Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1895 – 1982.
Intrigado, abro na primeira página, me deparando com uma
lista de nomes e sobrenomes diferentes. Começando a folhear,
franzo a testa quando percebo que os nomes só acabam após
algumas dezenas de folhas.
O livro é um calhamaço, e imagino que tenha mais de 500
páginas.
Meus olhos se conectam ao último nome da lista.
1930
Seus olhos azuis como o oceano me trazem uma paz surreal. Uma
sensação incrível que jamais senti em toda a minha vida. Seus
cabelos loiros me lembram dias ensolarados, quando crianças
costumam brincar nas ruas e se lambuzar de sorvete de chocolate,
deixando a boca e as mãozinhas grudentas.
Os traços de seu rosto angelical são como uma pintura
encantadora, a qual eu poderia passar horas analisando, sem
jamais me cansar.
Celeste é uma obra de arte. Ela inteira é a mais perfeita combinação
que já existiu neste mundo.
E eu sou o homem mais sortudo por tê-la ao meu lado.
Estamos juntos há pouco mais de um ano.
Depois que eu e Tandara resolvemos seguir caminhos distintos,
pude finalmente me declarar para Celeste. Contei a ela que já
estava apaixonado havia um bom tempo. Disse que, a partir do
primeiro momento que meus olhos a viram, quando ela procurava
pelas chaves para entrar em sua floricultura, há 5 anos, eu soube
que meu coração já pertencia inteiramente a ela. Contei sobre toda
a situação com Tandara, sobre todos os motivos que me fizeram
demorar para me declarar e admitir que a amava.
Ela entendeu tudo perfeitamente.
Passei alguns meses tentando conquistá-la, tentando mostrar que
estava pronto para ser seu companheiro para o que der e vier.
Celeste, assim como outras mulheres que conheço, assim como a
minha própria mãe, já teve o coração muito machucado por um
homem.
Estamos muito felizes desde então. Juntos.
Tandara também está.
Tenho falado com ela frequentemente, já que visito Marcus pelo
menos três vezes por semana. Ele, com seus quase 5 anos de
idade, uma energia sem fim e viciado em balas coloridas, foi o que
mais sofreu com a mudança.
Eu e Tandara nos esforçamos para demonstrar que está tudo bem,
que tínhamos de seguir caminhos diferentes e que, apesar de tudo,
ainda somos ótimos amigos, mas para Marcus está sendo difícil se
adaptar. Acho que para toda criança é, de certa forma.
Tandara está se encontrando com Joseph Clifford, um banqueiro
local. Ele é um bom homem. Ela parece estar feliz, o que me deixa
contente também.
Na semana passada, fomos a um jantar de casais. Marcus foi
também, obviamente. Ele se sentou na ponta da mesa.
Foi um jantar bem agradável.
Até Marcus começar a fazer perguntas.
— Por que todos os meus amigos têm pais que moram juntos e eu
não? — Foi a primeira delas.
— Por que Jossua sai para jantar com os pais e eu tenho que sair
com vocês quatro? — Foi a segunda.
Tandara se inclinou na mesa, fazendo com que seus cabelos
escuros chacoalhassem um pouco, e abriu um sorriso nos lábios,
explicando, com toda a calma do mundo, para nosso filho.
— Querido, às vezes as coisas são complicadas — ela disse,
pousando a mão sobre a mãozinha de Marcus, apertando-a de leve.
— Mas o importante é que todos estamos felizes agora, certo?
Me senti aliviado quando nossos pratos chegaram e Marcus
esqueceu de continuar com as perguntas, ficando extremamente
entretido com seu macarrão.
Antes de irmos embora, tentei abraçá-lo.
Ele desviou e saiu correndo para os braços do Joseph.
— Jessie?
A voz que escuto faz com que tudo em mim congele. Ergo o
olhar, me deparando com Kale parado ao lado da mesa que ocupo.
Seus lábios estão curvados em um sorriso.
— O que faz aqui? — pergunta.
Sinto como se a minha língua desse um nó dentro da boca.
— Eu... Eu vim almoçar — explico, pousando o celular na
mesa. Odeio a forma como minha voz soa trêmula, como se, por
algum motivo idiota, eu estivesse nervosa. — E trouxe a sobrinha da
minha chefe.
Kale franze o cenho, desfazendo o sorriso imediatamente.
— Você o quê? — Ele parece indignado.
Respiro fundo, expirando o ar calmamente.
— Pois é. Suzzie está no banheiro agora. Abigail, minha chefe,
me ligou e me pediu para buscá-la na escola e levá-la para almoçar
— explico.
Quase solto um gritinho de surpresa quando Kale arrasta a
cadeira à minha frente e se senta, mas me controlo.
— Jessie, longe de mim querer me intrometer na sua vida
pessoal ou no seu trabalho, mas não acha que talvez sua chefe
esteja abusando um pouquinho da sua boa vontade? — ele
pergunta. — Você literalmente teve que levar os cães dela para sua
casa ontem. Teve que deixar que eles passassem a noite lá. Não
acha tudo isso um pouco... exagerado?
Inspiro e expiro demoradamente mais uma vez.
— Acho. — Me sinto uma idiota, como se tivesse permitindo
que alguém se aproveitasse de mim e risse da minha cara bem
diante dos meus olhos. — Mas não posso simplesmente rejeitar as
ordens dela. Abigail é a editora-chefe da Charlotte e eu...
— Espera aí! — Howard me interrompe. Ele arregala um
pouco os olhos, como se estivesse surpreso com algo que acabei
de dizer. — Você trabalha na Charlotte? Naquela Charlotte? Tipo, a
revista Charlotte?
