
ser abraçada e ficar bem. Carla deve estar
completamente sozinha agora. Do contrário, não
precisaria de um Guia Protetor.
— Por que você não a ajuda? — Eu me
animei com a ideia. Leonardo com certeza a
ajudaria muito melhor do que eu. — Não sou a
mais indicada para consolar alguém que desprezo.
Seria muito mais inteligente que você a ajudasse.
— Nenhum Conselheiro tem permissão de se
envolver no trabalho dos Guias. Ela é a sua
responsabilidade, Rafaela, apenas sua. — Deixei
meus braços caírem ao redor do meu corpo,
cansada daquela ladainha toda. — Você é a única
pessoa que pode ajudá-la de verdade.
Não consegui disfarçar minha chateação.
— Olha, Leonardo, eu me conheço há muito
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mais tempo do que você. São quase dezoito anos


aturando meus defeitos e qualidades. Não
conseguirei ajudar Carla. Sei disso.
Ele apenas me encarou com uma expressão
meio decepcionada. Nada comentou por algum
tempo, e depois tornou a bisbilhotar o meu quarto
como se nada tivesse acontecido. A conversa sobre
Carla só me deixou mais triste. Abafei alguns
soluços entre as mãos e chorei o mais baixinho
possível. Leonardo sabia que eu estava sofrendo,
mas não tornou a me abraçar. Infelizmente.
— Nada evolui sem uma mudança profunda,
Rafaela — ele sussurrou, ainda mexendo nas
minhas coisas como se elas fossem mais
interessantes do que eu. — Sua opinião sobre si
mesma é baseada nos anos em que nada te desafiou
de verdade.
— O que quer dizer com isso? —
Choraminguei, e tive vergonha da minha voz
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esganiçada de criança indefesa.


Leonardo finalmente me encarou.
— Quero dizer que a bondade é uma escolha
difícil. — Prendi a minha respiração ao visualizar
sua aura ficando mais brilhante. Que incrível! — Se
fosse fácil, não haveria mérito.
— Eu... A-acho que não entendi direito.
— Vai entender. Eu acredito em você,
Rafaela, mesmo que neste momento você não
acredite em si mesma.
O sorriso que Leonardo abriu iluminou o
quarto inteiro. Fiquei tocada por aquela luz intensa,
que me trazia um sentimento extremo de paz. De
repente, tudo se apagou. Ele simplesmente sumiu,
levando consigo aquela luminosidade
impressionante e me deixando na escuridão.

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Capítulo 7

A comprovação

A MANHÃ demorou a chegar, por um lado porque


passei mais de cinco horas chorando quase sem
pausas, e por outro porque Leonardo foi embora,
deixando-me sozinha e entregue ao desespero.
Fiquei muito chateada com sua atitude. Era como
se, na verdade, ele não se importasse nem um
pouco comigo. Se o meu próprio Conselheiro de
Luz não se importava, então só me restava lamentar
a solidão em que me afundei.
O fato de eu falar a verdade — que não
conseguiria, nem queria, ajudar Carla — o chateou
de tal forma que nem teve a capacidade de se
despedir. Nem mesmo perguntou se eu ficaria bem.
Leonardo simplesmente desapareceu depois de
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dizer coisas enigmáticas com aquela voz serena


demais.
Mas o que eu podia fazer?
A verdade doía, mas era apenas uma. Jamais
poderia ajudar Carla. Primeiro porque eu não sabia
qual era o problema dela, mesmo que estivesse
evidente que tinha vários. Quero dizer, era bem
óbvio que Carla convivia com um homem malvado,
e muito provavelmente perigoso, mas o que um
reles fantasma podia fazer para mudar aquela triste
realidade? O cara devia ser preso por policiais e
não por espíritos. Em segundo lugar, minha
vontade de ajudá-la era praticamente nula. Nunca
gostei dela, e não era porque tinha morrido que
passaria a gostar. Sempre a desprezei amargamente,
não suportava a sua presença. Tudo nela
simplesmente me irritava.
Em terceiro lugar, bem lá no fundo eu achava
que poderia ser culpada pelo sofrimento dela. Não
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muito culpada, claro, mas devia ter alguma mínima


parcela de culpa. Todavia, eu não admitiria na
frente de ninguém, muito menos dela ou de
Leonardo. Em quarto lugar, Carla me odiava.
Ninguém gostaria de receber ajuda de alguém que
odiasse. Quero dizer, se fosse o contrário, eu a
exorcizaria sem pensar duas vezes.
Sendo assim, não me considerava uma pessoa
capaz de fazer o que Deus ou sei lá quem achasse
que era para eu fazer. Mesmo que sofresse do jeito
que sofri a noite inteira, não considerava prudente
procurá-la. O mínimo que Carla faria era me
mandar embora novamente, e eu só perderia o meu
precioso tempo.
O que me deixava mais decepcionada
naquele momento não era o fato de eu ter a certeza
absoluta de que não conseguiria fazer o que era
necessário para salvar minha alma. Nem mesmo
Leonardo ter ido embora, pois eu não dava a
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mínima para o que ele fazia ou deixava de fazer.


Naquela específica manhã, minha maior decepção
foi ter constatado que eu não acordaria do pesadelo
que estava tendo.
Quantas horas uma pessoa dormia por dia?
Eu já devia ter acordado há muito tempo. Foi
por isso que comecei a crer que, na verdade, não
existia pesadelo algum. O que eu estava passando
era a mais pura e crua realidade. Eu tinha morrido.
Estava morta mesmo.
Demorei bastante para ingerir a ideia de que
eu realmente era uma alma perdida na Terra. Tentei
me beliscar um monte de vezes, desesperadamente,
e nada aconteceu. Em um momento de lucidez,
resolvi ir atrás da única coisa que podia comprovar,
com absoluta certeza, que eu havia mesmo
morrido: minha lápide.
Saí de casa sem saber o que meus pais
estavam fazendo. Ainda era cedo, portanto havia
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uma grande probabilidade de eles estarem


dormindo, se é que conseguiram dormir desde que
morri. De qualquer forma, não fiquei em casa para
descobrir, tinha muito medo daquele tipo
descoberta.
Caminhei pelas ruas rumo ao Cemitério do
Parque, local mais provável para o meu enterro.
Vovó fora enterrada naquele mesmo cemitério há
alguns anos, e também minha prima Cibele, que
morreu muito cedo em um acidente de carro no ano
passado. Era um lugar tranquilo e calmo pelo que
eu me lembrava, porém não tinha aquele ar
espectral de gente morta, ainda bem. Andei por
aproximadamente meia hora. As ruas ainda
estavam vazias, e as folhas das árvores absorviam
aos poucos os primeiros raios de sol. O dia estava
bonito, ensolarado, perfeito para ir à praia. Alguns
transeuntes se exercitavam antes de irem ao
trabalho. Outros apenas passeavam com seus cães,
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parando em cada poste que ele decidisse deixar a


sua marca.
Eu pensei que chegaria cansada e um tanto
suada ao cemitério, mas nenhum dos dois
aconteceu. A longa caminhada me fez muito bem,
para ser sincera. Pelo menos foi a primeira vez que
me senti viva desde que despertei em um mundo
inimaginável. Senti a luz que envolvia todo o meu
corpo ficar mais brilhante, como se fosse uma
reação bem agradável à luz matinal.
Antes que eu pudesse chegar à entrada
principal, já estavam visíveis algumas lápides. Ao
cruzar os grandes e ornamentados portões de ferro,
um frio súbito cresceu em meu estômago. Apesar
de só haver alguns carros estacionados, o cemitério
estava lotado. No início pensei que acontecia o
velório de alguém muito famoso, e toda aquela
gente fazia parte de um fã clube ou algo parecido.
Eu me enganei amargamente. Havia me
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acostumado tanto àquela luz em volta do meu


corpo que não percebi que toda aquela gente tinha
uma semelhante à minha.
Estavam todos mortos. Como eu.
Apesar do susto, andei vagarosamente por
entre as lápides, observando aquela gente como se
fossem alienígenas que vieram de planetas
intergalácticos desconhecidos. Havia homens,
mulheres, crianças, idosos, adolescentes. Todo o
tipo de pessoa se encontrava ali, e cada uma delas
expressava distintos sentimentos em seus rostos.
Umas sorriam, maravilhadas com o fato de estarem
mortas, como se morrer fosse a maior salvação que
já lhes ocorreu. No entanto, a grande maioria
parecia muito triste, algumas pessoas até choravam,
sobretudo os mais jovens.
Eu estava absolutamente surpresa por
encontrar tantos iguais em um só lugar. O cenário
era amedrontador. Percebi também que alguns
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espíritos estavam surpresos com a multidão que não


parava de crescer, bem como eu. Não era todo dia
que você podia se encontrar com as almas dos que
já se foram.
O cemitério era vasto e coberto por muitas
flores, que jaziam tanto sobre as lápides quanto em
canteiros bem cuidados. Todas elas traziam um ar
alegre ao ambiente, como que para trazer algum
consolo às famílias, que enterravam seus entes
queridos, e aos próprios entes queridos, que
simplesmente não sabiam o que fazer depois de
terem morrido. Particularmente, aquelas flores não
me trouxeram nem um pingo de alegria, muito pelo
contrário. Fiquei com ainda mais vontade de
chorar.
Não foi tão difícil assim achar a minha
lápide, apesar de ter que passar por um monte de
fantasmas desesperados. Eu sabia perfeitamente
onde estavam enterrados outros membros da
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família Satto, pois mamãe e minha tia ainda


visitavam o túmulo da Cibele e da vovó com certa
frequência, e muito raramente conseguiam me levar
junto. Claro que eu não gostava de ser levada a
cemitérios, tinha verdadeiro pavor de ter que ir a
algum enterro. Quando eu estava viva, achava que
preferiria morrer a ir a um velório, mas sem dúvida
eu já tinha mudado de opinião.
Minha lápide era nada mais que uma plaqueta
de mármore branca bem ornamentada. Até que era
bonita, pena que era meio mixuruca.

Rafaela Satto
14/12/1993 – 07/12/2011
Que Deus tenha sua Juventude e Alegria

As letras cursivas e douradas ofereciam certa


dificuldade para quem as lia. Ao seu redor havia
flores dos diversos tipos, desde grandes arranjos até
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simples e murchos botões de rosa branca, além de


outras flores que eu não conseguia identificar. Pela
grande quantidade de flores que jaziam em minha
lápide, supus que meu enterro tinha sido bem
badalado.
Não pude deixar de perceber que morri em
uma data muito próxima ao meu aniversário de
dezoito anos. Lembrei imediatamente que tinha
combinado com algumas amigas de comemorarmos
em um restaurante chinês, depois terminaríamos a
noite em uma festa na casa do Pedro, um garoto
muito rico da escola, e que fazia festas
maravilhosas. Seria o primeiro dia da minha vida
em que eu experimentaria bebida alcoólica.
Por muitas horas, pensei nas coisas que perdi.
Eu nunca tiraria minha carteira de habilitação.
Jamais prestaria vestibular, nunca iria para a
faculdade. Não me casaria, nem teria filhos. Minha
vida acabou. Tudo acabou. Eu estava morta.
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Eu estava morta.
Repeti aquelas palavras várias vezes, em voz
alta e mentalmente. Precisava absorver aquilo.
Meus olhos ficaram cada vez mais marejados. De
certa forma, chegar até a minha lápide já não
significava muito depois que vi tanta gente morta
em um único recinto. Então, tive certeza de que eu
só podia estar mortinha da Silva. A lápide foi só
uma comprovação oficial.
As lágrimas tardaram, mas vieram. Por mais
que eu pensasse que elas tinham secado na noite
anterior, caíram fartas sobre minhas bochechas e
escorreram até a gola do meu vestido rosa. Eu
estava morta.
Às vezes eu gritava dentro da minha própria
cabeça, a ponto de me sentir quase explodindo de
angústia, às vezes apenas soluçava, cansada de
tanta dor, entregando-me totalmente a ela.
Depois do que me pareceu uma eternidade
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chorando diante de minha lápide, senti mãos


macias e perfumadas em meu ombro. Levantei-me
num salto, olhando para trás, esperando sentir a
presença consoladora de Leonardo outra vez. Mas,
para minha surpresa (ou decepção), não era ele.
— Tudo isso vai passar, Rafa.
Não pude acreditar no que vi. Minha prima
Cibele estava diante de mim. Abri os olhos e a boca
ao máximo, completamente estarrecida. Seu corpo
inteiro irradiava uma luz forte e brilhante. Os
cabelos loiros, extremamente lisos e compridos,
sopravam seguindo a direção da brisa da manhã, e
o leve e bem costurado vestido branco só fazia com
que ela ficasse ainda mais parecida com um anjo.
De fato, era uma visão impressionante.
Cibele nunca foi uma garota muito bonita quando
estava viva. Ela era cheia de espinhas no rosto,
tinha um péssimo gosto para moda e os cabelos
andavam sempre desgrenhados. Usava aparelho
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dentário e óculos cafonas, o que com certeza não


ajudava em nada na sua aparência. Entretanto, ela
estava bem ali, na minha frente, muito mais bonita
do que jamais pensei que ela pudesse ficar.
— Ci... Cibele? — quase não consegui falar.
— Sim, Rafa. Não posso me demorar muito.
— A voz dela soou calma, emanando muita
tranquilidade — Mas consegui uma chance de falar
contigo. — Abriu um sorriso perfeito, com dentes
brancos enfileirados.
Eu simplesmente não soube o que dizer, nem
mesmo sabia se podia pedir ajuda a alguém tão
fascinante. Toda a sua beleza fazia com que eu me
sentisse estupidamente feia. Como era possível
tamanha transformação? Minha prima estava em
sua melhor forma, como se tivesse passado por
inúmeras sessões na esteticista. Contive minha
vontade de perguntar qual cabeleireiro ela estava
frequentando.
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Cibele e eu nunca fomos muito íntimas, na


verdade. Apenas nos encontrávamos em reuniões
familiares como, por exemplo, natal e ano novo.
Sempre a achei uma pessoa muito alegre e
divertida, apesar da má aparência, o que
provavelmente nos separou em vida, já que sempre
gostei de ter gente bonita perto de mim.
— Rafa, preste atenção. — Seu sorriso amplo
deu lugar a um semblante extremamente
preocupado. — Escute o que diz o seu Conselheiro.
Não desvie do caminho.
Aquele assunto de novo?
— Mas, Cibele, como vou ajudar uma pessoa
que desprezo? — Fiquei apavorada com a
preocupação extremosa que Cibele parecia sentir
apenas me olhando.
Alguma coisa só podia estar muito errada
comigo.
— Ajudando, Rafa. Apenas. Ajude. Ame.
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Não há tempo para rancor ou orgulho. — Ela


começou a sumir aos poucos, e sua voz ficou cada
vez mais distante. — Ame a si mesma, Rafa. Seja
amor e sinta amor. O restante se resolverá.
Não deu tempo nem para responder que eu
me amava, sim, senhora. Cibele desapareceu como
fumaça. Não conseguia me acostumar com aqueles
sumiços, era sobrenatural demais para mim.
Mesmo que agora eu fosse um fantasma, a ideia da
existência de espíritos como Cibele era muito
louca. Afinal, que mistério era aquele que
transformou minha prima em um ser tão angelical?
Era difícil acreditar naquilo tudo. Por sinal,
cada acontecimento se desenlaçava em um misto de
impossibilidades, de tal forma que minha mente
não assimilava direito. Nunca imaginei que a morte
pudesse ser tão esquisita assim. Eu pensava que as
pessoas descansavam em paz quando morriam.
Quem dera fosse verdade!
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Depois que Cibele evaporou bem na minha


frente, eu não soube o que fazer, muito menos para
onde ir. Ainda não estava preparada para voltar
para casa e ter que enfrentar meus pais. Podia ser
muito durona às vezes, mas sabia que eles me
amavam e sofriam com a minha morte. Se me
concentrasse, era capaz de sentir aquela dor dentro
do meu coração.
De qualquer jeito, eu não ficaria no
cemitério, pois Leonardo me aconselhara a não
permanecer ali e algo ruim poderia acontecer a
qualquer momento. Saí rapidamente, tentando não
ser notada pelas almas inconformadas. Eu tinha
morrido, e aquilo era um fato imutável. Não
lamentaria mais o meu triste fim, não pensaria em
todos os planos agora inexistentes. Chega de chorar
pelo leite derramado. Afinal, eu ainda estava ali,
talvez não de carne e osso, mas estava. Significava
que a morte não era o fim de tudo, afinal.
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Então por que me preocupar?

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Capítulo 8

O plano

A AVENIDA de frente ao cemitério já estava


movimentada àquela hora da manhã. Digo,
movimentada de gente viva. Deixei de lado todas as
lamentações e segui decidida a ser simplesmente eu
mesma. Se não podia mais ficar no mundo dos
vivos, então viveria no mundo dos mortos com
estilo. Resolvi fazer o que tinha de ser feito de uma
vez por todas.
Era bem óbvio, Leonardo disse que, se eu não
ajudasse Carla, iria para o quinto dos infernos, ou
para um lugar pior. Tudo aquilo me lembrava das
histórias infantis para chantagear crianças, mas
confessava que não tinha confiado nas palavras do
Conselheiro, e por este motivo não o levei tão a
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sério. Sabia que foi teimosia da minha parte, afinal,


desde que ele me deu o “fora da desconcentração”,
eu simplesmente não parava de pensar se ele estava
certo em relação a tudo, inclusive em ter me dado
aquele “chega pra lá” tão direto.
Leonardo podia estar brincando comigo. Não
deixava de me sentir confusa com sua presença
marcante, e com toda aquela capacidade de tirar o
meu fôlego apenas com um olhar. Aqueles olhos
encantadores, que inundavam a minha existência de
castanho escuro, me traziam esperança. Jamais
senti atração igual por absolutamente ninguém. Se
quer saber, o cheiro dele também não ajudava em
nada. Com certeza não existia na face da terra
perfume tão viciante quanto aquele. Tudo em
Leonardo era excitante demais.
Pensar nele daquela maneira absurda me fez
perceber que sentia sua falta mais do que conseguia
admitir. Mesmo que eu o tenha visto na noite
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passada, era difícil suportar tanta ausência. Existia


uma dúvida dentro de mim, uma sensação de perda
constante que me fazia crer que alguma coisa muito
ruim poderia acontecer a qualquer momento.
Leonardo poderia nunca mais voltar. Ele poderia
simplesmente trocar de turno com Magnólia ou, na
pior das hipóteses, com Severino.
Depois de saber que existiam Conselheiras
tão maravilhosas quanto Cibele se tornou, sentia-
me como um pedacinho de nada. Eu não tinha a
menor chance com Leonardo.
Foi pensando nele e em minha condição na
Terra que cheguei até a praça, a mesma onde fui
atacada por aquele maluco. Pensei em voltar e
seguir por outro caminho, pois tudo o que menos
queria era correr perigo novamente. Leonardo havia
me alertado para não perambular pelas ruas,
principalmente em lugares mais escuros e isolados.
À luz do dia, a praça era muito mais alegre,
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sem sombra de dúvidas. Algumas crianças


brincavam de jogar bola no centro do gramado
verdinho, e outras brincavam de amarelinha na
calçada. Não parecia em hipótese alguma o lar de
um espírito amaldiçoado e fedido. Talvez aquele
cara não morasse por lá. Talvez ele só estivesse de
passagem quando me viu sentada no banco, sozinha
e indefesa.
De qualquer forma, eu já estava praticamente
na praça e as crianças continuavam animadas, o que
me dava vontade de ficar sentada em um dos
bancos, observando-as e tentando pensar direito no
que fazer para ajudar Carla. Porque, na verdade, eu
tinha mesmo que ajudá-la. Precisava ir para o céu e
ficar tão bonita quanto Cibele. Aquele era meu
novo plano, o meu novo objetivo. Depois que eu
estivesse bem bonita, com certeza Leonardo não
me daria foras, nem sumiria sem deixar sinal algum
de sua existência, deixando-me sem saber quando
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ou se retornaria.
Seria um plano maravilhoso se o ponto de
partida não fosse ajudar aquele traste anormal. Mas
tudo tinha suas vantagens e desvantagens, pelo
menos encontrei algo com que sempre soube lidar:
desafios. Seria um desafio e tanto me aproximar
daquela louca, mas estava disposta a encarar a
parada de frente. Afinal de contas, eu mataria dois
coelhos com um só golpe, visto que tanto salvaria a
minha alma e finalmente iria para o céu, como
também teria Leonardo para mim.
Perfeito!
Não consegui disfarçar o sorriso ao traçar
meus novos objetivos. Ninguém podia me ver,
então aproveitei para gargalhar sem nenhum pudor.
Meu plano era tão genial! Eu finalmente sabia para
onde ir, e, o que era mais importante, por onde
começaria. Quanto mais rápido ajudasse aquela
idiota, mais rápido teria a chance de viver no
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mundo de Leonardo. Seria uma pessoa encantadora


para ele. Só que, para isso, eu precisava de ajuda.
— Leonardo? — chamei com a voz baixa,
olhando para as crianças enquanto elas brincavam.
Eu não fazia ideia se ele apareceria, mas não
custava nada tentar. — Preciso de você, Leonardo.
Por favor, decidi seguir o meu caminho. — Sorri ao
me lembrar do meu belíssimo plano.
Tentei chamá-lo mais algumas vezes, porém
não obtive qualquer resposta. Nem mesmo um
recado, um aviso, um sinal. Nada. No princípio,
permaneci calma e paciente, apenas observando a
alegria das crianças, mas na medida em que ele
demorava a aparecer, fiquei cada vez mais
angustiada e deprimida, com uma vontade absurda
de chorar. Só que eu havia prometido a mim
mesma que nada mais me faria derramar lágrimas
de novo.
Engoli em seco, sentindo um nó descer pela
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minha garganta. Eu me levantei do banco da praça


rapidamente. Se aquele Conselheiro de meia tigela
não me ajudaria, então eu faria todo o serviço
sozinha. Não precisava dele para absolutamente
nada.
No mesmo instante em que fiquei de pé, levei
um susto enorme que quase arrancou o meu
coração para fora do corpo. Bem na minha frente,
havia um homem que não era Leonardo, e nem
aquele cara fétido do outro dia. Notei que, na
realidade, se tratava de um rapaz muito bonito e
atraente. Não consegui deixar de lhe oferecer um
sorrisinho de paquera meio sem sentido. Não me
culpe, eu era acostumada a fazer aquilo o tempo
todo. O homem devolveu um sorriso de dentes
brancos perfeitos. Ele era, definitivamente, muito
gato.
— Oi — murmurei, meio acanhada. Quero
dizer, será que os fantasmas faziam amizade como
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qualquer vivo? Achei que “oi” seria um belíssimo


ponto de partida.
— Oi. — Ele não parou de sorrir, parecia
admirado. Eu estava tão acostumada a ver caras
espantados com a minha beleza que nem me
importei com seu olhar me analisando dos pés à
cabeça. — Tudo bem contigo?
— Tudo bem... E com você?
— Melhor agora. — Senti o meu rosto
esquentar no mesmo instante.
Uau! Morrer estava começando a ficar
interessante.
Um segundo que pareceu uma eternidade se
passou com aquele homem me observando, meio
sem saber o que falar. Pude perceber que ele estava
com uma aparência meio debilitada, apesar da
beleza encantadora. Havia grandes olheiras em
volta dos seus olhos extremamente verdes e
hipnotizantes. Seus cabelos eram claros, um tom de
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loiro queimado bem bonito. Uma de suas


sobrancelhas estava arqueada de surpresa, e
carregava consigo um olhar que já devia ter
apaixonado milhares de garotas.
O rosto dele era todo afilado, parecia uma
pintura de bom gosto, porém nada daquilo chamava
mais atenção do que suas roupas. Não tinham o tipo
de branco que reinava nas vestes da maioria dos
fantasmas que conheci. Muito pelo contrário, elas
eram todas pretas e sóbrias. Ao perceber suas
roupas escuras, meu sinal de alerta interior gritou:
cuidado!
— Até logo, tchau — falei rapidamente,
pronta para me virar e seguir na direção oposta a
ele.
Tudo bem, o cara podia ser o gostosão, mas
eu realmente não queria mais confusão na minha
vida. Ou melhor, na minha morte. Simplesmente
não valia a pena ficar de paquerinha com um
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desconhecido de vestes pretas. Aquele cara que me


atacou na noite anterior vestia preto também,
portanto não significava coisa boa.
— Espere... — ele murmurou, parecendo
triste. — Não vou te machucar.
Olhei para trás. Ele fazia uma carinha linda
de menor abandonado. Quando percebeu que eu
ficaria um pouco mais, tornou a sorrir. Pude
detectar totalmente que tipo de sorriso era aquele:
misterioso do tipo paquera, mas com uma pitadinha
de malandragem. Não dava, de forma alguma, para
resistir. Apesar do alerta que meu estômago
espremido me dava quase aos berros, aproximei-me
um pouco mais, ficando cara a cara com ele.
— O que você quer? — Metade de mim
estava morrendo de medo dele, e a outra metade
totalmente encantada com sua beleza.
— Você me chamou.
Fiz uma careta.
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— Eu não te chamei, nem sei seu nome!


— Você precisa de ajuda, e eu irei te ajudar.
É o que faço. — Seu sorriso se apagava e acendia
como se fosse uma lâmpada. Esquisito! — A
propósito, o meu nome é Victor. Você deve ser
Rafaela.
— Você é um Conselheiro de Luz?
Será que o céu estava repleto de
Conselheiros bonitões ou era eu quem estava
ficando doida?
— Claro que não, fala sério! — Ele começou
a rir. — Sou alguém que vai te ensinar muito mais
do que esses caras. Faço parte do melhor lado,
sacou?
— Ah, é? Vai me ensinar tipo o quê? —
Cruzei os braços. Eu já estava ficando meio irritada
com aquele idiota.
Quem ele pensava que era? A última bolacha
do pacote?
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Eu não admitia de forma alguma que ele


desdenhasse os Conselheiros, e muito menos o meu
Conselheiro. Tudo bem que Leonardo praticamente
me abandonou, mas não significava que eu
permitiria que um cara qualquer falasse tanta
besteira. Mesmo sendo bonitão daquele jeito.
— Aposto que quer saber como tocar os
objetos. — Victor manteve seu olhar em alguma
coisa ao redor, menos em mim. — Você com
certeza consegue se locomover sem ter que
caminhar. — Quando seu olhar me alcançou
novamente, foi como um baque.
Ele sabia que eu não fazia ideia sobre nada
daquilo. E que Leonardo não tinha me contado.
Victor estava jogando comigo, e o pior de tudo era
que eu não sabia para que time ele estava torcendo.
— Quem é você?
— Já falei, me chamo Victor. Ao seu dispor
sempre. — Encenou um gesto cavalheiresco típico
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de filmes. — E você é Rafaela, uma recém-


chegada.
— Suponho que saiba muito sobre mim. —
Eu me sentei novamente no banco, disposta a lhe
dar um pouco de oportunidade para se explicar.
Admito que também estava muito curiosa com
relação a ele. — De onde você vem?
Ele se sentou ao meu lado no singelo banco
da praça. As crianças ainda brincavam no gramado,
alheias ao que acontecia no mundo dos que já se
foram. Alguns pássaros entoaram canções
aleatórias, e muito alegres, sobre as árvores que
cobriam todo o perímetro da Praça. A atmosfera
inspirava calma e tranquilidade, mas as únicas
coisas que pude sentir foram medo e angústia.
Victor parecia se divertir muito com meu
nervosismo. Algo nele estava totalmente errado, eu
podia sentir toda vez que me olhava intensamente,
o que era muito comum.
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Após algum tempo de silêncio, ele finalmente


resolveu me responder:
— Sou um tipo de Conselheiro, só que não
faço parte da Luz.
Meu coração mal pôde assimilar o que Victor
disse e já estava batendo em descompasso.
Aquele cara falou que era o demônio ou foi
impressão minha?
— Você é o capeta? — Meus olhos ficaram
bem abertos, eu estava apavorada.
— Claro que não! — Victor gargalhou. —
Sou só um cara que quer te ajudar, que também não
liga para esses Conselheiros. Aprendi tudo sozinho,
e hoje o mundo é meu. — Seu porte decidido
realmente não negava o que dizia. Ele falava com
tanta confiança em si mesmo! Mas aquelas olheiras
profundas não me enganaram.
— Você vai levar a minha alma? Isso não é
um pacto, é? — Eu me agitei no banco da praça.
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Imaginei que, se existissem demônios, eles


seriam exatamente daquele jeito: lindos, perfeitos,
simpáticos e atraentes. Teriam tantas qualidades
visíveis que as pessoas se deixariam levar pela
aparência, perdendo suas almas para o mal mais
rápido do que você possa dizer a palavra “ferrou”.
— Isso aqui não é um pacto com o satanás,
nem nada da espécie. Fique tranquila. — Ele tocou
a ponta de seus dedos no meu rosto. Foi de leve e
muito depressa, mas o suficiente para fazer minha
pele arder bem no ponto onde encostou.
— Tudo bem, comece pelas coisas, então.
Como consigo tocá-las? — Eu estava interessada
de verdade, apesar de meio temerosa.
— Simples! Concentre-se no objeto, imagine-
se pegando nele. No começo pode ser difícil, mas
depois de um tempo você não vai ter nenhuma
dificuldade — explicou calmamente, como alguém
que já estava acostumado a passar seus
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ensinamentos.
— Como posso ir aos lugares sem caminhar?
— Eu estava supercuriosa para saber aquilo, já que
eu havia deduzido sozinha como se pegava em
objetos. Quero dizer, consegui pegar aquela revista
na noite passada.
— Se chama desmaterialização e
materialização. Tudo é questão de concentração e
pensamento. Se você se concentrar no local que
deseja ir... — Victor parou abruptamente.
Ele olhou para um ponto logo atrás de mim,
com ar de superioridade e, ao mesmo tempo, de
surpresa. Seus olhos faiscaram desprezo por alguns
segundos. Eu me virei para saber o que Victor
estava olhando e quase não acreditei que Leonardo
estava presente naquela praça. O Conselheiro
permaneceu muito sério, e parecia bastante
aborrecido, mas a visão daqueles olhos escuros
simplesmente me deixou louca.
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De um segundo para outro, eu já não sabia


direito o que estava acontecendo, nem conseguia
mais lembrar que Victor existia. Olhar dentro dos
olhos profundos de Leonardo acordou em mim
alguma coisa que estava adormecida em um lugar
muito profundo do meu peito. Foi impressionante.
Tão impressionante que não pude acreditar que
estava acontecendo comigo.
— O que faz aqui, Victor? — Leonardo deu
alguns passos a frente.
Eu ainda o encarava, e ele encarava Victor
quase sem notar minha presença. Sua voz soou
firme, mas não significava que para mim ela não
tenha soado como a mais bela melodia.
— Espera aí, vocês se conhecem? — Olhei
para Victor e aguardei uma resposta.
— O de sempre, Leonardo. Mas não se
preocupe. Rafaela adorou saber que sou muito mais
útil do que você. — O cara desdenhou com um
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sorriso besta no rosto.


— Saia daqui imediatamente. — Leonardo
rosnou, e eu imediatamente voltei a encará-lo.
Nunca o tinha visto tão irritado.
— Quem é você para me dar ordens?
Meu Deus! Não dava para acreditar naqueles
dois. O que estava acontecendo ali?
— Não ouse fazer isso, Victor. Juro que
perderei toda minha paciência com você. — O fato
de Leonardo estar sério só o deixava ainda mais
encantador.
— Assim você me deixa triste. Pensei que já
tivesse perdido há muito tempo. — Victor
continuou sorrindo maliciosamente.
— Procuro não perder a paciência e ajudar
sempre que estiver ao meu alcance. Você sabe
disso.
— Dane-se. — Para a minha total surpresa,
Victor se virou para mim e falou: — Depois
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combinamos aquilo, Rafaela. — Pegou minhas


mãos docemente, beijando-as como um cavalheiro.
Logo em seguida, simplesmente evaporou.
Eu estava surpresa, é claro. Aliás, surpresa
era apelido, estava completamente estarrecida.
Apesar de já começar a me acostumar com
surpresas, não entendi nada do que tinha sido
proferido. O fato de Leonardo e Victor se
conhecerem era algo que eu realmente nunca
esperei.
— O que aconteceu aqui? — perguntei de
uma vez, encarando Leonardo, que agora olhava
para o horizonte, como que perdido em
pensamentos. Seu maxilar estava rígido como uma
pedra.
— Não importa. Jamais torne a falar com
aquele homem de novo. — Ele pegou minhas mãos
e me levantou do banco, puxando-me para si.
Leonardo me abraçou calorosamente.
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O abraço não foi exatamente romântico. Na


verdade, foi do tipo que o irmão oferece à sua irmã
mais nova e indefesa. Mesmo assim, não pude
deixar de sentir o formigar que a pele dele causava
na minha.
— Por que você sumiu? — Com muito pesar,
afastei o meu corpo e recompus meus pensamentos.
Eu precisava saber mais.
— Porque faço exatamente o que você
precisa. — Seu olhar sobre o meu foi profundo.
Leonardo me analisava como que conferindo se eu
estava bem mesmo.
— Eu precisei de você. — Meu rosto
esquentou assim que soltei aquela frase.
— Você me queria, mas não precisava.
Minhas bochechas se esquentaram ainda
mais. Quase morri de vergonha. Na visão de
Leonardo, eu deveria estar completamente rosa,
levando em consideração o meu vestido. Não
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conseguia entender direito o que Leonardo falava.


Era tudo tão misterioso e enigmático! Victor pelo
menos tinha sido esclarecedor, em pouco tempo de
conversa ele já havia me ensinado duas lições úteis,
e poderia ter me ensinado muito mais se Leonardo
não tivesse aparecido. Claro que eu não trocaria a
presença de um pelo outro, mas era muito
complicado viver em um mundo sem respostas.
— O que aconteceu entre vocês dois? —
Semicerrei meus olhos, toda desconfiada. —
Afinal, quem é ele?
— Não temos tempo a perder, Rafaela.
Vamos começar logo.
— Começar o quê? Aonde iremos? —
Leonardo deu alguns passos apressados na direção
da avenida.
— Para a casa daquela garota, a tal de Carla.
— Só vou se você me prometer que
responderá todas as minhas perguntas. — Forcei
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uma parada no meio da praça. Leonardo me soltou


e pensou um pouco, depois voltou a me puxar,
decidindo, por fim, entrar em acordo.
— Prometo.
— E arrumar alguma coisa para eu comer,
estou com muita fome! — balbuciei, quase
chorando ao me lembrar do vazio em meu
estômago.
Leonardo suspirou profundamente e fez sinal
de positivo com a cabeça, antes de retomar uma
longa caminhada até a casa de Carla.

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Capítulo 9

O ferimento

CADA PASSO que dávamos em direção à casa de


Carla fazia piorar a angústia no meu peito. As
primeiras lágrimas surgiram assim que avistei o
muro meio desgastado pelo longo tempo sem
pintura e o pequeno portão branco ornamentado. Eu
não sabia o que poderia acontecer lá dentro, mas
esperava que Carla cooperasse comigo, para que
assim eu desse um fim definitivo àquela situação
insuportável. Simplesmente não aguentava mais
tantas surpresas, e muito menos a tristeza que
invadia a minha alma sem pedir licença.
— Não vou poder te acompanhar até lá. —
Leonardo segurou ainda mais firme a minha mão.
Parecia meio tenso. — Mas prometo que volto.
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Procure não se envolver em confusão e nem dar


ouvidos a estranhos, combinado?
— Combinado — falei por falar, afinal,
qualquer coisa poderia acontecer e eu certamente
não seria a culpada.
— Boa sorte — murmurou.
Antes que pudesse tecer qualquer comentário,
Leonardo já havia desaparecido. Éramos somente
aquela garota idiota e eu. Respirei fundo e, devagar,
entrei na casa. Encontrei os móveis revirados, como
da primeira vez em que estive ali. Definitivamente,
eles não tinham empregada doméstica. O estrago
era geral, e eu me perguntava como uma pessoa
poderia viver naquele meio tão descontrolado. O
aperto em meu coração se intensificava na medida
em que me aproximava do quarto onde outrora
havia encontrado Carla.
Ela não me viu de imediato, pois tentei ser
bastante sutil. Carla estava de frente a uma
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penteadeira semidestruída, observando-se em um


espelho cheio de ferrugem e lascas partidas, que
não permitiam a completa visualização de sua face.
Mesmo assim, o que consegui ver foi o suficiente
para me deixar chocada. Ela tinha marcas roxas
espalhadas pelas costas nuas, graças a uma blusinha
muito fina de renda preta. Havia também um
grande machucado ao redor de um de seus olhos,
pude visualizá-lo através de seu reflexo. Aquilo
estava muito feio.
Carla tentava, freneticamente, passar uma
base líquida em sua pele branca. Ela queria
esconder a marca grotesca na face, sem muito
sucesso. O machucado tinha tons de roxo, com
partes avermelhadas e meio amareladas ao redor,
formando uma camada grosseira e tosca. Nem se
fizesse uma cirurgia plástica o rosto dela voltaria a
ser como antes. Pelo menos eu achava que
demoraria um bocado.
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De repente, Carla olhou para trás, assustada,


percebendo a minha aproximação.
— O que faz aqui, sua ridícula? — gritou o
mais alto que pôde.
Ela me observou ferozmente através do
espelho, e fiquei surpresa em conseguir ver também
o meu reflexo. Por um momento pensei que
fantasmas eram como os vampiros, o que de certa
forma foi besteira da minha parte, já que conseguia
me olhar no espelho do meu quarto sem nenhum
problema.
— Olha, não precisa gritar. Não quer que
ninguém venha te chamar atenção de novo, quer?
— apontei para a porta.
— Ele já saiu. Mesmo assim, não te interessa.
Vaza daqui! — Carla estava completamente
descontrolada, dava para perceber nas expressões
que fazia.
Ela desistiu de esconder o ferimento e
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encontrou óculos escuros enormes dentro de uma


das gavetas que pendiam de sua penteadeira
deformada.
— Não vou “vazar” daqui, sua idiota. Fique
quieta e me deixe te ajudar! — gritei de volta para
ver se ela me entendia de uma vez por todas.
Aquela menina tinha que tirar minha
paciência tanto assim?
Ela pareceu surpresa com o meu rompante.
Virou-se como que para me observar melhor. Seus
óculos cobriam todo o machucado dos olhos, o que
de certa forma me deixou aliviada. Pelo menos ela
poderia ter um pouco de vida social até conseguir
se recuperar. Claro, se ela tivesse vida social. Eu
duvidava muito.
— Me ajudar? Conta outra para ver se eu
acredito! — Seu semblante permaneceu chocado.
Vi a primeira lágrima rolar até a sua boca, e não
consegui me impedir de derrubar lágrimas também.
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Era como se nossos sentimentos estivessem


conectados.
— Por que você está chorando? Ficou doida?
Está tirando uma com a minha cara? — Carla
gritou, revoltada, levantando-se da penteadeira.
Gesticulou como se eu fosse um pedaço de lixo. —
Saia!
— Acha mesmo que eu queria estar aqui? Eu
morri, ouviu bem? MORRI. Queria estar no
shopping agora, mas estou assombrando o seu
quarto! — Continuei a chorar como uma louca,
adicionando sua dor junto à minha em um misto
extremamente insuportável.
— Então, vá embora. Não há nada para você
aqui — Carla falou secamente, com um timbre
cansado.
Caminhou até uma porta que não era a que
dava para a sala de estar. Eu não a havia percebido
antes. Segui-a instintivamente, observando os
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móveis de seu quarto bagunçado e tirando a


conclusão de que, na verdade, o ambiente já tinha
sido muito bonito há um tempo, antes de parecer
que um vendaval passou e levou tudo.
A tintura rosa-bebê das paredes ganhava uma
tonalidade sombria, bem distinta da que provinha
do meu vestido. A cama era grande, tinha até
dossel, mas as cortinas estavam rasgadas e
imundas. Lascas de madeira quebrada sobressaíam
tanto da cama quanto da penteadeira e do criado-
mudo, que agora nada mais era do que um pedaço
podre esquecido, com uma gaveta totalmente para
fora.
— Sabe, você devia dar um jeito no seu
quarto. — Carla me ignorou enquanto retirava os
óculos e jogava água da torneira em seu rosto, bem
de leve para não magoar o ferimento.
Descobri que a segunda porta do quarto de
Carla dava diretamente para um banheiro que
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mantinha um pouco de dignidade, diferentemente


do restante da casa. O vaso sanitário, o chuveiro e a
pia, apesar de estarem desgastados, permaneciam
intactos e devidamente limpos. Havia algumas
roupas dobradas dentro de um grande cesto, bem ao
lado da pia.
— Isso está bem feio, você devia ir ao
médico.
— Cuide da sua vida — respondeu com um
rosnado.
Uma raiva muito grande tomou conta de mim
subitamente.
Quem aquela garota estúpida pensava que
era para me tratar daquele jeito?
Tentei me controlar de todas as formas
possíveis para não apertar as mãos em volta
daquele pescoço branco. Cheguei até a imaginar a
cena, mas apenas respirei. Enchi meus pulmões e
depois os esvaziei umas dez vezes antes de me
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sentar no vaso fechado e observar Carla limpando


seu machucado.
— Não posso ir embora até te ajudar. —
Decidi ser sincera de uma vez por todas. Se eu
quisesse ir para o céu, tinha que pelo menos fingir
que suportava aquela estúpida.
— Ah, é? Por quê? — Pegou um pedaço de
algodão em um potinho azul.
— É o meu carma. Só vou poder ir para o céu
quando conseguir te ajudar. — Aquela declaração
foi tão profunda para ela que pude sentir em meu
peito cada pontinha de seu pesar.
A dor extrema apareceu novamente.
Insuportável, cruel. Afinal, era mesmo verdade o
que Leonardo me contou. O que Carla sentisse, eu
sentiria exatamente igual. E aquilo era espantoso,
visto que nunca imaginei sentir tanta tristeza.
— Sinto muito te informar — ela disse entre
lágrimas e depois parou, recompondo a voz antes
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de prosseguir —, mas você vai ter que se contentar


com o inferno.
A idiota recolocou os óculos e seguiu para
fora do banheiro. Vestiu um enorme casaco, que
estava em cima da cadeira outrora cor de rosa e
agora cinzenta, depois calçou sapatilhas pretas. Ela
se tornou um borrão negro e bizarro com aquelas
calças pretas e o casaco igualmente preto tamanho
GG (ela devia usar P infantil, na verdade),
combinando com o cabelo longo, liso e muito
escuro. Era sinistro. Lembrei-me do dia em que
estava parecendo a Samara no corredor do colégio.
O que me fez ter mais uma recordação.
— Espera aí! Você me disse outro dia que a
minha hora estava chegando. — Comecei a tremer
por inteira, apavorada. — Você... Você sabia que
eu ia morrer!
Carla me ignorou completamente. Colocou
alguns livros dentro de uma mochila, também da
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cor preta.
Alguém, por favor, me lembra de passar no
shopping para comprar roupas claras para aquela
criatura?
— Estou falando contigo!
Não aceitava ser ignorada daquele jeito, já
bastava Leonardo me deixar sem respostas, agora
teria que aguentar aquela infeliz?
— Sim, eu sabia. — Sua voz saiu baixinha e
meio rouca. Ela parou bruscamente de arrumar o
material, logo em seguida prosseguiu com a tarefa.
— Como sabia? Como você sabia disso? —
Eu mal podia acreditar. Se Carla sabia da minha
morte, significava que poderia ter impedido. Mas
ela não impediu. Tanto não impediu quanto
também me ameaçou.
O ódio subiu ao meu cérebro, fazendo com
que minha cabeça ficasse bem quente, quase
entrando em ebulição. Dava até para sentir fumaças
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saindo de meus ouvidos, como em desenhos


animados.
— Por que não me avisou? Por que não
impediu? — Comecei a chorar de tanta raiva. A
lâmpada do quarto piscou bastante, entrando em
sintonia com meu estado de espírito perturbador.
— Eu avisei. — Carla fechou a mochila e a
colocou nas costas devagar, para não arder o
machucado. — E, bem, jamais conseguiria impedir
mesmo. Nunca sei quando ocorrerá, nem como. —
A lâmpada se apagou de vez, e um estalo foi
ouvido.
Ela não se importou, já eu, fiquei louca por
não saber que eu tinha a capacidade de fazer aquilo.
— Mas como você sabia? — choraminguei.
— Sabendo. Agora me deixe ir. — Sua voz
permaneceu segura, como se ela tivesse tomado
algum comprimido que a fizera sair da posição de
vítima para entrar na de algoz. Eu precisava de um
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daqueles, sem dúvida. Uma dose bem grande


daquilo que a fazia permanecer de pé.
— Espere! Para onde vai? — Corri atrás dela.
Carla atravessou a saída do quarto apressadamente.
— Para escola, óbvio. — Ela não me
esperou, apenas seguiu rapidamente, tentando se
livrar de mim.
— Você vai assim? Neste estado? Devia ir ao
médico! Ou à polícia! — Tentei acompanhar seus
passos largos em direção ao jardim.
— Não seja idiota. — Carla fechou os
portões ornamentados não antes de me deixar
passar.
Não sei se foi um sinal para acompanhá-la ou
para ir embora de uma vez. De certo modo, achei
que eu devia mesmo ir à escola. Estava com certa
curiosidade para saber como tinham ficado as
coisas desde que... Bem, desde que morri.
Segui Carla por todo o trajeto, incluindo a
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viagem de ônibus. Pude observar outros fantasmas


circulando nas ruas da cidade. Eles também
pareciam acompanhar algumas pessoas em
específico, mas existiam aqueles que apenas
vagavam sem direção. Fiquei bastante animada por
não ser a única a ter que enfrentar aquele martírio.
Percebi que alguns espíritos trajavam roupas
com cores bem diferentes. Alguns se vestiam de
azul, verde, cor de rosa igual ao meu vestido,
amarelo e preto. Imaginei que aquelas cores
significassem a personalidade de cada um, pois os
fantasmas que vestiam preto tinham sempre um ar
de hostilidade em seus olhos, algo diferente que
inspirava... Medo. Pareciam tramar alguma coisa
diabólica. Não pude deixar de pensar em Victor.
O restante das almas parecia benevolente, ou
pelo menos indiferente ao seu redor. O que só me
causava ainda mais curiosidade por saber os
significados do mundo em que eu vivia e nada
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conhecia. Precisava me lembrar de fazer as


perguntas certas a Leonardo naquela noite. Ele
havia me prometido que contaria tudo o que eu
precisasse saber. Estava muito curiosa em relação
ao mundo dos espíritos, ao meu carma e a Victor.
Quem era ele, afinal? Qual a história por
trás de Victor e Leonardo? Quando eu finalmente
iria comer?
Aquele último pensamento fez meu estômago
revirar. Pensei que talvez conseguisse pegar algum
salgado na cantina da escola quando ninguém
estivesse reparando. Ou talvez fantasmas realmente
não comessem, como tinha sugerido Leonardo. O
que aconteceria se colocasse alguma comida na
boca? Será que viraria cinzas ou teria gosto ruim?
— Sua parada é esta — alguém disse no
banco de trás do ônibus.
Aquela voz chamou a minha atenção
imediatamente. Era um timbre suave e feminino,
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que inspirava calma e tranquilidade tal qual a voz


de Leonardo inspirava em mim. Olhei para trás
apressadamente e dei de cara com Magnólia,
sentada ao lado de uma mulher idosa que se
preparava para descer do ônibus.
Carla estava sentada ao meu lado e também
se virou, conferindo o que havia chamado minha
atenção. Quando Magnólia me viu, apenas sorriu
abertamente e logo em seguida acompanhou e
amparou a velhinha até a porta do ônibus. Sua luz
forte circundava não apenas a si mesma, mas
também a senhora e um grande raio ao redor de
ambas. Estavam protegidas dentro de uma
membrana de luz suave e poderosa. A senhora
estava totalmente alheia à presença da membrana
iluminada, e à existência de Magnólia, passando
através dela sem ao menos perceber que ali havia
uma pessoa. Quero dizer, um fantasma.
— Quem é aquela? — Carla sussurrou ainda
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olhando para Magnólia, que agora vigiava a


descida da mulher pelos degraus do ônibus.
Por um minuto eu havia esquecido que Carla
estava bem ali ao meu lado, tanto que acordei
subitamente de um transe maluco no qual a voz de
Magnólia tinha me colocado.
— Você consegue vê-la também?
Carla aquiesceu timidamente, meio
envergonhada.
— Você consegue ver... todos os fantasmas?
— Encarei-a seriamente.
Seus olhos fitaram o chão do ônibus, e os
cabelos negros escorreram fartos sobre o rosto,
deixando um penteado sinistro tomar forma.
— Sim. Eles estão por toda parte. Às vezes
falam comigo, como você. É bem esquisito, eu
detesto. Mas não tem como fugir. Apenas ignoro.
— Enquanto falava ela revirou um dos bolsos de
sua mochila. Retirou dele uma embalagem de goma
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de mascar e um maço de cigarros.


— O que você está fazendo? — Fiquei
enojada ao vê-la colocando um cigarro na boca.
Quero dizer, muitos amigos meus faziam aquilo.
Mas, fala sério, sempre achei fumar um horror.
Causa impotência sexual e câncer em um monte de
lugar, o Ministério da Saúde adverte.
— Qual é, Rafaela? — Carla falava baixinho
para ninguém do ônibus pensar que estava ficando
doida, conversando com o “nada”. Mesmo assim,
foi a primeira vez que me chamou pelo nome.
Finalmente algum progresso! Por um momento,
tive esperanças de que Carla cooperaria comigo.
Era só ter paciência. — Nunca viu ninguém
fumando?
— Não existe coisa mais idiota do que fumar.
— Ela ignorou o meu comentário, apenas olhou
para a janela sem nada dizer, observando as árvores
e calçadas passarem em grande velocidade.
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Depois de eternos minutos naquele ônibus


monótono, ela resolveu quebrar o silêncio entre
nós.
— Então, quem era aquela fantasma? Nunca
vi uma daquele jeito. Senti algo... — parou para
escolher uma palavra — bom.
— Magnólia. É uma Conselheira de Luz. —
Soltei um longo suspiro. — Os Conselheiros
inspiram muita tranquilidade. São almas boas,
dispostas a ajudar.
— Eu conheço os Conselheiros, mas aquela
era muito especial. Você com certeza não é uma
dessas Conselheiras. — Carla me observou de cima
a baixo com desdém. — Está meio longe de ser
uma. Então por que quer me ajudar? — sua voz
sussurrante tornava as palavras quase inaudíveis,
mas de alguma forma eu entendia perfeitamente
tudo o que falava.
— Já expliquei! Tenho que ajudar e pronto.
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Que tal se você cooperasse em vez de fazer


perguntas?
— Ai, ai...— Carla suspirou profundamente.
— Não sei o que fiz de tão ruim para merecer tanta
desgraça na minha vida. — Ela voltou a olhar para
a janela e eu soube o exato momento em que
começou a sofrer. Pude sentir dentro de mim algo
doloroso pulsando.
— Quem é aquele cara? Digo, aquele homem
que mora contigo? — perguntei, curiosa. — Você
devia denunciá-lo. Ele te bate. Sabe-se lá o que
mais faz com você. Foi ele que destruiu a casa?
— Não se meta nisso! — Carla gritou para
todos no ônibus ouvirem. Ela se calou e afundou no
assento, constrangida.
As pessoas a observaram por um tempo, até
que desistiram de tentar descobrir o que ela tinha de
errado. Decidi permanecer calada no restante do
percurso. Carla tratou de fazer exatamente o
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mesmo. Não que eu quisesse que ela falasse alguma


coisa, na verdade. Eu já estava cansada demais, e o
dia nem tinha iniciado direito. Se todos os dias de
fantasmas fossem assim, começava a achar que
morrer era mais emocionante do que estar vivo.

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Capítulo 10

A escola

CHEGAMOS À escola um pouco atrasadas, e por


isso Carla saiu correndo assim que descemos do
ônibus. Nossa parada ficava bem em frente à
grande escadaria, que terminava em um portão de
ferro. Carla o adentrou no último instante antes de
ele ser fechado pelo porteiro. Nenhum estudante
poderia entrar mais. Pelo menos não antes de ter
uma conversinha particular com Ivany Ferreira,
diretora da escola. Tia Ny, como alguns chamavam
carinhosamente, era uma senhora esperta que se
dava bem com todos os tipos de alunos, portanto ter
uma conversa com ela não era algo tão ruim assim.
Significava chocolates grátis e alguns minutos
perdidos de aulas chatas.
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Mesmo se eu tivesse certo receio de


encontrar com tia Ny — o que não era o caso, já
que a diretora não conseguiria me ver —, não tive
nenhuma pressa em subir as escadarias. O sol
esquentava de maneira confortável e alguns
pássaros cantarolavam nas árvores por perto. O
vento soprava livremente, trazendo uma sensação
de conforto. O dia estava muito bonito, apesar de
ter sido bem conturbado desde o princípio.
Não precisei pedir ao porteiro que abrisse o
grande portão azul quando finalmente cheguei ao
fim da escadaria, pois obviamente ele nem tinha me
visto. Transpassei o portão com facilidade. A
sensação de ultrapassar os objetos não era ruim,
mas me fazia lembrar que eu estava morta e não
pertencia mais aquele mundo. Contudo, naquele
momento, o poder de locomoção me trouxe certo
orgulho da minha condição como fantasma. Claro
que não durou muito, principalmente quando dei de
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cara com o grande pátio da instituição que havia me


acolhido durante longos anos de estudo.
Permaneci parada, de boca aberta,
recordando-me de cada momento que vivi naquele
lugar. Minha vida inteira passou diante dos meus
olhos. Tive momentos de alegrias e tristezas, de
descontração, amizades, paixões... Tudo o que
considerava mais importante eu tinha
experimentado exatamente entre aqueles muros
altos. No entanto, não poderia viver mais nada,
porque a escola já não me acolheria. Eu não fazia
mais parte dela.
Foi grande a vontade de me sentar em alguma
das cadeiras e chorar até a hora do intervalo, mas
me contive a tempo de raciocinar. Prometi a mim
mesma que não perderia tempo chorando pelo leite
derramado. Não havia nada que eu pudesse fazer
para mudar o passado. A única coisa que eu podia
era buscar meus objetivos com coragem, pois o
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futuro dependia das minhas atitudes. Apesar de


terem me arrancado a vida, eu sabia que a morte
não era o fim de tudo. Minha jornada não tinha
acabado.
Atravessei as mesas do pátio vazio, elas ainda
estavam muito bem organizadas e limpas. Elas
provavelmente ficariam assim até a hora do
intervalo, quando um bando de porcos as sujariam
com pedaços de sanduíche e copos descartáveis,
mesmo que existissem lixeiras sempre próximas.
Eu realmente não sabia o que dava na cabeça das
pessoas para manterem hábitos tão feios quanto
jogar o lixo no chão.
As árvores muito bem podadas ofereciam
sombras refrescantes. Em dias de chuva, o pátio
não era utilizado por ser ao ar livre e ficar todo
ensopado, então os estudantes se aglomeravam nos
corredores ou na quadra poliesportiva. Naquele dia
o sol forte anunciava que o verão tinha alcançado o
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seu auge.
Caminhei pelo corredor principal, que estava
completamente vazio naquele horário. Os ruídos
característicos de professores mediando suas aulas
se faziam ouvir toda vez que eu passava em frente a
uma porta. Senti saudade de assistir aula em minha
carteira, e também de trocar bilhetinhos com
Daniele. Claro que aquele sentimento não durou
muito, principalmente depois que me lembrei de
como eram as aulas do professor de Matemática.
De fato, as aulas dele não dariam saudades em
ninguém.
Entre uma sala de aula e outra, existiam
vários metros de parede com azulejos brancos, e foi
em uma delas que vi um cartaz perturbador. Ele era
grande, feito de cartolina colorida, mas o que me
chamou mais atenção foi o retrato estampado nele.
A fotografia era de uma garota loira e muito bem
maquiada, trajando fardas escolares e sorrindo
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abertamente. Ou seja, era minha.


Aproximei-me com curiosidade, sentindo
meu estômago se contorcer. Nada pude sentir em
todo o meu corpo além de um embrulho esquisito.
No fundo, eu sabia o que encontraria naquele
cartaz, porém não fazia ideia se estava preparada
para aquilo. O meu estômago alertava claramente
que não.
De qualquer forma, a curiosidade foi muito
maior e acabei lendo o conteúdo.

“Rafaela Satto”

Meu nome estava escrito em mais evidência


do que o restante do texto, logo ao lado de minha
foto. Ler meu próprio nome ali me trouxe lágrimas.

“Que Deus sempre esteja contigo em tua


jornada, e que tua alma esteja bem guardada
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pelos anjos. Deixaste este mundo muito jovem


e repentinamente. Entristecemo-nos por haver
uma luz de juventude e vitalidade a menos
neste mundo, e com certeza teremos saudades
de tua alegria sempre constante. Alunos,
professores e toda a comunidade escolar
rezarão sempre por tua alma, para que ela
alcance a glória e encontre abrigo.”

As últimas palavras foram lidas com muita


dificuldade, pois minhas lágrimas vertiam
excessivamente, impedindo-me de enxergar com
clareza. Aquelas frases não podiam ser mais bem-
vindas do que já eram. Nada me daria mais
esperança do que a demonstração de carinho diante
de mim, escrita pelas pessoas com as quais sempre
convivi, mas nunca me apeguei. Eu não lembrava
sequer de ter sido tão importante ou boa para
alguém em toda a escola, exceto para Daniele, mas,
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mesmo assim, lá estavam todos eles, desejando-me


tudo o que eu mais precisava naquele momento.
Depois de chorar por um tempo
indeterminado, limpei o meu rosto com as costas
das mãos, a fim de tentar ler o restante. Logo
abaixo do texto havia a comprovação de que as
pessoas esperavam exatamente o que dizia a
mensagem, mesmo sem eu sequer ter dado motivos
para merecê-la. Muitas pessoas assinaram o cartaz,
e reconheci algumas assinaturas como as de tia Ny,
a de Daniele e a de Kevin, meu ex-namorado.
Praticamente a escola inteira havia assinado, e
aquilo só me fazia verter ainda mais lágrimas
emocionadas.
Todas as assinaturas foram vistas e revistas, e
em cada uma que eu não identificava, tentava
buscar em minhas lembranças a quem pertencia.
Passei o que achei que fosse a eternidade
observando cada detalhe da cartolina. Não
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conseguia parar de chorar, e por mais que tentasse


pensar em outra coisa, não funcionava. Saboreei o
gosto amargo da minha morte, sentindo-me
arrasada, angustiada e muito triste.
Meu rosto inteiro estava quente como brasa.
O vestido ficou meio amarrotado de tanto que o
usei para enxugar os olhos. Depois de ler tudo,
percebi que faltava a assinatura de uma pessoa:
Carla. Ela tinha todos os motivos do mundo para
não ter colocado seu nome ali, contudo aquilo me
entristeceu ainda mais. Eu não soube explicar por
que a presença dela seria tão importante. Nunca
gostei de Carla.
Quando menos esperei, o sinal do intervalo
tocou alto, fazendo-me pular de susto. Os alunos
saíam das salas e caminhavam em direção ao pátio.
Uma gritaria ensurdecedora tomou conta dos
corredores. Adolescentes de todos os estilos
passaram por mim sem sequer notarem minha
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presença. Já estava começando a me acostumar a


ser ignorada pelas pessoas. Na medida em que os
alunos passavam, eu reconhecia alguns rostos de
amigos, colegas ou de pessoas que conhecia apenas
de vista.
Por um momento, cheguei a pensar que eu
estava em uma das típicas horas de intervalo. Eu
saía da sala, retocava minha maquiagem, penteava
meus cabelos e depois seguia para o pátio a fim de
comer metade do sanduíche natural de cenoura com
ricota que sempre guardava na minha bolsa.
Foi pensando naquilo que vi Daniele passar
por mim. Seu semblante estava natural, como o de
todos os dias. Ela andou até o banheiro feminino e
eu fui atrás dela, curiosa por saber como minha
amiga estava. Nunca pensei que um dia sentiria
tanta saudade da Dani, mas aquele era apenas mais
um dos sentimentos que jamais imaginei ser capaz
de sentir. Aprendi a não achá-los mais tão loucos
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assim. Eu estava mudando um pouco. Ainda não


sabia se aquela mudança toda era boa ou ruim.
— E então, Marta, vai à festa na casa de
Pedro? — Daniele perguntou a uma colega nossa,
que também retocava a maquiagem em frente ao
espelho, exatamente como eu costumava fazer.
Instintivamente, Daniele também retirou de sua
bolsinha um estojo de pó compacto.
— Não perco por nada, Dani! Vai ser
perfeito! — Marta falou alto, exasperada, mas não
o suficiente para borrar o delineador que estava
passando.
— Nem eu! Finalmente vou ter uma
oportunidade para conquistar Kevin. — Minha
melhor amiga fez uma expressão de quem andou
aprontando alguma. Nunca a vi olhando para nada
daquele jeito.
“O quê?”, foi a única coisa que pensei
naquele instante. Sério, aquelas palavras ecoaram
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infinitas vezes dentro do meu cérebro.


Daniele tentava conquistar meu ex-
namorado? Havíamos acabado quando? Semana
passada?
Pelo menos eu não achava que tinha se
passado tanto tempo assim. Não fazia ideia de
exatamente quando eu morri, mas pela lógica não
fazia mais do que alguns dias. Mesmo assim,
Daniele nunca me contou que sentia alguma coisa
por Kevin. Jamais. Ela inclusive sempre apoiou
nosso namoro.
— Não tenho certeza se o Kevin vai. —
Marta mudou a expressão de alegre para meio
preocupada. — Ele anda muito triste ainda. Você
sabe. — Ela fechou a tampinha do gloss labial.
— Besteira! Ele vai esquecer a Rafaela em
um segundo, depois que finalmente notar que eu
existo.
— Acho que ele sabe que você existe!
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— Claro que sabe, agora sou a garota mais


popular da escola — Daniele cuspiu as palavras
com ar de desdém. — Só que Kevin precisa
entender que posso ser bem mais do que uma
simples amiga. Talvez ele ache que se aproximar de
mim é errado... Mas vai entender que o fato de eu
ter sido amiga de Rafaela não tem nada a ver!
— Pois é, espero que ele entenda rápido. —
Marta soltou um beijinho para o espelho. — Afinal,
Rafaela morreu, nada pode trazê-la de volta. A vida
continua. Como dizem por aí, a catraca gira! —
Ambas riram como duas malucas.
Não pude acreditar no que tinha acabado de
escutar. Foi demais para mim. Daniele não estava
fazendo aquilo comigo. Tudo bem, eu morri, mas o
que ela pretendia era uma completa falta de
respeito com a minha memória. Roubar meu
namorado ultrapassava o exagero. Além do mais,
eu sabia muito bem que Kevin ainda gostava de
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mim. Acabei nosso namoro por besteira, e


realmente não sabia se voltaríamos ou não. Bom,
me conhecendo do jeito que conhecia, eu sabia que
não voltaria, mas tudo aquilo era grosseiro demais,
como se Daniele não tivesse um pingo de
consideração por mim. O fato é que não importava
se eu reataria com Kevin, ela não tinha o direito de
agir daquele modo.
Qual é? Eu estava super triste e morrendo de
saudade dela, e a única coisa que Daniele pensava
era em conquistar meu namorado?
Que absurdo!
Sempre pensei que ela fosse uma amiga fiel.
Dani era meiga, estava sempre disposta a me ajudar
e a me ouvir. Porém aquele ar hostil que ela havia
ganhado era completamente desconhecido. O modo
como falava com Marta inspirava crueldade e
malícia. Aquela garota na minha frente não era a
Daniele que eu conhecia.
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Será que tudo era falsidade?


Não dava para acreditar em sua atitude. Se eu
não tivesse visto a cena bem na minha frente,
jamais acreditaria. Que decepção! Um ódio imenso
invadiu o meu peito repentinamente. Eu estava com
tanta raiva que podia sentir meu rosto inteiro arder
em chamas. Minhas pernas estavam trêmulas por
baixo do vestido.
Daniele não podia me trair. Eu confiava
nela!
Sem pensar duas vezes, fiz o maior esforço
para me concentrar e conseguir empurrar a bolsa da
Kipling de Daniele para dentro do lavabo. Foi tiro e
queda. A bolsa esverdeada, que eu sabia que era
nova em folha, foi completamente molhada pela
água da torneira, que estava aberta de forma
ecologicamente incorreta.
— Ai, meu Deus, minha bolsa! Merda! —
Daniele fechou a torneira o mais rápido que pôde.
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Não pude deixar de conter um sorriso bobo.


Bem feito!
— Como foi cair aí? — Marta ajudou a
retirar tudo o que estava dentro da bolsa. — Ela
estava um pouco longe.
— Não sei, devo ter batido sem querer —
respondeu Daniele, impaciente. — Que droga!
Minha mãe vai me matar!
Aquela pequena vingança alimentou o ódio
que tinha surgido dentro de mim de repente, de tal
forma que me senti muito melhor depois. Quem
disse que vingança não era algo bom com certeza
nunca havia se vingado. Afinal, eu estava morta,
mas não era idiota a ponto de deixar as coisas
acontecerem sem que eu nada fizesse. Não era
assim que a banda tocaria.
Saí do banheiro feminino com o ódio
amenizado e disposta a esquecer aquele pequeno
imprevisto. Só ignorando que conseguiria manter
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um pouco de foco e um pingo de sanidade. Daniele


nunca daria certo como namorada de Kevin, nem se
ela quisesse. Eles não tinham nada a ver um com o
outro. Além do mais, Marta deixou bem claro que
Kevin ainda estava triste pela minha morte,
portanto não perderia meu tempo dando ouvidos a
bobagens de ex-amigas falsas. Eu precisava de
Daniele tanto quanto golfinhos precisavam de
bicicletas.
Assim que dobrei a esquina do primeiro
corredor, logo após o sanitário, vi Carla parada
diante de um quadro de avisos, totalmente absorta
nos próprios pensamentos. Estava encolhida, como
sempre ficava, segurando um monte de livros. Ela
sempre foi uma aluna bastante inteligente, tirava
ótimas notas. Era muito empenhada em aprender.
Provavelmente sabia usar bem o tempo que sobrava
não indo a festas e nem saindo com alguém.
— Aberração! — gritou uma garota que pude
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reconhecer. Era a Íris, uma das meninas que


andavam com meu grupo na hora do intervalo.
Ela esbarrou os ombros em Carla e derrubou
todo o material que estava em suas mãos no chão.
Algumas pessoas gargalharam. Carla tentou, sem
muito sucesso, empilhar os livros novamente,
intimidada pela presença das pessoas que a
caçoavam.
— É uma idiota mesmo! — gritou um garoto
do mesmo grupo, e depois foram embora, passando
entre mim sem perceberem.
Carla permaneceu ajoelhada no chão, fazendo
um esforço absurdo para não chorar e continuar
recolhendo seu material. A dor começava a invadir
o meu peito de novo. Aproximei-me dela com
calma e, a cada passo, a dor insuportável enchia o
meu coração a ponto de me fazer quase explodir de
tanta tristeza. Era algo como um buraco negro sem
fim, que me puxava para a escuridão sem qualquer
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pudor. Nada pude fazer para que aquilo parasse.


