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Copyright © 2022 Maria Isabel Mello

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução total e parcial desta obra de qualquer meio eletrônico,
mecânico e processo xerográfico, sem a permissão da autora. (Lei 9,610/98)
Esta é uma obra literária de ficção. Todos os nomes, lugares e acontecimentos
retratados aqui são frutos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real é mera coincidência.
AUTORA:
Maria Isabel Mello
REVISÃO:
Eunice Cristina
CAPA:
Larissa Chagas
ILUSTRAÇÃO:
Gabi Heifer
DIAGRAMAÇÃO:
Clara Oliveira
LEITURA SENSÍVEL:
Larissa Ribeiro
NOTAS DA AUTORA E AVISOS DE GATILHO
PLAYLIST
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA
Seja muito bem-vindo ao universo de Além da Ponta do
Iceberg!
Antes de dar continuidade à leitura deste livro, é importante
que saiba que esta é uma obra que, apesar de ser contemporânea e
possuir apenas os pontos de vista do casal principal, abrange
histórias de personagens que viveram em diferentes épocas,
contadas através de cartas e relatos deixados em um diário.
Por conter histórias de diversas vidas, ao longo da leitura é
possível se deparar com alguns GATILHOS, sendo:
INFERTILIDADE
RELACIONAMENTO ABUSIVO
ABANDONO PARENTAL
DEPENDÊNCIA DO CIGARRO
MORTE
Peço que, caso se considere sensível a algum desses tópicos,
evite a leitura e preserve seu bem-estar.
Atenção: O relacionamento abusivo é apenas citado, sem
aprofundamento ou qualquer cena de estupro, feminicídio ou
agressão contra a mulher. Vale ressaltar, por mais que tenha ficado
claro na obra, que a autora deste livro é TOTALMENTE contra
qualquer tipo de violência, seja ela física, seja psicológica.
Sem mais, desejo a você uma ótima experiência!
Não se esqueça de me seguir no Instagram!
@belautora
CASO ESTEJA PRECISANDO OU CONHEÇA ALGUÉM QUE
PRECISE DE AJUDA, ENTRE EM CONTATO COM O CVV (Centro
de Valorização da Vida).
LIGUE 188.
PARA CONTACTAR A CENTRAL DO ATENDIMENTO À MULHER
LIGUE 180.
Para todos aqueles que buscam transformar
suas cicatrizes em flores.
Acho que essa é a mais genuína representação do verdadeiro amor,
no fim das contas.
Quando o corpo sente mais do que palavras podem dizer.
— JOHN PETER JONES.
(1895 – 1982)
Três semanas antes

Conheci o inferno quando era apenas uma criança.


Posso dizer que foi aos 6 anos, assim que voltei do jogo de
futebol, suado e agitado, e encontrei o corpo sem vida do meu pai
sobre o piso desgastado de madeira velha da sala.
Ou posso dizer que aconteceu aos 2 anos, quando minha mãe
fez as malas, me abandonou e sumiu pelo mundo, sem se
preocupar em dar notícias desde então.
Cresci em um orfanato simples de Phoenix, Arizona. Nasci em
Scottsdale, e amava a cidade, mas quando se é um órfão de apenas
6 anos, você simplesmente não tem direito de escolha. Apenas liga
confuso para os policiais, dizendo que acha que seu pai está morto
sobre o piso e, simples assim, três dias depois, se vê na capital do
estado, morando sob o mesmo teto que dezenas de crianças
desconhecidas.
Passei minha adolescência inteira ouvindo discursos sobre
como a vida é bela, como podemos nos reerguer e como devemos
lutar pela nossa própria felicidade.
E, sendo uma pessoa completamente quebrada e
desesperada para me agarrar a qualquer resquício de esperança
que me oferecessem, acreditei verdadeiramente em todas aquelas
bobagens. Acreditei que, mesmo sendo um órfão solitário, mesmo
tendo sido abandonado pela mãe e encontrado o próprio pai morto
no chão da sala, a vida era bela. E eu iria me reerguer. Encontraria
a genuína felicidade.
Mas agora, aos 25 anos de idade, vendo a minha noiva sair
correndo pela porta da frente do salão, ainda vestida de branco,
com a maquiagem borrada no rosto, dominada por um desespero
avassalador e segurando os sapatos de salto alto nas mãos, me
sinto o mesmo garotinho assustado que um dia fui; como se o
mundo inteiro estivesse despencando sob os meus próprios pés.
Como se, mais uma vez, eu estivesse prestes a ter um
encontro com o diabo.
Me sinto desconcertado. Sem a menor noção de como agir ou
do que dizer para todos os convidados sentados nos bancos à
minha frente.
A maioria me observa com os olhos arregalados. Alguns em
surpresa, outros como se dissessem: “Que porra você está fazendo
parado aí? Vai atrás dela!” Mas os que mais odeio são os que me
encaram com os olhos carregados pela dor. Os que me encaram
com olhares que nós só costumamos usar em enterros, do tipo que
falam: “Sinto muito, cara. Beatrice te abandonou no altar, e agora a
sua vida acabou”.
Minha cabeça esquenta, e sinto como se pudesse explodir a
qualquer instante.
Os burburinhos começam na multidão de convidados, mas são
abafados pelos meus pensamentos, que estão gritando e
reverberando por todas as paredes da minha mente.
No fim do salão, Martine, a melhor amiga da Beatrice,
atravessa a porta dupla de madeira escura, erguendo o longo
vestido até os joelhos e correndo em minha direção.
— Kale! — grita ela, tomada pelo desespero, ainda a vários
passos de distância. — Kale, sinto muito! Eu... Eu sinto muito!
Fixo meus olhos na porta dupla.
Quando Martine se aproxima, dizendo que Beatrice estava fora
de si, e enxergo Brandon, meu melhor amigo, se levantar do seu
assento e vir até mim, com uma expressão extremamente
preocupada, não penso duas vezes antes de deixá-los para trás.
Corro pelo salão, a caminho da saída. Assim que atravesso a
porta dupla e o vento gelado do centro de Nova York beija minha
pele, eu a vejo.
Com os sapatos ainda nas mãos, o rosto coberto por lágrimas
e caminhando ao lado de um Audi vermelho, Beatrice me abandona
e deixa tudo o que vivemos para trás.
Quando a porta do carro se abre, e um cara musculoso, com
aproximadamente dois metros de altura, bíceps enormes, roupas
sociais e um relógio caro em um dos pulsos, salta do veículo e a
abraça, tenho a sensação de levar um tapa na cara.
Mas assim que ele se inclina um pouco e conecta sua boca
aos lábios rosados da loira, é como se uma faca atingisse meu
peito, dilacerando-o e alcançando o coração machucado.
Cerro os punhos ao lado do corpo, me esforçando ao máximo
para não cair de joelhos na calçada e gritar. Meus olhos ardem,
formando lágrimas e embaçando a minha visão.
Mas não o suficiente.
Não o suficiente para me impedir de identificar o rosto do
sujeito assim que ele se afasta dela e dá a volta no Audi, a
acompanhando e abrindo a porta para que Beatrice entre.
É Peter Lerroy.
É o filho da puta do chefe dela.
O mesmo filho da puta que vinha jantar em meu apartamento e
me contava sobre todas as suas viagens extremamente caras para
a Europa. O mesmo filho da puta que exibia a vida inteira no
Instagram, e me deixava repleto da mais pura inveja.
Quando Peter arranca com o carro, levando a mulher que eu
pensava ser o amor da minha vida junto a ele, desabo.
Com um baque, meus joelhos vão de encontro aos blocos da
calçada. E, em meio a grande movimentação do fim de tarde em
Nova York, tapo o rosto com as mãos e choro em silêncio,
acompanhado pelos meus ombros, que se movem junto aos soluços
que escapam por meus lábios.
De repente, de algum baú das minhas memórias trancadas a
sete chaves, me lembro do que Beth, uma das moças que cuidavam
de mim no orfanato, costumava me dizer quando eu ficava triste à
noite, depois de ter sido proibido de brincar com as crianças mais
velhas.
Ter um bom coração sempre te fará sentir como se tivesse
feito além da conta, ou como se não tivesse chegado nem perto de
dar o máximo de si.
Me pergunto qual das duas opções fez com que Beatrice
decidisse me abandonar no altar.
Agora

Sofri meu primeiro coração partido por uma mulher em 1998,


aos 2 anos de idade.
Até hoje nunca tive notícias da minha mãe. Para ser sincero,
nunca me preocupei em procurá-la. Sempre acreditei que, se ela foi
embora, foi porque quis estar o mais distante possível de mim.
Não me lembro do seu rosto, mas meu pai costumava dizer
que ela tinha cabelos castanhos, exatamente da mesma tonalidade
dos meus, e os olhos verdes, também como os meus.
Nunca senti necessidade de sofrer por sua ida. Afinal, eu não
passava de um bebê chorão, que babava muito e usava fraldas que
precisavam ser trocadas a cada meia hora.
Mas agora, em 2021, tendo o meu coração partido, dilacerado,
esmagado e pisoteado mais uma vez, por uma mulher diferente,
tudo o que quero é sofrer e não levantar da cama nunca mais.
Nunca mais mesmo.
Muito menos hoje, justamente a data marcada para que eu vá
até o apartamento de Beatrice e busque todas as minhas coisas.
Para ser sincero, acho que poderia muito bem criar raízes
nesta cama ou me colar com cola instantânea nos cobertores. Não
apenas acho, como sinto que essa é a melhor ideia que já tive na
vida.
— Você é a porra de um covarde! — como se pudesse ouvir
meus pensamentos, Brandon grita, atravessando a porta do meu
quarto e tentando atirar uma almofada do sofá da sala diretamente
no meu rosto.
Ainda na cama, me sento no mesmo instante, lançando um
olhar desacreditado para o meu melhor amigo, enquanto a almofada
atinge o piso de carpete cor creme ao meu lado.
Puta merda, Brandon tem uma pontaria péssima!
— Bom dia para você também — resmungo, fazendo uma
careta.
Ele ri com escárnio, gesticulando exageradamente com as
mãos.
— Bom dia? Bom dia, Kale? — O ruivo de cabelos cacheados
dá passos furiosos na minha direção. — Você por acaso sabe que
horas são? — pergunta ele, parando ao meu lado.
Sonolento, levo as mãos até os olhos, esfregando-os em uma
tentativa falha de me despertar pelo menos um pouco mais.
— Não tenho a menor ideia — respondo com a voz rouca.
Ele ri novamente, indignado.
— São onze da manhã, idiota! — Brandon atravessa o quarto
apertado, seus pés marchando em direção a minha cômoda. —
Beatrice acabou de me ligar. Ela disse que você deveria estar lá às
oito. — Observo quando ele abre a primeira gaveta e começa a
vasculhar minhas roupas.
Franzo a testa.
— Por que ela te ligou? Por que não ligou para mim?
Brandon se vira em minha direção novamente, me lançando
um olhar capaz de me chamar de idiota em milhares de línguas e
tons diferentes.
— É sério que você quer mesmo que eu te explique isso,
Howard? — pergunta ele. — Você é o ex dela, porra! Ela
literalmente fugiu de você no dia do casamento. Ela te abandonou
no altar — ele diz a última parte pausadamente, o que faz com que
o golpe que sinto em meu estômago se torne mil vezes mais
potente. — Abandonou — sopra, colocando as mãos em concha ao
redor da boca, causando um efeito mais dramático e deixando
perfeitamente claro o que eu já sei.
— Será que você pode, por favor, não fazer isso? —
questiono.
Brandon ri, se virando e arrancando da gaveta a primeira
camiseta preta que encontra.
— O que estou dizendo é que ela não parece querer ter muito
contato com você. — Ele atira a peça de roupa na minha direção,
acertando dessa vez. — Achei que isso já estivesse bem claro.
— Bom, mais ou menos — digo sincero, segurando a camiseta
e me levantando da cama. — Quer dizer, está, sim, já que ela era a
minha noiva e de repente, puft, fugiu com o chefe bonitão e o seu
carro caro. Mas não pensei que fosse para valer, sabe? Não pensei
que fosse um “nunca mais nos falaremos, Kale Howard”. — Arranco
a camiseta que dormi pela cabeça, me preparando para vestir a
limpa que Brandon achou na cômoda.
— Bom, mas é assim que términos costumam funcionar — diz
ele.
— Não com você — respondo, enfiando os meus braços nas
mangas da peça de roupa preta.
Os lábios de Brandon se moldam em um sorrisinho
presunçoso.
— Você sabe que comigo as coisas são diferentes, Howard —
responde ele, cruzando os braços na altura do peito enquanto se
recosta na parede revestida de branco e com vários pôsteres
ridículos de bandas colados.
Colei todos assim que nos mudamos para cá, quando eu tinha
18 anos. Hoje em dia os odeio, mas morro de preguiça de tirá-los.
Reviro os olhos, sem ao menos tentar disfarçar.
Brandon Houston é o filho da puta mais narcisista de todos os
filhos da puta narcisistas. E ele sabe disso.
Nos conhecemos em 2002, quando cheguei ao orfanato de
Phoenix. Brandon já estava lá há alguns meses e, acredite ou não,
foi a única criança que se preocupou em vir me dizer um “oi” de
forma decente. As outras foram todas obrigadas, e fizeram careta
durante o tempo todo em que Beth e as outras as arrastavam até
mim e diziam: “Diga olá para o mais novo amiguinho!”.
Nos tornamos inseparáveis desde então.
Quando eu tinha 9 anos, e Brandon 11, nos fantasiamos no
Halloween e esperamos todos dormirem, apenas para assustarmos
as garotas do orfanato. Invadimos o banheiro da Beth na hora do
jantar, escondemos algumas das suas maquiagens nos bolsos de
nossas calças jeans surradas e saímos de fininho, sem sermos
pegos. De madrugada, no completo silêncio, nos levantamos das
nossas camas na ponta dos pés, nos esforçando ao máximo para
não acordar nenhum dos meninos que dormiam conosco no quarto.
— Preparado para ficar aterrorizante? — Foi o que Brandon
perguntou quando descemos as escadas no mais completo breu.
Eu me tornei o pior palhaço que poderia existir. Brandon
também virou uma caveira horrenda. Digamos que nenhum de nós
era muito bom com pincéis de maquiagem e que, no fim, quando
acordamos as meninas mais velhas e fomos recebidos com gritos e
almofadadas na cara, Beth nos pegou no flagra. Nem mesmo ela foi
capaz de identificar o que estávamos tentando ser.
— Não acredito que vocês pegaram as minhas coisas apenas
para fazer esses borrões pretos no rosto! — Beth gritou furiosa no
quarto das meninas, amarrando as fitas do seu robe de cetim rosa
claro em volta da cintura.
Ela era uma mulher bem bonita. Com seus 33 anos, a pele em
tom de oliva, os olhos verdes, os cabelos loiros emoldurando o rosto
fino e marcado pela constelação de sardas que salpicavam seu
nariz e um pouco das bochechas, Beth parecia o tipo de mulher que
arrasava corações.
— O quê? Isso é arte, Beth! Arte! — Brandon gritou, cruzando
os braços na altura do peito e fingindo estar extremamente
indignado e chateado ao mesmo tempo. — Como você pode ser tão
insensível?
Ficamos sem sobremesa por duas semanas. Foi um saco na
época, claro, mas foi uma experiência tão divertida que nem mesmo
pude me arrepender.
Quando eu tinha 10 anos, e Brandon 12, jogamos papel
higiênico nas plantas do jardim da frente. Passamos uma semana
tendo conversas com diferentes adultos, que discursavam sobre
como estávamos sendo travessos e como isso era inaceitável.
Aos meus 12 anos, todas as crianças do orfanato já me
odiavam completamente, menos Brandon. Ele foi o único que nunca
me abandonou.
Dois dias depois que comemoramos seu aniversário de 15
anos, Brandon me contou que tinha conhecido uma garota e estava
apaixonado. Dei a maior força, claro, mas fiquei chateado quando
percebi que ele estava deixando de passar o tempo comigo para dar
mais atenção a ela.
Um ano depois, com 16, Brandon foi adotado.
Eu tinha 14 na época e, se meu eu de hoje pudesse conversar
com meu eu de 13 anos, diria que fui um idiota por ter sofrido
quando Brandon encontrou uma namorada e teve que dar mais
atenção a ela. Aquilo não foi nada comparado a dor que senti ao ver
meu melhor amigo, a única pessoa com quem eu podia realmente
contar, mudar de sobrenome e ir morar no outro lado do país.
A gente não percebe o valor que alguém tem em nossa vida
até que o perdemos. Aprendi isso da pior maneira possível. Com a
minha mãe, aos 2 anos, com o meu pai, aos 6, com Brandon, aos
14, e com Beatrice, aos 25.
A sensação que fica é de um vazio absurdo. Como se
sentíssemos que precisássemos desesperadamente clamar por
ajuda e estender a mão, mas ninguém a segurasse. Porque
simplesmente não tem mais ninguém ali. Ninguém ocupando aquele
lugar importante que costumava ser preenchido.
Brandon foi adotado pelos Houston, uma família de classe
média-alta nova-iorquina. A Senhora Houston, com os seus 38 anos
na época, não conseguia engravidar. Ela e o marido foram até
Phoenix, encararam os cabelos ruivos cacheados e as fracas sardas
que salpicavam as bochechas pálidas de Brandon, e o escolheram.
Dias depois, meu melhor e único amigo já carregava o
sobrenome Houston nas costas.
Sua família é legal. Brandon os ama, e eu os amo também.
Eles foram importantes na vida dele.
Todos deveriam saber como é a sensação de ter uma família
um dia. Uma família boa, claro, do tipo que estende a mão para
você e diz: “Saiba que está tudo bem. Se você cair, estaremos logo
atrás para te reerguer.”
Gosto de pensar que, antes de morrer, meu pai era assim
comigo.
Antes de ir embora, Brandon me fez prometer que nunca
iríamos perder contato. Ele me ligava todos os fins de semana, me
contando sobre como sua vida em Nova York era incrivelmente
agitada e como estava gostando da escola nova e das pessoas que
conheceu.
Ele se apaixonou pela cidade. E eu, bom... eu nunca fui
adotado.
Nós ficamos dois anos sem nos vermos.
Aos 18, assim que deixei o orfanato e fui liberado para viver a
vida adulta, não pensei duas vezes antes de atravessar o país e vir
ao encontro de Brandon Houston.
Agora, no ano de 2021, estamos aqui, dividindo um
apartamento minúsculo no centro da Big Apple, cercados por
inúmeros táxis amarelos que dominam as ruas, turistas de todos os
lugares possíveis, e fãs obcecadas por Gossip Girl, que apenas
visitam a cidade para tirar uma foto no Central Park, onde um dos
acontecimentos finais da série foi gravado.
Sei disso porque já ouvi milhares de conversas desse tipo nas
ruas. Acontece com mais frequência do que imaginamos,
principalmente com os fãs obcecados vindos do Brasil.
— Consegue fechar o The Rock’s hoje? — pergunta Brandon,
jogando o frasco do perfume que pedi, para que eu o pegue no ar.
Nós somos donos de uma lanchonete no fim da rua. O lugar é
pequeno, temos poucas pessoas trabalhando com a gente, mas é
organizado e bem decorado em um estilo retrô, com as poltronas
estofadas em vermelho e o piso quadriculado preto e branco.
Não faturamos uma grana muito alta por mês, mas, para dois
garotos que viveram sem um mísero dólar no bolso durante a
infância e a adolescência inteira, nossos salários são bem mais do
que o suficiente. É como estar no paraíso.
— Claro — respondo. — Mas por quê?
Brandon sorri, batendo com a palma da mão no peito coberto
pela camiseta vermelha.
— O seu garotão aqui tem um encontro.
Chacoalho a cabeça, rindo enquanto borrifo o perfume no
pulso, jogando o frasco nos lençóis da cama e esfregando os pulsos
um no outro.
— Relaxa — digo, indo até o longo espelho retangular pregado
à parede. — Eu consigo fechar.
— Ótimo — Brandon responde, caminhando em direção à
porta. Antes de sair, ele se vira para mim e diz: — Estou tentando
entender por que você está tão preocupado em se arrumar para
encontrar sua ex.
Paro meus movimentos no mesmo instante. Minhas mãos
parecem congelar diante dos fios bagunçados.
Brandon solta uma gargalhada, sumindo pelo corredor do
apartamento.
Afasto os dedos do cabelo, respirando fundo e me achando um
completo idiota. Posso ainda estar vestindo a mesma calça cinza de
moletom que dormi, mas eu nunca passo perfume, nem mesmo ligo
para como os meus fios rebeldes e castanhos estão.
Por que caralhos estou me preocupando com isso agora?
Chacoalho a cabeça, bagunçando os cabelos novamente e
obrigando esses pensamentos confusos a irem embora.
Está tudo bem. Apenas irei até o apartamento da Beatrice,
pegarei as minhas coisas, darei as costas e seguirei com o meu dia
tranquilamente, como uma pessoa normal, que não teve o coração
pisoteado ao ser abandonada no altar, faria.

Fecho a porta de casa, trancando a fechadura logo abaixo do


número 67 pregado a ela de mau jeito, já que está quase caindo
pela milésima vez.
Guardo o molho de chaves no bolso da calça de moletom,
fazendo uma nota mental para avisar Brandon mais tarde, pedindo-o
para resolver o problema e martelar de novo os números em
dourado, por mais que seja proibido pelo condomínio.
O que eles querem, afinal? Que deixemos que os números
caiam e fiquemos sem identificação em nossa porta?
Me viro ao ouvir um ranger atrás de mim, bufando no mesmo
instante em que vejo Jessie Campbell deixar seu apartamento. A
garota faz uma careta assim que seus olhos castanhos vêm de
encontro aos meus, como se esbarrar comigo fosse a pior forma de
começar o dia.
Bom, se for mesmo isso o que passa pela cabeça dela, é um
sentimento totalmente recíproco.
— Campbell — cumprimento, porque apesar de não a
suportar, continuo sendo um cara educado.
— Howard — responde ela, se obrigando a dar um aceno de
cabeça.
Jessie se vira para trancar sua porta, me permitindo observar
os seus novos cabelos pintados de azul nas pontas. Fico um tanto
surpreso diante da mudança.
Jessie Campbell sempre foi conhecida por sua seriedade, suas
reclamações e por possuir uma alma de uma velha com 87 anos.
Ela nunca me pareceu o tipo de pessoa que faria algo tão radical no
cabelo, mas parece que me enganei totalmente quanto a isso.
Ficou bonito, tenho que admitir. Jessie, por mais que possa ser
a mulher mais irritante do mundo todo e a pior vizinha a se ter, é
uma garota bem atraente.
Com seus 22 anos, usando um vestido branco colado, o corpo
esguio, a pele negra retinta, os cabelos pretos que chegam até um
pouco abaixo dos ombros, ondulados nas pontas agora tingidas de
azul, ela até parece ser uma menina indefesa.
Mas a verdade é que Jessie Campbell está bem longe disso.
— Você já leu as regras do condomínio, Howard? — pergunta,
sem sequer me olhar, seguindo pelo carpete escuro do corredor, na
direção do elevador.
Eu a acompanho.
— Já, sim. — Franzo a testa, confuso pela pergunta.
Ela aperta o botão conectado à parede com uma de suas
unhas grandes pintadas de vermelho.
— Ótimo — diz, se virando para mim. Seus lábios com gloss
se repuxam em um sorrisinho forçado. — Então deve saber que
fazer barulho após às dez da noite é motivo para uma multa. Uma
multa bem cara, aliás.
Preciso me esforçar ao máximo para não revirar os olhos.
— Por que está me dizendo isso, Jessie?
O sorrisinho deixa o seu rosto, sendo substituído por uma
feição repleta da mais profunda indignação.
— Porque você e seu amigo são o pior tipo de vizinhos que
alguém poderia ter — responde ela, como se fosse óbvio. — Não
percebem o barulho infernal que fazem todas as noites?
Um plim invade meus ouvidos, e imediatamente a porta do
elevador se abre. Sinto o alívio repentino tomar conta do meu corpo.
Jessie entra, mantendo um dos braços esticados e segurando
a porta para que eu a siga. Quando passo por ela, sentindo seu
olhar fulminante me fitando, um calafrio me percorre por inteiro.
Estaria mentindo se dissesse que Jessie Campbell não me
assusta.
— Essa é a milésima e última vez que aviso — fala ela,
apertando o botão do térreo. A porta dupla metálica se fecha a
nossa frente. — Se meu sono for prejudicado por você ou o Brandon
de novo, nos resolveremos com o síndico.
Engulo em seco, encarando meus próprios tênis assim que a
grande caixa metálica na qual estamos começa a descer.
O silêncio preenche o ambiente. Às vezes, sinto o olhar
amedrontador de Jessie sobre mim, mas permaneço calado,
encarando meus próprios pés como se meus sapatos surrados
fossem algo admirável.
A verdade é que nossos vizinhos não dão a mínima para quem
está ou não fazendo barulho. A maioria aqui não tem condições
financeiras de se mudar para outro lugar, estando fadados a viver a
vida inteira em um prédio caindo aos pedaços e com um aluguel
barato.
Jessie, por outro lado, vem de uma família rica. Sei disso
porque, por incrível que pareça, Brandon e ela já foram amigos. Há
2 anos, quando ela se mudou para o apartamento em frente ao
nosso.
A amizade dos dois durou apenas duas semanas. Depois
disso, Jessie passou a ter vontade de arrancar a cabeça de Brandon
sempre que o via.
Quando o elevador chega ao térreo, ela é a primeira a sair.
Vou logo atrás e, sem dizer mais nada, observo quando Jessie
Campbell sai do prédio, atravessando a calçada, estendendo um
dos braços e pegando o primeiro táxi amarelo que aparece.
Como eu disse, eles praticamente dominam essa cidade.

Pago o motorista, agradecendo antes de saltar do veículo.


A vizinhança onde Beatrice mora é totalmente diferente de
onde o meu prédio é localizado. Mais afastado do centro da cidade,
as ruas a partir daqui se tornam mais largas e arborizadas, com
gramados bem cuidados, calçadas limpas e construções que estão
bem longe de serem algo que Brandon e eu poderíamos pagar.
Caminho até a porta dupla chique de vidro, sorrindo para
Ethan, que me cumprimenta com um breve aceno de cabeça e nem
sequer hesita em abrir passagem para mim.
Ele sempre foi o meu porteiro favorito. Apesar da pose rígida e
engomadinha que o condomínio o obriga a ter, às vezes Ethan e eu
dávamos boas risadas.
Bom, isso tudo foi antes de Beatrice me dar um pé na bunda.
Faço todo o trajeto até o elevador sentindo as câmeras me
observando a cada movimento. Diferente do nosso prédio, o de
Beatrice tem segurança.
Quando chego ao andar da minha ex-noiva e a porta metálica
se abre, sinto um desespero avassalador tomar conta de mim.
Minhas mãos suam e minha cabeça gira sem parar. Esfrego as
palmas no tecido de moletom da minha calça, parando em frente à
porta do apartamento.
A sola dos meus tênis vai de encontro ao tapete felpudo cor-
de-rosa no chão, e meu punho congela no ar quando o ergo e o
aproximo da porta. Respiro fundo, fechando os olhos e me
obrigando a me acalmar.
Está tudo bem, Kale. Você só veio pegar as suas coisas. Vai
ser rápido.
Enfim, tomo coragem e bato na porta.
A vontade de desaparecer imediatamente me atinge,
dominando cada mínima parte do meu corpo. Esfrego as mãos uma
na outra, me preparando para dar de cara com a mulher loira de
olhos azuis, a mesma que me abandonou no que era para ser o dia
mais importante de toda a minha existência.
Mas então, depois de alguns segundos, a porta se abre. E não
é Beatrice quem me recebe.
— Howard — cumprimenta o príncipe encantado do Audi
vermelho, que, aparentemente, salva noivas de um futuro trágico ao
meu lado.
Peter Lerroy se recosta no batente da porta, dando uma
mordida na maçã vermelha que está segurando em uma das mãos.
Ele usa uma camisa social branca abotoada só pela metade, uma
gravata cor de vinho frouxa pendurada no pescoço, e sapatos que,
com certeza, custam mais do que o meu salário.
— Lerroy — digo, cerrando os punhos ao lado do corpo. Mas
não porque quero bater no cara, não sou maluco a esse ponto.
Peter é mais alto do que eu, e tem músculos que revelam
claramente quanto ele é viciado em academia. Eu não teria a menor
chance.
Ele dá mais uma mordida na maçã antes de virar o rosto para
dentro do apartamento e berrar:
— Beatrice, seu ex está aqui!
Engulo em seco.
O termo me fere como um chute na boca do estômago. Quer
dizer, eu sei muito bem o que Beatrice e eu somos, mas ouvir isso
saindo da boca desse cara é como um golpe nojento e impossível
de ser revidado.
— Estou indo! — grita a voz abafada da dona do apartamento.
Peter me lança mais um rápido olhar, dando as costas e
seguindo até a cozinha.
Guardo as mãos nos bolsos, balançando nos meus próprios
calcanhares, mais desconfortável do que nunca. Toda essa merda
vai além de ser considerada humilhante.
De repente, vejo os fios loiros de Beatrice surgirem em meu
campo de visão. Saindo do corredor que leva até os únicos dois
quartos do apartamento, ela aparece segurando uma caixa nas
mãos, usando uma blusa de lã branca com mangas longas, uma
calça jeans e sapatos de salto. Como sempre, uma maquiagem
fraquinha marca o seu rosto com traços perfeitos.
— Ah, oi, Kale — comenta, do fundo da sala, assim que seus
olhos azuis vão de encontro aos meus.
Ouvi-la dizendo meu nome novamente, faz com que os mil
cacos do meu coração partido se quebrem mais infinitas vezes
dentro do peito.
— Oi — respondo. Odeio o jeito como minha voz soa trêmula,
transparecendo todo o nervosismo que me preenche.
Seus finos lábios se moldam em um sorrisinho forçado, e ela
dá os últimos passos até mim. Quando se aproxima, não diz nada
ao estender a caixa na minha direção.
Não hesito em segurá-la, sabendo que todas as minhas coisas
estão aqui.
— Tem algumas cartas, camisetas, fotos, pelúcias e
lembranças — diz Beatrice, com a voz baixa. — Você decide o que
fazer com elas. São suas, afinal.
— Certo. — É tudo o que eu digo.
Seus olhos azuis me fitam carregando uma profundidade sem
fim, como se implorassem por perdão.
— Não era para ser, Kale — começa ela, engolindo em seco.
Suas orbes se enchem de lágrimas. — Me desculpa, mas não era
mesmo para ser.
Preciso me conter ao máximo para não a abraçar.
— Está tudo bem — minto.
Ela sorri triste.
— Você é uma pessoa incrível, Howard, e merece alguém tão
incrível quanto.
As pessoas sempre falam isso ao terminar algum
relacionamento. E, para ser sincero, essa é a coisa mais idiota e a
mentira mais descarada a se dizer.
Todos querem compartilhar a vida com uma pessoa incrível.
Se Beatrice me visse mesmo dessa forma, não teria me
abandonado no altar e corrido para os braços do seu chefe.
Não é assim que as coisas funcionam.
— Estou falando sério, Kale — mente ela.
— Está tudo bem — repito, mentindo também. Não está nada
bem. Estou quebrado por dentro, e isso não é novidade para
ninguém.
Ela segura na maçaneta da porta, seus lábios voltando a se
repuxar em um sorriso triste de canto.
— Te vejo por aí.
— Te vejo por aí — respondo.
E, simples assim, Beatrice Thompson, a minha ex-noiva, bate
com a porta na minha cara e deixa minha vida de uma vez por
todas.

O clima da cidade de Nova York se transformou em questão de


poucas horas.
O dia, que estava ensolarado e caloroso, tornou-se uma noite
tempestuosa e fria. O vento forte bate contra as vidraças do The
Rock’s, trazendo consigo algumas folhas e galhos das árvores. As
lâmpadas piscam em todos os lustres que pendem do teto, dando
um ar assustador ao ambiente apertado. As ruas escuras do centro
estão vazias, sem nem uma única alma viva perambulando por aí.
Brandon saiu há algumas horas, antes da chuva se agravar,
indo ao encontro que me avisou mais cedo que teria. Quando
comentei que uma tempestade estava a caminho, ele disse que não
seria problema, pois iria passar a noite toda na casa da garota.
O relógio velho no meu pulso marca exatamente 22:15. Todos
os funcionários já foram embora, e era para eu estar em casa faz
tempo, mas o clima não contribuiu.
Os táxis pararam de circular. Meu apartamento fica a apenas
alguns poucos metros daqui, mas não existe a menor chance de eu
deixar a lanchonete com toda essa água caindo lá fora.
Vou precisar ser paciente e esperar, por mais que esteja louco
para tomar um bom banho quente e cair na cama.
Me sento na cadeira em frente ao caixa, deixando o caixote de
madeira com inúmeras lembranças sobre o balcão gélido. No
mesmo instante que meus dedos passam a vasculhar as cartas,
pelúcias e camisetas esquecidas no apartamento de Beatrice, um
clarão seguido pelo som intenso de um trovão faz com que eu me
sobressalte. Mais galhos vão de encontro à vidraça da lanchonete.
Chacoalho a cabeça, odiando o fato de ter que esperar essa
tempestade barulhenta passar.
Volto a me concentrar no conteúdo da caixa. Sinto o coração
entrar em disparada quando seguro uma das pelúcias e me lembro
de quando a dei para Beatrice.
Há dois anos, estávamos em um parque de diversões, tendo
mais um daqueles passeios clichês que casais geralmente fazem.
Ela apontou para o pequeno urso azul pendurado na barraca e
gritou, animada feito uma criancinha, dizendo que o queria. Como
achei uma oportunidade perfeita para pagar de bom namorado, fui
até a barraca, joguei várias meias vermelhas e enroladas na boca
do palhaço e ganhei o urso que Beatrice tanto queria.
Parece que o urso azul não tem mais importância alguma
agora.
Puxo uma cestinha de lixo do chão, atirando a pelúcia nela
sem pensar duas vezes. Não sei o que vou fazer com todas essas
merdas. Mantê-las comigo não fará o menor sentido.
Quando endireito a postura na cadeira novamente, ouço o sino
da entrada tilintar. Levo meu olhar até a porta no mesmo instante,
vendo quando ela se abre, deixando o vento frio invadir o ambiente,
e um homem vestido de preto e encapuzado entra, de cabeça baixa.
— Senhor, sinto muito, mas nós estamos fechados — aviso.
Ele não me dá ouvidos, já que dá o primeiro passo no piso
quadriculado e continua seguindo na minha direção. Atrás dele, a
porta bate, causando um barulho alto. As luzes permanecem
falhando. Os galhos e folhas continuam batendo fortemente contra a
vidraça, alguns se colando a ela, arrastados pela tempestade.
— Senhor, nós estamos fechados — repito, tentando não me
estressar e permanecer com a voz calma. — Terei que pedir para
que volte amanhã.
Ele não me escuta. Em vez disso, permanece com a cabeça
baixa e o capuz preto do moletom largo escondendo o rosto.
De repente começo a me assustar. Estico as mãos até o
mármore do balcão, empurrando-o sorrateiramente e fazendo com
que as rodinhas da cadeira escorreguem um pouco para trás, me
afastando do homem estranho que parece não me dar ouvidos.
Quando ele se aproxima e para à minha frente, meu corpo
todo gela. E quando enfia uma das mãos no bolso do moletom, já
tenho certeza do que acontecerá em seguida.
É um assalto. Ele vai puxar uma arma, mirá-la na minha
cabeça e me obrigar a dar todo o dinheiro do caixa.
Começo a avaliar minhas opções, tentando decidir o que fazer
em questão de poucos segundos. Talvez, se eu for rápido o
suficiente, consiga fugir e alcançar a porta... Talvez possa gritar e
correr pelas ruas, apesar de saber que não terá ninguém vagando
por aí em meio ao caos da tempestade... Ou...
Esses pensamentos deixam a minha cabeça no instante em
que o homem pousa o objeto sobre o balcão à minha frente. Franzo
o cenho, intercalando o olhar entre o mármore e o estranho rapaz
encapuzado.
— O que é isso? — pergunto com a voz trêmula.
Ele apenas me ignora, vira de costas e sai andando pela
lanchonete piscante. Quando a porta bate, sinto o alívio tomar conta
do meu corpo por inteiro.
Levo os olhos até o caderno antigo de capa preta à frente, sem
saber muito bem como agir.
Costumo presenciar várias coisas bizarras por aqui, mas não é
todo dia que um desconhecido silencioso invade o The Rock’s em
meio a uma tempestade e deixa um objeto estranho comigo.
Hesitando um pouco, levo as mãos até o caderno, lendo os
anos escritos no canto inferior da capa, em tinta branca. As linhas
são delicadas, como se tivessem usado um pincel fino para escrevê-
las.

1895 – 1982.
Intrigado, abro na primeira página, me deparando com uma
lista de nomes e sobrenomes diferentes. Começando a folhear,
franzo a testa quando percebo que os nomes só acabam após
algumas dezenas de folhas.
O livro é um calhamaço, e imagino que tenha mais de 500
páginas.
Meus olhos se conectam ao último nome da lista.

Xavier Rodriguez, 2021.

Volto a atenção até a porta, onde o homem estranho saiu há


alguns minutos. Por mais que não tenha visto o rosto dele, sua
postura não combinava com alguém que se chama Xavier
Rodriguez. Mas nem todo mundo tem um nome que realmente
condiz com a sua aparência ou modo de andar.
Por Deus! Por que caralhos estou julgando o nome do cara?
Viro para a próxima página, sentindo meu coração acelerar ao
me deparar com o pequeno texto escrito bem rente ao meio da
folha, de caneta azul dessa vez.

Eu sei que vou morrer.


