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Copyright © 2022 Thaís Dourado

TEM UM IDOL NO MEU SOFÁ


1ª Edição

Capa: Nicah Park


Preparação: Cínthia Zagatto
Diagramação: April Kroes
Ilustrações: Nicah Park
Leitura sensível: Carolina Miki Sugimoto

Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução e o


armazenamento de qualquer parte deste livro, através de quaisquer
meios, sem consentimento e autorização por escrito da autora.

Edição Digital
Sumário
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Epílogo
Capítulo bônus
Agradecimentos
Sobre a autora
Leia também
A todos que dariam o mundo para ter
o idol favorito em seu sofá.
No fim das contas, eu poderia viver feliz, sabendo que deixara
tantas marcas nele, assim como ele havia deixado,
cravado, seu amor em mim.
“Nada foi por acaso”
— Por acaso, Engenheiros do Hawaii.

Ouvir Nocturne ressoar no piano por meio dos meus dedos


era, de fato, a minha coisa favorita. Era como se não houvesse nada
no mundo além daquele piano de cauda e eu. Não sentia falta de
ninguém em específico, mas, sempre que tocava o segundo noturno
de Chopin, meu coração se apertava. Como se algo muito
importante em mim estivesse ligado a ele, ainda que eu não o
conhecesse. Como se Chopin tivesse criado algo especialmente
pensando em mim.
Ali, na sala de ensaio do segundo andar, enquanto tocava a
música que fazia meu coração bater forte, apreciei também os sons
que vinham de fora e se misturavam à melodia: o barulho da água
da fonte, que dançava junto às notas; o vento, que uivava ao passar
pelas frestas dos vitrôs entreabertos; e os passarinhos, cantando na
árvore que ficava quase grudada à janela. O cheiro de grama
molhada subia toda vez que a brisa soprava e, a cada detalhe
adicionado a emoção e sensibilidade que aquele momento me
causava, meu peito parecia se apertar mais.
— Vai ficar mais quanto tempo nesse piano, Tetê? — Nina
chegou fazendo barulho ao lançar a mochila no chão e, logo depois,
se jogou ao lado dela.
— Até você me dizer que está pronta para sair — cantarolei.
Havíamos combinado de nos encontrar com a Lena na 89ºC
Coffee Station depois da aula, para colocar a conversa em dia, e eu
mal podia esperar para rever minha pequena. Com tanta coisa da
faculdade para fazer nos últimos dias, não vinha tendo nenhum
tempinho de sobra para ela.
— Sobre isso… você lembra que não vou poder ficar muito,
né? — Ela tirou alguns cadernos de dentro da bolsa para tentar
acomodar os livros que estavam em sua mão, como se fosse
possível enfiar tudo aquilo em uma mochila comum. — Estou indo
para BH hoje, com a tia Carina.
— Sim, eu não esqueci. — Mesmo que ela engatasse uma
conversa comigo, me recusei a afastar as mãos das teclas frias.
— Promete que vai comer direitinho enquanto eu estiver
fora? — Nina fez beicinho, dessa vez colocando força para fechar o
zíper, que não demorou muito para arrebentar.
— A gente vive de comida congelada, pode deixar que eu
dou conta. — Ri.
— Mas sou eu quem fica te lembrando de comer, dizendo
que estou com fome. — Ela sorriu, jogando a bolsa de volta sobre
os ombros. — Se eu não fizer isso, quem vai fazer?
— O Josh, é claro — resmunguei, finalmente abandonando o
instrumento e pegando minha mochila.
Durante o caminho, Nina tagarelou sobre a viagem e contou
com detalhes tudo o que pretendia fazer ao lado da tia. Minha amiga
estava planejando visitar os pais havia meses, mas só agora tinha
conseguido convencer a moça de ir também.
No café, Lena nos esperava à mesa do canto, perto da
janela, rabiscando um guardanapo pardo. Quando me viu, a
baixinha correu até mim com os braços abertos e me apertou com
uma força sobre-humana.
— Ai, que saudade! — ela falou, esmagando meus ossos
naqueles bracinhos pequenos.
— Desculpa, eu tenho estado um pouco ocupada demais. —
Acariciei suas costas, a apertando de volta até que ela fizesse um
barulho engraçado.
Em seguida, fez um beicinho fofo e murmurou:
— Não se preocupe, estive ocupada também. — Então
abraçou Nina, que se desculpou ao dizer que não poderia ficar
muito tempo por causa da viagem. — Ah, amiga, imagina! — Lena
abriu um sorriso caloroso e cheio de dentes. — Eu também não vou
demorar muito. Preciso terminar o quiz da semana até amanhã e
não estou nem perto de completar essa façanha.
— Qual o quiz da vez? — perguntei, olhando o menu de
bebidas.
Embora Lena achasse que seu trabalho não era nada de
mais, eu adorava aqueles quizzes estilo BuzzFeed da revista
Fofoquei. O meu preferido era: monte sua playlist favorita e saiba
sua idade real.
De acordo com meus gostos, eu tinha setenta e seis anos.
— Monte uma saladinha e descubra sua alma gêmea no One
Direction. — Ela riu.
— E você faz os resultados com base em quê? — Nina
perguntou, bem curiosa, já que aquela era uma de suas bandas
favoritas.
Ri por já saber a resposta.
— Com base nas fontes.
— Quais fontes? — Nina chegou mais perto, interessada,
talvez matutando como Lena teria fontes confiáveis àquele ponto.
— Da minha cabeça — a pequena confessou.
Nina caiu na risada, mas admitiu estar decepcionada. Achava
que enfim conseguiria o contato da nutricionista do grupo, e Lena se
gabou dizendo que, se quisesse, poderia dar um jeito de arrumar o
número para ela. Bem, eu não duvidava nadinha daquilo.
Depois disso, as duas entraram em um assunto sobre a boy
band, e Helena contou algumas curiosidades que descobria ao
pesquisar para os quizzes. Fiquei meio perdida, já que não fazia
ideia de quem elas estavam falando, mas, depois, como sempre,
acabei virando o assunto principal.
A pequena tentou, mais uma vez, me falar sobre um rapaz
que conhecia e que poderia me interessar, e Nina desenterrou mais
um familiar solteiro, dizendo que combinaria comigo. As duas tinham
como meta de vida me arrumar um namorado, ainda que nem
mesmo elas tivessem alguém.
— Vocês deviam se preocupar com a própria vida amorosa
— resmunguei, cruzando os braços, depois de recusar um encontro
às cegas pela quarta vez.
— Não seria tão divertido. — Nina me mostrou a língua,
então se recostou sobre a mesa para chegar mais perto de Lena,
sentada do outro lado. — Ela já teve algum namorado quando era
mais nova?
— Nunquinha — Lena cochichou em resposta. — Já teve uns
crushes e deu uns beijos por aí, mas ninguém que realmente fosse
guerreiro o bastante para amolecer esse coração de pedra.
— Eram gatinhos? — Nina ergueu uma sobrancelha.
— Nada que fizesse o meu tipo — respondi por mim, já que
elas conversavam como se eu nem estivesse presente. — Era só
vontade de beijar.
— Ah, e vai por mim, Nina: essa daí tinha muita vontade de
beijar quando era adolescente — Lena me entregou com uma
risada. — A boca só faltou cair.
— Muito engraçadinha. — Eu até queria manter a pose
emburrada, mas não consegui.
Quando Lena ria, era impossível não acompanhar. O som
fazia meu coração bater contente e desejar que seu riso nunca
cessasse. Eu odiava me lembrar da época em que Miguel a deixara
em pedaços. Ela tinha se trancado no quarto por meses, em
depressão.
Naquela época, a Lena que eu conhecia deixara de existir.
Uma personalidade vazia e sombria tomara seu lugar, e tudo que
saía de seus lábios eram choro e lamentações. Eu temia que ela
nunca tornasse a ser a mesma, mas não desistia de desenterrar
minha amiga de dentro daquele coração endurecido. Com o tempo e
muita insistência, ela havia voltado a ser quem era e seu sorriso
voltado a iluminar nossos dias, ainda que eu pudesse enxergar
algumas sequelas.
— Então me diga, Maitê Sanchez Fiori: qual é o seu tipo de
cara? — Nina me puxou para mais perto e apoiou o queixo sobre os
punhos.
— Meu tipo? — Pensei. — Hum… não descobri ainda.
— Mas que tipo de cara chama sua atenção? Alto? Baixo?
Cabelo liso? Enrolado? Olhos verdes? — Nina insistiu, e Lena
estalou a língua como quem já sabia o que eu iria responder.
— Não me importo muito com a aparência. — Dei de ombros.
— Se eu fosse escolher algo… hum, acho que seria o
relacionamento dele com a música.
— Essa eu já sabia. — Lena tomou um gole longo do seu
milkshake, e Nina revirou os olhos antes de retrucar.
— Isso não faz nenhum sentido.
— Para vocês talvez não, mas para mim faz. — Endireitei a
coluna e me arrumei na cadeira, pronta para argumentar. — Nina,
para um cara tocar seu coração, eu sei que ele precisa ter bom
papo e mostrar através do olhar o que ele sente. Você preza muito
pelo toque e pela atenção, estou errada?
Ela negou, prestando muita atenção.
— Pois bem, para uma pessoa conseguir tocar meu coração,
ela precisa me fazer ouvir a música que vem de dentro. Não é só a
música tocada, sabe? É a melodia interior.
— E como funciona isso? — Lena franziu as sobrancelhas. —
Vai soar um sino mágico, descer querubins do céu com uma harpa
ou algo do tipo? Ou uma trilha sonora vai tocar de repente, como
nos filmes?
— Não sei, ainda não aconteceu comigo.
— Acho que você anda assistindo romances demais. — Nina
riu. — Se esse sino tocar, eu preciso saber com detalhes.
— Bem, se existir alguém capaz de aguentar minha chatice,
então espero que toque. — Ri também, amassando um guardanapo
de cima da mesa. — A música é o que faz meu coração bater mais
forte. Por exemplo, Lena, o que faz seu coração bater forte a ponto
de você sentir que vai explodir de felicidade?
— Cupom de desconto da Shein! — ela respondeu
prontamente, e eu juro que vi seus olhos brilharem. — Uma
entrevista fácil com alguém famoso também não seria nada mau.
Estendi uma mão para Lena, na intenção de que Nina visse
que cada pessoa tinha um caminho diferente até o coração, e minha
amiga cruzou os braços, ainda insatisfeita com a resposta.
— Mas eu te entendo, Tê! Cada um tem seu jeito de sentir as
pessoas, e você não está errada — Lena continuou.
— Vou explicar para que a Nina me entenda, então.
— Ótimo, agora eu sou a bruxa má só porque não acredito no
amor que nasce da música, igual em High School Musical — ela
reclamou, dando um safanão nas pontas rosas do meu cabelo loiro.
— Escuta bem, Nina! — Pigarreei antes de começar uma
entrevista séria com Lena e estender uma colher em sua direção,
fingindo ser um microfone. — Senhorita Helena, sabe quando você
vê aquelas blusinhas de quarenta reais saindo por quinze e percebe
que vai poder comprar mais do que planejou?
— Sim! — Seus olhos brilharam mais uma vez.
— Como a senhorita se sente diante dessa situação?
Lena pegou a colher da minha mão e olhou para o teto,
esperançosa, ao responder:
— Sinto como se o céu estivesse se abrindo para mim e
anjos descessem tocando harpa e cantando “promoçãããããão é
bênção” — cantarolou.
Nina e eu caímos na risada. Lena era mesmo uma figura.
Sequei os olhos, que lacrimejavam, e continuei minha linha de
raciocínio:
— É assim que eu me sinto quando ouço uma música que
me toca. — Sorri. — Claro, sem a parte da promoção, mas eu sei
que o cara certo vai me fazer escutar o som que faz meu coração
vibrar.
— Tão romântica, minha Tê! — Lena estendeu as mãos
sobre a mesa e segurou as minhas, acariciando e me fitando com
um olhar perdido e sonhador.
— Eu desisto de você. — Nina gargalhou, jogando um
guardanapo em mim. — Lavo minhas mãos. Você é maluca!
Doidinha!

Joshua não media esforços quando o assunto era me pedir


favores, e ali estava eu, mais uma vez, levando uma mala de roupas
para o rapaz, que passaria o final de semana com alguma garota.
Não era do meu interesse saber quem.
— Estou do lado de fora do hotel — disse ao ouvir a voz
rouca do meu irmão atender ao telefone. — Vem pegar sua mala.
— Tetê, eu não posso sair agora, meu turno ainda não
acabou. Você pode trazer aqui, rapidinho?
Ser a irmã mais velha é não querer ver a cara do irmão
quando se sabe que ele está prestes a aprontar, mas ser obrigada a
fazê-lo pela força do afeto.
Josh tinha acabado de começar seu segundo semestre em
turismo e, por muita sorte, conseguira uma vaga de estágio no Hotel
Iona da Barra Funda. Era até bonitinho vê-lo todo arrumado e com o
cabelo penteado, atendendo os clientes na recepção com um
grande sorriso no rosto. No entanto, eu conhecia a versão daquele
senhor certinho que passava o resto do dia livre em casa, dentro de
um pijama rasgado e com a boca suja de salgadinho.
O clima por ali estava especialmente conturbado. Mulheres
das mais variáveis idades surtavam à porta do hotel, esperando por
algum famoso que eu não conhecia. Lutei entre os corpos frenéticos
que bloqueavam a entrada e procurei pelo meu irmão, que corria
perdido de um lado para o outro, tentando falar com uma hóspede
americana.
— Oi, posso te ajudar em alguma coisa? — perguntei em
inglês para a senhora que gesticulava desesperada para Josh. Ele
já suava frio de nervoso.
O inglês do meu irmão não era tão ruim, mas, pela cara que
Josh fazia, estava provavelmente muito nervoso com a agitação da
senhora, ao ponto de não conseguir se comunicar.
— Eu estou há uma hora tentando explicar para esse rapaz
que preciso que ele cheque a roupa de cama que foi retirada do
meu quarto. Acho que meu documento pode estar enrolado nela —
a senhora muito simpática, apesar do estresse, explicou olhando no
fundo dos meus olhos.
Então eu traduzi para o meu irmão, que respondeu que faria
o possível para encontrar, em um inglês fajuto.
— Obrigada, mocinha! — A senhora deu um sorriso enrugado
e tocou levemente em meu ombro. — Você é a namorada dele?
— Não, sou a irmã mais velha — respondi com um sorriso
forçado, já sabendo o que viria a seguir.
— Mas ele é chinês.
— É, eu sou adotada — menti, sem paciência, puxando meu
irmão para longe.
Josh chegara na família quando tinha dois anos. Eu me
lembrava bem de não entender direito o que estava acontecendo.
Na minha cabeça de criança, não fazia sentido que um neném
nascesse tão grande, mas agora eu entendia: meu irmão não havia
nascido da mesma barriga que eu, mas do mesmo coração.
— Por que fez isso de novo? — ele perguntou, bravo, como
sempre ficava em uma situação daquelas.
— Porque eu não queria te fazer passar vergonha no
trabalho. — Tombei a cabeça para o lado, apoiando a mão na
cintura. — Eu poderia entrar em uma discussão com ela sobre você
ser filipino, mas sei que você não gosta, porque isso é uma briga
sua, então que diferença faria? Eu acabaria sendo arrastada daqui
por seguranças. Não tenho paciência de discutir com esse tipo de
gente. Eles mal se dão ao trabalho de diferenciar. — Respirei fundo.
Não era hora de discutir.
— Não se finge de boba, Maitê. Eu odeio quando você fala
que é adotada, quando o filho adotado sou eu!
— De verdade? Quem liga? Se eu sou adotada ou você, o
que importa é que somos irmãos, independente do que digam. —
Sorri para o meu caçula, e isso o fez levantar um meio sorriso
contido. — Eu pessoalmente acho que você é minha cara.
— Ah, claro!
Aquela piada nunca falhava em fazê-lo rir, e era assim que eu
preferia vê-lo: com os dentes à mostra e as bochechinhas coradas.
— Para onde você vai, dessa vez?
— Floripa. Lembra da Júlia?
Fiz careta. Eu não ia com a cara daquela tal de Júlia desde
que a ouvira dizer que cachorros não deveriam dormir dentro de
casa.
— Você só pode estar me zoando — reclamei, pronta para
começar um discurso sobre como pessoas que não gostam de
animais não são confiáveis.
No entanto, malcriado como era, Josh não fez questão de
ouvir. Ele puxou a mochila da minha mão e me deu um beijo
estalado na bochecha, então correu de mim.
— Volto no domingo. Te amo e se cuida — gritou.
— Me liga quando chegar! — gritei de volta, e ele levantou o
polegar em concordância. — E vê se melhora esse inglês —
cochichei para mim mesma, vendo meu caçula se reestabelecer
atrás do balcão.
Se entrar no hotel já tinha sido difícil, sair se tornava uma
missão quase impossível. O número de pessoas à porta havia
triplicado em poucos minutos, e eu tive que pedir para o segurança
da entrada me ajudar a descer entre aquela multidão sem ser
atingida.
Com um suspiro aliviado ao alcançar meu carro em
segurança, segui o caminho tão desejado para casa. Tateei o banco
do passageiro à procura dos meus óculos, mas não encontrei.
Mesmo com as ruas claras graças aos postes de LED, eu não
enxergava nada além de borrões. Ser míope era um castigo, e eu
precisava parar de deixar minhas lentes de contato no banheiro de
casa em vez da minha retina.
Assim como no hotel, parte da rua estava um pandemônio
por causa de uma multidão de fãs, com faixas na cabeça, câmeras e
flashes. Percebi uma muvuca de pessoas correndo e quase entrei
em desespero com medo de passar por cima de alguém.
Desacelerei e aproveitei para tentar alcançar minha bolsa no banco
de trás; meus óculos deviam estar lá.
Eu não tirei a atenção do caminho, mas, no susto, acabei
freando bruscamente ao ver a multidão que de repente correu em
minha direção. Quase atropelei um rapaz que corria afobado,
seguido pelas garotas barulhentas.
Em menos tempo do que se leva para respirar, ele me olhou
no fundo dos olhos e balbuciou alguma coisa, com as mãos
espalmadas no capô. Me peguei ponderando se deveria descer e
pedir desculpas, mesmo que ele tivesse atropelado meu carro e não
o contrário. No entanto, tudo que tive tempo de fazer foi dar um
grito, quando ele entrou às pressas no banco do passageiro.
— Sálvame, por favor — ele pediu ofegante, em um espanhol
arrastado, e trancou a porta.
Congelei por um segundo, sem saber o que fazer ao ter meu
carro invadido por um maluco desesperado, mas seus olhos escuros
e suplicantes me forçaram a parar de questionar sua sanidade e
meter o pé no acelerador.
“Pode me chamar de artista
Pode me chamar de idol”
— Idol, BTS.

Eu não sabia bem como reagir. Olhei para o rapaz com a


blusa esgarçada, o rosto levemente arranhado e a respiração
ofegante, me perguntando se deveria pegar o spray de pimenta na
gaveta sob o banco do motorista ou abandonar o carro e correr.
O rapaz com certeza percebeu meu olhar de indignação, já
que se apressou a falar:
— Esto está raro, pero sácame de aqui, por favor![1]
— Escuta, tem alguma chance de você falar pelo menos um
pouquinho de inglês? — perguntei confiante e só depois me toquei
que, se ele soubesse apenas o básico, talvez aquela pergunta fosse
grande demais para que entendesse. — Quer dizer, você fala
inglês?
— Sem chance! Você é americana? — Seu sotaque
impecável me deixou de boca aberta, e seu sorriso de dentes
perfeitos quase me desmontou. — Graças a Deus!
— Sou brasileira, mas já morei fora um tempo. — Sorri
amarelo, quase esquecendo o que estava rolando ali. — Primeiro de
tudo, quem é você e por que está no meu carro? E a pergunta que
não quer calar: por que eu ainda estou dirigindo calmamente com
você aqui dentro, se eu deveria te chutar para fora?
— Ahn, certo…
Eu não havia reparado em como ele era alto, até olhar
melhor. Suas pernas compridas se dobravam de forma esquisita no
banco ao lado.
— Meu nome é Eric, eu sou cantor e você acabou de me
salvar da minha morte. — Sorriu orgulhoso, como se tivesse
acabado de mencionar que eu havia ganhado na loteria ou algo do
tipo. — E… presumo que você seja uma boa pessoa?
Não era uma afirmação, mas uma pergunta.
— Presumiu errado. Que tal descer agora? — Torci o nariz,
atordoada.
— Ahn…
A tal estrela do rock ou sabe-se lá de qual gênero, sentada
no meu banco do passageiro, pareceu ser pega de surpresa quando
reagi mal. Quero dizer, ele achava mesmo que seria uma honra tê-lo
no meu carro, sendo que eu nem sabia quem era?
— Você pode me ajudar, por favor? Vou te explicar tudo,
prometo. Não me entenda mal. Eu preciso de socorro!
Eu não queria me meter na encrenca dos outros, mas o rapaz
parecia tão perdido, e seus olhos angulados emanavam um
desespero tão intenso, que não pude dizer “não”.
— Desembucha. — Bufei, impaciente.
Um pouco mais aliviado, ele soltou uma lufada de ar e
recostou a cabeça contra o apoio do banco.
— Aconteceu algo depois do show, e eu precisei sair
escondido. Estava tentando ir encontrar um amigo, mas umas fãs
começaram a correr atrás de mim antes que eu conseguisse pegar
um táxi — o tal Eric se aprontou a dizer, me fazendo, incrivelmente,
cair na lábia dele.
— Vamos supor que seja verdade. — Gesticulei, porque tinha
lá minhas dúvidas. — Como é que um cantor, com tudo aquilo de
fãs, não tem pelo menos um segurança decente?
Eric riu e então coçou a nuca, sem graça.
— Acho que você não ouviu a parte em que falei que saí
escondido. — Ele sorriu amarelo, e então seu olhar se perdeu por
alguns segundos, ao que completou: — Mas é verdade que minha
equipe de segurança deixa muito a desejar.
Cheguei a sentir dó do garoto, que não aparentava ter mais
que vinte e poucos anos. Ele parecia desnorteado e perdido em um
país que não conhecia. Mesmo que empatia não fosse lá a minha
maior qualidade, tentei me colocar no lugar dele e decidi ajudar.
— Me fala o seu hotel, que eu te levo até lá. — Rolei os olhos
ao abrir o porta-luvas e lhe entreguei minha bolsinha de remédios,
que ainda tinha alguns band-aids e antisséptico. — E dá um jeito no
seu rosto, está sangrando.
Eric sorriu, agradecido, levando o indicador a um corte na
testa, e eu me senti na obrigação de levá-lo embora. Afinal de
contas, de que adiantava ser amante da música e poesia, protetora
dos animais, mas não ser sensível o suficiente para ajudar o
próximo?
— Bem… quebraram meu telefone, então parece que meus
planos de encontrar meu amigo não vão funcionar, por enquanto —
ele disse, pensativo. — Se você puder, por favor, me deixar no hotel
em que estava hospedado, já é alguma coisa.
Mesmo que eu não estivesse totalmente confortável com sua
presença, me forcei a dirigir de volta. Para a surpresa de ninguém,
Eric estava no Hotel Iona em que Josh trabalhava. Aquilo explicava
muita coisa, na verdade.
— Certo, é bem ali. — Sorri forçado, apontando para o
prédio, enquanto o garoto reluzia gratidão.
No entanto, seu sorriso alegre não durou muito mais que dois
segundos. Quando viu a multidão em frente à entrada, Eric murchou
como uma flor seca.
— Eu não acredito que elas já chegaram aqui — reclamou,
apontando para o mesmo grupinho que havia corrido atrás dele
mais cedo.
Eu não me surpreendi com o fato de elas terem chegado
primeiro que nós. Eu estava tão apavorada com o fato de ter um
estranho no carro que vinha dirigindo devagar, só para o caso de
precisar me defender.
— Boa sorte. — Destranquei o carro, e ele me olhou em
súplica.
— Mas… como é que eu vou passar por elas?
— Cada um com seus problemas, meu amigo.
Eu era sensível ao próximo, mas só até certo ponto.
Eric me olhou com o cenho franzido, e eu passei meu tronco
sobre seu corpo, abrindo a porta do passageiro e apontando para
fora.
— Se você me der licença, eu preciso estudar.
O rapaz saiu bambo do carro, tentando cobrir o rosto com um
pedaço da camisa de botões rasgada, o que me fez conter o riso.
Talvez abandoná-lo fosse maldade da minha parte, mas eu tinha
meus compromissos. Além do mais, tinha certeza de que seus
seguranças seriam de maior ajuda do que eu.
Ele fechou a porta atrás de si e eu continuei meu caminho,
contente, como se nada tivesse acontecido. Aumentei o som e,
curtindo Canyon City do Lost Sparks, parei no farol vermelho no fim
da rua, aproveitando o tempo para limpar as lentes dos meus
óculos.
— Tsc, aquelas malucas deixaram meu carro cheio de
marcas de dedos — resmunguei, esguichando um pouco de água e
ouvindo o nhec nhec nhec que o limpador de para-brisa fazia no
vidro quase seco.
Quando coloquei os óculos de volta sobre o nariz e olhei para
a janela do passageiro, quase tive um treco ao ver a cara de Eric
amassada contra o vidro, com metade dos band-aids descolada do
rosto e meio metro de língua para fora.
— Ah, não. — Bufei. — Só pode ser brincadeira.
— Garota, pelo amor de Deus, não me larga aqui! — ele
gritou, desesperado, entrando no carro mais uma vez e segurando a
porta enquanto as fãs doidas tentavam abrir.
Droga, eu deveria ter trancado.
— Acelera!
— O sinal tá fechado — falei calmamente.
— Eu pago sua multa, agora acelera!
O que eu poderia fazer diante de tamanho desespero, não é
mesmo?
Eu pisei fundo.
Eric respirava ofegante, como se tivesse participado de uma
maratona. Com as duas mãos no peito e os olhos fechados, ele
repetia diversas vezes alguma coisa em uma língua que eu não
conhecia.
— Escuta aqui, tô com cara de Uber, por acaso? — falei
brava após voltar aos meus sentidos e perceber o que estava
fazendo. — Eu tenho que estudar, não posso ficar te dirigindo para
os lugares, não!
— Qual é o seu nome? — perguntou, ignorando meu humor,
e eu apontei para um ursinho bordado, pendurado no retrovisor.
— Meit?
Pausa.
Tive que deixar o mau humor de lado para confessar que
meu nome dito com seu sotaque soava terrivelmente fofo. Mas era
só isso.
— Que Meit, o quê, Eric? — Chacoalhei a cabeça,
espantando meus pensamentos. — É Maitê, entendeu? Ma-i-tê.
— Ma-i-tê — repetiu, ainda com um pouquinho de dificuldade.
— Por aí.
— Ok, Ma-i-tê — ele falou mais uma vez, compassado. — Eu
não posso voltar para o hotel. Elas bloquearam até a porta da
garagem, nenhum segurança me viu para vir ajudar e, na correria,
perdi a bolsa com o celular e minha carteira — Eric me mostrou um
dos pés descalço —, além de um dos meus sapatos.
— Cara, você deveria mudar de profissão.
— Tenho pensado muito sobre isso.
Não saberia descrever ao certo o que aconteceu comigo
naquele momento, mas eu juro que, quando Eric riu da minha frase
cheia de sinceridade, espremendo os olhos angulados e mostrando
todos os dentes na boca, senti vontade de trancar as portas que eu
havia destravado de propósito e protegê-lo do mundo.
Claro que isso só durou um segundo.
— Tá, e aí? — perguntei. — Vai descer onde, então?
— Eu não sei. Não consigo falar com meu empresário, não
tenho dinheiro para me hospedar em nenhum outro lugar e, mesmo
que você me emprestasse, o que, pela sua cara, nunca iria
acontecer…
Ah, não iria mesmo!
— Bem, mesmo assim, eu não poderia ficar sozinho. Tenho
fãs intensas por todo lugar.
— Você não sabe o número de ninguém?
Ele negou com a cabeça.
— E se entrar em alguma rede social e mandar mensagem
para a sua equipe?
— Eu não tenho a senha de nenhuma delas — murmurou,
mas aquilo não parecia o incomodar.
— Que tipo de bicho do mato esse garoto é? — cochichei
para mim mesma, em português. — Então você está insinuando o
quê? Que eu devo te levar para minha casa e criar você? — zombei
e ele deu de ombros, fazendo um bico desapontado.
— Não era bem isso que eu tinha em mente, mas me parece
uma boa saída.
— O quê? — Quase me engasguei ao perguntar.
Parei o carro no acostamento, cruzei os braços e o fitei.
— Olha aqui, Eric, me desculpe, mas não estou aceitando
emprego de babá.
— Maitê, por favor… — Ele me olhou sério, parecendo um
pouco mais velho por um instante. — Eu não teria entrado no seu
carro e te pedido ajuda se não precisasse muito, e você me pareceu
de confiança no meio segundo em que te analisei.
— Tá, primeiro quero ressaltar que você é maluco! E se eu
for uma pilantra que vai vender fotos suas na internet? — perguntei,
ainda com os braços cruzados. — E se eu me aproveitar de você e
te roubar quando você cochilar?
— Primeiro, eu sinto que você não é assim, e minha intuição
nunca falha. — Eric afivelou o cinto, crente de que eu o levaria para
um lugar seguro. — E, segundo, eu não tenho nada para você
roubar. Deixei tudo pelo caminho.
Vi seu pé enorme e descalço se erguer mais uma vez.
— Tudo mesmo — ele enfatizou.
Meu dia incrível tinha acabado de ser arruinado. Ser babá de
um astro de origem duvidosa não estava nos meus planos.
Fechei os olhos por alguns segundos e apoiei a cabeça sobre
o volante, batendo algumas vezes sobre a superfície. Eu poderia
deixá-lo ali e me recusar a ajudá-lo, mas algo me dizia que eu
viveria com uma culpa enorme no peito caso alguma coisa
acontecesse a ele.
No entanto, por mais gente boa que tentasse ser, eu não
tinha por que aceitar. Nenhuma pessoa em sã consciência aceitaria,
e, como alguém que era sempre movida pela lógica, tomei uma
decisão.
— Por favor, só hoje…
— Eric… — Respirei fundo antes de desapontá-lo.
Ele me olhou com uma cara de cachorro abandonado, que
me partiu o coração, fazendo com que eu me sentisse a pior pessoa
do mundo por estar prestes a negá-lo.
— Eu… — Força, Maitê! — É que… Sabe, hum… — Por que
era tão difícil fazer aquilo olhando em seus olhos escuros? Talvez
porque eles brilhassem esperançosos, como um filhote de vitrine
esperando ser adotado. — Saco! Tá legal! Mas só por hoje, tá
entendendo?
— Vou tentar entrar em contato com meu empresário assim
que possível. — O garoto abriu um sorriso radiante, me fazendo, por
um segundo, vacilar mais uma vez.

Estacionei em frente à casa do vizinho da rua de baixo, que


sempre trocava o óleo do meu carro, e segui a pé pelo condomínio
com Eric em meu encalço. Fingi não reparar nas senhoras todas do
bairro babando em cima do rapaz.
— Maitê, será que ninguém vai me reconhecer aqui? —
perguntou, se esgueirando atrás de mim, de cabeça baixa. — Tem
muita gente me olhando.
— É só porque você é bonito, e eu nunca fui vista com
homem nenhum além do meu irmão. — Tirei um boné cor-de-rosa
da mochila e lhe entreguei junto ao meu moletom. — Só por
precaução.
Ele encarou o boné cheio de flores, meio a contragosto, e
vestiu o moletom preto.
— Acho que poderia ser maior.
De fato, para caber nele, teria que ser pelo menos dois
números maior.
— Eric, era para você cobrir o rosto — disse indignada, e ele
deu uma risadinha, amolecendo meu coração, que não gostava
muito da ideia de tê-lo ali. — Bem, o boné não ficou nada mal.
Um sorriso genuíno se esticou em seus lábios marcados, e
então eu voltei a andar com ele na minha cola. A cada passo, o
rapaz grudava ainda mais em mim, de cabeça baixa, com medo de
ser reconhecido.
Que pessoa na minha situação concordaria com aquilo? Por
mais que ele parecesse indefeso, ainda era um completo estranho.
Meu pai me daria um sermão se soubesse o que estava
acontecendo.
— Vem cá, você é tão famoso assim?
Não era possível. Se fosse, eu certamente saberia.
— Você não viu o tanto de gente correndo atrás de mim? —
cochichou, puxando o capuz da blusa para cobrir o rosto, quando
viu algumas adolescentes descerem a rua.
— Se você é tão famoso — continuei e o puxei para o lado de
dentro do portão de casa, assim que uma das garotas começou a
reparar demais —, como foi que você veio parar na casa de uma
estranha, sem celular, nem dinheiro? E como é que eu nunca ouvi
falar de você?
— Eu já falei que levaram minha bolsa. E, pelo que vi do seu
estilo musical horrível, no carro, eu não faço parte da sua bolha.
Me senti um tanto ofendida, confesso.
— Você não sabe nem o seu telefone de cor? — Bufei
quando ele negou com a cabeça. — Isso é ridículo!
— Se você tivesse uma agenda lotada como a minha, aposto
que deixaria cuidarem do máximo de coisas que pudessem para
tirar o peso de você também.
Bem, ele tinha razão. Eu não funcionava bem com
informação demais para processar. Mas, ainda assim, como era
possível que ele não soubesse nem o número do próprio telefone?
Passei pela porta, tirei os sapatos, e o garoto me seguiu,
fazendo o mesmo. Chopin notou a presença de carne nova no
pedaço e veio correndo em nossa direção, o que me preocupou. Eu
havia me esquecido do detalhe de que meu cachorro não estava
acostumado com visitas. O Husky exageradamente gordo, que
costumava latir e morder o calcanhar de qualquer um que não
conhecesse, correu em direção a Eric, que envolveu meu amigão
em um abraço gostoso com o maior sorriso, como se eles se
conhecessem por décadas.
— Bom, parece que você já está familiarizado com todos da
casa, então. — Joguei a mochila em cima da mesa e peguei duas
garrafas de água na geladeira.
— Como assim? Cadê os seus pais? — ele questionou,
pegando no ar a garrafa que eu lancei em sua direção.
— Meus pais moram na Itália. Eu moro com uma amiga e o
meu irmão, mas eles não estão — disse, pisando no primeiro
degrau da escada. — Por isso eu não queria te trazer para cá.
Quero dizer, não só por isso.
Eu precisaria de todos os dedos das mãos e dos pés para
contar todos os motivos de considerar aquilo uma péssima ideia.
— Enfim, você não me parece tão estranho assim. De
qualquer forma, não tente nenhuma gracinha. Eu provavelmente luto
muito melhor do que você e não tenho medo de te furar com uma
caneta se precisar. — Sorri tranquila diante da ameaça, e Eric
arregalou os olhos, engolindo em seco. — Ah, claro, a casa também
é monitorada por câmeras, e eu posso solicitar uma viatura da
portaria em poucos segundos.
— Credo, você é assustadora! Eu deveria ir embora, pela
minha segurança? — Não saberia dizer ao certo se ele estava
brincando ou falando sério, mas não tinha importância. Para mim,
era melhor que ele temesse e não fizesse nenhuma bobeira.
— Só fica na sua e tenta ir embora o mais rápido possível. —
Dei de ombros, subindo as escadas em direção ao quarto de Josh.
Como de costume, o lugar estava de cabeça para baixo:
roupas jogadas para todos os lados, prato com restos de pizza em
cima da cômoda, dezenas de xícaras com água e café
espalhadas…
Na ausência de Nina, quem fazia o papel de mãe era eu.
Peguei uma toalha e uma muda de roupas da gaveta e desci,
empilhando todas as louças dentro da bacia de pipoca de uma
semana atrás.
Sem parar, eu matutava formas de conseguir entrar em
contato com fosse lá quem pudesse tirar Eric dali. Apareci na sala,
pensando em um milhão de regras que deveria recitar para ele,
como não subir as escadas, não tocar no que não fosse necessário,
falar e respirar o mínimo possível e fingir não estar ali. Contudo,
quando cheguei à sala, ele já havia caído no sono no sofá, abraçado
a Chopin, que lhe assistia dormir com ar apaixonado.
Encarei a cena, desacreditada de que fosse possível dormir
em tão pouco tempo, mas não questionei ao vê-lo roncar e babar no
meu cachorro. Eric havia tido um dia e tanto. Sua roupa rasgada, o
cabelo bagunçado, mesmo cheio de laquê, e os machucados
provavam isso. Era justo e humano que o deixasse ter algumas
horas de descanso.
Tranquei a porta da sala, apaguei a luz e o deixei onde
estava, do jeito que estava: todo torto no sofá e agarrado ao meu
cachorro como se ele fosse um travesseiro gigante.
Corri para debaixo das cobertas em minha cama, mas antes
tranquei também a porta do quarto só por precaução. Na primeira
oportunidade, digitei “cantor Eric” no Google. Eu não sabia sua
nacionalidade, sobrenome ou qualquer informação pessoal. Cheguei
a pensar que ele fosse apenas um impostor, tentando me enganar,
pois, entre todos os que encontrei, nenhum se parecia com ele.
Prestes a me dar por vencida, vi na última linha da página de
buscas um artigo com o título “Eric Lee, o cantor americano-coreano
que te apaixona em segundos”. Desci a barra lateral, pulando toda e
qualquer informação desnecessária, e enfim achei um compilado de
fotos do rapaz, informações sobre álbuns, entrevistas, datas de
shows, links de podcasts que ele gravava, canal no YouTube… Ao
que parecia, não existia nada que ele não pudesse fazer.
Eu não li, de fato, a entrevista. Não estava interessada nele,
só em me certificar de que era mesmo famoso e não estava
mentindo para mim. Busquei novamente por seu nome, dessa vez
acompanhado de “Lee”, e entendi que ele não só era famoso, como
muito influente entre os músicos coreanos.
Senhorita Helena Ferreira me veio à mente no mesmo
instante. Eu queria ligar e contar para ela o que havia acontecido,
mas, se o fizesse, minha casa estaria cercada de paparazzi antes
mesmo que eu pudesse contar até dez, e ela pularia a minha janela
exigindo um autógrafo e um fan meeting pessoal com o rapaz.
No entanto, manter aquele segredo só para mim não era uma
opção. Eu precisava avisar a alguém que havia uma pessoa comigo
em casa, apenas para o caso de algo acontecer.
Peguei meu telefone e mandei uma mensagem, ainda
atordoada, para Nina.