Cheguei perto o suficiente para me ajoelhar
bem em frente a ela, que já estava com lágrimas
nos olhos. Não a culpei naquele momento, pois eu
também tinha começado a chorar. Talvez eu
estivesse chorando porque ela estava, mas pude
sentir que aquelas lágrimas eram tão minhas quanto
dela. A dor da minha culpa alimentava ainda mais
aquela tristeza.
— É isso que acontece contigo? Todos os
dias? — Minha voz saiu falha.
— O que você acha? — murmurou Carla,
muito séria, olhando para o chão. — Era você quem
fazia isso. Não se lembra?
— Eu não sabia... que doía tanto... assim... —
tentei falar, porém os soluços impediram que eu me
expressasse com clareza.
— Agora você sabe. — Carla me encarou de
um jeito frio. — Finalmente sabe que eu tenho
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sentimentos. Sou uma pessoa como qualquer outra,


mas ninguém me trata como tal.
— Isso é horrível! — choraminguei.
— Mas é a minha realidade.
— Me... desculpa.
Os cabelos de Carla escorriam pela sua face e
caíam quase até o chão, já que ela estava de
joelhos, de modo que não consegui ver sua reação
diante do que eu havia dito. Ela permaneceu calada,
e algumas lágrimas molharam o chão limpo de
azulejos brancos.
— Você está bem? — Nós duas levamos um
susto quando ouvimos uma voz proveniente do
princípio do corredor.
Assim que levantei minha cabeça, pude
contemplar Kevin se aproximando tranquilamente.
Carla não reagiu, apenas continuou com a cabeça
abaixada.
Meu ex-namorado estava com os olhos
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extremamente fundos e vermelhos. Sua pele estava


feia, e parecia que ele tinha emagrecido alguns
quilos. Eu estava chocada em vê-lo naquele estado,
e mais ainda em pensar que talvez eu fosse a
culpada.
Kevin era um rapaz de dezoito anos
extremamente bonito. Seu corpo sempre foi atlético
pelo Jiu-Jítsu, o que de fato era uma de suas
melhores qualidades, em minha opinião. Seus
cabelos negros eram meio espetados devido ao uso
de gel capilar, e os olhos eram bem verdes. Não
existia garota em toda a escola que não queria ter
uma chance de sair com ele. Senti-me orgulhosa
por tê-lo beijado e abraçado sempre que estive a
fim.
Portanto era muito óbvio que eu achava
completamente deprimente vê-lo tão magro e
decaído. Seus olhos verdes não estavam mais vivos,
devido ao vermelho que reinava na parte que devia
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estar branca. Mantive-me calada, apenas


observando o que ele faria e qual seria a reação de
Carla. Para ser sincera, fiquei muito admirada
quando se ajoelhou para ajudá-la com o material
que havia caído no chão. Nunca pensei que ele
fosse capaz de ser cavalheiro. Não com alguém
como Carla.
— Não ligue para o que fazem contigo. Eles
são uns imbecis — Kevin murmurou docemente,
logo em seguida se levantou com os livros e
cadernos de Carla em mãos.
Ela se levantou devagar, tentando não manter
contato visual com Kevin, apenas fixando algum
ponto do chão que parecia ser mais atrativo. Porém
era óbvio que nem o chão mais perfeito do mundo
era mais atrativo do que Kevin. O olhar dele estava
profundo, demarcado por uma tristeza sem limites,
contudo existia alguma coisa a mais, algo que não
conseguia identificar. Apesar de sua infelicidade e
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péssima aparência, a cordialidade de sua voz era


marcante e trazia as lembranças de quando ele
sorria abertamente e mantinha toda a sua beleza em
devida ordem.
Os cabelos negros e os óculos escuros de
Carla ajudavam bastante na tarefa de deixá-la
escondida, mas ela não suportou por muito tempo.
A curiosidade em observar a reação de Kevin era
muito maior. Ela o encarou demoradamente depois
que ele lhe entregou o material com gentileza.
— Obrigada — Carla respondeu com a voz
baixa.
— Não há de quê. — Kevin se afastou
lentamente e andou pelo corredor, totalmente alheio
à minha presença ali, ajoelhada no chão perto de
onde ele tinha acabado de recolher o material de
Carla.
Eu tentava com todas as minhas forças
entender o que tinha acabado de acontecer. Apenas
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tentava, pois uma explicação lógica parecia cada


vez mais distante. O mundo ao meu redor me
surpreendia de uma maneira única. Era como se na
verdade todos tivessem morrido, menos eu.
Kevin ajudando Carla?
Aquela situação era totalmente inusitada. Eu
me lembrava perfeitamente de ver Kevin
gargalhando quando eu chamava Carla de
aberração ou algo da espécie. Ele parecia não se
importar nem um pouco com ela quando eu estava
viva. Mas pelo que vi, eu estava completamente
equivocada. Kevin não somente ligava para os
maus tratos que ofereciam à Carla como também
achava todos os que faziam aquilo uns imbecis.
Isso Significava que ele sempre me achou uma
imbecil o tempo todo.
Levantei devagar, encostando meus ombros
na parede mais próxima do corredor, ainda
estupefata.
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Se Kevin me achava uma imbecil, então por


que estava tão triste com a minha morte?
Ele não estava somente triste, mas arrasado e
totalmente modificado. Seu sofrimento era visível.
Precisei morrer para descobrir que Daniele
gostava de Kevin e que Kevin estava a favor de
Carla o tempo todo?
Carla ainda se recuperava da humilhação e da
ajuda recebida, observando por trás de seus óculos
o trajeto que o perfume masculino de Kevin fez
quando ele foi embora. Senti uma coisa estranha
em meu coração. Foi naquele momento que a
minha ficha caiu. Todas as características estavam
bem na minha frente: suspiros profundos, olhar
vacilante, timidez excessiva. Sem contar que pude
sentir, dentro do meu peito, uma emoção suave
similar ao que eu só senti por uma única pessoa no
mundo inteiro: Leonardo.
Imediatamente, soube que aquele sentimento
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não era meu. Ele não vinha de mim, e sim daquela


garota. Era bem óbvio, se eu podia sentir as
tristezas dela, significava que sentiria qualquer
coisa que ela também estivesse sentindo. Carla
estava apaixonada por Kevin.
Eu estava apaixonada por Leonardo, então.
— Você... — murmurei, vacilante. — Você
gosta dele!
— Não seja idiota. — Carla me ignorou mais
uma vez, seguindo em direção a uma das salas de
aula.
— Não adianta fingir. — Eu a segui
apressadamente. — Não adianta esconder, Carla.
Sei que sim! Você o ama.
— E se eu amasse, o que você tem a ver com
isso? — Ela parou e se virou para me encarar. —
Não é como se ele sentisse o mesmo. Olhe para
mim! — Carla levantou os óculos para que eu
observasse de perto o ferimento horroroso em seus
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olhos. Bom, se ela queria me assustar, tinha


conseguido.
— Não seja burra. — Fiquei chateada por ter
me espantado com um machucado que não era sua
culpa. Carla era torturada em casa e devia
denunciar à polícia, mas ela escondia de todo
mundo. Além do mais, ninguém em toda escola
parecia estar a fim de notar seu sofrimento. Era
revoltante! — Você pode conquistá-lo. Sei que
consegue, Carla. Você não é feia, só está
machucada.
Ela me olhou como se não acreditasse que eu
tinha falado tais palavras. Para ser sincera, também
não acreditei muito.
— Não diga besteiras, Rafaela, a escola
inteira me odeia. Ele não andaria comigo, você
conhece o Kevin. — Dei graças a Deus pelos
corredores estarem vazios. Todos estavam no pátio
curtindo o intervalo. — Além do mais, ele está
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sofrendo pela sua morte. Kevin sempre te amou,


você que nunca deu o valor que ele merecia.
Parei de andar subitamente. Carla continuou,
sem perceber que eu não estava mais
acompanhando seus passos. Ela estava certa. Nunca
dei valor ao Kevin, só pensei em mim o tempo
inteiro. Todas as coisas românticas que ele me
dizia, para mim, nada significavam. Nunca sequer
gostei dele suficientemente para entendê-lo, muito
menos para segui-lo nos jogos de futebol. Jamais
senti por Kevin nem um pouco do que estava
começando a sentir por Leonardo. Nem uma
pequena fagulha.
Depois de alguns segundos, Carla notou que
eu havia ficado para trás e parou também,
observando-me. Não sei o que exatamente ela
pensou, mas supus que achou que eu tinha
realmente ficado chateada.
— Me desculpa, Rafaela. — Olhou para o
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chão timidamente.
— Você está certa. — Suspirei de um jeito
cansado, carregado de ressentimento e culpa. —
Está absolutamente certa, não se preocupe.
Fui invadida por uma vontade absurda de
sumir daquele lugar. Eu queria ir embora, estar em
qualquer outro canto, menos ali. No meu quarto,
talvez. Precisava parar para refletir. Não dava para
continuar vivendo (se é que podia chamar a pós-
morte de vida) daquela forma esquisita. Era
informação demais para minha mente.
Como se meu desejo fosse ordem e mágicas
fossem possíveis, senti todo meu corpo formigar e
desaparecer aos poucos. A última coisa que vi foi a
expressão curiosa de Carla ao me observar. Logo
em seguida, eu estava exatamente onde queria: no
conforto e segurança do meu quarto.

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Capítulo 11

O intruso

FIQUEI TOTALMENTE surpresa por ter


conseguido me desmaterializar sozinha e
desaparecer como fumaça logo na primeira
tentativa, contudo não tive muito tempo para me
parabenizar. Respirei aliviada por finalmente poder
ter um pouco de paz. O dia havia sido tão longo
que parecia que tinha se passado uma semana
inteira.
Meu quarto era o único lugar onde eu queria
estar. Não precisei de muita coisa para chegar até
ele, apenas desejei e pronto. Deitei na cama como
se não houvesse amanhã. Sabia que não conseguiria
dormir, fantasmas não dormiam, mas poderia
descansar um pouco sem correr o risco de entrar no
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meio de acontecimentos surpreendentes e


inimagináveis. Eu já tinha muita informação para
processar, não precisava de novas, muito obrigada.
Passei uma eternidade apenas deitada,
olhando para o teto do meu quarto. Todas as
minhas coisas ainda estavam lá, meus pais não
tinham mexido em nada. Havia algumas roupas
espalhadas em cima da penteadeira, exatamente
como as deixei quando saí de casa, no dia do
acidente.
— Então, é aqui que você mora? — uma voz
estranha ecoou pelo quarto. Era uma voz sedutora,
sem dúvida, mas que me deixou muito assustada.
Pulei de susto ao ver Victor sentado na
cadeira que ficava em frente à penteadeira. Retomei
o controle do meu corpo depressa, afinal, já estava
acostumada com aquelas reações controversas. As
surpresas não eram mais tão surpreendentes.
— O que faz aqui? — Sentei-me na beirada
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da cama, indignada, e aprumei o meu vestido. —


Quem te deu permissão de invadir a minha
privacidade?
Victor soltou um risinho metido a besta.
— Não preciso de permissão. Apenas
imaginei estar perto de você, e voilà. — Abriu os
braços teatralmente. — Você até que aprendeu
rápido, no fim, nem precisei ensinar.
— Anda me espionando?
— Claro que ando. — Ele nem se deu o
trabalho de mentir, apenas me encarou com aqueles
olhos verdes maravilhosos. Sua beleza estonteante
só me deixava ainda mais confusa em relação a ele.
— Você não tem esse direito. Vá embora.
— Eu sei que, no fundo, você não quer ficar
sozinha. — Victor se ajeitou na cadeira, deixando
evidente que não iria embora nem tão cedo.
— Claro que quero...
Eu sabia que não tinha sido muito
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convincente, mas bem que tentei. Não me culpe por


estar em dúvida sobre aquele cara ir embora do
meu quarto ou não, Victor era do tipo que qualquer
menina sonhava em conquistar. Elas o desejariam,
enlouqueceriam, colocariam pôsteres dele nas
paredes e portas de seus quartos. Mantive-me
absorta olhando em seus olhos, e apesar da raiva
instintiva por ter um “seguidor” tomando conta da
minha vida, queria muito admirar seu rosto mais de
perto. Era como se ele tivesse o poder de hipnotizar
as pessoas, sobretudo as do sexo feminino.
De qualquer forma, Victor não foi embora e
se levantou num salto, quase derrubando a cadeira
em que estava, sentando-se ao meu lado. Quero
dizer, sentar ao meu lado não foi exatamente o que
fez. Ele praticamente me agarrou. Tudo bem, eu
podia estar exagerando, mas seu rosto chegou
perigosamente próximo do meu, quase me
beijando. Suas mãos seguraram meus ombros com
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certa força.
Sua atitude me deixou irritada, mas eu meio
que gostei, por menos sentido que faça. Uma onda
de calor invadiu meus sentidos por causa da
presença muito próxima daqueles olhos
maravilhosos. Não pude deixar de perceber o
contorno perfeito de sua boca, nem de desejar um
beijo e muito menos de morrer de vontade de sentir
a textura daquela pele. Seu hálito quente acabou
com o restante de minhas defesas quando ele
sussurrou em meu ouvido com o que achei que
fosse seu jeito mais sexy:
— Não finja que nada sentiu quando nos
vimos mais cedo. — A voz ganhou certa
rouquidão, o que pude identificar como... paixão?
— Sei que sentiu.
— Do que... Do que você está falando? —
Como eu podia pensar em alguma coisa? Era
impossível pensar!
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Busquei um pouco de dignidade e tentei, em


vão, me libertar de seus braços e da sensação de
hipnose que seus olhos me causavam. A tentativa
teve efeito contrário; ele me segurou com ainda
mais força. Soltei um gemido que mais pareceu de
prazer do que de dor. De fato, era aquilo mesmo.
Ele estava mexendo com meus desejos.
— Não gosto de joguinhos, muito menos de
rodeios. Não sou um hipócrita. Sei o que sentiu,
Rafaela, pois senti exatamente igual. — Tentei me
livrar de novo daquela loucura, mas Victor não
permitiu. — Por que não admite?
— Porque não estou interessada! — respondi
prontamente. Por um instante, pensei que Victor
tinha algum tipo de detector de mentiras no bolso.
Ele sabia que eu estava mentindo, claro que
eu havia sentido alguma coisa. O problema era que
não se comparava ao que Leonardo me fazia sentir,
mesmo que fosse algo novo e recente. Apesar de
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tudo, não podia negar que Victor acendia em mim


uma emoção igualmente desconhecida. O pior de
tudo era que o seu olhar estava me convencendo a
querer descobrir ainda mais sobre aquilo.
— Eu duvido — falou docemente, segurando
meu queixo com uma leveza que eu não imaginei
que ele fosse capaz de ter. — É mentira.
Não consegui falar nada por alguns segundos,
até que tudo foi perdendo o sentido aos poucos,
principalmente quando encostou seus lábios aos
meus. Seu beijo foi leve, como que receoso pela
minha reação. Pude sentir sua aura muito próxima,
e os cabelos loiros escorreram para um lado,
fazendo uma mecha tocar a parte superior do meu
rosto. No princípio, perdi totalmente a noção de
mim mesma, tamanho espanto com aquele beijo
roubado. Eu estava sem reação, até que depois...
Bem. Não posso negar que correspondi àquele
beijo. Seus lábios eram doces demais para serem
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ignorados. Victor era lindo demais para ser


rejeitado. Eu era muito idiota para resistir.
Não demorou quase nada até que finalmente
convenci Victor de que ele devia me largar. Era
espantoso beijá-lo daquela forma, quando eu
deveria pensar em tudo o que havia acontecido
comigo, desde a minha morte. Há quanto tempo
Victor tinha morrido? Um ano, três, cinco? Ele já
estava acostumado com aquele mundo, mas eu não
estava nem perto daquilo. Era uma realidade
inacreditavelmente nova para mim, e eu nem
sequer sabia se podia mesmo encará-la de frente.
Por isso, decidi não ser fraca a ponto de fazer um
cara estragar os meus planos.
Que tipo de futuro eu teria com Victor?
Absolutamente nenhum.
Quero dizer, ele estava morto e eu também.
Então, sinceramente? Tudo aquilo não valia a pena.
Não adiantava querer voltar no tempo em que eu
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estava viva e podia ficar com quantos garotos


quisesse. As coisas tinham mudado, não podia me
dar o luxo de desviar dos meus objetivos em um
momento tão importante. Foi com um pouco de
pesar, e lutando contra mim mesma, que empurrei
Victor.
— Olha, Victor, me escute... — falei
apressadamente, antes que ele abrisse a boca
primeiro e me convencesse de novo a continuar o
beijando. — Eu não estou preparada para isso.
Acabei de morrer e mal sei o que devo fazer...
— É por este motivo que estou aqui. Quero te
ajudar. — Beijou de leve o meu rosto. — Eu te
direi absolutamente tudo de que você precisa. —
Minha pele ardia onde ele encostava seus lábios.
— O problema — levantei-me da cama e
andei até a penteadeira —... é que já existe alguém
fazendo isso por mim.
— Rafaela, entenda uma coisa: aquele cara, o
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Leonardo, não te ajudará em nada. Acredite no que


estou dizendo. — Victor mudou completamente de
expressão, pareceu falar muito sério daquela vez.
— Esses Conselheiros não fazem nada além de
deixar tudo ainda mais confuso.
Não pude discordar de Victor. O que
Leonardo tinha me dito até aquele momento foram
coisas difíceis de compreender. Todas as
informações eram proferidas através de frases
incógnitas, como que para pregar uma peça em
nossa mente. Victor pelo menos havia me falado
tudo na lata desde que nos conhecemos, e olha que
fazia apenas algumas horas. Fiquei surpresa ao
reparar em como as coisas estavam acontecendo
depressa.
Mesmo assim, era apenas Leonardo que me
fazia sentir algo que eu nunca havia experimentado
antes. Não estava nem um pouco a fim de largar
aquele sentimento. Eu tinha um objetivo e queria
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lutar por ele com todas as minhas forças. Dentro de


mim, sabia que aquilo era o certo a fazer.
— Eu realmente não sei o que dizer. Nem o
que pensar — admiti baixinho. — Só quero um
pouco de paz.
— Tudo bem, Rafaela. — Victor se levantou
da cama e se aproximou de mim devagarzinho. —
Eu vou embora e te deixarei em paz, mas voltarei
em breve. Quero te ajudar e gostaria que você
permitisse a minha ajuda.
— Tudo bem. Eu aceito a sua ajuda e admito
que precisarei dela, mas não agora. Me dê um
tempo.
Suas mãos tocaram os meus cabelos de leve.
Fechei os olhos, tentando não enlouquecer perante
o poder de sedução que Victor sabia que possuía.
— Amanhã estarei aqui, neste mesmo
horário. — Seu hálito fez cócegas no meu nariz.
— Eu te esperarei — respondi sem pensar.
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Quando reabri os olhos, ele havia


desaparecido e eu finalmente pude respirar com
normalidade. Falando sério, eu não tinha entendido
nada do que acontecera ali.
Victor estava a fim de mim? Tipo,
apaixonado?
Eu conhecia perfeitamente aquele timbre de
voz que usou. Era macio, leve, cheio de desejo.
Também era arrepiante, sedutor. O pior de tudo era
que ele achava que eu tinha algum interesse. Sim,
Victor mexia comigo de uma forma esquisita, era
inegável. Mas sinceramente, ele era a última pessoa
na qual eu queria pensar naquele instante. Precisava
continuar com meu plano, mas, para isso, eu tinha
que pensar melhor sobre o próximo passo a ser
dado.
Como faria para ajudar Carla?
Quanto mais o tempo passava e eu
raciocinava sobre ela, mais eu me dava conta de
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que havia transformado sua vida em um inferno.


Poxa vida, Carla sofria muito em casa e ainda tinha
que aturar uma escola inteira enchendo o saco!
Aquilo me parecia o maior de todos os absurdos. O
arrependimento invadiu o meu peito, cortando meu
coração em vários pedaços. Por um momento, não
vi diferença alguma entre mim e aquele cara que
morava com Carla. Gostaria de saber quem era
aquele homem ridículo que batia e a humilhava.
De qualquer forma, humilhar Carla foi o que
fiz a minha vida inteira, e ainda tive coragem de
colocar todo mundo contra ela. Nunca bati nela
fisicamente, mas a cada dia que passava eu estava
ajudando a matá-la da forma mais cruel que existia.
Eu a matava por dentro, emocionalmente falando.
Precisava fazer alguma coisa. Eu tinha que
ajudá-la a superar os males que causei. Aquilo não
podia permanecer do jeito que estava. Querendo ou
não, eu sentia tudo o que ela estava sentindo. Um
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ser humano normal não aguentaria aquele tipo de


dor por tanto tempo. Não me assustava em nada o
fato de que ela não conseguia expor sentimento
algum, nem em sua aparência e nem na
personalidade. Carla soava extremamente fria,
calculista e cansada. Eu não podia culpá-la por ser
do jeito que era. Carla não merecia. Pude enxergar,
com clareza, que eu tinha que fazer alguma coisa
muito eficaz. Afinal, metade do sofrimento que
passava era minha culpa.
Minha absoluta culpa.
Deitei novamente na cama, buscando pensar
numa maneira de ajudá-la. As cortinas brancas e
pesadas da janela estavam meio abertas, e por isso
notei que já havia anoitecido. O tempo realmente
tinha passado rápido naquele dia, acreditei que foi
devido à quantidade de acontecimentos e aos
longos minutos que levei pensando, articulando
ideias e tentando encontrar falhas. Eu me sentia
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uma verdadeira estrategista, elaborando um


esquema de vida ou morte. Um esquema que
poderia me levar rumo ao céu. Rumo a Leonardo.
Depois de ter pensado em tudo, achei que
meu plano era simplesmente perfeito. Eu ajudaria
Carla, minha alma iria para o céu e lá mesmo teria
beleza e juventude suficientes para conquistar
Leonardo, e então viveríamos felizes para sempre.
Lógico que nem tudo seria como nos contos de
fadas, mas começava a pensar em mais detalhes aos
poucos. Quem sabe eu até me alistasse para ser
Conselheira de Luz. Não sabia se era um cargo
possível, principalmente para alguém como eu, mas
até que seria interessante aparecer de repente e falar
tudo através de códigos.
Quando decidi cada detalhe da minha ação,
levantei da cama apressadamente, disposta a
colocar a primeira fase do meu plano em vigor.
Peguei uma caixa de madeira lisa e colorida, que eu
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mesma havia pintado, e depois abri minha grande


gaveta de maquiagens. Precisei de todo esforço
psíquico para conseguir pegá-las uma a uma e
reunir dentro da caixa. Acredito que levei quase
uma hora fazendo aquela atividade.
Eu me sentia viva fazendo aquilo. Foi um
modo bacana de relembrar cada maquiagem que eu
usava e sentir falta delas, apesar de que minha
aparência atual estava inexplicavelmente boa. Pelo
menos foi o que o espelho me disse assim que pude
ter um contato direto e mais demorado com ele.
Meus cabelos não estavam assanhados, apesar de
não terem visto sequer uma escova, quem diria um
secador. Não havia as olheiras de sempre em volta
de meus olhos, e os lábios estavam meio rosados
como se eu estivesse usando um brilho labial
eterno.
Depois de inserir toda a maquiagem na caixa
colorida, tampei-a, peguei meu caderno de
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anotações e uma caneta. Escrevi com o que achei


que fosse minha melhor letra:

Para Carla Stephanelly, 3º ano B.

Como eu não fazia ideia de qual era o


endereço de Carla, resolvi escrever a série em que
estudávamos. Aquilo devia servir. Só faltava
arrumar um jeito de levar a caixa para o colégio,
então alguém entregaria a ela. Se meus pais um dia
sentissem falta das minhas maquiagens... Bom, eles
nunca saberiam de nada mesmo.
Resolvi acrescentar uma tesoura, uma pinça e
um kit de manicure aos meus itens de doação.
Também coloquei todo o dinheiro que eu tinha
guardado dentro de minha antiga carteira da Barbie,
inclusive todos os vales de liquidação de lojas do
shopping. Definitivamente, se Carla me deixasse
usar tudo aquilo nela, apostaria o que quisessem
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que ela jamais seria chamada de aberração na


escola de novo. Afinal de contas, o visual diz muito
sobre uma pessoa.
Depois de todo aquele procedimento,
coloquei a caixa escondida embaixo da cama, para
o caso de alguém entrar em meu quarto enquanto
eu não arranjasse uma forma de levá-la até Carla.
Achei que seria meio esquisito se alguém visse uma
caixa cheia de maquiagens bem no meio do quarto,
sem ninguém aparentemente ter entrado ali. Logo
em seguida, peguei uma sacola com as compras que
eu havia feito recentemente. Acrescentei algumas
roupas e sapatos, que nunca usei na minha vida,
dentro dela. Eu não conseguiria levar tudo, então
me contive a apenas alguns modelitos. Aquilo
devia servir para a primeira semana. Agradeci aos
céus por Carla usar mais ou menos o mesmo
número que eu usava.
— O que você está fazendo? — Senti que eu
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podia reconhecer aquela voz a distância, mas


mesmo assim me assustei. Sério, eu já devia estar
acostumada com gente aparecendo do nada.
Eu me virei, com a mão segurando o coração,
e vi Leonardo, lindo como sempre, sorrindo para
mim. Segurei meu peito com ainda mais força,
acho até que prendi a respiração.
— Ah... — Tentei buscar fôlego. — Umas
coisas para Carla. Tive uma ideia e acho que sei
como ajudá-la. Pelo menos no começo. — Sorri de
volta para ele, depois continuei separando as coisas.
Eu sabia que, se parasse para encará-lo, nunca mais
terminaria o que estava fazendo.
— Você descobriu alguma coisa? —
Leonardo se aproximou, e tentei manter a
normalidade em meus movimentos. No entanto, me
senti superdesajeitada.
— Ela sempre foi meio esquisita, e acho que
é por isso que as pessoas a tratam muito mal o
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tempo todo. Minha ideia é ajudá-la a melhorar a


aparência. — Olhei Leonardo de soslaio. Ele estava
com a sobrancelha erguida, parecendo confuso com
o que acabei de dizer. — Quem sabe assim ela
arrume um namorado... — completei, deixando-o
com a cara ainda mais estranha. — O meu
namorado, na verdade. — Dei de ombros.
— O seu namorado? — Leonardo continuou
sem me entender.
— Meu ex-namorado, para ser mais exata.
Acabamos um dia antes da minha morte. — Bem
que tentei não demonstrar emoção alguma, mas eu
ainda não sabia o que pensar sobre Kevin. —
Descobri que Carla gosta dele. Sabe, eu senti uma
coisa especial dentro de mim... E essa coisa veio
dela.
Abaixei a cabeça para não encarar Leonardo
de frente. Nunca tive vergonha de um garoto, mas
agora estava morta e muita coisa tinha mudado,
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inclusive minha capacidade de ser natural diante de


quem eu estava a fim.
— E como você se sente em relação a isso?
— Leonardo passou a me ajudar com as sacolas.
Ainda bem, pois por um segundo cheguei a pensar
que ele estivesse odiando minha ideia de
transformar Carla numa modelo de revista.
— Ótima. — Fiquei meio distante,
espantando a imagem de Kevin e Carla juntinhos,
que do nada me veio à mente.
— Você está mentindo. — Parei o que estava
fazendo e o analisei. Observar aquele Conselheiro
de perto era o mesmo que pedir para ficar sem ar
durante um longo tempo.
— Eu ainda não sei direito, Leonardo. As
coisas estão muito estranhas. É como se tudo
tivesse mudado, tudo que eu acreditava ser certo...
— suspirei alto, sentindo-me um pouco derrotada
antes mesmo de começar a guerra. — As pessoas
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não são mais as mesmas.


Ele sorriu como se eu tivesse lhe dado uma
ótima notícia.
— Você é a mesma?
— Acho que não.
Leonardo ampliou o sorriso bonito.
— Talvez a mudança tenha surgido de você,
Rafaela.
Eu o observei atentamente, sem me importar
em parecer abusiva. Precisava ver Leonardo, era
uma necessidade do meu corpo admirar cada
detalhe pertencente a ele. Quem sabe assim eu
descobrisse o que era aquilo que fazia a sua
presença ser tão única para mim, como se fosse um
absurdo perdê-lo de vista ou um pecado hediondo
me distanciar de sua bondade, e como se a ideia de
nunca mais vê-lo fosse a coisa mais aterrorizante
do mundo.
— Talvez — murmurei.
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— Isso é bom. Sem mudanças não há


qualquer evolução. — Ainda o observando, acabei
me distraindo e, ao tentar pegar uma das roupas,
encostei minha mão na dele. Antes que eu pensasse
em me afastar, ele a segurou com leveza. — Você
vai conseguir.
Eu já nem sabia mais do que ele estava
falando. Não suportei desviar meus olhos de sua
mão macia. O choque que só o seu contato
proporcionava transformou meu corpo em um poço
de eletricidade. Queria muito entender de vez os
meus sentimentos. Será que aquela energia boa que
me envolvia toda vez que Leonardo me tocava
vinha dele mesmo? Talvez viesse de mim, afinal de
contas. Minha nossa, eu não podia estar apaixonada
por um cara que tinha conhecido ontem, e que por
acaso também estava morto. Amor à primeira vista
só existia em filmes.
Então, o que raios era aquilo?
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Procurei explicações racionais enquanto


Leonardo alisava minha pele lentamente, sem parar
de me encarar, acendendo em mim novas
sensações. Repentinamente, ele me largou e se
afastou de vez, seguindo até a cadeira. Senti um
frio horroroso congelar o meu coração. Leonardo se
sentou em frente à penteadeira, sem ter a mínima
noção de que Victor havia sido o último a estar ali.
Pena que ele não parecia disposto a fazer
exatamente o mesmo que Victor fez. Tipo me
beijar.
Apesar de estar olhando para Leonardo com
cara de idiota, ele manteve seu porte sereno e
extremamente gato como sempre, com suas roupas
leves e a bela aura luminosa, que cobria toda a
extensão de seu corpo com um brilho
impressionante. A paz e a tranquilidade voltaram a
tomar conta do meu coração, efeito que a presença
dele sempre foi capaz de causar.
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— Como pretende levar essas coisas? —


perguntou enquanto fingia estar concentrado no
tecido que cobria a braçadeira da cadeira. — Você
sabe que não pode simplesmente sair por aí com
uma caixa nas mãos.
— Não? — Eu me senti mais idiota ainda.
— O que você acharia se visse uma caixa
flutuante seguindo pelo meio da rua? — Sorriu
abertamente, e foi logo aquele sorriso que me
deixava sem fôlego, sem reação. O sorriso que eu
amava. Amor.
Era essa a palavra?
— Bom... Posso deixar um bilhete em cima.
Acho que a minha mãe seria esperta o suficiente
para entender o recado e entregá-la na escola. —
Eu não sabia se a ideia era boa, mas foi a única na
qual consegui pensar.
— Talvez um bilhete a deixe meio
assustada... Ela saberia que a letra é sua. —
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Leonardo fez uma careta séria. — Talvez sua mãe


fique sem entender, as consequências podem ser
perigosas.
— Sim, ela conhece a minha letra. Porém
mamãe vai entender que é o meu desejo, tipo uma
coisa pós-morte. Mafalda pode ajudar nisso
também. — Eu tinha certeza absoluta de que o
sorriso que oferecia a Leonardo soava mais imbecil
do que legal, mas, mesmo assim, tentei ser
agradável.
Leonardo pareceu refletir por alguns
instantes.
— Pode dar certo. Estou muito orgulhoso de
você, Rafaela. Está no caminho certo. Aposto que
não vai demorar muito a cumprir com a tarefa que
lhe foi designada.
— Você acha? — Só consegui pensar em nós
dois, juntos, caminhando entre os jardins do
paraíso. Devo ter corado, pois meu rosto ficou
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quente como brasa.


— Sim — aquiesceu devagar, movendo a
cabeça serenamente. — Acho.
Arrastei a sacola de roupas até a minha cama,
colocando-a junto com a caixa, e depois me sentei
na beirada do colchão. Leonardo me observava
com cautela, sempre com aquele sorriso que me
trazia calma. Passamos algum tempo apenas
olhando um para o outro, sem que nenhum dos dois
desviasse o olhar. Nem sei dizer o que senti
naquele instante. Rezei para que ele quebrasse o
silêncio que foi feito, o que acabou acontecendo.
— Vejo que aprendeu a tocar nas coisas. —
Sua voz saiu bem baixinha, quase um sussurro. —
Você me parece bem melhor. Está muito bonita.
Aquilo era um elogio? Claro que era, só
podia ser.
— Mesmo? — Eu já tinha recebido milhões
de elogios enquanto viva, não sabia por que suas
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palavras significaram tanto para mim.


— Sua aura está brilhando — Leonardo
apontou para mim, e ergui as mãos para perceber
que ele tinha razão: a luminosidade que me
envolvia jamais esteve tão acesa quando naquele
momento. — Acredite quando eu, respeitosamente,
disser que você está linda.
Leonardo disse que eu estava linda. Eu estava
linda. Ai, meu Deus, ele me chamou de linda!
Fiquei tão feliz e satisfeita que foi quase impossível
evitar um sorriso do tamanho do mundo, daqueles
que fazem qualquer um ficar com cara de bobo.
Jamais fui de sorrir daquele jeito tão
despretensioso, muito menos para um rapaz. Senti
meu rosto esquentar com força total.
— Vem cá. — Dei tapinhas no espaço da
cama bem ao meu lado. Eu não sabia direito o que
dizer, apenas precisava vê-lo mais de perto.
Leonardo pareceu refletir antes de se
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aproximar. Seu sorriso esvaneceu só por uns


segundos, e o olhar se fixou no ponto em que eu
tocava, até que finalmente decidiu se sentar ao meu
lado na cama, voltando a sorrir outra vez. Sabia que
ele esperava que eu dissesse alguma coisa, por isso
pensei muito rápido e me lembrei do que ele havia
me prometido mais cedo.
— Quero que me conte tudo, Leonardo.
Desta vez é sério. Você precisa confiar em mim.
— Não é falta de confiança, Rafaela. — Ele
alisou os meus cabelos do lado oposto ao que
Victor tinha pegado. O que seria totalmente hilário,
se não fosse tão esquisito. — Não posso dizer tudo,
mas direi o que puder.
— Comece dizendo por que você não pode
me contar tudo. — Fiz uma careta de birra.
— Porque tem coisas que você precisa
aprender sozinha. Se eu disser, seria o mesmo que
tirar sua capacidade de escolha. — Leonardo,
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infelizmente, largou os meus cabelos. — Chama-se


livre arbítrio. Não posso ferir seu livre arbítrio, nem
o de ninguém.
Franzi o cenho.
Livre arbítrio? Capacidade de escolha?
Eu não tinha escolhido morrer.
Definitivamente, não. Ninguém teve a decência de
perguntar se eu queria. Também não me
perguntaram se eu gostaria de ser um fantasma e
vagar pela Terra. Nem mesmo se toparia usar um
vestido cor-de-rosa, ninguém sabia se eu gostava
daquela cor! Absolutamente, não escolhi ter a
obrigação de ajudar uma pessoa que nunca me dei
bem. Alguém se importou em perguntar se eu
queria entregar meu ex-namorado de bandeja para
Carla? Em nenhum momento me perguntaram se eu
queria fazer o que estava prestes a fazer, a única
certeza era que tinha que ser feito. Mais nada.
Escolha era a última coisa que poderia ter a ver
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com minha atual situação. Eu não tinha escolha.


— Não tive qualquer escolha, Leonardo. —
Cruzei meus braços na frente do corpo, totalmente
chateada. — Você está mentindo para mim!
— Mas é claro que não, Rafaela. — Ele ficou
meio chateado também. — Você teve escolhas o
tempo inteiro. Tudo o que aconteceu na sua vida
teve um propósito que eu particularmente chamo de
destino. Mesmo assim, você escreveu a maioria das
linhas da sua história. Escolheu sair de casa no dia
do acidente, escolheu se distrair e não prestar
atenção na avenida. Embora inconscientemente,
cada escolha foi sua.
— Não escolhi ter que voltar a Terra e nem
precisar ajudar uma pessoa que mal suporto! —
rosnei, com a raiva intensificada.
— Já falei, o que você não foi capaz de
escolher tem um propósito. Faz parte do seu carma,
é o seu destino.
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— Não acredito nessas coisas. Como é que


você, um cara que já deve ter passado por várias
situações desde que morreu, pode acreditar em algo
tão incerto?
Leonardo sorriu, mesmo que não fizesse
sentido alguém sorrir no meio de uma discussão
acalorada.
— É justamente por isso que acredito. Tem
coisas que não dá para explicar, mas a vida já me
provou diversas vezes que nada é por acaso.
— Me dê um exemplo. — Eu o incitei com
um olhar malicioso.
— Você acha que é por acaso que eu seja seu
Conselheiro de Luz?
— Não sei. — O jeito como Leonardo falou
foi como se conhecesse o sentimento esquisito que
eu carregava no peito.
— Imagina quantas coisas tiveram que
acontecer para que estivéssemos aqui. Você
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morreu, foi ao Paraíso por engano... Magnólia seria


sua Conselheira, mas Severino me pediu para ficar
com o seu caso no último instante. — Leonardo
estava muito sério. — Você está permitindo a
minha presença, é por isso que pode me ver agora.
Nada é mera coincidência.
Não tinha pensado naquilo antes. A cadeia de
acontecimentos era tão incrível que eu não sabia
mais no que acreditar. De certa forma, aquele
assunto bizarro estava começando a me assustar, e
eu ainda queria saber sobre mais uma informação
muito importante.
— Tudo bem. — Soltei um suspiro. — Então
me fale exatamente quem é Victor, como se
conheceram e o que aconteceu entre vocês. —
Mantive a voz segura para que ele me levasse um
pouco mais a sério e respondesse logo, sem
rodeios.
Pensei que Leonardo hesitaria, mas ele foi
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direto:
— Victor era uma alma perdida, assim como
você. Ele não sabia de muita coisa sobre estar
morto. — Leonardo colocou as mãos para trás a
fim de apoiar o corpo no colchão. — Fui designado
para ajudá-lo, só que não deu muito certo.
— Não deu certo? Por quê? — Eu o encarei,
meio confusa.
— Más companhias, pensamentos ruins, falta
de fé... Victor passou a caminhar ao lado de almas
perdidas que tinham outras opiniões, distantes do
caminho da Luz, até que eu não pude mais alcançá-
lo. Ele se tornou o que chamamos de desgarrado.
— Leonardo manteve um olhar vago ao dizer
aquilo. Dava para notar que a história de Victor o
entristecia. — Não posso fazer mais nada até que
ele mude de ideia. Infelizmente, terá que aprender
sozinho.
— Humm...
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Eu não soube o que dizer. Victor, então, era


mesmo um fantasma malvado? Era difícil acreditar
naquilo, mesmo saindo da boca perfeita do cara que
eu estava louca da vida e que, por algum motivo,
evitava olhar para mim. Victor tinha me tratado
muito bem há alguns minutos, portanto não era
possível que fosse tão ruim assim.
Como um cara mal podia beijar tão bem?
— Ele é um demônio? — perguntei
finalmente, reunindo toda minha coragem para
escutar a realidade. Estávamos falando de um cara
que eu tinha acabado de dar uns amassos, afinal.
Para a minha surpresa, Leonardo gargalhou.
Não me lembro de ter me sentido mais idiota do
que aquilo. Esperei que ele parasse de zoar da
minha cara e se desculpasse pelo rompante.
— Demônios não existem, Rafaela. Somos o
nosso próprio mal. — Fiz uma careta, e acho que
Leonardo desistiu de explicar melhor sobre a não
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existência dos seres das trevas. Bom, pelo menos


eu tinha uma notícia boa. — Victor só não sabe o
que está fazendo. Ele pensa que sabe de tudo, mas a
verdade é que sofre e é infeliz. Será assim até que
retome o caminho da Paz.
Prendi os lábios diante de um impasse
proporcionado pelo meu cérebro confuso.
— Ele esteve aqui hoje. — A afirmação
simplesmente saiu da minha boca. Eu sabia que
devia tê-la mantido bem fechada, mas eu estava
desesperada. Se Victor me fizesse algum mal? Ele
pareceu meio obcecado por mim mais cedo. Além
de que ele voltaria amanhã, e o que eu podia fazer?
Nada.
Beijá-lo de novo, talvez.
— O quê? — Leonardo ficou surpreso,
esbugalhando seus olhos castanhos. Na verdade ele
pareceu muito admirado mesmo, visto que
praticamente deu um pulo e se esgueirou para perto
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de mim, tocando o meu rosto como que para ter


certeza que eu ainda estava bem. — O que Victor te
fez? O que ele disse?
— Nada. Quero dizer, nada demais. — Eu
não diria que Victor havia me beijado, diria? —
Ele só me beijou.
É, eu diria.
Leonardo olhou bem para o meu rosto. Seus
olhos se abriram ainda mais, e o rosto naturalmente
calmo pareceu transtornado, como se tivessem lhe
enfiado inúmeras facas na boca do estômago. Ele
encarou os meus olhos por algum tempo, depois
observou a minha boca. Fiquei completamente
envergonhada, dava para sentir a ardência em meu
rosto. Eu deveria ganhar o prêmio Nobel da idiotice
ou o da grande boca que não consegue ficar calada.
Um dos dois estava de bom tamanho para mim.
— Rafaela... Escute. — Leonardo lambeu os
lábios lentamente. Suas mãos seguraram os dois
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lados de meu rosto. — Não dê ouvidos ao Victor,


pode ser perigoso. Não se envolva com ele. Olha,
eu... — Parou subitamente. Leonardo se ergueu
bem rápido, largando-me como se eu estivesse
pegando fogo.
Dava para ver o desespero estampado em sua
face. O Conselheiro andou de um lado para o outro,
passando as mãos nervosamente em seus cabelos
encaracolados, que deveriam ser bem macios. Eu
estava louca para conferir se eram mesmo.
— Não se preocupe, Leonardo, você é o meu
Conselheiro de Luz. Vou ouvir apenas o que você
diz, prometo.
— Eu não quero te perder, Rafaela. — Ele
parou para me olhar.
Fiquei surpresa com aquela afirmação. O que
quis dizer com aquilo? Que não queria que eu me
relacionasse com Victor por que ele me queria?
AH, MEU DEUS! Leonardo gostava de mim?
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Ou ele apenas disse aquilo porque não queria


que eu me debandasse para o lado maligno? De
qualquer forma, a ficha demorou a cair.
— Não quero te perder... para o mal — ele
completou aos sussurros, e fiquei instantaneamente
chateada. Poxa vida, jurava que o que Leonardo
tinha dito significava algo além de mera proteção.
— Você não vai me perder para o mal. —
Dei de ombros.
Leonardo me encarou com um ar preocupado
até que algo completamente fora de cogitação
aconteceu. A maçaneta girou e a porta se abriu.
Alguém entrou no meu quarto.

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Capítulo 12

A lua

— Tem certeza de que quer fazer isso? —


Ouvi a voz do meu pai. Ele segurava uma grande
sacola plástica e entrou no meu quarto sem ao
menos bater na porta. Depois foi que me lembrei de
que ele não precisava mais avisar que queria entrar
no meu quarto.
Não havia ninguém para reivindicar.
— Eu não sei, querido, mas sinto que devo.
Essas coisas não podem ficar aqui para sempre. É
errado. — Mamãe também entrou no quarto.
Parecia cansada e abatida. — Podemos ajudar
muitas pessoas doando as coisas de Rafaela.
Aposto o que quiser que ela preferiria que fosse
assim.
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Meu estômago revirou no mesmo instante.


— Tudo bem, querida. Vamos fazer isso
logo, ficar neste quarto não vai nos fazer bem neste
momento — comentou papai, estremecendo como
se tivesse no meio de um arrepio.
Eu ainda estava olhando para Leonardo,
estupefata e extremamente inquieta. O Conselheiro
ficou tão paralisado que parecia uma estátua,
apenas observando os meus pais com curiosidade.
— Espero que ela encontre a caixa — falei
baixinho.
— Shhh... — Leonardo colocou o dedo
indicador sobre os lábios.
Fiquei em silêncio prontamente, mesmo que
minha vontade sincera fosse de gritar bem alto.
Cogitei me materializar em outro lugar, tudo para
não ter que ver o que meus pais estavam prestes a
fazer, mas eu realmente estava curiosa para saber
como eles se livrariam das minhas coisas, e
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também como se sentiriam com tudo isso. A


tristeza de ambos era visível. Aquilo me machucou
de um jeito impressionante.
— A caixa! — Com ar de desespero, a
minha mãe começou a procurar por alguma coisa.
— Que caixa? — perguntou papai, sem
entender, enquanto revirava alguns objetos que
outrora me pertenciam.
— Não sei, mas devo encontrar uma caixa.
— Ela deu de ombros. — Eu acho.
— Isso está muito esquisito, querida. Você
está bem? — Ele a encarou com seriedade. Poucas
vezes vi meu pai tão esquisito. Sua expressão
exalava tristeza.
— Claro que não estou bem, minha única
filha morreu! Eu estou me livrando das coisas dela
e tenho que encontrar uma caixa nem sei por quê!
— mamãe berrou de repente, com o rosto tomado
por lágrimas desesperadas.
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O grito dela também me trouxe desespero.


Levei minhas mãos à cabeça porque senti uma
pressão tenebrosa invadir o meu corpo inteiro.
Pensei que ele fosse explodir em mil pedaços.
— Sei que é difícil, meu amor... Não está
sendo fácil e acho que nunca mais vai ser. — O
meu pai a abraçou carinhosamente. Os dois
estavam chorando de um jeito que nunca vi. Um
soluço me escapou pela garganta, e Leonardo
segurou a minha mão. O simples toque me fez
relaxar de um segundo para o outro.
— É tão difícil... Tão, tão difícil! — Mamãe
choramingou.
Subitamente, fiquei tão triste quanto nunca
imaginei que fosse capaz. Um sentimento
apavorante me invadiu depressa, causando uma
sensação de torpor e dormência. Meus pais não
mereciam aquele tipo de dor. Saber que aquilo tudo
era culpa minha fez com que eu me sentisse a pior
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pessoa do mundo. O toque calmante de Leonardo


ficou ainda mais apertado, então uma energia
invisível fez a angústia se dissipar.
Depois de um tempo abraçados, meu pai
começou a embrulhar alguns objetos mais frágeis,
utilizando jornais e folhas de revista, enquanto
mamãe abria meu closet e dobrava todas as minhas
roupas numa sacola. Ela permaneceu com um
semblante que dava muita pena. Olhei mais uma
vez para Leonardo, sentindo-me agradecida por ter
facilitado as coisas para mim. Ele me encarou de
volta com curiosidade, talvez querendo identificar a
minha reação diante daquela situação assombrosa.
Eu não suportei nem mais um segundo
dentro daquele quarto. Desvencilhei minha mão e
corri o mais rápido que consegui, ultrapassando os
meus pais e diversas portas. Desci as escadas num
pulo e atravessei o portão de entrada até o nosso
jardim. Realizei todo aquele percurso numa
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velocidade impressionante, mas eu não estava mais


interessada nos meus novos poderes. Eu só queria a
minha vida de volta. Queria os meus pais felizes.
A rua estava escura e pouco movimentada,
já era bem tarde. Foi aquilo que me fez parar antes
de sair correndo pelo bairro. Eu não estava a fim de
arranjar mais problemas. Em vez de agir como uma
inconsequente, me deitei no gramado do quintal e
olhei para o céu. Não havia o que fazer além de
tentar me acalmar e buscar sentido para a minha
existência. Soltei um suspiro prolongado. A lua
refletia uma luz poderosa e colossal, parecendo
estar mais perto da Terra do que de costume. A
sensação era que ela podia despencar a qualquer
momento e cair bem em cima de mim. Se isso
acontecesse, de fato, eu não ligaria.
O que mais importava? Eu havia perdido
tudo.
Apesar de toda a minha tristeza, foi tão
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relaxante admirar o único satélite terrestre que


permaneci deitada por longos minutos. Eu queria
esquecer a minha condição, nem que fosse por um
segundo. O fato de almas não poder dormir era um
verdadeiro martírio. Minha única vontade era
apagar e nunca mais acordar. Ficar eternamente em
um estado de inconsciência só para não ter o
desprazer de viver a minha morte.
Foi enquanto, distraída, observava o céu e
pensava na minha má sorte que notei que Leonardo
estava sentado bem ao meu lado, observando a lua
de um jeito tão abobalhado quanto eu. Não fazia
ideia de quanto tempo ele estava lá, mas fiquei
muito feliz por contar com a sua presença.
— A lua está bonita, não é? — perguntei,
suspirando alto, por falta de assunto melhor.
Eu me sentia envergonhada por ter fugido
como uma garotinha boba, mas, ao mesmo tempo,
estava aliviada por ter saído de perto dos meus pais
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antes que meu estado emocional piorasse e eu


fizesse alguma besteira.
— Sim, está maravilhosa. — Leonardo
sorriu, mas não me olhou. — Você está bem?
— Não sei. — Fitei a grama verde-escura
abaixo dos meus pés. — Ainda tenho esperanças de
acordar em minha cama a qualquer momento e
descobrir que tudo não passou de um pesadelo.
Leonardo parou de sorrir instantaneamente.
— Entendo... — Ainda sem me olhar, ele se
deitou também. Seus braços foram arqueados para
cima, apoiando-lhe a cabeça. Aquela proximidade
me deixou meio tonta. Havia tanta luz emanando
dele que às vezes doía o simples fato de observá-lo
por mais tempo. — Vou te dizer uma coisa que
talvez você não saiba, Rafaela. Ninguém precisa
demorar muito aqui. A Terra não é um dos
melhores lugares que existem.
— Já deu para perceber. — Ofeguei, meio
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birrenta.
Leonardo ignorou a minha irritação.
— É aqui que as pessoas passam por
inúmeras provas e sofrimentos necessários para a
evolução. — Ele umedeceu os lábios com cuidado,
e acredito que nunca senti tanta vontade de beijar
alguém quanto naquele instante. — Sair daqui só
depende de você.
Balancei a cabeça para espantar meus
pensamentos malucos, que sempre vinham fora de
hora. Estávamos no meio de uma conversa
importante. Eu não podia pensar em beijos. De jeito
nenhum.
— Já comecei a fazer o que deve ser feito
— falei secamente.
— Eu sei. Um grande passo foi dado. —
Leonardo virou o rosto e finalmente me encarou.
Havia duas luzes brilhantes em seus olhos
castanhos. Ele nunca me pareceu tão bonito. —
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Agora, é só uma questão de tempo.


O meu desejo de dormir foi sufocado por
outro ainda maior. Naquele instante, a vontade de
trazer Leonardo para mais perto e sentir melhor o
seu cheiro, bem como o calor de sua pele
iluminada, quase me fez enlouquecer. Eu podia me
inclinar, colocar minha cabeça em seu peito e sentir
suas mãos acariciando os meus cabelos. Para ser
bem sincera, pensei em tudo o que eu poderia fazer
com Leonardo naquela grama, mas apenas me
contive. Deixei cada desejo somente na
imaginação, afinal, qualquer coisa que eu fizesse
poderia afastá-lo de mim para sempre. E a ideia de
perdê-lo doía mais do que o esforço que eu fazia
para não me lhe roubar um beijo.
Além do mais, eu não podia me distrair ou
desviar do meu objetivo, segundo ele. Como se o
fato de poder oferecer o que eu sentia fosse uma
distração para o que tinha que fazer! Na verdade,
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demonstrar o estranho sentimento que invadia o


meu coração poderia tornar todo o restante muito
mais suportável. Eu tinha fé naquilo.
— Quando você vir alguém, deve tomar
cuidado com o que fala — Leonardo interrompeu
os meus pensamentos. — Você pode induzir o
pensamento das pessoas apenas falando perto delas.
— Sério? — Fiz uma careta de surpresa. Ele
sorriu em resposta.
— Sim. Você comentou sobre a caixa e suas
palavras entraram no pensamento da sua mãe. Não
achou esquisito?
Leonardo voltou a observar a lua, e sua
tranquilidade me deixou um pouco chateada. Como
ele conseguia dizer coisas tão impressionantes e
manter aquele ar natural? Era irritante!
— Eu não entendi direito o fato de ela ter
mencionado a caixa, mas estava tão surpresa com a
visita que não consegui raciocinar. — Virei o rosto
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na direção do céu. Não adiantava olhar para o perfil


dele. Só me faria sofrer com a angústia que
significava resistir aos seus encantos.
— Esse ensinamento requer muita
responsabilidade, Rafaela. Não abuse dele. —
Leonardo ficou sério, de repente. — Não são todas
as almas que conseguem induzir pensamentos, e
também não são todos os vivos que escutam. No
entanto, muitos desencarnados usam esse artifício
para o mal.
— Eu não pretendia abusar. — Minha
chateação aumentou drasticamente. Por que ele
falava tudo como se eu fosse uma retardada capaz
de estragar tudo de um segundo para o outro? Ah, é,
porque você sempre agiu assim, Rafaela Satto.
A mão dele foi repousada sobre a minha.
Não deu para descrever o que foi sentir o seu toque
mais uma vez. Eu o observei na mesma hora,
buscando uma resposta para aquela atitude
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repentina. Leonardo continuou olhando para o céu.


— Não fique chateada. Só te falo o que
preciso falar.
— Eu sei... — murmurei de um jeito
trôpego, já entorpecida com a quantidade de
energia calmante que circulava em minhas veias,
partindo da mão. Sem saber o que fazer, fiz nossos
dedos se entrelaçarem.
Leonardo voltou a me encarar. Ficou
calado.
— Eu... Esse poder pode me ajudar, não é?
— Busquei um assunto qualquer para não pirar de
tanta emoção.
— Pode ter certeza de que já ajuda muito o
fato de Carla conseguir interagir contigo —
Leonardo falou tão baixo que tive dificuldade de
ouvi-lo. Impressão minha ou ele estava meio
envergonhado? Eu não soube responder. Seu rosto
bonito manteve uma expressão indecifrável. —
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Mas, sim, esse poder traz muitas possibilidades.


Você pode usá-lo em seu favor. Suas palavras têm
energia própria.
Quer dizer que era só eu falar e a pessoa
pensaria igual?
Aquilo era o máximo! Como algum ser vivo
ou morto podia não querer abusar? Era
simplesmente genial, tudo seria muito mais fácil.
Eu conseguiria alcançar meus objetivos mais rápido
do que você possa dizer a palavra “morte”. Aquele
ensinamento, de certa forma, me animou bastante.
Trouxe uma expectativa imensa com relação a
tudo. Eu tinha poderes, afinal. E se eles foram
designados a mim, significava que eu deveria usá-
los.
Apertei ainda mais a mão de Leonardo.
— No que está pensando, Rafaela?
Eu me limitei a sorrir. O Conselheiro nunca
suportaria a verdade. Passei um tempão sem nada
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dizer. Leonardo apenas respeitou o meu silêncio e


se manteve igualmente quieto, voltando a observar
a beleza da lua, envolto em seus próprios
pensamentos.
— Leonardo... — sussurrei após nosso
longo período de silêncio. Ele pareceu acordar de
um longo transe.
— Ahn...
— Estou com fome. É sério. Muita fome!
— Eu me sentei na grama, afastando de vez nossas
mãos. Tirei folhas do meu cabelo e tentei controlar
a angústia. Não dava para me entender. Minhas
emoções estavam completamente malucas.
Só que eu sentia tanta fome, e fazia tanto
tempo que não comia, que me bateu uma tristeza
muito grande. Meu coração se comprimia e eu não
tinha como não ficar com vontade de chorar. O pior
era que eu me esquecia de sentir fome basicamente
o dia todo, mas quando me lembrava dela, era pra
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valer.
— Calma, Rafa. — Ele me chamou de
Rafa? Meu Deus do céu! — Vem cá... — Leonardo
se sentou também e me abraçou, fazendo-me
encostar a cabeça em seus braços largos. Claro que
adorei aquele gesto, nunca estive tão próxima dele.
Dava para sentir a sua aura luminosa se encostando
à minha e fornecendo um calor agradável, uma paz
profunda. — Isso vai passar, acredite em mim. É
uma necessidade de seu corpo que já se foi, sua
alma não precisa de comida. Você, seu espírito, se
alimenta de outras coisas.
— Do que eu me alimento, afinal?
Não me culpe, eu estava desesperada. Qual
é, se Leonardo sabia do que eu me alimentava, por
que não me dava logo ou pelo menos me dizia o
que era? Aquilo era a mesma coisa de ter um
bichinho de estimação e não saber o que ele comia.
No caso, o bichinho era o meu estômago.
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— De bondade. — Leonardo sorriu


amplamente.
— Bondade?
— Sim.
Fiz uma cara feia.
— Bondade não se come, Leonardo. Não dá
pra mastigar!
Ele soltou uma gargalhada repentina. Eu
teria ficado muito chateada se não fosse o
encantamento. Vê-lo rindo daquele jeito me deixou
absolutamente estarrecida. Foi como se o chão
tivesse sido retirado dos meus pés. Sentia-me
flutuar.
— Você se alimenta de coisas boas, boas
ações... — Leonardo tentou explicar, mas ainda ria.
— Tudo que você fizer que for algo bom para
alguém vai te saciar.
— Ah...
Ele deve ter feito um esforço absurdo para
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não rir mais. Demorou um pouco, mas conseguiu.


Eu não consegui fazer nenhum comentário sobre o
seu rompante.
— O bem te fornece mais vitalidade, mais
coragem, força. Seu alimento é o bem — concluiu a
explicação com um sorriso amplo.
Dei de ombros.
— Por que você não me disse isso antes?
— Tudo tem seu tempo e seu momento,
Rafaela.
Permaneci em silêncio. O que eu podia
dizer? Brigar porque ele sempre omitia as coisas
importantes de mim? Leonardo estava me
ajudando, não estava? Se não fosse sua presença,
provavelmente eu já teria enlouquecido. De
qualquer forma, seu abraço era um conforto muito
maior do que qualquer coisa que podia me dizer.
Suspirei fundo e confessei o que achei que
seria a maior verdade já dita por mim desde que
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morri:
— Eu não sou uma pessoa boa.
Senti Leonardo enrijecendo. Ele ficou em
silêncio por algum tempo, até que resolveu abrir a
boca.
— Claro que é.
— É sério, não sou. — Eu me afastei para
encará-lo. — Tratei muita gente mal. Humilhei as
pessoas, só pensei em mim o tempo todo. Eu ainda
penso só em mim. Não mudei muita coisa.
Ele devia ter percebido que eu não estava
brincando e nem fazendo birra com aquele
comentário, pois de repente segurou o meu queixo,
obrigando-me a observá-lo.
— Eu sou um Conselheiro de Luz, certo? —
Aquiesci. — Também tenho alguns “poderes”,
como você chama. Um deles é sentir o que as
pessoas têm por dentro. Você não é má, muito pelo
contrário. Só ainda não descobriu o quanto pode ser
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boa. — Ele me encarou de um jeito tão... Sei lá.


Pode parecer loucura, mas me senti amada de
verdade, como se seu olhar fosse uma carícia
apaixonada. — Admitir os erros é o primeiro passo
para redimi-los, Rafaela. Você precisa se perdoar.
— Léo... — Quando foi que ele tinha
virado Léo mesmo? — Você não faz ideia do que
eu fazia com Carla. E não era só com ela. Sempre
me achei superior às outras pessoas. — Umedeci
meus lábios antes de prosseguir: — Descobri que
não sou nada. Só tenho defeitos. O céu não quis
nem a minha presença. O inferno está prestes a se
apoderar de mim.
As palavras saíram como enxurrada, sem
controle e limites. Mantive um teor alto de
seriedade em minha voz, mesmo sentindo pontadas
agudas de tristeza e angústia em meu peito. Eu era
uma fracassada. Sentia muito medo o tempo todo.
Medo de não conseguir fazer o que tinha de fazer.
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Medo de nunca ir para o céu, de ir para algum lugar


onde Leonardo nunca mais me alcançasse. Ele era a
única coisa que me fazia ter esperança. O único que
ainda acreditava em mim.
Leonardo não ficou nada tranquilo com as
minhas palavras. Seu rosto manteve uma dureza
que considerei rara para ele, era como se tivesse
rangendo os dentes. Seus punhos se fecharam.
— Eu não vou deixar que aconteça —
murmurou, decidido. — Esse sentimento de
fracasso é normal, não se deixe abater pelo que já
aconteceu. A vida está te dando uma oportunidade
única de se redimir. Você vai conseguir, eu tenho
certeza. — Leonardo deixou o seu rosto muito
perto do meu.
Eu sabia que não devia ter feito aquilo.
Havia prometido a mim mesma não agir por
impulso, pelo menos até que chegasse o momento
certo. Prometi ficar na minha, prometi não me
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distrair, não desviar minha atenção. Mas o que


podia fazer? Um dos meus defeitos principais era
não saber esperar. Sabia que eu me arrependeria
depois, que desejaria nunca ter nascido, muito
menos morrido. Tinha consciência de que estava
colocando tudo a perder. Contudo, o amor deixa a
mulher num estado completo de burrice aguda.
Eu simplesmente o beijei.

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Capítulo 13

O beijo

EU NÃO sabia o que aconteceria depois do beijo.


