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sem autorização da autora. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Capa e ilustração Lola Salgado
Edição Increasy Consultoria Literária
Revisão Grazi Reis e Brendon Idzi Duhring
Leitura sensível Brendon Idzi Duhring
Thais Bergmann é autora agenciada pela Increasy Consultoria.
Para mais informações sobre seus trabalhos entrar em contato no
contato@increasy.com.br
Índice
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EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA
LEIA TAMBÉM
1
— Coloca um sorriso nesse rosto — Theo, meu outro pai, pagou o taxista e
passou o braço ao redor dos meus ombros. — Eu sei que você está cansada,
mas agora acabou, Lucy.
A gente vinha brigando quase todos os dias desde que ele me disse que
pretendia vender a casa na lagoa há umas duas semanas. Eu não entendia
como ele podia se desfazer do único lugar onde eu tinha amigos e onde
criamos qualquer lembrança boa desde que Rê morreu. Mas eu não queria
discutir de novo, então só me desvencilhei dele com cuidado e peguei minhas
coisas no chão.
Para ele, “acabou” significava apenas o novo começo que ele esperava
desde a morte de Rê. Para mim, estava mais perto de perder tudo que eu
amava. Então, mesmo que eu quisesse, não conseguiria colocar um sorriso no
rosto.
Como tínhamos visitado a casa pela última vez em agosto, ela precisava de
uma boa limpeza. Mas, em vez de ajudar meu pai, como fazia desde que
herdamos a casa da mãe dele há cinco anos, fui direto para o quarto. Era só
mais um jeito de fazer birra e eu sabia disso, mas se precisasse bater o pé para
convencê-lo de que não podíamos perder a casa, era isso o que eu faria.
Talvez ele achasse que eu estava fazendo minha parte da faxina no quarto
— o que era verdade se trocar os lençóis e abrir as janelas contasse como
“faxina” —, talvez só soubesse que eu precisava de um tempo. Fosse qual
fosse o motivo, meu pai me deixou sozinha por horas, mesmo quando
comecei a assistir a Grey’s Anatomy sem me preocupar se ele conseguiria
ouvir da sala.
Já passava das sete horas da noite quando finalmente ouvi batidas à porta.
Eu até teria pensado que a paciência dele tinha se esgotado se uma Natália
muito irritada não tivesse gritado do lado de fora do quarto:
— Desculpa não ter passado na sua casa antes, mas eu precisava mesmo
descansar. — Apesar de não ser exatamente mentira, não ter ido lá tinha mais
a ver com o irmão dela, Victor, do que com o cansaço em si.
— Você está assistindo série? Lucy, a gente tem que encontrar o pessoal
em menos de duas horas.
— Por favor, não me diga que você combinou de sair com eles.
Não sei por que fiquei surpresa. Era óbvio que Nati não me deixaria
sozinha logo no meu primeiro dia na lagoa, ainda mais sabendo como eu
estava de mau humor por causa do vestibular. Era de se esperar que ela
combinaria de beber com Laura, Elói e Arthur — o “pessoal” —, mesmo que
eu só quisesse ficar em casa.
— Levanta e vai se arrumar! — Ela puxou meu cobertor sem nem me dar
uma chance de reagir a tempo.
— Você fez uma viagem de menos de uma hora! — Ela revirou os olhos.
— E nem veio dirigindo.
Soube que ela tinha entendido quando me lançou o olhar de pena, o mesmo
que eu vinha recebendo desde o ano retrasado, quando contei aos meus
amigos que queria fazer Medicina. Era o olhar que dizia “você nunca vai
conseguir passar, por que não tenta outro curso de uma vez?”.
A única coisa mais cansativa que os quatro dias de prova era aquela
vontade irresistível de passar o tempo todo atualizando a página do resultado,
mesmo que ele só fosse sair dali a mais de um mês. Então, em vez de ficar
me torturando, decidi me encolher nas cobertas com um pote de pipoca e
fazer uma maratona de série. E eu estava muito bem assim, obrigada.
Era inútil dizer que eu não estava a fim, Nati não me deixaria em paz até
eu concordar em sair. Ela até fez uma longa lista de motivos para eu não ficar
em casa: começava com “eu passei quase dois meses esperando pra sair com
você” e ia até “vai ser a primeira vez que você vai beber legalmente com a
gente”, embora o fato de eu ter 18 anos só parecesse importante agora que eu
não era mais menor de idade. Como eu perdia todas as batalhas contra ela,
apenas deixei que me arrastasse primeiro até o guarda-roupas e, algumas
horas depois, até a beira da lagoa.
Havia cinco tendas espalhadas pela orla, tão pequenas que só cabiam dois
bancos dentro, um de frente para o outro. Sempre que queríamos beber ou
conversar, íamos para a última delas. Depois da multa que nossos pais
receberam do condomínio dois anos atrás, percebemos como era importante
que os vizinhos não ouvissem as besteiras que falávamos quando bebíamos.
Os três riram enquanto Nati revirava os olhos e dava um gole. Eu não fazia
ideia do que eles estavam falando, mas, como era sobre a Nati, era melhor
deixar para perguntar quando ficássemos sozinhas. E talvez eu tivesse feito
exatamente isso se ainda estivesse sóbria.
Era mais uma coisa que eu deveria deixar para conversar com Nati depois
que o efeito da bebida passasse. Mas, quanto mais eu pensava no assunto,
mais aqueles 30 dias pareciam um abismo entre nós duas. É claro que, de
novo, não consegui me segurar:
— Vamos convidar ele pra beber com a gente? — Laura não deixou Nati
terminar sua explicação.
Era uma péssima ideia, mesmo bêbada eu sabia disso. A gente já tinha
bebido o suficiente para dizer ou fazer algo que poderia envergonhar Nati.
Mas, quando percebi, já estava de pé, gritando “sim” ao mesmo tempo que
Nati e Arthur diziam “não”. Elói foi o único a acompanhar Laura e eu, só não
tão animado quanto a gente.
Eu não sabia dizer o porquê, mas, quando ele me olhava assim, eu sentia
uma vontade irresistível de provar que não importava o que pensasse de mim,
ele estava errado. Eu sempre precisava de todas as minhas forças para ignorar
a vergonha que queimava minhas bochechas e fingir que não via nada.
Dessa vez, porém, em vez de ficar na minha, tentei retribuir todo o ódio
daquela expressão:
Tanto Nati quanto Laura ficaram quietas no mesmo instante. Até Elói, que
já tinha desistido da discussão, pareceu parar de respirar com a expectativa.
Não era segredo para ninguém que eu e Arthur não éramos amigos.
Tolerávamos a presença um do outro, mas nos alfinetávamos com frequência
suficiente para que os outros nunca nos deixassem sozinhos. Mas nossas
brigas se limitavam a indiretas, nunca nos enfrentávamos de verdade.
— Você fica sempre me olhando desse jeito... — continuei. — Por que não
me fala de uma vez qual é o problema?
Senti minhas bochechas queimarem, mas, dessa vez, não tinha nada a ver
com vergonha.
Arthur mal me conhecia. Por mais que a gente passasse o verão todo junto
há cinco anos, ele nunca tinha perguntado sobre a minha família ou visto os
desenhos que ficavam pendurados na parede do meu quarto. Arthur não sabia
sequer que eu saía para correr todo dia de manhã, isso que minha janela
ficava de frente para a do quarto dele.
A única coisa que ele sabia era que eu tinha ficado às escondidas com o
irmão da minha melhor amiga no verão passado. Não tinha sido um dos meus
melhores momentos, mas também não devia ser suficiente para ele decidir
que eu era egoísta, certo?
Talvez aquele fosse mesmo meu último verão ali, uma última chance de
ficar com meus amigos. Eu já tinha desperdiçado tempo demais ao deixar de
fazer qualquer coisa por causa das opiniões de Arthur. Então, quer ele
pensasse que era egoísmo meu ou não, eu estava disposta a aproveitar ao
máximo meus últimos dias ali.
2
Para o azar da Nati, um garoto alto, com a expressão de quem abria a porta
para um bando de cangurus e não para cinco jovens bêbados, atendeu na
segunda batida. Ele era mesmo tão bonito quanto elas tinham falado. Com os
lábios cheios, a mandíbula marcada e a pele negra, ele estava pronto para ser
modelo de alguma marca de perfume.
A princípio, só passou a mão pelos cabelos negros e olhou para trás como
se quisesse correr para dentro de casa. Mas, depois que o convidamos para
beber na lagoa e Nati disse “quer saber, a gente te avisa mais cedo da
próxima vez”, ele até abriu um sorrisinho.
Guilherme deve ter sentido que não era bem-vindo com aquele tom
desesperado de Nati. Claro que eu e Laura tentamos convencê-lo — tão bem
quanto era possível com as palavras se atropelando. Mas ele explicou que já
tinha prometido fazer umas coisas para a mãe — às onze e meia de uma
quinta-feira! —, e prometeu nos acompanhar na próxima vez.
— Ele é bonitinho mesmo — mal esperei ele fechar a porta antes de falar,
o que me fez ganhar outro beliscão de Nati. — O que foi? Você também
acha!
— Parece que você vai perder essa, Nati. — Era claro que todo aquele
afeto de Laura não duraria muito tempo.
Eu até entendia porque Laura pensava assim. Depois que namorei Elói, ela
sempre achava que eu me jogaria para qualquer cara de quem uma delas
estivesse a fim, não importava o quanto eu dissesse que não fazia ideia de que
ela gostava do Elói quando fiquei com ele. Talvez eu tivesse mesmo uma
tendência de me entregar mais fácil aos relacionamentos do que elas, mas era
assim tão errado querer aproveitar as férias o máximo possível?
— Você diz a mesma coisa todo ano — Nati disse, depois que falei isso
em voz alta. — E sempre acaba encontrando o amor da sua vida até o fim das
férias.
Mas o pior era que eu sempre perdia para Arthur. Os dois se conheciam
desde o ensino fundamental e estudaram juntos até a formatura do Ensino
Médio. Só quando Arthur foi estudar em Porto Alegre e Nati foi para
Balneário Camboriú é que eles deixaram de se ver todos os dias. E eu,
enquanto isso, sempre morei a mais de uma hora de distância e só encontrava
Nati nos verões e em alguns feriados durante o ano.
Eu precisava mesmo de um apoio para voltar para casa, mas não estava
nem um pouco a fim de ir para a cama. Talvez o chão estivesse meio bambo
sob meus pés e talvez meus olhos estivessem passando mais tempo fechados
do que abertos, mas eu queria aproveitar a noite com eles! Mas não adiantou
falar nada disso, Laura e Nati continuaram a me arrastar enquanto Elói e
Arthur esperavam na rua.
Eu teria dormido até a manhã seguinte se, algum tempo depois, não tivesse
sido acordada por batidinhas na janela. A princípio, achei que ainda estivesse
sonhando. Só depois de ouvir meu nome em um misto de sussurro e grito que
percebi de onde vinha o barulho.
Nati não estava mais ali comigo, mas não podíamos correr o risco de
sermos pegos de novo. Tivemos sorte de ela não ter descoberto no verão
passado, mas eu duvidava que sairíamos impunes pela segunda vez.
— Você não devia estar aqui — tentei soar firme, mas até eu conseguia
ouvir a dúvida na minha voz. — E se a Nati tivesse te visto?
— Esperei ela chegar em casa antes de vir pra cá. — Victor pousou a mão
no batente da janela, a apenas alguns milímetros da minha. — Achei que
você fosse lá me ver...
Mas Victor não aceitaria um “vá embora!” como resposta. Então, por mais
idiota que aquela ideia fosse, decidi pular a janela.
Quando tentei me afastar, porém, ele me apertou com ainda mais força.
— Achei que você não vinha mais... — Victor deu um beijo no meu
pescoço, tão de leve que mal senti. — Já estava com saudades.
Mesmo se ele não fosse o irmão da minha melhor amiga e a gente não
tivesse que se esgueirar pelo condomínio — o que até deixava o nosso
namoro mais excitante, na verdade —, eu não queria mais ficar com Victor.
Eu tinha falado sério quando disse que queria aproveitar meu último verão
com os amigos e não com um cara qualquer. Sem contar que terminar com
ele tinha sido tão fácil que talvez o que eu sentia fosse só vontade de beijá-lo
e de estar perto dele.
Mas nada disso teve grande importância quando Victor me puxou pelo
pescoço e colou os lábios nos meus.
Meu cérebro tentou gritar “é hora de voltar pra dentro, você sabe que vai se
arrepender amanhã!”, mas o beijo era tão reconfortante e familiar que me vi
relaxando e pousando as mãos no peito dele. Quando senti o cheiro da lagoa
misturado com seu perfume cítrico, tudo que me veio à mente foram os
momentos bons que passamos juntos.
Consegui me afastar o suficiente para virar o rosto, mas Victor nem hesitou
antes de entender o gesto como um convite para mordiscar minha orelha.
Tentei empurrá-lo, mas meus músculos ainda não estavam funcionando
direito.
— O que foi? — Ele parou com os beijos, mas seu olhar não deixava a
menor dúvida do quanto queria me levar para dentro do quarto.
— Eu só não quero.
— Por quê? Você mal chegou, a gente ainda tem todo o verão pra...
— Eu sei, eu não esperava que você fosse ser fiel nem nada assim, mas a
gente pode tentar de novo.
— Quem? O vizinho novo? Meu Deus, é claro que não! Não tem nada a
ver com mais ninguém, você não...
— Eu sabia que isso ia acontecer! — Victor soltou uma risada baixa, sem
qualquer sinal de divertimento. — Todo mundo sempre fala que você não
consegue parar com um cara só, mas eu achei que comigo seria diferente.
Tive vontade de bater em Victor por achar que o único motivo para eu não
querer ficar com ele era estar a fim de outro cara. Mas, ao mesmo tempo, eu
não queria magoá-lo ainda mais. Apesar de ser ciumento e possessivo às
vezes, ele sempre levava meus sentimentos em conta. Victor devia estar
muito chateado e inseguro para falar comigo daquele jeito.
Victor, porém, não me soltou quando tentei puxar a mão de volta. Em vez
disso, ele aproveitou para me puxar e juntar nossos lábios de novo. Meu
coração ainda batia forte e descompassado, mas minha mente estava clara.
Com o máximo de delicadeza possível, afastei-me enquanto ele me encarava
como se eu tivesse lhe dado um soco e não um leve empurrão.
— Lucy, por favor... — Victor tentou uma última vez, mas eu já estava
subindo pela janela.
Tudo que fiz naquele dia foi chorar, até meus olhos arderem tanto que eu
precisaria das lágrimas de outra pessoa para continuar chorando. Eu não
conseguia entender como tinha deixado a situação chegar naquele ponto.
Meu namoro com Victor tinha começado sem que nenhum de nós pensasse
muito nas consequências. Um dia, fui convidar Nati para ir à sorveteria, mas
ela não estava em casa. Antes que eu fosse embora, Victor me perguntou
como estavam os planos para a faculdade, sem aquele tom condescendente ao
qual eu já estava acostumada. Foi revigorante passar a tarde conversando
sobre meus planos para o futuro sem ser julgada.
De um dia para o outro, ele deixou de ser o irmão da Nati para ser o cara
bonito e mais velho que não saía da minha cabeça. Ele era charmoso e
proibido, o que mais eu poderia querer? Quando dei por mim, já estávamos
nos beijando no meio da sala de estar enquanto Nati tomava banho. Depois
disso, ficou impossível tirarmos as mãos um do outro.
Da outra vez, ele saiu sem dizer nada. Enquanto fiquei chorando em
desespero, Victor foi atrás de Arthur para “resolver a situação” e, algumas
horas depois, voltou dizendo que Arthur havia prometido guardar nosso
segredo.
Quando Arthur olhou de Victor para mim e depois de mim para Victor, tão
devagar que parecia se mover em câmera lenta, reconheci um desprezo ainda
maior que da primeira vez. Ele fechou a janela sem dizer nada, e eu tive
apenas uma certeza: Arthur contaria tudo para Nati no dia seguinte.
3
A gente teria ficado o dia todo daquele jeito se Nati não tivesse aparecido
logo depois do almoço, com os braços cruzados e a cara emburrada.
Eu queria pedir pra gente resolver aquilo no quarto. Não podia conversar
sobre o Victor na frente do meu pai, até porque ainda nem estava preparada
para ter aquela conversa em lugar nenhum. Mas tudo que consegui foi
gaguejar um “quê?”.
— Do que você tá falando? — Eu não via como meu namoro com Victor
podia ter alguma coisa a ver com o programa favorito dela, então me deixei
relaxar um pouco, apesar de ainda estar com medo do rumo daquela
conversa.
Tudo que eu conseguia fazer era me perguntar por que diabos Arthur ainda
não tinha contado a ela. Nós três com certeza não estaríamos tendo aquela
conversa se Nati soubesse do meu namoro com Victor.
Será que Arthur estava me dando uma oportunidade para abrir o jogo antes
de ele mesmo contar? Ou pior, será que ele queria contar na minha frente?
— Eu não gosto dele! — Nati gritou em uma voz tão fingida que até meu
pai teve que segurar o riso. — Mas não é essa a questão — ela continuou, um
pouco mais calma. — A gente ia comemorar a volta da Lucy, mas agora vai
ter um cara totalmente estranho que nem vai entender nada das nossas
conversas.
— Eu achei que vocês duas tinham ficado amigas exatamente desse jeito.
Meu pai e a mãe dele tinham brigado vários anos antes de eu nascer,
quando ele contou que era gay e foi expulso de casa. Eu sabia, depois de
ouvir “sem querer” algumas conversas dos meus pais, que minha avó tinha
tentado falar com Theo várias vezes, mas ele se recusava a perdoá-la.
Como nenhum de nós dois suportava mais ficar no apartamento que nos
lembrava tanto de Rê, aproveitamos a oportunidade e corremos para a lagoa
assim que minhas aulas acabaram. Branca, com janelas marrons e ainda
maior que nosso apartamento, a casa era perfeita para nós. Com apenas dois
quartos — a suíte ficou com meu pai, é claro — e uma sala que se juntava
com a cozinha, ela era muito mais do que a gente podia esperar.
A renda de um fotógrafo não era grande e nem fixa. E com a morte de Rê,
Theo teve que parar com suas viagens pelo Brasil e se virar com fotos de
casamentos e aniversários de quinze anos. Era o que colocava comida na
nossa mesa, mas não era o que meu pai realmente amava.
Ela nem me deu uma chance de responder. Começou a tagarelar tanto e tão
rápido que se eu só tivesse acenado e dito “sim” ou “não”, nós teríamos
virado melhores amigas do mesmo jeito.
Mas foi quando ela me convidou para conhecer a sorveteria que eu tomei a
decisão que mudaria o resto dos meus verões.
Eu poderia ter dito que meu pai estava me esperando e ter voltado. Poderia
continuar sendo a mesma Lucélia de sempre: a garota tímida que passava o
intervalo sozinha e nunca sairia com dois estranhos.
A Lucy só existia porque Nati tinha deixado suas tradições de lado naquela
tarde e me dado a oportunidade de ser quem eu queria ser. Isso não era o
mínimo que eu tinha que fazer por Guilherme? Dar a ele uma chance de
conhecer pessoas incríveis e ter as mesmas experiências maravilhosas que eu,
mesmo que apenas por um verão?
— Ele tem razão — falei para Nati. — Por mais que hoje seja um péssimo
dia pra comer sorvete, a gente devia se esforçar pra conhecer o Guilherme.
— Você não quer sorvete? — Ela se inclinou para frente, ainda mais
indignada que antes, se é que isso era possível.
— Você está enjoada por causa da ressaca, né? — Meu pai estreitou os
olhos, mas eu conseguia ver que ele escondia o riso.
— Vamos logo antes que ele comece com o sermão — falei, já de pé,
puxando Nati pela mão.
Nós duas chegamos à mesa bem mais rápido do que eu gostaria. Mas,
sendo sincera, nem se a Terra parasse de girar seria devagar o suficiente para
mim.
A Iglu ficava em uma rua sem saída. Era uma casa pequena e toda pintada
em tons de azul e branco. Para combinar com o nome, ela era decorada para
parecer o Polo Norte: tinha adesivos de pinguins e de um urso polar na
parede, e neve e gelo falso espalhados pelo balcão. Até as luminárias
pareciam pequenos iglus. E como se a decoração já não fosse suficiente para
convencer a gente a voltar toda semana, eles ainda faziam o melhor sorvete
caseiro que eu já tinha provado.
— É fácil dizer isso quando não foi você que bateu na porta dele, bêbada.
— O Arthur não vem? — perguntei quando percebi que ele nem tinha
saído da mesa.
— Problemas com a família — Nati explicou, mas não deu mais nenhum
detalhe.
Eu já tinha aprendido que não devia falar sobre Arthur com ela. Sempre
que eu queria reclamar de algo que ele tinha dito ou feito, Nati me cortava:
“Eu não tenho nada a ver com a briga de vocês. Não é justo vocês me usarem
pra falar mal um do outro”. Então eu sabia que, se ele não queria que mais
ninguém soubesse de seus problemas, nem adiantava perguntar. Não
importava que eu estivesse morrendo de curiosidade.
Há cinco anos, quando fomos à sorveteria pela primeira vez, Nati disse que
eu tinha um gosto “simples demais” para sorvetes. Aparentemente, brigadeiro
com morango era a combinação mais clichê que existia, e eu precisava
expandir meus conhecimentos culinários.
Acabou virando uma de nossas tradições: sempre que íamos à Iglu, uma
servia a outra. De alguma forma, não importava que combinação estranha
Nati fizesse, os sorvetes sempre tinham um gosto impecável. Enquanto isso,
eu precisava batalhar para que ela não comesse o pote todo fazendo caretas.
Já tinha virado uma meta pessoal fazer uma combinação que Nati achasse
perfeita.
— Isso não é verdade! — Ela riu e empurrou o pote para ele. — Você acha
que não saber a diferença entre sorbet e sorvete é desculpa pra isso?
Guilherme olhou para o pote com desconfiança, depois para Nati e então
para mim. Talvez ele achasse que tínhamos escolhido os piores sorvetes de
propósito, só para ele provar como um trote ou algo do tipo. Mas Nati não
queria que ele sofresse de verdade. Ela só gostava de mostrar para todo
mundo como eu era péssima em qualquer coisa relacionada à culinária.
— Pra mim parece ótimo — Guilherme disse, mas não desmanchou a ruga
na testa. — Vocês duas é que são estranhas.
— Também parece decente pra mim — decente não era o mesmo que
ótimo, mas, se tratando de Arthur, era o mais perto de um elogio que eu
chegaria.
— Até você? — Nati colocou uma mão no peito, como se tivesse sido
apunhalada, e empurrou o sorvete para mais perto dele. — Coma o resto
então.
Uma resposta atravessada tentou subir pela minha garganta, mas me forcei
a engolir a vontade de brigar com Arthur mais uma vez. Eu não podia correr
o risco de deixá-lo irritado, não sem antes entender por que ele ainda não
tinha contado à Nati.
Talvez fosse mais fácil perguntar para Arthur o que ele pretendia, mas,
depois do jeito que tinha me olhado na noite anterior, eu simplesmente não
tinha coragem. Sem contar que, conhecendo Arthur, eu não ficaria nem um
pouco surpresa se isso servisse de incentivo para ele finalmente falar com
Nati.
Tinha tudo para dar errado. Se Arthur achasse que eu queria comprar seu
silêncio, poderia ficar irritado e falar com Nati só por causa disso. E se meu
pai descobrisse, me deixaria de castigo pela primeira vez desde que perdi um
colar que Rê tinha comprado para ele.
Ainda assim, qualquer coisa que pudesse convencer Arthur a ficar quieto
valeria a pena. E passar um tempo sozinha com ele me parecia a melhor
chance de fazer isso acontecer.
O único que não ficou surpreso com a ideia foi Guilherme. Nati e Arthur
só me encararam em silêncio, como se minhas palavras não fizessem sentido.
— Seu pai vai te matar quando descobrir — foi Nati quem conseguiu falar
primeiro.
Na verdade, meu pai não gostava de carros desde criança, quando sofreu
um acidente com a mãe dele. Até a morte de Rê, a gente mal tocava no
assunto, e eu não podia ligar menos por ter um pai que não dirigia. Mas,
depois do acidente de Rê, Theo voltou a falar sobre como aquela era uma das
formas mais prováveis de morrer.
Quando fiz 18 anos e falei que queria tirar a carteira, meu pai disse que
pagaria pelas aulas depois que eu tivesse dinheiro suficiente para comprar um
carro. O que era bem idiota, já que, quando eu pudesse comprar um carro,
poderia muito bem pagar pelas aulas.
Theo não costumava perder o controle, mas bastou dar essa ideia para ele
começar a gritar:
— Você não sabe o perigo que é dirigir uma moto na cidade? É vinte vezes
mais provável você morrer num acidente de moto do que num de carro! —
Algo me dizia que ele tinha inventado aqueles dados na hora, mas Theo ficou
tão irritado que passou dois dias inteiros sem falar comigo.
Quando consegui conversar com ele de novo, meu pai disse que me
apoiaria quando eu decidisse comprar um carro, mas que a moto estava fora
de questão. Mas nós dois sabíamos que ele só havia concordado porque isso
levaria anos.
A verdade era que eu nem tinha tanta vontade assim de aprender a dirigir.
Tinha me virado bem o suficiente com o ônibus por 18 anos, muito obrigada.
O que me fazia querer tanto tirar a carteira era o próprio Theo. Eu não queria
passar a vida inteira me escondendo daquele medo como ele.
— Não é bem assim — falei para Nati, voltando à nossa conversa. — Ele
só acha que dirigir é um pouco perigoso, mas não vai se importar.
— Eu não sou instrutor de autoescola, Lucy — Arthur respondeu por fim.
— Mas você tem uma moto, e não tem época melhor para eu aprender do
que agora — falei, me convencendo mais, a cada palavra, de que meu plano
daria certo. — E é claro que eu vou te pagar. A gente chega num valor que
funcione pra nós dois.
Enquanto eu me divertia com qualquer coisa e sempre tinha algo para falar,
ele costumava ficar quieto em um canto. Eu adorava festas e gostava de sair
com meus amigos toda semana; ele preferia ficar em casa com a irmã mais
nova e só saía com a gente se Nati implorasse o suficiente.
Nati jurou que não tinha contado a ele sobre a nossa conversa e disse que
devia ser coisa da minha cabeça. Mas, com o tempo, ficou tão óbvio que nem
ela tinha como negar.
Claro que eu não esperava que ele quisesse desfilar de mãos dadas comigo
pela lagoa, mas eu tinha esperança de que pudéssemos ao menos nos tolerar;
se não por nós, pela Nati.
Até hoje, não tinha acontecido. E depois que ele me viu com Victor duas
vezes, duvidava que um dia fosse acontecer. No entanto, agora que
passaríamos tanto tempo juntos, só nós dois, talvez ele percebesse que eu não
era uma pessoa tão ruim quanto ele achava.
Arthur, no entanto, não parecia tão disposto a superar o passado quanto eu.
Mesmo depois de ouvir Nati falando, no dia anterior, que meu pai não queria
que eu dirigisse, ele parou a moto barulhenta em frente à minha casa e
buzinou três vezes.
— Dá pra fazer menos barulho? — Saí correndo pela varanda antes que
toda a rua fosse ver o que estava acontecendo.
Tive sorte de que meu pai tinha decidido fotografar a lagoa naquela manhã.
Se ele me visse em uma moto, me trancaria no quarto até eu prometer de
dedinho nunca mais subir em uma garupa.
— Eu moro aqui do lado. — Ele apontou para a própria casa, ainda com
um tom provocativo.
Tudo que eu menos queria era passar as aulas grudada em Arthur, mas o
medo de cair da moto acabou vencendo e me obriguei a passar os braços ao
redor dele antes que desse a partida. Se ele não tivesse sido tão rápido, eu
teria tido pelo menos alguns segundos para me acostumar àquele calor
estranho que vinha debaixo da sua camiseta.
Meu corpo todo retesou e minhas mãos apertaram tanto sua barriga que era
impossível Arthur não notar meu nervosismo. Talvez tenha sido por isso que
ele passou a dirigir tão devagar. Pelo menos uma vez na vida, Arthur
conseguira ser um ser humano decente.
Decidimos que o melhor lugar para as aulas era em uma parte mais
afastada do condomínio, onde não tinha quase nenhuma casa e a estrada era
de terra batida. Dirigir no calçamento me parecia mais seguro, mas ali era o
mais longe que conseguíamos ir, o que diminuía as minhas chances de
encontrar meu pai ou de bater em um carro.
A pior parte era demorar quase cinco minutos para chegar lá e, em cima
daquela moto, pareciam mais cinco horas. Passei o tempo todo tentando me
concentrar em como o sol forte deixava o verde das árvores mais vivo, e
como a moto passava a impressão de que o vento estava ainda mais forte do
que o normal — mesmo que estivéssemos a menos de 20 km/h. Qualquer
distração era bem-vinda se me impedisse de implorar para descer.
Não sei se foi coincidência ou se Arthur queria me dar algum tipo de aviso,
mas ele parou na quadra atrás da casa onde tinha me visto com Victor no
verão passado. Senti o ar ficar mais pesado ao nosso redor, mas nenhum de
nós disse nada.
Nós dois viramos para a moto e a encaramos sem dizer nada. Eu não fazia
ideia do que se passava na cabeça de Arthur, mas na minha era só medo e a
certeza de que eu jamais conseguiria ficar por trás daquele guidom sem ter
uma síncope.
— Eu nunca fiz isso — ele falou em um tom mais baixo. — Não sei como
se ensina alguém a dirigir.
— Você não tem que me ensinar tudo... — Só dirigir sem medo já seria
mais do que suficiente. — Eu pretendo fazer as aulas na autoescola de
qualquer jeito. Só quero chegar preparada.
Mesmo que ela estivesse no pátio do meu vizinho todos os dias, eu nunca
tinha prestado muita atenção nela. Nunca tinha notado o adesivo do Foo
Fighters, nem as marcas onde Arthur costumava sentar no banco de couro.
Toda preta, ela brilhava tanto que dava para ver nosso reflexo contra o sol.