Maitê: Amiga…

Comecei, pensando em como contar aquilo.

Maitê: Tem um idol no meu sofá.


“Se você passar a vida se preocupando com tudo
Vai se arrepender quando envelhecer”
— Happiness, Red Velvet.

Como em toda madrugada, meu estômago me acordou às


quatro horas, gritando por comida. Por má sorte, era um hábito
recorrente, que eu odiava, mas não conseguia controlar; uma
herança hereditária do meu pai, que sempre topava comigo na
cozinha. Quatro da matina era nosso encontro marcado.
Conversávamos entre cochichos enquanto beliscávamos algo da
geladeira, e isso sempre deixara minha mãe extremamente irritada,
porque, ainda que tentássemos não fazer barulho, sempre a
acordávamos de seu sono leve.
Me enrolei em minha manta amarela e cambaleei até a
cozinha. Com os olhos ainda grudados de remela e o cabelo
escorrido e oleoso grudado no rosto, deixei minha alma na cama e
desci movida pela fome, calçando minhas pantufas fofinhas.
Me assustei no meio da escada ao ver Eric jogado no sofá.
Pisei em falso em um degrau e escorreguei por pelo menos três
deles até chegar no chão. Eu havia me esquecido de sua ilustre
presença. O rapaz dormia, silencioso, encolhido sobre Chopin,
enquanto eu tentava miseravelmente recuperar o fôlego após bater
o cóccix na extremidade do degrau.
Com os olhos marejados e a respiração bagunçada, me
levantei e desci com calma, sentindo meu traseiro latejar. Xingando
Eric em pensamento, abri a geladeira e escolhi um iogurte com
cereais.
Chopin se levantou no mesmo instante em que me sentei à
bancada, latindo e me dando as boas-vindas, como sempre. Fiz
sinal de silêncio para que ele não acordasse Eric, mas Chopin
parecia determinado a avisar à vizinhança inteira que a hora do
lanchinho havia chegado.
Peguei o pacote de petiscos e lhe entreguei um para que
ficasse quieto. Meu Husky mimado fungou com o nariz, reclamando
porque eu geralmente lhe dava dois.
— Folgado — resmunguei, oferecendo mais um, então ele
saiu rebolando com aquela bundinha gorda até o outro lado da
bancada.
Eric nem sequer se mexeu no sofá. Cheguei a considerar
uma possível morte ou algo do tipo, já que até a pessoa com o sono
mais pesado acordaria com os latidos roucos de Chopin. Levar um
estranho para casa era uma coisa; tê-lo morto no meu sofá era outra
completamente diferente.
E fora de cogitação.
Me aproximei devagar e, graças aos céus, notei seu peito
movimentando-se com leveza de cima para baixo. Soltei uma lufada
de ar aliviada e apertei a mão contra o peito. Morto ele não estava.
O rapaz dormia com as mãos entrelaçadas, servindo como
travesseiro, e sua bochecha magra se amassava sobre o pulso,
fazendo com que os lábios desenhados formassem um biquinho.
Assistindo-lhe dormir, senti a mesma vontade repentina de
protegê-lo que sentira no dia anterior. Quanto mais o olhava, mais
ele parecia sereno e irreal. Quão cansado deveria estar para dormir
tão profundamente na casa de uma estranha?
Toquei seu rosto frio para afastar alguns pelos que Chopin
deixara em seu nariz e o cobri com a manta que, até então, me
mantinha aquecida naquela casa gelada. Alcancei uma almofada
amarela na poltrona ao lado do sofá e levantei devagar sua cabeça
para apoiá-la, mas, fazendo jus à minha capacidade de estragar
boas intenções, enrosquei minha pulseira em seu cabelo.
O mais incrível de tudo foi que, mesmo com o puxão que eu
dei sem querer, ele não acordou. Tentei, da forma mais silenciosa
possível, desatar o nó que seus fios davam nas miçangas, mas só
deixei tudo pior.
— Seu carinho é muito bruto… — murmurou sonolento,
levantando uma das mãos até a minha. — Assim machuca.
— Eu não estou fazendo carinho, Eric — falei entre dentes.
— Enrosquei minha pulseira enquanto apoiava sua cabeça no
travesseiro.
Eric se virou lentamente para mim, me encarando por alguns
segundos, e então sentou-se no sofá.
— Eu não vou ter que cortar, vou? — Fez careta, levando
uma das mãos até a minha.
— Não. Fica quietinho — respondi, concentrada, me
ajoelhando ao seu lado e chegando mais perto para enxergar. — Foi
mal te acordar.
— Nem percebi que caí no sono. — Riu. — Faz uns quatro
dias que não durmo mais do que três horas. Acho que isso foi mais
um desmaio.
— Deve ser difícil ser você.
Não quis parecer muito amigável, nem tocada com a
situação, tampouco mostrar que havia feito uma pesquisa rápida
sobre ele, mas eu já estava gastando todo o meu foco em enxergar
aquele nó sem os óculos.
— Talvez se seu cabelo não tivesse tanto laquê fosse mais
fácil — reclamei.
— É, às vezes eu queria dar um tempo de mim e só viver
uma vida normal, mas infelizmente não posso fazer isso. — Deu de
ombros. — Tenta puxar, eu vou aguentar a dor.
— Não posso correr o risco de arrebentar, é minha pulseira
da sorte.
— Pulseira da sorte? — Com os olhos fechados, ele franziu o
cenho e coçou a nuca.
— Sim, minha melhor amiga me deu no meu aniversário de
quinze anos. — E levantei um dos pés com a pantufa de tubarão. —
Isso foi ela também.
— Fofo. — Ele sorriu. — Parece ser uma boa amiga.
— Ela é.
— Você também…
— Só às vezes… Queria poder fazer mais por ela. — Suspirei
triste ao me lembrar da época em que ela mal saía do quarto e
chorava o tempo inteiro. — Prontinho, consegui.
Eric se jogou de volta no sofá, antes mesmo de eu sair.
Peguei outra almofada da poltrona e lancei sobre ele, fazendo-o se
encolher.
— Saio às nove para ir à aula. Já descobriu como entrar em
contato com a sua equipe?
— Não… ainda não consegui ficar acordado para pensar
nisso.
— Ah, que ótimo. — Revirei os olhos. — É maravilhoso que
meu sofá seja do seu agrado, vossa alteza, mas precisamos
resolver isso.
Ele riu do meu tom debochado e passou a mão sobre os fios
bagunçados do cabelo.
— Meu irmão trabalha no hotel em que você se hospedou,
vou pedir para ele entrar em contato com a sua equipe — concluí.
— Eles devem estar atrás de você.
— Eu duvido muito — Eric murmurou.
— De qualquer forma, temos mais alguma opção?
— Acho que posso tentar contato por e-mail. — Ah, até que
enfim aquela cabeça havia funcionado para alguma coisa. — Eu não
sei o e-mail direto do meu empresário, mas posso acessar o meu no
seu computador.
— Tá legal. Vamos tentar isso, assim que eu chegar da
faculdade.
— Certo.
— Para amanhã, temos algumas regras — desandei a falar,
enquanto ele cobria a cabeça com a almofada. — Não vá ao andar
de cima, não toque nos meus instrumentos, não saia com o meu
cachorro e, principalmente, não chame ninguém aqui. Eu deixei uma
muda de roupas e uma toalha no banheiro, que é depois daquele
corredor, à direita, e você pode tomar banho quando acordar. Coma
o que quiser, mas deixe tudo limpo. Odeio louça na pia.
— Sim, senhora! — Ele bateu continência, a voz sonolenta
cheia de deboche. — Vida de universitário deve ser um saco.
Ninguém merece estudar no sábado.
— Nada é de graça — rebati. — Boa noite.
Eric levantou a manta e se cobriu dos pés à cabeça, então eu
subi.
Mandei uma mensagem para Josh, sem revelar muito sobre a
situação, já que ele surtaria se soubesse que eu tinha levado um
homem para casa, e encarei o teto, deitada na cama.
Céus, eu tinha mesmo um idol dormindo no meu sofá!

— Você está me dizendo que um gringo desconhecido, que


estava correndo de uma manada de garotas na rua, entrou no seu
carro de repente e te implorou para que você o levasse para sua
casa? — Marcus, que não cursava música, mas passava sempre
que podia na sala de ensaio para dar um oi, estava jogado sobre
nossas mochilas, mexendo nas cravelhas do ukulele para afiná-lo.
Assenti, encarando o jardim pelo vitrô escancarado.
— E você o levou?
— Falando assim, parece uma decisão bem mais idiota do
que foi — defendi.
— Isso é totalmente insano! Você é maluca?
Bem, talvez eu fosse.
— E você o deixou sozinho na sua casa?
— Com o Chopin.
— Maitê, não é porque o seu cachorro tem nome de gente
que ele pode fazer muita coisa para proteger a casa.
Ora, o que ele queria dizer com aquilo?
— Eu mesmo sou a prova viva de que ele se vende fácil por
um carinho na barriga.
— O rapaz não me parecia perigoso. — Cocei a cabeça.
— Sabe quem mais não parecia perigoso? — perguntou
Marcus, ganhando minha curiosidade. — O príncipe Hans.
Olhei para o teto, escavando minha memória atrás de alguma
informação sobre o tal e falhando miseravelmente.
— Príncipe Hans? — A não ser que… — Cara, você não está
falando de Frozen de novo, está?
Era impressionante a capacidade que ele tinha de relacionar
pessoas e coisas do mundo com qualquer filme de Frozen ou as
aventuras de Olaf. Isso porque ele era obrigado a assistir pelo
menos cinco vezes por dia, por causa da irmã mais nova.
— Na verdade, ele me parecia e ainda parece bem
inofensivo, um completo bobalhão — completei.
— Calma! — O garoto arregalou os olhos. — Você teve uma
boa impressão de um cara? É isso mesmo que eu estou ouvindo?
— Ué, Marcus — me virei em sua direção —, e desde
quando eu acho que os homens não passam de um pedaço de lixo
fedido ocupando espaço sobre a Terra?
— Isso foi bem específico para não ser verdade. — Riu, se
fazendo de ofendido.
— Eu só estou dizendo que ele parecia diferente. — Me
sentei ao seu lado, pegando o pacotinho de Fini de cima de seu
peito.
— Iê, iê, Maitê! — fez o trocadilho ridículo de sempre. — Vai
me dizer que tá apaixonadinha pelo gringo?
— Você já me viu apaixonadinha por alguém, Marcus? —
perguntei francamente, e ele voltou a rir, negando com a cabeça. —
Você me conhece há quatro anos, desde que tentou roubar essa
sala de mim pela primeira vez, sendo que cursa administração. Eu
sou casada com a música! Eu vivo e respiro por ela, não tenho
tempo para mais nada.
Talvez soasse exagerado, mas, mesmo que Lena tentasse
me arrumar um namorado a cada semana, ou que meus pais
ligassem regularmente para o meu irmão a fim de perguntar se tinha
algo novo acontecendo comigo, ou que Nina me empurrasse para
todos os seus primos, eu não queria ninguém. Ninguém entenderia
minha paixão e devoção pela música, e eu não queria que
cortassem minhas asas e me impedissem de voar.
Na verdade, Josh era o único que apoiava minha solteirice.
O lema do meu irmão sempre fora “quanto mais solteira,
melhor”, mas só valia para mim. Não fazia nenhum sentido, assim
como metade das coisas que ele dizia, mas eu gostava. Além do
mais, Josh era o maior ciumento da Terra e, desde pequeno, não
podia ver um garoto chegar perto de mim que já vinha brigando,
sem nem querer saber qual era a situação.
No caminho de volta da faculdade, o fato de eu ter deixado
um estranho sozinho em casa me pesou a consciência. Talvez
Marcus tivesse razão. E se eu tivesse feito uma estupidez ao levá-lo
para casa, e Eric fosse um cara mau? Mesmo que ele tivesse
dinheiro suficiente para não precisar de nada meu, eu não o
conhecia e não sabia de suas intenções. E se ele planejasse algo
mais?
E se… Ai, meu Deus! E se, de alguma forma, ele soubesse
do cofre do meu pai?
— Burra! — ralhei comigo mesma.
Parei o carro no acostamento, às pressas, para acessar o
aplicativo da câmera. Procurei o rapaz por todos os cômodos da
casa e quando abri as imagens da sala foi que percebi seu caráter.
Descobri logo o que ele estava planejando.
Bingo.
Eric era um homem muito astuto.
Ele teve a audácia de se deitar no meu sofá de tênis?
— Filho da mãe!
Como se tivesse me escutado, o rapaz tirou os calçados e os
levou de volta para a porta. Então, após Eric retornar para o sofá,
Chopin se jogou sobre ele e os dois assistiram Netflix abraçados.
Era isso.
Chopin nunca havia parecido tão satisfeito com uma visita.
Eric apoiava uma das pernas no encosto do sofá, enquanto meu
cachorro, com toda sua gordura e peso, se esparramava no peito
dele como se fosse o melhor lugar do mundo. Observei por um
tempo, só para garantir que não havia nada de errado mesmo, mas
tudo que aconteceu foi o garoto pausar o que estava assistindo
várias vezes para fazer carinho em Chopin e cuspir os pelos que
entravam em sua boca. Quando o peludo fazia um rosnado
manhoso, Eric o imitava, e toda a bobice me fez perder dez minutos
do meu tempo. Fiquei presa naquela cena de amor ridícula.
Voltei para casa aliviada e um tanto encucada com a
capacidade que aquele astro-de-sei-lá-o-quê tinha de ser uma
pessoa normal. Ainda mais normal do que eu.
Não que famosos não fossem pessoas normais, não era isso.
Mas, na minha cabeça, eles levavam a vida cheia de glamour e
classe. Geralmente não dormiam no sofá velho de um estranho,
usando um pijama que mal lhes cabia, certo?
Abri a porta, com a cabeça perdida em pensamentos. Deixei
meu All Star de cano alto na entrada e calcei um chinelo, que ficava
pendurado em uma altura ideal para que Chopin não alcançasse e
mordesse. Eu havia gastado muito dinheiro com chinelos novos até
aprender.
Me enganei quando achei que as coisas não poderiam ficar
ainda mais inocentes, mas não me impressionei ao ver que a série a
que Eric e meu cachorro assistiam era Poderoso chefinho,
tampouco ao encontrá-los dormindo abraçados no sofá mais uma
vez. Ouvi um ronco alto, engasgado, e ri ao perceber que não era
do rapaz, e sim do meu cachorro.
— Uau, que cena! — falei alto, no intuito de acordar a dupla.
Joguei a bolsa na mesa de vidro e saí em direção à cozinha,
separada da sala apenas por um balcão.
O Husky se levantou em um pulo, latindo para o ar e ainda se
situando no que estava acontecendo. Eric, por sua vez, só abriu um
dos olhos e um sorriso preguiçoso.
— Bem-vinda de volta — ele disse, com direito a um bocejo
entre as palavras.
— Parece que o dia foi bem produtivo por aqui.
— Meu amigão e eu assistimos televisão o dia todo, e eu o
soltei um pouco no quintal para correr. — Riu. — Mas ele não tem
muita energia, né?
— É porque eu não tenho tempo para caminhar com ele
diariamente. Quando abro a porta para ele correr sozinho, o bonitão
deita embaixo da árvore e dorme. — Abri a geladeira à procura de
uma garrafa de água e joguei uma para Eric também. — Esse
cachorro é o animal mais preguiçoso que eu conheço.
— Buddy, você precisa se exercitar um pouco. — O rapaz
chacoalhava a cara do peludo, fazendo-o babar em toda sua mão
com a língua para fora.
— É Chopin.
— O que é Chopin? — perguntou, confuso.
— O nome dele — eu disse, me sentando sobre a bancada,
como sempre.
— Você tá me dizendo que o nome do seu cachorro é
Chopin? — Pela cara de desgosto que ele fez, deduzi que não era
muito de seu agrado.
— Tô.
— Vai me dizer que Chopin é o segundo nome e o primeiro é
Frederic?
— Bingo!
Suas sobrancelhas franziram de modo que todo o rosto se
deformou. Ele fez tanta força ao juntá-las que talvez toda a face
virasse do avesso.
— Você é definitivamente a pessoa mais esquisita que eu
conheço. — Eric se levantou do sofá, caminhando até mim e
parando ao meu lado.
— Não sei se lembra, mas foi você quem pulou na frente do
meu carro, implorando por ajuda — pontuei. — Você é o esquisitão
aqui, senhor.
Era gostoso ver como ele ria despreocupado, diferente da
expressão de desespero que carregava no dia anterior. Não gostava
de admitir que a situação dele me preocupava, mas era verdade.
— Sabe que é minha primeira vez em muito tempo tendo
uma conversa normal, com uma garota normal, depois de assistir
desenho o dia inteiro?
Eu estava começando a ter empatia por ele, e isso me
incomodava.
— Acho que agora é a hora em que decidimos mandar o e-
mail para o seu empresário, não? — mudei de assunto.
Eu não queria que ficássemos íntimos. Se eu me permitisse
sentir algum apego, teria que lidar com a partida dele, em algum
momento, e não precisava de mais um motivo para me estressar.
— Certo.
Tentei ignorar a careta chateada que Eric fez quando ignorei
sua tentativa de aproximação e corri para pegar o notebook, me
jogando no sofá logo depois.
Com as pernas cruzadas, abri a barra de pesquisa do
Google. Eric me disse o e-mail e a senha, e eu não fiquei nada
impressionada ao ver que não havia funcionado.
— Tem certeza de que o e-mail está certo? — perguntei,
franzindo a testa.
— Tenho, fui eu que fiz.
— Eric, e essa senha? — Bufei. — “Eric123”? Sério?
— O quê? — rebateu, indignado. — É mais fácil de lembrar!
— Pois é, mas não está entrando, então significa que você
não lembra, coisa nenhuma!
Ele coçou a testa e apertou os olhos, como se fizesse força
para pensar.
— Tenta “ericlee1”.
— Você só pode tá brincando. — Revirei os olhos. — Vai me
dizer que a senha do seu banco é 12345678?
— Era, mas meu empresário mudou. — Sorriu amarelo.
— Certo, isso não tá funcionando. Como é que você não
sabe o seu número de telefone, ou da sua equipe? Deveriam
colocar um chip em você.
— Isso nunca aconteceu antes, tá legal?
— E por que diabos você saiu correndo no meio da multidão,
daquele jeito? Você não tem noção?
— Quer parar de brigar comigo? Eu também estou
preocupado com como vou voltar para casa! — choramingou.
Certo, não era o momento de eu ficar brava. Eu havia
aceitado entrar naquela bagunça em um momento de menor
lucidez, então não tinha tanto direito de reclamar.
— Vou falar com o Josh.
Mandei outra mensagem para o meu irmão, que havia me
ignorado, e ele enfim respondeu.
Josh: Bubba, meu gerente disse que eles fizeram check-out pela
manhã, antes do show. Ninguém voltou lá depois. A informação de
contato deles é sigilosa, não consegui nem um número de telefone.
Por que isso é tão importante assim? Está tudo bem?

Estendi o celular em direção a Eric, frustrada, mesmo


sabendo que ele não entenderia a mensagem em português.
Conforme eu traduzia o que meu irmão dissera, Eric murchava
como uma flor seca, nada contente.
— Maitê… acho que eles podem ter ido embora sem mim.
— O quê?
Meu grito foi tão alto que fez Chopin começar a latir e
disparar pelos quatro cantos da casa. Eric afagou a cabeça do
peludo e o acalmou, fazendo-o se deitar em silêncio, de barriga para
cima.
— Bem, aconteceram algumas coisas que eu não quero
mencionar, e foi por isso que saí escondido — ele começou a
explicação, mexendo nos dedos. — Não precisa jogar na minha
cara que foi uma ideia burra, porque eu já sei. Se uma fã não
tivesse me ajudado a despistar a multidão, eu jamais teria te
encontrado, e sabe lá Deus o que poderia ter acontecido comigo.
— Trate de descobrir o nome dessa fã, porque vou fazer
questão de enchê-la de tapas por me colocar nessa — brinquei.
— Engraçadinha. — Fez careta. — Bem, foi isso que
aconteceu até você quase me atropelar.
— Corrigindo: até você quase me atropelar!
— Dá para escutar o resto da história? — reclamou. — Enfim,
antes de sair, deixei um bilhete no camarim para Kevin, um amigo
que pegaria o voo de volta para Los Angeles comigo. Eu disse que,
se não aparecesse, ele poderia ir sem mim. Acho que ninguém sabe
que não fui para o aeroporto.
— Você está me dizendo que…
— Kevin deve achar que fui embora com a minha equipe, e a
equipe acha que eu fui embora com Kevin…
Eu não pude fazer nada além de encará-lo com uma grande
cara de bunda, que estampava um “tá, mas e daí?”.
— Meu empresário é meu irmão. Por mais que a gente tenha
brigado, ele vai dar um jeito de me achar, tenho certeza!
— Você não pode só pegar um voo agora e ir? — Minha testa
franzida começou a doer, mas não consegui desfazer a careta. —
Ou vai me dizer que incrivelmente não tem um lugar sequer para
você sentar numa porcaria de avião e levar essa bunda americana
de volta para seu lugar de origem?
— Essa bunda americana aqui tem dinheiro suficiente para
mandar reservar todos os assentos da primeira-classe, caso queira.
— Sorriu cínico. — O problema é que, junto com o sapato e os
documentos que me roubaram na hora da fuga, também levaram o
meu… ahn… passaporte.
Santo Frederic Chopin! O que eu fiz da minha vida para
merecer tamanho castigo?
— Então o que vamos fazer, Eric?! — gritei em desespero.
— Eu… não sei. — O rapaz se virou para o meu lado e me
encarou com um sorriso nervoso no rosto. — Eu estava pensando…
Talvez eu pudesse ficar aqui até eles me encontrarem e…
— E como é que eles vão te encontrar aqui, se nem sabem
quem eu sou? — gritei. — O mais inteligente seria voltar para o
hotel!
— Eu não posso voltar sozinho! Preciso de uma equipe de
seguranças e do meu empresário.
— Contrata uma!
— Você não entendeu que eu estou sem dinheiro?
— Eric — suspirei, atordoada —, querido astro do K-pop ou
sei lá o quê, você é rico! Dá um jeito! Por que você ficaria na casa
de uma estudante de música, que mal consegue tomar conta do
próprio cachorro obeso e que passa a maior parte do tempo com a
cara enfiada em um piano? Eu, por acaso, bati na sua cabeça
quando quase te atropelei?
— Porque eu confio em você, Maitê! — A forma como ele, de
repente, mudou de expressão, como se precisasse de mim, fez com
que eu me sentisse péssima.
— Nos conhecemos faz apenas algumas horas, Eric — falei.
— Acorda!
— Maitê… — O rapaz respirou fundo e segurou uma das
minhas mãos, me fazendo franzir o cenho ainda mais. — Eu precisei
de meio segundo para decidir confiar em você e não vou voltar
atrás. — Então ele apontou para o meu rosto e fungou. — E, pelo
amor de Deus, para de fazer isso com a cara, tá me deixando com
medo.
— Eric… — ensaiei, sem forças.
— Eu posso pagar para ficar aqui. — Ele abriu um sorriso
amarelo, me fazendo sacudir os ombros e murmurar em
descontentamento. — Assim que tiver meus cartões de volta, claro.
— Eu não quero seu dinheiro! — gritei.
— Tudo bem… Eu não pago, então, mas me deixa ficar, huh?
O problema era aquela maldita cara de Gato do Shrek.
Ele me encarou daquele jeito por tanto tempo que pareci cair
em um feitiço.
— Saco! Tá legal! — concordei a contragosto. — Mas não me
enche muito.
— Yes! — Ele começou uma dancinha da vitória, que me
arrancou um risinho contido. Quando percebeu minha reação, fez
uma cara fofa e segurou minhas mãos, contente, balançando-as. —
Eu te amo, Maitê! Te amo!
Péééééé! Péééééé! Péééééé!
O jeito com que aquelas palavras fizeram meu coração pular
me acendeu uma sirene com luzes vermelhas na cabeça. Aquilo
indicava que, pela primeira vez em muito tempo, eu estava sob
ameaça.
— Me poupe. — Sacudi as mãos para soltá-las da dancinha
ridícula na qual ele tentava me levar.
— Então, agora que somos amigos, me deixa saber um
pouco sobre você.
Franzi o cenho, as sobrancelhas, a testa e todos os outros
músculos do rosto para que ele entendesse minha indignação.
— Eu falei que você pode ficar aqui, não que vamos ser
amigos.
— Ah, vai! Corta essa, Maitê!
— Não quero ser sua amiga, Eric. Vamos nos aturar por
alguns dias, sua equipe vai entrar em contato, e aí você vai voltar
para o seu mundo da fama, e eu a me preocupar só com a cãibra
nos pulsos e os calos na ponta dos meus dedos.
— Larga mão de ser assim. — Esse bico, fala sério! — Então
tá, eu começo: meu nome é Eric Lee, sou cantor, já fui analista de
negócios, mas desisti da profissão porque não queria me prender a
algo que eu não amava e sabia que me arrependeria se não
seguisse meu sonho na música. Foi assim que vim parar onde estou
hoje. Quero dizer, não aqui na sua casa, mas na minha carreira,
enfim…
— Tá, tá, eu entendi.
— Ok, ahn… — murmurou, mordendo o lábio. — Enfim,
gosto de tocar violão e piano, também gosto muito de dançar, sou
apaixonado por música e passo a maior parte do tempo compondo
para os meus álbuns.
Hum, apaixonado por música? Violão e piano? Compositor?
De repente, ele se tornava mais suportável.
— Inclusive — continuou —, eu não me lembro de ter te
falado que era cantor de K-pop. Como você sabia?
— Acha mesmo que eu deixei você dormir no meu sofá sem
saber quem era?
— Estou impressionado, confesso.
— Eu rodei a internet inteira atrás de informações suas —
falei, orgulhosa. — Inclusive, quantos anos você tem? Você não é
novo demais para ser tão famoso?
É claro que eu não pude deixar a curiosidade de lado.
— Ué, você não disse que pesquisou sobre mim? — A
habilidade que ele tinha de tirar uma com a minha cara apenas
arqueando as sobrancelhas era de merecer um Oscar.
— Não é como se eu estivesse interessada na sua vida. Eu
só queria saber se você não era um lunático mentindo para mim.
— Então… — murmurou.
Como se chamava aquela coisa que ele fazia com os olhos,
que parecia colocar todo seu rosto para sorrir?
— Quantos anos você acha que eu tenho?
— Você, com certeza, é mais novo que eu — pontuei. —
Então acredito que vinte e três.
— O quê? — Eric caiu na gargalhada, chamando a atenção
de Chopin e fazendo-o latir disparado para o nada, outra vez,
criando o maior escarcéu. — Quantos anos você tem, Maitê?
— Vinte e quatro — respondi, orgulhosa, cruzando os braços.
— Eu tenho trinta e um! — Seus olhos até lagrimejavam de
tanto rir. — Mas obrigado pelo elogio.
— Fala sério! Não sou boba, Eric.
— Eu não tenho um documento para te mostrar, mas você
pode procurar na internet. — Ele tomou o computador das minhas
mãos e entrou em algum site, me mostrando que, sim, ele tinha
trinta e um anos.
Trinta e um anos!
— Qual é a receita? — perguntei, realmente curiosa.
Ele não tinha uma única linha de expressão, sua pele não
tinha uma marca de espinha, e eu não vi sequer um pelo encravado
da barba que começava a dar sinal de vida.
— Estresse, Maitê — brincou. — Muito estresse.
Mesmo tentando manter minha pose de chata, não consegui
me impedir de rir. Se a receita de não envelhecer fosse mesmo
estresse, nos próximos dias, Eric me tornaria imortal.
— Certo, agora é sua vez.
— Não vou entrar nessa brincadeira.
— Por favor!
Qual era a daquela mania de fazer um bico fofo toda vez que
queria alguma coisa e eu falava “não”? Ele achava que eu iria cair
naquilo?
— Que saco! — Bufei. Talvez eu caísse. — Você já sabe meu
nome, minha idade, onde eu moro e o que eu estudo. Não tenho
nada para dizer.
— O que você gosta de fazer?
— Tocar piano. — Dei de ombros.
— Quais instrumentos você toca?
— Piano, violão, violino, violoncelo, ukulele, baixo e gaita de
fole — respondi, contando nos dedos a fim de conferir se estava
esquecendo algum.
— Gaita de fole? Tá brincando comigo, né?
— Flauta transversal também.
— Impressionante! — disse, arqueando as sobrancelhas. —
O que você faz para se distrair?
— Toco piano.
— Novidade! — Ele revirou os olhos e suspirou, parecendo
pensar em alguma outra pergunta. — O que você mais ama?
— Tocar piano — respondi com um sorriso grande no rosto.
Era a mais pura verdade.
— Ah, pelo amor de Deus, você tá brincando comigo, né?
O que tinha de inacreditável naquilo?
— Se você não está interessado em saber, por que
pergunta? — resmunguei.
— Desculpa, é só que… — coçou a nuca e passou um dos
pés livres na barriga de Chopin, que estava deitado no chão —
esperava coisas diferentes.
— Eu vivo pela música, Eric — respondi. — Não espero que
você entenda isso.
Ele riu, sarcástico, e tombou a cabeça para o lado, me
fitando.
— Você está mesmo dizendo para um cantor e compositor
mundialmente conhecido, que passa as madrugadas compondo,
que você não espera que ele entenda sua paixão pela música?
Ouvindo-o falar daquela forma, parecia mesmo bem idiota.
— Qual é o seu sonho? — perguntou e, quando abri a boca
para responder, ele me interrompeu. — Deixa eu adivinhar: ser
pianista.
— Na verdade, eu queria ter um ganso — respondi com
sinceridade, fazendo-o cair na gargalhada outra vez.
— Agora, sim, você parece um ser humano — zombou entre
risos, enquanto eu me decidia se levava aquilo como uma coisa boa
ou não. — Por que um ganso? Porque eles são fofinhos?
— Fofinhos? Cara, você já viu um ganso? Já tentou fugir
deles? — Comecei a teoria da qual eu geralmente só falava depois
de duas ou três taças de vinho com minhas amigas. — Eu tenho um
cachorro de quase quarenta quilos que não faz metade do que um
ganso faria! Se eu tivesse um ganso, poderia sair e deixar as portas
destrancadas numa boa, que ninguém ousaria entrar.
— Isso não faz o menor sentido.
— Eric, gansos têm dentes na língua! Repito: eles têm dentes
na língua! Se um bicho desse te pega, não sobra um pedaço seu
para contar história, cara!
Conversar com ele não era tão ruim, mas eu não tinha
certeza se queria continuar. Eu não costumava me apegar fácil às
pessoas, mas, de alguma forma, ele era diferente, coisa que eu
odiava admitir.
— Bem… agora que somos mais ou menos amigos, posso te
pedir dinheiro para comprar uma roupa que me sirva amanhã? —
Apontou para as do meu irmão, que ficavam pequenas demais em
seu corpo.
— Ah, tá doido? Eu dou a mão e você quer o braço inteiro!
— Pode cobrar até cinco vezes o valor que me emprestar! —
Se apressou em dizer. — Ou, melhor, sete! Sete vezes!
— Vou pensar no seu caso. — Levantei do sofá, calçando
meus chinelos e prendendo o cabelo curto em um rabo de cavalo
fajuto, que soltaria em menos de um minuto.
Andei até o armário da cozinha, onde meu pai guardava os
eletrônicos, peguei o celular reserva na gaveta e entreguei nas
mãos do rapaz com um carregador desgastado.
— Preciso estudar, não faça barulho — resmunguei. — Me
devolva antes de ir embora e faça de tudo para achar o seu irmão!
Eric apenas fez careta, me imitando de uma forma
exagerada, e então se jogou novamente no sofá.
— Será que, quando você estiver fora, eu posso dar uma
volta no quarteirão com o Chopin?
— Claro que não! E se alguém te reconhecer? — ralhei,
parando no meio da escada.
Eric estava pensativo, deitado de barriga para cima.
— Como você disse, aqui só tem idoso. — Riu. — Se você
que tem vinte e tantos anos não me conhece, quem dirá eles?
Parece que, no fim das contas, eu não sou tão famoso assim.
Precisei rir da careta decepcionada que ele fez.
— Além do mais, você tem que cuidar da saúde dele.
Cachorros grandes precisam extravasar a energia, não é bom para
ele ser gordinho assim.
— Faz o que quiser, então — resmunguei, subindo os
degraus. — Só traga meu cachorro são e salvo para casa, não
importa o quê.
“Vamos correr!”
— Run, Lee Jin Ah.