Na verdade, sequer fazia ideia do que aconteceria
durante. Leonardo estava ali, tão pertinho, falando
coisas tão importantes que resistir foi impossível.
Era querer demais pedir que me controlasse
enquanto via sua boca tão perto da minha. A
calmaria e o conforto de suas palavras me fizeram
ver nele alguém absolutamente confiável. Como
não ter vontade de beijar alguém com aquele rosto
perfeito, e que ainda inspirava confiança?
Leonardo exercia um poder sobre o meu
comportamento similar a um imã. Não dava para
simplesmente colocar os dois polos opostos juntos
e esperar que eles não se atraíssem. Eu estava
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apaixonada, não havia remédio para aquele


sentimento além da concretização de meus desejos.
Sabia que ele nunca corresponderia ao beijo
roubado, mas tentei a sorte mesmo assim.
Quando meus lábios se encostaram aos seus,
Leonardo não esboçou reação alguma. Quero dizer,
acho que ele ficou tão surpreso que simplesmente
congelou no tempo. Sua boca era macia e
extremamente deliciosa, foi o que constatei ao me
mover sobre ela com lentidão. Quanto mais
descobria seu sabor, menos eu queria largá-la. Um
sentimento forte gritava dentro de mim, queimando
todos os meus sentidos. Arquejei, separando-nos
um pouco, depois tornei a beijá-lo, daquela vez
com mais vontade. Leonardo ainda estava parado,
no entanto, seus lábios permaneceram maleáveis e
não me expulsaram de cara, como pensei que
fariam.
Por algum tempo, fiz todo o serviço sozinha,
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e sem reclamar. Claro que não enfiei a minha


língua dentro de sua boca, meu objetivo não era
assustá-lo, por mais que parecesse que sim. Apenas
movimentei os lábios até fazer com que os dele se
movessem também, mesmo que timidamente.
Quando aconteceu, quase tive um troço em seus
braços. Era incrível que o Conselheiro ainda não
tivesse me empurrado para longe. Soltei um
arquejo por causa da falta de fôlego — prender a
respiração por tanto tempo me deixou meio zonza.
Todo o meu corpo se arrepiou quando percebi que
Leonardo aproveitou o segundo de afastamento
para arquejar também.
Eu não queria que aquilo acabasse tão rápido,
então tomei coragem para sentir os seus cabelos
cacheados entre os meus dedos. Puxei Leonardo
para mim, voltando a beijá-lo, e ele veio com muita
facilidade, tanto que me impressionei. Aquele gesto
de certo modo intensificou o beijo, mesmo sem que
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nenhum de nós fizesse muito esforço. De súbito,


meu coração acelerou em descompasso e o desejo
aumentou até explodir a barreira dos meus limites.
Não dava mais para suportar, aquele era um
momento forte demais, tão intenso que eu me sentia
rodopiando no espaço. Ou Leonardo parava com
aquilo ou eu nunca pararia.
Aguardei sua reação por mais um segundo, só
que ela não veio. Leonardo se mantinha parado. A
única coisa que me fazia ter certeza de que ele não
tinha virado uma estátua de verdade foi o fato de
que seus lábios ainda se mexiam com meus
movimentos. Abri meus olhos só um pouquinho
para espiar o rosto dele. Seus olhos estavam
cerrados, e a expressão era serena. Não parecia que
estava prestes a me repelir.
Como eu havia lhe dado todas as
oportunidades de se afastar, e ele não as usou,
decidi me entregar de vez àquela situação, sem
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medo. Se eu nunca mais o veria de novo, então


precisava aproveitar ao máximo sua presença. Eu
tinha que sentir cada detalhe de seu beijo para ter o
que me lembrar depois. Foi por isso que o puxei
com mais força contra o meu corpo. Comprovei,
em definitivo, que nunca havia provado sentimento
igual aquele. Não era como beijar Victor ou
qualquer outro garoto. Com Leonardo era diferente.
Era mais do que legal. Era tudo de que eu precisava
para me sentir viva.
Eu sabia que aquilo tinha que acabar em
algum momento, mas o Conselheiro estava
demorando muito para impedir. Era como se ele
quisesse se manter exatamente em cima do muro,
nem me beijando até o fim e nem me rejeitando.
Aquilo só me deixava ainda mais louca. Decidi que
Leonardo não podia ficar onde estava. Em cima do
muro, quero dizer. Ele tinha que escolher um lado
de uma vez por todas, para o bem da minha
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sanidade.
Foi aí que entrou a língua.
Tudo bem, eu sabia que a língua não era uma
boa ideia, mas fazê-lo reagir se tornou uma
necessidade fisiológica. Em um ato de pura
coragem, abri seus lábios utilizando os meus e
finalmente deixei minha língua entrar na história.
Leonardo reagiu tão depressa que não deu tempo
para raciocinar. Ao se dar conta de que eu estava
praticamente em cima dele, ouvi um arquejo alto e
senti, pela primeira vez desde que comecei a beijá-
lo, suas mãos na minha pele.
Leonardo apertou a minha cintura com muita
força. Pensei que me empurraria para bem longe,
mas fez exatamente o contrário, puxou-me contra si
e abriu a boca de vez, dando-me acesso à sua língua
macia e quente. Foi impressionante, mas consegui
sentir a sua aura luminosa me alcançando. Abri os
olhos de soslaio e consegui visualizar aquela luz
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me atingindo como se estivesse disposta a me


incluir nela. Jamais senti tanta emoção. Confesso
que fiquei com vontade de chorar, tamanha paz
invadiu o meu espírito. Voltei a fechar os olhos. A
bondade que emanava dele era tão forte que não
combinava comigo, no entanto ela me recebia com
cordialidade e me fazia merecedora daquele
sentimento.
Quase não acreditei quando Leonardo fez um
movimento preciso e meio insano, girando nossos
corpos e me deitando na grama. Logo em seguida,
ele me cobriu com o seu peso. Fiquei ainda mais
confusa. Ele era grande e alto, e eu tinha certeza de
que estava todo sobre mim, porém não senti nada
além de uma suavidade espetacular me cobrindo da
cabeça aos pés. Segurei os seus braços com força
para ter certeza de que ele ainda estava perto, mas
foi um gesto bobo da minha parte. Claro que
Leonardo estava mais perto do que nunca. Prova
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daquilo era sua aura fazendo questão de me


envolver também. Era como se compartilhasse seu
próprio espírito comigo.
Sua boca saiu definitivamente do transe
inicial, agora correspondia a cada gesto de
desespero da minha língua, além de formular vários
outros. Depois daquela atitude inusitada, quem
ficou estática fui eu. Quero dizer, a rejeição eu
esperava completamente. Aquilo, não. Era
sacanagem que Leonardo me oferecesse um beijo
tão perfeito. A consciência do meu jeito patético
perante sua perfeição me fez travar completamente.
Acho que, no fundo, não me senti pronta para
merecer tanto bem-estar.
Como se tivesse entendido minha confusão,
Leonardo finalmente se afastou, mas só um pouco.
Seu corpo ainda estava sobre o meu, o que só me
deixou mais louca por sentir seu cheiro e sua
respiração forte tão perto. Minha pele sofria
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espasmos de arrepio cada vez que me dava conta da


sua luz me envolvendo.
— Eu não devia ter feito isso. — Leonardo
balançou a cabeça, ainda bem ofegante. — Me
perdoa, Rafaela. — Levantou-se e voltou a se
sentar na grama. Fitou o outro lado do jardim.
Fiquei alguns segundos deitada, recuperando-
me da loucura que acabara de acontecer e tentando
fazer meu coração voltar ao seu lugar de origem.
Aquela tarefa foi bem difícil de realizar.
— Não ligo se nunca mais te verei de novo
— falei com muita calma, retomando o fôlego. —
Isso valeu por toda a minha vida e por toda a minha
morte.
Leonardo virou o rosto para me encarar. Seu
olhar traduzia um misto de incredulidade e
confusão, mas havia algo mais. Uma coisa parecida
com alegria. Não fazia o menor sentido, mas podia
jurar que o Conselheiro ficou feliz com o que lhe
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falei.
No entanto, eu não queria lhe dizer mais
nada, muito menos ouvi-lo. Não estava nem um
pouco a fim de receber um sermão ou de perceber o
seu arrependimento. Não queria que Leonardo
dissesse que aquele beijo tinha sido um erro. Nada
nunca me pareceu tão certo. Eu também não queria
me despedir. Quanto mais aquilo demorasse, mais
eu sabia que sofreria.
— Adeus... — Observei-o pela última vez
para logo em seguida fechar os olhos e imaginar o
meu quarto.
Bastou abri-los novamente para que eu
estivesse lá. Deitei na minha cama, praticamente
me jogando. Esperava que Leonardo entendesse
meu recado e tornasse as coisas mais fáceis para o
meu coração. Eu tinha estragado tudo.
Não havia mais ninguém por perto, estava
tudo muito silencioso. Meus pais já tinham ido
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embora. Para ser bem específica, não havia mais


ninguém e mais nada. A única coisa que ocupava o
meu quarto era a cama, que permaneceu intacta à
visita deles, o armário, que era embutido na parede,
e o pequeno criado-mudo estavam aparentemente
vazios. Eles tinham feito um trabalho árduo, afinal.
Olhei embaixo da cama e não tinha mais nada ali.
Minha mãe provavelmente encontrou a caixa que
eu tinha separado. Não fazia ideia se entenderia
meu recado de entregá-la à Carla, mas, naquela
altura do campeonato, eu estava muito cansada e
estressada para procurar saber.
Não demoraria nada e eu não teria mais o
meu quarto como um abrigo. Tudo o que eu era
antes de morrer desapareceria para sempre. Pensei
em me mudar para a sala de estar, mas ela já estaria
ocupada pelo meu pai, que adorava assistir à TV
até tarde. Eu queria algum lugar seguro que me
permitisse ficar sozinha por algumas horas. Além
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de não ter para onde ir, Leonardo não estaria mais


comigo.
Leonardo...
Eu tinha que esquecer aquele momento no
jardim o mais depressa possível. O toque leve de
seus lábios, a aura acolhedora, sua indecisão
sufocante e depois sua insanidade devorando o meu
raciocínio. Sabia que seria difícil esquecer, até
porque ainda dava para sentir o sabor dos lábios
dele impregnado nos meus, mas tinha que encontrar
alguma forma de passar por aquilo com maturidade
e manter o foco em meu objetivo. Quando eu fosse
para o céu, não precisaríamos ter aquela conversa
sobre não desviar dos objetivos e blá-blá-blá. Eu
poderia tê-lo comigo para sempre. Isto é, se ele
quisesse.
Claro que Leonardo não quereria nada
comigo, porém a ideia de reencontrá-lo no céu foi a
única capaz de me consolar naquele momento. A
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verdade era que eu estava arrasada. Morrendo de


medo. Desejava dormir profundamente, tamanho
cansaço, mas fantasmas não dormiam. Droga! O
dia havia sido muito longo e cheio de surpresas
incríveis. Do princípio ao fim, foi angustiante,
inusitado e cheio de emoções esquisitas. Coisas que
eu jamais imaginei se tornaram reais. Não dava
para acreditar que mal fazia três dias que eu tinha
voltado para a Terra.
Reconheci o aconchego que a minha cama
sempre me proporcionava, permanecendo quieta na
escuridão do meu quarto, e fechei meus olhos.
Tentei tirar da minha mente qualquer tipo de
pensamento, seja ele bom ou ruim. Fiquei apenas
num estado de inconsciência por horas, como uma
longa meditação. Minha alma parecia gostar muito
de ficar daquela forma, ela se regenerava aos
poucos e, quando dei por mim, já havia
amanhecido e eu estava com todas as minhas
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energias recuperadas. Não significava que eu estava


satisfeita ou que havia esquecido tudo o que
aconteceu comigo, principalmente o fato de não
poder mais contar com Leonardo.
O sabor de seu beijo invadiu minha boca de
súbito, mas fiz um esforço absurdo para ignorar
qualquer tipo de pensamento sobre a noite anterior.
Se eu fosse parar para me lamentar, ficaria
extremamente melancólica. Eu tinha que me
proteger daquelas lembranças, por isso as ignorei.
Acreditei na minha capacidade de seguir adiante,
sem ele. Tentei guardar as tristezas em um lugar
mais profundo do meu espírito, onde eu mesma não
pudesse ter acesso.
Foi pensando somente no meu foco que,
assim que acordei do meu “cochilo”, imaginei o
quarto de Carla. Eu estava ficando boa em me
desmaterializar e quase não fazia mais esforço
mental para conseguir me materializar em outro
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lugar. Aquela habilidade era realmente


fundamental, eu estava muito agradecida por ter
aprendido tão rápido. Chega de longas caminhadas!
Quando apareci no quarto de Carla, ela estava
sentada em frente ao espelho, penteando seus
cabelos negros e muito lisos. Sua aparência estava
melhor do que de costume. Talvez ela finalmente
tivesse entendido que não estava mais sozinha para
resolver seus problemas. Talvez ela começasse a
cooperar comigo, ou pelo menos me desse ouvido,
visto que eu tinha articulado um plano perfeito.
— Boa tarde... — Clareei a garganta para
chamar sua atenção, tentando ser educada.
Quero dizer, não há exatamente um modo
educado de se materializar no quarto de um
estranho logo pela manhã. Se houvesse, eu
desconhecia. Por um segundo, morri de pena de
Carla. Ter que me suportar tão cedo devia ser o fim
da picada. Eu odiaria ter uma alma me
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assombrando.
Carla olhou para trás de soslaio, sem
responder ao meu cumprimento. Pude perceber que
seus olhos ainda mantinham uma coloração
estranha ao redor, mas estavam com um aspecto
mais saudável do que no dia anterior. Bom, ainda
era um machucado feio.
— Por que não passa uma maquiagem nisso?
— Eu me aproximei cautelosamente.
— Não tenho maquiagens, nunca gostei
muito.
Foi o que eu tinha imaginado. Um ponto para
mim. Aquela informação me deixou subitamente
feliz, tanto que não pude evitar um sorriso. Eu
estava caminhando na direção certa.
— Suponho que você também só tenha
roupas pretas...
Carla estava usando uma saia preta rendada,
que ia até o chão. Muito bizarra! A camiseta preta
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do Metallica e as botas horrendas de plataforma


completavam o seu visual. Era um fiasco, claro,
mas decidi não agir com tanto preconceito para
com suas roupas. Se eu passasse por metade do que
ela passava, sem dúvida ficaria de luto pelo resto da
vida. De qualquer forma ela ignorou o meu
comentário, apenas continuou penteando seus
cabelos com uma tranquilidade esquisita.
Olhei ao redor e reparei que seu quarto estava
mais arrumado. Menos bagunçado, eu diria. Alguns
objetos outrora quebrados não estavam mais ali.
Não havia mais roupas sujas largadas, e tinha fita
adesiva segurando o que sobrou do abajur.
— Hoje, iremos à polícia depois da aula. —
Tentei parecer despreocupada, como se tivesse
sugerido que faríamos compras ou algo assim.
Supernatural.
— Não seja retardada. — Carla fez uma
careta. — Não vou à polícia coisa nenhuma.
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— Você quer ser violentada pelo resto da


vida? — Devolvi-lhe a careta. — Isso não pode
continuar assim. Se você der parte daquele homem
na polícia...
— Já chega! — Carla gritou, perdendo sua
calma inicial. — A polícia não pode resolver o meu
problema, ninguém pode! — Largou a escova, com
brutalidade, em cima da penteadeira. Virou-se para
me encarar severamente.
— Eu não vou insistir, Carla. Mas também
não vou desistir. — Eu estava realmente
decepcionada com o fato de ela não querer buscar
ajuda. — Você não pode ser agredida assim, olha a
sua casa como está toda destruída! É só um retrato
grosseiro de como você vai ficar se esse absurdo
continuar.
— Quem é você para falar sobre agressão,
me diz? — ela berrou, e me calei no mesmo
instante. — Não lembra que me agrediu a vida
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inteira? Você amava me destratar!


Dei de ombros.
— Eu sei, está bem? Eu sei. Não sou
ninguém para falar disso. — Meus olhos se
encheram de lágrimas. A sensação de culpa e
fracasso total me entristeceu. De novo. — O único
motivo por eu permanecer aqui é porque estão me
dando uma chance para me redimir contigo. E você
não está cooperando.
— Acredite em mim. A polícia não vai
adiantar. Eles nunca vão entender. — Carla estava
visivelmente sem paciência.
— É isso o que eles fazem. Protegem as
pessoas, principalmente de maníacos.
Por um momento achei que ela concordaria
comigo. O modo como me encarou foi muito
misterioso. Não dava para decifrar, nem de longe, o
que Carla pensava ao meu respeito. Eu não
conseguia entender por que era tão complicado se
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livrar daquele homem, visto que a polícia


investigaria o caso e ela poderia ficar aos cuidados
da assistência social. Claro que não era algo
agradável, mas com certeza era muito melhor do
que viver sendo espancada.
— Falo sério, Rafaela. Se você quiser me
ajudar, tem que confiar em mim. — Seu semblante
ganhou uma seriedade e uma firmeza que eu nunca
tinha visto antes.
Mesmo sem entender bulhufas do que ela
estava falando, acenei com a cabeça, concordando.
Afinal, eu teria que confiar nela para que pudesse
confiar em mim. Que escolha eu tinha? Nenhuma.
— Então, o que posso fazer para ele não te
bater mais? — Impedir um cara de bater nela não
seria fácil, mas eu poderia tentar. Estava disposta a
tudo.
— Nada. — Carla se virou na direção do
espelho novamente. Colocou seus óculos escuros, a
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fim de disfarçar os ferimentos, e vestiu uma jaqueta


preta que era a cereja do bolo naquele visual gótico.
Ainda pensei em insistir um pouco mais com
a história da polícia, porém resolvi optar pelo
silêncio. E foi assim que seguimos para a escola
naquela tarde, cada uma de nós absorta em seus
próprios pensamentos. Aquela velha dor às vezes
ardia profundamente em meu peito e, quando eu
observava Carla, ela disfarçava algumas lágrimas.
Era óbvio que estava sofrendo muito, aquilo
parecia nunca ter fim.
Dentro de mim havia um misto de
sentimentos que ia da culpa e raiva para a pena e
compreensão, passando de uma para a outra sem
cessar. Às vezes eu sentia vontade de me redimir da
melhor forma possível. Às vezes a única coisa que
queria era vagar por aí sem rumo e fugir de todos
os meus problemas, fazendo de conta que eles
jamais existiram.
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Contando com minha parca sorte, sabia que


nada que fizesse adiantaria de verdade. A única
coisa que eu podia fazer era insistir em arrumar a
vida daquela que sempre detestei. De algum modo
desconhecido, eu estava começando a não
desprezar tanto Carla como antes, agora que
compreendia o que se passava na vida dela. Claro
que seu visual ainda me causava certo espanto, mas
simplesmente ignorei as pessoas que passaram por
ela no ônibus e ficaram assustadas com tamanha
carga de cor preta em uma pessoa só.
As reações das pessoas me fizeram lembrar a
caixa colorida com maquiagens e a sacola de
roupas. Eu não havia confirmado qual o seu
paradeiro, nem sabia se minha mãe a entregaria à
Carla. Também tinha minhas dúvidas se
conseguiria mesmo fazê-la usar tudo aquilo, caso
minha mãe a entregasse. Dar um trato no visual de
Carla melhoraria seu convívio social. Quem sabe
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Kevin se apaixonasse por ela? Seria perfeito.


Agora que eu sabia da minha influência nos
pensamentos dos vivos, tudo seria muito mais fácil.
Eu convenceria Kevin através de pensamentos
súbitos e acabaria por fazê-lo se fixar em Carla.
Mesmo sem saber exatamente se eu gostaria de vê-
los juntos, aquela ideia me parecia uma ótima
opção.
Quando finalmente chegamos à escola,
passamos por vários grupos de alunos espalhados
por todo canto da entrada principal da instituição.
Era um dia ensolarado e por isso todos estavam
animados, provavelmente combinando uns com os
outros que praia frequentariam no fim de semana.
Era impossível não notar o extremo silêncio
que os grupos faziam quando Carla passava por
perto. Todos simplesmente paravam para observá-
la, alguns até faziam comentários nada agradáveis
entre si. Isso quando algum engraçadinho não
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gritava: “aberração!” em alto e bom som, fazendo


todos os presentes caírem na gargalhada. A
situação era extremamente constrangedora.
Cada vez que aquilo acontecia, eu sentia uma
fisgada intensa dentro do peito. Era um verdadeiro
tormento. Por um segundo, senti ódio mortal de
todas aquelas pessoas, um desprezo inestimável.
Percebi que, na verdade, todos aqueles sentimentos
vinham de Carla, que apenas seguia seu trajeto até
o final do grande pátio, rumo ao corredor, com a
cabeça abaixada e fingindo que nenhum comentário
era com ela.
— Não adianta fingir que não é com você.
Um dia vai ter que encará-los — comentei
baixinho, sentindo-me indignada com a atitude das
pessoas, mas não menos com a atitude dela de
nunca se defender.
— Não acha difícil quebrar algo que
construiu durante a vida inteira? — ela sussurrou
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de volta. — Isso tudo é resultado do que você


sempre fez. E agora que você morreu, todos
querem fazer igual. Acho que agem assim como um
meio de te homenagear. — Carla fez uma careta,
mas prosseguiu sussurrando e olhando para o chão.
Parei por um segundo. Era difícil acreditar no
que ela tinha acabado de falar. Quer dizer que
aquelas pessoas não faziam aquilo antes? Estavam
fazendo só porque morri? Perguntei à Carla e ela
apenas fez um movimento de cabeça, afirmando.
— Mas isso é ridículo! — praticamente
gritei. Eu estava absolutamente indignada e me
sentindo uma estúpida.
— Bem-vinda ao meu mundo repleto de
coisas ridículas.
Já tínhamos adentrado os corredores, e Carla
seguia em direção à sua primeira aula do dia.
Algumas pessoas passavam por nós e olhavam
torto, outras apenas ignoravam. Passamos pelo
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mural em minha homenagem, mas não me detive a


ele. Eu não queria pensar na minha morte. Ainda
era complicado engolir minha condição como
fantasma. Tudo o que eu mais queria era minha
vida de volta, com meus amigos, minha família e
minha escola.
— Oi, Carla. — Ouvi a voz de Kevin e voltei
minha atenção à triste realidade.
Meu ex-namorado ainda estava muito magro
e com os olhos meio inchados. Seu sofrimento
ainda era visível. Senti uma onda quase
esmagadora de pena e culpa. Porém, naquele
instante, tudo deu lugar a outro sentimento:
admiração. Fiquei muito admirada pelo fato de
Kevin estar falando com Carla. De novo. Daquela
vez, sem motivo aparente. Quero dizer, ninguém
tinha derrubado os livros dela no chão, nem nada.
Por que Kevin estava falando com ela,
afinal?
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— Oi... — A voz de Carla soou surpresa e


envergonhada ao mesmo tempo. Suas bochechas
pegavam fogo de tão vermelhas.
— É que... Eu estive pensando... — Kevin
falou baixo e profundamente, um oposto completo
do que ele era antes. — Aquele trabalho de
Biologia em dupla... Você... Você tem dupla, não
é?
Minha surpresa só fez aumentar. Kevin
estava flertando!
Meu Kevin estava flertando com Carla?
Um súbito ciúme invadiu meu peito e tirou
meu fôlego completamente.
Carla parecia mais envergonhada do que
nunca, tanto que por um momento achei que fosse
ignorá-lo e sair correndo. Fala sério, ela nem sequer
olhava pro rosto dele direito, apenas marcava um
ponto além do corredor e olhava fixamente, como
se tivesse alguma coisa mais interessante ali. Mas é
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claro que não tinha nada. Nada era mais


interessante do que os olhos azuis de Kevin.
— Na verdade, não...
— Bom, eu também não. — Kevin pareceu
ter tomado mais coragem. — Você toparia se nos
encontrássemos na biblioteca depois das aulas?
— Pode ser. — Carla foi simples e direta.
Seus olhos ainda permaneciam fixos em algo por
trás de Kevin.
— Então, te espero lá. — Kevin conseguiu
dar um meio sorriso e depois foi embora,
caminhando despreocupadamente no sentido
contrário ao nosso, não sem antes olhar para trás e
dar uma última expiada em Carla.
De súbito, ela virou para o lado e me
encarou. Eu não fazia ideia de como estavam seus
olhos por detrás daqueles óculos escuros, mas ela
parecia ter entrado em completo desespero, visto
que meu coração batia com tanta intensidade que
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chegava a doer de verdade. Supus que estava


procurando em mim alguma resposta para o
comportamento de Kevin, porém minha
curiosidade sobre aquilo era bem maior do que a
dela. Eu também não havia entendido nada, mas
tinha uma pergunta para fazer. Uma pergunta que
não queria calar e que estava mexendo com o meu
juízo.
— Ele já fez isso antes?
— Fez o quê? — Carla ainda estava chocada.
Suas mãos tremiam e suavam de tanto nervosismo.
— Falou com você assim. Eu não sabia que
ele falava com você.
— Eu também não sabia até agora.
Meu coração se acalmou de imediato. Kevin
não mantinha “contatos mais íntimos” com Carla
enquanto estávamos juntos. O alívio foi tanto que
não pude conter um sorriso e me manter mais
otimista quanto à situação. Afinal, minha ideia era
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juntar os dois, não era? Tudo se tornaria muito mais


fácil se Kevin já tivesse algum sentimento por
Carla, mesmo que seja bem pequeno.
— Retardada! — ouvi uma garota gritar, de
repente.
Quando procurei quem era a dona daquela
voz, não fiquei muito admirada. Eu já a conhecia de
longa data. Daniele estava bem na frente de Carla,
encarando-a com severidade. Seus cabelos
avermelhados caíam para bem além de seus
ombros, em cachos perfeitos, prova completa que
andou passando algum spray muito caro.
Apesar de Daniele ser muito bonita — seu
rosto parecia o de uma bonequinha e seus olhos
claros eram pequenos, mesmo que naquele dia em
específico eles estivessem amarrotados de tanto
rímel —, ela exalava uma ferocidade que eu nunca
tinha visto antes em toda minha vida, similar ao
olhar de uma cobra muito venenosa antes do bote.
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Cruel e ameaçador.
— Lembro muito bem, como se fosse hoje,
que um dia antes de Rafaela ser subitamente
atropelada e praticamente partida ao meio, você a
ameaçou de morte. — Suas palavras saíram com
uma rispidez que causou nojo.
Contudo, acredito que senti muito mais
horror do que nojo naquele momento,
principalmente depois de ter uma descrição
horrenda de como eu havia morrido. Não sabia que
tipo de ferimentos meu corpo tinha sofrido no
acidente, mas depois do que Daniele disse, decidi
nunca querer saber. De certo modo, meu corpo
físico não era mais útil mesmo. Ele pouco
significava.
Carla permaneceu calada, apenas encarando
Daniele por trás de seus óculos e mantendo seus
livros bem seguros, apertados contra o peito. O
coração dela disparou novamente, eu podia senti-lo
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como se fosse o meu. Agradeci aos céus por ela não


ter nenhum problema cardíaco.
— Não sei que bruxaria você fez, retardada
— Daniele continuou: — Só sei que, se eu vir você
e Kevin juntos novamente, faço o mesmo que você
fez com Rafaela.
Daniele cuspiu cada palavra com ar de
hostilidade. Sua presença me inspirou tanto asco
que não pude conter a raiva. Ela invadia meu corpo
rapidamente e era tão intensa que não pude deixar
de intervir.
— SAIA DAQUI! — gritei a plenos
pulmões, bem perto de Daniele.
As palavras cruéis que havia dito e o nojo
que senti daquela que sempre foi minha melhor
amiga me assustaram de tal forma que foi
impossível ficar calma. Daniele não podia sair por
aí falando o meu nome aos ventos de uma maneira
errônea, como se minha memória concordasse com
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tudo o que dizia. O problema era que eu não


concordava com nada. Não mais.
Daniele soltou um grito agudo e escandaloso,
dando alguns passos cambaleantes para trás,
tamanho susto que levou com o meu grito
energizante. Seu rosto ficou completamente
vermelho, confuso por não saber de onde tinha
vindo aquele grito.
Algumas pessoas que estavam andando pelo
corredor pararam para tentar entender o que estava
acontecendo. Carla apenas ficou quieta, estática,
observando a reação de Daniele. Provavelmente ela
não sabia que eu podia ter algum tipo de
comunicação com alguém que sequer sabia da
minha existência.
— Você é uma anormal! Sua bruxa! —
Daniele gritou para Carla antes de sair correndo em
disparada até o final do corredor.
Eu não sabia exatamente o que fazer depois
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que ela foi embora, na verdade eu tinha entrado em


estado de choque junto com Carla. As pessoas
voltaram a circular normalmente, como se o fato de
alguém chamá-la de tudo que não prestava fosse
uma atividade extremamente normal no cotidiano
escolar. De fato, era mesmo.
— Sua vida é assim todos os dias? —
perguntei em um murmúrio. Toquei, de leve, seus
cabelos compridos, numa tentativa meio idiota de
demonstrar compreensão. Eu não sabia muito
demonstrar aquele novo sentimento.
— Tem piorado. — Carla ainda estava em
estado de choque.
— Não se preocupe — sussurrei com calma,
gostando de sentir seus cabelos longos entre os
meus dedos. Eles eram surpreendentemente macios.
— Desta vez, eu estou do seu lado. Vai ficar tudo
bem. É uma promessa.

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Capítulo 14

A biblioteca

AS AULAS passaram rapidamente, até porque


decidi dar um pouco de privacidade à Carla e fui
para a biblioteca, que sempre ficava vazia no
horário normal. O espaço era enorme e tinha um
acervo vasto. Não costumava frequentar a
biblioteca enquanto viva, mas sempre achei legal
observar aquele grande salão iluminado, repleto de
mesas e cadeiras confortáveis. Sentei à poltrona
mais afastada possível, em um dos cubículos
individuais, e agradeci porque a mesa estava repleta
de livros dos mais variados conteúdos.
Peguei um romance para me distrair, mas
prestei atenção ao meu redor cada vez que folheava
uma página. Acreditei que seria bem esquisito a
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bibliotecária ver um livro folheando sozinho em um


dos cubículos. Ao pensar naquilo, lembrei
imediatamente de Leonardo me alertando para que
eu não deixasse que as pessoas vissem uma caixa
flutuando no meio da rua. Mexer com os objetos
era realmente uma habilidade perigosa.
Quando eu estava totalmente emotiva e
concentrada num romance dramático de Nicholas
Sparks, aconteceu algo que eu não esperava. Só
para variar. Alguém colocou as mãos em meus
olhos, por trás da minha cabeça.
— Adivinha quem é?
Por um segundo pensei que fosse Leonardo,
não vou negar. A felicidade me atingiu por
completa neste segundo, mas foi embora logo em
seguida. Aquele cheiro era muito diferente do
perfume natural de Leonardo, e ao mesmo tempo
bem familiar.
— Victor. — Usei a minha melhor voz de
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funeral.
Quero dizer, o que eu diria a Victor depois de
tudo o que aconteceu? Não fazia muito sentido
conversar com ele ou ter qualquer coisa a ver com
ele.
E se tentasse me beijar? Ou pior, se eu o
deixasse tentar me beijar?
Prometi a Leonardo que eu não daria ouvidos
a Victor. Significava que, provavelmente, também
não poderia dar a boca ou qualquer outra parte do
corpo. O meu Conselheiro queria que eu ficasse
bem longe daquele desconhecido, no entanto ele
estava ali na minha frente, mais gostoso do que
nunca, vestindo trajes pretos — como sempre — de
um bom gosto impressionante e deixando um
pouco de sua franja loira cair lindamente em seus
olhos verdes muito profundos.
— Fiquei espantado com sua alegria ao me
ver aqui — Victor falou rispidamente, sentando-se
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sobre a mesa em que eu me apoiava. Sua


proximidade me deixava intimidada, mas eu não
estava a fim de demonstrar meu desconcerto.
Devo confessar que a diferença entre ele e
Leonardo era cada vez mais visível. Enquanto um
exalava muita tranquilidade, o outro inspirava
mistério e certo ar de ironia que me dava nos
nervos. Victor não era de confiança, apesar de sua
beleza sufocante e quase irresistível.
Como eu não soube o que lhe responder,
Victor continuou:
— O que está fazendo? Não precisa mais
estudar, você morreu. — Pegou meu livro de
romance e fez uma careta esquisita. Algo me dizia
que ele não fazia ideia de quem era Nicholas
Sparks.
— Só estou esperando o tempo passar.
Ele jogou o livro longe, provocando um
barulho que, graças a Deus, não foi ouvido por
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ninguém.
— Então, Rafa, estive pensando... Que tal se
eu te levasse para um lugar que sei que vai adorar?
— Abriu um sorriso extremamente tentador. Era
incrível como Victor mexia comigo. Parecia que
me hipnotizava, arrancava minhas vontades e
colocava outras no lugar delas.
Confesso que fiquei bastante confusa, mas,
ainda assim, não pude me deixar levar.
— Não vai dar. Desculpa. — Tentei fazer
cara de paisagem, pegando outro livro qualquer e
fingindo prestar atenção na leitura. Com muita
sorte, ele iria embora.
Uma sorte que eu, obviamente, não tinha.
— Por que não vai dar? — Victor franziu o
cenho, e seus olhos ficaram ainda mais
convidativos. Aquela boca parecia me chamar aos
berros para que eu pulasse em cima dele e o
beijasse.
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Arquejei, desconcertada. Não devia imaginar


aquelas coisas. Não era a boca de Victor que eu
queria de verdade.
— Porque tenho que acompanhar a pessoa
que estou ajudando. — Olhei para o livro de novo.
Eu tinha que resistir.
— Eu já disse a você que isso é uma
bobagem.
— Para você é uma bobagem. Para mim, não.
— Dei de ombros. Não ousei encará-lo. Ele podia
me fazer mudar de ideia com muita facilidade.
— Está perdendo o seu tempo. — Victor fez
o favor de arrancar o livro das minhas mãos.
Daquela vez, depositou-o, com cuidado, sobre a
mesa. Bem que tentei não observá-lo, mas foi
impossível. Ele segurou o meu queixo suavemente,
obrigando-me a virar o rosto em sua direção. —
Não foi isso que eu te ensinei, Rafa.
Engoli em seco.
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— Seja como for, quero aprender sozinha.


Por bastante tempo, seu olhar focou em algo
além de mim, como se estivesse envolvido nos
próprios pensamentos. Seu rosto foi ficando cada
vez mais vermelho, até chegar ao ponto em que eu
realmente me preocupei com ele.
— Você está bem, Victor?
Ele nada respondeu, então decidi olhar na
direção em que seus olhos estavam fixos.
Visualizei, ao longe, Carla entrando na biblioteca
acompanhada de Kevin. Não havia mais nada
anormal no ambiente. Tudo estava muito calmo e
silencioso, um clima ideal para estudos. Olhei de
volta para Victor, e me surpreendi com seus olhos
verdes me encarando de novo, só que de um modo
ainda mais esquisito. Foi difícil demais decifrá-lo.
— Você está bem? — questionei novamente.
— Sim — rosnou, meio impaciente. Ele
ainda estava vermelho, mas pelo menos me
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respondeu. — Certo. Eu tenho que ir.


Victor se desmaterializou sem mais nem
menos. Não entendi muita coisa daquela súbita
mudança de humor, mas não perderia o meu
precioso tempo tentando descobrir. Se ele foi
embora, melhor mesmo, assim ficaria muito mais
fácil manter a promessa que fiz a Leonardo.
Também tentei esconder meu total
descontentamento por Victor não ter me dado um
beijinho sequer. Sei que estava sendo contraditória
em meus pensamentos e sentimentos, mas a
realidade era que eu me sentia meio abandonada.
Larguei o livro de uma vez. Permaneci atenta
à cena que se desenrolava na minha frente. Dava
para notar perfeitamente o semblante empolgado de
Kevin ao se sentar à uma das grandes mesas de
estudo da biblioteca, ao lado de Carla. Apesar de
sua aparência abatida, dava para ver os olhos
brilhando como nos velhos tempos.
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Tempos em que ele estava apaixonado por


mim.
Kevin quase não conseguia esconder o
sorriso de contentamento em estar na presença de
uma pessoa que, para ele, nada significava. Pelo
menos sempre pensei que não. Recentemente,
descobri que a coisa mais fácil do mundo era eu
estar enganada. A sensação de que aquilo era um
pesadelo tomou conta de mim novamente, tamanha
incredulidade diante dos fatos.
Tudo era tão... impossível!
Carla correspondia ao sorriso de Kevin da
maneira mais tímida e menos envolvente possível.
Era óbvio que ela jamais passou por uma situação
de paquera descarada antes. Impressionante como
conseguia não ser sensual, nem sedutora, e não
demonstrava, nem por um segundo, que também
estava afim. Fingia o tempo todo que nada que
vinha de Kevin importava de verdade. Mas eu sabia
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que não era bem assim. O meu coração batia em


descompasso, e um nó apertado ardia em meu
estômago. Aquelas reações proviam do que Carla
estava sentindo. Estávamos ligadas por uma força
desconhecida, como me alertara Leonardo. Aquela
ligação jamais falhava.
Eu me aproximei deles com cuidado, para
que assim pudesse ouvir melhor o que
conversavam. O livro de Biologia estava aberto
sobre a mesa, mas era muito óbvio que o assunto
nada tinha a ver com a disciplina, apesar de Carla
insistir em manter contato visual com as páginas do
livro grosso e muito pesado. Aquele maldito livro
nunca cabia direito na minha mochila, e eu sempre
o deixava em casa, para desespero total do
professor Samuel. Claro que pouco me importava
com ele e muito menos com a Biologia. Minha
coluna valia muito mais.
Antes que eu pudesse chegar mais perto e
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ouvir o que conversavam, Mônica, a coordenadora


de todas as turmas do Ensino Médio, abriu as
portas de vidro da biblioteca e se aproximou do
casal, tomando a minha frente.
— Senhorita Carla Stephanelly? — Mônica
falou em um tom meio rígido. Ela era uma chata.
Carla deu um pulo de susto por causa da
interrupção repentina da coordenadora. Com
certeza o papo entre os dois estava muito
interessante para que ela ganhasse uma coloração
avermelhada nas bochechas. Infelizmente, não
consegui ouvir nadinha.
— S-sim?
— Tenho algo para você na direção. Venha
comigo. — Mônica continuou com a voz séria, sem
expressar nenhum sentimento.
De fato, a coordenadora sempre agiu como se
estivesse lidando com detentos em uma cadeia de
segurança máxima, e não com jovens alunos em
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puberdade numa escola particular. Eu não fazia


ideia do que dava na cabeça das pessoas que
trabalhavam em escolas e não sabiam lidar com os
alunos, nem tinham a mínima competência para a
coisa.
De qualquer forma, Carla não hesitou ao
chamado e se levantou imediatamente. Kevin olhou
para ela de uma maneira meio esquisita, mas
permaneceu calado. Carla nem sequer olhou para
ele, apenas acompanhou Mônica até a saída da
biblioteca.
Pensei em ficar com Kevin por mais algum
tempo. Passou pela minha cabeça tentar entrar em
contato, mas eu tinha certeza de que ele se
assustaria bastante. Com medo de sua reação,
apenas segui Carla e a coordenadora, a fim de saber
em qual encrenca ela tinha se metido daquela vez.
Percorremos um caminho longo e cansativo
até a direção, que ficava no segundo andar de um
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prédio antigo e livre de elevadores.


Inexplicavelmente, eu não conseguia mais ficar
cansada como antes, não fisicamente. Minhas
pernas não doíam pelo esforço, e meus músculos
pareciam superadaptados a exercícios físicos.
Sentia-me satisfeita, já que todo o cansaço
psicológico já era o suficiente para uma pessoa só.
Poderia perguntar a Leonardo o porquê de eu estar
mais resistente, porém... Leonardo foi embora.
Apaguei, imediatamente, a lembrança do timbre da
voz dele chamando o meu nome. Tentei me
concentrar na realidade.
Mônica abriu a porta da direção e não entrou
junto com Carla, deixando apenas um aviso:
— A diretora quer falar com você em
particular.
Carla entrou na sala da direção e eu entrei
logo em seguida, visto que ultrapassar paredes não
era algo que eu gostava muito de fazer. Dava-me
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sempre uma sensação aterradora de não


pertencimento ao mundo. Sabia que eu não
pertencia, de fato, mas se meu espírito estava ali era
por algum motivo, não era?
Assim que entramos na grande e arejada sala
da diretoria, fiquei surpresa ao ver a minha mãe
sentada em uma das poltronas que fazia parte da
decoração de muito bom gosto de tia Ny. As duas
estavam com um semblante aflito, mas a minha
mãe se encontrava muito pior. Seu aspecto era
triste, mesmo que estivesse usando roupas
elegantes e maquiagem cobrindo as olheiras que eu
sabia que estavam ali em algum lugar. Minha mãe
era uma mulher loira e muito bonita. Todos diziam
que eu me parecia muito com ela, o que me deixava
sempre orgulhosa.
Meu coração acelerou bastante ao ver a
minha mãe, e Carla notou de imediato, pois me
encarou por alguns segundos antes de tia Ny falar
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por detrás de sua mesa, com uma voz sempre doce,


mas bem segura. A diretora de nossa escola era
mesmo incrível.
— Esta é Carla Stephanelly, Sra. Satto. —
Tia Ny manteve um sorriso amistoso enquanto
minha mãe forçou um riso torto em direção à Carla.
— Sente-se aqui, mocinha.
Tia Ny apontou para uma poltrona igual a
que minha mãe estava sentada. Carla se acomodou,
ainda sem saber do que se tratava tudo aquilo.
Aquela visita, para mim, só podia significar uma
coisa: a caixa.
— Suponho que saiba que a Sra. Satto era a
mãe de Rafaela Satto, Carla. — Tia Ny não largava
mão de seu sorriso contagiante.
— Muito prazer, senhora. — Carla observou
a minha mãe e abriu um sorriso tímido. Logo em
seguida, procurou-me pelo recinto e parou assim
que me encontrou sentada no pequeno sofá bege
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que estava encostado na parede. Seu olhar era uma


grande interrogação.
Felizmente, eu já sabia o que aconteceria.
Quero dizer, havia uma caixa enorme ao lado da
mamãe, depositada no chão. Fiquei muito
orgulhosa por ela ter um raciocínio muito rápido,
agindo com tamanha precisão.
— Ora, vamos, Carla, tire esses óculos
escuros. O sol não está mais tão forte assim — a
diretora solicitou.
Senti o corpo de Carla congelando como se
fosse o meu.
— Desculpa, tia Ny, mas eu tenho alergia e
meus olhos não estão muito bons hoje — Carla
pensou depressa.
— Ahh...
— Você conhecia Rafaela? — mamãe
perguntou de uma vez, interrompendo a conversa e
olhando diretamente para Carla. Sua voz saiu meio
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rouca e vacilante. A tristeza estava impregnada em


suas palavras.
— Todos a conheciam. — Carla deu de
ombros.
— Vocês eram muito amigas? Ela nunca
falou sobre você em casa.
— Não muito, na verdade. — A garota voltou
a me encarar.
Não mesmo, na verdade.
— É que... Encontrei umas coisas no quarto
de Rafaela ontem. — Era óbvio o assombro que
minha mãe sentia naquele instante. — E essas
coisas estão endereçadas a você. Não tem endereço
algum, para ser sincera, mas tem seu nome e série.
Olhe isso. — Mamãe pegou a enorme caixa de
papelão e retirou dela um pedaço de papel,
entregando-o a Carla. — É a letra da minha filha,
sem dúvidas.
Carla leu o bilhete e, sem saber como reagir,
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apenas se manteve em silêncio.


— Sei que pode parecer estranho, mas o
bilhete deixa claro que Rafaela ia te entregar essa
caixa. Pode ser só coincidência, mas algo aqui
dentro me diz que não é. — A voz da minha mãe
soou emocionada enquanto colocava a mão sobre o
peito.
Soltei um arquejo ainda mais emocionado.
Eu só queria poder abraçar a minha mãe mais uma
vez. Queria sentir seus dedos me fazendo cafuné.
Até seus gritos eu queria ouvir de novo. Qualquer
coisa era melhor do que aquela distância que nos
foi imposta.
— O quê, exatamente, tem aí dentro? —
murmurou Carla, estupefata.
— Algumas roupas, sapatos e maquiagens.
Escute, quero muito que essas coisas fiquem
contigo. Sinto que não posso ficar com elas e nem
doar a mais ninguém. Elas te pertencem. — Mamãe
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observou as roupas pretas que Carla estava


vestindo. Qualquer ser humano normal doaria
roupas a ela, com certeza. Talvez naquele momento
minha mãe tivesse entendido claramente o motivo
do meu bilhete inusitado.
— Tudo bem, mas... — Carla estava meio
aflita com a situação, dava para notar. — Não tenho
como levar essa caixa enorme para casa. Eu vou de
ônibus.
— Não faz mal, eu te levo. Pode ser? —
perguntou mamãe, olhando para Tia Ny, que ainda
sorria. A diretora aquiesceu.
— P-Pode — gaguejou Carla.
Eu sabia que aquela maluca queria dizer não,
mas ela não teve muita escolha.
— Então, está tudo certo, não é? — Tia Ny se
levantou da poltrona, naturalmente satisfeita. — As
aulas já acabaram. Sra. Satto, pode levar Carla em
sua residência. O pai dela é uma pessoa muito
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respeitável e decente, creio que não se importará


com esse ato de caridade.
O pai dela? Respeitável e decente?
Mal pude acreditar naquilo! Aquele homem
era o pai de Carla? Como um pai tinha coragem de
bater na filha daquele jeito? Provavelmente devia
ser por isso que Carla não queria entregá-lo a
polícia. Mas que absurdo!
Enquanto eu resfolegava de indignação, Carla
e mamãe se levantaram de suas cadeiras. Permaneci
sentada. Eu estava obviamente decepcionada com o
que acabara de descobrir. Era muito difícil engolir
o fato de que o pai de Carla batia nela
covardemente.
A minha história de vida desconhecia aqueles
tipos de atrocidades, por isso sempre considerei a
violência um absurdo. Meus pais sempre me
trataram com o maior carinho e dedicação. Nunca
me entrou na cabeça que uma família poderia ser
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marcada por espancamentos. Caramba, o pai de


Carla bebia, quebrava a casa inteira e a cara dela
junto! Sem contar com os xingamentos. Aquilo não
podia ser uma atitude de pai, foi por isso que
sempre mantive minhas dúvidas quanto ao grau de
parentesco entre eles.
Como que despertada de um momento
altamente reflexivo, percebi que estávamos apenas
tia Ny e eu na sala da diretoria. Eu havia perdido a
oportunidade de passar pela porta aberta, então
decidi atravessá-la, apesar de odiar amargamente
ter que fazer aquilo. Mamãe e Carla seguiam pelo
corredor em um silêncio muito desconfortável, até
que Kevin apareceu do nada.
Apertei o passo para acompanhá-los.
— Fiquei te esperando, mas resolvi conferir
se tinha acontecido alguma coisa. Você está bem?
— Kevin estava realmente preocupado com ela.
— Sim, eu... — Carla começou a dizer, mas
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Kevin a interrompeu:
— Sra. Satto! Que surpresa em vê-la. — Ele
se aproximou para cumprimentar minha mãe com
um abraço sem jeito. — Como a senhora está? —
Era óbvia a alegria forçada de Kevin em ver
mamãe. Ninguém estava alegre, afinal.
Os olhos do meu ex-namorado piscavam com
força e constância, sinal que eu conhecia de longa
data; significava nervosismo absoluto.
— Tentando superar a perda, querido... —
Mamãe suspirou profundamente. — Não é fácil.
— Entendo. Não é fácil mesmo — respondeu
um Kevin inexpressivo. O clima ficou meio tenso
até que Carla abriu o bico:
— Bom, vou lá, Kevin. Sra. Satto vai me
levar em casa. A gente se vê.
Mamãe saiu do transe em que se encontrava
desde que ganhou o abraço de Kevin. As duas
andaram até as escadas, enquanto meu ex
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permaneceu no corredor. Fiquei com ele. Kevin


passou uma eternidade quieto, observando as
paredes e o teto. Ele suspirava vez ou outra. Sua
tristeza me alcançou.
Aproveitei aquele momento para observá-lo
mais de perto. Seus olhos não estavam mais tão
vermelhos, ele tinha parado de chorar por minha
causa. Mesmo assim, ainda havia olheiras em volta
deles. Seus cabelos muito pretos ainda estavam
espetados por causa do gel capilar. Era o tipo de
vaidade que ele não abria mão.
— Isso é tão esquisito... — Kevin sussurrou
para si mesmo, encostando-se à parede e
suspirando. — Muito esquisito.
Eu me aproximei com muita cautela, sem
saber o que fazer. Só queria acalmá-lo. Podia ouvir
seu coração batendo forte e lágrimas se formando
em seus olhos azuis. Olhos que eu costumava
admirar todos os dias, mas que agora não me
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pertenciam mais. Como todas as outras coisas.


Kevin deixou seu corpo cair devagar, até que
se sentou no chão com as pernas arqueadas,
fazendo o joelho lhe alcançar o rosto e esconder um
choro sofrido. Sua reação foi tão súbita que me
atirei, assustada, sobre ele. Toquei seus cabelos
com leveza. Kevin levou um susto imediatamente,
olhando para os dois lados do corredor, à procura
de alguém que por acaso pudesse tê-lo tocado.
Quando percebeu que não existia ser vivo
naquele corredor, tornou a chorar novamente,
daquela vez olhando para o teto. Suas lágrimas
escorriam pela face numa velocidade
impressionante. Eu nunca tinha visto Kevin chorar.
Nunca.
— Queria tanto que você estivesse aqui,
Rafa... — sussurrou entre lágrimas que faziam sua
voz sair totalmente distorcida.
Aquela frase dolorosa foi a gota d’água para
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que eu me desesperasse. Sem ao menos perceber,


abracei Kevin com força e, fechando os olhos,
desejei do fundo do meu coração que ele
melhorasse, que parasse de sofrer tanto e voltasse a
ser um adolescente normal, como todos os outros
garotos do último ano. Lágrimas invadiram meus
olhos e se deixaram escorrer. Um sentimento que
misturava culpa, amor, carinho e tristeza ardiam em
meu peito. Jamais soube dar valor aos sentimentos
que Kevin tinha por mim. O arrependimento fazia
meu corpo inteiro tremer.
Não sei ao certo o que aconteceu em seguida,
mas Kevin pareceu amolecer em meus braços. Abri
meus olhos devagar, e percebi uma membrana
brilhante nos envolvendo. Aquela luz partia de
mim. O clima de tranquilidade que aquela
membrana trazia, similar ao que Leonardo me
proporcionava, me encheu de esperança e de fé.
Soltei Kevin devagar, curiosa em saber se estava
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sentindo o mesmo que eu. Sua cabeça ainda estava


voltada para o teto, mas seus olhos estavam
cerrados e as lágrimas haviam cessado.
— Obrigado, Rafa... — Kevin sussurrou
roucamente. — Estou melhor agora. Vou ficar bem,
você vai ver. — Sorriu, ainda com os olhos
fechados.
— Você pode me ouvir? — perguntei, muito
surpresa.
Kevin não respondeu, nem mesmo deu sinal
algum de que tinha me escutado. Continuei sem
entender absolutamente nada do que aconteceu,
mas, de algum modo, ele havia recebido o meu
recado. A membrana vibrante que nos envolvia
cessou devagar, até que foi embora completamente,
retornando para o mesmo lugar de onde veio; ou
seja, de canto nenhum.
A situação me assustou muito mais do que a
Kevin. Meu corpo parecia estar colado ao chão, e
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qualquer ruído que eu fizesse poderia ser fatal de


algum modo, portanto me mantive estagnada, sem
respirar. Claro que eu não precisava respirar nem
um pouquinho. Já estava começando a entender o
funcionamento do meu espírito, mas inspirar e
expirar se tornou automático. A sensação de sufoco
era psicológica e não física.
Kevin enxugou suas lágrimas na gola da
camisa que ele estava usando e se levantou com
disposição, seguindo pelo corredor como se nada
de anormal tivesse acontecido. Como se ele não
tivesse acabado de receber uma mensagem do
além. O imã que me grudava ao chão ainda estava
funcionando. Não dava para entender o que
aconteceu, e definitivamente não teria ninguém
para me explicar. Magnólia ainda não apareceu,
muito menos Severino. Leonardo foi embora.
Leonardo foi embora.
Novas lágrimas surgiram. As primeiras
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dedicadas somente a ele, especialmente à ausência


assustadora e ao vazio no qual o simples
pensamento sobre ele estava me colocando.
Bloqueei sua imagem, que queria insistentemente
invadir a minha memória e deixar o meu coração
em frangalhos. Os detalhes de seu rosto perfeito, a
boca, os olhos escuros, o beijo doce que me
ofereceu com tanta boa vontade...
Eu tinha que esquecê-lo de vez. Pelo menos
enquanto as lembranças doessem de maneira
insuportável. Algo dentro de mim começava a
entender que aquelas recordações jamais parariam
de doer. Precisava apenas aceitar que não o teria
mais por perto. Fui eu que quebrei a regra. Agora,
sofria as consequências dos meus atos. Era assim
que a vida funcionava, era por isso que eu era uma
fantasma que vagava pela Terra. Minha existência
se reduziria a sofrimento até que a cabeça oca
aprendesse a não agir por impulso.
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Capítulo 15

A revelação

NÃO DEU para calcular o tempo em que passei


presa ao chão do corredor da escola. Ninguém
passou por ali enquanto eu estava lá, exceto tia Ny,
que saiu de sua sala com um ar muito alegre,
trancando a porta da direção e levando a chave
consigo. Não conseguia parar de pensar na ausência
de Leonardo, nem sobre o que tinha acabado de
acontecer entre Kevin e eu. Também não fazia a
mínima ideia do que aconteceria com Carla,
precisava conferir o que ela e mamãe estavam
aprontando. O fato de Carla ter ganhado as roupas
não significava que aceitaria vesti-las. Também não
significava que, ao vesti-las, alguma coisa mudasse.
Mas eu não podia desistir.
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O pai dela era um criminoso e merecia ir para


a cadeia. Eu não tinha como fazer uma denúncia
sem sua permissão. Quero dizer, como faria uma
denúncia anônima por telefone? Será que a pessoa
que atendesse conseguiria ouvir minha voz? Ri de
meus próprios pensamentos, lembrando-me de um
título bem típico para histórias de terror: vozes do
além. Naquele caso, a voz do além seria a minha.
Sem Leonardo, tudo parecia muito mais
difícil. Sem a segurança e calma que sua presença
me inspirava, sem seu sorriso inocente e angelical,
os conselhos esquisitos ditos em códigos, mas que
de certa forma me mostravam sempre o que fazer.
Sem seu perfume delicioso e marcante, o abraço
forte e quente... E, pior ainda, sem seus beijos.
Tudo bem, eu só o tinha beijado uma única vez,
mas fora o bastante para trazer sentido à minha
existência.
Suspirei forte, como se o ar do mundo inteiro
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tivesse se extinguido. Ficar parada, me lamentando


por tudo e pensando em quem não deveria, não era
uma boa opção. Eu tinha um objetivo traçado, e
meus planos me levariam a Leonardo de um jeito
ou de outro. Se ajudasse Carla, eu iria para o céu. E
então o meu Conselheiro estaria lá. Era uma lógica
bem simples de entender.
O imã que me prendia ao chão finalmente
resolveu parar de funcionar. Caminhei
vagarosamente, rumo à escadaria. Fiquei meio
desnorteada, sem saber para onde ir. Eu só tinha
que imaginar um lugar, mas, naquele momento,
queria apenas fingir que era uma pessoa normal e
andar tranquilamente enquanto raciocinava. Segui
pelos corredores da escola que sempre considerei a
minha segunda casa. Ainda havia alguns alunos
reunidos em grupos, saindo dos sanitários e
conversando sobre alguma atividade
extracurricular. Outros estavam no pátio, lanchando
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e conversando alto. O clima era de muita


descontração, e identifiquei de prontidão alguns
amigos e amigas que eu costumava confraternizar
quando ainda estava viva.
Senti muita saudade dos tempos em que
ficava até tarde na escola, batendo papo com a
turma. Aquela realidade se mostrava tão longe de
minhas possibilidades que nem parecia que eu tinha
morrido há tão pouco tempo. Tudo estava muito
distante, agora. Eu não fazia parte daquele lugar,
não mais.
Desci as grandes escadarias da entrada e
segui em direção à avenida bem arborizada do
bairro. O sol estava indo embora aos poucos, mas
ainda conseguia aquecer e iluminar as ruas. Eu
adorava quando o sol estava se pondo, era uma
coisa que fazia questão de vislumbrar, sobretudo da
janela do meu quarto. O trânsito estava tranquilo,
pois a confusão que ficava quando os alunos
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largavam da escola já havia cessado. Mesmo assim,


olhar aquela avenida em plena movimentação me
deu calafrios. Lembrei-me do dia em que morri, de
como não vi que estava atravessando com o sinal
de pedestres piscando em vermelho. Lembrei
também de Daniele gritando em plena fúria o modo
como eu tinha sido partida ao meio.
O medo de voltar a andar em avenidas
movimentadas me fez desistir de prosseguir com
aquele passeio. A vida na Terra era dolorosa
demais para quem não fazia mais parte dela. Cada
lugar era uma lembrança triste, cada rosto
conhecido era uma saudade de tempos que não
voltariam mais. De que adiantava fingir
normalidade?
Foi por isso que, em vez de remoer o que
havia perdido de melhor, decidi retomar meus
objetivos e fazer a barca andar para frente. Eu me
recusava a desejar que o tempo voltasse e eu
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pudesse fazer tudo diferente. Não aconteceria.


Minhas chances se encerraram. Apesar de ser uma
verdade muito cruel, ainda assim era uma verdade.
Precisava lidar com ela o mais rápido possível.
Foi meio sem querer que pensei em Victor.
Acredito que a solidão e carência finalmente
mexeram com o meu juízo, tirando-me do eixo. Eu
me vi desejando estar onde ele estivesse, sem ao
menos saber o que me aguardaria. Aos poucos,
senti uma leveza incomum tomar todo meu corpo.
Eu estava me desmaterializando. Logo em seguida,
me materializei ao lado do dono dos meus
pensamentos bizarros. Só que o que vi diante de
mim foi ainda mais esquisito.
Apareci numa sala muito escura, pertencente
a uma casa pequena que com certeza se encontrava
abandonada. As paredes estavam numa coloração
meio cinza, com algumas partes mais escuras,
como se tivessem sido queimadas. O ar estava
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contaminado por um cheiro bem desagradável de


umidade e mofo. As janelas de madeira tinham as
mesmas colorações das paredes e estavam
fechadas, tornando o ambiente ainda mais fétido.
Não havia móveis por perto, exceto um sofá sujo e
queimado, no qual Victor estava deitado, de olhos
fechados.
Analisei bem o local antes de fazer qualquer
movimento. Sem dúvida, o meu quarto era maior
do que o casebre. A sala e a cozinha faziam parte
do mesmo cômodo. A cozinha se resumia apenas a
uma pia sem torneiras e um armário velho e
encardido. Havia mais duas portas adiante, que
estavam fechadas, provavelmente indicando a
existência de um quarto e um banheiro.
Victor se remexeu no sofá e abriu os olhos,
espantando-se imediatamente com a minha
presença. Ele piscou algumas vezes, como que para
comprovar se eu estava mesmo ali. Devo admitir
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que a visão de uma garota loira, trajando um


vestido rosa de princesa, contrastava com o resto do
ambiente. Não ficaria surpresa se ele fechasse os
olhos e voltasse a descansar, tomando a conclusão
de que eu nada mais era do que uma ilusão
proveniente de sua mente confusa.
— Rafaela? — Victor finalmente falou, com
uma voz rouca, ainda piscando os olhos. — Você
está aí?
— Sim, sou eu mesma. — Nem sei como
consegui falar, não dava para pensar direito naquele
lugar horrível. — Preciso falar contigo.
— Que surpreendente! — Victor se levantou
em um salto e olhou ao seu redor. — Pena que não
me avisou de sua visita, eu teria arrumado a casa.
Ele estava muito diferente. Seus olhos
sempre brilhantes se encontravam mais escuros, e a
simpatia era visivelmente forçada. Victor parecia
nervoso e preocupado com alguma coisa. Seu
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sorrisinho irônico tinha dado lugar a uma expressão


irritada.
— Desculpa. Acho melhor voltar em outra
hora.
Eu estava quase me desmaterializando
quando ele me interrompeu.
— Não! Vamos a outro lugar, eu te levo.
Sem me dar tempo para pensar em uma
resposta, Victor pegou minha mão e meu corpo se
desmaterializou junto com o dele. A sensação de
desmaterialização era muito legal, eu adorava,
contudo ser acompanhada por Victor me deixou
com um nó constante no estômago. Eu estava com
medo do que poderia acontecer.
Assim que abri os olhos, percebi que
estávamos sentados no banco da mesma praça em
que nos vimos pela primeira vez. Já estava
escurecendo. Não havia ninguém por perto, nem
mesmo crianças brincando, como era de costume.
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Apesar do clima agradável, senti calafrios


percorrerem o meu corpo. Em poucos minutos a
praça ficaria totalmente imersa na escuridão. Eu
não estava muito feliz por isso. Ainda me lembrava
daquele fantasma repugnante que me atacou
grosseiramente no dia em que Leonardo me salvou.
Leonardo...
— Estou morrendo de curiosidade, Rafa. Não
me torture. O que tem para me dizer? — Victor
abriu um meio sorriso, capaz de cortar meus
pensamentos nebulosos. Tentei pensar em como ele
mudou apenas em sair daquela casa imunda. Agora,
parecia com o Victor que eu tinha conhecido:
sarcástico e muito sexy.
Suspirei fundo, sabendo que me arrependeria
amargamente de contar aquele tipo de coisa a ele.
Mas eu precisava de alguma opinião, de uma luz no
fim do túnel. Apesar de ser esquisito, Victor nunca
me negava uma boa explicação sobre a minha
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condição como fantasma.


— É que aconteceu uma coisa superesquisita
hoje.
— Que tipo de coisa? — Victor se aproximou
com curiosidade.
Pegou minha mão, envolvendo-a com as
suas. Como eu previa, ele tentaria se insinuar de
novo, aproveitando-se daquele reencontro.
— Bom, é que... Encontrei o meu ex-
namorado na antiga escola onde estudávamos. —
Ele fez uma careta, mas não largou minha mão. —
Kevin precisava de ajuda, então eu meio que o
abracei. Só que, durante este abraço, uma luz muito
forte nos envolveu. Senti tanta calma, tanta paz! —
Victor ainda me olhava feio. Eu já estava
arrependida, mas decidi contar tudo mesmo assim.
— Desejei que ficasse bem, e depois que o larguei,
ele agradeceu a mim. Kevin disse o meu nome.
Como podia saber que eu estava ali? Ele não pode
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me ver. Estou tão confusa!


Parei de abrir a minha boca enorme e esperei
que Victor risse da minha cara ou alguma coisa
parecida. Como que para provar que eu estava
errada quanto às suas atitudes, ele apenas me
encarou e pensou bem no que diria. Agradeci
silenciosamente por aquilo. Eu precisava ser levada
a sério.
— Você tem um poder muito grande —
disse, por fim. — Você é poderosa, Rafa.
— Como assim?
— Não são todos os desencarnados que
conseguem comunicar seus pensamentos através do
toque. Isso significa que você é especial. — Victor
largou minha mão só para alisar a lateral do meu
cabelo. Levou uma mecha para trás da orelha.
Seu toque sempre invasivo me constrangia.
— Especial? Eu não entendo. — Arquejei.
Especial era uma coisa que eu não conseguia me
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achar. Não na minha nova condição.


Especial eu era quando estava viva e podia
estudar, namorar, abraçar os meus pais e conversar
com os amigos. Desde que morri, eu era só mais
uma perdida no mundo.
— Você tem a capacidade de transmitir
pensamentos quando toca em alguma pessoa viva.
— Victor ainda alisava meus cabelos, mas
mantinha um semblante muito sério. —
Provavelmente, também pode fazer isso com
desencarnados.
Ele estava extremamente gostoso, devo
admitir. Aqueles olhos verdes me observando de
perto não ajudava nada. Eu me senti ainda menos
especial, e ainda mais perdida.
— Vamos tentar? — perguntei sem pensar,
sabendo que poderia não ser uma ideia muito boa.
— Claro, podemos tentar.
Coloquei minhas mãos em volta do pescoço
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de Victor e o trouxe mais para perto. Foi um abraço


meio esquisito, porém aconchegante. Ele não
demonstrou nenhum tipo de resistência, apenas se
deixou levar, como se fosse um gesto
absolutamente natural. Eu não sabia direito que tipo
de pensamento enviaria para ele, a única coisa que
veio à minha mente foi a falta que sentia de
Leonardo. Pensei também em como gostaria que
Victor me ajudasse e ficasse ao meu lado, agora
que eu não tinha mais ninguém para guiar meus
passos na Terra.
A membrana brilhosa apareceu, como da
última vez, e nos envolveu por completo. O
sentimento, agora, não era de paz ou tranquilidade,
mas de desespero. Nada a ver com o que tinha
rolado entre mim e Kevin. Meu coração acelerou
imediatamente. Eu não sabia o que estava
acontecendo, mas resolvi parar logo com aquilo.
Larguei Victor com todas as minhas forças, como
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se tivesse pegando fogo. A membrana se partiu


assim que tirei minhas mãos dele, soltando faíscas
que pareciam pequenas partículas de vidro
fluorescente se quebrando.
Por muito tempo, não tive coragem de
encará-lo depois daquela experiência maluca.
Apenas fitei o último suspiro do sol no horizonte. A
praça ficou escura. Eu estava completamente sem
fôlego, e só não me desesperei mais porque sabia
que não precisava mais de ar.
Foi Victor quem quebrou o silêncio entre
nós:
— Rafa... Eu não sou igual a ele. —
Continuei olhando o horizonte. — Não nos
compare.
Que experiência constrangedora!
— Eu sei — respondi, cansada.
— Mas prometo que vou ficar sempre ao seu
lado. Só que vai ter que ser do meu jeito. Você vai
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ter que confiar em mim. — Victor pegou o meu


queixo de leve, forçando-me a observá-lo. Seus
olhos estavam mais profundos do que nunca. Ele
estava encantador. Victor era tão lindo que me dava
raiva.
— Prometa que nunca vai me abandonar.
Que não vai sumir e me deixar sozinha. — Meus
olhos se encheram de lágrimas. — Prometa que vai
me ajudar aqui na Terra.
Ele sorriu de um jeito bonito.
— Prometo, Rafa. — Victor me puxou para
mais perto de si, fazendo-me quase sentar em seu
colo.
Seus braços quentes me abraçaram com
força, absorvendo toda a minha capacidade de
autocontrole. Eu já estava meio tonta quando ele
aproximou seu rosto do meu, pronto para me beijar.
Mas é claro que não pude prosseguir. Não podia
iludir Victor daquela maneira, meu objetivo maior
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era e sempre seria Leonardo. Como eu podia beijar


outro homem se meus lábios ainda sentiam o beijo
do Conselheiro e toda ardência que tinha causado
em meu corpo?
— Victor, eu não posso fazer isso. — Desviei
meu rosto e me desvencilhei de seus braços.
— Por quê? — Seu rosto criou uma ruga de
impaciência.
Fechei os olhos. Meu espírito trepidava de
tanto nervosismo. Precisava ser honesta pelo menos
uma vez na vida.
— Eu amo Leonardo. Sei que não tem
explicação, mas o amo mesmo assim. Não posso te
enganar. — Observei o chão sob minhas sapatilhas
cor de rosa.
Jamais usei aquela palavra para definir
qualquer coisa que estivesse sentindo. Nunca parei
para pensar no real significado do amor. Nunca
havia dito que amava alguém. Nem sequer cheguei
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a pensar que aquele tipo de sentimento poderia


acontecer com duas pessoas que praticamente
acabaram de se conhecer.
Victor, no entanto, não gostou muito do que
ouviu.
— Ele é uma farsa! Você nunca vai tê-lo.
Nunca! — Ele explodiu, de repente, deixando-me
assustada. Seus olhos se tornaram agressivos. —
Tudo que aquele idiota te disse é mentira! Você
nunca vai para o céu, Rafaela! Nunca, entendeu
bem? Aconteceu a mesma coisa comigo.
Esbugalhei os meus olhos, no auge da
surpresa.
— O quê?
— Leonardo foi designado para me ajudar,
assim como você — rosnou como um bicho
selvagem, inspirando verdadeiro ódio. — Ele só me
deixava mais confuso! Eu fazia tudo que me falava,
ainda assim, nada mudou. Depois de um tempo,
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descobri que Leonardo era um fingido. — O rosto


de Victor ficou todo vermelho, foi assustador. Uma
aura escura tomou conta de seu corpo. — Vi o
outro lado da moeda. Ninguém aqui é obrigado a
fazer as coisas que esses Conselheiros dizem. Eles
nunca sabem de nada!
Victor se levantou do banco em um salto.
Passou as mãos pelos seus cabelos claros e
escorridos. Para ser sincera, apesar de estar
espantada, não podia discordar dele. Até agora eu
só estive num poço imenso de confusão, que só
fazia piorar a cada minuto.
Leonardo tinha ido embora, por minha culpa,
eu sabia, mas poxa vida! Ele devia me guiar, não
devia? Por outro lado, Victor não era confiável,
embora fosse o único a responder todas as minhas
perguntas sem rodeios.
Meu cérebro girou, deixando-me zonza. As
dúvidas só aumentavam.
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— O que eu devo fazer, então? — perguntei,


decidida a saber qual o outro lado da moeda que
Victor estava se referindo, para que assim, quem
sabe, eu decidisse qual lado escolheria. — Eu só...
queria fazer as coisas certas.
— Rafaela, não se iluda! — Victor se virou,
oferecendo-me o que achei ser seu olhar mais cruel.
Andou de um lado para o outro. — Você não é do
tipo que faz as coisas certas. Você é como eu.
Somos mal-interpretados, vistos como errados.
Entenda que, não adianta o que faça, você é o que
é. Nunca vai ser como ele. O céu não te pertence.
Se não fez nada de bom em vida, por que acha que
mudaria agora que morreu?
— Mas... — Dei de ombros, sentindo-me
sufocada. Victor tinha razão. Nunca fui boa. Por
que seria agora? Tudo o que eu fazia era errado.
— Eles sempre nos fazem de idiotas! —
Victor apontou um dedo em riste. — Leonardo te
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fez de idiota, Rafaela. Você é patética para ele.