Não que eu esperasse qualquer outra coisa depois de ver o cuidado que
Arthur tinha ao lavá-la duas ou até três vezes por semana.
Arthur apareceu com a moto pela primeira vez no verão passado. De
acordo com Nati, ele a comprou sem a ajuda dos pais e depois viajou de
Porto Alegre à lagoa sozinho, parando para acampar em algumas praias no
caminho.
É claro que, quando ele chegou, todo mundo queria dar uma volta. Alguns
dos nossos vizinhos já tinham carros ou pelo menos um quadriciclo, mas
ninguém tinha uma moto. Por isso, os outros caras queriam dirigir também
enquanto as garotas diziam que tinham medo demais e precisavam se agarrar
a Arthur — do mesmo jeito que eu tinha feito há apenas alguns minutos.
A única que não havia subido na garupa antes de hoje era eu. Não tive
coragem de pedir e nem ele me ofereceu — não que eu quisesse de qualquer
forma.
— Acho que vou começar te explicando onde fica e pra que serve cada
coisa. — Ele ainda tinha um tom de dúvida.
Parecia tão chato quanto as aulas de química do cursinho, mas pelo menos
me dava uma desculpa para não dirigir tão cedo.
— É... Acho que sim — tentei soar mais segura do que de fato me sentia.
— Lucy?
— Na verdade, acho que já está meio tarde... — Dei um passo para trás. —
Vamos deixar pra amanhã.
Arthur agia com uma naturalidade invejável. Era como se suas mãos e seus
pés participassem de uma dança sincronizada. Eu não acreditava que um dia
seria capaz de fazer aquilo com tanta facilidade quanto ele. Nem mesmo
achava que chegaria tão longe a ponto de deixar a moto em pé. Mas ele fazia
aquilo parecer tão fácil...
— A aula de hoje não valeu nem dois reais. — A cabeça dele tombou um
pouco de lado quando ele levantou o visor do capacete. Foi a primeira vez
que precisei desviar o olhar, envergonhada. E eu nem sabia o porquê. —
Você nem subiu na moto.
Talvez esse fosse o melhor momento para perguntar sobre Nati. Durante
todo o tempo que passamos juntos, ele não tinha feito qualquer menção
àquela noite, e eu ainda não fazia ideia se ele pretendia contar a ela ou não.
Mas, por mais que eu precisasse da reposta para conseguir respirar em paz de
novo, não conseguia decidir quais palavras usar. Não queria correr o risco de
estragar tudo agora que finalmente tinha um plano que poderia dar certo.
Arthur já estava acelerando a moto quando chamei seu nome. Ele virou a
cabeça na minha direção, mas eu não sabia o que dizer.
Não sei que reação eu esperava de Arthur. Talvez que ele ficasse surpreso,
afinal, quem além da minha mãe biológica era louca o bastante para escolher
Lucélia depois de 1970? Talvez que ele dissesse algo como “e o que eu tenho
a ver com isso?”, e é claro que a resposta seria “nada”.
O que eu não esperava era que ele fosse apenas ficar parado na moto por
alguns segundos, me lançando um de seus olhares penetrantes. Arthur não
parecia intrigado, surpreso e nem mesmo irritado. Ele não parecia... nada
quando deu a partida e saiu sem dizer uma palavra sequer.
Eu não queria me preocupar com a reação de Arthur, mas foi só nisso que
pensei enquanto fazia o mesmo caminho que ele — só que a pé. Os cinco
minutos do parquinho até a minha casa eram mais do que suficientes para que
eu imaginasse mil coisas diferentes se passando pela cabeça de Arthur.
Quando ouvi uma buzina e achei que ele tinha voltado para tirar
satisfações comigo, percebi que minha paranoia estava passando dos limites.
Marcelo, meu cabelereiro, era do tipo que fazia qualquer cliente sentir que
era sua amiga. Ele sabia de todas as fofocas da lagoa e passava o tempo todo
contando as novidades, mas nunca falava mal ou traía a confiança de
ninguém. Sempre se preocupava, de verdade, em saber como eu estava e,
quando eu aparecia com um namorado novo, era o primeiro a dizer que eu
não devia me importar com o que os outros falavam.
Deve ter sido graças a esse seu jeito cativante que Marcelo se tornou um
dos melhores amigos do meu pai. Desde a nossa mudança, eles passavam
quase tanto tempo juntos quanto eu e a Nati. Por isso, eu tinha certa
esperança de que eles acabariam ficando juntos. Fazia anos que eu torcia para
um dos dois dar o primeiro passo, mas até agora, nada tinha acontecido.
Eu desconfiava que era mais culpa do meu pai do que de Marcelo. Theo
continuava tão apegado a Rê que, mesmo depois de todo esse tempo, ainda
não tinha tentando namorar de novo. Depois de insistir muito, até consegui
baixar o Tinder no celular dele e o fiz sair com dois caras que conheceu lá.
Mas, na segunda vez, ele voltou para casa antes das dez da noite e disse que
já tinha desinstalado o aplicativo.
Foi como se todo o progresso tivesse sido enterrado junto com Rê. Theo já
não se sentia mais tão confortável na própria pele, e eu comecei a notar que,
cada vez mais, ele falava para estranhos sobre a “falecida esposa”. Eu odiava
quando ele manchava o passado dele e de Rê desse jeito, mas eu entendia. Se
eu já tinha sofrido tanto preconceito só por ter dois pais, mal podia imaginar
o que ele passava todos os dias e o quanto sofreria agora que tinha que lidar
com aquilo sozinho.
Esse era o principal motivo para eu querer tanto que ele baixasse o Tinder,
saísse com os amigos e encontrasse um novo amor. Meu pai precisava de
alguém que o ajudasse a ser ele mesmo de novo. E eu achava que Marcelo
podia ser essa pessoa.
É claro que eu já tinha tentado conversar com meu pai várias vezes, mas
bastava o assunto surgir para ele me cortar ou me deixar falando sozinha.
Talvez eu não tivesse nada a ver com isso e devesse deixar os dois
resolverem sozinhos o que queriam. Mas aquele era meu pai e era, sim, da
minha conta se ele estava feliz ou não.
Pelo menos foi disso que me convenci quando entrei pelas portas de vidro
do salão. Talvez eu só tivesse criado coragem para ir até lá por causa da aula
de direção e da sensação de que precisava fazer alguma coisa. Eu não tinha
conseguido enfrentar meus medos ainda, mas talvez pudesse ajudar meu pai a
enfrentar os dele.
Eu já tinha pensado em falar com Marcelo mil vezes nas últimas férias, e
sempre perdia a coragem. Mas agora que meus dias na lagoa estavam
contados, eu não teria outra oportunidade para fazer aquilo.
— Você sumiu, né? — Ele deu uma piscadela. — Só quer saber de estudar
agora.
— Se tem uma coisa que eu não quero nunca mais é estudar! — Fiz uma
careta involuntária só de pensar que, quando estivesse na faculdade, seria
ainda mais difícil.
— Claro! Eu também mal conversei com seu pai desde que vocês
chegaram, ele estava ocupado com a mudança e eu ando cheio de clientes.
— Tenho certeza de que ele está louco pra te encontrar — falei em um tom
que eu esperava que fosse sugestivo o suficiente.
Claro que isso queria dizer que eles não poderiam se ver todos os dias —
embora a distância entre a lagoa e Araranguá nem fosse tanta assim —, mas
também significava que Theo teria mais um motivo para não vender a nossa
casa.
— Eu sei. — Dei graças a Deus que o salão estava vazio. Se tivesse mais
alguém ali com a gente, eu seria obrigada a passar horas tentando ser sutil e
fazê-lo entender ao mesmo tempo. — É que eu pensei que vocês dois podiam
aproveitar o tempo sozinhos pra... Se conhecerem melhor, sabe?
O pânico ameaçou tomar conta de mim, então fiz o que sabia fazer de
melhor: comecei a tagarelar.
— É só que vocês se dão tão bem que eu achei que você estivesse...
Interessado por ele, sabe? — Quanto mais ele me encarava sem dizer nada,
mais rápido meu pé batia no chão e mais eu percebia que conversar com ele
tinha sido uma péssima ideia. — E o Theo é muito lento, ele nunca vai falar
nada. Ele nunca mais namorou ninguém, desde a morte do meu pai. Se
deixar, ele vai ficar solteiro pra sempre...
— É... — Não esperava ter que explicar tanta coisa para o Marcelo. Eu
definitivamente não devia ter falado nada para começo de conversa. Minha
vontade era dizer que eu tinha me enganado e sair correndo dali, mas agora
que eu tinha começado, não dava mais para voltar atrás. — Eu pensei que
talvez ele não tivesse te falado sobre isso, ele odeia falar sobre a morte do Rê
até comigo. Mas meu pai tem andado tão sozinho e...
— Espera aí — Marcelo piscou várias vezes, suas sobrancelhas ficando
mais altas cada vez que ele piscava. — O Theo é gay?
Como essa conversa podia sair tão fora do planejado? Era para os dois
estarem com uma janta marcada a essa altura! Mas eu devia ter me preparado
para uma reação dessas. Para mim, era bem óbvio que meu pai era gay, mas a
maioria das pessoas não percebia.
Mas como eu poderia imaginar que Marcelo não sabia de nada? Que
sequer desconfiava?
— Não, eu não sabia. Calma — e então o tom dele mudou de surpreso para
confuso: — Você acha que eu sou gay?
7
Não demoraria muito para meu pai descobrir sobre a conversa com
Marcelo, e eu só conseguia pensar em como ele se sentiria quando isso
acontecesse. Os dois eram próximos demais para Marcelo fingir que nada
tinha acontecido, e eu não fazia ideia de como impedi-lo.
Por mais que eu tentasse disfarçar, bastou ficar comigo por algumas horas
para Nati perceber que havia algo de errado.
Ela apareceu na minha casa no meio da tarde com um pote de pipoca e foi
direto ligar a Netflix. Eu não estava com ânimo nem para decidir o que
assistir, então Nati escolheu um filme qualquer de comédia romântica, só
porque era meu gênero favorito.
— Você não chorou quando eles brigaram — ela apontou para a TV com
uma indignação óbvia — e nem falou nada quando a menina entrou de
daminha na igreja!
Mas seus olhos continuaram fixos em mim. Já era a segunda vez em menos
de uma semana que eu tentava esconder algo dela. Nati não deixaria passar de
novo.
— Sei lá, só estou distraída por causa do vestibular — falei, torcendo para
que fosse suficiente para ela esquecer o assunto.
Com todos os problemas dos últimos dias, essa era a menor das minhas
preocupações. Mas o medo continuava lá, então nem era uma mentira tão
grande assim.
Nati aceitou a desculpa e colocou um novo filme, uma comédia dessa vez.
Passamos o resto da noite rindo e fofocando, mas eu via a ruga que havia se
formado no lábio dela. O modo como me estudava pelo canto do olho quando
achava que eu não estava vendo. Se eu pudesse ler sua mente, aposto que ela
estaria se perguntando o que tinha acontecido naquele ano para transformar
nossa amizade de completamente transparente para cheia de segredos.
Isso, é claro, porque ela não fazia ideia de que sempre havia sido assim, só
que os outros segredos estavam tão bem guardados que ela nunca havia
desconfiado.
Se eu pudesse escolher, contaria tudo sobre meus pais para Nati naquele
momento. Ela era a única pessoa que conseguia me acalmar e com certeza
teria uma solução brilhante para garantir que meu pai não ficasse
decepcionado comigo. Mas eu não podia conversar nem com ela. Nem
mesmo minha melhor amiga sabia que meu pai era gay, e como eu explicaria
a situação sem esse pequeno detalhe?
Era como se eu estivesse vivendo duas vidas. E carregar esse peso extra
estava cobrando seu preço como nunca antes.
Mesmo quando acordei no dia seguinte, esse peso me fez querer voltar
para a cama na mesma hora. Eu estava tão cansada depois de passar a
madrugada toda preocupada com meu pai que passei do horário de acordar e
tive que me arrumar com pressa para encontrar Arthur. Eu odiava me atrasar,
então minha corrida matinal estava fora de questão.
Dessa vez, pelo menos, ele não buzinou na frente da minha casa. Arthur
me esperou pacientemente no parquinho, apoiado em sua moto, com dois
capacetes na mão. Eu teria agradecido pelo gesto, mas ele parecia bem
irritado com o atraso quando me entregou o novo capacete — que só era
novo para mim, já que estava todo riscado e tinha uma rachadura bem no
meio do visor.
— Ontem você não quis subir, hoje não está nem se esforçando pra fingir
que está entendendo alguma coisa... — Arthur ergueu as sobrancelhas quando
percebeu que eu não pretendia me defender. Então acrescentou em um tom
mais grave: — Se você não quer aprender, não desperdice meu tempo. Você
pode ficar sentada com a bunda pra cima o dia inteiro, mas eu tenho coisas de
verdade pra fazer.
— Se você acha que não vai dar hoje, então a gente deixa pra amanhã. —
Sua voz já não estava mais tão áspera, mas ele também não tentou ser muito
gentil.
Essas suposições que Arthur fazia de mim deveriam me irritar, mas, por
algum motivo, só me faziam querer provar o quanto ele estava errado. Eu
sabia que deveria deixar para lá e subir na moto de uma vez, mas, quando
comecei a falar, foi como se eu não estivesse mais no controle.
— É que faz tempo que meu pai não sai com ninguém, sabe? Desde que...
É que tem essa mulher que é perfeita pra ele. Aí eu acabei perguntando se ela
não queria sair com ele um dia desses, mas ela disse que não. Só que agora
ele vai acabar descobrindo, e eu sei que vai ficar chateado.
— É só isso?
— É só isso, sim. — Ergui o queixo e usei o tom mais frio que consegui.
— Algum problema?
— Eu já estou cansado de você achar que o mundo gira ao seu redor. E daí
que seu pai vai ficar chateado porque você tentou ajudar ele? Você não tem o
direito de sair por aí estragando o dia de todo mundo. — Uma veia saltou na
têmpora de Arthur, pulsando perto de uma cicatriz que ele tinha no lado
direito. — Você é a típica garota bonita e mimada que se acha no direito de
ficar triste quando a porra do mundo não para pra te aplaudir de pé e dizer
como você é perfeita! — Arthur falou tão rápido que tive que esperar alguns
segundos para ter certeza de que tinha acabado.
Nunca fui muito boa em lidar com emoções, e, naquele momento, tive que
me segurar para não cair no choro ali mesmo.
A pior parte era que ele não podia estar mais errado, e eu não podia fazer
nada quanto a isso. Arthur só pensava assim porque eu mesma tinha me
esforçado para passar essa impressão.
— Você acha que o mundo vai acabar porque seu pai vai ficar chateado?
— Ele lançou a pergunta como uma flecha, como se quisesse me ferir de
verdade. — Acorda! Pelo menos você tem um pai. Você tem essa casa
incrível, num lugar incrível, vai estudar na melhor faculdade que o papai
puder pagar e ainda quer se fazer de coitadinha?
— Claro, porque sua vida é tão diferente! — As palavras que saíram não
eram minhas. Elas tinham a minha voz e escapavam pela minha boca, mas
não era possível que eu estivesse falando porque estava ocupada demais
tentando não desmoronar na frente dele. — Você não faz ideia do que eu tive
que passar. — Sem dizer mais nada, virei de costas, pronta para marchar até
em casa com o pouco de dignidade que ainda me restava. Mas Arthur soltou
uma risadinha, tão baixa que eu quase não ouvi, mas alta o suficiente para
fazer a raiva dentro de mim estourar. Quando me virei de novo, minha voz
explodiu. — O que. Você. Quer?
Por que diabos ele tinha que inventar de levar aquela droga logo hoje?
O plano de usar as aulas de direção para convencer Arthur a não falar com
Nati definitivamente não estava funcionando. Se ele já não gostava de mim
antes, era provável que me odiasse agora. Na verdade, eu não ficaria nem um
pouco surpresa se descobrisse que ele estava a caminho da casa de Nati
naquele exato momento. Isso se não fosse contar para todo mundo que eu
tinha dois pais, porque agora mais uma pessoa sabia desse segredo.
Só não fui atrás dele porque, ao contrário da situação com Marcelo que
realmente não tinha volta, eu ainda esperava convencer Arthur a guardar
meus segredos. Eu não podia estragar tudo agora. Só que, depois dessa briga,
era bem provável que nossas aulas tivessem chegado ao fim e que eu
precisasse de uma nova ideia.
Pelo menos, agora que não tinha mais a aula com ele, eu podia caminhar
pela lagoa para espairecer antes de voltar para casa. Eu costumava correr
todos os dias logo depois de acordar, geralmente antes das nove da manhã.
Começou como um jeito de manter a forma, e agora era como se meu dia não
fosse o mesmo se eu não começasse com uma corrida.
Sem contar que eu precisava falar com meu pai ainda naquela manhã se
não quisesse que Marcelo conversasse com ele primeiro. Mas eu precisava
colocar meus pensamentos em ordem antes, pensar em como exatamente
contaria para ele, e não tinha nada melhor para me ajudar a organizar a
cabeça do que correr.
Ainda não eram nem dez horas, mas já tinha pelo menos umas vinte
pessoas tomando banho de lagoa. A água estava convidativa como sempre;
um espelho perfeito que refletia o sol e o céu sem nuvens. Quase não resisti à
tentação de dar um mergulho, mas sabia que meu dia melhoraria se eu
conseguisse colocar os músculos para funcionar. Eu poderia entrar na lagoa
com Nati mais tarde, quando a gente fosse tomar sol.
Quando troquei a perna que estava alongando e me virei para o outro lado,
em vez de encontrar as ruas e as casas que eu já conhecia de cor, minha visão
foi barrada por um corpo alto, praticamente encostado no banco de tão perto.
— Que droga! — gritei, dando um pulo para trás. — O que você está
fazendo aqui?
— Alguém já te falou que seu pai se parece muito com o Alberto Moura?
Ele é um fotógrafo famoso.
Apesar de meu pai ser referência até entre pessoas que não conheciam
muito de fotografia, a pergunta me pegou desprevenida. Desde a morte de Rê,
ele não tinha mais feito tantas palestras e exposições, principalmente porque
não podia mais viajar tanto quanto antes. Então, a última coisa que eu
esperava era que alguém da minha idade fosse reconhecê-lo.
— A não ser que ele tenha mentido pra mim por todos esses anos, posso te
garantir que é verdade.
— Você pode ir lá em casa se quiser. Tenho certeza de que ele vai adorar
autografar uma foto ou o que for — falei, ciente de que meu pai morreria de
vergonha.
Ele amava seu trabalho, mas odiava ser o centro das atenções.
Caminhamos por quase uma hora e, depois que ele parou de falar sobre
como eu tinha sorte por ser filha do Alberto Moura, não tivemos que diminuir
o passo mais nenhuma vez. A conversa foi ficando mais escassa conforme o
suor aumentava e a respiração rareava, e eu podia sentir meus músculos mais
pesados e a mente mais leve. No fim, quando o sol ficou forte demais,
decidimos ir embora.
— Como foi sua manhã? — Ele me encarou com um olhar distante quando
sentei ao seu lado.
— É mesmo? — Ele também abriu um sorriso, mas sua voz estava tão
distraída que fiquei na dúvida se ele tinha mesmo me escutado.
Meu pai não costumava se irritar com facilidade. Antes da morte de Rê, ele
era o tipo de pessoa que tinha sempre essa aura de bom humor que
contagiava todo o ambiente. A gente quase nunca brigava — embora nossas
poucas brigas tenham sido desastrosas — porque ele sempre se esforçava
para conversar.
Por isso, quando eu fazia uma besteira tão grande quanto falar com
Marcelo, eu desejava que ele simplesmente gritasse comigo ou me deixasse
de castigo de uma vez. Não havia nada pior do que as conversas em que ele
fazia aquela cara de decepção e depois eu passava dias sem conseguir dormir
direito, pensando naquela expressão. E eu tinha certeza de que essa seria uma
dessas conversas.
Seria tão simples admitir que eu tinha ido ao salão. Talvez ele até me
perdoasse mais facilmente se eu contasse a verdade por vontade própria. Mas,
ao mesmo tempo, era tão melhor fingir que os filmes com a Nati eram a única
coisa interessante.
— Sempre é.
— Pai...
— Eu não sei nem por onde começar, Lucélia! — Ele parou de cortar o
bacon e abaixou a cabeça. — Eu não acredito que você fez isso! O Marcelo
nem sabia onde se enfiar quando veio conversar comigo.
— Desculpa... — Eu queria dizer tantas coisas, mas minha voz morreu aos
poucos.
— Eu sei que você se preocupa comigo e quer que eu siga em frente — ele
disse a certa altura, em uma voz calma e dura, que quase me fez cair no
choro. — Mas você nunca teve um namorado sério, não faz ideia de como é
perder o amor da sua vida.
Era minha segunda discussão naquele dia e eu precisei me segurar para não
perder o controle outra vez.
Não consegui dizer mais nada. Não pedi mais desculpas, nem disse o
quanto estava envergonhada. Meu pai sabia de tudo isso, e, mesmo que não
soubesse, não era difícil ver que tudo que eu queria era bater com a cabeça na
parede até ela se abrir para eu colocar um pouco de bom senso lá dentro.
Como pude achar que pedir para o Marcelo sair com ele era uma boa ideia?
Já era fim da tarde, e nós estávamos pegando sol desde que ela apareceu na
minha casa, lá pelas três da tarde, me implorando para ir à Iglu. Eu tinha
certeza de que ela só queria me obrigar a ficar na mesma mesa que Arthur,
então dei um jeito de convencê-la a ir para a lagoa em vez disso.
— É melhor que vocês não estejam mais brigados na sexta — Nati disse
em um tom de ameaça.
— Foi ele que não apareceu pra aula, não eu — falei, sem tentar esconder
o mau humor. Quem sabe assim ela desistisse do assunto. — Pode falar isso
pra ele.
No dia seguinte à nossa briga, fui ao parquinho pronta para fingir que nada
tinha acontecido. Eu ainda tremia de raiva só de pensar no que Arthur tinha
falado, mas entendia como era importante fazer as pazes com ele. Claro que
eu sabia que ele não apareceria, mas ainda tinha esperanças de que Arthur
precisasse tanto do dinheiro a ponto de também estar disposto a esquecer
aquilo.
Mas parecia que não. Fiquei quase vinte minutos esperando antes de perder
a paciência. Até pensei em ir à casa dele pedir desculpas, mas sabia que
acabaríamos discutindo. Era mais provável a gente começar outra briga do
que acabar com aquela.
Era para ser uma conversa rápida, principalmente por causa da vergonha
do meu pai, mas Gui teve desenvoltura suficiente para fazer a conversa fluir
até Theo se sentir à vontade. No fim, os dois se deram tão bem que meu pai o
convidou para almoçar e prometeu levá-lo para tirar umas fotos ali perto.
— Foi mal! — Minha risada só fez os olhos dela ficarem ainda menores.
— Não sei porque você está tão cismada com ele. Na verdade, acho que
vocês se dariam superbem.
Ela voltou a deitar, mas de bruços dessa vez. Se eu tivesse que chutar, diria
que era mais para me evitar do que para pegar sol nas costas.
— Pelo menos o Gui não sabe que você está a fim dele.
— Eu não estou a fim dele — ela disse cada palavra devagar, a voz ficando
mais tensa. Então completou com um suspiro: — De qualquer jeito, não vai
demorar nem uma semana para alguém contar pra ele.
Era provável que ela estivesse certa, segredos não duravam muito por ali.
Passamos o resto do dia sem tocar nem no nome de Gui nem no de Arthur.
E, no fim, nosso banho de lagoa não durou mais que trinta minutos: o vento
estava tão forte que precisei correr até em casa para não passar frio no
caminho.
Eu estava com tanta pressa que só notei que havia algo de diferente na
minha casa quando passei pelo portão. Minhas pernas pararam de funcionar e
eu me detive no lugar, sem saber o que fazer. Por alguns segundos, só
consegui encarar a parede da casa, onde meu pai havia pendurado uma faixa
quase da minha altura.
Por mais aliviada e feliz que eu estivesse por ter passado no vestibular — e
eu estava, mesmo não sendo a faculdade que eu queria —, não consegui
conter a vergonha.
Nem pensei no que estava fazendo quando corri até a janela e arranquei a
faixa, rasgando um pouco nas pontas. Não que eu me importasse com o
estado dela, se dependesse de mim, iria direto para o lixo. Mas a enrolei com
cuidado porque sabia que aquilo era coisa do meu pai, e eu não queria deixá-
lo chateado depois da conversa com Marcelo.
Mal tinha passado pela porta quando senti o cheiro da lasanha de frango no
forno. Meu pai devia ter passado a tarde toda preparando meu prato favorito
para termos uma comemoração completa na janta.
Droga, aquele era um golpe bem baixo.
Eu queria poder dar meia-volta para pendurar a faixa de novo, mas meu pai
apareceu na sala antes que eu pudesse dar um passo sequer.
Então seus olhos encontraram a faixa sob meu braço e ele parou de andar
na minha direção.
— Saiu hoje o resultado? — Eu não queria parecer ingrata, mas era difícil
fingir que estava feliz como ele, ainda mais com a prova do crime nas mãos.
— O diretor do cursinho ligou logo depois que você saiu. — Ele voltou a
caminhar até mim, um pouco receoso, e então me envolveu em um abraço
apertado. Da mesma forma que eu não conseguia esconder meus sentimentos,
ele não conseguia conter a felicidade. — Parabéns, filhota!
— Você não devia ter feito tudo isso — falei com a voz mais mansa,
largando a faixa no sofá com mais cuidado do que gostaria. — Você sabe que
eu não quero estudar na UNESC, pai. E muito menos contar pra todo mundo.
— Eu sei, eu sei. Mas foi em terceiro lugar, você deveria estar orgulhosa!
Meu pai odiava Porto Alegre. Ele queria que eu fosse para Florianópolis ou
Criciúma, que ficava a menos de 40 minutos de onde a gente morava. Floripa
ainda era a primeira opção dele, já que os planos de Theo incluíam vender a
casa na lagoa e se mudar comigo para lá. Mas, mesmo que viver na Ilha da
Magia com as suas 42 praias — como meu pai insistia em me lembrar — não
fosse exatamente uma tortura, não havia nada no mundo que me convencesse
a vender a casa na lagoa.
Agora que eu tinha passado para a UNESC, meu pai não me deixaria mais
fazer cursinho para tentar ser aprovada em Porto Alegre. E se eu passasse
para Florianópolis, a única chance de continuarmos com a casa na lagoa era
eu passando para Porto Alegre também.
— Eu sei que você está feliz, mas não precisava ter pendurado a faixa —
falei por fim, tentando ser o mais delicada possível. — Você sabe que eu não
quero estudar na UNESC.
Eu não tinha coragem de explicar para ele que minha reação exagerada
tinha mais a ver com a faixa em si do que com a faculdade para a qual eu
tinha passado, apesar de que eu não queria continuar morarando em
Araranguá pelos próximos anos. Eu só não suportaria que o apelido de nerd
me seguisse até a lagoa também.
— Quando eu passar pra UFRGS, você pode pendurar três faixas no carro
do vizinho e pedir pra ele sair buzinando pelo condomínio todo se você
quiser — minha voz começou a tremer e tive que respirar fundo para manter
o controle —, mas até lá não quero criar muita expectativa.
— Você ainda não desistiu desse negócio de Porto Alegre... — Ele parecia
desapontado com a afirmação.
Antes que eu pudesse responder, o forno apitou. Meu pai sorriu, aliviado
que a lasanha estava pronta:
— Vocês têm certeza de que não tem problema? — Gui perguntou pela
segunda vez.
— A gente tinha que jogar “eu nunca“ — Laura disse quando terminamos
de estender as toalhas na grama úmida. — Agora tem alguém novo pra contar
os podres!
Depois de ter beijado Victor na semana anterior, meus dias de jogar “eu
nunca” tinham chegado ao fim. Queria diminuir ao máximo as chances de
falar ou fazer alguma besteira de novo; isso eu já fazia bem o suficiente
sóbria.
Não pude deixar de notar, no entanto, que Arthur não tinha o tom irônico
de sempre, era mais como se estivesse… brincando comigo. Nati também
deve ter percebido já que sua expressão era uma cópia da minha: um “o que
diabos está acontecendo?” estampado da testa enrugada até os lábios
entreabertos.
A ruga na testa de Nati ficou ainda mais profunda, e não era para menos: a
única coisa mais estranha do que Arthur me tratar bem, era eu responder do
mesmo jeito.
— Não sabia que a gente tinha voltado pro sétimo ano — falei, me
juntando às risadas dele.
Mas antes que todo mundo pudesse esquecer a ideia boba, Laura pulou no
lugar, derrubando um pouco de cerveja em si mesma com toda a empolgação
e gritando “vamos!”.
Assim que percebeu o que tinha acontecido, Nati se encolheu no lugar. Era
óbvio que ela estava com medo que alguém falasse da sua suposta paixonite
por Gui. Se fosse Elói ou Laura, era bem provável que eles trouxessem o
assunto à tona — ou pior, que mandassem os dois se beijarem se fosse
consequência. Mas, em se tratando de Nati, Arthur seria tão bonzinho quanto
eu.
Meu corpo todo se retesou com a pergunta. Era óbvio que Arthur não
estava curioso. Ele só queria que eu ouvisse Nati dizer que nunca me
perdoaria se descobrisse o que fiz.
— Sei lá — ela olhou para o céu por alguns segundos —, traição, eu acho.
Ou mentira. Não sei, depende da pessoa.
Claro que ela tinha que citar as duas coisas que eu fiz.
Ainda não era nada muito revelador, mas era um bom começo. Se
continuássemos naquele rumo, logo o jogo ficaria divertido de verdade.
A discussão se estendeu até ele trocar a resposta por sorriso. Mesmo sem
acreditar muito, todos se contentaram, só eu continuei achando tão ridícula
quanto a anterior: Arthur nunca sorria!
Quando a garrafa parou de girar de novo, eu ainda estava tão distraída com
as respostas de Arthur que não percebi o que tinha acontecido até ouvir a
risada de Laura.