Depois de uma semana cheia, com trabalhos de meio


período, tarefas escolares, provas e minha vida normal indo por
água abaixo após quase atropelar um cantor famoso, ainda tinha
gastado toda minha energia reserva sendo babá daquele mané.
Felizmente o domingo, que parecia que nunca viria, havia chegado,
e eu abusaria dele com longas horas de sono.
Pelo menos, aquele era o plano.
— Maitê-tê-tê-tê. — Ouvi uma voz masculina ecoar e me
puxar de um sonho lindo, onde eu estava em um palco enorme, em
frente a um piano de cauda, fazendo uma apresentação memorável.
Aplausos e mais aplausos ressoavam em conjunto com o assovio
da plateia. — Tá me ouvindo-indo-indo-indo?
— Hum — murmurei, baixo o suficiente para que ninguém
além de mim escutasse.
— Maitê! — Eric gritou, manhoso, agora um pouco menos
ecoado. — Faz cinco minutos que eu tô te chamando! Você tá viva?
Vou entrar se não me responder.
— O quê? — perguntei, sonolenta, ainda baixo demais.
— Eu tô entrando!
Eric abriu a porta do meu quarto e se encostou contra o
batente, dando uma risada, ao ver que, diferente do que ele
esperava, eu não estava desmaiada, apenas aproveitando ao
máximo o meu sono.
— É uma e meia da tarde. Você não vai levantar?
— Não enche, Eric — resmunguei, virando para o outro lado
da cama e tentando voltar para o sonho do qual ele havia me tirado.
Onde é que eu havia parado? Ah, é, aplausos!
— Eu preciso comprar roupas — resmungou. — Esse short tá
apertando a minha bunda.
— Pega meu carro e vai — murmurei, babando no
travesseiro por acidente.
— Qual é, Maitê? Eu não tenho dinheiro. — Ele se sentou na
ponta da cama e me sacudiu. — Você disse que ia. Eu não sei dirigir
por aqui e nem falo português.
— Eu disse que ia pensar — corrigi.
— Por favooooor! — Suas mãos enormes chacoalharam meu
ombro, me fazendo virar de barriga para cima e encará-lo com meus
olhos furiosos, cheios de remela.
— O que você acha que está fazendo dentro do meu quarto?
— reclamei com a voz baixa e séria, extremamente assustadora. —
Te disse para não subir as escadas.
— Você não acordava nunca, achei que tinha entrado em
coma. — Seu corpo encolheu ao meu lado. — Para de me olhar
desse jeito, você me deixa com medo.
— Ótimo, assim você não se aproxima de mim — reclamei,
me sacudindo para fazer suas mãos me soltarem, e virei de costas
para ele, tentando voltar para o meu lindo sonho. — Me deixa
dormir, hoje é domingo.
— Se você não acordar, vou deitar do seu lado e falar, falar e
falar até você decidir levantar — disse, já se acomodando no
colchão de casal.
— Vou te dar três segundos para sair daí, antes de eu
quebrar os seus dentes.
— Sou rico, posso pagar um tratamento dentário depois. —
Riu. — Levanta, vai? Eu tô com fome, já comi tudo que tinha de fácil
na geladeira.
Me virei para o corpo esguio deitado comigo e o empurrei
com os dois pés em direção ao chão, fazendo-o urrar de dor.
— Você é um poço de maldade, Maitê!
— Some da minha frente — briguei, me levantando da cama.
— Aonde você vai?
— Escovar os dentes — ralhei, passando pela porta do
quarto, vestida com uma camisa GG amarela, que tinha um donut
rosa gigante desenhado no centro, e um short de pijama
combinando com a cor da estampa.
— Tá precisando mesmo!
Eu deveria voltar e quebrar os dentes dele?
— Você vai, né? — completou.
— Vou, Eric! Vou!
— Amo você! — ele cantarolou, descendo as escadas
correndo.
E que mania ridícula de mencionar o amor o tempo todo. Ele
ao menos sabia o peso que aquelas palavras carregavam?
Aonde eu levaria aquela criatura para comprar roupas? E,
ainda mais, sem chamar atenção. Tentei repassar em minha mente
todas as lojas masculinas que conhecia e me surpreendi ao
constatar que eu, na verdade, não conhecia nenhuma.
Vesti um short jeans, uma camiseta do meu irmão e desci.
Eric pulava de um lado para outro com Chopin na grama do quintal.
Pobre cachorro. Em breve, experimentaria a dor do adeus.
— Eu não acredito que você ainda está de pijama! — Abri a
porta de vidro que dava para o lado de fora, onde eles brincavam. —
Por que me acordou, então?
— Eu já tomei banho, Dona Reclamona! — debochou,
jogando a bolinha de Chopin para mim. — Só coloquei essa roupa
de novo porque não achei a minha.
— Tá na secadora. Eu não disse que ia botar para lavar? —
Joguei a bolinha para o outro lado, fazendo os quarenta quilos de
pelo correrem atrás dela, ofegante. — Anda, vai se trocar logo.
Eric passou por mim, mostrando a língua, e eu o segui para
indicar a lavanderia.
— Sabe o que você me lembra? — Parou em frente à TV. —
Um Divertida Mente.
— Ah, é? Qual?
— A Raiva. — Então ele caiu na gargalhada, me fazendo
puxar sua orelha com força.
— E sabe quem você se parece? O Bing Bong! — Apertei
ainda mais seu lóbulo, cerrando os dentes. — Vai trocar de roupa
logo, antes que eu mude de ideia.
Eric pulava em um pé só, reclamando por eu puxar sua
orelha, e Chopin latia e babava, se divertindo com a cena nada
usual. Ele não estava acostumado a me ver interagir com ninguém e
parecia querer entrar na tal brincadeira.
Em um instante, a porta se escancarou, e dois rostos
sorridentes congelaram em uma expressão de horror, olhando para
aquela cena na sala.
— O que que tá acontecendo aqui? — Nina perguntou, com
as sobrancelhas arqueadas, sem nem mesmo atravessar a porta.
— Ahn. — Eu não esperava que eles chegassem tão cedo.
Falei em inglês para que a maioria entendesse: — Esse é o Eric,
uma pessoa que eu tirei da rua.
— Você o quê? — Eric rebateu, ainda com a orelha presa
entre meus dedos.
— É que… — tentei consertar a situação, em português
agora, vendo meu irmão nos encarar com fumaça saindo das
ventas. — Bom, aconteceu uma coisa e…
Dois segundos.
Esse foi o tempo necessário para que Josh largasse a
mochila no chão e viesse furioso em direção a Eric.
— Corre! — gritei.
— Por quê? — Eric perguntou, aterrorizado.
— Ele vai te bater.
Eu tinha me esquecido da pequena falha no sistema que meu
irmão tinha ao me ver ao lado de garotos.
— O quê? Mas eu…
Josh o segurou pelo colarinho da blusa, antes mesmo que ele
terminasse a frase, fazendo-o arregalar os olhos, confuso.
— Quem é você? — meu irmão gritou, puxando sua blusa,
mesmo que fosse mais baixo que o outro.
— O que ele tá dizendo, Maitê? — Eric sussurrou,
horrorizado.
— Ele não fala português, Josh! — gritei. — Larga ele!
— O que tá acontecendo, Maitê? Quem é esse cara? — Eric
franziu o rosto inteiro em desespero, sem entender uma palavra do
que nós dizíamos.
— Por que ele está com as minhas roupas, Maitê? — A voz
estrondosa de Josh preenchia a sala, e Nina nos assistia com os
olhos arregalados, comendo seu salgadinho.
— As dele estão na máquina, Josh! Solta ele! — gritei,
puxando o cabelo do meu irmão, que não largava a blusa do rapaz.
Eric apenas nos olhava, assustado, sendo jogado de lá para
cá.
— Alguém me fala o que está acontecendo aqui! — ele
gritou, enfim, sem paciência, tirando a mão do meu irmão de seu
colarinho e rapidamente a torcendo para trás das costas, o
prensando de barriga contra o chão.
— Bubba, quem é esse cara? — Josh choramingou, com a
cara grudada no piso, me chamando pelo apelido que usava desde
pequeno.
— Quem é ele, Maitê? — Eric repetiu, com uma expressão
assustadora no rosto. — Você o conhece? Seu namorado? Seu ex-
namorado? Eu deveria dar uma surra nele? Como você entra na
casa de alguém assim, garoto?
— Irmão! — Josh gritou. — Eu sou o irmão dela, imbecil!
A expressão no rosto do astro da música era impagável.
— Ah! — ele disse, sem graça, soltando Josh do chão e se
endireitando ao meu lado. — Muito prazer, meu nome é Eric. — E lá
estava aquele sorriso bobo.
Ele havia passado de lobo para cachorrinho de bolsa
novamente.
— Ahn, esse é o meu irmão, Josh — apresentei, talvez tarde
demais, apontado para o meu caçula, que estava com o rosto pálido
de medo. — Ela é a Nina, minha melhor amiga. Eles moram comigo.
— Muito prazer, Eric. — Nina se aproximou, dando-lhe um
abraço forte e um beijinho na bochecha.
— Vai se trocar — resmunguei, o empurrando pelas costas
até a lavanderia, e apontei para a secadora. — Sua roupa tá ali
dentro.
Eu com certeza olharia o histórico da câmera de segurança,
mais tarde, e gravaria aquela cena com o celular.
— Não acredito que você estava falando sério — Nina
sussurrou ao meu lado, quando me sentei no sofá. — Tem certeza
de que ele é famoso?
— Eu te mandei o link da matéria, Nina.
— Mas é que… ele parece…
Sim, eu sei!
— Ele parece apenas alguém normal — completou. — Quero
dizer, lindo de morrer, mas normal.
— Ele não é lindo de morrer.
— Ah, ele é, sim!
— Não acho. — Dei de ombros.
Na verdade, ele me irritava tanto que eu nem sequer
conseguia reparar em sua aparência.
— Ele vai ficar aqui até quando?
— Até conseguirmos falar com o empresário. — Bufei. — E
ele não fala português, nem adianta tentar.
— Eu não falo inglês, Tetê.
— Ótimo, então é só não falar com ele. — Vi Eric aparecer
vestido, do outro lado do corredor, e Joshua o encarar de braços
cruzados. — Na verdade, é a melhor coisa que você faz.

— Maitê, tem certeza de que vamos achar roupas para mim


aqui? — Eric me encarou com o cenho franzido, quando demos uma
volta na loja e nada parecia ter a sua altura.
— Que blasfêmia! — Me fingi de ofendida. — Riachuelo tem
roupas para todos.
— Eu nunca ouvi falar dessa loja — murmurou, o rosto
escondido por uma máscara preta e um boné amassando seu
cabelo.
— Isso porque você não é brasileiro. — O empurrei pelos
corredores. — Agora anda, escolhe logo.
— Eu não gostei dessa loja.
— É a única que eu conheço. — Dei de ombros, fazendo-o
bufar. Aparentemente aquele era um ato comum entre nós dois. —
Essa e a Forever 21. Você, por acaso, quer usar cropped?
— Você acha que cairia bem? — A forma como ele posava e
fazia biquinho em minha direção me fez cair na gargalhada. —
Talvez um amarelo rendado.
— Como você é ridículo.
— Pelo menos, você riu. — Ele deixou um tapinha em meu
ombro, antes de sair entre as araras de roupa. — Mas, falando
sério, não acho que tenha roupas que me sirvam aqui.
— Verdade, teríamos que emendar duas calças para caber
nessa perna enorme — concordei. — Aonde você quer ir, então?
Ele me arrastou até o lado de fora da loja, me puxando pela
barra da blusa, enquanto, sem ânimo algum, eu o seguia com os
ombros caídos e a cabeça tombada em tédio.
Eu odiava fazer compras.

Eric saiu com quatro sacolas grandes de roupas da GAP, o


que incluía sapatos, blusas, moletons, calças e boa parte do meu
salário. Era bom que ele me pagasse mesmo sete vezes aquele
valor; assim, quem sabe, eu poderia comprar uma bomba para
explodi-lo depois.
Não satisfeito, entrou na primeira loja masculina que
encontrou e me obrigou a assistir-lhe escolher algumas cuecas.
— Sério isso?
— Não reclama, ou você quer que eu use as suas?
— Acho que não seria muito confortável. — Ri e sacudi a
cabeça, tentando afastar a cena que, sem querer, surgiu em minha
mente.
Tive que segurar Eric para não entrar em todas as lojas de
eletrônicos, cosméticos, livros e filhotes que viu pela frente. Afinal,
ele não compraria nada, já que a dona do dinheiro era eu.
— Olha, que gracinha!
Com a atenção na estrada, eu era obrigada a olhar para os
lados todas as vezes que Eric avistava um cachorro e queria me
mostrar.
— Olha aquele! Parece o Buddy!
— É Chopin, já disse!
— Esse nome é ridículo.
— Você quer que eu te faça descer do carro? — ralhei.
Eric me enchera tanto, durante o dia, que eu certamente teria
pesadelos com sua voz ao me deitar para dormir.
Dirigi até o parque, que era apenas a algumas ruas de casa,
e o obriguei a descer contra a vontade. Eu precisava provar algo.
Relutante, ele concordou, mas não sem antes insistir para que eu
ficasse de guarda, do lado de fora do carro, enquanto ele se
trocava.
Como uma boba, fiquei ali parada, espiando a rua e
tampando a janela do banco do passageiro com as costas. Ainda
não dava para acreditar que, em pleno domingo, meu único dia de
folga, eu estava sendo babá de um cara bons anos mais velho que
eu.
Eric não pareceu incomodado por sair ao ar livre; na verdade,
parecia aliviado por conseguir andar sem ser seguido por uma
multidão. Claro que ele não abriria mão da máscara e do boné, mas,
ainda assim, eu conseguia ver uma palavra estampada em seus
olhos: liberdade!
Andamos por algum tempo, lado a lado, sem dizer nada. Ele
aproveitando o sol que aquecia sua camisa nova, e eu agradecendo
aos céus pelos minutos de paz que ele me proporcionava sem dizer
nada.
Nos sentamos à beira do lago depois de comprar dois
sorvetes de potinho com o senhor do carrinho de cachorro-quente.
Aproveitamos em silêncio a vista da brisa agitando a água calma e
musguenta, até que Eric decidiu falar mais uma vez:
— Esse foi o dia mais tranquilo que eu tive em anos. — Seu
olhar pensativo estava voltado para além do rio, onde pessoas
corriam e faziam caminhada. — Sei que te incomodo muito e que
agito seu dia tranquilo, mas me sinto feliz de ter sido você a quase
me atropelar.
— Às vezes você fala tanto que eu me arrependo de não ter
atropelado — brinquei, e ele deu uma risada baixa.
Eu tinha um humor meio ácido, mas ele entendia.
— Gosto de como você não me trata como todo mundo
também. — Seus olhos brilharam ao me encontrar, me fazendo
sentir um incômodo estranho.
Aqueles poucos dias fizeram com que tivéssemos uma
intimidade esquisita, que eu não queria e lutava para não ter com
ele. No fundo, mesmo que preferisse um castigo enorme a admitir,
eu até que gostava dele. Conversar com Eric não era sacrifício
nenhum.
Diante de seu sorriso bobo, que fez a sirene vermelha tocar
em minha cabeça mais uma vez, decidi mudar o foco da conversa:
— Mas eu vim aqui te provar uma coisa.
— O quê?
Apontei para a beira do lago, onde alguns gansos nadavam,
e ele me encarou com uma sobrancelha erguida.
— Quer que eu roube um para você? — O mais engraçado
de tudo era que ele parecia falar muito sério. — A gente pega e sai
correndo!
— Você quer a polícia ambiental correndo atrás da gente? —
Ri, lhe entregando um pão que pedi para o senhor do sorvete. —
Além do mais, a Lena me mataria se descobrisse que eu roubei um
ganso do lago.
— Quem é essa? — Eric pegou a massa da minha mão,
tirando um pedaço e enfiando na boca.
— A amiga da pulseira da sorte. — Sacudi o braço com as
miçangas amarelas e dei um tapa em sua mão. — Não é para
comer, idiota.
Eric olhou de mim para o pão algumas vezes, confuso, e, só
quando eu apontei com a cabeça em direção aos gansos, ele
entendeu.
— Você quer que eu… dê isso para eles? — O vinco em sua
sobrancelha me dizia claramente o quanto ele me achava insana.
Assenti.
— E o que eu ganho?
— O que você quer?
Ele levou a mão ao queixo e me encarou com uma cara
pensativa.
— Um desejo.
Parecia perigoso, mas eu sabia que ele não completaria a
missão.
— Certo! Se você conseguir chegar perto, realizo um desejo
seu. — Ri, prevendo a cena maravilhosa que eu estava prestes a
assistir. Fosse lá o que Eric pedisse, valeria a pena. — Senão, quem
fica devendo um desejo é você.
Seu peito se inflou em coragem, e, com toda a pose de
corajoso, Eric marchou em direção à beira do lago, onde alguns
gansos pequenos descansavam na grama.
Um passo de cada vez e bem devagarinho, ele se aproximou
dos bichinhos e entregou para dois dos quatro gansos um pedaço
de pão. Vitorioso, ele me olhou, sorridente, e ergueu o polegar.
— Alguém me deve um desejo! — gritou.
Droga! Achava que seria mais difícil, mas ele até que era
corajoso, precisava admitir.
Observei os outros dois bichinhos que haviam ficado sem pão
passarem o bico na mão dele e o ouvi dizer:
— Não tenho mais nada, amiguinhos.
Eric teve o tempo que se leva para piscar duas vezes até que
um dos gansos se revoltasse e bicasse suas partes baixas.
— Ganso dos infernos! — gritou com a mão entre as pernas,
se afastando.
O mesmo bicho que o havia bicado, como se chateado com o
xingamento, correu atrás dele, batendo as asas, saindo poucos
centímetros do chão e então deixando outra bicada em seu traseiro.
— Maitê, socorro — berrou. — Meu Deus, acho que ele voa!
— Ele é uma ave, Eric. Você esperava o quê?
Eu não me aguentava de dar risada. Nenhum dinheiro no
mundo pagaria aquela cena. Todos os gansinhos começaram a voar
e correr atrás dele, e eu me segurava para não fazer xixi nas calças
de tanto rir.
— Filha da mãe, você sabia! — Ele vinha tão rápido em
minha direção que eu me perguntava se não deveria correr também.
Eric colidiu contra meu corpo como um jogador de futebol
americano atinge seus oponentes, mas, em vez de passar por cima
de mim, me ergueu e me jogou sobre um dos ombros. Ele me
arrastou para longe dos gansos que o perseguiam, gritando em
desespero e chamando atenção demais para quem queria ficar no
anonimato. Minha barriga doía do riso, toda vez que um dos bichos
bicava seu tornozelo e ele soltava um gemido choramingado.
— Para de rir, ou eu vou te largar com eles! — ele gritou, me
dando um tapa na parte de trás da coxa.
Eric me carregava como um saco de batatas. Meu nariz batia
em suas costas, enquanto ele corria, e meu sangue descia todo
para a cabeça. Ainda assim, eu não conseguia parar de gargalhar.
— Eric, desse jeito você vai mostrar minha bunda pra todo
mundo!
Aquele era o lado ruim dos shorts jeans largos: eram lindos,
mas nunca indicados para ocasiões de emergência.
— Quem liga se tem alguém vendo, Maitê? Eles vão matar a
gente!
Eu daria tudo para ver aquela cena como um telespectador:
Eric correndo comigo nos ombros como se fugisse de uma gangue;
quatro gansos raivosos atrás de nós; e eu, vermelha, usando toda a
minha concentração para não molhar as calças de tanto rir.
— Me põe no chão, eu sei correr! — gritei.
— Se eu te soltar, não vai dar tempo!
Foram necessários quase três minutos para despistarmos as
aves. À medida que corríamos, outros gansos rancorosos, que
ficavam soltos por ali, decidiram nos perseguir também, fazendo
Eric gritar durante todo o percurso e apertar ainda mais o passo.
O rapaz, ofegante e com as bochechas vermelhas de
cansaço, me colocou no chão e se jogou sobre a grama, tentando
regular a respiração.
— Você me paga, Maitê!
Sua máscara preta foi puxada para baixo do queixo e, no
impacto de seu corpo no chão, o boné havia sido lançado para
longe.
— Põe essa máscara, garoto! — cochichei, puxando meu
short para baixo, ciente de que seria impossível recuperar minha
dignidade. — E o boné! Quer que alguém te reconheça?
— Posso recuperar minha respiração primeiro? — reclamou,
puxando minha mão e me fazendo cair sentada ao seu lado. — Ou
você e o seu exército de gansos cheios de dentes na língua vão me
ameaçar outra vez?
Seu peito descia e subia rapidamente, em uma mistura de
falta de ar e risada.
Até aquele momento, eu não tinha reparado em como ele era
atraente. Seu pescoço magro e comprido com um pomo de adão
proeminente, as bochechas rosadas do esforço e os cílios curtos e
escuros; era lindo de se ver, e eu odiava admitir.
No entanto, o mais inaceitável de tudo era que, em muito
tempo, aquela era a primeira vez que eu me divertia tanto com
alguém.
Então a sirene em minha cabeça voltou a tocar.
“Sonhando com você
Hoje novamente, estou sonhando com você”
— Dreaming about you, Miyeon.

Bem como previ, a voz de Eric ecoou em minha cabeça


durante todas as minhas oito horas de sono. Tive um sonho pra lá
de estranho, onde eu era a rainha de um reino gigantesco e ele,
prisioneiro. Como se não fosse estranheza demais, o sonho por si
só ainda tinha o lisonjeiro fato de que os seguranças do meu castelo
eram nada menos que gansos enormes. Gansos enormes de terno!
O sonho inteiro se resumiu a Eric choramingando de joelhos,
pedindo por abrigo. No fim, o sem-vergonha roubou meu coração e
fugiu com ele em uma sacola.
Do Pão de Açúcar!
— Maitê…
Ouvi sua voz, ao longe, me puxar lentamente do meu
pesadelo.
— Maitê-ê! — cantarolou.
— Droga. O que foi agora, Eric? — Passei o travesseiro por
cima da cabeça, suplicando aos céus, em pensamento, por mais
cinco minutos de sono.
— Vai se atrasar para a aula.
— Hoje é segunda, não tenho aula! — ralhei. — Me deixa
dormir. Você e meu exército de gansos me atormentaram a noite
inteira.
Ouvi a maçaneta girar e a porta emperrada se abrir com
força. Antes que eu pudesse argumentar, Eric estava sentado na
ponta da cama, puxando meu travesseiro e zumbindo no pé do meu
ouvido:
— Quer dizer que você sonhou comigo, então?
Trinta e um anos… Ele tinha trinta e um anos nas costas e
me atormentava como alguém de dez!
— O que você sonhou, hein?
— Estou tendo pesadelos, Eric Lee! — choraminguei. —
Graças a você, eu era uma rainha cercada por seguranças gansos
de terno. E, mesmo no sonho, você continuava me implorando por
um lugar para ficar.
Claro, escondi a parte irrelevante do coração em uma sacola
de supermercado.
— Nessa realidade ou na outra, você não pode fugir de mim
— ele dizia tudo sempre com um sorriso bobo no rosto, um sorriso
que mostrava todos os dentes da boca, como um bobalhão.
Quando me virei, pronta para lhe dar uma bicuda, assustei
com a imagem de Nina parada à porta. Minha amiga me fitava com
a boca aberta e os olhos cerrados.
E eu tinha uma vaga ideia do porquê.
Meu quarto sempre fora o santuário da casa e o lugar
proibido para qualquer ser vivo que pisasse ali. Eu não permitia que
ninguém, além dela e de Lena, entrasse lá.
Nem o Josh.
Isso porque aquele era o meu lugar seguro. Onde ficavam
todos os meus instrumentos, onde eu estudava, me inspirava e
vivia, quando não estava na faculdade ou trabalhando.
Eric era tão pentelho que eu já nem tinha forças para impedi-
lo de entrar. De qualquer forma, eu sabia que não havia nenhuma
possibilidade de que ele fosse me obedecer. Claro que não.
— Você não tem emprego? — zumbiu em meu ouvido.
Desejei que ele fosse uma mosca para que eu o amassasse
entre meus dedos e o soprasse para longe.
Nina ainda me encarava da porta. No entanto, no lugar da
expressão de antes, agora ela exibia algo muito diferente: malícia e
sede de fofoca.
Ah, não!
— Sai do meu quarto! — ordenei às pressas, ainda deitada, o
empurrando com os pés. — Anda, vai, vai!
— Não quero. — Fez bico, deitando-se sobre as minhas
canelas. — Seu irmão está me encarando desde a hora que
levantei.
— Você vai ter que lidar com isso, se quiser ficar aqui. — Me
levantei da cama em um pulo, assim que ele se deitou, e puxei seu
pé. — Anda, sai daqui.
— Seja lá o que você for fazer, ou para onde for, daqui até o
dia de eu ir embora, pelo amor de Deus, me leva com você —
choramingou, se agarrando na colcha da cama enquanto ia caindo
no chão, conforme eu o puxava.
Eu não entendia como ossos poderiam pesar tanto!
— Ter você falando na minha cabeça durante um dia inteiro
não é uma alternativa!
Fiz um pouco mais de força e finalmente o tirei por completo
do meu colchão.
— Por favor, Maitê!
Aquela cara de dó, as sobrancelhas finas caídas, o cabelo
castanho partido no meio e os malditos olhos de cachorro
abandonado eram uma combinação infalível para me deixar ainda
mais irritada.
— Eu trabalho em um estúdio de gravação, Eric. — Eu o
encarei, tirando uma muda de roupas de dentro do armário. — Já
tenho coisas de mais para fazer. Preciso conferir os instrumentos
antes das gravações, muitas vezes estar no piano, revezar entre
tudo isso e ainda cuidar da mesa de som! — falei, ficando na ponta
dos pés e tentando alcançar minha mochila, que, por uma escolha
ruim, decidira guardar no lugar mais alto, onde eu não alcançava. —
Não posso tomar conta de você.
— Não preciso que tome conta de mim. — Sua voz
geralmente divertida, dessa vez, soou grave e séria ao pé do meu
ouvido.
Como um filhote indefeso, assisti aos seus braços longos
virem por trás de mim e alcançarem a mochila com facilidade,
puxando-a para baixo.
— Só não quero ficar aqui sozinho — completou. — Além do
mais…
— Além do mais…?
— Precisamos dar um jeito de falar com meu empresário, e
eu preciso que você esteja comigo para me ajudar, e… — Ele
pigarreou, procurando uma desculpa. — Quando isso acontecer, eu
vou embora e… não sei se vou te ver de novo.
Pigarreei.
— Só queria aproveitar o tempo que tenho com você.
Oi?
— Por que você faria isso? — Franzi o cenho, com o coração
ameaçando palpitar.
— Porque eu gosto da sua companhia. — Seu corpo estava
perto demais do meu, e, ao perceber, seus pés se moveram alguns
centímetros para trás. — E, quando eu for embora, vou sentir sua
falta.
Um tropeço.
Foi o que aconteceu com o meu coração ao escutar aquelas
palavras doces tão de repente. Meu coração tropeçou e falhou, e,
por um momento, senti minha barriga gelar.
— Por que está rindo? — Ele franziu as sobrancelhas.
Ah, isso?
Na verdade, “rindo” era uma palavra muito simples para
descrever o que estava acontecendo. Em momentos de desespero,
eu apenas tinha crises de gargalhadas. Daquelas que me faziam
engasgar.
E eu estava desesperada. Por motivo nenhum.
— Não sei — respondi entre uma risada e outra, ao que
lágrimas se juntavam no canto dos meus olhos —, eu só…
— Você é uma boba. — Fingiu-se de ofendido, empurrando
minha testa de leve com o indicador. — Pode rir o quanto quiser e
reclamar até o dia de eu ir embora, mas não vou desgrudar de você.
— Certo, mas vai precisar desgrudar de mim agora.
Passei por ele com minha melhor cara de deboche, tentando
me recuperar do surto de riso, e ele colou em meu braço como
chiclete. Eric havia se tornado a única pessoa do sexo oposto que
encostava em mim e não me fazia querer vomitar.
E eu nem notara o momento em que aquilo passara a
acontecer.
— Não até você concordar.
— Vai me seguir até o chuveiro?
Ele me encarou por um segundo, desviou o olhar e engoliu
em seco.
— Vou te esperar lá embaixo.
Como um robô, deu meia-volta com o corpo e, só depois,
virou a cabeça em direção à porta; as mãos juntas nas costas e o
nariz erguido.
— Ótimo! — gritei do quarto.
Marchei para dentro do banheiro, colocando minha muda de
roupas limpas em algum canto seco, e fechei a porta. Nina, que
sumira antes que eu percebesse, apareceu na mesma rapidez e
puxou a maçaneta, antes que eu trancasse.
Minha amiga se sentou de braços cruzados sobre a tampa do
vaso fechado e pigarreou antes de falar, muito séria:
— Desembucha.
— O quê? — Franzi as sobrancelhas, jogando a roupa que
vestia dentro do cesto e entrando no chuveiro.
— O que existe entre você e esse cara?
— Um oceano enorme, uma diferença gritante de saldo
bancário, fama e um ranço sem fim. — Ri, contando nos dedos. —
Não se preocupe, ele é um pentelho.
— Não é o que parece, Tetê! — Nina abriu o boxe e colocou
a cabeça para dentro, me encarando; os respingos de água
molhando seu rosto. — Você não traz homem nenhum para casa e
não deixa ninguém entrar no seu quarto. Quem dirá deitar na sua
cama, como o bonitão fez!
— Eu não deixei aquele idiota entrar no meu quarto e muito
menos deitar na minha cama — me defendi. — E trazê-lo para casa
foi mais um… um surto de empatia. É, vamos chamar assim. Eu
devia ter recusado.
— Eu entendo que ele é famoso e lindo de morrer. Sério,
você não precisa esconder nada de mim. — Nina fechou o boxe de
novo e voltou a se sentar sobre a tampa do vaso. — Só quero saber
o que está acontecendo.
— Ah, Nina, fala sério! — resmunguei, esfregando o xampu
no cabelo. — Você acha mesmo que eu estou tendo um romance
com aquele mané? Logo eu?
— É difícil de acreditar, mas é o que apontam os fatos.
Esfreguei o cabelo e os olhos embaixo d’água, para tirar a
espuma e poder encará-la seriamente ao dizer:
— Eu não tenho nada com aquele cabeça de vento. —
Apontei para o meu telefone tocando sobre a pia. — E nem vou ter.
Atende, por favor?
— Alô. — Ela obedeceu, colocando o telefone na orelha,
insatisfeita. — Ah! Oi, Lena! Ela está no banho. Hoje? Só um minuto
— pediu, me olhando. — Tetê, a Lena perguntou se você pode ir à
casa dela, agora cedo… Ela quer conversar com você.
— Tá. — Cuspi um pouco da espuma que entrara em minha
boca sem querer. — Já, já eu vou.
Nina repassou o recado, sorrindo, e então desligou, voltando
a me encarar com a expressão séria, ainda sem cair no meu papo.
Respirei fundo e, dada por vencida, contei a história toda
outra vez.

— Você vai mesmo sair e me deixar aqui, depois de todo o


meu discurso? — Eric cochichou em meu ouvido, enquanto eu
procurava algo para comer dentro da geladeira.
Encostado na pilastra da cozinha, Josh o encarava como um
tigre encara uma presa antes de atacar.
— Se ele chegar muito perto, vou ter que bater nele —
comentou nosso hóspede, segurando a barra da minha blusa — e
não quero brigar. Eu tô dizendo, ele tá com cara de quem vai sumir
comigo, Maitê.
— Quem me dera ele fizesse esse favor. — Puxei
delicadamente sua mão que agarrava o tecido. — Já disse que é só
até eu voltar da casa da Lena, não vou demorar.
— Quanto tempo?
— Não sei. Duas horas? Talvez mais — falei, lambendo a
tampa do iogurte e jogando no lixo. — Para de agir feito um
cachorrinho medroso, você sabe se defender muito bem. Josh não
vai tocar em você.
— Quem me garante? — Franziu as sobrancelhas e cruzou
os braços.
— Eu te garanto — falei alto para que Josh ouvisse,
apontando para o peito do meu irmão. — Tá escutando, Josh? Não
toca no meu puppy[2].
— Eu não sou seu puppy! — contrariou, bravo.
— Qual é a desse cara, hein, Bubba? — Josh chegou perto
ao interrogar no bom e belo português.
— Já te disse: é só alguém que eu achei na rua e precisei
cuidar por alguns dias.
— A Nina disse que ele é famoso. — Ergueu uma das
sobrancelhas. — É aquele cara que você pediu para que eu
checasse no hotel?
— Talvez…
— Se for ele, então é rico o suficiente para ficar em outro
lugar.
— Longa história, Josh — suspirei —, longa história.
— Eu não quero você grudada nele.
O ciúme do meu irmão, às vezes, me tirava do sério.
— Grudada assim? — Passei um dos braços pelo pescoço
alto de Eric, fazendo-o se curvar, e deixei um cascudinho em sua
cabeça. Josh cerrou os dentes e bufou, nervoso. — Eu estou saindo
agora e já volto para buscá-lo. Nada de fotos da estrela pop aqui,
ouviram? Se eu vir algo na internet, mato os dois. Não vou nem
perguntar quem foi.
— Sim, senhora! — Nina desdenhou, tirando apenas um dos
fones do ouvido e jogando-se no sofá.
— Não tragam ninguém em casa! — ordenei e então me virei
para Eric. — Sobreviva sem mim apenas por algumas horas, puppy.
Eric franziu o cenho, deixando parecer que rosnaria de volta.
Sorri ao imaginar a cena dele com orelhinhas de cachorro e saí ao
encontro da minha melhor amiga.