Abracei o meu próprio corpo, sentindo um
frio súbito. Victor estava com o olhar tão firme que
foi impossível duvidar dele. Eu só estava tentando
me enganar durante todo aquele tempo. Jamais
seria boa o suficiente para alguém como Leonardo.
O que eu sentia por ele não passava de um
sentimento ridículo.
— O que eu faço? — murmurei, vacilante.
Não enxergava nenhuma saída diante de mim. Não
havia lugar seguro, nem mesmo emoção segura.
— Primeiramente, pare de achar que deve
ajudar alguém. — Victor voltou a se sentar ao meu
lado. — Você não precisa disso. Ninguém precisa
ir para o céu. A diversão está aqui mesmo, na
Terra. — Abriu um sorriso meio bobo.
— Aqui? Não vejo nada divertido. Só vejo
lembranças e tristezas. — Engoli em seco para
conter as lágrimas que estavam me torturando,
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loucas para ganharem liberdade. Mas eu não lhes


daria esse gostinho.
— É porque você não conheceu as pessoas
certas.
— O que você diz não faz sentido. Qualquer
pessoa normal gostaria de ir ao céu — suspirei
pesadamente.
— Sabe o que eles fazem no céu? Nada que
preste! É lá que você quer passar o resto da vida
ajudando um monte de gente que você nem
conhece? — Balancei a cabeça em negativa. Eu
nunca fui boa em ajudar ninguém, afinal de contas.
— Aqui na Terra tem muitos lugares para conhecer
e poderes para utilizar. Você tem certos poderes, e
eu também. Juntos, poderemos ser muito felizes
aqui.
— Felizes? — Fiz uma careta.
— Mas é claro! Por que não? — Victor
mantinha um ar esperançoso.
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— Viver assim só o levará ao inferno —


afirmei com pouca convicção.
Se existia céu, era meio óbvio que existia
inferno também. Não acho muito justo certas
pessoas morrerem e ficarem na Terra pelo resto da
vida. Eu achava que a Terra era apenas um tipo de
purgatório, no qual tínhamos que provar se éramos
bons ou maus. Qualquer ameba com insuficiência
cerebral teria sacado aquilo. Victor parecia
simplesmente ignorar.
— Você está enganada. Eu não sou ruim. —
Victor me encarou, ofendido. — Apenas não sou
bom.
— Não é a mesma coisa? — Cruzei os braços
para frente. — Então me explique porque todos os
espíritos com aparência meio malvada utilizam
roupas escuras como as suas! — Apontei. Aquilo
era algo que me causava muita curiosidade, mas
Victor simplesmente gargalhou.
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— Chama-se roupa astral. Quando


morremos, alguém sem um pingo de noção de
moda nos fornece essas roupas. — Ele aprumou
suas vestes. — Os tais Conselheiros nunca ensinam
a modificá-las. Quem sabe modificar, prefere usar
tons mais escuros para mostrar que sabe. Não tem
nada a ver com demônios. — Revirou os olhos com
impaciência.
— E como muda? Posso trocar este vestido?
— Aquilo, sim, era uma revelação interessante. A
simples menção em me fazer trocar de roupa era
genial. Eu precisava daquelas informações.
— Eu poderia te dizer, mas não vou. —
Victor se ergueu e caminhou pela pracinha,
deixando-me para trás.
Fiquei surpresa por ele me ignorar depois de
ter me deixado arrasada. Meu coração estava
despedaçado, meu mundo foi jogado no lixo e ele
não teria a decência de me mostrar como troco de
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roupa? Era demais para mim. Não dava para ficar


mais na merda do que aquilo.
Corri até alcançá-lo. Puxei seu braço com
força, obrigando-o a parar.
— Sabia que é falta de educação deixar uma
dama falando sozinha?
Victor fez uma careta.
— Sabia que é falta de educação falar com as
pessoas por interesse? — retrucou.
— Do que está falando?
— Eu recebi o seu recado quando me abraçou
— Victor resmungou, irritadíssimo. — Você queria
ir para o céu para ficar com ele. Que tola!
— Desculpa... — Arfei, sentindo-me
cansada. — É só que estou me sentindo sozinha.
Você é o único fantasma que pode me ajudar.
— Chame o seu querido Leonardo. — Victor
tornou a andar, ainda muito ofendido. — Com
certeza ele sentirá peninha de você, é o que ele é
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pago para fazer.


Suas palavras me deixaram ainda mais
machucada.
— Leonardo não poderá me ajudar —
confessei com os olhos cheios de lágrimas. — Ele
não é mais o meu Conselheiro de Luz.
Victor estacou. Passou algum tempo virado
de costas para mim, até que resolveu girar na minha
direção. Seu rosto estava inexpressivo.
— Quer dizer que, agora, você é uma
desgarrada. Como eu.
— Não sou nenhuma desgarrada. Só que ele
não vai mais me ajudar, ponto final.
Encarei as reentrâncias da calçada em que
estávamos. Era vergonhoso dizer aquilo para
Victor. Mal sabia ele que a culpa de tudo era
minha. Como sempre. Afinal, eu nunca fazia nada
certo.
Victor se aproximou devagar, chegou tão
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perto que deu para sentir sua respiração


desnecessária batendo no meu rosto. Os olhos
verdes invadiram os meus sentidos sem pedir
licença. Não me afastei, mas tentei não olhar para
ele diretamente. O chão estava mais atrativo. Pelo
menos era o que eu tentava colocar na minha
cabeça.
— O que você quer é inalcançável. — Seu
tom de voz foi convicto. — É uma ilusão. Gente
como ele não se envolve com gente como você.
O que eu poderia dizer? Negar? Era a mais
pura verdade.
Continuei fitando o chão, percebendo o meu
rosto arder de tanta vergonha. Do modo como
Victor falava, amar Leonardo parecia a maior
besteira que alguém poderia fazer na vida. Senti-me
uma completa idiota. Esperei a partida de Victor
depois de sua declaração e do meu silêncio
consentido. Mas, para minha surpresa, ele apenas
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me abraçou. Nada pude fazer além de abraçá-lo de


volta e fazer muita força para não cair no choro
feito uma boba.
— Desde que te vi, senti algo diferente —
murmurou em meu ouvido, ainda me abraçando.
Sua voz mudou de timbre; aquela era doce, meio
rouca. — Senti que eu podia sair dessa situação.
— Que situação?
— É complicado demais, Rafa. Mas senti
algo que nunca havia sentido por ninguém em toda
a minha vida e em toda a minha morte.
Bem-vindo ao meu mundo.
— Victor, eu... — comecei a falar, mas fui
interrompida:
— Eu só queria uma chance, ok? Só uma
chance.
Ainda abraçados, ele tirou seus lábios de
perto do meu ouvido e virou o rosto perfeito para
observar o meu de frente. Estava tão próximo que
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eu mal consegui me mexer. Não sabia o que fazer e


muito menos o que falar. Sentia-me solitária,
extremamente carente, e pior, com o coração
partido. Seus olhos eram como duas piscinas em
um dia quente, era impossível não querer
mergulhar sem pensar duas vezes. Ele tomou meu
silêncio como um “sim” e encostou seus lábios nos
meus, bem de leve.
Confesso que eu não teria resistido aos seus
encantos se aquela gargalhada não tivesse eriçado
todos os pelos do meu corpo. Ao ouvir aquele som
sinistro vindo dos grandes arbustos da praça, Victor
me abraçou ainda mais forte, a fim de me proteger.
Achei sua atitude fantástica. Infelizmente, também
acabei me lembrando de Leonardo. Curiosa em
saber o que estava acontecendo, encontrei uma
brecha por entre os braços fortes de Victor e espiei
a figura enorme se aproximando de nós.
— Que bonitinhos os dois juntinhos! —
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Reconheci o mesmo grandalhão fedido que tinha


me atacado outro dia. Idiota. — Você é incansável,
garota. Em um dia está com um Conselheiro, no
outro com um desgarrado. — Riu de um jeito
horripilante.
— O que você quer comigo, seu imbecil? —
berrei logo, antes que Victor falasse qualquer coisa.
Ele apenas me abraçava forte e tentava me manter
longe do olhar do maníaco.
— Eu moro aqui, belezinha. É você que
insiste em invadir o meu espaço.
— Saia daqui, Fabrício! — Victor falou
rispidamente. — Já te falei que não precisa ficar
aqui só porque morreu aqui.
Fiquei impressionada por Victor conhecer o
maníaco da praça. Ergui o meu rosto e observei sua
expressão; era de impaciência e certa raiva. Não
pude deixar de perceber que, mesmo assim,
continuava lindo. Talvez até mais.
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— Está se dando bem hoje, Victor? —


Fabrício gargalhava enquanto falava com sua voz
áspera e desagradável. — Essa vadia tem muita
energia. Topo dividir com você esta noite. — O
grandalhão deu mais passos na nossa direção.
— Saia daqui! — Victor gritou e, no mesmo
instante, todas as luzes dos postes da praça
tremelicaram. — Nunca divido nada com ninguém.
A voz de Victor saiu completamente
irreconhecível, transmitindo um sentimento de ira
que congelou meus nervos. Fabrício pareceu ter
congelado tanto quanto eu, visto que a sua
expressão de maníaco se esvaiu. Ele ficou muito
sério e enfurecido.
— Quem você pensa que é, seu
desgarradozinho de merda? — Fabrício fechou seus
punhos a fim de dar um soco em Victor, porém ele
foi bem mais rápido e defendeu com uma de suas
mãos, que me largaram rapidamente, fazendo-me
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desequilibrar e quase cair de cara no chão. — Você


não é um Conselheiro, seu otário. Não pode me
impedir! — Fabrício tentou desferir mais golpes,
mas eles eram defendidos prontamente.
— Isso é o que veremos! — vociferou meu
mais novo protetor.
Aquilo tudo estava indo longe demais, e eu
não conseguia apenas observar a cena como mera
espectadora. Precisava fazer alguma coisa. Fabrício
tinha conseguido atingir o primeiro soco em Victor,
que caiu no chão bruscamente. No entanto, ele se
levantou depressa, de um jeito sobrenatural. Victor
conseguiu desferir um chute pesado no estômago
de Fabrício, que cambaleou para trás. Os dois
tinham uma agilidade impressionante e se
movimentavam com tanta rapidez que foi quase
impossível acompanhar os próximos golpes.
— Saia daqui, Rafaela! — Victor gritou em
algum momento, lembrando-se de que eu ainda
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estava assistindo à luta, atônita.


— Mas, e você? — gritei de volta.
Não podia simplesmente ajudar Victor a dar
um soco naquele cara enorme. Eu viraria
picadinhos, pois o machucado no rosto de Victor
parecia muito real. Não sabia se fantasmas
realmente se machucavam ou não, mas com a sorte
que eu tinha, não queria arriscar. Por outro lado,
deixá-lo sozinho era uma atitude muito covarde.
— Vá, agora! — Victor insistiu.
Sem saber direito para onde ir, fechei meus
olhos e imaginei o primeiro lugar que veio na
minha mente. Meu corpo foi desaparecendo aos
poucos e depois sumiu, mas não antes de conseguir
ver Fabrício voltando ao combate e Victor o
atacando com chutes. Desejei, com desespero, que
aquele maluco de olhos verdes se desse bem.

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Capítulo 16

A transformação

CARLA ESTAVA sentada de frente a penteadeira,


como de costume, exceto que empunhava o livro de
Biologia e parecia bem absorta com a atividade
para casa. Supus que se empenhava na matéria
apenas para fazer um bom trabalho junto com
Kevin, e não porque gostava mesmo de Biologia.
Bom, pelo menos era aquilo que eu faria.
Ela não pareceu nem um pouco assustada
com a minha materialização repentina.
— Nem pense que vou usar aquilo —
adiantou-se de um jeito entediado, ainda sem tirar
os olhos do livro. — É sério, Rafaela. Não vou usar
suas roupas.
Ah, claro!
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Eu sabia que seria difícil convencê-la. Sem


dúvida alguma, Carla preferia usar aquelas roupas
fúnebres em vez dos melhores looks da estação.
Muito típico dela esnobar o meu guarda-roupa. Só
que eu permaneceria irredutível. Não tive aquele
trabalho todo para morrer na praia no final.
Com certeza que não!
— Você não tem escolha. — Sentei-me na
beira de sua cama, que, inexplicavelmente, já
estava consertada e muito bem forrada. Foi então
que percebi que todo o quarto estava arrumado, e
os vestígios de destroços haviam desaparecido.
Alguém tinha deixado as coisas nos eixos
novamente.
— É claro que tenho escolha! — Carla ainda
não tinha se dignado a me olhar. — O corpo é meu,
uso o que quiser.
Encarei-a através do espelho, fazendo uma
expressão muito feia. Quase levantei meu dedo do
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meio para ela, mas me distrai conferindo o meu


visual. O vestido contrastava com meus cabelos
loiros, dando-me uma aparência meio Barbie.
Achei que eu estivesse pior do que aquilo, haja
vista as coisas que tinham acontecido em tão pouco
tempo.
— Não seja tão estúpida. — Percebi que a
minha caixa de maquiagens e a sacola de roupas
estavam no outro extremo da cama. — Sua vida
mudará drasticamente depois do banho que vou te
dar agora.
— Banho? — Ela finalmente olhou para
mim, mas com uma careta que indicava que eu
tinha perdido todo o juízo.
Seus cabelos estavam para trás de um jeito
raro, e as marcas de pancadas em seus olhos já
estavam muito mais suavizadas. Não pude deixar
de perceber que Carla era uma garota muito bonita.
Os olhos grandes e escuros eram encantadores,
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contrastavam com a boca pequena e levemente


rosada. Parecia uma boneca de porcelana, pois era
muito branca e tinha uma beleza meio infantil. A
ausência do cabelo sobre o rosto havia deixado toda
sua feminilidade à mostra. Meu trabalho em fazê-la
ficar bonita não seria tão difícil, afinal. Ela já era
muito linda, e eu tive certeza de que Kevin
percebeu antes de todo mundo.
— Banho de loja, claro — continuei
firmemente. — É o que você precisa urgentemente.
Estou aqui para te ajudar com o que precisa.
A careta dela ficou ainda mais expressiva.
— Eu não preciso de nada disso —
resmungou, depois sorriu sarcasticamente. — Só
você para achar que trocar de roupa vai resolver os
meus problemas. Essa é a minha vida, Rafaela. Não
sou a gata borralheira, que encontra uma fada
madrinha para lhe dar um vestido para o baile. —
Não sei direito o que me fez dar um muxoxo, talvez
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porque, de repente, concordei com ela. — Além do


mais, você não pode me obrigar.
— Só me deixe tentar. — Fitei o chão como
se nele houvesse alguma coisa interessante. — Não
foi nada fácil fazer isso.
Peguei a grande caixa e comecei a retirar
algumas roupas de dentro dela, usando todo o poder
de minha mente para movimentá-las. Eram
vestimentas muito caras e novinhas em folha,
algumas ainda estavam com a etiqueta da loja.
— Por que resolveu me dar suas roupas? Elas
devem significar alguma coisa para uma garota
como você.
Parei o que estava fazendo. Nossos olhares se
cruzaram. Carla, apesar de tudo, estava muito
curiosa.
— Não sei se percebeu, mas eu morri. Não
posso ficar com elas.
Localizei uma tesoura entre alguns acessórios
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de costura e trabalhei em retirar as etiquetas,


ignorando o olhar de Carla sobre mim. Eu não
podia desistir, aquelas roupas pertenciam a ela
agora. Ficariam perfeitas em seu corpo. Repeti
várias vezes aquela ideia em minha cabeça,
tentando buscar forças para fazê-la entender que eu
tinha que ajudá-la de todo jeito. Minha alma
dependia daquilo.
Agora que estava longe de Victor, percebia
que, talvez, ele estivesse enganado. Poderia haver
uma chance para mim. Eu não podia desistir no
meio do caminho, só porque alguém me disse que
era impossível. Talvez ele achasse aquilo porque
não tinha conseguido alcançar seus objetivos, mas
não significava que ninguém mais seria capaz de
alcançá-los. Minha prima Cibele deixara um recado
importante e a lógica seria segui-lo, por menos que
eu soubesse direito como fazer isso.
— Está pronta para mudar o visual? —
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perguntei com animação forçada. Sinceramente, eu


estava triste. Só não estava a fim de deixar
transparecer.
Peguei a mesma tesoura que usei para cortar
as etiquetas e me levantei da cama, seguindo em
direção à Carla. O seu cabelo comprido estava
escorrido e preenchendo totalmente suas costas,
chamando-me atenção.
— O que vai fazer com essa tesoura? —
Carla se levantou da cadeira em um salto.
Espalmou as duas mãos para frente. —
Enlouqueceu?
— Olhe para si mesma. Seu cabelo é lindo,
mas é muito comprido. Ele não te valoriza — falei
como se fosse uma expert no assunto. De fato, eu
era, depois de ter lido tantas revistas de moda e
celebridades. — Vou dar um jeito nele. Não se
preocupe, eu mesma cortava os cabelos das minhas
bonecas, e elas ficavam maravilhosas!
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— De jeito nenhum! Nem pensar! —


Gesticulou como se eu estivesse lhe apontando uma
arma. — Você sabe quantos anos foram necessários
para deixá-lo desse tamanho?
— É sério! Você pode se parecer com a
Samara pelo resto da vida e ser humilhada pelas
pessoas ou... pode me dar um voto de confiança. A
escolha é sua. Afinal, você quer ou não quer
conquistar Kevin? — Encarei-a seriamente,
sabendo que havia tocado em sua ferida. Eu estava
certa de que cederia se eu utilizasse este argumento,
por isso continuei: — Vai ser muito mais fácil desta
forma, Carla. Confie em mim, estou aqui para te
ajudar e não para te deixar pior.
Devagar, ela se sentou de volta na cadeira.
Sua expressão era de espanto e incredulidade, mas
senti que havia vencido aquela batalha. Tudo bem,
não tinha sido tão complicado assim. Eu me
aproximei por trás dela. Seus olhos grandes
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observavam o próprio reflexo de um jeito


assustado.
— Não vou cortar muito, não se preocupe.
Manterei o tamanho. — Peguei algumas mexas e as
estudei minuciosamente. Carla tinha um cabelo
extremamente liso, volumoso e brilhoso. Tive um
pouco de inveja até. — Vamos apenas dar vida a
ele.
— Espero que saiba o que está fazendo.
Eu também espero.
— Claro que sei o que estou fazendo.
Fiquei muito feliz por ter confiado em mim a
ponto de me deixar cortar seus cabelos. Só as
mulheres sabem o quanto isso significa. Comecei a
cortá-los com tranquilidade e muita concentração.
Todas as técnicas que eu havia aprendido quando
era viva foi utilizada naquele momento, como se
tudo que eu tivesse lido e visto em algum programa
fosse uma preparação para aquele instante crucial.
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Eu sabia que não podia falhar com Carla, pois


significaria a confiança que ela poderia depositar
em mim para resolvermos toda a situação em que
se encontrava.
Depois de longos minutos, quando terminei
de cortar a última madeixa, peguei rapidamente o
secador e modelei algumas camadas que eu tinha
construído, formando curvas que antes não existiam
em seu corte outrora reto. O rosto de Carla tomou
forma. Uma franja grande foi o acabamento para
impedir que seu cabelo voltasse ao estilo “O
Chamado”.
Assim que desliguei o secador na tomada,
Carla pareceu satisfeita com o resultado. Seus
cabelos agora traduziam bom gosto, sensualidade e
feminilidade. Além de ter ganhado novas curvas,
mantendo um bom comprimento, a franja tinha
ficado perfeita. Eles agora não eram tão longos
como antes, mas ainda chegavam a mais da metade
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de suas costas, o suficiente para que ela não


estranhasse a diferença.
— Ficou... maravilhoso! — Carla estava
surpresa e muito animada. Olhou para o espelho em
diversos ângulos, como que procurando algum
eventual defeito ou simplesmente exibindo sua
beleza em vários perfis. — Você é boa nisso. Eu...
eu gostei de verdade.
Antes que eu pudesse esboçar qualquer
reação, escutamos batidas na porta do quarto. Uma
voz masculina chamou o nome de Carla. Meu
coração gelou e meu estômago revirou, embora
Carla tivesse permanecido tranquila e alegre.
— Entre! — alertou, ainda animada. Tudo
bem, sua reação me assustou. Como se mantinha
tão sorridente se provavelmente quem estava do
outro lado da porta era seu grande carrasco, o pai
covarde que não media esforços para maltratá-la?
A porta se abriu e reconheci o homem bêbado
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do outro dia. O pai de Carla. No entanto, ele estava


bem diferente daquela vez. Trajava roupas formais,
como se tivesse acabado de chegar do trabalho, e
segurava uma pasta que parecia importante.
Exalava um cheiro agradável de perfume e me
pareceu muito menos nojento do que quando o vi
pela última vez. Na verdade, ele não estava nadinha
nojento, apenas com uma expressão de
preocupação estampada no rosto. De fato, parecia
outro homem.
— Boa noite, filha. Cheguei... — ele foi
falando, mas parou assim que percebeu a mudança
no visual de Carla. — Uau! Você está linda!
Aproximou-se timidamente. Tocou em uma
das mexas com bastante cuidado, como se qualquer
movimento brusco fosse fatal. Ele não parecia
acostumado a chegar muito perto da filha, dava
para notar pelo excesso de timidez. Visivelmente
temia a reação dela a cada gesto que realizava.
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— Está encantadora, querida. Você que fez


isso?
— Foi uma amiga minha. — Carla sorriu
abertamente.
Alguma coisa dentro do meu peito se sentiu
muito emocionada. Disfarcei as lágrimas que
deixaram meus olhos marejados.
— E você, se sente bem hoje? — o homem
perguntou, modificando o semblante de animado
para muito preocupado.
— Sim, papai. Hoje, estou bem. — Carla
encarou o chão, e suas bochechas coraram.
— Que bom. Isso é ótimo. — O homem
pareceu mais relaxado. Soltou um longo e pesado
suspiro. — Bom, se tiver qualquer problema,
estarei no meu quarto. A propósito, comprei
algumas coisas novas para a sala. Espero que
fiquem por lá.
Carla deu um nó nos próprios dedos. Estava
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muito envergonhada.
— Tudo bem, pai.
— Trouxe o seu jantar. É pizza, sei que você
gosta. — Ele seguiu até a porta. — Você ainda não
comeu, certo?
— Ainda não, vou daqui a pouco.
Ouvi mais um suspiro partindo dele.
— Tudo bem, não se esqueça de comer. —
Parecia realmente preocupado com a integridade
física dela. — Eu te amo, filha.
Carla não o respondeu. A porta finalmente se
fechou, e eu estava completamente de queixo caído
com o que tinha acabado de presenciar. O pai de
Carla não parecia, de forma alguma, uma pessoa
cruel que batia na filha e a humilhava. O que estava
acontecendo, afinal de contas?
— Você deve ter perguntas a fazer. — Carla
se virou na minha direção. Encarou-me de um jeito
decidido. — Mas prefiro não tocar neste assunto.
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Não hoje. Prefiro apenas continuar com o que


estávamos fazendo.
Refleti por alguns instantes.
— Tudo... bem — eu disse, finalmente, mas
observei a porta fechada.
— Tem uma coisa importante que você
precisa saber. — Ela se virou novamente para o
espelho e continuou a admirar o novo penteado. —
Kevin me convidou para uma festa neste final de
semana.
— Como é que é?
Kevin convidando Carla para ir a festas?
Impossível!
— Será na casa de Pedro, aquele amigo de
vocês. A escola inteira vai. — Ela deu de ombros,
parecendo confusa. — Ainda não aceitei ou recusei.
Não sei se vai dar certo. — Balançou a cabeça em
negativa. — Se contarmos com minha sorte, será
um desastre.
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Eu tinha esquecido completamente da festa


na casa de Pedro. Daniele e eu fomos convidadas
na sexta passada. Só que eu morri no sábado e...
— Não sei que dia é hoje. Eu me lembrava
dessa festa — murmurei mais para mim mesma do
que para Carla.
— Hoje é quinta-feira, dia 12. Significa que
tenho apenas amanhã para dar a resposta a Kevin.
— Carla parecia desesperada. — E eu não faço
ideia do que responder!
Eu morri há apenas cinco dias?
— Mas é claro que você vai! — gritei.
Finalmente uma boa notícia naquele dia
conturbado. — Tenho roupas incríveis aqui, tenho
tudo de que precisa! — Revirei a sacola de roupas.
— Amanhã você vai confirmar sua presença, isso é
uma ordem!
— Tem um problema, Rafaela.
— Que problema? — Apoiei as mãos na
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cintura.
— Daniele. — Carla me olhou com
seriedade, no mesmo instante em que nossos
estômagos se reviraram de angústia e nojo,
simultaneamente.
Mesmo consciente de que Daniele poderia ser
um grande empecilho em nossas vidas, tentei
convencer Carla a aceitar a proposta irrecusável de
Kevin. Seria perfeito se os dois ficassem juntos.
Sentia que aquela união era algo que eu devia
incentivar, mesmo que me causasse certo ciúme
com relação ao meu ex-namorado. Tudo ainda
soava extremamente esquisito.
No entanto, meu orgulho deveria ser
engolido, afinal, eu já tinha morrido mesmo e fiz o
favor de terminar o relacionamento antes da
tragédia. Kevin não tinha porque se sentir mal por
minha causa. Além do mais, eu amava Leonardo.
Pelo menos aquele era o nome mais provável para o
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sentimento doloroso que fazia o meu corpo inteiro


pegar fogo. Pensar nele, mesmo que por um
segundo, fez meu estômago revirar mais uma vez.
Depois de separar uma roupa para Carla usar
no dia seguinte, e convencê-la, de diversas formas,
a usá-la e a aceitar o convite de Kevin, fui obrigada
a ir embora de sua casa, a fim de permitir que
descansasse um pouco.
Não soube para onde ir. Meu quarto já não
me apetecia mais, e eu definitivamente não queria
conferir o que Victor estava aprontando. Também
não era idiota a ponto de vagar pelas ruas à noite,
pois só Deus sabia que tipo de fantasma me
aguardaria entre uma esquina e outra. Minha sorte
com aquele tipo de encontro não era lá muito boa, e
eu não queria alimentar o meu azar.
De súbito, lembrei-me de um lugar
aconchegante, que poderia ser meu mais novo
ponto de descanso. O único problema era que eu
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não sabia se estava preparada para estar ali sem


sentir uma dor lancinante. Amargura e solidão eram
as últimas coisas que eu estava a fim de sentir,
porém me vi sem escolhas.
Mesmo assim, no fundo do meu coração,
havia um pingo de esperança em ter pelo menos um
momento, nem que seja de puro silêncio, com
aquele que eu estava evitando ao máximo não
pensar. Foi assim que imaginei o quarto em
tonalidades azul, que mantinha o cheiro
insuportavelmente sufocante que eu fingia com
todas as minhas forças que não estava sentindo
falta.
Imediatamente, observei a cama dele
organizada, seus móveis bem arquitetados, limpos e
em perfeito estado. O quarto de Leonardo. Um
lugar tranquilo, que me trazia um sentimento de paz
muito próximo ao que a sua presença me fornecia.
Desejei, com todas as minhas forças, que o
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momento do beijo voltasse para que eu pudesse


fazer exatamente a mesma coisa que tinha feito.
Arrependimento era algo que não me atingia em
relação ao que aconteceu.
Passei horas deitada em sua cama, olhando
para o teto e tentando não pensar nele. O
Conselheiro foi muito claro, avisou que não poderia
me ajudar a partir do momento em que eu me
“distraísse”. Como se o fato de sumir não me
tornasse uma pessoa altamente distraída. Contudo,
confesso que, naquele instante, eu não me permitia
pensar nele em detalhes. As lembranças vinham em
flashes dolorosos, e eu apenas os bloqueava
incessantemente. Devo acrescentar que isso
provocava uma dor fora do comum.
De qualquer forma, fiquei tanto tempo
olhando para o teto, e observando cada pedacinho
daquele quarto com tamanha concentração, que vi o
dia amanhecer e ir embora, como se as horas não
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importassem de verdade. Nenhum tempo do mundo


importava quando eu sabia que Leonardo não
apareceria em um segundo sequer.
Entrei em um estado que era meio transe e
meio choque. Minha mente funcionava tanto, e tão
pouco, que não sei se utilizei aquele período para
descansar ou para pensar. Só sei que, quando
menos esperei, o relógio de cabeceira de Leonardo
estava marcando sete horas da noite. Significava
que eu tinha passado cerca de vinte horas sem
esboçar reação alguma.
Que tipo de existência era aquela?
Quando dei por mim, lembrei-me de que
havia deixado Carla completamente na mão o dia
inteiro. Também me esqueci de conferir como
Victor estava. A fim de recuperar o enorme tempo
perdido sem fazer absolutamente nada,
materializei-me na casa de Carla e fiquei
aterrorizada com o que vi.
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Tudo tinha mudado de novo


O quarto estava uma verdadeira bagunça. Os
objetos jaziam no chão, revirados: os móveis, os
lençóis novos, tudo. Parecia que um furacão passou
ali dentro. Carla estava chorando, sentada no piso,
com os braços envoltos em suas pernas flexionadas.
Era bem similar à primeira vez que eu a vi depois
que morri.
— Meu Deus, Carla! — Eu me ajoelhei na
sua frente, já muito preocupada. — O que
aconteceu? Tudo estava em perfeita ordem ontem!
— Não adianta de nada! — Carla berrou,
levantando a cabeça e me encarando com seus
olhos chorosos, que ganharam novos machucados
por cima dos anteriores.
Levei as duas mãos à boca.
— Vamos à delegacia, AGORA! — gritei
também, sentindo minha garganta se fechar
completamente, indicando que as lágrimas viriam
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logo.
Carla, no entanto, me empurrou para longe.
Fiquei impressionada porque ela podia me tocar.
Eu achava, durante todo aquele tempo, que só eu
poderia fazê-lo, nunca o contrário.
— Saia daqui, Rafaela! Seus esforços não
adiantam. Nada vai adiantar, eu sou uma
amaldiçoada! Minha vida não vai mudar! Nasci
para ser exatamente o mesmo lixo que sou — Carla
berrou dolorosamente, deixando-me tonta com suas
palavras e com aquele sentimento horrível que
perfurava o meu peito. Aquilo vinha dela.
— O que aconteceu? Por que você nunca me
diz? — Eu estava completamente desesperada. Via
meu objetivo descer por água abaixo de um dia
para o outro, como se tudo fosse programado para
dar errado desde o princípio. — Foi Daniele? Foi
Kevin? Quem fez isso contigo?
— Não... Eu... — Carla entrou em estado de
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choque. As lágrimas escorriam pelo seu rosto


rapidamente, molhando a blusa preta.
De súbito, a porta do quarto se abriu e o pai
de Carla entrou nervosamente. Sua expressão ao
vê-la encolhida no canto da parede foi assustadora.
A tristeza nos olhos daquele homem era quase
contagiosa.
— Carla... Não! — Ele se aproximou
cautelosamente. Fiquei em silêncio, tentando
limpar minhas lágrimas e observando o que o
homem faria. Estava claro que ele não era o
agressor. — Você fez de novo, filha, pelo amor de
Deus! O que você tem? O que dá na sua cabeça
para se machucar assim? — Ele a abraçou com
força.
— Sai daqui, pai — Carla falou rispidamente,
desvencilhando-se de seus braços.
— Vou ligar para sua psicóloga, agora!
— Não vai, não! — Carla gritou, histérica. —
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Chame aquela idiota e irei embora dessa casa assim


que você sair para trabalhar!
— Não sei o que fazer contigo! — o homem
berrou de volta. Seu rosto ficou tão vermelho que
uma veia estava quase pulando da testa. Continuei
observando a cena, meu corpo tremendo de pavor e
desespero.
Nada fazia muito sentido.
— Apenas saia daqui! Saia, por favor! —
Carla se levantou e foi até o banheiro, trancando a
porta com força desnecessária.
O pai dela ainda estava obviamente nervoso e
quase caindo no descontrole emocional. Dava para
perceber que mal conseguia respirar, pelo barulho
que o ar fazia quando entrava e saia de suas
narinas. Ele refletiu um pouco, encarando a porta
do banheiro. Depois de alguns instantes, saiu do
quarto, dando passadas pesadas pelo corredor.
Curiosa com o que aquele homem infeliz
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faria, deixei Carla sozinha e acompanhei os passos


dele. Caminhou apressadamente para a cozinha e
abriu um dos armários com ar de loucura. Procurou
desesperadamente por alguma coisa. Observei que
o restante da casa estava em ordem, o que
significava que apenas o quarto de Carla tinha sido
atingido pelo caos completo.
Menos mal.
Eu estava começando a sentir muita pena
daquele pai desesperado quando ele finalmente
achou o que procurava: uma garrafa de vodca,
escondida metodicamente atrás de todos os cereais
do armário. O homem abriu a tampa como se sua
vida dependesse daquilo e demorou tanto no gole
que pensei que tomaria a garrafa inteira com apenas
um. Depois daquilo, saiu meio cambaleante pela
casa, despindo-se de sua camisa social de trabalho,
mostrando a barriga redonda e peluda. Deitou-se no
sofá como se fosse um saco de batatas sendo
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jogado sem pudor algum, ainda segurando a garrafa


de bebida. Após mais um gole imenso, pôs-se a
chorar silenciosamente.
A pena que senti foi tão grande que não pude
deixar de me aproximar dele. Eu sentia algo que
não costumava sentir por ninguém: compaixão.
Vontade de ajudar. Vontade de fazer alguma coisa
para que não ficasse tão desconsolado. Quando
cheguei perto do sofá, algo me chamou a atenção
bem ao lado, em uma das mesinhas de apoio da sala
de estar. Era um porta-retrato ornamentado em
prata, onde se via o pai de Carla bem mais magro e
com muito mais cabelo do que agora. Ele estava
abraçado a uma mulher muito bonita, com cabelos
negros e compridos, parecidos com os de Carla. Ela
estava segurando uma menina que, na foto, não
tinha mais que dois anos de idade.
A mãe de Carla era realmente encantadora.
Eu ouvi falar na escola que ela tinha morrido de
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câncer quando Carla ainda era muito pequena. Pelo


sorriso que aquele homem esboçava na foto, com
certeza devia amá-la muito. Ficou claro, para mim,
que ele jamais teria coragem de bater nela. Era um
homem desesperado que tentou criar uma filha
sozinho. Essa filha tinha crescido extremamente
problemática e sofria de todas as espécies de
humilhação sem que pudesse fazer nada.
Sinceramente, eu acreditava que ele jamais
chegara a compreender nem metade dos problemas
dela. Talvez se culparia eternamente pelo
descontrole da filha, principalmente por causa da
perda precoce da mãe, ou talvez por ele não ter
acertado em sua educação, sem saber como
incentivar direito uma adolescente. Ele se culpava
por tudo, estava estampado em sua testa, e eu podia
ver claramente.
O pai de Carla ainda chorava, entre soluços e
vodca. Aproximei-me ainda mais, e daquela vez
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não senti pena. O sentimento era bem diferente.


Resumia-se a uma vontade sincera e absurda de
consolá-lo, de fazê-lo entender que a culpa de tudo
aquilo não era dele, e sim minha. Fui eu que
maltratei Carla, fui eu que pus toda escola contra
ela, fui eu que fiz com que crescesse sozinha, sem
amizades, cheia de problemas emocionais que
poderiam ser incuráveis àquela altura do
campeonato.
A culpa de tudo era total e absolutamente
minha. Eu via com clareza que não apenas estava
estragando a vida de Carla, mas também da única
família que ela tinha. Do único homem que poderia
ajudá-la, mas que ela fazia questão de afastar de si,
bem como o restante das pessoas.
Senti-me uma garota desprezível. Naquele
instante, tive plena consciência da minha maldade,
dos meus modos cruéis e egoístas. Leonardo estava
enganado ao meu respeito. Eu era uma pessoa
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muito ruim. Estava pensando em mim mesma o


tempo todo, sem levar em consideração a
quantidade de pessoas que sofriam com minhas
atitudes. Não pude evitar chorar, sentindo um
extremo desgosto pela minha própria existência.
Como se soubesse exatamente o que fazer,
estiquei minhas mãos e toquei de leve na testa do
homem, desejando que ficasse bem e buscasse
ajuda para superar aquele sofrimento.
Imediatamente, ele parou, sem entender direito o
que estava acontecendo. Uma fonte luminosa de
energia saia de minhas mãos e entravam em sua
mente. De súbito, o homem pareceu mais relaxado
e tranquilo, como se aquela luz tivesse servido de
carga para o seu corpo.
Retirei minhas mãos, meio assustada e meio
feliz por ter cumprido um papel importante na
melhora daquele pai sofredor. Acabara de ajudar
alguém. Aquilo era bom. Eu me sentia ótima, tão
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bem quanto me senti quando consegui me


comunicar com Kevin no dia anterior.
O homem se levantou do sofá e caminhou até
a cozinha novamente. Com o semblante mais
calmo, despejou todo o conteúdo da vodca no ralo
da pia e só terminou quando cada gota foi levada
pelo esgoto. Não pude conter um sorriso. O fato de
ele não querer beber mais já era uma ajuda e tanto.
Após jogar a garrafa na lixeira mais próxima, o
homem se virou em direção à sala e pegou o
telefone, digitando um número com bastante
cuidado para não errar. Depois de um tempo
esperando quem quer que fosse a pessoa que
atenderia a ligação, ele finalmente falou:
— Aconteceu de novo.
Enquanto o homem conversava com a pessoa
sobre o ocorrido com Carla, não pude deixar de me
perguntar:
Se não era o pai que fazia aquilo com ela,
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quem era?
Eu tinha que descobrir com urgência.

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Capítulo 17

O Flagra

Voltei para o quarto de Carla me sentindo


alimentada com novas energias. Um sentimento
bem mais positivo circulava pelo meu espírito,
junto com a esperança renovada de que tudo daria
certo. Uma boa parte de mim acreditava que Carla
estava um pouco melhor, como que influenciada
pelo novo rumo de otimismo que sua casa tinha
tomando. Ela tentava arrumar de volta os objetos
que tinham caído no chão quando entrei. A dor era
muito mais suportável.
— Acho que a gente precisa conversar —
falei seriamente, cruzando os braços para frente. —
Não pode continuar me escondendo informações
importantes.
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— Não tenho nada para conversar contigo.


— Continuou arrumando o quarto como se nada no
mundo a perturbasse.
— É claro que tem. — Comecei a ajudá-la.
Tinha muita coisa espalhada. — O que tenho que
fazer para convencê-la de que não sou mais a
mesma pessoa que queria o seu mal?
— Não sei, Rafaela. Quem sabe nascer de
novo, em outra vida. Talvez assim eu acredite na
sua mudança. — Não era má ideia, na verdade.
Mas para ter outra vida, ou seja lá o que estivesse
me esperando, eu precisava terminar o que tinha
que ter feito naquela. Por outro lado, passar de
novo por todos os anos letivos não era muito
reconfortante. Ninguém merecia ter que aprender
química do zero de novo. Carla largou um sapato
velho de lado e me olhou fixamente. — Você só
está me ajudando porque certamente vê alguma
vantagem nisso.
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Prendi os lábios, sentindo-me culpada mais


uma vez. Não fui capaz de negar.
— Não sou santa, mas estou tentando.
— Estou vendo. — Fez uma careta e voltou
a colocar pedaços de madeira dentro de um saco de
lixo. — Suas tentativas me irritam.
— Escute, Carla. Que tal começar me
dizendo o que aconteceu hoje, na escola? — O
quarto dela começava a tomar forma novamente,
depois da nossa arrumação paliativa.
— Aceitei a proposta de Kevin e fui toda
arrumada, como você sugeriu. As pessoas ficaram
me olhando o tempo todo. Inexplicavelmente,
ninguém caçoou de mim. — Carla pareceu animada
ao se lembrar daquele detalhe. Não pude conter um
sorriso. As coisas tinham funcionado como
imaginei. — Kevin pareceu feliz quando eu disse
que aceitava ir à festa.
— Isso é ótimo! — Meu sorriso se
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intensificou e tive vontade de abraçar Carla, mas


me contive. Ela com certeza me rejeitaria.
— Tive um momento muito curto de
felicidade, depois Daniele apareceu e me ameaçou
de novo. — Carla fechou a cara, de repente. — Ela
disse que Kevin só estava querendo me usar, que
ainda te amava. Que ele sabia que eu havia te
ameaçado um dia antes de você morrer. Falou, ou
melhor, gritou que Kevin estava brincando comigo
para me humilhar na frente dos amigos. — Senti o
exato momento em que seu coração começou a
bater em descompasso.
Aquele era um tipo de dor que Carla não
suportaria.
— E-Eu não acredito nisso. — Deixei meu
corpo cair sentado no chão. — Daniele está
mentindo. Kevin não é assim. Eu sei quando ele
está mentindo. Vi o jeito como te olhou, Carla.
Havia... emoção.
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A ideia de Kevin articular um plano tão


cruel era aterrorizante. Pelo que eu conhecia dele,
jamais seria capaz de fazer mal a ninguém, muito
menos de uma forma tão doentia. Meu ex estava
triste, aquilo ninguém podia negar, mas eu conhecia
muito bem seu olhar sincero. Seus olhos brilhavam
quando estava com Carla, mesmo que meu orgulho
ficasse ferido em admitir aquilo.
— Seja como for, não estou muito a fim de
arriscar. — Carla sentou na cama, segurando uma
de suas almofadas, depois de termos arrumado a
maior parte das coisas. — Não vou à festa.
— Você vai, sim. — Ela não podia desistir
agora que tinha chegado tão longe. — É sério, essa
pode ser sua única chance. As aulas do terceiro ano
acabarão em uma semana! Cada um vai viver sua
vida separadamente, talvez você nunca mais veja
Kevin de novo.
— Eu não posso fazer isso. — Carla deitou
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de vez, parecendo exausta. — Não vou pôr mais


maquiagem no meu rosto de novo, e com certeza
não vou estar com isso curado até amanhã.
Ela tocou suavemente na mancha roxa em
volta dos olhos. Fez uma careta que misturava dor e
tristeza. Devia estar doendo muito, em todos os
sentidos.
— Quem fez isso? — decidi perguntar mais
uma vez. Carla olhou para o chão, envergonhada.
Ela tinha que me dizer de uma vez por todas o que
estava acontecendo. — Não posso acreditar que
você mesma se machuca, como consegue?
— Claro que não faço isso, não sou tão
idiota assim! — Ela olhou para mim como se eu
tivesse ficado louca, e continuou, fazendo careta:
— Você é igual ao papai.
— Não mesmo.
— Os dois pensam que eu sou louca.
Bom, eu não pensava. Sempre tive certeza.
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Mas não podia dizer aquilo em voz alta em um


momento como aqueles.
— Então, quem é que faz isso?
— Não é da sua conta — respondeu entre
dentes.
Eu me aproximei depressa, quase deitando
em cima dela, e segurei seu braço com firmeza. Ela
tinha que me contar quem fazia aquele desastre. Era
muito importante que eu soubesse, pois só assim
poderia ajudá-la, já que, obviamente, ser maltratada
constantemente a impedia de seguir com o restante
dos outros âmbitos de sua vida. Não dava para ser
feliz sendo agredida.
— Você vai me contar, Carla. Se não me
disser, descobrirei mais cedo ou mais tarde.
Ela me encarou de um jeito ameaçador.
— Então, tente. — Desvencilhou-se das
minhas mãos.
— Tomarei minhas próprias providências
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assim que descobrir. — Eu me levantei da cama e


andei de um lado para o outro pelo quarto. — E
você vai ter que aceitar.
— Não ligo.
Carla tentava a todo custo evitar aquele
assunto complicado, e tinha conseguido me deixar
com tanta raiva que fiquei absolutamente farta de
ouvi-la negar a si mesma. Eu não sabia se era
vergonha ou burrice de sua parte, a única coisa que
pude concluir naquele momento foi o fato de que
ela, com toda certeza, era uma medrosa. Carla tinha
muito medo de abrir o jogo, seu olhar não negava.
Contudo, eu me sentia exausta com as suas
besteiras.
Sem sequer me despedir, desmaterializei-
me e fui atrás da segunda coisa que tinha que
resolver naquele dia. Precisava saber se Victor
estava bem. Quero dizer, na noite anterior ele
estava aos murros e pontapés com um cara que era
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praticamente o dobro do tamanho dele.


Pensar em Victor não era tão difícil assim,
pois a lembrança de seus olhos marcantes
costumava ser o suficiente para me fazer lembrar
de todo o resto. Difícil mesmo foi acreditar no
lugar em que estava quando me materializei perto
dele. Apesar de ter ficado feliz por não estar no
casebre imundo e fedido, não deixei de achar
esquisito vê-lo na minha casa. Quero dizer, não
dentro da minha casa, mas sentado no meu jardim,
pensando na morte da bezerra. Ele se encontrava
tão concentrado em olhar para o nada que não se
deu conta de que eu estava exatamente ali,
observando-o.
Foi até engraçado pensar que há apenas dois
dias eu estava ao lado de Leonardo naquele mesmo
jardim, em um dos momentos mais emocionantes
da minha vida. Ou melhor, da minha morte. As
lembranças daquele instante vieram como uma
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onda dentro do meu peito, arrastando todas as


defesas que eu estava tentando montar para não me
lembrar dos detalhes dolorosos. Por isso, foi
totalmente sem querer quando me recordei do
hálito doce de Leonardo, da sua boca perfeita
contornando meus lábios, da língua deliciosa e
excitante, a pele quente se encostando à minha...
Não. Eu não podia pensar nele. Imediatamente
reconstruí a minha própria fortaleza, que escondia
os pensamentos em um lugar bem profundo.
Victor estava sentado na grama verde,
observando as estrelas que brilhavam no céu, junto
com a lua. A luz do jardim estava acesa, porém ela
só iluminava o ambiente parcialmente, criando
sombras entre os arbustos e as plantas.
Foi só depois que percebi o quanto eu não
fazia ideia de que Victor era um ser capaz de
observar o céu daquele jeito tão concentrado.
Desde que o conheci, o que não fazia muito tempo,
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por sinal, sempre achei que fosse do tipo superficial


e brutamontes, mais preocupado com o próprio
corpo do que com as coisas ao seu redor.
Observá-lo daquele modo, de certa forma,
me fez ter uma visão diferente de Victor, por isso
apenas permaneci quieta, admirando sua beleza
implacável e tentando não chamar atenção. Pelo
menos foi o que tentei fazer até que pisei em um
graveto. O ruído estalante não demorou nada a nos
assustar, visto que, no silêncio reinante em que o
jardim se encontrava, pareceu mesmo que tinha
caído um meteoro na face da Terra.
Victor se virou imediatamente, já em alerta,
a tempo de conseguir me ver de pé, com cara de
idiota.
— Rafaela? — Acho que, de novo, ele não
acreditou muito que eu estava ali de verdade. — O
que faz aqui?
— Na verdade, eu moro aqui. —
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Aproximei-me e sentei ao seu lado, com cautela. —


O que você faz aqui?
— Estou apenas observando. E pensando.
— Ele continuou olhando para o céu de um modo
meio...
Apaixonado?
Engoli em seco.
— Ah... — Claro que fiquei supercuriosa
para saber o que se passava na cabeça dele, mas
decidi não ser intrometida pelo menos uma vez na
vida. Nada perguntei.
Até porque eu tinha medo da resposta.
Seu olhar estava um tanto diferente naquela
noite. O ar de mistério era ainda maior do que o
normal. Além de tudo, Victor suspirava o tempo
todo. Eram suspiros curtos, mas, mesmo assim, me
faziam querer invadir sua mente e arrancar seus
pensamentos à força.
— Como andam as coisas? — Ele quebrou
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o silêncio constrangedor que se formou entre nós.


— Não sei. Acho que... tomando rumos que
não deveriam. Eu tenho me esforçado, mas acho
que não vou conseguir fazer o que tenho que fazer.
É complicado demais! — Victor desviou o rosto do
céu e me encarou com seus olhos penetrantes. —
Parece que tudo que faço acaba dando errado.
— Eu sei. É sempre assim. Cansei de te
avisar e você nunca me escutar.
Observei a lua. Admitir que Victor estava
certo era o mesmo que admitir que eu jamais veria
Leonardo de novo. E, bem, não dava para acreditar
naquilo. Era demais para que os meus sentidos
suportassem. A saudade que eu sentia dele, sem
dúvida, era a maior que já pude sentir um dia.
— Eu não vou desistir — murmurei baixo,
com medo da reação dele.
Victor suspirou fundo e olhou novamente
para as estrelas, como que pensando seriamente no
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que responder. Depois de alguns minutos,


finalmente se decidiu. Sua voz estava tranquila,
mas senti uma carga de ressentimento e certa raiva.
— Você jamais vai conseguir ir para o céu,
Rafaela. — Os olhos verdes de Victor já estavam
com seu efeito hipnotizador on-line. — Seu destino
é a Terra.
— Como você sabe? Os Conselheiros foram
muito claros...
— É mentira. Eles sabem que é mentira. —
Passou as mãos pelos seus cabelos loiros com
nervosismo. — Olha, eu era igual a você.
Exatamente igual. Tentei de tudo para ajudar a
pessoa a quem fui designado. Praticamente dei
minha vida por esta pessoa e de nada adiantou.
Nada funcionou. Tudo deu errado e estou aqui. Sou
um miserável, um desgarrado.
Eu desconhecia completamente o lado
autoflagelado de Victor. Era difícil ver um cara tão
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lindo se maldizendo daquele jeito, eu simplesmente


não podia suportar. Victor não somente era bonito,
mas também inteligente, e tinha um jeito sarcástico
que eu gostava. Ele tinha tantas qualidades que
deixava suas palavras serem facilmente
questionadas. Porém, o que mais me preocupou,
por mais que no fundo eu não quisesse admitir, era
que talvez aquele belo rapaz estivesse falando a
verdade.
E se o céu fosse apenas uma utopia?
E se tudo aquilo fosse uma grande mentira?
Se, na verdade, meu futuro fosse mesmo aquele:
vagar eternamente na Terra, culpando-me por tudo
o que tinha feito e deixado de fazer? Eu tinha plena
consciência de que havia errado em todos os
âmbitos da minha vida.
Merecia um castigo, afinal. Eu mesma não
me daria outra chance.
— Eu... não acredito. Leonardo não...
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mentiria para mim. — Não seria possível que o


único cara para o qual entreguei meu coração de
verdade, o homem que me fez amar, mesmo sem
que eu fizesse a mínima ideia de como era aquele
sentimento, tivesse me enganado de um modo tão
cruel. Não dava para acreditar.
Por outro lado, ele disse que me ajudaria.
Onde ele estava agora?
Onde Leonardo estava quando eu mais
precisava dele?
— Não quero te magoar, Rafaela. Nunca
tive uma companhia tão agradável quanto a sua. —
Os olhos de Victor pareciam penetrar a minha
carne. Ele não estava mentindo, dava para perceber
a verdade nua e crua naquele olhar firme. —
Confesso também que desde que te vi senti algo
diferente, você sabe disso, eu já te disse e posso
repetir quantas vezes quiser.
— Victor...
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— Eu não te machucaria por nada e nem


mentiria para você — interrompeu-me depressa,
meio afobado. — Não tenho motivos para isso.
Estou te contando o que aconteceu comigo porque
gosto de você, porque me importo. Se eu não me
importasse, deixaria que se enganasse e sofresse
tudo o que sofri. Não é o que quero para você.
— Eu... não sei o que fazer.
Enquanto ele apenas me olhava, soltei
alguns suspiros de cansaço. Todas as minhas ideias
se enroscavam quando Victor estava por perto.
Parecia mágica. Era impressionante como ele me
fazia questionar tudo.
— Ouça. — Sua mão foi parar na lateral do
meu rosto. Começou a me acariciar lentamente. Por
um segundo, desejei sentir a mesma calma que
Leonardo me oferecia quando me tocava, mas só
consegui me sentir ainda mais confusa. — Nada do
que fizer vai adiantar. Você pode tentar ajudar
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Carla, tentar ir para o céu e finalmente se encontrar


com Leonardo, mas não vai conseguir. — Claro
que fiquei completamente paralisada, pois, dito
daquele jeito, meu plano parecia muito idiota.
Minha própria estupidez estava começando a me
envergonhar de verdade.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
— Você tem duas escolhas, Rafaela. — Ele
se aproximou ainda mais e tocou meus cabelos com
a ponta dos dedos. — Ou você tenta eternamente, e
eu não irei te impedir, ou aceita a verdade e vem
viver aqui comigo, na Terra. Seremos felizes, eu
prometo que farei o possível para te ver sempre
bem.
Eu ia falar alguma coisa, sei que ia. Porém,
nenhuma palavra fez muito sentido dentro do meu
cérebro. O que Victor sugeriu ia de encontro a tudo
o que eu acreditava desde que tinha morrido. Tudo
em que eu me agarrava era no meu objetivo, e
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agora que ele não passava de uma farsa... Eu não


sabia o que fazer, nem para onde ir.
Foi então que me liguei em um detalhe. Um
pequeno detalhe.
— Espera aí. Como sabia que eu tinha que
ajudar uma pessoa chamada Carla? Não te contei
isso em nenhum momento.
Victor ficou desconcertado.
— Bom... Desculpa. É que às vezes eu vou
conferir se você está bem e...
— Anda me bisbilhotando? — quase gritei.
Sempre odiei ser vigiada, não existia coisa pior do
que gente seguindo os meus passos.
— Desculpa. Só me preocupo contigo. —
Victor encarou a grama, envergonhado.
Eu queria saber como os fantasmas
conseguiam fazer aquilo. Bisbilhotar, quero dizer.
Devia ser o máximo, em um dia menos turbulento
prometi a mim mesma que me lembraria de
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perguntar a Victor como se fazia. Naquele


momento, eu tinha coisas muito maiores para
pensar. Pensar, remoer e chorar, é claro. O único
motivo de eu ainda não ter aberto o maior berreiro
era que seria meio frustrante, tanto para mim
quanto para Victor. O que ele me propunha era
inviável em todos os sentidos.
— O que me diz, Rafa? — Victor estava
perigosamente perto do meu rosto. Dava para sentir
sua respiração assoprando alguns fios dos meus
cabelos.
O que dizer?
Eu não estava nem um pouco a fim de
admitir que tinha confiado no cara errado.
Leonardo não seria capaz de fazer aquilo comigo,
ele não mentiria para mim. Era impossível. O que
Victor insistia em me dizer era completamente
inadmissível. Além do mais, como viver na Terra
sem me importar com o que Carla estava passando
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por minha causa? Como viver com ele se meu


coração pertencia a outro homem?
Contudo, se Victor estivesse certo? Eu
estaria simplesmente perdendo meu precioso
tempo. Estaria vivendo uma ilusão, buscando algo
inalcançável. Eu não estava acostumada a sofrer
desilusões. Não sabia como reagir diante da
situação.
Sem esperar nenhuma resposta, Victor
simplesmente encostou seus lábios nos meus,
docemente. Seu toque, que era leve em meus
cabelos, foi tomando ainda mais força quando
desceu pela minha cintura, trazendo-me para ainda
mais perto de si. Minha boca trabalhou devagar,
correspondendo cada uma de suas investidas,
porém minhas mãos continuaram guardadas, sem
reação. Minha mente ainda tentava manter um
pouco de sanidade e pensava rapidamente, tentando
engolir o novo sentimento de desilusão que surgia
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em meu peito.
Eu não sabia se corresponderia a mais um
beijo de Victor, vindo do nada, principalmente no
mesmo palco em que estive com Leonardo e que,
de fato, eu não queria que fosse retirado de minhas
lembranças. Aquele lugar seria marcado
eternamente pelo momento em que estive com
Leonardo, e não com Victor.
Mesmo assim, eu me sentia cansada. O
Conselheiro sumiu e, segundo o homem que
insistia em me beijar, eu jamais conseguiria ir para
o céu, por mais que tentasse, por mais que quisesse.
Nada adiantaria. Minha fé estava indo embora aos
poucos, conforme o beijo se intensificava, e o
resquício de esperança que eu ainda possuía estava
se escondendo em algum lugar muito distante
dentro de mim.
Resolvi envolver meus braços em volta do
pescoço de Victor, sentindo seus cabelos escorridos
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entre meus dedos. Descobri que a sensação era


melhor do que eu imaginava. Não dava para fugir
daquela atração como se ela não existisse. No
entanto, também não dava para me enganar. Só
consegui pensar em Leonardo. Confesso que fingi
estar beijando o meu ex-Conselheiro.
Até que vi a luz.
Uma luminosidade incrível apareceu de
repente, tanto que a percebi mesmo com os meus
olhos fechados. No começo, foi uma luz fraca,
como se alguém tivesse acendido uma lâmpada no
jardim. Depois ela foi crescendo até ser quase
impossível não abrir os olhos para ver de onde
vinha.
E foi o que eu fiz.
Abri meus olhos e pude observar Victor me
beijando, ainda com muita vontade. Seu desejo foi
bem visível, e acreditei que ele realmente tinha
boas intenções em relação a mim. Mas a luz não
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vinha dele.
Como minha curiosidade sempre foi um
dos meus piores defeitos, olhei de soslaio em
direção à luminosidade esquisita, desvencilhando-
me de Victor, que me encarou sem entender o que
estava acontecendo. Quase não pude acreditar no
que vi em seguida. Lá estava ele. A visão mais
perfeita de todas, emitindo uma luz encantadora de
paz. O mesmo rosto, tal qual passei as últimas
horas desejando reencontrar, com todas as minhas
forças.
Leonardo viu tudo o que tinha acontecido.
— Leonardo... — sussurrei com
dificuldade, em um choramingo infantil. Meu
coração batia tão forte que tive a sensação de que
pararia. O nó em meu estômago cresceu e começou
a me sufocar.
Leonardo estava de pé no gramado, olhando
diretamente em meus olhos, com um olhar difícil
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de decifrar. A expressão rígida demonstrava um


misto de surpresa, inquietude e... decepção? De
uma coisa tive certeza, ele não esperava ver o que
tinha visto. Ainda mais daquela forma. Afinal,
aquele era o mesmo gramado em que estivemos
juntos, o mesmo palco da minha ousadia, do meu
ato impensado. Que tipo de garota ele devia estar
pensando que eu era?
Do tipo que leva todos os garotos para
beijar em seu jardim.
O Conselheiro permaneceu tomado por uma
espécie de transe, assim como todos os presentes.
Meu estado de choque absoluto fazia minhas pernas
tremerem sem parar. Nenhum de nós teve coragem
de falar mais nada, até Victor apenas observou,
com certo ar de desdém, a cena diante dele. Victor
buscava claramente alguma reação da minha parte.
Leonardo buscava uma reação minha também. E eu
buscava uma reação de Leonardo. Qualquer que
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fosse.
Depois de um minuto que pareceu eterno, o
Conselheiro começou a se desmaterializar, porém
não antes de esboçar um semblante altamente
desgostoso. Uma expressão que eu nunca tinha
visto estampada em sua face perfeita. Uma alma tão
boa e que oferecia tanta tranquilidade não podia
expressar tanta agonia daquele jeito. Não deu para
calcular o tamanho da minha dor ao compreender
que Leonardo estava triste. E que eu era a culpada.

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Capítulo 18

A amizade

EU ME levantei da grama depressa, no auge do


desespero. Victor permaneceu sentado. Para ser
sincera, não me importei nadinha com o que estava
pensando a respeito do meu rompante. Sentia meu
corpo inteiro trepidar de angústia. De uma coisa
tive certeza naquele instante: não queria que aquela
fosse a última expressão de Leonardo que eu veria.
Havia tanta decepção em seus olhos que não dava
para suportar o tamanho da minha culpa.
— Não! — gritei com todas as forças,
levantando as mãos avidamente, tentando segurar
algum resquício de luz que ainda sobrava do
Conselheiro. Em vão. Sua aura tranquilizante
sumiu entre meus dedos. — Não! Por favor, não!
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— Rafaela... — Victor me segurou antes que


meus joelhos perdessem a força. Quase caí no chão.
Pulei e me debati, tentando me desvencilhar,
sentindo as lágrimas molharem meu rosto. Ele não
me largou.
Eu não sentia mais as pernas de tão trêmulas
que ficaram. Puxei meus cabelos até sentir uma
extrema dor. Eu queria me matar. Era isso. Queria
morrer, mesmo já estando morta.
— Esperei por ele esse tempo todo! Quantas
vezes pedi para que aparecesse? Leonardo me
ignorou em todas elas. Agora, ele aparece para me
atormentar, para fazer com que eu me sinta culpada
por tudo! — choraminguei para Victor, que
continuava tentando me segurar.
— É parte da estratégia desses Conselheiros.
O fato de Leonardo sumir vai sempre parecer culpa
sua. Olhe para mim, Rafa! — Victor virou meu
rosto, tomado de lágrimas, em sua direção. — A
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culpa de nada disso é sua.