Eu não sabia para qual das duas opções a criatividade dela seria pior. Se eu
escolhesse verdade, ela perguntaria algo sobre Elói, o que talvez não fosse
tão ruim quanto um desafio. O problema era que se eu escolhesse verdade,
todos achariam que eu estava com medo de Laura.
A escolha era tão óbvia que eu quis me bater por não ter adivinhado que
ela diria isso.
— É quase a mesma coisa! — Revirei os olhos, mas levantei antes que ela
pudesse mudar de ideia.
— Cinco minutos — falei com dureza e estendi a mão para Gui. Ele a
pegou com certo receio, mas se levantou. — E eu não quero ver nenhum de
vocês espiando. Se alguém for lá, a gente volta na mesma hora!
Ainda tinha uma grande chance de Nati ficar magoada, mas com certeza
era melhor do que ter que beijar o Gui na frente de todo mundo.
Virei-me para ela, tentando deixar claro que nada aconteceria entre nós
dois, mas Nati encarava o chão, com uma expressão que parecia muito com
raiva e vergonha e outros sentimentos que eu não gostava nem um pouco.
Quem estava com os olhos colados em mim, contudo, era Arthur. Ele me
encarava com um sorriso de compreensão, vendo o quanto eu me preocupava
com Nati, como se finalmente tivesse me entendido.
11
Meu pai já tinha saído para fotografar quando acordei no dia seguinte.
Ainda era cedo o suficiente para caminhar com Gui, mas eu não estava com a
menor vontade de sair de casa ou de falar com ele.
O desafio de Laura não era culpa de nenhum de nós dois, e nós sequer
havíamos nos tocado quando ficamos sozinhos no bosque. Mas eu estava
envergonhada demais para atravessar a rua e fingir que nada tinha acontecido.
E se Gui achasse que eu tinha pedido para Laura me desafiar porque queria
ficar com ele? Eu não estava nem um pouco a fim de explicar que não tinha
nada a ver com aquilo.
Então, em vez de tirar proveito do dia nublado para caminhar sem o sol
queimando os ombros, aproveitei que meu pai não poderia criticar meu café
da manhã e deitei na rede da varanda com um pote de sorvete.
Mas será que valia a pena correr o risco de encontrar Victor? A gente não
se falava desde o dia em que Arthur tinha nos flagrado de novo. Eu não sabia
como Victor reagiria quando me visse. Sem contar que Nati não devia estar
acordada ainda, então era bem provável que eu fosse até lá apenas para ter
que lidar com meu ex-namorado.
No fim, nem precisei decidir o que fazer. Meus planos de ficar na rede a
manhã toda logo foram estragados por uma sombra que tapou o pouco de sol
que chegava até mim.
Ele estava com aquela expressão irritada e o tom de quem não fazia o
menor esforço para me agradar, bem diferente do Arthur simpático da noite
passada. De certa forma, era um alívio saber que pelo menos a minha relação
com ele continuava a mesma de sempre.
Por alguns instantes, apenas encaramos um ao outro, ele com aquele leve
olhar irritado e eu com a dúvida ainda mais escrachada no rosto. Fazia
praticamente uma semana desde que havíamos brigado. Arthur não podia
esperar seriamente que eu continuasse indo ao parquinho todos os dias,
torcendo para ele mudar de ideia e decidir voltar com as aulas. Não, vinte
minutos era meu limite.
Eu não me lembrava de tê-lo visto tomar mais do que duas latas de cerveja
na noite passada, mas talvez Arthur tivesse passado dos limites e ainda
estivesse bêbado. Era a única opção que fazia sentido. Isso ou ele tinha
enlouquecido de vez.
Pelo visto, tentar enxotá-lo com delicadeza não era uma opção.
Era a primeira vez que Arthur entrava na minha casa. Mesmo morando ao
lado, ele nunca tinha passado da varanda, nem quando estávamos com Nati
ou Elói. Então, estar ali dentro com ele como se fosse a coisa mais comum do
mundo — ainda mais sozinhos — era bem desconcertante.
— O que você está fazendo? — Virei para encará-lo. Dessa vez, quem
estava com os braços cruzados e a voz irritada era eu. — Você briga comigo
sem nenhum motivo, me ignora por quase uma semana e depois aparece aqui
como se não fosse nada demais? Não sei que tipo de joguinho é esse, mas eu
não estou a fim de jogar.
Eu ainda queria que ele me ensinasse a dirigir, e não era falando daquele
jeito que eu convenceria Arthur a não dizer nada sobre Victor para Nati. Mas
eu estava tão irritada que seria capaz de chutar a bunda dele até a porta da
frente se isso o fizesse sair logo dali. Não seria a atitude mais inteligente,
mas, depois do que eu disse, o mais provável era que ele me ignorasse e fosse
embora de qualquer jeito.
Nunca imaginei que ouviria essa palavra da boca de Arthur. Ele era sempre
tão confiante e autocentrado que imaginei que “desculpa” nem fazia parte do
seu vocabulário. Parecia o tipo de coisa que ele diria para Nati, para sua irmã
ou quem quer que fosse, mas definitivamente não para mim.
Talvez, por ter sido pega tão desprevenida, minha fortaleza se desmanchou
assim que meus braços caíram ao lado do corpo. Quando dei por mim, já
estava assentindo devagar e murmurando:
Arthur andou alguns passos na minha frente durante todo o caminho até o
parquinho. Ele não estava com aquela postura rígida que parecia carregar o
tempo todo, mas também não trocou uma única palavra comigo. Era bom que
pelo menos algumas coisas continuassem do mesmo jeito.
Como das outras vezes, fomos para a estrada de terra batida. Ele parou a
moto no mesmo lugar de sempre e ficou de frente para mim, os braços
cruzados:
— Sim.
Assenti devagar.
— Tudo bem por enquanto? — Arthur nunca tinha falado em um tom tão
suave comigo, como se tivesse medo de eu me despedaçar sobre a moto.
Quando assenti, ele se posicionou ao meu lado: — Coloca a mão aqui.
Como não fiz nada além de observá-lo segurar o guidom, Arthur passou os
dedos sobre os meus e os levou até o acelerador. Fez dois movimentos
rápidos, dizendo que era assim que se dava partida.
Eu queria dizer algo inteligente, mas era como se minha garganta estivesse
costurada. Eu só não sabia se era apenas por causa do medo de dirigir ou se o
toque de Arthur tinha algo a ver com isso. Se eu fosse totalmente sincera
comigo mesma, precisaria admitir que provavelmente era um pouco dos dois.
— Você está com medo. — Não era uma pergunta, mas ele não parecia
estar me acusando. Era apenas um fato.
— É por causa do seu pai? — Será que eu era tão transparente assim? A
única coisa que eu tinha dito era que ele tinha morrido em um acidente. — A
gente vai com calma. Você não precisa se preocupar.
— Eu sei, eu sei. — Balancei a cabeça com tanta força que o capacete saiu
do lugar.
Arthur praticamente não encostava em mim, mas cada ponto que ele
tocava, por menor que fosse, vibrava ainda mais que o motor.
— Não é tão difícil, viu? — ele disse, apenas alto o suficiente para ser
ouvido sobre o ruído do motor.
Dessa vez, não consegui nem assentir. Toda minha atenção estava em não
desabar — em todos os sentidos possíveis.
— Sua vez! — Ele colocou a mão sobre a minha de novo e fez o mesmo
movimento de acelerar, mas agora com os dedos sobre os meus. O medo
quase me fez afastar a mão em um espasmo, mas ele manteve o aperto firme.
Quando não fiz nada, perguntou: — Você prefere que eu desça?
— Você que sabe — tentei parecer indiferente, mas por dentro eu estava
implorando que ele não me abandonasse.
Se já era difícil continuar enquanto sentia seu peso atrás de mim, nem
imaginava como seria ter de enfrentar aquilo sozinha.
Mas Arthur não desceu. Contou até três devagar, me pediu para acelerar e
então tirou os pés do chão. Como mágica, a moto começou a sair do lugar.
Estávamos ainda mais devagar do que quando Arthur me ajudou, mas já era
um progresso.
Minhas mãos tremiam tanto no guidom que nós só não caímos porque
Arthur continuava pronto para tomar o controle a qualquer sinal de
instabilidade.
Depois que o primeiro choque passou, até ficou divertido. Quanto mais a
gente andava, mais segura eu ia me sentindo.
A parada não foi das mais suaves, mas, considerando que era minha
primeira vez, não foi nem de longe tão ruim quanto poderia ter sido. Pelo
menos, não tínhamos batido nem derrapado. E eu ainda me lembrei de
colocar os pés no chão apenas quando a moto estivesse completamente
parada — do jeitinho que Arthur tinha ensinado.
— Como você está se sentindo? — Arthur desceu e fez sinal para que eu o
acompanhasse.
Ele já estava pronto para pegar a moto de novo e eu mais do que pronta
para entregá-la.
— Bem.
E eu estava mesmo.
Muito bem.
12
Mesmo que tivesse todos os motivos para não querer mais correr comigo,
Guilherme já estava vestido para fazer exercícios quando bati à sua porta.
Isso só me fez sentir ainda mais culpada por ter esquecido de avisá-lo que
voltaria a ter aulas de direção e, o que era ainda pior, sequer ter considerado
falar com ele.
Talvez Gui não tivesse levado o desafio tão a sério quanto eu, afinal, ele
nem mesmo sabia que Nati tinha uma quedinha por ele. Ou talvez ele fosse o
tipo de pessoa que não se deixava afetar por qualquer coisa — bem diferente
de mim.
Eu não fazia ideia de porque sentia aquela vontade urgente de levar Gui até
lá. Só sabia que, cada vez que eu pensava que tinha mesmo dirigido, meu
coração acelerava como se eu ainda estivesse em cima da moto. Já fazia
quase meia hora que Arthur me deixara no parquinho, mas eu estava tão
empolgada que era como se tivesse ganhado a Fórmula 1 e não acabado de
dirigir a 5 km/h.
Conforme fazíamos o mesmo caminho que Arthur tinha feito para me levar
lá há apenas alguns minutos, um formigamento ia tomando toda a minha
pele. Se Arthur estivesse ali, era possível que eu pedisse para subir na moto
de novo. Ou até dirigir sozinha, de tão animada que eu estava.
Era provável que Gui não entendesse o quão pessoal e importante aquele
momento era para mim, mas mesmo assim abriu um sorriso enorme, como se
soubesse que era algo especial.
Eu nem parecia a mesma Lucy que sentia vontade de correr para bem
longe toda vez que via a moto de Arthur. Minha voz estava empolgada, como
se eu fosse apenas uma garota normal que queria tirar a carteira de
habilitação, sem nenhum rastro do pavor que me acompanhava sempre que ia
àquele pedacinho da lagoa.
Por algum motivo, queria sentar ali e ficar apreciando a paisagem até o
calor do meio-dia me obrigar a voltar para casa, mas apenas continuei
acompanhando as marcas de pneu até o calçamento, um pouco mais devagar
que antes. Caminhamos em silêncio por mais algumas quadras, dessa vez
indo em direção ao lugar de sempre na orla da lagoa.
— Pelo quê?
— Ah... — Minha voz morreu no ar, indo embora com a brisa fresca.
Eu não fazia ideia de quanto tempo a faixa tinha ficado pendurada na
janela do meu pai antes de eu chegar em casa, mas era de se esperar que os
vizinhos a tivessem visto, principalmente Gui, que morava na casa da frente.
— Medicina ainda por cima! — Ele estava quase tão empolgado quanto
meu pai. Mas talvez essa fosse mesmo a reação certa, não aquele peso que
tinha se instalado nos meus ombros desde que vi a faixa. — Você deve ser
muito inteligente.
— Não sei porque as pessoas fazem tanto alarde com isso, não é como se
eu tivesse ganhado o Nobel! — Me irritava que algumas pessoas achassem
que Medicina era a única faculdade que valia a pena. Por que todo mundo
não podia só fazer o que gostava e pronto?
— Por que o pessoal da lagoa acha que você… não é estudiosa o suficiente
pra passar no vestibular?
Eu não devia me sentir mal com o comentário. Sabia muito bem que Laura
e Elói achavam que eu devia fazer Moda, tanto porque era mais a minha cara
quanto porque o vestibular era mais fácil. E Arthur nem se fala, apesar de ele
guardar suas opiniões para si mesmo com mais frequência. Nati era a única
que sabia o quanto eu me esforçava na escola e depois no cursinho, e apenas
porque a gente trocava mensagens todos os dias e muitas vezes eu não podia
responder porque estava estudando. Sem contar, é claro, as crises de
ansiedade pelo vestibular que ela me ajudou a superar.
Mas era minha culpa que eles pensassem assim. Eu que tinha passado
todos esses anos tentando evitar a todo custo que eles me tratassem do
mesmo jeito que meus colegas do colégio. Mas será que não dava para achar
um meio termo? Quer dizer, eles acabariam descobrindo sobre o vestibular de
um jeito ou de outro, e Gui não parecia achar nem um pouco ruim eu ter
passado. Talvez os outros também não se importassem.
— Acho que é melhor ser a loira burra do que a nerd que ninguém suporta,
né? — As palavras saíram sem que eu planejasse dizer algo desse tipo. Antes
que eu acabasse me arrependendo de falar mais alguma coisa, mudei de
assunto: — E você? O que faz quando não está de férias?
— Acabei de sair do Ensino Médio, mas acho que vou ficar um ano
parado.
Não sabia o que era mais absurdo: ele ter se formado recentemente ou ter
decidido não fazer faculdade.
Eu teria que contar a primeira parte a Nati assim que a encontrasse naquela
tarde. Se Gui tinha saído do Ensino Médio há poucos meses, então não devia
ter mais que 18 anos, o que fazia dele uns dois anos mais novo do que Nati.
Se ela ainda estivesse a fim dele, com certeza não duraria muito. Ela sempre
reclamava sobre os caras da faculdade serem infantis demais, imagina um que
fosse dois anos mais novo!
— Por que não? — Eu não queria parecer tão chocada quanto de fato
estava, mas era difícil disfarçar.
— Meus pais esperam que eu faça Direito pra herdar o escritório dos meus
tios, mas eu queria fazer Artes Visuais.
— Ah, o velho problema dos pais quererem decidir tudo pelos filhos... —
Não consegui esconder o sarcasmo na voz. Esse era um assunto que eu
entendia muito bem depois de um ano de cursinho. — A gente só percebe
quantos pais escolhem a faculdade dos filhos quando fica em uma sala com
40 adolescentes que não fazem ideia do que realmente querem pra vida.
Minha parada foi tão brusca que quase tropecei. Em um segundo, procurei
em toda a nossa conversa qual tinha sido meu erro. Gui não perguntou se
fazia tempo que minha mãe tinha morrido. Quando eu tinha dito que tinha
dois pais? Por Deus, será que Marcelo ou Arthur estavam fofocando pela
lagoa?
Você nunca ouviu dizer que a gente tem um tipo de radar pra essas
coisas? Ele estava tão à vontade...
— Sei lá! — Ele deu de ombros. Sua indiferença quase me fez querer
sacudir seus ombros até ele perceber como aquilo era importante. — A gente
passa bastante tempo junto, o assunto acabou surgindo. Seu pai é muito legal,
a gente não passa o tempo todo falando de fotografia. No começo até era
assim, mas depois a gente começou a falar sobre como eu também quero ser
fotógrafo, sobre as nossas famílias e só… Surgiu.
Eu queria gritar para ele parar de agir com tanta naturalidade. Será que ele
não sabia como era difícil para o meu pai se abrir assim?
A resposta de Gui tinha me deixado tão surpresa que eu até tinha esquecido
que o assunto começou com a morte de Rê. E eu definitivamente não queria
voltar a falar sobre isso, então continuei na outra direção:
— Mas por que ele te contou? — Eu estava sendo chata e insistente, mas
precisava entender porque meu pai tinha decidido contar logo ao Gui,
enquanto Marcelo, um de seus melhores amigos, passou cinco anos sem fazer
ideia.
— Acho que ele quis me ajudar... — Gui olhou para o chão e deu alguns
passos em silêncio antes de continuar: — Meus pais ainda não sabem. Na
verdade, só contei pra alguns amigos.
— Ele te falou que não é a melhor pessoa pra isso, né? — Tentei forçar um
tom de brincadeira, mas minha voz saiu séria. — Ninguém na lagoa sabe que
ele é gay.
— Claro que conta. E agora eu falei pra você — ele levantou a cabeça, um
sorriso fraco se abrindo aos poucos —, acho que funcionou, né?
— Na próxima, vê se conta pra alguém que não foi criada por dois caras —
falei, em tom de deboche, e dei um empurrãozinho no braço dele.
Eu não fazia ideia de como eles reagiriam ao saber que o Gui não era
hétero. Arthur tinha sido tão indiferente quanto a isso que era como se eu
nem tivesse falado nada demais. Claro que as pessoas agiam de formas
diferentes, e talvez Elói, Laura ou Nati fossem tão intolerantes quanto alguns
dos meus colegas na escola.
Mas, no fim, talvez a nossa vida nem fosse assim tão interessante para eles.
Talvez a gente só tivesse aprendido a se preocupar tanto por causa de tudo o
que já aconteceu que acabou dando uma importância muito maior do que de
fato tinha para os outros.
13
Eu teria ligado ou pelo menos mandado uma mensagem, mas a gente mal
conseguia sinal de celular no condomínio, então eu nunca me dava ao
trabalho de levá-lo comigo — ainda mais quando estava prestes a dirigir uma
moto e poderia deixa-lo cair sem querer. E ir lá buscar era quase a mesma
coisa que ir à casa de Arthur. Então esperei por quase uma hora. Era o
mínimo que eu podia fazer já que ele sempre tinha paciência quando eu me
atrasava.
Só que Arthur costumava ser bem pontual, mesmo quando Nati o obrigava
a sair com a gente. Era mais provável que algo tivesse acontecido e ele não
pudesse me dar aulas hoje, e, mesmo que fosse o caso e ele tivesse tentado
me avisar, eu estava sem o celular, então não tinha como saber.
O melhor que eu podia fazer agora era ir embora e deixar que ele se
explicasse depois. Mas eu já sabia, enquanto bufava e marchava determinada,
que estava indo para a casa dele e não para a minha.
Ótimo, enquanto eu esperava que nem uma idiota sob aquele sol infernal,
ele estava lá se divertindo.
— Oi, tudo bom? — Me abaixei o suficiente para ficar da altura dela e abri
um sorriso. — Eu sou a Lucy, sou amiga do seu irmão.
Ela se virou para Arthur, que agora tinha parado de correr e vinha na nossa
direção com um olhar preocupado, e soltou uma gargalhada. Quando se virou
para mim de novo, pronta para dizer alguma coisa, Arthur apareceu ao lado
dela e disse com um tom autoritário:
Letícia me examinou por mais alguns segundos antes de correr para a casa
com aquela expressão divertida ainda no rosto.
— Por que ela riu quando eu falei meu nome? — perguntei assim que
ficamos sozinhos.
Será que ele tinha falado alguma coisa de mim para ela? Considerando se
tratar de Arthur, talvez fosse melhor nem ter perguntado.
Tentei manter a expressão indiferente, mas meu coração batia com mais
força no peito.
Não, eu não sabia. Eu tinha certeza de que ele já tinha chamado Letícia de
irmã várias vezes… Não tinha? Será que eu era mesmo tão narcisista a ponto
de demorar cinco anos para perceber que a menina que morava com meu
vizinho, com quem eu saía praticamente todos os dias durante o verão, era
sua prima e não sua irmã? Como eu podia ter deixado um detalhe desses
passar?
— É claro que eu sei! — Não importava que fosse óbvio que eu estava
mentindo, jamais admitiria que não fazia ideia. Arthur mal tinha começado a
enxergar a Lucy de verdade, eu não podia estragar tudo agora. — Foi só
modo de falar.
Seu cenho franzido deixou bem claro que Arthur não acreditou nem um
pouco na desculpa esfarrapada. E não era para menos. Nem eu conseguia
acreditar que a melhor desculpa que encontrei era “foi só modo de falar”.
— O que eu posso fazer? — Ele deu de ombros, tão fingido quanto eu. —
Não é fácil controlar a fome por cérebros.
Ele abriu um sorriso de leve e balançou a cabeça. Não era o mesmo que
uma risada, mas era uma das reações mais positivas e sinceras que eu já tinha
arrancado de Arthur.
Sem pensar muito se era mesmo uma boa ideia, pulei por cima do muro,
para dentro do pátio. Caminhei de cabeça erguida até a casa dele, tentando
parecer mais confiante do que me sentia. Eu estava ultrapassando todos os
limites que estabelecemos em cinco anos aturando um ao outro. E se nem eu
sabia o que estava fazendo, só podia imaginar o que se passava pela cabeça
de Arthur.
Por alguns segundos, andei sozinha. Não sei se ele só ficou surpreso ou se
estava irritado, mas demorou para sair do lugar e me acompanhar. Quando
me alcançou, sua voz parecia ao mesmo tempo divertida e confusa:
— Não, eu prometi te dar aulas de direção! — Ele pegou meu braço com
cuidado e me virou para ele.
Era difícil ficar confiante com Arthur fazendo aquela parecer a pior ideia
do mundo. Mas, de novo, ele não me olhava com a desaprovação que eu
estava acostumada. Na verdade, era quase como se ele estivesse gostando da
situação.
— E qual é a sua ideia? Levar a Lê pra dar uma volta com a gente?
— Não! — Minha voz saiu um pouco esganiçada. Eu sabia que ele estava
sendo sarcástico, mas não gostava nem de brincar com acidentes de trânsito.
— Eu ainda estou com medo de acabar matando nós dois. Nunca envolveria
uma criança nisso.
Aquilo não era exatamente verdade. Gui sabia que eu tinha aulas com
Arthur de manhã cedo, mas em geral a gente caminhava assim que elas
acabavam. Era provável que ele estivesse me esperando naquele exato
momento. Mas ele me entenderia, afinal, eu estava ali por um motivo nobre.
Não era por Arthur, era para ajudar a tia doente dele.
Nunca imaginei que a situação dele fosse tão parecida com a minha.
— A Lucy vai brincar com você enquanto eu arrumo a cozinha, pode ser?
— Ah, não! — Ela balançou a cabeça com força antes que eu mesma
pudesse implorar que ele não fizesse isso. — Você tem que brincar com a
gente. Eu até deixo a Lucy ser a mãe, mas você tem que ser o pai.
Sem dar uma chance de Arthur negar, ela foi até a mesinha, pediu
desculpas a um urso e a uma sereia antes de colocá-los no chão, e liberou
uma cadeira de cada lado.
O tempo passou tão rápido que, antes que eu percebesse, já estava na hora
do almoço. Mas foi só eu falar que precisava ir para casa — e me desculpar
com Gui pelo sumiço — que uma guerra começou sem eu nem ver de onde.
Comida falsa, ursinhos de pelúcia e xícaras de plástico voavam para todo
lado. Letícia se escondeu atrás da mesinha enquanto eu e Arthur corríamos
para trás do sofá.
— A gente tem que retaliar — falei em uma voz séria, alto o suficiente
para ela ouvir. — Acha alguma coisa pra gente jogar nela!
Enquanto as risadas dela ficavam mais altas e mais coisas voavam por
cima de nossa barreira, Arthur e eu juntávamos almofadas e qualquer coisa
leve que conseguíssemos encontrar no caminho. Jogamos algumas nela, as
risadas enfim chegando em mim e em Arthur também. Era impossível não
acompanhar Letícia.
Ele não era pesado — ou não estava colocando todo seu peso para não nos
esmagar —, mas eu sentia como se Arthur estivesse me sufocando só por
estar tão próximo de mim.
Ele fazia cosquinhas em mim ao mesmo tempo que fazia em Letícia. Era
impossível não rir, mesmo que eu só conseguisse pensar que as mãos de
Arthur estavam na minha barriga.
Quando ele parou, nós três caímos de costas no chão, a respiração pesada e
ofegante. Letícia ainda ria sem parar ao meu lado, mas tudo que eu e Arthur
fazíamos era encarar um ao outro.
14
— Você chegou tarde. — Eu estava tão distraída que quase pulei para trás
com a voz de Nati.
— Não é nem meio-dia ainda — falei com o sorriso bobo que eu tentava,
sem sucesso, tirar do rosto. — Você ficou me esperando por muito tempo?
— Desculpa ter feito você esperar — falei, apesar de nem saber que ela
estava aqui. — Você vai ficar pro almoço?
— Acho que não. — Ela apontou para as panelas no fogão. — Seu pai
tinha um compromisso e me pediu pra avisar que deixou o almoço pronto.
— Eu tinha uma aula com o Arthur, mas ele precisou cuidar da prima. —
Não pude deixar de me perguntar se Nati também sabia que Letícia era prima
e não irmã de Arthur. Mas é claro que ela saberia. — Decidi ficar pra ajudar e
acabei perdendo a noção do tempo.
— Seu pai ainda não faz ideia? — No lugar da voz meiga e suave com a
qual eu estava acostumada, havia certa acidez no seu tom.
— Talvez você devesse contar pra ele... — Seu rosto todo se contorceu em
uma expressão séria, quase fria. — Parar um pouco com os segredos, sabe?
Olhei para a cadeira que tinha puxado para ela, cada vez mais confusa com
o rumo daquela conversa, e me sentei.
Droga, ela sabia sobre Victor! Como eu faria para me explicar agora?
Droga, droga, droga!
— Eu conto tudo pra você, Nati! — Era a maior mentira que eu já tinha
dito, mas minha voz estava surpreendentemente firme. — Me diz logo o que
aconteceu.
A única coisa que me surpreendeu ainda mais foi a risada fria que saiu de
Nati.
Em cinco anos, a gente nunca tinha brigado. Exceto pela vez em que ela
disse que Gabriel, um cara que eu namorei há uns três verões, era um babaca
— e ele de fato era, mas eu me recusava a ver na época. E, mesmo naquela
discussão, nós não ficamos nem duas horas brigadas. Por isso, eu
simplesmente não sabia como reagir àquela Nati passivo-agressiva.
Por um momento, tudo ao meu redor ficou cinza. Minha visão periférica
foi embaçando, e eu precisei me segurar na ponta da mesa porque a sala ao
meu redor parecia estar girando e me consumindo. Isso era mil vezes pior do
que se ela tivesse descoberto sobre o Victor.
— Com… — Minha voz falhou e eu podia jurar que ia apagar e cair dura
bem aos pés de Nati. Mas quanto mais forte eu agarrava a mesa, mais a cor ia
voltando às paredes da casa e ao rosto vermelho de Nati. — Do que você
es…
— Ah, não…
Aquele era o último nome que eu queria ouvir. Sueli era famosa por ser a
velha mais fofoqueira da lagoa. Se ela tinha me ouvido convidar Marcelo
para sair com meu pai, era questão de tempo até que todo mundo soubesse.
— Por que você não me contou? — ela perguntou baixinho, quase como se
tivesse medo da resposta.
— Essa é a sua desculpa? — A voz dela subiu uns três tons enquanto ela
espalmava as mãos na mesa. — Você não confia em mim? Quantos segredos
que não eram meus eu te contei?
— Eu não estou nem aí se seu pai é gay, Lucy. Eu passei cinco anos
achando que você estava sofrendo por causa da sua mãe! Eu nem sei mais
quem é você de verdade. É a sua vida inteira!
Minhas palavras ainda ecoavam pela casa quando Nati deu um passo para
trás, como se eu a tivesse empurrado. Seu rosto começou a se contorcer como
se ela fosse chorar, e eu me arrependi imediatamente de ter sido tão dura.
Eu queria poder me desculpar e dizer que não era verdade, mas era.
— Você tem razão — ela disse, como quem dizia que eu não tinha a menor
razão. — Acho que eu só não esperava que minha melhor amiga fosse tão
mentirosa.
— Pelo amor de Deus, Nati! Quer saber, o Theo é gay mesmo. E minha
mãe está bem viva, lá do outro lado do planeta. Quem morreu foi meu outro
pai, o Renato. Satisfeita?
— Você não entende? Eu não dou a mínima se você foi criada por dois
caras, duas mulheres ou dois jumentos! Tanto faz se o Theo é gay, mas você
mentiu pra mim.
— Você que não entende! — Minha voz foi perdendo a força. Eu não
queria mais brigar, só queria acabar com aquilo de uma vez. — Você pode
dizer que não se importa, mas no fundo você se importa, sim. Todo mundo
quer fingir que não tem nenhum preconceito, mas depois vem com “mas eles
não deviam se beijar assim na frente da própria filha, né?”. Você não faz
ideia do que eu já tive que ouvir! Eu só não consigo lidar com isso sem o meu
pai aqui pra dizer que tudo isso vai passar.
O olhar de Nati suavizou, mas dava para ver que ela ainda estava magoada.
Nati deu outro passo para trás, batendo contra o balcão. Ela abriu a boca e
a fechou em seguida, apenas para abrir e fechar de novo. Eu já estava prestes
a pedir que dissesse qualquer coisa quando ela finalmente se manifestou.
Ela correu para fora da casa. Eu queria segui-la, mas meus pés mal me
arrastaram até o outro lado da sala. Então eu só fiquei lá, me perguntando
quanto tempo essa Lucy duraria agora que eu parecia incapaz de guardar
qualquer segredo.
Eu não sabia se estava tão mal por se tratar de Nati, a pessoa que eu mais
amava depois dos meus pais, ou se era porque minha vida na lagoa estava
prestes a se desfazer em mil pedacinhos. Eu não seria mais a melhor amiga
dela e nem teria mais os outros amigos que gostavam mesmo de mim. Era
uma questão de tempo até todos descobrirem que eu não passava de uma
farsa e eu voltar a ser apenas a Lucélia, aquela garota chata e sem graça.
O clima na manhã seguinte estava quase tão ruim quanto o meu humor. A
tempestade ainda não tinha começado, mas era apenas questão de horas até o
mundo desabar. Era o dia perfeito para ficar em casa, o que era ótimo já que
eu só queria ficar na cama de qualquer forma.
— Você está bem? — meu pai perguntou quando entrou no meu quarto lá
pelas nove da manhã, a mochila de fotografia nas costas e a testa franzida em
preocupação. — Você nunca fica no quarto até esse horário.