No caminho para a casa de Lena, usei todos os meus


neurônios para tentar descobrir qual teria sido o motivo de ela pedir
uma reunião de emergência comigo, em plena segunda-feira. Nada
me vinha à cabeça.
Será que ela tinha se metido em encrenca por causa de
alguma entrevista, outra vez? Eu sabia que ela odiava ter que se
arriscar para cobrir furos, mas que fazia por precisar pagar as
contas. E se ela tivesse descoberto algo gigante e estivesse sendo
chantageada? Só de pensar, meu coração ficou todo angustiado.
Helena era uma baita de uma azarada e tinha o dom de se
meter em encrenca. Além de tudo, ela era muito determinada e
descobria qualquer coisa que quisesse, mesmo que, para isso,
precisasse ficar de tocaia por três dias na frente da casa do meu
crush para descobrir se ele estava ficando com alguém além de
mim.
Ela era esse tipo de pessoa.
Sua família tinha a mania de deixar o portão aberto. Então,
depois de chamar umas cinco vezes, passei pela sala vazia,
avisando que estava entrando, e não tive nenhuma resposta. Subi
as escadas reparando na nova planta que tia Julieta havia colocado
na sala: um grande vaso com uma palmeira-leque, logo abaixo da
escada. Um luxo.
Quando entrei no quarto de Lena, dei de cara com Helen
deitada no tapete lilás e felpudo, entre a cama e a escrivaninha.
— E aí — falei, acenando de longe com a cabeça. — Cadê
todo mundo dessa casa?
— Oi, Tê! — A irmã de Lena, que seria sua cópia se não
tivesse o cabelo tão loiro, se levantou e me deu um abraço. — Todo
mundo resolveu sair, mas a Lena está no banho e já vem.
Me arrastei até a cama, passando a mão na parede preta
rabiscada de giz e cheia de pôsteres. Lena havia colado com fita
inúmeras polaroides perto da escrivaninha, das quais me aproximei.
Nas fotos, pude ver o sorriso sincero da garota em uma sorveteria
toda rosa, com um sundae gigante na mão; ela na piscina, abraçada
a mim; ela grudada em Chopin, na sala da minha casa; famosos que
ela encontrara na rua; mais sorrisos em viagens com outros amigos;
e finalmente o registro de uma história marcante entre a gente.
Nele vi o rosto vermelho de Lena, que ria eufórica ao lado de
Helen enquanto, no cantinho, eu vomitava tudo o que tinha dentro
de mim no chão. Aquela era a lembrança do meu primeiro e último
show de K-pop. Uma boy band chamada MONT, prestes a debutar,
havia feito um show gratuito no Bom Retiro. Lena chorara tanto para
eu ir junto, que acabara aceitando. Enquanto as irmãs aproveitavam
o show, lá na frente, e gritavam com todas as suas forças, eu
economizava as minhas, sentada em um banquinho de plástico ao
fundo e tomando uma bebida colorida com soju, que as meninas
haviam comprado.
O que eu não esperava era que aquele drinque docinho
tivesse tanto álcool! A bebida era tão forte que quase me fizera
esquecer meu nome e vomitar todos os órgãos do corpo. No
caminho de volta, tinha comprado um pote cheio de kimchi, que eu
nem gostava, só porque elas compraram também, e pagado
inimagináveis quarenta reais em um boné rosa. Eu tinha me
apaixonado por ele, mas choramingara pelo preço até chegar em
casa.
Um sorriso gigante se repuxou em meu rosto ao pensar
naquela memória. Sim, eu fora obrigada a escutar músicas de que
não gostava por quase duas horas, bebendo sozinha em uma
barraca, mas no fim havia sido legal. Lena sempre carregava aquela
camerazinha na bolsa para registrar tudo.
Foi assim que ela conseguiu uma foto minha quebrando o
violão na cabeça de seu ex.
— Aconteceu alguma coisa com ela? — perguntei para
Helen, que folheava uma revista Fofoquei no chão.
— Acho melhor ela te contar — a irmã desconversou.
Coisa boa não era.
— A bruaca da chefe dela fez alguma coisa? — Franzi o
cenho, brava só de pensar, dessa vez olhando para os pôsteres na
parede. — Se foi isso, eu juro que… eu juro…
Espera…
— Jura o quê?
— Eu juro que… Ah, não… — murmurei, encarando um dos
pôsteres. — Não, não, não!
— Que foi, Maitê? — Helen se levantou, preocupada com
minha expressão de horror ao encarar a impressão na parede. — É
uma barata?
— Ai, meu Deus! — gritei. — Ai, meu Deus! A-I-M-E-U-D-E-
U-S!
— Cadê, Maitê? Cadê? — insistiu a garota, tirando um
chinelo do pé e subindo na cama. — Você mata, eu tenho medo!
— O quê? Barata? — Ouvi Lena gritar de dentro do banheiro
do quarto.
— Eu não acredito nisso! — Baguncei o cabelo, com os olhos
grudados no pôster, então rodei o quarto atrás de outros.
Será que eu estava tendo alucinações?
— Não tem barata? — Helen perguntou, confusa.
Não respondi. Eu estava ocupada demais sentindo minhas
forças se esvaírem em suor.
Logo acima do computador, uma imagem entre muitas outras
estampava o rosto de alguém que eu conhecia tão bem.
Eric.
Uma foto gigantesca dele de cabelo molhado, a camisa social
aberta e um tanquinho à mostra complementava a decoração de
Lena. Voltei minha atenção para outra, logo acima da cama, ao lado
do pôster de Kian, um cantor do qual ela vivia falando.
— Não é possível que ela durma olhando para isso.
Senti minhas pernas tremerem. Eu teria grandes problemas.
— Do que você está falando, Tê? — Helen se aproximou,
depois de se certificar de que não havia barata nenhuma, encarando
os pôsteres na parede também.
— Me fala que é só uma alucinação e que esse cara não é
quem eu estou pensando.
— Quem? O Kian? — A garota de cabelos cacheados me
olhava como se eu tivesse enlouquecido. — Desde quando é
novidade que ela é obcecada por ele?
— Esse não. — Apontei para o homem com a cara tanto sexy
quanto de cachorrinho sem dono. — Aquele!
— Não acredito que você não lembra o nome do cantor
favorito da Lena, Tê!
Ô, pecado!
Espremi os olhos, tentando ler o que estava escrito no pôster,
mas era um autógrafo muito rabiscado, que não me remetia a nome
algum. Naquele momento, Lena entrou no quarto com uma toalha
na cabeça, olhando para os cantos e perguntando da barata.
— Alarme falso — a irmã disse.
Lena, então, pulou em minhas costas como um macaco e me
deu um beijinho.
— Estão olhando o quê? — Sua voz animada me tirou do
transe, me fazendo olhar para seu rosto com os olhos arregalados.
— Tetê está tendo uma crise existencial com a beleza do seu
homem.
— Q-quem é esse, Lena? — gaguejei.
— Meu cantor favorito. — Ela franziu o cenho. — Não
acredito que você nem lembra, Tê!
Droga! O Eric de quem ela vivia falando era aquele Eric?
— Qual é o nome dele? — perguntei, horrorizada, só para
confirmar.
— Desde quando você tem interesse em K-pop? — ela
rebateu.
— E-Eu não tenho… é só que… er…
— Só o quê?
— Só me diz o nome dele!
— Eric, amiga — resmungou, fazendo careta. — Eric Lee.
Eu, hein!
Ai, meu Deus!
Santo Chopin da clave de sol!
— Foi no show dele que ela rasgou minha blusa favorita. —
Com as mãos na cintura, Helen encarou a irmã mais nova, que deu
um sorrisinho inocente.
— Então… essa é uma história engraçada. — Riu, sem
graça. — Não foi culpa minha. Ele saiu sozinho no meio das fãs, do
nada, e elas começaram a correr atrás dele, e eu, óbvio, corri
também para tentar ajudar o coitado.
Àquela altura do campeonato, minha pressão já estava no
chão.
Mas era claro que a fã que ajudara Eric fora Lena. Me
lembraria de lhe dar um tapa por isso, mais tarde.
— Teve uma hora que ele atravessou a rua e quase foi
atropelado pela produção, aí entrou no carro e foi embora. Eu me
joguei em cima de umas malucas e acabei rasgando a blusa, mas
juro: valeu cada buraco! — completou.
Produção? Então era assim que uma mera estudante de
música, tentando voltar em paz para casa, era chamada?
Sentei na cama, sentindo o mundo rodar. Alguém havia
abaixado a alavanca da lei da gravitação de Newton.
— Ele é lindo, né? Eu sei. — Lena passou a mão no pôster,
dando um suspiro, e enfim virou-se para mim. — Você nunca
demonstra curiosidade sobre meus pôsteres, Tê. O que deu em
você hoje?
— Eu nunca havia reparado neles, para ser sincera. — Ri
amarelo.
— Hum… — Deu de ombros e puxou a toalha da cabeça,
secando a ponta dos cabelos. — Ele é lindo de perto e tem uma
mão tão macia!
É, ele tinha mesmo.
— Aquele dia foi uma confusão! Na verdade, ele… — Ela
parou quando percebeu que eu ainda encarava a foto na parede. —
Você não vai querer saber.
— Ah, eu vou! — disse, puxando-a para sentar na cama.
Helen sentou do outro lado, deixando Lena no meio. — Conta tudo.
Minha amiga me encarou como se tivesse brotado um pé na
minha testa, mas, mesmo desconfiada, concordou e começou a
tagarelar todos os detalhes. A irmã parecia já saber cada virada da
história, mas escutava animada, como se fosse a primeira vez.
Minha melhor amiga quase não respirava com a empolgação.
Falou sobre como o show fora incrível, sobre as luzes, efeitos,
danças, como Eric era mais bonito e magro de perto e como, às
vezes, se perguntava se ele não passava fome e blá-blá-blá. Eu
duvidava muito de que fosse o caso; afinal, sabia bem o quanto
aquele poste comia e como tinha sempre a fome de três leões
amarrados.
— Enfim, se eu tivesse socado a cara daquela loira magrela e
corrido um pouco mais rápido, talvez conseguisse ajudá-lo a fugir
seguro. Aquelas fãs não são brincadeira! Espero que ele esteja
bem. Não sei como Eric conseguiu desaparecer daquela forma, mas
de uma coisa eu sei… — Lena fez uma pausa dramática, me
obrigando a franzir a testa em desespero. — Preciso voltar para a
academia. Deus me livre ver meu idol sendo perseguido outra vez e
não poder fazer nada pela falta de boa forma.
Soltei uma lufada de ar em alívio, esvaziando meus pulmões.
Será mesmo que ninguém havia registrado minha cara, naquele
dia? Ninguém sabia que o tal astro do K-pop estava perdido nas
ruas de São Paulo, na casa de uma desconhecida que só escutava
música clássica e indie?
Como era possível que ele sofresse uma perseguição
daquelas e ninguém fizesse nada? Pelo menos, eu podia respirar
feliz ao saber que existiam fãs como Lena, que se preocupavam
mais em proteger os ídolos do que em persegui-los até a morte.
— Então, o que aconteceu para me chamar aqui, do nada?
— perguntei ao me lembrar do motivo real de ter chegado ali. — Em
quem vou ter que bater, dessa vez?
Lena riu, e Helen fez aquela cara de “senta que lá vem
história”.
— Eu vou deixar vocês a sós — a irmã disse. — Não quero
ser atingida por nada, quando os móveis começarem a voar.
Encarei Lena, assim que Helen fechou a porta, e cruzei os
braços.
— Em que encrenca você se meteu, Helena Ferreira?
Minha amiga retorceu a barra da camisa larga e cinza que
usava em casa; a estampa com o rosto do cantor já estava
desaparecendo pela lavagem e não passava de um fantasma do
que, um dia, havia sido.
— Helena, o que foi? — Franzi a testa, esperando. — O que
você fez dessa vez?
— Foi burrice.
— Que tipo de burrice? — Ergui uma sobrancelha.
— Mas uma parte minha acha que não foi.
— Pelo amor de Deus, só fala!
A morena fechou bem apertado os olhos e inspirou fundo,
antes de soltar de uma vez só:
— Eu almocei com o Miguel na sexta-feira!
Eu tinha escutado direito?
Ela havia almoçado com o cara que a enfiara em um buraco
depressivo por anos?
Respirei devagar para não soltar a fera que insistia em sair
de dentro de mim. Lena almoçara com aquele que estilhaçara não
só seu coração, mas a autoestima, a coragem e a confiança que a
faziam sorrir sem medo.
— Eu sei como deve estar me olhando, então vou ficar de
olhos fechados até acabar! — Se apressou, antes mesmo que eu
abrisse a boca para começar meu discurso de mãe. — Eu não o
procurei, juro! Ele trabalha no quarto andar do prédio da revista,
agora, e acabamos nos esbarrando no elevador.
Helena abriu os olhos, encarando as mãos que retorciam a
malha macia.
— Mas que merda de destino. — Foi tudo que eu consegui
dizer.
A voz da mineira caiu alguns tons, num murmúrio sofrido:
— No começo, eu o evitei ao máximo, Tetê. Até desci no
andar errado para que ele não soubesse onde eu trabalhava, mas
ele acabou me encontrando de novo, quando saí para o almoço, e
insistiu para conversarmos… — Sua voz saiu trêmula, e seus olhos
teimavam em fugir de mim.
Eu não estava ouvindo minha melhor amiga, naquele
momento, mas a Helena insegura que Miguel criara.
— Ele contou o lado dele da história, disse que só falou
aquelas coisas para impressionar os amigos, mas que jamais quis
me magoar. Falou que me amava… Eu sei… — Piscou algumas
vezes. — Eu sei que parece falso, mas ele até chorou, Maitê! Ele
pediu uma chance… e pareceu tão sincero…
Ela ainda o amava, ou pensava que sim, e aquilo me matava
por dentro.
Eu jamais suportaria vê-la desabar mais uma vez.
— Mesmo que ele tenha sido um idiota, eu o conhecia…
Fomos amigos, antes de… Você sabe. — A lágrima escorreu na
bochecha, e eu escutei em silêncio.
Lena não precisava que eu dissesse nada, só queria
desabafar.
— Ele nunca chorava, Tê. Nunca… — Sequei seu rosto
molhado e a apertei contra mim em um abraço reconfortante. — Eu
estou confusa. Meu coração tá doendo. Parece que tenho
dezessete anos de novo.
Tentei acalmar a pequena com um carinho nas costas,
enquanto a abraçava ainda mais forte. Eu sabia o quanto Miguel a
havia machucado e que, mesmo que fingisse que não, ela ainda
nutria sentimentos por ele.
— Sou uma idiota, eu sei. — Soluçou.
— Eu não acho — falei, por fim. — O amor é uma coisa
complicada.
— Tem razão.
Afastei Lena alguns centímetros, acariciando seus cachos
quase secos.
— Eu não posso te dizer para aceitar ele de volta ou não,
amiga. — Suspirei. — Eu odiaria te ver com ele de novo, porque ele
não te merece, mas a decisão é sua.
— Eu sei — choramingou. — O pior de tudo é que eu sei
disso, mas não consigo evitar o que eu sinto.
— Eu sinto muito, Leninha.
Agora sua mão estava entre as minhas. Eu a acariciava com
compreensão, porque não poderia fazer nada melhor. Eu não
poderia decidir por ela ou acabar com sua dor. Se pudesse, não
pensaria duas vezes em tomar toda aquela angústia para mim.
— Sabe o que eu acho? — perguntei, e ela me olhou
esperançosa. — Acho que você precisa conhecer gente nova e
respirar novos ares.
— Acredite: se eu pudesse, já tinha voado para a Coreia —
ela brincou.
— E por que ainda não foi? — Ergui os ombros. — Eu sei
que você guarda dinheiro para isso há muito tempo e que é o seu
sonho.
— O meu pai não concorda.
— Você é adulta, Lena! — lembrei. — Pode fazer o que
quiser! Sua mãe e suas irmãs não amam a ideia de te ter longe,
mas eu sei que elas ficariam radiantes em te ver realizar um sonho.
— Mas meu pai…
— A gente lida com ele depois!
Lena me olhou como se eu tivesse acabado de tirar a venda
de seus olhos.
— Você… viria comigo? — Ela parecia estar, de fato,
considerando a ideia.
— Definitivamente, não. — Ri. — Mas torceria por você e te
ligaria todos os dias.
Lena fitou o céu esbranquiçado pela janela, na parede oposta
do quarto, e um pequeno sorriso despontou em seus lábios.
— Não tem Miguel do outro lado do mundo… — ela disse,
mais para si mesma do que para mim, e eu não soube se ela
achava aquilo bom ou ruim.
— Não tem… mas tenho certeza de que existem coisas muito
melhores.
Minha amiga secou os olhos e deu um pulo da cama,
decidida.
— Eu vou!
— Isso aí! — Não achava que ela fosse mesmo considerar,
mas também não esperava que Lena fosse racional como eu. Ela
agia com o coração, e eu a amava por isso. — Acho que você
precisa procurar um pouquinho de felicidade e encontrar uma razão
para viver.
— Você está certa!
Então, seus braços pequenos se jogaram ao meu redor e me
espremeram com um amor dolorido.
— Eu te amo, Tetê! — ela disse. — É como ter um papo ao
vivo com a razão! Você faz tudo parecer mais claro!
— Estou aqui sempre que precisar de alguém para resolver
os seus problemas — brinquei.
Minha amiga abriu a gaveta da escrivaninha, pegou o
passaporte e o folheou.
Foi então que uma luz se acendeu em minha mente para o
meu problema também.
— Lena, sabe, hipoteticamente falando… — enrolei, e ela me
fitou, curiosa — se, por acaso, um idol se perdesse… Vamos dizer
esse cara aí, seu favorito. Como é mesmo o nome dele?
Fingi. Eu sabia aquele nome tão bem que, agora, ele até
dançava com os gansos em meus sonhos.
— O Eric?
— Sim, Eric. — Pigarreei. — Vamos dizer que ele se perca,
fique incomunicável e que seja mimado ao ponto de não saber o
próprio número de celular.
— Isso é a cara dele. — Riu.
— É… e vamos dizer que, hipoteticamente, você é a pessoa
que, por ironia do destino, precisa ajudá-lo a voltar… Como você
faria para entrar em contato com a agência dele e mandá-lo de volta
para Los Angeles?
— Se isso acontecesse comigo, eu zeraria a vida — ela
disse, penteando os fios negros com os dedos. — Mas acho que
usaria meus contatos na Fofoquei para entrar em contato com a
equipe dele. Não seria tão difícil.
— Hum, e você acha que poderia fazer isso?
— Talvez não funcionasse, mas eu, com toda certeza,
tentaria.
Certo, eu havia acabado de encontrar a solução. Agora só
precisava convencer Eric de me deixar contar a verdade para ela.
— Mas, Tê — ela cruzou os braços e me olhou com os cílios
batendo rápido —, como você sabe que ele é de Los Angeles?
— Eu? — Me fiz de desentendida. — Eu s-só… chutei.

— O que há de errado? Por que está com essa cara? — Eric


me perguntou, debruçado sobre a mesa de som ao meu lado. — O
que aconteceu para estar tão quieta? No que está pensando? E por
que estamos ouvindo essa música? Tá me deixando deprimido.
— Juro que, se você fizer mais uma pergunta, eu vou te jogar
pela janela.
Um nariz torcido, as bochechas cheias de ar e um par de
olhos brilhantes e angulados me encararam, formando a grande
imagem de Eric impaciente.
Ao desviar os olhos dos seus, vi sua mão subir sorrateira até
o mouse, com total intenção de trocar a música, sem que eu visse.
— Não mexe aí, Eric!
— Isso é muito chato, Maitê! — resmungou.
— Você não sabe o que é bom, camarada! — Eu não tinha
forças sequer para levantar a cabeça. — O concerto para clarinete
de Mozart é, com certeza, uma das melhores músicas para ajudar a
colocar a cabeça no lugar… Claro, se você não estiver por perto,
azucrinando.
— O que aconteceu nesse meio-tempo em que você esteve
fora?
— Tanta coisa — choraminguei.
— Eu posso fazer algo para te ajudar?
Pela primeira vez, em todos os dias que passáramos juntos,
senti que Eric era uma pessoa adulta. E que talvez, muito talvez, eu
pudesse contar com ele.
Endireitei a coluna, me sentando de frente para o rapaz, e
soltei uma lufada de ar, decidida a falar sobre o que me incomodava
e torcendo para que ele fosse maduro o suficiente para me ouvir,
sem tirar uma com a minha cara.
— Eu te falei sobre a Lena, certo?
— A garota que te deu a pulseira que enroscou no meu
cabelo? — Torceu o nariz, mais uma vez.
— É…
Ele assentiu com a cabeça, mostrando que se lembrava.
— Bem… acontece que ela é muito fã… — eu não acreditava
que estava fazendo aquilo — ahn… sua.
Eric me olhou com o cenho franzido e cruzou os braços,
como se não fosse novidade nenhuma que as pessoas gostassem
dele.
— Eu não sabia disso, mas lá na casa dela, pela primeira
vez, reparei nos pôsteres que ela tem nas paredes e me toquei
que… — Minha respiração falhava. Por que era tão difícil dizer
aquilo? — Caramba, ela gosta muito de você.
— Pelo amor de Deus, desliga essa música — Eric pediu,
estressado, já levando a mão ao mouse e fechando a aba do
YouTube. — Eu não consigo pensar com esse fiu-fiu-fiu do clarinete
tocando tão alto na minha cabeça.
— É exatamente assim que eu me sinto quando você não
para de falar.
— Pode tirar o foco de mim, por um momento? — pediu,
jogando o cabelo para trás com a mão direita.
— Mas você é exatamente o foco aqui, Eric! — ressaltei,
gesticulando. — A Lena é muito sua fã! Ela tem um pôster enorme
seu, grudado em cima da cama dela, logo ao lado do Kian!
— Sério? Não gosto nadinha desse cara…
— Você só ouviu isso da história inteira?
Com meu grito, Eric esboçou uma cara impaciente e colocou
a mão na cintura.
— Tá, muito legal que ela é minha fã, mas e daí? —
resmungou. — Quer um autógrafo? Eu te dou! Quer um vídeo
falando “Helena-ssi, Saranghae”? — afinou a voz, fofo, apesar do
estresse. — Eu faço isso por você, Maitê! Não é motivo para você
ficar tão para baixo assim, nem para me torturar com essa música
terrível.
Decidi ignorar seu insulto ao meu gosto musical e focar no
problema verdadeiro. Eu não precisava de uma coisa a mais
perturbando minha cabeça.
— Você acha que um vídeo dizendo qualquer coisa seria o
suficiente, sabendo que você está literalmente dormindo no sofá da
melhor amiga dela? — choraminguei.
— Eu…
— Eu sei que é uma situação complicada para você!
Ninguém pode saber o que tá rolando aqui, e é por isso que eu
estou tão inquieta! — interrompi. — Ela nunca me perdoaria se
soubesse que eu mantive o idol favorito dela na minha casa em
segredo. A Lena daria tudo para te dizer um “oi” e perguntar qual é a
sua marca de papel higiênico favorita.
Eric apertou os lábios, pensativo. Então, depois de alguns
segundos, pegou uma das minhas mãos e acariciou com os dois
polegares.
— É só por isso que você está perturbada desse jeito? —
Seus olhos miraram através de mim, e eu senti, pela segunda vez,
um rebuliço no peito.
— Ahn… é… — confessei. — E porque não consigo pensar
em um jeito de te ajudar.
— Se você chamar essa tal amiga para me conhecer, vai se
sentir melhor?
Arregalei os olhos, tanto que achei que fossem saltar das
órbitas.
— Tá me zoando, né?
Ele negou com a cabeça. Muito sério.
— Puppy, você é o melhor do universo! — Dei um pulo da
cadeira, sorridente, e grudei em seu pescoço, tagarelando. — Isso
vai ser incrível! Ai, meu Deus, ela vai ficar tão feliz! A Lena é o meu
bebê. Faço tudo por ela, sabe? Quando ela chegar aqui e der de
cara com você, ela vai… ela vai… hun…
Eric pareceu prender a respiração ao sentir meu corpo colado
ao seu. Meus braços ao redor de seu pescoço o faziam sacudir a
cada pulinho que eu dava. Me soltei dele no instante em que percebi
ter passado dos limites. Sem graça, dei um passo para trás e
pigarreei.
— Foi mal… — Minhas bochechas queimavam de vergonha,
por mais cara de pau que eu fosse. — Então… eu posso pedir para
ela vir?
— Se você me der outro abraço desse, concordo sem nem
reclamar!
Um sorriso lateral e sem-vergonha se formou em seu rosto
galanteador.
— Não se empolga.
— Tô falando sério. — Ele cruzou os braços e me encarou,
com uma sobrancelha erguida e o sorriso ainda no rosto, me fitando.
— Acabei de decidir.
— Corta essa, Eric.
— Nada feito, então.
E lá estava aquela cara de deboche outra vez. A vontade de
apertar seu pescoço, mas de uma forma menos romântica, agora,
era grande.
— Vai querer ver a Leninha triste com você, huh? — Eric fez
um biquinho chantagista, e, por mais que eu não quisesse cair em
sua lábia, sabia que ele era capaz de recusar a ideia só para me
irritar.
E, infelizmente, eu não podia pagar aquele preço.
— Saco! Tá legal! — Bufei.
Me aproximei, enrolando os braços em sua cintura. Com
minha cabeça encostada em seu peito firme, seus braços longos e
magros me apertando contra si, Eric me deu um beijo no cabelo,
seguido de um carinho.
— Boa garota — falou, satisfeito. — Quem é o puppy agora,
huh?
Manipulador de uma figa.
“Conhecia todos os teus jeitos de trapaça, infelizmente
eu caí
Me perdi no centro dessa cara bonita, é tão difícil de
sair”
— Idiota, Jão.

Aquela terça-feira ficaria para sempre guardada em meu


coração! Dentro de alguns instantes, eu proporcionaria um dos
momentos mais felizes da vida de Lena. Tinha certeza de que minha
melhor amiga venderia sua casa em troca de conversar cinco
minutos com o idol favorito e, graças a mim e ao meu grande azar,
ela faria isso sem precisar ser presa ou arrastada para o calabouço
pelas quatro irmãs.
Meu coração batia acelerado, talvez mais ansioso do que o
da própria Lena estaria caso soubesse o que estava prestes a
acontecer.
— O que você disse para ela? — Eric perguntou, deitado no
sofá da sala de música, dentro de um moletom amarelo e com um
saco de Doritos na mão.
— Pedi para vir aqui pegar um presente que eu comprei —
respondi, evidentemente feliz. — Ela adora ganhar presentes,
mesmo que seja uma pedra. Pode apostar que vai vir correndo.
— Essa Helena não trabalha, não?
— Trabalha, garoto! É por isso que são quatro da tarde e ela
ainda não chegou. — Girei minha cadeira e a arrastei sobre as
rodinhas até o lado do sofá, tirando o salgadinho de sua mão e
comendo alguns.
— Quando ela chega? — perguntou, puxando o saco de volta
para si.
— Seis e meia. — Dei de ombros, engasgando com um
pedaço que escorregou direto para a garganta.
Eric me estendeu a garrafa de água em que estava prestes a
bebericar, e eu aceitei, tossindo como nunca.
— E me diz uma coisa: por que não veio ninguém nesse
estúdio, hoje? — Suas mãos grandes jogaram um salgadinho para o
ar, que caiu certeiro dentro da boca. — Vocês vão falir desse jeito.
— Nós tínhamos uma gravação para um CD infantil —
expliquei, finalmente voltando ao normal —, mas ligaram
cancelando. Parece que a cantora está sem voz.
Ele levantou as sobrancelhas, como quem entendia, e enfiou
mais um Dorito na boca.
Sem mais ninguém por ali, Eric e eu conversamos sobre tudo
e sobre nada. Em meio a assuntos muito aleatórios, como as teorias
de Os Simpsons, ele me fez escutar todas as suas músicas, desde
o início da carreira.
Para ser sincera, não eram nada ruins. Eric montou uma
playlist para mim na ordem cronológica dos lançamentos e traduziu
cada letra, já que eu tinha zero conhecimento de sua língua nativa,
que era na qual ele compunha a maioria. Quando o álbum mais
recente tocou, todo em inglês, algo pareceu nos conectar de uma
forma mais intensa. As músicas, que ele fez questão de enfatizar ter
escrito sozinho, falavam sobre amor e superação e me tocavam
pela sinceridade dos sentimentos que traziam.
— Qual é a história dessa aqui, Cheers? — perguntei, agora
sentada ao seu lado no sofá, com suas pernas sobre o meu colo. —
Parece que você levou um baita pé na bunda.
Eric coçou a garganta e jogou um papelzinho de Snickers
amassado em mim.
— Quase isso — murmurou. — Mas não era nada especial, e
eu já sabia que ia acabar assim.
— E por que entrou nessa, então?
Não fazia nenhum sentido para mim. Entrar em um
relacionamento sem saber se daria certo já me soava cansativo o
bastante; eu não entendia por que alguém se sujeitaria a um
relacionamento fadado ao fracasso.
— Eu não fico pensando no fim das coisas, Maitê… — Seus
olhos fitaram o teto ao que suas mãos descansaram atrás de sua
nuca, mostrando seus bíceps pouco proeminentes. — Eu só quis
viver o momento. Era o que eu sentia na época e estava… feliz.
— Você… gostava dela?
E daí, Maitê? Se ele gostava dela ou não, você tem zero
motivos para querer saber disso, inferno!
— Hum… um pouco — confessou —, mas passou. Não foi
difícil superar.
— Que péssimo — falei. — Acho que o pior de tudo, ao
entrar na vida de alguém assim, é sair sem deixar marca nenhuma.
Eu puxava fraquinho alguns pelos de sua canela, enquanto
falava, e ele não parecia ligar.
— Sabe — continuei —, eu nunca me preocupei em
desperdiçar meu tempo com esse negócio de amor. Sou muito
focada na minha paixão pela música, entende? Não sinto que eu
conseguiria dividir essa atenção com ninguém. Mas acredito muito
que, se, e digo um grande se, um dia eu decidisse entrar na vida de
alguém, não iria querer sair de mãos abanando.
Eric me encarou com uma expressão diferente. Seus olhos
se apertaram devagar, prestando muita atenção em mim, e isso me
motivou a continuar. Eu nunca tinha falado sobre aquilo com
ninguém.
— Se eu entrar na vida de alguém, quero deixar minhas
marcas — confessei. Eu não estava sem graça, nem com medo do
julgamento. Era muito fácil falar sobre tudo com ele. — Marcas
boas. Quero gerar boas lembranças, ajudar a superar medos e a
cicatrizar feridas. Mesmo que não dê certo, quero sair com o
coração leve, ciente de que dei o meu melhor. Afinal, para que me
envolver com outra pessoa se não for para despertar o melhor de
nós dois?
Ele me admirou por alguns segundos, então sorriu de um
jeito novo.
— Eu duvido muito que exista alguém que passe pela sua
vida e não saia com marcas, Maitê — Eric concluiu, fitando o fundo
da minha alma. Aquilo me gerou um incômodo esquisito no
estômago e fez um silêncio enorme se instalar sobre nós. — M-
mesmo que seja de um beliscão.
Pentelho!
Estiquei o braço e puxei um tufo de cabelo seu. Minha
diversão nos últimos dias era distrair a cabeça brigando com ele. Eu
já não conseguia me ver fazendo algo diferente.
Eric se sentou, ainda com o cabelo agarrado entre meus
dedos, e apertou minha orelha.
— Solta, puppy! Tá doendo! — resmungou.
— Você só abre a boca para me azucrinar, garoto! — briguei
entre dentes, afrouxando um pouco os dedos para não o machucar.
— Não sai um elogio dessa sua boca cheia de dentes.
— Não é verdade! — reclamou, agora agarrando as mechas
em minha nuca. — A-ai! Solta meu cabelo!
— É verdade, sim! Me fala um elogio que você já fez à
pessoa que te deu um teto pra ficar, em um país desconhecido, e
que alimenta essa sua barriga branca desnutrida?
— Eu nunca fiz? — Torceu o nariz mais uma vez, tornando
isso sua marca pessoal. — Poxa, tem tantos! Hum… você é bonita,
tem um coração puro, cozinha bem e, mesmo que se finja de
durona, é bem legal comigo. — Listou com os dedos da mão
esquerda, enquanto segurava meus fios com a direita.
Então eu era bonita?
Afrouxei os dedos, largando seu cabelo e me sentindo sem
graça, mas ele não fez o mesmo com o meu.
— Hum… o que mais? Eu já te ouvi cantarolar e sei que você
tem uma voz linda, é talentosa, toca um milhão de instrumentos e…
— Tá bom, isso é o suficiente — resmunguei baixo, sem
graça.
— Ué, não foi você quem pediu?
Eric soltou as garras do meu cabelo, mas, em vez de se
afastar, ousou acariciá-lo, me fazendo arrepiar.
— Além disso, você tem olhos azuis lindos e…
Antes que ele terminasse a frase, meus “olhos azuis lindos” e
enfeitiçados por suas palavras bonitas pousaram sobre os dele,
brilhantes, e eu não soube o que fazer ou dizer. Àquela altura, meu
peito doía de um jeito estranho, e meus batimentos já não seguiam
um ritmo só.
— Seus olhos…
Eric tentou continuar, mas não conseguiu. Assisti ao seu
pomo de adão subir e descer hesitante, diversas vezes, até que ele
engolisse em seco e umedecesse os lábios ao dizer:
— Seus olhos, eles…
Seu rosto foi chegando cada vez mais perto do meu, e eu
não ousei me mexer um centímetro. Sem sequer me afastar, prendi
a respiração e lhe assisti se aproximar.
Quando senti o toque macio de seus lábios nos meus, foi
como se meteoros explodissem dentro do meu peito. Sua mão
esquerda me segurou com delicadeza, enquanto, com a outra, Eric
acariciava meu cabelo com carinho.
Céus! Parecia que uma nova dimensão se abria para mim.
— Tê-ê!
Quando estava prestes a passar minhas mãos por sua nuca,
ouvi a voz manhosa de Helena me chamar, do lado de fora da sala
trancada.
— Cheguei! Tem alguém aí?
— Ahn… — gritei, espantada, fazendo um gesto com a mão
para Eric se esconder. — Só um minuto!
Ele correu para trás do sofá, e eu o puxei pela gola da
camisa.
— Aí, não, idiota! — cochichei, enfiando o rapaz debaixo da
mesa de som e o tampando com a cadeira.
Com os dedos, arrumei o cabelo bagunçado e o coloquei
para trás da orelha, antes de abrir a porta. Como sempre, Lena me
lançou um abraço apertado no pescoço, assim que me viu, e eu
retribuí ainda com o coração acelerado.
— Demorei? — perguntou com um sorriso meigo no rosto.
— Não, amiga — falei alto e então sussurrei para mim
mesma. — Infelizmente não…
— O quê?
— Ahn? Nada! — respondi em prontidão, conduzindo-a até a
cabine à prova de som. — Quero que você fique de frente para esse
vidro e preste bem atenção, porque vou dizer algo do outro lado.
Helena concordou, mesmo com um ponto de interrogação
estampado na testa.
Fechei a porta, me coloquei em frente à mesa de som e
apertei o botão para acionar o microfone da minha sala.
— Certo — comecei —, está me ouvindo?
Helena colocou os fones de ouvido e gritou “siiiiiim”, como
naquele programa do Luciano Huck.
— Ahn, antes de tudo, quero dizer que foi muito… hum, difícil
conseguir esse presente e que… ahn, paguei um preço alto por ele
— um grande abraço apertado e gostoso, pensei. — E, mesmo que
você surte de início, preciso que se recomponha de imediato.
Entendeu?
— Siiiiiim! — gritou, com um sorriso de orelha a orelha.
— Certo, aqui vai! — anunciei. — Se controle!
Eric, que brincava com meus dedos do pé embaixo da mesa,
até então, levantou-se ao meu sinal e alongou as costas, ficando de
frente para o vidro.
Lena paralisou, como se tivesse visto um fantasma.
Um fantasma enorme e rosa, vestido de caubói.
— Não… — ela gritou. — Isso não pode ser verdade…
Você… v-você me comprou o Eric Lee?
Foi aí que os gritos começaram.
Lena pulou pela cabine inteira, feito pipoca numa panela
quente.
Desliguei o microfone da sala e, em silêncio, Eric e eu
assistimos à minha amiga se esgoelar.
— Vai deixar no mudo? — Ele franziu a testa, com as mãos
para trás, enquanto observava a cena, se divertindo.
— Acho que isso vai levar um tempo. — Ri, dando um
tapinha em suas costas. Naquele momento, eu tinha tantos motivos
para estar feliz. — Sorria e acene, recruta.
Eric obedeceu, esboçando um sorriso radiante para a garota,
que gritou ainda mais. Foram necessários pelo menos três minutos
para que Lena gritasse tudo o que tinha para gritar, subisse pelas
paredes, desse cambalhota no ar e ameaçasse virar o Super
Saiyajin.
— Tá certo — ela gritou, fazendo sinal de “ok” com os dedos,
depois de alguns minutos, e eu liguei novamente o microfone. —
Estou pronta!
Com toda habilidade de fan service com que fora concebido,
o charmoso e mundialmente conhecido Eric Lee abriu a porta,
resgatando Lena, que suava de pingar. Pegando-a pelas mãos, a
sentou no sofá.
Puxei a cadeira, me acomodando de frente para os dois.
— Certo — comecei —, eu não o comprei para você, vou te
emprestar apenas por alguns minutos.
— Certo, faz sentido. Você é tão quebrada quanto eu. — Ela
nem sequer ameaçou me olhar. Lena só tinha olhos para Eric.
— Além do mais — retomei um pouco mais alto, após
pigarrear —, toda e qualquer coisa dita aqui não sai daqui! Ele não
tem nem permissão para estar fazendo isso e…
— Tá, tá, eu já entendi! — Lena levantou uma das mãos para
mim, falando em um claro português. Sua voz falhada de tanto gritar
saía acompanhada de um sorriso enorme, que não deixava seu
rosto. — Ele é tão lindo que quero aproveitar esse minuto em
silêncio.
— Vai ser um minuto a menos para você. — Dei de ombros.
Eric me olhou como se pedisse por tradução, e Lena pareceu
perceber, ao dizer após uma risadinha:
— Eu disse que você é muito lindo. — A garota olhou para o
ídolo com um brilho nos olhos, dessa vez falando em inglês. — De
verdade. Achei que fosse maquiagem ou edição, mas não poderia
estar mais errada.
— Eu escuto isso com frequência. — Ele sorriu.
Quase pude ver a modéstia saltando pela janela, como uma
pessoa real.
— Convencido, porém lindo — ela comentou em português,
após um suspiro.
Helena, com muita dificuldade de respirar, tirou alguns
segundos para se recompor, então fitou o rapaz.
— Estou muito feliz em te conhecer — disse, por fim. —
Pensei muito sobre você por causa do que aconteceu na sexta.
— Ah, você ficou saben… — Eric parou a frase no meio e
então arregalou os olhos ao apontar para minha amiga. — Ei, você
não é a menina que me ajudou a escapar?!
— É, bem… pelo menos da primeira multidão, até que eles
me engolissem. — Ela riu, sem graça, puxando a barra da blusa
azul com um cacto estampado e os dizeres: “Se me estressar, eu te
espeto!”. Presente meu, claro.
— Meu Deus, eu queria muito te ver de novo para agradecer!
Os olhos da garota não brilhariam tanto nem se anunciassem
que ela havia ganhado na Mega-Sena duas vezes.
— Muito obrigado mesmo, Lena! — Eric continuou. — Se não
fosse por você, meu sapato e meus documentos não seriam tudo o
que eu perderia naquele dia.
— Não foi nada! Eu encontrei aquela sem-vergonha de
cabelo azul e a amiga. A carinha delas já era conhecida por toda
internet, não foi muito difícil. — Helena sorriu, toda orgulhosa, como
se ganhasse uma menção de honra por salvar a pátria. — Os
seguranças as levaram.
— Sério? — Ele arregalou os olhos. — Meu Deus, muito
obrigado mesmo!
— Ah, não foi nada!
Só então foi que ela pareceu voltar para o mundo real e
perceber o que estava, de fato, acontecendo al
— Eric, não que eu ache ruim nem nada, mas por que raios
maravilhosos você está no estúdio onde a Tê trabalha?! — A
pergunta veio acompanhada de uma mordiscada no lábio inferior e
uma testa franzida.
A famosa cara de detetive.
A mesma que ela fizera quando ficara de tocaia na casa do
meu crush.
— Ahn… então — Eric gaguejou —, isso é… Acontece que…
Seus olhos disparavam para todos os cantos, em busca de
respostas, e então me pressionaram em um pedido por socorro.
— Eu atropelei ele! — soltei, por fim. — Quero dizer, não
literalmente… na verdade, ele que atropelou meu carro no dia do
show e… aconteceram várias coisas, e ele teve que ficar na minha
casa, e…
— Então, Maitê Sanchez Fiori. — Ela se virou devagar para
mim, cruzou as pernas e apoiou as mãos no joelho, estreitando os
olhos redondos e grandes em minha direção, de uma forma
assustadora. — Você está dizendo que Eric Lee esteve na sua casa
esse tempo todo?
— Ahn… talvez?
Tão desesperadora quanto o fim do mundo, Lena apenas
assentiu.
— Tsc, por isso estava tão estranha — resmungou para si
mesma. — Espera! Então aquele papo de… Não brinca! Aquele
papo hipotético de ter um idol perdido no seu sofá era real? O Eric
está preso aqui?
Concordei, mordiscando o canto da unha, e ela olhou de mim
para o rapaz, que assentiu também.
— Nossa senhora das fanfics, será que a Helen colocou
alguma coisa naquele brownie, de manhã, e eu tô bem louca? —
Ela parecia acreditar mesmo que estava sob efeito de alguma droga
ou algo do tipo, pela cara que fazia. — Isso não pode ser real.
— Pois é — suspirei —, agora tô presa com esse pentelho
até conseguirmos entrar em contato com a agência dele.
— E como vão fazer isso?
— Estávamos contando com a sorte de o meu irmão me
achar aqui, mas não parece que isso vai acontecer, não. — Eric riu.
— Claro, não estou achando nada ruim essas férias. Mesmo que a
puppy arranque meus cabelos algumas vezes, até que está bem
divertida.
Lena estreitou os olhos e fez aquela cara de detetive mais
uma vez, então bateu a mão espalmada na coxa e falou:
— Certo, vamos resolver isso depois que o meu tempo de fã
acabar. — Ela mexeu no cabelo, o trançando de lado, antes de
arrancar um bloco de notas da bolsa e uma caneta. — Apenas para
fins pessoais, te dou minha palavra de que essa conversa nunca vai
sair daqui: qual é a sua marca de pasta de dentes favorita?
Certo, eu quase acertei.
Eric riu e respondeu que, apesar de a Close-up o patrocinar,
a preferida dele era outra, que o ajudava com a sensibilidade a
coisas geladas e doces.
— Certo — ela murmurou, enquanto anotava no bloquinho, e
então disse sem nem tirar o olho do papel. — Não pense que eu
não vou discutir essa traição com você, viu, Dona Maitê? Mais tarde
a gente se resolve, mas obrigada por ter me chamado pelo menos
agora.
— Não há de que… — respondi. — Eu acho.
— Bom… antes de a gente começar de verdade, deixa eu me
apresentar oficialmente, então. — A garota abriu um grande sorriso
e rodou a caneta entre os dedos, de um jeito que mais ninguém no
mundo conseguia fazer. — Eu sou a Helena, mais conhecida como
Lena. Sou estagiária em uma revista famosa de fofocas. Não que
isso seja lá grandes coisas, porque não sou tão importante na
empresa. Eu só faço a droga do quiz e… — minha amiga suspirou,
lançando um olhar caído em minha direção — só de pensar, eu fico
abalada. Eu não sei o que quero da minha vida, entende? Você bem
que podia me arrumar um emprego na sua equipe e… — Blá-blá-
blá, ela desandou a falar sobre um milhão de assuntos paralelos, o
que fez Eric me olhar em busca de socorro.
— Tá bom, Lena — eu ri —, pula para a parte mais
importante.
— Certo, desculpa. — Ela sorriu. — Eu sei algumas coisinhas
sobre você, então não vou mais desperdiçar nosso tempo. Tem algo
bastante importante que quero saber.
Ela endireitou a coluna e ergueu uma sobrancelha,
diminuindo drasticamente o tom de voz ao perguntar:
— O que está rolando entre vocês dois?
Engasguei com minha própria saliva ao escutar aquela
pergunta tão repentina.
Eric fez uma caretinha e pigarreou algumas vezes.
— Hum… nós somos amigos, eu acho, apesar de às vezes
parecer que ela não gosta muito de mim.
— Você é meio pé no saco — respondi, me lembrando do
nosso beijo —, mas não te odeio completamente.
Lena deu uma risadinha e então encarou Eric.
— E você? O que acha dela?
— O que eu acho? — Ele franziu o cenho, pensativo, e eu
fingi não estar nada interessada na resposta.
Me levantei, fui em direção à janela perto do sofá e fingi
encarar o lado de fora.
— Ela é divertida, mandona, inteligente, cheia de talentos,
muito sincera e… é linda também.
Ele era tão cara de pau que sua voz nem sequer tremia.
Diferente das minhas pernas, que pareciam uma vara verde ao
vento. Me apoiei sobre a mesinha ao lado, só para não dar muito na
cara o quanto aquelas palavras me abalavam.
Fingi não ver o sorriso bobo que ele lançou ao me olhar e
inclinei a cabeça um pouco mais, para acompanhar um passarinho
voando.
— Você pode assinar essa lista para mim? Vou colar na
minha parede — ela pediu, talvez percebendo o clima entre nós —
e, se rolar, uma fotinho também, sabe? Prometo pela vida da Tê que
nunca vou vazar nada disso.
Ele pousou para uma selfie rápida, assinou o papel e
devolveu com um sorriso.
— E, depois que resolvermos o seu problema e você voltar
para Los Angeles, o que vai fazer? — Lena continuou.
— Hum… o de sempre, eu acho. — Agora sua voz soava
triste, de um jeito que eu ainda não tinha escutado. Eric mexia nos
dedos, desconfortável, fitando o chão. — Trabalhar, compor, voltar
às minhas atividades, vida normal.
E lá estava a questão sobre a qual me proibia de pensar. Ele
era apenas um pentelho no começo, não dava para negar, mas,
àquela altura, eu já não sabia mais o que significava para mim.
Imaginá-lo indo embora era doloroso.
Doía demais.
Helena me fitou por tempo suficiente para gerar um silêncio
constrangedor na sala. Depois disso, pigarreou e cutucou o rapaz.
— Então, será que rola de cantar uma música? — Minha
amiga não era boba. Ela percebia a nuvem preta que se instalara
sobre nossas cabeças e tentava mudar de assunto. — Já que
esconderam isso de mim, e eu não posso nem me gabar para
ninguém, acho que mereço uma palinha — brincou.
Com aquela ideia, até o meu coração se animou. Eric nunca
tinha cantado ou tocado para mim.
Não ao vivo.
Sem contestar, ele se levantou, ainda com um sorriso triste, e
se sentou de frente ao piano na cabine. Discretamente, apertei o
botão de gravar na mesa de som e, só depois, contemplei seus
dedos longos passearem pelas teclas.
— É uma música nova? Eu não conheço essa melodia —
Lena disse ao se aproximar de mim, tocando minhas costas em
consolo.
Fitei o rosto sereno de Eric, que começava a cantar com uma
voz doce, junto a uma melodia animada e divertida.
Eu precisava aceitar que ele iria embora, em algum
momento, e que aquelas lembranças seriam tudo o que eu poderia
manter comigo.