Afundo um pouco na cadeira, me sentindo um tanto
desconfortável. Odeio quando as pessoas reagem a isso como se
fosse algo grandioso, quando, na verdade, sou apenas uma simples
assistente que busca cafés e atua como babá.
— É. — Limpo a garganta. — Eu trabalho.
— Uau... Isso é... uau. — Howard fica sem palavras.
Dou de ombros.
— Não, não é — digo. A expressão empolgada de Kale morre
em seu lindo rosto. — Não quando minha chefe não acredita no
meu potencial e me pede para ser sua babá particular. — Minha voz
soa frustrada, uma perfeita representação de como me sinto em
relação a tudo isso. Passo as mãos no rosto, resmungando. — É um
saco.
Quando meus olhos encontram os de Kale novamente, tudo o
que vejo é uma profunda compreensão.
— Imagino que deva ser uma merda — ele diz. — Você nunca
pensou em conversar com ela sobre isso?
Quase rio. Se Kale soubesse qual função exerço na revista,
saberia que conversar com Abigail Veronica não adiantaria nada.
Ela nunca me daria ouvidos.
Deixo a pergunta morrer no ar.
— Tudo o que preciso é de uma bebida e alguns minutos de
paz — falo, entrelaçando minhas mãos sobre a mesa. — De
verdade. Suzzie não é nada desagradável, muito pelo contrário. Ela
é uma garota incrível. Mas, da mesma forma, me sinto mal por
Abigail considerar normal me pedir para cuidar de seus cães e de
sua família — desengato a falar, sem saber ao certo por que estou
me abrindo com Kale Howard. E nem por que estou me sentindo tão
confortável com isso. — Fui contratada pela Charlotte, para
trabalhar e tratar apenas dos assuntos da Charlotte.
— Entendo — ele responde, apoiando as mãos na mesa para
se levantar. — Mas acho mesmo que devia pensar na ideia de
conversar sobre isso com sua chefe. Ela não deve ser uma pessoa
ruim.
Sinto vontade de rir. Howard não faz ideia de quem seja Abigail
Veronica.
— Vou pensar — minto.
Ele sorri, parando ao lado da mesa, olhando para um ponto
fixo por cima dos meus ombros.
— Acho melhor eu te deixar em paz. Parece que sua
companhia, ao ver que eu estava sentado no lugar dela, decidiu
esperar para se aproximar.
Franzo o cenho, me virando para entender do que Kale está
falando. Rio um pouco ao ver Suzzie parada em frente ao banheiro,
sorrindo para nós dois.
Ela acena com uma das mãozinhas assim que percebe que
estou encarando-a.
— Te vejo depois, Campbell. — É tudo o que Howard diz antes
de sair andando. Um sorrisinho permanece marcando seus lábios a
cada passo.
Suzzie não demora para vir correndo em minha direção.
Tiro os sapatos ao chegar em casa, sentindo o alívio repentino
tomar conta dos meus pés, me dando a sensação de ter tomado um
banho gelado em um dia extremamente quente. Caminho pela sala,
deixando minha mochila em cima do estofado da poltrona antes de
desmoronar no sofá, me sentindo exausta, como se pudesse dormir
aqui e agora mesmo.
À tarde, depois que levei Suzzie para almoçar no The Rock’s,
nós duas tivemos de ir para a Charlotte, obedecendo a ordem dada
pela Abigail. Lá, passei a tarde inteira tentando consertar a
impressora que Mike, mais uma vez, teve a proeza de quebrar.
Depois de consertá-la, Abigail me pediu para fazer cópias de
inúmeras páginas importantes, o que levou milhares de horas.
Fui a última pessoa a deixar o prédio da Charlotte hoje. Simon,
o porteiro, até estranhou, me perguntando se estava tudo bem.
O relógio pregado à parede do meu apartamento marca 22:00
agora.
E sinto como se um ônibus tivesse passado por cima de mim,
dado ré e me atropelado mais uma vez.
Fecho os olhos, pronta para deixar a exaustão me carregar e
me guiar pelo sono mais profundo.
E então a campainha toca, atrapalhando meus planos de
capotar no sofá.
Me sento, resmungando e esfregando os olhos antes de me
levantar.
— Já vai! — aviso, andando feito uma morta-viva em direção à
porta, arrastando meus pés pelo carpete da sala.
Giro a chave no trinco, destrancando a fechadura antes de
levar as mãos à maçaneta fria. Quando abro a porta, sinto como se
um grande tsunami tivesse vindo de encontro a mim, me
encharcando e gelando meu corpo por inteiro.
De repente não sei mais como me mover.
Kale levanta a cabeça, sorrindo ao trazer o tom esverdeado
dos seus olhos até o âmbar dos meus.
— Oi.
Engulo em seco.
Como de costume, Howard está perigosamente lindo. Os fios
castanhos de cabelo permanecem bagunçados, dando todo aquele
ar que só ele tem e que é capaz de acabar com todas as minhas
estruturas; a camiseta branca e básica está um pouco amarrotada, o
que nos outros pode ser visto como um sinal de desleixo, mas em
Kale Howard, por algum motivo, é totalmente diferente.
Sinto como se toda a exaustão exorbitante evaporasse do meu
corpo, me deixando mais renovada do que nunca.
Jamais vou conseguir entender que tipo de poder esse garoto
tem sobre mim. Muito menos o porquê de ele ser capaz de me fazer
sentir como uma tremenda idiota.
— Oi — encontro forças para responder.
O sorriso permanece estampando seu lindo rosto.