Prometi a mim mesmo que apenas escreveria a primeira página
deste livro quando estivesse prestes a bater as botas. Bom, isso
acontecerá daqui a algumas horas. Talvez dias, se eu tiver sorte.
A verdade, querido leitor, é que você não me conhece. Quer dizer,
você conhecerá, sim, mas não a minha forma física.
Meu nome é John Peter Jones. Estou com 87 anos agora. O ano é
1982. E estou morrendo.
Seja bem-vindo à trágica história da minha vida.
Tiro o capuz molhado do moletom antes de abrir a porta de
vidro do meu prédio. Com uma das mãos, continuo segurando a
caixa, com as caóticas lembranças do meu noivado falho,
firmemente.
O relógio no meu pulso marca 01:35. Nova York inteira está
uma loucura. A tempestade finalmente deu uma acalmada, e os
táxis voltaram a circular, ocupando todas as ruas da cidade e
buscando as pessoas que acabaram ficando presas no trabalho,
assim como eu.
— Espera! — alguém grita atrás de mim.
Ainda segurando a porta, me viro, vendo Jessie saltar de um
táxi. A garota nem mesmo me nota, apenas bate a porta, segura a
bolsa sobre a cabeça, como se isso pudesse realmente a defender
da garoa que agora cai, e anda na minha direção com a cabeça
baixa.
Quando ela passa por mim, entrando no hall quente e coberto
do prédio onde moramos, fecho a porta. Jessie levanta o olhar,
finalmente se dando conta de quem sou. O âmbar de seus olhos
encontra o tom esverdeado dos meus e ela murmura um palavrão.
— Espero que não esteja me perseguindo, Howard —
comenta, passando a palma das mãos no vestido branco que está
usando desde cedo, agora coberto por um fino casaco de lã, e
fazendo com que alguns pingos de água respinguem de sua roupa.
— De nada por ter segurado a porta. — Abro um sorrisinho
irônico.
Ela bufa, dando as costas para mim e seguindo na direção do
elevador, segurando a bolsa em um dos braços.
As lâmpadas daqui, assim como as do The Rock’s, falham e
piscam sem parar, dando um toque macabro ao ambiente, propício
para uma cena de filme de terror.
Agarro a caixa com as duas mãos e vou atrás de Jessie.
— Você já parou para pensar que o mundo não gira ao seu
redor, Campbell? — pergunto, assim que a encontro em frente ao
elevador. O botão pregado à parede, ao lado de uma setinha que
aponta para cima, já está aceso em vermelho, o que indica que já foi
acionado.
Jessie me lança um olhar de desdém enquanto esfrega as
mãos, tentando se esquentar do frio.
— Pessoas se encontram. Isso é normal — continuo. —
Principalmente se tratando de vizinhos que moram no mesmo andar.
— Precisamos parar com isso, então — comenta ela,
aproximando as mãos da boca e as aquecendo com seu bafo
quente.
Solto um risinho desacreditado, chacoalhando de leve a
cabeça.
— Você não me suporta mesmo, não é?
Ela volta a encarar a porta dupla fechada do elevador.
— Você não faz ideia.
Reviro os olhos, desviando a atenção dada a ela. Uma vez,
Brandon me disse que acreditava que Jessie Campbell tem uma
queda por mim, e que apenas me trata mal por não saber como lidar
com isso.
Eu o chamei de louco, obviamente. Disse que ele estava
viajando. Essa mulher me odeia com todas as suas forças. O prédio
inteiro sabe disso.
As luzes falham mais uma vez, acompanhadas pelo clarão e o
rugido intenso de um trovão do lado de fora. Jessie se sobressalta
diante do susto, mas permanece na tentativa de aquecer as mãos
frias com o hálito quente.
Penso em entregá-la um dos pares de luvas que estão na
caixa, de quando eu e Beatrice viajamos para Detroit, no Michigan,
mas seria algo muito legal para se fazer a alguém que diz te odiar
profundamente, então desisto da ideia no mesmo instante.
A porta dupla se abre e eu passo por ela imediatamente,
sendo seguido por Jessie. Ela aperta o botão do sexto andar, e a
caixa metálica nos engole, começando a sua subida.
Da mesma forma que fiz hoje mais cedo, passo a encarar os
meus tênis — agora encharcados e mais acabados do que antes.
A lâmpada amarela do elevador também falha acima da minha
cabeça, resultando em um ruído imensamente irritante.
— Você também ficou presa no trabalho? — por algum motivo
idiota, tento puxar assunto. Talvez nossas vozes abafem o som da
lâmpada.
— Sim — Jessie responde, para a minha surpresa. — Esta
cidade vira um inferno quando chove assim.
Abro a boca para concordar, mas sou interrompido. Tudo
acontece muito rápido. A luz se apaga totalmente, trazendo um
completo breu ao ambiente apertado. O tranco que o elevador dá
faz com que Jessie e eu precisemos nos segurar nas paredes,
tentando não cair. Sem querer, acabo derrubando a caixa no chão.
Demoro poucos segundos para entender o que acabou de
acontecer.
Ótimo. Acabou a porra da energia.
Acabou a energia, e eu estou preso de madrugada com a
insuportável da minha vizinha no elevador.
— Merda! — xinga Jessie.
Ainda apoiado na parede, sinto o elevador chacoalhar sob
meus pés, como se a minha vizinha tivesse se movido bruscamente.
Me afasto do canto, me virando na direção em que ela estava antes
de tudo se apagar. Quando meus olhos se ajustam minimamente à
penumbra, eu a vejo.
Sentada no chão, abraçando os próprios joelhos, ela esconde
o rosto com as mãos. Me sinto momentaneamente desconsertado,
sem saber muito bem o que fazer.
Jessie Campbell está... chorando? Na minha frente?
Jamais pensei que presenciaria algum momento de fragilidade
vindo dela. Para ser sincero, nem sequer acreditava que ela
pudesse mesmo sentir algo além de raiva e fazer outra coisa além
de reclamar.
— Está tudo bem? — pergunto, ainda evitando me aproximar.
Vai que ela me morde...
Vejo quando Jessie afasta as mãos do rosto, bufando.
— Não! Não está nada bem! — rosna.
Pelo visto, eu estava mesmo certo. Jessie Campbell não está
chorando. Está apenas irritada. Como sempre.
Relutante, me aproximo em curtos passos, pronto para me
afastar assim que ela gritar comigo. Quando Jessie abaixa a cabeça
novamente e permanece quieta, eu me sento ao seu lado,
escorregando pela parede até atingir o piso frio do elevador.
— Quer falar sobre isso? — pergunto com a voz meio baixa. —
Você tem tipo... medo de lugares apertados? Claustrofobia? Sentir
medo te deixa irritada?
A mulher levanta a cabeça, me fitando com o olhar em
chamas.
— Está falando sério, Howard? — pergunta, ríspida.
Engulo em seco, um pouco intimidado por estar tão perto de
alguém que parece querer me matar apenas pela forma como me
olha.
— Sim, por que não estaria? — questiono, esfregando as
mãos nos joelhos, mais precisamente no tecido da calça de
moletom. Jessie revira os olhos, bufando. — O que foi? Só estou
tentando puxar papo. Sabe-se lá que horas vamos sair daqui... Você
poderia pelo menos tentar se esforçar para deixar a sua companhia
minimamente agradável. Pode fingir que é legal, se quiser. Não me
importo. Até prefiro.
Seu semblante se fecha totalmente, repleto da mais profunda
irritação.
— Ou você poderia calar a boca — retruca. — Prefiro essa
opção.
Levanto as sobrancelhas, desviando o olhar de seu rosto mal-
humorado, sentindo mais um de seus famigerados golpes me atingir
como um tapa na cara.
Respirando fundo, encosto a cabeça na parede e fecho os
olhos, resolvendo obedecer ao seu pedido, sem ao menos replicar.
Ouço quando Jessie começa a assoprar e, pelo alto barulho
que ela faz, imagino que esteja tentando esquentar as palmas das
mãos novamente.
Ainda de olhos fechados, aponto para frente, sem nem ao
menos saber se estou apontando na direção certa.
— Tem um par de luvas naquela caixa — aviso.
Ela não se move, nem sequer parece ter me dado ouvidos,
apenas continua tentando se aquecer com o próprio hálito quente.
Abro os olhos, a encarando.
— Jessie, fala sério! — digo, indignado. — Pegue as luvas.
Aceitar um favor meu não significa que precisa morrer de amores
por mim.
Ela para de assoprar, me encarando com as mãos em concha
ainda cobrindo os lábios, congeladas.
— Não quero a sua maldita luva, Howard! — explode,
afastando as mãos de perto do rosto. — Só quero sair daqui o mais
rápido possível, tomar um banho quente e dormir até amanhã de
manhã. Até o meu maldito despertador tocar e eu precisar ir para o
meu trabalho infernal. É só isso que eu quero!
Arregalo os olhos, sendo pego de surpresa.
Sem esperar mais nem um segundo sequer, Jessie se
encolhe, abraçando os próprios joelhos novamente e escondendo o
rosto entre eles.
— Quanto você tem de altura? — A pergunta aleatória escapa
pelos meus lábios antes que eu possa me conter.
Ela ergue a cabeça, me encarando com o cenho franzido.
— O quê? Por que caralhos está me perguntando isso agora?
— questiona, indignada e confusa ao mesmo tempo. — Não está
vendo? Estou tendo uma crise!
— Eu sei. — Dou de ombros. — É só que sempre tive
curiosidade em descobrir. E, talvez, conversar possa te ajudar a não
enlouquecer.
Ela revira os olhos.
— Por Deus, Howard, cale a boca!
Mais uma vez, obedeço sem questionar.
Jessie volta a abaixar a cabeça, bufando pela milésima vez.
Me levanto e caminho até a caixa caída no chão, vasculhando até
encontrar o par de luvas vermelhas de Detroit. Assim que seguro o
tecido macio nas mãos, o atiro na direção dela. O objeto acerta uma
de suas pernas antes de desviar do alvo e ir de encontro ao chão.
Jessie move o seu olhar até as luvas, intercalando-o entre mim
e o tecido em seguida.
— 1,78 — diz, segurando o par, sua voz sai fraca e rouca,
como se estivesse envergonhada.
— O quê?
— A minha altura. Eu tenho 1,78 — repete.
Meus lábios se repuxam para cima, em um sorrisinho.
— Ah. — Me sento em frente à caixa.
Observo quando Jessie veste as luvas de crochê, parecendo
aliviada por finalmente poder se aquecer. Dando a minha atenção
para a caixa novamente, estico os braços e a agarro, aproximando-a
mais de mim. Pela segunda vez na noite, começo a mexer nas
coisas que Beatrice me devolveu.
Assim que minhas mãos encontram a capa preta do velho
caderno de John Peter Jones, o ergo, tirando-o do amontoado de
coisas. Passo a ponta dos dedos calejados nos anos marcados em
tinta branca.
1895 –1982.

Quando John Peter Jones veio ao mundo e quando o deixou.


— O que é isso? — questiona Jessie, se inclinando para
frente, curiosa.
— Uma coisa aleatória que um cara estranho me entregou
hoje. — Abro a primeira página, me deparando com os nomes de
todos que já encostaram as mãos nas lembranças do velho John,
sejam elas quais forem. — É um diário de um cara. Ao que parece,
ele o escreveu com o intuito de morrer e deixá-lo para trás, fazendo-
o rodar por diversas mãos.
Jessie levanta as sobrancelhas, intrigada.
— Uau. Isso é incrível!
Concordo, voltando a encarar as páginas. Saco o meu celular
de um dos bolsos da calça moletom, ativando a lanterna e a
apontando para o diário.
— Tem uma lista de nomes. — Deslizo a ponta dos dedos até
o final, parando na linha vazia após a caligrafia do Xavier, o
estranho encapuzado. — Tipo quando você empresta o livro da
biblioteca da escola e precisa assinar, sabe?
O elevador balança um pouco assim que Jessie se levanta.
Pelo canto do olho, vejo quando ela se aproxima e se senta ao meu
lado no piso, de pernas cruzadas.
— Se a história desse tal cara for mesmo interessante, isso
daria um ótimo livro, não acha? — questiona. Ergo meu olhar até
seu rosto. Um vinco concentrado se formou em seu cenho e seus
olhos agora focam no objeto que estou segurando.
Não acredito que Jessie Campbell acabou de se aproximar de
mim por livre e espontânea vontade.
Pigarreio, um tanto surpreso diante do gesto inesperado.
— Acho.
— Posso? — Ela estica as mãos com as luvas vermelhas,
pedindo para segurar.
Assinto, entregando o caderno de capa preta para ela.
Permaneço apontando a lanterna, a ajudando a enxergar
minimamente em meio ao breu do elevador.
Observo quando Jessie passa a folhear as páginas,
arregalando os olhos ao chegar no primeiro registro de John Peter
Jones, se mostrando extremamente surpresa, assim como eu fiquei.
Convenhamos, “eu sei que vou morrer” não é uma maneira
muito tranquila de se iniciar um texto.
— Meu Deus, Howard! — exclama, um sorriso gigante se
moldando em seus lábios, seus olhos ainda concentrados nas
palavras do velho John. — Me dê uma caneta.
Hesito por um segundo, mas então começo a vasculhar a
caixa novamente, atrás de qualquer coisa que tenha tinta ou grafite
para escrever. Quando encontro uma velha caneta vermelha, a
entrego para a garota ao meu lado, torcendo para que ainda esteja
com tinta.
Jessie volta algumas páginas, posicionando a ponta prateada
na linha vazia abaixo do nome de Xavier Rodriguez. Franzo o cenho
assim que a vejo apoiar o caderno no chão e começar a escrever
meu nome.
— O que está fazendo? — pergunto, por mais que seja óbvio.
Jessie não responde, apenas acrescenta “2021”, ao lado de
“Kale Howard” e segue para a próxima linha, caprichando ao
escrever “Jessie Campbell”.
— O que está fazendo? — insisto na pergunta.
Ela levanta a cabeça, movendo os olhos até meu rosto.
— Dando um início oficial à nossa experiência, Howard —
responde, com um sorriso gigante no rosto. Ergo as sobrancelhas,
impressionado com a sua atitude. Jamais pensei que Jessie
pudesse ser do tipo que se interessa pela vida de um cara que viveu
durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. — Eu curso
jornalismo, caso você não saiba — comenta, como se pudesse ler
meus pensamentos. — E isso aqui foi uma das coisas mais
interessantes que já encontrei na vida. Então, sim, Howard, vamos
ler cada uma destas páginas. — Seu tom de voz, que antes estava
repleto da mais pura irritação, agora transparece uma animação que
chega a ser contagiante.
— Certo — digo, ainda meio confuso. — Mas por que você
colocou o meu nome também?
Jessie revira os olhos.
— Porque foi você que encontrou este diário. Não posso
simplesmente arrancá-lo de suas mãos.
Assinto, mantendo o cenho franzido.
Sim, achei extremamente interessante um cara aleatório ter
surgido em minha lanchonete, em meio a uma tempestade e ter me
entregado um diário antigo de um homem que já morreu e que disse
ter tido uma vida trágica, mas, olhando para a animação de Jessie
agora, com certeza eu o teria entregado caso ela tivesse pedido.
Ainda a estou encarando quando, de repente, a luz se acende
e volta a tomar conta do elevador.
Suspiro, sentindo todos os músculos relaxarem. Jessie se
levanta, parecendo tão aliviada quanto eu. Ela alcança a fileira de
botões metálicos pregada à parede, apertando o do sexto andar,
fazendo com que ele acenda novamente.
Depois de cansativos minutos parado, o elevador volta a subir.
— Ótimo — diz Jessie, tirando as luvas que a emprestei,
olhando para mim. — Começamos amanhã? Posso ir ao seu
apartamento.
Abro a boca para responder, mas acabo apenas acenando de
leve com a cabeça em concordância.
— Certo. — Ela joga as luvas de crochê na minha direção.
Atrás dela, a porta dupla metálica do elevador finalmente se abre,
trazendo um ar novo para o pequeno espaço que ocupamos. — Te
vejo amanhã à noite, Howard. Não marque nada. Deixe a agenda
livre.
E simples assim, Jessie Campbell deixa o elevador, saindo do
meu campo de visão ao entrar no corredor do nosso andar, logo
após me surpreender fortemente com sua súbita animação.
Ainda sentado no chão, passo a organizar todas as coisas de
volta na caixa e me levanto, saindo do espaço apertado.
O velho relógio no meu pulso marca 02:42 agora.
No colégio, eu invejava todos os meus amigos que tinham
mães despreocupadas.
Eles podiam sair quando quisessem, faziam os seus próprios
horários, viajavam sem avisar, chegavam em casa bêbados e nem
sequer precisavam fingir que não estavam, e eram considerados “os
mais legais”, pois seus pais nunca os proibiam de fazer nada. Já eu,
sempre fui presa na coleira pelos meus.
Os Campbell tinham que proteger o precioso nome da família.
Minha mãe dizia que confiava em mim, mas hoje em dia vejo que
isso não passava de uma mentira descarada. Ela morria de medo
de que eu fizesse besteira em alguma festa, que virasse motivo de
fofoca pela escola com todos os filhos de milionários de Nova York e
que sujasse nosso querido sobrenome e toda a sua reputação.
Afinal, como alguém como Louise Campbell poderia ter uma
filha que virou motivo de chacota entre adolescentes mimados e de
nariz em pé?
Isso seria exatamente como uma adaga perfurando seu peito e
sujando sua célebre reputação de sangue escarlate.
As brigas com minha família sempre foram corriqueiras. Nunca
tive os mesmos pensamentos ou as mesmas vontades que meus
pais e irmãos.
Clarice e Robert Campbell — meus irmãos mais velhos —
sempre foram os exemplos da família. Lembro até hoje de quando
Robert foi aceito em Dartmouth. Minha mãe agarrou uma de suas
mãos firmemente e saiu desfilando com ele, apresentando-o para
todos os convidados de um dos eventos do meu pai no Plaza,
tratando-o como se fosse um troféu.
Robert, claro, adorou ouvir todas as bajulações e ser o centro
das atenções pelo resto da noite.
Anos depois, foi a vez de Clarice. Assim que a minha irmã foi
aceita em mais uma das universidades da Ivy League, minha mãe
fez questão de arrastá-la para um brunch com suas amigas
milionárias, contando para todas elas que sua filha do meio estava
se mudando para os arredores de Boston dentro de alguns meses.
Quando elas chegaram em casa, Louise abriu uma garrafa
cara de champanhe e debochou de Mikaela Sparks, por seu filho
não ter sido aceito em nenhuma universidade renomada dos
Estados Unidos.
Hoje em dia, Clarice está cursando o último ano de direito em
Harvard, pronta para se formar e ganhar rios de dinheiro durante
sua vida. Robert está na Inglaterra, trabalhando em um hospital
especializado em cardiologia. Já minha mãe, sofre por ter falhado
em seu plano de fazer com que todos seus queridos filhos
entrassem em alguma universidade da Ivy League.
Louise e Willian Campbell se conheceram em Yale, em
Connecticut. Frutos de famílias ricas e renomadas, assim que se
casaram, concordaram em manter esforços e traçar uma linha de
conquistas na família, tendo todos os sucessores e herdeiros
carregando o título de formação na Ivy League.
Eu, pelo visto, fui quem estragou esse lindo plano de sucesso.
Acontece que minha família é formada por advogados e
médicos — variando entre neurocirurgiões e cardiologistas. Quando
eu, Jessie Campbell, a filha mais nova, disse que cursaria
jornalismo, meus pais tiveram um colapso.
Estávamos à mesa do jantar, em um final de semana,
acompanhados por Robert e Clarice, que viajaram para assistir a
minha formatura. Willian se engasgou com o vinho, começando a
tossir sem parar. Louise, porém, arregalou os olhos, me encarando
petrificada. Robert se levantou imediatamente e começou a dar
tapinhas nas costas do nosso pai, preocupado. Clarice foi logo
atrás, tentando acalmá-lo.
Já eu, continuei comendo minha salada verde normalmente,
como se uma confusão não estivesse formada a minha frente.
Meus pais, desde então, decidiram que não me apoiariam.
Eles passaram meses tentando me fazer mudar de ideia, mas nunca
conseguiram.
Minha paixão é o jornalismo. Sempre foi. Sabe quando você se
sente extremamente bem fazendo algo que ama? Quando sente
que, caso desista, sua vida não fará mais sentido? É assim que me
sinto.
E foi exatamente por esse motivo que acabei morando no
centro de NY, em um prédio caindo aos pedaços e com um aluguel
mixuruca. Por esse motivo, acabei pagando pelo mais barato curso
da cidade e ingressando na Charlotte, uma das maiores revistas do
país, onde trabalho como assistente da diretora-chefe.
Odeio meu trabalho, mas sei que para crescer tenho que
começar de algum lugar.
Digamos que trabalhar para Abigail Veronica é um desafio e
tanto. A mulher, com seus 56 anos, curtos cabelos platinados, caros
blazers modernos, um perfeccionismo avassalador e um gosto
específico para cafés, consegue ser bem difícil de aturar quando se
esforça.
Mas nunca desistirei de tentar impressioná-la.
Nos 3 anos que trabalho na Charlotte, a maior e única
promoção que recebi foi a transferência de mesa. No início, Abigail
reclamava que, como eu sentava do outro lado do andar, demorava
muito para buscar as encomendas que chegavam para ela. Por isso,
há dois anos, minha nova mesa passou a ser em frente à porta
dupla automática.
Venho ansiando por uma promoção desde o primeiro dia, pois
sei que tenho talento.
Mas ontem, como um milagre, Kale Howard apareceu com o
que pode mudar toda a minha vida e realizar os meus sonhos.
Um diário de um cara morto. Um diário que conta toda a
história de John Peter Jones. Um diário que ele quis deixar para
trás, para que muitos pudessem ler e guardar suas palavras, sejam
elas quais forem.
Pretendo usá-lo para impressionar Abigail. Pretendo mostrá-lo
a ela e escrever a matéria. A melhor matéria que um escritor já foi
capaz de pensar. A matéria que marcará a história da Charlotte e
me levará ao topo.
A que eu sei ter talento suficiente para escrever.
Atravesso a porta dupla de vidro da entrada da revista,
segurando o suporte de papelão com o copo térmico, que mantém
aquecido o caro café fumegante da Abigail.
Sempre convivi com ricos e seus gostos específicos e
sofisticados, mas hoje acho um absurdo que Abigail prefira gastar
25 dólares em um café de rua, mesmo tendo uma máquina potente
em nosso andar, que poderia preparar quantos cafés ela quisesse
por dia.
Como sempre, ninguém parece se importar com minha
chegada. Todos no andar estão focados e agitados, buscando
terminar os últimos detalhes para a edição do próximo mês. O painel
na parede possui todas as páginas prontas, já pregadas a ele na
ordem certa em que serão impressas.
Os escritores ocupam a maioria das mesas, concentrados em
manter seus dedos furiosos nas teclas dos computadores. Entre
eles, está Eve Wade, minha melhor e única amiga.
Assim que pisei na Charlotte pela primeira vez, nos tornamos
inseparáveis. No meu primeiro ano como assistente, Eve e eu
dividimos um flat. Como já era de se esperar, não deu muito certo.
Apesar de sermos como irmãs, não temos nada em comum.
Eve é extremamente bem-humorada de manhã, ao contrário
de mim. Ela ama gatos, eu tenho alergia. Ela odeia dormir tarde, eu
demoro para conseguir pegar no sono. Nós temos uma infinidade de
características e hábitos que não combinam quando se juntam.
Por isso, há dois anos, me mudei para meu apartamento atual.
No começo, a adaptação foi um tanto complicada. Querendo
ou não, vivi a minha vida inteira cercada por dinheiro e mordomia.
Apesar de que possa ser péssimo dizer isso, no início, estranhei
morar em um lugar tão simples quanto o meu prédio.
Logo na primeira semana, conheci Brandon, o cara mais
extrovertido e falante com quem já conversei na vida. Gostei dele
logo de cara, mas, depois de duas semanas, tivemos que nos
afastar.
Acontece que Brandon divide o apartamento com Kale
Howard, a maior ameaça para minha vida, apesar de também ser o
cara que me ajudará, graças ao diário que encontrou.
Garotos altos, respeitosos, sarcásticos, com risadas gostosas,
energias de Golden Retriever e cabelos bagunçados são uma coisa
perigosa.
Ou seja, Howard é um perigo para mim. Um grande perigo.
Daqueles que fazem o cérebro entrar em estado de alerta e piscar
em luzes vermelhas enquanto toca um desesperado e intenso
alarme.
Quando o encontrei pela primeira vez, eu estava com Brandon,
indo levar o lixo. Ele estava me apresentando todo o esquema do
prédio e explicando sobre o sistema de reciclagem. Foi quando Kale
apareceu.
Por algum motivo idiota, assim que meus olhos cruzaram com
o tom esverdeado dos seus, me senti paralisada.
Momentaneamente desconcertada. Sem saber como agir.
Mas quando vi Beatrice, sua namorada na época, sair de trás
dele, chacoalhei a cabeça e mandei todos os pensamentos embora.
Além de Kale ser comprometido, eu não estava pronta para me
apaixonar novamente. Vicent, o meu ex-namorado da adolescência,
havia deixado marcas em mim.
Para ser sincera, elas ainda estão aqui, assombrando cada
uma das minhas inseguranças.
Nunca mais consegui conversar com Brandon desde então.
Manter uma amizade com ele significava estar na constante
companhia de Kale, o que era difícil para mim na época. Nunca
entendi ao certo o efeito que ele tem sobre mim, mas também não
procuro entender agora.
O irônico é que, após anos agindo como uma vizinha
insuportável e reclamona, agora preciso dele. Preciso reunir forças
suficientes para ser capaz de me aproximar dele.
Kale está solteiro. O prédio todo sabe que ele foi abandonado
no altar. Mas isso não significa nada, porque não estou pronta para
entrar em um relacionamento e nem mesmo ficar com alguém.
Além de que, Howard deve me odiar.
— Bom dia, Abigail. — Abro o meu maior sorriso ao passar
pela porta de vidro que separa o resto do andar da sala da editora-
chefe. — Trouxe o seu café. Da Aprilss, como você gosta.
Do outro lado da mesa, ela gira na poltrona de veludo roxa, se
virando para olhar para mim. Usando um blazer vermelho, com os
curtos cabelos platinados devidamente penteados para trás e
brincos enormes cintilando nas orelhas, minha chefe me recebe,
seus finos lábios rosados e ressecados se moldando em um
sorrisinho.
— Que bom que chegou — comenta, assim que deixo o copo
térmico sobre a madeira clara de sua mesa. — Tenho uma tarefa
para você.
Me animo, a encarando ansiosa para ouvir o que tem a dizer.
Abigail se endireita na poltrona, levando as mãos pálidas até o
café, o aproximando de si.
— Mike disse que a impressora da recepção quebrou. Preciso
que ligue para alguém, ou tente consertar você mesma — diz ela.
Meus ombros caem, juntamente à animação que deixa o meu corpo.
Abigail dá o primeiro gole no café. — Você já deu um jeito naquela
impressora antes, não deu?
Assinto, forçando um sorriso.
— Ótimo. — Ela volta a deixar a bebida sobre a mesa antes de
fazer um gesto com uma das mãos, como se quisesse me dispensar
quanto antes. — Vá em frente. Caso não consiga, apenas ligue para
alguém que conserte.
Assinto outra vez, mordendo o lábio inferior e tentando conter
as lágrimas de frustração que ameaçam se formar em meus olhos.
— Obrigada pelo café — agradece Abigail, assim que dou as
costas e saio pela mesma porta pela qual entrei, voltando a andar
pelas dezenas de mesas e funcionários que ocupam o segundo
andar da Charlotte, a caminho da recepção.
Fecho os olhos com força, sentindo minhas pálpebras
tremerem, tentando controlar a tristeza que parece querer me
dominar.
Estou exausta. Ter ficado até mais tarde no trabalho ontem, ter
ficado presa no elevador pela falta de energia e ter dormido apenas
4 horas essa noite literalmente acabou comigo.
Mas, mesmo assim, abro os olhos, volto a sustentar o meu
melhor sorriso e continuo caminhando até minha primeira tarefa do
dia.
Consertar a impressora.
Me pergunto o que meus pais diriam se me vissem agora.
Agarro a almofada azul horrenda e a jogo no chão. Me
arrependo. Pego-a de volta, afofando-a, e a coloco no sofá
novamente. Seguro a laranja, invertendo seu lugar e a colocando na
frente da azul. Me arrependo. Troco as posições de novo, voltando a
deixá-las como estavam. Me arrependo. Solto um grunhido irritado
e, já sem paciência, as arremesso no chão.
Quando foi que passei a me preocupar com a posição que as
almofadas ocupam no sofá?
— Que merda você está fazendo?
Me sobressalto diante do susto, me virando para o corredor.
Brandon me encara confuso, com a testa franzida e uma escova de
dentes presa entre os lábios sujos pela espuma azul formada pela
pasta.
— Quem foi que comprou essas merdas de almofadas? —
pergunto.
Ele franze a testa ainda mais, praticamente juntando as
sobrancelhas nas pálpebras.
— Do que é que você está falando, Howard?
Suspiro irritado, jogando os braços para cima.
— Azul e laranja — digo. — Que porra de combinação é essa?
Brandon levanta uma de suas mãos, me pedindo para esperar.
Observo quando ele some pelo corredor, atravessando a porta do
banheiro. Me sento no sofá, agora sem almofadas. Minutos depois,
Brandon volta, sem pasta de dente na boca dessa vez.
— Está tudo bem? — pergunta meu melhor amigo, com a voz
repleta de preocupação. — Você parece nervoso.
— Não estou — rebato, instantaneamente.
Brandon se senta ao meu lado, erguendo uma sobrancelha
ruiva, desconfiado.
— Tem certeza? Porque parece que você estava tendo um
ataque há alguns minutos — acusa ele. — Você sabe... gritando
comigo e falando mal das pobres almofadas.
Seus lábios ameaçam formar um sorrisinho, o que me dá
vontade de acertar um murro em seu rosto.
— Estou nervoso — admito.
— Certo. — Brandon se inclina para frente, estendendo os
braços até alcançar as almofadas jogadas no chão. — Mas por quê?
— Ele volta a endireitar a postura, organizando o laranja e azul na
mesma ordem horrenda de sempre.
Preciso me lembrar de jogar essas merdas fora.
Desvio o olhar, tentando enrolar para responder a pergunta.
— Por que, Howard? — meu melhor amigo insiste.
Suspiro, me dando por vencido. Passo as mãos nos fios
bagunçados do meu cabelo, me preparando para descobrir a reação
de Brandon ao saber que estou prestes a receber Jessie Campbell
em nossa casa.
Encaro seu rosto, fitando seus grandes olhos castanhos e
redondos.
— JessieCampbellestávindoaquieeutenhomedodela — digo
rápido.
Brandon franze o cenho.
— Por Deus, Howard, acha mesmo que eu entendi alguma
coisa que você disse?
Fecho os olhos, suspirando.
— Jessie Campbell está vindo aqui — repito, devagar dessa
vez. — E eu tenho medo dela.
Quando abro os olhos, percebo que uma expressão atordoada
tomou conta do rosto do ruivo.
— Espere — pede ele, gesticulando exageradamente com as
mãos, tentando processar a informação. — Jessie Campbell. Aquela
Jessie? Aquela Jessie está vindo aqui?
— Sim — respondo.
— E você tem medo dela?
Desvio o olhar, me sentindo mais do que patético.
— Tenho. — Engulo em seco.
Brandon explode em uma risada histérica. Volto a encará-lo,
franzindo o cenho ao ver que ele está com uma das mãos apoiadas
na barriga, tentando se conter.
— Puta merda, Kale — comenta, entre gargalhadas. — Puta
merda.
Bufo, sentindo a irritação me dominar.
— O que foi, idiota?
Ele continua rindo, falhando ao tentar responder. Brandon fica
vermelho.
— Você tem medo da nossa vizinha — finalmente diz,
pressionando a outra mão na barriga agora. — Você tem medo!
Reviro os olhos, me segurando para não voar na cara dele.
— É óbvio que tenho, Brandon! — tento me defender. — É de
Jessie Campbell que estamos falando. Ela é capaz de fazer as
pessoas chorarem apenas com o olhar.
Brandon passa a rir mais, apertando a própria barriga e se
inclinando para frente, incapaz de se conter.
Reviro os olhos.
— Será que você pode, por favor, parar? — questiono, já sem
a menor paciência.
Ao perceber a irritação genuína em minha voz, o idiota se
endireita no sofá, se esforçando ao máximo para segurar o riso ao
me encarar.
— Tudo bem, Kale — diz ele. — Me diga. Por que Jessie está
vindo aqui?
Solto um longo suspiro.
— Ontem, enquanto você estava se agarrando com a garota
misteriosa do seu encontro, um cara aleatório entrou no The Rock’s
e me entregou isso. — Estico o braço até a mesa de centro
retangular, agarrando o caderno do John Peter Jones. — É um
diário de um cara morto.
Brandon levanta as sobrancelhas, estranhamente intrigado.
Ele não parece estar prestes a explodir em gargalhadas de novo, o
que chega a ser um alívio para mim e para meu eu interior
esquentadinho.
— Eu e Jessie ficamos presos no elevador, por culpa da
tempestade — continuo.
Brandon faz uma careta.
— Sinto muito.
Rio um pouco.
— Não foi tão ruim assim — respondo com honestidade. —
Para ser sincero, não foi nem perto de ser ruim. — Franzo a testa.
Ainda não fui capaz de entender como ter ficado preso em uma
caixa metálica com Jessie Campbell, a minha vizinha ranzinza,
possa ter sido minimamente agradável. — Jessie ficou bem
intrigada com o diário. Está vindo aqui para lermos algumas
páginas. Você sabia que ela cursa jornalismo?
Brandon se afunda no sofá, cruzando as pernas de forma
despreocupada.
— Acho que ela já chegou a comentar comigo — fala ele. —
Você sabe... quando éramos amigos, e ela não sentia vontade de
me bater toda vez que me via.
Solto um riso anasalado.
— Acho que a única pessoa que não sente vontade de te bater
toda vez que te vê sou eu. — Deixo o diário sobre a mesinha
retangular novamente.
Brandon ri. Ele sabe que estou certo.
— Você e a minha “garota misteriosa do encontro” — diz,
usando as mesmas palavras que eu.
Endireito a postura, gostando do rumo que essa conversa está
tomando.
— Ah, é? — Arqueio uma sobrancelha. — Então quer dizer
que finalmente encontramos outro ser no mundo que seja capaz de
te tolerar?
Um sorrisinho de canto molda seus lábios.
— É, acho que sim.
Sorrio também, feliz por ele. A última vez que vi Brandon
Houston gostando de alguém foi no orfanato, há 12 anos, quando
ele tinha apenas 15 anos de idade.
Meu melhor amigo já teve outros relacionamentos, claro, mas
nunca se sentiu realmente conectado a nenhuma outra garota até
então.
— Quando vou conhecê-la?
Ele me encara, desfazendo o sorrisinho em seus lábios.
— Vai demorar.
Franzo a testa.
— Por quê?
— Porque, ao contrário do que a maioria pensa sobre mim,
não sou um cretino egocêntrico e sem coração — começa,
explicando como se fosse óbvio. — Você acabou de levar um pé na
bunda. Não vou jogar a minha felicidade na sua cara.
— Já superei — retruco, apesar de ainda ter algumas dúvidas
sobre isso. A expressão do ruivo se transforma em entediada. —
Você sabe muito bem disso.
Brandon mora comigo. É meu melhor amigo. Sabe, melhor do
que ninguém, como foi para mim a semana seguinte do casamento.
Sabe quanto foi difícil levantar da cama e viver normalmente,
sabendo que Beatrice devia estar dormindo e acordando com seu
chefe todos os dias.
— Eu sei — fala ele, descruzando as pernas, apesar de não
parecer muito convencido. — Mas ainda vou continuar com meu
papel de melhor amigo incrível e esperar até ter cem por cento de
certeza, está bem?
Estou prestes a responder quando Brandon se levanta em um
pulo, indo até a mesinha de vidro retangular e agarrando o seu
relógio de pulso.
— Vai sair? — questiono.
Ele faz que sim com a cabeça.
— Tenho mais um encontro — responde com um sorrisinho,
prendendo o relógio em um dos pulsos antes de caminhar até o
espelho pregado à parede e observar o próprio reflexo.
Só então percebo as roupas que Brandon está usando. Uma
camisa social preta com botões brancos e uma calça preta
devidamente passada e sem nenhum arranhão. Ambas são roupas
novas.
É óbvio que ele não vestiria isso apenas para ficar em casa.
— Você deve gostar mesmo dessa garota, já que até arrumou
os cachinhos ruivos e rebeldes — brinco, rindo.
Brandon me mostra o dedo do meio, ainda focado em analisar
seu reflexo no espelho.
— Só não te digo que isso é inveja porque sei que está
passando por uma fodida fase de superação. — Ele faz uma pose
ridícula, flexionando o braço na altura do rosto e beijando o bíceps
que nem tem.
Assim como eu, Brandon é bem magro.
Reviro os olhos.
— Não estou passando por fase nenhuma — respondo. — Já
te disse que superei. Sou um novo homem. Não sofro mais pela
Beatrice e nem pelo seu príncipe rico do Audi vermelho.
Meu melhor amigo se vira para mim, me encarando com um
sorrisinho formado em seus lábios.
— Até quando vai continuar fingindo para si mesmo, Howard?
— pergunta ele, em um tom brincalhão. — Sabe, está tudo bem
sofrer por amor. É natural. Ainda mais para quem levou um pé na
bunda no dia do casamento. — Brandon começa a atravessar a
sala, a caminho da porta. — Se você quiser, posso trazer um pote
de sorvete e deixar que afunde suas lágrimas e chore enquanto
assiste a um romance triste.
Agarro uma das almofadas horrendas, atirando-a na direção
dele. Brandon ri, desviando rapidamente e correndo até alcançar a
porta. A almofada laranja atinge o chão.
— Você tinha razão — comenta, encarando o objeto. — Ela é
mesmo horrível.
Feito um adolescente rebelde, mostro o dedo do meio para ele,
que apenas ri mais uma vez e leva a mão até a maçaneta fria da
porta, se preparando para abri-la.
Desvio o olhar para o diário sobre a mesinha de vidro
retangular, sentindo as mãos suarem de ansiedade pela visita de
Jessie.
— Oi-Jessie-tchau-Jessie. — Ouço Brandon dizer.
Me viro no mesmo instante, vendo Campbell no corredor,
parada em frente a nossa porta.
Ela está assustadoramente linda. Usando uma jaqueta de
couro preta sobre a blusa branca, calça jeans simples, coturnos
pretos até a canela e com um forte batom vermelho pintando os
lábios, Jessie me deixa desconcertado ao observá-la.
Ela entra assim que Brandon atravessa apressado para o
corredor.
— Por que parece que ele está prestes a fazer xixi nas calças?
— pergunta, fechando a porta atrás de si.
Dou de ombros, me levantando do sofá, buscando ser um bom
anfitrião.
— Ele tem um encontro. Deve estar com pressa.
Ela dá um breve aceno de cabeça, se aproximando de mim.
— Certo, Howard. Está com o diário, não está?
Assinto antes de estender meu braço e tirá-lo de cima da mesa
de centro.
— Quer uma taça de vinho? — pergunto. — Talvez seja bom
para passar o tempo... Não sabemos que tipo de informações
encontraremos aqui. Pode ser um começo de leitura bem tedioso.
Um vinco se forma em sua testa, como se ela se questionasse
se deve ou não aceitar minha oferta.
Acho que após dois anos não me suportando, deve ser difícil
para Jessie fingir estar contente na minha presença. Assim como é
para mim, de certa forma.
— Sim, acho que pode ser — responde ela.

Me acomodo no sofá ao lado de Campbell, que já segura o


diário do velho John entre as mãos. Me inclino um pouco para
frente, deixando as duas taças de vinho que peguei do armário da
cozinha, e uma garrafa já pela metade na pequena mesa de centro.
— Certo — começo, enchendo as taças. — Tudo o que
sabemos sobre esse cara até agora é que ele está morto, nasceu no
final do século XIX e é bem dramático em começar seus textos.
Jessie ri um pouco assim que a entrego uma das taças,
ficando com a outra para mim. O tilintar dos cristais se encontrando
invade nossos ouvidos ao brindarmos.
Dou o primeiro gole.
— Acho que temos duas opções — continuo. — Ou a vida dele
foi incrível e ele quis deixar tudo registrado, ou não passava de um
velhote egocêntrico e narcisista que quis escrever um livro sobre si
mesmo para que ninguém jamais o esquecesse.
Jessie franze o cenho, encarando o diário em seu colo.
— Se for o caso da segunda opção, juro que vou ficar
extremamente frustrada — comenta ela, pousando cuidadosamente
a taça no braço do sofá.
Faço o mesmo com a minha.
Ainda não entendi o que fez Jessie Campbell estar tão
interessada nisso tudo, a ponto de se obrigar a vir até minha casa,
beber vinho, conversar normalmente comigo e evitar ser grosseira a
cada dois segundos. Para ser sincero, essa situação toda me
assusta um pouco.
— Certo, John — diz ela, suspirando antes de abrir as
primeiras páginas do diário em seu colo. — Por favor, não seja um
velho narcisista.
Rio um pouco, deslizando de forma hesitante pelo sofá, me
aproximando dela para ser capaz de ler as pequenas letras no
papel.
Jessie parece congelar assim que percebe quão próximos
estamos. Seu corpo todo fica tenso.
Ela pigarreia, saindo de seu transe ao se endireitar e cravar o
âmbar de seus olhos nas palavras escritas em seu colo.
Permaneço encarando seu rosto por alguns segundos,
observando seus grossos cílios e seus lábios pintados perfeitamente
de vermelho. Chacoalho a cabeça, desviando minha atenção para o
diário também.
E então, começamos a ler.

1930

Seja bem-vindo, caro leitor.