Eu não estava nem um pouco bem. Tinha passado a noite toda relembrando
a briga com Nati e chorando cada vez que pensava que ela nunca me
perdoaria. Às vezes, eu tinha a impressão de que tudo o que podia dar errado
na minha vida tinha saído do controle justo naquele verão. Quando eu não
estava decepcionando meu pai, estava brigando com Arthur. Se eu e Arthur
conseguíamos passar uma semana sem brigar, Nati ficava brava comigo. O
mundo estava desmoronando ao meu redor, como diabos eu estaria bem?
— No escuro?
— Não está tão escuro assim — apontei para a janela entreaberta, apenas o
suficiente para entrar o pouco de luz do dia nublado.
— Corre que vai chover logo, logo — falei enquanto ele saía do quarto,
acendendo a luz no caminho.
Nem trinta segundos tinham se passado quando ele bateu à minha porta de
novo.
— Nem adianta insistir que eu não vou — falei, me levantando para abrir a
porta mesmo assim.
Foi só ver Arthur para, de repente, eu ficar bem consciente de que ainda
não tinha escovado os dentes e que estava vestindo uma camisola das
Meninas Superpoderosas — e ela estava furada bem na altura do esterno
ainda por cima! Sem contar que meu cabelo parecia ter sido escovado com
uma batedeira — talvez se eu não estivesse fugindo de Marcelo desde que
contei que Theo era gay, meu cabelo não estaria tão seco.
— Percebi.
Seus olhos passaram por todo meu corpo mais uma vez, o que me lembrou
de que, além de tudo, eu também estava sem sutiã. Cruzei os braços na frente
do peito, torcendo para ele não notar o gesto.
— Eu também tenho.
— E qual é?
Mesmo que eu soubesse que isso ia acontecer, foi impossível não ficar
chateada. Fazia dias que eu estava me esforçando para provar que não era
uma amiga tão ruim quanto ele pensava, e ainda assim sua primeira
conclusão foi de que eu era a errada na história. Tudo bem que ele estava
certo, mas podia ao menos ter me dado uma chance de me explicar antes.
Por mais que Arthur soubesse que meus pais eram gays, eu não estava a
fim de trazer o assunto à tona de novo. Muita gente já sabia por minha causa
e, agora que Sueli estava nessa lista, era questão de tempo até a fofoca se
espalhar. Então, quanto menos a gente falasse sobre isso, menor a chance de
eu fazer mais uma besteira.
— Você sabe como a Nati é, ela nunca fica brava por muito tempo.
Pelo menos agora que Nati sabia do meu namoro com Victor, eu não
precisava mais me preocupar com o que Arthur pensava de mim ou com o
que ele pretendia fazer com o meu segredo. No momento, eu não tinha por
que cancelar as aulas, principalmente agora que tudo estava indo tão bem
entre a gente e na direção. Mas era bom ter essa opção para quando eu e
Arthur brigássemos de novo — e, se eu continuasse sendo esse ímã para
problemas, não demoraria muito para que acontecesse também.
— Por que você não contou pra ela? — A pergunta saiu com certo receio.
— Sobre o Victor.
— Bom, você e a Nati são tão próximos… Achei que você só estivesse
esperando o melhor momento pra contar.
Aquilo era tão óbvio que fiquei surpresa quando ele me encarou, tão
confuso quanto eu. Arthur se escorou na cabeceira.
— Não… — Ele falava como se fosse tão óbvio, mas como eu poderia
adivinhar? — Eu até acho que ela merecia saber, mas não tenho nada a ver
com o namoro de vocês. E não achei que ela fosse se importar.
Quanto mais eu pensava no assunto, mais sentido fazia que Arthur não
soubesse que Nati detestava que suas amigas ficassem com Victor. Mesmo
sendo tão próximos, talvez esse fosse o tipo de coisa que só surgia em uma
conversa entre meninas. Se ele soubesse como Nati ficaria chateada, era
provável que tivesse contado.
Perceber que tive toda aquela preocupação e trabalho à toa me deu vontade
de socar Arthur. Não que ele tivesse culpa, já que era eu quem tinha traído a
confiança de Nati. E, no final, eu mesma tinha contado. Ainda assim, era nele
que eu queria bater.
— E aí, vamos fazer uma aula hoje? — ele perguntou depois de alguns
minutos de silêncio, mudando de assunto.
Era provável que começasse a chover a qualquer instante, e mesmo que ele
tivesse me acalmado um pouco em relação a Nati, eu ainda queria ficar
sozinha. Mas concordei mesmo assim, mais porque queria tirá-lo do meu
quarto do que para aprender alguma coisa.
Agora que a gente tinha parado de falar de Nati, minha mente voltou com
tudo para a minha aparência deplorável. Eu só queria escovar os dentes e
colocar uma roupa decente. Se Arthur encarasse minha camisola por mais um
minuto que fosse, eu teria que cancelar as aulas porque não conseguiria mais
olhar na cara dele de tanta vergonha.
Há uma semana, ele nunca tinha sequer entrado na minha casa, agora já se
sentia confortável o suficiente para me esperar no meu quarto enquanto eu me
arrumava? Definitivamente nossa nova amizade estava indo rápido demais.
Minha vida inteira estava uma bagunça naquele momento, a última coisa
que eu me preocuparia em arrumar era meu quarto. Tudo bem, talvez eu
devesse ter levado o prato da janta de ontem de volta para a cozinha, ou pelo
menos jogado aquele achocolatado fora. Mas ontem eu estava ocupada
demais assistindo a Grey’s Anatomy e tentando esquecer a briga com Nati, e
essa desculpa teria que servir.
— Posso saber por que você pensou isso?
— Agora, sim, você parece a Lucy que eu conheço — ele disse com o
mesmo tom de brincadeira de antes.
Mas a verdade era que, na minha cabeça, eu ainda estava revivendo aquele
rápido momento em que Arthur falou que eu era bonitinha.
16
— Sabia que eu não deveria ter saído de casa — eu queria parecer irritada,
mas não consegui disfarçar o divertimento na voz.
Ignorando-me, Arthur tentou dar partida mais uma vez, e a moto fez um
barulho de sofrimento, se recusando a funcionar.
— Pelo menos a gente tentou, né? Mas era mesmo pra eu ficar em casa
vendo Grey’s Anatomy e me lamentando.
Não tive coragem de dizer mais nada enquanto ele se afastava, sem pressa,
em direção à própria casa.
Como ficava a apenas algumas quadras dali, Arthur não demoraria mais
que cinco minutos, mas bastava ficar sozinha com aquele monstro de metal
por alguns segundos para minha pele ficar toda arrepiada. Como diabos achei
que seria capaz de pilotar tão cedo?
— Meu Deus, você não quebrou isso, não? — Olhei para o que parecia ser
metade da lateral da moto.
Arthur então pegou algumas ferramentas dentro do saco e foi até onde eu
achava que ficava o motor — esse era um bom momento para lembrar da
aula teórica que ele tinha me dado há poucos dias. Fez alguns movimentos
cuidadosos, o braço direito tensionando com a força. Por mais que eu não
quisesse olhar e nem estivesse muito interessada, era difícil ignorar os
músculos à mostra daquele jeito. Sem contar que ele tinha uma tatuagem logo
acima do cotovelo: um triângulo com um risco horizontal no meio, contendo
o número 14 na parte de cima e os números 08 e 29 na de baixo. De repente,
senti uma vontade incontrolável de analisar cada traço da tatuagem — só da
tatuagem.
Mas então ele tirou da moto uma peça que parecia uma rosca do tamanho
da minha mão e voltou a ficar de pé para lixá-la.
— Onde você aprendeu a fazer tudo isso? — perguntei, mais para me
distrair do que porque realmente queria saber.
— Meu pai era mecânico, eu ficava com ele quando era mais novo. Tive
que ajudar com uma ou outra coisa.
Já devia ser bem óbvio, depois que descobri que Letícia era prima de
Arthur, que eu não sabia absolutamente nada da vida dele. Mas, por algum
motivo, fiquei chocada quando me dei conta de que não sabia nem o que ele
estudava. Eu lembrava que Arthur tinha se mudado para Porto Alegre há dois
verões, mas só porque Nati tivera uma crise quando se deu conta de que os
dois não se veriam mais todos os dias. Se ela tinha me dito qual era o curso
dele, eu já tinha esquecido.
Quanto mais eu pensava sobre o assunto, mais eu percebia que Arthur não
estava tão errado sobre mim, afinal.
— Mais ou menos. Eu faço Engenharia Mecânica, que não tem nada a ver
com carros, na verdade. Mas como eu pretendo trabalhar em uma montadora
de carros, acho que dá pra dizer que sim. Inclusive, era lá que eu deveria estar
agora.
Arthur lixou a peça com um pouco mais de força e, então, com um suspiro,
explicou:
— Eles não têm nem dinheiro nem tempo pra isso. — Arthur parou o que
estava fazendo, colocou a peça de volta no lugar e começou a usar as
ferramentas para deixar tudo do jeito que estava antes de ele decidir dar uma
de mecânico. — E eles não pediram minha ajuda, eu que decidi vir pra cá. Na
verdade, eles nem sabiam.
Eu ainda tinha muitas perguntas. Queria saber que doença a tia dele tinha,
e se ela estava correndo algum risco sério ou se era só questão de tempo até
ela se curar. Também queria saber o que Arthur faria agora que havia perdido
o estágio. E, por algum motivo, também estava preocupada se ele ficaria bem
com tudo isso.
Mas, pelo modo brusco com que Arthur colocou a tampa no lugar e
marchou de volta para a moto, imaginei que já tivesse compartilhado muito
mais do que gostaria. Até eu estava surpresa com a atitude.
Ele limpou as mãos nas calças e percebi que estava prestes a tentar ligar a
moto de novo. Depois que a aula começasse, ficaríamos muito ocupados para
conversar. Então, se eu queria saber de algo, a hora era agora:
Além da nossa briga de ontem, outra coisa que não saía da minha cabeça
era essa bolsa que ela tinha ganhado para passar dois anos inteiros fora.
Como eu não sabia se era segredo para o resto dos nossos amigos ou não,
Arthur era a única pessoa com quem eu podia conversar. E, levando em conta
que nossas aulas costumavam ser bem mais silenciosas do que isso, era bom
aproveitar enquanto ele estava disposto a falar comigo.
Saber que era mesmo verdade e que estava tão perto fez meu coração
ganhar uns dez quilos. Eu sabia que era idiota, mas ainda esperava que ela
tivesse inventado aquilo só para me magoar. Jamais conseguiria ficar tanto
tempo assim longe dela.
Aquela me parecia a pior hora para ele jogar qualquer coisa na minha cara,
então só encolhi os ombros e mudei de assunto:
Arthur assentiu, passou a perna por cima do banco e tentou ligar a moto.
Dessa vez, ela funcionou sem problemas, o ronco que eu já reconhecia
enchendo o ar ao nosso redor.
— Falei que era simples. — Ele se virou para mim com um sorriso largo e
sincero no rosto. — Pronta?
Para ser bem sincera, eu ainda não estava no clima para a aula. Só o
convidei porque queria parar de falar sobre a Nati. Mesmo assim, peguei o
capacete e o afivelei com ainda mais força, só para o caso de Arthur não ter
consertado a moto direito. Quando tomei meu lugar e apertei sua barriga, a
imagem de seu braço flexionado, com a tatuagem pulsando para mim, me
veio à mente de novo.
Balancei a cabeça, tentando me livrar desses pensamentos inconvenientes
sobre Arthur. Logo eu teria que obrigá-lo a me odiar de novo, só para garantir
que tudo voltaria ao normal e que eu não acabaria fazendo algo de que me
arrependeria depois. Eu precisava admitir, no entanto, que aquele pouco que
ele tinha compartilhado sobre si mesmo tinha me deixado muito mais
confortável enquanto sentia seu calor através das nossas camisetas.
Era como se essa simples conversa tivesse nos deixado muito mais
próximos do que antes.
— Fiquei pensando ontem e acho que você está pronta pra dirigir sozinha.
— Minha careta deve ter sido ainda mais dramática do que eu esperava
porque ele completou: — Se você quiser, claro.
Eu queria aquilo. Era por isso que tinha ficado tão decepcionada quando
Arthur não apareceu no parquinho ontem, não era? Mas agora que eu estava
ali e só precisava girar a chave, passar mais alguns dias com Arthur
garantindo que a gente não morreria parecia uma ideia cada vez melhor.
Encarei-o sem entender o que estava acontecendo enquanto ele olhava para
cima. Então, senti algo molhar meu braço. E mais uma gota, e mais outra. Em
menos de um minuto, a chuva já estava forte o suficiente para ensopar meus
cabelos — sorte que eles estavam protegidos por aquele capacete velho.
— Acho que vamos ter que deixar pra amanhã — ele disse, já voltando
para o seu lugar na minha frente.
— Eu não disse? — falei com uma risada, antes que Arthur desse a partida
de novo e eu voltasse para o sossego do meu quarto. — Não era mesmo pra
eu ter saído de casa.
17
Conversei sobre Nati com Arthur mais duas vezes. Nas duas, ele me
garantiu que ela não era rancorosa e que tudo o que eu precisava fazer era
pedir desculpas. Mesmo assim, por mais que eu só quisesse que tudo voltasse
ao normal para aproveitarmos nosso último verão antes do intercâmbio dela,
não consegui me obrigar a ir até sua casa.
No fundo, eu esperava que ela viesse até mim e se desculpasse por ter me
cobrado algo que eu não estava preparada para dar. Melhores amigas têm que
entender esse tipo de coisa, certo? Mas eu sabia que também estava errada.
Não por mentir sobre meus pais — isso era entre mim e Theo —, mas por
não ter sido sincera desde o início sobre Victor. Só que eu ainda não estava
pronta para dar esse passo, e pelo visto ela também não.
Foi por isso que passei os dias seguintes à nossa briga tentando fazer
qualquer coisa que tirasse esse assunto da minha cabeça. As manhãs eram
tranquilas: eu tinha aulas de direção com Arthur e depois caminhava com
Gui. O problema era a parte da tarde; agora que eu não tinha mais a Nati para
me fazer companhia, precisava arranjar outras coisas para fazer.
— A não ser que você me arraste até lá, acho que vou, sim — falei sem
nem tirar os olhos do croqui.
— Não vou te arrastar, mas também não vou te deixar aqui chorando por
causa da Nati.
— Fala baixo, meu pai não sabe que a gente brigou! — Dessa vez, levantei
os olhos e falei em um sussurro irritado, então voltei para o desenho, fingindo
que não dava a mínima para o que ele tinha dito. — E eu não estou chorando.
— Você entendeu! — Gui sentou ao meu lado. — Se vocês não vão pedir
desculpa uma pra outra, o mínimo que você pode fazer é sair um pouco de
casa.
Continuei focada no caderno, mas meu gelo não durou nem um minuto.
Meu pai logo apareceu na sala, convidando Gui para sair.
— Quer ir, Lucy? — ele perguntou sem nem olhar para mim.
Meu pai já devia estar me convidando por puro hábito porque se virou para
mim com uma cara confusa, como se nem tivesse perguntado nada para
começo de conversa. Mesmo assim, a expressão suplicante de Gui me
convenceu a ir.
Mas o que tornava aquele lugar perfeito para uma sessão de fotos eram as
flores que se espalhavam por nossos pés. Da entrada até a outra extremidade,
elas estavam por todos os lados. Não pareciam ser de nenhuma espécie que
eu conhecia, mas tinham um tom de roxo vibrante que me dava vontade de
pegar uma por uma para plantar no meu jardim.
Primeiro tentei descobrir se a lagoa chegava ali, mas desisti cinco minutos
depois com medo de não conseguir voltar sozinha. Então, como não havia
muito o que conhecer além de árvores e folhas novas, acabei voltando. No
caminho, fui juntando algumas das flores roxas e tentei improvisar uma
coroa, ciente de que qualquer movimento brusco faria ela desmoronar.
Peguei a câmera que meu pai tinha me emprestado, sentei em uma das
pedras e comecei a tirar fotos também, gastando a memória dele com flores e
copas de árvores que, com certeza, ficariam uma droga ao lado das fotos dele.
Até estava começando a me divertir quando vi, pelo canto do olho, meu pai
apontando a câmera para a minha cara.
Fiz o que ele pediu, mesmo a contragosto. Se todas aquelas sessões em que
eu era obrigada a acompanhá-lo serviram para alguma coisa, foi para me
ensinar que, se me recusasse a posar, passaria o resto do dia ouvindo que
tinha arruinado a foto perfeita e acabado com sua chance de ganhar o Prêmio
de Fotografia Mundial da Sony ou o que quer que fosse.
— Você até fez uma coroa — Gui riu e aproveitou para me fotografar
também. — Só faltou implorar pra gente tirar fotos suas.
— Ela nunca me deixa tirar fotos! — A voz do meu pai foi acompanhada
de mais um clique. — Você pensaria que, com um pai fotógrafo, ela
aproveitaria pra ser modelo. Mas não…
Os dois deram mais uns cliques, girando ao meu redor e mexendo em mim
como se eu fosse uma boneca. E isso, é claro, começou a me irritar. Não só
porque eles estavam se aproveitando da minha desvantagem numérica, mas
porque se eu fosse passar mais tardes com eles, queria me divertir e não dar
uma de modelo.
— Meu Deus, você é insuportável! Não sei por que meu pai te traz com
ele.
— Porque eu sou muito divertido, isso sim! — Ele revirou os olhos e tirou
outra foto.
Por mais que eu tenha bufado em resposta, precisava admitir que, tirando a
parte de modelar, a tarde estava melhor do que eu esperava. Talvez tirar fotos
com eles não fosse exatamente o que eu tinha planejado para aquele verão,
mas eu estava me divertindo mais do que imaginei quando concordei em
acompanhá-los.
— Obrigado por ter ido com a gente — meu pai disse quando ficamos
sozinhos em casa. — Você se importa de me ajudar a guardar as coisas?
Era a segunda vez naquele dia que ele me deixava mexer em seus
equipamentos. Devia mesmo ter gostado da tarde porque, em geral, me
achava estabanada demais para sequer andar perto de qualquer objeto
relacionado ao trabalho dele. Mas, se meu pai queria passar mais tempo
comigo, eu não iria reclamar.
— Ei, a gente precisa conversar — ele falou alguns minutos depois, com
um tom sério. Respirou fundo duas vezes e terminou de desmontar o tripé
antes de continuar: — Eu estou namorando.
Ele não estava dizendo que tinha conhecido um cara legal ou que estava
saindo com alguém. Meu pai estava namorando. Isso queria dizer que,
enquanto eu tentava convencê-lo a seguir em frente, ele já estava com outra
pessoa, e mesmo assim só estava me contando agora.
Meses? Por que ele tinha demorado tanto para me contar? Eu estava há
anos tentando convencê-lo de que só me importava que ele fosse feliz,
independente de quem o fizesse se sentir assim. Por que ele não confiaria em
mim?
— Por que você está me contando só agora então? — Eu só queria ter uma
conversa normal, mas era impossível evitar o tom acusatório.
— Eu não queria dizer nada antes de ter certeza de que era sério.
— É sério então?
— Ah… — Suspirei.
— Não! — Minha voz saiu um tom mais alta. Não importava o quanto eu
estivesse chateada por ele não ter confiado em mim, não podia estragar
aquele momento só porque ele não tinha lidado com a situação do jeito que
eu achava melhor. — Eu acho ótimo!
— Tem certeza? A gente pode esperar mais um tempo se você ainda não
estiver pronta... — Ele me lançou um olhar desconfiado.
— Por que você parece estar de mau humor toda vez que eu te vejo? —
Arthur perguntou assim que parou a moto no parquinho, jogando o capacete
na minha direção. — Daqui a pouco, vou achar que é melhor a gente parar de
se encontrar todos os dias.
Mesmo que minha vontade fosse jogar o capacete de volta na cabeça dele,
não consegui conter a risada. Era difícil não me contagiar com o bom humor
atípico de Arthur.
Por mais que eu só estivesse brincando com ele, Arthur não tinha mesmo
nada a ver com o meu mau humor. Eu ainda estava irritada com meu pai.
Fazia pouco mais de um dia que ele tinha me contado sobre seu novo
namorado, e a gente mal tinha se falado desde então. Ele até tentou agir como
se nada tivesse acontecido, fazendo pastel na janta e me convidando para tirar
fotos com ele e com o Gui de novo. Mas, por mais que eu só quisesse ficar
feliz por ele, não conseguia afastar aquele sentimento de traição, de que meu
próprio pai não confiava em mim.
— Acho que está na hora de você dirigir sozinha — Arthur disse quando
paramos no lugar de sempre, me arrancando dos meus devaneios.
Meu coração saiu do ritmo com essa única frase. Era exatamente para isso
que eu vinha me preparando há dias, e eu sabia que estava pronta. Mas foi só
Arthur me deixar sozinha na moto para toda minha coragem ir embora.
Quando ele estava agarrado a mim, dirigir parecia uma tarefa muito menos
assustadora.
Claro que isso não foi suficiente para me encher de confiança quando tive
que segurar o guidom sozinha. Mesmo com a moto parada, minhas mãos
tremiam como se eu tivesse tomado uns três copos de café.
— Não se preocupa tanto. — A voz de Arthur estava tão perto que era
quase como se ele estivesse na garupa comigo. — É só se lembrar do que te
ensinei.
Continuei agarrada ao guidom com tanta força que parecia que minha vida
dependia daquilo. Em vez de dar para trás como queria, no entanto, respirei
fundo e dei partida. Quase deixei a moto apagar quando ela ganhou vida,
tremendo muito mais sem Arthur ali comigo. Para piorar, o guidom ficava tão
duro sem a ajuda dele que parecia estar preso em alguma coisa.
Tentei me lembrar da sequência que ele tinha repetido umas cem vezes,
mas minha mente era apenas um borrão. Primeiro eu tinha que acelerar ou
tirar o pé do chão? Meu Deus, onde ficava o acelerador mesmo?
Na minha mente, eu via com clareza o chão cada vez mais perto e minha
cabeça sendo esmagada contra alguma pedra. Mas nada disso aconteceu. A
moto apenas continuou a andar para a frente, tão devagar que Arthur nem
teve que apertar o passo para me acompanhar.
— Deu tudo certo — falei com uma risada forçada, a imagem da minha
cabeça rachada ainda clara na minha mente.
— É — ele riu também, a cor voltando aos poucos para seu rosto —, por
enquanto.
Fiz o caminho de sempre algumas vezes, cuidando para não subir nem na
grama nem no calçamento — ninguém queria me ver de bunda no chão logo
na primeira tentativa. Até consegui fazer uma curva completa com a ajuda de
Arthur.
Quando voltei para o lugar de partida, ele me esperava com o maior sorriso
que eu já tinha visto em seu rosto. Claro que não era um daqueles sorrisos de
rasgar o canto da boca, afinal, aquele ainda era Arthur, mas foi mais do que
suficiente para me deixar toda boba.
— Essa foi, sem dúvidas, a nossa melhor aula — Arthur disse. Ele não
parecia sentir nem um décimo do meu desconforto.
Ele finalmente percebeu que ainda segurava minha mão e a soltou com
pressa, desviando os olhos para o lado antes de me chamar para ir embora.
— Sua tia deixou ela comigo — ele disse, empurrando Letícia para Arthur
como se ela fosse um fardo e não uma criança. — Ela precisou ir para o
hospital de novo e não achou mais ninguém.
Letícia anuiu, mas seus olhos ficaram presos em mim o tempo todo.
— Ela adoraria, mas já tem outro compromisso — falou, seu tom ainda
mais doce que o dela. Então se levantou e me perguntou, a súplica
escancarada em seus olhos: — Né, Lucy?
Eu até tinha me divertido na outra manhã com Letícia, mas não achava que
teria paciência para cuidar de uma criança de novo, por mais fofa que ela
fosse. Sem contar que o próprio Arthur estava me dando uma saída; na
verdade, pela expressão desesperada que ele me lançava, eu diria que estava
praticamente me implorando para concordar com a desculpa.
O único problema era que o olhar de Letícia era ainda mais suplicante — e
muito mais bonitinho. Bem que Arthur tinha me avisado que depois que eu
brincasse com ela uma vez, não teria mais volta.
— Na verdade — dessa vez, fui eu que me abaixei para ficar da altura dela
—, acho que posso ficar uns minutinhos.
— Dessa vez, a gente pode brincar com a minha nova Barbie Sereia! Ela
tem uma cauda de verdade — ela disse as últimas palavras baixinho, como se
fosse o maior segredo do mundo.
— O Arthur não para de falar de você, sabia? — ela disse como quem não
quer nada, ganhando toda a minha atenção. — Ele acha que você vai destruir
a moto logo, logo.
— Que bom que ele só diz coisas boas de mim, né?
— Mas a minha mãe falou que os meninos são assim mesmo! — Ela
puxou minha mão para baixo, como se eu não estivesse prestando atenção
suficiente. — Semana passada, o Henrique tentou colar chiclete no meu
cabelo e ela disse que é assim que os meninos mostram que gostam da gente.
— Letícia... — Comecei, sem saber muito bem como explicar para uma
criança que essa lógica não fazia muito sentido. — Acho que não é bem
assim que funciona.
— Acho que você entendeu mal... — Tentei rir, mas foi uma tentativa
inútil de disfarçar o nervosismo.
Letícia estava errada. Eu conhecia Arthur bem o suficiente para saber que
ele não se apaixonava por ninguém, ainda mais por mim. Mas, então, por que
as palavras dela ficaram martelando na minha cabeça pelo resto do dia?
19
Letícia estava irritada porque o Ken tinha traído a Barbie com a Susie —
aparentemente, esse era o maior crime no mundo das bonecas: além de
safado, ele tinha escolhido logo a Susie, que nem sereia era! — e, mesmo
assim, se achava no direito de ficar com a casa e o carro. Claro que eu e Lê
achávamos que ele deveria perder tudo, mas Arthur não parava de dizer “mas
por que ela quer uma casa e um carro embaixo da água?”. O argumento era
mesmo muito bom, e eu não conseguia me concentrar por tempo suficiente
para ajudar a Lê.
O problema era que, agora que eu não estava mais distraída com a
possibilidade de sofrer um acidente de moto, a conversa com meu pai insistia
em ocupar todo o espaço na minha cabeça. A briga entre o Ken e a Barbie
mal parecia um ruído de fundo.
— Sim, eu só...
— Lê, acho que a Lucy ficou cansada depois de todas aquelas manobras na
moto — Arthur não pareceu me ouvir quando falei que estava bem mais uma
vez e pedi para deixar isso pra lá. — Por que você não fica aqui brincando
enquanto eu levo ela pra casa?
Por mais que eu quisesse ficar com eles, tinha que admitir que estava mais
atrapalhando do que ajudando Arthur. Sem contar que eu precisava mesmo
de um tempo sozinha para colocar os pensamentos em ordem e decidir o que
dizer ao meu pai. No entanto, em vez de se despedir de mim como eu
esperava, Arthur sentou no muro entre nossas casas e me olhou como se fosse
óbvio que eu devia fazer o mesmo.
Por alguns segundos, apenas o encarei de volta, tentando entender por que
Arthur achava que devia me fazer companhia. Quer dizer, nós dois sequer
éramos amigos. Na verdade, há um mês atrás, eu riria da ideia de passar, por
vontade própria, mais que cinco minutos no mesmo cômodo que ele. E eu
definitivamente não achava que Arthur era a pessoa ideal para sentar ao meu
lado e me ouvir reclamar sobre a vida.
O que ele tinha dito na última vez que tentei me abrir? Que “o mundo não
girava ao redor do meu umbigo” ou qualquer coisa do tipo.
A gente até podia estar se divertindo com as aulas, mas será que dava
mesmo para apagar cinco anos de brigas e discussões em apenas algumas
semanas? Mas, então, por que minhas pernas fizeram o mesmo movimento
que as dele e me colocaram sentada ao lado de Arthur? Pelo menos, tiveram o
bom senso de manter uma distância segura entre nós dois.
Já era quase meio-dia, mas o céu estava nublado e, com o vento que
chegava até nós, aquela posição até que era agradável. Por alguns instantes,
ficamos em silêncio, apenas observando o movimento das palmeiras. Os
pensamentos de Arthur deviam estar bem longe dos meus, mas ele parecia tão
perdido na própria cabeça quanto eu.
Quando falou, sua voz estava séria, mas tinha aquele mesmo quê suave que
ele usava quando eu entrava em pânico em cima da moto:
— Eu não devia ter te forçado a dirigir tão cedo... — Ele se virou para
mim, os olhos caídos. — Desculpa.
— Não! Eu não estou chateada por causa disso, sério. — Por algum
motivo, eu não queria que Arthur achasse que meu medo de dirigir tinha
qualquer coisa a ver com minha tristeza. Precisava que ele soubesse o quanto
estava me ajudando.
— Sim, eu... — Por mais que eu não quisesse sequer pensar em Theo, as
palavras apenas escapuliram pela minha boca: — Meu pai está namorando de
novo.
Eu sabia que estava exagerando e que parecia uma criança mimada, mas
não conseguia me livrar da frustração por ele não ter confiado em mim.
Ao contrário da maioria das pessoas, Arthur não parecia estar com pena de
mim. Ele estava, sim, falando em uma voz mais suave, mas não me olhava
daquele jeito irritante como se eu fosse a maior coitadinha do mundo. Era
quase um alívio poder conversar sobre aquilo como se fosse apenas mais um
acontecimento qualquer.
— Cinco anos. — O silêncio se estendeu por mais um momento até eu
completar: — No começo, foi horrível. Eu e o Theo nunca fomos tão
próximos... O Rê era meu melhor amigo, sabe? E um dia ele simplesmente
saiu pra viajar e nunca mais voltou. Agora eu já entendo que essas coisas
acontecem e não passo mais tanto tempo pensando nele, mas tem dias que...
Sei lá.
Arthur não precisava da minha confirmação para saber que estava certo.
Ele tinha uma emoção tão crua na voz que tive certeza de que sabia
exatamente como era perder alguém. Levando em conta que ele morava com
os tios, a resposta parecia bem óbvia.
Em qualquer outro dia, eu não teria coragem de perguntar algo tão pessoal
a Arthur, mesmo que a vontade de o conhecer melhor ardesse dentro de mim.