— Sei que está tarde — Kale começa. Percebo que ele está
com as duas mãos atrás do corpo, como se estivesse escondendo
alguma coisa. — E que você teve um dia cansativo. Mas lembrei
que disse que precisava de uma bebida mais cedo. Pensei que não
fosse ter tempo para comprar, já que sua chefe está te lotando de
trabalho e te enlouquecendo, então, por isso, trouxe uma garrafa
que encontrei no armário do Brandon. — Ele me mostra o Jack
Daniel’s que escondia atrás de si.
Me sinto momentaneamente desconcertada, sendo pega de
surpresa de repente, sem sequer saber o que dizer.
— Não precisa aceitar, se não quiser...
— Não! — me apresso em interrompê-lo. — Eu quero. Muito
obrigada por isso, inclusive.
Kale sorri.
Não hesito em segurar a garrafa de whisky assim que ele a
estende na minha direção.
— Bom... — Howard coça a cabeça, com a mão agora vazia.
— Boa noite, Campbell.
Quando ele faz menção de girar nos calcanhares e seguir na
direção do seu apartamento, seguro um de seus pulsos, sentindo
como se um choque ridículo me atingisse. Seus olhos verdes focam
nos meus.
— O que você pensa que está fazendo? — questiono.
Ele franze o cenho.
— O quê?
Solto seu braço, segurando a garrafa com as duas mãos
agora.
— Posso ter atingido o fundo do poço, Howard, mas me recuso
a beber sozinha em uma sexta-feira à noite.
Seus lábios se franzem, como se Kale estivesse se esforçando
ao máximo para não sorrir.
— Certo. Então isso é um convite?
Dou de ombros.
— Sim... Quer dizer, espero que você goste de usar whisky
com gelo como forma de afogar as mágoas.
Ele desiste de tentar esconder o sorriso.
— Aceito sua proposta, Campbell.
Me pego sorrindo também.
— Ótimo. — Me afasto da porta, dando espaço suficiente para
que Kale a atravesse. Ele a fecha segundos depois que seus tênis
dão o primeiro passo para dentro do meu apartamento. — Fique à
vontade. Vou buscar os copos.
Sigo em direção à cozinha integrada à sala, deixando a garrafa
de Jack Daniel’s sobre o mármore da ilha antes de parar em frente a
um dos armários de madeira do alto. Graças aos meus 1,78 de
altura, nem sequer preciso ficar na ponta dos pés e me esforçar
para alcançá-lo.
Seguro dois copos de vidro com uma das mãos, ouvindo-os
tilintar quando batem levemente um contra o outro. Paro em frente à
porta metálica do refrigerador, pousando os copos no suporte e os
enchendo com alguns cubos de gelo.
— Além do trabalho, tem algum outro motivo para que você
tenha atingido o fundo do poço? — A voz de Kale vem da sala.
Me viro, levando meus olhos até Howard, que me encara
sentado no sofá.
Estendo a mão vazia para o balcão, agarrando a garrafa de
whisky antes de caminhar na direção do vizinho que ocupa meu
local de descanso favorito.
Entrego a garrafa a Kale, que também pega um dos copos
vazios que seguro. Suspiro assim que me sento ao seu lado,
expirando demoradamente.
— Não fui cem por cento sincera com você — digo enfim.
Suas orbes confusas me encaram enquanto ele me serve o
whisky, enchendo o copo que seguro.
— Sobre o quê?
Engulo em seco.
— Sobre o que existe além da ponta do meu iceberg.
O tom esverdeado de seus olhos permanece fitando meu
rosto. Kale não quebra o contato visual nem mesmo quando afasta
a garrafa de mim e passa a encher seu próprio copo.
— Não sou uma garota rica do Upper East Side que cursa
jornalismo e está interessada na história do John Peter Jones — uso
os mesmos termos que usei da última vez, quando Howard me
contou detalhes profundos sobre sua vida e eu omiti todos sobre a
minha. — Quer dizer, eu, de certa forma, sou. Mas não sou só isso.
Seus lábios se repuxam em um sorrisinho de canto.
— É claro que não. — Kale deixa a garrafa em cima da
mesinha de centro a nossa frente, levando o copo pela primeira vez
à boca, dando o primeiro gole. Ouço quando os cubos de gelo
batem contra o vidro, tilintando. — Certo. — Ele volta a me encarar.
— Vamos tentar mais uma vez. — Howard pigarreia, se endireitando
ao meu lado. — O que tem além da ponta do seu iceberg que faz
você se sentir como se tivesse atingido o fundo do poço, Jessie
Campbell?
Quase rio. Falando dessa maneira, parece ridículo.
Dou o primeiro gole na bebida antes de responder, sentindo-a
descer queimando pela garganta.
— Certo. — Também endireito a postura, me preparando para
começar. Suspiro. — Eu tinha um namorado. O nome dele era
Vincent James. Nós dois éramos o tipo de casal adolescente que
todos costumam invejar pelos corredores do colégio, inclusive os
professores. Nossos pais sempre foram muito próximos e sempre
apoiaram muito nosso relacionamento. Ele planejava nossa
mudança para a Inglaterra desde os 13 anos, quando demos nosso
primeiro beijo. Pouco antes de nos formarmos, contei que queria
cursar jornalismo. Vincent surtou. Ele me chamou de inúmeros
nomes diferentes, principalmente os que são sinônimos de “egoísta”
e “inconsequente”. Acontece que, na cabeça dele, se eu fosse tentar
realmente ter uma carreira no ramo jornalístico, jamais poderia ser a
futura esposa troféu, que cuidaria dos filhos, compareceria a
brunches com as mulheres dos seus parceiros de negócios e
desfilaria com ele pelas ruas de Londres. James, que já tinha nossa
vida inteira planejada, terminou comigo no instante em que
descobriu que nossas visões de futuro eram diferentes.