I had found my way


When your eyes pierced through me
That day
When I hit your car

I’m sorry to say


But do you mind if I stay?
Just today…[3]

Minha amiga curtia e sentia o som, balançando de um lado


para o outro, enquanto eu captava o máximo que podia daquele
show particular, com olhos marejados.
Eric, do outro lado do piano, parecia se divertir com a letra,
mas, ao mesmo tempo, uma tristeza transpassava seus olhos.
Eu sabia que era manter expectativas demais, mas não tinha
chance alguma de que aquela música não estivesse falando sobre
mim. Eric atropelara meu carro e me implorara por um lugar para
ficar. Eu não poderia garantir sobre a parte de ele ter se sentido
perdido, mas aquela parecia a nossa história cantada de um jeito
divertido.
Em frente ao piano, o rapaz deixou de ser Eric Pentelho Lee
para se tornar o grande astro mundial do K-pop. Tudo nele exalava
talento e paixão: seus olhos sorridentes, os dedos tocando com
perfeição o instrumento e as expressões faciais que me permitiam
enxergar os sentimentos da música. Seria possível que ele a tivesse
escrito pensando em nós?
Quando cantou a estrofe seguinte, todas as minhas dúvidas
se esvaíram.

You know what?


The pink in your hair
And the blue in your eyes
Made my heart repair

I’m sorry to say


But do you mind if I stay?
Just one more day…[4]

Quando Eric cantou o refrão, fitando meus olhos, não tive


forças ou pretensão alguma de desviar. Eu deixaria que, ao menos
uma vez, alguém tocasse meu coração daquela forma frágil.
— Você está bem? — Lena apertou os lábios e juntou as
sobrancelhas ao ver minha expressão. Meus olhos marejados, nariz
vermelho e punho cerrado ao lado do corpo. — Você entende o que
está acontecendo aqui, certo, Tê?
Sim, eu entendia.
O que estava acontecendo era que, antes tarde do que
nunca, alguém havia sido capaz de me tocar com sua melodia
interior. Nada de sinos mágicos ou criaturas celestiais descendo
com uma bandeira escrita “você está apaixonada, aceite!”. Apenas o
som do piano, a voz doce de Eric e aquela canção.
E, por ironia do destino, aquela façanha ocorria bem quando
ele estava prestes a partir.
Ao fim da música, Eric ameaçou se levantar do piano e vir em
minha direção, mas, antes mesmo que ele pudesse dizer meu
nome, eu corri.
Saí da sala e me recostei na porta fechada do estúdio,
tomando um minuto para decidir o que fazer dali para frente. Não
ouvi nenhuma movimentação, apenas a voz serena de minha amiga
discursando alguma coisa muito seriamente, em coreano, para Eric.
Desolada, disparei pelo corredor. Os olhos cheios de
lágrimas, a cabeça cheia de pensamentos e o coração, por algum
motivo, cheio de dor.
“Quando será que te verei cara a cara de novo?
Vou olhar nos seus olhos e dizer que senti sua falta”
— Still with you, Jungkook BTS.

A crise de choro repentina foi um mico sem igual.


Quando me recuperei e saí do banheiro, encontrei Eric
preocupado, encostado no corredor. Aleguei que era muito sensível
à música e às vezes me envolvia demais, mas que eu estava bem.
Não contei sobre a falta de seres celestiais ou sinos que me
fizeram perceber o que ele significava para mim. Não mencionei o
quanto eu sentiria falta dele, quando partisse, nem sequer ameacei
olhar em seus olhos por muito tempo.
No entanto, mesmo sem dizer uma palavra, Lena, que nos
assistia de longe, sabia o que se passava dentro de mim. Ainda que
nem eu entendesse.
Minha amiga não disse uma palavra. Tudo o que fez foi me
dar um abraço apertado e dizer que passaria em casa, no dia
seguinte, para tentar ajudar Eric, então se despediu dele e
desapareceu.
Dirigi até em casa com o peito apertado, mas nenhuma
lágrima ousou escorrer. Ao chegar, dei uma desculpa esfarrapada
de que precisava estudar para uma prova que não existia e abafei
meu choro com o barulho do piano elétrico, dentro do quarto
trancado. Não jantei ou sequer tive coragem de descer para fuçar a
geladeira, de madrugada.
Durante toda a noite, chorei abraçada ao travesseiro. Odiava
pensar que sempre havia passado tão longe da gripe do amor, de
propósito, e havia fatidicamente caído nela apenas ao baixar a
guarda uma vez.
Pela manhã, tomei um banho longo e quente, tentando
esvaziar a cabeça. Enquanto me trocava, ouvi Nina berrar com meu
irmão por ele ter deixado uma caixa de pizza em cima da cômoda,
de novo.
Vesti um moletom bege, uma calça legging preta e alcei meu
violino nos ombros para ir à faculdade.
Eric, que estava sentado no sofá, encarando o celular velho
que eu lhe emprestara, levantou assim que me viu descer a escada.
De repente, olhar para ele me fazia querer derreter em lágrimas.
Tentei não me mostrar afetada pela sua presença e passei
por ele, em busca da chave do carro.
— O que está acontecendo lá em cima? — perguntou, vindo
atrás de mim.
— Josh deixou comida em cima da cômoda, e Nina achou
uma barata no quarto dela, que é do lado. — Dei de ombros. —
Agora eles vão brigar pelo resto do dia.
— Eu posso… — Eric se apressou em dizer, quando passei a
mão na maçaneta da porta para abri-la — ir com você hoje?
— Para a faculdade? — perguntei, sem forças. — Não acho
que seja uma boa ideia. Alguém pode te reconhecer.
— Por favor.
E ali estava a famosa cara de cachorrinho sem dono.
Olhei para os lados, fechei os olhos e respirei fundo. Eu ainda
me sentia estranha como no dia anterior, e tudo piorava ao olhar
para ele, mas… ele não estaria ali para sempre.
— Boné e máscara — ordenei, saindo em direção à garagem.
Eric correu como um foguete em busca dos itens, que
estavam em algum lugar pela sala, e me encontrou em frente ao
carro.
No caminho, deixei a música bem alta para que ele não
tivesse a chance de comentar sobre o dia anterior. Seria mais fácil
se não tocássemos naquele assunto, até que eu me acostumasse
com a ideia de que ele havia invadido, sem permissão, um espaço
no meu peito.
Nos sentamos na última fileira da minha sala de aula, com o
objetivo de ninguém notar nossa presença. Pedi para que Eric
ficasse no canto, colado na parede, onde não o veriam, e me
acomodei ao seu lado em silêncio.
— Puppy — ele chamou baixinho, enquanto eu tentava
prestar atenção —, está tudo bem com você?
— Ahn? — murmurei, sem olhá-lo. — Claro, sim… Tô ótima.
— Tem certeza? — perguntou outra vez, de olhos caídos.
Assenti com a cabeça e, cabisbaixo, ele alcançou minha
blusa de moletom sobre a mochila e a fez de travesseiro, de forma
que pudesse me encarar enquanto eu fazia minhas anotações.
Quando arranquei uma folha e a amassei em uma bolinha,
Eric puxou minha mão livre. Ansiosa, ela batucava o caderno sobre
a mesa. Seus dedos finos se entrelaçaram nos meus, me fazendo
arregalar os olhos em sua direção. Tentei recuar, apavorada com a
ideia de que alguém visse, mas ele segurou, puxando nossas mãos
para baixo da mesa e acariciando o dorso da minha com o polegar.
Sem forças ou vontade alguma de me afastar, deixei de lutar
contra sua pele quente e tentei focar toda a atenção na aula,
enquanto ele cochilava, segurando minha mão.
No fim do período, me levantei antes de todo mundo e o levei
para a sala de prática que eu havia reservado. Como mais cedo,
Eric continuava encarando o celular e alternando dele para a janela,
repetidamente. Perdido.
— Tá tudo bem? — perguntei.
Não que eu quisesse me intrometer em fosse lá o que o
deixasse daquela forma, mas era muito estranho vê-lo tão
incomodado com algo.
— Tê… — ele me chamou pelo apelido que só Lena usava,
sentando-se no banco em frente ao piano e me pedindo para sentar
também. — O que vai ser da gente, quando eu for embora?
— Como assim “da gente”? — Meu peito gelou e acelerou
mais uma vez, coisa que nunca havia acontecido, mas, nos últimos
dias, vinha se tornando comum.
— Você sabe… — murmurou. — Nós somos… amigos?
— Não sei, você é meio chato — tentei brincar, fazendo-o
soltar um riso fraco.
Eu não queria falar sobre aquilo.
Sobre ele ir embora.
— Tirando a vontade de ter um ganso — começou —, qual é
o seu maior sonho? Digo, quem você quer ser no futuro?
— Não sei — respondi, sincera.
— Não tem nada planejado? O que pretende fazer quando
acabar a faculdade?
Diante da pergunta, soltei um suspiro baixo, puxando dois
Yakults de dentro da bolsa e lhe entregando um.
— Nunca pensei sobre isso.
— E como quer ganhar a vida?
— Sei lá, eu posso vender minha arte na praia.
Ele franziu o cenho, confuso com a piada.
— O que exatamente isso significa?
— Que eu vou viver do que a natureza me dá. — Ainda que
só eu entendesse o meme que todo brasileiro conhecia, ri baixinho.
— Você tá dizendo que vai fazer quatro anos de faculdade
pra viver na areia, à base de peixe e água de coco?
Nunca tinha visto uma expressão de indignação tão grande
em alguém como vi em Eric, naquele momento.
— Não sou fã de peixe, nem de água de coco. — Ri. Talvez
aquela não fosse mesmo a melhor opção. — Eu não sei, puppy, não
sei de verdade… Gosto de trabalhar no estúdio e também gosto de
tocar para as crianças nos orfanatos. Nunca me vi fazendo algo
diferente disso. Ser famosa? Não tenho esse talento todo.
— Eu duvido muito. — Eric levantou a tampa do piano, que
cobria as teclas, e deslizou um pouco mais para o lado, me dando
espaço. — Pode tocar alguma coisa para mim?
Sem graça, deslizei para o meio do banco e pousei minhas
mãos sobre o teclado. Nocturne foi a primeira melodia que me veio
à cabeça.
Ao soar das notas, a pergunta de Eric ecoou em minha
mente: o que eu planejava para a minha vida?
Eu, Maitê Sanchez Fiori, vivia no olho do furacão. Me
entregava por inteiro à profissão que raramente dava algum retorno
financeiro, mas que sempre — ou quase sempre — me preenchia
com um coração cheio e satisfeito.
Mamãe dissera, certa vez, que, desde criança, eu tendia a
pender para o lado artístico. Aos quatro anos, enquanto todas as
crianças corriam e dançavam na aula de musicalização, eu me
sentava em frente à minibanda e escutava os sons de olhos
fechados. Foi ali que meus pais entenderam que, ainda que
tentassem me fazer escolher qualquer profissão chique e renomada,
no futuro, eu nunca seguiria o plano deles para mim.
Meu lugar era ali, na música. Com ela e dentro dela, me
entregando por completo.
No meu aniversário de dezoito anos, meu irmão fizera uma
retrospectiva com vídeos de fitas antigas da minha infância. Em uma
das cenas da edição, a minha memória favorita: era aniversário da
Tia Lucélia, e nós tínhamos ido comemorar em um barzinho com
música ao vivo. Enquanto todos os meus primos brincavam de
correr, eu estava sentada, de olhos fechados, em frente à bateria da
banda que tocava algum rock nacional, tentando acompanhar o
ritmo com o pezinho, sempre que sentia o ar saindo pelo buraco do
bombo.
Na vida adulta, não era diferente.
Às vezes, eu me sentava na cama e tocava notas no violão,
sem pretensão alguma, apenas pelo gosto de ouvir a melodia.
Outras, perdia horas em frente ao piano, gastando todo meu
conhecimento para criar arranjos de músicas que eu nem sequer
chegava a escrever.
Quando toquei as últimas notas de Nocturne e ameacei
fechar o piano, Eric segurou o tampo e olhou para mim.
— Pode tocar mais uma vez?
Ainda pensativa, voltei meus dedos às teclas e comecei
novamente, sem contestar.
Mi ♭ - lá ♭ - si ♭ - lá ♭ - sol - lá ♭ - dó ♭ - mi ♭ - (oitavando)
lá ♭ - mi ♭ … Pausa de fusa… Meu coração ardeu, dessa vez,
diferente das outras. Não como se eu sentisse saudade de algo,
mas como se estivesse prestes a sofrer a perda que mais me faria
falta. Fá - sol - mi ♭ - mi ♭ …
Sol - sol, mi ♭ … (oitavando) sol, mi ♭ … (descendo dois tons)
… Por que eu queria voltar a chorar? Sol, mi ♭ … Isso são…
lágrimas?
— Tê? — Eric chamou com um tom de voz preocupado,
quando toquei o último Mi bemol.
— Huh?
— Você tá… chorando?
Levantei os olhos, com um suspiro, e vi os seus se encherem
também.
— Não… — menti. — Você está?
— Claro que não! — choramingou, passando o dorso da mão
para enxugar o rosto molhado. — Você tá triste? Eu fiz alguma
coisa?
— Fez…
Eu não deveria dizer, sabia disso. Eu deveria ficar quieta e
seguir em frente, fingindo que nada acontecera. Mas…
— Apareceu na minha vida — não consegui conter a
enxurrada de lágrimas que veio em seguida — e agora vai sair.
Eric me puxou para um abraço, chorando baixinho, e eu
ainda conseguia ouvir Nocturne na cabeça. Podia ver claramente
Frederic Chopin, com os cabelos branquinhos e a cara enrugada, de
frente para mim, dizendo:
— Foi para isso que eu criei essa música, Maitê! Para se
lembrar dele. Para você!
“Eu não quero te deixar ir
Mas eu tenho que deixar”
— Lose you, Eric Nam.

Eric secou meu rosto com a manga de seu moletom e me


abraçou, quando fiz o mesmo com suas bochechas molhadas. Sem
dizer nada, fomos para o estúdio e não tocamos no assunto
novamente. Tentei fingir que estava tudo bem, não pensar em nada
e, graças à quantidade de trabalho absurda que eu tinha para o dia,
não foi uma tarefa muito difícil.
Até aquele momento.
— Não sei se me sinto ofendido por não ter sido reconhecido
por uma única alma que entrou aqui hoje ou não — ele resmungou,
se jogando no sofá, após o último grupo agendado nos deixar a sós.
— Quero dizer, eu sou mundialmente famoso. Que tipo de cantor
não me conhece?
— Você cobriu o rosto o dia inteiro com a máscara e o boné,
Eric. Você esperava o quê? Que te reconhecessem pelo pescoço?
— Eu te reconheceria pelo seu. — Ele apertou os olhos,
fazendo meu estômago borbulhar.
— Aposto que não.
— Eu te reconheceria em qualquer lugar — ele disse, sério,
sem jamais desgrudar os olhos de mim. — Ainda que estivesse
coberta da cabeça aos pés.
— Eu duvido muito. — Pigarreei, sentindo as bochechas
corarem.
— Você tem pouquíssima fé em mim, Maitê — ele fez graça,
com um sorrisinho bobo despontando no canto dos lábios.
— Não tenho como pôr fé demais no cara que atropelou meu
carro com o corpo. — Dei de ombros, me jogando aos seus pés no
sofá.
— Aquilo foi extremamente necessário, e arrisco dizer que
uma das decisões mais sábias que eu já tomei.
Ele pousou os pés sobre meu colo, e eu puxei um tufo de
cabelo de sua perna, o que o fez reclamar.
— Não tem nem vergonha nessa cara em admitir que faz
escolhas ruins — cutuquei.
— Você não diria que foi uma escolha ruim se estivesse no
meu lugar. — Ele suspirou.
— Afinal de contas, o que aconteceu naquele show para você
sair correndo às pressas? — Aquela era uma das coisas que eu
vinha me segurando para não perguntar.
Isso e qual era a rixa dele com o tal do Kian.
Eric se remexeu no sofá e então se virou de forma que, em
vez de suas pernas, sua cabeça pousasse em meu colo e eu
pudesse olhar diretamente em seus olhos.
— Hum… acho que podemos dizer que a vida de um astro do
K-pop não é lá a coisa mais incrível do mundo.
— Entendo… Bem, você tem muito trabalho a fazer, mas, por
outro lado, também tem uma geração inteira que te idolatra.
— Toda essa atenção nem sempre me é conveniente. — Ele
me deu um sorriso triste e pesaroso, depois respirou fundo mais
uma vez. — Sabe, puppy… é bom, pela primeira vez em algum
tempo, ser visto além da minha profissão. Estar com você me deixa
leve e me faz esquecer todos os meus medos.
Meu coração deu um pulinho engraçado, como se gritasse “é
isso aí, Eric! É aqui que você pertence! Em mim!”.
— Quando cheguei na sua casa, aquele dia, desmaiei no
sofá em menos de dez minutos e dormi por longas horas. — Seus
dentes enfileirados estavam ainda mais à mostra, de forma que
seus lábios pareciam rasgar o rosto em um sorriso. — Não me
lembro da última vez que dormi sem ter um pesadelo, antes disso.
— E você não teve nenhum desde que chegou aqui?
Ele negou com a cabeça.
— E… o que você… ahn… com o que você sonha?
— Que estou preso em uma sala cheia de olhos. — Ele
pareceu estremecer ao pensar; o sorriso largo sumindo aos poucos.
— Uma sala escura e cheia de olhos, com uma única porta.
— E você passa por essa porta?
— Eu nunca tinha passado — ele segurou minha mão e deu
um beijinho na palma — até conhecer você.
— Achei que você não tivesse tido pesadelos desde que
chegou aqui.
— Não considerei esse um pesadelo. — Ele cruzou as
pernas esticadas, enquanto massageava minha mão. — Depois do
episódio do ganso, eu sonhei com essa sala horrorosa de novo, mas
a luz estava acesa. Não era tão assustadora, e a porta era rosa com
azul. — Ele deu um tapinha na ponta colorida dos meus cabelos e
sorriu com os olhos. — E, pela primeira vez, eu a abri e passei por
ela.
— E o que tinha do lado de fora?
— Você.
Arregalei os olhos, surpresa. Entre todas as respostas que
ele poderia me dar, aquela nunca passaria pela minha cabeça.
— E-eu?
— Huh.
Desviei os olhos para a janela, envergonhada demais para
perguntar o que aquilo significava. Matutei, em silêncio, todos os
possíveis motivos para estar do outro lado.
— Você estava com um ganso nas mãos e sorria para mim.
— Um ganso? Céus! Não consegui não rir. — Seu sorriso era
grande e cheio de amor, e, quando eu me aproximava, você me
abraçava e dizia que tudo ficaria bem.
Era daquilo que ele precisava? Conforto?
Eric era sempre tão alto astral que eu duvidava muito que
alguma coisa desse errado em sua vida.
— O que você sentia quando estava dentro daquela sala?
— Que estava sendo assistido — ele fungou, com os olhos
ameaçando encher —, o tempo todo. Naquela sala, eu não podia
comer, ir ao banheiro ou fechar os olhos para dormir. Ao mesmo
tempo em que estava sozinho, também não estava.
— Isso é terrível.
— Eu sei. — A forma com que aquelas palavras deixaram
seus lábios me mostrou que, no fim das contas, aquilo não era
apenas um pesadelo.
Era a vida real.
Me levantei do sofá, o obrigando a se levantar também, então
o peguei de surpresa em um abraço forte.
Eric pareceu chocado com o gesto inesperado, mas não
perdeu a oportunidade de fazer piada.
— O que é isso? Uma declaração de amor? — Ele riu, e eu
me afastei apenas o suficiente para lhe dar um tapinha na testa.
— Não seja tolo. — Eu o apertei novamente, e ele fez o
mesmo, deixando o abraço ainda melhor.
— O que é, então?
— Vai ficar tudo bem…
Suas mãos, que acariciavam minhas costas, congelaram, e
eu senti seu coração acelerar. Seu peito começou a se mover com
força, de cima para baixo, até um grunhido baixinho escapar de
seus lábios.
Não ousei olhar.
— Deve ser difícil ser você, Eric — continuei, dando
batidinhas em suas costas. — Ter tantas pessoas te olhando e
cobrando de você. Te assistindo, o tempo inteiro.
Foi aí que ele desabou, e eu senti lágrimas de dor
escorrerem por seus olhos e pingarem em minha bochecha,
enquanto eu descansava a cabeça em seu peito.
— Tenho certeza de que deve doer muito que o mundo inteiro
te enxergue como uma estrela, mas que não tenha a sensibilidade
de te ver como um ser humano primeiro.
Ele fez que sim com a cabeça, fungando com o nariz.
Me afastei um pouco, sequei seus olhos e segurei seu rosto
pequeno entre minhas mãos.
— Você não precisa carregar o peso do mundo nas costas,
puppy. — Sorri ao ver seus olhos se apertarem como os de um
bebê. — Eric Lee é muito mais do que apenas a fama e uma voz
linda. Espero que não se esqueça disso. Qualquer pessoa que tiver
a oportunidade de te conhecer como o homem incrível que você é
será abençoada.
Ele me puxou bruscamente para outro abraço, me
espremendo contra o peito.
— Queria não ter demorado tanto para te conhecer.
— Me desculpe por chegar tão atrasada. — Levantei a
cabeça, quando ele afrouxou os braços, e dei um beijinho na ponta
de seu nariz. — Se eu pudesse, te guardaria no bolso e protegeria
do mundo, mas, como não posso, tudo que me resta é te pedir para
se cuidar e ser gentil consigo mesmo. Não se cobre tanto.
— Obrigada por tudo, puppy. — Suas mãos entrelaçaram
minha cintura, e ele me deu um beijinho na testa.
Eu estava feliz com fosse lá o que estivesse acontecendo
entre nós.
— Sempre que algo te colocar para baixo, lembre que existe
alguém, no outro extremo do continente, que te apoia por quem
você é além dos palcos — continuei, e agora eram meus olhos que
ameaçavam transbordar.
Ele sorriu, concordando, e limpou as lágrimas novamente.
— Alguma notícia da Lena? Ela conseguiu falar com alguém?
— Pigarreou, como se quisesse testar o quanto eu sabia. Se não
escondia nada dele.
— Ela disse que já havia entrado em contato com algumas
pessoas que poderiam encontrar sua equipe e que voltaria com
grandes notícias, em breve — contei, já nem desejando que ela
conseguisse contatá-los mais.
Ele concordou com a cabeça e pegou minha mochila de cima
do sofá.
— Podemos ir? Estou morrendo de fome.
Ah, mas ele era mesmo um poço sem fundo!

Ao chegarmos em casa, assistimos à Missão Victory por


insistência de Eric. Nina e Josh se juntaram a nós, e meu irmão
continuava encarando nosso hóspede como se desejasse jogá-lo
em um buraco com cimento fresco. No entanto, àquela altura, Eric já
nem se incomodava mais. Eu sentia seus olhos em mim durante
todo o filme: quando ria, suspirava ou me levantava para abastecer
o pote de pipocas.
Nada mais parecia importar. Nem o filme, nem meu irmão
ciumento, nem o fato de que Eric iria embora. Era como se ele
quisesse captar o máximo que pudesse para se lembrar de mim.
Ao fim do filme, me despedi de todos e subi até o quarto, com
o coração pesado. Ainda que tivesse tentado ser boa para Eric
durante o dia, estava triste e com um milhão de coisas na cabeça.
Minhas costas pesavam como se carregassem um caminhão. Após
deitar na cama, tentei afastar qualquer pensamento que me
remetesse a ele e, assim, embalei em um sono sem sonhos até o
outro dia.
Na manhã seguinte, não ouvi Eric bater à porta ou me
implorar para acordar. Estranhei o silêncio na casa, mas me levantei
e tomei um banho morno, antes de vestir uma calça legging preta e
minha camiseta verde-água de cactos, idêntica à de Helena.
No sofá, Eric encarava muito seriamente um pacote. Ao
perceber que eu o observava, curiosa, tentou esconder o que quer
que fosse atrás de si.
— B-Bom dia — gaguejou.
— O que está escondendo aí? — perguntei, chegando perto,
e ele murmurou um “nada” pouco convincente. — Tá furtando
minhas correspondências agora, é?
Fiz piada, e ele arregalou os olhos, negando.
— O que é, então?
Eric voltou a balançar a cabeça, então eu endureci a feição.
Cruzei os braços e o encarei com uma expressão mais séria. Ele
revelou a embalagem parda, meio rasgada, e estendeu para mim.
— O que é isso?
— Meu passaporte — murmurou, fitando o chão.
— Mas… como?
Eu não me lembrava de ter recebido nenhum retorno dos e-
mails que havia mandado para sua equipe e tinha certeza de que
ninguém sabia que Eric estava na minha casa.
— Lena conseguiu falar com uma pessoa, que conseguiu
falar com meu irmão. — Suspirou. — A garota que ficou com a
minha bolsa estava vendendo tudo no eBay por uma fortuna, então
ele comprou e mandou entregar aqui.
Eric apontou para uma caixa aberta em cima da mesinha de
centro.
Encarei uma bolsa pequena da Gucci e o sapato de couro
branco, levemente arranhado, então voltei minha atenção para ele.
— Por que ela não me disse nada?
— Ela não sabe que eles já me ligaram — murmurou. —
Lena falou com Derick, amigo do Evan, meu irmão, e passou o
número desse celular que você me emprestou. — Eric segurou uma
das minhas mãos e acariciou o dorso dela. — Ele me avisou ontem
que as coisas chegariam hoje, e…
— Por que não me contou? — Tentei soar confiante, mas a
tristeza e o peso dos meus ombros me faziam parecer derrotada.
— Eu ia te contar, mas… você estava chorando à beça, e eu
não queria te deixar mais triste… — Suas sobrancelhas se juntaram
em uma feição abatida, e ele esfregou os olhos, disfarçando as
lágrimas. — Eu fiquei grudado no celular porque estava resolvendo
tudo. Evan já comprou minha passagem.
— Ah… é mesmo? — perguntei, tentando parecer
compreensiva. Eu não sabia se estava funcionando, mas não queria
mostrar o quanto aquilo me machucava. — Pra quando é?
— Sexta…
— Sexta, tipo, amanhã? — perguntei, mais alto do que
gostaria, e ele assentiu com a cabeça. — Ahn… que ótimo, né?
Você tem que voltar para sua vida e tal… seus shows… seus fãs.
Você não pode ficar aqui para sempre.
— É… — concordou com a voz fraca. — Não posso…
— Certo… então, vamos? — Me esforcei para sorrir, e ele me
olhou como quem sabia que aquele gesto não era sincero. — Tenho
um lugar para te apresentar.
Eric levantou uma sobrancelha em surpresa, mas não
contestou. Durante todo o caminho, sua mão grande cobriu a minha,
como se não quisesse se esquecer nunca daquela sensação. Ainda
que nossas palmas começassem a suar, ele não recuou. Em vez
disso, segurou meus dedos ainda mais firme e não soltou até que
chegássemos ao local e eu desse um beijinho na mão dele sobre a
minha, deixando que Eric suspirasse enquanto contemplava a
beleza daquele casarão antigo e monótono.
— Onde nós estamos? — perguntou, tentando achar
qualquer placa que lhe desse o mínimo de informação, ainda que
ele não fosse capaz de entender.
— Orfanato Dó Ré Mi. — Com um sorriso no rosto, ajeitei a
alça do violão nos ombros e lhe entreguei uma caixa preta grande,
onde eu guardava o teclado. — Eu faço trabalho voluntario aqui, às
quintas. Era para ser mais tarde, mas não quis ir para a faculdade
hoje.
E não poderia, mesmo que quisesse. Não com o coração
naquele estado.
Ameacei dar um passo adiante, para seguir para dentro do
orfanato, mas Eric segurou uma das minhas mãos e me puxou com
o braço livre, me apertando contra o peito.
Eu não soube o que dizer, só o que sentir. Meu coração
ameaçou sair pela boca, e minhas mãos e pés começaram a suar
em nervosismo. Não porque o toque dele me incomodava, mas
porque faria falta.
— Você está bem? — cochichou, com o queixo apoiado no
topo da minha cabeça e acariciando minhas costas. — Eu sei que
não sou lá a pessoa mais importante para você e que nos
conhecemos há poucos dias, mas…
— Não, eu não estou bem — interrompi, sentindo o choro
ameaçar subir. Eu não tinha por que esconder, certo? De que me
adiantava ser durona em uma situação daquelas? — Mas eu vou
ficar. Quando você for embora, tudo vai voltar a ser chato como
antes. Eu vivi vinte e quatro anos sem você, Eric. Vou tirar de letra.
Talvez eu não tirasse de letra, mas queria acreditar que sim.
— Olha só, se a nossa pessoa favorita não chegou mais cedo
hoje! — Dona Cleusa falou ao nos ver, segurando Diana, uma das
crianças do orfanato, em seu colo. — Fala oi pra tia, Di!
— Oi, tia Tê! — A menina abriu um sorriso banguelo para
mim, e eu sorri.
— Oi, pequena! Tudo bem? — perguntei, acariciando seus
cabelos enrolados, amarrados em duas chuquinhas. — Quando foi
que esses dentes caíram, hein?
— A fadinha do dente veio buscar ontem!
Eu amava a inocência imaculada daquele lugar.
— Ah, que legal! — Esbocei um sorriso para Diana, que
sorriu também, ainda mais largo.
— E quem é o mascarado? — Dona Cleusa perguntou,
apontando com o queixo para Eric, que se escondia atrás de um
boné amarelo e a máscara com estampa de patinhos que eu havia
pedido para ele usar.
— Ah, esse é o meu amigo… — expliquei, o puxando para
perto — que vai me ajudar hoje. Ele não fala português, e essa
máscara é porque… hum, ele se cortou fazendo a barba e ficou
meio feio.
— Oi.
Foi a primeira vez que o ouvi dizer algo em português,
mesmo que tímido.
— Certo. Boa sorte com as crianças! — Dona Cleusa se
despediu e saiu com a pequena, que me assoprou um beijinho
melado.
Sem demora, me apressei em montar os instrumentos no
meio do pátio, com a ajuda de Eric. Quando o sinal anunciou o
intervalo, uma multidão de seres pequenininhos se juntou à nossa
volta, formando uma meia-lua em frente ao palco improvisado. Eles
já sabiam o que estava prestes a acontecer, e era uma delícia ver
como me esperavam ansiosos, todas as quintas-feiras.
Anotei rapidinho em uma folha de caderno o nome das
músicas e as notas para que Eric me acompanhasse e lhe
entreguei, com um coraçãozinho desenhado no canto inferior.
— Vou tocar uma vez, e você pode tentar me acompanhar no
teclado depois — expliquei, e ele pareceu meio nervoso com a
apresentação repentina. — Bom dia, criançada! — vibrei ao
microfone, e um coral de vozes gritou alto.
— Bom dia, tia Tê!
— Hoje a tia tem um amigo para apresentar. O nome dele é
Puppy. Vocês podem dizer “oi” para ele, em inglês?
Animadas, as crianças gritaram:
— Hi, tio Puppy!
E Eric caiu numa risada gostosa, em frente ao teclado,
ajeitando o pé no pedal.
— Isso mesmo, parabéns! — Abri um sorriso enorme ao ver
como o gesto fizera Eric sorrir feliz. — Estão prontos para a primeira
música, que vocês já conhecem?
Eles gritaram “siiiim!” bem alto, e então eu dei a primeira nota
no violão para que eles se preparassem.
— Começa assim, olha: aperta a campainha do nariz —
cantei.
As crianças apertaram o narizinho, dizendo “pom-pom-pom”.
— Pisca a janelinha dos olhinhos.
Vi seus olhinhos cheios de esperança piscarem, e então
balançaram o corpinho de lá para cá, dizendo “plim-plim-plim”.
— Mexe a chaminé das orelhinhas.
Eles puxaram as orelhas, dizendo “tchum-tchum-tchum”, e
Eric foi à loucura, vibrando com um “mas que coisa mais fofa!”.
— Abre a portinha da boquinha.
Dessa vez, eu os acompanhei. Todos nós formamos um cone
com as mãos ao redor da boca, como uma portinha aberta, gritando
um “aaaaaah!” estridente.
— Bate no telhado da cabeça.
As crianças bateram de leve as mãozinhas na cabeça e
rodopiaram, dizendo “toin-toin-toin”.
— Abra os seus braços e apareça!
Aquela era a minha parte favorita, em que eles abriam os
bracinhos e abraçavam uns aos outros, felizes. Fiz o mesmo,
chegando perto de Eric, sentado diante do teclado, e o abraçando
pelas costas. Ele pendeu a cabeça para trás, contente, e se
esfregou em minha barriga como um gato.
A música repetia essa estrofe várias vezes. Na segunda, Eric
me acompanhou perfeitamente no teclado, como se já tivesse
memorizado as notas, e eu, feliz com meu violão, continuei a
performance, virada para ele. Eric me seguia, improvisando arpejos
e fingindo cantar, já que não fazia ideia do que estávamos dizendo.
Mesmo que ele fosse sempre contente demais, nunca havia visto
aquele sorriso em seu rosto.
Como se ele tivesse encontrado a razão de viver, depois de
desistir.
Seguimos para a próxima música, e eu chamei uma das
crianças para cantar comigo ao microfone. Como todas as quintas,
começamos “Dedinho pro Céu” e depois “Rato”, da Palavra
Cantada.
— Ratinha dentuça, que cavuca a parede, que barra a brisa,
destrói a nuvem que cobre o luar — cantarolei, imitando a voz do
rato, e eles caíram na gargalhada, como sempre. O garotinho fingia
saber cantar junto. — Declaro ser o seu mais lindo amante, e com
você eu quero me casar, fazer da natureza o nosso altar…
Eric me assistia com brilho nos olhos, como se a constelação
inteira morasse em suas íris negras.
Já no fim do repertório, cantamos “Aquarela” e depois
finalizamos com “Baby Shark”, que eles amavam. Pelo menos essa,
Eric soube cantar. No fim, fizemos um pouquinho de bagunça e
então nos despedimos.
Foi lindo ver aquele monte de miniaturas correr até Eric e
derrubá-lo em um abraço coletivo. Seu boné caiu da cabeça, e uma
das crianças puxou sua máscara para lhe dar um beijo na
bochecha, mas ele não pareceu se importar. Ninguém ali o
conhecia.
No carro, Eric assistia ao vídeo que deixara gravando no meu
celular velho, de novo e de novo, inúmeras vezes, sem parar.
— Puppy — sua voz tinha um tom de tristeza, mas ele sorria
com os olhos marejados, enquanto eu estacionava o carro dentro da
garagem —, eu nunca vou esquecer esse dia.
Sorri. Eu também não esqueceria.
— E jamais vou me esquecer de você — completou.
Eu o fitei com um vazio nos olhos. O vazio que já sentia ao
imaginar os próximos dias sem ele.
Foi naquele momento que me dei conta de como a paixão é
uma coisa idiota. Nos deixamos cair em sua graça e nos apegamos
a coisas passageiras, passamos a sonhar com um futuro lindo, que
nunca chegará, sonhamos com uma vida perfeita e, no fim de tudo,
o que sobra é apenas dor.
Sorri sem forças, tentando não desabar outra vez, e entrei em
silêncio. Chopin nos recebeu na casa vazia.
Me joguei no sofá aberto e fechei os olhos, com um suspiro.
Eric colocou Chopin para brincar com as bolinhas no quintal, fechou
a porta e se aproximou de mim.
— Posso ficar aqui com você? — Era a primeira vez que ele
me pedia permissão para fazer algo que já fazia normalmente.
— Vai mudar alguma coisa se eu disser que não? —
impliquei, com um meio sorriso.
— Não vai.
Ele se juntou a mim, quase colado ao meu corpo, então
acariciou meu cabelo.
— Que horas você tem que sair, amanhã?
— Acredito que por volta das onze — murmurou, passando
um braço por baixo da minha cabeça e abraçando meu corpo
jogado no sofá. — Vou chamar um táxi, não se preocupe.
— Eu levo você! — falei, apressada.
Incertos, seus olhos me fitaram como se gritassem que não
era uma boa ideia.
— Por favor — insisti —, me deixe te levar.
Ele apertou os lábios em uma linha, incomodado, mas
concordou.
— Puppy — chamou, acariciando meu rosto —, pela minha
agenda de shows, acredito que vai ser difícil voltar para o Brasil tão
cedo.
Assenti. Eu já imaginava.
— Você tem planos de… ir para os Estados Unidos de novo,
algum dia?
— Não… — Meus olhos já estavam se enchendo de novo,
droga!
— Você não pode só… vir comigo? — Os olhos dele
brilharam ao pedir, e eu senti como se meu coração estivesse sendo
espremido. — Eu sei que a gente se conhece há pouco tempo e que
você não é louca por mim, nem nada, mas… céus, eu vou sentir
tanto a sua falta! Pode ser egoísmo, mas eu gosto tanto de você,
Maitê… gosto muito! Eu sei que é pouco tempo, mas…
— Eu estou no meu último ano da faculdade, Eric —
interrompi. Eu podia ter caído nas graças da paixão, mas ainda era
racional. — Não posso largar tudo e fugir com você.
Ele concordou com a cabeça e soltou um suspiro, sabendo
que eu estava certa.
— E… sobre você gostar de mim…
— O quê? — perguntou, esperançoso.
— Eu meio que gosto de você, de repente — murmurei,
envergonhada. — Mas sou esperta o suficiente para saber que isso
não vai funcionar e que o melhor é seguirmos em frente, por
caminhos separados.
Me doía dizer aquilo, e eu desejei ser inconsequente apenas
uma vez, para não ouvir a razão, mas não podia. Não queria correr
o risco de substituir nossas memórias boas por memórias de dor.
— Daqui a alguns dias, você vai me esquecer e… bem, eu
vou ficar bem ocupada também, e tudo vai voltar a ser como antes.
— Chato e vazio? — perguntou, com as sobrancelhas
franzidas. — Porque é assim que eu imagino os próximos dias
sozinho, sem você.
— Sim — concordei em voz baixa —, chato e vazio.
Ele me olhou por alguns segundos, estudando minha reação,
e eu funguei, segurando o choro.
— Quer assistir a um filme? — Sorri amarelo.
Quando desistiu de entender o que eu escondia por baixo do
juízo, Eric apenas concordou e me abraçou ainda mais forte. Seu
celular tocava sem parar, no canto da mesa de centro, com ligação
de algum número do exterior, mas ele ignorava, me mantendo
segura contra si. Suas mãos me acariciavam, e seus lábios
depositavam beijinhos no topo da minha cabeça à medida que eu
descia a lista de filmes para escolher um.
Foi então que eu entendi como Chopin se sentia.
Meu cachorro se deitava e aconchegava nos braços de Eric
como se fosse o melhor lugar do mundo porque realmente era.
O meu melhor lugar.
Dei play em um filme qualquer e me acheguei ainda mais ao
garoto. Meu coração batia forte pela dor de tê-lo pela última vez ali.
Em certo momento, Eric me deu um beijinho na bochecha, e eu,
com toda minha coragem fajuta, arrisquei um selinho em seus
lábios. Foi o suficiente para que ele me olhasse, repleto de paixão, e
me prendesse em um beijo gostoso e intenso, do qual ainda não
havíamos provado.
Recitei para mim mesma, como um mantra, que aproveitaria
cada segundo em que Eric estivesse ali, porque, por mais que eu
escolhesse não acreditar, nada mudaria o fato de que, no fundo, eu
sabia que nunca mais o veria.
“Talvez este seja o último adeus
Todos aqueles dias com você foram bons”
— Goodbye, Park Hyo Shin.