Mas como estávamos falando sobre a morte do meu pai, parecia certo que eu
também tivesse o direito de saber sobre os dele.
Seu semblante deixava claro que isso era o máximo que ele estava disposto
a contar, mas não era fácil deixar o assunto de lado quando ele sabia tanto da
minha vida e eu, tão pouco da dele.
Dessa vez, Arthur não falou nada, só ficou encarando as palmeiras comigo.
E eu só podia agradecer porque se ele dissesse qualquer coisa parecida com
“sinto muito”, eu começaria a chorar ali mesmo.
— Foi um cara bêbado. Meu pai parou pra jantar porque não gostava de
ficar na estrada até tarde, e esse cara furou o sinal quando ele voltava pro
hotel.
— Só dinheiro, mas não foi preso nem nada. — Dei de ombros, tentando
me convencer que não era nada demais. — Eu costumava pesquisar sobre ele
o tempo todo. Eu queria descobrir alguma coisa horrível que justificasse o
que ele fez, sabe? Eu sei que não foi de propósito, mas o cara destruiu a nossa
vida...
— E você achava que seria mais fácil aceitar se soubesse que ele fez isso
porque tinha uma vida pior ainda — ele completou, a postura rígida.
— É... Mas meu pai me viu lendo uma notícia uma vez e me fez prometer
nunca mais pesquisar sobre o cara.
— Na Içara? — A pergunta de Arthur foi tão inesperada que quase ri. Quer
dizer, eu tinha acabado de admitir que praticamente perseguia o cara que
matou meu pai e Arthur estava interessado na cidade. Talvez fosse justamente
porque as perguntas dele nunca eram sentimentais que eu me sentia tão
impelida a falar. — Mas vocês não são de Araranguá?
— Sim, mas ele viajava pra essa região a trabalho de vez em quando. A
vida é cheia de coincidências loucas, né? — Tentei rir para diminuir um
pouco o peso da conversa. — Eu nem conhecia a Içara ou a lagoa, e a gente
acabou herdando uma casa a 10 minutos de onde ele morreu.
— Me faz sentir uma conexão com ele, não sei explicar... — Dei de
ombros, me virando de novo para Arthur. — Eu gosto de andar pela Içara e
saber que ele poderia estar ali comigo, sabe?
— Eu posso te levar pra ter aulas lá se você quiser — ele disse no tom
mais doce que já tinha usado comigo até agora.
— Se você conseguiu dirigir sozinha hoje, por que não conseguiria dirigir
lá também?
20
Mas a gente já tinha tido aquela conversa umas dez vezes durante a
semana, então eu sabia que Gui não desistiria tão fácil.
— Você precisa se resolver com a Nati de uma vez — o tom dele deixava
claro que ele estava tão cansado daquela conversa quanto eu.
— Claro que quer. — Ele sentou ao meu lado e cutucou meu ombro com
carinho, um sorriso discreto se abrindo aos poucos. — Você sabe muito bem
que ela está tão cansada dessa briga quanto você.
— Você acha?
— Tenho certeza! — Ele estendeu a mão para mim. — E não sou só eu. O
Arthur disse a mesma coisa.
Era a primeira vez que ele usava aquele argumento, e foi só por causa disso
que decidi deixar o orgulho de lado e agarrei sua mão. Talvez os dois
estivessem errados e Nati não quisesse me ver nem com um pote gigante de
sorvete nas mãos. Mas a gente não se falava há uma semana, se
continuássemos nesse ritmo, ela viajaria para o intercâmbio antes que eu
pudesse pedir desculpas.
Foi quando meus olhos caíram sobre a última pessoa que minhas palmas
derreteram de vez. Se tinha alguém que eu não esperava ver naquela noite era
Victor, ainda mais aproveitando a oportunidade para dar em cima de uma das
amigas de Laura.
Era a primeira vez que eu o via desde o nosso beijo e, mesmo de longe,
dava para notar que ele estava tão bonito quanto eu me lembrava. Mas,
tirando a surpresa — e o medo de Nati ficar ainda mais brava comigo por me
ver no mesmo ambiente que ele —, não senti nada ao vê-lo, nem mesmo
ciúmes da outra garota.
Ela nos puxou pelas mãos e não pude deixar de notar o burburinho que se
espalhou quando nos aproximamos. Não entendi uma única palavra do que os
amigos dela diziam, mas, pelos olhares furtivos que lançavam em nossa
direção, tive certeza de que eu ou Gui éramos o assunto — ou pior, nós dois.
A última coisa que eu precisava era que mais pessoas achassem que a gente
estava namorando. Aí mesmo que minhas chances de conseguir o perdão de
Nati seriam praticamente inexistentes.
Fiquei arrependida de me virar para ele assim que seus olhos analisaram
meu corpo de um jeito bastante nojento, parando nos meus peitos por um
tempo longo demais. Eu queria sustentar seu olhar com segurança, mas só
consegui me encolher.
Mas o tal de Marcos nem se deu ao trabalho de levantar os olhos para ele.
— Estou? — A resposta saiu mais como uma pergunta do que como uma
afirmação, mas isso não impediu o sorriso malicioso que surgiu em seus
lábios.
Meu coração bateu tão forte que eu poderia estar levando socos no peito e
não saberia a diferença. Olhei ao redor, esperando que alguém me explicasse
o que diabos estava acontecendo, mas todos estavam ocupados demais rindo
— até Laura e Elói. Os únicos que continuavam sérios eram Arthur, Nati e
Gui.
— É o pai dela que é gay, não ela — Laura disse em um tom sério, apenas
para cair na risada um segundo depois. Ela não estava nem um pouco
interessada em fazer com que eles parassem de rir de sua amiga, só queria
participar da brincadeira.
Por mais que eu só quisesse correr para longe dali, não consegui mover um
músculo sequer. Fiquei imóvel enquanto Marcos dizia para o amigo:
— Mas eu aposto que ela também fica com várias garotas... — E como se
aquela fosse a ideia mais genial do mundo, perguntou com os olhos colados
nos meus: — Você podia chamar a gente pra participar, né? Ou pelo menos
assistir!
Isso era mais do que eu poderia suportar. Meu corpo todo começou a
tremer, como se fosse pleno inverno, apesar de o tempo estar agradável e sem
vento. Conforme o burburinho aumentava, eu sentia meus músculos perdendo
a força. Se Gui não tivesse agarrado meu braço com firmeza, era provável
que eu não conseguisse ficar em pé por muito mais tempo.
Tudo que eu conseguia fazer era repetir: eles sabem, eles sabem, eles
sabem.
Fechei os olhos com força, como se me recusar a assistir àquilo fosse fazer
com que eles desaparecessem. As lágrimas começaram a escorrer logo em
seguida e, como eu me recusava a deixá-los me ver chorar, me virei para usar
o corpo de Gui como escudo — como se ele pudesse me proteger de toda a
intolerância do mundo.
Ela, é claro, também estava me olhando. Pela primeira vez desde a nossa
briga, consegui enxergar Nati naquele olhar. Mas ela parecia preocupada
demais quando deu um passo na minha direção. Natália era a única pessoa
que sabia sobre meus pais e que teria qualquer motivo para contar para Laura.
Meu estômago pesou mais com essa constatação do que qualquer piada
que eles tinham feito.
— Como você pôde contar pra ela? — Minha voz saiu estrangulada, então
empurrei Gui e me aproximei para que Natália conseguisse me ouvir direito.
— Eu não acredito que você fez isso comigo!
Desvencilhei-me dele com ainda mais força do que antes e dei mais um
passo firme na direção de Nati.
— Eu não quero te ver nunca mais — gritei, sentindo outro puxão de Gui.
Dessa vez, eu não tinha mais forças para lutar, então deixei que ele me
arrastasse para trás, mas não sem antes dizer o que eu esperava que fossem
minhas últimas palavras para ela: — Você está morta pra mim!
Talvez eu devesse me sentir mal por ter gritado com ele, mas apenas me
virei de novo e corri ainda mais rápido. Tudo que eu queria era ficar o mais
longe possível de todos eles e daquele lugar maldito.
E era exatamente o que eu teria feito se não tivesse levado o segundo susto
da noite quando me virei para deitar.
— Meu Deus! — gritei com a voz entrecortada, tanto pela corrida quanto
pelo susto. — O que você está fazendo aqui? Você me seguiu?
— E por que eles não vieram também? — Eu sabia que estava sendo
injusta, já que tinha acabado de gritar com os dois, mas ao menos Nati
deveria estar ali com ele. Era para ela ser minha melhor amiga, não era?
— A Nati acha que você está brava com ela e o Gui ficou com medo de
apanhar.
Um silêncio se instalou entre nós e tudo o que eu podia ouvir era o som das
nossas respirações e dos grilos ao redor. Era o mesmo barulho — com
exceção da respiração de Arthur, claro — que eu ouvia toda noite nos últimos
cinco verões, e isso me fez relaxar um pouco enquanto observava as estrelas.
Seria um momento bastante reconfortante se minha vida não tivesse desabado
ao meu redor há menos de quinze minutos.
— Você lembra que ela não é minha irmã, né? — Ele tinha um tom de
sarcasmo e diversão ao mesmo tempo.
Não ouvi o resto do que ele disse, estava ocupada demais tentando
entender o que tinha acabado de ver.
— Me diz que você também viu isso — sentei e apontei para o céu. — Eu
juro que vi uma estrela cadente.
— Não vai me dizer que você acredita nessas coisas! — Seu tom era
cético, mas eu podia sentir o sorriso no rosto dele.
Decidi ignorar Arthur. Precisava fazer um pedido logo se não quisesse que
ele perdesse a validade. Mas como eu poderia escolher entre as milhares de
coisas que eu desejava naquele momento? O que eu mais queria era que meus
amigos percebessem que aquela noite não havia passado de um engano. Mas
isso jamais aconteceria, e eu não podia desperdiçar meu único desejo assim.
Então, pedi a segunda coisa mais importante: que minha amizade com a Nati
voltasse a ser como era antes.
— Você sabe que não foi a Nati que contou pra Laura.
Quase perguntei se eu tinha feito o desejo em voz alta, mas mordi o lábio
antes que pudesse estragar qualquer chance que ele tinha de se realizar. Claro
que, na verdade, eu só era muito mais transparente do que imaginava.
Era claro que eu sabia que Nati não tinha contado para ninguém. Eu a
conhecia bem demais para achar que ela faria qualquer coisa para me magoar,
não importava o quão chateada estivesse. Era muito mais provável que a
Sueli tivesse contado para os pais da Laura e sabe lá para mais quem. Então,
se não fosse por mim, Nati e os outros não fariam a menor ideia.
— Mas eles são seus amigos, Lucy — o tom dele foi ficando mais incerto.
— Não foi o que pareceu... — Eu podia sentir o tremor na minha voz, todo
aquele desespero voltando. Talvez eu devesse correr mais uma vez antes de ir
pra casa. — Eu só queria entender por que as pessoas se importam tanto,
sabe? O que eles têm a ver com quem meus pais namoram? Se cada um só
cuidasse da própria vida, seria tão mais simples...
— Pelo quê?
— Por tudo. — A rouquidão não passava, então tive que pigarrear antes de
continuar: — Pelas aulas, por ter vindo atrás de mim, por não ficar falando
das suas Barbies... Tudo.
Apesar do sorriso que esticou seus lábios, Arthur não parecia emocionado
com a situação como eu. Tudo era tão simples para ele...
Então, não sei se por causa dos comichões que eu vinha sentindo quando
estava perto de Arthur ou se por que estava tão cheia de sentimentos que
precisava transbordar para algum lugar, acabei com os poucos centímetros
entre nós e toquei os lábios de Arthur com os meus. Pareceu mais com uma
cena de filme infantil do que com um beijo real, meus lábios mal encostando
nos dele.
Sua boca estava quente, tão quente quanto tudo que emanava de Arthur,
mas não tive mais do que alguns segundos para sentir seu calor.
Aquilo não podia estar acontecendo de verdade. A única coisa pior do que
beijar Arthur era ser rejeitada por ele.
— Você só está confusa — ele disse, como se falasse com uma criança de
dez anos. Quase desejei que ele se irritasse e começasse a gritar comigo, com
certeza seria menos vergonhoso. — Eu vim conversar com você porque
fiquei preocupado. Não quero que você ache que eu esperava alguma coisa
em troca ou...
— Não tem problema — ele me imitou, mas ainda tinha aquela voz
melosa, a mesma que usava para falar com Letícia —, só não quero te deixar
ainda mais confusa.
Não consegui pregar os olhos durante toda a noite. Quando o sol começou
a se esgueirar pela janela, eu ainda estava intercalando entre me lembrar dos
meus supostos amigos rindo de mim e pensar em como contaria ao meu pai
que todos sabiam que ele era gay por minha causa.
— A festa deve ter sido boa — ele disse, indo até a geladeira sem prestar
muita atenção em mim. Provavelmente achava que eu ainda estava irritada
por ele não ter me contado sobre o namorado novo. — Você está com uma
cara péssima.
Eu estava mesmo com olheiras profundas, mas dessa vez não tinha nada a
ver com ressaca.
Ainda assim, apenas observei enquanto ele pegava seu kit de jardinagem e
começava a trabalhar na nossa horta.
— É sobre o Carlos?
Ele nunca tinha falado de nenhum Carlos, mas eu não precisava ser vidente
para adivinhar quem era.
Meu pai nunca tinha me pedido para guardar segredo. Não com todas as
letras, ao menos. Alguns dias antes das nossas primeiras férias na lagoa, ele
me contou que não se sentia preparado para lidar com a homofobia e o
preconceito sem Rê por perto. Por mais que eu me esforçasse para ser tudo o
que ele precisava, Theo se sentia sozinho. Então, nós criamos uma espécie de
acordo tácito de que, na lagoa, aquele seria nosso segredo. Não era
intencional e, no começo, achei que não duraria mais do que algumas
semanas. Seria apenas durante o tempo que ele precisasse para se sentir
confortável.
— Você não me ouviu? — perguntei ainda mais alto. — Todo mundo sabe
que você é gay!
— Eu sei — ele falou em uma voz mais melódica, como se eu tivesse dez
anos e não dezoito. Por que todo mundo insistia em me tratar como criança?
— Eu sei. Fui eu que contei. Teve uma janta na casa do Marcelo semana
passada e eu decidi comentar com alguns amigos nossos.
— Você o quê? — Aquela era a última resposta que eu esperava. Fui pega
tão de surpresa que dei um passo em falso para trás e quase caí, me agarrando
em uma árvore no último segundo. — Por que você fez isso?
— Meu Deus, filha, você está sangrando! — Ele pegou minha mão antes
mesmo de eu perceber como ela estava machucada, espalhando terra por toda
a palma, e examinou o pequeno corte. — A gente precisa lavar agora.
— Esquece isso! — Puxei a mão com força, limpando-a na blusa. Era uma
das minhas camisetas favoritas e eu, com certeza, me arrependeria mais tarde,
mas agora só queria entender o que estava acontecendo. — Por que você
contou pra eles?
Meu pai não tirou os olhos do machucado por nem um segundo enquanto
respondia:
Assim que meu pai ergueu as sobrancelhas, percebi que tinha feito a
pergunta errada. Ele não parecia bravo comigo, embora tivesse todo o direito
de ficar — convenhamos, que razão eu tinha para ficar chateada por ele não
ter me consultado antes? —, parecia apenas magoado, o que era muito pior.
— Falar com você? Por que eu faria isso? — Então seus olhos foram até
minha mão de novo. — Sério, Lucy, você precisa lavar esse machucado —
ele resmungou.
Meu pai se livrou das luvas com pressa, pegou o regador no chão e
despejou água sobre o corte. Foi só quando a água tocou minha pele que senti
um pouco de ardência, mas, fora isso, era como se eu nem tivesse me
machucado. Como um cortezinho tão pequeno e praticamente indolor podia
sangrar tanto?
Lavei com água e sabão, sem muita pressa, tentando evitar a conversa da
qual eu sabia que não tinha como escapar.
— Não, é claro que não! — Fui tão enfática que acabei derramando água
por todo o chão do banheiro. Fechei a torneira com força, resmungando com
ainda mais raiva de mim mesma. Eu não suportaria que meu pai tivesse
qualquer dúvida do quanto eu me orgulhava de tudo que ele tinha feito por si
mesmo, por Rê e por mim. — É só que eu passei os últimos anos mentindo
pra todo mundo, pra gente não passar por tudo aquilo de novo... — Minha
voz foi morrendo enquanto eu tentava organizar os pensamentos. — E ontem
quanto eles começaram a rir de mim, eu fui pega totalmente desprevenida. Se
você ao menos tivesse me contado antes...
— Pai — usei a mão boa para obrigá-lo a parar e olhar para mim —, você
sabe o quanto me orgulho de vocês, não sabe?
Ele abriu um sorriso que mais parecia uma careta, os lábios juntos
formando uma linha fina.
— Eu sei que as pessoas nem sempre foram legais com você por causa das
escolhas que eu e seu pai fizemos — ele balançou a cabeça, como se ficasse
enojado só de pensar nisso, e voltou a atenção para o curativo. — A gente
sabia que isso podia acontecer, mas decidimos te adotar mesmo assim. E eu
acho que nunca me desculpei por não ter feito nada para impedir que os
outros te tratassem assim.
— Olha quanto amor isso me trouxe! Eu nunca sofri por causa de vocês,
foi por causa dos outros. — Meu pai olhou para mim com um sorriso de
quem carregava o peso do mundo. — Talvez vocês pudessem ter me
colocado num colégio menos tradicional, mas agora já é tarde — acrescentei,
tentando deixar o clima mais leve.
— Eu preciso que você saiba que, mesmo se eu pudesse, não mudaria nada
na minha vida — parei, finalmente abrindo um sorriso. — Quer dizer, eu
faria com que Rê ainda estivesse vivo, mas você entendeu.
— Eu sei.
Pela segunda vez naquele verão, acordei com alguém batendo à minha
janela. Como da primeira vez, pulei na cama com o susto, apesar de estar
completamente sóbria agora. Com o coração martelando no peito, continuei
deitada por alguns segundos, enquanto tentava descobrir se tinha sido apenas
um sonho ou não.
— O que diabos você está fazendo aqui? — Corri os olhos pelo gramado,
tentando entender o que estava acontecendo, mas Arthur estava sozinho. —
Ainda nem amanheceu!
— Cala a boca! — Empurrei seu ombro, sem muita força, ainda dormindo
em pé. Eu sabia que a parte de eu estar horrível era brincadeira, até porque
era impossível enxergar qualquer coisa naquela escuridão. — O que você
quer? — perguntei, irritada.
A gente não se falava há praticamente dois dias, desde que tentei beijá-lo.
Nossa conversa mais longa tinha sido na manhã anterior, quando fui até o
muro entre nossas casas, apontei para o curativo e disse que estava
machucada demais para dirigir — o que era a maior mentira, já que minha
mão praticamente não doía. Mas eu agarraria qualquer desculpa para evitar
Arthur até nós dois termos esquecido aquela vergonha.
A essa altura, no entanto, eu já deveria saber que ele não colaboraria com
meu plano. Era claro que ele tinha que fazer o mesmo que da outra vez em
que houve uma tensão assim entre nós: aparecer na minha casa como se nada
tivesse acontecido — e em um horário completamente inapropriado ainda por
cima.
— Quero te mostrar uma coisa... — Ele nem piscou para o meu mau
humor. — Você tem dez minutos pra se arrumar. É melhor correr.
— Meu Deus, Arthur! Não são nem seis da manhã ainda — resmunguei
quando vi o horário no celular. Eu gostava de acordar cedo, mas aquilo era
demais até mesmo para mim.
Ficava cada vez mais claro que deixar Arthur agir como um louco era a
melhor opção. O que realmente importava era que no final ele me perdoasse,
principalmente agora que eu estava brigada com Nati — uma briga por vez
era mais do que eu podia suportar. Foi por isso que praticamente corri para o
banheiro, tentando ignorar o olhar debochado que queimava minhas costas.
— Devo usar alguma coisa específica? — perguntei assim que voltei para
o quarto, o mais sarcástica possível.
Só então notei a jaqueta de couro preta que ele usava, e tive que virar de
costas para não rir na cara dele. Quem, além de Arthur, usava couro em pleno
verão? Provavelmente ele achava que isso ajudava na sua imagem de
motoqueiro badboy. Mesmo achando ridículo, fiz o que ele sugeriu e peguei
um cardigã.
Durante todo o trajeto, ele acelerou bem mais do que os 20 km/h que eu
estava acostumada dentro do condomínio. Isso me fez grudar com ainda mais
força em seu abdome, principalmente depois que saímos pelo portão principal
e pegamos a rodovia que levava para a Içara e para as outras lagoas ao redor.
Ele não conseguiria me ouvir por causa do barulho do motor e do vento, mas
passei o tempo todo pensando em como implorar para ele ir mais devagar.
Passamos cerca de dez minutos naquela tortura antes de ele dobrar mais
uma vez à direita e subir um morrinho. Dirigimos por mais uns dois minutos
até ele parar e me mandar descer da moto.
— Fazia tempo que eu não via o nascer do sol — falei depois de alguns
minutos em silêncio, apenas fitando o mar e o sol que subia lentamente.
— Achei que você precisava de algo bom depois daquela noite... — Ele
tinha um certo pesar na voz.
— Obrigada. — Eu queria garantir que ele não tinha por que ficar triste,
mas minha voz não passava de um sussurro.
Não pensei duas vezes antes de atacar a comida, afinal, era culpa dele que
eu parecia um monstro esfomeado. Arthur pegou uma bolacha também e se
remexeu, ficando alguns centímetros mais perto de mim, mas ainda longe o
suficiente para que eu não ficasse nervosa com a proximidade — não tanto,
ao menos.
Era claro que ele tinha que estragar o momento nos lembrando do beijo.
— Verdade, você passou mesmo dos limites — ele deu uma piscadela, mas
algo em seu tom me dizia que não era totalmente brincadeira —, mas você
teve que lidar com muita coisa nos últimos dias.
— Você já pensou como é injusto que você sabe tudo da minha vida e eu
não sei nada da sua?
Depois da maneira retraída que ele tinha agido quando falou dos pais, eu
sabia que era um terreno perigoso, mas ele estava tão sereno que achei que
valia a pena arriscar.
— Não acho nem um pouco injusto — ele abriu aquele sorriso que eu via
com cada vez mais frequência —, mas pode me perguntar o que você quiser.
Meu coração pulou uma batida com a ideia de descobrir qualquer coisa
sobre Arthur. Eu tinha tantas perguntas para fazer que nem sabia por onde
começar. O problema era que nossa amizade ainda era muito recente e eu não
o conhecia bem o suficiente para saber até onde poderia pressioná-lo antes de
ele se fechar por completo. Então decidi começar com algo que não era tão
pessoal, mas que me ajudaria a entendê-lo um pouco melhor.
— Azul — ele disse simplesmente —, mas vou te dar algo interessante pra
compensar essa pergunta péssima: eu sou daltônico — acrescentou.
— Pelo menos você não acha que eu vejo tudo cinza. — Ele abriu um
sorriso largo, o que fez meu coração perder mais umas duas batidas. — Eu
não vejo o verde e o vermelho direito.
— Você sabe até o nome? — Ele riu, uma risada gostosa que me obrigou a
sorrir junto. — Você é muito nerd, Lucy.
— Não acredito que você não consegue ver as árvores ao nosso redor...
Não fazia nem 48 horas que ele tinha me rejeitado e praticamente saído
correndo. Agora estávamos em um encontro?
Eu não tinha como discutir com ele, aquela era mesmo uma vista incrível e
ele tinha mesmo feito um piquenique completo. Então só me restava aceitar
que eu estava, sim, em um encontro com Arthur. E, o pior de tudo, isso me
deixava mais feliz do que eu gostaria.
24
Revirei os olhos, mas aproveitei a deixa para perguntar algo que tinha me
passado pela cabeça alguns dias antes, quando o vi lavando a moto com a Lê
no fim da tarde:
— Falando nisso, por que você tem um adesivo do Foo Fighters na moto?
Quer dizer, você limpa ela quase todo dia e é tão cuidadoso, me parece
meio… Incoerente, sabe?
Era uma pergunta inocente, só uma curiosidade que tinha surgido. Mas
bastou um olhar na direção de Arthur para perceber que ela tinha mais
importância do que eu imaginara: no mesmo instante, sua boca se
transformou em uma linha fina e ele deu algumas colheradas no sorvete antes
de responder.
— Meu pai costumava ouvir na oficina — ele falou com descaso, mas de
um jeito controlado demais para ser sincero. — Só achei que era apropriado.
A resposta dizia muito mais de Arthur do que eu esperava, achei que ele
responderia apenas que era sua banda favorita ou algo do gênero. Então,
decidi aproveitar que já estávamos em um assunto delicado para fazer outra
pergunta que vinha ocupando meus pensamentos.
Eu estava muito curiosa sobre como ele tinha ido morar com os tios, mas
achava que uma pergunta direta acabaria deixando Arthur desconfortável. Ao
mesmo tempo, no entanto, ele tinha dito que eu podia perguntar qualquer
coisa, então tentei uma abordagem mais sutil.
— Como você conseguiu a cicatriz?
— Foi ele que me deu a cicatriz. — Arthur ficou em silêncio por quase um
minuto, comendo o sorvete como se aquilo não fosse um grande absurdo,
enquanto eu só tentava disfarçar a boca escancarada. — Quer a versão longa
ou a curta?
— A que você quiser contar. — Minha voz saiu rouca e precisei pigarrear.
Eu estava tão chocada que já era um milagre eu sequer conseguir responder.
— Minha mãe engravidou sem querer com 16 anos, e, como meus avós
obrigaram meus pais a cuidarem de mim, eles tiveram que se virar
praticamente sozinhos. Pelo que eu sei, deu certo até eu fazer uns três anos —
a voz dele já estava baixa, mas foi adquirindo um tom mais grave e profundo,
— mas eles já eram dois drogados desde antes de eu nascer, e quando eu fui
crescendo, minha mãe foi ficando cada vez mais viciada. Quando eu tinha
cinco anos, ela teve uma overdose e morreu.
— No começo, meu pai até tentou cuidar de mim, mas ele se culpava pela
morte da minha mãe e só conseguia ficar em paz quando estava bêbado. —
Ele parou por um instante, os olhos fixos em alguma coisa atrás de mim. —
Depois de alguns meses, foi demitido e, a partir daí, perdeu o controle de vez.
Por alguns anos, fiquei entre morar com ele e com a minha tia, a mãe da Lê,
sabe? Minha tia me pegava por uns meses, mas meu pai se sentia sozinho e
jurava que tinha superado de vez. Uma semana depois tudo voltava a ser
como antes, eu ia pra casa da minha tia e ele me buscava algum tempo
depois. — Os olhos dele começaram a tomar um tom avermelhado,
provavelmente o mesmo que estava nos meus. Arthur piscou algumas vezes
e, quando continuou, a voz rouca nem parecia a dele. — Acho que a gente
ficou nisso até eu fazer uns nove anos. Teve um dia em que eu estava na casa
dele e ele chegou mais bêbado do que o normal, se irritou porque eu não
tinha feito comida e começou a me bater.
Só percebi que minha mão tinha passado por debaixo da mesa e agarrado a
dele quando Arthur estremeceu. Foi um gesto involuntário, mas fiquei feliz
quando ele voltou a olhar para mim. Meu peito doía muito mais vendo o
sofrimento nos olhos de Arthur, mas, ao mesmo tempo, eu preferia que ele
soubesse que eu estava ao seu lado enquanto revivia seu passado.
— Já tinha acontecido outras vezes, mas, naquele dia, tinha uma garrafa de
cerveja no meio do caminho — ele continuou, a voz um pouco mais firme
agora. — Quando a minha tia viu o machucado, me pegou e avisou que
chamaria a polícia se ele tentasse encostar em mim de novo. E eu moro com
ela até hoje.
Arthur não contou tudo isso com a mesma pressa que eu tinha para colocar
os sentimentos para fora. Ele falou devagar, despejando todas aquelas
informações com a dor transbordando em cada palavra. E eu só conseguia
encará-lo, tentando não transparecer como estava surpresa. Eu sabia como era
difícil superar uma perda, e isso que sempre tive Theo por perto para me
ajudar em cada passo no caminho. Nem conseguia imaginar o quanto Arthur
tinha sofrido por lidar com a morte da mãe sozinho e ainda ter que aturar os
abusos do pai.
— Não lembro. — Arthur deu de ombros e se virou para mim, olhando nos
meus olhos em vez de fugir como eu sempre fazia. — Não me lembro de
quase nada daquele dia. Não sei se eu era muito novo ou se a surra foi tão
feia que eu simplesmente esqueci.
— Sua mãe também tinha problemas? — ele disse a última palavra como
se falar assim fosse mais fácil que admitir o problema em questão, apesar de
ter dado muitos detalhes há apenas alguns minutos.
— Não, ela só era solteira e não queria ter filhos… — Dei de ombros.
Talvez por ter tido pais tão incríveis como o Theo e o Rê, esse era um assunto
que tinha parado de me incomodar há muito tempo. — Meus pais estavam
morando juntos há alguns anos e pensavam em adotar, então foi tudo meio
natural, sabe? No fim, a única coisa que ela me deixou foi esse nome ridículo.
— Eu gosto de Lucélia! — Era a primeira vez que Arthur dizia meu nome,
e um arrepio percorreu toda a minha espinha. — Mas Lucy combina mais
com você.
Arthur tinha acabado de me contar boa parte da sua vida, e a história não
era nem um pouco fácil de engolir. Mas, de todas as frases que ele tinha dito,
foi essa que fez um nó se formar na minha garganta. Eu sabia que teria que
me esforçar para manter a comida no estômago sempre que o passado de
Arthur me viesse à cabeça.
A Rua das Acácias ficava longe o suficiente para irmos de moto, mas
fiquei feliz que Arthur não deu essa ideia. Eu precisava de cada segundo para
me preparar antes de chegarmos à rua em que Rê havia sofrido o acidente. A
cada passo, meus pés ficavam ainda mais pesados.
— Aqui foi o mais longe que já cheguei — falei seis quadras depois.