“Não o culpo por isso. Muito pelo contrário. Acho que, uma
hora ou outra, se ele não tivesse terminado comigo, eu teria feito. O
principal problema veio depois. — Engulo em seco, prestes a chegar
na parte da história que mais me fere. — Duas semanas após o
término, resolvi contar para os meus pais que estava decidida em
relação ao curso que queria. Acontece que minha família é um tanto
complicada. Sendo composta por famosos cardiologistas,
neurocirurgiões e alguns advogados renomados, todos graduados
em universidades da Ivy League, os Campbell têm uma reputação a
zelar e um sobrenome a honrar. Meus pais quiseram morrer quando
contei sobre meus planos. Tentaram me fazer mudar de ideia por
meses, mas nunca conseguiram. Acontece que na vida, quando se
tem uma paixão que faz o coração transbordar de amor e os olhos
brilharem, é difícil abrir mão dela. E é assim que o jornalismo me faz
sentir.”
“Eles, assim que perceberam que eu não desistiria, me
expulsaram de casa. Eu tinha 19 anos quando tive que começar a
trabalhar para conseguir pagar o curso e, como um milagre e uma
ótima oportunidade, descobri que a Charlotte estava contratando
assistentes. Fui aceita ao fazer a primeira entrevista. Acontece que,
para a Jessie de 3 anos atrás, essa seria uma ótima oportunidade
para crescer no ramo. Eu acreditava que Abigail reconheceria meu
talento como escritora e que, dentro de pouco tempo, mesmo que
eu ainda não estivesse formada, ganharia minha própria coluna. —
Rio um pouco, sentindo a boca amarga. Kale permanece me
encarando com atenção, captando cada uma das minhas palavras.
— Eu era uma tola sonhadora. Apesar de ter, sim, pessoas que
trabalham como escritores da revista que ainda estão na
universidade ou que começaram a trabalhar antes mesmo de se
formarem, isso nunca poderia acontecer comigo. Abigail, minha
chefe, me vê como uma perdedora. Uma perdedora que carrega um
sobrenome conhecido, mas que está pobre, morando em um prédio
praticamente caindo aos pedaços e que estuda em uma
universidade sem a menor estrutura e com a mais baixa
mensalidade de todas.”
Engulo saliva como se fossem cacos de vidro, que descem
raspando e cortando a garganta. Desvio o olhar que dava atenção
ao Kale, sentindo quando meus olhos se enchem de lágrimas que
ameaçam cair a qualquer momento.
— Liguei para o Vincent quando vi tudo desmoronar sob meus
pés — confesso, me sentindo uma tremenda idiota. — Contei que
meus pais haviam me expulsado e que estava sem dinheiro algum.
Ele apenas riu. — Fecho os olhos com força, me esforçando ao
máximo para impedir que as lágrimas indesejadas e que
representam a mais genuína fraqueza caiam. — Para ser sincera,
não sei o que passou pela minha cabeça. Não sei por que fiz aquela
ligação e nem por que entrei em contato justo com ele. — Volto a
encarar Howard. — Nunca o amei de verdade. Acho que eu apenas
estava desesperada para conversar com alguém.
Kale não diz nada, apenas dá mais um gole no whisky em seu
copo. Suas orbes esverdeadas não desviam do meu rosto nem
sequer por um único segundo.
É como se ele se importasse verdadeiramente com toda a
minha história deprimente de garota rica.
O que é novo para mim, pois nunca ninguém se mostrou
interessado nos meus problemas. Apenas a Eve, mas ela não sabe
sobre metade das coisas que contei a Kale.
O que torna tudo ainda mais estranho.
Por que confiei a minha vida toda a ele, se não confio nem a
minha melhor amiga?
E por que me senti bem ao fazer isso?
Solto um riso fraco, desviando o olhar. Passo a encarar o copo
que seguro com as duas mãos, observando o gelo, que já derreteu
um pouco, flutuando sobre o líquido.
— Acho que você estava certo quando disse que o amor é
uma coisa louca — revelo. — Estava certo ao dizer que as pessoas
que mais deveriam nos amar, às vezes não estão nem aí para nós.
Que às vezes somos indiferentes para elas. Damos tudo de nós
mesmos, mas não é suficiente.
Volto a encará-lo, buscando encontrar qualquer mísero sinal de
emoção em seus olhos verdes, procurando entender o que sente ou
pensa em relação a tudo isso que revelei.
Não encontro nada.
Kale apenas se empertiga no sofá.
Estranho quando ele estende seu copo na minha direção,
propondo um brinde fora de hora.
Nós, definitivamente, não temos motivos para comemorar.
Seus lábios se moldam em um sorrisinho de canto.
— Às nossas histórias complicadas — ele diz enfim, olhando
diretamente em meus olhos.
Solto um fraco riso, levando o meu copo de encontro ao seu,
fazendo os vidros tilintarem baixinho ao se encontrarem. Como se
fosse um movimento ensaiado por horas e horas, eu e Kale damos
um gole em nossas bebidas, numa sintonia mais do que perfeita.
— Minha história de garota rica com problemas familiares não
chega nem aos pés da sua — digo sincera.
Ele afasta o copo dos lábios demoradamente. Seu semblante
se transforma em sério.
Por um momento, sinto medo de ter dito algo errado. Não sei
se Howard se arrepende de ter me contado sobre sua história de
superação agora, depois de descobrir que escondi tantos detalhes
sobre a minha.
— A dor e trajetória de alguém não torna a sua mais fácil ou
insignificante, Jessie — ele diz. Sinto meu coração amolecer dentro
do peito. — Todos temos problemas diferentes. Mas isso não os
torna melhores ou piores do que os dos outros.
Kale volta a sorrir, dando mais um gole na bebida.
Permaneço petrificada, perdida no verde dos seus olhos,
apaixonada pelas palavras que acabou de dizer.