Antecipadamente, peço desculpas pela introdução um tanto
bombástica deste diário. Ainda não sei o que escrevi, mas tenho
certeza de que meu eu do futuro, e prestes a bater as botas,
caprichou na tentativa de te deixar intrigado.
Caso ele tenha esquecido de se apresentar, muito prazer. Me
chamo John Peter Jones, nasci dia 7 de fevereiro de 1895, fruto de
um casal de americanos. Estou escrevendo este texto às cinco de
uma tarde de domingo de 1930. Tenho 35 anos agora. Minha
esposa, Tandara Roche, está grávida de sete meses, esperando
pelo nosso primeiro filho.
E estou apaixonado por outra mulher.
Sim, isso é abominável, eu sei.
Cresci em uma casa onde via meu pai chegar e sair com diversas
mulheres, nenhuma delas sendo a minha mãe. Eu sempre dizia que
nunca seria como ele. Sempre repudiei seu comportamento, e
repudiava mais ainda ao ver minha mãe abaixar a cabeça e engolir
todas suas reclamações pela garganta. Ela sabia. É claro que ela
sabia. E eu me sentia furioso ao vê-la seguir com a vida
normalmente, sendo fiel a um único homem, que dividia a cama com
dezenas de mulheres por Nova York.
Nunca quis ser como ele. Nunca.
Mas aconteceu.
Há três meses, estava trabalhando na banca de jornais, com um
palito preso entre os dentes, quando a vi parar em frente à nova
floricultura do bairro, do outro lado da rua. Seus cabelos loiros
balançavam com o vento e ela tinha que segurar o vestido amarelo
florido, enquanto tentava encontrar as chaves na bolsa. Os raios
fortes do sol refletiam em sua pele branca, deixando-a idêntica a
uma pintura. Senti meus olhos brilharem na mesma intensidade em
que me senti um monstro.
Me senti um monstro por ter pensado que ela era a mulher mais
bonita que já havia visto.
Me senti um monstro por saber que era casado.
Me senti um monstro porque, por um instante, enquanto a via entrar
na floricultura e acender as luzes, me comparei com o meu pai.
Passei a observá-la todos os dias. Decorei seus horários de
chegada e de ida. Assisti a cada um dos clientes que passavam
pela porta de vidro da pequena floricultura, até identificava quando
eles iam mais de uma vez na mesma semana.
Até que um dia, um mês depois de tê-la visto pela primeira vez, meu
pior lado fez com que meus pés atravessassem a rua e fossem até
a mesma porta pela qual assisti centenas de pessoas passarem.
Assim que entrei na pequena floricultura, com incontáveis tipos de
flores diferentes, eu a vi. Sentada atrás do balcão, com as pernas
cruzadas sobre a madeira clara, o olhar focado e um exemplar de
um livro da Jane Austen nas mãos, ela me fez perceber.
Me fez perceber que eu havia acabado de me enroscar em uma
tremenda emboscada.
E quando ela levantou o olhar e suas íris azuis vieram de encontro
as minhas, juro, foi completamente impossível respirar.
— Posso ajudar? — perguntou, sorrindo ao descer as pernas de
cima da mesa. Percebi, então, que seus dentes da frente eram um
pouco separados, o que só a tornou milhões de vezes mais atraente
aos meus olhos.
Descobri que seu nome era Celeste Laurent.
Nunca tinha sentido vontade de ler Jane Austen, mas quando soube
que Celeste gostava, comprei o livro no mesmo dia.
Apenas para conhecê-la melhor. Apenas para ter a chance de entrar
minimamente em seu mundo.
Orgulho e Preconceito se tornou meu livro favorito desde então.
Nas semanas seguintes, a ajudei a fechar a floricultura todas as
noites. Nos tornamos ótimos amigos, o que foi bem perigoso.
Mas, mesmo que me sentisse o pior homem do mundo e um
monstro como o meu pai, não conseguia me afastar.
Ela costumava me olhar, e eu via a maneira como seus olhos se
apertavam, como se estivessem sorrindo. Celeste Laurent foi a
única pessoa no mundo que me olhou como se eu valesse a pena
de verdade. Como se eu fosse uma pessoa decente.
Ela passou a me visitar na banca de jornal. Às vezes até levava
flores e as colocava em um vaso com água, mesmo sabendo que eu
não cuidaria e que todas morreriam. Às vezes, ela apenas ficava lá,
em silêncio, lendo um jornal e fazendo companhia enquanto eu
trabalhava.
Até esse silencioso e simples gesto me tirava o fôlego.
Acho que essa é a verdadeira representação de estar apaixonado.
Quando o corpo sente mais do que podemos expressar em
palavras.
Nunca cheguei a encostar um único dedo em Celeste. Isso é o que
me diferencia do meu pai. Eu jamais trairia a minha esposa, mesmo
sabendo que nunca houve amor de verdade em nossa relação.
Tandara e eu estamos juntos há 14 anos e nunca falamos um
simples “eu te amo” para o outro. Seria mentira. Nós dois sabemos
disso.
Me compare com o meu pai. Me xingue de inúmeras palavras, até
mesmo as que nem sequer estão em nosso dicionário. Me chame
de cafajeste, cretino, lixo.
Me considere o vilão, se quiser.
Sinto que é o que todos fariam.
Mas antes conheça toda a minha história. Todos os meus motivos.
Saiba o que existe além da ponta do iceberg. Do meu iceberg.

— Uou — diz Jessie, arregalando os olhos. — Pelo visto ele


não é mesmo um narcisista. Só mais um cara casado que olhava
para outra mulher, tinha pensamentos impuros com ela e, ainda
assim, acreditava que isso era extremamente diferente de uma
traição física.
— Pelo menos ele sabia que não estava certo — digo, mesmo
que isso não mude nada.
— E mesmo assim aposto que insistiu no erro — responde
Jessie, voltando os olhos concentrados às páginas.

8 de dezembro de 1933, às 14 horas e 5 minutos.

Marcus Roche Jones. Esse é o nome do meu filho.


Muita coisa aconteceu nesses 3 anos, desde que escrevi a primeira
página contando sobre Celeste, Tandara, meu pai, meu filho que
ainda não tinha nascido e sobre meu coração estar atraído por outra
mulher que não a minha esposa.
Os Estados Unidos finalmente estão se levantando da Crise de 29.
E Tandara e eu chegamos a um acordo, se considerarmos o que
acabou de acontecer.
Sim, nós decidimos. Vamos passar a viver vidas separadas.
Acontece que, como disse anteriormente, nunca houve amor.
Eu tinha 17 anos quando nossos pais nos apresentaram. Meu pai e
o Senhor Roche eram parceiros de negócios. Me lembro até hoje de
ouvir os sons de suas risadas de madrugada, quando eu estava
tentando dormir e os dois não calavam a boca no escritório do
primeiro andar. Eles fumavam muito. O dia inteiro, para ser sincero.
Meu pai era um viciado. Não foi à toa que morreu por um impiedoso
câncer no pulmão.
Os dois forçavam meu relacionamento com Tandara. Acredito que,
por algum motivo, pensavam que fazer com que os filhos ficassem
juntos, conquistaria ainda mais a confiança um do outro, firmando
suas alianças nos negócios.
Sempre obedeci ao meu pai. Assim como minha mãe, eu abaixava a
cabeça e engolia as minhas reclamações. Isso me enojava. Me
sentia fraco. Impotente. Um homem adulto o suficiente para tomar
as próprias decisões, mas que continuava sendo mandado pelo pai
e servindo como marionete.
Quando fiz 21 anos, eu sabia o que aconteceria se dissesse que
não me casaria com a filha do Roche. Sabia que ele gritaria comigo
e diria que eu não me importava o suficiente com a nossa família.
Sabia que ele machucaria a minha mãe, que com certeza tentaria
me defender. Mais uma vez.
Por isso, em 1916, pedi a mão de Tandara Roche em casamento.
Pelo seu olhar na época, soube que ela também não estava nada
feliz com a situação.
Mas, como uma mulher no início do século XX, Tandara não tinha
voz alguma contra os homens de sua família.
Após a cerimônia, a encontrei chorando no jardim, sentada em um
banco em meio a inúmeras flores. Me sentei ao seu lado e prometi
que ficaríamos bem. Prometi que, apesar de não a conhecer direito,
apesar de conversar com ela por 4 anos, mas nunca ter tentado
conhecê-la de verdade, eu cuidaria dela. Não seria um monstro
como o meu pai.
E foi isso o que fiz.
Passei toda a minha vida sendo assombrado pelas memórias da
minha infância e adolescência. Das lembranças que envolviam
gritos, tapas, puxões de cabelo e vários “John, suba para o seu
quarto agora! Preciso ter uma conversinha com sua mãe”. E então
mais gritos.
Meu pai era um cretino. E eu sempre o odiei.
Nunca quis ser como ele.
Nunca fui covarde o suficiente para levantar um dedo na direção de
Tandara. Nunca saí com outras mulheres. Nunca viajei por
semanas, cheguei em casa caindo de bêbado e evitei dar
explicações para a minha esposa.
Nunca.
Acredito que foi por esse motivo que Tandara se permitiu ser minha
amiga. Acho que fui o único homem em sua vida que jamais chegou
a levantar a voz para ela.
Não estou me vangloriando disso, muito pelo contrário. Respeitar
uma mulher deveria ser considerado algo normal na sociedade.
Mas, infelizmente, homens com caráter costumam ser retratados
como heróis e príncipes encantados nas histórias. Apenas por
fazerem o mínimo.
Mesmo que nos déssemos bem, nunca fomos apaixonados um pelo
outro. Eu gostaria muito de ter conseguido. Tandara sempre foi uma
pessoa incrível, mas, pela forma como o nosso relacionamento
começou, eu sabia que não teríamos outro rumo a não ser manter
uma amizade.
Quando contei para ela sobre Celeste, há 3 anos, Tandara já previa
aonde essa situação nos levaria. Sentamos à mesa e conversamos
sobre nosso futuro. Sabíamos que nossos pais não estavam mais
nos controlando. Sabíamos que estávamos livres para decidir nossa
vida por nós mesmos. Mas decidimos continuar vivendo juntos, pelo
bem do nosso filho que nem sequer tinha nascido.
Hoje Marcus está prestes a completar 3 anos de idade. E me
orgulho ao afirmar que estou fazendo um bom trabalho como pai.
E fico feliz ao dizer que cumpri a promessa que fiz no dia do meu
casamento.
Em 17 anos, não menti para a minha esposa nem sequer uma única
vez. Cuidei dela e estive ao seu lado sempre, assim como disse que
faria. Nunca a obriguei a nada, diferente do que meu pai costumava
fazer. E mesmo estando apaixonado por outra mulher por 3 anos,
sempre fui fiel e deixei que Tandara ficasse ciente de cada um dos
meus passos.
Nós confiamos um no outro. Acho que isso é o mais importante em
um relacionamento, seja ele amoroso ou não.
Quero que Tandara seja feliz. Quero que conquiste tudo o que
sempre sonhou. Que seja uma mulher forte. Que alcance lugares
incríveis.
E que encontre o verdadeiro amor. O amor capaz de tirar o fôlego.
Quero que encontre alguém que a enxergue da maneira como
Celeste me enxerga. Não alguém que apenas a veja, mas sim que a
conheça de verdade.
Isso é tudo o que mais quero.
Tandara merece se sentir como me sinto quando estou com Celeste.
Merece se sentir como se sua essência tivesse escolhido e se
conectado a de outro alguém. Como se sua alma quisesse fazer
morada em algum coração que bate freneticamente no peito ao vê-
la.
Acho que essa é a mais genuína representação do verdadeiro amor,
no fim das contas.
Quando o corpo sente mais do que palavras podem dizer.
Por isso, ontem, enquanto nos sentávamos à mesa e
conversávamos sobre vivermos separados, eu disse tudo isso à
Tandara.
E ela disse que foi a coisa mais bonita que já ouviu na vida.

Você acabou de desmembrar um pouquinho além da ponta do meu


iceberg, querido leitor. Espero que me considere menos cretino
agora.
Ou talvez não.

— Acho que o John teve sorte, apesar de tudo — Jessie


interrompe nossa leitura. Seus olhos, que ainda permanecem fixos
no diário, estão distantes, como se estivessem percorrendo uma
longa viagem. — Mesmo depois do que passou, e mesmo que o
divórcio ainda não fosse permitido naquela época, ele foi capaz de
encontrar alguém que o olhasse como se valesse a pena. — Ela
engole em seco, como se se esforçasse para não demonstrar
tristeza. — Acho que isso nunca aconteceu comigo.
Penso em todo o tempo que passei no orfanato. Penso em
minha mãe me abandonando aos dois anos. Penso em todos os
casais que perderam o interesse em me adotar. Penso nos policiais
tentando se livrar de mim, me enviando para Phoenix o mais rápido
possível. Penso em todos os adultos que brigaram comigo na
infância, me chamando de “garotinho terrível”. Penso em Beatrice
me abandonando no altar.
Engulo saliva com dificuldade, como se fossem cacos de vidro.
— Nem comigo.
Jessie desvia o olhar até mim no mesmo instante, suas íris
transbordando a mais genuína compreensão.
— Nem mesmo Beatrice? — É o que ela pergunta.
Chacoalho a cabeça levemente.
Não é nenhuma novidade para mim que o prédio todo saiba
sobre o pé na bunda que levei. As notícias correm por aqui.
— Nem mesmo Beatrice — enfatizo, minha voz saindo baixa.
Franzo o cenho, pensativo. — Eu a amava, claro. Mas nunca foi
assim... nessa intensidade que John descreveu. Acho que nunca
senti isso na vida.
Jessie se afunda ao meu lado no sofá.
— Nem eu. — Sua voz também sai baixa, praticamente um
sussurro.
Limpo a garganta, me recostando no encosto do sofá.
— O amor é uma coisa louca. As pessoas que mais deveriam
nos amar, às vezes não estão nem aí para nós — digo, me
lembrando de minha mãe e Beatrice, a mulher a quem eu tinha
prometido a minha vida. — Às vezes, somos indiferentes para elas.
Damos tudo de nós mesmos, mas não é suficiente.
Jessie desvia o olhar, absorvendo cada uma das minhas
palavras, pensativa, como se estivesse se lembrando de algo que
encaixe perfeitamente no que acabei de dizer.
— O que tem além da ponta do seu iceberg, Kale? —
questiona ela, depois de um tempo em silêncio, o olhar distante.
A pergunta me pega de surpresa.
Me endireito no sofá, franzindo a testa, dando um fundo
mergulho dentro de mim mesmo e tentando decidir o que dizer.
— Acho que mais coisas do que você pensa.
Jessie finalmente me encara.
— Tipo, ser abandonado pela mulher com quem iria se casar?
Chacoalho a cabeça, soltando um longo suspiro.
— Tipo, ter sido abandonado pela mãe aos dois anos, ter
encontrado o pai morto aos seis, ter vivido em um orfanato em outra
cidade, onde todas as crianças te odiavam, ter assistido o seu único
amigo ganhar uma família e te abandonar ao se mudar para o outro
lado dos Estados Unidos e, sim, depois de tudo isso, ter sido
deixado para trás pela mulher que acreditava ser o amor da sua
vida, no que era para ser o dia mais importante de todos — revelo.
Jessie arregala os olhos, boquiaberta.
Meus lábios se repuxam em um sorrisinho triste quando a
encaro.
— Sua vez. O que existe além da ponta do seu iceberg, Jessie
Campbell?
Ela chacoalha a cabeça, saindo do transe no qual se enfiou.
— Nada. — Jessie pigarreia, desviando o olhar e piscando
algumas vezes. Ela pega sua taça de vinho no braço do sofá e dá
mais um gole. — Sou apenas uma garota rica do Upper East Side,
que cursa jornalismo e está interessada na história do querido John
Peter Jones.
Sei que está mentindo, mas apenas assinto e finjo acreditar
que sua história possa ser tão rasa.
Ninguém com dinheiro moraria em um prédio como o nosso.
Ninguém com dinheiro estaria no meu apartamento agora, bebendo
o vinho mais barato que tenho a oferecer.
Jessie Campbell está escondendo seu verdadeiro eu.
E pretendo descobri-lo logo, logo.
Ela se levanta, deixando o diário e a taça quase vazia sobre a
mesa. Se virando para mim, me olha nos olhos, parecendo um tanto
nervosa.
— Nos encontraremos amanhã no mesmo horário?
Assinto.
— Ótimo — diz ela.
A sola de seus coturnos pretos bate contra o piso assim que
ela caminha até a porta e deixa meu apartamento, levando parte da
minha história junto de si.
Sou invisível aos olhos de todos quando entro na Charlotte.
Como sempre, todos aqui parecem furacões furiosos e
agitados. Como se pudessem arrastar cidades inteiras e arrancar
florestas da terra, eles carregam inúmeros papéis ao atravessarem
os corredores em passos apressados, escrevem com os dedos
rápidos em seus teclados e discutem diversas pautas nas salas de
reuniões, por trás das paredes de vidro.
A correria para finalizar a edição do próximo mês toma conta
do ambiente por inteiro.
Me aproximo da mesa de Eve, que se localiza no meio do
andar e é cercada por inúmeras outras exatamente iguais, e deixo
minha bolsa sobre a estrutura de madeira clara. Minha melhor
amiga desvia os olhos da tela de seu computador, abrindo um
sorriso gigante ao me ver.
— Gostei do vestido. — É a primeira coisa que diz, se
referindo à primeira peça de roupa preta que encontrei no guarda-
roupa.
Eve Wade está linda, como sempre. Sentada em sua
confortável cadeira de rodinhas, seus cabelos castanhos até a altura
do queixo e sua franja reta estão mais brilhosos do que de costume.
Ela veste um blazer alfaiataria verde esmeralda, que combina
perfeitamente com a calça alfaiataria da mesma tonalidade e os
saltos pretos.
— Abigail ainda não chegou — Eve se apressa em dizer,
cruzando as pernas. — Não sei por que, mas ela se atrasou. Você
ainda tem mais alguns minutos de paz.
Suspiro, lançando uma rápida olhada até as paredes de vidro
que protegem a sala da editora-chefe, verificando a poltrona roxa
vazia.
— Espero que não tenha que consertar mais nenhuma
impressora hoje — comento, voltando a encarar Eve.
Um sorrisinho se curva em seus finos lábios rosados.
— Cruzarei os dedos por você.
Reviro os olhos de brincadeira, estendendo um de meus
braços e puxando uma cadeira vazia na mesa ao lado, arrastando
as rodinhas pelo chão.
— No que está trabalhando? — pergunto, me jogando na
cadeira, com o olhar focado no monitor de Eve.
— Estava apenas revisando uma matéria para a próxima
edição do digital — ela explica, movimentando o mouse e descendo
um longo texto.
Me inclino um pouco para frente, curiosa.
— Sobre o que é?
— Uma mulher chamada Tiffany Maia — conta. — Ela tem
feito vários resgates de animais maltratados pela cidade. Abigail me
pediu para entrevistá-la no começo do mês.
— Que incrível — comento. — Quando tem que estar pronto?
Eve endireita a postura.
— Hoje. Mas já acabei. Tenho um compromisso no fim da
tarde — diz com os olhos focados no monitor. — E à noite.
Franzo o cenho.
— Que compromisso?
Minha melhor amiga finalmente me encara, abrindo a boca
para responder, mas é interrompida.
— Bom dia, equipe! — grita a voz muito conhecida por mim.
Fecho os olhos e solto um longo suspiro, me preparando para
o dia cansativo que sei que está por vir.
— Me atrasei. Desculpe — fala Abigail. — Tive um
probleminha no hotel dos meus filhinhos. Precisei trazê-los aqui.
Abro os olhos e giro minha cadeira, me virando para minha
chefe, que permanece parada em frente à porta. Todos os olhares
do nosso andar estão cravados nela.
E nos dois cães que segura pela coleira.
Cães. Abigail trouxe dois cachorrinhos para a Charlotte.
— Meu Deus... — sussurra Eve, atrás de mim.
A editora-chefe sorri ao perceber que todos os olhos estão
dando atenção aos seus filhinhos.
— Espero que sejam receptivos — diz ela, antes de sair
desfilando até sua sala.
Quando a porta de vidro bate, os burburinhos começam por
todos os cantos.
— Ótimo — digo, me levantando da cadeira em um pulo. Me
viro para Eve. — Pelo visto, hoje será um longo dia.
— Espero que nenhum deles faça xixi no seu pé. — Ela franze
os lábios, se esforçando ao máximo para não rir.
Abro um sorrisinho forçado, erguendo o dedo do meio para ela.
De repente os burburinhos cessam. As pessoas que tinham se
levantado correm de volta para suas mesas, como se tivessem sido
pegas no flagra. O ranger de cadeiras sendo arrastadas ecoa por
todos os lados.
Me viro, vendo Abigail deixar sua sala com um grande sorriso
no rosto e agarrando a coleira com uma das mãos, trazendo os dois
Pugs junto de si.
Os pequenos animais de estimação desfilam com a língua
para fora, ao lado da dona.
Os olhos de Abigail me encontram e sinto vontade de cavar um
buraco sob meus pés e desaparecer no mesmo instante.
Eve pigarreia, se endireitando na cadeira, levando a mão ao
mouse e fingindo estar concentrada na tela do computador, assim
como todos os outros escritores.
— Bom dia, Jessie — diz minha chefe. — Eve. — Ela lança um
aceno de cabeça para a minha melhor amiga, que retribui sem
hesitar.
— Bom dia, Abigail — respondo.
Ela continua encarando Eve, que parece congelar na cadeira.
Os lábios rosados de Abigail se moldam em um sorrisinho.
— Como está sua agenda hoje, Wade? Conseguiu terminar a
matéria sobre Tiffany Maia?
Eve assente quase no mesmo segundo, parecendo um pouco
nervosa.
Acho que esse é o efeito que Abigail causa nas pessoas, no
fim das contas. Com sua postura perfeita e os olhos afiados, ela
transparece um poder sobrenatural, como se pudesse pisar na
garganta de qualquer um que não a respeite ou a obedeça.
— Ótimo — diz. — Preciso que faça mais uma coisa para a
próxima edição do digital.
— Tudo bem — concorda Eve. — E o que seria?
Abigail se vira, apontando para a mesa de Bob. Bebendo um
suco de maçã de caixinha, ele congela ao ver que o indicador da
editora-chefe está apontado em sua direção.
— Você substituirá o trabalho do Bob. — Abigail recolhe o
dedo, relaxando o braço ao lado do corpo novamente. — Ele não vai
conseguir terminar a matéria sem graça sobre os peixes-bois a
tempo. — Seu tom exala a mais pura desaprovação.
De sua mesa, o semblante de Bob se transforma em triste. Ele
afasta o canudinho dos lábios de forma dramática, como se tivesse
atingido o fundo do poço.
— Mike me disse que conseguiu entrar em contato com Blaine
Grayson, um boxeador de San Francisco — conta Abigail, focando
seus olhos em minha melhor amiga novamente. Um vinco
concentrado se forma na testa de Eve. — Ele está disposto a nos
dar uma entrevista sobre as aulas gratuitas que tem dado a
adolescentes de baixa renda. Disse que pode até mesmo vir para
Nova York, se necessário. Ao que parece, a mãe dele mora aqui. —
Ela inverte a coleira de mão. Percebo que os cães estão
comportados, sentados ao lado dos saltos vermelhos e gigantes da
dona. — Blaine acabou de ganhar uma luta importante contra Louis
Scott. Os internautas estão comentando muito sobre ele e sua
performance excepcional. Tê-lo na próxima edição do digital seria
maravilhoso para a Charlotte.
Eve pisca, processando toda a informação.
— Certo — diz, enfim. — Mas por que você...
Abigail volta a sorrir.
— Por que estou confiando essa matéria a você? — pergunta.
— É simples, Wade. Gosto do seu trabalho. Você é rápida e
detalhista. E é disso que preciso agora.
Os olhos castanhos de Eve brilham como nunca antes. Ela
engole em seco, fazendo sua surpresa e nervosismo deslizarem
pela garganta.
— Tudo bem. Obrigada pela confiança. Darei meu melhor.
Abigail dá um breve aceno de cabeça.
— Eu sei que sim.
Sinto meus músculos congelarem quando ela se vira em minha
direção. Seu semblante se transforma assim que seus olhos se
conectam aos meus.
— Você tem alergia a cães, Campbell? — pergunta.
Nervosa, chacoalho a cabeça em negação, já prevendo o que
está prestes a acontecer.
— Não. Só a gatos.
— Ótimo. — É tudo o que Abigail diz ao me entregar a coleira
de seus cachorrinhos e dar as costas, seguindo o caminho de volta
para a sua sala.
Fedido e Cheiroso.
Esses são os nomes horríveis que, segundo Abigail, a sua
sobrinha de 8 anos escolheu para dar aos Pugs.
A mesma sobrinha que teve um problema e precisou que
Abigail fosse buscá-la na casa de praia dos pais da amiga, que fica
a sei lá quantas horas de Nova York. A mesma sobrinha que fez
com que a editora-chefe pedisse para eu cuidar de Fedido e
Cheiroso durante a noite inteira, pois ela teria que acudi-la.
Não sei quem essa garotinha é, mas sei que a considero uma
das poucas pessoas que tenho coragem o suficiente para adicionar
à minha listinha de ódio.
A porta dupla metálica do elevador se abre à minha frente.
Puxo os cães pela coleira ao sair, gritando com Fedido, que tenta
erguer a perninha para fazer xixi na parede do corredor.
— Aqui não é lugar! — brigo.
Levo-os pelo corredor do sexto andar, a caminho do
apartamento de Kale. Com a mão livre, puxo meu celular do bolso
de trás da calça jeans, bufando ao perceber que estou 15 minutos
atrasada.
Odeio atrasos.
Quando chego em frente à porta com o número 67 pregado a
ela, tateio a parede, afundando dois dedos na campainha.
Sinto quando Cheiroso deita em cima de um dos meus pés.
Segundos depois, a porta se abre. Kale franze o cenho ao
deslizar os olhos por mim e se deparar com dois pequenos cães em
minhas botas.
— O que... — começa ele, chacoalhando a cabeça, como se
tentasse se certificar que está mesmo vendo o que está vendo.
— São da minha chefe. Ela pediu que eu cuidasse deles —
explico, mordendo o lábio inferior, um tanto apreensiva. — Tem
algum problema se eles ficarem aqui?
Quando penso que Kale irá hesitar para responder ou tirar um
tempo para pensar, ele me surpreende ao dizer no mesmo instante:
— Claro que não! Adoro cães.
Abro um sorrisinho que nem sequer tento esconder.
Não sei o que faria com eles se Kale não os deixasse entrar.
Ele se afasta um pouco da porta, dando espaço suficiente para
que eu e a dupla com nomes combinando entremos.
— E como vocês se chamam, hein, amiguinhos? — Howard se
agacha no chão, mudando o tom de voz ao fazer carinho na cabeça
de um dos cães.
Fecho a porta atrás de mim.
— Fedido e Cheiroso — digo, me esforçando ao máximo para
conter a risada.
Kale levanta o rosto no mesmo instante, e seus olhos
divertidos encontram os meus, como se estivessem duvidando que
esses sejam mesmo os nomes deles. Quando a ficha cai e ele
percebe que estou falando sério, inclina a cabeça para trás e
começa a rir.
Uma risada breve e rouca, gostosa de escutar.
Sorrio também.
Só então percebo que os fios castanhos do cabelo de Howard
estão mais bagunçados do que o normal, o que o deixa mil vezes
mais atraente.
Mordo a língua.
— Certo, Fedido e Cheiroso — diz ele, passando a mão pela
última vez na cabeça dos dois antes de se levantar. — Vou buscar
água para vocês.
Kale segue em direção à cozinha integrada à sala. Ele para em
frente à pia, levantando um dos braços e alcançando uma pequena
tigela no armário do alto. A barra da sua camiseta branca e lisa sobe
um pouco à medida que seu braço se ergue. Uma pequena faixa de
pele fica exposta, assim como o cós baixo de sua larga calça de
moletom, que expõe o cós de uma boxer preta.
Desvio o olhar imediatamente, sentindo minhas bochechas
esquentarem.
Cheiroso se deita novamente em um dos meus pés.
Fedido rodeia uma de minhas pernas, dando duas voltas com
a coleira. Resmungo, começando a me soltar.
— Quer alguma coisa, Jessie? — pergunta Kale, ainda da
cozinha. Ouço o tilintar de alguns copos e pratos.
— Não, obrigada. — Finalmente me solto, lançando um olhar
afiado para Fedido, que se senta, coloca a língua para fora e me
olha como se estivesse rindo da minha cara.
— Brandon está no The Rock’s, trabalhando ainda — conta
Howard, se aproximando. Ele deixa duas tigelas de cerâmica sobre
o piso, próximas à parede. Fedido e Cheiroso correm até elas no
mesmo instante, respeitando o espaço um do outro. — Ele disse
que deve chegar daqui a pouco, já que o encontro que teria hoje foi
cancelado. — Kale move seus olhos esverdeados até mim. — Vai
trazer asinhas de frango para o jantar. Pode ficar para comer, se
quiser.
— Seria ótimo. — Nem sequer hesito. Estou exausta, sem a
menor vontade de preparar o jantar ao chegar em casa. E quebrada.
Sem dinheiro para gastar em aplicativos de comida.
Kale fica um pouco surpreso pela minha resposta imediata,
mas sorri.
— Ótimo — diz. — Vamos continuar de onde paramos ontem?
Acho que Fedido e Cheiroso ficarão bem, sozinhos por alguns
minutos.
Assinto.
Howard segue em direção ao sofá. Me agacho para tirar a guia
dos Pugs, deixando-a sobre uma mesinha de vidro redonda,
juntamente a minha bolsa.
Quando me sento ao lado do Kale, ele já está com o diário do
velho John nas mãos.

2 de agosto de 1935, às 9 horas e 10 minutos.

Seus olhos azuis como o oceano me trazem uma paz surreal. Uma
sensação incrível que jamais senti em toda a minha vida. Seus
cabelos loiros me lembram dias ensolarados, quando crianças
costumam brincar nas ruas e se lambuzar de sorvete de chocolate,
deixando a boca e as mãozinhas grudentas.
Os traços de seu rosto angelical são como uma pintura
encantadora, a qual eu poderia passar horas analisando, sem
jamais me cansar.
Celeste é uma obra de arte. Ela inteira é a mais perfeita combinação
que já existiu neste mundo.
E eu sou o homem mais sortudo por tê-la ao meu lado.
Estamos juntos há pouco mais de um ano.
Depois que eu e Tandara resolvemos seguir caminhos distintos,
pude finalmente me declarar para Celeste. Contei a ela que já
estava apaixonado havia um bom tempo. Disse que, a partir do
primeiro momento que meus olhos a viram, quando ela procurava
pelas chaves para entrar em sua floricultura, há 5 anos, eu soube
que meu coração já pertencia inteiramente a ela. Contei sobre toda
a situação com Tandara, sobre todos os motivos que me fizeram
demorar para me declarar e admitir que a amava.
Ela entendeu tudo perfeitamente.
Passei alguns meses tentando conquistá-la, tentando mostrar que
estava pronto para ser seu companheiro para o que der e vier.
Celeste, assim como outras mulheres que conheço, assim como a
minha própria mãe, já teve o coração muito machucado por um
homem.
Estamos muito felizes desde então. Juntos.
Tandara também está.
Tenho falado com ela frequentemente, já que visito Marcus pelo
menos três vezes por semana. Ele, com seus quase 5 anos de
idade, uma energia sem fim e viciado em balas coloridas, foi o que
mais sofreu com a mudança.
Eu e Tandara nos esforçamos para demonstrar que está tudo bem,
que tínhamos de seguir caminhos diferentes e que, apesar de tudo,
ainda somos ótimos amigos, mas para Marcus está sendo difícil se
adaptar. Acho que para toda criança é, de certa forma.
Tandara está se encontrando com Joseph Clifford, um banqueiro
local. Ele é um bom homem. Ela parece estar feliz, o que me deixa
contente também.
Na semana passada, fomos a um jantar de casais. Marcus foi
também, obviamente. Ele se sentou na ponta da mesa.
Foi um jantar bem agradável.
Até Marcus começar a fazer perguntas.
— Por que todos os meus amigos têm pais que moram juntos e eu
não? — Foi a primeira delas.
— Por que Jossua sai para jantar com os pais e eu tenho que sair
com vocês quatro? — Foi a segunda.
Tandara se inclinou na mesa, fazendo com que seus cabelos
escuros chacoalhassem um pouco, e abriu um sorriso nos lábios,
explicando, com toda a calma do mundo, para nosso filho.
— Querido, às vezes as coisas são complicadas — ela disse,
pousando a mão sobre a mãozinha de Marcus, apertando-a de leve.
— Mas o importante é que todos estamos felizes agora, certo?
Me senti aliviado quando nossos pratos chegaram e Marcus
esqueceu de continuar com as perguntas, ficando extremamente
entretido com seu macarrão.
Antes de irmos embora, tentei abraçá-lo.
Ele desviou e saiu correndo para os braços do Joseph.

18 de março de 1936, às 16 horas e 22 minutos.

Celeste e eu nunca estivemos tão apaixonados.


Estar ao lado dela é como mergulhar em um oceano de felicidade e
calmaria sem fim.
Há dois meses, abandonei a banca de jornais para ajudá-la a
gerenciar a floricultura. Celeste não gosta de ter muitos funcionários,
então somos apenas nós dois, atendendo a inúmeros clientes.
O movimento nunca esteve tão bom.
Na semana passada, enquanto fechávamos as portas, perguntei a
ela o porquê de ter decidido ser florista. Ela abriu um sorriso gigante
no rosto, mostrando aqueles dentinhos separados que tanto amo, e
disse:
— Sou apaixonada por flores desde criança. Sinto como se cada
uma delas, com suas cores apaixonantes, seus diferentes tamanhos
e formas, fossem minhas melhores amigas. — Seus olhos
brilharam, exalando paixão, como se falar sobre o assunto fosse sua
atividade favorita no mundo inteiro. — Costumava ter um jardim na
infância. Cuidava dele como cuidava de mim mesma. — Ela pegou
um vaso de rosas de uma das prateleiras, estendendo-o em minha
direção. — Flores têm o poder de transformar, John. Elas me
salvaram quando estava afundada em um dos momentos mais
difíceis de toda minha vida. Curaram minhas mais profundas
cicatrizes.
Sorri, me sentindo, mais uma vez, completamente encantado por
aquela mulher. Me aproximei de Celeste, tirei o vaso de suas mãos,
o coloquei de volta no lugar e a beijei apaixonadamente.
Percebi, então, que se flores possuíam mesmo o poder de
transformar pessoas e curar cicatrizes, Celeste Laurent era minha
flor. A mais bonita de todo o jardim.

9 de julho de 1938, às 7 horas e 3 minutos.

Ela é uma mulher 8 anos mais nova do que eu.


Nascida em Dallas, no Texas, em 1903, Celeste vivia com seus pais,
dois americanos bondosos e honestos, de acordo com o que diz.
Celeste tinha uma irmã mais velha. O nome dela era Sindra Houlf
Laurent. Com seus 2 anos de diferença, as duas se consideravam
melhores amigas.
Sindra faleceu de uma doença aos 10 anos, em 1911.
Essa é a maior cicatriz que Celeste carrega até hoje.
Ontem, fechamos as portas da floricultura mais cedo e decidimos
caminhar pela cidade. Quando nos demos conta, já estávamos
entrando no Central Park.
Celeste, como eu imaginava, ficou encantada com o colorido das
flores e o verde das árvores. Nos deitamos à sombra de uma delas,
a qual era rodeada por pequenas e lindas flores amarelas.
Ri quando Celeste começou a conversar com a árvore como se esta
fosse uma pessoa de verdade. Ela a batizou de Florescer, pois disse
que, mesmo que as flores amarelas ao redor dela pudessem ofuscar
sua beleza para os outros, Celeste ainda era capaz de enxergar
todo o encanto que o marrom do seu largo tronco e o verde das
suas folhas carregavam.
Me encostei no tronco de Florescer e Celeste deitou a sua cabeça
em meu peito.
Nunca fui do tipo de pessoa que gosta de questionar sobre a vida
dos outros. Acredito que nosso passado não deve ter a função de
definir quem somos, apenas o presente. Nunca gostei que
perguntassem sobre minha história, o que chega a ser irônico, já
que agora estou escrevendo um diário sobre isso.
Na infância, quando meus colegas me perguntavam por que não
podiam visitar minha casa, eu sempre inventava uma história.
Nunca dizia a verdade. Nunca disse que meu pai agredia minha
mãe. Nunca disse que, todas as noites, eu precisava tapar os
ouvidos com as mãos para não ouvir o ranger dos móveis se
arrastando, o barulho dos vasos e copos se estraçalhando e os
gritos de raiva do meu pai.
Acho que peguei trauma por precisar inventar desculpas do tipo
“minha mãe está doente e é contagioso”, “meu cachorro faleceu e
estamos todos tristes”, “meu pai está muito ocupado hoje, acho
melhor deixarmos para outro dia”. O outro dia nunca chegou.
Porque meu pai só deixou de bater em minha mãe quando faleceu.
Mas ontem, deitado na sombra de Florescer, fazendo carinho nos
cabelos loiros e macios de Celeste, perguntei sobre seu passado.
E ela me contou sobre Sindra.
Seus olhos chegaram a ficar marejados, como se lágrimas
pudessem escorrer por suas bochechas a qualquer momento. Mas
Celeste engoliu o choro e afirmou que estava tudo bem.
— Transformei minhas cicatrizes em flores — disse, com um
sorrisinho marcando os lindos lábios.
E então eu a beijei.
E fiquei surpreso com o forte sabor de cigarro que havia em sua
boca.