Muito mais do que de repente, aquilo se
tornou demais para mim. Não podia deixar que
Victor falasse o que bem entendesse sem que eu
nada pudesse fazer. Dar ouvidos a ele e deixar
Leonardo ir embora não era uma opção. Eu não
conseguiria viver com a ideia de nunca mais vê-lo.
Era tarde demais para tentar não me importar. Era
tarde para me deixar ser consolada. Eu queria
Leonardo a todo custo.
— Me larga! — foi o que consegui gritar,
desvencilhando-me de Victor e me
desmaterializando rapidamente, para algum lugar
bem longe dali.
Infelizmente, o único ambiente seguro que eu
conhecia era o quarto de Leonardo. Materializar-me
ali foi uma das piores coisas que poderia ter feito,
tamanho desespero que sentia. Eu me sentei na
cama dele e comecei a socar o travesseiro feito uma
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maluca.
Cada detalhe do que lembrava e conhecia
sobre Leonardo invadiu a minha mente, ressurgindo
por trás de meu castelo protetor. Eu me recordei da
primeira vez em que vi seus olhos, na Sala de
Viagens Especiais. Lembrei-me dos primeiros
conselhos, de como havia me salvado do maníaco
da praça. Desejei profundamente sentir a paz que
sua mera presença me inspirava. Seu sorriso
visualizado em diversos ângulos, o olhar gentil, a
pele, o cheiro... Todas as coisas sobre o
Conselheiro invadiram meus sentidos de uma só
vez, fazendo com que eu desabasse em lágrimas
angustiadas.
Como tinha sido capaz de esconder tanta
emoção dentro de mim mesma? Como pude me
negar daquela forma? Fui uma tola por ter tentado
evitar por tanto tempo a dor que era amar
Leonardo. Era aquela dor que mantinha minhas
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esperanças acesas. Era aquele sentimento que me


fazia mudar, me fazia pensar melhor nas coisas.
Comecei a entender que, enquanto o amor estivesse
em meu peito, eu poderia ter uma chance. Eu me
sentiria merecedora de uma chance.
— Apareça! — gritei para os ares, sem
sequer pensar que poderia estar fazendo papel de
besta. — Preciso falar com você agora, Leonardo!
Nada aconteceu durante alguns segundos,
mas eu estava disposta a nunca mais desistir. Não
dele. Jamais. Nem que saísse por aí gritando o seu
nome aos quatro cantos, ele teria que me escutar
em algum momento. Leonardo não poderia ignorar
o meu desespero sem ao menos uma conversa
honesta.
— Por favor... — sussurrei, e mais lágrimas
escorreram. — Por favor, não me deixe assim, por
favor!
Deixei que as lembranças de cada detalhe de
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Leonardo invadissem minha mente com ainda mais


intensidade. De certa forma, senti que aquela dor
insuportável poderia trazê-lo de volta. Lembrei
mais uma vez do seu sorriso perfeito e sempre
presente, seus cabelos castanhos muito macios e o
sabor de seus lábios. Tentei me recordar do modo
maravilhoso como falava o meu nome, do mistério
em seu olhar e da calma energizante que sempre
aliviava meus medos. Lembrei-me de tudo o que
me fez amar Leonardo em cada detalhe, chamando-
o, invocando-o para mim.
— Estou aqui. — Ouvi um som sereno e
calmante. Cheguei à conclusão de que sua doce voz
sempre soaria como música para os meus ouvidos.
Não importava quão desesperadora fosse a
situação.
Olhei para frente, paralisada. Leonardo
estava bem ali, de pé diante de mim, encarando-me
com um ar demasiadamente sério. Ainda escorriam
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lágrimas de meus olhos, por isso as limpei com as


costas das minhas mãos. Apesar da alegria em revê-
lo depois de um tempo que pareceu uma eternidade,
controlei minhas emoções e tentei ser igualmente
séria.
— Por quê? Só me diz isso, Leonardo.
— Eu te pergunto a mesma coisa, Rafaela.
Nós nos encaramos durante segundos
tenebrosos. Eu não sabia o que lhe responder, por
isso articulei melhor a minha própria pergunta.
— Por que você me abandonou desse jeito,
como se eu fosse um nada? — A vontade de correr
para abraçá-lo com força estava quase me
dominando. No entanto, sabia que precisávamos
conversar.
Leonardo fez uma expressão severa, como se
eu tivesse acabado de falar um grande absurdo.
— Quem disse que te abandonei? — Seus
olhos soltaram faíscas esquisitas. Leonardo estava
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com raiva, um sentimento que pensei que jamais


sentia. Eu nunca o tinha ouvido falar tão alto antes.
— Não te abandonei um segundo sequer, Rafaela.
Sempre estive contigo, só que você não podia me
ver. Você não queria me ver.
— Como não queria? Eu quis o tempo todo!
Minhas mãos agarravam um travesseiro,
trêmulas. Eu estava tentando me controlar, mas era
quase impossível.
— Desde aquele... — Começou a andar para
outro canto do quarto, passando as mãos pelos
cabelos, com nervosismo, olhando para o chão. —
Desde aquele beijo, você não me deu uma única
oportunidade de falar contigo.
— Do que está falando? Você sumiu! — Eu
me levantei da cama e passei a acompanhar seus
movimentos dentro do quarto.
Leonardo parou e me ofereceu um olhar
assustador.
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— Rafaela, foi você que me disse adeus. Foi


ou não foi? — Aquiesci e suspirei profundamente.
Abri a boca para rebater, mas não consegui
raciocinar direito. — Você não me deu uma única
chance. Não pude fazer nada!
Finalmente consegui retrucar:
— Quantas vezes, depois disso, desejei que
estivesse aqui?
— Você desejou, mas não permitiu.
Bloqueou cada pensamento que teve sobre mim. —
Leonardo se aproximou de repente, parando bem
perto de mim. Ele ainda expressava um semblante
esquisito. Suas atitudes me assustavam de modo
que eu me perguntava se era ele mesmo que estava
conversando comigo ali. — Tudo o que pensava ao
meu respeito foi imediatamente repelido. Eu não
tenho permissão para agir diretamente com quem
não quer a minha presença!
— Mas eu queria a sua presença!
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— Rafaela, sou parte da sua energia. Sou seu


Conselheiro de Luz. Só estou aqui na Terra por
você, eu sou fruto do seu pensamento. — Ele
prendeu os lábios e diminuiu ainda mais a distância
entre nós. — A partir do momento em que me
repele, não tenho como estar aqui. Você me repeliu.
Aquilo era verdade. Evitei todo e qualquer
tipo de pensamento sobre Leonardo, a fim de não
me machucar com as lembranças. Fui uma covarde
em impedir que o inevitável acontecesse; a dor que
o sentimento por ele me causava. Quando as
lembranças chegavam, não passava mais do que um
minuto para tirá-las da mente. Eu admitia a minha
covardia. Porém, não sabia que fazendo aquilo
estava o mantendo longe de mim.
— Eu não sabia... — murmurei, cansada. Os
olhos de Leonardo estavam muito abertos e me
encarava com espanto. — Eu não sabia disso.
Ele balançou a cabeça em negativa.
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— O que eu não sabia, Rafaela, era que você


me esqueceria em tão pouco tempo, que esqueceria
todos os meus conselhos. — Seu olhar duro me
intimidou de uma forma singular. Ele arfou e
prendeu o maxilar. — Mas isso não vem ao caso,
agora. Não importa. Meu dever é te proteger acima
de qualquer coisa. — Leonardo me deu as costas e
fingiu prestar atenção em sua pequena coleção de
revistas em quadrinhos, muito bem organizada
sobre um dos armários.
— Não seja estúpido em achar que te
esqueci. — Comecei a sentir raiva do que Leonardo
estava pensando sobre mim. Era culpa minha, eu
sabia. Era exatamente por isso que eu estava com
tanta raiva. — Você deve fazer algum tipo de ideia
do inferno que é viver aqui. Fiquei sem
direcionamento. Qualquer um podia falar para mim
o que quisesse que eu acreditaria.
— Qualquer um poderia te beijar que você
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beijaria? — Ele me encarou novamente, com ar de


descontrole e decepção. Nunca o tinha visto
daquele jeito antes, e cheguei a pensar que nunca
veria. Como alguém tão politicamente correto e
controlado como ele podia agir assim?
Quem é você e o que fez com Leonardo?
— Não fale assim!
— Como não falar assim, Rafaela? Você
estava aos beijos com o cara que te pedi para
manter distância!
— Não foi bem assim! — rebati em um berro
estressado.
— Não sou cego, eu vi.
— Eu sei que você viu, só que...
— Não importa. De verdade. — Leonardo
passou as mãos pelos cabelos de novo. Estava
muito nervoso, era perceptível. — Esta não é a
questão.
— Qual é a questão, então? — Apoiei as
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mãos na cintura. — Não sou quem você pensa.


Podia ser assim antes, mas eu mudei. Acredite em
mim. E, se puder, me perdoe pelo que viu.
— Eu já te perdoei — resmungou. Sorri em
resposta. — Não importa o que faça, Rafaela, você
sempre terá o meu perdão. — Vi sua aura tremular
e se intensificar um pouco mais. Abri a boca,
estupefata. Leonardo me pareceu ainda mais lindo.
— Só me preocupo. Fiz um péssimo trabalho
contigo.
— Não é verdade. Você foi ótimo.
— Não fui. — Ele soltou um suspiro
fracassado. — Não devia ter te beijado. Eu te deixei
confusa e depois você me afastou.
Fitei o chão, meio envergonha. Eu queria
tudo, menos ouvir de sua boca linda que aquele
beijo não deveria ter acontecido.
— Não se culpe — sussurrei ainda sem olhá-
lo.
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— No fim das contas, você não entendeu


nada do que te falei. A maldade vem da dúvida,
Rafaela. O começo das trevas é a ignorância. —
Leonardo engoliu em seco. Sua voz já estava bem
mais amansada. — Enquanto estiver com Victor, só
te restará escuridão.
— Você está com ciúmes? — perguntei de
uma vez. Depois que abri a boca, me arrependi na
mesma hora.
Leonardo, contudo, apenas me encarou.
Passou tanto tempo me olhando que senti muita
vergonha de ter falado besteira. Claro que ele não
estava com ciúmes. Seu dever era apenas me
proteger.
— Você precisa me dizer o que está
acontecendo, Rafaela. Seja sincera comigo. — Ele
fez uma grande pausa, como se refletisse melhor
sobre o que estava me propondo, e tivesse muito
medo da minha resposta. — Não me deixe no
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escuro.
— Você ainda não entendeu? Não está
óbvio? — Eu me aproximei ainda mais dele, de
modo que nossos rostos ficaram a centímetros um
do outro.
Leonardo não se afastou, mas percebi seu
olhar calmo se transformando em outra coisa. Um
algo mais indecifrável.
— Eu não sei de mais nada. Mal sei o que
estou falando. Como Conselheiro, tinha que... —
Leonardo parou. Eu conhecia aquele timbre de voz.
Ele estava prestes a voltar ao profissionalismo
costumeiro.
O Leonardo que conheci na Sala de Viagens
Especiais queria retornar, mas eu ainda queria saber
um pouco mais do Leonardo que acabara de
conhecer. Ele era diferente. Parecia se importar
comigo a ponto de perder a cabeça. Foi por isso que
ergui minhas mãos e o empurrei pelos ombros
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contra o seu armário, levando um choque ao sentir


o calor de sua pele por cima da camisa branca, e
muito fina, que vestia. Foi um empurrãozinho de
leve, mas o seu corpo obedeceu bem aos meus
comandos.
Seus lindos olhos me encararam sem
entender, e percebi que suas mãos tremiam como as
minhas. Decidi que aquele seria o momento em que
ele entenderia tudo. Leonardo teria que
compreender de uma vez por todas. Eu tinha que
aproveitar a chance. Tentando ser gentil, me
coloquei na ponta dos pés e lhe arranquei um beijo
suave e molhado. Puxei sua nuca até que se
acostumasse com a invasão repentina. Usei a língua
de cara. Esperei pacientemente que Leonardo me
correspondesse de novo. Invoquei sua aura intensa,
para que ela me envolvesse como no nosso
primeiro beijo, mas nada aconteceu. Daquela vez,
Leonardo segurou meus braços e me fez largá-lo.
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Ele não foi capaz de me encarar quando me


rejeitou. Desviou o rosto e permaneceu me
segurando, como se não fizesse ideia do que faria
em seguida.
— Eu... sigo muitas regras do Conselho —
murmurou baixo, de um jeito meio triste. — Não é
certo. Você devia parar com isso.
— Dane-se essa porcaria de Conselho! —
Olhei para ele com o que achei que fosse meu olhar
mais profundo. Puxei seu rosto para mim. — Eu te
amo, Leonardo.
Leonardo entreabriu os lábios e me encarou
com uma expressão completamente indecifrável.
Eu não queria assustá-lo, muito menos pressioná-
lo. Só queria que ele tentasse entender, ou quem
sabe me explicasse melhor o que estava
acontecendo comigo.
Percebi sua incapacidade de reagir e
prossegui:
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— Nunca aconteceu comigo antes, mas é


verdade. Não é uma coisa boba, não estou querendo
te conquistar sem propósito. — Sua mão foi
repousada na lateral do meu rosto. Ele nada falou,
mas senti uma energia tranquilizante ser transferida
para o meu espírito. Aquilo me deu força para
continuar. — Não sou santa. Confesso que sempre
fiz isso com os rapazes, quando era viva, mas não
contigo. Quero que acredite em mim, Leonardo. É
um sentimento que dói muito. Sei que te conheço
há pouco tempo, mas aconteceu. Simplesmente
aconteceu.
Leonardo começou a dizer alguma coisa, mas
eu o impedi de falar, pressionando de leve meu
dedo indicador em sua boca macia e muito bem
desenhada. Ele fechou os olhos assim que o
encostei, soltou um suspiro alto e os reabriu logo
em seguida.
— Decidi que esse sentimento que tanto dói
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só pode ser amor. Eu te amo e nem você, nem o


Conselho e nem ninguém vai mudar isso. Muito
menos as burrices que cometo.
Eu me afastei de vez, a fim de lhe dar
abertura. Voltei a me sentar em sua cama, sentindo-
me cansada de tudo. Leonardo continuou de pé,
encostado no armário, quando resolvi olhar para o
chão e apenas esperar. Não dava para apenas
observar a expressão atônita dele, como se o que eu
tivesse acabado de dizer fosse um segredo que não
estava escrito na minha cara. É claro que estava, só
ele não via.
— Desculpa — o Conselheiro murmurou
depois de alguns minutos de puro silêncio. Olhei-o
sem nada dizer. Leonardo se sentou na poltrona ao
lado da cama. Manteve-se firme, mas eu sabia que
suas mãos ainda tremiam. — Isso está errado,
Rafaela. Não era para ter acontecido.
— Desculpa não é algo que se pede nessas
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situações. — Não evitei sentir um pouco de raiva.


— Ninguém tem culpa de nada. É como um
acidente.
— Eu sei. Ainda assim, foi um acidente que
poderia ter sido evitado.
Não era exatamente o que eu queria escutar.
Por um momento, pensei que tudo o que ele estava
dizendo antes significava que sentia o mesmo por
mim, que estava com ciúmes ou algo parecido.
Quero dizer, há alguns minutos ele estava
completamente desesperado por ter me visto com
Victor e por tê-lo bloqueado durante tanto tempo.
Cheguei a pensar que se importava comigo de um
jeito especial. Contudo, eu estava errada, como
sempre. Um verdadeiro cavalheiro se desculpava
por ter seduzido a dama sem um pingo de intenção.
Legal!
Sinceramente? Tomei a decisão de não me
importar mais. Eu não ligava se estava certa ou
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errada, também não me importava se ele me


corresponderia. Apesar da dor, sabia que aquele
sentimento me fazia uma pessoa melhor. Eu tinha
que alimentá-lo, não podia deixá-lo morrer. Depois
de ter descoberto o quão pouco eu me importava,
decidi fazer algo completamente inusitado. Bati de
leve no espaço ao meu lado, chamando Leonardo
para se sentar mais perto. Achei que fosse negar o
meu pedido e ir embora, mas ele veio mais rápido
do que meus olhos puderam acompanhar.
Assim que ele sentou na cama, empurrei-o
até fazê-lo deitar. Claro que ele se assustou, devia
ter passado mil coisas diante da sua cabeça, mas
minhas intenções eram as mais puritanas possíveis.
Não tão puritanas assim, confesso, mas não era
nada do que o Conselheiro estava pensando. Deitei
ao seu lado logo em seguida, encostando minha
cabeça em seu peito forte. Pus meu corpo em volta
de seus braços e me arrepiei ao sentir sua pele
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quente me envolver.
— Você pode me negar muitas coisas,
Leonardo. — Ergui o meu rosto para observá-lo de
perto. — Pode me negar amor, beijos e intimidades,
você tem todo o direito de fazer isso. Pode me
negar respostas sobre o que tenho que aprender
com a morte. Pode nunca corresponder ao que
sinto, prometo que não vou insistir. — Seus olhos
estavam muito próximos aos meus. — Mas não me
negue sua presença. Não me negue coisas bobas
que fazem muita diferença para mim. É tarde
demais, não vai dar para corrigir o que já foi feito.
Por isso, não me negue sua proteção. Você me
cativou.
Encostei meu rosto ao seu peito. Tentei
escutar seu coração batendo, mas não consegui.
Acho que ele percebeu o meu desejo de senti-lo
vivo ao meu lado, por isso repousou a mão no meu
rosto de novo e fez sua aura tranquila me envolver.
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Respirei aliviada e sorri. Ele estava mais vivo do


que nunca. E me protegia como ninguém jamais foi
capaz.
— Eu não pretendia te deixar desprotegida,
Rafaela — murmurou, começando a alisar os
cabelos que escorriam em seus braços. A aura
brilhava, forte e intensa, ao nosso redor.
— Sou uma mera fantasma perdida na Terra,
que tem muito que aprender. Você é o meu
Conselheiro de Luz, está aqui fazendo o que faz de
melhor — admiti sorrindo. — Não vou me
desconcentrar. Muito pelo contrário, me esforçarei
ao máximo. Um dia, serei digna do seu amor.
— Rafa... — Leonardo começou a dizer,
tocando de leve o meu queixo.
— Não fale. — Encostei meus dedos em seus
lábios macios pela segunda vez, desejando
amargamente trocar meus dedos pela minha boca.
— Deixe para lá. Você me disse que duas almas só
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ficam juntas se houver amor verdadeiro. Tenho


certeza de que possuo ao menos a sua amizade.
Leonardo soltou um arquejo fraco. Sua aura
se intensificou. Meus olhos marejaram de tanta
emoção. Aquela luz brilhou tão forte que quase não
suportei a paz que invadiu o meu peito. Eu me senti
amada. Inexplicavelmente, era como se aquela forte
energia me beijasse, me despisse e fizesse amor
comigo.
— É claro que você possui. — Leonardo
beijou a minha testa.
Ele não precisava ter dito nada. Jamais me
senti tão pertencente a alguém.
— Então, apenas fique por perto.
Ergui o meu rosto para vê-lo de novo. Pensei
que fosse explodir de tanta alegria ao admirar seu
amplo sorriso. Seus braços me seguraram com
ainda mais força, e a aura parecia tomar o quarto
inteiro, de tão intensa que se encontrava. Minha
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pele queimava de excitação e desejo, mas me


mantive calma.
— Vou ficar — murmurou.
Nunca me senti tão segura em toda a minha
existência.

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Capítulo 19

O presente

LEONARDO FICOU a noite inteira, e parte da


manhã, em minha companhia. Conversamos sobre
diversos assuntos, dos mais banais aos mais
importantes. Contudo, evitamos falar sobre Victor e
o beijo que trocamos. Ele também nada mais
mencionou sobre a declaração que fiz. Mostrou-se
bastante preocupado com Carla, e garantiu que me
ajudaria a descobrir quem era a pessoa que estava
batendo nela de uma forma tão cruel. Concordou
comigo quando conversamos sobre o que Daniele
falou para ela no dia anterior. Era improvável que
Kevin perderia tanto tempo fazendo mal a alguém
que não tinha feito nada com ele. O mais provável
mesmo era que Daniele estivesse armando para
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separá-los.
Permanecemos abraçados, aninhados na
cama como bons namorados, mas na minha mente
eu sabia que aquilo era apenas uma ilusão. De
qualquer forma, sua presença me trouxe um bem
sem igual e uma sensação de paz tão fantástica que
o fato de sermos amigos ou namorados não fazia a
mínima diferença.
Eu estava tão feliz e radiante por tê-lo em
meus braços, apoiando-me nas coisas que eu
precisava fazer, que nada seria capaz de me abalar.
A ideia de viver com Victor enquanto eu estava
com Leonardo parecia uma piada, algo
completamente fora de cogitação. Não que Victor
não mexesse comigo, uma parte de mim era
encantada com tudo o que ele fazia, porém a
diferença entre os dois me espantava. Enquanto um
atiçava o meu lado mais obscuro, o outro parecia
aumentar a luz que me cercava.
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Depois de termos conversado sobre


praticamente tudo, rirmos por causa de algumas
histórias que Leonardo contou de almas confusas
que vinham a Terra e ele havia sido encarregado de
guiá-las, passamos horas em um estado de transe
que ele me explicou que servia perfeitamente como
dormir. Essa dormência permitia que todos os
desencarnados esquecessem um pouco as
preocupações e pensassem apenas na própria
existência e no conforto psíquico de sua alma.
Aquele estado de meditação alimentava nosso
espírito como se fosse comida, assim como fazer o
bem.
— Leonardo? — chamei-o em alguma parte
da manhã, ainda emocionada em tê-lo tão perto.
Ele se remexeu sob meu corpo.
— Estou aqui.
— Você nunca me disse como foi que
morreu. — Leonardo se remexeu mais, parecia
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empertigado. — Estou curiosa.


Nossos corpos se encaixavam perfeitamente,
e aquela sensação boa jamais nos trazia
desconforto. Apesar de termos passado tanto tempo
agarrados, eu ainda me sentia superbem, e
acreditava que ele também estava ótimo. Pelo
menos era o que indicava seu sorriso constante, que
vi desaparecer aos poucos quando fiz aquela
pergunta.
— Também foi em um acidente de carro.
— Mesmo? — Eu estava surpresa por ele ter
resolvido me contar com tanta facilidade. Pensei
que seria mais complicado. — O que aconteceu?
— Eu estava dirigindo numa estrada de alta
velocidade. Perdi o controle do carro em uma
curva. O veículo se chocou contra uma árvore, e
depois não me lembro de mais nada. Morri na hora.
— Sinto muito. — Não soube direito como
consolar alguém que já tinha morrido há algum
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tempo. Também não sabia se sentia de verdade,


pois Leonardo não estaria comigo se não tivesse
morrido.
— Foi aqui. Olhe. — Leonardo apontou para
frente.
De um instante para o outro, não estávamos
mais em seu quarto. Continuávamos abraçados,
mas sobre uma árvore enorme, com um caule
imenso. A vegetação de extremo verde me chamou
atenção. Adiante, uma rodovia tranquila com carros
passando cortava o cenário como uma cicatriz. A
luz do sol entre as folhas fazia a aura de Leonardo
ficar ainda mais brilhante.
— Uau! — Arquejei enquanto sentia um
vento fresco percorrer nossos espíritos.
— Fazia um tempo que eu não vinha aqui. —
Encarei Leonardo. Ele parecia um pouco triste.
Alisei seu rosto com cuidado, e então ele sorriu. —
Não se preocupe, Rafaela, já superei o fato de ter
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morrido. — Soltou um longo suspiro. — É que


acabei levando uma pessoa comigo.
— Uma pessoa? Quem?
Eu me levantei um pouco, e bastou um piscar
de olhos para que estivéssemos de volta ao quarto.
Olhei para os dois lados, espantada com a ligeireza
com que Leonardo fazia aquilo. Ainda era
emocionante se deslocar com tanta facilidade.
— Eu não era do jeito que sou agora. Mudei
bastante. — Leonardo me puxou para que eu
voltasse a me deitar sobre seu peito. Fui sem
pestanejar.
— Isso é bom ou ruim?
— Bom. Muito bom, absolutamente. — Ele
riu de leve, provocando-me arrepios deliciosos. —
Eu era uma pessoa muito mesquinha e orgulhosa.
Cheia de defeitos que ainda tento consertar.
Eu não conseguia ver defeito algum em
Leonardo. Para mim, ele era similar a um anjo
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rodeado de pureza e bondade. Apenas anjos podiam


exprimir tanta paz e calma. Se havia defeitos nele,
com certeza já tinham ido embora há muito tempo,
dando lugar a uma humildade impressionante.
— Não consigo ver defeitos em você — falei
com sinceridade.
Leonardo apenas sorriu.
— Todos têm defeitos. Não há perfeição
além da nossa principal fonte de luz. Tem gente
que bebe mais dessa fonte, outros bebem menos.
Alguns a ignoram por não acreditarem nela.
— Acho que não entendi — murmurei. Um
nó se enroscou em meu cérebro.
— Eu quis dizer que existe uma fonte de
energia que é perfeita, e que todos nós nos
alimentamos dela, uns mais, outros menos. Mas
ninguém consegue beber tudo e ficar com a
perfeição inteira para si. Ela não tem fim. —
Leonardo me apertou em seus braços. — Somos
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feitos de pequenas ou grandes doses de perfeição.


Depende do quanto conseguimos beber dessa
energia.
Não sabia dizer se tinha entendido direito,
mas uma vontade incontrolável invadiu todo o meu
espírito.
— Eu... queria beber mais.
— Essa é a melhor notícia do dia. — Não vi,
mas tive certeza de que Leonardo sorriu
amplamente.
Ergui minha cabeça, equilibrando meu
queixo sobre sua pele.
— Me conta mais sobre como você era. E
sobre o acidente... Quem era a pessoa que estava
contigo no carro?
Ele prendeu os lábios.
— Eu era muito popular, e andava com
pessoas erradas. Isso me estragou bastante em vida.
— Somos dois. Continue...
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— Na noite do acidente, bebi e usei muitas


drogas com minha turma de amigos da faculdade.
— Fiz uma careta incrédula, mas Leonardo
simplesmente prosseguiu. — Dirigi perigosamente
naquela estrada. Havia uma pessoa comigo, e ela
também não resistiu.
— Algum amigo seu? — perguntei.
— Não. Minha ex-namorada.
— Hum — soltei um gemido meio sem
intenção, mas Leonardo apenas me abraçou com
mais força.
— Ela também tinha muitos defeitos, mas
quando eu estava vivo, só conseguia enxergar as
aparências. Não me importava com o que havia por
dentro das pessoas. É um erro que muitos cometem.
— Sei como é... — Eu me sentia exatamente
igual. Tentei não imaginar Leonardo com outra
mulher a tiracolo, mas foi impossível. — Você a
amava? — A curiosidade era muito maior.
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— É meio complicado responder. Na época,


eu achava que sabia o que sentia. Ela era a pessoa
com quem eu queria me casar e ter filhos.
— Você ainda a ama? — Senti o meu corpo
congelar.
Afinal, não importava muito o quê ele já
havia sentido por ela ou por qualquer outra garota.
Eu estava muito mais interessada no que Leonardo
sentia naquele instante.
— Não — sussurrou de um jeito esquisito. —
Não como você pensa.
— Explique melhor.
Não era minha intenção imprensá-lo contra a
parede. Eu só estava muito curiosa e, lógico,
desesperada.
— Não a amo como um homem ama uma
mulher. Deixei de sentir esse tipo de amor. Sinto
apenar o amor que devemos sentir pelo nosso
próximo.
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— Você só sente esse tipo de amor? Digo,


pelo próximo?
Tive medo de encará-lo, por isso voltei a
encostar minha cabeça em seu peito.
— Todo mundo pode sentir todo tipo de
amor, Rafaela. O amor é livre, foi criado para ser
sentido.
Prendi os lábios com tanta força que eu teria
sangrado se ainda estivesse viva. Leonardo me
deixava sempre tão confusa!
— Então, por que tratou o meu amor como se
fosse um erro?
— Rafaela...
— Eu só queria entender. — Prendi meus
dedos entre o tecido fino de sua camisa branca.
Ouvi um suspiro prolongado.
— O tipo de amor que você sente é o mais
complicado de todos. É o que mais machuca, o que
mais faz sofrer. Às vezes, é uma inconsequência
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senti-lo.
— Mas eu sinto! — resmunguei, com os
olhos já cheios de lágrimas.
— Eu sei. — Leonardo me beijou a testa.
— Isso quer dizer que sou uma
inconsequente?
— Não. Quer dizer que você tem coração,
Rafaela.
Deixei uma lágrima sorrateira escorrer. Ela se
perdeu na camisa de Leonardo. Tive a impressão de
que se desintegrou e se transformou em um
pontinho de luz, antes de sumir completamente.
— E por que é um erro? — Eu me agitei
completamente, por isso quase gritei. Tentei me
levantar sem nenhum cuidado, mas Leonardo me
puxou de volta para si.
Fiquei tão agoniada que resolvi ser
inconsequente de vez. Fiz o que queria ter feito
durante toda a noite: deixei meus lábios caírem
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sobre os dele sem nenhum pudor. Agarrei seus


cabelos e imobilizei seu corpo com o meu. Beijei-o
com tanta gana que nem pensei se ele correspondia
ou não. Apenas o beijei, senti seu gosto, seu cheiro,
a maciez de sua boca e o doce toque de sua aura em
meu espírito.
Cedo demais, Leonardo agarrou a minha
cintura e me depositou de volta na cama. Afastou-
se por completo, levantando-se depois de horas
deitado comigo. Ficou de costas para mim, como se
não quisesse que eu o visse de frente. Ou como se
não quisesse olhar para minha cara. Deixei mais
lágrimas escaparem.
— Você precisa parar de fazer isso. Pelo seu
próprio bem. — Sua voz saiu meio áspera, irritada.
Eu me encolhi na cama, feito uma bola.
Aquela distância toda só podia significar que
Leonardo ainda amava a ex-namorada. Ele só não
queria me machucar contando a verdade.
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— Qual é o nome dela? — perguntei, sem


entender direito por que eu queria saber, visto que o
meu ciúme só aumentava a cada segundo que
compreendia que Leonardo pertencia a outra. —
Você sabe onde ela está?
— Larissa. — Leonardo não hesitou. Ele já
sabia de quem eu estava falando, o que só
comprovou a minha teoria. — Infelizmente, ainda
não encontrou a Luz.
— Significa que ela está aqui na Terra? —
Eu me encolhi ainda mais.
— Está. Mas eu não posso ajudá-la.
— Por quê?
— Ela é uma desgarrada.
— Sério? — quase gritei de surpresa.
Leonardo tinha uma namorada desgarrada
perambulando pela Terra?
— Sim. Mas não se preocupe. — Ele se virou
para me observar. Percebendo o quanto eu estava
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encolhida, fez uma careta e caminhou na minha


direção, tomando-me em seus braços. Ficamos
ajoelhados na cama. — Um dia ela encontrará o
caminho. Larissa deixou o ódio dominar o próprio
coração, porém, cedo ou tarde descobrirá que o
ódio não vale a pena.
— Você acha que ela ainda te corresponde?
Leonardo fez uma careta muito esquisita.
— Rafaela... Eu já falei que não amo Larissa.
— Tem certeza? — murmurei a pergunta.
Seus olhos brilharam ao responder:
— Absoluta.
Soltei um suspiro tão grande que até fiquei
meio fraca. Leonardo só fazia piorar a minha
confusão mental.
— Mas será que ela ainda te ama?
— Eu não sei. Não a vejo há alguns anos.
Permaneci calada por muito tempo, tanto que
Leonardo pensou que eu tinha entrado em
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meditação novamente, mesmo que ainda


estivéssemos ajoelhados. A verdade era que aquelas
novas informações sobre a vida pessoal de
Leonardo me deram arrepios. A ideia de ter uma
garota que tinha pertencido ao homem que eu mais
amava no mundo, andando livremente por aí e
morrendo de ódio, fazia meu coração querer sair
pela boca.
— Rafaela, pare de pensar nisso — falou
Leonardo, como que adivinhando meus
pensamentos, depois de muito tempo quieto. — Por
favor, não pense nisso assim. Prometa que vai
parar.
— Tenho que ver se Carla precisa de mim. —
Ignorei-o completamente e me levantei da cama.
Sair de seus braços foi uma tarefa muito
difícil de realizar, se você quer saber. A sensação
de solidão e frio tomou conta de mim assim que
meu corpo notou a ausência de sua pele.
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— Tudo bem, linda. Eu também tenho umas


coisas para fazer. — Fiquei emocionada com a
forma especialmente carinhosa com que me tratou.
Foi a primeira vez que falou comigo tão
docemente. — Mas me prometa antes.
— Prometer o quê?
— Que não vai pensar besteira sobre mim e
Larissa.
— Tudo bem, prometo. Bom... Vou lá. — Eu
me pus de pé e me olhei no grande espelho
pendurado em uma das paredes, para conferir o
vestido rosa de princesa e meus cabelos loiros, que
ainda estavam impressionantemente intactos.
Se eu soubesse que morrer fazia aquela
mágica nos cabelos, eu teria me preocupado bem
menos com eles quando estava viva. Com certeza
teria gastado muito menos em produtos, salão de
beleza e em estresse.
Leonardo apareceu atrás de mim e me
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abraçou de súbito, envolvendo minha cintura.


Roubou-me um beijo demorado na bochecha. Foi
um ato de carinho inesperado que fez meu corpo
inteiro tremer. Não dava para acreditar que eu tinha
recebido um gesto tão bonito.
— Feliz aniversário, Rafa. — Ele ergueu o
rosto para ver nossos reflexos no espelho.
Vi sua aura se intensificar e tomar conta do
meu espírito. A luz foi tão forte que tudo ao nosso
redor ficou meio nebuloso, tanto que sequer
consegui nos ver no espelho. Mais rápido do que
veio, a intensidade foi embora. Continuávamos
abraçados.
Mal pude acreditar. Era o meu aniversário de
dezoito anos. Eu estava esperando tanto por aquela
data, mas, com todos os acontecimentos, eu tinha
me esquecido. Meu aniversário deixou de ser
importante. Fiz uma careta de incredulidade.
Leonardo tinha se lembrado dele sem eu ao menos
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ter lhe dito qual era a data. E ainda me deu o


melhor presente de todos: sua própria energia
bondosa.
— Comemoramos mais tarde, prometo —
sussurrou em meu ouvido. — Eu... preciso te dizer
umas coisas.
— Que coisas?
— Preciso pensar melhor antes. Você tem
que ir.
Eu estava completamente paralisada,
olhando-o através do espelho sem acreditar em
nada do que estava acontecendo. Leonardo me
abraçou ainda mais forte e desapareceu aos poucos,
deixando apenas seu cheiro enlouquecedor
impregnado em meus cabelos.
Tudo bem, aquilo tudo era loucura e eu tinha
plena consciência.
Como ele tinha descoberto a data do meu
aniversário? Era certo manter aquele tipo de
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“amizade colorida” com um Conselheiro de Luz?


Pela primeira vez em muitos anos, tive medo
de cometer algum pecado e aborrecer Deus.
Quando eu estava viva, nunca tinha parado para
pensar na existência d’Ele, mas quando estamos
mortos é praticamente inevitável. Será que eu
estaria provocando a Sua fúria me envolvendo de
um jeito especial com uma criatura que parecia ser
um de seus anjos? Eu não queria trazer nenhum
tipo de problema para Leonardo. Ele era um
Conselheiro muito bom e gentil. Ele era doce,
encantador, com o coração puro.
Depois de pensar um pouco, ainda me
olhando no espelho, cheguei à conclusão de que se
Deus havia criado tudo, com certeza também criou
o maior sentimento de todos. O amor era realmente
uma dádiva que só poderia ter vindo d’Ele. Eu
duvidava que Deus pudesse criar um sentimento tão
puro para fazer as pessoas pecarem por sua causa.
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Amar não podia ser pecado. Não faria sentido


algum se assim fosse.

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Capítulo 20

O almoço

ASSIM QUE me recuperei das horas encantadoras


com Leonardo, me materializei na casa de Carla.
Seu quarto estava silencioso e escuro. Demorei a
descobrir que ainda não tinha acordado. As cortinas
estavam fechadas, e Carla se encontrava aninhada
nos lençóis, dormindo calmamente. Cheguei mais
perto para observar seu rosto. Ainda eram visíveis
algumas marcas, porém percebi que havia passado
algum produto branco e viscoso na maior parte
delas.
Olhei para o relógio no criado-mudo e
constatei que já eram onze horas da manhã, meio
tarde para alguém estar dormindo. No entanto,
resolvi deixá-la descansar um pouco mais. Afinal,
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era sábado. Eu tinha planos bem diferentes para o


meu aniversário, mas nenhum deles importava
mais. O dia seria longo de qualquer forma, pois eu
tentaria com todas as minhas armas convencê-la a
ir à festa com Kevin, e provavelmente ela mostraria
resistência. Também teríamos que arrumar seu
cabelo novamente, além de providenciar uma
maquiagem perfeita, que escondesse todas aquelas
marcas.
Eu estava sentada na cadeira de frente à
penteadeira, separando alguns materiais, quando a
porta do quarto se abriu bem devagar. Apesar do
susto, parei instintivamente de mexer nos objetos,
morrendo de medo que alguém reparasse que as
coisas tinham movido de lugar.
— Carla? Filha, está tarde — murmurou o
pai de Carla, que parecia superpreocupado. Não era
para menos, considerando o histórico daquela casa.
— Deixe-a dormir, Nando — A voz por trás
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do homem pertencia a uma mulher que eu não


consegui ver. — Deve estar muito cansada.
Logo em seguida, a porta se fechou sem que
Carla esboçasse reação alguma. Dormia tão
profundamente que não pude deixar de conferir se
estava viva. Para o meu alívio, ainda respirava.
Claro que minha curiosidade ia muito mais
além do que qualquer outra coisa, portanto fui atrás
do pai e da mulher misteriosa, a fim de saber quem
era ela e o que eles estavam fazendo. Eu queria
muito saber como o pai de Carla, ou Nando, como
a mulher o tinha chamado, estava se sentindo.
Fiquei estranhamente preocupada em saber se ele
estava bem, acredito que criamos algum tipo de
ligação depois que o ajudei.
Ambos estavam na cozinha. A mulher
preparava alguma coisa no fogão, demonstrando
bastante habilidade, enquanto o seu Nando estava
sentado em uma das cadeiras, que eram
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acompanhadas por uma mesinha simples para duas


pessoas. Ele parecia bem melhor, apesar de guardar
um olhar triste. Bom, pelo menos o homem estava
vestido adequadamente. Não estava com sua
barriga peluda para fora, só podia ser um bom sinal.
— Eu não sei mais o que fazer, Melissa —
disse o homem. — Carla está cada dia pior. Quando
penso que vai mudar e melhorar... Tem recaídas
novamente.
— Sabe o que eu acho? — Melissa continuou
mexendo alguma coisa cheirosa na panela. — Acho
que a escola em que ela estuda não lhe faz bem.
Carla não tem amizades, nem namorado. Não é
normal para a idade dela.
— Pois é, mas agora é tarde demais. Fui um
tolo em não ter prestado atenção nisso, e agora ela
já vai se formar.
— Bom, não se pode chorar pelo leite
derramado — continuou Melissa. — Acredito que
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na faculdade ela amadurecerá e encontrará amigos,


rapazes interessantes. Pode ser só uma fase.
— Não é uma fase. — Seu Nando estava com
um semblante de extrema preocupação. — Ela usa
aquelas roupas sinistras há anos. Mal fala com as
pessoas, nem comigo. Carla se machuca, desarruma
a casa inteira. Este mês está mais frequente. — O
homem apoiou as mãos no rosto. — Ela não
permite que ninguém lhe faça companhia. Não quer
ir ao médico, fica agressiva, discute comigo. —
Parou para soltar um longo suspiro. — Todo dia
chego do trabalho rezando para que esteja viva.
Você não faz ideia do que é isso.
Tive verdadeira pena de seu Nando. A culpa
tomou conta de cada partícula do meu espírito.
— Eu imagino. — Melissa parecia triste
também. — Mas você tem que ser forte. Vou ficar
de olho nela.
— Como?
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— Sou sua vizinha, Nando. Posso vir aqui no


período da tarde e verificar se Carla está bem.
AH! Melissa era a vizinha.
Fiquei feliz porque Melissa parecia uma
pessoa legal. Dava para perceber em seu olhar a
admiração que sentia por Nando e a preocupação
sincera por Carla. Ele parecia meio disperso, como
se não tivesse percebido algo que estava bem na
cara dele.
Melissa aparentava ter a mesma idade que
Nando e era uma mulher muito atraente. Seus olhos
eram vivos e fortes, demarcando um rosto um
pouco sofrido pelo tempo, porém bem cuidado. Os
cabelos castanho-claros estavam presos num rabo
de cavalo bem feito. As roupas eram simples, muito
provavelmente porque era sábado e ela era vizinha,
ou seja, não havia motivo para tanta vaidade.
Mesmo assim, notei que tinha passado um pouco de
rímel e gloss labial, dois indicativos fiéis de que ela
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realmente estava interessada em seu Nando.


— Bom dia! — Carla entrou na cozinha, de
repente.
A garota parecia estranhamente bem-disposta
naquela manhã, visto que não era nadinha comum
vê-la sorrir de um jeito tão amplo.
— Bom dia, filha — seu Nando falou com
espanto, como se Carla não frequentasse muito a
cozinha. Ou como se ele não soubesse a reação dela
em ter uma mulher dentro de casa, fazendo o
almoço.
— Bom dia, Carla, dormiu bem? — Melissa
saudou com educação e naturalidade, soltando a
concha sobre um aparato.
Carla me localizou depressa, talvez curiosa
em saber o que eu estava fazendo entre os dois.
Entretanto, ela não se demorou muito me
encarando, provavelmente porque ninguém podia
me ver, e fixar o olhar para o nada era uma atitude
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considerada não muito normal.


— Estou ótima. Hoje eu vou a uma festa,
papai. — Uma simples frase provocou espanto em
todos os presentes. — Espero que não seja
problema para o senhor. — Ela pegou um copo e
começou a enchê-lo com a água da jarra, que estava
em cima da mesa.
— É claro que não. — Seu Nando ficou
subitamente muito animado. Encarou a vizinha e
sorriu. Melissa lhe devolveu o sorriso.
— Bom, é que eu vou com um menino. Ele
vem me buscar às sete. Não sei até que horas a
festa vai rolar, mas ele garantiu que me deixaria
aqui por volta de meia noite. — Carla se sentou à
mesa e beliscou um pedaço de pão que jazia numa
cesta. Ela vestia uma camisola da Bela Adormecida
que eu reconhecia muito bem. Havia sido minha.
— Certo. Leve seu celular e qualquer coisa
ligue para mim.
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— Não dá. Meu celular está quebrado.


Seu Nando nem se importou. Algo me dizia
que faria qualquer coisa para a filha sair de casa e
se divertir.
— Então, leve o meu e ligue para casa.
— Pode ser. Estou com fome, o que tem de
gostoso, Melissa?
— Tem feijão. Ah, e estou fazendo bolinhos
de arroz. — Melissa abriu um sorriso de pura
satisfação.
— Maravilha! Eu adoro bolinhos de arroz! —
Carla riu de um jeito que me deixou boquiaberta.
Ela quase nunca ria. Com certeza eu jamais a tinha
visto tão alegre. — Não tenho comido muito,
ultimamente. Na verdade, nem lembro quando foi a
última vez que comi.
— Isso é um perigo, Carla. Você precisa se
alimentar — Melissa falou com timbre de mãe
preocupada.
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— É, eu sei. Não vou fazer de novo. Eu acho.


Seu Nando permaneceu visivelmente
surpreso e feliz com a atitude animada de Carla.
Não foi só ele, todos nós estávamos em êxtase. Eu
nem acreditava que não teria problemas em
convencê-la a ir à festa. Significava que eu havia
ganhado cerca de três ou quatro horas do restante
do dia. Sem contar que seu humor estava
especificamente ótimo, o que me traria ainda mais
facilidade. De verdade, senti que a felicidade de
Carla era um dos melhores presentes de aniversário
que eu poderia ganhar.
E aquilo era muito estranho.
O almoço foi bastante animado. Melissa
preparou alguns quitutes além dos bolinhos,
fazendo Nando e Carla se encantarem com o seu
desempenho gastronômico. Fiquei morrendo de
vontade de provar a comida, até porque o cheiro
estava delicioso, mas tentei recordar que fantasmas
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se alimentavam de outra forma. Uma forma menos


física e mais espiritual, digamos assim.
Os três pareciam tão compenetrados em se
dar bem que foi impossível não pensar em como
seria se, por acaso, Melissa ingressasse naquela
família. Contudo, meio envergonhada por
bisbilhotar o momento familiar dos três, me
encaminhei para o quarto de Carla e continuei
separando as coisas que precisaríamos para a sessão
de beleza de logo mais.
Nada como passar o aniversário
transformando o visual de alguém.
— Pronta para começarmos? — Carla entrou
em seu quarto depois de meia hora, trancando a
porta atrás de si para ninguém nos incomodar.
— Prontíssima, é claro! — Abri um largo
sorriso. Tudo estava muito perfeito para ser real. Eu
me sentia num estado de satisfação que não
experimentava há muito tempo.
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— Você parece bem animada, o que


aconteceu? — Carla se sentou na beirada da cama,
observando-me com curiosidade.
— Você que está animada, eu que pergunto o
que aconteceu!
— Tive um sonho bom. — Carla passou por
mim e entrou no banheiro sem fechar a porta.
Eu a segui, pois estava morrendo de
curiosidade.
— Que tipo de sonho?
— Sonhei que esta noite seria maravilhosa.
Que daria tudo certo, e o Kevin... Bom... — Carla
tirou a camisola sem qualquer pudor. Entrou
debaixo do chuveiro como se eu nem estivesse ali.
Prometi que tentaria me lembrar em qual momento
nos tornamos tão íntimas. — Ele me beijava e dizia
que gostava muito de mim, depois me convidava
para o baile de conclusão. Foi tão mágico! Ai, que
água fria! — Deu alguns pulos animados e
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começou a rir.
— Você fala como se fosse realmente
acontecer. Foi só um sonho. Não quero te
desanimar, mas também não gostaria que se
decepcionasse. — Minha intenção era prepará-la
para possíveis desapontamentos, e não a encher de
pessimismo.
— Acho que você notou que sou um tanto
diferente das outras pessoas. — Carla aplicou uma
bela quantidade de xampu no cabelo. — Meus
sonhos acontecem. Todos eles.
— Sério? — Fiquei muito surpresa com
aquela informação.
— Felizmente, e infelizmente, sim.
Permaneci calada por algum tempo, meio
pensativa. Eu não queria que Carla criasse uma
expectativa muito grande, pois podia ser que nada
do que sonhou chegasse a se concretizar. Mesmo
me garantindo que seus sonhos se tornavam
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realidade, eu ainda guardava minhas dúvidas. O


meu objetivo para aquela noite era apenas que ela e
Kevin tivessem uma oportunidade de ficar juntos,
conversar e se conhecer melhor. Com muita sorte,
ele a convidaria para o baile de formatura e Carla
ficaria feliz pelo resto da semana. Se aquilo
acontecesse, eu já estaria muito mais do que
satisfeita.
Ainda assim, precisava confessar que sentia
ciúmes do Kevin, e também uma inveja por Carla
estar viva e poder arranjar um namorado, ir para a
faculdade e várias outras coisas que eu nunca
saberia como era. Ela tinha toda a vida pela frente,
e eu havia perdido tudo por causa da minha
completa falta de atenção. O motivo era muito
estúpido, afinal.
Por que não olhei para os dois lados antes de
atravessar?
— Agora, me conte, por que está tão
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animada? — Sua voz saiu abafada pela água do


chuveiro.
— É uma longa história. Resumindo, estou
muito mais convicta de que as coisas vão melhorar
e eu finalmente irei ao céu.
— Não, acho que não é só isso. Já te vi
animada várias vezes, estando viva ou morta. Você
está diferente.
— Diferente como? — perguntei sem
entender.
— Bom, se eu não soubesse que você está
morta, diria que está apaixonada. — Carla desligou
o chuveiro e enrolou seu corpo nu em uma toalha
cor de rosa.
Estava tão na cara assim?
— Para onde acha que os caras lindos e
gostosos vão quando morrem? — insinuei.
Carla pegou uma toalha menor, que estava
pendurada num compartimento ao lado do
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chuveiro, e enrolou o cabelo.


— Você não está falando sério, está? —
Encarou-me, surpresa.
— A morte não é o fim. As almas podem se
apaixonar por outras almas, acontece. Pelo menos
foi o que aconteceu comigo. — Eu estava
envergonhada em compartilhar aquela intimidade
incomum com Carla, mas, estranhamente, sentia
que podia fazer aquilo. — E agora está estampado
bem no meio da minha testa.
— E quem é o cara? Quero conhecê-lo!
Prometa que vai me mostrar, quero ver um
fantasma gostosão! — Ela riu de leve, e eu me
perguntei o que tinham feito com a Carla original.
Definitivamente, fizeram alguma troca e aquela
garota feliz na minha frente era um extraterrestre.
— Acho que posso mostrá-lo assim que você
vestir alguma coisa. Se ele não estiver ocupado,
claro. Mas, por favor, se comporte, ele é um cara
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do tipo bem certinho.


Carla caiu na gargalhada, ainda sem acreditar
na minha história de paixão. Eu mal sabia se
realmente era permitido apresentar Leonardo à
Carla, mas tive uma enorme necessidade de que
alguém o visse e me dissesse que o que eu sentia
por ele era loucura.
— Sério, Rafa, você morreu um dia desses e
já está conquistando corações no plano astral? —
Carla continuou rindo, sem nenhum resquício de
maldade ou implicância.
Ela estava apenas tentando ser legal, como
uma amiga que me conhecia há algum tempo. Nem
preciso dizer o quanto era estranho ter aquele tipo
de relação com ela. Em contrapartida, meu espírito
estava leve, sinal de que Carla me fazia bem.
— Acredite ou não, é a primeira vez que
sinto algo tão forte — suspirei profundamente. —
E, por incrível que pareça, eu não queria isso. Além
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do mais, pode parecer esquisito para você, mas não


sou correspondida.
— Isso é... incrível. Algum cara não
corresponde Rafaela Satto? Duvido muito!
— É sério, não ria! — Não pude evitar
começar a rir também.
Era a primeira vez em que compartilhávamos
momentos de distração. Falando sério, qual era a
probabilidade de eu ter um momento assim com ela
quando estava viva? Nunca. Foi naquele exato
momento que percebi o quanto Carla era uma
pessoa legal. Vê-la daquele jeito, tão contente, me
deu ainda mais esperanças. Pude sentir, no fundo
do meu coração, que ela conseguiria o que queria.
E eu também.
— Pronto, pode chamar o gostosão! —
alertou, superanimada, depois de ter colocado um
short e uma blusinha.
— Eu tenho vergonha! — Senti meu rosto
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corar e minhas mãos ficarem um pouco trêmulas.


— Vai logo! — gritou Carla, puxando a barra
do meu vestido. — Estou curiosa!
— Ai, tá bom! Pelo amor de Deus, cuidado
com o que vai dizer!
— Não se preocupe!
Instantaneamente, pensei em Leonardo da
mesma forma como havia feito na noite anterior:
lembrando-me de cada detalhe magnífico do
homem que só fazia me deixar ainda mais louca.
Meu corpo ardeu em desejo de tê-lo comigo mais
uma vez. Não dava para evitar.
Carla deve ter percebido meu semblante
apaixonado, pois não parava de olhar para mim,
certamente achando sensacional o fato de eu estar
caidinha por um fantasma. Não demorou muito até
que Leonardo apareceu no quarto, meio sem
entender por que eu o havia chamado tão cedo.
— Este é Leonardo, Carla — apontei para ele
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e o olhei significativamente. Tentei manter a


naturalidade em fazer as devidas apresentações.
Leonardo continuou de pé, meio sem saber onde se
posicionar. — Leonardo, esta é Carla. Ela queria te
conhecer, não me pergunte por quê.
Ambos riram do meu óbvio desconcerto.
— Oi, Leonardo, tudo bem? — Carla sorriu
abertamente.
— Tudo bem. É muito bom te conhecer
pessoalmente, Carla. Rafaela fala muito sobre você.
— Ele pareceu se divertir muito com aquilo, o que
só me deixou ainda mais envergonhada.
— Com certeza deve ter ouvido falar. Eu não
sabia que Rafa tinha um Conselheiro de Luz.
Fiquei muito surpresa com o comentário de
Carla.
— Espera aí, como você sabe que ele é um
Conselheiro?
Era impressão minha ou todo mundo sabia
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das coisas muito mais do que eu?


— Já vi alguns Conselheiros por aí. Um deles
foi aquela mulher no ônibus, outro dia. São os
únicos fantasmas que têm a aura extremamente
luminosa. — Observamos a aura de Leonardo
instintivamente. De fato, ela emanava uma luz
muito maior do que qualquer outra. — Eles
também promovem uma sensação de calma e paz
por onde andam.
— Pensei que só eu sentia isso — murmurei,
olhando para Leonardo. Ele sorriu em resposta.
— Todos nós sentimos, até quem está vivo e
não pode ver fantasmas. Os Conselheiros são como
anjos. — Carla estava encantada com a presença de
Leonardo, dava para notar pela forma que o
observava. — E ele é realmente muito bonito, você
tem razão, Rafa.
Quase tive um infarto, tamanha vergonha
que senti. O que tinha dado em Carla, afinal? A
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teoria de que ela era um ET ficava cada segundo


mais plausível.
Leonardo apenas riu, ainda achando tudo
muito engraçado.
— Estou feliz por vocês duas estarem tão
animadas — disse Leonardo, sem deixar o sorriso
maravilhoso ir embora. — Um passarinho me
contou que hoje é um dia bem feminino. Do tipo
salão de beleza e estética.
Eu era o passarinho. Contei para ele sobre a
festa na noite passada.
Não cansei de admirá-lo como uma boba. Seu
sorriso era a coisa mais encantadora que eu já tinha
visto na vida. A voz doce fazia meu corpo inteiro
tremer e meu coração bater mais rápido. Leonardo
era magnífico em todos os sentidos. Perguntei-me
se Carla também havia achado o mesmo.
— Exatamente. Por este motivo, homens,
anjos e Conselheiros estão fora do clube. — Nós
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dois nos entreolhamos.


— Já entendi, estou indo! — Leonardo riu,
levantando as mãos para o alto.
— Foi bom te conhecer, Leonardo. Até mais!
— Igualmente, Carla, até mais. — Depois de
saudar Carla, Leonardo, então, me encarou
fixamente, mudando o tom de sua voz para algo
bem mais doce do que já era. — Se precisar de
ajuda, já sabe, não é?
— Sei, sim. — Ofereci-lhe um sorriso bobo
enquanto ele se desmaterializava lentamente.
O mais impressionante foi que, antes de
terminar de se desmaterializar, Leonardo ergueu
uma de suas mãos para mim e, assim que
desapareceu de vez, uma rosa branca surgiu em
meu colo.
— Uau! — Carla a segurou antes que eu
tivesse a oportunidade de tocá-la. — Ele deve ser
muito poderoso! Não é todo Conselheiro que tem o
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dom de materializar objetos a partir do nada! Seu


namorado é incrível, Rafaela! — Entregou-me a
rosa, e eu prontamente senti o seu perfume. Era
delicioso, mas não tanto quanto o cheiro de
Leonardo.
— Ele não é meu namorado — murmurei,
embasbacada.
— Ele te corresponde. — A garota se sentou
ao meu lado, na beirada da cama, e segurou meu
ombro direito.
— Não. Ele só é muito gentil comigo porque
sabe o que sinto por ele.
— Não sei, não. Tenho minhas dúvidas.
Carla se levantou em um salto, pegou um
copo com água e colocou a rosa branca em seu
criado-mudo. Como eu não tinha onde colocá-la, e
ela era muito real, resolvi deixá-la exatamente ali,
já que eu sempre teria a chance de observá-la
quando bem quisesse.
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Começamos a montar o visual de Carla. Seu


cabelo não deu muito trabalho, pois ele era tão
lindo que quanto mais natural ficasse, melhor seria.
Entretanto, a maquiagem foi bem preocupante,
visto que as marcas de pancadas tinham colorações
esquisitas e diferentes em diversos pontos de seu
rosto.
Mesmo com todo o trabalho, às seis horas em
ponto Carla já estava com a maquiagem e os
cabelos em perfeito estado, apenas esperando ficar
mais perto das sete horas para colocar a roupa.
Escolhemos a dedo um vestidinho lilás com
detalhes de fita preta — caríssimo, por sinal —, que
eu havia comprado há alguns meses. Ele nunca
tinha saído de meu guarda-roupa desde então. Eu
estava esperando uma oportunidade especial para
usá-lo. Quando Carla o experimentou, senti que a
peça fora comprada especialmente para aquele
momento.
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Estávamos felizes e muito animadas.


Impressionante como as coisas tinham se
modificado de um dia para o outro. Era como se o
fato de Leonardo estar presente em minha vida
tornasse todo o resto muito mais fácil. Torci em
silêncio para que aquela onda de sorte não parasse,
pois o futuro da minha alma dependia ativamente
daquela noite de festa.
Mal sabia eu que aquela sorte era apenas o
suspiro profundo antes de um mergulho quase
irreversível na mais completa escuridão.

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Capítulo 21

A festa

COMO O combinado, Kevin chegou às sete horas


em ponto na casa de Carla. Ele foi absolutamente
cavalheiro em descer do carro — presente de
aniversário de dezoito anos que ganhou dos pais no
começo do ano — para conhecer seu Nando e
prometer que traria Carla de volta, e intacta, à meia
noite e meia. Kevin ficou encantado com a
aparência dela. Observei todo o desenrolar da cena,
sentindo um misto muito estranho de felicidade e
ciúme.
De qualquer forma, se alguma dúvida eu
tinha sobre o que Daniele havia dito, se dissipou
naquele momento. O olhar de Kevin foi de pura
emoção. Era perceptível que não estava fingindo ou

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enganando. Enquanto isso, Carla curtia o momento


especial, nitidamente emocionada por ter o cara que
sempre esteve a fim exatamente onde ela queria. A
felicidade dos dois foi uma coisa linda de observar.
Tão linda que não tive coragem de acompanhá-los
o tempo todo e, quando partiram, também não tive
a ousadia de ir junto. Decidi que ia à festa só para
observar de longe, para que minha presença não
desconcentrasse Carla.
Quando eles foram embora, seu Nando
entrou em casa e eu fiquei de pé na calçada, apenas
esperando o tempo passar. A rua estava meio
deserta naquela noite, ventava forte e fazia um
pouco de frio. Não havia sinal das crianças que
sempre brincavam durante o dia, todas já estavam
recolhidas em suas casas.
Só depois de alguns minutos foi que percebi
Victor do outro lado da rua, com as mãos no bolso,
observando-me seriamente. Demorei um pouco
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olhando em seus olhos muito verdes, me sentindo


envergonhada por ter correspondido ao beijo que
me deu no gramado. Tudo mudou tão depressa que
eu tinha me esquecido completamente dele. Como
Victor não esboçou reação alguma, e não parecia
muito disposto a conversar comigo, atravessei a rua
para conferir o que ele estava fazendo.
— O que faz aqui? — Sorri educadamente
após fazer aquela pergunta, já que devo ter soado
meio grosseira.
— Vim conferir se você estava bem.
— Estou bem. — Senti o meu rosto corar de
vergonha. Eu não estava sendo muito justa com ele.
— E você?
Victor me ignorou totalmente. Alguns longos
minutos se passaram sem que trocássemos qualquer
palavra. Ele manteve uma expressão meio
esquisita, e obviamente não estava muito a fim de
papo. Era a primeira vez que não tinha alguma
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coisa para me dizer.


A construção atrás de nós chamou a minha
atenção, de súbito. Era uma casa um tanto velha e
abandonada. As paredes estavam marcadas com
manchas escuras, que se estendiam até o teto,
atribuindo um ar sobrenatural à sua estrutura. Por
um momento, lembrei-me da casa velha e
queimada que vi quando visitei Victor. Eram bem
parecidas, na verdade; ambas foram completamente
incendiadas.
— Esta casa parece com a sua! — apontei.
Victor não esboçou reação alguma, apenas
continuou olhando fixamente para o nada, com a
expressão mais sinistra que eu já tinha visto.
Cansada de ser ignorada, atravessei as paredes da
casa velha, e o que constatei me deixou bem
confusa. Era exatamente igual à de Victor. O
mesmo sofá surrado, caindo aos pedaços, estava
jogado em um dos cantos do que restara da sala. As
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paredes em péssimo estado, bem como o cheiro


horrível de mofo, eram iguais.
Ele era vizinho de Carla? Por que não me
disse antes? Que coincidência!
Completamente confusa, atravessei as
paredes em direção à rua e encontrei Victor do
mesmo jeito como eu o havia deixado. Não
consegui entender os motivos de seu silêncio.
— Você mora aqui? Por que não me contou?
— Ergui uma mão para tocar seu braço, mas desisti
no meio do caminho.
— Porque não é da sua conta — ele falou
rispidamente.
— Claro que é da minha conta, você é
vizinho da garota que tenho que ajudar.
Quem ele estava pensando que era para falar
comigo naquele tom?
Victor não saiu do lugar, não olhou para mim
e não fez mais nada. Eu já estava completamente
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irritada com o comportamento dele, por isso resolvi


ir à festa de uma vez por todas e deixá-lo sozinho
com a própria ignorância. Porém, antes que eu
pudesse me desmaterializar, Victor falou uma coisa
que conseguiu me deixar menos irritada com ele:
— A propósito, feliz aniversário. — Olhou
para mim demoradamente.
Seus olhos profundos teimaram em me deixar
hipnotizada. Contudo, pude notar resquícios de
tristeza neles. Victor estava triste e eu não sabia até
que ponto eu era culpada. Sua boca estava cerrada
com tanta força que parecia apenas um risco.
— Muito obrigada pela lembrança.
Eu estava sendo extremamente injusta com
ele. Victor não tinha culpa de estar interessado em
mim. Supus que talvez estivesse chateado por eu ter
gritado com ele antes de ir embora na noite
anterior, deixando-o sozinho enquanto corria atrás
de Leonardo. Se algo assim acontecesse comigo,
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também ficaria morrendo de raiva e de tristeza.


Mas não mudava o fato de que eu não podia
corresponder ao que ele sentia.
Eu não podia fazer nada.
Aproveitei seu silêncio para me
desmaterializar devagar. Mesmo contra a minha
vontade, precisava ficar de olho na festa.
A mansão de Pedro, o garoto mais rico de
toda a escola, era de colocar inveja em qualquer
criatura que possuísse um pouco de ambição,
localizada em um dos melhores bairros da cidade.
Continha vários cômodos, além de piscinas,
quadras, jardins e salões de jogos. Todas as festas
da turma eram realizadas ali, principalmente
quando os pais dele faziam viagens para outros
países. Eu já havia participado de diversas festas na
casa de Pedro, que normalmente só recebia o grupo
dos mais populares da escola.
Como estávamos prestes a nos formar, a festa
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com certeza seria muito maior. Todas as turmas do


último ano foram convidadas, inclusive os nerds e
os antissociais. Que, claro, não viriam. Mesmo
assim, reconheci quase todas as pessoas que
andavam pela sala da mansão.
Sobre um sofá que parecia caro, localizei um
grupo enorme de meninas, que incluía Daniele,
Marta e várias de nossas amigas. Elas conversavam
como loucas, rindo sabe-se lá do quê. Aquelas
meninas beberiam cerveja até ficarem bêbadas,
depois pegariam todos os garotos lindos do time de
futebol, vomitariam na piscina e, na segunda-feira,
fingiriam que nada havia acontecido. Eu sabia que
era exatamente aquilo o que aconteceria, por pura
experiência. A minha sorte foi que sempre odiei
qualquer tipo de bebida alcoólica, por isso eu curtia
as partes boas da festa e ia embora antes que a
primeira “coleguinha” começasse a agir como uma
idiota.
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Caminhei entre as salas sofisticadas da


mansão e percebi que aquela festa estava
incrivelmente mais organizada que as demais.
Todos estavam se servindo com copos descartáveis,
o que de fato evitaria a quebradeira que tinha
acontecido na última festa da piscina, realizada no
início do ano. Alguns móveis e vasos que custavam
uma fortuna foram retirados, assim como os
tapetes. Os sofás foram inteligentemente cobertos
com plásticos.
Depois de um tempo vagando sem rumo
entre as pessoas, vi Carla e Kevin sentados numa
mesa, perto da piscina. Kevin conversava com
alguns de seus amigos populares, enquanto Carla
permanecia quieta, nitidamente envergonhada por
estar entre pessoas que sempre fizeram questão de
tratá-la mal.
Kevin segurava a mão de Carla e não a
largava por nada, dando o apoio que ela precisava
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para não se sentir um peixe fora d’água. Aquele


gesto de carinho e dedicação era magnífico, apesar
de me causar um pouco de ciúme. Eu sabia que o
meu ex era um rapaz especial, mas não fazia ideia
do quanto. As pessoas passavam por eles e
estranhavam vê-los tão juntos, porém nada diziam.
Pensando bem, devia ser mesmo muito estranho ver
o namorado de uma garota popular, que morreu há
uma semana, ao lado da garota esquisita que
sempre foi destratada pela própria falecida.
Eu não queria que Carla ficasse
desconfortável com a minha presença, portanto me
sentei na beirada da piscina, coloquei minhas
pernas para dentro da água e observei o decorrer da
festa. Com a intenção de não morrer de tédio,
cantei algumas canções conhecidas que tocavam
nos alto-falantes.
Depois de alguns minutos intermináveis,
cheguei à conclusão de que todas as festas eram
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exatamente iguais. Garotas superficiais querendo se


mostrar para outras garotas superficiais. Garotos
atléticos e bonitos usando drogas sem limites. Eu
costumava gostar de festas daquele tipo, mas,
inacreditavelmente, aquilo não fazia mais sentido
algum para mim.
Quando começou a tocar uma de minhas
músicas favoritas, percebi que Kevin e Carla
estavam se distanciando do restante das pessoas,
seguindo para o jardim da mansão de mãos dadas.
Tudo bem, sabia perfeitamente o que uma garota e
um garoto faziam sozinhos em jardins, mas não
podia perder aquilo por nada no mundo. Em
circunstâncias normais eu deixaria os pombinhos se
divertirem, mas aquilo estava longe de ser normal.
Eu me levantei da borda da piscina e
constatei que meus pés não estavam molhados. Não
permiti que a água os tocasse, portanto eles apenas
a atravessaram, como se ela não existisse. Segui os
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passos do casal recém-formado, tomando bastante


cuidado para não provocar nenhum ruído e ser
descoberta por Carla.
Eles caminharam vagarosamente e se
sentaram em um banco duplo, daqueles de jardim.
Havia várias árvores e plantas de diferentes
espécies ao redor, e eu me posicionei em um
arbusto, que ficava bem atrás do banco em que eles
haviam sentado. Era um arbusto grande o suficiente
para que eu pudesse me esconder, e dali eu podia
ouvir tudo o que diziam.
— O que está achando da festa? — perguntou
Kevin, colocando seu braço sobre os ombros de
Carla, não antes de ter a preocupação de erguer o
cabelo dela para não amassá-los.
— Eu não sei direito. É tudo bem diferente
para mim. Não estou acostumada a ser bem aceita
pelas pessoas.
— Isso vai mudar. Você vai ver. — Kevin a
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olhou demoradamente.
Seus olhos azuis estavam particularmente
encantadores naquela noite. Não havia mais sinal
de tristeza neles.
— Já mudou bastante, e parte disso devo a
você.
E a mim também! Não se esqueça de mim!
Ela olhou de volta para ele, provavelmente
admirando sua beleza.
— Eu estava pensando, Carla... — prosseguiu
Kevin, alisando o queixo dela de maneira bem
suave. Meu Deus, ele estava mesmo muito a fim.
— O que você acha de ir ao baile de conclusão
comigo? Não precisa responder agora, não quero te
pressionar.
— Eu adoraria! — Carla falou rápido demais,
com a voz transbordando de emoção. — Sério, eu...
gostaria muito.
Kevin sorriu abertamente. A beleza dele era
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impressionante.
— Fico muito feliz em ter sua companhia.
Imaginei como Carla devia estar se sentindo
naquele momento. Aliás, não somente imaginei,
pude sentir de verdade toda a alegria que ela sentia.
As coisas que tinha sonhado estavam começando a
acontecer. Kevin a olhava tão profundamente que,
se fosse eu no lugar dela, já teria pulado em cima
dele há muito tempo, sem dúvida alguma.
— Sabe, Kevin, eu queria muito que me
dissesse uma coisa. Não sei se pode me responder
isso, mas eu preciso saber.
Saber o quê, garota? Ele está a fim de você!
— Pode falar, lindinha. — Kevin brincou
com algumas mexas do cabelo de Carla.
— Por que eu? Digo, por que isso agora,
desse jeito? — perguntou, parecendo meio confusa.
— Eu não queria falar a respeito, mas... você era
namorado de Rafaela. Ela morreu há tão pouco
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tempo e, bem... você sabe o quanto ela me odiava.