Até alguns dias atrás, eu me obrigava a manter distância de
Kale Howard, como se quisesse lutar contra todos meus instintos
que me diziam para me aproximar. Mas agora, por algum motivo,
não sinto mais vontade de erguer um escudo ao meu redor, nem de
ser a vizinha rabugenta que fingia odiá-lo.
E isso é desesperadamente assustador.
Rio um pouco.
Como diabos essa menina encontrou minha conta?
Levando os dedos até o teclado, digo que também estou com
saudades e pergunto quando Suzzie visitará a Charlotte. Assim que
deslizo a tela, voltando para o feed, o sorriso agradável deixa meu
rosto imediatamente. Uma sensação amarga e estranha me invade
sem hesitar.
A foto de Clarice chama minha atenção. Sentada à mesa de
um café em Boston, minha irmã sorri, posando para a câmera quase
profissional, exibindo seus dentes absurdamente brancos.
Sinto o coração se apertar dentro do peito.
Ela parece genuinamente feliz.
Meus olhos analisam a imagem por alguns segundos. Minutos
até, se pensarmos que tive que bater a ponta dos dedos na tela
algumas vezes, impedindo que se apagasse.
Entre todos na minha família, Clarice Campbell sempre foi a
mais próxima a mim. Por isso me surpreendi quando, no jantar,
assim que contei sobre os planos que tinha para o meu futuro, sobre
meu sonho e o que eu iria fazer, ela não disse nada para me
defender.
Estaria mentindo se dissesse que não guardo ressentimentos.
Nunca entendi por que, para eles, é tão difícil apoiar minhas
escolhas.
Quer dizer, tudo bem. Tipo, meus pais já têm dois filhos bem-
sucedidos nos ramos que eles escolheram para que seguissem. Já
possuem duas pessoas para controlar e tratar como marionetes.
Não precisam cuidar da minha vida também, certo? Na realidade,
não precisam cuidar da vida de ninguém além da deles mesmos.
Às vezes é bom entender que nem sempre as coisas vão sair
conforme o planejado.
E eles nunca souberam lidar com esse fato.
Tiveram dois filhos perfeitos, que inclusive competiam entre si
para ver quem se tornaria o mais bem-sucedido.
Sempre achei tudo isso uma grande merda.
Me lembro até hoje das muitas vezes que assisti ao Robert
tirando uma nota A+ na escola e esfregando a prova na cara da
Clarice, mesmo que ela fosse mais nova e que eles nem estivessem
no mesmo ano. Minha irmã ficou vermelha quando descobriu que
ele tinha sido aceito em Dartmouth. E ele ficou furioso quando, anos
depois, descobriu que ela tinha entrado para Harvard.
Até hoje eles continuam com essa palhaçada toda, mesmo
Robert trabalhando na Europa, e Clarice ainda na faculdade,
cursando o último ano de direito.
Nunca entendi o motivo dessa competição toda. Irmãos
deveriam ser unidos, certo?
Bom, era assim que Clarice e eu éramos. Ou pelo menos
como eu achava que éramos.
Eu a considerava minha melhor amiga até... Até aquele jantar.
Depois disso, ficou difícil olhar para ela. Ficou difícil olhar para a
cara de todos eles, porque sempre encontravam um jeito de me
diminuir ou de dizer quanto a minha escolha de carreira era
péssima.
Acho triste quando as pessoas passam a colocar o dinheiro e o
status acima da própria felicidade. E não ia deixar que meus pais
me obrigassem a fazer isso com a minha vida. Então, não. Sequer
cogitei a ideia de cursar direito ou medicina. Isso não passava pela
minha cabeça.
Sinto falta da minha irmã. De todos eles, ela era a que mais
me entendia. Ou pelo menos eu acho que entendia.
Quando me dou por mim, já apertei no perfil da Clarice e estou
abrindo nossa conversa no direct.
A última vez que nos falamos foi no dia 23 de abril de 2019, há
2 anos. Ela tinha postado um story de alguma comida chique, e eu
respondi que aquela foto me lembrava de quando éramos crianças e
brincávamos de lanchonete maluca, quando nos fantasiávamos de
garçonetes e atendíamos nossos clientes — ursinhos de pelúcia —
da pior forma possível.
Eu estava bêbada. Jamais teria mandado isso se estivesse
sóbria.
Naquela época, não teria enviado mensagem alguma, para ser
sincera.
Mas hoje, por algum motivo, decido mandar.
Respiro fundo, levando a ponta dos dedos até o teclado, e
escrevo:
Vi sua foto e bateu saudade. Quando você vem para NY de novo? Quero te ver.
E pronto.
Às vezes na vida, quando você quer muito consertar as coisas
com alguém, é necessário mandar o orgulho à merda e dar o
primeiro passo.
Acho que acabei de entender isso.
Clarice: Não sei ainda. Vou resolver uma data e te aviso, ok? :) Fiquei feliz que
me mandou mensagem. Estou com saudades.
Saio para o corredor, fechando a porta do banheiro abafado
atrás de mim, depois de verificar se deixei a janela aberta para o
vapor quente do meu banho sair. Esfrego uma toalha branca nos
cabelos molhados com força, os secando enquanto caminho até a
sala.
Percebo alguns respingos dos meus fios castanhos caírem na
camiseta cinza clara que estou vestindo.
— Vai sair? — pergunto, chegando ao fim do corredor,
encontrando um Brandon de camisa social, encharcado por um
perfume enjoativo que suga todo o ar do ambiente e afivelando o
relógio em um dos pulsos.
Parado em frente ao sofá, ele se vira para mim.
— Vou. — Sorri. — Eu e Eve vamos jantar em um restaurante
que ela está doida para ir.