Arthur passou a mão pela minha e a apertou com cuidado. O toque não
durou mais que dois segundos, mas o sentimento da sua pele na minha me
deixou em chamas mesmo depois que ele se afastou.
— Quer que eu vá lá antes você? — Seu tom era cuidadoso, quase como se
sua voz acariciasse meus ouvidos.
— Pode ficar à vontade — falei, abanando as mãos como se não fosse nada
demais.
Mas era. E Arthur sabia disso, tanto que me lançou um último olhar antes
de se afastar, como se quisesse ter certeza de que eu ficaria bem.
Ele demorou poucos minutos, mas pareceu um dia inteiro com o meu
coração batendo umas quatro vezes por segundo. Eu estava ansiosa para
saber o que ele encontraria lá, mas também tinha um medo irracional de que
ele fosse sofrer um acidente quando chegasse na esquina em que Rê morreu,
como se estivesse cometendo uma afronta ao destino.
— E aí? — perguntei com pressa, antes mesmo que ele pudesse parar na
minha frente.
Não sabia o que eu estava esperando. Talvez que ele ficasse chocado ou
que tivesse encontrado alguma marca do acidente, mesmo depois de cinco
anos. Ou que pelo menos tivesse alguma sensação estranha no ar. Eu não
conseguia aceitar que a Rua das Acácias fosse “só uma rua normal”. Isso,
mais até do que a necessidade de ficar mais perto de Rê, me fez querer ir até
lá.
Caminhei sem hesitar até faltar dois passos para dobrarmos a esquina e
encararmos o meu passado. Faltava tão pouco que eu podia sentir a energia
da rua tanto quanto sentia meu estômago se contorcendo. Mas, ao mesmo
tempo, era como se uma força física me prendesse ao chão, querendo me
impedir de me livrar daquela parte de mim que eu não podia mais carregar.
— Eu não consigo... — Minha voz saiu chorosa e dei um passo para trás.
— Preciso de mais um tempo.
— Consegue, sim. — Arthur pegou minha mão de novo, e dessa vez não
me soltou. — Eu estou com você.
— É fácil falar. Quando foi a última vez que você enfrentou o seu passado?
— Não queria soar agressiva, mas a acusação simplesmente escapou antes
que eu pudesse me conter.
A pergunta pegou Arthur de surpresa e ele olhou ao redor, como se
procurasse alguma rota de fuga. Quando voltou a me encarar, seu rosto estava
impassível, mas ele segurava minha mão com mais força do que antes.
— Meu pai parou de vir atrás de mim há alguns anos... — Ele encolheu os
ombros. — Não é como se eu pudesse fazer alguma coisa.
— Claro que pode! Talvez esteja na hora de você ir atrás dele — falei
devagar, a voz quase um sussurro, com medo da reação de Arthur.
A intensidade no olhar dele era tanta que tive certeza de que ele queria me
fazer recuar, mas eu não daria para trás agora que tinha tocado no assunto.
Sem contar que cada minuto de conversa, era um minuto a mais que eu tinha
para me preparar.
— Talvez eu não queira... — Tudo era tão simples, tão monossilábico com
ele.
— Não sou psicóloga nem nada, mas você tem aquele adesivo do Foo
Fighters na sua moto, você quer trabalhar com carros… E tudo isso é por
causa do seu pai, não é? — Os olhos dele foram ficando mais estreitos, e eu
soube que estava na hora de parar, mas não conseguia fechar a boca. — Esse
não parece o tipo de coisa que alguém faz quando não quer ter nenhum
contato com o pai.
— Você não entende… A gente podia estar tão bem quanto você e o seu
pai — Arthur soltou minha mão, a voz dura, repleta de raiva e ressentimento.
Eu só não sabia se era por mim ou pelo pai dele. — Mas ele decidiu se
afundar na bebida e jogar tudo fora, então não venha me dizer que eu devo
fazer alguma coisa.
— É, mas até isso ele conseguiu estragar. — A voz de Arthur ficou ainda
mais tensa e ele fechou os olhos com força. — Minha tia descobriu há alguns
anos que tem Lúpus, e o tratamento está cada vez mais caro e mais invasivo.
Se meu pai não tivesse me largado pra morar com eles, meus tios teriam
muito mais dinheiro agora.
A súplica no olhar dele fez meu estômago doer. Arthur não suportava mais
falar sobre o pai tanto quanto eu não queria encontrar o meu. Mas se ele tinha
conseguido se abrir daquele jeito comigo, eu também conseguiria enfrentar
meus fantasmas.
Quando enfim chegamos à Barbearia do Zé, o lugar exato onde meu pai
havia batido o carro cinco anos antes, tudo o que fiz foi me virar para encará-
la. Meu primeiro pensamento foi que ela estava exatamente igual à foto que
eu havia visto na matéria sobre o acidente, com exceção do poste tombado
que agora estava em pé onde deveria estar. Sem pressa, virei-me e encarei o
cruzamento do outro lado, o semáforo que o cara bêbado tinha ultrapassado e
a rua por onde meu pai tinha capotado até enfim bater no poste.
Estar ali era bem diferente do que eu esperava: nada de energia pulsante,
nada de flashbacks na minha mente sobre o que acontecera com meu pai. Era
até um tanto decepcionante perceber que eu tinha feito todo aquele drama
para nada. Ao mesmo tempo, porém, era isso que mais importava: ver com
meus próprios olhos que o monstro que eu havia alimentado por cinco anos
não era real.
Rê não estava ali. Meu pai não parecia mais próximo de mim só porque eu
havia visitado o local de sua morte ou porque passava as férias a menos de
dez minutos de onde ele esteve pela última vez. Da mesma forma, eu não me
afastaria dele se Theo decidisse vender a casa na lagoa.
Arthur tocou minhas costas tão de leve que, por um momento, achei que
tivesse sido apenas o vento, mas sua mão continuou parada lá. E eu continuei
com os olhos fixos no mesmo lugar, tentando gravar aquela imagem na
minha cabeça e me convencer, de uma vez por todas, que meus monstros não
eram reais. Porque, afinal, eu tinha mesmo sorte de poder me despedir deles.
26
— Você acha mesmo que é uma boa ideia? — Minhas mãos tremiam no
guidom, mas o aperto de Arthur o mantinha firme sob nossos dedos.
Ainda assim, Arthur achava que era uma ótima ideia me deixar no
controle:
Foi assim que acabei agarrada ao guidom de novo, com Arthur sentado
atrás de mim, o corpo tão colado no meu que nem o vento passava entre nós.
— Nervosa? — ele murmurou, o hálito cálido dançando pela minha orelha.
Cada vez que eu olhava para baixo, meu estômago se revirava. Se não
tivéssemos ido à Rua das Acácias há apenas alguns minutos, era provável que
eu jamais conseguisse encarar aquele morro e guiar a moto até lá embaixo —
não sem desmaiar no meio do caminho ao menos. Mas quando as imagens de
mim e Arthur atravessando o cruzamento juntos me vinham à mente, tudo
que eu pensava era que, se eu tinha sobrevivido à rua em que meu pai
morrera, eu conseguia lidar com um simples morrinho.
— Você dirigiu sozinha, parabéns! — Deve ter ficado óbvio que eu estava
mais feliz do que irritada porque Arthur apenas riu.
Por mais que eu não gostasse de admitir em voz alta que aquela manhã
tinha sido perfeita do início ao fim, Arthur merecia um agradecimento depois
de me ajudar a encarar meu passado e a ganhar mais confiança.
— Achei que você fosse gostar! — Arthur não conseguiu conter a risada, o
que causou outra gritaria, só que dentro de mim dessa vez. — Agora é melhor
me dar a moto, não sei se você já está pronta pra pegar a rodovia.
Meu peito ainda pulava de alegria e eu mal conseguia respirar, mas estava
mais do que satisfeita em passar o comando para ele de novo. Ainda assim,
não queria apenas subir na garupa e observar Arthur dirigir pelos próximos
dez minutos. Eu estava muito agitada para ficar parada. Cada vez que
pensava no que tinha acabado de fazer, a adrenalina me tomava e me fazia ter
vontade de correr, gritar, explorar o mundo ao nosso redor. Qualquer coisa
que não fosse apenas sentar atrás de Arthur enquanto pegávamos a
autoestrada de novo, como acabei fazendo.
Não pensei muito no que estava fazendo. Ignorei o bom senso e deixei que
minha mão deslizasse pela lateral da sua camisa, tocando um pedacinho de
pele que não era maior que o meu dedão. Torci em silêncio para Arthur não
notar, mas seu corpo todo estremeceu, causando arrepios pelas minhas costas
também. Talvez ele achasse que tinha sido apenas um acidente...
Foi tão repentino que nem tive tempo de reagir. Um carro apareceu do
nada, invadindo nossa pista durante uma curva. Se Arthur estivesse acima do
limite de velocidade, com certeza não teríamos escapado. Provavelmente
teríamos voado longe o suficiente para sequer sobreviver à queda.
Por um momento, foi como se a terra parasse de girar enquanto ele tentava
recobrar o controle da moto e nos manter de pé. Então, a moto deslizou para
o lado, forte o bastante para fazer minhas mãos desgrudarem de Arthur.
Foi rápido demais para eu conseguir ver qualquer coisa que não fosse o
chão se aproximando, mas tive tempo suficiente para sentir a dor excruciante
se espalhar por todo o meu corpo. E então, tudo ficou escuro.
27
Um carro tinha invadido nossa pista e nos jogado para fora. Talvez por
estar no controle, Arthur conseguiu sair com apenas alguns machucados leves
pelo corpo e o punho torcido. Eu que tinha levado a pior: minhas pernas
estavam cheias de arranhões, com algumas partes em carne viva, e meu corpo
todo doía como se eu tivesse passado o dia inteiro na academia. E a médica
ainda disse que tive sorte. Aparentemente, eu tinha caído tão perto das
árvores que era um milagre eu não ter quebrado nenhum osso ou até acabado
com alguma lesão cerebral mais forte do que a concussão que tive.
Arthur riu, mas de um jeito forçado que não chegou aos seus olhos.
— Eu sinto muito, muito mesmo! — A voz dele estava pesada e grave. —
Eu devia ter tido mais cuidado, ter prestado mais atenção no…
— É sério, se você não parar com isso, vou ter que pedir pra ficar internada
aqui por uns dois meses só pra ficar longe de você. — Os lábios dele se
esticaram ainda mais, então aproveitei para mudar de assunto antes que ele
insistisse: — O que a gente tem que se preocupar mesmo é como eu vou fazer
pra passar a noite aqui sem meu pai descobrir o que aconteceu. Talvez a
gente possa implorar pra Nati fingir que eu estou lá com ela ou… O que foi?
Uma careta enrugou todo o rosto de Arthur e ele desviou os olhos para a
janela no outro lado do quarto. Quando falou, sua voz era cautelosa:
— Meu Deus! Você está bem mesmo? — Meu pai correu até mim assim
que entrou no quarto, tocando meu rosto e minha barriga, como se precisasse
ter certeza de que eu estava inteira. — Eles falaram que você só bateu a
cabeça, mas você não está sentindo dor mesmo?
— Eu estou bem, pai — tentei garantir, mas ele mal parecia me ouvir.
— Quando o Arthur me ligou, eu achei que você estivesse morrendo. Você
não faz ideia do susto que me deu!
Então, do nada, ele desabou. Seu peso caiu sobre o meu peito, me tirando o
fôlego por um momento, e ele começou a chorar. Não um choro silencioso de
alívio, ele soluçava tanto que, se alguém entrasse no quarto naquele
momento, acharia que eu estava mesmo morrendo.
O sermão continuou por alguns minutos. Eu tentei interferir uma vez, mas
bastou meu pai me mandar ficar quieta para eu me encolher na cama e deixar
Arthur lidar com aquilo sozinho. Ele ouviu tudo em silêncio, apenas
assentindo e assumindo toda a culpa. Era como se os dois achassem que ele
tinha me amarrado no banco da moto e me arrastado até Içara contra a minha
vontade.
Ele merecia uma medalha por manter a compostura; eu, com certeza, não
conseguiria.
— Acho que você já fez o suficiente por hoje. — Meu pai cruzou os
braços, a voz ainda mais seca. — Vá pra casa de uma vez e conta pra sua tia
antes que eu vá lá fazer isso!
Arthur me olhou uma última vez, como se quisesse ter certeza de que eu
ficaria bem, e foi embora quando acenei levemente com a cabeça.
— Pai, eu não…
— Não vem com “pai” pra cima de mim, mocinha! — Ele não estava
gritando, mas sua voz ecoava por todo o quarto, como se estivesse rugindo de
raiva. — Você sabe muito bem que não pode sair pegando carona sem me
avisar, ainda mais de moto! Se eu soubesse que bastava um rapaz bonitinho
pra você descumprir minhas ordens…
— Pai, não é…
— Eu achei que tinha deixado bem claro que não suportaria se acontecesse
com você o que aconteceu com o Rê! — A voz dele ficou trêmula de novo e
ele precisou respirar fundo antes de apontar para mim e para meus
machucados. — E agora olha só pra isso!
O tom dele fez meu coração afundar no peito.
— Pai, eu só…
— Se você queria namorar com ele, por que não ficaram dentro do
condomínio ao menos? — Agora ele já nem estava mais brigando comigo,
parecia prestes a cair no choro de novo quando sentou na ponta da cama. —
Você não pensou em como eu ia me sentir?
Foi essa última frase que me quebrou de vez. Eu sabia muito bem como eu
tinha me sentido quando Rê sofreu o acidente, e jamais colocaria meu pai em
uma situação parecida de propósito. Eu não me arrependia de ter pedido para
Arthur me ensinar a dirigir simplesmente porque precisava daquilo, mas já
estava mais do que na hora de acabar com todos os segredos na minha vida:
— Ah... — A boca dele se abriu com o choque e ele piscou umas cem
vezes em dez segundos. Então, passou do estágio feliz-que-minha-filha-
sobreviveu para vou-te-matar-eu-mesmo. — Você estava tendo aulas de
direção? Eu achei que a gente já tinha decidido que você estava proibida! —
falou, dessa vez gritando de verdade.
Percebi como a frase soou errada quando o rosto dele foi tomado pela dor.
Não era minha intenção, mas parecia muito que eu estava jogando na cara
dele que ele mesmo tinha passado a vida toda com medo do acidente que
sofrera com a mãe quando era criança.
A parte do repouso, no entanto, não durou nem duas horas inteiras. Eu mal
havia fechado os olhos para tirar meu primeiro cochilo quando fui acordada
com alguém deitando ao meu lado.
— Minha perna — foi a primeira coisa que eu disse, grunhindo, quando ela
se esgueirou para debaixo da coberta e chutou minha canela sem querer.
— Ai, meu Deus, desculpa! — ela pediu de novo, a voz cada vez mais
manhosa.
Eu, definitivamente, não devia ficar feliz que Nati estava preocupada, mas
não consegui conter o sorriso quando notei seu rosto molhado. O acidente e
as dores por todo o corpo quase valiam a pena se esse era o único jeito de
fazer Nati falar comigo de novo.
— O que você está fazendo aqui a essa hora? — Meu tom era de
brincadeira, mas eu estava mesmo surpresa por ver Nati fora de casa antes do
meio-dia.
— Você acordou às oito por mim? — Minha voz ficou manhosa e tive que
me segurar para não abraçar Nati e implorar que ela nunca mais ficasse brava
comigo.
— Eu quase não dormi essa noite — ela disse, no mesmo tom. — Eu teria
ido ao hospital ontem, mas fiquei com medo de você ainda estar chateada
comigo.
— Que bom que você não foi — brinquei, tentando deixar o clima mais
leve antes que a gente começasse a chorar uma no colo da outra. — Acho que
meu pai era capaz de colocar até você de castigo se te visse por lá.
Nati deu dois tapinhas solidários no meu braço, um biquinho surgindo nos
seus lábios.
A pior parte era que Theo teve que desmarcar a janta e eu não pude
conhecer Carlos.
Quando Nati me pediu para contar como tinha sido a discussão, me encolhi
na cama. Meu rosto todo ardia só de pensar que meu pai achava que tudo
aquilo era culpa de uma paixonite por Arthur. Mas Nati era minha melhor
amiga, ela jamais me julgaria, mesmo que eu estivesse me julgando. Então
expliquei o que tinha acontecido desde o começo, terminando com as últimas
palavras do meu pai:
— E ele acha que tudo isso é culpa do Arthur — falei baixinho, os olhos
fixos na coberta em minhas mãos. — Até me proibiu de encontrar com ele.
Nati soltou uma risada alta que me fez me encolher ainda mais. A gente
não se falava há semanas, então era claro que ela não fazia ideia da confusão
em que minha cabeça se encontrava. Se soubesse, provavelmente não acharia
a situação tão engraçada.
— Que bom que isso não vai ser nenhum sacrifício pra vocês, né? — Ela
abriu um sorriso zombeteiro. — Pelo menos agora você tem um motivo de
verdade pra evitar o Arthur.
Quando olhei para Nati, com uma cara que dizia “eu não faço a menor
ideia do que está acontecendo comigo!”, seus olhos estavam arregalados. Ela
mordeu o lábio antes de perguntar, incisiva:
— Não é um sacrifício, é?
Mas, ao mesmo tempo, era de Arthur que estávamos falando! Ele me tirava
do sério quase sempre que estávamos juntos. Como eu podia simplesmente
ignorar quatro anos trocando farpas só porque agora eu sentia um arrepio na
espinha toda vez que ele me lançava aquele meio sorriso?
— Lucy! — Nati puxou o travesseiro apenas para encontrar meu rosto todo
em chamas. — O que está acontecendo?
— Eu… Eu não sei! — Eu queria parecer segura, mas minha voz tremia,
deixando óbvia a minha confusão. — As aulas têm sido muito divertidas. E
ontem ele fez um piquenique e me levou pra assistir ao nascer do sol e…
— Meu Deus! — ela gritou tão alto que, com certeza, até Arthur
conseguiria ouvir da casa dele. — Vocês se beijaram?
— Fala baixo! — Enterrei o rosto nas mãos. Já não bastava essa conversa
constrangedora, ela ainda precisava me lembrar de quando tentei beijá-lo. —
Mais ou menos.
Tentei explicar o que tinha acontecido depois da festa de Laura sem morrer
de vergonha. Para ajudar, os olhos de Nati ficavam mais arregalados a cada
palavra que eu dizia. Eu já achava toda aquela situação ruim o suficiente, não
precisava do drama de Nati piorando tudo.
— Isso parece ótimo — ela começou, em um tom baixo que deixava óbvio
que ela não achava tão bom assim. — Mas você não devia se empolgar tanto.
Quer dizer, o Arthur passou por muita coisa e…
Ela deixou o resto no ar, mas eu sabia que terminava com algo parecido
com “e ele não costuma se entregar a ninguém”. Ou seja, se eu não quisesse
me decepcionar, era melhor acabar com esses sentimentos antes que eles
evoluíssem para algo ainda maior.
— Eu sei — respondi, sem me importar em esconder a tristeza.
Eu não podia estar mais feliz por finalmente ter minha melhor amiga de
volta, mas, naquele momento, quase quis que Nati fosse embora.
— Ontem eu até consegui brincar de lutinha com a Lê. Acho que posso
voltar a dirigir antes do fim da semana. — Ele se escorou na parede e cruzou
os braços, um olhar tímido surgindo no rosto. Essa situação desconfortável,
como se a gente mal se conhecesse, era ainda pior do que quando ficávamos
nos alfinetando o tempo todo. — Será que vai demorar muito pra você dirigir
de novo?
— Não acho que a gente deva voltar a fazer as aulas, Arthur — consegui
dizer, devagar, querendo pegar cada palavra de volta assim que elas saíam da
minha boca. — Meu pai ficou irritado de verdade com o acidente. Ele disse
que se nos vir juntos, vai me obrigar a voltar para Araranguá.
— Eu posso falar com ele! — Ele tentou sorrir, como se a situação fosse
assim simples, mas eu conseguia ver a sombra tomando o verde de seus
olhos.
Eu queria, mais do que tudo, acreditar que a gente tinha uma saída: talvez
pudesse pedir para o Gui ou o Carlos tentarem fazê-lo mudar de ideia, ou
tomar ainda mais cuidado para que ele não descobrisse que a gente estava se
encontrando pelas suas costas.
Mas, depois de tudo que tinha acontecido, eu não podia trair a confiança do
meu pai mais uma vez. E também não podia arriscar tudo por causa de um
romance que com certeza acabaria ao fim do verão.
Eu queria tanto dizer que aquela era uma ótima ideia que meu peito chegou
a doer.
— Isso só vai piorar as coisas... — Meus olhos correram para o outro lado
do gramado, desesperados por qualquer coisa para encarar que não fosse
aquele sorriso triste no rosto de Arthur. — Eu não posso correr o risco de
deixá-lo ainda mais irritado, não faltando tão pouco pra viagem da Nati. É
melhor a gente... — Engoli em seco, tentando manter a voz firme. — É
melhor a gente não se ver por um tempo.
Um som estranho, parecido com um engasgo, saiu da garganta de Arthur.
Quando tomei coragem de olhar para ele, encontrei as sobrancelhas franzidas
e o rosto cheio de dúvidas.
— Deve ter alguma coisa que a gente possa fazer. Ele não sabia das aulas
até agora, a gente dá um jeito. — Seus olhos permaneceram grudados nos
meus o tempo todo, como se ele precisasse me convencer.
Tinha tanta coisa que eu queria dizer; concordar com esse plano ridículo
era só a primeira delas. Eu queria que Arthur soubesse que dirigir me deixava
mais feliz do que eu jamais tinha imaginado, e que eu nunca poderia
agradecê-lo o suficiente por ter me ajudado a superar meus medos. Mas eu
sabia que, se começasse a falar, acabaria perdendo a coragem de me afastar
dele.
— Mas se a gente…
Não deixei que ele dissesse mais nada, apenas entrei em casa, desesperada
para sair de perto de Arthur antes que eu mudasse de ideia e colocasse tudo a
perder por algo que jamais daria certo.
Tinha sido assim toda vez que alguma moto passava pela minha rua nos
últimos dias. Eu fazia questão de passar a maior parte do tempo na varanda,
quase como se estivesse me torturando de propósito, mas entrava em pânico
sempre que ouvia um motor.
Claro que eu não achava que Arthur me procurava sempre que saía ou que
chegava em casa, mas o medo de que ele tentasse falar comigo de novo — o
que ele não fez, diga-se de passagem — era tão grande, que eu não conseguia
conter o impulso de me esconder. O problema era que eu tinha o azar de
morar ao lado dele, então isso acontecia pelo menos duas vezes por dia.
Só que minha vontade de vê-lo era ainda maior que meu medo, então só
consegui esperar alguns segundos antes de esgueirar a cabeça para fora,
tentando vê-lo de relance. Eu já tinha feito isso umas três vezes, e Arthur
havia me pegado no flagra em duas delas. Mas, dessa vez, não foi ele que
encontrei olhando para mim. Nati caminhava na minha direção, balançando a
cabeça enquanto um olhar divertido se espalhava pelo rosto.
— Você sabe que dá pra te ver lá do outro lado da rua, né? — Ela abriu um
sorriso zombeteiro. — Quando você vai parar com isso e admitir que está
com saudades dele?
— Eu não estou com saudades dele. E só vou poder falar com Arthur
quando meu pai perceber que ele não teve culpa pelo acidente. — Revirei os
olhos, irritada só de me lembrar da ameaça. — Vocês dois saíram juntos?
Assim que me dei conta de que meu futuro seria traçado a qualquer
momento, comecei a perder o controle. Aquela ansiedade que eu sentia nos
dias de prova voltou com tudo e precisei respirar fundo e contar até cinco. O
pior de tudo não era nem o medo de não passar, era a dúvida sobre mudar de
vez para Florianópolis e vender essa casa. Isso, é claro, se meu nome
estivesse na lista.
— Respira fundo — Nati disse, enquanto eu sentava na mesa e abria o
notebook. Ela sentou ao meu lado e apertou meu ombro com força. — Você
já passou pra UNESC, lembra? Não importa o que acontecer, você já vai
estudar Medicina.
Ela tinha razão. Por mais que eu não quisesse ficar presa em Araranguá
para sempre, não teria que fazer mais um ano de cursinho. E, se eu
continuasse morando em Araranguá, não precisaria vender a casa na lagoa.
A gente havia conversado sobre aquilo pelo menos uma vez por semana
durante o ano do cursinho. Sempre que eu entrava em pânico, ela falava o
quanto seria maravilhoso morar o ano inteiro a apenas uma hora de onde ela
estudava. Mas agora, ela não tinha o que dizer para me acalmar. Agora, o
intercâmbio já era uma presença física, só esperando para tomar todo o
espaço na sala.
Assim que Nati foi embora, voltei ao meu lugar na rede, fingindo estar
concentrada no livro enquanto ouvia Arthur e Lê brincando e lavando a moto.
Dessa vez, eu queria que ele fosse falar comigo. Não sabia se era culpa do
resultado do vestibular ou do que Nati tinha falado, só sabia que tinha
cansado de fugir dele. De qualquer jeito, Arthur sequer me cumprimentou.
Eu estava tão distraída que não percebi quando um cara parou o carro na
frente da minha casa, e só notei que ele queria falar comigo quando já estava
na metade do meu gramado.
— Não, mas já deve estar chegando... — Era a maior mentira. A gente mal
se falava desde a briga, então eu não tinha ideia de onde ele estava ou quando
voltaria, mas não queria que o cara achasse que eu ficaria sozinha por muito
tempo. — Posso dar algum recado?
Tudo que fiz, no entanto, foi encará-lo enquanto suas palavras ecoavam na
minha mente. “Vi essa casa à venda...” A única coisa que eu pretendia fazer
era empurrá-lo até a saída porque, definitivamente, a casa não estava à
venda.
Será que meu pai tinha visto o resultado do vestibular? Mas ele não teria
conseguido fazer um anúncio em questão de horas, ele teria que tirar fotos,
consultar alguém sobre valores... O que significava que ele já tinha colocado
antes de eu ter passado.
Como ele tinha coragem de fazer isso sem falar comigo? Quer dizer, não
me contar que estava namorando Carlos — mesmo que há meses — era uma
coisa, mas a venda da casa da lagoa me afetava diretamente. Aquela casa era
minha também! Como ele podia fazer isso, sabendo o quanto eu amava esse
lugar?
— Mas seu pai não é o Alberto? — Ele me olhou de cima abaixo, os olhos
semicerrados. — O anúncio estava no nome dele.
— Ah... — Soltei uma risada estridente que só deixou a mentira ainda mais
escancarada. — É que o antigo dono também se chamava Alberto.
Coincidência, né?
— Vocês deviam pedir pro cara tirar o anúncio então — disse, com um quê
de irritação. — Assim as pessoas não perdem tempo vindo até aqui.
Se meu pai venderia mesmo a casa, sem sequer me avisar, então estava na
hora de eu aproveitar os dias que me restavam como bem entendesse.
Antes que pudesse mudar de ideia, pulei o muro entre nossas casas e
caminhei com passos firmes até Arthur. Eu sabia que ele tinha me visto
porque seus ombros se retesaram assim que pulei em seu gramado, mas ele só
levantou os olhos quando eu já estava perto demais para ser ignorada.
Apesar de eu ter dito que queria me afastar há pouco mais de uma semana,
Arthur não pensou duas vezes antes de perguntar aonde eu queria ir. Eu não
devia ter me surpreendido, afinal, sempre que a gente discutia, ele preferia
agir como se nada tivesse acontecido.
No fim, não foi tão assustador quanto pensei que seria. Era quase natural
sentir minhas pernas encostando nas de Arthur, o calor se espalhando do
corpo dele para o meu. Segurar na cintura dele por quase dez minutos me fez
ter certeza de que eu continuaria desrespeitando o castigo do meu pai, nem
que fosse só para ficar agarrada ao abdome de Arthur de novo.
O estúdio que ele escolheu era pequeno, todo em tons pastéis e de marrom.
Fui direto para o balcão com um misto de energia e empolgação correndo
pelo meu corpo, enquanto Arthur se dirigia para o outro extremo e analisava
uma parede cheia de desenhos e fotos de tatuagens. Uma boa desculpa para
não ter que conversar comigo.
— Eu queria fazer uma tatuagem — falei antes mesmo que o homem alto e
magro pudesse me desejar uma boa tarde.
— Por favor, não me diz que precisa marcar horário — forcei a voz
manhosa que convencia meu pai a fazer qualquer coisa. Ultimamente, quase
qualquer coisa.
O cara fez uma careta, mas começou a folhear outra agenda. Finalmente,
Arthur decidiu que não podia mais ignorar o problema e se aproximou do
balcão, mas manteve certa distância de mim.
— Uma cliente desmarcou hoje, mas o horário dela era daqui 40 minutos
— o homem disse. — Se não for um desenho muito grande, a gente dá um
jeito.
Por mim estava ótimo. Eu não tinha nada melhor para fazer do que me
esconder do meu pai e evitar outra briga por causa do anúncio da casa. Sem
contar que, assim, eu teria 40 minutos para encontrar um jeito de fazer Arthur
me perdoar. Isso, é claro, se ele não decidisse me deixar ali sozinha.
Com a casa à venda, faltava pouco para a lagoa não passar de uma
lembrança, então a tatuagem tinha que ser uma forma de levar aqueles verões
sempre comigo. Eu precisava de um desenho que simbolizasse os cinco anos
que eu tinha passado naquela casa e o amor que eu sentia por aquele lugar.
Já estava bem perto do que eu imaginava, mas antes de decidir que estava
pronto, me lembrei do meu pai dizendo que as pessoas não confiavam em
médicos tatuados. Por um momento, considerei se não seria melhor fazer um
desenho minimalista no tornozelo ou atrás da orelha. Mas foi só o
pensamento cruzar minha mente para perceber que aquela não seria eu.
Então peguei a caneta de novo e, em vez de começar uma outra ideia,
preenchi todo o espaço em branco da palmeira. Era simples, mas aquele preto
chapado representava exatamente o que eu sentia.
Se ao menos Arthur não fosse tão seco e direto, a conversa poderia ter
durado mais que um minuto. Ótimo, agora a gente só precisava arranjar
assunto para os outros 29 minutos.