— Fedido! — grita Kale, se levantando abruptamente do sofá,


fazendo com que eu me sobressalte assustada.
Ouço quando a porta atrás de nós se abre.
— Mas eu tomei banho hoje! — grita a nova voz que invade a
sala.
Atordoada, intercalo o meu olhar entre Kale, que está correndo
atrás de Fedido, que parece ter acabado de levantar uma das
perninhas traseiras e fazer xixi na cortina, e Brandon, que
permanece parado em frente à porta, segurando uma sacola branca
com a logo do The Rock’s.
— Você não pode mijar na cortina! — grita Kale.
Fedido senta no chão e o encara, com a língua para fora e o
mesmo olhar debochado de sempre.
— Por que caralhos tem dois cachorros na minha casa? —
pergunta Brandon, franzindo o cenho. Ainda em frente à entrada,
seus olhos atordoados deslizam pelo ambiente.
Cheiroso pula no sofá, girando em volta do próprio rabo antes
de se acomodar onde Howard estava há alguns segundos.
— Porque eles são da idiota da minha chefe! — Bufo, me
levantando. Encaro Kale, que dirige seu olhar até meu rosto no
mesmo instante. — Sinto muito. Só me diz onde estão os produtos
de limpeza, que eu limpo o chão e a cortina.
Ele nega com a cabeça no mesmo instante.
— Pode deixar que o Brandon limpa.
Lanço um olhar para Houston, que parece indignado.
— O quê? — berra ele.
— Cadê a sacola com o molho que eu pedi? — pergunta Kale.
Brandon se encolhe um pouco, ciente de que esqueceu.
Howard começa a caminhar até o amigo.
— Pois é, Houston, trate de trazer o seu rabo para dentro
deste apartamento e buscar um esfregão. — Ele puxa a sacola com
as asinhas de frango, abrindo um sorrisinho angelical ao fitar os
olhos do ruivo. — Essa é sua punição. Ninguém jamais deve
esquecer meu molho.
— Jessie Campbell tem uma queda por você. — É o que
Brandon diz, às 10:30 da manhã, apoiando os cotovelos no balcão
que estou limpando.
Bufando, ergo meus olhos até o rosto do ruivo, que esboça um
sorrisinho.
— Não, ela não tem.
Brandon ri um pouco.
— Sim, ela tem — garante, como se tivesse toda a certeza do
mundo. — E você também tem por ela.
— O quê? — praticamente berro, no mesmo instante.
O maldito sorriso no rosto do meu melhor amigo dobra de
tamanho. Cerro os punhos sobre o mármore do balcão, olhando ao
redor e vendo que meu quase grito chamou a atenção de vários
clientes que ocupam as mesas do The Rock’s e tentam tomar seu
café da manhã em paz, sem que nenhum dono louco de uma
lanchonete os atrapalhe.
Volto a encarar Houston.
— Por que sua resposta foi tão rápida, Howard? Toquei na
ferida, não foi? — ele provoca, seus olhos praticamente
gargalhando da minha cara.
Sinto vontade de chutá-lo.
— Isso é um absurdo! — digo, usando um tom normal agora.
— Brandon, ela me odeia. Você sabe muito bem disso. Mais do que
ninguém, para ser sincero. Estava comigo em todas as vezes que
Jessie Campbell tentou fazer com que o síndico nos desse uma
multa.
Guardo o pano que estava usando para limpar o mármore.
Brandon respira fundo, puxando um dos banquinhos ao seu lado
para se sentar.
— Olha, Howard — volta a apoiar os cotovelos no balcão,
entrelaçando uma mão na outra —, você nunca assistiu a comédias
românticas?
Franzo o cenho.
— É claro que já. Beatrice era louca por filmes assim.
— Então! — Brandon gesticula com as mãos, me encarando
como se esperasse que eu entendesse onde está querendo chegar.
— Do que é que você está falando? — questiono, tão confuso
quanto antes.
O ruivo revira os olhos.
— Enemies to lovers, Kale! — ele continua. — Duas pessoas
que se odeiam, e que no fundo são loucas uma pela outra. — Meu
melhor amigo faz mais um gesto com as mãos, como se já estivesse
óbvio desde o início que rumo seu pensamento tomaria. — Jessie
Campbell tem uma queda por você. Ela só não quer admitir.
Quase rio.
— Você só pode estar brincando, não? — pergunto. — Por
Deus, Houston, isso não existe na vida real! É por isso mesmo que
colocam nos filmes. — Apoio meus cotovelos no mármore também,
me aproximando mais de Brandon. Meus lábios se repuxam para
cima. — É por isso que se chama ficção, seu idiota! — Acerto um
tapa na nuca dele.
— Ai! — reclama, levando uma das mãos à nuca. Brandon me
encara com um semblante indignado. — Só estou falando isso
porque vi, seu imbecil!
— E o que você viu?
— Ontem, depois que tive que limpar xixi de cachorro e fomos
jantar — começa ele. — Campbell te encarava como se quisesse se
jogar em você.
Reviro os olhos, me esforçando para não bufar.
— Tudo bem, Houston. — Estalo a língua no céu da boca. —
Eu sei o que está acontecendo aqui.
Ele arqueia uma sobrancelha.
— Ah, é?
— É — respondo. — Você está preocupado porque está quase
namorando e está feliz, enquanto eu acabei de levar um pé na
bunda. — Brandon abre a boca para me interromper, mas ergo uma
palma da mão no ar e o peço para esperar. Ele obedece. — De
verdade, não precisa se preocupar com isso. Estou bem. É sério.
Nem tenho mais pensado em Beatrice ou Peter com frequência.
Estou seguindo em frente, cara. Não preciso que fique inventando
histórias para me confortar ou tentar me empurrar para outras
garotas. Quando chegar o momento certo, eu mesmo farei isso.
— Não estou...
— Brandon — o interrompo —, você acabou de insinuar que
Jessie Campbell, nossa vizinha ranzinza, sua antiga amiga, a
mulher que sempre está reclamando dos nossos barulhos às dez da
noite e ameaçando nos dedurar para o síndico, tem uma queda por
mim.
— Sim, mas é porque...
— Ela me odeia!
— Ela estava na nossa casa ontem, Howard!
— Isso não muda nada!
— É claro que muda!
— Jessie está interessada no diário do John Peter Jones —
explico. — Estava lá apenas por esse motivo.
Ele revira os olhos, bufando ao desistir.
Brandon se levanta.
— Aposto 100 dólares que em menos de três semanas você e
Jessie estarão perdidamente apaixonados.
Faço uma careta.
— Não, você não aposta. Seria babaquice.
Ele revira os olhos mais uma vez.
— Tudo bem, mas depois, quando você admitir que eu tinha
razão desde o início, vou apontar o dedo na sua cara e dizer “eu te
avisei!” — fala, aproximando o indicador do meu rosto, abaixando o
tom de voz à medida que deixa a ameaça no ar.
Afasto sua mão.
Meu melhor amigo é um idiota.
— Você não tem nada melhor para fazer, não é? Nem uma
mesa para atender? Uma louça para lavar? Uma cliente para pedir o
número e levar um fora?
Brandon me encara como se estivesse ofendido.
— Diferente de você, Kale, já tenho alguém. Não preciso mais
receber foras.
Rio um pouco, voltando a pegar o pano para continuar
limpando os balcões.
— Certo, garanhão, mas, caso você não saiba, somos os
donos deste lugar. — Abro um sorrisinho. — E temos funcionários
para pagar. Então, se eu fosse você, daria meia volta, pararia de
encher meu saco e iria fazer alguma coisa que preste.
— Por que mesmo te escolhi como meu melhor amigo? —
pergunta ele.
Rio.
— Já falamos sobre isso — digo. — Porque sou uma das
únicas pessoas no mundo que conseguem te suportar.
— Ah, é.
Em um gesto que esbanja a mais pura e genuína maturidade,
Brandon Houston mostra o dedo do meio para mim antes de se
afastar, atravessando o piso quadriculado do The Rock’s.
Empurro a porta dupla de vidro da Easton University,
segurando a pequena pilha de livros e cadernos fortemente contra o
peito, a impedindo de cair no chão e atrapalhar o grande fluxo de
alunos que saem apressados de suas salas.
Revestido por blocos de tijolos avermelhados e localizado no
centro de Nova York, o prédio da minha universidade é minúsculo
comparado aos tamanhos que elas costumam ter. A NYU, por
exemplo, dá de um bilhão a zero na Easton. Isso se tratando apenas
da estrutura. Se formos levar em consideração o suporte que os
estudantes recebem e o ensino, acredito que bilhões se tornariam
números pequenos.
A verdade é que na escola, nunca fui uma aluna muito
esforçada. Para mim, qualquer nota na média já estava de bom
tamanho. Também nunca fui boa o suficiente em nenhum esporte, o
que dificultou muito que uma bolsa de estudos caísse em minha
cabeça. Então, depois que meus pais cortaram meu dinheiro,
disseram que nunca mais me dariam um único dólar sequer e
praticamente me chutaram para fora de casa, tive que dar um jeito
de financiar meus estudos sozinha, como uma adulta de verdade.
Acontece que, com o salário péssimo que recebo na Charlotte,
trabalhando loucamente como assistente, a Easton foi a melhor e
uma das únicas opções que tive. Além de ter uma mensalidade mais
em conta, a Easton University também se localiza próxima ao meu
prédio, o que me possibilita correr até ele sempre que preciso.
O que é ótimo, se levarmos em consideração a chefe que
tenho.
Acredito que Abigail tenha um certo problema em entender
meus horários, já que mal saí da aula e ela já está me ligando.
Meus pés param no meio-fio, e, com dificuldade por estar com
uma das mãos cheias de livros, saco o celular do bolso de trás da
calça jeans que estou usando, o levando até a orelha em seguida.
Sentindo que os materiais estão prestes a cair, equilibro o celular no
ombro e volto a agarrá-los com as duas mãos.
— Boa tarde, Abigail! — digo, me esforçando para manter uma
voz animada e cheia de energia.
— Boa tarde, Campbell. — Diferente de mim, a editora-chefe
não se dá ao trabalho de usar um tom contente. Sua voz sai tediosa.
— Já saiu da aula, certo? Eu sei. Preciso de um favor.
Pisco algumas vezes, observando os carros que passam
velozes à minha frente.
Minha barriga ronca, me lembrando de que ainda nem sequer
almocei.
— Cla-claro — digo enfim.
Do outro lado da linha, ouço o ranger de uma cadeira se
arrastando pelo piso. Imagino que Abigail tenha se levantado.
— Não consigo sair da Charlotte. Marquei um horário com o
Bob. Vou demiti-lo — diz na maior naturalidade do mundo. — Suzzie
Veronica, minha sobrinha, está saindo da escola agora. Fiquei de
buscá-la, mas, como já disse, não vou poder deixar a revista.
Franzo a testa, confusa e ao mesmo tempo com medo do
rumo que toda essa história tomará.
— Certo.
— Você vai buscá-la — fala Abigail, como se fosse uma
ordem. — Vou te mandar o endereço por mensagem. Pegue um táxi
e a leve para almoçar em algum lugar que você conheça. Depois,
traga-a para a Charlotte. Mike quebrou a impressora de novo. Ao
que parece, ele é um imprestável e precisa de você mais uma vez.
Pisco de novo, atordoada.
Ela quer mesmo que eu leve sua sobrinha de 8 anos para
almoçar?
Ouço Abigail bufar, impaciente.
— Fui clara o suficiente, Campbell?
Chacoalho a cabeça, saindo de qualquer que tenha sido o
transe que me enfiei.
— Foi... — Pigarreio ao perceber a voz falha. — Sim. Foi clara
como água.
— Ótimo — responde ela, usando a mesma voz fria e
tenebrosa de sempre. — Te vejo em duas horas.
E, simples assim, Abigail desliga a ligação.
Paralisada no meio-fio em frente à universidade, os infinitos
bipes do outro lado da linha são tudo o que consigo escutar.
Me esforçando para não deixar a frustração me dominar por
completo, afasto o celular do ouvido, o guardando de volta no bolso
de trás da calça. Endireito a postura, me recompondo ao abraçar,
ainda mais, meus livros e cadernos contra o peito e estender um
dos braços em direção à rua, chamando um táxi.
Meus lábios se moldam no sorriso mais falso que sou capaz de
carregar.
Acredito que agora, infelizmente, minha chefe não me
enxergue mais apenas como uma simples assistente que só serve
para comprar cafés caros e consertar as impressoras que pessoas
burras têm o hábito de quebrar.
Mas sim, como sua babá particular.
Jessie Campbell, a antiga garota rica do Upper East Side que
abandonou uma vida infeliz para se tornar mais infeliz ainda.
Parece o tipo de história pela qual meus pais e seus amigos
pagariam para assistir e dar boas risadas.

Suzzie Veronica é o completo oposto de sua tia.


Com lisos cabelos ruivos, a pele pálida, fortes sardas
salpicando a ponta do nariz e as bochechas, usando um vestido cor-
de-rosa cheio de babados e sendo a proprietária de uma mochila e
lancheira da Barbie Butterfly, ela é a garota mais elétrica que já vi na
vida.
— Você é bem bonita, sabia? — comenta pela décima vez,
trazendo seus grandes olhos castanhos até os meus.
Abro um sorrisinho.
— Obrigada. Você também é linda.
— É sério — enfatiza, balançando os pés com sapatilhas
vermelhas que não alcançam o chão do táxi. — Você namora?
Solto um fraco riso.
— Não, eu não namoro.
Suzzie estala a língua no céu da boca.
— Que pena. — Ela parece genuinamente chateada. — Se
você namorasse, a pessoa teria muita sorte.
De repente sinto vontade de me tornar melhor amiga dessa
garota.
Como alguém assim pode ter o mesmo sangue que Abigail
correndo pelas veias?
— Obrigada — agradeço mais uma vez, ainda com o
sorrisinho estampado no rosto.
O taxista faz mais uma curva pelas ruas de Nova York.
Suzzie desvia o olhar para a janela ao seu lado.
— Eu namoro — diz ela.
Quase engasgo.
— Você namora?
Seus olhos vêm de encontro aos meus novamente. Uma
expressão séria marca seu rosto fofo e angelical.
— Sim. Você deve conhecer — comenta a menina de 8 anos.
Franzo o cenho. — O nome dele é Harry Styles.
Uma risada me escapa.
— Sinto muito por te perguntar isso, Suzzie, mas você não
acha que ele é meio velho demais para você?
Ela dá de ombros, fazendo com que um lado da fina alça do
vestido cor-de-rosa escorregue um pouco. Suzzie não perde tempo
para arrumá-la, levando os dedinhos ágeis até o tecido fino.
— Talvez — diz, indiferente. Noto quando ela intercala o olhar
entre o taxista, sentado no banco do motorista, com as mãos firmes
no volante, e eu. — Para onde estamos indo, Jessie?
— Para a lanchonete de dois amigos meus — respondo,
apesar de não ter certeza se posso chamar Brandon e Kale assim.
— Sua tia me pediu para te levar para comer alguma coisa. Espero
que goste de hambúrguer.
O rosto de Suzzie se irrompe no maior sorriso.
— Eu amo! — ela diz. Seus olhos brilham, como se estivesse
extremamente animada.
Preciso me conter para não a abraçar e ter um ataque de
fofura aqui mesmo.
— Ótimo.
Suzzie desvia a atenção para o taxista, balançando os pés
mais rápido no ar, fazendo um som oco assim que eles batem
contra o estofado de couro do banco da frente.
— Motorista, falta muito tempo para chegar? — É o que ela
pergunta.
O taxista solta um riso fraco. Ele já deve estar com os ouvidos
atentos e prestando atenção na garotinha falante há um bom tempo.
— Não muito. Faltam apenas alguns minutinhos. — É o que a
sua voz rouca, resultado de anos como fumante, responde, com
toda a paciência do mundo.
Suzzie parece se alegrar ainda mais.
— Qual é o seu nome?
— Klaus — ele diz, com um tom de voz contente, como se
ficasse feliz ao encontrar algum passageiro como a garotinha de 8
anos que adora puxar assunto.
— É um nome bonito — opina Suzzie.
E então os dois se tornam melhores amigos durante os
próximos cinco minutos de viagem.
Klaus estaciona em frente à fachada do The Rock’s e eu salto
do carro, ajudando Suzzie a descer em seguida. Ela me entrega sua
mochila e lancheira da Barbie e enfia o rosto pela porta de trás,
agradecendo Klaus e dizendo que vai torcer para que a filha dele
melhore logo.
Acho que me perdi no meio do assunto, mas, ao que parece, a
filha do Klaus está internada há algumas semanas.
Ele arranca com o carro depois de agradecer, voltando a dirigir
pelas ruas de NY, e eu e Suzzie saímos caminhando em direção aos
desenhos gigantes de hambúrguer e batata frita estampados na
fachada do The Rock’s.
— Estou com tanta fome. — Ela começa a saltitar. — Espero
que seus amigos saibam cozinhar bem.
Sorrio, apertando o passo para acompanhá-la, me esforçando
para suportar o peso da mochila com os livros da faculdade nas
costas e arrastando a mochila de rodinhas da Suzzie pela calçada.
— Não são eles que ficam na cozinha — explico.
Os grandes olhos da ruiva me encaram no mesmo instante.
— Mas a comida daqui é boa, não é?
Dou de ombros.
— Nunca experimentei. É minha primeira vez aqui. Mas acho
que, sim, deve ser.
Empurro a porta de vidro, permitindo que o forte aroma de
fritura nos alcance. Suzzie entra primeiro, correndo os olhos por
toda a decoração.
O lugar é bem bonito e organizado. Para ser sincera, se
levarmos em consideração a bagunça que o apartamento de Kale e
Brandon costuma ser, todos poderiam duvidar de que eles são
mesmo os donos do local.
É um espaço pequeno, mas muito bem estruturado e
planejado, como se tivessem pensado na melhor posição para
deixar cada uma das mesas, buscando dar um ar mais espaçoso e
menos claustrofóbico ao ambiente. Uma jukebox próxima à parede
toca uma música baixa e o piso quadriculado e as poltronas
estofadas em vermelho dão um ar retrô ao lugar. Duas jovens
garçonetes caminham entre as mesas, carregando uma bandeja
cada uma e servindo os poucos clientes que aqui estão.
Suzzie não perde tempo para sair correndo pelo piso, quase
esbarrando em uma das garçonetes.
Deixo sua lancheira e mochila da Barbie próximas à porta de
entrada, tirando a minha das costas e as colocando lado a lado.
— Jessie, vamos! — grita a garotinha, do outro lado da
lanchonete, posicionando as mãos em concha ao redor da boca. —
Peguei uma mesa pra gente!
Sorrio, fazendo um sinal de positivo com as mãos, na
esperança de que ela se aquiete e pare de gritar, e saio andando
pelo The Rock’s, a caminho da mesa que Suzzie já escolheu.
— Campbell? — chama a grossa voz ao meu lado.
Me viro, vendo um Brandon de cenho franzido, carregando
uma expressão confusa ao se deparar comigo.
— Ah, oi. — Abro um sorrisinho. — Vim almoçar.
O vinco em sua testa se suaviza um pouco.
— Ah, certo. — Ele esfrega uma das mãos no cabelo ruivo,
como se estranhasse minha presença aqui e não soubesse muito
bem como reagir. Acontece que todos os moradores do prédio
costumam frequentar o The Rock’s, eu, já que demonstrava odiar os
proprietários até pouco tempo, sou a única que nunca nem sequer
pisei aqui. — Vou buscar um cardápio para você e... — Seu
semblante confuso retorna com tudo quando seus olhos vão de
encontro à Suzzie, que sorri, sentada à mesa, com a postura
perfeitamente ereta e balançando os pés no ar, o que percebi ser a
sua principal mania.
— Ela é a sobrinha da minha chefe.
Ele volta seu olhar até mim, parecendo entender.
— Ah, a espertinha que escolheu os nomes horríveis para os
cachorrinhos que fizeram xixi na minha cortina ontem? — Um ar
engraçado flutua em seus olhos.
Assinto, comprimindo os lábios, me esforçando para não rir.
Conhecendo Suzzie como conheço agora, tenho toda a certeza do
mundo de que ela amou a ideia dos nomes e jamais se arrependerá
de tê-los escolhido.
— Tudo bem — Brandon diz. — Já volto com os cardápios.
Meneio a cabeça antes de vê-lo sair andando a caminho do
balcão, onde dois olhos verdes apaixonantes me encaram um pouco
chocados.
Feito uma idiota, aceno para Kale, que demora alguns
segundos para perceber que estou me direcionando a ele, mas
retribui o cumprimento e arma um sorrisinho sem jeito nos lábios.
Giro nos calcanhares, me virando na direção de Suzzie, que
permanece sentada à mesa.
— Aqueles dois são os seus amigos? — pergunta ela, assim
que me sento à sua frente.
Faço que sim com a cabeça.
— E meus vizinhos.
— Uau. — Suzzie arregala um pouco os olhos, ainda
balançando os pés, sendo a garotinha elétrica que é. — São bem
bonitos. De qual deles você gosta?
Pisco, sendo pega de surpresa.
— O quê? De nenhum!
Ela inclina a cabeça para o lado, abrindo um sorriso e
demonstrando não acreditar nem sequer um por cento na minha
palavra.
— Duvido!
— É sério! — respondo, tentando deixar claro. — Acredite ou
não, é sério.
Suzzie ainda não parece convencida.
— Tudo bem, Jessie, pode continuar mentindo para si mesma.
— Ela endireita a postura.
De repente me pego duvidando se estou mesmo falando com
uma garota de 8 anos ou uma mulher de 48, que diz frases sábias
como a que acabei de ouvir.
Eu e Suzzie nos calamos assim que percebemos Brandon se
aproximar da mesa. Ele para ao nosso lado, colocando um cardápio
à frente de cada uma.
Suzzie empurra o papel plastificado sem nem ao menos dar
uma olhada.
— O hambúrguer de vocês é bom? — pergunta ao Brandon.
O ruivo assente, seus lábios se curvando em um sorriso.
— Ótimo. Eu e Jessie vamos querer. — Ela me encara,
arqueando uma sobrancelha. — Certo?
Faço que sim, me esforçando para não rir. Suzzie é, sem
dúvida, uma garota decidida.
— Certo. — Ela se vira para Brandon novamente. — E dois
milk-shakes de morango.
Ele anota tudo em um bloquinho de papéis amarelos.
— Algo mais? — pergunta. Suzzie não hesita em chacoalhar a
cabeça. — Tudo bem. — Brandon ri um pouco, trazendo seus olhos
até mim. — Já volto com os pedidos prontos.
Agradeço antes de vê-lo dar as costas e caminhar em direção
à cozinha.
Quando volto minha atenção à garota, percebo que Suzzie
começa a se remexer em sua cadeira, inquieta.
— Está tudo bem? — Franzo o cenho.
Ela faz uma careta.
— Preciso desesperadamente fazer xixi.
— Ah, certo — digo. — Quer que eu vá com você?
A ruiva nega com a cabeça no mesmo instante, se levantando
e parando ao lado da nossa mesa.
— Eu sei ir ao banheiro sozinha, Jessie — fala quase como se
estivesse ofendida. — Tenho oito anos, não cinco.
Rio um pouco ao vê-la sair apressada a caminho do banheiro.
Acho que, em pouco tempo, Suzzie Veronica já se tornou uma
das minhas pessoas favoritas no mundo todo.
Sentindo o celular vibrar no bolso de trás da calça jeans, eu o
pego. Sorrio ao me deparar com a mensagem de Eve acesa na tela.

Eve: Indo encontrar o tal do Blaine Grayson agora. Me deseje sorte.


Eu: Boa sorte! Apesar de que eu saiba que você não precisa disso, já que sempre
arrasa.
Eve: Sabe que te amo, não sabe? Espero que esteja tudo bem aí, você sabe...
com a criança.
Eu: Também te amo. E, sim, por incrível que pareça, Suzzie é legal. O completo
oposto da tia.
Eve: Graças a Deus! Teria dó do mundo caso houvesse uma miniatura da Abigail
Veronica perambulando por aí.
Eu: Acho que seria como se uma bomba caísse em Nova York.
Eve: Ou até pior. Tenho que ir agora. Boa sorte aí! Amo você mais uma vez.
Eu: Boa sorte para você também. Amo você mais uma vez.

— Jessie?
A voz que escuto faz com que tudo em mim congele. Ergo o
olhar, me deparando com Kale parado ao lado da mesa que ocupo.
Seus lábios estão curvados em um sorriso.
— O que faz aqui? — pergunta.
Sinto como se a minha língua desse um nó dentro da boca.
— Eu... Eu vim almoçar — explico, pousando o celular na
mesa. Odeio a forma como minha voz soa trêmula, como se, por
algum motivo idiota, eu estivesse nervosa. — E trouxe a sobrinha da
minha chefe.
Kale franze o cenho, desfazendo o sorriso imediatamente.
— Você o quê? — Ele parece indignado.
Respiro fundo, expirando o ar calmamente.
— Pois é. Suzzie está no banheiro agora. Abigail, minha chefe,
me ligou e me pediu para buscá-la na escola e levá-la para almoçar
— explico.
Quase solto um gritinho de surpresa quando Kale arrasta a
cadeira à minha frente e se senta, mas me controlo.
— Jessie, longe de mim querer me intrometer na sua vida
pessoal ou no seu trabalho, mas não acha que talvez sua chefe
esteja abusando um pouquinho da sua boa vontade? — ele
pergunta. — Você literalmente teve que levar os cães dela para sua
casa ontem. Teve que deixar que eles passassem a noite lá. Não
acha tudo isso um pouco... exagerado?
Inspiro e expiro demoradamente mais uma vez.
— Acho. — Me sinto uma idiota, como se tivesse permitindo
que alguém se aproveitasse de mim e risse da minha cara bem
diante dos meus olhos. — Mas não posso simplesmente rejeitar as
ordens dela. Abigail é a editora-chefe da Charlotte e eu...
— Espera aí! — Howard me interrompe. Ele arregala um
pouco os olhos, como se estivesse surpreso com algo que acabei
de dizer. — Você trabalha na Charlotte? Naquela Charlotte? Tipo, a
revista Charlotte?
Afundo um pouco na cadeira, me sentindo um tanto
desconfortável. Odeio quando as pessoas reagem a isso como se
fosse algo grandioso, quando, na verdade, sou apenas uma simples
assistente que busca cafés e atua como babá.
— É. — Limpo a garganta. — Eu trabalho.
— Uau... Isso é... uau. — Howard fica sem palavras.
Dou de ombros.
— Não, não é — digo. A expressão empolgada de Kale morre
em seu lindo rosto. — Não quando minha chefe não acredita no
meu potencial e me pede para ser sua babá particular. — Minha voz
soa frustrada, uma perfeita representação de como me sinto em
relação a tudo isso. Passo as mãos no rosto, resmungando. — É um
saco.
Quando meus olhos encontram os de Kale novamente, tudo o
que vejo é uma profunda compreensão.
— Imagino que deva ser uma merda — ele diz. — Você nunca
pensou em conversar com ela sobre isso?
Quase rio. Se Kale soubesse qual função exerço na revista,
saberia que conversar com Abigail Veronica não adiantaria nada.
Ela nunca me daria ouvidos.
Deixo a pergunta morrer no ar.
— Tudo o que preciso é de uma bebida e alguns minutos de
paz — falo, entrelaçando minhas mãos sobre a mesa. — De
verdade. Suzzie não é nada desagradável, muito pelo contrário. Ela
é uma garota incrível. Mas, da mesma forma, me sinto mal por
Abigail considerar normal me pedir para cuidar de seus cães e de
sua família — desengato a falar, sem saber ao certo por que estou
me abrindo com Kale Howard. E nem por que estou me sentindo tão
confortável com isso. — Fui contratada pela Charlotte, para
trabalhar e tratar apenas dos assuntos da Charlotte.
— Entendo — ele responde, apoiando as mãos na mesa para
se levantar. — Mas acho mesmo que devia pensar na ideia de
conversar sobre isso com sua chefe. Ela não deve ser uma pessoa
ruim.
Sinto vontade de rir. Howard não faz ideia de quem seja Abigail
Veronica.
— Vou pensar — minto.
Ele sorri, parando ao lado da mesa, olhando para um ponto
fixo por cima dos meus ombros.
— Acho melhor eu te deixar em paz. Parece que sua
companhia, ao ver que eu estava sentado no lugar dela, decidiu
esperar para se aproximar.
Franzo o cenho, me virando para entender do que Kale está
falando. Rio um pouco ao ver Suzzie parada em frente ao banheiro,
sorrindo para nós dois.
Ela acena com uma das mãozinhas assim que percebe que
estou encarando-a.
— Te vejo depois, Campbell. — É tudo o que Howard diz antes
de sair andando. Um sorrisinho permanece marcando seus lábios a
cada passo.
Suzzie não demora para vir correndo em minha direção.
Tiro os sapatos ao chegar em casa, sentindo o alívio repentino
tomar conta dos meus pés, me dando a sensação de ter tomado um
banho gelado em um dia extremamente quente. Caminho pela sala,
deixando minha mochila em cima do estofado da poltrona antes de
desmoronar no sofá, me sentindo exausta, como se pudesse dormir
aqui e agora mesmo.
À tarde, depois que levei Suzzie para almoçar no The Rock’s,
nós duas tivemos de ir para a Charlotte, obedecendo a ordem dada
pela Abigail. Lá, passei a tarde inteira tentando consertar a
impressora que Mike, mais uma vez, teve a proeza de quebrar.
Depois de consertá-la, Abigail me pediu para fazer cópias de
inúmeras páginas importantes, o que levou milhares de horas.
Fui a última pessoa a deixar o prédio da Charlotte hoje. Simon,
o porteiro, até estranhou, me perguntando se estava tudo bem.
O relógio pregado à parede do meu apartamento marca 22:00
agora.
E sinto como se um ônibus tivesse passado por cima de mim,
dado ré e me atropelado mais uma vez.
Fecho os olhos, pronta para deixar a exaustão me carregar e
me guiar pelo sono mais profundo.
E então a campainha toca, atrapalhando meus planos de
capotar no sofá.
Me sento, resmungando e esfregando os olhos antes de me
levantar.
— Já vai! — aviso, andando feito uma morta-viva em direção à
porta, arrastando meus pés pelo carpete da sala.
Giro a chave no trinco, destrancando a fechadura antes de
levar as mãos à maçaneta fria. Quando abro a porta, sinto como se
um grande tsunami tivesse vindo de encontro a mim, me
encharcando e gelando meu corpo por inteiro.
De repente não sei mais como me mover.
Kale levanta a cabeça, sorrindo ao trazer o tom esverdeado
dos seus olhos até o âmbar dos meus.
— Oi.
Engulo em seco.
Como de costume, Howard está perigosamente lindo. Os fios
castanhos de cabelo permanecem bagunçados, dando todo aquele
ar que só ele tem e que é capaz de acabar com todas as minhas
estruturas; a camiseta branca e básica está um pouco amarrotada, o
que nos outros pode ser visto como um sinal de desleixo, mas em
Kale Howard, por algum motivo, é totalmente diferente.
Sinto como se toda a exaustão exorbitante evaporasse do meu
corpo, me deixando mais renovada do que nunca.
Jamais vou conseguir entender que tipo de poder esse garoto
tem sobre mim. Muito menos o porquê de ele ser capaz de me fazer
sentir como uma tremenda idiota.
— Oi — encontro forças para responder.
O sorriso permanece estampando seu lindo rosto.
— Sei que está tarde — Kale começa. Percebo que ele está
com as duas mãos atrás do corpo, como se estivesse escondendo
alguma coisa. — E que você teve um dia cansativo. Mas lembrei
que disse que precisava de uma bebida mais cedo. Pensei que não
fosse ter tempo para comprar, já que sua chefe está te lotando de
trabalho e te enlouquecendo, então, por isso, trouxe uma garrafa
que encontrei no armário do Brandon. — Ele me mostra o Jack
Daniel’s que escondia atrás de si.
Me sinto momentaneamente desconcertada, sendo pega de
surpresa de repente, sem sequer saber o que dizer.
— Não precisa aceitar, se não quiser...
— Não! — me apresso em interrompê-lo. — Eu quero. Muito
obrigada por isso, inclusive.
Kale sorri.
Não hesito em segurar a garrafa de whisky assim que ele a
estende na minha direção.
— Bom... — Howard coça a cabeça, com a mão agora vazia.
— Boa noite, Campbell.
Quando ele faz menção de girar nos calcanhares e seguir na
direção do seu apartamento, seguro um de seus pulsos, sentindo
como se um choque ridículo me atingisse. Seus olhos verdes focam
nos meus.
— O que você pensa que está fazendo? — questiono.
Ele franze o cenho.
— O quê?
Solto seu braço, segurando a garrafa com as duas mãos
agora.
— Posso ter atingido o fundo do poço, Howard, mas me recuso
a beber sozinha em uma sexta-feira à noite.
Seus lábios se franzem, como se Kale estivesse se esforçando
ao máximo para não sorrir.
— Certo. Então isso é um convite?
Dou de ombros.
— Sim... Quer dizer, espero que você goste de usar whisky
com gelo como forma de afogar as mágoas.
Ele desiste de tentar esconder o sorriso.
— Aceito sua proposta, Campbell.
Me pego sorrindo também.
— Ótimo. — Me afasto da porta, dando espaço suficiente para
que Kale a atravesse. Ele a fecha segundos depois que seus tênis
dão o primeiro passo para dentro do meu apartamento. — Fique à
vontade. Vou buscar os copos.
Sigo em direção à cozinha integrada à sala, deixando a garrafa
de Jack Daniel’s sobre o mármore da ilha antes de parar em frente a
um dos armários de madeira do alto. Graças aos meus 1,78 de
altura, nem sequer preciso ficar na ponta dos pés e me esforçar
para alcançá-lo.
Seguro dois copos de vidro com uma das mãos, ouvindo-os
tilintar quando batem levemente um contra o outro. Paro em frente à
porta metálica do refrigerador, pousando os copos no suporte e os
enchendo com alguns cubos de gelo.
— Além do trabalho, tem algum outro motivo para que você
tenha atingido o fundo do poço? — A voz de Kale vem da sala.
Me viro, levando meus olhos até Howard, que me encara
sentado no sofá.
Estendo a mão vazia para o balcão, agarrando a garrafa de
whisky antes de caminhar na direção do vizinho que ocupa meu
local de descanso favorito.
Entrego a garrafa a Kale, que também pega um dos copos
vazios que seguro. Suspiro assim que me sento ao seu lado,
expirando demoradamente.
— Não fui cem por cento sincera com você — digo enfim.
Suas orbes confusas me encaram enquanto ele me serve o
whisky, enchendo o copo que seguro.
— Sobre o quê?
Engulo em seco.
— Sobre o que existe além da ponta do meu iceberg.
O tom esverdeado de seus olhos permanece fitando meu
rosto. Kale não quebra o contato visual nem mesmo quando afasta
a garrafa de mim e passa a encher seu próprio copo.
— Não sou uma garota rica do Upper East Side que cursa
jornalismo e está interessada na história do John Peter Jones — uso
os mesmos termos que usei da última vez, quando Howard me
contou detalhes profundos sobre sua vida e eu omiti todos sobre a
minha. — Quer dizer, eu, de certa forma, sou. Mas não sou só isso.
Seus lábios se repuxam em um sorrisinho de canto.
— É claro que não. — Kale deixa a garrafa em cima da
mesinha de centro a nossa frente, levando o copo pela primeira vez
à boca, dando o primeiro gole. Ouço quando os cubos de gelo
batem contra o vidro, tilintando. — Certo. — Ele volta a me encarar.
— Vamos tentar mais uma vez. — Howard pigarreia, se endireitando
ao meu lado. — O que tem além da ponta do seu iceberg que faz
você se sentir como se tivesse atingido o fundo do poço, Jessie
Campbell?
Quase rio. Falando dessa maneira, parece ridículo.
Dou o primeiro gole na bebida antes de responder, sentindo-a
descer queimando pela garganta.
— Certo. — Também endireito a postura, me preparando para
começar. Suspiro. — Eu tinha um namorado. O nome dele era
Vincent James. Nós dois éramos o tipo de casal adolescente que
todos costumam invejar pelos corredores do colégio, inclusive os
professores. Nossos pais sempre foram muito próximos e sempre
apoiaram muito nosso relacionamento. Ele planejava nossa
mudança para a Inglaterra desde os 13 anos, quando demos nosso
primeiro beijo. Pouco antes de nos formarmos, contei que queria
cursar jornalismo. Vincent surtou. Ele me chamou de inúmeros
nomes diferentes, principalmente os que são sinônimos de “egoísta”
e “inconsequente”. Acontece que, na cabeça dele, se eu fosse tentar
realmente ter uma carreira no ramo jornalístico, jamais poderia ser a
futura esposa troféu, que cuidaria dos filhos, compareceria a
brunches com as mulheres dos seus parceiros de negócios e
desfilaria com ele pelas ruas de Londres. James, que já tinha nossa
vida inteira planejada, terminou comigo no instante em que
descobriu que nossas visões de futuro eram diferentes.
“Não o culpo por isso. Muito pelo contrário. Acho que, uma
hora ou outra, se ele não tivesse terminado comigo, eu teria feito. O
principal problema veio depois. — Engulo em seco, prestes a chegar
na parte da história que mais me fere. — Duas semanas após o
término, resolvi contar para os meus pais que estava decidida em
relação ao curso que queria. Acontece que minha família é um tanto
complicada. Sendo composta por famosos cardiologistas,
neurocirurgiões e alguns advogados renomados, todos graduados
em universidades da Ivy League, os Campbell têm uma reputação a
zelar e um sobrenome a honrar. Meus pais quiseram morrer quando
contei sobre meus planos. Tentaram me fazer mudar de ideia por
meses, mas nunca conseguiram. Acontece que na vida, quando se
tem uma paixão que faz o coração transbordar de amor e os olhos
brilharem, é difícil abrir mão dela. E é assim que o jornalismo me faz
sentir.”
“Eles, assim que perceberam que eu não desistiria, me
expulsaram de casa. Eu tinha 19 anos quando tive que começar a
trabalhar para conseguir pagar o curso e, como um milagre e uma
ótima oportunidade, descobri que a Charlotte estava contratando
assistentes. Fui aceita ao fazer a primeira entrevista. Acontece que,
para a Jessie de 3 anos atrás, essa seria uma ótima oportunidade
para crescer no ramo. Eu acreditava que Abigail reconheceria meu
talento como escritora e que, dentro de pouco tempo, mesmo que
eu ainda não estivesse formada, ganharia minha própria coluna. —
Rio um pouco, sentindo a boca amarga. Kale permanece me
encarando com atenção, captando cada uma das minhas palavras.
— Eu era uma tola sonhadora. Apesar de ter, sim, pessoas que
trabalham como escritores da revista que ainda estão na
universidade ou que começaram a trabalhar antes mesmo de se
formarem, isso nunca poderia acontecer comigo. Abigail, minha
chefe, me vê como uma perdedora. Uma perdedora que carrega um
sobrenome conhecido, mas que está pobre, morando em um prédio
praticamente caindo aos pedaços e que estuda em uma
universidade sem a menor estrutura e com a mais baixa
mensalidade de todas.”
Engulo saliva como se fossem cacos de vidro, que descem
raspando e cortando a garganta. Desvio o olhar que dava atenção
ao Kale, sentindo quando meus olhos se enchem de lágrimas que
ameaçam cair a qualquer momento.
— Liguei para o Vincent quando vi tudo desmoronar sob meus
pés — confesso, me sentindo uma tremenda idiota. — Contei que
meus pais haviam me expulsado e que estava sem dinheiro algum.
Ele apenas riu. — Fecho os olhos com força, me esforçando ao
máximo para impedir que as lágrimas indesejadas e que
representam a mais genuína fraqueza caiam. — Para ser sincera,
não sei o que passou pela minha cabeça. Não sei por que fiz aquela
ligação e nem por que entrei em contato justo com ele. — Volto a
encarar Howard. — Nunca o amei de verdade. Acho que eu apenas
estava desesperada para conversar com alguém.
Kale não diz nada, apenas dá mais um gole no whisky em seu
copo. Suas orbes esverdeadas não desviam do meu rosto nem
sequer por um único segundo.
É como se ele se importasse verdadeiramente com toda a
minha história deprimente de garota rica.
O que é novo para mim, pois nunca ninguém se mostrou
interessado nos meus problemas. Apenas a Eve, mas ela não sabe
sobre metade das coisas que contei a Kale.
O que torna tudo ainda mais estranho.
Por que confiei a minha vida toda a ele, se não confio nem a
minha melhor amiga?
E por que me senti bem ao fazer isso?
Solto um riso fraco, desviando o olhar. Passo a encarar o copo
que seguro com as duas mãos, observando o gelo, que já derreteu
um pouco, flutuando sobre o líquido.
— Acho que você estava certo quando disse que o amor é
uma coisa louca — revelo. — Estava certo ao dizer que as pessoas
que mais deveriam nos amar, às vezes não estão nem aí para nós.
Que às vezes somos indiferentes para elas. Damos tudo de nós
mesmos, mas não é suficiente.
Volto a encará-lo, buscando encontrar qualquer mísero sinal de
emoção em seus olhos verdes, procurando entender o que sente ou
pensa em relação a tudo isso que revelei.
Não encontro nada.
Kale apenas se empertiga no sofá.
Estranho quando ele estende seu copo na minha direção,
propondo um brinde fora de hora.
Nós, definitivamente, não temos motivos para comemorar.
Seus lábios se moldam em um sorrisinho de canto.
— Às nossas histórias complicadas — ele diz enfim, olhando
diretamente em meus olhos.
Solto um fraco riso, levando o meu copo de encontro ao seu,
fazendo os vidros tilintarem baixinho ao se encontrarem. Como se
fosse um movimento ensaiado por horas e horas, eu e Kale damos
um gole em nossas bebidas, numa sintonia mais do que perfeita.
— Minha história de garota rica com problemas familiares não
chega nem aos pés da sua — digo sincera.
Ele afasta o copo dos lábios demoradamente. Seu semblante
se transforma em sério.
Por um momento, sinto medo de ter dito algo errado. Não sei
se Howard se arrepende de ter me contado sobre sua história de
superação agora, depois de descobrir que escondi tantos detalhes
sobre a minha.
— A dor e trajetória de alguém não torna a sua mais fácil ou
insignificante, Jessie — ele diz. Sinto meu coração amolecer dentro
do peito. — Todos temos problemas diferentes. Mas isso não os
torna melhores ou piores do que os dos outros.
Kale volta a sorrir, dando mais um gole na bebida.
Permaneço petrificada, perdida no verde dos seus olhos,
apaixonada pelas palavras que acabou de dizer.
Até alguns dias atrás, eu me obrigava a manter distância de
Kale Howard, como se quisesse lutar contra todos meus instintos
que me diziam para me aproximar. Mas agora, por algum motivo,
não sinto mais vontade de erguer um escudo ao meu redor, nem de
ser a vizinha rabugenta que fingia odiá-lo.
E isso é desesperadamente assustador.