Mais uma noite em claro para a conta.


Desci em silêncio durante a madrugada, para um lanchinho
rápido, e contemplei a imagem serena de Eric dormindo no sofá.
Sem acordá-lo, lhe dei um beijinho na testa, arrumei seu cobertor
caído e subi de volta, com um iogurte na mão.
Nunca havia desejado tanto que uma noite em claro não
acabasse, porque o fim dela significaria também outro fim: o nosso.
Quando a manhã seguinte inevitavelmente chegou, desci
com a cara e a coragem para enfrentar uma das maiores batalhas
da minha vida: a do coração. Eric conversava com Josh, que já não
parecia querer matá-lo, e Nina fingia participar do assunto, rindo
assim que meu irmão ria e murmurando um “oh”, aqui e ali.
— E aí, estão falando sobre o quê? — perguntei ao pé do
ouvido da minha amiga, que “conversava” com os garotos,
encostada na bancada.
— Não faço ideia — respondeu entre dentes, fingindo um
riso.
Eric contava sobre como sua mãe vivia reclamando, dizendo
que ele era “sexy demais” durante os shows e que lhe pedia para
maneirar, porque “Jesus estava assistindo”. Soltei uma risadinha ao
ouvir tal coisa, me sentindo dentro da cena ao que ele imitava o
sotaque da mãe dizendo: “Too much sexy, Eric. Too much!”[5].
— Então… vamos? — Me forcei a chamá-lo para o inevitável.
Seus olhos me olharam reticentes, por um instante, mas logo
voltaram a sorrir em direção aos outros dois.
— Foi um prazer conhecê-los! — disse ao jogar sobre as
costas uma mochila rosa, que eu lhe havia dado. — Mesmo que não
tenhamos conversado muito, Nina, imagino que você seja legal, já
que é amiga da Maitê! Espero que aprenda inglês, qualquer dia
desses, para que possamos conversar da próxima vez.
— Yes! Yes! — Nina disse, sorrindo, me fazendo cair na
risada, e então cochichou para mim. — O que ele disse?
— Que seu inglês é péssimo — cochichei de volta, e ela fez
careta.
— Espero que tenhamos deixado nossas diferenças de lado,
Joshua. — Eric estendeu a mão para meu irmão, que retribuiu,
sorridente. — Você é um cara bacana.
— Você também, cara! E me desculpa pelos surtos! — Josh
abriu um sorriso amarelo e deu um tapinha no braço de Eric. — É
que, sabe, a Bubba é minha única irmã.
— Eu entendo! E, por favor, continue fazendo isso de não
deixar nenhum cara chegar perto dela — pediu. — Vou ser
eternamente grato.
Corei ao ouvir aquilo, e Josh sorriu largo. Ele sabia o que
estava acontecendo, não era bobo nem nada, mas dessa vez me
olhou com cumplicidade e disse que faria questão de atender ao
pedido.
Chopin não fazia ideia de que nunca mais veria seu grande
amigo, mas abraçava e lambia Eric com muito amor. Eu sentia muito
que sua alma gêmea estivesse indo embora.
No caminho para o aeroporto, coloquei as músicas de Eric
para tocar no som do carro, e ele foi cantarolando até lá, segurando
minha mão. Eu não gostava daquele clima de despedida, então
tentei não falar nada. Não queria chorar na frente dele de novo.
Quando chegamos ao nosso ponto de despedida, Eric me
devolveu o celular velho e depois me fitou ansioso, com a passagem
nas mãos.
— Então… você não pode vir mesmo comigo?
Neguei ao abrir um sorriso.
— Eu tenho uma vida aqui, Eric.
— Espero poder te ver de novo, puppy. — Suas mãos
geladas e suadas seguravam as minhas, meio trêmulas. — Eu
nunca vou conseguir te esquecer, mesmo que eu tente.
— Eu duvido muito. — Ri, sem graça. — Se cuida, mané! Vou
sentir sua falta.
Aquela era a nossa despedida. Ele estava prestes a partir.
Eric, no entanto, parecia incomodado.
— O que é? — questionei. — Fala logo.
— Hum… eu tenho algumas coisas para dizer, mas acho que
vou chorar. — Ele riu, já chorando e tirando a máscara preta para
que eu pudesse ver seu rosto. — A primeira é que meu irmão já
transferiu todo o dinheiro que peguei com você e um pouco mais.
Como não queria te incomodar, enviei para o Josh.
— Certo.
— A segunda é que talvez eu não tenha dito, mas, quando te
encontrei, eu não estava feliz.
Arqueei uma sobrancelha, incerta sobre o que ele estava
dizendo. Todos os dias, Eric carregava um sorriso contagiante no
rosto. Até quando eu ameaçava botá-lo para fora.
— Quando fugi daquele show, eu estava triste, bravo e
cansado de ser quem era. Tudo era exaustivo, e eu já não fazia
mais músicas por amor — confessou. — Te encontrar, Maitê, me
ensinou que eu tenho muita sorte de chegar aonde cheguei. Te ver
tocar Nocturne, de olhos fechados, e contemplar seu sorriso sincero
enquanto cantava para aquelas crianças me fizeram perceber que
não há sentido algum em fazer o que eu faço sem amor.
Funguei uma vez e limpei o nariz na manga da jaqueta de
couro preta.
— De todas as pessoas que passaram pela minha vida, você
foi, sem dúvidas, a que mais me deixou marcas.
Meu coração já não aguentava mais. Ele não podia apenas
partir, sem dizer nada?
— Você me ensinou, me curou em aspectos que talvez nem
conheça e deixou sua marca cravada em mim.
Eu precisaria beber muita água para recuperar tudo o que
perdera chorando nas últimas horas.
— Você também, puppy! — Sorri. — Eu nunca mais vou
conseguir tocar Nocturne sem pensar em você. E, acredite, isso é
um baita de um problema, já que eu toco todos os dias.
— Isso quer dizer que vai pensar bastante em mim. — Ele
sorriu, de bochechas molhadas e nariz vermelho. — Me deixa
aliviado.
Sorri, balançando a cabeça em concordância.
— Podemos tirar uma foto de despedida? — ele perguntou,
meio sem jeito.
Me juntei a ele ao que ele tirou o boné e ajeitou o cabelo
rapidinho, para uma sequência de fotos no meu celular. Depois, com
muito pesar, ele seguiu o próprio Instagram com a minha conta e
enviou as fotos pelo privado.
— Você tem meu contato e meu coração — falou, secando
minhas bochechas. — Por favor, não suma! Eu prometo voltar para
o Brasil assim que puder, para te ver.
— Isso vai demorar um bocado.
— Mas vai acontecer! — disse firme. — Eu… preciso ir.
— Certo… Fique bem, mané. — Dei um tapinha em seu
ombro e sorri. Eric recolocou a máscara. — Se cuida, por favor.
— Você também, puppy.
Acenei um tchauzinho à medida que ele se afastava e senti
meu coração quebrar em pedacinhos. Lhe assisti seguir a fila com
uma inquietação enorme. Eric tamborilava a coxa e batucava um
dos pés no chão, enxugando o rosto ora ou outra. Já quase na sua
vez, decidiu ter um surto momentâneo.
Suas pernas compridas correram em minha direção, e eu
arregalei os olhos, assustada.
— Esqueceu alguma coi…
Seus lábios interromperam os meus. A bolsa rosa fora jogada
no chão e a máscara, abaixada em seu queixo. As pessoas à nossa
volta nos olhavam como se fosse a cena de um filme, e seus braços
me apertavam forte, tão forte que eu mal podia respirar.
Sem vergonha alguma, o apertei também e me entreguei
àquele beijo com gosto de lágrimas e saudade. Eu nunca mais
viveria aquilo com ele.
— Você foi a minha porta para o paraíso, Maitê — disse com
os olhos marejados. — Aquela porta rosa com azul que me tirou da
escuridão. Espero que você entenda o que isso quer dizer, quando a
hora chegar.
Dessa vez, ele se afastou correndo e passou pela fila, sem
olhar para trás. Só depois de ver seu corpo sumir entre a multidão
foi que consegui ir embora.
Ao entrar no carro, olhei nossas fotos juntos e decidi
reassistir ao vídeo do orfanato no celular velho.
Na galeria, não encontrei apenas ele, mas fotos também.
Fotos minhas. Enquanto eu jogava uma pedrinha no lago dos
gansos, brincava com Chopin, prestava atenção na aula e batucava
na mesa como um metrônomo. Vi também um vídeo curtinho de sua
mão fazendo carinho na minha, sob a mesa da sala de aula.
Com a testa encostada no volante, desabei.
Eu finalmente entendia o que era a paixão e como ela nem
sempre vinha para ficar. Entendia que podia durar apenas um
instante, mas que fazia tudo valer a pena enquanto estivesse ali.
Mesmo que a despedida doesse, eu ainda poderia sorrir
diante de tantas lembranças boas que Eric havia me proporcionado.
No fim das contas, eu poderia viver feliz, sabendo que deixara
tantas marcas nele, assim como ele havia deixado, cravado, seu
amor em mim.
“E se você for o único de quem eu sempre precisei
E se eu tivesse te parado quando disse que estava
indo embora
(…) E se isso for algo que eu nunca vou superar?”
— What if, Eric Nam.

Vazio.
Por mais que eu lutasse para preencher o espaço que Eric
deixara em mim, nada substituía aquela sensação de estar sozinha.
Ainda que Nina estivesse ali, ainda que Josh não largasse do meu
pé, ainda que Lena insistisse em dormir na mesma cama que eu,
nada parecia adiantar.
Vinte e cinco dias se passaram desde que ele partira.
Mesmo com a agenda cheia, Eric sempre achava tempo para
me mandar uma mensagem de texto ou uma foto de algo que o
fazia se lembrar de mim. Isso até sua nova turnê começar.
Ele sempre acordava de madrugada para me ligar e me
contar como fora o seu dia, mesmo que nosso fuso fosse de doze
horas desde que ele chegara a Seul. Eu via o quanto ele tentava, o
quanto aquilo o prejudicava e não queria que Eric se esforçasse
demais por minha causa.
Eu me sentia mal, porque, ainda que disséssemos ter
saudades um do outro, não tínhamos relacionamento algum. A cada
dia, aquela paixão se intensificava em meu peito e, com isso, a
razão voltava a falar ao meu ouvido. Estaria tudo bem enquanto
ninguém soubesse, enquanto fôssemos apenas Eric e eu, mas… de
que adiantava nutrir um relacionamento que nunca poderia se tornar
real?
Para que aquilo acontecesse, uma multidão de fãs teria que
me aceitar também, e eu não tinha muita certeza de que isso seria
realizável. Meus dias estavam sendo tomados por incertezas e
inseguranças.
Naquela manhã, Eric não me deixara uma mensagem de
bom-dia.
Ele devia estar ocupado com a vida e a agenda apertada, e
eu entendia. Não tinha tanto tempo de sobra também.
Fui para a faculdade com a cabeça na lua e um sentimento
estranho no peito: aquele que diz que, se algo não deu errado
ainda, é porque está prestes a dar.
— Tetê? — Nina chacoalhou a mão em frente ao meu rosto,
quando o professor anunciou o intervalo e eu não me mexi. — Está
tudo bem?
— Sim — Suspirei. — Só estou cansada.
Não era uma mentira. Fazia dias que eu não dormia bem.
— Vamos para casa, e você descansa um pouco. — Ela
franziu o cenho, me fazendo levantar. — Sua cara não está muito
boa. Aconteceu alguma coisa?
Nina sabia que aquele meu pressentimento nunca falhava.
— Na verdade, eu tenho sentido que…
— Maitê! — A voz ofegante de Lena me chamou pela porta,
me interrompendo.
Franzi o cenho, preocupada. A garota nunca aparecia na
minha faculdade sem avisar, ainda mais com o cabelo cacheado
todo para cima, daquele jeito. Era como se ela tivesse levantado da
cama e corrido do jeito que acordara para me encontrar.
— Amiga… tá tudo bem? — Tombei a cabeça, a analisando.
Helena estava com o cabelo solto e amassado, a franja
enrolada ainda um pouco arrepiada, e uma blusa de moletom azul
fazia conjunto com a calça de pijama e os chinelos.
Ela veio até mim, estudando meu rosto, então segurou minha
mão.
— Você está bem? — Seus olhos estavam vermelhos e seus
cílios, molhados, como se tivesse chorado enquanto corria até mim.
— Por que não estaria? — Ergui uma sobrancelha ao reparar
na estampa de coelhinho de sua calça rosa. — Por que você
apareceu de pijama aqui, do nada? Aconteceu alguma coisa?
— Você… não viu?
O cuidado com que disse aquelas palavras me fez perceber
que meu sentimento provavelmente não errara e algo muito ruim
estava prestes a ser revelado.
— Aconteceu alguma coisa com o Eric? — Ele foi o primeiro
em quem consegui pensar.
Lena se aproximou um pouco mais, ficando entre mim e Nina,
então nos mostrou a tela do celular.

“Astro do K-pop foge de show para ter uma semana romântica


com a namorada brasileira.”

Arregalei os olhos ao ver uma foto de Eric dentro do meu


carro, desesperado, enquanto eu o encarava com uma cara de
bunda magistral.
— O que é isso? — Minha voz saiu mais como um suspiro
cansado, um sopro.

“Após o show realizado no Allianz Parque, em São Paulo, o


astro mundialmente conhecido, Eric Lee, fugiu às pressas e ficou
incomunicável por uma semana. Eric foi visto em diversos lugares
com a namorada, Maitê Sanchez Fiori, com a qual se hospedou
durante esse tempo.
Fontes afirmam que a empresa Lee Entertainment não estava
ciente de seu sumiço e que Eric passou uma semana romântica
com a namorada até decidir voltar para terminar a turnê. Por conta
de seu sumiço, três shows foram cancelados, incluindo os dos
estados de Massachusetts, Nova Iorque e Washington DC.
A empresa nega os boatos de namoro, mas diversas fotos
foram apresentadas como prova. Eric tirou uma semana de folga
para fazer compras com a namorada, levá-la para um passeio
romântico no parque e também se apresentar no Orfanato Dó Ré
Mi, no qual a musicista é voluntária. A instituição preferiu não se
pronunciar sobre o ocorrido.
A empresa alega, no entanto, que as últimas fotos do idol se
despedindo da namorada no aeroporto, com um beijo, sejam
manipuladas e diz que fará uma coletiva de imprensa em breve.”

Meu mundo estava desabando.


Eric devia estar com problemas. Grandes problemas!
— Eu sinto muito, amiga — Lena disse, com os olhos caídos,
me envolvendo em um abraçado apertado.
— Como é que sabem de tudo isso? — Nina perguntou,
tirando o telefone do bolso e procurando pela mesma matéria, com
os olhos arregalados. — Eu juro que vou acabar com a vida desses
canalhas! E essas fotos? Estavam te seguindo, esse tempo todo?
— Parece que tinha uns paparazzi espertinhos na cola do
Eric, no dia do show. Eu cheguei a vê-los brevemente enquanto
tentava tirá-lo dali — Lena falou, acariciando minhas costas.
— Ele deve estar com problemas… — Eric era tudo em que
eu conseguia pensar.
E se ele se prejudicasse por minha causa?
Precisei me apoiar sobre os joelhos para recuperar o ar. Meu
coração batia tão rápido que me fazia perder o equilíbrio. O que eu
deveria fazer?
— Revelaram seu nome inteiro — Nina tentou me alertar
sobre a gravidade da notícia, então tirou a própria jaqueta de couro
e me entregou. — O Eric em apuros é o menor dos seus problemas
agora. Me dá seu moletom e veste isso.
— Por quê? — A seriedade em seu rosto estava me
preocupando.
— Você precisa sair daqui. Me dá os tênis também — ela
disse, já tirando as botas que calçava e puxando os sapatos dos
meus pés. — Lena, tira ela daqui.
— Deixa comigo! — a caçula concordou, firme.
Nina roubou um boné de cima da mesa ao lado, aproveitando
que os outros alunos haviam saído para o intervalo, e colocou meu
cabelo para dentro dele, me empurrando porta afora.
— Não fale com ninguém no caminho e vá direto para casa
— ordenou.
Ainda sem entender direito o que estava acontecendo,
assenti e, com a cabeça baixa, troquei de mochila com minha
amiga, que partiu primeiro, atraindo olhares.
Nina estava se sacrificando por mim.
Vi algumas pessoas irem atrás dela, com o celular erguido,
mas Lena não me deixou olhar demais e me fez correr. Ainda
perdida com a situação e a cabeça imersa em um milhão de
pensamentos, topei meu ombro contra a quina de uma parede do
corredor e caí no chão. Um grupo de garotos reparou assim que o
boné caiu da minha cabeça e meu cabelo escorregou sobre o rosto
pálido.
— Tê, você se machucou? — Lena parou de correr quando
viu que eu não estava por perto e voltou para me ajudar.
Eu queria usar a dor no ombro como desculpa para chorar e
ficar ali, encolhida em posição fetal, mas Lena nem esperou pela
minha resposta. Ao que um grupinho de garotas começou a se
aproximar de mim, minha melhor amiga me puxou para cima, sem
nem se importar com meu ombro, e me arrastou até o carro.
Permaneci imóvel no banco reclinado, sentindo seu olhar
sobre mim.
— Você está bem?
— Não — confessei. Nenhuma lágrima havia caído ainda,
mas eu precisava que caísse. — Meu ombro dói e meu coração
também.
— Eu sinto muito, Tê.
Neguei com a cabeça, cruzando os braços e encarando o
teto do carro.
— Como você soube? — perguntei.
— A Fofoquei lançou a matéria hoje, foi a primeira coisa que
o Lucas me mandou pela manhã — a pequena disse, com os olhos
atentos na rua. — Tentei falar com o Eric, mas não consegui. Aquele
número que você me passou não parece estar funcionando mais.
— Ele também não respondeu minhas mensagens…
— Vamos nos preocupar em chegar em casa primeiro.
Sem música e sem coragem de dizer mais nada, seguimos
em silêncio. Ao virar a esquina de casa, Lena xingou.
— Droga!
— O que foi? — Me levantei um pouco do banco para espiar,
e ela me empurrou de volta. — Ai, Lena! O que aconteceu?
— Fica abaixada, tem um monte de gente na frente da sua
casa.
— Ah, não — resmunguei e então arregalei os olhos ao
lembrar. — Meu Deus, o Chopin!
Trêmula, tirei o telefone do bolso, lotado de mensagens e
ligações, e mandei uma mensagem para Josh. Meu cachorro teria
um colapso ao ver tanta gente no portão.
Maitê: Me diz que você está em casa!
Josh: Estava prestes a sair quando interditaram o portão. A
segurança está aqui na frente. O que está acontecendo?
Maitê: Longa história. Cuida do Chopin e não saia de casa.
Vou ficar na casa da Lena, liga para a Nina que ela vai te explicar.
Josh: Bubba, não está tudo bem, está?
Maitê: Não, mas vai ficar.

Não dava para acreditar no que estava acontecendo.


Meu celular tinha tantas notificações que eu mal conseguia
abrir o aplicativo de mensagens sem travar. Lena tirou o telefone da
minha mão e o desligou, jogando para o banco de trás.
— Helena! — briguei. — Eu preciso ver se está tudo bem
com ele!
— Ele vai ficar bem — rebateu. — Enquanto isso, você
também precisa ficar. Não abra o seu celular!
— Isso já é exagero.
— Acredite, eu conheço muito bem o meu fandom. Você não
vai querer ler nenhuma daquelas mensagens.
Cruzei os braços e me deitei novamente, segurando para não
chorar.
O que eu deveria fazer? Ligar para ele? Mandar uma
mensagem? Dizer que eu estava bem? Eu queria que ele soubesse
que não precisava se preocupar comigo.
Na casa de Lena, Helen nos esperava no quarto. Ela não
parecia saber muito sobre o que tinha acontecido, mas parecia
convencida por uma reportagem de que eu estava com grandes
problemas.
Com meu celular confiscado e sem nada de muito
interessante para fazer, fiquei o dia inteiro fingindo ser entretida
pelas duas irmãs.
Me fizeram maratonar uma série nova, na qual não prestei
atenção, me obrigaram a jantar, mesmo que eu insistisse que estava
sem fome, e não me deixaram sozinha um segundo sequer.
Nina mandara mensagem para Lena, avisando que havia
chegado bem em casa e que a faculdade tinha virado um caos logo
depois de eu sair. Até tentei roubar meu celular da gaveta da
escrivaninha, mas Helen estava mantendo os olhos em mim como
se a vida dela dependesse daquilo, exatamente como Lena lhe
pedira para fazer.
Durante a madrugada, enquanto fingia dormir, assisti a Lena
se levantar e digitar algo muito decididamente por longos minutos.
Ela escrevia e apagava o texto em um arquivo no computador,
diversas vezes, até postar em algum lugar e ir se deitar outra vez.
Quando ouvi seu ronco baixinho ao meu lado, aproveitei que
ninguém estava na minha cola e religuei o computador, na
esperança de buscar notícias sobre Eric. No entanto, antes que
tivesse a chance de fechar a aba aberta, meus olhos se prenderam
no texto em minha frente.

Olá, aqui é a garota do quiz e esta é uma nota oficial, para


todos aqueles que desejam um amor.
Para o idol que coloriu meus dias por muitos anos, gostaria
de reforçar algo: Eric Lee, você trabalhou bem. Você se dedicou
muito, renunciou muito e, como fã, eu tenho orgulho de você.
Como fã, também desejo uma coisa: que não se cobre tanto
e se permita viver. Você já carregou o peso do mundo nos ombros e
não precisa de mais.
Quero que seja feliz, que ame e seja amado. Quero que
tenha alguém para quem correr quando as coisas ficarem ruins, que
tenha um ombro para chorar quando sentir medo e que alguém te
abrace quando se sentir sozinho.
Todos nós sabemos o quanto tem se dedicado aos seus fãs.
Agora é hora de pensar em você e na pessoa que te faz feliz. Não
tenha medo de escolhê-la.
Como representante do LeeNation, te mando o meu apoio
virtual e te desejo as melhores coisas do mundo.
Você merece ser feliz.
Vou torcer por você até o fim e depois dele.
E, sim, eu invadi a coluna principal da Fofocando sem medo
algum de perder o emprego. Quero dizer, não completamente, mas
foi necessário. Porque essa é uma nota para todos que possuem
um coração de fã.
Sei que temos a sensação de que nossos idols são algum
tipo de super-herói, mas eles não são. São apenas pessoas. Como
nós. Possuem medos, se magoam e desejam, profundamente, ser o
alguém de alguém. Querem acordar ao lado da pessoa que ama,
sem julgamentos; passar a tarde de domingo com essa pessoa e
perder horas procurando um filme na Netflix; passar horas
conversando sobre tudo e nada; querem alguém.
E podemos não ser tudo o que eles têm, mas somos tudo o
que mais importa. Nosso apoio faz toda a diferença e, como fã,
quero lhes dar motivos diferentes para sorrir, todos os dias.
Obrigada por ter colorido meus dias com as suas canções,
Eric. Agora, por favor, vá colorir os seus.

Encarei a tela por mais tempo do que pude contar; o rosto


tomado por lágrimas e a mão trêmula em cima do mouse.
Gostaria muito que toda a LeeNation pensasse como Lena e
que eu pudesse ser livre para conhecer Eric, sem julgamentos. Eu
sabia que aquilo era sonhar alto demais; no entanto, saber que uma
entre milhões de fãs estava do meu lado mantinha minha sanidade
em pé.
Eu não estava sozinha.
Lena, Nina e Josh estariam sempre ali por mim.
“Como é que eu posso seguir sentindo sua falta
assim?”
— How do I, NIve.

Foco.
Era tudo de que eu mais precisava e não tinha no momento.
A única coisa em que eu era capaz de pensar era se existia
uma dor mais chata e insuportável do que a que eu sentia no ombro.
Ainda que eu tentasse me concentrar na aula transmitida na tela do
celular, não conseguia prestar muita atenção na voz grave do meu
professor reforçando trinta vezes a importância de saber a diferença
entre som, melodia, ritmo e harmonia.
Eu odiava a ideia de ter que assistir às aulas jogada no
tapete Lilás de Lena, mas, nos últimos três dias, ao tentar me
esgueirar para o lado de fora, pela manhã, Helena já estava à minha
espera em frente à porta para me dizer que eu não iria a lugar
nenhum. Nina estava encarregada de fazer chamadas de vídeo em
todas as aulas pelo resto da semana, para que eu não perdesse a
matéria, e, pelo visto, eu demoraria para voltar a ver o sol.
— Que cara de quem chupou limão é essa? — a pequena
resmungou ao meu lado, tentando decifrar minhas caretas.
De dor, de raiva, de tédio.
— Além do fato de que você está me mantendo em cativeiro?
— Isso é o melhor para você! — Ela afinou a voz, ofendida.
— Você viu o tanto de gente acampando na sua casa, não viu?
Josh me mandara um vídeo da câmera de segurança do
portão, mais cedo, e agora eu pensava que não seria tão
inconveniente ter um exército de gansos vestidos de terno para me
proteger.
Gansos treinados e com óculos escuros.
— Quanto tempo isso vai durar?
— Eu não sei, Tê. — Lena passou a mão em minhas costas,
em consolo. — Talvez você devesse passar um tempo aqui.
Bufei ao me jogar de costas sobre o tapete, encarando as
estrelinhas coladas no teto.
— Mas olha pelo lado bom: eu tirei uns dias de folga e vou
ficar com você até a poeira abaixar — ela continuou, com um sorriso
incerto.
Forcei um sorriso e rolei de barriga para baixo, riscando o
nome do Eric no canto inferior do caderno. Era claro que eu amaria
passar uma semana inteira com minha melhor amiga; só queria que
fosse em uma ocasião menos deplorável.
— Como está o ombro? — ela perguntou quando me viu girar
o braço pela quinta vez.
— Acho que tem alguma coisa errada…
— Hum, já faz alguns dias…
Lena me lançou aquela cara de detetive, sobrepondo o lábio
inferior ao superior e me estudando de cima a baixo, provavelmente
calculando alguma probabilidade que me incluía na equação.
— Certo, pega sua mochila. Nós estamos saindo.
Tombei a cabeça para o lado, observando aquela baixinha se
enfiar dentro do guarda-roupa e lançar um bocado de peças
desconexas sobre mim.
— Veste isso.
Olhei para o cachecol vermelho, o boné lilás e um par de
óculos escuros que lembravam o da Penélope Charmosa.
— Achei que não pudéssemos sair.
— E eu não posso te deixar com o ombro assim. — Ela
apontou para a porta com a cabeça e apoiou a mão na cintura. —
Anda, veste.
Obedeci, porque, àquela altura, tudo que eu queria era ver o
céu azul. Mas, claro, seria muito melhor se não estivesse tão quente
e eu não precisasse usar um cachecol.
— Posso tirar isso? — resmunguei no carro, sentindo o suor
pinicar minha pele em conjunto com a lã.
— Não. — Lena estava se divertindo. Eu parecia um
manequim de brechó. — Não que alguém vá te reconhecer pela
pele do pescoço, mas melhor prevenir do que remediar.
Aquela simples frase me trouxe muitas lembranças.
Boas lembranças.
Sorri involuntariamente, pensando se Eric, de fato, me
reconheceria em qualquer lugar.
Eu não dava muitos motivos para Lena se preocupar comigo.
Talvez por isso ela estivesse tão histérica, andando de um lado para
outro, enquanto esperava a radiografia do meu ombro.
— E então, qual é a gravidade? — ela interrogou o doutor,
exercendo o papel de mãe melhor do que a minha própria mãe faria.
O homem barrigudinho e de sorriso simpático acendeu a luz
atrás da imagem e ajeitou os óculos sobre o nariz.
— O osso não foi afetado, para a sua sorte — ele disse, sem
desviar os olhos. — Você vai ficar bem, mocinha!
— Ótimo. Eu não poderia lidar com mais um problema. — Ri,
aliviada, mas Lena não parecia satisfeita com a resposta.
— Doutor Cesar, isso não vai impedir que ela toque piano,
vai?
Mas o que aquela garota estava dizendo?
— Você anda assistindo a dramas coreanos de mais, Lena.
— Rolei os olhos. — Ele acabou de dizer que eu não quebrei nada.
Seria um ultraje se minha carreira acabasse por causa de uma
topada besta contra a parede.
Lena torceu o nariz em minha direção e se voltou para Cesar.
Ela só sossegaria quando ouvisse a resposta sair dos lábios dele.
— Fique tranquila, querida. Ela está bem. — Ele sorriu com o
rosto inteiro; a ruga ao redor dos olhos se acentuando. — É bom
que ela não se esforce muito pelos próximos dias e que tome os
remédios que vou receitar, mas isso é tudo. Logo estará novinha em
folha.
— Ouviu, né, Maitê? — Lena franziu o cenho. — Nada de
Nocturne pra você!
Dei de ombros.
Nocturne estaria fora do repertório enquanto eu estivesse
emocionalmente indisponível, de qualquer forma.
— E então? Ela não precisa fazer mais nada? — Lena fez
careta, colocando a mochila no ombro.
— Apenas seguir as instruções da receita — ele disse,
rabiscando algo ilegível no bloco de papel e entregando a folha
destacada na mão da pequena, em vez da minha.
— Obrigada, doutor. Vou seguir direitinho — menti.
— Eu sei que não vai, como sempre.
Eu ia tanto àquele consultório quando era mais jovem que já
considerava o velhinho de óculos redondos parte da família. Ele me
entregou um pirulito ao se despedir, como de costume, me fazendo
sorrir com as velhas lembranças.
Machucar o ombro, no fim das contas, não fora tão ruim. Pelo
menos por algumas horas, conseguira manter minha cabeça em
outro lugar que não fosse o pandemônio da minha vida.
Lena ajeitou meu boné e os óculos contra meu rosto. Brigou
comigo quando recusei o cachecol e só não me enrolou com ele à
força porque bebera três garrafas de água para afogar a ansiedade
da espera pelo raio x e precisava correr para o banheiro. Desejei,
por vingança, que não conseguisse segurar.
— Dia difícil? — Uma garota com uma longa cabeleira
cacheada se acomodou ao meu lado com dificuldade, apontando
para o ombro que eu massageava.
— Ano difícil. — Ri ao reconhecer minha parceira de hospital,
então apontei para seu pé enfaixado. — Se machucou dançando,
outra vez?
Eu lembrava que, anos atrás, estávamos sempre ali. Ela com
gesso no braço ou na perna, e eu com o pulso enfaixado. Resultado
de longas horas em frente ao piano.
— Certos hábitos nunca mudam. — Riu. — Faz muito tempo
que não te vejo por aqui! Como vai o seu pulso?
— Ainda dói com frequência, mas, depois de tantos anos, a
gente acaba se acostumando, eu acho.
— Quantas vezes mais preciso quebrar o pé para me
acostumar? — ela fez piada, me arrancando uma risadinha.
Eu não tinha muita certeza de que ela se acostumaria, e
aquilo me lembrou de outra dor com a qual teria que aprender a me
acostumar.
A ausência de Eric.
Eu não sabia como suportar a falta dele, mas também não
me sentia capaz de lidar com a pressão que aquele relacionamento
exigiria de mim. Me peguei pensando se deveria aceitar a dor
constante da saudade ou a pontada aguda dos ataques que
receberíamos se ficássemos juntos.
— Qual é o seu nome mesmo? — Ela sorriu amarelo. —
Desculpa, é que faz tanto tempo.
— Maitê. — Sacudi a cabeça, tentando me puxar de volta
para o corredor do hospital em vez de divagar sobre Eric. — O seu
é… Ana, certo?
— Ana Clara — respondeu, lutando contra o cabelo para
amarrá-lo em um coque.
Havia algo nela que eu não conseguia entender: uma aura
amigável e divertida, que me fazia querer ficar perto. Era
aconchegante.
— Tê-ê! — Lena voltou correndo, chacoalhando a bolsa de lá
para cá, conforme se aproximava. — O tíquete do estacionamento
venceu faz tempo. Acho melhor correr.
— Bem, te vejo por aí, Ana! — Sorri.
— Espera! — Ela tirou um pedacinho de papel de dentro da
bolsa e riscou seu número com caneta, antes de me entregar. — Me
liga, qualquer dia desses, se quiser tomar um café.
— Eu ligo. — Sorri. — Vê se não quebra mais nada, tá?
— Te digo o mesmo.
Lena correu em minha frente até o carro, implorando aos
céus por não ter tomado uma multa, e quase derreteu de alívio ao
perceber que tinha sido atendida.
Escorreguei para o banco do passageiro, ainda perdida em
pensamentos. Eu não poderia fugir para sempre. Precisava tomar
uma decisão.
A empresa de Eric já havia negado os boatos em uma
coletiva de imprensa, e eu tinha uma ideia do tumulto que havíamos
causado. Aquela bagunça toda devia afetá-lo de tantas formas que
só o pensamento fazia meu coração doer.
Olhei para o celular, que Lena me devolvera depois de muito
choro. Minhas redes sociais haviam saído do controle. Eu até
tentara espiar algumas mensagens, mas elas me fizeram ter
pesadelos à noite e me convenceram de que não valeria a pena ler
o resto.
Um pulso dolorido, com o qual me acostumaria, parecia uma
opção melhor do que viver quebrando o pé. Imagine, ainda, viver
quebrando o coração.
— No que está pensando? — Lena estralou os dedos em
minha frente.
— Nada… Só que a vida vai voltar a ser chata.
Era isso. O melhor para nós dois.
Digitei uma mensagem para Eric e enviei de olhos fechados.
Não poderia pensar duas vezes, para não me arrepender.
Por via das dúvidas, tirei o chip de dentro do aparelho e o
joguei pela janela.
Seria melhor assim.
“Desde o começo
Eu não te culpo por querer tanto ser livre”
— Famous, Ye.