— Carla se afastou um pouco para observá-lo
melhor. — Não queria que se sentisse na obrigação
de estar comigo por pena. Sei o quanto a amava.
— Você tem toda razão em estar confusa —
Kevin admitiu aos murmúrios. Sua expressão havia
mudado completamente. Ele estava bem mais sério.
— Olha, eu realmente amava Rafaela. Amava de
um jeito que ela nunca soube retribuir.
Como assim? Por que ele estava falando
daquele jeito?
Tudo bem, eu sabia que era a mais pura
verdade, e eu me arrependia amargamente a todo
instante, mas ouvir diretamente da boca dele me
machucou demais. Não queria que tivesse aquele
tipo de recordação em relação a mim. Queria que
tudo fosse diferente. Senti uma tristeza muito
grande invadir o meu coração. Uma vontade
absurda de sair correndo e chorar o restante da
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noite. Mas eu precisava escutar aquela conversa até


o fim.
— Quando Rafaela morreu, pensei que eu
fosse morrer também — Kevin continuou: — Sei
que faz pouquíssimo tempo, e tudo ainda dói
demais, só que... Em um dia qualquer dessa
semana, em uma hora que não importa, eu te vi
caminhando nos corredores da escola. Naquele
momento, vi uma Carla diferente do que todo
mundo pensava. Diferente do que Rafaela dizia.
Desde então, não consegui parar de te observar.
Meu esconderijo ficava cada vez mais
desconfortável, e a vontade de chorar ainda era
muito grande, mas eu não podia perder nada
daquela conversa, de modo algum. Estava ficando
interessante. Eu praticamente não piscava os meus
olhos para não perder nenhum detalhe, e ambos
pareciam fazer o mesmo que eu, mantendo-se
atentos.
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— Depois de te observar, comecei a me


indignar com a maneira que as pessoas te tratavam.
— Kevin continuou com seu olhar azul apontado
para Carla. — Comecei a não aceitar que as
pessoas te fizessem sofrer. Aprendi a te admirar
profundamente, apenas te observando. Não sei o
que sinto por você, para ser sincero. É uma coisa
nova, diferente, que me faz bem. — Kevin se
aproximou, segurando-lhe as mãos. — É como se
você fosse um feixe de luz no meio de tanta
escuridão. Quando estou contigo, como agora, eu
me sinto feliz como pensei que nunca mais
conseguiria.
Tive certeza de que Carla estava
embasbacada, tanto pelo aperto no meu coração
quanto pelos seus olhos negros extremamente
abertos.
— E-Entendo... E-eu... — Carla não
conseguiu falar mais nada.
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— E você? — Kevin sorriu, meio


envergonhado.
— Eu o quê?
— Achei que você nunca aceitaria uma
aproximação. Pensei que me odiasse.
— É claro que não. — Carla usou uma voz
doce que eu não conhecia até aquele momento. —
Sempre gostei de você. De verdade.
— Sério? — Kevin se espantou.
— Sim. — Carla ergueu os ombros e depois
os abaixou. Fitou o chão. — Sempre gostei de você
de uma maneira especial. — Sua pele muito branca
ganhou uma coloração rosada que só a deixou mais
bonita. — Mas você namorava Rafaela. Por mais
que eu a odiasse, na época, jamais ousaria me
aproximar. Até porque nunca me aproximei de
ninguém. E acho feio desejar o namorado dos
outros.
O que Carla disse a Kevin soou como um
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verdadeiro soco na minha cara. Enquanto minha


melhor amiga tentava roubar o meu namorado na
maior cara de pau, a pessoa que eu mais odiava
tinha respeito por mim. Era uma prova óbvia de
que minha vida foi feita por escolhas erradas,
começando pelas amizades. Carla era realmente
especial, e Kevin teve a sensibilidade de ver o que
ninguém via, o que fazia dele uma pessoa
igualmente especial. Só de pensar que eu brincava
com os dois ao meu bel prazer, um sentimento de
angústia e culpa tomava conta da minha alma.
— Quando me convidou para sair, quase não
acreditei. Até agora não acredito. Está parecendo
um sonho. — De fato, tudo o que Carla tinha
sonhado era concretizado naquele instante.
— Eu não sabia disso — Kevin murmurou,
aproximando-se ainda mais. — Carla, quero que
me prometa uma coisa.
A garota aquiesceu.
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— Quero que me prometa que não vai mais


deixar as pessoas te tratarem mal. Que não vai mais
ficar triste, sofrendo sozinha. Prometa que, quando
estiver assim, vai me ligar, me procurar... Que vai
contar comigo sempre que desejar. Promete?
— Prometo — Carla sussurrou.
— Prometo estar sempre aqui para você. —
Kevin deixou o seu rosto cada vez mais próximo do
dela.
Então eu vi com meus próprios olhos, que a
terra já devia ter comido.
Eles se beijaram apaixonadamente. Não foi
um beijinho besta qualquer, foi um beijo do tipo...
Beijão mesmo. Eles estavam abraçados
carinhosamente, movendo-se com vontade e desejo.
Confesso que senti uma pontada aguda de ciúme ao
ver meu ex-namorado, que era um cara
absolutamente perfeito e que eu nunca havia dado
devido valor, beijando outra garota. Por outro lado,
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fiquei mais feliz do que imaginei, apenas porque os


dois estavam felizes, completos. Eram um casal e
tanto. Aprovei aquele sentimento bom, colocando o
orgulho de lado. Não dava para não achá-los
encantadores juntos. Eu estava maravilhada.
Até que vieram as gargalhadas.
Da escuridão do jardim, surgiram algumas
risadas forçadas e gritos femininos. Logo, pude ver
uma silhueta saindo por detrás de alguns arbustos e
se aproximando, acompanhada por várias outras.
— Olha só, meninas! O viúvo e a esquisita,
juntinhos! — disse uma voz que não reconheci. As
gargalhadas que acompanharam aquela afirmação
de mau gosto foi geral, tirando o silêncio calmo do
jardim.
Kevin e Carla tomaram um susto,
desvencilhando-se um do outro para ver quem
estava se aproximando. Daniele e toda a sua
“equipe” estavam lá. Cerca de seis ou sete garotas.
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Aproximei-me mais, porém de um modo que Carla


ainda não pudesse me ver. Dentro de mim algo
dizia que uma coisa muito ruim estava prestes a
acontecer. A presença de Daniele inspirava um mau
presságio. Eu estava certa.
— Muito bom, Kevin! Pegamos tudo
direitinho. — Daniele segurava algum objeto
escuro, que não pude identificar de imediato.
— Do que você está falando? — Kevin
parecia irritado com a invasão.
— Não precisa mais assumir o papel, já
gravamos tudo. A turma vai adorar essa gravação.
— Daniele sorriu sarcasticamente.
Seu olhar cruel estava ainda mais
irreconhecível. Aquela garota não podia ser a
mesma pessoa que fora minha melhor amiga por
tantos anos. Pela primeira vez na vida, tive muito
medo dela. Apesar de estar particularmente linda
naquela noite, usando um vestidinho preto bem
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decotado, que realçava os cabelos vermelhos, seu


olhar não negava que havia planejado coisas ruins
para aquela noite.
— Não estou entendendo. — Kevin tentou se
manter calmo. Ele segurou a mão de Carla
firmemente.
— Você é realmente muito bom ator, Kevin,
eu deveria estar filmando ainda, se soubesse que
continuaria com a farsa. Com certeza isso te custará
alguma bolsa numa faculdade. — Daniele então se
aproximou de Carla. — Aberração! Acha mesmo
que alguém é capaz de gostar de você?
As garotas riram.
— Aberração é você, Daniele, o que faz
aqui? — Nunca vi Carla se defendendo daquele
jeito.
Por outro lado, eu sabia o quanto ela estava
nervosa, visto que meu coração batia
apressadamente e meu estômago estava prestes a
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derreter. Eu também estava nervosa, é claro, e


nossos nervosismos unidos deixavam a situação
ainda pior. Cheguei ainda mais perto, me livrando
totalmente do arbusto em que eu me escondia.
— Gravando a ceninha de vocês, é claro. —
Daniele mostrou uma câmera filmadora em suas
mãos. — Kevin queria provar para toda a turma
que você era realmente a fim dele. Então,
combinamos que eu ficaria escondida atrás
daquelas árvores. Tentei te avisar, meu amor, mas
você não acreditou em mim. Agora é questão de
tempo até os garotos instalarem o telão e você
pagar o maior mico.
O quê?
— Isso é mentira! — gritou Kevin,
levantando-se do banco, perdendo o controle. Carla
permaneceu estática, olhando para ele chocada.
— Uau! Nossa, você é bom mesmo! —
Daniele aplaudiu, e as meninas fizeram o mesmo.
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Bando de cadelas!
— Não acredite nela, isso tudo é mentira! —
Kevin se virou para Carla, que ainda não havia
esboçado reação alguma. Ele estava desesperado.
— Você... — Carla sussurrou, os olhos se
enchendo de lágrimas. — Você me enganou! —
Levantou-se do banco também. — Você me
enganou o tempo todo!
— Carla, me escute, isso é uma armação! —
Kevin tentou se aproximar dela, com as mãos
levantadas, mas a garota deu vários passos para
trás, impedindo-o de se aproximar.
— Claro que é! Você armou para cima de
mim! Não acredito que caí nessa! — Carla
começou a chorar. — Como fui idiota!
Fiquei totalmente chocada com a situação, de
modo que apenas observei o desenrolar da cena,
sem acreditar no que via. Aquilo não podia ser
verdade. Não podia estar acontecendo. O pior de
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tudo era que eu não sabia se Kevin estava mentindo


descaradamente ou tentando falar uma verdade
desesperadora.
Carla parecia já ter se decidido pela mentira.
— Bom, Kevin, agora vamos lá assistir o
filminho. Adorei a parte do “eu sempre gostei de
você”. Acho que vou editar para ficar repetindo, o
que acham, meninas? — As garotas riam, faziam
barulhos escandalosos que me enchiam de asco. —
Se você quiser, Kevin, posso retirar a parte do
beijinho doce. Ninguém merece ter que beijar essa
idiota, sei que é tudo em nome da arte, mas...
— Cale a boca! — Kevin gritou, assustando
Daniele a ponto de interromper sua narrativa cruel.
Percebi que os olhos do meu ex estavam marejados.
Foi naquele momento que me decidi.
Ele falava a verdade!
— Você é um monstro! — gritou Carla entre
lágrimas, perdendo de uma vez o controle e
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empurrando Kevin. Ele deu vários passos para trás,


meio desequilibrado. — Eu não devia ter
acreditado em você! Não devia ter acreditado em
ninguém!
Carla me encarou logo em seguida, como se
soubesse o tempo todo que eu estava exatamente
ali, assistindo a tudo aquilo. E, pior ainda, achando
que eu estava envolvida em toda aquela palhaçada.
— Kevin está falando a verdade! — gritei,
saindo do choque que me paralisava. — Acredite
nele!
— Não! — Carla gritou alto e
desesperadamente.
— Carla, por favor, me escute, eu não... —
Kevin tentou dizer, segurando em seus ombros.
Mas Carla, novamente, não permitiu a
aproximação.
— Não toque em mim! Nunca mais! Você
me dá nojo! — Ela deu um tapa no rosto de Kevin
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e saiu correndo pelo jardim.


Ao passar por mim, Carla simplesmente
ignorou a minha presença e trombou comigo,
derrubando-me no chão. Ela nada sofreu com o
choque e continuou a correr, deixando-me de
joelhos na grama do jardim.
Todas as garotas começaram a gargalhar
como loucas, menos Daniele. Ela mantinha um
olhar firme e sombrio. Um olhar cruel, ruim.
— O que você fez, sua vadia? — disse
Kevin, absurdamente alterado, levantando uma de
suas mãos para Daniele, quase batendo nela. Ele se
conteve na metade do caminho. Era cavalheiro
demais para isso.
Eu permaneci congelada onde estava,
sentindo a grama em minhas mãos, como se de
algum modo tivesse criado raízes iguais as das
árvores em volta. Não dava para acreditar no que
estava acontecendo.
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— O que eu fiz para você, me diz? Por que


fez isso comigo? Nunca te fiz nada! — Kevin
gritou. As primeiras lágrimas desceram pelo seu
rosto horrorizado.
— Não foi por você, Kevin, muito pelo
contrário — Daniele falou de um jeito manso. —
Essa aberração pela qual você se apaixonou é uma
assassina. Ela matou a sua namorada. Como se
sente, Kevin? Como é se apaixonar pela garota que
matou a pessoa que você amava?
— Foi um acidente!
— É o que todos dizem. Mas ela não me
engana. Carla ameaçou Rafaela de morte um dia
antes desse “acidente”. — Daniele possuía uma
frieza sem limites, como se nada daquela situação a
abalasse de verdade. — Você está no fundo do
poço mesmo, Kevin. Eu posso te ajudar a
raciocinar. Sabe perfeitamente o quanto sempre te
amei.
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Que... ridícula!
Kevin mal acreditou no que Daniele propôs.
Muito menos eu.
— Prefiro morrer a ficar contigo.
— Eu espero você se acalmar, meu amor. —
Daniele tentava soar doce, mas a frieza em seus
olhos era notável. — Sempre te esperarei.
— Espere deitada, então! Você é doente
Daniele. Doente! — Kevin arrancou a câmera das
mãos dela e atirou no chão com uma força
estupenda.
— O que você fez? — Daniele tentou
recolher a máquina do chão, saindo do sério pela
primeira vez naquela noite. — Essa máquina é dos
meus pais!
— Dane-se! — berrou Kevin, logo em
seguida correu na direção em que Carla tinha
seguido minutos antes.
As garotas só faziam rir sem parar, como se
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fossem programadas apenas para fazer aquilo.


Bizarro!
— Bom, meninas, primeira parte do plano
concluída — Daniele falou animadamente, depois
de ter recolhido os pedaços de sua câmera. —
Agora só nos resta consertar essa porcaria antes que
meus pais percebam.
— Foi um sucesso, Daniele, adorei! — falou
uma das garotas.
— Vocês viram o tapa que ela deu nele? Foi
incrível, parecia novela mexicana! — Mais
gargalhadas.
Elas ainda comemoravam aquilo? Será que
não percebiam que as pessoas tinham coração? Não
passava pela cabeça delas a tamanha crueldade de
tudo o que tinham feito? Que absurdo tremendo!
Eu estava completamente indignada, ainda
parada enquanto encarava as pessoas que tinham
sido minhas melhores amigas um dia. Agora, eu
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mal as reconhecia. Meu novo senso de justiça não


permitia que aquilo continuasse assim.
— Ela não acreditou nele de jeito algum! —
disse uma das meninas. — A cara de pavor que
Kevin fez foi ótima!
— Ele bem que mereceu — Daniele
desdenhou, sorrindo. — Carla não é a mulher que
ele precisa. Ela nem confia nele.
— Não sei como ele se apaixonou por aquela
estúpida tão depressa! — uma garota loira, que se
chamava Juliana, disse.
— Ele está fora de si. — Daniele ficou séria,
de repente. — A morte de Rafaela o deixou sem
juízo, mas a ficha dele vai cair.
Aquilo não podia ficar assim...
Eu não sabia o que fazer, mas estava decidida
a não deixar as coisas como estavam. Daniele teria
que pagar por aquela injustiça. O ódio começou a
invadir o meu corpo inteiro, de modo que eu podia
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senti-lo escorrendo pelo meu organismo, como se


fizesse parte do meu sangue. Senti uma carga de
energia forte passando, queimando cada fibra do
meu espírito sem nenhum pudor. O ódio
combinado com a raiva e o desejo de justiça
esquentava meus olhos, tanto que não me
espantaria se eles tivessem ganhado uma coloração
vermelho-escarlate.
A carga de ódio que me invadiu cresceu tanto
que houve um momento em que ela não cabia mais
dentro de mim. Por isso, senti a energia transbordar
e atingir as coisas ao meu redor. O banco
ornamentado começou a se mexer, tamanha a
energia proveniente da minha fúria. As árvores e
galhos balançaram como se um furacão tivesse
acabado de surgir. Um vento forte passou por nós.
As meninas começaram a gritar, assustadas com as
luzes dos refletores que se despedaçaram em mil
partículas, todas ao mesmo tempo.
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— Socorro!
— Vamos sair daqui!
Seus gritos pareciam distantes da minha
realidade. Elas saíram correndo com dificuldade
por causa do vento forte. Os galhos das árvores e
arbustos maiores caíram para todos os lados, e as
plantas menores foram arrancadas pela raiz. Meu
ódio era tão imenso e real que não pude me conter.
Caminhei atrás das garotas, com um pensamento
vingativo único:
Aquilo não podia ficar assim.
Quando chegamos até a área da piscina, as
pessoas já estavam correndo para todos os lados,
gritando desesperadas, enquanto todas as cadeiras e
mesas eram derrubadas e levadas junto com o
vento. Todas as lâmpadas e as vidraças que
circundavam a mansão foram quebradas, uma a
uma, cada vez que eu me aproximava, lançando
cacos de vidro para todos os cantos.
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O ódio estava me presenteando com uma


força que eu nem sabia que poderia ter. Meu único
pensamento era a raiva, a crueldade, a injustiça que
devia ser paga.
De súbito, uma garota começou a chorar
desesperadamente bem ao meu lado. Olhei para ela
e reconheci como sendo uma aluna do segundo ano.
Busquei em seu rosto alguma lembrança, e concluí
que havíamos participado de uma aula de natação
juntas. Foi então que percebi que havia um caco de
vidro enorme entalhado em seu braço direito.
Sangue escorria por suas mãos e deixava o chão
completamente ensopado de um líquido vermelho
muito viscoso. Olhei ao redor e percebi que outras
pessoas também estavam machucadas. Nenhum
sinal de Daniele.
O que eu fiz?
Parei de emitir aquele ódio avassalador e
corri pela sala destruída, sentindo-me uma
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completa idiota, enquanto as pessoas corriam e


choravam assustadas com aquela força brutal vinda
do além.
Eu era uma imbecil mesmo! Não fazia nada
certo!
O desespero estava me enlouquecendo. O
ódio foi embora, levando consigo a destruição, mas
deu lugar a uma culpa insuportável. Não encontrei
mais as meninas cruéis, por isso corri para longe da
mansão. Não fazia a mínima ideia do que fazer.
Nem para onde ir. Queria sumir, ser trancada em
algum lugar escuro e vazio. Fugir de todos aqueles
problemas seria uma saída covarde, porém muito
melhor.
De uma coisa eu tinha certeza: precisava
convencer Carla de que aquilo tudo fora uma
armação de Daniele para separá-la de Kevin.
Porém, eu não sabia aonde ela tinha ido e me
esqueci completamente que eu tinha a capacidade
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de me materializar. Não estava raciocinando


direito. Meu último resquício de juízo tinha se
espatifado junto com todas as lâmpadas da mansão.
Assim que passei pelos grandes muros da
casa de Pedro, vi que Victor estava bem na frente,
aparentemente esperando a hora em que eu sairia.
— O que aconteceu? — Victor me ofereceu
um olhar preocupado.
— Não é da sua conta! — foi o que consegui
gritar, ainda andando pela calçada. — Além do
mais, para quê perguntar se você já deve saber?
Poupe-me.
— Claro que é da minha conta, tudo o que
tem a ver contigo me interessa. E não, não sei o que
deu em você. — Ele me seguiu pela calçada vazia.
Já devia estar bem tarde, de modo que não havia
mais ninguém na rua.
— Pare de me seguir, Victor! Ainda não
entendeu que nunca vou te dar o que quer? Eu não
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gosto de você, nunca vou gostar. Não desse jeito!


— Aquilo foi um desabafo descontrolado movido
pelo estresse. Eu estava descontando nele, mesmo
sabendo que não merecia. — Desista!
Simplesmente desista!
— Eu não vou desistir de você!
— Está perdendo seu tempo!
Eu estava pronta para me desmaterializar,
quando ele segurou uma de minhas mãos com certa
força. Seus olhos fixos tentaram me hipnotizar de
novo.
— É por causa dele, não é? Vai correndo
atrás dele como um cachorrinho atrás do dono!
— Você jamais será metade do que Leonardo
é! — Desvencilhei minhas mãos e corri
prontamente, para bem longe dele.
— Ele nunca vai te amar nem metade do que
eu te amo! — Escutei sua voz aos berros, antes de
virar uma esquina. Meu coração congelou, mas não
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consegui olhar para trás. Victor tinha usado a


palavra proibida. Amor.
Graças àquele maldito sentimento, todo
mundo estava perdido.

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Capítulo 22

A traição

AS RUAS bem organizadas eram completamente


desconhecidas para mim. Tive certeza de que nunca
andei por ali antes. Aquele bairro era composto por
várias mansões como a da família de Pedro. As
pessoas mais influentes da cidade moravam nele:
políticos, artistas e empresários bem-sucedidos.
Todos podres de rico.
A noite estava estranhamente fria. O medo e
a confusão que se desenrolava em minha mente
contribuíam bastante para deixar meus nervos
congelados, bem como todo o restante do corpo.
Mesmo assim, tentei me concentrar no ruído que
minhas sapatilhas provocavam no asfalto. A lua
refletia um brilho intenso no céu, como uma grande
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bola de queijo fluorescente.


Dobrei outra esquina e continuei andando em
uma rua ainda mais larga. Percebi que no fim tinha
uma praça grande, atribuindo beleza a um
cruzamento que durante o dia deveria ser bem
movimentado. Caminhei até lá na esperança de
localizar Carla ou Kevin. No entanto, não havia
sinal de nenhum dos dois.
Apesar da movimentação estar fraca de
pessoas vivas, encontrei várias outras almas
caminhando e conversando como se fosse comum
fantasmas circularem tranquilamente por aquele
local. Devo confessar que, com a presença daqueles
espíritos, me senti mais segura em sentar em um
dos bancos e tentar pensar em tudo o que tinha
acontecido. Com alguma sorte, poderia avistar
Carla e tentar convencê-la da armação cruel que
Daniele planejara.
Passei longos minutos observando o chão
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fixamente, sentindo-me indignada pelas atitudes


ridículas de Daniele e rezando para que as pessoas
da festa não tivessem se machucado gravemente.
Dois fantasmas passaram muito próximos a mim,
chamando-me atenção. Uma delas era uma mulher
extremamente bonita. Já o homem era parecido
com... Leonardo?
O que Leonardo fazia ali?
Franzi o cenho, observando os dois
caminharem de mãos dadas, sorridentes como um
casal apaixonado. Contemplei o rosto de Leonardo
e concluí que só podia ser ele. Contudo, o
Conselheiro estava um tanto diferente. Usava
roupas que eu nunca tinha visto, embora fossem
brancas também. Havia outra coisa diferente, mas
não consegui identificar. Seu olhar, que sempre foi
capaz de tirar o meu fôlego, era o mesmo. O sorriso
encantador, daquela vez sendo oferecido à outra
pessoa, era o mesmo que mexia com todos os meus
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sentidos.
Mas o que ele estava fazendo com aquela
mulher? Quem era ela?
Os dois seguiram para debaixo da sombra de
uma árvore. Mesmo assim, de onde eu estava
conseguia observá-los enquanto se abraçavam e
riam de alguma coisa que provavelmente eu não
sentiria a menor graça. Não confiei no que vi, foi
por isso que me aproximei devagar, fazendo o
possível para não ser vista pelos dois. Eles
começaram a cochichar coisas ininteligíveis. Fiquei
ainda mais perto, dando passos lentos e trêmulos.
Eu precisava ouvir. Precisava ver.
— Ah, Léo, eu te amo tanto! — a mulher
falou mais alto, de repente. Sua voz soou doce,
apaixonada.
Apesar da doçura, senti um gosto amargo na
minha boca.
— Eu também te amo muito, Larissa. —
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Leonardo alisou o rosto da mulher do mesmo jeito


como tinha feito em mim durante a noite passada.
Larissa? Larissa!
Então, eles se beijaram. Ali, na sombra da
árvore, antes que eu pudesse pensar direito. Antes
que eu conseguisse analisar, engolir o que tinha
acabado de ouvir.
Aquela mulher era a ex-namorada morta de
Leonardo?
Mal dava para acreditar naquilo. Pisquei os
olhos diversas vezes para conferir se não estava
vendo coisas. Mas Leonardo continuou beijando
outra garota bem na minha frente. Não uma garota
qualquer, a ex-namorada. Uma fantasma linda e
atraente, por sinal, além de ser bem mais velha.
Larissa tinha um corpo espetacular, bem desenhado
em seu vestido negro. O cabelo tinha um tom
castanho-acobreado brilhante, e desciam em cachos
até a metade de suas costas. Ela era muito mais
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linda do que eu, que ainda mantinha características


infantis tanto no meu rosto quanto no corpo.
Não tive coragem de me mexer, nem de me
fazer ser vista por Leonardo, mesmo que minha
vontade sincera fosse de ir até lá aos berros para
arrancá-lo dos braços daquela mulher. Tive tanta
vergonha de mim mesma, e do papel de idiota que
assumi o tempo todo, que simplesmente não reagi.
Os dois foram embora alguns minutos mais tarde,
sem desgrudar as mãos, parecendo superanimados.
A voz de Daniele soou clara em meus
ouvidos, a mesma frase que havia dito, com tanto
desdém, para Carla: acha mesmo que alguém seria
capaz de gostar de você?
Eu nunca achei. Apenas me mantive
esperançosa, como toda mulher apaixonada. Pensei
que a coisa mais certa a fazer era manter a fé em
meus objetivos. Mas a única coisa que consegui foi
fazer papel de palhaça. Leonardo amava a sua ex o
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tempo todo. Lembrei-me do momento em que


perguntei se ele ainda a amava. O Conselheiro veio
com uma conversinha de amar o próximo e blá-blá-
blá.
Por quê?
Não demorei muito a obter uma resposta
lógica. Leonardo negou o fato de amar a sua ex-
namorada por pena de mim. Não queria me
machucar, menos ainda no meu aniversário. Ele
sabia que eu ficaria arrasada, portanto mentiu para
me proteger. Fazia parte de seu trabalho me manter
intacta.
Não sei direito em que momento as primeiras
lágrimas caíram, mas quando aconteceu foi com
força total. Praticamente me rastejei de volta ao
banco da praça, sentindo-me derrotada. Chorei
tanto e tão alto que vários fantasmas perguntaram
se eu estava bem e se precisava de alguma coisa.
Nada adiantou para fazer meus soluços de agonia
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cessarem. Vi meus planos e objetivos escorrerem


pelas minhas mãos, bem como as lágrimas. Nada
mais importava. Tudo perdeu o sentido.
Esperei demais de uma pessoa que queria
apenas me ajudar a ir para o céu. Como eu podia
achar que conquistaria alguém tão especial como
Leonardo? Ele era um Conselheiro de Luz, eu era
apenas uma garota que tinha o dom de fazer as
pessoas infelizes, e só piorar depois.
— O que aconteceu, Rafaela? — Uma voz se
destacou no meio de alguns fantasmas que me
observavam, pesarosos. Era ele. Leonardo. — O
que você tem? O que houve?
O Conselheiro se ajoelhou na minha frente,
segurando meus ombros com uma mão e tentando
tirar vários tufos de cabelo grudados no meu rosto
com a outra. Não pude sequer encará-lo. A voz dele
já doía o suficiente. Certamente seus olhos
acabariam com o resto do que tinha sobrado de
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mim.
— Rafaela, por favor...
— Saia daqui, Leonardo — rosnei baixo, mal
reconhecendo minha voz rouca, carregada de
tristeza e incredulidade. Novas lágrimas desceram
pelo meu rosto. Leonardo tentou limpá-las
nervosamente, mas sempre surgiam outras e mais
outras.
— Por favor, não me bloqueie novamente —
murmurou com sofreguidão, como se me
implorasse. — Você está me bloqueando de novo.
Notei algumas luzes estranhas saírem das
mãos de Leonardo, estava sumindo aos poucos.
Continuei sem conseguir encará-lo. Ele tinha que ir
embora, seria melhor para nós dois. Ele tinha que
parar com a mania de tentar me proteger. Leonardo
não podia me proteger de si mesmo.
O que ele ainda estava fazendo ali?
— Rafaela! — Puxou meu queixo
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velozmente, forçando-me a observá-lo. Seus olhos


queimaram o meu rosto de imediato, como de
costume. Sua face guardava uma expressão
nervosa. — Não faça isso. Não sem antes me dizer
o que aconteceu.
— Já chega, Leonardo — choraminguei, mas
logo em seguida tentei soar firme: — A palhaçada
acabou. Não precisa sentir pena de mim nunca
mais. Não quero a sua ajuda.
— Não... Por favor, não faça isso... — Sua
voz ganhou um timbre difícil de traduzir. As mãos
macias, e agora trêmulas, alisaram o meu rosto
levemente. Meu corpo inteiro entrou em choque ao
sentir seu toque.
Não! Quem não podia fazer aquilo comigo
era ele!
— Não toque em mim! — gritei mais alto do
que achei que podia.
Uma energia incrível, repleta de
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ressentimentos, saiu do meu corpo, empurrando


Leonardo para trás cerca de um metro. Suas mãos
apararam a queda no último instante. As pessoas
que estavam ao nosso redor provocaram ruídos de
admiração. Todos pareciam exclamar ao mesmo
tempo.
— Como ela fez isso? — Ouvi alguém dizer.
— Ele é muito mais poderoso que ela! —
uma garotinha falou.
— Mas ele é um Conselheiro! — outra
pessoa disse.
Leonardo se ergueu devagar, parecendo tão
admirando quanto as outras pessoas. Tão admirado
quanto eu. De onde surgiam aqueles poderes
absurdos? Como conseguia? Até quando aquela
energia desprezível permitiria que eu machucasse
as pessoas?
— Rafaela... — Leonardo engoliu em seco.
Suas mãos ainda emitiam uma luz esquisita,
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fazendo seu espírito sumir aos poucos, começando


por elas. A imagem dele virou um borrão. — Me dê
uma chance de...
— Não! — gritei.
Não adiantaria tê-lo tão perto. Sua presença
não me deixava raciocinar com clareza. Eu não
podia mais alimentar o sentimento que estava em
meu peito, e que era só dele. Infelizmente, jamais
seria correspondido. Não adiantaria lutar por ele.
Era injusto com Leonardo, com Larissa e comigo
também.
Encarei-o com seriedade, tentando me manter
firme na decisão. Ele teria que ir embora. Eu
precisava bloqueá-lo completamente da minha
existência.
O Conselheiro pareceu ter entendido o que eu
faria.
— Não... — Aproximou-se em um salto e se
ajoelhou na minha frente. — Não me bloqueie. Por
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favor, não.
Mantive meu olhar firme sobre ele, mas me
arrependi assim que uma lágrima escorreu pelo seu
rosto perfeito, já quase desaparecido. Acompanhei
a trajetória que a lágrima percorreu até se perder no
chão da praça. Uma dor impressionante encheu
meu coração de pura tristeza. Leonardo estava
triste. O meu amor, a única pessoa capaz de atribuir
vida à minha morte estava chorando.
Devo confessar que não desisti por muito
pouco. Quase pulei em cima dele, pedindo perdão
por tê-lo machucado, pedindo mil desculpas por ser
uma garota tão estúpida. Quase não resisti à
vontade de enxugar suas lágrimas, de contar tudo o
que tinha acontecido e a tamanha dor que só fazia
crescer em meu peito. Foi quase.
A Rafaela de alguns minutos atrás teria feito
aquilo com muita facilidade. Entretanto, a Rafaela
que surgiu depois das injustiças de Daniele, e
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depois de vê-lo aos beijos com Larissa, era


completamente diferente. Eu tinha mudado, dava
para sentir em cada fibra do meu ser. A nova
Rafaela jamais deixaria o amor incondicional
machucá-la de novo. Ela usaria a razão, teria força
e coragem. Ela faria o que era certo.
Leonardo tinha que entender que não era
mais bem-vindo.
— Afaste-se — falei entre dentes. Apertei
meus lábios para não explodir de tanta raiva.
— Se acalme, Rafaela. Eu... — Leonardo
ergueu a mão devagar, apontando-a para mim.
Senti a chama quente de sua aura calmante tentar
me invadir, mas gritei alto até espantá-la.
— SAIA!
Alguns fantasmas correram, temerosos com o
que eu podia fazer.
— Eu não posso te perder assim! Pare com
isso! — Leonardo me puxou para perto de si,
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encostando seus lábios nos meus com uma rapidez


que não consegui acompanhar.
A plateia que nos observava permaneceu em
silêncio absoluto, provavelmente surpresa com a
atitude de Leonardo. Um gesto inusitado vindo de
um Conselheiro. Fiquei ainda mais louca ao sentir
seus lábios deliciosos investindo sobre os meus.
Demorou um segundo para que o meu juízo
voltasse e eu entendesse que ele estava me
machucando ao me beijar daquele jeito. Fiquei
indignada, mais do que já estava.
— Saia, Leonardo, como ousa? —
Desvencilhei-me de seu toque sufocante, de seu
beijo doce e cruel. Quem ele achava que eu era?
Como pôde me beijar depois de ter beijado
Larissa na minha frente?
— Vá embora! Por favor, eu não quero mais
te ver!
Senti que a última haste que me deixava de
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pé tinha caído no chão. Fechei os meus olhos e


suspendi as pernas para cima do banco, abraçando-
as. Encostei a testa em meus joelhos e
simplesmente chorei. Chorei por muito tempo.
Quando olhei para frente de novo, Leonardo
já tinha ido embora. Para sempre. O amor da minha
vida jamais seria meu. Toquei em meus lábios,
tentando me lembrar do choque que eles haviam
acabado de receber. O beijo tinha sido rápido e
desesperado, mas foi o suficiente para me deixar
louca. O fato de Leonardo ter ido embora me
deixando com aquele sabor delicioso na boca foi a
coisa mais absurda que poderia ter feito comigo.
O que eu faria com aquele sabor?
Comecei a chorar de novo. Chorei muito. Até
achar que não podia mais. Os fantasmas se
aproximaram, falando coisas que pareciam
distantes demais para serem ouvidas. Eu estava
absorta em meu próprio mundo, tentando encontrar
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sentido à minha existência, sem obter sucesso.


Quando as lágrimas pararam de cair sozinhas,
resolvi que não adiantaria de nada ficar ali
chorando, sentindo pena de mim mesma e fazendo
as outras pessoas sentirem também. Eu não ia mais
chorar, não ia mais ter pena como antes, quando eu
estava viva. Se aquilo tudo estava acontecendo
comigo, era porque eu merecia. Porque eu era uma
pessoa ruim.
A onda crescente de ódio tornou a me
invadir, daquela vez com ainda mais força. Tive
certeza de que aquela energia que me dominava
seria capaz não apenas de destruir uma mansão,
mas de colocar o mundo inteiro para baixo. Eu
seria capaz de empurrar para longe todas as pessoas
que estavam na praça.
A raiva, a desilusão, o desejo de vingança...
Todos os piores sentimentos formaram algo
assustador dentro de mim, fazendo-me queimar.
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Meus olhos estavam ardendo novamente. Senti uma


dor forte, e aquela energia negativa estava tão
impregnada que, pela primeira vez desde que morri,
meus cabelos esvoaçaram sem sentido.
O grito veio logo em seguida. Gritei tão forte
e alto que o bairro inteiro foi capaz de ouvir. As
pessoas vivas que estavam na praça correram para
suas casas, enquanto os fantasmas apenas me
observavam, curiosos e preocupados. Outro grito
imenso de dor e ódio foi capaz de fazer piscar todas
as luzes da praça, simultaneamente.
Uma sombra negra envolveu o meu corpo,
fazendo-o tremelicar. Alguma coisa muito bizarra
estava acontecendo comigo. Algo perverso,
maldoso. Eu sentia como se toda a felicidade,
alegria e bondade estivessem me deixando. A
crueldade, a maldade e o ódio tomavam conta de
tudo. Curvei-me completamente, gritando de tanta
dor. Cada parte do meu corpo latejava em
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constância. Quando achei que não aguentaria mais


tanto desespero, a sombra se esvaiu por completo.
Como num passe de mágica, olhei para os
meus pés e percebi que ali não estavam mais os
sapatos cor de rosa estilo princesa. No lugar deles,
vi botas de couro negras como a morte. Meu
vestido de princesinha tinha dado lugar a uma saia
ousada preta e uma blusa igualmente preta. Eu
ainda sentia meu corpo pegar fogo junto com a dor
mais insuportável do mundo. Alguns fantasmas
fugiram, assustados, enquanto outros continuaram
observando aquele horror acontecer.
Eu estava completamente modificada depois
que a dor foi embora. Não apenas minhas roupas
tinham mudado, meus próprios pensamentos
estavam diferentes. O ódio finalmente tinha tomado
conta do meu ser. Minha primeira reação foi
vasculhar dentro de mim mesma algum resquício
do sentimento que me acolhia anteriormente. Não o
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encontrei. Ele não estava mais lá. Não me


incomodaria mais.
Eu não queria saber de amor. Na verdade,
não sabia mais o que era aquilo. Eu era apenas
trevas. Apenas escuridão.
— Você não devia ter deixado o ódio te
dominar assim — falou um senhor que estava
observando a transformação.
— Ela agora é má. Vamos embora daqui. —
Algumas pessoas saíram de perto.
— Você precisa reencontrar a Luz, mocinha
— o mesmo senhor falou, parecendo preocupado
de verdade. Não importava. — Expulsou o seu
Conselheiro de uma maneira muito cruel.
— Cuide apenas do que é da sua conta —
resmunguei rispidamente, inspirando o mais puro
ódio.
— Isso não vai te levar a nada — o homem
insistiu.
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— O caminho da compreensão, do amor e da


justiça me trouxe até aqui. Se esse caminho não
levar a nada, com certeza o nada vai ser bem
melhor.
Virei as costas para o senhor irritante e andei
pela praça sem saber aonde ir, porém muito mais
decidida do que antes. O meu salto alto triscava no
asfalto. Eu me acostumaria com aquelas botas.
Eram lindas. Aliás, eu me acostumaria com cada
mudança. Nunca mais teria que me preocupar em
agradar ninguém. Não teria que lutar contra tudo e
todos para tentar ser alguém melhor. Aquilo já não
fazia mais parte de mim. A mudança tinha sido
absolutamente fantástica.
Era um alívio deixar de sofrer pelo que não
devia.

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Capítulo 23

A escuridão

NÃO DEMOROU muito até que todas as ruas


ficaram completamente vazias. Os únicos que
circulavam eram pessoas iguais a mim, os
chamados desgarrados. Eu era um deles agora.
Uma dor esquisita habitava em meu peito, latejava
tudo dentro de mim, como se algo estivesse preso
bem lá no fundo, querendo sair imediatamente.
Sabia bem o que era, mas não podia dar ouvidos
àquilo.
— Não sabia que você tinha passado para o
lado negro da força. — Victor apareceu na minha
frente, do nada, apoiado em um dos postes e com
os braços cruzados. Ele não aprendia nunca, ainda
estava me bisbilhotando.
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— É claro que sabia, você não cansa de me


perseguir. É o seu hobby favorito.
— Você fica muito mais bonita assim. —
Victor tinha um ar de perversão em seus olhos.
Aquilo não me incomodou nem um pouco. Eu já
não sentia mais medo de nada. — Bonita, na
verdade, é muito pouco. Você está irresistível. Essa
saia ficou uma coisa. — Piscou um olho.
— Pena que não sou pro seu bico —
resmunguei entre dentes.
— Cuspindo no prato que comeu?
— Nunca comi do seu prato, apenas
belisquei. Depois me senti enjoada e não quero
mais. — Voltei a andar pela calçada, e ele veio
junto. Caminhamos lado a lado, ainda que não
fosse meu desejo ter sua companhia.
— É, você realmente mudou.
— E você mentiu para mim.
— Claro que não menti.
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— Mentiu. Você me disse que algumas almas


podiam trocar de roupa. Agora, descobri como
conseguem.
— Isso foi apenas um detalhe. — Riu de uma
forma maliciosa.
— Passou exatamente por isso? A dor, o ódio
e tudo mais? — Mantive minha cabeça abaixada,
observando o caminhar das minhas botas novinhas
em folha. Eu não queria olhar para a cara dele.
Ainda sentia uma raiva estranha circulando pelo
meu corpo, e algo me dizia que não me livraria dela
tão cedo.
— Sim, assim mesmo. — Victor estava se
divertindo com aquilo. Eu não conseguia achar
graça. Nada mais seria engraçado.
— Ótimo, agora somos dois que não
precisamos nos preocupar com nada. Chega de
ladainhas.
— Foi o que eu sempre tentei te dizer, Rafa.
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Parei de andar e o encarei. Victor sorria, mas


seu sorriso bonito morreu quando percebeu que eu
estava séria e indisposta a soltar gracinhas.
— Fui uma completa idiota. Você estava
mais do que certo o tempo todo. — Balancei a
cabeça em negativa e arquejei, meio cansada. —
Mas isso não interessa mais. O que importa é quem
sou.
— E quem você é?
— Rafaela Satto em sua versão melhorada.
— Muito melhorada, por sinal. — Tornou a
abrir um sorriso bem cafajeste.
Victor me puxou para perto de si sem sequer
pedir licença. Envolveu-me em um abraço ardente.
Seus olhos verdes me encararam com
profundidade. Havia uma mexa loira caída em seus
olhos, uma visão extremamente sensual. Ergui
minhas mãos e a joguei para trás, tentando não cair
no impulso de beijá-lo loucamente ali mesmo.
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— Creio que, agora, o que te propus está de


pé — murmurou, convicto.
— Absolutamente, não. Você não era a
minha segunda opção, Victor. — Brinquei com
seus lábios usando os dedos. Ele fez uma careta
irritada.
— O que eu te fiz, posso saber? Só te alertei
das besteiras que você estava fazendo.
Cheguei bem perto dele, fingindo que o
beijaria. Victor agarrou meu rosto, mas me
desvencilhei a tempo. Ele soltou um rosnado de
insatisfação. Sorri amplamente, de orelha a orelha.
Eu estava adorando tirá-lo do sério.
— Não quero depender de ninguém. —
Envolvi os meus braços ao redor de seu pescoço.
— Quero aprender tudo sozinha. Nunca mais vou
ouvir opiniões dos outros e descobrir que as
pessoas me enganam.
— Não estou te propondo casamento,
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Rafaela. Só quero estar contigo quando convier.


— Quando convier a mim ou a você?
Victor pensou um pouco antes de responder:
— Aos dois.
— Tudo bem. Mas, hoje, nada me convém.
— Saí de seu abraço com facilidade e voltei a
caminhar pela rua a passos firmes.
Victor apareceu na minha frente de novo,
como mágica, obrigando-me a parar.
— Você sabe o que sinto.
— O que você sente não me interessa. Odeio
sentimentos. Me poupe de sua fraqueza.
No início, Victor pareceu muito chateado,
mas depois abriu um largo sorriso.
— E Leonardo? — questionou em um
sussurro.
— Quem é Leonardo? — A dor latejou com
ainda mais força dentro de mim, até que precisei
tomar fôlego. Era como um buraco negro. Eu
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estava bem na beira do abismo, prestes a cair.


Victor ficou calado durante alguns segundos,
até que desisti de esperar e passei por ele,
continuando a minha caminhada rumo ao
desconhecido. Buscava uma solução imediata para
aquela dor irritante. Uma maneira prática e rápida
de fazê-la sumir de uma vez por todas. Foi então
que tive uma ideia. O que as pessoas faziam para
esquecer os problemas? Usavam entorpecentes,
bebidas alcoólicas, qualquer coisa do tipo. Era
disso que eu estava precisando.
Só tinha um problema. Eu não sabia se
fantasmas podiam ficar doidões.
— Onde você arranja bebida? — Virei para
trás a tempo de ver Victor parado, meio perdido, no
meio da calçada deserta.
— O quê? — Victor ficou surpreso com
minha pergunta.
— Bebida! Sei que fantasmas não bebem,
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mas já vi alguns em bares. Como vocês tomam


bebidas alcoólicas?
— Você enlouqueceu de vez. — Ele deu de
ombros.
— Qual é, Victor, vai dar sermão?
— Bebidas atrofiam nossa fonte de
alimentação. O fantasma perde toda sua força e
vitalidade consumindo esse tipo de coisa. — Ele
ficou muito sério. — Sou muito mais poderoso do
que você imagina, Rafa, tudo porque me alimento
das energias certas.
— Eu também sou poderosa. Tenho energia
para dar e vender.
Eu me concentrei, deixando a raiva
transbordar do meu espírito. Consegui apagar as
luzes de todos os postes da rua em que estávamos,
apenas usando aquela fonte de energia destruidora
que brotara em mim. Ficamos na mais completa
escuridão, iluminados apenas pela luz fraca do luar.
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Victor não se surpreendeu com o que fiz.


Ergui uma mão e me esforcei para explodir todas as
lâmpadas. Cacos de vidro voaram por toda parte,
fazendo-me sorrir. Victor apenas me olhava, creio
que pensando um pouco mais no assunto.
— Bom, eu conheço um lugar — disse,
finalmente.
— Quero conhecer. Me leve contigo. —
Segurei a sua mão, esperando que ele nos levasse
no tal lugar onde eu teria o que queria.
Sorri ao perceber que Victor estava nos
desmaterializando. De fato, era um ambiente
sombrio. Havia algumas pessoas vivas sentadas no
chão asfaltado, e várias outras almas se
alimentando de suas energias. Era uma rua tomada
por bêbados, traficantes e consumidores de drogas
pesadas. Aquilo estava uma bagunça.
Passamos por muitos corpos caídos,
espalhados deliberadamente, e ninguém parecia se
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importar com nada. Mesmo diante daquela cena


digna de pena, eu não conseguia mais ter
compaixão por ninguém, muito menos achar que a
situação era absurda. Fazia parte da vida. A vida e a
morte nos levavam para um único caminho: a
autodestruição.
— Confesso que esperava por um local mais
cheiroso — falei para Victor, sentindo nojo ao
passar por algumas pessoas caídas, que gemiam
para o nada.
— Aqui é o melhor lugar para o que você
quer. Tem pessoas vivas de todos os tipos, é só
escolher e sugar.
— Sugar?
— Sim, concentre-se para roubar a energia do
encarnado. Veja, aquele homem está fazendo. —
Victor apontou o dedo indicador para o lado.
O fantasma de um rapaz, que parecia ter no
máximo quinze anos de idade, estava sentado
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próximo a um vivo caído no chão. Ele esticou os


braços e um feixe de energia luminosa saiu do
encarnado até alcançar o rapaz. Imediatamente, o
fantasma se deitou no chão, inspirando alto e
olhando para o céu como se estivesse fora de si. A
droga funcionava por meio daquele processo.
Confesso que fiquei feliz por não precisar
realmente ingerir alguma coisa. Tudo era uma
questão de pensamento e energia.
— Entendeu? — Victor me encarou. Estava
tão sério que nem parecia ele.
— Entendi, bonitão. — Puxei-o para mim e
lhe dei um beijo estalado. Victor tirou a carranca do
rosto e riu de minha reação inesperada. Ele não
estava acostumado com a nova Rafaela, mas era
apenas questão de tempo.
— Você vai mesmo fazer isso, Rafa?
— Claro que vou. Fique olhando.
Havia um homem deitado, inerte, perto do
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meio-fio. Ele exalava um cheiro forte de álcool.


Ajoelhei-me a seu lado e estiquei a mão,
concentrando-me para absorver a energia dele. Não
foi tão difícil. Assim que a luz energética me
invadiu, tive a impressão de que o meu coração
ficou mais leve. Perdi uma parte da consciência, e
tudo começou a girar em um carrossel fantástico.
Senti-me relaxada, com o cérebro trabalhando mais
tranquilamente. Parte da dor simplesmente sumiu.
— Isso foi bom. — Fechei os olhos e inspirei
profundamente. — Você devia provar, Victor.
— Não. Prefiro o poder.
— Deixe de ser idiota. — Ri para o alto.
Fazia um tempo que não me sentia tão bem. — De
que serve tanto poder se você não tem nada?
— Pelo menos tenho o poder.
Sentamos na calçada, um pouco afastados da
grande confusão que era aquela rua. Ainda existiam
algumas pessoas em estados deploráveis por perto,
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e fiz questão de sugar todas elas. Victor apenas me


observava com uma expressão impassível,
mantendo os braços cruzados e uma pose de quem
não se envolvia com aquilo.
Eu me sentia trezentas mil vezes melhor
depois de ter sugado um monte de gente, sem parar.
A dor tinha ido embora por completo. Minha mente
estava livre, aberta e tranquila. O coração não mais
me sufocava, e o estômago parou de remexer feito
louco. Voltei a ser eu. Apenas eu.
— Você está passando dos limites... —
Victor murmurou assim que terminei de sugar uma
adolescente drogada.
— Qual é o meu limite, Victor? — balbuciei,
meio sem saber como era que se falava. Minha
língua se enroscou toda. A sensação não era ruim,
só louca demais. — Ninguém aqui tem limite. Não
podemos mais morrer.
— Você está fora de si.
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— Não era o que você queria, meu amor? —


sentei em seu colo e sussurrei perto de seu ouvido.
— Foi por isso que me trouxe. Não sou idiota. —
Abracei-o meio sem jeito, quase caindo de cara no
chão. Victor me segurou com força.
— Eu preferia que estivesse sóbria, mas...
não deu. Você nunca coopera comigo.
Eu ri alto, mantendo nossos rostos muito
próximos um do outro.
— Exatamente. Quando lhe convier, é só me
deixar sugar. — Lambi seus lábios bem
desenhados, e ele pareceu gostar da minha atitude,
pois me segurou a cintura com mais força ainda. —
Retire todo o meu poder. É isso o que eu sei que
você quer.
— E quando te convier? — ele perguntou em
um sussurro louco, carregado de desejo.
— Quando me convier, terei o que quero e
pronto. Não terei?
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— Sempre. — Sorriu maliciosamente.


— Meus poderes pouco interessam. Eu quero
liberdade.
— Você sempre foi poderosa. — Victor me
envolveu em um abraço intenso, e seus lábios
percorreram a minha orelha, provocando-me
espasmos excitantes. — Pena que nunca soube o
quanto.
— Porque eu sou uma burra. — Minha língua
enrolava toda vez que eu tentava falar. Eu não sabia
como Victor tinha conseguido me entender.
— Você é linda. Sempre te amei. Tudo o que
fiz foi por amor.
— O amor é uma droga — balbuciei
sofregamente. Fechei os olhos porque o mundo
começou a girar depressa demais. — Uma droga
pior do que as que consumi. Toda essa gente caída
no chão está mais lúcida do que você, Victor.
— Então não me importo de ser um viciado.
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Victor puxou o meu rosto e me beijou. Eu


não quis saber de mais nada além de correspondê-
lo. Ele era o meu único amigo, o único que não era
perigoso beijar, tocar, abraçar. Não doía beijá-lo de
volta, sentir sua aura obscura me envolvendo,
deixar seus lábios habilidosos me provocarem. Foi
tudo tão descomplicado que deixei Victor explorar
cada parte do meu corpo com suas mãos afoitas. O
desejo não era algo cruel, sufocante. Era apenas...
Desejo. Bom e inofensivo.
Passamos horas sentados na calçada, nos
abraçando e beijando de diversas formas. Eu estava
em um estado completo de êxtase, não conseguia
sentir minha própria alma. As coisas começaram a
não fazer mais sentido, até que finalmente apaguei.
Não conseguia falar, nem me mover. Meu corpo
não obedecia a nenhum comando de minha mente.
Victor apenas me segurava em seus braços fortes,
protegendo-me daquela gente que ia e vinha,
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viciadas em algo que passei a achar atraente.


Quando finalmente amanheceu, eu estava
deitada na calçada da rua que agora estava
movimentada não com os drogados, mas com
pessoas normais que seguiam para o trabalho. Não
havia sinal algum de Victor. Fiquei completamente
sem forças para me materializar em qualquer local
que fosse, por isso andei sem rumo pelas ruas.
As pessoas passaram por mim como borrões
indefinidos, alheios à minha presença. Eu estava
tonta, sem noção alguma da realidade. Visualizei
uns arbustos no fim da esquina e foi lá mesmo que
me deitei, apagando novamente.
Já era noite quando consegui acordar. Apesar
de me sentir bem melhor, fiquei meio enjoada. Pelo
menos não estava mais tonta, e as coisas tomaram
as suas formas originais. Em contrapartida, sentia
uma dor aguda no peito e um embrulho no
estômago. Aquela dor me acompanhava desde que
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eu tinha passado pela transformação. Por um


momento muito passageiro, pensei em Leonardo.
O que será que ele estava fazendo agora?
O aperto no coração piorou
consideravelmente, então tratei de não pensar mais
nele. O Conselheiro não se importava comigo, não
do jeito que eu queria. Então, para mim, não
interessava mais. Naquele momento devia estar
com Larissa, seu grande amor do passado. Eu não
podia fazer parte da vida dele, nem como uma
fantasma sob sua responsabilidade. Nenhum
Conselheiro tem permissão para ajudar
desgarrados, de qualquer forma.
Eu me sentia fraca também. Ainda não
conseguia me desmaterializar. Victor tinha razão
quando disse que ficávamos muito fracos quando
consumíamos drogas. Infelizmente, a dor no meu
peito só teve fim daquela forma. Pensei em
Leonardo novamente. O que ele diria se me visse
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assim? Acho que piraria. Não pude conter um


sorriso bobo.
— Acordou? — Victor se materializou na
minha frente.
— Sim. Ajude-me a levantar daqui. —
Estiquei as mãos para ele. Eu não tinha forças nem
para ficar de pé.
— Você apagou durante muito tempo.
— Quanto tempo?
— Três dias.
— O quê? — gritei, horrorizada.
Era impossível! Três dias apagada em um
arbusto?
— Eu disse a você que isso não fazia bem. —
Victor me ajudou a ficar de pé e me agarrou forte
quando dei uma cambaleada. — Eu não estava
mentindo.
— Não quero saber. Leve-me até aquele local
novamente.
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Ele não acreditou no meu pedido. Se fosse eu


no lugar dele também não entenderia nada, mas tive
certeza de que ele preferiria se drogar a sentir seu
corpo espremer até quase sair suco.
— Não vou te levar lá de novo, Rafa.
— Claro que vai. — Encarei-o com
severidade. — É claro que vai!
— Não vou! Por mais que goste de te beijar,
não te quero apagando o tempo todo. Isso não dá
certo.
— Dane-se! — Comecei a chorar, sentindo o
desespero ressurgir. — Você não faz ideia do que
estou sentindo!
Caí no chão, absolutamente sem forças ao
tentar me afastar de seus braços. Daquela vez ele
não conseguiu me segurar a tempo. Victor me
olhou muito sério, fazendo uma careta. As lágrimas
de angústia e dor rolaram sem parar, de modo que
escondi meu rosto com as mãos.
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No quê eu havia me tornado? Que tipo de


existência era aquela?
— Eu sei exatamente o que está sentindo. É o
que sinto todos os dias, a todo instante, sem
qualquer trégua — murmurou de um jeito tão
intenso que ergui a cabeça para vê-lo. Victor
parecia extremamente triste.
— Se você soubesse de verdade, me levaria
lá imediatamente! — A dor, que já era absurda,
parecia se elevar devagar, corroendo o meu corpo
inteiro.
— Venha. — Victor me puxou do chão. —
Eu te levo, mas vai ser só um pouco desta vez.
Ele pegou as minhas mãos e, em segundos,
estávamos na mesma rua movimentada por
viciados. Assim como da outra vez, não parei para
pensar nas condições humanas daquele lugar triste.
Cada qual tinha seus motivos para estar ali, bem
como eu. Tinha certeza de que muita gente também
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procurava esconder algum tipo de dor por detrás


dos entorpecentes. Eu queria esquecer as minhas.
Quanto mais longe elas estivessem de minha
consciência, mais chances eu possuía de conquistar
a liberdade que tanto desejava.
Sendo assim, suguei todas as pessoas vivas
caídas que vi na minha frente. Eu estava ficando
boa naquilo. Victor apenas me observava,
encostado na porta larga de algum prédio antigo.
Depois que a dor finalmente foi embora, caminhei
até ele, sentindo-me um pouco tonta.
— Pronto, passou. — Quase tropecei antes
mesmo de alcançá-lo.
Victor me segurou.
— Passou o quê?
— O amor. Ele dói, mas passa. — Fechei os
olhos, deliciando-me ao sentir meu espírito livre, a
consciência tranquila.
Victor me agarrou em seus braços e me
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colocou contra a parede, cobrindo-me de beijos


logo em seguida. Imediatamente, aninhei meu
corpo no seu. Envolvi minhas pernas em cada lado
de sua cintura. Aquele era o melhor momento da
minha nova vida (ou morte), em que só existia
desejo, nada mais. Eu viveria assim para sempre;
mandando a dor ir embora e sentindo aqueles lábios
quentes sobre os meus.
Victor sabia aproveitar cada oportunidade.
Para ser bem sincera, parecia aproveitar muito mais
do que eu. Ele me tinha como um vício e me usava,
assim como as pessoas daquela rua usavam suas
drogas. Apesar de quase não ter noção do que
acontecia ao meu redor, eu tentava me concentrar
para beijá-lo com intensidade.
— Vejo que conseguiu o que queria — uma
voz feminina nos interrompeu.
Victor se afastou de repente, mas continuou
me segurando. Eu mal podia enxergar direito quem
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tinha se aproximado. Era difícil prestar atenção em


qualquer conversa.
— Eu sempre consigo — Victor respondeu,
sorrindo.
A dona da voz misteriosa se aproximou de
nós, então a reconheci. Era ela, a garota que
Leonardo amava. Larissa. A simples visão daquela
mulher fez meu corpo congelar, e a dor se revirou
em algum lugar, ameaçando voltar.
— Larissa? — murmurei muito baixo. Fiz
uma careta.
— Você sabe o meu nome. — Ela sorriu para
mim, mas não consegui ver nada bom naquele
sorriso.
Sua voz era sedutora, apesar de não ter
ninguém ali para ser seduzido. Quero dizer, Victor
obviamente preferia me ter em seus braços, e não
ela. Aquilo me deixou, de certa forma, animada.
Pelo menos uma pessoa no mundo me desejava,
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lutava por mim. Apertei ainda mais o abraço em


que estávamos envolvidos. Victor me amava.
Alguém me amava.
— Aquele cara... Leonardo. Falou sobre você
— confessei, tentando parecer distante, fingindo
mal me lembrar de quem ele era. Tentei não tremer
na base ao ouvir minha própria voz falar o nome
dele.
— Muito prazer, então. Rafaela, não é
mesmo? — Larissa esticou a mão para frente,
esperando por um cumprimento.
Eu apenas a ignorei.
— É isso aí. O que você quer? — Não queria
que ela descobrisse que eu estava completamente
fora de mim, mas também não quis fazer nem um
pouco de esforço para ser agradável. Ela já tinha o
amor de Leonardo, não precisava da minha
amizade.
— Ela é bonitinha, Victor. Pena que não é
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muito educada. — Larissa retirou a mão do ar, com


raiva do pouco caso que fiz.
— Larissa é uma amiga, Rafa — Victor me
alertou, com a voz doce. — Não vai te fazer mal
algum.
Ela já tinha me feito muito mal. Mas não era
culpa dela, na verdade. Não podia culpá-la por
amar o cara que eu amava. Larissa tinha chegado
primeiro, afinal. Além do mais, agora eu tinha
Victor e nada mais me importava como antes.
— Vim atrás de uma coisa que você sabe
muito bem o que é, Victor. — Larissa fechou a
expressão de modo que não consegui decifrá-la.
Aquela mulher tinha maldade exalando dos
poros. Dava para sentir.
— Você não conseguiu. — Victor ficou
sério, e seus músculos enrijeceram sob o meu
toque. — Eu sabia que não conseguiria. Tentei te
alertar, mas você é um tanto teimosa.
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— Alertar? Você me enganou — Larissa


rosnou, indignada. Eu não fazia ideia do que eles
estavam falando. — Não tive ao menos uma
oportunidade. Ele não aparece, por mais que eu
tente.
— Você é uma desgarrada. Não era apenas
ela que impedia. — Victor tornou a me observar,
deixando claro que se referia a mim.
Fiquei tão confusa que nenhuma palavra saiu
da minha boca.
— Ela pode. — Larissa me encarou também.
— Ela conseguirá.
— Esqueceu que ela também é uma
desgarrada? Ele não pode interferir. — Victor
ficava mais irritado a cada segundo. Tentei me
desvencilhar de seus braços, mas não tive forças.
Eu estava à mercê dos dois.
— Não seja idiota, Victor. — Larissa estava
furiosa, prestes a perder o controle. Seu rosto se
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manteve ofensivo, como uma cobra esperando o


momento certo para engolir a presa em um só bote.
— Leonardo está nas mãos dela, não percebeu? Por
que acha que ela tem tanto poder? Uma garotinha
mimada cheia de defeitos não deveria ser tão forte.
— Sua ideia é absurda. — Victor balançou a
cabeça. Pela primeira vez, percebi medo em seus
olhos.
— A energia dele circula no espírito dela,
ainda que seja uma desgarrada. Não conhece a Luz
dos Conselheiros? É forte o bastante para alimentá-
la pelo resto de sua existência medíocre. — Larissa
bufou, depois soltou um riso esquisito. — Ele vai
interferir a qualquer momento, e eu quero estar por
perto. Preciso de uma chance, espero por isso há
anos.
— Do que vocês estão falando, Victor? —
murmurei baixo, encostando meus lábios em seu
ouvido. Se eu fizesse com jeitinho, talvez
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encontrasse uma resposta lógica.


Mas Victor me ignorou.
— Não faz muito sentido. Não consigo
enxergar no que isso te ajudaria. Se ele vier buscá-
la, vai ser por ela, não por você.
— Eu preciso vê-lo! — Larissa gritou muito
alto, descontrolada.
Ela ergueu a mão em direção a mim. Uma
energia pulsante tomou conta do meu corpo,
empurrando-me para ela como um imã muito
poderoso. Em menos de um segundo, eu estava nas
mãos de Larissa. Ela me segurou pelos cabelos com
uma força bastante real, e, por mais que quisesse
me soltar, não conseguia. Eu estava fraca demais
para me libertar.
— Você é muito ingênua, Larissa. — Victor
não se abalou com o que a desgarrada tinha
acabado de fazer. — Posso tomá-la de volta em
menos de um segundo.
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— Só se você nos achar, querido. — Larissa


conseguiu nos desmaterializar. Ressurgimos em um
lugar escuro e pútrido.
A mulher soltou os meus cabelos com tanta
força que caí no chão, sobre uma superfície macia,
mas meio nojenta. Percebi que se tratava de um
colchonete ensopado de algum líquido que rezei
para ser água. Estávamos num pequeno quarto sem
janelas e com apenas uma porta. Dentro dele havia
apenas o colchonete e uma cadeira caindo aos
pedaços.
— O que você quer? — gritei, tentando me
levantar do colchonete. Não consegui. A minha
fraqueza me irritou profundamente.
— Quero que faça uma coisa que não será tão
difícil assim. — A voz dela voltou à serenidade. —
Quero que traga Leonardo para cá. Agora.
— Com que objetivo?
O que Larissa queria com Leonardo? Ela
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não poderia simplesmente pensar nele? Afinal,


estavam juntos.
— Ele é o meu namorado — vangloriou-se.
— Eu sei. — Soltei um longo suspiro. Ainda
tentava me levantar.
— Só que eu sou uma desgarrada, então ele
não pode interferir na minha vida. Mas ele pode
interferir na sua, Rafazinha. — Fala sério, que tipo
de apelido era aquele?
— Não sou diferente de você agora.
— Duvido que Leonardo tenha desistido.
Você era responsabilidade dele, está se sentindo
culpado por ter te perdido para o mal. — Não
acreditei muito naquilo. Quero dizer, passei três
dias apagada num arbusto e o Conselheiro não
apareceu. Ele não podia fazer nada para me ajudar.
Perdemos a ligação um com o outro. — Quero que
se concentre agora, Rafazinha. Busque a energia
que ele te deu, está dentro de você. A fonte de luz
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dos Conselheiros é eterna, jamais se rompe. Pode


fazer isso por mim?
— Eu... não sei.
Será que era aquela energia que me trazia
tanta dor?
— Claro que sabe. Vamos logo, Victor não
vai demorar a aparecer.
— Você é tão estúpida, Larissa — falei
rispidamente. Uma raiva cruel tomou forma dentro
da minha cabeça.
— O quê? — Ela se assustou com o meu
tom.
— Você é estúpida em achar que vou
entregá-lo de bandeja a você — sibilei. — Não
tenho mais nada a ver com ele, porém não significa
que desejo profundamente a felicidade dos
pombinhos.
— Você não deseja a felicidade dele? —
Larissa perguntou, com ar de inocência.
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A dor dentro de mim voltou a latejar,


gritando em meus ouvidos. Segurei a cabeça com
as duas mãos, a fim de evitar que ela explodisse.
— Tanto faz — choraminguei. — Eu não
ligo!
— Está mentindo para si mesma. — Larissa
sorriu. — Você o ama.
Antes que eu pudesse responder qualquer
coisa, Victor se materializou na nossa frente,
indignado. Seu olhar atingiu Larissa em cheio,
emitindo uma onda luminosa que a empurrou até
que se chocasse contra a parede. Larissa
cambaleou, quase tropeçando, mas recuperou o
controle e tentou novas investidas de uma energia
furiosa contra Victor.
— Fuja, Rafaela! — gritou Victor.
Não pensei duas vezes em tentar sair dali,
mas não consegui. Eu não podia me
desmaterializar. Estava sem poderes.
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— Não consigo! — gritei de volta.