Levanto as sobrancelhas, afastando a toalha da cabeça.
— O que vocês dois têm é sério mesmo, não é? Você nunca
mais para em casa.
O sorriso que marca seus lábios dobra de tamanho.
— Está com ciúmes, Kale Howard? — Brandon provoca, me
fazendo revirar os olhos no mesmo instante. Ele ri um pouco. —
Pode ficar tranquilo. Nunca vou te abandonar. Se você quiser, posso
até deixar um horário livre na minha agenda para nossa noite dos
meninos. A gente pode passar aquelas máscaras nojentas na cara,
sabe, para limpar a pele, e ouvir algumas músicas da Taylor Swift,
assistir aos filmes mais legais da Barbie e...
— Tudo bem, Houston — o interrompo, desejando
desesperadamente que pare de falar. — É melhor você calar a boca
e ir logo encontrar sua namorada.
O rosto do meu melhor amigo se ilumina ao ouvir a forma
como me refiro à Eve. Seus olhos azuis brilham um pouco.
Ele pigarreia, depois de um tempo em silêncio.
— Certo. Tem razão. — Passa as mãos nos cabelos,
arrumando seus cachos da maneira que gosta. — Você vai fazer o
que hoje à noite? Vai passar as horas sendo o solteirão que é, ou
vai receber a Jessie aqui em casa e continuar lendo aquela
baboseira de diário velho?
Caminho até ele, deixando a toalha molhada que estava
usando em cima da mesinha de centro.
— A segunda opção.
Brandon parece se animar ainda mais.
— Pretendem terminar o que começaram nesta manhã? —
provoca, arqueando uma sobrancelha, dando um fraco soco no meu
ombro. Faço uma careta. Houston ri antes de soltar um som
parecido como um miado de um gato. — Garanhão.
Reprimo a gigantesca vontade de revirar os olhos.
— Nunca vou conseguir entender o fato de que você tem uma
namorada e eu não — comento, desabando no sofá. Pego uma das
almofadas horrendas, abraçando-a em frente ao peito.
Brandon solta um risinho.
— Ainda — diz. — Você não tem ainda. — Sua voz vai
diminuindo à medida que ele se afasta até a cozinha.
Desta vez, meus olhos praticamente se reviram sozinhos.
Hoje de manhã, depois que cheguei do apartamento da Jessie,
encontrei Brandon na sala, sentado na poltrona, com uma caneca
fumegante de café nas mãos e as pernas cruzadas, incorporando
qualquer mãe de filme adolescente que pega o filho no flagra, ao
chegar em casa às escondidas.
Foi um pouco assustador. Isso eu não nego.
Quase tive um ataque de susto, e Houston sequer hesitou em
começar a me bombardear com o interrogatório. “Onde você
estava? Com quem você estava? Poxa, Howard, sou seu melhor
amigo, por que diabos você não me conta as coisas?”, e por aí foi.
Tive que responder a todas suas mil e uma perguntas, e
quando o nome de Jessie chegou à conversa, Brandon surtou.
Ele começou a pular no sofá, feito uma criança alegre que
acabou de ganhar um daqueles pirulitos gigantes de parques de
diversões.
— Ah, esqueci de te avisar. — A voz do meu melhor amigo me
fisga para longe dos meus pensamentos. Levanto a cabeça, vendo-
o se aproximar enquanto segura um envelope branco em uma das
mãos. — Isto aqui chegou para você hoje de manhã. Estava
voltando do mercado quando o zelador me pediu para te entregar.
— Um vinco se forma em sua testa quando ele dá uma breve
analisada no envelope, o estendendo em minha direção em
seguida. — Você está fazendo aquele negócio de mandar cartas
para presidiários ou algo assim?
Franzo o cenho enquanto pego a carta, chacoalhando a
cabeça em negação.
Por que caralhos ele está me perguntando isso?
— Não. Nem sabia que isso era possível. — Encaro o papel
em minhas mãos.
— Bom, então acho melhor você verificar se isso aí é mesmo
para você — Brandon diz, se afastando até o cabide ao lado da
porta, pegando um moletom azul marinho com a logo do New York
Islanders.
Abro um sorrisinho nos lábios. Meu melhor amigo, com
certeza, deve ser a única pessoa no mundo que sai para jantar com
uma camisa social branca e leva um moletom de hóquei como
garantia para caso esfrie.
— Preciso ir — avisa o ruivo, se virando para mim. — Tenho
que buscar a Eve no apartamento dela e não posso me atrasar.
Meneio a cabeça em concordância.
— Está com sua chave, né?
Ele faz que sim, levando as mãos até a maçaneta da porta.
Quando Houston está prestes a sair, se vira para mim novamente.
— Ah, e... vai ser o da princesa e da plebéia.
Franzo o cenho.
— O quê?
— O filme — Brandon explica. — Vai ser Barbie em A Princesa
E A Plebéia.
E, simples assim, ele bate a porta.
Sou incapaz de conter o riso que escapa pelos meus lábios
quando meu melhor amigo deixa o apartamento.
Brandon consegue ser a pessoa mais irritante do mundo
quando se esforça, mas, meu Deus... eu amo esse idiota.
O sorriso que rasga meu rosto se desfaz no momento que
meus olhos vão de encontro com o envelope branco novamente, me
deparando com o local de envio e nome do remetente. E, de
repente, todas as peças se encaixam.
E não é preciso muito esforço para entender o que o papel
entre meus dedos significa.
Oi, mãe,
Não sei se algum dia você vai chegar a ler esta carta, mas uma
amiga minha me convenceu a te escrever de volta, mesmo que eu
nunca chegue, de fato, a te enviar.