— A base representa a minha força, as raízes que criei com meus tios e
tudo que eles fizeram para me sustentar, em todos os sentidos... — A voz
dele ficou rouca, mas o rosto de Arthur continuava impassível. Eu podia
apostar que meus olhos já pinicavam mais que os dele. — E o aniversário da
Lê está em cima porque é ela que me faz sonhar, me fazer querer ser o
melhor possível e ir mais longe pra dar pra ela tudo que meus tios me deram.
Essa era a resposta que eu esperava, a resposta que fez com que eu me
arrependesse por cada segundo que a gente tinha ficado sem se falar.
— Nem todo mundo é criativo como eu! — Ele estalou a língua, mas abriu
um daqueles sorrisos que mal curvavam a boca.
Arthur já estava sorrindo e fazendo piada. Isso fez meu coração se aquecer
e disparar ao mesmo tempo. Será que se eu pedisse para marcar a tatuagem
para às dez da noite, ele continuaria ali conversando comigo?
Bati de leve no ombro dele, sem conseguir impedir que meus lábios se
esticassem também. Isso só fez com que ele sorrisse ainda mais, e eu me
afastei, as bochechas em chamas.
— Então — ele começou depois de pigarrear, seu rosto tão vermelho
quanto o meu —, seu pai ainda está muito bravo?
Antes que eu pudesse dizer que a gente teria que sair escondido do meu pai
— o que estava tudo bem por mim, na verdade —, a tatuadora apareceu e
acabou com qualquer clima que tivesse surgido entre nós.
No fim, nem foi tão ruim assim já que Arthur me seguiu para dentro da
sala, com apenas as pontinhas dos dedos tocando os meus.
31
O único problema era que aquela era exatamente a parte que encostava em
Arthur quando eu me segurava nele em cima da moto. E, por mais que não
tivesse doído quase nada para fazer — parecia mais que eu estava sendo
arranhada diversas vezes por um filhotinho de gato do que por uma agulha
—, eu tinha medo de me machucar encostando nele. O toque de Arthur me
causava todo tipo de sensações... Era melhor não arriscar.
Foi tão cansativo fingir que eu não percebia e ainda ficar me perguntando
em que ele estava pensando, que no fim a dor da tatuagem foi a menor das
minhas preocupações.
Em vez de ficar feliz que eu estava disposta a enfrentar meu pai, Arthur
pareceu preocupado.
— Seu pai não vai querer voltar pra Araranguá se vir a gente junto?
— Tem certeza de que é por isso que você não quer me deixar na frente de
casa? Não tem nada a ver com o fato de eu ter dito que ele estava puto com
você? — Ergui as sobrancelhas, um sorriso debochado brincando no rosto. —
Não se preocupa, já está escurecendo. Ele nem vai ver a gente.
Arthur balançou a cabeça, deixando claro, mais uma vez, que desaprovava
a ideia, mas me entregou o capacete velho e subiu na moto mesmo assim.
Eu não tinha mais nenhum motivo para ficar ali, mas ainda não conseguia
me forçar a pular para o outro lado.
— Você precisa entrar agora? — Não era uma resposta à sua pergunta,
mas era outra forma de deixar claro que eu não pretendia fugir outra vez.
— Tem mesmo bastante palmeiras aqui — ele apontou para a rua, um quê
de divertimento na voz —, acho que não tem homenagem melhor pra esse
lugar.
— Vou pensar no seu caso... — Ele fez uma careta, como se estivesse
mesmo considerando, mas então um sorriso largo tomou seus lábios. Seus
olhos caíram para o meu desenho e ele ficou sério. — Você ainda sente muita
falta dele?
— Todos os dias. Às vezes dói tanto que eu acho que não vou conseguir
respirar. — Eu sabia que Arthur negaria que sentia saudades de seus pais, que
ele só se permitiria sofrer pelos tios ou pela prima, mas não consegui conter a
pergunta: — Você sente?
Por um instante, ele apenas me encarou com uma expressão confusa, mas
então deve ter percebido o que eu queria saber já que seus olhos se
estreitaram e sua boca virou uma linha fina.
A última coisa que eu queria era apagar aquela felicidade do rosto dele,
mas Arthur só falava sobre si mesmo quando estávamos sozinhos e, ali no
escuro, parecia muito mais fácil conversar sobre essas coisas difíceis. Sem
contar que foi ele quem começou o assunto.
Eu queria dizer que dava, sim, mas achei que isso só o deixaria ainda mais
retraído.
— Você não faz ideia das coisas que ele fez... — Um olhar perigoso tomou
seus olhos, deixando claro que eu estava ultrapassando todos os limites. —
Ele não merece uma segunda chance.
Eu realmente não fazia ideia de como era estar no lugar de Arthur, ter
suportado tudo que ele suportou, então provavelmente não deveria me meter.
Mas, desde que ele me levou à Rua das Acácias, eu sentia como se fosse
obrigada a retribuir o favor que ele tinha me feito.
— Não merece mesmo — falei com a mesma convicção que ele —, mas
você merece.
Arthur fez uma careta e voltou a encarar a palmeira. Era seu jeito de me
avisar que o assunto estava encerrado. Só que eu ainda não estava pronta para
desistir. Eu podia sentir que Arthur só precisava de mais um empurrãozinho,
e eu queria ser a responsável por ele.
Então, em vez de me afastar como ele queria, me aproximei ainda mais, tão
perto que toda minha coxa tocava na dele. Pousei uma mão no braço de
Arthur e, embora ele não tenha se virado para mim, falei:
— Olha, você ainda era muito novo quando sua mãe morreu, então talvez
não se lembre direito de como é perder alguém, mas eu me lembro — minha
voz ficou instável com a torrente de lembranças do Rê —, eu lembro como é
se arrepender por não ter feito um milhão de coisas antes de ser tarde demais.
Arthur finalmente voltou a me olhar. Ainda dava para ver a raiva lá dentro,
mas eu também via um pouco mais de suavidade naquele mar verde.
— Mas seu pai te amava. — Seu tom já não estava mais tão áspero.
Eu queria poder dizer que o pai dele o amava também, porque devia ser
simplesmente horrível se sentir abandonado daquele jeito. Mas eu não queria
dizer algo que não sabia se era verdade, ainda mais porque não era o que
Arthur precisava ouvir naquele momento.
— Se seu pai não tiver mudado, você sempre pode se afastar dele de novo.
— Minha própria voz foi ficando baixinha e suave — Eu não quero te
convencer a fazer nada que você não queira e nem te colocar numa situação
que possa te fazer mal, mas você só vai saber se der uma chance pra vocês
dois.
Minha boca se abriu para repetir o que ele tinha me dito depois do
aniversário de Laura. Nós tínhamos acabado de falar sobre um assunto
pessoal demais e Arthur estava confuso, não estava pensando direito. Eu não
podia beijá-lo naquelas condições!
Mas nenhuma palavra saiu. A verdade era que fazia tempo demais que eu
queria beijá-lo, não importava quais fossem as condições. A gente poderia ter
acabado de sofrer outro acidente que mesmo assim eu ia me importar mais
em sentir a boca dele na minha do que com a minha saúde. E, agora que eu
parava para pensar, meu coração estava mesmo tão acelerado quanto naquele
dia.
Por isso, quando seu rosto se aproximou devagar, me dando uma chance de
recuar, apenas acabei com a distância entre nós e encostei meus lábios nos
dele.
Dessa vez, não teve nada da inocência do outro beijo. Sua boca estava
ainda mais quente do que eu me lembrava e sua língua abriu caminho como
se ele estivesse tão desesperado por isso quanto eu.
Uma das mãos de Arthur segurou minha cintura com força enquanto a
outra puxava meu pescoço ainda mais para perto, os dedos enroscando nos
meus cabelos. Por mais que seu corpo inteiro deixasse claro que ele queria
aquilo tanto quanto eu, agarrei sua camiseta, com medo de que ele fosse se
afastar como da outra vez.
Então puxei-o para mais perto, deitando no muro enquanto sentia o peso de
cada pedacinho e de cada sentimento de Arthur sobre mim.
32
Era como se meu cérebro inteiro tivesse desligado, menos a parte que
pensava em como o corpo de Arthur se encaixava tão bem com o meu,
mesmo em cima de um maldito muro.
— Você não quer ir pra outro lugar? — Ele parou de me beijar por um
momento, embora continuasse mordiscando meu pescoço. Sua voz estava
rouca e deixava claro que ele queria que eu negasse. O que não era nenhum
problema porque eu também não queria perder tempo saindo dali.
Minha resposta foi puxar sua boca para a minha de novo e passar a mão
por debaixo da camiseta dele. Arthur tomou isso como um incentivo e suas
mãos começaram a dançar pelo meu corpo, acariciando minha cintura e
minha barriga.
Quando minhas mãos passaram por seu abdome, pude confirmar que a pele
dele era mesmo tão macia quanto eu imaginara.
— Eu acho que ela não está em casa — a voz de Gui reverberou por todo o
pátio. Naquele exato segundo, eu e Arthur paramos de nos beijar, imóveis.
— Lucy? — Dessa vez, a voz de Gui soou bem mais próxima, e então um
feixe de luz voou em nossa direção.
— Lucy… — Arthur sussurrou para mim, como quem diz “nem adianta”.
Então se virou para eles, cruzou os braços e perguntou em um tom sério: —
O que vocês estão fazendo aqui?
— Na última vez em que a gente se viu, vocês estavam rindo porque meu
pai é gay, se lembram? — Minha voz estava ácida e eu podia sentir meus
olhos pinicando, embora dessa vez tivesse mais a ver com raiva do que com
tristeza. Eu estava tão irritada que, só de me lembrar daquela noite, já tinha
vontade de virar as costas sem nem dar uma chance para eles se explicarem.
A desculpa era bem esfarrapada. Eu sabia que, mesmo que eles tivessem
ouvido a verdade de mim, a reação seria a mesma. Pelo menos, se
estivéssemos em um monte de gente como naquela noite. Eu já tinha ouvido
piadas suficientes no colégio para saber que em grupo esse tipo de coisa
parecia bem mais engraçada — principalmente para quem não era o alvo da
piada. Ainda assim, decidi aceitar o pedido de desculpas deles. Eu sabia que
não conseguiria simplesmente passar por cima de tudo e perdoá-los de um dia
para o outro, mas eu tinha passado tantos verões aturando Arthur, mesmo não
gostando dele... por que não fazer o mesmo com os dois daqui pra frente?
— Eu devia ter mandado meus amigos calarem a boca — Laura olhou para
o chão. Eu não conseguia enxergar seu rosto, mas podia apostar que ele
estava todo vermelho.
— Vocês têm sorte que meu pai não está em casa — falei, minha voz já
mais suave do que antes. — Não é só pra mim que vocês devem um pedido
de desculpas.
Gui tapou sua boca com a mão, tentando esconder o riso. Elói abriu os
lábios como se fosse falar algo, mas, antes que pudesse responder, Nati
balançou a cabeça e disse:
— O que vocês acham de a gente ir pra Iglu e deixar tudo isso para trás?
— Claro que ela daria um jeito de colocar sorvete no meio! Não que eu me
importasse.
O ideal era que meus amigos não me decepcionassem como eles tinham
feito, mas aquele não era um mundo perfeito. Talvez eu jamais conseguisse
olhar para os dois do mesmo jeito, mas o pedido de desculpas tinha trazido
um alívio tão grade que me vi segurando as lágrimas.
— Agora que a gente já sabe até sobre o seu pai, tá na hora de você falar
seu nome, né?
Meu lado rancoroso queria continuar com o suspense pelo menos até o fim
do verão. Quer dizer, se Elói e Laura não tivessem rido quando eu brinquei
que era segredo, eles já saberiam há anos. Mas como eu não aguentava mais
mentiras, talvez fosse mesmo hora de contar a eles. Antes que eu pudesse
falar, no entanto, Elói me interrompeu:
— Agora que eu parei pra pensar, faz todo o sentido! — Ele parecia ter
feito a descoberta do ano. — Era óbvio que seus pais tinham que ser gays pra
te dar um apelido desses.
Meus olhos se estreitaram e eu tive que respirar fundo para não ficar brava
com ele de novo.
— Eu não falei nada demais! — Ele fez uma careta, mas tinha um quê de
desafio nos olhos. — E você pretende fazer o que com as pernas desse jeito?
Eu conhecia Elói bem demais para saber que nada do que ele falava tinha
um pingo de maldade. Mesmo assim, me virei para Arthur e fiquei na ponta
dos pés.
Desde que me mudei para a lagoa, minha vida se resumia àquelas duas
personas. Por nove meses do ano eu era a Lucélia, a garota chata que eu
queria deixar para trás a todo custo. Nos outros três meses, eu era a Lucy que
eles conheciam e amavam. Mas talvez, agora que até eles sabiam quem eu
realmente era, não houvesse mais motivo para separá-las. A Lucélia tinha
ficado totalmente exposta e eles pareciam querer minha amizade mesmo
assim.
Então é claro que eu queria correr para a casa dele assim que acordei. Mas,
logo naquela manhã, meu pai decidiu ficar em casa em vez de fotografar. E
como eu ainda não estava pronta para falar com ele sem acabar em uma briga
por causa da venda da casa, fiquei trancada no quarto. A manhã passou
arrastada e eu aproveitei para escolher uma roupa e passar maquiagem com
calma. Só quando já estava cogitando me esgueirar pela janela foi que meu
pai gritou do corredor avisando que iria almoçar fora.
Não demorei nem um minuto para sair de casa, atravessando meu gramado
até o muro, mais saltitando do que andando. Mas a única pessoa à vista era a
Lê. Ela brincava com o labrador enorme da vizinha e só me notou quando
gritei seu nome. Nessas horas, sinal de celular fazia muita falta. Seria bem
mais fácil mandar uma mensagem para Arthur — não que eu tivesse o
número dele, ainda — do que ter que responder as centenas de perguntas de
quando eu iria brincar com ela de novo, ou como eu tinha acabado com todos
aqueles machucados, e se era mesmo minha culpa que a moto de Arthur
estava toda arranhada.
Eu já estava ficando tonta quando Arthur apareceu atrás dela. Por um
momento, meu corpo todo se iluminou só com a presença dele. Se ver Arthur
já me deixava em chamas, beijá-lo de novo acabaria me matando. Mas então
nossos olhares se encontraram e meu coração murchou no mesmo instante.
Arthur não parecia nem de longe tão feliz quanto eu. Seus ombros estavam
encolhidos e ele logo abaixou a cabeça de novo, deixando só seu cabelo
bagunçado à vista. Mas eu nem precisaria ver a preocupação em seu rosto
para saber que havia algo de errado.
— Meu pai acabou de sair, a gente pode ficar na minha casa se você
quiser.
A garagem era toda aberta e dava uma visão ampla da rua e da casa de
Arthur — ele tinha mesmo uma ideia de “conversa” bem diferente da minha.
Arthur se recostou na moto, como se precisasse do apoio para ter firmeza, e
cruzou os braços. Seus ombros ainda estavam tensos e ele olhava para o chão
enquanto eu trocava o apoio de uma perna para a outra e tentava me
convencer de que pressioná-lo seria ainda pior.
— Eu liguei pro meu pai — ele disse, depois do que pareceu uma
eternidade.
— Não foi. — Ele finalmente levantou a cabeça, e seu olhar deixou claro
que estava ainda mais tenso do que eu imaginava. — Ele não atendeu.
Assenti, embora ele não estivesse me olhando. Eu não fazia ideia de onde
aquela conversa acabaria, só sabia que queria voltar correndo para casa e
sentir de novo a felicidade daquela manhã.
Arthur continuou falando algo sobre prisão e me magoar, mas tudo que eu
ouvia era um zunido. Eu quase podia sentir meus neurônios trabalhando para
entender o que ele tinha dito, porque não era possível que tivesse falado que
seu pai matou uma família inteira em um acidente de carro. Eu obviamente
tinha entendido errado.
Ele não precisou responder, aquela expressão de pena e dor dizia tudo.
Eu não conseguia pausar aquele filme: Arthur com uma garrafa atrás do
volante passando por cima do meu pai.
Eu queria gritar.
— Lucy — Arthur segurou meu rosto com força, quase gritando —, você
está bem? Você está pálida.
A única vez que tive um ataque de pânico foi logo depois do enterro do Rê,
mas eu tinha certeza absoluta de que eu estava passando por isso de novo
naquele momento, ainda mais quando senti que minha bochecha já estava
encharcada.
Fechei meus olhos com ainda mais força, tentando fazer as lágrimas
secarem pelo menos dessa vez.
— Disso o quê? — Ele tocou meu braço de leve, mas eu me esquivei como
se tivesse levado um choque. — A gente?
— Desculpa ter mentido, mas eu não tenho nada a ver com meu pai, eu
nunca… — Ele parou de falar quando dei um passo para trás. Mas, em vez de
desistir, ele deu um passo para frente e tocou minha bochecha. Seu toque
estava mais firme agora, o que fez meu corpo todo estremecer e minhas
pernas darem mais dois passos para trás. — Lucy, não faça isso.
Eu não queria falar com ninguém, então quando Nati bateu à minha porta
naquela noite, simplesmente fingi que não estava em casa. Eu duvidava que
Arthur tivesse conversado com ela, mas Nati saberia que tinha algo de errado
assim que visse meu rosto inchado. E por mais que ela fosse minha melhor
amiga, Nati nunca tinha perdido alguém que amava, ela não entenderia o que
eu estava sentindo.
Então passei mais uma noite em claro. Nas poucas vezes que consegui
fechar os olhos, vi Arthur atropelando meu pai — às vezes, atropelando os
dois. Na última delas, acordei com meu próprio grito, as lágrimas já
escorrendo pelo rosto. Foi quando Theo decidiu intervir. Já estava na hora de
ele sair para fotografar, mas meu grito deve tê-lo assustado o suficiente para
passar no meu quarto, mesmo que ainda estivesse me evitando.
Por mais que eu sentisse como se toda minha energia tivesse sido sugada
durante a madrugada, me obriguei a sair da cama. Ao contrário de Nati, ele
entenderia perfeitamente o que eu estava passando. E não tinha nada que eu
precisasse mais naquele momento do que o colo do meu pai. Já não me
importava se ele vendesse a casa ou se ficasse bravo por eu ter saído com
Arthur, só precisava de alguns minutos chorando em seu ombro e sentindo
seu abraço.
— Eu não aguento mais essas férias, pai... — Minha voz saiu quase tão
destruída quanto eu me sentia. — Só quero voltar dois meses atrás ou avançar
pra quando tudo estiver bem de novo. Eu não consigo mais lidar com tudo
isso.
Em vez de contar sobre o pai de Arthur como queria, comecei pelo outro
assunto que precisávamos conversar:
— Por que você colocou a casa à venda? — Minha voz ainda estava fraca
e estrangulada, mas continuei mesmo assim. — Um cara veio dar uma olhada
uns dois dias atrás… Achei que você fosse falar comigo antes.
— É por isso que você está assim? — Apenas balancei a cabeça, e ele
suspirou. — Eu só queria adiantar tudo.
— É por causa dele que você quer tanto ficar? — Ele me afastou apenas o
suficiente para me olhar nos olhos. Quando assenti, mordeu o lábio inferior e
disse na voz mais crua que eu já escutara da sua boca: — Tem algo que eu
nunca te falei, mas que a gente já devia ter conversado há anos.
Eu não queria descobrir outro segredo. Queria implorar para ele continuar
mentindo sobre o que quer que fosse e me deixasse em paz na ignorância. O
que Arthur tinha feito comigo já era mais que suficiente. Mas não falei nada.
— O acidente do seu pai foi… — Ele parou para engolir em seco e então
falou tudo de uma vez: — Foi minha culpa.
— Como assim? — Aquela era a frase mais sem sentido que eu já tinha
ouvido na minha vida, mas seus olhos diziam que ele estava sendo
completamente sincero. — Foi um cara bêbado… E você estava em casa
comigo o tempo todo.
— Não, não isso. Ele não estava viajando a trabalho... — Seus olhos
começaram a transbordar e eu pude sentir as lágrimas que escorriam pelas
minhas bochechas também. Como eu ainda tinha água dentro de mim? —
Sua avó me ligou uns dois meses antes do acidente e me contou que tinha
descoberto um câncer. Seu pai… Seu pai achou que eu devia aproveitar o
tempo que me restava com ela.
Meu coração se apertou de saudade ao pensar que essa era mais uma
característica que eu tinha herdado de Rê: eu tinha tentado fazer a mesma
coisa com Arthur há apenas alguns dias.
Tudo que eu mais queria era que o Rê estivesse deitado ali na cama com a
gente. Nada disso teria acontecido se ele não tivesse sofrido aquele maldito
acidente.
— Você sabe como seu pai era teimoso. Ele tentou me convencer a falar
com ela e, quando eu neguei, ele achou que podia resolver tudo sozinho... —
De repente, as peças começaram a se encaixar: a coincidência de morarmos
tão perto de onde ele tinha sofrido o acidente, o fato de herdarmos a casa
apenas alguns meses depois… — Ele veio aqui na lagoa, os dois conversaram
durante uma janta e na volta pro hotel ele sofreu o acidente. Eu só descobri
porque sua avó me ligou umas semanas depois. — Sua voz ficou ainda mais
esganiçada e eu achei que ele não fosse conseguir terminar. — E eu só
mandei ela à merda. Depois de ter feito ele vir até aqui! E ainda não realizei
seu último desejo.
Minha respiração ficou mais pesada e foi minha vez de apertar Theo contra
mim. Como ele tinha sobrevivido cinco anos carregando aquele peso
sozinho? Se culpando por algo que jamais teria sido culpa dele?
Se o Rê estivesse ali, teria feito alguma piada, mandando meu pai parar de
ser dramático e tentar fazer com que tudo sempre fosse sobre ele. Mas eu
estava sozinha, e essa era uma das diversas coisas que eu e o Rê tínhamos de
diferente: eu não sabia deixar tudo mais leve como ele. Então só continuei
abraçando Theo com força enquanto chorávamos juntos.
— O que é isso no seu braço? — Ele apontou para a tatuagem quando sua
voz já estava mais calma.
Eu ainda estava pensando em como aliviar a culpa dele, mas deixei que
mudasse o assunto por um momento.
— É a sua cara! — Ele me olhou, seu sorriso mais aberto agora. — Tem
algum motivo especial ou você só gostou do desenho?
Ele assentiu devagar, aquela tristeza voltando aos poucos para seu
semblante.
Com o clima mais leve, decidi que era hora de contar sobre a minha
conversa com Arthur, antes que meu pai saísse do quarto e aquilo acabasse
me consumindo.
— Era por isso que você estava chorando? — Toda a rigidez abandonou o
rosto do meu pai e ele voltou a me abraçar com força.
— Eu ouço histórias assim direto e eu sempre fico mal por causa do Rê...
— Minha voz voltou a ficar instável, mas nem me importei. — Mas, por
algum motivo, quando o Arthur me contou… Foi quase como se eu estivesse
passando por tudo de novo, sabe?
— É porque você se importa com ele. — Sua voz estava suave, o queixo
repousando no topo da minha cabeça. — É diferente quando as histórias são
de pessoas que você não conhece.
Theo entendia que eu sabia que Arthur não tinha a menor culpa, que
aquela reação era apenas porque o assunto mexia muito comigo. Então, em
vez de me dizer tudo já estava na minha mente, mas eu não conseguia digerir,
ele apenas se levantou e esticou a mão para mim:
— O que você acha de sair dessa cama, tomar um banho e passar o dia
assistindo a séries comigo? A gente até pode ver House ou Grey’s Anatomy,
se você quiser! — A oferta significava muito já que ele não conseguia ver
nenhuma cena com sangue que já tinha vontade de vomitar.
Um sorriso enorme tomou seu rosto, como se ele não tivesse acabado de
me falar que passou os últimos cinco anos se culpando pela morte do meu
pai.
— Você sabe que foi um acidente, não sabe? — falei, já de pé, mas ainda
segurando as mãos dele com firmeza. — Ninguém tinha como saber que algo
do tipo ia acontecer. E o Rê odiaria que você passasse esse tempo todo se
culpando.
Ele apenas assentiu e abriu um sorriso triste. Eu sabia que não adiantava
insistir no assunto, ele não mudaria de ideia de uma hora para outra apenas
porque eu tinha pedido. Mas se a gente conversasse mais sobre aquilo, talvez
ele entendesse que algumas coisas estavam fora do nosso controle.
— Preciso da sua ajuda! — Gui entrou no meu quarto sem sequer bater à
porta.
Eu vinha usando desculpas como essa com todo mundo nos últimos dias.
Nati era a única que se recusava a ir embora e me obrigava a assistir a filmes
ou a jogar baralho à tarde toda, querendo eu ou não. Claro que eu não
admitiria, mas no fundo era exatamente disso que eu precisava. Gui, no
entanto, era bem mais fácil de convencer a me deixar em paz. Bastava dizer
que não estava no clima ou inventar que estava ocupada.
Até podia ser injusto descontar meu mau humor neles, mas eu
sinceramente não estava nem aí.
— Você não precisa de uma babá pra tirar fotos, Gui. — Minha voz saiu
mais áspera e sarcástica do que o necessário, mas eu estava sem a menor
paciência para drama. — Vai sozinho.
— Você não está entendendo.... — Então ele se virou para trás e tirou uma
câmera enorme da mochila, do tipo que custava uma fortuna e que meu pai
usava para trabalhar. — Eu comprei uma Canon. — Ele estava quase
choramingando. — Foi muito cara e agora eu preciso de uma modelo.
— Pede pra Nati ou pra Laura! — Abri o caderno de novo, dessa vez sem
disfarçar que só estava rabiscando para ver se ele entendia a deixa.
— Se você não for comigo — um quê sombrio tomou sua voz e seu rosto
—, vou ser obrigado a contar pro seu pai que você não “passou mal” depois
do aniversário de 17 anos da Laura.
Aquela era a pior “ameaça” que eu já tinha ouvido. Não só porque já fazia
mais de três anos e eu não dava a mínima se meu pai descobrisse, mas porque
ele, com certeza, soube que eu estava de ressaca assim que saí do quarto.
Contudo, aquilo me dizia duas coisas: Gui não era assim tão bom em guardar
segredos e ele estava mesmo desesperado.
Gui parou na areia e apontou para um ponto logo onde a água começava.
— Quem tem que fazer um bom trabalho é você! — Pisquei um olho para
deixar claro que era brincadeira, embora tivesse um fundo de verdade.
— É sério! — Dessa vez, a voz dele estava dura. — Essa é a minha chance
de mostrar pros meus pais que nasci pra isso. Eles precisam ver como eu sou
bom.
Se tinha alguém que entendia como era difícil querer mais do que tudo
fazer um curso enquanto só você acreditava no seu potencial, esse alguém era
eu. Então, se precisasse deixar meu mau humor de lado por algumas horas
para ajudar Gui a realizar seus sonhos, que assim fosse.
Foi a primeira vez que ficamos só eu, ele e a câmera. Não pude deixar de
me surpreender com a naturalidade com que ele fazia os cliques. Era quase
como ver um mini-Theo apontando a câmera para mim. Gui era uma dessas
pessoas que simplesmente tem aquilo dentro de si. Seus pais teriam que ser
tontos para desperdiçar esse talento.
— Sei lá... — Não estava a fim de discutir sobre a briga com Arthur com
mais ninguém. — Meu pai colocou a casa pra vender essa semana, e não tem
lugar que eu ame mais do que aqui — contei uma meia-verdade.
Eu esperava que aquele meu último apelo tivesse feito alguma diferença na
decisão do meu pai, mas a gente já tinha discutido sobre a venda tantas vezes,
e eu já tinha usado tantos argumentos, que eu duvidava que ele fosse mudar
de ideia.
— Ele me falou sobre isso. — Gui se levantou e estendeu a mão para mim.
— E também me contou que vocês conversaram sobre a visita que o Renato
fez à sua avó.
No entanto, talvez porque ele passasse tanto tempo com meu pai, parecia
certo conversar com Gui sobre o assunto. Seu tom não fazia tudo parecer
mais simples e mais leve como o de Arthur, mas tinha uma suavidade que me
deixava confortável. Era diferente, mas também era reconfortante.
— Ele disse que tinha medo de que você também o culpasse. — Gui me
olhou de esguelha, como se quisesse ter certeza de que não era o caso.
— Eu jamais faria isso! — Fui tão enfática que ele ergueu as sobrancelhas.
— Foi um acidente! Eu fico com vontade de chorar só de pensar no quanto
ele sofreu em silêncio todos esses anos. Quer dizer, ele não poderia ter feito
nada diferente!
— Foi exatamente o que eu falei pra ele, mas ele acha que devia pelo
menos ter perdoado sua avó — Gui suspirou, como se o assunto o deixasse
tão exausto quanto me deixava. — Eu só queria ter certeza de que você
também se sentia assim. Às vezes, é mais fácil encontrar alguém em quem
colocar a culpa.
— Bom, se alguém tem culpa nessa história, é a mãe dele — quase bufei
no final da frase, tão irritada que ficava só de pensar em como ela tinha
abandonado Theo quando descobriu que ele era gay, só porque ele não supriu
as expectativas que ela tinha criado.
Gui estava falando do Theo e da minha avó. Ele nem sabia o que tinha
acontecido com o pai de Arthur. Mas, por algum motivo, suas palavras
ecoaram na minha mente como se ele estivesse falando que eu não devia
projetar em Arthur as coisas que o pai dele tinha feito. Era óbvio e eu sabia
daquilo desde o início, mas foi como um estalo. Foi como se Gui tivesse
entrado na minha cabeça e me feito entender que Arthur não tinha nada a ver
com o acidente e eu não devia evitá-lo por isso.
Quando planejei cada detalhe daquela noite, pensei como seria romântico
aparecer sem aviso na janela de Arthur, exatamente como ele tinha feito
comigo no dia em que me levou para assistir ao nascer do sol. Na minha
cabeça, ele ficaria tão feliz que esqueceria na mesma hora como eu tinha
reagido mal quando me contou sobre seu pai.