— Corra!
Juntei todas as forças que pude para me
levantar. O medo me fez conseguir ficar de pé,
então atravessei a porta. Corri na maior velocidade
que consegui, meio cambaleante e muito tonta.
Percorri um corredor escuro, que tinha as paredes
caindo aos pedaços, e várias outras portas
enfileiradas. Avistei uma escadaria, e só então
descobri que estava o tempo todo dentro de um
prédio. Desci aos tropeços, até chegar ao que teria
sido um hall que dava diretamente para a saída do
edifício. Havia algumas pessoas se drogando na
portaria. Cheguei à conclusão de que o lugar estava
completamente abandonado e, quando saí, percebi
que se tratava de uma das construções velhas
localizada na rua dos viciados. Aquilo explicava o
cheiro ruim.
Corri meio sem rumo, chamando a atenção de
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algumas almas drogadas. Eu não sabia para onde ir,


por isso parei, sentindo meu coração bater forte.
Fiquei completamente sem fôlego, ainda que não
precisasse respirar. A sensação era mais do que
esquisita. Meu peito doía novamente. Os últimos
vestígios das substâncias entorpecentes que ingeri
ameaçavam ir embora. Se não fosse aquela dor
absurda, eu teria desistido de tentar esconder a
minha sobriedade. Preferia o poder. Contudo, sabia
que aquilo só aumentaria, e ficar sóbria faria com
que eu me lembrasse de tudo o que queria esquecer.
Encontrei uma garota sentada no meio-fio.
Ela tinha tatuagens estranhas em todo o seu corpo,
além de cabelos em uma coloração cinza bem
esquisita. Olhava fixamente para o chão. Sentei-me
ao seu lado, e comecei a sugá-la.
— Não faça isso! — a menina gritou,
empurrando-me depressa.
Passei alguns segundos tentando me
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recuperar do susto.
— Você consegue me ver?
— Vejo todos vocês... — murmurou entre
lágrimas. Algo em seus olhos escuros me fez
lembrar alguém. Só não consegui pensar em quem.
— Deve ser horrível.
— Por que fazem isso? — A menina parecia
desesperada.
Assim que a encarei de novo, mil
informações preencheram a minha mente. Eu me
lembrei. Seus olhos eram parecidos com os de
Carla. Meu coração acelerou no mesmo instante em
que me dei conta de que havia abandonado Carla
no momento em que mais precisou de mim.
Tudo bem, o pior havia acontecido comigo.
No fundo do meu coração eu sabia que merecia
cada coisa ruim. Mas Carla não merecia. Ela era
inocente.
Aproximei-me da garota, sentindo o meu
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corpo formigar.
— Porque somos estúpidos. Todos nós —
murmurei amargamente.
Ergui uma mão e toquei a testa da garota.
Fechei os olhos. Sorri ao me recordar de Carla, a
pessoa mais sensível e linda, a que mais merecia
ser feliz. Senti o instante exato em que uma energia
calmante atravessou o meu espírito e preencheu a
garota. Quando abri meus olhos de novo, ela estava
sorrindo, tomada por uma aura luminosa tão
brilhante que me cegava. — Vá para casa, menina.
Saia daqui.
Ela segurou minhas mãos.
— Obrigada. Muito obrigada.
A desconhecida se levantou e caminhou
vagarosamente, deixando aquela rua imunda e sem
sentido. Minha alma estava mais leve. A tontura
cessou.
— Você está bem? — Victor se aproximou.
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Ergui a cabeça, ainda muito espantada.


— Eu não sei. E Larissa?
— Fugiu. Eu vi o que você fez. — Victor
olhou para as minhas mãos, que ainda guardava um
pouco de energia. — Precisa se livrar disso, Rafa. É
o que te causa dor. Tente sugar mais pessoas desta
vez.
Aquiesci.
— Sim. Tem toda razão, Victor.
Eu me levantei só para começar a sugar as
pessoas drogadas. Devo ter feito aquilo mais de
vinte vezes. Fiquei tão fora de mim que não percebi
quando uma luz forte atravessou a rua imunda.
Uma energia agradável seguiu em minha direção.
Victor olhou para ela assustado, depois tentou me
esconder atrás dele, como se aquela luminosidade
fosse algo ruim que poderia me fazer algum mal.
A Luz empurrou Victor até fazê-lo cair longe,
batendo a cabeça no asfalto. Eu estava tão tonta que
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a ausência dos braços dele me fez cair, estava sem


forças para me manter de pé. Alguém forte o
bastante me segurou, e eu nada pude ver, pois
apaguei novamente.

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Capítulo 24

A verdade

AINDA ERA noite quando despertei. O céu estava


escuro, sem estrelas, sem lua. Meu primeiro
pensamento foi rezar para que aquela não fosse a
noite de três dias depois da última em que estive
sóbria. Eu estava nos braços de alguém, por isso
olhei para o lado, um pouco tonta. Leonardo me
puxava para si, olhos fechados, ajoelhado no chão.
Uma energia impressionante emanava dele. Foi
naquele instante que tive certeza absoluta de que
ele era um anjo.
Arquejei, emocionada, e ele finalmente abriu
os olhos. Meu coração bateu mais depressa diante
de seu olhar encantador.
— Graças a Deus você acordou, Rafaela —
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suspirou de alívio. Parecia atordoado. — Tive que


fornecer muita energia para te acordar. O que deu
em você? Olha o que fez consigo mesma!
Sentindo-me recuperada, saí dos braços
daquele que já não me interessava mais. Ou, pelo
menos, eu fingia que não, pois a dor em meu peito
ficou insuportável assim que o vi, como se o ódio
dentro de mim prendesse todo o amor que eu sabia
que ainda sentia por ele.
— Você não é o meu pai pra me dar sermão.
Onde está Victor?
Leonardo fez uma expressão sofrida.
— O que foi que eu te fiz, Rafaela? Por que
me olha desse jeito, como se me odiasse?
Engoli em seco.
— Eu te odeio — rosnei baixo.
A frase soou tão errada quanto fraca. Acho
que Leonardo não se convenceu, pois ergueu uma
mão e me tocou a lateral da face.
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— Eu... — Leonardo parou bruscamente.


Tomou fôlego. — Nunca mais vou deixar alguém
te machucar assim. — Depositou-me no chão com
doçura e se levantou. Franziu o cenho, parecendo
determinado a fazer algo não muito bom, o que me
causou estranhamento. — Aquele homem não vai
te atingir nunca mais!
— Do que está falando?
Leonardo abaixou a cabeça para me ver.
— Eu vou dar um jeito nele. E vai ser agora.
O Conselheiro correu pela rua movimentada
de drogados, deixando-me sozinha e atirada no
chão. Consegui me levantar sem maiores
problemas, e corri atrás dele porque não suportei
um segundo daquela curiosidade que tomou conta
de mim.
O que Leonardo faria?
Percebi Victor encostado em um poste na rua
paralela a que estávamos. Quando viu que nos
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aproximávamos, ele tentou se desmaterializar, mas


Leonardo levantou uma de suas mãos e concentrou
uma energia imensa, de uma coloração azul-celeste
que paralisou todos os movimentos dele.
— Desta vez você não me escapa, seu
miserável! — Leonardo gritou, completamente
descontrolado. Eu nunca tinha ouvido tanta
grosseria em sua voz antes.
Parei de correr para observá-lo com atenção.
Estava com o rosto, sempre calmo e sereno,
distorcido pela raiva.
— Você não pode vir aqui, Leonardo! —
Victor tentava se livrar daquela energia, porém mal
conseguia se mover. — Não pode interferir no que
não é da sua conta!
— Você é abusivo e cruel! Vou te mandar
para bem longe deste mundo, Victor. — O
Conselheiro moveu a mão, e Victor se contorceu e
gritou de pavor. A força da energia fez com que se
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chocasse contra um poste de luz. — Devia ter feito


isso há muito tempo. Sua existência é um perigo
para todos nós!
Leonardo voltou a correr até chegar bem
perto de Victor. Ainda com a mão estendida,
desferiu-lhe socos fatais, e faíscas de luz voaram
por toda parte. Levei uma mão à boca para conter
um soluço. Não dava nem para imaginar que
Leonardo estava batendo em alguém. Victor caiu
no chão, meio atordoado. O Conselheiro o ergueu
pela camisa e lhe deu mais golpes no rosto e no
estômago.
Ele ficou louco!
— Leonardo, não! — Corri aos berros.
Segurei os braços fortes de Leonardo assim que o
alcancei. Tentei puxá-lo para mim, mas a energia
me repeliu.
— Você não faz ideia do que este homem
fez, Rafaela. Não faz a menor ideia! — Ele nem
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olhou para mim, ficou encarando Victor com ódio


em seu olhar. — Victor estragou a sua vida! —
Ofegou de um jeito alucinado. — Mas eu descobri
tudo. Ele não vai escapar dessa vez!
A luz que envolvia Leonardo constantemente
se tornou fraca, bem como sua imagem. Ele estava
desaparecendo sem se dar conta, enquanto socava
Victor na minha frente. Nunca tinha visto a luz de
Leonardo tão escassa. Exceto... Exceto quando
estava com Larissa, naquela praça. Na noite em que
virei uma desgarrada. Por isso ele estava tão
diferente!
— Leonardo, pare com isso! — Usei toda a
energia que consegui reunir para agarrá-lo e puxá-
lo para mim. Ele veio com facilidade. — Por favor!
Sua luz está sumindo! Você está desaparecendo e
eu não estou te bloqueando, eu juro!
Ele continuou sem me olhar. Estava muito
concentrado em Victor.
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— Ele está deixando o Conselho... — Victor


falou de um jeito frio, seu rosto estava tomado por
ferimentos graves que se curavam depressa. Fiquei
impressionada com aquilo.
— Não me importo! — Leonardo perdera
toda a calma e tranquilidade. Canalizou mais
daquela luz azul para manter Victor imóvel. —
Você foi longe demais. O Conselho não vai me
impedir de te dar o que merece.
— Solte-o, Leonardo! — Tentei segurar a sua
mão, mas a energia me repeliu outra vez. Foi como
levar um choque.
— Por que ainda o protege? — O
Conselheiro me encarou severamente. — Você não
sabe o que ele te fez, Rafaela. Não pode estar
apaixonada por esse sujeito.
Arquejei de nervosismo.
— Apaixonada por ele? Você enlouqueceu?
— Ah, sim, com certeza. Enlouqueci desde
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que você virou a minha responsabilidade.


— Não pedi por isso! — berrei, já com raiva
dele. Leonardo se assustou com o meu grito, e
finalmente pareceu baixar a guarda.
— Eu sei — sussurrou. — Foi um erro. Mais
um erro.
— Solte-o, por favor.
Leonardo balançou a cabeça em negativa.
— Não posso. Ele é perigoso.
O Conselheiro analisou os meus olhos
atentamente, depois espiou a minha roupa nova.
Seu rosto estava vermelho, provavelmente
queimando de ódio, raiva e sede de vingança.
Mesmo assim, eu não podia permitir que Leonardo
deixasse o Conselho daquela forma, fazendo o ódio
tomar conta de tudo. Não permitiria que se
prejudicasse por minha causa. Além do mais, eu
não fazia ideia do que ele estava falando.
— Deixe-o aí, imóvel, e me conte o que você
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descobriu. Eu preciso saber.


Leonardo largou Victor, mas manteve a luz
trabalhando, mantendo-o imóvel contra o poste.
— Conte tudo e se acalme, Leonardo. —
Toquei em seus cabelos cacheados. Ele fechou os
olhos por alguns segundos. — Vamos dar um jeito
nisso. — Tentei permanecer calma. Alguém tinha
que manter a serenidade, afinal.
— Você não entende, Rafaela. Este...
Homem... — Apontou para Victor com severidade.
— Lembra que me pediu para descobrir quem batia
em Carla?
— Lembro.
Mas o que aquilo tinha a ver?
— Era ele o tempo todo! Victor entrava na
casa de Carla, desarrumava tudo, batia nela e ia
embora. Eu o expulsei enquanto fornecia paz para
ela. — Leonardo fitou o chão. Estava tão nervoso
que enrolou algumas palavras. — Carla quase
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sucumbiu. Você quase perdeu a chance de evoluir,


Rafaela. Por causa dele. — Apontou para Victor
mais uma vez. — E então você me bloqueou de
novo. Caiu na lábia desse cara e fugiu de seus
problemas.
— Eu... — Encarei o chão, envergonhada,
pois não consegui ver a decepção nos olhos de
Leonardo.
Era difícil acreditar. Eu não conseguia
entender por que Victor podia fazer aquilo com
alguém que não conhecia. Tentei pensar um pouco
mais no que Leonardo falou. Demorei alguns
segundos para entender, mas cheguei a uma
conclusão viável: Victor batia em Carla para que eu
nunca conseguisse ir para o céu e ficar com ele na
Terra. Era óbvio. Como eu não tinha pensado
naquilo antes? Ele estava me enganando o tempo
inteiro! Era muito conveniente para ele impedir a
felicidade de Carla.
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— Por que fez isso, Victor? — perguntei aos


murmúrios.
— Porque Carla me matou! — ele gritou,
exalando puro ódio.
Seu berro foi capaz de ser ouvido pela rua
inteira. O susto que tomei foi tão grande que dei
alguns passos para trás, quase me desequilibrando e
caindo no chão.
— O quê?
Carla havia matado Victor? Aquilo era o fim
da picada.
Olhei para Leonardo, e ele não parecia nada
surpreso. Mantinha uma expressão séria e fechada.
Seu maxilar firme indicava que fazia o maior
esforço para ficar quieto.
— Há alguns anos, éramos vizinhos —
Victor se explicou, ofegante pela raiva e pelos
socos que recebera. — Ela sempre foi uma
esquisita. Um dia antes de minha casa ser
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incendiada, ela disse que eu ia morrer, que eu


queimaria no inferno! Ela é uma bruxa!
— Victor foi designado para ajudar Carla —
Leonardo falou seriamente. — Ele a humilhava
todos os dias, assim como você quando estava viva,
Rafaela. Victor morreu e voltou para Terra. Seu
dever era ajudá-la. Eu fiquei responsável em guiá-
lo.
Arregalei os olhos, surpresa.
— Como posso ajudar a pessoa que me
matou? — gritou Victor.
— Já disse mil vezes que ela não teve nada a
ver com o incêndio! — Leonardo estava sem
paciência. — Carla é uma pessoa extremamente
sensitiva, ela sente quando uma pessoa vai morrer.
Aconteceu o mesmo com Rafaela.
— Isso é verdade... — sussurrei, ainda
incrédula. Aquela história toda era louca demais!
— Você sabia disso o tempo todo, Leonardo? Por
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que não me disse nada?


— Eu sabia que se tratava da mesma pessoa,
e por isso quis mantê-lo longe. — Leonardo olhou
para mim, furioso. — Mas você preferiu ficar do
lado dele, jogando fora todos os ensinamentos e
alertas que recebeu.
— Eu te apresentei à Carla, como ela não o
reconheceu? — Decidi ignorar o fato de Leonardo
ter acabado de me acusar de ter corrido atrás de
Victor.
— Nunca nos conhecemos pessoalmente. Os
Conselheiros não se envolvem com as pessoas que
são de responsabilidade dos Guias Protetores.
— Você devia ter me dito! Tudo podia ter
sido diferente se fosse mais sincero comigo.
— Tudo seria diferente se você tivesse
confiado em mim. — Leonardo me queimou com
seu olhar. Por que eu estava com a impressão de
que discutíamos mais do que aparentava? Ele
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estava visivelmente decepcionado comigo, mas de


uma forma esquisita, que não dava para
compreender. — Mas isso não foi a pior coisa que
Victor fez.
Leonardo voltou a encarar Victor. Eu soube,
pelo seu olhar, que estava prestes a atacar de novo.
— O que mais ele fez? — perguntei,
morrendo de medo da resposta.
O que mais faltava acontecer?
— Ele matou você, Rafaela. — A voz que, no
princípio, soou firme e comedida, mudou o timbre
e gritou muito alto: — Ele te matou!

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Capítulo 25

A luz

HOUVE UM minuto completo de silêncio antes


que eu pudesse compreender o que o Conselheiro
havia dito.
— O quê? — Minha voz saiu apenas em um
sussurro rouco de incredulidade. Se existisse um
momento ideal para perder o juízo, seria aquele. —
Isso é impossível, Leonardo, eu morri em um
acidente!
— Victor colocou pensamentos na sua mente
naquele dia. Ele te distraiu e te fez acelerar o passo
sem motivo. É o maior responsável pela sua morte!
— Leonardo era puro desespero. Seu rosto ainda
estava bem vermelho. — Assim que eu soube que
ele estava fazendo Carla sofrer, fui atrás de
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informações confidenciais que só o Conselho


poderia me dar. Consegui ter acesso à verdadeira
causa da sua morte, Rafaela. — Ele se virou na
direção de Victor. — Esse sujeito descobriu uma
forma de se alimentar da energia vital de Carla. Foi
isso que o deixou tão poderoso, capaz de induzir os
pensamentos dos encarnados.
Se a minha paciência tinha algum limite,
acabara de ser atingido. A onda de ódio e raiva
contida em meu espírito ressurgiu com força, e
daquela vez fui eu quem colocou as mãos no
pescoço de Victor, segurando-o entre os meus
dedos.
— Isso é verdade? — gritei, morrendo de
ódio de encarar aqueles olhos verdes. Agora, eles
só me davam nojo. — Você me matou?
— Eu tentei ajudar Carla. Só que você
sempre me atrapalhava, Rafaela. Ela ia à escola e
voltava arrasada, por mais que eu tentasse ajudar.
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Por sua culpa. — Victor estava um poço de nervos,


tentando se explicar depressa. Minha mão o apertou
ainda mais. — Um dia conferi pessoalmente quem
era a pessoa que tanto humilhava Carla, e conheci
você. No começo, eu te odiei profundamente.
Depois, percebi que tinha razão. Carla sempre foi
uma imprestável! Acompanhei os seus passos
depois daquele dia. Fiquei muito emocionado
quando você conseguiu me ouvir andando pela sua
casa, na manhã da sua morte.
Apertei mais forte o pescoço de Victor. Eu
ainda não tinha uma resposta objetiva. Precisava
saber a verdade.
— Você me matou? — gritei.
— Depois que te conheci, me apaixonei
completamente. Mas você estava viva, eu jamais
teria qualquer chance contigo. — Victor segurou o
meu rosto com sofreguidão. Eu me desvencilhei
rápido, antes que Leonardo interferisse. — Tive
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uma grande ideia. Se eu fosse capaz de causar um


pequeno acidente, sabia que sua alma acabaria
voltando para Terra. Você é cruel, Rafaela. Eu amo
isso em você.
— Um pequeno acidente... — murmurei com
os olhos cheios de lágrimas.
— Foi muito fácil invadir seus pensamentos
— Victor se vangloriou, exibindo um sorrisinho
metido a besta.
O ódio quis explodir dentro de mim.
— Você me matou! Todo o sofrimento, a
dúvida... A tristeza dos meus pais. Toda a dor que
senti... Foi culpa sua? — gritei muito alto, atingido
o auge da loucura. — Você não apenas me matou,
me deixou louca, pirada! Arrancou a minha vida e
o meu juízo!
A velha força sobrenatural pulsava no meu
espírito. Senti uma energia intensa latejando dentro
de mim. Meu poder tinha retornado. Senti que eu
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podia fazer qualquer coisa. Concentrei minha fúria,


e a luz do poste tremelicou com a energia que
emiti.
— Vou dar um jeito nele, Rafaela. —
Leonardo soltou minhas mãos com facilidade,
afastando-me de Victor. — Eu vingarei a sua morte
agora.
— Não! — Prendi as mãos em meus cabelos.
O Conselheiro fez uma careta para mim, como se
não me compreendesse. — Não pode fazer isso!
Você é bom, não é como ele. Não é como eu.
Leonardo já não tinha luz alguma em volta de
seu corpo. Ele estava deixando o Conselho por
causa de uma vingança. A ideia de vê-lo
prejudicado se tornou ainda mais assustadora do
que saber que Victor era responsável pela minha
morte. Leonardo era um anjo, eu não podia permitir
que se descontrolasse. Ele tinha que permanecer no
bem.
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— Rafaela, entenda! — continuou Victor,


tremendo de medo. — Tudo o que fiz foi por amor.
Depois que você morreu, não pude aceitar sua
paixão por esse... — Encarou Leonardo. —
Conselheiro estúpido. Na primeira vez que vi os
dois juntos, notei que você estava apaixonada por
ele.
— Você que é um estúpido, Victor! — Senti
lágrimas de dor saírem dos meus olhos
apressadamente. — Estragou a minha vida! Olha só
no que me transformei... Eu fiquei louca, pior do
que jamais fui. Por culpa sua!
— Como se sentiria se descobrisse que o
amor da sua vida se apaixonou por outra pessoa? —
A pergunta de Victor me fez calar. Por um
segundo, senti pena dele. Nada era fácil para
ninguém. — Me diz, Rafaela, o que faria se fizesse
tudo por quem ama, em vão?
Olhei demoradamente para Leonardo. Ele me
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encarou de volta com o olhar mais vazio que eu já


tinha visto. Tudo estava tão errado, e pior, era
quase impossível consertar. Mas eu não podia
desistir dele. Desistiria de mim e de quem mais
fosse. Dele, não.
— Eu viraria uma desgarrada — confessei,
olhando para Victor novamente. — Mas eu nunca,
nunca, nunca... machucaria quem amo. O que você
sente nunca foi amor.
— Já chega, Rafaela! — Leonardo ergueu as
mãos e concentrou a energia azul mais uma vez. —
Vou acabar com ele agora mesmo!
— Não! — Usei toda concentração do mundo
para segurar aquela bola azul e jogá-la longe, até
vê-la se deteriorando no ar. Leonardo ficou
surpreso com o que fiz. — Não vou permitir! Você
está fora de controle!
Eu tinha que fazer alguma coisa! Rápido!
Precisava de alguém para me ajudar com
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aquela situação. Havia três pessoas completamente


descontroladas, e nada estava dando certo. Queria
contar com alguém confiável, que oferecesse algo
de bom para todos nós em um momento tão
complicado. Imediatamente, me lembrei de uma
pessoa. Imaginei-a como da última vez; envolta
numa camada intensa de luminosidade, sorriso no
rosto e um leve cheiro de rosas. Magnólia, a
Conselheira de Luz, materializou-se na nossa frente
um segundo depois.
— Magnólia! — Vi seus olhos tranquilos se
chocarem ao reparar a cena diante de si. —
Magnólia, nos ajude, por favor!
— O que está acontecendo aqui? — Depois
que olhou para Leonardo, ficou realmente
preocupada. — O que você está fazendo,
Leonardo?
— Sabe muito bem o que estou fazendo,
Magnólia — Leonardo disse, tristemente.
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— Você é um de nossos melhores


Conselheiros. — A voz doce de Magnólia e a
calma que sua aura nos fornecia já estava fazendo
efeito. Eu me sentia mais leve. Uma semente de
esperança foi cultivada em meu coração. — Não se
esqueça da Luz, Leonardo. Você não pode se
esquecer da Luz.
O Conselheiro pareceu se acalmar com
aquelas palavras. Afastou-se de Victor e me olhou
com tristeza. Percebi que se arrependia, mas que
também estava decepcionado.
— Magnólia, suponho que saiba o que esse
homem está fazendo com várias vidas aqui na
Terra. — Apontei para Victor, que se manteve
calado e muito quieto.
Eu precisava de respostas e de soluções.
— Antes de vir para cá, Leonardo me contou
tudo. — Ela sorriu. Eu não entendia quais eram os
motivos daquele sorriso, mas depois que a calma
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que ele foi capaz de enviar chegou até mim como


uma injeção de ânimo, compreendi. Como sempre
dizem, rir é o melhor remédio. Cura a alma.
— Quero que a senhora se encarregue de
atribuir o castigo que ele merecer. — Fechei os
olhos e me mantive firme. — Eu não sei o que
fazer com ele, e não vou permitir que Leonardo se
prejudique por minha causa.
— Rafaela, eu não posso me envolver nessa
situação. Depende unicamente de vocês —
Magnólia explicou calmamente. — Também não
tenho o poder, nem o direito, de julgar ninguém.
— A senhora é uma Conselheira, não é?
Necessito de seus conselhos agora. O que faço? —
Eu sabia que ela não me negaria um bom conselho.
Não era de sua natureza negar ajuda.
Magnólia olhou para mim com uma
expressão decidida. Seus cabelos longos e muito
cacheados estavam brilhosos, bem como os olhos
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claros. Pareceu pensar um pouco no que dizer. Ela


estava escolhendo as palavras certas.
— A Luz pode atingir a todos, Rafaela, sem
exceção. O perdão e a compreensão são o princípio
da Luz, assim como o amor. Por mais difícil que
seja, a verdade sempre trará justiça. — Magnólia
sorria como um anjo, fechando e abrindo os olhos
como que encantada com o poder de cura de suas
palavras. Elas, de fato, soaram como música nos
meus ouvidos. Havia uma onda de bondade enorme
nos rondando.
Olhei para Leonardo, e a luz que o
circundava aumentou gradativamente. Ele estava
mais calmo, voltando à serenidade. Suspirei de
alívio pela sua recuperação.
Foi observando Leonardo que compreendi
perfeitamente o que Magnólia queria dizer. Estava
claro como a mais cristalina das fontes. As palavras
sábias de Magnólia eram poderosas, capazes de
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atribuir luz onde só havia trevas.


Concentrei o meu poder para libertar Victor
da energia ruim que o prendia. Ele quase caiu, mas
eu o segurei pelos ombros e o levantei antes que
acontecesse. Victor apenas me encarou, nervoso,
sem ter ideia do que eu faria.
— Eu te compreendo, Victor — murmurei,
olhando em seus olhos verdes. Eles não me
hipnotizavam mais. — Não foi fácil para você. Eu
te perdoo por tudo o que fez, e peço perdão pela
dor que te causei.
Uma energia diferente saiu do meu corpo
para encontrar o de Victor. Era uma coisa boa,
inofensiva. Amorosa. Senti uma força ainda mais
forte do que o ódio dominar todo o meu ser. A jaula
que prendia o meu peito havia sido aberta através
das minhas palavras. Eu tinha que deixar aquilo
florescer dentro de mim se quisesse ter um pouco
de paz. Sabia que aquele era o único caminho certo,
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apesar de tortuoso. Nem sempre é fácil permanecer


no bem.
Victor ficou absolutamente surpreso.
— Quero que fique bem. — Toquei em sua
testa, e ele fechou os olhos. — Não deixe as trevas
te dominar, a Luz existe dentro de todo mundo.
Você pode começar de novo e fazer melhor,
quantas vezes precisar. Não guardarei nenhum
rancor.
As lágrimas de Victor se fizeram presentes
logo após a surpresa. Todo aquele porte orgulhoso
e sarcástico pareceu se esvair junto com elas.
Minhas palavras tiveram um poder absurdo sobre
ele, maior do que qualquer energia que podíamos
conjurar. Eu realmente não esperava por aquilo,
apenas falei o que precisava.
— E você, vai ser feliz? — choramingou
baixinho.
— Prometo que tentarei. Vou consertar os
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meus erros.
— Promete?
Aquiesci. Tive uma vontade louca de abraçá-
lo, e assim fiz.
— Obrigado, Rafaela — sussurrou em meu
ouvido. — Eu me sinto em paz. Pela primeira vez
em toda minha existência. Ninguém nunca havia
me perdoado de absolutamente nada.
— Que esse seja apenas o começo de sua
nova caminhada. — Apertei sua nuca com força.
Victor soltou muitos soluços, até que seu
corpo começou a sumir, levado por partículas finas
de uma luz dourada. Ele parecia não se dar conta do
que estava acontecendo. Continuou chorando,
abraçado a mim. Ele não estava se
desmaterializando, era completamente diferente.
Um segundo mais tarde, sumiu em meus braços
sem nada mais dizer. A luz foi embora, seguindo
para o mesmo lugar de onde veio.
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Para onde ele tinha ido?


Olhei para mim mesma e notei que o meu
velho vestido cor de rosa tinha voltado. A escuridão
deu espaço à luz novamente. Voltei a ser o que era.
Eu me sentia muito cansada, mas, ao mesmo
tempo, com a consciência tranquila. Fiz o que era
certo pela primeira vez na minha vida. Nunca
imaginei que o poder do perdão fosse tão
transformador.
— Leonardo. — Vi Larissa se aproximando
de onde estávamos. Ela saiu por detrás de uma das
árvores plantadas na calçada da rua. Acho que
acompanhou de longe cada acontecimento.
— Larissa? — Quando Leonardo a viu,
andou apressadamente até ela, abraçando-a.
Virei as costas e caminhei na direção
contrária, olhando fixamente para o chão. Senti que
a velha dor não me atingiria mais. Eu amava
Leonardo? Sim. Muito. Mas queria a felicidade
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dele. Se isso significava ficar com Larissa, que


assim fosse. Eu ficaria feliz por ele, apenas em ver
sua luz transferindo calma e seu sorriso encantador.
Meus pensamentos foram interrompidos pela
voz de Magnólia. Não consegui evitar e olhei para
trás. Larissa estava se afastando aos poucos,
seguindo na direção oposta. Leonardo parecia
confuso.
— Leonardo, acho melhor você ir. —
Magnólia tocou em seu ombro. — Recupere-se,
recarregue as energias.
Apesar de Leonardo estar com sua luz
completamente refeita, ele aceitou a sugestão de
Magnólia sem pestanejar. Antes de ir embora, no
entanto, encarou-me demoradamente, esboçando
seu primeiro sorriso da noite. Era um sorriso meio
triste, que ainda assim foi capaz de me deixar
iluminada. Desmaterializou-se em um piscar de
olhos.
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— O que foi que aconteceu? — resolvi


perguntar. Eu estava meio perdida.
— Larissa entendeu que deve seguir o seu
próprio caminho. — Magnólia sorria de orelha a
orelha. Virou-se para mim. — Estou orgulhosa,
Rafaela. Leonardo também deve estar muito
orgulhoso. Você entendeu a situação perfeitamente.
Demonstrou compaixão por quem te fez mal.
Apenas os espíritos mais evoluídos são capazes de
perdoar os inimigos.
— Eu não entendi nada, Magnólia. Para onde
Victor foi?
— O Universo tem vários mundos, querida.
Ele foi para um lugar onde pudesse pensar melhor
no que fez.
— Ele foi para o inferno?
Magnólia riu como se eu tivesse falado
alguma besteira.
— Todos nós temos setenta vezes sete
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chances de sermos melhores — ela disse com


suavidade, e eu tentei lembrar onde tinha ouvido
aquilo antes. — Ele vai ficar bem, prometo. E você
fez muito bem em me chamar.
— Sabe, Magnólia... — Soltei um suspiro
meio cansado. — Se eu não tivesse morrido, jamais
teria conhecido Leonardo. Nunca saberia o que é
amar alguém de verdade. — Sua expressão diante
de minha confissão não foi de choque, como pensei
que seria. Muito pelo contrário, Magnólia parecia
saber tudo sobre o meu amor antes mesmo de eu ter
começado a falar. — Como posso culpar Victor e
sentir tanto rancor, se o que ele fez, de certa forma,
foi a melhor coisa que aconteceu comigo?
Magnólia apenas me observava, sem deixar o
seu lindo sorriso morrer. Fiquei feliz por não ter me
julgado.
— Por isso, não acho que tenha sido mérito
meu perdoá-lo — prossegui a minha explicação. —
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Foi até fácil. Depois de suas palavras, o lado bom


que habitava dentro de mim não pôde mais ser
contido, e o ódio desapareceu. Esse lado bom só
veio à tona por causa do que sinto por Leonardo.
Amor.
— Apenas os bons corações são capazes de
amar de verdade, Rafaela. — Magnólia segurou os
meus ombros. — Imagino que você tenha algumas
coisas a consertar, não é mesmo?
— Você tem razão. Tenho muito serviço por
aqui ainda — respondi, pensando em Carla.
— Eu te vejo em breve.
— Magnólia, por favor, me responda com
muita sinceridade. — Uma súbita preocupação me
deixou perturbada. — Leonardo vai ficar bem? —
Eu não sabia quando o veria novamente. Talvez
nunca mais.
— Claro que vai, não se preocupe. Apenas
faça o que deve ser feito e tudo dará certo.
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Logo em seguida, Magnólia desapareceu,


deixando um rastro de paz por alguns minutos. Fiz
questão de aproveitar aquela calma deliciosa antes
de cumprir com os meus deveres.

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Capítulo 26

A retratação

ESPEREI O dia amanhecer e passar devagar,


deitada no quarto aconchegante de Leonardo.
Recarreguei todas as minhas energias, preparando-
me psicologicamente para enfrentar Carla. Aquele
descanso foi fundamental, pois minha alma havia
passado por situações das mais diversas sem ter
recebido nenhuma folga. Eu estava exausta, mas,
quando me recuperei, senti que uma nova Rafaela
surgiu.
Já era de tarde quando me materializei no
quarto de Carla. Fiquei bastante surpresa ao
perceber que todos os móveis quebrados haviam
sido trocados de novo, bem como as cortinas. Não
existia vestígio algum de destruição. Quase não
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reconheci aquele ambiente modificado, mas aquilo


fez com que eu permanecesse positiva em relação
ao que precisava fazer.
Localizei Carla no banheiro, aplicando água
em seu rosto e esfregando rapidamente. Sem
dúvida, sinal de que estava com problemas.
— Você está bem? — perguntei com cautela,
tentando não assustá-la ao invadir seu quarto depois
de tanto tempo distante.
— Estou, mas não graças a você. — Carla me
olhou feio através do espelho. — Onde se meteu?
— Estive perdida. — Nunca pensei que
pudesse ter saudades dela, mas era exatamente
aquilo que eu tinha sentido. Vê-la novamente me
encheu de emoção. — Muita coisa ruim aconteceu
comigo — murmurei.
— É o que acontece quando se conspira
contra alguém. — Carla enxugou o rosto em uma
pequena toalha verde-limão.
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Que maravilha! Ela ainda pensava que eu


tinha culpa por todo aquele desentendimento na
festa de Pedro. A idiota achava mesmo que
estávamos todos mancomunados para humilhá-la
publicamente? Carla tinha que aprender a confiar
nas pessoas certas. Precisava se dar conta do grande
engano que cometeu ao acusar Kevin de uma coisa
que ele não tinha feito.
— Você está sendo extremamente idiota. —
Eu estava pronta para lhe dar um sermão do
tamanho do mundo, mas parei bruscamente assim
que vi curativos em seus pulsos. — O que foi isso?
— Puxei um de seus braços a fim de vê-lo de perto.
Carla se desvencilhou do meu toque
imediatamente, mas eu sabia que aqueles dois
curativos só podiam significar uma coisa.
— Você tentou se matar? — quase gritei a
pergunta. Ela nada respondeu, mas nem precisava.
Quem cala consente. — Você é burra ou o quê?
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Como pôde tentar se matar desse jeito? — Fiquei


tão chateada que tive vontade de me
desmaterializar para bem longe, mas não podia dar
as costas para os meus problemas de novo. — Olhe
para mim, eu morri! Você acha que é brincadeira
vagar pela Terra? Acha que toda dor acaba assim?
Tenho uma novidade pra te contar: não acaba!
Foi impossível não me lembrar das palavras
de Leonardo sobre eu quase ter perdido a chance de
evoluir. Se Carla morresse, estaria tudo perdido.
Significaria a minha total derrota.
— Eu sei, está bem? — Carla abaixou a
cabeça e passou um bom tempo fitando o chão com
tristeza. — Já levei esse sermão, não preciso que
repita tudo de novo.
— Não sabia que você era tão imatura assim.
— Já chega, não quero falar mais disso! —
rosnou, sem paciência.
Sua brabeza não me intimidou nem um
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pouquinho.
— Como se safou dessa? Você podia estar
morta!
— Leonardo. — Meu coração disparou
apenas em ouvir aquele nome. — Se ele não tivesse
chegado a tempo, eu não teria resistido aos cortes.
Ele... descobriu tudo sobre Victor. A essa altura
você já deve estar sabendo. — Carla não olhou para
mim enquanto falou aquilo, parecia envergonhada.
Eu também ficaria se tivesse escondido algo tão
importante.
— Pois é, ele descobriu e não foi graças a
você — desdenhei. — Devia ter me contado há
muito tempo, teria evitado vários problemas. —
Carla permaneceu tão cabisbaixa que senti
compaixão. Ela não merecia mais intrigas, só um
pouco de paz para variar. Foi por isso que desisti do
sermão e suspirei fundo. — Mas agora já era.
Victor não vai te importunar nunca mais.
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— O que fizeram com ele?


— A alma dele ficou em paz depois que o
perdoei. Deve estar em algum outro mundo,
tentando se tornar alguém melhor.
— Você não está falando sério! — O queixo
de Carla caiu.
— É a mais pura verdade. Não adianta
guardar rancor, o ódio só serve para nos atrasar.
Acredite, aprendi da pior forma possível.
Carla terminou de limpar o rosto em silêncio
e saiu do banheiro. Deitou-se em sua cama nova.
— Senti sua falta — murmurou, mas sem
olhar para mim.
— Eu também senti a sua falta. — Um nó se
formou em minha garganta. Ela permaneceu calada
por alguns minutos, até que resolvi quebrar o
silêncio incômodo: — Adorei o quarto novo.
— Ideia do papai e da Melissa. Acho que eles
estão juntos.
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— Certamente. — Sorri ao imaginar aqueles


dois em um relacionamento. Seria muito melhor
para Carla manter Melissa por perto.
— Bom, creio que, agora que Victor foi
embora, tudo está resolvido.
— Na verdade, não. Tem uma coisa que você
precisa saber. — Sentei-me na beirada da cama.
— Tipo o quê? — Carla se virou para mim,
já fazendo cara feia, provavelmente porque sabia
que eu comentaria sobre o ocorrido na festa.
— Você caiu direitinho na armadilha que
Daniele montou para te fazer brigar com Kevin. —
Carla tentou rebater, mas eu não permiti que
começasse. Fiz um gesto brusco que foi capaz de
silenciá-la. — Daniele e suas amiguinhas
articularam tudo. Kevin não sabia de nada que
estava acontecendo. Naquela noite, assim que você
foi embora, eles brigaram feio. Kevin até atirou a
máquina dela no chão.
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— É difícil demais acreditar nisso. —


Balançou a cabeça em negativa, ainda que
parecesse meio em dúvida.
— Claro que é. Você está acostumada a ser
enganada, iludida, humilhada... Mas, desta vez,
você está errada. Quando Kevin mais quis que
confiasse nele, você simplesmente não confiou.
Daniele soltou o veneno um dia antes para te deixar
com dúvidas, e depois deu o golpe de misericórdia.
Carla apenas olhava para o teto, como se lá
tivesse algo mais interessante do que aquela
conversa. Eu sabia que ela estava pensando. Pela
careta que fazia, provavelmente começava a
entender que eu estava falando a verdade.
— Você viu os olhos de Kevin quando ele
falou aquelas coisas bonitas para você. Eu estava lá
o tempo todo, só observando. — Ela fez cara feia,
porém ignorei. Minha seriedade a deixou sem ter
como rebater. — Eu vi os olhos dele. Tudo o que
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Kevin disse foi verdade. Ele foi muito sincero


contigo, Carla. Precisa se redimir, pedir perdão por
ter acreditado numa garota estúpida em vez de
confiar em quem você ama.
— Quem ama, confia — murmurou, tão
baixo que mal escutei.
— Exatamente. Quem ama, confia.
Depois de ter esperado Carla trocar de roupa,
seguimos em direção à casa de Kevin, que ficava
em um bairro não tão distante. Pegamos um ônibus
escondidas, pois Carla ainda não podia sair de casa.
Ela devia ficar de repouso, porque tinha levado alta
no dia anterior, mas me garantiu que estava se
sentindo bem. Como era caso de vida ou morte,
acompanhei-a com pressa. Ainda tentamos ligar
para Kevin, sem sucesso. Ele não atendia de jeito
nenhum.
— Eu sei que Kevin está em casa — Carla
falou baixo para que ninguém no ônibus a
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escutasse. — Vi quando saiu da escola mais cedo.


Ele ia estudar para a última prova de amanhã.
— Ele está chateado, não vai te atender
agora.
— Espero que Kevin seja capaz de me
perdoar. Não sei o que vou fazer se ele não me
perdoar.
Nem eu.
— Claro que vai, eu o conheço muito bem.
— Tentei consolá-la, mas a verdade era que eu
estava tentando consolar a mim mesma. — Kevin
não sabe guardar rancor por muito tempo.
Descemos da condução e andamos algumas
quadras antes de chegarmos à bela casa de Kevin,
localizada em um bairro tranquilo e arborizado.
Estávamos muito nervosas. Dentro de mim, sabia
que ele não seria capaz de fazer Carla sofrer,
porém, como eu não havia tido muita sorte
ultimamente, a ideia de cogitar que algo poderia dar
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errado era cruel. Mesmo assim, acompanhei Carla


até a porta e esperei depois que ela apertou a
campainha. Uma mulher muito bonita atendeu. Eu
a conhecia muito bem, era a mãe de dele.
— O que deseja? — Minha ex-sogra
disfarçou um sorriso.
— Sou amiga de Kevin e... queria muito falar
com ele. — Carla estava um poço de nervosismo,
suas mãos trêmulas não deixavam sobrar nenhuma
dúvida.
A mulher passou um raio-X completo em
Carla, analisando-a dos pés à cabeça,
provavelmente pensando se aquela garota seria boa
o bastante para o seu filho. Ela devia ter gostado do
que viu, até porque aquelas roupas de grife tinham
me custado uma fortuna, além de que eu tinha um
excelente senso de moda, pois deu um sorriso e
permitiu que Carla entrasse sem maiores
problemas.
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— Sente-se aqui, irei chamá-lo. — Apontou


para o sofá enorme que jazia no canto da sala.
Os móveis e a decoração do ambiente tinham
uma harmonia impressionante, em tons pastéis. Eu
havia passado várias tardes com Kevin naquela
sala, assistindo a filmes, conversando ou
simplesmente namorando quando não tinha
ninguém por perto. Foram dias maravilhosos, de
verdade.
Carla estava tão nervosa que começou a
retorcer os dedos. Tentei usar um pouco de energia
para tranquiliza-la, mas não sabia se estava
funcionando. Eu estava longe de oferecer uma paz
real como faziam os Conselheiros de Luz.
Quando Kevin entrou no recinto, deu para
perceber que não imaginava de modo algum que
Carla fosse procurá-lo. Sua expressão foi de
completa perplexidade.
— Carla? — Kevin fez uma careta tão
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esquisita que me fez sorrir.


— Preciso muito falar contigo. — Ela se
levantou do sofá em um pulo.
Kevin engoliu em seco, tentando escolher as
palavras certas. Percebi um pouco de orgulho em
seu olhar, mas seu jeito nervoso não negava que
tinha gostado da surpresa.
— Pensei que você não quisesse falar comigo
nunca mais.
— Eu não queria. Quero dizer, sempre quis,
mas estava muito chateada.
— E o que te fez mudar de ideia? — Ele
apoiou as mãos na cintura, soltando um suspiro
desconcertado.
Carla olhou para mim de soslaio.
— Vamos conversar a sós? — ela propôs,
pois sabia perfeitamente que a mãe de Kevin tinha
seguido para a cozinha, bem ao lado da sala, e era
provável que estivesse ouvindo tudo.
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— Tudo bem. Vem comigo.


Eu sabia que Kevin a levaria para a área da
piscina. Especificamente, para o gramado sob a
sombra de uma bela árvore. Ele adorava ficar ali, e
pelo visto nada tinha mudado. Havia livros e
cadernos espalhados, sinal de que levava os estudos
a sério.
Kevin afastou o material e se sentou na
grama verde. Carla se sentou também, porém
mantendo uma distância segura. Fiz questão de me
posicionar atrás dela, sentada em uma das cadeiras
plásticas de piscina, para que ela não ficasse me
vendo o tempo todo.
O silêncio tomou conta do quintal por alguns
minutos, até que a garota tomou coragem:
— Sei que está chateado comigo. Você tem
todo direito de estar.
Kevin se encostou ao tronco da árvore,
olhando fixamente algum ponto do céu que estava
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pintado de um tom de azul bem clarinho. Não havia


nenhuma nuvem, certamente um dia perfeito para
um banho de piscina. Olhei para as águas tranquilas
e cristalinas. Quase não pude conter o desejo de dar
um mergulho.
— Fui cega. Eu me deixei levar por uma
armação. — Carla deu de ombros. Seu timbre era
de lamento. — Naquele momento, acreditei
piamente em Daniele. Nem sequer a questionei.
— Você me prometeu coisas que não
cumpriu. — Kevin olhou para os pulsos de Carla.
— Eu estou decepcionado... e extremamente
preocupado. Como acha que fiquei quando soube
que você estava internada em um hospital com
cortes no pulso?
Meu Deus!
Aqueles últimos dias foram complicados para
todo mundo. Enquanto eu me afundava no mundo
do vício, Carla tentava se matar, Victor permanecia
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no dilema entre me beijar sóbria ou pirada,


Leonardo descobria tudo e Kevin se manteve
preocupado em perder Carla.
Que confusão!
— Foi a maior besteira que eu podia ter feito.
A morte não vai resolver os meus problemas. É que
foi muito tentador. Eu fiquei arrasada, com vontade
de sumir do planeta.
Odiei ouvir aquelas palavras saindo da boca
dela. Não sei em que momento criei um sentimento
tão protetor com relação à Carla. Mas ele existia, e
eu não queria, de verdade, que ela sofresse.
— Antes que pense que não me importei, te
visitei inúmeras vezes no hospital — disse Kevin,
ainda olhando para o céu. — Mas seu pai não me
deixou entrar. Ele disse que você gritava coisas
muito ruins ao meu respeito.
— Eu estava fora de mim, fora de qualquer
realidade. O fato, Kevin, é que estou arrependida
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pelo que fiz. Devia ter confiado em você, e não


naquela idiota. Depois de tudo o que me falou,
olhando diretamente em meus olhos, eu não tinha o
direito de achar que você estava mentindo.
— Tudo o que falei era verdade. — Kevin
olhou para ela pela primeira vez desde que se
sentaram na grama. Seus olhos refletiam o azul do
céu e da piscina, como se aquele cenário fosse
criado especialmente para eles. — E ainda é. A
mais pura verdade.
— Eu sei. — Carla segurou o rosto de Kevin,
delicadamente. — Por favor, me perdoa? Mesmo
que não queira mais saber de mim, mesmo que eu
não seja mais interessante para você, mesmo que
ache que não vale mais a pena... Por favor, ao
menos me perdoe.
Kevin tirou as mãos de Carla de seu rosto, e
por um momento achei que não queria mais vê-la
nem pintada de ouro. Foi um alívio imenso quando
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ele a puxou para mais perto de si, abraçando-a com


cuidado, como se ela fosse uma boneca de
porcelana prestes a quebrar.
— A culpa não foi apenas sua. Eu devia ter te
deixado mais segura e confiante. — Kevin a
observou apaixonadamente. Sei disso porque eu
estava numa posição em que era possível vê-lo de
frente. — Você jamais vai deixar de ser
interessante para mim. Entenda uma coisa Carla: eu
te amo. — Carla deve ter feito uma careta de
surpresa similar à minha, pois Kevin sorriu e
continuou: — Descobri que não podia ser menos do
que amor quando te vi naquele hospital, quando
senti um medo sufocante de te perder. Naquele
instante, soube que se eu te perdesse a minha vida
acabaria exatamente ali. Eu amo você, Carla. —
Kevin a puxou para ainda mais perto. — Não vou
cansar de repetir.
— Ah, Kevin... — A voz de Carla saiu
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chorosa. — Eu também te amo. Muito.


Eles começaram a se beijar bem na minha
frente. Não senti uma gota sequer de ciúme. Para
ser sincera, fiquei tão feliz que não consegui sentir
mais nada além da mais pura alegria. Achando que
minha participação havia acabado, virei as costas
para os dois e vi quando a mãe de Kevin apareceu
na área externa. Ela ficou meio sem saber se
atrapalharia ou não aquele momento íntimo. Mas,
como toda mãe, é óbvio que ela acabou
atrapalhando.
— Kevin, querido, fiz biscoitos e limonada!
— gritou.
Os pombinhos se desgrudaram no
sobressalto.
— Estamos indo, mãe! — Kevin gritou e
depois se virou para Carla, falando baixo: — Quero
que vá ao baile de conclusão comigo. Se eu não for,
a coroa ali não vai me deixar em paz nunca. E só
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vou se for contigo. Será que o médico te deixará


sair? Se não estiver tudo bem, eu...
— Eu estou ótima! — interrompeu Carla,
antes que Kevin ficasse ainda mais agitado. —
Faço questão de ir com você. Não podemos perder
a valsa.

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Capítulo 27

O baile

SABIA PERFEITAMENTE que eu era uma


fantasma e tinha que deixar Carla em paz cedo ou
tarde. Afinal, ninguém poderia viver sendo
perseguida e assombrada por uma alma
adolescente, viciada em moda e desiludida
amorosamente. Entretanto, me pedir para ir embora
sem conferir o baile de conclusão do Ensino Médio
era uma piada. Pior ainda era esperar que eu
deixasse Carla usar um vestidinho besta qualquer.
Era tão impossível quanto tentar passar um elefante
por dentro de um bambolê.
Além do mais, para onde eu iria? Com quem
conversaria? Fiz tudo o que precisava fazer na
Terra, e, no entanto, nada aconteceu. Significava
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que ainda não tinha acabado, certo? Eu precisava


concluir minha tarefa até o fim, seja ela qual fosse.
Apesar do pouco tempo que tínhamos para
nos organizar para o baile, foi emocionante ajudar
Carla a se preparar para a grande noite. De alguma
forma, aquela experiência me ajudou a não ficar tão
triste por perder um acontecimento que marcaria
parte da minha vida para sempre, se eu não tivesse
morrido cedo. Eu já tinha encomendado um vestido
lindo no Shopping da cidade, que provavelmente
ninguém foi buscar e ele ficaria me esperando até
sabe-se lá quando. Não dava para Carla ir buscá-lo
porque eles pediriam minha identidade e a nota. Eu
não sabia onde estava nenhuma das duas coisas.
Às oito horas em ponto, Kevin já estava
esperando Carla, sentado no sofá novo da sala de
estar, provavelmente ouvindo uma das últimas
piadas de Nando ou provando alguma coisa que
Melissa tinha acabado de preparar. No dia anterior,
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Carla havia convencido o pai de que Kevin não foi


o culpado por sua tentativa de suicídio.
Melissa e Nando estavam mais animados do
que nunca com a nova melhora no humor de Carla,
depois de terem levado um susto imenso com sua
internação. Estava tudo tão perfeitamente
encaminhado que eu mal podia acreditar. As coisas
entrariam nos eixos, afinal.
Carla ficou simplesmente linda. O seu
vestido era de um vermelho sensual, porém na
medida certa. Ele não tinha alças e era justo na
cintura, abrindo-se como um leque escarlate logo
abaixo. Combinava perfeitamente com a sua pele
muito branca e o cabelo preto. Kevin não tirou os
olhos dela nem por um segundo, enquanto todos na
sala a elogiavam. Venhamos e convenhamos,
Kevin também estava particularmente lindo
naquele terno elegante.
O salão de festas do baile não deixou a
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desejar. A decoração com faixas e balões prateados


estava um espetáculo, e algumas pessoas dançavam
animadamente na pista de dança, colorida por luzes
que balançavam no ritmo das canções. Alguns
formandos tiravam inúmeras fotos que ficariam
guardadas de recordação daquele dia tão especial.
Apesar de estar acompanhando a felicidade
contagiante de Carla e Kevin, não pude deixar de
me sentir um pouco vazia. Carla pôde perceber
minha inquietude, pela maneira como me olhava às
vezes.
Não querendo atrapalhar aquele momento
único entre os dois, refugiei-me no banheiro
espaçoso e fiquei observando as garotas entrarem e
saírem, retocando suas maquiagens e falando bem
ou mal de suas companhias. Nada daquilo era
interessante para mim, na verdade. Não mais. Por
isso, não demorei a ter vontade de ir embora.
Depois de um bom tempo de indecisão,
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caminhei em direção à porta do sanitário, mas Carla


entrou bem na hora. Havia algumas garotas ali, por
isso ela se aproximou da pia mais próxima em que
eu estava e murmurou baixinho:
— Você está bem?
Começou a procurar alguma coisa em sua
bolsinha vermelha, tentando disfarçar.
— Acho que vou embora.
Antes que Carla pudesse responder qualquer
coisa, Daniele entrou no banheiro com sua
turminha de praxe, colocando veneno em todas as
garotas por perto, até todo mundo ir embora e
deixar o banheiro só para elas. Carla tentou ignorar,
mas me olhou sem saber o que fazer. Era óbvio que
estava com medo de cair em outra armação de
Daniele.
Foi só depois de um tempo que eu percebi.
— Ela está usando o meu vestido! — gritei.
Infelizmente, apenas Carla escutou. Daniele estava
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usando o mesmo vestido que eu havia


encomendado, e imediatamente me lembrei que nós
duas tínhamos ido juntas ao Shopping. — Essa
louca sabia sobre a encomenda do vestido. Não
acredito que foi buscá-lo e veio com ele!
Carla ficou atenta à aproximação de Daniele.
Seus cabelos vermelhos estavam presos em um
penteado elegante, que infelizmente combinava
com o meu vestido dourado. Eu não tirei os olhos
dela, ainda sem acreditar que tinha sido capaz de
fazer aquilo. A ousadia de Daniele tinha
ultrapassado todos os limites.
— E aí, aberração! — Daniele desdenhou
com um sorriso babaca estampado em seus lábios.
O olhar sarcástico foi quase capaz de matar alguém.
— Eu não sabia que você gostava tanto de ser
enganada. — Carla nada respondeu, dando-lhe
abertura para continuar soltando seu veneno: —
Quando vai entender que Kevin está contigo por
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pena? Olhe bem para si mesma! Por mais que mude


de roupa, jamais deixará de ser essa aberração! —
As outras garotas gargalharam.
Ridículas.
Carla estava com as mãos trêmulas, dava para
perceber pelo modo como fechou a torneira de
umas das pias. Ela não sabia o que fazer, mas eu
torcia para que descobrisse que tinha que se
defender. Carla precisava aprender a fazer aquilo
sozinha, de uma vez por todas, senão sempre
existiria alguém para humilhá-la. As pessoas que
não se defendem estão fadadas a serem pisoteadas
para sempre.
— Você jamais será como Rafaela —
Daniele continuou, já que Carla apenas tentava
ignorar. — É estupidez sua tentar imitá-la. Acha
que depois de ter alguém como Rafaela, Kevin iria
querer alguém como você?
Olhei fixamente para Carla através do
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espelho. Ela me encarou de volta, começando a


entender que não podia deixar barato. Acredito que
as palavras finais de Daniele foram a gota d’água
para Carla tomar uma atitude mais definitiva. Ela
tinha que fazer alguma coisa.
E ela fez.
Indignada, chegou bem perto de Daniele,
enfrentando seu olhar cruel sem piscar. Eu apenas
observei toda a cena, torcendo como se estivesse
diante uma batalha fatal. Quando o rosto de Carla
chegou o mais perto que podia ficar do de Daniele,
ela falou com firmeza:
— Quem você tenta enganar, Daniele? Não
fui eu quem correu atrás de Kevin assim que minha
melhor amiga morreu. Não fui eu quem roubou
todas as amizades que ela tinha. Não sou eu quem
faz questão de imitar cada roupa que ela vestia, não
fui eu quem pegou o vestido que ela encomendou, e
nem tive a cara de pau de usá-lo como se fosse
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meu. — As meninas pararam de rir. Daniele tentou


manter o nariz bem empinado, porém seu rosto
ficou vermelho. Finalmente, Carla a havia atingido.
— Você nunca será como ela, Daniele. Nunca. Esse
vestido em Rafaela ficaria um espetáculo. Em você,
está apenas... ridículo.
Antes que Daniele pudesse falar ou fazer
qualquer coisa, Carla abriu caminho entre as
meninas e saiu do banheiro com a cabeça erguida.
Uau!
Foi maravilhoso observar as primeiras
lágrimas saírem dos olhos claros de Daniele, mas
não demorei muito a me sentir mal. Eu não
conseguia mais achar legal ver alguém sofrendo,
não importava quem fosse. Não queria conferir a
cena detestável que se desenrolaria quando Daniele
transformasse a dor em ódio, então apenas segui
Carla pelo salão.
Kevin estava conversando com alguns
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amigos quando ela se aproximou e o abraçou forte,


na frente de todos. Kevin não se importou com a
demonstração de afeto inusitada, e a abraçou de
volta, dando-lhe um beijo meigo na testa.
— Te amo, meu amor — Carla falou
baixinho.
— Também te amo, linda — Kevin
respondeu, sem demonstrar nem um pingo de
vergonha de falar aquilo em público. Os seus
amigos apenas os admiraram, sorridentes, e, logo
em seguida, continuaram a conversar.
Não pude conter um sorriso diante daquela
cena maravilhosa. Os dois estavam, enfim, felizes
como deveria ser. As coisas ruins permaneceriam
exatamente onde deviam: no passado. Meu trabalho
havia terminado, algo em mim tinha plena
consciência disso. Porém, estava faltando alguma
coisa, algum detalhe perdido. Revirei minhas
lembranças para tentar descobrir o que era, mas
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nada encontrei. Sabia que era aquilo que estava


fazendo com que eu ainda permanecesse ali. Eu me
sentia leve, mas algo me impedia de voar.
Caminhei vagarosamente até a entrada do
salão, prestando atenção na decoração bonita da
festa e nas pessoas felizes, comemorando. Uma
grande escadaria guardava a entrada triunfal.
Aquele lugar estava vazio, provavelmente porque
todos já haviam chegado e curtiam o baile. Sentei-
me em um dos degraus, olhando para o céu que se
estendia diante de mim. Não havia estrelas e nem
lua naquela noite. Apoiei meus cotovelos nos
joelhos, e depois meu rosto em minhas mãos.
Eu me sentia tão bem quanto jamais tinha me
sentido desde que morri. Minha tarefa estava
cumprida, meus erros reparados. O destino agora só
dependeria do que ele mesmo tinha a oferecer.
Claro que eu não fazia a mínima ideia do que
estava faltando. Não sabia para onde ir, nem o que
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fazer. Como sempre. E como eu sempre fazia


quando aquilo acontecia, pensei em Leonardo.
Onde será que ele estava? Será que ficaria
bem?
Rezei para que não tivesse nenhum problema
com o Conselho. Leonardo não merecia ser
castigado, só estava tentando fazer o seu trabalho.
Tudo bem, ele tinha perdido o controle, mas tudo
estava certo agora e, se ele não tivesse interferido,
talvez tudo ainda estivesse errado.
Naquele momento, olhando para o céu com
tristeza, soube que eu não me importava se jamais o
tivesse para mim. Eu queria que Leonardo fosse
feliz. Só isso.
— Você está chorando — a voz doce de
Carla murmurou perto de mim.
Levei um susto enorme ao vê-la sentada bem
ao meu lado, com seu vestido vermelho derramado
sobre a escadaria. Ela estava encantadora.
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— Eu nem tinha percebido. — Tentei limpar


as lágrimas com as costas de minhas mãos.
— Pensei que ficaria feliz depois de tudo
resolvido. — Ela olhou para mim, preocupada. —
Achei que finalmente iria para o céu, e sua alma
estaria em paz. Tive medo de ter perdido a chance
de me despedir.
— Não me leve a mal, eu estou muito feliz
por vocês. Tudo o que fiz de errado... As coisas
finalmente estão como deveriam.
— Sabe o que eu acho? — Carla segurou as
minhas mãos. — Acho que você ainda se culpa por
tudo o que fez.
— Claro que me culpo! — Apesar de ter
perdoado Victor, eu ainda não tinha me perdoado.
As palavras de Magnólia surgiram doces na minha
mente. — Se não fosse por minha causa, muito
sofrimento teria sido evitado.
Comecei a entender o que ainda me prendia
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na Terra, depois de pensar em Victor e Magnólia.


Eu não havia encontrado a Luz porque faltava o
perdão, que era o início dela.
Mas como podia me perdoar?
Olhei fixamente para Carla. Eu nunca me
perdoaria se ela não me perdoasse.
— Carla... me perdoe por tudo. — Fitei o
chão da escadaria, sentindo-me muito
envergonhada. Eu não achava que o que eu tinha
feito com ela tivesse perdão, embora algo vibrante
dentro de mim soubesse que tudo era perdoável,
bastava ter boa vontade. — Os erros que cometi
contigo foram cruéis e...
— Não a culpo por nada — interrompeu
Carla, sorrindo. — No começo, eu te culpava, mas,
sinceramente? Fui eu que deixei que as pessoas
fizessem comigo o que queriam. Tudo o que sofri
foi culpa minha. Mesmo assim, se nada tivesse
acontecido do jeitinho que aconteceu, certamente
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eu não estaria aqui. Estou vivendo uma felicidade


que nunca pensei que me era permitida, Rafaela.
Graças a você.
Senti que mais lágrimas caíram sobre meu
rosto, porém, daquela vez, elas tinham outros
motivos. Eram lágrimas de alegria. Eu me sentia
leve, em paz. As palavras de Carla tocaram fundo
em meu espírito, libertando-o.
— O que fez comigo, Rafaela, já passou, não
tem mais importância. — Carla ainda segurava as
minhas mãos. — Eu te perdoo por tudo, e te
agradeço com ainda mais força pelo que fez por
mim. Por não ter desistido, por ter tido uma
paciência que nem todo mundo teria. Você me
ajudou de todas as formas possíveis. Me presenteou
com a sua companhia, seu braço amigo, até suas
roupas, suas coisas... — Carla acenou para o
próprio vestido. Era perceptível o quanto estava
emocionada. — Imagino como deve ter sido difícil
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abrir mão delas. Para ajudar alguém que você nem


gosta! — Carla começou a chorar também.
— Eu... Eu gosto de você — confessei em
um murmúrio. Ela sorriu, mas ainda chorava.
— Você talvez tivesse o dever de reparar
seus erros, mas tenho certeza de que não era seu
dever fazer do jeito como fez. Oferecendo, antes de
qualquer coisa, a sua amizade, o desejo verdadeiro
de querer o bem da outra pessoa. Não sei se
conseguiria fazer o mesmo, se fosse o contrário.
Por isso, te agradeço infinitamente. Muito obrigada
mesmo, Rafa, de coração. — Carla me deu um
abraço apertado, que correspondi prontamente,
entre lágrimas.
Aquele abraço foi fundamental para o meu
corpo inteiro tremer de alegria e tranquilidade. Meu
trabalho havia acabado exatamente naquele
instante. Finalmente, eu entendia como Victor se
sentiu quando o perdoei. O perdão é fundamental
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para alcançarmos a Luz. Aquela sensação de paz


absoluta era o que toda alma que caminhava na
Terra precisava para seguir em frente. Elas
buscavam exatamente aquilo.
— Agora, sim — falei, fechando meus olhos.
— Agora, sim, o quê?
— Agora que você me perdoou, posso me
perdoar.
Uma forte luz dourada invadiu o meu corpo,
tomando-me com uma paz que jamais pensei em
sentir. Meus pés começaram a sumir pouco a
pouco, depois as minhas pernas. Eu já tinha visto
aquilo antes, foi exatamente o que aconteceu com
Victor. Eu também estava indo embora.
Carla me soltou apressadamente, assustada
com aquela luz esquisita.
— Você está desaparecendo! — ela gritou.
— Não se preocupe. Estou em paz, minha
alma está em paz. Não pertenço mais a este lugar.
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— Você está indo para o céu? — Carla


chorava e sorria simultaneamente.
— Não sei exatamente. — Eu me mantive
séria.
Morri de medo da ideia de ir para o céu.
Sabia que era algo que eu tinha desejado o tempo
todo, mas pude perceber claramente que ir para o
céu não era a coisa mais importante que eu tinha
que fazer. A coisa mais importante eu já tinha feito,
e não importava para onde iria depois. Meu desejo
sincero de corrigir todos os meus erros foi maior do
que absolutamente qualquer coisa que podia
desejar.
A luz já tomava parte da minha cintura
quando me desesperei. Eu tinha que deixar alguns
recados antes de ir.
— Escute, Carla. Vai parecer estranho, mas
você tem que fazer isso. — Ela me olhou com
atenção. — Agradeça aos meus pais por tudo...
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Diga a eles que sinto muito e que... Que estarei bem


agora, que serei muito feliz. Diga a Kevin que peço
perdão pelo que fiz com ele.
— Darei seu recado, sim, não se preocupe. —
As lágrimas de Carla não paravam de cair. — Não
me importo de parecer meio louca.
— Obrigada, Carla. Por me perdoar. Você
merece ser muito feliz.
— Você também, Rafaela.
Mesmo sem saber se aquilo seria realmente
possível, eu sabia que aquela sensação de paz
absoluta era o suficiente para curar todas as minhas
feridas. A luz já tomava todo o meu corpo quando
finalmente apaguei, seguindo em uma dimensão
completamente desconhecida.

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Capítulo 28

O julgamento

— RAFAELA? — ESCUTEI uma voz muito


distante. — Rafaela, acorde!
— Ela está atrasada — outra voz falou.
Quando abri meus olhos, mal pude aguentar a
luz forte que tomava conta do recinto. Fechei-os
imediatamente, e depois os abri de novo, tentando
me acostumar com a claridade.
— Ela acordou! — alguém gritou.
— Onde eu estou? — sussurrei, quase sem
voz.
— Você está no Centro dos Conselheiros de
Luz — alguém disse.
Centro dos Conselheiros de Luz? Onde
ficava isso?
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Consegui abrir meus olhos de uma vez,


depois de alguns minutos. Eu estava em um
pequeno quarto com paredes brancas, deitada em
uma cama de madeira comum. Havia três pessoas
por perto, uma delas era Magnólia, que sorria para
mim como sempre. Não consegui reconhecer as
outras pessoas, mas eram dois homens, um mais
velho e outro mais novo. Tipo assim, bem mais
novo mesmo, com mais ou menos uns dez anos de
idade. Todos eram Conselheiros de Luz, pois suas
auras brilhavam, atribuindo ainda mais claridade ao
ambiente.
— Você está atrasada, Rafaela, já pode se
levantar? — o homem mais velho falou, parecendo
sinceramente preocupado comigo.
— Não sei direito. — Eu me sentei na cama
devagar, e senti um pouco de tontura. — Acho que
sim.
— Vá com calma — falou o garoto.
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— Vinícius, me ajude a levantá-la — sugeriu


Magnólia.
O garoto se aproximou e tomou um de meus
braços enquanto Magnólia segurava o outro.
Ambos fizeram força para que eu me colocasse de
pé. Minhas pernas, embora cansadas, estavam
firmes, sinal de que eu poderia andar sem
problemas.
O quarto em que estávamos era muito
simples. O único móvel era a cama de madeira em
que eu estava deitada. Não havia janelas, e a porta
era tão branca quanto as paredes. Os três
Conselheiros me encaravam, esperando alguma
reação de minha parte.
— O julgamento vai começar a qualquer
momento — Vinícius falou, com sua voz infantil.
Ele vestia roupas brancas e finas, assim como
as de Leonardo, fazendo sua pele negra se destacar.
Os olhos grandes e redondos brilhavam com
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intensidade, e sua aura iluminada possuía tons de


um azul muito claro. Era uma criança encantadora,
de fato. A tranquilidade que sua presença me
causava era real, maciça, como a de todos os
Conselheiros presentes.
— Que julgamento? — perguntei, confusa.
— O seu julgamento, Rafaela. — Magnólia
me encarou significativamente. — Mas não se
preocupe, vai dar tudo certo.
— Mas... um julgamento? — quase gritei de
nervosismo. — Não dá tempo de me preparar? Eu
acabei de chegar!
Eles não podiam me julgar assim tão rápido!
— Infelizmente, não temos tempo — disse o
homem mais velho. — Tivemos que adiantar, pois
teríamos que ter boa parte do Conselho reunido.
— Eu fui tão ruim assim? — tive até medo de
perguntar.
— Claro que não! — Vinícius gargalhou.
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Olhei-o sem entender, mas ele apenas sorriu.