Eu não fazia ideia.
Nunca soube muito sobre você. Acredito que o papai tenha me
contado algumas coisas, mas eu tinha apenas 6 anos quando ele
faleceu.
Tudo o que me lembro de ouvi-lo dizendo foi que meus olhos são
como os seus, esverdeados, e que nossos cabelos também
possuem o mesmo tom de castanho.
Estaria mentindo se dissesse que passei os últimos anos esperando
por qualquer notícia sua, mas, sinceramente, ler a carta que me
enviou me atingiu como um baque, me desconcertando. Ainda estou
tentando raciocinar tudo o que li.
Richard faleceu em 2002.
Eu tinha 6 anos.
Não lembro de muita coisa da minha infância, mas essa foi uma
cena que ficará guardada comigo para todo o sempre. Eu tinha
acabado de voltar de uma partida de futebol com meus amigos do
bairro. A gente nunca jogava futebol, sequer sabíamos que era um
esporte tão legal, mas era ano de copa do mundo e, mesmo que
aqui nos EUA isso não signifique um evento muito grande, eu e
meus amigos assistimos alguns jogos pela TV e tentamos reproduzir
o que sabíamos. Foi um desastre, como já era de se esperar. Mas
eu gostei. Estava animado e ansioso para tagarelar com o papai e
dizer que tinha aprendido uma coisa nova quando, ao entrar em
casa, vi o corpo de Richard sobre o piso desgastado de madeira
velha da sala.
A televisão estava ligada em uma partida de hóquei. Eu nem sabia o
que era hóquei naquela época.
Me lembro de chutar os tênis para longe dos meus pés enquanto
corria para a mesinha onde o telefone ficava.
Eu sabia que tinha alguma coisa errada. Após chamá-lo pelo nome
diversas vezes e não obter nenhuma resposta, sabia que ele não
estava bem.
Mas não tinha certeza se estava morto.
Quando liguei para os policiais, não conseguia parar de gaguejar.
Minhas mãos tremiam em volta do telefone amarelo que tínhamos.
Nunca fui de decorar números telefônicos, mas Richard sempre me
fazia repetir o número da polícia em voz alta. Ele dizia que era por
precaução e que todas as crianças deveriam saber.
Era como se o universo já estivesse me preparando para o que
estava por vir.
Eu só sabia chorar quando os policiais chegaram, juntos à
ambulância, e vi o corpo morto do meu pai ser levado para todo o
sempre.
A gente não tinha ninguém. Nossa família era eu e ele. Apenas.
Acho que você já deve saber disso.
Três dias depois, fui levado a Phoenix, onde passei a morar no
orfanato da cidade. Conheci meu melhor amigo lá. O nome dele é
Brandon, e hoje nós moramos juntos em Nova York. Somos donos
de uma lanchonete bem legal. O The Rock’s.
Não estou te contando minha história para que sinta pena de mim
ou para que se culpe ainda mais por ter nos deixado, mas, sei lá,
acho que... se você realmente amava o papai do jeito que diz ter
amado, merece saber como ele deixou este mundo.
Não me lembro de como era minha relação com ele, nem de vê-lo
juntando agasalhos todo inverno para distribuir para moradores de
rua, fazendo trabalho voluntário em asilos e hospitais, ou
distribuindo folhetos de animaizinhos perdidos pela cidade, mas fico
feliz em saber que ele realmente fazia essas coisas. Sempre o pintei
como uma pessoa boa na minha cabeça. Algo dentro de mim me
dizia para imaginá-lo assim. Como alguém do bem. Alguém que, se
tivesse tido a chance de sobreviver a uma parada cardíaca, teria
cuidado do filho com todo amor e carinho.
Como um bom pai faria.
Não é tarde demais para se arrepender dos seus erros, Violet.
Nunca é.
Espero que algum dia você possa recomeçar e fazer tudo de novo.
Da maneira certa.
E sobre encontrar alguém que me olhe como se eu valesse a pena
de verdade, acho que já encontrei.
E, saiba, não vou deixá-la escapar.
Howard.
Eve: Precisamos conversar sobre sua demissão e mudança de vida, eu sei. Estou
me sentindo péssima por não ter tido tempo para isso ainda. Até diria que sou
uma péssima melhor amiga, mas eu juro que estou tentando arrumar um horário
na agenda para te visitar. Abigail está me enlouquecendo.
Ela surtou depois que você foi mandada embora e começou a nos dar trabalho
em dobro. Não aguento mais essa mulher.
Eu: Está tudo bem, não se preocupe. Imaginei que isso fosse acontecer, para ser
sincera. Ela não sabe muito bem lidar com mudanças. Já começou a procurar por
outra assistente?
Eve: Sim, e por enquanto ela está usufruindo da boa vontade do baba-ovo do
Mike da recepção. Aquele cara é insuportável. Só falta beijar o pé dela e latir
quando ela passa.
Eu: Hahahaha, nem me fale. Pelo menos alguém tirou ele de perto daquela
impressora que ele vivia quebrando.
Eve: Não gosto dele.
Eu: Bem-vinda ao clube.
Eve: QUE ÓDIO, JESSIE! Estou com saudades! Não sei trabalhar neste inferno
sem você.
Brandon me convidou para jantar com os pais dele esta noite. Acho que nem
tenho mais água no meu corpo de tanto que suei de manhã, morrendo de
nervosismo.
Eu: Vocês vão jantar no apartamento dele?
Eve: Siiiimmmmm! A gente pode aproveitar para se ver e colocar o papo em dia.
Preciso de atualizações sobre você e o Howard. Faz tempo que não conversamos
sobre isso.
Eu: Ótimo! Quando tiver um tempinho, passa lá em casa.