— Evan, eu preciso falar com ela! — gritei. — Por favor, me


devolve!
Meu irmão estava sentado do outro lado da mesa de sua
sala, com meu celular nas mãos e os olhos grudados na tela do
computador.
— Eric, por favor. — Ele suspirou, pressionando as têmporas.
— Você já causou problemas de mais. Vai para casa e me deixa
resolver isso.
Geralmente eu concordaria, mas agora era diferente. Não era
sobre um show, não era sobre um contrato ou sobre uma mudança
de agenda; estávamos falando sobre Maitê.
— Não! — respondi, confiante.
Meu irmão ergueu uma das sobrancelhas, contrariado, e
cruzou os braços.
— Não?
— Não vou deixar você tomar a frente dessa vez. — Meu
coração batia forte, e minha mão suava demais. Não me lembrava
da última vez que me sentira tão nervoso. — Você pode tomar conta
de tudo que envolva a empresa, mas não vou permitir que tome
conta do meu relacionamento também.
— Eric, entenda de uma vez por todas que eu preciso intervir.
Só senta aí e espera, tá legal? Eu já tomei conta de tudo e…
— Você o quê? — interrompi.
Minha respiração falhou por um segundo. O que ele havia
feito?
— Jhoni fez uma coletiva de imprensa e negou os boatos.
Agora é só esperar a poeira baixar. — Ele sorriu, orgulhoso, como
se eu fosse lhe agradecer.
— Eu não acredito que você fez isso…
Maitê… O que ela pensaria de mim?
— E você esperava que eu fizesse o quê? — Bateu na mesa.
— Dissesse “ah, sim, Eric fugiu depois de fazer birra e se abrigou na
casa de uma desconhecida, então se apaixonou por ela e decidiu
acabar com a carreira para viver do amor”?
— Foi exatamente por isso que eu fugi! — Bati na mesa de
volta; as narinas abertas em afronta. — Você sempre faz tudo do
seu jeito! Será que entende que essa empresa só existe por minha
causa? — gritei. — Lee Entertainment só existe porque eu canto,
Evan!
Eu não abaixaria a cabeça para ele diante daquele assunto.
— E você só canta porque eu te trouxe até aqui! — Ele se
levantou, vermelho, pressionando o indicador fino contra meu peito.
— Será que pode ser grato por isso? Sempre que você fez merda,
fui eu que consertei para que você pudesse ficar no topo! Para com
essa ideia de que eu faço tudo para te prejudicar!
A última frase foi dita com certa mágoa. Evan gritava tão alto
que as veias saltavam no pescoço.
— Você é meu irmão, e eu te amo e faço de tudo para que
você possa viver seu sonho sem preocupações — falou mais baixo,
com os olhos caindo e a fagulha de raiva se apagando. — Eu dou a
minha cara a tapa para que ninguém faça nada contra você. Será
que consegue entender isso?
— Você não pareceu tão preocupado assim, quando te pedi
ajuda no camarim, em São Paulo.
Evan se encolheu como um caracol. Ele sabia que havia
agido errado. Se não fosse por Lena, aquelas garotas não teriam
sido levadas à polícia.
— Eu sinto muito, tá legal? Eu deveria ter te escutado.
Fitei o fundo de seus olhos. Eu sabia que ele era cheio de
boas intenções, apesar de nunca as concretizar.
— Se você me ama, me deixe falar com ela.
— Não é a coisa certa a se fazer. Espera tudo passar, então
eu te devolvo o celular e você liga, mas… — ele suspirou, se
sentando de volta — você precisa fazer uma escolha, Eric. Ou você
continua sua carreira, ou escolhe ouvir esse seu coração idiota.
Foi assim que me lembrei da conversa secreta que tivera
com Helena no estúdio, depois da fuga de Maitê. Me lembrei
também do texto que a garota havia postado na coluna principal da
Fofoquei e que viralizara nos sites de fofoca por toda a América. Eu
tinha certeza de que ela entraria em uma fria por causa dele, mas
estava grato por suas palavras terem chegado até mim daquela
forma, me dando forças e me ajudando a tomar a decisão correta.
Helena tinha razão: eu merecia ser feliz.
Aquela garota pequena, de coração enorme, me dera tantos
bons conselhos que eu não sabia se seria capaz de seguir meu
instinto se não tivesse seu amor e apoio de fã.
— Eu escolho a Maitê!
Eu estava decidido e nada me faria mudar de ideia.
Evan me encarou por alguns segundos, segurando a
respiração, então soltou uma lufada de ar, derrotado.
— Que seja! Resolva isso daqui a alguns dias — respondeu,
sem forças. — Enquanto isso, foque na sua turnê. Ela não pode
parar de novo.

Seria ótimo se eu tivesse a senha das minhas redes sociais,


ou ao menos a liberdade de criar uma nova para falar com Maitê. No
entanto, com meu irmão na cola, o tempo todo, ter contato com o
mundo externo se tornara uma missão impossível nos últimos três
dias.
Tentei matar o tempo com meus ensaios e gravações, mas,
ainda assim, minha cabeça não estava no lugar em que meu corpo
se encontrava. Ela estava no Brasil, assim como o meu coração.
Eu tinha medo do que poderia acontecer com Maitê.
Tinha medo do que os meus fãs poderiam fazer para ela, ou
lhe dizer. Aquela garota era osso duro de roer, mas eu tinha certeza
de que, por baixo da Senhora Dona da Razão, existia alguém que
também se machucava com a atitude dos outros.
Por mais que ela tentasse não demonstrar.
Uma semana fora o suficiente para me provar que o amor
sobre o qual eu cantava era real. Ainda que eu escrevesse sobre
ele, nunca o tinha experimentado da forma doce e pura que Maitê
me fizera sentir.
Eu sabia que era loucura, mas queria que meu público
entendesse que eu também tinha sentimentos; que, fora dos palcos,
eu também era uma pessoa que precisava de alguém para amar.
Queria que entendessem que eu não trabalhava vinte e quatro
horas por dia e que não queria viver para fazê-los sorrir se eu não
pudesse sorrir também.
Tinha medo do que os fãs mais possessivos poderiam fazer
contra Maitê, e aquilo me fazia pensar se não seria mais inteligente
se eu também escutasse a voz da razão.
Quase uma semana mais tarde, Evan me mandou
mensagem dizendo para encontrá-lo no escritório. Corri como se
minha vida dependesse daquilo. Eu finalmente poderia falar com ela
e ver se estava tudo bem, dizer que eu não negara os boatos, que
não tomara aquela decisão e que preferia seguir meu coração; que,
independente do que dissessem, eu não a deixaria para trás.
Quando cheguei à sala do meu irmão, ofegante, Evan se
sentou no sofá com o meu celular na mão e o sacudiu em minha
frente.
— Então… o que você decidiu?
— Não vou mudar de opinião — respondi firme, ao que ele
suspirou, cansado. Eu sabia que havia causado grandes problemas,
mas não me arrependia deles. — Continuo escolhendo a Maitê.
— Uma coisa que eu quero que você entenda, Eric, é que o
amor sempre machuca — ele afirmou ao me entregar o celular, com
uma expressão triste no rosto.
Abri rapidamente as conversas, pronto para escrever tudo
que havia ensaiado nos últimos dias, mas, antes mesmo que
pudesse começar, vi uma mensagem de dias atrás.

Maitê: Obrigada por negar os boatos. As coisas ficaram loucas por


aqui. Descobriram meu endereço e bloquearam a entrada da minha
casa. Vou ter que morar em outro lugar por um tempo. Me desculpe,
Eric, mas isso não vai funcionar… Foque na sua carreira e nos seus
fãs. Vou estar torcendo por você.
E tente não ser atropelado por mais ninguém.

Com o coração na garganta, tentei ligar para ela, mas seu


número havia sido cancelado. Nas redes sociais, não consegui
achar seu nome e nem mesmo Lena consegui contatar.
Maitê havia excluído todos os seus meios de comunicação.
— Eu tentei te avisar — meu irmão completou, se colocando
ao meu lado e acariciando minhas costas. — Você age demais
pelas emoções. Que tal ser um pouco mais racional?
Maitê abrira mão de mim, mas eu sabia que o que existia
entre nós era real. Eu daria tempo ao tempo e a deixaria pensar
mais sobre o assunto. Por mais que ouvisse a razão, eu tinha
certeza de que, uma hora, seu coração falaria mais alto. Ela abriria
novamente os braços para mim.
Até porque eu não desistiria tão fácil.
“Talvez eu esteja cansado
Acho que atingi o fundo de mim mesmo
Alguém venha e conserte este coração partido”
— Tired, NIve.

São Paulo, minutos antes de fugir do show.

Eu não queria mais cantar.


De que me adiantava subir naquele palco e grudar um sorriso
ensaiado no rosto se nada daquilo me fazia sorrir de verdade?
Sentia saudade dos dias em que eu fazia tudo por amor.
Saudade do tempo em que subir no palco me deixava com o
coração acelerado pela animação e não pela ansiedade que a
cobrança me gerava.
Enquanto dançava a última coreografia, avistei no meio da
multidão dois rostos inconfundíveis, que me geravam terror. Duas
Sasaengs[6] que assistiam a literalmente todos os shows estavam
coladas na frente do palco, me encarando com algo além de
adoração nos olhos.
Havia passado por maus bocados por conta daquelas duas
diversas vezes. Uma delas chegara a tentar invadir meu
apartamento em Los Angeles, mesmo que morasse muito longe dali.
Eu já as denunciara por perseguição obsessiva ou insidiosa, mas,
ainda assim, elas sempre davam um jeito de aparecer e, depois,
sumir quando eu tentava mostrá-las para alguém. Mais assustador
do que vê-las tão perto foi não as encontrar em lugar nenhum,
minutos depois.
Por mais que fossem apenas duas garotas contra mim e
minha equipe de segurança, eu ainda tinha medo de que qualquer
deslize pudesse acontecer e elas conseguissem se aproximar. Eu
não gostava da forma como me olhavam, já recebera presentes
suspeitos em fansigns, que, inclusive, decidira deixar pelo caminho,
e até chegara a ser assediado. Muitas vezes, avisava minha equipe,
mas eles já nem se davam ao trabalho de me ouvir. Meu irmão
continuava dizendo que eram “apenas duas garotas” e que eu ficaria
bem; até chamava de “exagero” minha medida preventiva na justiça.
No entanto, era algo que me tirava o sono. Eu me sentia assistido a
todo momento, seguido até quando não estava sendo e, por isso,
nunca saía sozinho.
Naquela noite, após o show, minha equipe de segurança me
escoltou até o camarim, e eu pude jurar ver uma delas correr no fim
do corredor.
— Você viu aquilo? — cochichei para Evan, ao meu lado.
— O quê? — Ele espremeu os olhos para a direção em que
eu disfarçadamente apontava.
— Uma daquelas garotas passou correndo ali, eu tenho
certeza.
Evan me olhou de lado, como se eu tivesse ficado maluco, e
deu uma batidinha em meu ombro.
— Você deve estar muito cansado.
— Eu sei o que vi! — Meu coração batia forte. Era horrível
aquela sensação de nunca estar sozinho.
— Fez um bom trabalho hoje! — Ele me ignorou, abrindo a
porta do camarim para que eu entrasse. — Se prepare para o voo.
Vamos sair em breve.
— Evan, eu estou falando sério! — choraminguei. — Peça
para alguém da segurança dar uma olhada em volta, por favor!
— Certo, certo — ele respondeu, com um risinho.
Eu sabia que ele não pediria.
— Você nunca vai me escutar? Será que pode prestar
alguma atenção no que eu digo? — falei um pouco mais firme; o
rosto ficando mais vermelho pela raiva de ter a voz abafada daquele
jeito.
Quando alguém se importaria comigo e acreditaria nas
minhas palavras? Quando validariam meus medos e entenderiam
que o que talvez não fosse nada para eles, para mim, era tudo?
Entrei no camarim vazio, quando ele me ignorou, e despejei
um pouco de demaquilante em um algodão molhado, mas o soltei
sobre a mesa. Eu continuava com a sensação de ser assistido.
Olhei em volta e não vi ninguém ali, além de mim.
Eu estava tão cansado.
Cansado de não ser escutado, de não poder tomar minhas
próximas decisões; eu não queria mais aquilo para mim. Eu queria
jogar tudo para o ar, fingir nunca ter sido um astro e voltar a ter dias
normais. Queria dormir mais que quatro horas por noite e ter a
certeza de que ninguém estaria à espreita.
Sentia falta de quando não tinha pesadelos e de quando caía
no sono minutos depois de me jogar sobre o colchão. A insônia
havia se tornado parte de mim e de quem eu era. E, junto a ela, o
medo.
De trás da cortina, um barulho esquisito me incomodou.
Estreitei os olhos e vi um par de pernas tentando se ajeitar
atrás do tecido pesado. Não precisei conferir para saber quem
estava ali, e aquilo me fez congelar.
No entanto, pela primeira vez, decidi fazer por mim o que
ninguém faria. Fingi não perceber e peguei o celular, então mandei
uma mensagem para Derick.

Eric: Vou voltar para LA com você.


Não me pergunte como ou por quê,
só não fale com ninguém.
Mas, se eu não aparecer, vá sem mim.

Derick: Você e seus dilemas.


Olha lá o que vai aprontar!

Olhei de relance para a minha bolsa sobre o sofá.


Ótimo. Tudo de que eu precisava estava ali: meus
documentos e cartões.
Escrevi em um pedaço de papel que iria embora com Derick
e que minha equipe não precisaria se preocupar, então deixei o
bilhete preso sob um copo d’água vazio.
Agarrei o celular e a bolsa, como quem não queria nada,
calcei os sapatos novamente e me levantei para sair em direção à
porta. Eu avisaria meus seguranças que alguém estava atrás da
cortina, então sairia escondido, enquanto eles cuidavam do
problema.
Abri a porta, mas ninguém estava ali fora.
Que droga de equipe era aquela em que eu gastava tanto
dinheiro?
O maior erro da minha vida foi olhar de volta para a sala.
Peguei a garota de cabelos azuis me espiando, e, com o contato
visual, ela tomou coragem para sair de trás da cortina e dar um
passo em minha direção.
— Eric-ssi, Saranghae![7] — ela falou, com um sorriso enorme
e lágrimas nos olhos, subindo a câmera apontada para mim.
Não precisei pensar duas vezes antes de apertar o passo e
fugir dali. Passei pelo corredor vazio como se minha vida
dependesse daquilo e tirei de dentro da bolsa um boné preto, que
coloquei sobre o cabelo arrumado.
Enquanto corria, a maluca vinha atrás, gritando meu nome e
tirando fotos. Eu já estava saturado daquele jeito de viver. Não
queria mais ter que me esconder. Naquele momento, tudo que
conseguia pensar era em sumir, ir para um lugar onde ninguém
pudesse me ver.
Quando cheguei à única porta que me tiraria do estádio em
sigilo, vi a amiga da garota de cabelo azul à espera, como quem não
queria nada.
Derrapei sobre o piso tátil de alerta da saída e mudei a
direção para o único lugar que eu não poderia atravessar: o meio
das fãs. Sabia que seria difícil passar por ali, mas, com sorte, os
seguranças me viriam e me ajudariam a fugir.
Mergulhei no mar de pessoas, chamando mais atenção do
que gostaria. Uma multidão se formou, logo atrás de mim, e apenas
um segurança conseguiu me alcançar.
— O que você está fazendo? — ele gritou.
— Tentando sair daqui! — gritei de volta, vendo meu celular
cair da mão e ser pisoteado.
Alguns fãs abriram espaço para que eu passasse, e outros se
juntaram à multidão atrás de mim.
— Eu seguro elas para você. Corre!
Eu duvidava muito de que ele conseguisse sozinho.
O rapaz pediu reforço no ponto de comunicação e segurou o
máximo de fãs que pôde, até ser facilmente derrubado.
Ao meu lado, uma mão pequena segurou meu braço e,
quando vi, uma garota baixinha sorriu. Correndo ao mesmo passo
que eu, ela gritou em coreano:
— Vou te tirar daqui!
Seus cabelos cacheados chicotearam meu rosto quando ela
olhou para trás, a fim de checar a situação. Eu não tinha tempo para
escolher em quem confiar, apenas deixei que ela segurasse meu
pulso e me guiasse para fora do estádio. Quando dobramos a
esquina, a garota me enfiou entre duas colunas enormes e
cochichou para mim:
— Shhh! — Pressionou os lábios com o indicador. — Não sei
como vamos sair daqui, mas tenho certeza de que ninguém vai nos
achar.
Eu não entendia como um ser tão pequeno conseguia se
mover tão rápido.
— Obrigado — murmurei.
— Não precisa me agradecer. — Ela estava ofegante e com
as bochechas vermelhas. Eu nunca tinha visto tamanha coragem
em um corpo tão miúdo. — É o mínimo que eu posso fazer por
alguém que colore minha vida com suas canções.
Talvez meu trabalho não fosse em vão. Talvez eu só
estivesse exausto, enxergando apenas as partes ruins de ser quem
eu era.
No fim das contas, me peguei feliz em perceber que, se meu
trabalho mudava a vida de uma pessoa entre todas aquelas, todo o
meu esforço valia a pena.
— Mas que ideia maluca foi essa? — ela brigou, com certa
preocupação estampada no rosto.
— Uma Sasaeng estava dentro do meu camarim —
confessei, e ela amoleceu a feição.
— Aquela doida do cabelo azul?
Assenti e a vi estreitar os olhos.
— Ela que me aguarde!
A garota deu um soquinho na própria mão, com uma careta
fofa, mas que ela devia pensar ser assustadora.
— Certo, o plano é o seguinte… — ela cochichou, me
empurrando um pouco mais para trás, enquanto a multidão corria
enlouquecida à nossa procura. — Assim que todos eles passarem,
nós vamos correr como dois maratonistas até o outro lado. Meu
carro está logo atrás daquele ônibus azul. Eu te levo até o hotel, ou
seja lá pra onde você vai.
— Você não vai me raptar, vai? — fiz piada.
Por algum motivo, eu sabia que poderia confiar nela.
— Quanto será que eu consigo se te vender na internet?
— Não muito. — Ri.
— Então, não, não vale o risco.
Segurei uma risada diante da cara de desdém que ela fez.
— Certo, é agora. — Ela se preparou para correr, quando um
espaço se abriu, então ergueu três dedos para uma contagem
regressiva. — Três… dois… um! Corre!
Corri como se minha vida dependesse daquilo outra vez,
porque agora realmente dependia. O gosto da liberdade estava tão
próximo. Eu só precisaria atravessar a rua. No entanto, uma
manada de gente apareceu do outro lado, bloqueando o ônibus e
todas as outras saídas.
Um grupo de fãs conseguiu chegar até mim. Um rapaz puxou
meu boné, outro, a minha bolsa, e então eu tropecei e perdi um
sapato, que foi levado também. Um número enorme de pessoas
começou a se aglomerar ao meu redor; eram tantas mãos querendo
me tocar que acabaram cortando minha pele. A garota baixinha, no
meu encalço, tentava lutar e gritou para mim enquanto tinha o
cabelo puxado.
— Não vamos conseguir chegar no carro, eu vou abrir
espaço. Por favor, corre daqui!
— Mas…
— Corre!
Então ela se jogou sobre algumas pessoas à nossa frente,
derrubando todo mundo feito uma bola de boliche acertando os
pinos.
— Meu nome é Helena. Foi um prazer te conhecer! —
completou, amassando algumas garotas no chão.
— Espero te ver em breve, Helena! — gritei de volta, pulando
sobre os fãs que caíam, um por um, em efeito dominó.
Helena havia se sacrificado por mim. Eu precisava sair
seguro dali para recompensar seu trabalho duro.
Ainda seguido por algumas fãs, me joguei em frente a um
carro preto em baixa velocidade e espalmei as mãos no capô. Por
sorte, ele parou antes de me atropelar. Lá dentro, uma garota de
cabelos claros com as pontas cor-de-rosa me encarou.
Seus olhos de cor flamejante demonstravam que estava
brava, mas também preocupada. Meu coração deu um pulo pela
forma com que aquele mundo azul me atingiu.
É ela, decidi.
Então escorreguei por cima do capô e abri a porta da frente,
me jogando para dentro.
— Sálvame, por favor!
“Eu não preciso de um mapa
Meu coração me leva até você”
— Black pearl, Exo.

— Olha, só quero registrar que acho uma tremenda


sacanagem você me obrigar a fazer isso, mas estou fazendo porque
te amo — Lena resmungou, enquanto tirava todos os trezentos
pôsteres do Eric de sua parede. — E quer parar de rabiscar a cara
dele?!
Encarei a foto do rapaz sem camisa, onde eu havia
desenhado orelhas de cachorro e um focinho.
Quem eu queria enganar? Ele fazia tanta falta!
— Como a gente lida com a saudade? — choraminguei,
agora desenhando corações nas bordas da página.
— A gente sente e espera passar. — A pequena suspirou,
sentando-se ao meu lado.
Uma lágrima ameaçou escorrer dos meus olhos, então Lena
pegou um dos pôsteres e rabiscou também.
— Quer saber? Que se dane! — ralhou, fazendo chifres e um
tridente em outra foto. — Quem ele acha que é para roubar seu
coração e ir embora?
— Lena! Não faz assim! — Tomei o papel de sua mão, o
abraçando contra o peito.
— Eu vou ter que me demitir desse fandom — grunhiu, brava.
— Como eu posso ser a administradora do fã clube, quando ele
quebrou o coração da minha melhor amiga, desse jeito? Quando eu
vir o Eric outra vez, vou pegá-lo pelos cabelos e… — Ela parou e
então riu. — Não é engraçado que eu possa planejar chegar perto o
suficiente dele, assim? Ah, nem tudo na minha vida é um fracasso.
Eric Lee, no fim das contas, é o meu cunhado.
— Cunhado, uma ova! — reclamei, soltando o pôster no chão
e me jogando para trás, batendo as costas no chão. — Por que é
tão difícil gostar de alguém que mora tão longe? Que tem tantos
fãs? Que tem tanto a perder?
Lena se jogou ao meu lado, fazendo drama ao lançar as
pernas para cima, então apontou para as estrelinhas coladas no
teto.
— Bem-vinda à vida de uma fangirl.
— É… parece que isso é tudo o que eu posso ser, no fim das
contas.
Lena se virou para o lado, amassando uma bochecha sobre o
punho e apoiando o cotovelo no chão.
— Você não se arrepende de ter terminado tudo, sem tentar?
— Às vezes. — Suspirei. — Nas outras, acho que fiz a coisa
certa.
— Você deveria parar de ser tão racional, Tê. O amor não é
para amadores. — Ela sorriu, como se fosse a voz da experiência.
— Nem para pessoas que não estão dispostas a tentar e abrir mão
de algo em troca. Amar também é fazer escolhas racionalmente
burras.
— Isso não faz nenhum sentido.
— Não faz se você olhar pelos olhos da razão.
— É verdade.
Lena se sentou e segurou minha mão, esperançosa.
— Em breve, nós vamos pisar em solo americano. Por que
não liga para ele?
— Não posso fazer isso, Lena. A essa altura, Eric também já
deve ter se esquecido de mim.
— Aposto que não.
— Por que não focamos na sua viagem, hein, meu bem? —
desconversei. — Afinal de contas, quando voltarmos, você vai estar
prestes a voar outra vez. E para mais longe.
— Ainda não acredito que estou fazendo isso.
— Você vai ser muito feliz nessa nova fase. — Acariciei seu
cabelo e enrolei um cacho no dedo indicador. — Não existe Miguel
na Coreia, mas vai que você esbarra com Jeon Jungkook?
— Só nos meus sonhos. — Ela riu. — Eric já foi sorte demais
para a minha vida de fangirl.
— Tetê, para de chacoalhar essa perna, pelo amor de Deus!
— Nina brigou antes de me dar um tapa na coxa.
Sentada na ponta da cama, minha amiga travava uma guerra
entre o tubinho de rímel e os cílios longos, alegando que eles
precisariam estar perfeitos, porque ela sairia nas fotos com a
ganhadora da noite. Na outra extremidade, minha perna
chacoalhava como um terremoto de ansiedade e desespero.
— Ah, droga, borrei! — Nina me olhou, furiosa, com metade
do olho esquerdo pintada de preto. — Para com essa perna, Maitê!
— Não briga com ela, Nina! — Deitada entre nós, Lena se
manifestou em minha defesa, como sempre. — Coitada, ela já está
ansiosa!
“Ansiosa” apenas não definia bem o meu estado. Eu estava
mais para freneticamente fora de mim, prestes a ter uma taquicardia
e precisar ser socorrida, vestindo apenas um jogo de calcinha e
sutiã de bolinhas amarelas, que parecia ter sido comprado na ala
infantil da C&A.
— Desculpa, é só que… — murmurei.
— Relaxa, você vai se sair bem, ok? — Mesmo brava com
uma pálpebra borrada de rímel à prova d’água, que seria um parto
para corrigir, Nina tentou me encorajar.
— Verdade. Você é a melhor pianista que eu conheço, Tê!
Vai arrasar! — Lena ergueu o polegar em encorajamento e abriu um
sorrisão.
— Eu sou a única pianista que você conhece, Lena! —
constatei. — Mas obrigada pelo apoio.
— Tá, mas, mesmo se eu conhecesse outras, você ainda
seria a melhor. — A pequena me lançou uma piscadela.
— Isso não faz o menor sentido — resmunguei.
— Ah, Maitê, faz o favor… — Nina ralhou. — Só aceita o
elogio! Não dá para animar você desse jeito, garota!
Sorri para minhas amigas, que tentavam acalmar minha
ansiedade à flor da pele, ainda que aquela não fosse a única coisa
que me incomodasse.
Eu estava em solo americano.
Um ano e meio se passara desde que a mídia distribuíra para
o mundo fotos minhas e de Eric. Depois de apagar todas as redes
sociais e fingir que nada daquilo existia, enfim entendia como Lena
se sentira ao ter o coração partido por Miguel.
Claro, Eric em si nunca faria nada para me machucar, mas,
por causa dos comentários maldosos de seus fãs e de julgamentos
injustos, minha confiança também fora quebrada, assim como meu
coração, que já não estava inteiro desde sua partida. Ainda que, a
pedido de Lena, Eric tivesse dado mais entrevistas dizendo que eu
tinha sido apenas uma pessoa que o ajudara, muita gente decidira
não acreditar.
A saudade que insistia em apertar meu peito era tão forte que
parecia palpável, e, ainda que eu quisesse ignorar tudo e dizer a ele
como me sentia, nunca havia conseguido. Assim que as notícias
estouraram, eu sumira, sem dizer nada. Nunca me dera ao trabalho
de responder as cartas ou os e-mails que Eric e sua equipe me
enviavam.
Ele queria me ver, conversar e resolver tudo, mas não viria
até mim sem que eu dissesse que podia. E eu nunca dissera.
As palavras duras, que me condenavam, vindo de todos os
lugares do mundo, as ameaças de morte e a pressão da mídia me
tornaram uma pessoa que eu não era. Por meses, precisara morar
na casa de Lena para evitar o acúmulo de curiosos em frente à
minha. Só quando o assunto deixara de ser novidade, a perseguição
acabara.
Mesmo assim, não conseguia me recompor. Tinha
considerado até trocar de faculdade por não aguentar mais ouvir
que eu havia ganhado na loteria, ou que não era nenhuma
coincidência eu estudar música e me envolver com um cantor
famoso, que tudo o que eu queria era fama.
Fama! Logo a única coisa que eu não queria ter.
Para superar esse tempo horrível, Lena e Nina fizeram todo
tipo de coisas na intenção de me distrair. Tentavam me tirar de casa,
todos os finais de semana, me levavam para a praia com
frequência, assistiam a concertos de música clássica comigo,
mesmo que odiassem, e até chegaram a me inscrever em dezenas
de recitais, nos quais eu amava participar, ainda que o prêmio fosse
um pacote de balas de coco.
Em um deles, surgira uma oportunidade de competir por uma
bolsa na The Juilliard School, em Nova Iorque, e, mediante uma
carta de indicação do conservatório em que estudava e a análise do
meu currículo, eu tinha sido selecionada. Para ser honesta, sem
muitas expectativas; afinal, a instituição era conhecida por ser o
melhor conservatório de música do mundo.
Nas quatro primeiras fases, apresentáramos em diferentes
lugares do Brasil e, para a quinta, precisáramos viajar para Lisboa.
Agora, na final, mal podia acreditar que colocaria meus pés no chão
de mármore da própria faculdade, esperando minha vez de tocar.
Para ser sincera, eu ainda não conseguia acreditar até onde
eu havia chegado. Nunca cogitara fazer pós-graduação no melhor
conservatório do mundo e tinha medo de que, agora que aquela
vontade se instalara no meu coração, eu falhasse.
No entanto, ao pisar em solo americano, meu coração
despertara.
Ele se lembrara do pedido de Eric para que eu o procurasse,
caso viajasse para o exterior, das promessas de nos reencontrar e
também de toda dor que aquela paixão, que se tornara amor antes
mesmo que eu percebesse, me causara.
Eu havia me jogado de cabeça na ideia de me ocupar com
recitais. Qualquer oportunidade que aparecesse de me manter
focada em alguma coisa que não fossem meus sentimentos eu
agarrava. Aos poucos, conseguira voltar a ser quem era.
As pessoas me esqueceram, Eric parara de me procurar, e
agora eu podia viver como uma pessoa normal. Minhas redes
sociais tinham outro nome, mas eu ainda não postava foto alguma.
Não poderia dizer que nunca me lembrava dele e nem que
não espiava suas redes sociais, de vez em quando. Jamais poderia
dizer que odiava quando seu rosto aparecia nas recomendações do
YouTube. Sempre que isso acontecia, eu ouvia meu coração, por
alguns segundos, e assistia ao começo dos vídeos, ainda que minha
razão me fizesse fechar a aba sem terminá-los.
Ninguém nunca saberia quantas vezes eu escutara a música
que, em segredo, eu o gravara tocar no estúdio, até ser capaz de
assumir que não conseguia mais ouvir sua voz sem chorar. Ou
quantas vezes assistira aos nossos momentos registrados pelas
câmeras de casa. Eu queria acompanhá-lo e torcer por ele, porque
ele merecia, mas eu não conseguia.
Não tinha sido fácil.
E ainda não era, mas, pelo jeito, nunca seria.
Limpando a casa, alguns dias depois de sumir da vida de
Eric, encontrara uma folha de caderno dobrada, atrás do meu piano.
Eu estava pronta para amassá-la, imaginando que, se fosse
importante, não estaria ali, quando vi a letra cursiva transpassar o
papel branco.
Ao abrir, meu coração gelou, e eu comecei a chorar antes
mesmo de ler.

“Eu n ã o sei se deveria fazer isso, mas, caso algum dia voc ê
duvide que o que senti por você foi verdadeiro, vou deixar aqui a
prova disso. Compus essa música pensando em você. Espero que
tenha gostado da apresentação que fiz no estúdio, porque você e a
Lena foram as primeiras a escutar. Saiba que voc ê me deixou as
marcas mais profundas e que, no futuro, também vai entender que
você foi a minha porta para o para í so!”