— Certo — digo. Estou de cabeça para baixo no sofá,


enxergando tudo ao contrário. É como se o chão se transformasse
no teto e o teto se transformasse no chão. E, por algum motivo, isso
é hilário. — Vamos jogar um jogo, Howard — sugiro, me esforçando
ao máximo para não voltar a gargalhar da troca do piso e do teto.
Sinto meus olhos pesarem. Pisco.
A garrafa de Jack Daniels’s está vazia sobre a mesinha de
centro, também de ponta-cabeça para mim.
Ainda não me lembro do momento exato em que Kale e eu
acabamos com ela.
— Qual jogo? — Sinto quando ele se remexe no sofá, ao meu
lado.
Permaneço na mesma posição. Meus lábios doem de tanto
sorrir.
Acho que sou a bêbada mais feliz de todas as bêbadas felizes.
— O jogo da verdade — explico. — Me conte algo que
ninguém saiba.
Kale ri, achando graça.
Sinto a almofada abaixo de mim chacoalhar um pouco quando
ele se movimenta e se posiciona ao meu lado, de cabeça para baixo
também.
— Tudo bem. Lá vai — Kale respira fundo. — Tenho inveja do
Peter Lerroy. Não apenas por ele ter roubado minha noiva, mas por
ter dinheiro, por viver viajando pelo mundo e por dar de mil a zero
em mim.
Faço uma careta, encarando o teto-chão fixamente.
— Mil a zero? Isso é impossível. Você é um cara legal.
Kale ri um pouco ao meu lado.
— Pensei que me odiasse.
Me apresso em desviar do comentário. Pigarreio.
— Minha vez.
— Certo — diz ele, a cabeça virada na minha direção, seus
olhos me encarando. O encaro de volta, imaginando como seria
surfar no verde das suas íris. Ele tem olhos muito bonitos. — Me
conte algo que ninguém saiba, Jessie Campbell.
Penso um pouco.
— Eu odeio bolo de chocolate.
A indignação que toma conta do semblante de Kale é
engraçada.
— O quê? — pergunta ele, quase gritando, como se fosse um
crime. — Por Deus, Jessie, quem odeia bolo de chocolate?
Faço mais uma careta.
— Eu. É o tipo de bolo mais sem graça que existe.
Kale me olha como se eu fosse um monstro.
— Você é estranha.
Dou de ombros, ainda de cabeça para baixo. Não sei porque,
mas, por algum motivo, gostei dessa posição.
— Talvez. — Volto a encarar o teto.
Uma música irritante invade os meus ouvidos, vindo de algum
lugar da sala. Kale se apressa ao se levantar, tropeçando nos
próprios pés ao pisar no chão, quase caindo de cara no piso.
Acho um pouco engraçado.
Ele vai até o balcão da cozinha, pegando seu celular, que é de
onde o toque irritante vem.
Howard mexe na tela antes de grudar o aparelho em um dos
ouvidos.
— Oi — diz, se apoiando no mármore, como se até mesmo se
equilibrar e ficar de pé fosse complicado. Kale fica um pouco em
silêncio. Um vinco concentrado se forma em sua testa, como se ele
se esforçasse ao máximo para prestar atenção no que a pessoa do
outro lado da linha, quem quer que ela seja, está dizendo. — Estou
no apartamento da Jessie. — Mais um tempo em silêncio. — Sim.
Daquela Jessie. Certo. Já te avisei sobre não esquecer a chave,
idiota! Você tem 27 anos. Não sou sua babá!
Me pego rindo de repente.
— Tudo bem. — Kale revira os olhos. — Estou indo.
E, simples assim, desliga a ligação, guardando o aparelho no
bolso da calça preta de moletom.
Meu Deus, eu amo essa calça.
— Preciso ir — fala, se virando para mim. — Brandon está
trancado para fora de casa e esqueceu as chaves. Ele estava em
um encontro e, ao que parece, preciso acudi-lo.
Me sento no sofá, endireitando o corpo, voltando a ver o chão
e o teto na posição que eles verdadeiramente ficam e sentindo o
sangue acumulado na cabeça descer para o meu corpo depois de
um bom tempo.
— Tudo bem. — É o que digo.
Kale abre um sorrisinho de lado.
— Espero que esteja se sentindo melhor.
Meu coração saltita como um golfinho feliz dentro do peito.
— Estou, sim.
Howard parece satisfeito com a resposta.
— Que bom — diz, andando de ré em direção à porta. Com
seus olhos ainda focados em mim, Kale coça a cabeça com uma
das mãos, bagunçando os cabelos ainda mais. — Eu... Hum... Te
vejo depois?
Não hesito em assentir.
— Certo — ele fala, se virando para a porta, dando as costas
para mim. Antes de sair, assim que seus dedos vão de encontro a
maçaneta, Howard me lança mais um breve olhar. — Boa noite,
Campbell.
Sorrio.
— Boa noite, Howard.
Ele também sorri ao abrir a porta, deixando meu apartamento
para trás e levando uma parte da minha história junto de si.
E eu fico aqui sozinha. Bêbada. Sentada no sofá.
Acho que, por mais estranho que seja pensar nisso, por Kale
Howard eu comeria um bolo de chocolate inteiro sem reclamar
Minha cabeça dói, como se uma banda marchasse
incansavelmente dentro dela, batendo nos tambores e fazendo o
som reverberar por todos os cantos.
Permaneço deitado na cama, tentando encontrar a força
necessária para conseguir, enfim, levantar. Meus olhos se fixam nos
velhos pôsteres colados à parede do meu quarto, e sinto como se
meu corpo todo estivesse grudado com cola instantânea no colchão.
Odeio beber.
Fecho os olhos quando ouço o ranger da porta se abrindo, já
sofrendo por ter que lidar com um Brandon Houston engraçadinho
logo às nove da manhã.
Ontem, depois que deixei o apartamento da Jessie e tive que
abrir a porta para que o esquecido do meu melhor amigo pudesse
entrar em nossa casa, tive de lidar com suas várias gracinhas e
ouvir ele me chamar inúmeras vezes de...
— Bom dia, Senhor Estou-Vivendo-Um-Enemies-To-Lovers.
Disso. Ele me chamou disso.
Solto um longo suspiro, esfregando os olhos ao me sentar na
cama, me odiando por ter extrapolado ontem à noite.
Kale Howard e o álcool nunca se deram bem.
Quando afasto as mãos dos olhos, penso estar vendo uma
miragem. Franzo o cenho.
— Por que caralhos você está assim?
Brandon, parado em frente a minha porta, de banho tomado,
cabelos ruivos devidamente arrumados, usando roupas e sapatos
novos e um perfume que é capaz de invadir meu nariz mesmo a
passos de distância, sorri.
— Porque estou, ué. — Dá de ombros, guardando as mãos
dentro dos bolsos da calça de moletom cinza, dando alguns passos
na minha direção.
Sinto como se o mundo estivesse de cabeça para baixo.
— Mas por quê? Por que está vestido assim? São nove da
manhã de um sábado!
Houston tenta esconder o sorriso, seus lábios se franzem.
— Não entendo o porquê de estar tão surpreso — fala, enfim.
— Será que um homem não pode acordar, tomar um bom banho e
vestir algo legal?
Tento me conter, mas não consigo. Acabo explodindo em uma
gargalhada.
Brandon me encara como se estivesse ofendido.
— Me desculpa! — peço, estendendo uma palma da mão no
alto, entre risos. — Mas acontece que você é Brandon Houston. E é
a pessoa mais preguiçosa de manhã. Não se arrumaria nesse
horário, no sábado, caso não tivesse um motivo bom o suficiente.
Houston sorri.
— Talvez tenha um motivo. — É tudo o que ele diz antes de
dar as costas e sair do meu quarto, com as mãos ainda enfiadas no
bolso da calça.
Salto da cama no mesmo instante, tirando o edredom pesado
de cima de mim. Percebo quando o travesseiro cai no chão, mas
nem ligo, apenas saio aos tropeços atrás do Brandon, chegando ao
corredor.
— Do que é que você está falando?
Ele me ignora e continua caminhando, indo em direção à porta
da sala.
Franzo a testa assim que o vejo abrir a porta ao máximo, dar
as costas para ela e se sentar no sofá, fingindo naturalidade.
— Por que fez isso? — questiono, ainda parado no corredor.
Brandon levanta a cabeça, seus olhos encontrando os meus.
— O quê? — tenta se fazer de desentendido.
— Por que abriu a porta?
Meu melhor amigo se ajeita no sofá, pigarreando.
— O ar precisa circular.
— Nós temos janelas.
Ele dá de ombros.
— Sim, mas quanto mais aberta a casa ficar, mais ar vai entrar
e sair — explica, se esforçando ao máximo para fingir que sua
mentira criada há dois segundos faz algum sentido.
Minha testa se franze ainda mais, fazendo minhas
sobrancelhas encostarem nas pálpebras.
— Que porra é essa, cara? Está parecendo a Beth falando.
Ele desvia o olhar, dando de ombros mais uma vez.
— É verdade, Howard. Procure na internet.
Com um vinco enorme de confusão marcando a testa, intercalo
meu olhar entre Brandon, que agora mexe no celular, e a porta
aberta.
Mas que merda ele está fazendo?
— É sério, Kale. Meu Deus! Só abri para que o ar possa
circular — diz, ainda focado no aparelho que segura. — Se isso te
incomoda tanto, pode fechar. Sem problemas.
Por mais que estranhe tudo isso, resolvo deixar para lá. Ainda
desconfiado, passo por Brandon, atravessando a sala a caminho da
cozinha. Paro em frente ao balcão, pegando a caixa do meu cereal
favorito. Viro-a, despejando as bolinhas coloridas dentro da primeira
tigela que encontro. Na geladeira, pego uma caixa de leite e encho a
tigela com o líquido, misturando-o ao cereal.
Pessoas que comem cereal sem leite não deveriam nem ser
consideradas pessoas.
Acabo de mergulhar a colher na tigela quando vozes vindas do
corredor chamam minha atenção.
Em um pulo desesperado, Brandon se levanta do sofá,
correndo aos tropeços para se aproximar da porta aberta. Vejo
quando começa a passar as mãos pelos cabelos, como se quisesse
se certificar de que cada um dos seus cachos esteja na devida
posição.
As vozes femininas do corredor ficam mais altas, como se,
seja lá quem forem essas mulheres, estejam se aproximando.
Solto a colher no mesmo instante em que identifico a primeira
voz, ouvindo o tilintar de quando o objeto metálico bate contra a
borda da cerâmica da tigela.
Curioso, me afasto do balcão, bisbilhotando o que Brandon
está fazendo, tentando entender o porquê de estar agindo tão
estranho.
E quando Jessie e uma garota mais baixa, de cabelos
castanhos na altura do queixo, pele branca e franja param em frente
à porta de Campbell e Brandon abre um sorrisinho, fingindo
naturalidade ao fechar a nossa porta, como se tivesse a esquecido
aberta por acidente, entendo tudo.
Ele queria que elas o vissem. Por isso se arrumou logo de
manhã. Por isso usou a desculpa de que o ar precisava circular.
O Brandon... Puta que pariu!
— Por favor, não me diga que a garota secreta dos seus
encontros é a amiga da Campbell — peço, mesmo que a resposta já
esteja óbvia e estampada bem na minha frente.
Meu melhor amigo traz os olhos até mim, um pouco surpreso
ao perceber que eu o estava espionando.
Brandon sorri, dando as costas.
— Tudo bem. — Ele tira os sapatos novos, os chutando pelo
carpete da sala ao continuar andando rumo ao corredor. — Eu não
digo.
É sábado à noite e estou inquieto, sentado no sofá da sala,
checando o relógio no meu pulso a cada cinco segundos.
Jessie está atrasada.
São 22:15 agora. E marcamos às 22:00.
Na última e única vez em que Campbell se atrasou, ela chegou
com dois cães que fizeram xixi pelo meu apartamento inteiro. Ou
seja, por mais que eu ame cachorrinhos, passei a ter um pouco de
medo dos atrasos da Jessie.
Sabe-se lá o que a chefe dela possa ter pedido para ela tomar
conta dessa vez.
Estalando meus próprios dedos, impaciente, encaro o velho
diário do John Peter Jones, sobre a mesinha de centro a minha
frente. A capa preta permanece com os anos de 1895 e 1982
pintados, mas agora mais fracos do que quando a encontrei. As
folhas continuam igualmente amareladas, desgastadas devido ao
tempo.
— Ainda tem cereal, ou você comeu tudo? — A voz vem do
corredor.
Me empertigo no sofá, ouvindo quando os passos pesados de
Brandon se aproximam. O ruivo chega à sala, parando a minha
frente, me olhando com as sobrancelhas juntas, esperando pela
minha resposta.
— Sobrou um pouco — digo.
Ele parece ficar feliz.
— Ótimo — fala, voltando a andar. — Meu corpo precisa
desesperadamente de açúcar.
E o que acontece nos próximos instantes é uma tremenda
confusão.
Jessie Campbell escancara a porta, entrando abruptamente no
apartamento. Seu rosto revela uma expressão furiosa enquanto
seus passos seguem pisando duro pelo piso, a caminho de
Brandon.
Como um ser indomável, ela o agarra pela gola da camiseta
cinza, o empurrando contra a parede.
Houston esbugalha os olhos.
— Você... — Jessie rosna, apertando ainda mais as mãos na
camiseta do meu melhor amigo. — Desde quando?
Ele pisca, atordoado.
— Desde quando o quê?
— Desde quando você e a Eve estão saindo? — Jessie
esclarece, o encarando como se estivesse prestes a matá-lo apenas
com a força dos olhos. — E desde quando você corrompeu a
cabeça da minha melhor amiga e a fez esconder as coisas de mim?
Ah.
Então quer dizer que Campbell também descobriu.
Depois do evento ridículo da manhã, quando Brandon abriu a
porta apenas para ver a tal da Eve e fingiu ser uma mera
coincidência, venho tentando falar com ele. Porém, por mais que eu
insista, meu melhor amigo está decidido a não me contar nada.
Afinal, como ele mesmo disse há um tempo, ao contrário do
que a maioria pensa, Brandon não é um cretino egocêntrico e sem
coração e, por isso, não vai jogar sua felicidade na minha cara, já
que levei um pé na bunda.
— Se você me soltar, Campbell, juro que te conto tudo o que
quiser saber — fala ele, tentando acalmá-la. Jessie, ainda prestes a
explodir de raiva, o segura mais forte pela camiseta. Ele entra em
pânico. — Tudo bem, tudo bem! Já entendi! Não precisa me soltar,
se não quiser. É você que manda.
— Desembucha, Houston — rosna ela, já sem paciência.
Acho que Jessie Campbell é a única pessoa no mundo que
consegue continuar gata enquanto está furiosa.
— Certo. — Meu melhor amigo parece pensar. — Há algumas
semanas, você emprestou um vestido seu para a Eve, mas ficou
presa no trabalho, então deu a chave do seu apartamento para que
ela viesse buscá-lo sozinha. E ela veio. — Ele respira fundo,
tentando acalmar o nervosismo gerado pela nossa vizinha. — Só
que eu estava levando o lixo lá para baixo, e a gente acabou se
cruzando no caminho — continua, a voz trêmula, temendo a reação
de Jessie. — E então a gente se conheceu e conversou. E eu, como
não sou um idiota, achei ela incrível e pedi o número dela.
Passamos a conversar todos os dias e...
— Por que ela não me contou? — Jessie parece impaciente e
chateada ao mesmo tempo.
Brandon ofega.
— Porque eu pedi. — Ele passa uma das mãos nos cabelos
ruivos.
— Mas por quê? — A mulher pergunta em um gritinho.
— Por culpa do Kale, está bem? — ele responde, abaixando a
cabeça.
Campbell traz seus olhos até mim imediatamente.
— Você sabia disso? — Ela parece pronta para me assassinar.
Eu me levanto.
— Não! — Ergo as palmas das mãos na altura do peito, me
rendendo feito um idiota, tentando mostrar que não tive nada a ver
com isso. — Juro que não.
Seu olhar mortal vai até Brandon novamente.
Vejo quando ele engole em seco.
— Olha, Jessie, pedi para a Eve não te dizer nada, porque há
algum tempo, o Kale não estava conseguindo nem sequer levantar
da cama. Ele estava na merda. Literalmente — Houston conta.
Preciso me esforçar ao máximo para não deixar que essas palavras
me atinjam. — E eu não quis ser um amigo babaca. Não quis jogar
na cara dele que eu estava bem, saindo com uma garota legal,
enquanto a ex-noiva dele o trocou por um cara um bilhão de vezes
mais rico e, além do chifre, também deu um chute na bunda dele
justo no dia do casamento.
De repente fica impossível não me sentir um merda.
Sinto cada sílaba me atingir como mil punhos socando o
estômago.
— Vocês dois estavam se aproximando muito — Brandon
continua, se referindo à Jessie e eu. — E você passou a vir mais
aqui em casa, por conta de toda essa história com o diário do
John... — Ele vira a cabeça para me encarar. — Eu já tinha avisado
o Kale que só o apresentaria para a Eve quando ele superasse a
Beatrice.
Jessie me olha, esperando pela minha resposta.
— E eu já tinha te falado que já superei — retruco. — Não
tinha necessidade de esconder isso da gente.
Campbell volta a encarar Brandon.
— Desculpa se pedi para sua melhor amiga não te dizer nada
e se te fiz ficar brava — pede o ruivo, a voz baixa. — Mas não
queria esfregar a minha felicidade na cara do meu melhor amigo.
Quase rio.
Por mais ridículo que isso seja, é fofo.
Jessie permanece em silêncio, encarando Brandon por alguns
segundos antes de afastar as mãos da camiseta dele e o soltar. O
ruivo parece extremamente aliviado, inspirando e expirando
devagar, como se estivesse quase sem ar.
— Meu Deus! — É o que Campbell diz. Ela parece confusa e...
enojada, de certa forma. — Dentre tantos homens no mundo, por
que minha melhor amiga escolheria ficar justo com você?
— Ei! — Houston se ofende.
Rio um pouco, recebendo um olhar de desaprovação do meu
melhor amigo.
— Desculpe — peço, franzindo os lábios, me esforçando para
conter a risada.
Brandon suspira, endireitando a postura.
— Ótimo — diz ele. — Agora, se me derem licença e pararem
de gritar comigo, me encurralarem na parede e zombarem da minha
cara, vou continuar meu caminho em direção à cozinha e comer
meu cereal.
E então, simples assim, Houston nos dá as costas.
Jessie me encara, hesitante. A raiva em seus olhos se dissipou
e ela parece um pouco envergonhada, balançando nos próprios
calcanhares, como se não soubesse se deveria ou não se aproximar
de mim.
Um silêncio constrangedor se instala por alguns segundos.
Tudo o que ouvimos são os sons dos armários da cozinha abrindo e
fechando. Todos causados por Brandon.
Engulo em seco.
— Como você descobriu? — guardo as mãos nos bolsos da
calça, quebrando o gelo.
Ela dá dois passos hesitantes na minha direção, desviando o
olhar.
— Vi como Eve ficou ridiculamente vermelha depois de
encontrar o Houston hoje de manhã, no corredor — comenta com a
voz baixa. — Achei estranho, então resolvi perguntar se ela o
conhecia. Quando Eve gaguejou para responder, entendi tudo. — O
âmbar de seus olhos vem até mim novamente. Jessie solta um
longo suspiro, expirando demoradamente. — Sinto muito por ter me
descontrolado e entrado aqui daquela maneira. Não devia ter feito
isso.
Meus lábios se moldam em um sorrisinho torto.
— Não esquenta. Está tudo bem — digo. — Estranho seria se
você ficasse mais tempo sem surtar com algum de nós — brinco. —
Afinal, vivia dizendo que somos a pior dupla de vizinhos que alguém
poderia ter.
Ela ri um pouco. Uma risada fraca e ao mesmo tempo
envergonhada.
— Acho que vocês não são tão ruins, no fim das contas.
Sorrio, girando nos calcanhares, seguindo a caminho do sofá
novamente. Em silêncio, Jessie me segue.
Sentamos um ao lado do outro e estico uma das mãos até a
mesinha retangular de centro, agarrando o diário do velho John.
Quando o coloco em meu colo, ergo o olhar por tempo o
suficiente para ver um Brandon apressado atravessar a sala
correndo, entrando rapidamente no corredor, como se estivesse
com medo de que Jessie pudesse se levantar e o encurralar
novamente.
— Certo. — Me endireito no sofá, abrindo o diário na parte em
que paramos. Os olhos de Campbell focam nas linhas com atenção.
— Vamos lá, John.

7 de novembro de 1940, às 17 horas e 43 minutos.

Meu pai morreu por culpa do cigarro.


Câncer de pulmão.
Já cheguei a contar isso a vocês.
Sua morte, da mesma forma que foi um grande choque inesperado
para nossa família, também foi motivo de alívio.
Principalmente para minha mãe, que viveu por anos em um
relacionamento que a trouxe diversos traumas.
Contei isso a Celeste, há dois anos, quando estávamos juntos sob a
Florescer e descobri que ela estava fumando, já que senti o forte
sabor do cigarro em sua boca. Contei sobre o buraco horrível no
qual meu pai se afundou. Contei sobre seu vício incontrolável.
Expliquei que fumar, quase sempre, passa de hábito para vício. E
que, depois de um tempo, o corpo passa a depender do cigarro para
se sentir minimamente bem.
Celeste ouviu tudo com atenção.
E me prometeu que pararia.
Ela não cumpriu, obviamente. Não digo nada, mas não é preciso ser
um gênio, nem sequer alguém com uma inteligência mínima, para
sentir o forte cheiro que passou a ficar impregnado em suas roupas
e em seu cabelo.
O que mais me chateia é saber que ela continua mentindo para
mim.
Na semana passada, toquei no assunto por alto, muito brevemente.
Ela me garantiu que tinha parado e agiu como se estivesse
ofendida, como se eu desconfiar minimamente de sua palavra
quanto a isso fosse como um xingamento.
E, mais uma vez, agi como se acreditasse na mentira dela.
Puxei-a para mim e a abracei, fechando os olhos com força e
torcendo para que ela tomasse juízo e percebesse quanto isso a faz
mal.
Dizem que a compulsão e o vício só se agravam quando passam a
ser cometidos no escuro, no mais completo sigilo, em segredo de
todos.
E é isso o que Celeste tem feito.
Escondido.
Por isso, hoje de manhã, quando abri a última gaveta do caixa da
floricultura, a gaveta que Celeste sempre verifica se trancou, mas
que, felizmente ou infelizmente, esqueceu dessa vez, e encontrei
oito maços de cigarro vazios, não me surpreendi.

23 de maio de 1941, às 3 horas da manhã.

Não consigo dormir.


Sinto que falhei.
Tandara e Joseph estão morando juntos agora, na casa onde eu
costumava viver com ela. Ontem, eles passaram o dia inteiro
cuidando da mudança, carregando inúmeras caixas e móveis novos.
Marcus passou o dia aqui, já que concordamos que ele apenas
atrapalharia se ficasse entre a mãe, o Joseph e as centenas de
caixas.
Ele, com seus quase 11 anos agora, passou o dia isolado em um
canto, de cara fechada, como se estivesse infeliz.
Como se estivesse infeliz em estar com o pai dele.
Tentei alegrá-lo várias vezes, mas não importava o que eu fizesse,
não era o suficiente.
Então, sim, sinto que falhei como pai.
Porque, apesar de sempre ter sonhado em ser o completo oposto
do meu pai, de sempre ter dito que eu seria diferente dele, que meu
filho teria orgulho de mim, Marcus apenas sorriu às dez da noite.
Quando Joseph apareceu para buscá-lo, e ele foi embora sem se
despedir e nem sequer olhar para trás.

5 de dezembro de 1942, às 11 horas e 44 minutos.


Há alguns dias, encontrei Celeste fumando no banheiro, às 06:00 da
manhã.
Foi a pior briga que já tivemos.
Ela estava de pé, sobre a tampa fechada da privada, com o rosto
próximo à janela, soltando a fumaça para fora de casa. Celeste
quase caiu ao ver que eu havia entrado no banheiro.
Ela tentou disfarçar, tentou agir com naturalidade, abrir um sorriso
nervoso e me dizer um “bom dia” alegre, mas falhou.
Depois que discutimos, saí de casa.
Fui até o Central Park e sentei sob as folhas da Florescer, me
acomodando em sua sombra. Atrás de consolo, passei a manhã
inteira lá, apenas ouvindo o canto dos pássaros e o farfalhar de
suas folhas verdes com o vento.
Aquela árvore foi minha melhor amiga naquele dia.
E hoje completam duas semanas desde que Celeste falou comigo
pela última vez.
O painel na parede da Charlotte está preenchido por todas as
páginas da revista do próximo mês, que já começou a ser
produzida.
O andar inteiro está completamente transformado. Ninguém
parece prestes a explodir e nem mesmo apressado. As pessoas
estão mais calmas, o que é um milagre se tratando de uma
segunda-feira de manhã na Charlotte.
Caminho entre as mesas dos escritores, parando ao lado da
de Eve, que move seus olhos até mim no mesmo instante. Sentada
de pernas cruzadas, com o cabelo curto preso em um rabo de
cavalo, minha melhor amiga usa uma blusinha branca e uma calça
pantalona xadrez.
Ela sorri.
— Bom dia!
Deixo minha bolsa sobre a estrutura de madeira e cruzo os
braços na altura do peito, a encarando friamente.
— Não acredito que você não me contou.
Eve sorri ainda mais.
— Assim como você não me falou que está grudada no melhor
amigo do Brandon? — provoca ela. — Sim, ele me disse que vocês
dois estão se encontrando quase todas as noites.
Afasto os braços do peito, estendendo um deles e puxando a
cadeira livre mais próxima que encontro. Arrasto as rodinhas pelo
chão, a posicionando perto da mesa, e me sento, sentindo quando a
cadeira afunda um pouco com o meu peso.
— Avisei o Brandon que se ele partir seu coração, vou matá-lo
— digo, ignorando-a. Na realidade, não cheguei bem a usar essas
palavras, mas acredito que encurralar o garoto na parede e gritar
com ele tenha demonstrado muito bem o que posso fazer, caso ele
machuque minha melhor amiga.
Eve ri um pouco.
— Bem que ele me disse que você é a vizinha mais ranzinza
do prédio inteiro.
— Talvez eu seja. — Dou de ombros. — Mas, pelo menos,
parei de reclamar do barulho que ele e o Howard fazem à noite.
Esses dois nunca calam a boca. Já me fizeram perder horas de
sono.
Minha melhor amiga parece interessada no assunto.
— Kale, não é? — pergunta. — O que está rolando entre
vocês dois?
— Nada — respondo imediatamente, tentando afastar
qualquer ideia que Eve possa estar tendo. Pigarreio. — Ele apenas
está me ajudando em um projeto. Mas não sabe disso ainda.
Os lábios da Eve se repuxam para cima.
— Já vi uma foto dele e do Brandon. Ele é bem bonitinho —
diz ela, cheia de segundas intenções, como se quisesse me
empurrar para os braços do Howard.
— Quer trocar o Houston por ele? — brinco. — Kale acabou de
levar um pé na bunda da noiva. Foi uma humilhação. Você poderia
consolá-lo.
Eve ri, se endireitando na cadeira.
— Passo. Estou feliz com o Brandon. — Seu olhar repleto de
segundas intenções se fixa no meu. — Mas você, Jessie Campbell,
talvez possa consolá-lo de verdade.
Finjo que vou vomitar.
— Não faço caridade — brinco.
Eve sorri, voltando sua atenção para a tela do computador.
— Campbell — a voz muito conhecida por mim me chama,
vinda de alguns metros de distância. — Na minha sala. Agora.
Me esforçando ao máximo para não revirar os olhos, me
levanto e pego minha bolsa. Eve me lança um olhar de compaixão
assim que dou as costas, seguindo em direção à sala de Abigail
Veronica, que deixou a porta de vidro aberta, para que eu pudesse
entrar, e já está sentada em sua poltrona de veludo roxa.
Respiro fundo ao atravessar a porta, me preparando para
passar mais uma semana servindo às necessidades de Abigail.

Howard atende a porta na segunda vez que aperto a


campainha.
Prendo a respiração no instante em que meus olhos descem
sobre ele, analisando-o da cabeça aos pés, desde os cabelos
desgrenhados, as bochechas vermelhas e o rosto amassado, como
se estivesse dormindo por horas, até o magro abdômen sem
camisa, a calça de moletom surrada e os pés descalços.
Preciso me esforçar para não babar.
Ao me ver, Kale franze a testa antes de levar as mãos aos
olhos, os esfregando, sonolento.
— Que horas são? — pergunta, a voz rouca pela exaustão,
afastando as mãos e me encarando novamente.
— Dez e cinco — digo. — Marcamos às dez, não marcamos?
Se você estiver muito cansado, a gente pode cancelar ou...
— Não — ele me interrompe, entrando em alerta de repente.
— Está tudo bem. A culpa foi totalmente minha. Tínhamos
combinado. — Seus lábios se moldam em um sorrisinho tímido. Ele
passa uma das mãos no cabelo, o bagunçando ainda mais. — Nem
percebi que havia dormido.
Balanço nos calcanhares, nervosa, me esforçando para não
parecer uma idiota em frente a uma obra de arte.
— Pode entrar. — Howard abre mais a porta, deixando espaço
suficiente para que eu entre em seu apartamento. — Eu só vou... —
Ele esfrega o cabelo mais uma vez, como se também estivesse
nervoso. — Só vou trocar de roupa rapidinho e já te encontro aqui
na sala, está bem?
Assinto ao dar o primeiro passo no piso de carpete do seu
apartamento.
— Não precisa ter pressa — aviso.
Ele sorri ao fechar a porta.
— Tem suco na geladeira, se quiser — fala. — Tinha
refrigerante também, mas o Brandon tomou tudo.
Abro um sorrisinho em forma de agradecimento.
— Eu estou bem, obrigada.
— Certo. — Howard estala a língua no céu da boca. — Eu já
volto.
Meneio a cabeça antes de observá-lo dar as costas a caminho
do corredor.
Em passos curtos, vou até o sofá. Meus olhos cravam no diário
do velho John, sobre a mesa.
Preciso começar a escrever sobre ele.
Ainda hoje, espero que cheguemos a algum rumo importante
em sua vida. Preciso que aconteça algo que valha a pena escrever.
Que valha a pena ser contado para o mundo. Uma história
impactante.
Para, principalmente, impressionar Abigail Veronica.
Sinto algo vibrar em minha bolsa. A abro, vasculhando em
busca do meu celular.
Quando minhas mãos encontram o aparelho, desbloqueando a
tela e vendo a foto que recebi, sinto o corpo todo gelar, paralisando.
Minha mãe, meu pai, Robert e Clarice estão sentados à mesa
da sala de jantar. Todos os quatro esbanjam um sorriso gigantesco
no rosto, como se estivessem genuinamente felizes.
E a cadeira de uma das pontas da mesa, onde eu costumava
sentar, se encontra vazia.
Meus olhos se enchem de lágrimas imediatamente. Pisco
demoradamente, tentando afastá-las.
E então levo os dedos ao teclado.

Eu: Clarice e Robert estão na cidade? Por que ninguém me avisou?


Mãe: Não pensei que se importaria.
Eu: O quê? Como assim eu não me importaria? São meus irmãos. Quase nunca
os vejo.
Mãe: Você veria com mais frequência, se tivesse feito a escolha certa.
Eu: Por que me mandou essa foto? Só para arrumar um pretexto para esfregar,
mais uma vez, na minha cara que não concorda com minhas escolhas?
Mãe: Você sabe que nunca vou me cansar de te dizer isso. Robert está
participando de um grupo de médicos e pesquisadores importantes na Inglaterra,
sabia? Sua irmã também está se destacando em Harvard. E você, o que tem feito
trabalhando como assistente?
Eu: Já chega. Não vale a pena discutir com você MAIS UMA VEZ. Boa noite,
Louise.

Bloqueio o celular e o jogo dentro da bolsa novamente.


Afogo o rosto nas mãos, sentindo algumas lágrimas
incontroláveis escorrerem pelas bochechas. O gosto é salgado ao
atingir minha boca.
O aparelho vibra mais uma vez, mas ignoro. Apenas respiro
fundo, me esforçando ao máximo para me recompor.
Alguém grita em minha cabeça.
Meu peito dói.
E me sinto patética.
O som de uma porta se fechando vem do corredor, seguido por
pesados passos.
Abruptamente, me levanto em um pulo, afastando as mãos do
rosto, me dando conta de onde estou.
Nem sequer tenho tempo para enxugar as lágrimas quando
Kale surge do corredor, congelando assim que seus olhos me
encontram.
Com as sobrancelhas juntas, ele me analisa preocupado.
— Está tudo bem?
Sentindo as lágrimas ameaçarem cair mais uma vez, apenas
nego com a cabeça, estendendo o braço e agarrando a minha bolsa
no sofá, disparando em passos rápidos em direção à porta.
Howard corre até minha frente, me barrando.
Congelo no lugar.
— O que aconteceu, Campbell? — pergunta sua voz
preocupada.
Meus lábios se abrem para responder, mas de repente me
faltam palavras. Fecho os olhos com força, sentindo as lágrimas
voltando com tudo. Tapo o rosto com as mãos, me achando uma
completa idiota.
Sinto quando Kale rela em um dos meus braços, arrastando as
pontas dos dedos por ali, como forma de consolo.
— Ei — diz com a voz baixa, praticamente um sussurro. — O
que aconteceu?
Não me afasto do seu toque. Apenas volto a encará-lo,
deixando que veja meu rosto horrível, completamente manchado
pela maquiagem.
— Minha mãe... — Respiro. — Ela me mandou uma
mensagem. Disse que meus irmãos estão aqui em Nova York, mas
que, como fiz a escolha errada em relação a minha vida, acha que
eu não me importaria em vê-los.
Kale desvia o olhar, respirando fundo. Observo seus punhos se
fecharem, como se estivesse tentando se conter por algum motivo.
— Não quero atrapalhá-lo com o meu drama familiar, Howard
— digo. Ele volta a me encarar no mesmo instante. — É melhor eu ir
embora. Desculpa. Te vejo amanhã.
Tento dar um passo, mas ele me barra mais uma vez, parando
a minha frente.
— Para — pede, chacoalhando a cabeça. — Por Deus, Jessie,
para! — Seus olhos acesos vêm até os meus. — É isso o que você
quer? Ir para o seu apartamento, ficar sozinha e deixar que seus
pensamentos te dominem por inteira?
Fito seu rosto, engolindo em seco.
Kale segura meus ombros, suspirando pesadamente.
— Olha, se for isso o que você quer, eu te deixo ir embora.
Mas acredito que, no fundo, ninguém goste de sofrer sozinho — ele
diz. Seus olhos verdes nunca estiveram tão profundos. — Se
Rossini tivesse apanhado mais na infância, ele teria sido um bom
compositor.
Franzo a testa em confusão.
— Foi Beethoven quem disse isso — Howard se adianta em
explicar. — Não estou querendo romantizar o sofrimento alheio, mas
acredito que cada uma das dificuldades que passamos, sejam elas
quais forem, nos transformam em pessoas mais fortes. — Ele ofega.
— E, como Celeste Laurent e John Peter Jones diriam, transforme
suas cicatrizes em flores, Jessie Campbell. Aprenda com todas
essas merdas pelas quais está passando.
Meus lábios se abrem para responder, mas, mais uma vez, me
faltam palavras.
Sou pega de surpresa quando Kale me puxa para si, me
abraçando.
Penso em recuar, mas desisto no mesmo instante.
Fecho os olhos.
— Por que está fazendo isso?
— O quê? — ele pergunta com a voz baixa.
Howard tem um cheiro absurdamente bom.
Fungo.
— Por que está sendo legal comigo se, durante todo esse
tempo em que nos conhecemos, te tratei mal?
Sinto seu peito subir e descer quando ele respira
profundamente.
— Porque sei como é se sentir rejeitado, Campbell — diz. — E
sei que às vezes só precisamos de um ombro para chorar.
Meus olhos ardem como nunca. E, por algum motivo, é isso o
que eu faço.
Me permito chorar desesperadamente nos braços de Kale
Howard.
Se há alguns meses me dissessem que Jessie Campbell teria
ficado até às três da manhã chorando no meu apartamento, eu teria
dito que essa pessoa estava completamente maluca.
E que seria bom ela procurar um médico.
Mas, agora, por algum motivo que ainda não sei muito bem
explicar, Jessie, a minha vizinha ranzinza, que costumava reclamar
de todos os barulhos que fazíamos, até dos mais inevitáveis —
como chegar em casa depois das dez da noite e precisar pisar no
corredor para andar —, está se aproximando de mim.
E está me mostrando uma parte de si mesma que, até dias
atrás, eu poderia jurar que não existia.
Uma parte vulnerável, fraca, machucada e indefesa. Uma parte
que contraria toda a postura de garota durona que tem tentado
passar durante os dois anos que nos conhecemos.
Jessie Campbell está abaixando os seus reforçados muros e
deixando que eu entre para conhecê-la.
E, por mais estranho que possa ser afirmar isso, estou
gostando de desbravá-la.
Gostando de saber quem ela é de verdade.
Pego o molho de chaves sobre a mesinha, me virando na
direção do corredor, pronto para gritar com o Brandon pela milésima
vez.
— Nós vamos nos atrasar, idiota! — berro.
São oito da manhã, temos que abrir o The Rock’s daqui vinte
minutos, e Brandon Houston está há duas horas se arrumando. Ele
nunca demorou tanto, nem sequer se preocupou com a aparência
antes. Algumas semanas atrás, Brandon acordava faltando dez
minutos para sairmos, tomava uma ducha absurdamente rápida e ia
aos tropeços até a porta, onde eu o esperava, já sem paciência.
Acredito que estar com a Eve tenha o mudado nesse aspecto.
Ando até a porta, destrancando-a e girando a maçaneta.
Reprimo um grito, cambaleando dois passos para trás, diante
da visão que tenho ao abri-la.
— Bom dia, Kale Howard — diz o Senhor Lincoln, um velhinho
bizarro que mora no oitavo andar. Sua boca faltando dentes sorri
para mim.
Dou mais um passo para trás, me afastando, tentando não
demonstrar o quanto estou surpreso, enojado e assustado ao
mesmo tempo.
O bicho que Lincoln tem entre as mãos possui pelo cinza,
quatro pequenas patas, orelhas e focinho rosados, e um longo rabo.
Um rato.
O meu vizinho está segurando um rato.
E está conversando comigo enquanto segura o animal, como
fosse algo normal e corriqueiro.
— Ainda bem que você apareceu! — fala Lincoln. Seus
cabelos grisalhos parecem maiores do que da última vez que o vi.
— Temos um pequeno problema rolando no prédio agora...
— Q-qual problema? — gaguejo, mantendo distância,
agradecendo pelo meu vizinho não estar ameaçando se aproximar.
Lincoln sorri mais uma vez.
— Sabe como é, eu fiz uma compra pela internet... — Ele
passa a segurar o animal com apenas uma mão, levando a outra até
o cabelo. Sou incapaz de conter a careta que se forma em meu
rosto. — E algo ruim aconteceu.
Junto as sobrancelhas.
— Como assim?
A expressão de Lincoln se transforma, indo de feliz para
extremamente preocupada, como se, apenas neste momento, ele se
desse conta de que o que fez, seja lá o que tenha sido, possa ter
causado uma grande confusão. Seus olhos azuis ficam distantes.
— Lincoln? — o chamo, inclinando a cabeça um pouco,
tentando tirá-lo de qualquer que tenha sido o transe no qual se
enfiou.
Ele chacoalha a cabeça, voltando a sorrir.
— Sabe o que é, garoto... — começa. — Está vendo essa
belezinha aqui na minha mão? — pergunta, como se fosse possível
não enxergar o bicho. Faço uma careta quando Lincoln dá um beijo
na cabeça do rato, que se mexe, inquieto, no meio de suas mãos. —
Eu comprei duas dezenas deles na internet.
Me esforço para que o meu rosto não expresse o horror que
me preenche por inteiro.
Meu Deus. Esse cara...
Ele é completamente louco!
Lincoln volta a me encarar, os olhos acesos, a expressão
elétrica e contente que sempre marca o seu rosto.
— Mas eles fugiram — ele complementa, rindo, como se fosse
a coisa mais engraçada do mundo inteiro. — Tem 19 ratos vivos
soltos pelo prédio agora mesmo.
Cambaleio mais dois passos para trás, soltando um grito
horrorizado.
Lincoln coça a nuca com uma das mãos, ainda sorrindo e
fitando meus olhos.
Por um instante, sinto medo dele e penso em fechar a porta na
sua cara.
Quem em sã consciência compra 20 ratos pela internet? Eu
sequer sabia que isso era possível.
— O que está acontecendo aqui? — a voz de Brandon
pergunta, vinda do corredor. — Ouvi vozes.
Me viro, encarando meu melhor amigo que, agora, saindo do
corredor, intercala o olhar confuso entre mim, a porta aberta, Lincoln
e o rato.
— O que... — começa, contendo seus passos. Brandon franze
a testa. — O que é que está... — Ele parece ficar sem palavras,
olhando fixamente para o bicho.
O ruivo abre e fecha a boca diversas vezes, sem saber como
reagir.
Volto a minha atenção ao Lincoln, que agora acaricia a cabeça
do rato, o tratando como se fosse um animal domesticado.
— Obrigado por avisar, Senhor Lincoln — agradeço, forçando
um sorriso que se desfaz no instante em que me lembro que foi ele
o louco que comprou ratos e deu início a toda essa confusão que sei
que está por vir. — Eu acho — completo baixinho.
Lincoln continua com a felicidade estampada no rosto ao dar
as costas e, sem mais nem menos, sair andando pelo corredor,
olhando atentamente para todos os cantos, buscando pelos
nojentos bichos perdidos.
Ainda impressionado com a conversa de doido que acabei de
ter, bato a porta.
— O que foi que... — Brandon aponta para a direção onde
nosso vizinho estava há alguns segundos.
Encaro meu melhor amigo, que continua petrificado pela
confusão.
— Acho melhor fecharmos todos os ralos e janelas antes de
sairmos. — É tudo o que digo.