Eve: Certo. Agora preciso ir. Tenho que engolir meu almoço antes de voltar ao
Hospício de Abigail Veronica.
Te amo.
Eu: Boa sorte. Te amo mais.
1982.
Querido Kale,
Antes de tudo, quero que saiba que venho acompanhando sua vida
pelas redes sociais. Você está se tornando um grande homem,
Howard. E não poderia sentir mais orgulho disso.
Espero não ter te assustado com esta carta, nem com a maneira
tenebrosa que fiz este diário chegar as suas mãos.
Caso esteja se perguntando quem era o homem que o entregou, ele
é meu marido. Xavier Rodriguez. Estamos casados há 3 anos.
Talvez você tenha visto esse nome na lista de todas as pessoas por
quais este diário passou.
Eu não escrevi o meu.
Quis que fosse uma surpresa.
Desejei que embarcasse nessa aventura, que lesse cada página e
que sentisse o turbilhão de emoções e sentimentos que me
preencheram quando recebi este diário pelo correio.
Há alguns meses, perdi uma das pessoas mais importantes na
minha vida. Eu estava sem chão. Foi algo extremamente repentino.
Ninguém esperava. Me encontrava sem esperanças quando, como
se fosse uma jogada do destino, uma mulher me contactou pelo
Instagram. Ela estava em Nova York, alegando ter encontrado o
velho diário de um homem morto e ter pesquisado sobre a família
dele.
Ter pesquisado sobre a minha família.
E chegado a mim através do meu pai.
Marcus Roche Jones, único filho de John Peter Jones e Tandara
Roche.
Meus avós. Pessoas que nunca tive a chance de conhecer, mas
que, por essas páginas, pude saber um pouco mais sobre quem
eram.
Meu pai não gostava muito de falar sobre eles. Ele nunca teve uma
relação muito boa com o meu avô, como você pôde perceber. Ele
dizia que não o entendia. Dizia que passou a infância se
questionando sobre por que outras crianças tinham uma família bem
estruturada e ele não, e cresceu acreditando que a culpa disso era
do meu avô.
Mas Marcus ficou devastado quando soube de sua morte, em 1982.
Eu ainda não tinha chegado à família, já que ele e seu parceiro
secreto, Joshua Davenport, o homem por quem era perdidamente
apaixonado e conheceu durante uma viagem ao Arizona, me
adotaram em 1986, 4 anos após a morte do meu avô.
Tudo foi feito no sigilo, já que, como sabemos, a adoção feita por
casais homoafetivos só foi legalizada por lei nos Estados Unidos há
poucos anos.
Marcus me contou que sofreu quando recebeu a notícia. Com a mãe
já falecida, ele não tinha mais nenhuma família além da que formou
comigo e Joshua.
Joshua faleceu no ano passado, já com bastante idade. Marcus me
deixou há alguns meses, pouco antes do diário chegar às minhas
mãos, quando eu estava devastada.
Ele morreu sem saber da existência desses relatos. Nunca cruzou
os olhos com as palavras que o pai dedicou a ele.
Mas eu li e reli diversas vezes até criar a coragem necessária e
passar para frente, buscando alcançar o coração de outra pessoa.
O coração do pequeno menino travesso que chegou ao orfanato de
Phoenix em 2002, após encontrar o corpo sem vida do pai sobre o
piso de sua pequena casa em Scottsdale. O coração do menino que
teve dificuldade em fazer amigos, mas que o único que fez durante
a infância está ao seu lado até hoje, dividindo um apartamento em
Nova York e cuidando de uma linda lanchonete. O menino do
coração de ouro, que era punido e passava semanas sem
sobremesa, jogava papel higiênico no jardim e assustava as garotas
do orfanato durante o Halloween, usando minhas maquiagens para
tentar parecer aterrorizante.
Você, Kale Howard, o homem que carrega uma carga pesada além
da ponta do seu iceberg, cheia de medos, traumas e superações.
O garotinho que me encantou desde o primeiro dia em que nossos
olhares se cruzaram.
Você é uma pessoa muito especial para mim, Kale. Espero que
saiba disso, apesar de todos esses anos que estamos afastados.
Feito uma mãe coruja, vivo me perguntando como você está. Entro
no seu perfil nas redes sociais com frequência, apenas para matar a
saudade e ver um grande sorriso rasgando seu rosto, sentindo o
coração aquecido por saber que está bem.
Suas fotos com Brandon são minhas favoritas. Me sinto realizada de
saber que a amizade de vocês é uma das mais verdadeiras que
existe neste mundo. Vocês dois são homens maravilhosos. Eu nem
preciso estar presente em suas vidas para afirmar isso.
Nunca tive dúvidas de que, apesar das pegadinhas e teimosias,
Kale e Brandon sempre foram duas pessoas incríveis, com gigantes
e bondosos corações.
Estou aqui, de longe, do outro lado do país, com meus 49 anos e
ainda trabalhando no orfanato, mandando boas energias para vocês
diariamente. Torcendo para que fiquem bem e alcancem o
inalcançável quando se trata de felicidade.
Pode me considerar uma stalker se quiser, não vou negar que sou,
mas vi que você mudou seu status para solteiro há alguns dias.
Saiba que tudo vai ficar bem, Howard.
Porque, como eu te disse um tempo atrás, enquanto estávamos
sentados na grama do jardim do orfanato e eu ignorava todas as
regras ao fumar um cigarro na frente de duas crianças:
Tempestades não duram para sempre.
E, além disso, agora você sabe que é capaz de transformar todas
suas mais dolorosas e profundas cicatrizes em flores.
O destino reserva algo maior para você.
Eu sei disso.
ENCONTRE A AUTORA
Instagram: belautora
Wattpad: mabelbm