No papel, Eric escrevera duas músicas. A que ele nomeara


“Do you mind if I stay?” eu já conhecia e, inclusive, escutara
centenas de vezes antes de dormir. Eu era a única que possuía
aquele arquivo.
Já a segunda, eu não sabia do que se tratava até que, quinze
dias depois, ele lançara um videoclipe dela. No vídeo, ele brincava
com um Husky igualzinho ao Chopin e fazia várias referências aos
dias que passara comigo. A modelo que fazia seu par romântico era
baseada em mim, de olhos azuis, cabelo loiro na altura dos ombros
e pontas cor-de-rosa, camiseta de donut e até a cara amarrada.
No entanto, o olhar de Eric para ela não era o mesmo com
que olhava para mim. Seus olhos não brilhavam como se uma
constelação morasse ali, e seu sorriso não era largo o suficiente
para ser visto de costas.
Para alguém que entrara em um amor repentino e precisara
forçar uma separação em tão poucos dias, meu coração até que
estava aguentando bem.
Me condenara diversas vezes por ter sumido de sua vida e
quase voltara atrás. Em certo ponto, só desejava ser forte o
suficiente para dar a cara a bater. Sofrer aqueles ataques fora, sim,
dolorido, mas doía ainda mais não ouvir notícias de Eric.
Eu sentia falta de sua voz divertida e das fotos do seu nariz
com uma mensagem de bom-dia. Sentia falta de assistir-lhe na TV e
depois comentar o quanto ele havia arrasado no show, mas sentia
ainda mais falta de ouvi-lo dizer que gostava de mim.
Acima de tudo, sentia falta de tocar Nocturne e me lembrar
dele sem tanta dor.
No entanto, a forma como as coisas haviam acabado me
fizera enterrar minha música favorita lá no fundo do peito, junto a
tudo que me remetia a ele.
Talvez se eu tivesse feito as coisas de um jeito diferente…
— Anda, Maitê! — Nina chamou, me tirando do meu
devaneio. — A gente não pode se atrasar para sua última
apresentação, e você ainda tá aí, viajando na maionese.
— Se tudo der certo, quero conhecer o Vessel ainda hoje —
Lena vibrou. — Nada me impede de revirar Nova Iorque de cabo a
rabo, até amanhã de noite. Você vai ganhar, e vamos comemorar
comendo tudo que pudermos no maior rooftop disponível.
— Disponível pra nossa grana curta, você quis dizer, né? —
Nina brincou.
— Não garanto que vou ganhar — falei, desanimada —, mas
gosto da ideia de encher a barriga.
— Ai, Tê! Bota um sorriso nesse rosto, credo — Lena pediu,
com um biquinho. — Você não é assim.
— Claro que é — Nina cutucou, recebendo um tapinha da
pequena. — Essa carranca é a marca dela.
— Você também não ajuda, né, Nina?
— Eu preciso descer para me juntar ao pessoal. — Tentei
desfazer a cara emburrada e mostrei a língua para as duas. — Além
do mais, preciso me concentrar, e vocês não param de falar.
Desci, desanimada, com a cabeça longe, e atravessei a rua.
Felizmente a seletiva nos garantia um quarto enorme no hotel que
ficava bem em frente ao conservatório.
Me juntei aos outros participantes, com a ansiedade lá em
cima e o coração apertado. Eu me sentia tão transtornada que,
quando dei por mim, algumas horas depois, meu nome já estava
prestes a ser anunciado.
Eu nem sequer notara o tempo passar. Estava com tanto
medo de arruinar a apresentação pela minha falta de atenção,
naquele dia, que comecei a suar sem parar, ainda que estivesse frio
lá fora.
Atrás da cortina, coloquei apenas um cantinho da cabeça
para fora e encontrei Lena me procurando, junto a Nina e Josh,
sentados na terceira fileira. Quando me encontraram, os três
ergueram os braços em apoio e me lançaram um tchauzinho,
desejando forças. Aquilo foi o suficiente para fazer meu coração se
acalmar.
Queria que meus pais estivessem ali, mas, para isso, eles
teriam que deixar minha avó sozinha na Itália, o que não era seguro.
Ela estava fraca e doente, e nenhum dos irmãos da minha mãe
estaria lá para ajudar.
Mamãe ficara arrasada por não poder vir, e papai, apesar de
triste, dissera ter certeza de que eu me sairia bem. Josh, como o
filho e irmão puxa-saco que era, prometera fazer um vídeo ao vivo
da apresentação para que nenhum deles perdesse nada.
Eu não estava sozinha ali.
Já era tarde da noite, e eu era uma das últimas a se
apresentar. Tudo que eu queria era acabar com aquilo e achar um
open bar no primeiro rooftop em que as meninas decidissem entrar.
Eu estava decidida: independente do resultado, iria beber até dar
trabalho e chorar até que minha última gota de lágrima caísse, antes
de seguir em frente.
Juntei toda a minha coragem fajuta e pisei confiante no palco
quando anunciaram “Maitê Sanchez Fiori” com um sotaque muito
chique.
Eu fui em frente, um passo após o outro, em cima de um par
de saltos que minhas amigas custaram a me fazer usar e tentando
manter meu vestidinho branco e esvoaçante no lugar. A última coisa
de que eu precisava era cair na frente da plateia da Juilliard.
Tentei juntar o restinho do foco que me restava e suspirei ao
endireitar a coluna, sentada em frente ao piano. Na plateia, não se
ouvia nada além da respiração dos espectadores e uns espirros.
Fiz um pequeno suspense e, depois de alguns segundos,
comecei rapidamente a melodia de Etude Op. 25, nº 6, um dos
Etudes mais difíceis de Frederic Chopin. Graças a ele e sua
complexidade que não me permitiam desviar a atenção, pude
esvaziar a mente pelos próximos minutos.
Um minuto e cinquenta e oito segundos, para ser mais exata.
No tempo perfeito, como deveria ser.
Nos últimos acordes, ouvi um barulho estrondoso vir da porta
dos fundos. Dei um pulo, assustada, mas não me desconcentrei.
Ao fim da música, me levantei para receber os aplausos e, no
meio de toda escuridão, em frente à porta maciça de madeira, vi
uma luz entrar pelo corredor. Ela reluzia em uma camisa vermelha
de lantejoulas, que fazia com que quem a vestisse se igualasse a
um globo de discoteca.
Curiosa, encarei a figura que desfilava corredor abaixo.
Congelada a meio metro do piano, estreitei os olhos em direção ao
corredor e quase caí quando a luz de emergência da última fileira se
acendeu.
Enquanto todos olhavam de mim para a passagem entre as
poltronas, a imagem de um rapaz ficou mais nítida diante dos meus
olhos. Eric Lee estava naquele auditório, parado no meio do
caminho até mim e ofegando enquanto me olhava.
Parecia ter fugido de algum show. De novo. Sua roupa não se
assemelhava em nada com o que gostava de usar: era brilhante
demais, e a calça preta tinha jeito de ser desconfortável. Em sua
orelha, um brinco comprido pendia. E um fio branco se enrolava em
sua camisa desajeitada até a ponta de um fone de retorno, caído
sobre o ombro esquerdo.
Eric espalmou as mãos nos joelhos, ainda segurando um
microfone roxo, então respirou fundo e se sentou em um dos
degraus que ficavam bem no meio do salão, entre as fileiras de
assentos.
Meu coração tropicou e pisou em falso diversas vezes.
Endireitei a coluna, mas não consegui dar um passo para frente. Na
coxia, uma pessoa toda vestida de preto acenou para que eu saísse
logo do palco, então me apressei.
Aplausos brotaram da plateia, mas tudo que vi foi o rosto
confuso de Eric, antes de as cortinas se fecharem por completo.
O que eu deveria fazer?
Eu queria correr para os braços dele e dizer que sentira sua
falta, mas… e suas fãs? E se alguém nos visse juntos? Aquilo
provocaria um problema ainda maior para ele. Os boatos de um
possível namoro o haviam afetado muito, meses atrás.
No bolso, meu celular vibrava sem parar, enquanto eu fugia
para o lugar mais distante possível do palco. Quando vi o número de
Lena piscar, entrei em um desespero sem fim e congelei no meio do
corredor que me levava ao banheiro. No começo dele, vi minhas
amigas e meu irmão correrem felizes até mim e, atrás deles, Eric,
com a maior cara de orgulho.
Naquele momento, todas as minhas habilidades de fingir ser
uma pessoa normal decidiram sumir. Meu cérebro parecia ter
desligado e me deixado por conta própria; a razão, que sempre me
acompanhava, evaporou. E, incapacitada de arranjar um jeito de
sumir dali, prensei meu corpo contra a parede e colei a testa na
superfície fria, com os olhos fechados.
— Mas que diabos você está fazendo, Maitê? — Nina riu, me
provando que minha solução não fora a mais esperta.
Eles ainda me viam.
— Eu… er… ahn — gaguejei.
Eric me deu um sorriso gostoso, e, ao ver minha expressão
confusa, Lena ergueu o celular para mim, sorrindo.
— Eu tenho uns contatos — disse, presunçosa.
— Vou matar você — retruquei entre dentes.
Lena sorriu daquela forma que fazia os olhos se enterrarem
nas bochechas, então Nina a pegou pelo braço, e as duas
arrastaram Josh para longe, a fim de deixar Eric e eu a sós.
O grande astro do K-pop estava parado em minha frente,
mas não remetia em nada ao garoto que eu conhecera, anos antes.
Eric estava mais forte. Seus músculos demarcavam a camisa
vermelha, e os olhos não eram negros como os que eu conhecia,
mas cor de mel. Até o formato deles se acentuava por baixo de toda
aquela maquiagem.
Assisti ao que ele mordia o lábio, reticente, e pigarreava,
ainda ofegante:
— Oi.
Ainda meio bamba com tudo o que estava acontecendo,
tropecei no salto que eu incrivelmente vencera, enquanto corria, e
me apoiei com a mão na parede, como se nada tivesse acontecido.
— Ahn, e aí?
Droga!
— Então — ele começou —, ahn… como você tem estado?
— Hum… você sabe, ocupada e tal — menti —, e você?
— É… eu também.
Pelo menos da parte dele, eu sabia que aquilo era verdade.
— Claro. — Suspirei. — Claro que estava.
— Então — ele beliscou o lóbulo da orelha, constrangido —,
só peguei o fim da sua apresentação, mas você mandou muito bem.
— Obrigada. — Sorri. — Você poderia ter feito uma entrada
menos triunfal. Quase errei os acordes.
— Me desculpe. Eu saí correndo e achei que não fosse dar
tempo.
Pela primeira vez, suas bochechas coraram. Mordi o lábio
para conter um sorriso, e, por alguns segundos, ficamos sem saber
o que dizer. Eu contorcendo a barra do vestido, e ele enrolando o fio
do retorno no dedo indicador.
— Senti sua falta — dissemos em sincronia.
Ajeitei o cabelo para trás da orelha, com um sorrisinho bobo,
e ele jogou a franja para o lado, contendo um também. Era bom
saber que eu não havia sido a única.
Eric chegou mais perto, pedindo permissão com os olhos
para me tocar, e, quando eu assenti, me embalou em um abraço
apertado e suado, com um cheirinho fraco de perfume.
Nada mal para quem dançava no palco como se a vida
dependesse daquilo.
— Me desculpe. — Desabei, assim que as batidas de seu
coração ecoaram em meu ouvido grudado em seu peito. — Eu fiquei
com medo…
— Eu sei…
Suas mãos macias, de que tanto sentia falta, deram
batidinhas de consolo em minhas costas. Mesmo que eu não visse
seu rosto, também ouvia seu nariz fungar ao conter o choro.
— Eu recebi tantas mensagens feias, fiquei com medo de
que algo pudesse acontecer com sua carreira e…
— Você não precisa me explicar, puppy.
— Eu queria muito ter vindo te ver, conversar e lutar mais por
você — minha maquiagem, que dera tanto trabalho para fazer, já
havia se derretido inteira —, mas eu não podia, não queria estragar
sua carreira. Eu sinto muito que a gente não possa ficar junto, eu…
— Espera, o quê? — Sua voz saiu esganiçada e assustada,
então ele me afastou pelos ombros e fitou meu rosto. — Por que
não? Você claramente gosta de mim, e eu, caramba, quase
enlouqueci longe de você. A Lena me disse que… quero dizer, eu
achei que… achei…
— Aquela sem-vergonha foi fofocar para você?
Ah, mas ela iria me pagar! E pagar caro!
Eric até tentou negar, mas eu sabia o que ela fizera. Era a
cara da Lena tentar resolver meu problema sem que eu soubesse.
E, bem, de certa forma, eu até que estava agradecida, então talvez
deixasse passar.
— Eric — falei, olhando para os lados. Estávamos
completamente sozinhos. — Se alguém souber disso, você vai ter
problemas.
— Bem, é um pouco tarde para se preocupar com isso.
Ele riu, erguendo o celular, com uma foto 3x4 minha na
capinha transparente. Onde ele tinha arrumado aquilo?
Helena…
Ao que a tela se virou para mim, eu o vi discursar em cima do
palco, com a mesma roupa que estava vestindo naquele momento.
— Eu tenho alguém que amo. — O público foi ao delírio,
provavelmente achando que seria uma declaração para os fãs. — E
isso não me faz amar menos todos vocês. Sei que querem me ver
feliz, e, agora, o que me faria feliz seria que entendessem que eu
preciso de uma vida fora desse palco também.
Um silêncio se instalou, e ninguém ousou gritar.
— Assim como vocês, eu também preciso ter alguém que me
espere quando eu voltar para casa, porque é triste deitar em um
quarto vazio, depois de um show lotado como esse. — A voz de Eric
estava embargada, e os dançarinos posicionados atrás dele
pareciam não saber se saíam do palco ou esperavam ali. — Eu
também quero ter um colo para chorar, quando as coisas se
complicarem, e quero alguém para brigar comigo se eu subir de
tênis no sofá.
Ri, erguendo meus olhos para Eric, que sorria para mim.
— Por favor, espero que me apoiem. Sei que, se realmente
me amam, vão querer me ver realizar tudo isso. Um comunicado
oficial já deve ter saído, a essa altura, e, sim, a pessoa que eu amo
é aquela que muitos de vocês condenaram, um tempo atrás. Aquela
garota brasileira, de cabelo colorido, me trouxe de volta a paixão
pela música quando eu estava prestes a desistir.
Dessa vez, olhei para Eric com os olhos arregalados. Que
história era aquela?
— Se não fosse por ela, esse show não estaria acontecendo
hoje, e outros não teriam acontecido desde que voltei do Brasil.
Espero que ela ainda me aceite, mas agora quero me pronunciar
com o coração e pedir para que respeitem a nossa privacidade.
Sem ela, eu não consigo seguir em frente. Já me perdi antes e não
quero que isso aconteça de novo. Se tudo der certo, prometo voltar
com muitas novidades e muitas canções novas para vocês! Torçam
por mim! — E então ele saiu correndo, levando o público e a equipe
à loucura.
E, bem, agora ele estava ali.
— Tá legal, você é maluco. — Ri, abismada. — E se o seu
exército de fãs malucas vier atrás de nós?
— Se você me permitir, eu vou te proteger para sempre.
Eram muito raras as vezes que Eric me olhava sério daquele
jeito. Ele não parecia estar brincando.
Eu até queria dizer algo, mas não consegui pensar em nada
inteligente.
— E outra coisa, sobre a nossa aposta…
— Que aposta?
— Você disse que eu precisava alimentar um ganso, e eu
alimentei dois. — Ah, como eu havia sentido falta daquela cara de
deboche. — Então o desejo concedido é meu, e não seu.
— Você está brincando, né?
Ele negou com a cabeça e cruzou os braços.
— Tá, e o que você quer? — perguntei, séria.
Eric parecia decidido.
Suas mãos grandes, das quais eu sentira tanta falta,
acariciaram meu rosto, e ele me fitou com aqueles olhos estrelados.
— Você!
Assim, seus lábios se colaram aos meus.
Em quase dois anos, aquela foi a primeira vez que meu
coração bateu tão feliz. Meu corpo parecia eletrizado com o toque
do dele, e eu finalmente entendi a marca que ele havia deixado em
mim.
Um amor dos mais clichês.
“Eu tenho que te dizer: siga o seu próprio caminho
Mesmo que você viva só por um dia. Faça algo!
Deixe de lado as suas fraquezas”
— No more dream, BTS.

Miguel: Lena, me diz quando você vai.


Nem me deu a chance de tentar, caramba!

Miguel: Você disse que pensaria.


Me deixa falar com você uma última vez, antes de ir embora.

Miguel: Helena, por favor!

Fechei mais os dedos ao redor do celular, sentindo aquele


peso terrível no peito. Desde o dia em que ele parara o elevador no
trabalho e me chamara para almoçar, desde o momento em que
meu ex abrira o coração e chorara — chorara! — por perdão, me
pedindo uma nova chance, eu me perguntava incansavelmente se
deveria tentar. Me questionava se ele estava sendo sincero, mas
agora…
Encarei o terminal, com um frio estranho na barriga.
Era definitivo dessa vez. Eu estava a um passo de começar
uma nova etapa da minha vida, em outro lugar.
Sem ele.
— Se responder esse canalha, quebro seu celular. — Maitê
apareceu ao meu lado, me estendendo um copo grandão de sundae
de chocolate; a pulseira que eu dera para ela escorregando de seu
pulso. — Ele não se manca? Babaca.
Tentei sorrir, mas me sentia fraca até para isso, sentada à
espera da hora de decolar. Estava nervosa e, por mais que
adorasse doces gelados, não senti vontade de tomar o que minha
amiga havia me entregado, temendo colocar tudo para fora depois.
Viajar de avião… Miguel… ir para o outro lado do mundo…
Miguel… avião… e, droga, avião!
Meu pai estava confirmando os horários, enquanto mamãe
tentava tirar, ou pelo menos controlar, a cara de fúria dele. Minhas
irmãs davam seu melhor para tentar conter os filhos arteiros, do
outro lado. Já Helen, minha gêmea que nascera um ano cedo
demais, estava no banheiro refazendo a maquiagem, depois de
tanto chorar.
— Eu deveria responder que vou mesmo embora? — Lancei
um olhar sofrido para Maitê, que revirou os olhos.
— Eu te amo. — Ela tirou o celular da minha mão e deletou a
conversa com o meu ex, sem cerimônia alguma. — Mas eu juro que
fico com vontade de te bater quando pensa no Miguel. Ele foi um
idiota, Helena!
— Mas pediu desculpas…
Ela só piscou, séria, como se tentasse apagar da mente o
que eu acabara de dizer.
— Desculpas não são o suficiente. Não depois do que ele fez
com você! E… — apontou para o passaporte na minha mão — você
vai para a Coreia, agora. A Coreia do Sul, Lena! Do outro lado do
mundo. Esquece ele.
Assenti.
— Foca nos lugares que vai conhecer e nos sonhos que vai
realizar! — Me sacudiu.
— Eu vou.
— Não quero saber de você choramingar por ele de novo,
ouviu? Nunca mais! E se a Ji Ah, aquela metida, me contar que
você anda falando dele, eu pego um avião para Seul só pra te dar
uma voadora.
Ri, passando um braço no ombro dela e a puxando para mais
perto, tomando cuidado para não derramar o sundae. Conhecendo
Maitê como eu conhecia, não tinha dúvidas de que ela entraria no
primeiro avião, com um chinelo pesado na mala de bordo, para me
atingir assim que pudesse.
— Eu amo sua delicadeza de cavalo, amiga.
Tetê bufou.
— E eu adoro o seu coração mole, mas vê se deixa de ser
trouxa.
Abri a boca, me afastando e fingindo ofensa:
— Ei!
— Você ouviu.
Suspirei.
— Você tem razão.
A voz no alto-falante anunciou meu voo. Miguel logo deixou
de existir, e a euforia combinada ao pavor se intensificou.
Eu mentiria se dissesse que não queria voltar correndo para
casa. Era sexta. Eu provavelmente estaria debaixo das cobertas,
assistindo Netflix e tomando sorvete, só para atiçar minha sinusite,
mas… eu também sentia a expectativa de um recomeço. Era
assustador.
— Tá pronta? — Tetê passou a mão por meu ombro, quando
levantamos.
Escutei meus pais se aproximando e minha mãe
resmungando mais ordens para o ex-marido.
— Não. — Respirei fundo.
— Vai ser uma aventura incrível.
— Vai, sim. — Eu a encarei com um sorriso nervoso. — Sinto
que vou me meter em muita encrenca.
— É o quê? — Meu pai deu um primeiro passo, fechando os
punhos. Ele ainda não havia aceitado que a caçula se mudaria para
o outro lado do oceano.
— Vou me comportar, pai. — Revirei os olhos. — Até parece
que faço bagunça.
Maitê segurou o riso, e eu dei nela uma cotovelada de
ameaça.
— Ai, Lena. — Minha mãe me puxou para um abraço
apertado, me obrigando a devolver o sorvete para minha amiga. —
Já sinto tanto a sua falta, filha. Você vai me ligar todos os dias?
— Huh.
— Não quero saber de você comendo miojo o tempo todo,
ouviu?
— Meu dinheiro só dá pra pagar lámen, sinto muito.
Ela fez careta.
— E não vai conversar com estranhos.
Ri.
— Mãe, é outro país. Só vai ter gente que não conheço.
— Ah, Senhor amado! Não sei se posso deixar você ir. —
Olhou para Tetê, como se minha amiga fosse me convencer a ficar.
Mal sabia ela que estava de frente para quem mais me incentivara a
partir.
— Relaxa, tia! De boba, a Lena só tem cara. — Tetê ergueu
um polegar e deu uma piscadinha. — Ela se vira.
— Vou ficar bem. — Abracei minha mãe uma última vez,
inspirando o cheiro delicioso e reconfortante dela e guardando cada
cor, forma e detalhe na memória. — Vou morrer de saudade. Te
amo.
— Também te amo, minha Lua. — Beijou minha testa.
Abracei minhas irmãs e sobrinhos. Sol voltou correndo do
banheiro, chorando, me agarrando pelo pescoço e soluçando como
criança perdida em supermercado; me instruiu a tirar muitas fotos de
todos os lugares que visitasse, a ligar todos os dias e a comprar um
Hanbok rosa para ela, quando chegasse lá. Meu pai, que ainda
estava magoado comigo por ir embora, manteve a expressão séria
ao que me aproximei.
Amolecer o coração de um coronel não era tarefa fácil.
— Vai se arrepender se não me der um abraço agora, senhor
Ferreira. — Parei de frente para ele, brincando, mas com o coração
apertado por fazer aquilo sem sua bênção. No entanto, se
dependesse do meu pai, a garotinha mais sensível da família jamais
voaria para longe.
Chamada para Incheon, Coreia do Sul.
— Última chance, pai. — Minha voz falhou um pouco, e ele
percebeu.
Finalmente meu pai cedeu e me puxou ao encontro de seu
corpo enorme. Ele não teve dificuldade alguma de me tirar do chão.
Eu sempre me sentia com cinco anos, quando ele me abraçava. Tão
alto, tão forte, tão teimoso e emburrado.
— Vou sentir saudades.
— Comporte-se. — Foi tudo o que disse ao me devolver de
pé.
— Sim, senhor. — Bati continência, mas ele não sorriu.
Encarei minha família e, depois de tirarmos uma última foto
juntos e eu me despedir de novo de todo mundo, segurei minha
mala lilás e segui para o terminal, com Maitê ao meu lado. Assim
que alcançamos a catraca, ela suspirou e me abraçou.
— Te aviso quando chegar lá — falei, inspirando fundo. Em
alguns minutos, eu estaria no avião. Sozinha. E, no dia seguinte, em
outro país.
— Eu provavelmente vou estar em um avião, então te aviso
quando chegar também. — Ela sorriu.
Claro. Ela voltaria para Nova Iorque. Assim como eu, Tetê
agora tinha um novo recomeço.
Eu estava feliz em saber que, depois de tantos recitais, Maitê
enfim ganhara um com um prêmio de maior valor. Eu tinha orgulho
de dizer que minha melhor amiga estudava música na Juilliard e
estava de mudança para Nova Iorque. Ah, o sucesso dela também
era o meu!
— Vou sentir tanta saudade.
— Também vou. — Ajeitou um cacho para longe do meu
rosto. — Mas vamos tentar nos falar sempre que pudermos.
Assenti e comecei a me afastar, usando os últimos segundos
que antecediam minha partida para ponderar se eu estava mesmo
pronta para aquele passo gigante.
Estava.
Era agora ou nunca.
Eu não havia ralado, todos aqueles anos, para ficar apenas
no “e se”. Tinha que pular e me arriscar.
Enchi a bochecha de ar, pronta para passar pela catraca.
— Ah! Lena! — minha amiga chamou e logo me alcançou,
me fazendo soltar o ar, aliviada. Só mais um segundo, antes de
partir. — Antes de ir, me responde uma coisa. Sobre o Eric.
Meu sorriso foi inconsciente.
— Diga.
— Isso tá na minha cabeça há um tempo, mas sempre
esqueço de perguntar. — Colocou uma mecha loira-rosa atrás da
orelha. — Aquele dia, no estúdio, sabe? Quando você viu o Eric, ele
cantou, e eu surtei e saí correndo…
Assenti.
— Quando começaram uma conversa em coreano… o que
vocês disseram?
Franzi a testa.
A mulher do alto-falante voltou a anunciar meu voo.
— Quer saber disso agora? — Ri, ajustando o peso da
mochila nas costas.
— É que, senão, eu esqueço de novo. E, sempre que lembro,
fico curiosa.
Eu ainda me lembrava bem. Fora o dia mais feliz, confuso e
absurdo da minha vida. O dia em que eu estivera cara a cara com
meu idol favorito e, então, descobrira que ele era apaixonado pela
minha melhor amiga.
Fora surreal.
Não pensava que Tetê pudesse estar escutando, mesmo que
não compreendesse o que eu e Eric falávamos.

Muita coisa estava acontecendo. Eu ainda tentava acalmar o


coração após o encontro com meu cantor favorito, quando Maitê
saiu em disparada para fora do estúdio.
Eu não era burra. Sabia bem o que estava acontecendo, mas
não acreditava, de fato, nisso.
Pisquei devagar, ainda sem reação, para a porta fechada.
Tinha acabado de conhecer oficialmente Eric Lee, tivera um show
privado dele e descobrira que ele não só estava escondido na casa
da minha melhor amiga, como também estava caindo de amores por
ela.
Era muita informação.
Era muito para processar.
Eu queria correr atrás de Maitê ao ver a expressão
apavorada no rosto dela, no instante em que entendera o que sentia
por Eric. E o rapaz, que estivera paralisado até então, enfim se
apressou para fora da sala.
Para Maitê.
— Espera! — falei em coreano, segurando sua mão e o
impedindo de sair.
— Eu preciso…
— Não!
Fechei os olhos e respirei profundamente. Nem na fanfic mais
louca pensara passar por algo assim. Eu estava prestes a dar
conselhos amorosos ao cantor que estampava os pôsteres em
minha parede. Senhor amado… eu tinha a cara de Eric como
wallpaper no celular!
Forcei o garoto a me encarar, e ele pareceu desnorteado.
— Eric. — Suspirei, tentando agir como uma fã racional. Não
importava o que eu sentia pelo meu idol, e sim o que estava
acontecendo entre ele e Tetê. A felicidade da minha amiga sempre
estaria em primeiro lugar. — Antes de ir atrás dela, me diga… o que
você vai fazer?
— Eu não sei… — respondeu. Eu via em seus olhos que
queria se desvencilhar de mim para correr porta afora. — Só quero
perguntar se ela está bem e…
— Não. — Balancei a cabeça. — O que vai fazer quando for
embora?
Então ele se deu conta. Entendeu a pergunta, e isso pareceu
apavorá-lo.
— Eu sou sua fã, Eric. De todo coração. Vou te apoiar hoje e
sempre, mas, mais do que sua fã, sou apaixonada pela Tetê. Ela é
como uma irmã pra mim, e eu não posso deixar de me preocupar
com o que está acontecendo aqui.
— Eu… — Engoliu em seco. — Eu sei.
Controlei o choque, porque ainda estava surpresa. Dias atrás,
estava exultante e sonhando acordada, contando os segundos para
entrar na fila e participar do show dele. Apenas vê-lo no palco seria
o suficiente; ajudá-lo a sair de lá fora uma bênção; mas estar com
ele, naqueles minutos, era um sonho.
Céus, estava tão confusa.
— Certo. — Eu o soltei, passando a mão no rosto para
clarear a mente. — Pensei que fosse negar que tem algo
acontecendo aqui, mas a coisa tá séria mesmo. Você deve estar
muito apaixona…
Parei ao analisar outra vez o rosto bonito dele. Foi quando
minha ficha caiu sobre o real significado daquilo tudo.
— Meu Deus… Você está apaixonado por ela! Caidinho da
Silva! — Falar em voz alta fez Eric admitir para si mesmo também e
se jogar na cadeira atrás de si, como um peso morto, fazendo as
rodinhas deslizarem pelo chão até encontrarem a parede.
Ele choramingou, esfregando o rosto com as mãos.
— No começo, eu pensei que ela fosse só alguém que fazia
eu me sentir bem, mas, agora, percebi que vou voltar para a minha
vida antiga e… ela não vai estar lá. — Ergueu os olhos para mim,
sofrido. — E isso dói, Lena. Dói muito.
Me joguei no sofá, no outro canto.
— Não sei o que dizer — confessei baixinho.
Ele me observou.
— Não está… desapontada? Digo, como fã?
Pensei na pergunta. Apesar de o meu sentimento ser ainda
confuso demais para compreender, tinha certeza de uma coisa:
— Sua felicidade sempre esteve acima de qualquer
expectativa minha, Eric. — Sorri um pouco. — Certo, é… muito
inesperado e estou, sim, chocada, mas… Daebak!
Ele riu baixinho.
— É você! — Me levantei, me aproximando dele. — Eu acho
que já ganhei mais do que poderia esperar como fã. E acho que
seria ainda mais incrível se eu pudesse te chamar de “amigo”.
Um sorriso sincero despontou nos lábios dele.
— Você pode.
— Então… — Suspirei, sentindo aquele peso estranho ir se
afastando dos meus ombros, pouco a pouco. Deixei os honoríficos
de lado ao continuar informalmente: — Como sua amiga… posso te
dar um conselho?
— Huh.
— Não impeça o que está sentindo, se for verdadeiro. Você
merece alguém tanto quanto qualquer um.
Esperança iluminou os olhos dele ao assentir, mas aquele
brilho se apagou quando falei mais sério:
— Mas não vá atrás dela se não estiver disposto a fazer
qualquer coisa para protegê-la. — Lancei um olhar para a porta,
para onde quer que Maitê estivesse. Diminuí o tom de voz ao voltar
a atenção para Eric. — Existem muitos fãs que vão te apoiar. Você
sabe, não é? Muitos farão qualquer coisa para te ver bem, mas…
nem todos serão tão compreensivos se Eric Lee, de repente,
começar a namorar uma brasileira. Ou qualquer uma.
A possibilidade de que descobrissem que Eric ficara
hospedado na casa de Maitê, todo aquele tempo, me apavorava.
Muito. Cada segundo nutrindo esse pensamento fazia meu corpo se
arrepiar e tremer.
— Elas não vão se ressentir só com você… vão atacar a Tetê
também.
Eric meneou a cabeça, compreendendo.
— Não estou dizendo que não deva seguir seu coração. A
Tetê é bem forte e também deve estar ciente disso. — Me inclinei
para apoiar uma mão em seu ombro. — Só quero que, antes de sair
por aquela porta, saiba o que está fazendo. O que pode enfrentar e
o que está disposto a fazer para ficar com ela.
— Você tem razão.
— E o que vai fazer? — Segurei a respiração, aguardando a
resposta e, no fundo, torcendo por ele.
Alguns minutos pareceram se passar. Até pensei que Eric
seria racional e ficaria ali, mas, para minha surpresa — e alívio,
devo confessar —, meu cantor favorito sorriu para mim, ao se pôr de
pé, e saiu correndo atrás da minha amiga, sem pestanejar.

— E então? — Maitê me cutucou, esperando. — O que você


disse pra ele, naquele dia?
Última chamada para Incheon, Coreia do Sul.
— Ah… — Sorri para a garota. — Eu só disse pra ele seguir
o coração.
Ela fez careta.
— Só isso?
— Huh. — Ri, a abraçando uma última vez. — Só isso. — E
cochichei: — Parece que deu certo, afinal.
— Vocês pareciam tão sérios… tem certeza de que foi só
isso?
— Aham. — Me afastei, andando de costas e sorrindo para
ela. — E você encontrou seu final feliz. Agora é minha vez de
encontrar o meu.
Passei pela catraca.
— Tchau, Tetê. — Acenei.
Ela balançou a cabeça, com um sorriso sutil e orgulhoso nos
lábios. Seus olhos, no entanto, já estavam carregados de saudade.
E medo, por mais que não quisesse confessar. Minha melhor amiga
secou, disfarçadamente, o cantinho deles e então acenou de volta.
— Voa, minha pequena.
Primeiramente quero agradecer à minha Lena — Ninis — ,
por não ter desistido deste projeto, por mais chata que eu fosse, e
ter me incentivado a chegar até o fim. Eu me diverti horrores durante
o processo e que a relação da Lena e da Tetê reflete muito a nossa
amizade e o carinho que temos uma pela outra. Que a nossa
camiseta de cacto escrita “Se me estressar, eu te espeto” e a
pulseirinha da amizade venham a ser apenas o começo do laço que
só cresce entre nós! N.S Park, vulgo Nicole, você está sempre,
todos os dias, nas minhas orações e no meu coração.
Também quero agradecer a todas as betas que leram a
primeira versão deste conto, que, preciso confessar, era péssima
(hehehe). No entanto, em minha defesa, quero dizer que, com o
projeto engavetado por quase dois anos, tive tempo para
amadurecer minha escrita e trazer esta história que amo tanto em
uma versão melhorada para vocês!
À Maitê, que tem muito de mim e me permitiu usar minha
fragmentação musicista para criá-la. Neste livro, realizei muitos dos
meus sonhos — entre eles, viver da música, o que infelizmente não
aconteceu na vida real.
Quero agradecer também ao cantor Eric Nam, por ter sido um
porto seguro para mim quando a pandemia estourou. Seu show em
Nova Iorque, em fevereiro de 2020, foi o último ao que eu tive a
oportunidade de assistir e me deu todas as ideias de que eu
precisava para escrever este livro, que, pasmem¸ foi escrito em
quinze dias — a primeira versão, claro.
Sou muito grata também a toda equipe da Clichê World,
constituída por: minha preparadora de texto, Cínthia Zagatto; minha
diagramadora querida, que se aposentou do mundo, mas não de
mim, April Kroes; minha artista favorita, que também se aposentou
do mundo e até tentou se aposentar de mim, mas eu não deixei, N.S
Park; minha leitora sensível, Miki, e todos os meus boos, que
continuam me apoiando e me incentivando a ser cada dia melhor!
Por último, quero agradecer ao Alê Brasil, meu diretor de
marketing, video maker, produtor e amigo. Obrigada por ter gastado
dias comigo em vídeo chamada, mesmo estando em lados
diferentes do mundo. Sem ele, eu nunca teria escrito e produzido
“Do you mind if I stay?”, que, sim, foi escrita por mim!
Se essa demo não estiver disponível no YouTube e Spotify
até dezembro de 2022, por favor, me procurem e me ameacem a
postar. Talvez eu só funcione sob pressão hahaha.
Quero agradecer também a Deus e ao meu marido, por
estarem sempre comigo, me apoiando. Meu Paizinho do céu e o
homem que Ele colocou em minha vida são aqueles que me fazem
seguir em frente, sempre que eu penso que não vou conseguir.
Por fim, estou muito grata pelo resultado final. Espero que
vocês gostem e continuem acompanhando minhas histórias que,
certamente, virão por aí.
Hwaiting e até breve!
Thaís Dourado, nascida e criada em São Paulo, se aventurou
pelos caminhos da arquitetura e se encontrou entre as páginas de
seus próprios livros.
Adulta com a cabeça presa na adolescência, mesmo tendo
se casado aos dezenove anos, é amante irrevogável de música,
leitura, K-pop e dramas coreanos.
Paulista de coração novaiorquino, cristã, desengonçada e, às
vezes, com dois ou três parafusos a menos para segurar sua
sanidade.
Dorameira de carteirinha, tenta trazer o melhor do universo
coreano para suas comédias românticas, alcançando, assim, tanto o
público apaixonado pela cultura coreana quanto os amantes de
romances literários.

Instagram: @autorathaisdourado
TikTok: @autorathaisdourado
Twitter: @cwdouradot
Site: www.autorathaisdourado.com
A PRIMEIRA NEVE

DO OUTRO LADO DA JANELA

NO DIA DO SEU CASAMENTO

ME LEVE PRA CASA PARA O NATAL

[1]
Eu sei que é estranho, mas me tira daqui, por favor!
[2]
Filhotinho.
[3]
Eu encontrei meu caminho, quando seus olhos me atravessaram, naquele dia
em que bati no seu carro.
Me desculpe por dizer, mas você se importa se eu ficar? Só hoje…
[4]
Sabe de uma coisa? O rosa do seu cabelo e o azul dos seus olhos repararam
meu coração. Me desculpe por dizer, mas você se importa se eu ficar? Só mais
um dia…
[5]
Sexy demais, Eric. Demais!
[6]
Fãs excessivamente obcecados, que perseguem seus ídolos e invadem sua
privacidade.
[7]
Eric, eu te amo!

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