A porta dupla do elevador se abre quando volto ao meu andar,


doze horas depois.
O céu de Nova York já se encontra escuro, sendo iluminado
apenas pela luz das estrelas e pela grande Lua Cheia que o ocupa.
Mais uma vez, Brandon saiu com a Eve. Pelo que entendi,
acredito que hoje ele tenha ido conhecer o restaurante favorito dela.
Estou feliz por ele. O relacionamento dos dois parece sério e,
por mais que Houston tenha chegado a pensar que eu me
lamentaria pela felicidade dele — o que é uma tremenda bobagem
—, a única coisa que quero é vê-lo contente com alguém que o faz
bem de verdade.
Sempre foi assim, no fim das contas.
Foi assim quando vi sua família adotiva chegar a Phoenix,
quando os observei olhar para o maior pestinha do orfanato inteiro,
admirando seu cabelo vermelho como fogo e as sardas que
salpicavam seu nariz e a bochecha, e foi assim quando, dias depois,
ajudei Brandon a fazer as malas e nos despedimos com um abraço
apertado e um “se você passar tempo demais sem me ligar, juro que
te esgano com as minhas próprias mãos”.
Seria um eufemismo dizer que vê-lo partir foi algo difícil para
mim.
Se pudesse escolher uma palavra para representar esse
capítulo em minha vida, eu diria que impossível, terrível,
insuportável e doloroso seriam boas opções.
Mas, mesmo que tenha sido um inferno, mesmo que eu tenha
me sentido, mais uma vez, como se estivesse me afogando, como
se litros e mais litros de água invadissem meu corpo, preenchendo
meus pulmões, me dominando por inteiro, deixando-me fraco, eu
sabia que Brandon estava melhor em Nova York.
Que estava melhor com uma família nova, que o amava
profundamente.
E me obriguei a ficar bem. Porque ele estava bem.
E agora tinha tudo o que nós sempre sonhávamos em ter.
Acredito que seja por isso que nós dois somos tão
apaixonados por esta cidade, afinal.
Porque a vemos como algo sinônimo de esperança.
Porque aqui, em Nova York, nesta cidade lotada de turistas,
dividida em 5 distritos, composta por inúmeras barraquinhas de
comida que ocupam quase todas as ruas e dominada por táxis
amarelos, foi onde pudemos nos reinventar.
E eu, Kale Howard, gosto de quem sou hoje. Gosto da pessoa
que me tornei.
Estou viajando em pensamentos, destrancando a fechadura do
meu apartamento de forma automática, já acostumado a fazer isso
todos os dias, quando um grito invade meus ouvidos.
Congelo meus movimentos, mantendo-me atento.
Travo o maxilar.
— Socorro! — alguém grita de novo.
Sinto o pavor me preencher quando reconheço a voz.
Jessie.
Campbell está gritando por ajuda. Desesperada. Agoniada.
Não saberia explicar o que faço nos próximos segundos.
Quando me dou por mim, já estou em frente a sua porta,
esmurrando a madeira, berrando para que Jessie me responda se
está bem.
Torcendo para que esteja bem.
De repente a porta se escancara.
E Campbell a atravessa, correndo, batendo-a e trancando-a ao
sair. Suas mãos tremem ao girar a chave na fechadura.
Ouço sua respiração ofegante.
E quando Jessie traz seu olhar até mim, parecendo aliviada ao
me ver, solto o ar que nem percebi que estava segurando.
Ela parece bem.
Graças a Deus. Ela parece bem.
— Eu... — Jessie ofega, apoiando as duas mãos nos joelhos,
tentando se acalmar. — Eu... — Ela engole em seco, como se
estivesse nervosa demais para encontrar palavras para usar. Ergue
o rosto, trazendo seus olhos até os meus novamente. — São dois...
Tem dois bichos no meu apartamento. Eles são...
— Ratos? — completo, arqueando uma sobrancelha.
Campbell franze a testa, assentindo.
— Como você sabe?
— Longa história — digo. — Onde eles estavam?
Ela se levanta, respirando profundamente.
— Na minha sala. Acabei de chegar em casa — explica.
Percebo que, pela sua roupa formal, as pulseiras que cintilam em
seu pulso, sobre a pele negra, e a longa franja de cabelo preto
presa perfeitamente por presilhas coloridas, Jessie está falando a
verdade. Seus olhos me encaram confusos. — O que está
acontecendo, Howard? Como você sabia que eram ratos?
Expiro demoradamente, passando uma das mãos pelo cabelo.
— O Senhor Lincoln — começo. — O velhinho do oitavo andar.
Nos encontramos hoje de manhã. Ele estava com um rato nas
mãos. — Campbell parece horrorizada. — Pelo visto, ele comprou
20 deles pela internet. E me disse que 19 deles haviam se perdido
pelo prédio — continuo. Abruptamente, ela tapa a boca com as duas
mãos, arregalando os olhos. Abro um sorrisinho nervoso. — Bom,
acho que encontramos 2 deles agora.
— Como eu vou... — Campbell afasta as mãos do rosto. —
Como eu vou entrar no meu apartamento agora?
Penso um pouco.
— Podemos ligar para a dedetização. — É o que digo, após
alguns segundos.

Jessie parece frustrada ao falar com os dedetizadores. Com


seu celular colado ao ouvido, equilibrando-o pelo ombro, ela
caminha de um lado ao outro em minha sala, inquieta.
Sentado no sofá, entrelaço as mãos, inclinando o corpo um
pouco para frente, focado em capturar as expressões que marcam o
rosto da garota, que permanece andando.
Um vinco indignado se forma em sua testa.
— Como assim vocês não podem agora? — pergunta ela,
parando de repente. Jessie começa a gesticular com as mãos no ar.
— Como assim só amanhã de manhã? — Ela passa um tempo em
silêncio, ouvindo o que a pessoa do outro lado da linha tem a dizer.
Seu semblante está longe de ser contente. — Não existe mesmo
essa possibilidade? Mesmo que outros moradores também estejam
reclamando? — Mais um tempo se passa enquanto a pessoa no
telefone a responde, provavelmente explicando algo. Jessie suspira,
fechando os olhos, levando a palma da mão à testa, se dando por
vencida. — Certo — diz. — Tudo bem. — Uma respiração profunda.
— Até amanhã, então. Obrigada pela atenção.
E desliga o telefone.
— Merda! — murmura ela, parecendo extremamente irritada.
Me endireito no sofá.
— O que eles disseram?
Seus olhos vêm até os meus.
Ela inspira, expirando demoradamente em seguida.
— Eles não conseguem vir hoje à noite — responde,
parecendo se esforçar para não surtar. Jessie guarda o celular no
bolso de trás da calça, sem desviar a atenção dada a mim. —
Disseram que, apesar de que outras pessoas do prédio também
tenham ligado e reclamado, já está tarde e é necessário marcar um
horário com antecedência. Marquei para amanhã de manhã.
Campbell caminha até mim, despencando ao meu lado no
sofá.
— E o que você vai fazer agora? — pergunto.
Ela me encara. Dá de ombros.
— Não tenho ideia.
Me encolho um pouco, por algum motivo, me sentindo
desconfortável para dizer o que acabei de pensar.
A sensação é como se eu fosse o Kale de 8 anos mais uma
vez. Com medo de segurar na mão de uma garota bonita.
— Você... — Fecho a boca. Engulo em seco. Esfrego uma mão
pelo cabelo. Abro os lábios novamente. — Sabe, você bem que
poderia dormir aqui, se quiser.
A expressão que toma o rosto de Jessie é indecifrável.
Sinto minhas bochechas queimarem no mesmo instante, como
se estivessem próximas a uma fogueira. Torço para não estar
ruborizado.
— Ah — Jessie finalmente fala. Ela desvia o olhar e esfrega
uma mão na outra, parecendo pensar por alguns segundos. — Acho
que não tenho escolha, não é mesmo? — Volta a me encarar,
abrindo um sorrisinho nervoso. — Quer dizer, se não tiver
problemas para você e o Houston e...
Quando me vejo, já estou de pé.
— Não tem problema nenhum — digo. — Brandon só volta
mais tarde. Você pode ficar no meu quarto, e eu na sala.
Jessie também se levanta. Seus ombros agora se encontram
um pouco relaxados, como se parte da sua preocupação tivesse ido
embora, já que agora encontramos uma solução e um lugar onde
possa passar a noite.
— E quanto as roupas, escova de dentes e essas coisas? —
pergunta.
Faço um gesto que indica que não precisa se preocupar.
— Tem uma escova de dentes extra na pia do banheiro —
aviso. — E eu posso te emprestar uma das minhas roupas para
dormir, se quiser. E então, quando os dedetizadores chegarem pela
manhã e resolverem as coisas, você pode ir para o seu apartamento
e se trocar.
Jessie sorri tímida, dando de ombros.
— Acho que essa é a minha melhor opção no momento, não
é?
Finjo pensar um pouco.
— Acho que sim. — Meus lábios se moldam em um sorrisinho
de canto.
E então aviso que preciso apenas de alguns minutos para
organizar o quarto.
E finalmente retiro todos os pôsteres ridículos da parede,
pregados há 7 anos.

A sala está escura e, apesar do sofá ser extremamente


confortável, eu me remexo, sem conseguir dormir.
Não tenho ideia de que horas são.
Brandon chegou faz pouco tempo.
Ele sorriu assim que me viu aqui e perguntou o que diabos
estava acontecendo. Eu dei um tapa em seu braço, o obrigando a
abaixar o tom de voz, e expliquei que Jessie estava dormindo no
meu quarto.
Ele fez alguns comentários engraçadinhos antes de dar as
costas e me deixar em paz, sumindo pelo corredor.
Não consegui fechar os olhos desde então.
O ranger de uma porta se abrindo é tudo o que escuto.
Permaneço quieto, em silêncio, sem mover um único músculo
sequer.
Ainda um pouco distante, uma luz branca é acesa e, quase no
mesmo segundo, passos baixinhos e leves invadem meus ouvidos
bisbilhoteiros.
Prendo a respiração assim que vejo ela surgir da penumbra.
Mantenho os olhos quase fechados, fingindo que estou dormindo.
Jessie aponta a lanterna do seu celular para o piso, onde anda
na ponta dos pés, se esforçando para não causar qualquer barulho
e não me acordar.
Sinto que vou passar mal quando reparo em sua roupa. Ou
melhor, na minha roupa que ela está vestindo.
A blusa branca de algodão é larga em seu corpo, assim como
o shorts cinza de poliéster. Uma grande quantidade de pano está
sobrando, como se pudessem caber duas dela ali.
Essa roupa costuma ficar folgada em mim, mas nela… Uau.
Mordo a língua por algum motivo.
Jessie passa ao meu lado em passos leves, a caminho da
cozinha.
Ouço quando um armário se abre, quando copos tilintam e o
som que a água faz ao ser derramada em um deles.
E assim que Campbell refaz o caminho de volta para o quarto,
me encontro sem ar.
E só quando tudo o que meus olhos quase fechados capturam
não passa da mais profunda escuridão novamente, percebo que
estive segurando o ar por todo esse tempo.
E respiro.
Esfrego os olhos, bocejando ao deixar o quarto do Howard, na
manhã seguinte.
Não tenho ideia de que horas são. Acordei com a luz forte do
sol, que entrou pela janela, já que esqueci de fechar as cortinas
antes de me deitar na confortável cama do Kale e ficar horas sem
conseguir pegar no sono.
Assim como fiz de madrugada, caminho na ponta dos pés
descalços pelo corredor, buscando manter o silêncio.
Não faço ideia se Howard ou Brandon já se levantaram.
Ontem, próximo às duas da manhã, ouvi o forte ranger da
porta se abrindo e a voz alta do Brandon, que até então não sabia
que tinha uma hóspede, vinda da sala. Me esforcei para não rir
quando escutei Howard o repreender, mandando-o falar mais baixo.
Assim que chego ao fim do corredor e observo o cobertor
amarrotado em cima do sofá e o travesseiro encapado por uma
fronha branca jogado no chão, deduzo que Howard já esteja
acordado há algum tempo.
O aroma de café que invade minhas narinas à medida que
atravesso a sala comprova minha teoria.
Na cozinha, atrás da ilha do balcão, de costas para mim, está
Kale.
Paro de andar no mesmo instante em que meu olhar crava em
suas costas expostas, sem camiseta, e no cós baixo de sua larga
calça de moletom preta, que expõe o cós de uma cueca boxer.
Meus olhos se arregalam um pouco.
Pigarreio.
Kale se vira na minha direção, segurando duas canecas, uma
em cada mão. Seus lábios se repuxam para cima quando seus
olhos percorrem meu corpo, observando que ainda estou usando as
roupas que me emprestou ontem.
Me encolho um pouco, sentindo minhas bochechas
queimarem.
— Oi — diz ele, a voz rouca de sono.
Engulo em seco.
— Oi.
Howard parece petrificado por alguns segundos, apenas me
encarando fixamente, como se sua mente o tivesse carregado para
longe.
Levo uma das mãos à nuca, coçando-a desconfortavelmente.
Kale finalmente se liberta de seja lá qual tenha sido o transe no
qual se meteu. Ele chacoalha a cabeça, como se quisesse mandar
seus pensamentos para longe. Em seguida, dá dois passos para
frente, se aproximando ainda mais da ilha que separa nossos
corpos.
— Eu... — Howard deixa uma das canecas fumegantes sobre
o mármore. Agora com a mão vazia, ele esfrega o cabelo, como se
estivesse desconfortável por algum motivo. — Eu fiz café e peguei
uma xícara para você — diz enfim, seus olhos se conectando aos
meus novamente. — Não sei se você gosta, mas, sabe como é...
Acho que isso é o que os anfitriões costumam fazer para as visitas
e, como você é minha visita, achei que... — Kale deixa a frase
morrer, esfregando o cabelo bagunçado mais uma vez.
Acho que essa é sua principal mania, no fim das contas.
Sorrio ao ver a expressão tímida e confusa que se estampou
em seu rosto.
— Eu gosto, sim — digo, estendendo uma das mãos e a
fechando sobre a alça da caneca preta de cerâmica. — Obrigada.
Os lábios de Kale se repuxam para cima, em um sorrisinho.
Ele afasta a mão dos cabelos, deixa sua própria caneca na bancada
e se vira de costas, dando curtos passos até onde o velho diário do
John Peter Jones se encontra, sobre o mármore, ao lado da pia.
Howard se vira para mim novamente e deixa o livro de capa
preta ao lado de sua caneca, entre nós dois.
— Pensei que poderíamos ler um pouco enquanto esperamos
os dedetizadores chegarem — diz.
Assinto, dando um gole no café quente. A cerâmica aquece
minhas mãos como luvas no inverno.
— Tudo bem — respondo.
Com um sorrisinho marcando os lábios, Kale abre o diário.

8 de junho de 1943, às 22 horas e 34 minutos.

Joseph Clifford faleceu essa manhã.


Infarto fulminante; fora o que os médicos disseram.
Sempre me perguntei qual deve ser a sensação. Dar o último
suspiro. Sentir as pernas fraquejarem, enquanto tudo em você vai
parando e, simples assim, desabar no chão. Olhar para algo pela
última vez antes de ser engolido pela mais tempestuosa escuridão
e, num piscar de olhos, deixar este mundo.
Me pergunto qual foi a última coisa a cruzar com os olhos de Joseph
Clifford.
Tandara disse tê-lo encontrado na sala de estar, caído sobre o piso
frio.
Seria um insulto dizer que minha cônjuge legal estava devastada.
Ela se encontrava muito além disso. Acho que não exista uma
palavra no mundo que possa ter poder suficiente para descrever o
estado em que Roche se encontrava.
No velório, ela estava sentada ao lado do corpo do Joseph,
limpando com um lencinho as lágrimas que escorriam
desesperadamente por seus olhos.
Com as mãos guardadas nos bolsos da calça, me aproximei, puxei
um banquinho para me sentar ao seu lado e, devagar, afaguei suas
costas, buscando demonstrar meu apoio. Demonstrar que ela não
estava sozinha.
Quando seus olhos vermelhos enfim me encararam, senti como se
meu coração se quebrasse em mil pedaços de tamanhos e formas
diferentes, todos com pontas afiadas o suficiente para dilacerar meu
peito.
Tandara, enfim, depois de tudo, havia encontrado um amor.
E agora ele se foi.
— Sinto muito. — Foi o que comecei dizendo, me esforçando ao
máximo para controlar a voz trêmula. — Sinto muito mesmo.
Ela se jogou em meus braços, afundando o rosto em meu pescoço,
me abraçando firmemente, soluçando em meio às lágrimas. Afaguei
suas costas com cuidado.
— Sei que pode parecer que essa guerra que se travou dentro de
você nunca terá um fim, que pode doer como nunca, que pode
parecer o fim do mundo, mas, acredite em mim, sempre tem um
depois. Essa dor vai diminuir. Basta ser forte o suficiente para
enfrentar a tempestade — eu disse, a apertando contra mim,
desejando poder sugar todo o sofrimento que a dominava. Suspirei
antes de finalizar meu discurso. — Transforme suas cicatrizes em
flores, Tandara Roche.
E dizer essas palavras, depois de seis meses sem me encontrar
com Celeste, foi estranho. Meu corpo se encheu de saudade e de
uma nostalgia sem fim. E fechei os olhos, deixando que a dor me
dominasse.
Tandara havia perdido para sempre o homem por quem era
perdidamente apaixonada.
E eu a mulher por quem eu queimaria o mundo, se fosse preciso. E
não deixaria que nem sequer uma única chama a encostasse.
Após o enterro, após assistir meu filho chorar desesperadamente e
se esquivar do meu toque inúmeras vezes, fui atrás dela.
Atravessei a porta da floricultura, ouvindo o tilintar do sino sobre a
minha cabeça. Minhas mãos suavam como nunca, trêmulas, e uma
enxurrada de medo e ansiedade me preenchia por inteiro.
Os olhos azuis de Celeste brilharam ao irem de encontro aos meus.
Havia se passado seis meses desde que a peguei fumando em cima
da privada. Seis meses separados, sem nos falarmos.
E, olhando para Tandara e Joseph agora, vendo que ela o perdeu
de uma hora para outra, me sinto um idiota por ter permitido que
meus poucos motivos ridículos me fizessem dar um tempo com o
que tínhamos.
Contei à Celeste sobre Joseph, sobre o velório, o enterro, sobre
Marcus ter ficado devastado e sobre Tandara ter se encontrado sem
chão.
— Não quero perder mais tempo longe de você. — Foi o que minha
voz baixa disse, sentindo meus olhos se enchendo de lágrimas. —
Nunca mais.
Celeste me puxou para si, me abraçando. Sentir seu perfume
novamente, depois de seis meses, foi como estar voltar para casa.
Foi como completar o lugar no meu coração que, até então, se
encontrava desaparecido.
E prometi a mim mesmo que jamais o perderia novamente.

28 de fevereiro de 1946, às 5 horas da manhã.

Aprendi que a gravidez se torna difícil após os 35 anos de idade.


E que é por isso que Celeste, com seus 43 anos agora, está
encontrando grandes e reais dificuldades para conceber.
Estamos tentando há um tempo, quase 3 anos, para ser mais exato.
Desde quando fizemos as pazes e voltamos, após seis meses
separados.
Para ser sincero, eu nunca havia pensado na possibilidade de ter
outro filho. Ainda estou focado em consertar as coisas com o
Marcus, que, agora com seus quase 16 anos, ainda não parece
gostar tanto de mim.
Dizem que o afastamento dos pais pode ser algo traumático para as
crianças. Acredito que para ele deva ter sido, de certa forma, apesar
de que era muito novo quando tudo aconteceu. Eu verdadeiramente
pensei que, com o tempo, Marcus fosse entender que, tanto eu
quanto Tandara, decidimos e concordamos que o melhor seria
seguirmos caminhos diferentes. E que, apesar de tudo, apesar de
ainda sermos casados no papel, não passamos de ótimos amigos.
Mas isso não aconteceu até então.
Meu filho me enxerga como o vilão da história e sequer abre espaço
para conversarmos, já que sempre se esquiva quando tento me
aproximar.
Já Tandara, finalmente se mudou de casa, saindo de onde morou
comigo e, em seguida, com o Joseph. Após a morte dele, ela
passou por um longo período de adaptação e superação.
Não foi nada fácil.
Eu e Celeste a visitamos várias vezes, tentando alegrá-la e distraí-la
sempre que podíamos.
Hoje, após quase 3 anos, ela está melhor, levantando sem
problemas todos os dias de manhã e voltando a socializar com
outras pessoas, que não sejam nosso filho, Celeste e eu.
Mas uma parte de seu coração, aquela parte que fora encontrada
quando o banqueiro Joseph Clifford cruzou com seus olhos pela
primeira vez... Bem, essa parte se perdeu para sempre.

O som da campainha faz com que eu dê um pulo no


banquinho que agora ocupo.
Deixando a caneca de cerâmica quase vazia sobre o mármore
do balcão, levo o olhar até a porta.
— Devem ser os dedetizadores — comento, por fim.
Howard se levanta, fechando o diário à nossa frente. Ele pousa
sua caneca dentro da pia antes de deixar a cozinha, caminhando
até a porta.
Me levanto rapidamente e sigo seus passos.
Paro logo atrás dele quando uma de suas mãos vão de
encontro à maçaneta, girando-a.
Dois homens igualmente altos, usando roupas brancas que
cobrem do pescoço aos calcanhares, botas pretas de borracha,
específicas para o trabalho, e máscaras que protegem o nariz e a
boca, estão parados bem à nossa frente, no corredor.
— Bom dia — a voz grossa e abafada de um deles diz.
— Bom dia — Kale responde.
Eles perguntam sobre a situação e Howard conta sobre o
Senhor Lincoln e sua incrível compra feita pela internet. Os dois
homens altos se entreolham como se nunca tivessem se deparado
com nada assim.
— São vinte ratos no total — Kale explica. — Da última vez
que fui atualizado, um já estava com o Lincoln. Encontramos outros
dois no apartamento à frente. — Ele aponta para minha porta de
madeira, logo do outro lado do corredor. Os dedetizadores se viram
brevemente para olhar. — Já os outros 17 perdidos, não faço ideia
de onde possam estar.
— Recebemos outras ligações vindas deste prédio, na noite de
ontem — fala o cara da direita. — Temos algumas pistas.
Howard meneia com a cabeça.
— Sabe nos dizer onde a moradora desse apartamento está?
— O da esquerda aponta para a minha porta. — Fomos informados
de que ela estaria aqui.
Kale abre um pouco mais a porta, dando espaço o suficiente
para que os altos homens percebam minha presença.
— Posso acompanhá-los, se quiserem — digo, enfim.
— Por favor — um deles responde. — Precisamos que
destranque a porta e nos libere para entrar.
Concordo com a cabeça imediatamente.
— Claro — digo. — Eu só preciso de dois minutos. Podem
esperar no corredor? — Ambos fazem que sim. — Ótimo.
Dou as costas, caminhando até o quarto do Kale, onde passei
a noite. Pego minha única pilha de roupas bem dobradas sobre a
madeira da cômoda, as guardando dentro da bolsa antes de voltar à
sala.
A porta se encontra quase fechada agora, apenas com uma
pequena fresta aberta. Howard está encostado na parede ao lado,
de braços cruzados na altura do peito exposto.
Ele se afasta da parede no instante em que seus olhos
percebem minha presença.
— Depois me conte se eles conseguiram ou não encontrar
outros ratos por aí — pede.
Quase rio. Nunca, em toda minha vida, cheguei a pensar que
estaria conversando sobre esse tipo de assunto com Kale Howard.
— Pode deixar. — Meus lábios se moldam em um sorrisinho
tímido assim que paro em sua frente. — Obrigada por... Você sabe...
— Deixo a frase morrer no ar.
Kale sorri.
— Não precisa agradecer.
Permaneço parada no lugar, sem saber muito bem o que fazer
e nem sequer como me despedir. Passei tanto tempo fingindo odiá-
lo, que, agora que estamos nos dando bem e convivendo com
frequência, muitas vezes é difícil saber como devo agir.
Nem ao menos sei se podemos nos considerar amigos de
verdade.
— Certo, então... — Howard quebra o silêncio, levando uma
das mãos ao cabelo, o esfregando em sua mania habitual. —
Conversamos mais tarde?
Meneio a cabeça em concordância, dando curtos passos em
sua direção. Meus olhos se fixam no tom esverdeado dos seus e,
antes que eu possa me dar conta do que estou fazendo, antes que
eu possa perceber quão desconfortável isso pode parecer, ou
quanto vou me arrepender depois, fecho a mão em um de seus
braços, depositando um rápido beijo em uma de suas bochechas.
Me afasto imediatamente, dando dois passos para trás.
Meu corpo todo queima como nunca.
E, simplesmente, congelo.
Howard também se encontra paralisado, apenas me
encarando com os olhos um pouco arregalados de surpresa.
Surpreso porque, neste momento, eu, Jessie Campbell, a
vizinha ranzinza que demonstrava odiá-lo, acabei de estalar um
beijo em sua bochecha.
Abro a boca para dizer qualquer coisa, mas me faltam
palavras. A fecho.
O ar a nossa volta parece pesado, como se até mesmo todos
os fantasmas tivessem parado para observar a cena ridícula que
acabei de proporcionar.
Abraço minha bolsa em frente ao peito e desvio o olhar,
passando a encarar o piso sob meus pés.
— Eu... — começo, mas paro. Fecho os olhos, chacoalho a
cabeça, respiro fundo e digo: — Até mais tarde, Kale.
E, simples assim, deixo o apartamento de Kale Howard feito
um furacão, ainda vestindo suas largas e confortáveis roupas.
— Cara, ela está tão na sua. — Pulo de susto ao ouvir a voz
do Brandon.
Me viro, encontrando-o parado em frente ao corredor, com um
sorriso gigantesco curvado em seus lábios.
Sinto vontade de socá-lo.
— Eu disse que Jessie Campbell tem uma queda por você,
cara! — ele cantarola, feliz, saltitando pelo carpete da sala feito uma
criança insuportável. — Eu disse!
Reviro os olhos, me esforçando para fazer um barulho alto ao
bufar.
— Ela não tem uma queda por mim — começo, tentando
explicar pela milésima vez. Falar com o meu melhor amigo, na
maioria das vezes, se iguala a conversar com um bebê de 2 anos,
que grita o tempo todo e cria diversas birras desnecessárias. — Ela
só estava agradecendo, Houston. — Dou de ombros. — Dar um
beijo na bochecha de alguém não significa “por favor, case comigo,
sou apaixonada por você!”.
Ele ri.
— Não mesmo — responde, finalmente parando de pular feito
um idiota. — Nesse caso, significa “por favor, me leve para a cama,
não consigo me controlar quando estou próxima a você!”.
Brandon volta a rir, me encarando com aquele olhar que
costuma usar quando sabe que está me irritando, mas não se
preocupa nem um pouco em parar. Muito pelo contrário. Está
adorando saber que, neste momento, sinto vontade de chutá-lo.
Meu Deus. Como a nossa amizade é saudável e linda!
— Você é um idiota — digo enfim. O sorriso que curva os
lábios do Houston se alarga. — Sabe disso, não sabe?
— Não. — O palhaço enruga o nariz. — Disso eu não sei. Mas
sei que você me acha lindo, cheiroso, gostoso, o príncipe encantado
dos seus sonhos e que, além de tudo isso, no off, sonha em se
casar comigo desde quando tinha 6 anos.
Não consigo ignorar a risada anasalada que me escapa.
Caminho até o sofá, pegando uma das almofadas horrendas e
a acertando em Brandon, que ri e tenta desviar, mas não consegue.
— Ainda não acredito que você deixou a Campbell dormir no
seu quarto. — Ele se agacha para pegar o objeto de fronha laranja,
que agora está no chão.
— Eu fui um cavalheiro, Houston — me defendo. — Sinto
muito se você não sabe o que este adjetivo significa.
— Você foi um tremendo gado, isso sim — ele cospe as
palavras.
Ergo uma das mãos no ar, estendendo o dedo do meio para o
meu melhor amigo.
— Vá à merda.
Brandon ri mais alto.
— Só estou falando a verdade.
Reviro os olhos novamente, já cansado de ter que aguentar as
gracinhas do Houston logo de manhã cedo.
— Precisamos nos arrumar — falo, na tentativa de mudar de
assunto quanto antes. Caminho até a cozinha, pegando a caneca
que Jessie deixou sobre o balcão, a levando para dentro da pia em
seguida. — Temos de estar no The Rock’s em menos de uma hora.
— Eu sei — ele resmunga, sua voz vinda da sala. — Odeio a
vida de adulto.
Rio um pouco, ligando a água da torneira por alguns
segundos, deixando que ela lave minimamente as xícaras vazias de
café. Faço uma nota mental para cuidar da louça quando
chegarmos em casa, à noite, depois do trabalho.
— Você não é o único — garanto a ele.
Pego o diário do John, deixado sobre o mármore da ilha, e
volto para a sala, encontrando Brandon deitado no sofá, com a
cabeça apoiada no meu travesseiro.
— Qual parte de “precisamos nos arrumar” você não
entendeu? — questiono.
Ele fecha os olhos, soltando um ronco falso, fazendo mais uma
de suas habituais gracinhas.
Ignoro-o, atravessando a sala a caminho do corredor. Ouço
meu melhor amigo rir atrás de mim, feliz por ter me tirado do sério.
Quando empurro a porta e observo meu quarto, simplesmente
não o reconheço.
O covil do Kale Howard nunca esteve tão arrumado antes.
A cama está perfeitamente organizada, com os cobertores
estendidos, travesseiros com fronhas e até um pequeno boneco do
Star Wars que eu nem sequer lembrava que existia.
Tudo parece mais limpo, por alguma razão.
Acredito que seja porque não tem mais roupas amarrotadas
por aí e nem sapatos, perdidos de seus pares, jogados pelo chão.
Jessie Campbell fez mesmo um milagre.
— Cuidado para eu não te pegar cheirando o travesseiro com
o perfume da sua amada — a voz de Brandon diz, próxima a mim.
Ainda do lado de fora do quarto, me viro, encarando meu
melhor amigo, que atravessa o corredor.
— Vai se ferrar, Houston! — Reviro os olhos, passando pela
porta e batendo-a fortemente em seguida.
Sirvo dois hambúrgueres vegetarianos na mesa número 20,
recebendo um sorriso desdentado de uma velhinha de cabelos
grisalhos e outro — porém, desta vez, com dentes — de sua neta
adolescente.
Seguro a bandeja vazia embaixo do braço, caminhando entre
as mesas do The Rock’s. Com apenas um movimento, estico uma
das mãos, agarrando dois copos sujos de clientes que já foram
embora.
A lanchonete se encontra uma tremenda bagunça hoje.
Brandon está prestes a enlouquecer no caixa, recebendo o
pagamento da fila enorme de clientes que está formada a sua
frente.
Dias assim são como o paraíso.
O The Rock’s, por mais que seja uma lanchonete com um
preço bem em conta, não tende a ter um movimento tão grande.
Nós, apesar de sermos os donos, não costumamos faturar uma
grana muito alta por mês.
Mas isso, de um tempo para cá, tem melhorado.
O que é incrivelmente maravilhoso, se pensarmos que
Brandon e eu somos dois caras de vinte e poucos anos, que nunca
tiveram uma boa oportunidade de estudo, se mudaram para Nova
York sem a menor visão de futuro, se reinventaram, deram a volta
por cima, e agora podem finalmente dizer que as coisas estão
dando certo para eles.
Acredito que o Kale Howard de 14 anos, acostumado a assistir
sua vida desandar mais um pouco a cada dia, estranharia se
pudesse me ver agora.
Gosto de pensar que ele se orgulharia de quem nos tornamos.
E de quem ainda vamos nos tornar.
Nunca fui um cara sonhador.
Acho que, quando se está acostumado com a tristeza, sonhos
passam a não fazer sentido.
Quando tudo o que a vida faz é pisar na sua cara, te chutar, te
humilhar e ainda cuspir em você, se torna difícil acordar todos os
dias de manhã e se sentir animado para fazer qualquer coisa.
Eram raros os dias nos quais eu acordava minimamente feliz
no orfanato.
E quando acontecia, quando eu sentia vontade de levantar da
cama, de viver, de enfrentar mais um dia, sempre era porque
Brandon Houston e eu havíamos combinado de fazer alguma
gracinha épica pelo Orfanato de Phoenix.
Nós dois, definitivamente, fizemos história naquele lugar.
E, com certeza, também deixamos alguns traumas nos
funcionários.
— Kale — a voz triste soa atrás de mim.
Deixo os dois copos sujos dos clientes em cima do balcão,
juntamente com a bandeja que segurava debaixo de um dos braços.
Me viro com os olhos alarmados, procurando quem me chamou.
Haven Piper funga ao atravessar a porta que leva à cozinha,
esfregando o rosto com as duas mãos. Seus cabelos pretos
cacheados estão presos em um coque no alto da cabeça, seu
avental — usado como uniforme de trabalho — está com a fitinha
das costas desamarrada, solto em frente ao corpo, e uma fileira de
pulseiras ocupam um de seus braços, tilintando umas contra as
outras.
Quando Haven afasta as mãos do rosto, reprimo a feição
assustada que ameaça estampar a minha face ao me deparar com
seu semblante manchado pela maquiagem borrada.
— Está tudo bem? — pergunto à garçonete, que nega com a
cabeça no mesmo instante. — O que aconteceu?
Ela se aproxima de mim em passos curtos, esfregando o rosto
pelo caminho, borrando ainda mais a maquiagem ao afastar as
lágrimas.
— Meu namorado acabou de terminar comigo — confessa,
fungando mais uma vez. — Eu não sei o que faço, Kale!
Sou surpreendido quando Haven me abraça, afundando seu
rosto coberto por lágrimas no meu ombro, molhando a manga da
minha camiseta. Sem saber muito bem como reagir, apenas retribuo
o abraço, afagando suas costas com uma das mãos, buscando
acalmá-la.
Haven Piper é nossa funcionária mais antiga. Ela trabalha
conosco desde o primeiro dia, quando o The Rock’s não passava de
um lugar absurdamente simples, com cadeiras de plástico e mesas
bambas com pés quebrados.
— O que aconteceu? — pergunto, genuinamente preocupado.
— Eu não sei — ela responde, chorando desesperadamente.
— Eu não sei! Acabei de receber uma mensagem. — Haven se
afasta um pouco, me encarando nos olhos, soltando um risinho
indignado em meio as lágrimas. — Acredita que o idiota deu um fim
a tudo o que vivemos por mensagem? Você consegue acreditar
nisso, Kale? Foram 3 anos! — Ri mais uma vez. — Foram 3 anos de
relacionamento jogados no lixo sem mais nem menos e, de acordo
com ele, merecedores de um fodido término por mensagem!
Haven leva as mãos até o avental azul, o retirando pela
cabeça, afastando-o do corpo.
— Preciso ir embora — volta a dizer, estendendo o tecido para
mim, que nem sequer hesito em segurá-lo. — Preciso encontrá-lo e
conversar com ele.
Não penso duas vezes antes de menear a cabeça.
— É claro.
Seus lábios se moldam em um sorrisinho triste antes de dar as
costas, andando em largos passos a caminho da porta.
Estou prestes a me virar, para guardar o avental azul em uma
das gavetas do balcão, quando Haven me chama mais uma vez.
— Kale — diz ela, a alguns passos de distância.
Volto a encarar seus olhos repletos de lágrimas, entendendo a
dor de ter o coração partido, sentindo-a como se fosse minha.
— Fica mais fácil depois, não fica? — Sua voz exala o mais
profundo desespero.
Nem sequer preciso de tempo para entender o que Haven quer
dizer com isso. Ela sabe muito bem sobre Beatrice e eu. Estava
presente no casamento e viu com os próprios olhos quando tudo
aconteceu.
Engulo em seco, meus lábios se moldam em um sorrisinho
triste, e minha voz sai trêmula quando digo:
— Sim, fica sim.
— Foi só um beijinho na bochecha. — Sentada a sua mesa,
Eve tenta me acalmar pela milésima vez. — Não entendo por que
está tão nervosa. Não é como se fosse o fim do mundo.
Desabo em uma das cadeiras de rodinhas da Charlotte,
sentindo quando ela afunda com o meu peso.
— Foi muito estranho. — Resmungo, passando as mãos pelo
rosto. — Kale deve ter me achado maluca.
Eve faz um gesto com uma das mãos, como se dissesse, mais
uma vez, que não, que estou blefando e paranoica.
— Ele nem sequer deve ter se importado, Jessie — pontua. —
Nem deve ter notado, para falar a verdade.
— É claro que notou! — garanto. — Foi vergonhoso. O clima
ficou muito estranho depois. Eu quis sumir. Quis que um buraco se
abrisse sob meus pés e me engolisse, me levando para um universo
paralelo, onde Jessie Campbell não passasse vergonha ao lidar
com seu vizinho bonitão.
Nem ao menos tenho tempo de processar o que acabei de
dizer quando um sorrisinho se curva nos lábios pintados de
vermelho da minha melhor amiga.
— Bonitão, é? — Ela cutuca meu ombro.
Enrugo o nariz.
Levo minha mão até a dela, a afastando.
— Você prestou atenção no que eu disse, ou só ouviu a parte
do bonitão?
Eve suspira, mostrando estar cansada desse assunto.
— Tudo bem — digo, enfim, colocando o meu cérebro para
procurar um novo tópico para conversarmos. — Como foi a
entrevista com o boxeador? Nem chegamos a falar sobre isso.
Ela apoia a palma de uma das mãos na borda de sua mesa,
dando impulso para girar sua cadeira totalmente na minha direção,
ficando frente a frente comigo.
— Foi muito boa — relata. — O Blaine é muito legal.
— Abigail gostou da matéria? — Mordo o lábio inferior, receosa
após ter feito essa pergunta. Abigail Veronica é, sim, uma chefe
difícil de agradar, mas o que mais nos faz temer são seus
comentários sinceros e, na maioria das vezes, maldosos.
Eve faz que sim com a cabeça.
Meus ombros caem um pouco, aliviados.
— Ela disse que adorou — relata com um sorriso no rosto. —
Até achei que estava sonhando, para ser sincera. Você sabe como
são raras as vezes nas quais Abigail se dá ao trabalho de elogiar
alguém ou alguma matéria. Normalmente ela só faz um sinal de
positivo com o dedão ou grita com a pessoa.
Rio um pouco.
— É literalmente impossível não gostar do seu trabalho, Eve
Wade.
Minha melhor amiga faz uma careta.
— Diga isso para a Abigail de dois meses atrás, que
praticamente pisou no meu texto sobre a moda norte-americana.
Rio um pouco, incapaz de me conter.
— Ela gosta de você — digo. — Sabe quão raro isso é, não
sabe? Aquela mulher é uma bruxa, mas, mesmo assim, ainda te
escolheu para trabalhar em uma matéria para a Charlotte em cima
da hora. Ela te julgou como a melhor opção na revista. Isso é
excelente.
Eve parece se animar. Ela se recosta na cadeira, abrindo um
sorrisinho nos lábios.
— É, acho que sim.
Um breve alarme ecoa por todo o andar, indicando que o
evento que todos nós tememos está prestes a acontecer.
A reunião para definir a pauta da revista do próximo mês.
Quando todos os escritores se reúnem a uma única mesa
grande, se acomodam em cadeiras estofadas e confortáveis, e
apresentam suas ideias à Abigail, que julga a maioria como
“péssima” ou “nem a minha mãe se interessaria o suficiente para ler
isso”.
E, para mim, o evento no qual passo uma hora e meia de pé,
servindo cafés feito uma máquina programada.
Arrasto a cadeira pelo chão depois de me levantar, deslizando
as rodinhas pelo piso, colocando-a de volta na mesa vazia onde a
peguei. Os escritores começam a se levantar, seguindo em massa
na direção da sala de reuniões. Em fila. Como robôs treinados para
obedecer.
Eu e Eve vamos logo atrás deles.
— Estou cansada de servir cafés — reclamo baixinho, abrindo
o sorriso mais forçado no rosto, tentando disfarçar quanto odeio
meu trabalho, à medida que nos misturamos aos outros.
— Eu sei — ela responde. Seus lábios se moldam em um
sorriso como o meu. Tão falso quanto o Dan Humphrey em Gossip
Girl. — Estou cansada de ver você servindo cafés.
— Preciso fazer alguma coisa. — Nós entramos no largo
corredor, ainda seguindo a dezena de escritores que conversam
entre si, carregam papéis e verificam o horário em seus relógios de
pulso.
— Por favor, Jessie, não invente de fazer nenhuma gracinha.
Você... — Eve para, dando um breve aceno de cabeça em
cumprimento para Sarah, uma colunista de pele negra e cabelos
cacheados que passa ao nosso lado. Os lábios de Sarah se moldam
em uma fina linha quando ela nos ultrapassa. Minha melhor amiga
se vira para mim novamente, baixando ainda mais a voz antes de
continuar. — Você sabe muito bem quanto precisa desse emprego.
Forço ainda mais meu sorriso, sentindo meu maxilar doer,
como se pudesse rachar a qualquer momento.
— Não vou perdê-lo.
— Está pensando em fazer o que, então? — pergunta Eve,
seus olhos focando nas pessoas a nossa frente. — Cuspir no copo
da Abigail todos os dias de manhã? Pedir para seu vizinho maluco
levar os vinte ratos para a mansão gigante dela? Sequestrá-la e só
liberá-la quando aceitar te dar uma promoção?
Preciso me esforçar para não rir.
— Você sabe que eu não faria nada disso. — Suspiro. O
sorriso falso em meu rosto some. — Poxa, só queria uma chance...
Isso não é pedir muito, é?
Eve para de andar quando chegamos à porta de vidro que leva
à sala de reuniões. Minha melhor amiga segura em um dos meus
pulsos, me puxando em direção à parede, me afastando das
pessoas que agora entram no local.
— Jessie — ela começa. Foco meus olhos em seu rosto. —
Você sabe, melhor do que ninguém, que é uma das pessoas que
mais merecem se sentar a uma mesa ao lado da minha. Sabe
quanto te acho incrível. Sempre te disse isso. — Eve suspira,
fechando os olhos por alguns segundos. Quando ela os abre, me
encara daquele jeito que costuma fazer quando está prestes a agir
como se fosse minha mãe. — Acontece que é necessário ter
paciência. Você sequer terminou a faculdade ainda e...
— Você sabe que muitos daqui não tinham se formado quando
foram contratados! — a interrompo.
Eve fecha a boca por alguns segundos, ficando em um
completo silêncio, tentando pensar no que dizer para retrucar minha
afirmação. Ela expira, levando as duas mãos aos meus ombros.
— Escute — começa. Suas íris castanhas permanecem
focadas nas minhas. — Você precisa ser paciente, Jessie Campbell.
Tem apenas 22 anos. Não dá para querer atropelar todas as etapas
da vida. É necessário viver um dia de cada vez. Com calma.
Me esforço para não bufar.
— Você se tornou escritora aos 22, há 3 anos. Me diz por que
precisa ser diferente comigo!
Eve expira demoradamente.
— Você sabe que a revista estava passando por uma crise
quando fui contratada, Jessie — fala. — Hoje a Charlotte está bem.
Tem muita gente no time com um talento incrível. Muita gente com
muito mais experiência do que você. — Ela continua me encarando
com atenção, aguardando pela minha resposta. — Infelizmente, é
necessário ter paciência.
Me desvencilho de seu toque, sentindo os olhos arderem.
Engulo toda a amargura em minha boca, desviando o olhar.
O corredor está vazio agora. Apenas sendo ocupado por Eve e
eu.
— Precisamos ir. — É tudo o que digo antes de dar as costas
para minha melhor amiga e empurrar a porta de vidro da sala de
reunião, me deparando com o cômodo lotado, todas as cadeiras
ocupadas, e Abigail em frente ao telão, com um controle remoto em
uma das mãos.
Dou curtos passos até me posicionar no meu devido lugar.
Ao lado da máquina de café.