Mas foi só quando fiquei plantada em frente à janela dele, tentando tomar
coragem para chamá-lo, que me dei conta de como aquele pedido de
desculpas era idiota.
— Quanto mais você esperar, pior vai ser — murmurei para mim mesma,
pela vigésima vez. — É só dar uma batidinha.
— Não é nada demais, Lucy. — Levantei a mão, mas parei com ela
fechada em frente a madeira. — Só bater e...
— Merda, merda, merda — sussurrei, dessa vez ainda mais baixo para que
ele não conseguisse ouvir.
Fiquei presa no lugar, tentando decidir, nos poucos segundos que tinha, se
era melhor encarar Arthur ou fugir e depois dizer que ele estava imaginando
coisas. Mas não consegui tomar uma decisão antes que ele abrisse a janela, os
olhos desconfiados.
Mas apenas respirei fundo, fechando os punhos com força para me manter
parada.
Não sei se foi apenas impressão minha, mas Arthur pareceu murchar com a
resposta. Ele cruzou os braços e se escorou no batente, encarando-me com
um olhar duro, sem nenhum resquício da surpresa de alguns segundos antes.
Arthur olhou para trás por um momento e encolheu ainda mais os ombros.
No mesmo instante, toda a vontade de tocar nele se transformou em medo de
ele me pedir para ir embora. Bom, ele tinha toda a razão de estar chateado
pelo jeito como reagi quando me contou sobre seu pai e eu entenderia
completamente se ele ainda não estivesse pronto para me perdoar. Mas meu
corpo todo doía só de pensar que, mesmo com tudo que eu tinha planejado
para aquela noite, ele podia não querer mais ficar comigo.
— O que você quer? — Seu tom era seco, mas nem isso impediu que a
vontade de entrar no quarto dele crescesse ainda mais.
Consegui me obrigar a ficar lá fora, mas não contive o sorriso que tomou
meu rosto inteiro.
— Meus tios estão na sala. Não acho que eles iam gostar de me ver saindo
com uma garota no meio da noite — eu queria acreditar que ele estava
brincando, mas seu tom deixava claro que falava sério.
Eu podia apostar que ele tinha dito aquilo de propósito. A gente saía direto
naquele horário durante as férias desde que ele tinha uns 16 anos. Eu
duvidava que seus tios fossem sequer notar. Sem contar que eles ao menos
sabiam que eu morava na casa ao lado, então não era como se eu fosse só
“uma garota”.
O Arthur não bebeu e não bateu no carro do meu pai. Ele não tem culpa.
Me agarrei a ela com força, tentando descontar meu medo nela e não em
Arthur. Minha ideia funcionou, e quando levantei a cabeça e encontrei seus
olhos verdes, o único motivo para a tremedeira nas minhas pernas era que eu
queria me aproximar ainda mais de Arthur.
— É mais fácil você colocar nas costas e... — Ele já estava me estendendo
a mochila de volta quando percebeu o que eu tinha em mente. Suas
sobrancelhas se ergueram e um sorriso singelo apareceu em seus lábios
enquanto ele cruzava os braços. — Você vai dirigir?
— Vou, sim.
— Achei que você tivesse medo de dirigir à noite... — Arthur parou por
um momento, aquela voz suave que ele usava sempre que estávamos na
moto. — O acidente do seu pai não foi logo depois da janta?
— Você está bem? — ele gritou por cima do barulho do motor, mas, de
alguma forma, sua voz continuava suave.
Eu não sabia dizer. Meu peito doía de tanto que meu coração martelava. E
o fato de eu mal enxergar a estrada não ajudava em nada a diminuir meu
nervosismo. Eu nem sabia como faria para desviar se aparecesse um sapo ou
algo ainda pior nas curvas!
— Estou — respondi, apesar de ainda não ter certeza se estava prestes a ter
um colapso ou não.
Não demorou muito até a curiosidade dele ser sanada. Parei a moto na
entrada do Clube de Veleiros, e Arthur desceu para abrir o portão
enferrujado, a interrogação brilhando em cada centímetro do seu corpo.
Quase podia ouvi-lo se contorcer para não fazer mais nenhuma pergunta
quando tirei uma lanterna de dentro da mochila e fiz sinal para ele me seguir.
Arthur parou na entrada do bosque por um momento, e me perguntei se ele
também estava com medo, se a escuridão também o deixava nervoso. Mas
então vi suas sobrancelhas erguidas e entendi o que ele imaginava que a gente
ia fazer lá dentro.
Ele soltou uma risada baixinha e, dessa vez, fui eu que tive que me segurar
para não perguntar se ele estava pensando o mesmo que eu.
Passamos o caminho todo em silêncio, e eu só não tentei puxar assunto
porque minha mente não esquecia as sobrancelhas erguidas dele e eu não
queria passar ainda mais vergonha.
Mas então, mais rápido do que eu esperava — talvez por causa de todo
aquele nervosismo —, me vi parada na entrada da clareira.
— Chegamos!
37
Arthur não disse uma palavra sequer quando o peguei pela mão e o guiei
até o centro da clareira. Ele, com certeza, conseguia sentir o tremor nos meus
dedos, mas eu só queria que ele soubesse o quanto eu me importava, que
aquela era minha forma de retribuir o que ele fez por mim quando me levou
para ver o sol nascer. Talvez a vista da clareira não fosse de tirar o fôlego,
principalmente porque não dava para enxergar quase nada só com a luz da
lua, mas ainda era um dos lugares mais bonitos que eu já tinha visitado.
Depois de acender a primeira vela, virei-me para ele com a expressão mais
irritada que eu conseguia fingir, mas foi tudo por água abaixo quando
encontrei o sorriso preguiçoso no rosto dele.
— A gente não ia conseguir ver nada de qualquer jeito por causa das
árvores — falei, tentando impedir, à toa, que meus lábios se curvassem
também.
Mas em vez de fazer o que eu tinha pedido, ele iluminou o chão ao nosso
redor, a surpresa tomando seu rosto. Arthur expirou devagar uma vez
enquanto observava o manto roxo aos nossos pés.
— Viu, meu lugar não é tão ruim assim — brinquei, feliz que o tom
zombeteiro tinha voltado para a minha voz. — Agora vira a luz pra cá.
Arthur demorou mais alguns segundos, mas enfim colocou o feixe onde eu
apontava, e pude me curvar sobre a segunda vela. Depois do que pareceu uma
eternidade — pelo visto, não ficava assim tão mais fácil com a ajuda dele —,
consegui acender as cinco e me juntar a Arthur na toalha para apreciar a vista.
A diferença não era tanta, mas agora conseguíamos ver com nitidez as
flores que se espalhavam pelo chão, e, por mais que minha escolha de velas
não tenha sido das melhores, a clareira parecia mesmo mais romântica.
— Agora a gente só tem que cuidar pra não colocar fogo no bosque. —
Arthur me olhou de lado, o sorriso tomando todo seu rosto.
Bati com o ombro de leve no dele, me deixando ser tomada pelo alívio.
Mesmo que a gente só deitasse e observasse o céu estrelado, todo o trabalho
para preparar o piquenique teria valido a pena.
Dessa vez, Arthur já estava rindo e agindo normalmente ainda mais rápido
do que no dia em que fiz a tatuagem. Depois de tudo o que ele tinha me
falado, eu suspeitava que era porque Arthur se culpava por ter me contado
sobre o acidente do pai — o que só me dava mais um motivo para me
desculpar. Eu realmente queria apenas fingir que nada tinha acontecido como
da outra vez, mas sabia que não podia fazer aquilo de novo. Não podia deixar
que Arthur se culpasse por algo que nenhum de nós tinha controle. Então me
obriguei a falar enquanto ele dava a primeira mordida no sanduíche:
— Desculpa por ter reagido tão mal — tentei manter a voz firme, mas ela
insistia em tremer. — Eu devia ter deixado você se explicar, não devia ter
fugido.
Arthur parou a mão a meio caminho da boca e me lançou um olhar que era
profundo e ao mesmo tempo suave.
— Não foi sua culpa. Eu teria reagido assim mesmo que você tivesse me
contado no primeiro dia. É um assunto complicado pra mim. — Eu queria
virar para o outro lado da clareira, escapar daqueles olhos verdes que
pareciam enxergar tudo dentro de mim, mas era como se Arthur tivesse um
magnetismo que me impedia de me afastar. — E, por favor, não deixa de
procurar seu pai por minha causa.
Tudo bem que talvez ele só ficasse ainda mais decepcionado, mas, depois
do que meu pai havia dito sobre se arrepender de não ter dado uma segunda
chance à mãe, eu só tinha mais certeza de que Arthur precisava fazer aquilo.
Pelo visto, ele também tinha, porque parecia certo da sua decisão.
— Veremos! — Sua voz ficou um pouco mais suave quando ele voltou a
me olhar. — Lucy, eu preciso saber de uma coisa.
— Eu preciso saber se a gente vai ficar nesse vai e volta. Eu quero estar
preparado se você for sumir assim de novo.
Já estava com uma resposta ácida a caminho da boca, pronta para dizer que
ele tinha feito o mesmo mais de uma vez, quando me dei conta de como
aquilo devia ser difícil para ele.
— A gente não vai ficar nesse vai e volta — falei, tentando esconder o
quanto meu peito doía. Eu não podia mudar o passado, mas podia garantir
que não o abandonaria de novo. — Eu não devia ter aceitado quando meu pai
me proibiu de te ver, e muito menos ter fugido quando você me contou do
acidente. Eu só... não conseguia parar de pensar no acidente do Rê.
— Como assim?
Virei meu corpo de lado, esperando encontrar a resposta no rosto dele, mas
Arthur ainda olhava, impassível, para o céu.
Ele disse de um jeito tão simples, como se sua frase não tivesse lançado
uma fisgada bem no meu peito, que fiquei sem fala por um momento.
Quando consegui me recuperar, minha voz estava alguns tons mais baixa.
— O que seu pai fez não define quem você é. — Eu tinha que agradecer
por Arthur não saber que eu tinha passado os últimos dias vendo os dois
como uma pessoa só. Eu havia errado ao julgá-lo pelo que seu pai fez, não
podia deixar que ele fizesse o mesmo. — Cuidar da sua tia e da Lê, me dar
aulas de direção e me levar pra ver o sol nascer… Isso define quem você é.
Eu sinto muito por ter feito você duvidar disso.
— Eu preciso que você tenha certeza disso. — Ele me encarava com tanta
intensidade que era como uma força física sobre mim. — Eu não consigo
ficar na casa ao lado te vendo todos os dias e me perguntando se hoje é o dia
em que você vai sumir da minha vida de novo.
— Você não faz ideia de como é impossível ficar tão perto de você — ele
me interrompeu com a voz rouca — e não poder te beijar ou te sentir tão
perto de mim de novo. Quando você fica agarrada em mim em cima da moto,
minha vontade...
Ele não terminou, a voz sendo substituída pelas imagens de tudo o que eu
queria que Arthur fizesse.
Faltava menos de 24 horas para irmos embora da lagoa e, por mais que eu
quisesse que as férias durassem mais seis meses, também estava louca para ir
para Porto Alegre de uma vez.
Era impossível não pensar em quanta coisa tinha acontecido em tão pouco
tempo. Aquele era o verão em que eu deveria ter aproveitado o quanto
pudesse a lagoa e meus amigos, para o caso de meu pai decidir mesmo
vender a casa. Era para eu ter passado dois meses calmos, tomando sorvete
com Nati e saindo com o pessoal.
Eu estava muito empolgada por ter passado nas três universidades, mas
tentava arranjar qualquer desculpa para adiar a viagem enquanto fazia as
malas. Meu pai queria passar uma semana em Araranguá resolvendo
pendências antes de irmos para Porto Alegre procurar um apartamento para
mim e fazer a matrícula. Mas quem precisava de sete dias em casa quando
aquela era a última vez em que eu veria Nati pelos próximos dois anos?
Nati vinha me ajudando a arrumar tudo há dias, como se ela mesma não
tivesse uma viagem muito maior com que se preocupar. Ainda assim, ela só
percebeu quanto tempo ficaríamos sem nos ver quando fechei minha mala e
ela teve um “ataque súbito de alergia” que deixava seus olhos marejados o
tempo todo. Depois de ouvir a desculpa esfarrapada, fingi não notar como ela
estava triste. Era isso ou eu mesma teria uma alergia que me faria chorar que
nem criança.
— Pode pegar todos se quiser — falei, sem conseguir disfarçar que estava
fungando.
Normalmente, eu não deixaria ninguém mexer na parede. Aqueles eram
meus desenhos favoritos e eu vinha escolhendo um por um há anos. Mas
levando em conta que eu ficaria 24 meses sem ver a Nati, dar alguns
desenhos a ela era o mínimo que eu podia fazer.
— Eu posso fazer uns bolinhos pra sua viagem se você quiser. — Nati se
virou com um sorriso brincalhão enquanto separava os três desenhos que
tinha escolhido. — Não vai durar dois anos, mas é melhor que nada, né?
Já fazia quase uma semana, mas Nati ainda estava chateada porque eu e
Arthur acabamos não comendo os brownies que ela preparou “com tanto
amor e carinho” para o nosso piquenique à meia-noite. Eu tentei argumentar
que assim ela pôde aproveitar com a gente na tarde seguinte, mas Nati
continuou se sentindo injustiçada.
Nati olhou para mim de novo, mas, antes que eu pudesse avaliar sua
expressão, jogou os braços ao redor do meu pescoço e me abraçou com força.
— Promete que não vai gastar todo o dinheiro do estágio com Arthur? —
Sua voz estava esganiçada, mas Nati não parecia estar chorando de verdade.
— Todo mundo diz que namorar é supercaro, você não vai conseguir guardar
o suficiente pra me visitar!
— Você acha que eu perderia uma viagem à Europa por causa de um cara?
— Meu tom era de brincadeira, mas a verdade era que eu já não teria tanta
certeza da resposta se esse cara fosse Arthur. Eu sabia, no entanto, que não
perderia a chance de ver Nati nem por ele.
Ela riu, mas me olhou de um jeito que deixava bem claro que cobraria a
promessa se fosse necessário.
— Acho que está tudo pronto — falei com certo pesar na voz. Eu
costumava ficar chorosa no final de todo verão, mesmo sabendo que estaria
de volta em alguns meses. Só que, dessa vez, a tristeza tinha tudo a ver com a
viagem de Nati e nada a ver com a lagoa.
— Eu só não posso ficar até tarde porque o Carlos vem jantar aqui em casa
hoje à noite.
Era a primeira vez que eu veria o namorado do meu pai, já que eu tinha
estragado nossos planos no dia do acidente, e isso me deixava quase tão
nervosa quanto a mudança.
Aquela era nossa última chance de preparar o sorvete uma na outra, pelo
menos durante os próximos 24 meses. Era a despedida perfeita, a melhor
imagem que eu poderia guardar de Nati enquanto não a visse de novo. Então
não, eu não queria dividir aquele momento com ninguém além da minha
melhor amiga.
Meu pai não conseguia ficar parado no lugar. Assim que um dos porteiros
ligou para avisar que Carlos estava entrando no condomínio, ele correu para a
varanda e começou a andar de um lado para o outro, mesmo sabendo que
demoraria pelo menos uns dois minutos para Carlos achar a casa. Eu não
sabia se ele estava com saudades do namorado ou ansioso, com medo de a
gente não se dar bem. Fosse como fosse, eu queria agarrar seus ombros e
implorar que ele se acalmasse porque agora quem estava nervosa era eu.
Eu já tinha imaginado aquela cena centenas de vezes desde que meu pai
havia contado que estava namorando. Na minha cabeça, eu sempre estragava
tudo: ou passava a noite toda morrendo de ciúmes ou cismava que Theo
estava tentando substituir o Rê e implorava para os dois terminarem.
Felizmente, bastou Carlos entrar na casa, a timidez marcando cada milímetro
do rosto, para meu corpo todo sorrir em resposta. Aquele era o cara que tinha
conseguido arrancar meu pai do luto depois de cinco anos, era impossível não
gostar dele.
Meu pai, por outro lado, ainda não estava completamente satisfeito com a
mudança e não conseguiu disfarçar uma careta. Ele estava feliz que eu tinha
passado na faculdade, é claro, mas ainda não tinha desistido de tentar me
convencer a me mudar com ele para Florianópolis. Provavelmente, só
aceitaria que eu não iria mesmo mudar de ideia quando estivesse com a
matrícula feita e o apartamento alugado. Pelo menos, ele não tinha falado
mais nada sobre vender a casa na lagoa — por enquanto.
— Seu pai está preocupado porque você vai morar sozinha, acho que ele
esquece que você não vai pro outro lado do mundo. — Ele me lançou uma
piscadela, como quem diz “deixa que eu te ajudo a colocar juízo na cabeça
dele”.
A melhor parte era que Carlos era completamente diferente do Rê. Eu tinha
me perguntado diversas vezes se Theo não teria um tipo específico e acabaria
aparecendo com uma cópia do meu pai, o que eu não teria suportado. Jamais
conseguiria conviver com alguém que me lembrasse do Rê 24 horas por dia.
Mas os dois não podiam ser mais diferentes. Além de ter os cabelos pretos
quase raspados, o oposto do loiro que Rê nunca cortava acima do ombro,
Carlos era mais alto e musculoso, mais parecido com Theo, na verdade. Ele
também não era tão despojado e extravagante como meu pai. Apesar de ser
divertido e não parar de falar por nem um minuto, Carlos era bem mais
contido.
Tentei passar maquiagem e fazer uma trança no cabelo, mas não queria
desperdiçar um minuto que fosse, então saí praticamente sem me arrumar. Só
peguei a roupa que já tinha deixado separada e corri para o quarto do meu
pai.
Esgueirei-me pela porta aberta, com medo de assustar Theo, e sentei ao seu
lado, cutucando-o com cuidado. Mesmo sendo o mais delicada possível, ele
acordou em um pulo, sentando na cama como se estivesse pronto para me
socorrer no que fosse.
— Não tem nada de errado — falei, sacudindo seu ombro de leve quando
ele começou a deitar de novo, já de olhos fechados. — Preciso te mostrar
uma coisa.
Ele abriu só uma frestinha dos olhos e me encarou, como se achasse que
aquilo era alguma brincadeira de mau gosto. Como continuei apenas
repetindo que precisávamos sair logo, ele enfim se levantou, ainda
desconfiado.
Meu pai não era dos mais ágeis de manhã e pareceu demorar uma
eternidade enquanto escovava os dentes e pegava uma roupa qualquer. Quase
tive que arrastá-lo do banheiro até a rua, onde a moto de Arthur nos esperava.
Exatamente como combinado, dois capacetes descansavam sobre o banco e
Arthur não parecia estar em lugar algum.
Ótimo.
— Você vai ver — continuei tentando arrastá-lo, mas ele parecia ter
ganhado uns 100kg agora que não queria se mexer. — Só suba na garupa,
pai, por favor.
— Eu não vou andar de moto com você, Lucélia — ele disse a frase com
calma, sem qualquer traço de humor na voz.
Ele encarou a moto como se ela fosse uma máquina de assassinar pessoas e
não um veículo, e então se virou para mim. Eu já sabia que ele concordaria,
mas, antes, meu pai disse em um tom grave de ameaça:
— Se acontecer alguma coisa, você vai ficar de castigo pro resto da vida.
Se eu pudesse ter tudo do meu jeito, seria meu pai dirigindo a moto. Me
livrar daquele medo — mesmo que não completamente — tinha sido tão
libertador que eu adoraria que ele tivesse a mesma sensação, que
experimentasse aquele calor na boca do estômago e soubesse que não era tão
perigoso assim. Mas era pedir demais. Se já era difícil convencê-lo a subir na
garupa, seria impossível colocá-lo atrás do guidom.
Então, me contentei com aquela conquista e dei a partida. Assim que girei
a chave, fui tomada pelo conhecido tremor da moto, mas, na parte de trás do
banco, um completamente novo saía do corpo do meu pai e chegava até mim.
Apesar de ainda nem ter amanhecido, eu tinha certeza de que não tinha nada
a ver com o frio.
Por mais que eu já tivesse adquirido confiança suficiente para dirigir até
uns 40 km/h, mantive os 20 para garantir que meu pai não teria uma síncope
atrás de mim. Então, o trajeto de dez minutos acabou levando quase vinte.
Foi tão tranquilo quanto eu esperava, e pude sentir meu pai relaxando
conforme percebia que não estávamos prestes a sofrer um acidente. Pelo
menos, até chegarmos ao pé do morro onde Arthur me levara para assistir ao
nascer do sol.
Foi a primeira vez naquela manhã que hesitei. Ainda estava tão escuro que
eu não conseguia ver nada além do feixe de luz do farol. Sem contar que eu
mal tinha dirigido fora do condomínio. Pelo aperto cada vez mais forte na
minha barriga, dava para perceber que meu pai gostava da ideia tanto quanto
eu. Mas, antes que um de nós dois pudesse dar para trás, acelerei com tudo e
subi, sem pensar no que estava fazendo.
— O que é isso? — ele quis saber, com uma mistura de dúvida e irritação
na voz.
Por um instante, achei que ouviria o maior sermão da minha vida por ter
mexido nos equipamentos dele. Mas, nesse momento, meu pai enfim notou o
mar atrás de mim e seus olhos se arregalaram enquanto ele caminhava com
passos largos até a ponta. Eu queria gritar para ele pegar a câmera de uma vez
para não perder nenhuma foto, mas deixei que ele inspirasse a vista por um
momento. Carlos foi até o seu lado, pousou a mão em sua cintura e ficou ali,
sem dizer nada.
Meu pai se virou e caminhou, decidido, até a moto, com aquele olhar de
fotógrafo brilhando em todo o seu rosto. Ele e Gui se puseram a fotografar
antes mesmo de o céu clarear, aproveitando cada segundo da aurora.
Enquanto isso, Arthur e eu observávamos a vista de mãos dadas, e Carlos
conversava com Theo, ouvindo todas as explicações que eu tivera que escutar
milhares de vezes. Era melhor que ele adorasse fotografia e ainda mais a voz
do meu pai, caso contrário o relacionamento nunca daria certo.
Depois do que pareceram milhares de fotos, Gui e meu pai decidiram que o
bosque seria tão proveitoso quanto o nascer do sol, e arrastaram Carlos lá
para dentro.
Ele parou o que estava fazendo por um segundo e olhou para mim, as
sobrancelhas erguidas em uma expressão maliciosa e deliciada ao mesmo
tempo.
Meu corpo todo pegou fogo com aquelas palavras. Meu Deus, como
Arthur conseguia me deixar assim só com uma frase e um olhar?
Ele me lançou um olhar que dizia que era melhor eu não o desafiar, mas
então deve ter lembrado que meu pai estava a apenas alguns metros porque
retomou a postura em menos de um segundo.
— Dessa vez, temos suco natural, sanduíche quente, bolo e até uma
sobremesa que a Nati fez e que parece iogurte, mas ela jurou que não é — ele
colocou tudo sobre a tolha, mas sua voz estava um tom mais grave. —
Inclusive, ela disse que nunca mais vai cozinhar pra gente se não comermos
tudo dessa vez.
Ele tinha razão. Nenhum deles tinha tomado café da manhã, eu duvidava
que fosse demorar muito até voltarem correndo com o estômago roncando.
— Todo mundo vai ficar bem — ele disse de um jeito que não deixava
espaço para dúvidas. — Você vai adorar Porto Alegre, e seu pai vai perceber
como é bom morar sem você pra encher o saco dele o dia inteiro.
Dessa vez, Arthur levou mesmo um tapa no braço como resposta. Ainda
assim, ele apenas riu, uma gargalhada alta que me fez querer me mudar para
Porto Alegre só para poder passar o ano inteiro ouvindo aquele som. Queria
passar cada um dos meses ao seu lado e então voltar para a lagoa na garupa
da moto, descobrindo vários lugares no meio do caminho onde poderíamos
fazer piqueniques com bolacha e suco de caixinha.
Até meu pai voltar com Carlos e Gui, no entanto, eu não queria me
preocupar com o futuro. Não queria me preocupar se Theo ficaria bem
sozinho com o Carlos, se eu gostaria da faculdade e nem mesmo pensar no
Rê. Só queria aproveitar a vista maravilhosa agora que eu sabia que teria todo
o tempo do mundo para viver minha vida como Lucy, Lucélia ou como bem
entendesse.
EPÍLOGO
Quando pensei que aquele poderia ser meu último verão na lagoa, jamais
imaginei que seria uma escolha minha. Mas já estávamos na metade de
fevereiro e eu não tinha passado mais do que algumas semanas lá, e não tinha
nada a ver com a vontade do meu pai de vender a casa. Na verdade, desde
que Carlos foi morar no nosso apartamento em Araranguá, eles vinham
tentando deixar tudo mais a cara deles, e estavam se livrando aos poucos dos
móveis antigos da mãe do Theo. Então a casa da lagoa nunca fora tão nossa
quanto agora.
— Sabiam! — quase gritei. Esse era o único tom que eu tinha usado o dia
inteiro, desde o momento em que meu pai me ligou, desesperado, achando
que a gente tinha sofrido um acidente no meio do caminho entre Porto Alegre
e a lagoa, quando, na verdade, a gente só tinha perdido o horário. — Mas
Arthur ficou tão feliz em poder ajudar que ficou lá até às três da manhã e
ainda voltou pro meu apartamento com um sorriso na cara!
Terminei de contar, ainda no mesmo tom, que tínhamos brigado assim que
ele chegou e fomos dormir tão irritados um com o outro que ninguém se
lembrou de colocar o celular para despertar. Então, acabamos acordando no
horário em que deveríamos estar chegando e não saindo. Tivemos que dirigir
tão rápido que Arthur, com certeza, tinha levado pelo menos duas multas no
meio do caminho.
— Não vai dar tempo de fazer tudo — ela disse em um tom choroso que
não ajudava em nada a diminuir meu nervosismo. — Vai pro banho de uma
vez que eu vou separando as coisas pra você.
Era em situações como essa que eu me dava conta de como tinha sorte por
ter Nati na minha vida — e, principalmente, por ela não estar no outro lado
do mundo naquele exato momento. Se ela tivesse ficado no intercâmbio
como havia planejado, meu pai não teria tido ajuda para montar o arco e as
cadeiras na beira da lagoa naquela tarde, e o casamento todo estaria
arruinado. Felizmente, ela só ficou cinco semanas na Europa, em vez dos dois
anos.
A história que todo mundo ouvia era que a empresa responsável pelo
intercâmbio perdera alguns documentos e ela foi obrigada a voltar, mas Nati
já tinha me contado que poderia ter resolvido tudo lá na Itália mesmo se
realmente quisesse continuar lá.
Sendo bem egoísta, isso tinha vindo bem a calhar para mim já que, se ela
tivesse continuado lá, eu precisaria fazer tudo sozinha e com certeza teria tido
um ataque de nervos antes do início da cerimônia.
— Não sei o que seria de mim sem você — falei, quando ela me entregou
o espelho para analisar a maquiagem.
A mesma expressão deve ter tomado conta do meu rosto assim que meus
olhos caíram sobre ele. Já fazia quase um ano que estávamos namorando e,
ainda assim, meu corpo todo esquentava só de ver Arthur. E o fato de ser a
primeira vez em que eu o via de terno e gravata não ajudava em nada a
manter a compostura. Mas a gente não tinha tempo a perder, então me forcei
a me acalmar e a ficar bem longe dele.
— Os pais do Carlos e mais uns parentes, eu acho. Mas o Gui está tirando
fotos e tentando distrair todo mundo.
A gente não tinha tempo agora, mas eu com certeza sumiria com Arthur
assim que a cerimônia acabasse.
— Você fez a escolha certa — falei pelo que devia ser a centésima vez
desde que ele me contou que iria se casar. — É isso que meu pai iria querer
pra gente.
Meu pai se levantou e estendeu a mão para mim. Era a primeira vez que eu
conseguia dar uma boa olhada no smoking dele — uma das desvantagens de
passar tanto tempo longe era não participar desses pequenos momentos. Sua
roupa tinha o mesmo tom de azul piscina que a minha, e eu podia apostar que
essa tinha sido outra ideia de Carlos.
Ainda de mãos dadas, caminhamos sem pressa até o carro alugado. Meu
pai ainda não ficava totalmente à vontade quando eu dirigia, e, de acordo com
ele, era ridículo que a gente fosse de carro sendo que a nossa casa ficava a
apenas duas quadras da lagoa. Mas eu sabia que essa era a menor de suas
preocupações quando sentou no banco do carona, os olhos perdidos na janela
e as pernas tremendo.
Antes de dar a partida, coloquei uma das mãos sobre o joelho dele e o
apertei com força, até que ele se virasse para mim. Tinha tanta coisa para
dizer, mas as palavras ficaram perdidas entre toda a emoção e a vontade de
chorar que brigavam para escalar minha garganta. Mas eu não precisava dizer
nada para que ele soubesse como eu me sentia.
Além dessa equipe incrível, duas pessoas leram as versões finais de Nosso
Último Verão e me ajudaram a deixar essa história infinitamente melhor.
Bethe Bertan, obrigada por ter paciência para esperar semanas entre cada
parte do livro, e, principalmente, por me ajudar a acreditar no potencial desse
livro e diminuir minhas inseguranças. Brendon Idzi Dhuring, obrigada pela
leitura sensível (e revisão) incrível. Não apenas foi uma honra ter feito
faculdade com você e poder acompanhar todo o seu crescimento, como foi
muito especial ter um livro trabalhado por você!
Queria agradecer, também, aos meus pais. Vocês são os pais mais incríveis
do universo! Obrigada por me apoiarem em todas as minhas loucuras e por
fazerem o possível e o impossível para que meus sonhos virem realidade.
Espero, um dia, conseguir retribuir tudo que vocês fazem por mim!
Por fim, e mais importante, tenho que agradecer aos meus inscritos e meus
leitores. Ser escritora sempre foi e sempre será meu maior sonho, e, sem
vocês, isso não seria possível. Não apenas porque vocês estão comprando
meu livro, mas porque são vocês que me fazem ter coragem e acreditar que
tudo isso é capaz. Então, meus mais sinceros agradecimentos. Espero ter cada
um de vocês em todos os caminhos dessa jornada!
SOBRE A AUTORA
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