O garoto falou como se soubesse exatamente cada
detalhe do que eu tinha passado.
O que aquele garotinho sabia da minha
vida?
— Vamos, querida. Temos que ir. —
Magnólia abriu a porta e seguiu adiante. Vinícius
segurou minha mão e me puxou de leve em direção
à porta.
Seguimos por um longo corredor branco,
repleto de portas de diferentes estilos. Os
Conselheiros pareciam nervosos, exceto Vinícius,
que segurava a minha mão e sorria toda vez que eu
olhava para ele. Não havia ninguém circulando
pelos corredores, até que paramos diante de uma
porta maior do que as outras. Ela tinha uma placa
de ferro, onde estavam gravadas em letras douradas
as seguintes palavras: Sala de Julgamentos
Especiais.
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— Julgamentos Especiais? — Senti meu


estômago revirar. — Por que terei que ser julgada
especialmente?
— Não se preocupe, Rafaela, logo irá
entender — disse Magnólia.
— Apenas seja você, Rafa. — Vinícius me
tratava como se eu o conhecesse há anos e
fôssemos amigos íntimos. De certa forma aquilo
me deixava mais segura. — Fale o que sente e
ficará tudo bem.
— Está pronta? — Magnólia estava nervosa,
e se ela estava nervosa significava que eu também
devia estar.
— Estou. — Aquiesci, mais por curiosidade
de saber o que tinha do outro lado da porta do que
por qualquer outra coisa.
O Conselheiro mais velho abriu a porta e uma
Luz imensa invadiu os corredores. Vinícius me
puxou e entrei no recinto. Quase não acreditei no
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que vi. A sala era simplesmente imensa, como um


dos maiores auditórios que podiam existir. Mas
aquilo não foi o que mais me deixou espantada.
Sentados em cadeiras, formando fileiras, havia a
maior quantidade de Conselheiros que eu já tinha
visto na vida. Tinha centenas deles, todos olhando
para mim.
Vinícius sentiu meu nervosismo e apertou a
minha mão ainda mais forte, levando-me para o
centro daquele grande salão: uma área redonda,
onde pude ver um balcão de madeira ornamentada,
similar aos de julgamentos que eu só via em filmes.
Provavelmente era ali que se sentaria o juiz, ou
algo do tipo.
O interessante era o fato de o salão ser todo
circular, ou seja, as cadeiras formavam inúmeros
círculos em volta da esfera no centro, similar a uma
arena de boxe. De frente ao balcão do juiz, distante
alguns metros, havia duas cadeiras. Uma delas
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estava vazia. A outra estava ocupada por um


Conselheiro, pude identificar pelo brilho que
emanava dele.
Não consegui tirar os olhos dos Conselheiros
que me observaram passar por um corredor estreito
que levava diretamente à área central. A sala inteira
reluzia de tanto brilho que emanava pela união
deles. Havia Conselheiros de todos os tipos:
homens, mulheres, crianças, brancos, negros,
orientais...
Eu não conseguia entender o que tinha feito
de tão grave, até que finalmente cheguei ao centro
circular do salão. Sentado em uma das cadeiras, de
frente ao balcão de julgamento, estava Leonardo,
que olhava para o chão fixamente. Meu coração
disparou de imediato, e finalmente entendi porque
seria necessário um julgamento especial para
aquele caso.
Meus dedos tremeram, e Vinícius apenas
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apertava minhas mãos sem apagar seu sorriso que,


naquele momento, era tudo no que eu podia me
agarrar em minha defesa. Ele fez sinal para que eu
me sentasse na cadeira ao lado de Leonardo e foi
embora, assim como Magnólia e o velho
Conselheiro.
Assim que sentei, olhei para Leonardo com
curiosidade. Ele ainda observava o chão
seriamente, como se estivesse evitando olhar para
mim. Seus cabelos encaracolados escorriam para
frente, impedindo que eu decifrasse o seu olhar. Os
lábios estavam presos com força, de modo que sua
boca não passava de um traço fino e reto.
É, finalmente eu consegui. Finalmente
consegui estragar tudo.
Um Conselheiro muito bonito, aparentando
ter a idade de Leonardo, aproximou-se do balcão e
se sentou na cadeira de madeira. Seus cabelos
loiros eram compridos e muito lisos. A face
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emanava bondade e serenidade. Supus


corretamente que ele seria o juiz daquela sessão,
apesar de ter uma aparência juvenil. Meu coração
batia sem parar, quase saindo pela boca. Eu tinha
realmente entrado numa fria. Uma fria daquelas.
— Silêncio! — falou o rapaz, como se
alguém no salão estivesse falando alguma coisa.
Todos já estavam no mais completo silêncio assim
que ele havia se sentado.
— Rafaela Satto, correto? — o homem
perguntou, olhando para mim.
— S-Sim — consegui gaguejar.
— Seja bem-vinda ao seu julgamento,
Rafaela. Meu nome é Gabriel, e sou o Juiz dos
Conselheiros de Luz. É um cargo de muita
responsabilidade, porém quero deixar claro que
minha decisão apenas é tomada quando a maioria
do Conselho está de acordo. — enquanto Gabriel
explicava, minhas mãos tremiam sem parar. — Por
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este motivo, trouxemos uma grande quantidade de


Conselheiros para decidirmos sua situação.
Combinado? — O Juiz piscou um de seus olhos
para mim. Gostei dele. Pelo menos era simpático e
não se achava o dono de tudo.
— C-Combinado.
— Esta sala está livre de mentiras. — Gabriel
revirou alguns papéis em sua mesa. — Nós
saberemos exatamente se estiver mentindo, só para
você saber.
— Eu não pretendia mentir. — Dei de
ombros.
Gabriel se levantou de sua grande cadeira e
olhou para o Salão de Julgamento, dando uma volta
ao redor de si mesmo para contemplar todos os
Conselheiros presentes. Todos estavam em silêncio,
apenas esperando suas próximas palavras.
— Estamos reunidos aqui hoje para
realizarmos um Julgamento incomum.
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Precisávamos de muitos Conselheiros para tomar


esta decisão importante, e todos vocês foram
solicitados a participar desta sessão. Lembrando
que, neste Julgamento, iremos decidir, em nome do
Bem e da Luz, o futuro não de apenas uma, mas de
duas almas. Rafaela Satto, uma recém-chegada que
estava na Terra como Guia Protetor, e seu
Conselheiro de Luz, Leonardo Alves. Vale ressaltar
que é a primeira vez que um Conselheiro de Luz é
julgado.
Os Conselheiros se remexeram em suas
cadeiras. Muitos começaram a cochichar, tornando
a sala um burburinho. Eu estava um poço de
nervosismo. Leonardo ainda olhava para o chão
como se aquilo tudo não tivesse nada a ver com ele.
Aquela indiferença toda estava me deixando louca
da vida.
— Silêncio! — bradou Gabriel com
seriedade. Imaginei que ele pegaria algum
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martelinho e bateria na mesa, mas não aconteceu.


— Realizarei a leitura das acusações de ambos,
enquanto isso, preciso do silêncio e atenção total de
vocês.
Gabriel pegou um pedaço de papel, ergueu-o
e começou a ler as seguintes palavras:
— “Rafaela Satto faleceu há duas semanas,
vítima de assassinato por indução de pensamentos,
cometido por um espírito não-evoluído chamado
Victor Rodrigues, que já foi julgado e encaminhado
para o mundo de expiações. Sua morte prematura e
cruel a trouxe para o Paraíso, e imediatamente os
Conselheiros Magnólia, Severino e Leonardo a
encaminharam para a Terra, a fim de corrigir
alguns de seus erros gravíssimos. Durante a
estadia na Terra, Rafaela conseguiu atingir a
verdade que trouxe justiça para todos os
envolvidos. Ela aprendeu noções de compreensão e
perdão, bem como do arrependimento. Apesar de
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sofrer momentos de escuridão e falta de


esclarecimento, sua alma encontrou a Luz
novamente, e suas atitudes foram decisivas na
correção de todos os erros. Foram dignas de uma
alma livre. Porém, durante sua estadia na Terra,
Rafaela cometeu um crime gravíssimo contra o
Conselho quando corrompeu um de nossos
melhores Conselheiros de Luz, fazendo-o encontrar
caminhos contrários ao Bem e ao perdão. Ela se
utilizou de artifícios desconhecidos para convencê-
lo a seguir este caminho tortuoso, induzindo-o a
escolher as Trevas e interferir sem a permissão do
Conselho.”
— Estas são as acusações contra Rafaela —
ditas essas palavras, Gabriel terminou de ler.
Embora estivesse feliz por aquela acusação
ter se iniciado com a parte boa do que aconteceu
comigo, mal pude acreditar no que tinha acabado
de ouvir.
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Que confusão tamanha!


Eu estava mais ferrada do que imaginava.
Olhei para o chão, sem saber o que fazer ou falar.
Não fazia ideia de como me livraria das acusações,
mas realmente não importava. Enquanto eles
colocassem a culpa daquilo tudo em mim,
Leonardo estaria a salvo.
Era isso!
Decidi não me defender naquele momento.
Assim, Leonardo seria absolvido. Eu pagaria por
todos os meus erros sem problema algum, arcaria
com todas as consequências.
Como se tivesse ouvido os meus
pensamentos, Leonardo se levantou no sobressalto
e falou em alto e bom tom, demonstrando pela
primeira vez desde que entrei no recinto que estava
prestando atenção a tudo o que acontecia:
— Senhor, isso está absolutamente errado! —
Todos olharam para ele, surpresos, inclusive
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Gabriel e eu. — Rafaela nada teve a ver com as


minhas escolhas!
Assim que terminou a última frase, sua aura
começou a escurecer até ficar completamente
negra. Eu nunca tinha visto algo parecido com
aquilo antes. Era como se a escuridão estivesse
tomando conta dele. Permaneci congelada, sentada
na minha cadeira.
O que estava acontecendo?
— Leonardo, você está fora de si! — bradou
Gabriel, parecendo muito chateado mesmo. —
Como tem a ousadia de mentir na frente de seus
irmãos? Você sabe muito bem que esta sala nos
mostra a mentira e a verdade.
Leonardo olhou para os Conselheiros e se
sentou logo em seguida, cabisbaixo, suspirando
alto. Sua aura voltou ao normal imediatamente.
Depois de alguns segundos olhando para o chão,
ele finalmente me encarou com uma preocupação
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profunda fincada em seu semblante. Ele estava


tentando me proteger a qualquer custo. Como
sempre. Mas eu não permitiria. Era a minha vez de
protegê-lo.
— Por favor, Rafaela... — Leonardo
sussurrou tão baixo que ninguém foi capaz de
ouvir. — Por favor, não deixe de se defender. —
Sua voz foi tão marcante, tão... acolhedora. Ela
inspirava uma urgência tão grande que quase
comecei a chorar ali mesmo, de tanto nervosismo.
— Não posso fazer isso — sussurrei de volta.
Leonardo me encarou, demonstrando um
desgosto fora do comum. Eu sabia que ele ficaria
chateado com minha atitude. Havia chegado a
minha hora de fazer por ele o que sempre fizera por
mim.
— Agora, lerei as acusações de Leonardo
Alves — Gabriel continuou a falar para os demais:
— “Leonardo Alves é membro do Conselho de Luz
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há aproximadamente três anos. Suas atitudes


sempre foram tomadas pela fé, pela paz e pela
tranquilidade. Sua grande sabedoria sempre foi
destaque entre os Conselheiros, bem como o seu
poder. Leonardo é responsável por guiar, com
sucesso, centenas de almas perdidas, ajudando-as
a encontrar a Luz e a vencer seus objetivos. Apesar
de um membro recente, Leonardo é atualmente o
Conselheiro mais eficaz do Conselho de Luz, por
ter obtido mais sucesso em suas intervenções do
que qualquer outro Conselheiro. Portanto ele
merece todo o nosso respeito e admiração.
Entretanto, em sua última intervenção com Rafaela
Satto, cometeu um crime gravíssimo ao escolher o
caminho das Trevas e da vingança em momentos
cruciais. Ele interferiu no livre arbítrio de dois
desgarrados, o que é altamente proibido entre o
Conselho. Além disso, é acusado gravemente por
crime de sedução, tendo como sua vítima a própria
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Rafaela Satto.”
Um silêncio absoluto tomou conta do recinto.
Eu não pude acreditar no que estava escrito naquele
papel. Quem foi o maluco que escreveu tamanha
barbaridade?
Crime de sedução? Dá licença!
Levantei meu dedo indicador, pedindo
permissão para falar como se eu estivesse diante de
um professor e não de um Juiz importante. Ele
olhou para mim, gesticulando para que eu
prosseguisse.
— Desculpe, senhor — eu me levantei da
cadeira —, mas essa história de crime de sedução
foi a coisa mais absurda que já ouvi na minha vida.
— Alguns cochichos tomaram conta do recinto.
Fiquei morrendo de medo que minha aura mudasse
de cor ou algo assim, mas, como nada aconteceu,
apenas prossegui: — Esta acusação deixa claro que
Leonardo me seduziu porque quis com algum
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objetivo contrário ao Bem. Isso não é verdade!


Graças a Deus, minha aura ainda estava
intacta.
— Por que a senhorita não nos explica o que
aconteceu? — Gabriel mantinha uma calma
incrível. — Estamos aqui para entender. Nunca
tivemos um caso assim antes, Rafaela. Eu sou Juiz
do Conselho há mais de cento e setenta anos.
Tudo bem, Gabriel não se parecia com um
ancião. Na verdade, não aparentava ter mais do que
vinte anos. Ele era muito bonito, por sinal. Depois
de alguns segundos pensando naquilo foi que me
lembrei que os espíritos mantinham a aparência que
tinham quando o corpo morreu. Os anos se
passavam, mas as almas permaneciam intactas.
Olhei para Leonardo. Ele me encarava
seriamente, sem saber o que eu faria, mas era
perceptível a sua preocupação. Um clarão de
lucidez me fez entender que todos os cuidados que
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Leonardo tinha tomado com os meus sentimentos, e


com os nossos atos, foram com o objetivo de evitar
aquele julgamento sem sentido.
— Senhor, aconteceu algo muito simples de
explicar. — Voltei a olhar para os olhos claros e
inteligentes de Gabriel. — Tenho certeza de que
não fui a primeira mulher, nem serei a última, a se
apaixonar perdidamente por um homem.
— Rafaela, é totalmente diferente quando se
trata de um Conselheiro — explicou Gabriel, sem
se abater. — O nosso dever é evitar envolvimentos
desnecessários. Não devemos deixar que qualquer
romance aconteça.
— Como evitar? — perguntei, balançando a
cabeça. — Como alguém seria capaz de evitar que
uma pessoa sinta o que simplesmente sente?
— É errado se envolver amorosamente neste
tipo de situação. — Gabriel se adiantou. — O dever
dele era te proteger acima de qualquer coisa,
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instruí-la e encaminhá-la para a verdade e a justiça.


— Eu não entendo! Leonardo fez isso e está
sendo julgado injustamente.
— Um Conselheiro deve saber seus limites
— Gabriel falava muito sério. — Existem lugares e
situações em que não podemos ir além, devemos
deixar acontecer e esperar. Nosso dever é ajudar as
pessoas a resolverem seus problemas e não resolvê-
los por conta própria. Pior ainda, utilizando-se de
sentimentos de vingança e ódio.
— Tenho certeza, senhor, de que não foi a
intenção de Leonardo...
— Sente-se, Rafaela. — Gabriel apontou para
a minha cadeira, interrompendo-me.
Obedeci prontamente. Minhas pernas
tremiam como duas minhocas doidas. Naquela
altura do campeonato, eu já não conseguia achar
Gabriel tão legal assim.
— Leonardo, você sabe muito bem que os
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Conselheiros são escolhidos a dedo cada vez que


uma alma precisa de ajuda — o Juiz prosseguiu
seriamente. — Não entendo por que seu trabalho
deu tão errado. Explique-nos como você foi
escolhido para essa responsabilidade.
Quem disse que deu errado?
— Foi uma surpresa para mim também —
Leonardo murmurou, encarando Gabriel. — Quem
se responsabilizaria por Rafaela em sua caminhada
era a Conselheira Magnólia, mas fui chamado e
designado formalmente para a tarefa.
— E quem designou? — perguntou Gabriel.
— O Conselheiro Severino, do Departamento
de Tarefas.
Os Conselheiros começaram a cochichar alto.
— Leonardo, Severino é o nosso melhor
Atribuidor de Tarefas.
— Eu sei. — Leonardo chacoalhou os
ombros, parecia incrédulo. — Por isso tenho
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certeza de que tudo teve um propósito maior. —


Ele olhou para mim. Prendi a respiração que eu
nem precisava. — Todos vocês precisam acreditar
que Rafaela é a pessoa mais inocente dessa história.
Sou o culpado por tudo. Fui eu que falhei.
Não!
— Não, não... — comecei a falar, mas fui
interrompida por Gabriel.
— Leonardo, você afirma que passou dos
limites diante das regras do Conselho?
— Sim, senhor — ele respondeu, mantendo
um olhar firme no Juiz.
Rezei para que a aura negra da mentira
aparecesse e tomasse todo o seu corpo, mas nada
aconteceu. Eu realmente não tinha muita sorte.
— Então, você tem plena consciência de que
passou dos limites? — continuou Gabriel.
— Tenho.
O Juiz olhou para mim, invicto. Eu estava
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muito indignada com a situação, de modo que senti


o exato momento em que as lágrimas se formaram
em meus olhos. Engoli em seco e tentei fazer de
conta que não estava ouvindo.
— Você nega que deixou as trevas te
dominar, mesmo que por alguns instantes? —
Aquele interrogatório era muito cruel.
— Não.
— Então, você realmente deixou que as
trevas dominassem você? — O Juiz queria ter
certeza absoluta nas respostas de Leonardo,
destrinchando minuciosamente as informações.
— Sim.
— Pode nos dizer por quê?
— Porque eu quis — Leonardo resmungou.
Sua aura ficou negra novamente, mas daquela
vez ele pareceu não se importar muito. Decidi que
eu detestava ver aquela aura sinistra tocando em
sua pele. A vontade que tive foi de espantá-la para
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bem longe dali. Não suportava ver Leonardo se


complicando. Meu coração doía a cada palavra
proferida.
— Você está mentindo de novo, Leonardo. A
mentira não é uma atitude digna para um
Conselheiro como você. — Gabriel parecia muito
decepcionado. — Não é capaz de nos dizer a
verdade?
— Desculpe, senhor. — Leonardo passou as
mãos em seus cabelos com nervosismo. Ele
também não sabia direito o que dizer. — É difícil
admitir que depois de tanto tempo perdi o controle
de mim mesmo. — A aura negra deu lugar a sua
aura luminosa de sempre.
Leonardo olhou para mim sem pressa. Eu
sabia o que ele estava fazendo. Exatamente o
mesmo que eu: tentando colocar toda a culpa em si
mesmo.
— Como me pede para fazer uma coisa que
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você mesmo não está fazendo? — sussurrei.


Ele apenas continuou me encarando, absorto
em seus próprios pensamentos.
— Você admite que seduziu Rafaela Satto?
— Gabriel continuou com as perguntas, e eu só me
perguntava quando aquela tortura acabaria.
— Admito. — O Conselheiro ainda me
olhava.
— Não! — Arquejei, fazendo uma careta de
desgosto. — Você sabe muito bem que as coisas
não foram assim!
— Pode nos dizer por quê? — Gabriel
insistiu.
Leonardo franziu o cenho, desconcertado.
Seu desespero estava na cara, porém ele não me
ouviria. Nem se defenderia. Eu sabia que ele não
tinha como responder aquilo sem que precisasse
mentir e sem ter que me culpar de alguma forma,
por isso nada falou. O que Leonardo diria? Que eu
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havia dado em cima dele na cara de pau?


Eu tinha que falar alguma coisa.
— Senhor, eu já disse que não foi porque ele
quis, não é algo que se possa...
— Chega, Rafaela! — bradou Gabriel,
começando a perder a paciência comigo.
— Eu tenho o direito de falar, não tenho? —
perguntei, chateada também. Aquele julgamento
era meu, afinal de contas.
— Claro que tem, mas é óbvio que a
senhorita está colocando a culpa em si para
defendê-lo — disse Gabriel, revirando os olhos.
— Como o senhor ou esse Conselho poderia
esperar que eu fizesse o contrário? — questionei,
intrigada. — Ele foi a melhor coisa que já
aconteceu comigo. O senhor acha que eu permitiria
que Leonardo fosse acusado injustamente?
— Você deve falar apenas a verdade.
— Estou tentando falar! Não falei nenhuma
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mentira até agora.


— Então, nos fale, Rafaela, estamos tentando
entender o que aconteceu! — Gabriel se aprumou
na cadeira monumental.
Seu porte de Juiz exalava inteligência e
atitude. Ele mantinha uma firmeza calculista em
seu olhar e em suas expressões. Mas eu sabia que,
apesar do cargo de Juiz requerer certa frieza,
Gabriel era um Conselheiro de Luz. Todos os
Conselheiros de Luz eram bons, sem exceção.
Levantei-me novamente da cadeira e dei alguns
passos à frente. Olhei para Gabriel demoradamente,
tentando sentir sua energia calmante. Consegui de
imediato, obtendo a prova de que eu precisava.
Gabriel era um Conselheiro que inspirava o bem,
acima de tudo.
Logo em seguida me virei, olhando para
Leonardo. Depois observei o restante do Conselho
que estava presente. Vinícius estava em uma das
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cadeiras mais próximas, daquela vez sem sorrir.


Lembrei-me de suas palavras, ele havia me alertado
para falar o que sentia. Era aquilo mesmo que eu
faria.
— O senhor disse que o dever de um
Conselheiro é proteger as almas de sua
responsabilidade, acima de qualquer coisa. Sei que
o Conselho tem limites, e sem dúvida Leonardo
conhece cada um deles. — Todos me encararam em
silêncio. — Como todos já sabem, ele não é
nenhum inexperiente neste assunto. O problema é
que aconteceu algo que Leonardo não esperava,
que estava completamente fora de seu alcance.
Gabriel prestava atenção em minhas palavras,
pronto para rebatê-las caso eu vacilasse. Sabia que
não dava para errar, pois significaria problemas a
mais para Leonardo. Eu diria toda a verdade, doa a
quem doer. E a verdade teria que trazer justiça.
Não era assim que acontecia?
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— Eu me apaixonei por Leonardo de um


modo profundo. Ninguém pôde evitar, bem que eu
tentei. Não foi culpa dele. — Eles teriam que nos
compreender de uma vez por todas. — Quando eu
estava viva, não fazia ideia do que era esse
sentimento. Jamais havia sentido por ninguém.
Antes dele, não havia nada de bom em mim.
Senti-me um pouco envergonhada. Foi uma
reação que considerei natural, pois não era nada
fácil ter que admitir a profundidade do meu
sentimento na frente de todo mundo, e
principalmente de Leonardo, por mais que ele já
soubesse.
Não tive coragem de conferir a sua reação.
— O que sinto não é passageiro. Estou aqui
graças ao amor. Quando virei uma desgarrada,
deixei o ódio invadir o meu espírito por completo.
A raiva e a decepção foram tão grandes que não
consegui me segurar. Foram momentos horríveis da
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minha caminhada, mas, durante este tempo inteiro,


alguma coisa doía dentro de mim,
incontrolavelmente. — Localizei Magnólia no meio
da multidão de Conselheiros. Ela estava na
primeira fila e sorria como sempre. Lembrei-me de
como suas palavras também tinham sido
fundamentais para libertar meu lado bom. Para
libertar o meu amor. — No meio das trevas,
precisei tomar decisões importantes. Essas decisões
só foram tomadas e tudo só foi resolvido porque
havia algo bom dentro de mim. O amor que sinto
por Leonardo me fez sair das trevas mais rápido do
que imaginei ser capaz. Ele me fez ser alguém
melhor, me fez ser capaz de compreender e perdoar
as pessoas e a mim mesma. Como um sentimento
tão bom pode ser julgado como se fosse um crime?
— Rafaela, nós sabemos que você não está
mentindo. Mas isso não tira a culpa de Leonardo.
Ele se esqueceu da Luz e agiu contra as regras do
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Conselho. Você não entende que as atitudes que ele


tomou poderiam causar desgraças? Foi você que
resolveu a situação, Rafaela. Leonardo interferiu e
atrapalhou. Ele não podia ter perdido o controle.
— Se ele não tivesse perdido o controle, eu
nunca teria parado para pensar melhor. Foi o meu
desejo de protegê-lo que me fez impedi-lo —
expliquei, ainda de pé diante do grande Salão. —
Eu agi sob pressão.
— Suas boas ações não absolvem as ações
dele — Gabriel suspirou.
Senti que o Juiz estava tentando usar a razão
mecanicamente, como era de seu dever fazê-lo.
Gabriel não tinha culpa de ter que fazer aquilo. Eu
não devia ficar com tanta raiva, por isso respirei
profundamente, aproximando-me ainda mais de
Gabriel. Sua aura brilhante me trouxe forças para
continuar tentando convencê-lo.
— Eu fiz uma coisa que não deveria ter feito,
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e que provavelmente foi fundamental para que


Leonardo tomasse as atitudes que tomou. — Tive
uma grande ideia, que poderia ser capaz de nos
absolver. — Antes de tantas coisas ruins
acontecerem comigo, admiti tudo o que estava
sentindo. Leonardo foi respeitoso comigo o tempo
inteiro, mesmo contra a minha vontade. Daquele
momento em diante, ele se sentiu responsável por
mim de uma maneira mais ampla.
— Como assim? Explique-se.
— Quem já leu “O Pequeno Príncipe”, de
Saint-Exupéry, entende perfeitamente — expliquei.
Vinícius parecia já ter lido a belíssima obra, pois
seu sorriso ficou ainda mais radiante quando nossos
olhares se encontraram. — O meu pai lia para mim
antes de dormir. A sábia raposa disse ao
principezinho: “Tu te tornas eternamente
responsável por aquilo que cativas.” — Senti
vontade de chorar, por isso minha voz falhou
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completamente ao concluir o que estava tentando


dizer. — Leonardo se tornou responsável pelo meu
sentimento... assim que soube. Isso é uma... atitude
digna... de um Conselheiro.
Limpei as lágrimas com as costas das minhas
mãos, fixando meu olhar no teto glorioso do Salão,
e parei ali mesmo. Havia desenhos de anjos
cravados no teto. As imagens emitiam uma
claridade impressionante, fazendo as asas dos anjos
parecerem reais. Comecei a entender que a
luminosidade das auras dos Conselheiros não era a
única coisa que fazia daquele Salão tão brilhante
e... celestial. A emoção ao observar aquele teto foi
tamanha que mais lágrimas saíram dos meus olhos.
Lembrei que eu não estava tentando fazer os
Conselheiros sentirem pena de mim ou ficarem
tristes com minhas lágrimas. Eu só queria que me
compreendessem.
— É verdade, Leonardo? — Gabriel fez
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questão de ouvir a resposta diretamente dele.


Fiz uma oração baixa para que o Conselheiro
não mentisse de novo.
Chega de mentiras!
— É.
Suspirei de alívio.
— Fale mais sobre isso, Leonardo — pediu
Gabriel.
— Não soube direito o que fazer, senhor.
Nunca havia acontecido antes, em nenhuma das
vezes que ajudei alguém. Eu me senti responsável
por Rafaela de uma maneira especial.
— O fato, senhor — continuei falando, feliz
por Leonardo ter se defendido —, é que a partir do
momento em que ele soube o que eu sentia, se
importou comigo a tal ponto que foi capaz de me
proteger mesmo quando não podia. Em nome do
que eu sentia por ele.
— É verdade, Leonardo? — Gabriel virou o
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rosto na direção do Conselheiro.


De certa forma, o Conselheiro estava mais
alegre, talvez porque a minha culpa naquilo tudo
estava ficando cada vez mais para trás, pelo menos
era o que eu achava. Olhei-o, completamente
nervosa. Não conseguia deixar de querê-lo, por
mais que eu tentasse não sentir nada. A presença
dele me inspirava desejo sem que precisasse me
esforçar.
— Em parte, sim. O bem de Rafaela era o
meu principal objetivo, e eu seria capaz de qualquer
coisa para defendê-la e protegê-la. A morte dela foi
uma grande armação, assim como todo o restante.
— Leonardo fechou os olhos como se aquilo ainda
o perturbasse. — Eu iria para qualquer lugar para
salvá-la. Faria qualquer coisa.
— Você está admitindo que se envolveu
emocionalmente com Rafaela? — Gabriel tinha
uma impressionante habilidade de pegar as
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informações no ar e transformá-las em perguntas


constrangedoras.
— Sim. — Leonardo me encarou. Seus olhos
profundos deixaram minha pele instantaneamente
arrepiada. Por que ele conseguia mexer tanto
comigo? — Eu me envolvi.
Claro que sim, já ouviu falar em amizade,
senhor Juiz?
— Quando eu soube o que Victor havia feito
com ela, busquei a ajuda de alguns Conselheiros de
Luz. A maioria me alertou para que eu a deixasse
em paz, para que deixasse cada um usar o seu livre
arbítrio para tomar as decisões. O Conselho rejeitou
meu pedido de intervenção — continuou Leonardo,
transformando a suavidade na voz em um timbre
sério bem esquisito. — Mas eu não consegui ficar
parado. Já estava envolvido demais na situação.
Perdi completamente a cabeça.
— Você se arrepende de suas atitudes? —
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Gabriel lhe entregou a oportunidade de se retratar.


Sorri alegremente, afinal, se o perdão era o
início da Luz, o arrependimento seria sua base
primordial. Eu estava começando a gostar de
Gabriel de novo.
— Não. — A resposta inusitada de Leonardo
causou burburinhos entre os Conselheiros,
principalmente quando perceberam que sua aura
não ficaria negra. Mal pude acreditar naquilo. —
Eu faria exatamente igual. Não deixaria Rafaela
sozinha. Nunca.
Praguejei baixinho. Ele tinha acabado de
jogar a própria defesa no ralo.
— Você se considera culpado por todas as
acusações? — perguntou Gabriel.
— Nem todas. Mas, sim, eu sou culpado. —
Ficou óbvio que ele escolheu as palavras certas
para não ser tomado como mentiroso.
Se dissesse que se sentia totalmente culpado,
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a aura negra apareceria novamente, pois ele sabia


muito bem que eu tinha minha parcela de culpa.
— Sendo assim, creio que já temos
informações suficientes para o Julgamento. —
Gabriel se levantou da grande cadeira.
Eu sabia que Leonardo se daria mal. As
coisas não podiam terminar daquele jeito. Precisava
convencer o Conselho a absolvê-lo.
— Senhor... espere. — Ergui o dedo
indicador. — Se alguém o amasse profundamente,
a ponto de fazer qualquer coisa para vê-lo feliz, e se
essa pessoa por acaso o considerasse a criatura
mais importante do mundo inteiro, o senhor negaria
a ela sua proteção?
Gabriel pareceu pensar em uma resposta com
cuidado. Desconfiei que ele também não estava
imune ao poder daquele Salão. Ele era o único que
não podia mentir de modo algum diante de seu
próprio tribunal, afinal, um Juiz deveria dar
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exemplo de justiça e integridade a todos. Ele teria


que falar a verdade.
— Não negaria. — Gabriel causou cochichos
na plateia.
— O senhor se sentiria responsável por ela?
— continuei.
— Sim. — Deu de ombros.
— O que o senhor acha mais importante: as
regras do Conselho ou o amor verdadeiro e puro no
coração das pessoas? — Eu estava começando a me
sentir a Juíza.
— Rafaela, meu dever é manter essas regras.
— Não foi o que perguntei.
— Não sou obrigado a responder suas
perguntas. — Gabriel estava ficando nervoso, mas
não perdeu a compostura. Seu rosto afilado
continuava firme como uma rocha.
— Creio que o Conselho quer ouvir sua
resposta, senhor. — Percebi que todos estavam
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atentos, esperando uma resposta satisfatória do


Juiz. Gabriel olhou para a centena de Conselheiros
diante de si.
Ele tinha que responder.
— Claro que o amor é mais importante,
porém até ele tem limite. Tudo tem limite, Rafaela.
Andei até minha cadeira e sentei, sem mais
ideias para convencer a todos de que Leonardo era
inocente. Olhei-o com raiva, praguejando baixinho.
Eu não sabia o que faria se ele fosse condenado.
Pensei em várias formas de tentar sair
daquela situação, até que alguém se levantou da
plateia. Era magnólia.
— Senhor, desculpe-me a intromissão. — Ela
andou decididamente, com seu belo sorriso
estampado no rosto, até o centro do grande salão.
— Mas eu preciso falar algumas coisas antes do
Conselho tomar a decisão.
— Pode falar — disse Gabriel, sorrindo para
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ela.
Era impossível não sorrir ao observar o jeito
gracioso como a Conselheira se movia. Ela parecia
flutuar constantemente, como que guiada por asas
angelicais.
— Todas as justificativas de Rafaela foram
verdades, e todos os seus bons atos na Terra, bem
como sua compreensão do que é o perdão, a
amizade e o amor tornam-na claramente inocente
de todas as acusações, em minha opinião. — Ela
passou por mim, chegando até Leonardo. —
Quanto a Leonardo, assim que se envolveu nessa
confusão, ele procurou o Conselho diversas vezes.
O Conselho negou seu pedido desesperado de
intervenção e o deixou atormentado. Sendo assim,
ele foi atrás de todas as verdades por trás do
ocorrido, até conseguir obtê-las. Esse ato de
inquietude foi fundamental nos acontecimentos,
pois essa verdade trouxe justiça para todos os
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envolvidos.
Leonardo olhou para Magnólia com extrema
preocupação. Eu apenas conseguia sentir alívio,
pois ela estava fazendo algo que ele não foi capaz
de fazer.
— Depois que descobriu as séries de
injustiças que estavam sendo cometidas, Leonardo
se viu de mãos atadas para repará-las. Seu coração
se encheu de amargura. Ele procurou o Conselho
novamente, mas sua intervenção foi negada de
novo. Isso prova que ele tentou, até o fim, seguir as
nossas regras. — Magnólia desfilou até o Juiz. —
Tomado por um desespero absoluto, Leonardo me
procurou pessoalmente...
— Magnólia, não... — sussurrou o
Conselheiro.
Ela levantou uma de suas mãos, pedindo para
Leonardo ficar quieto. Eu quase a aplaudi naquele
momento.
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— Eu disse a Leonardo que, quando nosso


coração está inquieto, devemos ouvir o que ele diz.
Mesmo que ter ouvido o coração tenha o levado até
as Trevas, Leonardo não teve medo de ir em frente.
— Magnólia se virou para os presentes. — A
coragem também é uma dádiva divina. Sendo
assim, fica claro que este Conselho está julgando
Rafaela por amar, e Leonardo por seguir seu
coração. Agora, o que devemos decidir é uma
questão simples: isso é mesmo errado?
Todos os Conselheiros ficaram no mais
completo silêncio, enquanto Magnólia sorria e
andava como uma rainha encantadora até sua
cadeira, na primeira fila. Eu estava feliz por ela ter
nos ajudado, mais uma vez, em um momento
importante.
— Alguém mais tem algo a dizer? — Gabriel
olhou ao seu redor. Ninguém sequer se mexeu. —
Então, vamos ao Julgamento. Quem acredita que
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Rafaela Satto deveria ser absolvida de todas as


acusações?
Aos poucos, alguns Conselheiros foram
levantando a mão, até que a maioria deles estava
com os dedos erguidos para o alto, inclusive
Magnólia, Vinícius e o outro Conselheiro que
estava no quarto quando acordei. Gabriel estava
com a mão levantada e sorria para mim. Fiquei
feliz com aquilo, mas não me importei tanto quanto
deveria. O Julgamento de Leonardo era o que mais
me preocupava.
— Rafaela Satto foi considerada inocente de
todas as acusações — declarou Gabriel, sorrindo.
Sua voz firme ecoou no Salão de
Julgamentos Especiais, dando um toque definitivo à
sua afirmação. Os Conselheiros aplaudiram em
uníssono.
Leonardo olhou para mim, muito satisfeito.
Seu olhar pareceu ganhar vida de novo, como
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antigamente. A felicidade em seus olhos me trouxe


a velha paz que só ele me fornecia. A Luz que
sempre me curava. Sua aura ficou mais luminosa,
ganhando um brilho vivo e intenso. Decidi que
aquela seria a lembrança mais bonita que eu teria
de sua alegria, visto que provavelmente não o veria
de novo.
— Quem acredita que Leonardo Alves deve
ser absolvido de todas as acusações? — perguntou
Gabriel com firmeza.
Fui a primeira a levantar a mão, mesmo
sabendo que meu voto não poderia ser contado. Eu
não era uma Conselheira, afinal. Magnólia levantou
a mão logo em seguida, bem como Vinícius, até
que vários outros Conselheiros foram levantando
suas mãos.
Olhei para Gabriel. Ele parecia ainda estar
pensando, mantendo as mãos abaixadas. Foi então
que ele olhou para mim demoradamente. Sussurrei
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algo ininteligível para ele, soando mais como um


“por favor”. Eu devia estar com uma careta de puro
medo, pois Gabriel simplesmente levantou a mão e
sorriu, atendendo ao meu apelo. Mais Conselheiros
votaram a favor, como que induzidos pelo senso de
decisão do Juiz.
Leonardo manteve os olhos fixos em mim,
sorrindo com delicadeza. Eu estava morrendo de
medo de olhar para trás e verificar se mais
Conselheiros haviam levantado suas mãos. Morria
de medo do veredicto.
— Leonardo Alves foi considerado inocente
de todas as acusações — declarou Gabriel.
Senti algo quente em meu rosto, e constatei
que as lágrimas já tinham começado a surgir. Elas
caíram sem parar, tamanha a alegria que senti no
momento da absolvição de Leonardo. Os
Conselheiros aplaudiram tanto que alguns deles se
levantaram, aplaudindo de pé aquele Julgamento
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confuso. Eu não sabia para onde olhar, e, mesmo


assim, nada conseguia ver, pois minhas lágrimas
estavam deixando tudo bem embaçado.
— Estão todos dispensados! — bradou
Gabriel. — Vamos retomar às nossas obrigações.
Agradecemos a participação de todos no
Julgamento!
Vários Conselheiros começaram a sair pela
grande porta que entrei, enquanto outros apenas se
desmaterializaram. Levantei-me de minha cadeira
sem saber exatamente para onde ir, mas satisfeita
por tudo finalmente ter acabado. Gabriel saiu de
trás do grande balcão, alcançando-me antes que eu
me movesse.
— Está satisfeita? — Sorriu abertamente.
— Muito. Tudo foi resolvido. — Tentei
limpar minhas lágrimas.
— Não pense que eu estava contra você. É
meu dever...
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— Eu sei, Gabriel. Eu sei. O dever de um


Conselheiro vem em primeiro lugar. Já ouvi esse
sermão diversas vezes.
— Você conseguiu encontrar a Luz muito
rápido, Rafaela.
Ele tocou meu ombro, oferecendo-me uma
energia revigorante, capaz de me fazer parar de
chorar.
— Você sabe... O sentimento.
— Valorize o que tem dentro de você.
Fazendo isso, tenho certeza de que logo terá um
cargo no Conselho. Seu futuro é promissor no
Paraíso.
Paraíso? Eu estava o tempo todo no
Paraíso? Tipo... No céu?
— Infelizmente, não vou poder alimentar
esse sentimento por muito tempo — murmurei,
incrédula. — Terei que encontrar outros, mas não
me importo de ter que ralar para isso.
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Gabriel olhou para Leonardo, que descobri


tardiamente que estava ouvindo a conversa o tempo
todo. Meu rosto queimou de tanta vergonha.
— Acho que não, Rafaela. Fique bem. —
Gabriel se desmaterializou logo em seguida.
Não entendi direito o que ele quis dizer, e
nem tive a oportunidade de perguntar. Leonardo
surgiu do nada, bem na minha frente, com seu
sorriso encantador e mais brilhante impossível.
Como ele era lindo!
Minha vontade foi de abraçá-lo, mas sabia
que não podia fazer aquilo. Eu não tinha mais o
direito de insistir em algo que não adiantaria. Como
ele não era mais o meu Conselheiro de Luz, não
tinha mais a obrigação de me proteger, e muito
menos de ser legal comigo. O sentimento que
estava em meu peito seria guardado e prezado para
sempre, mas aquela era uma tarefa que só podia ser
realizada por mim mesma. O trabalho dele
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terminava ali.
Ele se aproximou ainda mais, pronto para me
abraçar, mas me afastei a tempo, dando alguns
passos para trás. Leonardo fez uma careta diante de
minha reação brusca, parecendo bastante confuso.
— Obrigada por tudo, Leonardo — falei,
sabendo que ninguém nos escutaria, visto que o
Salão estava um pouco barulhento por causa da
quantidade de Conselheiros que iam embora. —
Você foi ótimo, foi... perfeito.
— Rafaela, eu... — ele tentou se aproximar
novamente, porém dei mais passos para trás.
Se Leonardo tocasse em mim, não
conseguiria dizer adeus. Se eu sentisse o poder que
sua pele exercia quando se encostava à minha, seria
mais difícil resistir. Seria impossível, na realidade.
— Agradeço de coração, mas agora preciso
seguir meu rumo, sozinha. Seu trabalho terminou,
você não tem mais o dever de... — Tentei manter a
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firmeza, mas senti que estava prestes a desabar.


Leonardo permaneceu calado e meio confuso. Seu
cenho estava franzido. — Quero que seja muito
feliz.
Senti que as lágrimas me revelariam a
qualquer momento. Desabafar a tristeza que
amargurava meu peito toda vez que eu entendia que
tinha de ir para longe do homem que amei a cada
segundo, desde que o vi, seria vergonhoso. Ainda
assim, reconhecia a minha derrota. Eu o perdi.
— Adeus. — Dei as costas para ele antes que
a primeira lágrima acabasse com tudo.
Segui pela passagem que levava à porta,
sentindo-me tão tonta quanto fiquei quando ingeri
entorpecentes. Eu o perdi. Não parava de repetir
aquilo na minha mente.
Eu o perdi.
— Preciso falar com você, Rafaela. —
Magnólia me encontrou no corredor branco. —
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Venha comigo!
A Conselheira segurou minha mão, levando-
me em direção a algum lugar desconhecido. Virei
para trás, a fim de dar uma última expiada em
Leonardo. Ele estava parado no centro do Salão.
Seu sorriso havia se apagado completamente.

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Capítulo 29

O reencontro

SEGUI MAGNÓLIA a passos largos, desviando-


me dos inúmeros Conselheiros que realizavam o
mesmo percurso. Ela tinha pressa, e eu estava tão
curiosa em saber o que queria comigo que
simplesmente andei o mais rápido que pude.
Quando saímos do grande prédio que era o
Centro dos Conselheiros de Luz, o sol brilhava
forte no céu azul, refletindo cores maravilhosas nas
casas e ruas. Tudo era tão colorido! Estávamos no
Paraíso!
Em muitos momentos, pensei que jamais
veria aquelas ruas, casas e pessoas alegres
novamente. A sensação de paz era tão grande que
meu espírito experimentava o gosto da liberdade e
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do acolhimento. Pela primeira vez na vida, senti


que ali não era o lugar errado para mim. Não me
senti um peixe fora d’água. O destino havia me
guiado, e eu tinha que aproveitar a chance de tentar
ser feliz. Faria do Paraíso o meu lar.
Experimentaria uma paz relaxante e curaria o
restante das minhas feridas.
Minha alma estava cansada.
— Você precisa saber uma última coisa,
Rafaela, enquanto seguimos para a sua casa. —
Magnólia me ofereceu seu sorriso pela milésima
vez.
Ela ainda segurava minhas mãos, guiando-me
pelas ruas, até que paramos em um jardim. Um
grande jardim, por sinal. Havia plantas, arbustos e
árvores de todos os tipos. Crianças brincavam entre
as flores, enquanto os adultos passeavam, cantavam
e se divertiam com as crianças. A paz no céu era
reinante.
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— Minha casa? — Fiquei surpresa com


aquela nova informação.
Eu não sabia que tinha casa para morar no
Paraíso. Na verdade, eu dormiria sem problema
algum entre as raízes gigantes de alguma árvore
daquele jardim encantador. Viveria ali mesmo,
desfrutando tudo o que a natureza oferecia com
toda boa vontade do mundo.
— Sim, você vai morar aqui por um bom
tempo. Seu espírito precisa e merece um pouco de
paz.
— De fato, eu me sinto tão cansada! —
suspirei.
— Não podia ser diferente. A vida na Terra é
muito difícil. — Magnólia se sentou em um dos
bancos, feito das próprias plantas do jardim.
Ele era todo revestido de uma grama
verdinha, e entrelaçado em aspirais de raízes e
caules. Era uma obra de arte! Fiquei com pena de
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me sentar em algo tão bonito, mas acabei por


acompanhar Magnólia.
— Está feliz, Rafaela? — A Conselheira
colheu uma das flores.
Não imaginei que alguém tivesse permissão
de colher nada daquele lugar, mas fiquei encantada
quando uma nova flor cresceu e se desenvolveu
rapidamente no mesmo local onde Magnólia havia
arrancado.
Incrível!
— Que legal! — dei um grito de excitação.
— Tudo no Paraíso é infinito. Nada aqui é
capaz de ser destruído.
— Isso é... magnífico! — Quiquei no banco
como uma criança animada.
— Sim, é maravilhoso. Mas você não
respondeu à minha pergunta. — Magnólia cheirou
a flor com muita delicadeza, para logo em seguida
prendê-la no meu cabelo.
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— Eu me sinto livre, Magnólia. É o


suficiente para mim. Neste lugar, sinto que me
sentirei tão feliz quanto for possível.
— Todos aqui no Paraíso são felizes,
Rafaela. Você não viria para cá se não alcançasse
este estado de espírito.
Olhei para Magnólia, sentindo-me confusa.
Eu me sentia livre, alegre, calma, tranquila. Sentia
o bem pulsando dentro de mim. O amor brilhava
forte, dando vida à minha alma. Mas, felicidade?
Eu não tinha certeza.
— A paz do Paraíso realmente cura, mas aqui
não existe nenhum tipo de sofrimento. Ninguém
sofre.
Fiquei muito feliz em ouvir aquilo. Eu
esperava seriamente que aquela paz pudesse ser
capaz de curar o sentimento em meu coração, que
havia trazido tanto Luz quanto confusão para todo
mundo. Em contrapartida, sabia muito bem que
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seria uma tarefa dolorosa. Se o sofrimento não era


permitido naquele lugar, então eu não deveria estar
ali.
Qual era o meu lugar, afinal?
— Rafaela, preste atenção. Você precisa
saber de uma coisa que eu soube muito
tardiamente, e seria ideal que Leonardo nunca
soubesse. É para o bem dele, que ainda não se
recuperou totalmente da onda de Trevas.
— Não contarei nada, é claro. — Achei que
Magnólia soubesse que eu faria tudo que fosse pelo
bem de Leonardo.
— Victor tinha poderes muito grandes —
gesticulou, formando um arco enorme com as
mãos. — E os usava de uma maneira cruel. Um
desses poderes era o que chamamos de
transmutação. Ele tinha a capacidade de
transformar a própria aparência, por alguns
minutos.
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Olhei para Magnólia, ainda sem entender.


O que ela queria dizer com aquilo?
— Rafaela, pense bem. Victor usou este
poder contra você em um momento crucial. Ele
fingiu ser outra pessoa, o que te levou direto para as
Trevas.
Demorou um bocado, mas a ficha finalmente
caiu. Clara como água, aquela informação foi
tomando forma em meus pensamentos. Lembrei-
me da noite em que vi Leonardo e Larissa juntos. A
aura dele não brilhava como sempre. O Conselheiro
não parecia estar sentindo ódio naquele momento,
então era improvável que estivesse deixando a Luz.
Tudo isso porque não era Leonardo que
estava ali! Era Victor, fingindo ser Leonardo para
me causar ciúmes, para me fazer sentir raiva.
Naquela noite eu havia dito a Victor que ele jamais
seria como Leonardo. Então, o imbecil decidiu se
vingar e me fez ter a maior decepção que tive na
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minha vida. Larissa provavelmente estava


mancomunada com Victor, a fim de reencontrar
Leonardo de alguma forma. Juntos, articularam um
plano cruel e encenaram um encontro romântico
bem na minha cara.
Foi tudo uma armação!
Significava que Leonardo não estava
namorando Larissa. Ele não estava namorando
ninguém. Segundo Magnólia, ele nem sabia o que
havia acontecido!
Gelei ao descobrir o quanto aquela armação
tinha dado certo. Caí como uma patinha! Eu me
transformei em uma desgarrada por causa de uma
mentira. Imediatamente, levantei-me do banco
gramado e quase saí correndo em direção ao Centro
de Conselheiros de Luz, último lugar onde vi
Leonardo. Porém, Magnólia segurou uma de
minhas mãos antes que eu me afastasse.
— Você terá tempo de sobra. Não se
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preocupe. — Magnólia sorriu, sabendo que eu tinha


entendido e que iria atrás de Leonardo para pedir
perdão. — Vamos ver a sua casa.
— Mas ele está pensando que... — sussurrei,
entrando em desespero.
— Leonardo está confuso, mas não vai
desistir de você tão fácil. Vocês chegaram muito
longe. Mais do que pude imaginar.
— Mas... — O que Magnólia estava
querendo dizer? O fato de eu amar Leonardo, e ele
estar livre e desimpedido, não significava que me
amava também. Ele me protegeu. E foi só.
— Vamos, Rafaela. — Magnólia começou a
andar novamente pela rua. — Você vai gostar
muito do que vai ver. Prometo.
Caminhamos apressadamente. Eu ainda
estava pensando na minha idiotice. Precisava pedir
perdão para Leonardo. Paramos em frente a uma
casa simples, porém muito bonita. Nenhuma
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construção do Paraíso tinha muros ou portões,


portanto apenas atravessamos o pequeno jardim
que separava a porta e a calçada. Antes de
chegarmos ao hall de entrada, uma senhora saiu de
dentro da casa, sorrindo animadamente. Reconheci-
a de imediato.
— Vovó! — gritei, correndo até ela e a
abraçando muito forte.
Minha avó querida tinha morrido há alguns
anos, e eu sempre senti saudade dela. Era uma
pessoa encantadora, suas histórias eram as
melhores. Eu amava a minha avó com todas as
forças. Assim que senti seu perfume costumeiro de
lavanda, desabei em lágrimas.
— Rafinha, minha linda! — Adorei ouvir de
novo o apelido que só ela me chamava. Vovó
estava emocionada. Lágrimas também rolavam em
sua face enrugada. — Que bom que está aqui,
querida!
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Quando menos esperei, mais pessoas saíram


de dentro da casa. Reconheci minha prima Cibele
entre elas, uma Conselheira de Luz extremamente
encantadora. Um tio muito distante chamado
Fagner me abraçou, eu me lembrava dele
vagamente, por retratos de família. Alguns parentes
eu não pude identificar, mas todos estavam muito
felizes em me ver. Eu também me senti alegre e
aliviada. Não estaria sozinha, afinal. Se minha
família estava ali, significava que meu lar era
exatamente naquele lugar.
— Esta é a sua nova casa, Rafaela. —
Magnólia apontou. — Terei de ir agora. Curta a sua
família.
— Espere, Magnólia! — Corri até ela e não
tive o mínimo pudor para abraçá-la. — Obrigada.
Muito obrigada por tudo. — Eu estava
verdadeiramente emocionada pela ajuda sem
limites que a Conselheira havia oferecido. A
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presença dela tinha sido fundamental na minha


caminhada, e sua ajuda sempre chegava na hora
certa.
Eu seria eternamente grata.
— Não foi nada, Rafaela. Disponha sempre.
Depois que Magnólia foi embora, Vovó me
chamou para conhecer a casa da nossa família. Era
simples, porém muito aconchegante. Havia vários
quartos, sala, cozinha (embora não houvesse
utilidade alguma, pois além de fantasmas não
comerem, não existia fome no Paraíso) e um lindo
quintal nos fundos. Ele tinha uma vista
impressionante para uma floresta que parecia
mágica, de tanta Luz colorida que fornecia. As
árvores gigantes se estendiam em uma vastidão de
natureza viva, pulsante. Era a paisagem mais bonita
que eu já tinha contemplado.
Assim que Vovó soube da minha paixão
instantânea pela floresta, me forneceu um quarto
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simples para ficar, com uma pequena varanda


voltada para a imensidão verde. Daquele modo, eu
sempre teria como observá-la. O quarto só possuía
uma cama bem aconchegante, e nada mais.
Pensando bem, ninguém precisava de muita coisa
para viver no Paraíso.
Depois de passar horas conversando na sala
com a família, sentei-me no gramado do quintal e
observei a floresta encantada, como comecei a
chamá-la. Eu ainda estava admirada com sua
beleza, e sabia que aquela sensação não passaria
nunca.
Vovó se aproximou de mim. Notei antes que
pudesse vê-la, pois sua fragrância havia chegado
primeiro. Era um cheiro de lar. Ali era a minha
nova casa.
— A floresta é mesmo encantadora, não é?
— Vovó se esgueirou para alisar uma rosa que
desabrochava.
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Seu rosto redondo e vivo inspirava uma


inteligência incrível. Seus cabelos grisalhos,
amarrados em uma trança comprida, a deixavam
parecida com uma índia.
— É impressionante! Não canso de observar,
ela me atrai como a um imã.
— Por que você não vai conhecê-la de perto?
— Ela não é perigosa? Quero dizer, deve ter
animais selvagens e tudo o mais. Além de plantas
venenosas.
Vovó riu como se eu tivesse voltado a ser
uma criança boba e inocente, do jeito como se
lembrava de mim.
— Não há perigo algum no Paraíso. Você
está segura e em paz em todos os lugares.

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Capítulo 30

A felicidade

LEVANTANDO-ME apressadamente, segui


floresta adentro sem nem pensar duas vezes, muito
menos olhar para trás. Eu não estava acostumada a
andar em um lugar onde o mal não existia, mas
senti que podia me familiarizar sem nenhuma
dificuldade.
As árvores da floresta eram encantadoras. As
flores exalavam um cheiro característico muito
gostoso. A luz do sol, que sempre brilhava no
Paraíso, refletia nas árvores e espalhavam diversas
cores nas rochas, plantas e animais. Os pássaros
cantavam livremente, ensaiando canções sempre
alegres. A floresta era realmente encantada,
mágica. A sensação de paz infinita se misturava à
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liberdade, que parecia se encostar à minha pele a


cada lufada do vento fresco e puro.
Não pude evitar cantarolar uma canção feliz e
passear alegremente, saltitando, pulando entre as
rochas como uma criança. Quando pensei que nada
poderia ficar melhor, escutei um barulhinho de
cachoeira. Havia uma ali por perto! Segui aquele
ruído mágico e não demorei a encontrá-la. A queda
d’água não era muito grande, mas era simplesmente
linda. As cores ficavam mais brilhantes ali,
refletidas na água que se formava abaixo da
cachoeira. A cena era tão linda que passei um
tempo indeterminado apenas admirando,
estupefata, cada brilho proveniente do sol, cada
movimento que a água fazia.
Comecei a entender por que Magnólia disse
que no Paraíso não existia sofrimento. Não tinha
como sofrer diante de uma natureza tão esplêndida.
Pensei que não dava para ser mais feliz do que
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aquilo. Apenas pensei por um segundo, até que


ouvi a voz dele:
— É realmente maravilhoso, não é?
Cada pelinho do meu corpo se eriçou ao
ouvir o timbre doce e marcante daquela voz. Olhei
para trás e tive o vislumbre de Leonardo,
aproximando-se com uma calma acolhedora. As
luzes que tocavam as árvores faziam sua aura
brilhar mais intensamente, e seus olhos ficaram
muito claros, como um espelho refletindo o
cenário. Leonardo era lindo. Era a única beleza que
faltava para aquela floresta ser perfeita. A única
coisa que faltava na minha vida, eu tinha plena
consciência da minha necessidade em tê-lo.
Nada respondi, apenas o observei enquanto
se aproximava. Ele parou bem na minha frente, sem
deixar de sorrir. Decidi que apenas no Paraíso
aquela sensação de repleta paz era possível. Apenas
ali tudo se encaixava. Leonardo era a última peça
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do quebra-cabeça, a cereja fundamental sobre o


bolo recheado.
— Você não se despediu de mim direito —
murmurou, ainda sorrindo.
— Peço desculpas... Eu...
Ele me interrompeu ao colocar o indicador
sobre meus lábios. Arregalei os olhos, surpresa com
sua atitude.
— Tudo bem, até porque não precisamos
mais nos despedir.
Dei um passo para trás só para manter a
minha sanidade.
— Tem razão... Sabia que vou morar aqui por
um bom tempo? Estou tão animada! Finalmente
vou ter um pouco de sossego.
— Eu soube. — Leonardo segurou uma de
minhas mãos e a entrelaçou em seus dedos macios.
O toque foi delicioso. A sensação de sua pele na
minha era tudo que eu precisava. — Venha comigo.
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Caminhamos de mãos dadas até alcançarmos


o lago formado pela cachoeira. Leonardo subiu em
uma rocha, puxando-me consigo, depois subiu em
outra ainda maior. Paramos na mais alta das rochas
que havia por perto.
— Eu gosto mais dessa perspectiva —
confessou de um jeito sereno.
Era óbvio que eu gostava muito mais da
perspectiva de olhar exatamente para ele, tendo
aquela paisagem apenas como pano de fundo, mas
vislumbrar a cachoeira dali de cima foi
simplesmente maravilhoso. Encantador. Na
verdade, faltavam-me adjetivos para explicar a
emoção que era estar naquele lugar.
— Rezei muito para chegarmos a este
momento. — Leonardo não tirou os olhos de mim.
— Com todas as minhas forças.
— Eu também...
— Finalmente poderemos ficar juntos. —
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Colocou seus braços fortes em volta de minha


cintura.
— É...
A ficha demorou demais a cair.
O quê? Como assim, ficarmos juntos? Juntos,
do tipo, juntos mesmo? O que ele estava querendo
dizer com aquilo?
Devo ter feito uma careta muito feia, pois
Leonardo começou a rir.
— Eu não sei se entendi direito. — Um
nervosismo terrível me fez tremer.
— Você entendeu perfeitamente bem. —
Leonardo alisou as mechas dos meus cabelos, que
caíam nas costas. Ele estava perigosamente perto.
Seu cheiro invadia meus sentidos com uma rapidez
preocupante. Em pouco tempo, eu não seria capaz
de resistir. — Não preciso mais esconder, Rafaela.
Não preciso me conter, nem mesmo pensar. Aqui,
somos livres. Não precisamos pedir permissão.
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Somos duas almas sob as mesmas condições. No


Paraíso, temos o direito de sentir e de demonstrar o
que sentimos.
— Você... Você me disse que duas almas só
podiam ficar juntas se houvesse amor entre elas...
— Você ainda me ama, não ama? —
Leonardo apertou o abraço. Seu rosto perfeito ficou
muito perto do meu.
— É claro que te amo! Não é segredo para
ninguém. — Pensei no Julgamento. Eu tinha
admitido para centenas de Conselheiros o quanto o
amava há apenas algumas horas.
— Então, não temos problema algum. — Ele
sorriu de orelha a orelha.
Que problema? Ah, meu Deus, que assunto
complicado era aquele?
Não dava para pensar direito com ele tão
perto.
— Você devia se ver agora. Eu precisava
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tirar uma foto sua, você está fazendo caretas. —


Leonardo riu de uma forma tão gostosa que me fez
rir junto.
— Pare de rir de mim, estou confusa e me
sentindo uma boba!
— Gosto de suas caretas. Sempre gostei. —
Leonardo colou nossas testas de um jeito que me
deixou maluca. — Rafaela, tudo o que fiz para me
afastar de você... Não foi porque eu quis, e sim
porque era preciso. Todos os momentos em que se
sentiu rejeitada... Perdoe-me por cada um deles. —
Leonardo ficou bem sério. — Se eu não tivesse me
contido, talvez não estivéssemos juntos agora.
— M-Mas... Eu pensei q-que...
— Não te busquei no fim do mundo por
causa do que você sentia. Foi por causa do que eu
sentia. Um sentimento igualmente profundo, que
me deixou tão maluco quanto você.
Eu começava a entender. E aquilo estava me
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assustando.
Coloquei meus braços ao redor do pescoço de
Leonardo, diminuindo ainda mais a distância entre
nós. Nossos corpos se colaram, e eu pude ter uma
visão maravilhosa de seu rosto: os olhos marcantes,
a boca convidativa, o desenho das sobrancelhas. O
cheiro que emanava dele era absurdamente
enlouquecedor. Eu me sentia molenga em seus
braços, mas aquilo era bom. Era ótimo!
— Rafaela... — murmurou, olhando em meus
olhos. — Eu te amo. Amei você o tempo todo.
Meu coração se espremeu até quase sair suco.
— M-Mais do que amar o próximo? —
perguntei aos murmúrios, com nossas bocas quase
se encostando.
Leonardo sorriu.
— Muito mais do que amar o próximo.
O mundo pareceu ter ganhado e perdido o
sentido naquele exato momento. Tudo ficou em
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câmera lenta. A floresta, de um segundo para o


outro, transformou-se em algo completamente
desinteressante. Leonardo encostou seus lábios
quentes nos meus, com muita paixão. No começo,
ele foi gentil e vagaroso, depois nossos gestos
tomaram proporções mais profundas. Meu coração
batia com tanta força que mal podia suportar,
contudo aqueles lábios me enlaçavam de um modo
que eu só podia desejá-los cada vez mais.
Foi então que me senti absolutamente
completa. Eu havia entendido a essência do
arrependimento, do perdão e da amizade
verdadeira. O amor chegou com toda sua
intensidade naquele instante, como um último
ingrediente de uma receita especial. Tinha certeza
de que, com Leonardo, eu havia conseguido juntar
cada pedacinho do meu espírito, e alcançado um
estado de completa satisfação.
Aquele estado se chamava felicidade.
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FIM

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Agradecimentos

SEI QUE é de praxe agradecer primeiro a Deus,


mas é impossível não mencioná-lo diante de todas
as dificuldades que passei para chegar até aqui. Foi
graças a Ele que tudo foi possível, por isso, se você
quiser mesmo uma coisa, qualquer coisa, tenha fé e
jamais se decepcionará. Acredite!
Agradeço também aos meus pais Jaciara e
Walter pelo incentivo, pelo esforço e grande ajuda
que me proporcionam. Por acreditarem que meu
sonho podia ser possível.
Agradeço a toda minha família, que
permaneceu sempre do meu lado; meus irmãos
Felipe e Lívia, minha prima Iully e meus padrinhos
Lúcia e Gibson, que são pessoas com o dom
especial de sempre me apoiar e estar presente em
tudo o que eu fizer.

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Às minhas amigas Talita, Aurélia, Julianna,


Rebeca e Lorena por me apoiarem desde sempre.
Às prezadas escritoras Vanessa de Cássia e
Samanta Holtz, pelo apoio inestimável. Que sempre
se mantenha vivo o nosso desejo de valorização
maciça aos autores nacionais, pois tudo o que é real
tem seu princípio assim: através do desejo profundo
de mentes que acreditam.
Finalmente, agradeço a todos aqueles que
lerem este livro e me derem o prazer de se unir a
mim nesta aventura romântica. Meu maior objetivo
é que esta história possa tocar você de alguma
forma.
Encontro-me na obrigação de avisar aos
leitores que esta obra é meramente fictícia,
podendo condizer, ou não, com a realidade. Não
podemos saber com certeza, é apenas uma questão
de fé. Sabendo que existem várias fés neste mundo,
e que todas elas devem ser respeitadas, está longe
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do meu alcance sugerir onde começam e terminam


a ficção e a realidade. De qualquer forma, não
interessa se as coisas são reais, desde que nos
tragam sentimentos bons, capazes de nos tornar
ainda mais humanos.
Beijos,
Mila Wander
(autoramilawander@gmail.com)

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Biografia

MILA WANDER nasceu e mora em


Recife. Apaixonada por literatura, começou a
escrever por hobby. Empolgou-se com o ofício
após a publicação de seu primeiro livro, Meu
Conselheiro de Luz, em 2012, e, principalmente,
por causa do sucesso proporcionado pelas
ferramentas virtuais de autopublicação. Em 2014,
seu romance erótico, O Safado do 105, lançado
pela Editora Planeta, conquistou mais de 4 milhões
de leituras na plataforma digital Wattpad. Ainda
pela Editora Planeta, publicou o romance erótico
policial Diário de uma Cúmplice. Além desses três
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livros, ela também é autora de Dominados,


publicado pela Qualis Editora, e da famosa trilogia
Despedida de Solteira, que é um dos maiores best-
sellers da Amazon. Mila é co-autora de Eu Nunca,
Proteja-me e Deus do Oceano, obras escritas em
parceria com a autora Josy Stoque. Também fez
parcerias com os autores Janaina Rico (The Sex
Game Brasil) e César Costa (Sete por Cento).
Participa das coletâneas Tardes Sensuais, Amor de
todas as Formas e Princesas Gpower.
Saiba mais sobre todas as suas obras no site:
http://www.milawander.com

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