Acomodada em uma das cadeiras, Eve não consegue desviar


os olhos de mim nem sequer por um segundo, como se tentasse
desvendar as emoções que minha expressão transmite, como se
questionasse se suas palavras me feriram ou não. Se causaram um
grande estrago ou foram ignoradas.
A resposta é sim.
Elas me acertaram feito diversas facas dilacerando o peito.
Sem o menor resquício de piedade.
— Estou tentando manter a calma por aqui — a voz séria de
Abigail anuncia.
Afasto a atenção dada à Eve, passando a focar em Abigail.
Em frente ao grande telão, vestindo um blazer azul, com os
curtos cabelos platinados devidamente penteados para trás e
brincos enormes cintilando nas orelhas, minha chefe desliza o olhar
furioso pela sala, encarando cada um de sua equipe.
O medo que paira pelos ares é surreal.
— É definitivamente impossível que nenhum de vocês tenha
uma ideia boa o suficiente — Abigail declara, cerrando um dos
punhos ao lado do corpo, como se se esforçasse em manter-se no
controle. Alguns escritores desviam o olhar e abaixam as cabeças,
constrangidos. — Estou falando sério! Como podem ser tão
devagar? Tiveram tempo o bastante para pensar em me apresentar
ideias boas!
— Nós podemos falar sobre a moda sul-americana — uma voz
que não sei identificar muito bem sugere, soando um tanto nervosa.
Abigail apenas fecha os olhos, leva uma das palmas das mãos
à testa e chacoalha a cabeça em negação, já exausta de receber
ideias ruins.
— Quantas vezes terei de repetir que não quero que a revista
apenas foque em temas relacionados à moda? — pergunta,
voltando a encarar sua equipe. — Preciso de um tema amplo. Bom.
Que possa envolver diversos assuntos, abranger diferentes
entrevistas, pontos de vista, pessoas, ideias e opiniões. — Apoia as
duas mãos nas beiradas de sua mesa, inclinando um pouco o corpo
para frente. — Precisamos de algo extraordinário.
De repente algo estala em minha mente.
Sorrio ao pensar na ideia, buscando Eve com o olhar. Assim
que encontro suas íris castanhas, que ainda me encaram com
atenção, e ela percebe meu sorriso, não hesita em chacoalhar a
cabeça levemente em negação.
Ignoro-a, passando a dar atenção à máquina de café ao meu
lado.
O silêncio se torna ensurdecedor à medida que passo a
preparar o café no copo térmico que Abigail gosta de usar durante
as reuniões. Os únicos sons que ainda se podem ouvir são os
suspiros pesados dos escritores, o click das canetas ao terem suas
pontas ativadas, e as engrenagens das dezenas de cérebros
funcionando, buscando ideias para impressionar Abigail Veronica.
Esta reunião poderia se estender por horas, caso eu não
tivesse uma ideia brilhante.
Ando pela sala, ouvindo o som que as solas das minhas
sapatilhas fazem sobre o piso, a caminho de Abigail.
Sinto os olhos de Eve me seguindo a cada passo.
Quando paro ao lado de minha chefe, ela ergue o olhar, me
encontrando. Semicerra os olhos, como se perguntasse a si mesma
quando foi que me solicitou ou disse que eu poderia me mexer e
sair da maldita parede.
— Sim?
Respiro fundo, tentando conter a ansiedade.
Sentindo as mãos tremerem em volta do copo, o estendo em
sua direção. Abigail não hesita em pegá-lo, como se seu corpo todo
implorasse desesperadamente por cafeína.
Finalmente abro a boca para falar.
— Aproveitei para te trazer um café e dizer que... — Engulo
em seco. Ela me fita com atenção, esperando que eu continue.
Sinto vontade de dar meia-volta e sair correndo, mas, ao invés
disso, tudo o que faço é cravar os pés no chão, estufar o peito e,
enfim, tomar coragem. — Quero dizer que tenho uma ideia. Uma
boa ideia.
Abigail permanece me encarando em silêncio por alguns
segundos, assim como todos os outros na sala.
Mais de vinte pares de olhos vidrados em mim, esperando pela
resposta da nossa chefe.
Cruzo os dedos de uma das mãos atrás do corpo, torcendo
para que ela ao menos me dê a chance de sugerir algo.
Abigail pousa o copo térmico em sua mesa, expirando
demoradamente ao se acomodar na cadeira, se sentando, cruzando
as pernas e ficando muito mais baixa do que eu.
— Estou ouvindo — declara, para minha surpresa.
Meu coração dá um salto dentro do peito.
— Certo — começo, deslizando o olhar pela sala. Todos me
encaram com atenção. Todos, exceto Eve. Minha melhor amiga
estampa uma feição estranha em seu rosto, como se sentisse
vontade de se esconder sob a mesa e fugir engatinhando sala afora,
se esforçando para passar despercebida. Expiro. — Sei que estou
sendo um tanto intrometida. E peço desculpas por isso. Mas senti
necessidade de contar minha ideia e... — Engulo em seco, perdida
no meu próprio raciocínio. Decido ir direto ao ponto. Volto a encarar
Abigail. — Pessoas reais. Essa foi minha ideia — revelo de uma vez
por todas. Ela inclina a cabeça um pouco para o lado, esperando
que eu prossiga. — Podemos fazer uma edição inteira focada em
temas reais, mostrando tudo o que há através das câmeras. Sem
editar as fotos, deixando que marcas e cicatrizes na pele das
modelos fiquem à mostra. Podemos entrevistar celebridades, pedir
para nos contarem todos os desafios que existem por trás da fama.
Mostrar aos leitores que nem tudo é o que parece. E que, hoje em
dia, com as redes sociais, o photoshop e a maquiagem, se tornou
muito fácil mostrar apenas aquilo que queremos que os outros
enxerguem.
Fico surpresa com a facilidade que cada palavra escapa pelos
meus lábios.
E penso que enlouqueci quando vejo um pequeno e discreto
sorriso se curvar no rosto de Abigail.
Eu jamais a havia visto sorrir. Nem sequer sabia que ela sabia
demonstrar estar contente.
— Campbell — ela começa. A sala fica em silêncio,
aguardando. Sinto as pernas fraquejarem, como se pudessem me
derrubar no chão a qualquer momento. — Obrigada pela ideia.
E, simples assim, Abigail Veronica se levanta, deslizando os
olhos pela sua equipe.
Eve está me encarando boquiaberta quando levo meu olhar
até o dela.
— Iremos usar o que a Jessie disse — anuncia a editora-
chefe. — Eu gosto. E, já que todos vocês foram imprestáveis, não
temos nada melhor no que trabalhar. — Ela endireita a postura,
limpando a garganta antes de engrossar a voz, tornando-a mais
autoritária ainda. — Estão dispensados.
No mesmo segundo, as pessoas se levantam, juntando das
mesas os papéis com suas anotações. Cadeiras se arrastam,
burburinhos começam, e uma fila se forma em frente à porta, à
medida que todos vão saindo.
Eve ainda parece ter visto um fantasma quando segue para a
fila, como se também estivesse embasbacada com a reação que
nossa chefe teve ao ouvir minha ideia.
Ao dar ouvidos a sua assistente.
Volto meus olhos até Abigail novamente, que agora dá um gole
no café que preparei.
Sorrio, enfim me dando conta do que acabou de acontecer.
Sinto cada mínima parte do meu corpo se animar de repente.
— Então, isso quer dizer que eu... — começo, balançando nos
próprios calcanhares, me sentindo como uma garotinha de 7 anos,
feliz após ser presenteada com um pirulito gigante. — Vou poder...
tipo... trabalhar nisso?
Abigail franze a testa após pousar o copo térmico de volta na
mesa, me encarando.
— Como assim?
Seu tom de voz faz com que a felicidade voe para fora do meu
corpo, me abandonando impiedosamente.
Abro a boca e a fecho diversas vezes, buscando encontrar
palavras, tentando não passar vergonha.
— Pensei que, como a ideia foi minha, eu poderia ter minha
primeira matéria e...
Paro de falar quando Abigail começa a rir.
Uma risada alta. Exagerada.
— Jessie, querida, por favor, não aja assim — ela fala, se
recompondo. — Não receba uma moeda e se anime ao pensar que
receberá o pote inteiro de ouro em seguida. A vida não funciona
dessa maneira.
E, simplesmente, sem dizer mais nada, Abigail dá as costas
para mim, caminhando até a única porta da sala.
Desabo em sua cadeira, sentindo meus olhos carregados em
lágrimas. Minhas mãos tremem quando as levo até o rosto,
afogando-o.
Abigail Veronica precisa entender que Jessie Campbell já está
mais do que pronta para sair em busca do pote de ouro.
O cheiro de queimado invade minhas narinas quando chego à
sala.
Meu corpo se desespera no mesmo instante, correndo até a
cozinha feito um furacão, pronto para dar de cara com o desastre
que provavelmente fora causado.
Há mais ou menos quarenta e cinco minutos, Brandon passou
no meu quarto para me avisar que estava indo fazer um bolo.
E agora vejo que ele o queimou.
Parado em frente ao forno, sem camiseta, um guardanapo de
pano amarrotado sobre um dos ombros, duas luvas gigantes e
vermelhas nas mãos, Brandon Houston tenta consertar o problemão
que causou.
A fumaça branca se espalha pela cozinha e, por um instante,
sinto medo do alarme de incêndio ser ativado automaticamente.
Mas esse medo salta para fora do meu corpo no momento em
que meu melhor amigo leva as mãos para abrir a portinha do forno,
sendo substituído pelo pavor que me invade, temendo sua morte,
devido ao contato direto com o vapor quente.
— Se afaste, idiota! — grito imediatamente, pronto para pular
em cima dele e o arrastar à força.
Houston se sobressalta, congelando os movimentos das mãos
no mesmo instante.
— Feche e desligue o forno — parado atrás do balcão da ilha,
eu o instruo.
Brandon consegue ser pior do que uma criança de 5 anos
quando se esforça.
Ele obedece, empurrando a porta do forno, fechando a
pequena brecha que havia aberto. Em seguida, desliga tudo, se vira
para mim e enruga o nariz, deixando que sua habitual expressão de
quem sabe que fez merda se estampe em seu rosto.
— Eu acho que deixei por tempo demais — diz enfim, tirando
as grandes luvas protetoras das mãos.
Me esforço para não rir. Brandon Houston é um tremendo
desastre.
— Você acha? — questiono. Ele ri um pouco, chacoalhando a
cabeça, como se nem ele acreditasse no que acabou de fazer. —
Por favor, sempre me lembre do motivo pelo qual não te deixo
cozinhar.
Houston me encara como se estivesse ofendido.
— Sabe, eu realmente amo o modo como você acredita no
meu potencial de adulto responsável.
Reviro os olhos.
— Você sabe muito bem que está longe de ser um adulto
responsável — digo. — É por isso que ainda mora comigo. Porque
sou encarregado de evitar que se mate ao fazer alguma besteira.
Houston também revira os olhos, puxando o guardanapo de
pano de cima do ombro, o deixando sobre o mármore que nos
separa.
— Minha mãe choraria ao ver o modo como você fala comigo.
— Brandon me fita fixamente. — Ela pensaria ter perdido o posto de
mandar em mim.
— Sua mãe me agradece todos os dias por ser o responsável
por te manter na linha — provoco. É mentira, claro. Mas nem tanto
assim. A Senhora Houston obviamente entende como nossa relação
de melhores amigos funciona.
Brandon é o engraçadinho irresponsável e eu sou a babá que
o segura pela coleira, impedindo que saia pelo mundo fazendo
merda ou que seja o causador da Terceira Guerra Mundial.
É uma amizade que, querendo ou não, mesmo que seja
estranha pra cacete, funciona de alguma forma.
Houston não responde as minhas farpas, apenas solta um
longo suspiro e desliza o olhar pela cozinha, analisando todo o
desastre. Desde a dezena de peças sujas de louça até a linha de
fumaça que ainda sai do forno.
— Talvez ela deva mesmo agradecer — diz, expirando
demoradamente.
Um sorriso se molda em meus lábios. Me afasto do balcão,
dando a volta por ele, em direção a Brandon.
— Vamos logo. Vou te ajudar a organizar toda esta bagunça.
Ele assente. Com calma, começamos a limpar tudo. Abro o
forno com todo o cuidado do mundo, usando luvas para tirar a forma
extremamente quente de dentro dele, a deixando ao lado da pia em
seguida. Houston segura uma sacola enquanto eu raspo toda a
massa queimada para dentro dela, me sentindo péssimo por jogar
comida fora.
— Vou descer para levar isso para o lixo — ergo a sacola,
avisando ao Brandon.
— Tudo bem — responde ele, parando em frente à pia lotada.
— Vou tentar dar um jeito na louça enquanto isso.
Aceno com a cabeça antes de me virar e seguir em direção à
porta, ouvindo o som da torneira sendo ligada e a água caindo na
pia da cozinha.
As solas dos meus sapatos se colam no chão depois que giro
a maçaneta, tendo visão do corredor. Ou melhor, de quem está no
corredor.
Jessie Campbell parece ter visto uma assombração quando
seus olhos se conectam aos meus.
De repente não sei mais como respirar. Não sei mais como me
mover e não sei mais como falar.
Nós dois congelamos. Ambos nos encarando. Sem dizer uma
única palavra.
A imagem de Jessie usando minhas roupas para dormir e
atravessando minha sala, na penumbra da noite, invade meus
pensamentos, junto com a sensação do beijo que estalou em minha
bochecha.
Sinto que estou queimando, por algum motivo.
Aquela foi a última vez que nos vimos.
— Hm, oi — sua voz trêmula e desajeitada é a primeira a
quebrar o silêncio.
Instintivamente, levo a mão livre aos fios de cabelo, os
bagunçando um pouco.
— Oi — finalmente digo.
Jessie abre um sorrisinho tímido, dando as costas para mim,
andando em silêncio a caminho do elevador. Fecho a porta atrás de
mim, seguindo-a sem hesitar.
Só então percebo que Campbell também segura uma sacola
de lixo em uma das mãos.
Quando finalmente me aproximo dela, a porta dupla e metálica
do elevador se abre, nos salvando da situação constrangedora que
nos cercaria ao esperá-lo em silêncio. Jessie entra primeiro,
estendendo um dos braços para segurar a porta para mim, que a
atravesso no mesmo instante.
Observo quando ela afunda um dos dedos no botão do térreo.
As portas se fecham, e a grande caixa metálica nos engole,
iniciando sua descida.
Um silêncio constrangedor nos abraça.
Começo a balançar nos próprios calcanhares, inquieto.
— Nada de mais ratos até agora? — resolvo puxar assunto.
Odeio o modo ridículo como minha voz soa.
Jessie pigarreia antes de responder.
— Não. E na sua casa?
— Também não.
— Ótimo.
— É.
Mais silêncio.
— Os moradores deste prédio são estranhos — digo, após
alguns segundos que parecem durar uma eternidade.
— O Senhor Lincoln é estranho — Campbell corrige, sorrindo
levemente,
Rio um pouco, chacoalhando minimamente a cabeça, me
sentindo aliviado por ter trazido um ar mais leve a nossa volta.
— É. Isso não tem como negar.
A porta dupla se abre à frente.
Jessie sai primeiro, indo a caminho do lixo. Eu a sigo de
imediato.
— Ele é viúvo, não é? — pergunta, erguendo uma das tampas
da lixeira reciclável, jogando a sua sacola dentro dela.
Paro ao seu lado, fazendo a mesma coisa com a orgânica.
— Não sei. — Dou de ombros. Prendo a respiração até me
livrar da sacola com o bolo queimado do Houston e tampar a lixeira,
minimizando o cheiro. — Acho que sim.
— Já ouvi alguns moradores fofocando — continua Jessie,
voltando na direção do hall do elevador. — Eles falaram que Lincoln
enlouqueceu depois da morte da esposa.
— Pode ser — falo, a seguindo. — Nunca o vi acompanhado
por ninguém. Sempre está sozinho, fazendo alguma bizarrice por aí.
Aproveitamos que a porta dupla metálica ainda continua
aberta, parada no térreo, e a atravessamos sem hesitar.
Eu aperto o botão do sexto andar, fazendo com que a luz
vermelha se acenda em volta dele.
As portas se fecham e a caixa metálica nos engole novamente,
iniciando sua subida.
Encaro os meus próprios pés, me esforçando ao máximo para
conter a risadinha que ameaça escapar pelos meus lábios.
Obviamente, falho.
Campbell semicerra os olhos na minha direção, confusa.
— O que foi, Howard?
— Nada. — Ergo a cabeça, a encarando. — É só que... sei lá.
Olhe só para nós dois. Somos vizinhos fofocando. Nem parece que,
há semanas, você sentia vontade de me bater sempre que me via.
Jessie sorri um pouquinho.
— É — diz. — Sinto muito por isso, aliás. Você não é tão ruim
quanto eu pensava, Howard.
Meu sorriso aumenta de tamanho.
— Nem você, Campbell.
Nossos olhos permanecem conectados por mais alguns
instantes, até que o elevador para.
Jessie pigarreia, desviando a atenção para as portas que
agora se abrem à nossa frente.
— Te vejo mais tarde? — É o que pergunto, enquanto
atravessamos o corredor a caminho de nossos apartamentos.
Ela me encara ao parar em frente à sua porta, acenando de
leve com a cabeça.
— Até mais tarde.
E então giro a maçaneta do meu apartamento, torcendo para
não encontrar outro desastre causado por Brandon Houston.
E, por algum motivo, não consigo afastar o sorriso que
permanece estampado em meu rosto.
Afundo um dos dedos no botão da campainha, sentindo o
coração palpitar fortemente dentro do peito.
Por algum motivo, minhas mãos começam a suar, como se
estivessem ansiosas. As seco no fino casaco de lã branca que uso,
me sentindo uma tremenda idiota por estar tão nervosa para me
encontrar com Kale.
Ouço o som de objetos caindo, vindo de dentro do
apartamento, sendo seguido pelo barulho de solas de sapato se
arrastando no chão, como se alguém estivesse vindo aos tropeços
para atender a porta, apressado, e derrubando algumas coisas pelo
curto caminho.
Quando o som da chave sendo girada, destrancando a
fechadura, invade meus ouvidos, acontece muito rápido.
Uma paralisia repentina toma conta dos meus membros.
Em questão de pouquíssimos segundos, estou cara a cara
com os apaixonantes olhos esverdeados e o lindo rosto de Kale
Howard.
Ele sorri para mim, inclinando a cabeça um pouco para o lado.
Simplesmente não sei mais como respirar.
— Pode entrar, Campbell. — É o jeito de Kale me dizer oi.
Ele abre um pouco mais a porta, apenas o suficiente para que
eu a atravesse e entre em sua casa. Sinto como se tijolos
estivessem pesando em meus pés quando dou o primeiro passo no
carpete.
Howard fecha a porta atrás de nós.
— O Brandon...
— Saiu com a Eve — o interrompo, já ciente da informação.
Kale apenas sorri, me olhando.
— É.
— Acho que nunca vou me acostumar com o fato de que
minha melhor amiga está namorando seu melhor amigo. —
Caminho em curtos passos até o sofá. — É muito estranho.
— Tenho um pouco de pena dela, para ser sincero. — Ele me
segue, rindo um pouco da própria fala, indicando que não passa de
uma brincadeira. Brandon pode ser um descabeçado às vezes, mas
sei que Kale o ama com todas as forças. — Ontem ele quase
colocou fogo aqui em casa.
Arregalo os olhos, o encarando enquanto me sento.
— O quê?
Howard chacoalha a cabeça levemente em negação, rindo
mais uma vez ao se sentar ao meu lado, como se nem mesmo ele
acreditasse na besteira que Houston deve ter feito.
— Ele foi tentar fazer um bolo, mas, pode-se dizer que
Brandon é um cozinheiro péssimo pra caralho.
Um riso fraco escapa pelos meus lábios.
— A cozinha ficou toda suja, cheia de fumaça e fedendo pra
cacete — completa, seus olhos focados em mim. — Mas deu tudo
certo no final, porque, como sempre, eu o impedi de fazer alguma
besteira.
Estalo a língua no céu da boca.
— A amizade de vocês é estranha.
Ele dá um breve aceno de cabeça em concordância.
— Eu sei. Às vezes penso se, quando eu tiver um filho, vou ter
que cuidar dele e do Brandon também.
— Acho que talvez seja melhor ameaçar o Houston, caso ele
tente chegar perto do seu filho — brinco. Howard sorri. — Sabe,
apenas para evitar que ele tente fazer um bolo novamente e coloque
fogo na sua casa e na criança.
O sorriso curvado em seus lábios se alarga um pouco mais.
— É um bom ponto.
— É um ótimo ponto. — Deslizo as alças da bolsa que carrego
pelo braço, a colocando sobre a mesinha de centro a nossa frente.
Agora com as mãos vazias, alcanço o diário do John Peter Jones,
logo ao lado. — Pronto para 1947? — pergunto ao Kale,
estendendo o caderno na sua direção.
Ele sorri ao tirá-lo das minhas mãos, o posicionando em seu
colo.
— Vamos lá. — É a última coisa que Howard diz antes de
desviar o olhar para as páginas amareladas, as folheando até
chegar onde paramos da última vez.

7 de maio de 1947, às 16 horas e 21 minutos.

A mulher por quem estou apaixonado tem um sonho.


E nós não estamos conseguindo realizá-lo.
Desde o ano passado, Celeste e eu estamos tentando engravidar.
E até agora nada aconteceu.
Ela diz que o problema está nela, e isso parte meu coração em mais
pedaços do que posso contar.
Os cigarros e o álcool, que consome em abundância, estão servindo
como consolo e, de alguma forma, a fazendo se sentir melhor.
Eu não tenho mais reclamado do cheiro que odeio.
Do cheiro que marcou minha infância. Que me traz lembranças
horríveis até hoje.
Não tenho mais falado nada quando, à noite, me deito ao lado dela,
a puxo para mim, respiro fundo em seu cabelo e tudo o que sinto é o
forte cheiro de cigarro.
E nem quando sinto a barriga se revirar. Todas as vezes.

19 de novembro de 1948, às 18 horas e 17 minutos.


Me encontrei com Florescer hoje de manhã.
Mais uma vez, ela foi minha melhor amiga e serviu como forma de
consolo.
Já faz mais de 2 anos.
Queria poder fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Daria tudo o que
tenho para conseguir voltar a receber sorrisos de Celeste todos os
dias, ouvir sua gargalhada, vê-la animada ao abrir a floricultura —
aonde ela nem ao menos está indo nessas últimas semanas.
Queria vê-la feliz de novo.

13 de setembro de 1949, às 2 horas da manhã.

Não consigo dormir.


Às seis da tarde, fechei as portas da floricultura. Estamos tendo um
ótimo movimento ultimamente, o que me deixaria contente, caso a
mulher que amo não estivesse se perdendo nas cobertas da nossa
cama, sem forças nem mesmo para se levantar.
Quando cheguei em casa, e a encontrei encolhida no colchão do
nosso quarto, senti o coração apertar dentro do peito.
— Posso ouvir os seus pensamentos daqui. — Foi o que eu disse a
uma Celeste quieta e desanimada.
Ela não respondeu nada. Tudo o que fez foi se remexer
minimamente na cama e tossir uma tosse seca. Esse foi o único
motivo que me fez deduzir que estava acordada e havia me ouvido.
Celeste está péssima. Faz alguns meses que ela vem perdendo
cada vez mais peso, se tornando mais fraca e sua tosse só tem
aumentado.
Ofereci para levá-la ao médico, mas a resposta que obtive foi uma
risada triste e um:
— Para quê? Só para eu descobrir estar doente e adicionar mais um
motivo à minha lista do “por que não consigo ter filhos”?
Ouvir isso foi pior do que levar um tapa na cara.
Chutei os sapatos ao lado da porta, levando as mãos aos botões da
camisa branca que usava antes de escalar a cama, me deitando ao
lado dela. Envolvi sua cintura com uma das mãos, a abraçando.
Quando aproximei meu rosto do seu cabelo, para depositar um leve
beijo em sua cabeça, Celeste se afastou.
Ela se virou de barriga para cima, fitando o teto com seus olhos
azuis, que costumavam transbordar uma alegria sem fim, agora
vazios.
— Está tudo bem? — perguntei, mesmo já ciente da resposta.
Ela não respondeu.
Tomei uma respiração profunda.
— Está tudo bem, amor? — insisti.
Seu olhar permaneceu focado no teto quando a voz baixa, enfim,
respondeu:
— Eu estou desistindo.
E naquele momento senti como se o mundo inteiro desabasse sob
os meus próprios pés.

Meus olhos se enchem de lágrimas, embaçando a visão, me


obrigando a desviar o olhar das páginas do diário. Ao meu lado,
Kale nem sequer passa para a próxima folha. Ele apenas
permanece petrificado, encarando o nada, como se as últimas
palavras lidas também o tivessem atingido como um chute no
estômago, assim como foi para mim.
Esfrego os olhos com as mãos, tentando impedir que lágrimas
escorram deles, mas, quando as afasto, meus olhos voltam a
marejar novamente.
— Droga — murmuro, piscando fortemente, tentando não
deixar que minhas emoções caiam por minhas bochechas e
destruam a maquiagem.
Howard traz seu olhar até mim no mesmo instante.
— O que houve? — ele pergunta, por mais que no fundo sinto
que já saiba a resposta.
Expiro demoradamente, passando os dedos de forma leve por
baixo dos meus olhos, piscando algumas vezes enquanto o faço.
— Nada. É só que... — Me enrolo em minhas próprias
palavras, buscando organizar o raciocínio. As orbes esverdeadas de
Kale se semicerram um pouco, esperando atentas pelo desenrolar
da minha fala. Solto um fraco suspiro. — É só que isso é injusto...
— O que é injusto?
— Isso. — Aponto para o diário, agora fechado, ainda sobre
seu colo. Howard arqueia uma sobrancelha. — É injusto que mães
como as nossas, que enxergam os filhos como troféus ou os
abandonam, tiveram a chance de se tornarem mães, enquanto
existem mulheres que sonham com isso, como a Celeste, e
simplesmente nunca conseguiram. — Uma lágrima escorre por um
dos meus olhos enquanto discurso, com a voz saindo ridiculamente
trêmula.
Enxugo minha bochecha com o dorso de uma das mãos.
Sem dizer nada, Kale apenas se inclina, esticando um dos
braços para deixar o diário do John de volta na mesinha de centro,
ao lado da minha bolsa. Em seguida, desliza alguns centímetros
para perto de mim no sofá, fazendo com que nossas pernas se
toquem levemente.
Sinto um súbito arrepio percorrer o corpo diante da inesperada
aproximação.
Os olhos verdes de Howard nunca estiveram tão profundos ao
me encarar, como se guardassem inúmeras palavras e
pensamentos e, além disso, transparecessem uma pena e dor
exorbitante.
Sinto uma pontada forte no coração ao imaginar estes mesmos
olhos brilhantes em uma criança de 6 anos, chegando em casa e
encontrando o corpo do pai sobre o piso da sala. Perdido. Sem a
menor direção e nem sabedoria suficiente para saber o que fazer.
Deve ser desesperador viver algo parecido.
Kale expira demoradamente antes de dizer:
— No orfanato, conheci muitas mães assim. — Ele passa uma
das mãos levemente sobre o próprio queixo. — Sabe, com
problemas para engravidar. Eu costumava ouvir as histórias que
Beth, uma moça que cuidava da gente, contava. Ela dizia que tinha
perdido as contas de quantas pessoas já ouviu dizer que gastaram
absurdos com tratamentos e médicos, mas que de nada adiantou.
Também dizia que ouvia histórias diárias sobre mulheres que
conseguiram engravidar mais de uma vez, mas sempre acabavam
perdendo o bebê, pois o corpo não conseguia levar a gravidez
adiante. — Ele faz uma breve pausa. — E eu passei a minha
infância e adolescência inteira me questionando o porquê disso. O
porquê de algumas coisas serem tão injustas. — Howard suspira
pesadamente. Seus olhos demonstram a dificuldade que ainda tem
ao reviver certas lembranças do passado, mas, quando penso que
ele os desviará a qualquer momento, Kale apenas me encara com
mais intensidade. — Eu me perguntava por que, enquanto nem ao
menos me lembrava do rosto da minha minha mãe, enquanto
sequer sabia se ela ainda estava viva, outras mulheres sofriam ao
ver que tinham perdido o bebê que estava em sua barriga ou
choravam ao se depararem com mais um teste de gravidez
negativo.
Engulo em seco antes de tomar forças para responder.
— Sinto muito. Nem consigo imaginar como a infância deve ter
sido para você...
Um sorrisinho triste se molda em seus lábios.
— Sabe, nunca é bom passar por tempos ruins — Kale
começa. — Mas, querendo ou não, tudo o que eu vi e vivi me
tornaram quem sou hoje. Não precisei de apoio materno ou paterno
para crescer. Senti falta, claro, acho que é uma bosta para todo
mundo ver as outras pessoas tendo pai e mãe e ouvir histórias
sobre famílias unidas e felizes, enquanto você não tem nada disso.
Mas, pelo menos, deu tudo certo para mim no final, sabe? Eu
consegui me tornar uma pessoa decente. O que, infelizmente, não
aconteceu com alguns que conheci no orfanato...
— Você se lembra do seu pai? — as palavras escapam dos
meus lábios sem que eu pense direito. Me arrependendo
imediatamente, temendo que tenha sido muito intrometida e que
Kale não se sinta confortável o suficiente para responder.
Sinto o alívio repentino tomar conta do meu corpo quando o
vejo chacoalhar a cabeça em negação, não demonstrando nenhum
desconforto em sua expressão.
— Muito pouco — confessa. — Eu tinha 6 anos quando ele
teve uma parada cardíaca. Não lembro de como nossa convivência
era, para ser sincero. Só me lembro do rosto dele. — Howard
engole em seco antes de prosseguir com a voz baixa: — E de tê-lo
ouvido dizer, uma vez, que o verde dos meus olhos e o castanho
dos meus cabelos eram idênticos aos da minha mãe.
Suas palavras me atingem como cacos de vidro. Todos sendo
atirados na minha direção impiedosamente.
— Eu sinto muito. — É o que me pego dizendo. — De verdade.
O sorrisinho triste volta a tomar conta dos lábios de Kale.
Sou pega de surpresa quando o sinto segurar em minhas
mãos geladas, em forma de resposta. Um súbito arrepio percorre
meu corpo diante do toque.
Quando meus olhos voltam a se encontrar com os dele,
encontrando uma intensidade sem fim, esqueço como se faz para
respirar.
— Nossas memórias, às vezes, são o pior tipo de tortura — ele
começa, sem desviar o olhar nem por um segundo. — Podemos
viver a vida de duas maneiras, Campbell. A primeira delas é sofrer,
viver do passado e se tratar como vítima da própria história. A
segunda, e a mais difícil entre elas, é se reerguer, lutar e sempre
olhar para a frente. — Vejo o movimento que sua garganta faz assim
que ele engole em seco. — Eu escolhi trilhar o segundo caminho —
Howard revela. — O outro lado do meu iceberg, o que existe além
da ponta dele, é profundo e carrega toda a dor de um menino de 2
anos, que foi abandonado pela própria mãe, e de um garotinho de 6,
que encontrou o pai morto no chão da sala e viu sua vida mudar do
dia para a noite, se transformando no mais intenso caos. — Ele
suspira. — Mas, às vezes, o melhor que posso fazer é esconder
tudo isso das pessoas. Para me poupar de reviver toda a dor que
me fora causada ao enxergar a pena nos olhos delas.
Reprimo a estranha vontade que sinto de me encolher.
— Mas você me contou sua história antes mesmo de me
conhecer direito — falo, enfim. — No primeiro dia em que nos
encontramos para ler o diário do John. Você ainda achava que eu te
odiava na época.
Kale sorri um pouco.
— Eu senti que podia me abrir com você — revela ele, ainda
segurando as minhas mãos. — E isso não tende a acontecer muitas
vezes.
Meu coração amolece um pouco dentro do peito.
— Eu também senti, Howard — revelo, após um suspiro. —
Você é a única pessoa que sabe sobre minha relação e meus
problemas com meus pais.
Kale arregala um pouco os olhos, surpreso.
— E a Eve?
Eu me empertigo no sofá, me preparando para responder.
— Bom, ela sabe o básico — conto. — Sabe que meus pais
não ficaram contentes quando decidi cursar jornalismo, mas não
sabe que eles repudiam quem sou hoje.
Kale solta uma respiração pesada.
— É impossível repudiar alguém como você, Campbell.
— Bom, eles repudiam — afirmo.
Ele chacoalha a cabeça levemente em negação, mantendo
seus olhos fixos nos meus.
— Não, não acho. Acho que a palavra certa para descrever o
que sentem por você é inveja.
Algo próximo a uma risada escapa pelos meus lábios.
— Sério, Howard? Inveja? Enquanto eu estou servindo cafés
em reuniões, meus pais estão nadando em rios de dinheiro,
comparecendo a brunches e comprando roupas em lojas
milionárias.
Ele dá de ombros.
— Se seus pais não têm inveja, deveriam — diz. — Porque,
diferente de você, Campbell, eles nunca teriam coragem o suficiente
para abrir mão dessa vida de gente rica em busca do sonho. Não
como você fez. — Howard sorri um pouco. Penso estar ficando
louca quando capto um certo orgulho em seus olhos, que
permanecem brilhando. — Aposto que seus pais possuem uma vida
triste e trabalham com empregos que não gostam.
Meus lábios se repuxam para cima, em um leve sorriso.
Por incrível que pareça, Kale tem razão. Não sei ao certo
quanto à inveja, mas a parte de que meus pais odeiam seus
trabalhos é a mais pura verdade. Tenho diversas lembranças da
infância, quando Willian Campbell chegava em casa, cansado após
o trabalho, chutava os sapatos caros na porta de entrada e saia a
caminho do corredor, reclamando para si mesmo.
Meu pai nunca foi uma pessoa relaxada. Não me lembro de
um único dia em que não o vi estressado, seja pelo trabalho ou
pelas finanças.
— Obrigada, Howard — digo.
Nunca tinha enxergado as coisas por esse lado.
Ele sorri, se afastando de mim ao se levantar.
— Jessie Campbell — começa, parando à minha frente no
sofá. — Acho que, se existisse uma competição de pessoas fodidas
na vida, eu e você seriamos a melhor dupla que o mundo inteiro já
viu.
Rio do comentário ridiculamente triste e engraçado ao mesmo
tempo.
— Talvez — respondo.
Ele continua sorrindo quando estende uma das mãos para
mim, buscando me ajudar a levantar, por mais que isso seja
extremamente desnecessário.
Meu olhar encontra o seu à medida que seguro em sua mão.
— Ainda dá tempo de transformar as cicatrizes em flores,
Jessie — a voz baixa de Kale diz, citando mais uma vez as palavras
de John Peter Jones e Celeste Laurent.
Um suspiro escapa pelos meus lábios.
— Sim, Howard, ainda dá.
E quando tomo impulso para me levantar, segurando em sua
mão, sendo ajudada por ele, acabo falhando ao pisar no chão,
torcendo um dos pés.
Os braços de Kale me seguram no mesmo instante, impedindo
que eu caia e cause um grande desastre.
Assim que ergo o olhar, buscando agradecê-lo, prendo a
respiração ao me deparar com nossos rostos extremamente
próximos. Os cheiros de perfume masculino e loção de barbear
invadem minhas narinas, sendo inebriantes, me desconcertando por
alguns segundos.
Ninguém diz nada.
Nem sequer piscamos.
Apenas nos encaramos, suas mãos ainda me segurando
fortemente, os rostos próximos, os corpos quase colados.
Não sei mais como respirar.
Sinto minhas pernas fraquejarem, um arrepio estranho me
percorrer e um frio intenso na barriga, como se todas as borboletas
existentes por lá estivessem, enfim, acordado, suas leves e agitadas
asas batendo contra minha pele.
Em seus olhos verdes, enxergo uma imensidão sem fim. Mil
segredos. Mil vontades. Mil histórias de terror e superação.
E quando percebo, minhas mãos já estão na gola de sua
camiseta, o puxando para mim, aproximando-o ainda mais. E
quando nossos lábios, enfim, se tocam, é como se o cômodo
desmontasse. Meu coração erra as batidas dentro do peito, e sinto
como se minhas mãos não fossem capazes de trazê-lo para perto o
suficiente de mim, mesmo que nossos corpos já estejam colados e
que não haja espaço algum entre nós.
Nunca me senti tão perdida em um beijo antes.
Acerto meus pés no chão, permanecendo de pé por conta
própria. Howard desliza as mãos por meus braços, as parando em
minha cintura.
Perco a noção do tempo.
Minutos se passam. Ou talvez horas.
— Meu Deus — ele sussurra assim que nossos lábios se
afastam, seus olhos ainda fechados, como se temesse abri-los e
perceber que nada disso foi real.
Mas a verdade é que foi real. Completamente real. Uma das
experiências mais reais que já vivenciei em toda minha vida.
Quando seus olhos se abrem, e eu me deparo com a
imensidão esverdeada que carregam, solto a gola de sua camiseta,
trazendo as mãos para perto do meu próprio corpo novamente.
— Eu... — começo, sentindo dificuldade em encontrar a voz
necessária para falar. Engulo em seco. Passo a ponta da língua no
lábio inferior. — Eu... Eu acho melhor eu ir.
Kale não diz nada ao dar um breve aceno de cabeça em
concordância, ainda perdido no que acabou de acontecer entre nós.
Permaneço o encarando por mais alguns instantes, até
finalmente tomar a coragem necessária e dar as costas, a caminho
da porta.
Quando chego ao corredor, deixando o apartamento de Kale
Howard e Brandon Houston, e fecho a porta atrás de mim, um
sorriso incontrolável toma conta dos meus lábios.
Levo dois dedos até eles, os tocando levemente, lembrando da
sensação de tê-los colados aos do Kale.
Parece que, no fim, Jessie Campbell finalmente beijou o
vizinho que fingia odiar.
— Porra, cara! Eu devia ter apostado aqueles 100 dólares! —
É o que um Brandon animado diz, no dia seguinte, saindo do
corredor.
Hoje de manhã ele encontrou a bolsa que Jessie esqueceu
sobre a mesinha de centro, em frente ao sofá. Houston arqueou
uma sobrancelha para mim, que havia acabado de encher uma
xícara fumegante de café na cozinha, e perguntou se Campbell
esteve aqui ontem à noite.
Minha boca grande não foi capaz de se conter.
Contei tudo ao meu melhor amigo. Contei sobre a conversa
que tivemos — evitando me aprofundar na intimidade de Jessie,
obviamente —, sobre termos lido o diário e... bom, sobre o beijo.
Brandon surtou, como era de se esperar. Feito um furacão, ele
saiu correndo pela sala, apontando o dedo na minha cara enquanto
gritava: “Viu, idiota? Eu te disse! Te disse que você e a Campbell
tinham alguma coisa!”.
Eu gesticulei exageradamente, desesperado, tentando fazer
com que ele se calasse. Todos sabem como as paredes deste
prédio são finas e, como Jessie é a vizinha da porta da frente, as
chances de não ouvir o escândalo que Brandon fez eram
praticamente inexistentes.
— Você não devia ter apostado em nada — parado ao lado da
porta, segurando a bolsa esquecida, esperando que Jessie venha
buscá-la, digo para meu melhor amigo, que, como de costume, não
me dá ouvidos.
Brandon desaba no sofá, um sorriso gigantesco marcando
seus lábios.
— Isso é tão clichê — alega ele. Estreito os olhos na sua
direção, tentando entender do que é que está falando. — Sabe, eu
saindo com uma melhor amiga e você se agarrando com a outra.
Parece que estamos dentro de um filme americano universitário.
Meus olhos praticamente se reviram sozinhos.
— Eu não me agarrei com a Jessie — digo, uma careta
tomando conta da minha expressão. — Foi só um beijo — minto.
Aquilo foi qualquer coisa, menos só um beijo.
Brandon bate uma palma alta, sendo exagerado como sempre.
— Rá! Tá bom! — Ele ri. — Duvido muito, Kale Howard. Eu
duvido muito. Te conheço bem o suficiente para saber que não foi
apenas um beijo para você.
Arqueio uma sobrancelha.
— Ah, não? Por que diz isso?
Ele sorri. Aquele tipo de sorriso que me dá vontade de socá-lo
todas as vezes.
— Porque você, caso ainda não tenha percebido, está parado
em frente à essa porta, segurando essa bolsa, há mais de meia hora
— ele fala, claramente tirando uma com a minha cara. Travo o
maxilar. — Sua perna está inquieta, e você não para de se mexer
por um único segundo. Se não está morrendo de nervosismo para
ver sua amada, não sei o que mais poderia te deixar assim, se
comportando como um idiota.
Reviro os olhos outra vez.
— Sabe, Kale. — Houston está focado na tarefa de não calar a
boca. — Não tem problema algum esperar por ela sentado no sofá.
A Jessie não se importaria se você demorasse mais do que um
único segundo para atender a porta. Não precisa ficar aí, parado, de
guarda. Pode relaxar, se quiser.
Sem dizer uma única palavra, estendo um dedo do meio para
ele, que apenas ri, ciente de que atingiu seu objetivo e me tirou do
sério.
Há mais ou menos quarenta minutos, liguei para Jessie,
avisando-a sobre a bolsa que esqueceu em casa. Minha voz saiu
trêmula ao telefone, por algum motivo, nervosa.
De início, quase entrei em desespero, mas me acalmei quando
ouvi seu gaguejar do outro lado da linha, demonstrando que
Campbell também estava um tanto nervosa ao conversar comigo.
Me sobressalto diante do som da campainha, que invade meus
ouvidos. Abruptamente, me viro, levando a mão livre até a maçaneta
fria, pronto para girá-la.
Escuto a risadinha imatura que Brandon solta, vinda do sofá.
Reprimo a vontade de revirar os olhos pela milésima vez e,
finalmente, abro a porta.
Algo se agita em minha barriga quando meus olhos se
conectam ao intenso âmbar das íris de Jessie Campbell.
Ela está absurdamente linda. Usando um suéter cor-de-rosa,
uma calça jeans rasgada nos joelhos, surrados tênis brancos, e
presilhas coloridas prendendo a longa franja do cabelo preto com
azul nas pontas, Campbell me deixa desconcertado ao observá-la.
Em um gesto quase automático, levo uma das mãos aos meus
bagunçados fios de cabelo, um ato que costumo fazer sempre que
me encontro nervoso ou desconfortável.
O que tende a acontecer frequentemente quando estou na
presença de Jessie.
— Campbell — cumprimento em um menear de cabeça.
Seus lábios se repuxam minimamente para cima.
— Howard.
Uma fraca risada invade o cômodo por alguns segundos.
Sinto vontade de matar o Brandon.
— Campbell — o idiota do meu melhor amigo diz, ainda do
sofá.
Jessie sorri mais ainda, ficando na ponta dos pés para
conseguir enxergá-lo por cima do meu ombro. Por mais que tenha
1,78 e seja considerada alta, ela ainda consegue ser menor do que
eu e os meus 1,82 metros de altura.
— Houston — cumprimenta, alcançando meu melhor amigo
com o olhar.
Me viro por um rápido instante, apenas para checar Brandon,
que estampa um largo sorriso nos lábios, claramente se divertindo
com toda a situação. Ele faz um sinal positivo com os dois polegares
quando percebe ter minha atenção.
Volto meu olhar para Jessie novamente, que agora já está com
os calcanhares colados no piso do corredor, balançando-se neles.
— Eu, hum... — Encaro a bolsa esquecida, a estendendo na
direção dela. — Acho que isto é seu.
Campbell não hesita em segurá-la. Ela desliza os olhos pela
bolsa antes de voltá-los para o meu rosto. Entreabre a boca para
dizer algo, mas a fecha quando não consegue.
Um breve silêncio desconfortável se instala entre nós.
— Sabe, hum... — começa.
— Eu... — Paro quando percebo que estamos falando ao
mesmo tempo, assim como Jessie. Ela sorri. — Você primeiro —
digo.
— Certo. Eu só... Queria garantir que não vai ficar um clima
estranho entre a gente — diz ela. — Sabe, hum, depois do que
aconteceu ontem.
Um sinal de alerta se acende dentro de mim. A surpresa
congela meus membros, me deixando momentaneamente sem
palavras.
— Não — garanto, me obrigando a agir como se essa opção
fosse a maior loucura do mundo, mesmo que meu corpo inteiro
esteja gritando para que eu fuja, me esconda dentro de um buraco
fundo e morra de vergonha por lá mesmo. — Claro que não. Foi só
um beijo.
De repente tenho vontade de me dar um tapa na cara.
Por que, Kale Howard? Por que tão burro?
Os olhos de Jessie se arregalam um pouco, mas ela logo
disfarça.
— É. — Se obriga a abrir um sorriso desajeitado nos lábios. —
Foi só um beijo.
Sinto minhas bochechas queimarem no mesmo instante. Torço
para não estar ruborizado.
Minha mão volta para o meu cabelo, coçando a cabeça
enquanto meu corpo deseja desaparecer ou ser engolido pelo chão.
Um fraco vinco se apossa da testa de Jessie por alguns
segundos, como se ela estivesse distante, pensando em algo.
Quando enfim chacoalha a cabeça levemente e manda esses
pensamentos para longe, voltando a sorrir, ela pergunta:
— Te vejo por aí?
Me apresso em concordar com a cabeça.
— Sim. Te vejo por aí.
E então, simples assim, depois de dizer que o melhor beijo da
minha vida não passou de “só um beijo”, de quase ter um ataque de
nervosismo e praticamente passar mal, fecho a porta quando Jessie
dá as costas para mim, seguindo na direção do elevador, agora com
sua bolsa em uma das mãos.
— Você está parecendo um pimentão. — É o que Brandon diz,
ainda esparramado no sofá, quando me viro para ele. Uma
expressão feliz estampa seu rosto. — Sabe, Kale, eu amo assistir a
cenas altamente constrangedoras. Obrigado por me proporcionar
mais uma delas. Foi melhor do que passar uma tarde vendo memes
no Twitter.
No mesmo instante, agarro uma almofada laranja horrenda da
poltrona, a atirando no meu melhor amigo, que apenas ri.
— Quão desocupado alguém tem de ser para passar uma
tarde inteira vendo memes, Houston? Você é um homem adulto! E
tem um trabalho! — berro, caminhando para o corredor, buscando
chegar ao meu quarto.
— Você mesmo vive falando que eu não sou um adulto
responsável! Não sei o porquê de estar tão surpreso com isso
agora. — É a última coisa que escuto Brandon dizer antes de bater
a porta do meu quarto fortemente.
Dois dias.
Dois dias desde que eu e Kale nos falamos pela última vez.
Dois dias que eu tenho fugido dele, evitando sair nos horários
em que costumávamos nos encontrar, permanecendo de ouvidos
atentos aos sons vindos do corredor, e checando três vezes antes
de deixar meu apartamento, verificando se a barra está limpa,
temendo com todas as forças me deparar com seus castanhos
cabelos bagunçados e o verde inebriante dos seus olhos.
Meu olhar permanece fixo no laptop à frente, sobre a minha
mesa na Charlotte. Aberto em um documento com poucas linhas no
Word, a tela exibe minha falha tentativa de escrever a matéria —
proibida pela minha chefe — sobre “pessoas reais”, um tema
escolhido por mim, mas que trará mais mérito e reconhecimento
para os outros escritores da revista. Os mesmos escritores que não
tiveram capacidade o suficiente para pensar em uma ideia que
impressionasse Abigail.
Mas que, mesmo assim, são considerados superiores a mim e
merecedores da vaga pela qual venho lutando há 3 anos.
Não me leve a mal, eu sei que às vezes pareço uma criança
mimada, que quer tudo quanto antes, que deseja se destacar com
urgência e pular etapas importantes da vida. Acredito mesmo no
que Eve me disse antes da reunião. Eu sei que ela está certa, de
certa forma. Tenho consciência disso. Mas nunca vai deixar de ser
frustrante.
Nunca vou deixar de me incomodar com o fato de que, mesmo
depois de ter brigado com minha família, de ter deixado tudo para
trás em busca do sonho, ter dado a única ideia boa o suficiente na
reunião, e de ter me esforçado inúmeras vezes para Abigail me dar
pelo menos uma única chance de mostrar que sou capaz, ainda
estou aqui, sendo a assistente da editora-chefe, escrevendo uma
matéria em sigilo, depois de ouvir um “não receba uma moeda e se
anime ao pensar que receberá o pote inteiro de ouro em seguida. A
vida não funciona dessa maneira”, vindo da mulher que sempre
busquei impressionar.
A rotina na Charlotte está agitada, como de costume. Abigail
está com a agenda cheia, repleta de reuniões com pessoas
importantes do conselho e com representantes de lojas parceiras,
que desejam prolongar o contrato devido ao alto índice de vendas
da edição deste mês.
E, mesmo que isso às vezes me deixe completamente louca,
mesmo que isso signifique que preciso passar a maior parte do dia
atendendo a telefonemas, marcando novos compromissos na
agenda, ou relembrando Abigail dos seus horários, também me traz
alguns minutos para respirar. Para sentar e me organizar. Como
agora, que Abigail está no último andar do prédio, em uma reunião
com o representante da Prada, e eu estou aqui, sentada à minha
mesa, com o laptop aberto, uma xícara fumegante de café ao lado,
sobre um porta-copos redondo, e com tempo suficiente para
escrever e iniciar os trabalhos na matéria que, mesmo tendo sido
barrada, apresentarei à editora-chefe e cruzarei os dedos, ansiando
por uma resposta positiva.
O único problema é que, neste momento, quando eu poderia
estar aproveitando ao máximo para trabalhar, meu cérebro traiçoeiro
simplesmente está travado.
Um bloqueio criativo gigantesco se apossou de mim, varrendo
até as menores poeiras e resquícios de criatividade da minha
mente, os substituindo por enxurradas de lembranças.
Lembranças de Kale. Do seu beijo. Do toque dos seus dedos
na minha pele. Das suas mãos deslizando pelos meus braços,
alcançando minha cintura. Do aroma inebriante de perfume
masculino e loção de barbear que invadiu minhas narinas.
Simplesmente, de lembranças dele.
Pensar em Kale Howard, recentemente, tem me feito sentir
uma onda incontrolável de alegria boba, seguida por um pânico
quase claustrofóbico.
E isso é extremamente assustador.
Ver meu corpo e minha mente respondendo a ele dessa forma,
pode ser considerado qualquer coisa, menos algo bom.
Depois do traumático término com Vincent, tem sido difícil para
mim pensar em dar início a um novo relacionamento. Nunca soube
como é amar alguém a ponto de desejar estar próximo a essa
pessoa pelo máximo de tempo possível, contar seus segredos, as
histórias constrangedoras da sua vida, acordar juntos todos os dias
de manhã, sentir vontade de dividir problemas e um apartamento ou
uma casa com um quintal enorme.
Confesso que não sei se me sairia bem nisso.
E acho que, por esse motivo, sentir todo esse confuso
emaranhado de sentimentos por Howard, me deixa estranhamente
assustada.
Fecho os olhos, endireitando a postura na cadeira. Respiro
profundamente, me esforçando para mandar todos esses
pensamentos para longe e focar no que deve ocupar todo o espaço
em minha mente.
Quando os abro, voltando a encarar a tela do computador,
sentindo que falhei ao me deparar, mais uma vez, com as
pouquíssimas linhas do rascunho inicial, a mesa treme sob minhas
mãos. Dirijo meus olhos imediatamente para a tela do celular,
sentindo o coração acelerar ao pensar ser uma mensagem de Kale.
Mas quando seguro o aparelho e encaro a notificação no visor,
algo em meu peito parece se rasgar.
Mãe: O seu pai acabou de fechar com a empreiteira. Estamos transformando seu
quarto em uma nova biblioteca.
Uma música invade a penumbra do meu quarto.
Abro os olhos lentamente, com o máximo de esforço, cansado.
Pisco algumas vezes, tentando me manter minimamente
acordado, obrigando meu próprio corpo a entender que meu
precioso sono foi interrompido pelo toque do celular. Esfregando os
olhos, me xingo mentalmente por ter esquecido de deixar essa
merda no modo silencioso.
Rolo na cama, me enrolando no emaranhado de pesados
cobertores. Sentindo-me mais lerdo do que uma tartaruga, estico um
dos braços até a cabeceira, meus dedos encontrando o aparelho.
Quando o trago para perto do meu rosto e semicerro os olhos,
com dificuldade para enxergar a tela devido ao brilho excessivo, o
sono se esvai do meu corpo imediatamente. Meu olhar se fixa no
nome aparecendo no visor, e, abruptamente, me sento, atendendo à
chamada sem hesitar.
Sinto o coração acelerar dentro do peito. O corpo se enchendo
de pânico só de imaginar que algo de ruim possa ter acontecido.
— Howard — sua doce voz diz, assim que colo o telefone no
ouvido. Um súbito alívio toma conta dos meus membros ao perceber
o tom calmo de sua voz, não dando indício de perigo algum.
Suspiro, liberando a tensão nos ombros, passando a mão no
rosto e na nuca.
— Oi, Campbell. — Minha voz sai rouca, sonolenta. — Está
tudo bem?
Lanço uma breve olhada para a janela ao meu lado, me
deparando com uma Nova York cercada pela madrugada.
Não tenho ideia de que horas são agora.
A voz de Jessie hesita um pouco antes de responder:
— É, hum, na verdade, não.
Um vinco se forma em minha testa. Com a mão livre, afasto os
cobertores, os tirando de cima de mim com urgência.
— O que aconteceu?
Ela solta um longo suspiro do outro lado da linha.
— Sinto muito por estar te ligando a essa hora. — Uma pausa.
— Sei que posso estar parecendo ridícula agora, mas... Será que...
— Ouço quando Jessie engole em seco, como se procurasse forças
para continuar. — Será que você pode vir aqui?
Meus olhos se arregalam, surpresos. Os lábios se moldam em
um sorriso, acompanhados por algo desconhecido que se aflora
dentro de mim.
— Sim, claro... — Tento não parecer um bobo apaixonado ao
dizer. Pisco fortemente, me dando conta dos meus próprios
pensamentos. Apaixonado, Kale Howard? É sério isso? Pigarreio. —
Mas, tipo, está tudo certo aí? Você está bem?
Jessie respira fundo antes de responder:
— Estou. Quer dizer, nem sei mais...
Me levanto da cama, obrigando os olhos a procurarem pelos
meus sapatos na penumbra do quarto.
— Certo. — Equilibrando o celular no ombro, me agacho para
pegar o par de meias que encontrei no chão. — Estou indo.
— Vou deixar a porta aberta. — É a última coisa que Campbell
diz antes de desligar.
Já no corredor, levo uma das mãos até a maçaneta fria, a
girando com cuidado, me preocupando em fazer o mínimo de
barulho possível. Atravesso a porta na ponta dos pés, agora já
usando os tênis que, felizmente, não passei perrengue para
encontrar em meio à escuridão.
O apartamento da Jessie se encontra em um completo
silêncio, assim como o corredor do sexto andar. A fraca lâmpada
amarelada do abajur é a única responsável para não deixar tudo um
completo breu.
Fecho a porta, devagar, fazendo-a ranger baixinho, em um
som praticamente inaudível. Giro a chave, já na fechadura,
trancando-a. Abraçando meu travesseiro favorito e um dos pesados
cobertores com que costumo dormir, atravesso a sala, entrando no
corredor, a caminho dos quartos.
Quando paro ao lado da única porta entreaberta, espiando
brevemente, algo se despedaça dentro do meu peito.
A luz da cidade, que entra pela janela, me permite vê-la em
meio à escuridão. Campbell está sentada na sua pequena cama de
solteiro, abraçando os próprios joelhos. Sob seu corpo, o cobertor e
o travesseiro se encontram perfeitamente alinhados, como se
estivessem intocados desde quando Jessie acordou pela manhã.
Me pergunto há quanto tempo ela está assim. Sofrendo. Tendo
problemas para conseguir dormir.
Pigarreio, esticando uma das mãos para abrir a porta, tentando
demonstrar, de alguma forma, que estou aqui.
Jessie levanta a cabeça no mesmo instante, me permitindo ver
seu rosto após dois dias sem nos encontrarmos. Seus olhos estão
vermelhos e cansados, como se estivesse chorando até há pouco
tempo.
O sangue avança em minhas veias, quente e rápido.
Algo se parte dentro de mim.
— Oi. — Engulo em seco, tentando me livrar de todas as
emoções que amargam a língua.
Jessie sorri um pouco, seus lábios se repuxando quase
imperceptivelmente, como se estivesse genuinamente feliz em me
ver, mas não conseguisse demonstrar, pois tudo dentro de si dói. É
tão linda. Tão inacreditavelmente linda.
— Oi, Howard — sua voz sai fraca.
Ela desce os olhos até o travesseiro e o cobertor em minhas
mãos, parecendo feliz em vê-los. Meus ombros relaxam um pouco,
mesmo que quase nada. Quando Jessie desligou, fiquei na dúvida
se devia ou não trazê-los para cá. Fiquei sem saber se ela estava
me pedindo para dormir aqui, no quarto de hóspedes, ou apenas
para dar uma passada rápida em seu apartamento, e voltar para o
meu dentro de alguns minutos.
— Eu... Eu pensei que... — Paro de falar, nervoso, tentando
organizar os pensamentos. Ela continua me encarando, ainda
abraçada nos próprios joelhos, esperando. Esfrego o cabelo com
uma das mãos. — Pensei que, como já está tarde, eu poderia ficar
no quarto de hóspedes. — Pigarreio, me apressando em
acrescentar: — Isso é, se não tiver problema para você.
Campbell não responde. Apenas pisca, ergue as sobrancelhas,
separa os lábios, e não diz uma única palavra.
Sou pego de surpresa quando, ainda em silêncio, Jessie se
movimenta, se enfiando debaixo do cobertor, que até então
permanecia perfeitamente estendido sobre a cama. Seus olhos se
fixam nos meus novamente, e sinto que parei de respirar quando ela
afasta o pesado tecido para o lado, abrindo espaço para mim, me
chamando.
Abro a boca para dizer algo, mas nada sai. Chacoalho a
cabeça levemente, deixando a roupa de cama que trouxe sobre a
madeira da cômoda, encostada a uma das paredes.
Em curtos passos, me aproximo de Campbell.
— Não tenho um quarto de hóspedes — ela murmura quando
me aconchego, me deitando de lado, fazendo com que nossos
rostos fiquem frente a frente. — É um escritório.
Um sorrisinho toma conta dos meus lábios.
— Todo mundo devia ter um quarto de hóspedes, Jessie
Campbell — digo. — Nunca se sabe quando um vizinho muito gato
virá para sua casa em meio à madrugada.
Um fraco riso anasalado escapa, vindo dela. Algo em meu
peito parece ganhar vida novamente.
— Não é necessário um quarto de hóspedes quando não se
tem muitos amigos — responde, baixinho.
O sorriso desaparece dos meus lábios ao perceber a tristeza
em sua voz. Jessie expira demoradamente, notando que algo em
minha expressão mudou.
Estendo uma mão, varrendo cuidadosamente uma mecha de
cabelo escuro em sua testa.
— O que aconteceu? — finalmente questiono, a voz fraca,
praticamente um sussurro.
Ela suspira, fechando os olhos brevemente, exausta. Não só
fisicamente, como mentalmente também.
— Minha mãe — Jessie começa, seus olhos transparecendo
toda a dor ao se lembrar da mãe. — Ela me mandou mais uma
mensagem hoje à tarde. Disse que estão reformando o meu quarto.
— Observo o movimento que sua garganta faz quando engole em
seco. — Estão o transformando em uma nova biblioteca.
Franzo a testa levemente. Deslizo uma das mãos até um dos
braços de Jessie, atento para recuar no instante em que ela der o
primeiro sinal de desconforto, mas, quando ela não o faz, acaricio
sua pele com os dedos, os subindo e descendo em movimentos
calmos e repetitivos, buscando demonstrar que, seja qual for o
problema, estou aqui.
— Clarice e Robert ainda têm os próprios quartos — revela,
rindo baixinho, tristonha. — Acho que sempre terão, para ser
sincera.
— É por isso que ficou tão chateada? — pergunto.
Ela faz que sim com a cabeça, mordendo o lábio inferior,
tentando impedir que as lágrimas que ameaçam se formar em seus
olhos escorram pelas bochechas.
— Acho que agora eles desistiram mesmo de mim — diz. A
voz trêmula faz com que meu coração se parta em diversos
pedacinhos. — De uma vez por todas.
Jessie funga, se aproximando ainda mais, escondendo o rosto
no meu peito, coberto pela camiseta branca que uso para dormir.
Não hesito em levar uma das mãos à sua cabeça, acariciando seus
fios de cabelo.
O cheiro de xampu de morango faz com que algo derreta
dentro de mim.
— Ei — sussurro quando sinto suas lágrimas caírem,
molhando minha roupa. — Shhhh. Vai ficar tudo bem. Você precisa
saber que tempestades não duram para sempre.
Ela ri contra meu peito, em meio ao choro. Um vinco confuso
se forma em minha testa.
— O que foi?
Jessie ergue a cabeça, seus olhos vermelhos intensos ao me
encarar, uma lágrima solitária escorrendo pela bochecha, o rosto
muito próximo ao meu, os lábios repuxados em uma fina e divertida
linha.
— Você precisa parar de fazer isso. — Entrelaça as duas mãos
sobre o meu peito, se acomodando.
Franzo o cenho ainda mais.
— Parar de fazer o quê?
A linha feliz em sua boca se alarga.
— De dizer coisas que me fazem querer te beijar.
De repente, apenas por escutar uma única frase, composta por
9 simples palavras, tenho um sorriso de idiota estampado em meu
rosto.
Levanto as duas sobrancelhas.
— Eu digo coisas que te fazem querer me beijar?
Jessie revira os olhos, brincalhona. Vê-la com o humor
transformado aquece algo em meu coração.
— Ah, você diz — garante. — Você fala a coisa certa na hora
certa, e sempre é algo tão inteligente e doce, que me faz pensar
“meu Deus, que homem é esse?”, e às vezes preciso me conter ao
máximo para não pular em você e tomar a sua boca na minha e...
A calo quando, em um rápido e único movimento, colo meus
lábios nos dela.
Jessie se sobressalta no primeiro momento, sendo pega de
surpresa, mas logo retribui, deslizando uma das mãos até um dos
lados do meu rosto, encostando algumas de suas grandes unhas no
meu pescoço.
Sinto um breve sorriso se formar nos seus lábios.
Quando ela se afasta, seus olhos permanecem me encarando
por alguns segundos antes de voltar a deitar a cabeça em meu
peito, suspirando profundamente.
Volto a acariciar seus cabelos, lavados pelo xampu de
morango com um cheiro exageradamente doce, um sorriso bobo
estampado em meu rosto.
— Quero que saiba que estou aqui — sussurro. — E que você
pode falar comigo, ou apenas usar a minha mão para apertar ou o
meu peito para chorar.
Ela não responde. Apenas expira demoradamente, ainda com
a cabeça deitada em meu peito.
Me pergunto se essa seria a minha posição favorita no mundo
todo.
— Está fazendo de novo, Kale — diz.
Um riso incontrolável escapa pelos meus lábios.
Jessie encontra minha mão, segurando-a por debaixo da
coberta, murmurando um sonolento:
— Boa noite, Howard.
E eu me aconchego no colchão, sequer me incomodando em
dormir em uma cama pequena quando tomo Jessie nos braços.
— Boa noite, Campbell — sussurro.
Meus olhos ardem com o feixe de luz do sol que invade o
quarto, vindo da janela, batendo diretamente no meu rosto. Me
remexo um pouco no colchão, grunhindo, irritado e sonolento.
Fico estático no instante em que sinto o peso de um corpo
sobre o meu, lembranças de uma mente sonolenta me atingindo
como felizes enxurradas.
Um sorriso se molda em meus lábios quando o cheiro de
xampu de morango invade minhas narinas.
Jessie permanece adormecida sobre mim, a cabeça deitada
em meu peito, a bochecha amassada, os olhos fechados, os lábios
um pouco entreabertos, soltando um ronco fraco, quase inaudível. É
tão adorável. Tão inexplicavelmente adorável.
Meu coração se acalma ao ver a tranquilidade na qual
descansa. O completo oposto da mulher que encontrei ontem, ao
parar em frente à sua porta.
Algo em mim se parte assim que me lembro da cena. Cerro os
olhos, engolindo a vontade de abraçá-la e dizer, mais uma vez,
quantas vezes forem necessárias, que tudo ficará bem.
Porque essa é a verdade.
Se tem uma coisa que aprendi nos meus 25 anos de vida é
que, primeiro, ao lidar com situações de merda e ao assistir portas
se fechando na própria cara, nós nos machucamos e que, depois,
no fim de tudo, algo dentro da gente é transformado. Uma armadura
é criada, nos tornando mais fortes. Inabaláveis. Prontos para
enfrentar qualquer uma das porcarias que estão previstas para
nossa história.
Me lembro de uma noite no orfanato. Cresci ouvindo discursos
poéticos e frases de autoajuda, mas, por algum motivo, o que
escutei nessa noite ficou guardado para sempre comigo. Eu tinha 11
anos. Eu, Brandon e Beth estávamos no jardim do orfanato,
sentados na grama. Nós dois estávamos muito tristes. Aquela não
era a primeira vez que as crianças nos excluíam de suas
brincadeiras, nos obrigando a passar mais uma noite sozinhos ou
com a Beth, nossa única amiga na época, mesmo que duas
dezenas de anos mais velha. Ela era nossa cuidadora favorita no
orfanato. E a mais gentil.
As lembranças ainda estão frescas em minha mente. Beth
colocando os cabelos loiros para trás dos ombros, tirando o único
cigarro escondido no vestido, o acendendo com um isqueiro e
dando a primeira tragada.
Ignorando a regra que dizia ser expressamente proibido fumar
em frente aos órfãos, ela soltou uma linha de fumaça, que não
demorou muito para se espalhar pelo ar, apontou para nós dois,
exalando todo aquele ar autoritário de mãe que ela costumava ter às
vezes, e disse:
— Deixem de ser idiotas. Não tratem isso como se fosse o fim
do mundo. Vocês dois têm um ao outro. Ficarão bem. Tempestades
não duram para sempre.
Tempestades não duram para sempre.
Foi isso o que eu falei para Jessie ontem. O que a fez dizer
que preciso parar de falar coisas que a fazem querer me beijar,
antes de nós dois realmente nos beijarmos.
Ainda quero agradecer muito a Beth. Não apenas por ter me
ajudado a beijar Jessie Campbell só com uma de suas frases, mas
por todo o resto.
Por nunca ter me encarado com pena ao conversar comigo
sobre meu passado. Por sempre ter estado lá, preenchendo, nem
que fosse só um pouco, o papel de mãe que eu nunca tive. Por ter
segurado minha mão em momentos tristes e ter dito: “Está tudo
bem, Kale. Eu sei exatamente o que está sentindo.”
Porque ela sabia. Ela sabia mesmo.
Porque a história dela é tão complicada quanto a minha.
Nascida e criada até os 5 anos por pais viciados em
metanfetamina, Beth foi deixada em frente ao orfanato de Phoenix
em uma noite chuvosa. Ela cresceu lá, assim como Brandon, eu, e
outras inúmeras crianças. Então, nunca tive dúvidas de que Beth me
entendia mesmo. De que ela sabia do que estava falando.
A única diferença entre nós é que ela foi adotada. Em 1986,
aos 14 anos. Beth continuou no Arizona, onde cresceu e vive até
hoje — de acordo com o que posta nas redes sociais —, e logo
quando completou 18, voltou ao orfanato e disse que trabalharia e
moraria lá, fazendo pelos outros o que outras mulheres fizeram por
ela.
Ano passado, entrei no seu Instagram, para mandar um direct
perguntando se ela estava bem, mas desisti quando vi sua foto mais
recente, postada há dois dias na época, dizendo eu que um de seus
pais havia falecido. Resolvi ficar na minha e não mandar nada. Quis
respeitar o seu momento.
Até hoje não tentei entrar em contato de novo. Nem ao menos
sei se seu outro pai, que também já estava com bastante idade,
continua vivo.
Espero que sim.
Me desprendo dos meus pensamentos, os mandando para
longe quando Jessie se remexe no colchão, resmungando
sonolenta, a cabeça ainda sobre mim. Permanecendo com os olhos
fechados, ela abre um sorrisinho feliz nos lábios, como se estivesse
contente ao lembrar que estou ali.
— Bom dia — sua adorável voz de sono diz.
Sorrio.
— Bom dia.
E quando Campbell abre os olhos, inclinando um pouco a
cabeça para me encarar, algo dentro do meu peito derrete.
E sou invadido por uma paz inexplicável.
Empurro a porta do banheiro da Easton University,
atravessando-a, levando a pesada mochila nas costas.
Paro em frente a uma das pias do ambiente vazio, erguendo o
rosto para fitar meu reflexo no espelho. Faço uma careta ao me
deparar com alguns fios rebeldes de cabelo fora do lugar, levando
as mãos até eles, os ajeitando.
Algo vibra em meu bolso. De repente preciso me conter,
aquietando o coração, que acelera só de pensar ser uma
mensagem vinda do Kale.
Tiro o celular de um dos bolsos de trás da calça jeans,
trazendo-o para perto do rosto. Semicerro os olhos quando, enfim,
me deparo com a notificação do Instagram, brilhando na tela.

@SuzzieVeronica: Oi, Jessie!!!!!! É a Suzzie, a que tem oito anos, sobrinha da


Abigail. Você deve se lembrar de mim, né? Queria saber quando a gente vai se
ver de novo. Saudadeeeeeeeesssss!

Rio um pouco.
Como diabos essa menina encontrou minha conta?
Levando os dedos até o teclado, digo que também estou com
saudades e pergunto quando Suzzie visitará a Charlotte. Assim que
deslizo a tela, voltando para o feed, o sorriso agradável deixa meu
rosto imediatamente. Uma sensação amarga e estranha me invade
sem hesitar.
A foto de Clarice chama minha atenção. Sentada à mesa de
um café em Boston, minha irmã sorri, posando para a câmera quase
profissional, exibindo seus dentes absurdamente brancos.
Sinto o coração se apertar dentro do peito.
Ela parece genuinamente feliz.
Meus olhos analisam a imagem por alguns segundos. Minutos
até, se pensarmos que tive que bater a ponta dos dedos na tela
algumas vezes, impedindo que se apagasse.
Entre todos na minha família, Clarice Campbell sempre foi a
mais próxima a mim. Por isso me surpreendi quando, no jantar,
assim que contei sobre os planos que tinha para o meu futuro, sobre
meu sonho e o que eu iria fazer, ela não disse nada para me
defender.
Estaria mentindo se dissesse que não guardo ressentimentos.
Nunca entendi por que, para eles, é tão difícil apoiar minhas
escolhas.
Quer dizer, tudo bem. Tipo, meus pais já têm dois filhos bem-
sucedidos nos ramos que eles escolheram para que seguissem. Já
possuem duas pessoas para controlar e tratar como marionetes.
Não precisam cuidar da minha vida também, certo? Na realidade,
não precisam cuidar da vida de ninguém além da deles mesmos.
Às vezes é bom entender que nem sempre as coisas vão sair
conforme o planejado.
E eles nunca souberam lidar com esse fato.
Tiveram dois filhos perfeitos, que inclusive competiam entre si
para ver quem se tornaria o mais bem-sucedido.
Sempre achei tudo isso uma grande merda.
Me lembro até hoje das muitas vezes que assisti ao Robert
tirando uma nota A+ na escola e esfregando a prova na cara da
Clarice, mesmo que ela fosse mais nova e que eles nem estivessem
no mesmo ano. Minha irmã ficou vermelha quando descobriu que
ele tinha sido aceito em Dartmouth. E ele ficou furioso quando, anos
depois, descobriu que ela tinha entrado para Harvard.
Até hoje eles continuam com essa palhaçada toda, mesmo
Robert trabalhando na Europa, e Clarice ainda na faculdade,
cursando o último ano de direito.
Nunca entendi o motivo dessa competição toda. Irmãos
deveriam ser unidos, certo?
Bom, era assim que Clarice e eu éramos. Ou pelo menos
como eu achava que éramos.
Eu a considerava minha melhor amiga até... Até aquele jantar.
Depois disso, ficou difícil olhar para ela. Ficou difícil olhar para a
cara de todos eles, porque sempre encontravam um jeito de me
diminuir ou de dizer quanto a minha escolha de carreira era
péssima.
Acho triste quando as pessoas passam a colocar o dinheiro e o
status acima da própria felicidade. E não ia deixar que meus pais
me obrigassem a fazer isso com a minha vida. Então, não. Sequer
cogitei a ideia de cursar direito ou medicina. Isso não passava pela
minha cabeça.
Sinto falta da minha irmã. De todos eles, ela era a que mais
me entendia. Ou pelo menos eu acho que entendia.
Quando me dou por mim, já apertei no perfil da Clarice e estou
abrindo nossa conversa no direct.
A última vez que nos falamos foi no dia 23 de abril de 2019, há
2 anos. Ela tinha postado um story de alguma comida chique, e eu
respondi que aquela foto me lembrava de quando éramos crianças e
brincávamos de lanchonete maluca, quando nos fantasiávamos de
garçonetes e atendíamos nossos clientes — ursinhos de pelúcia —
da pior forma possível.
Eu estava bêbada. Jamais teria mandado isso se estivesse
sóbria.
Naquela época, não teria enviado mensagem alguma, para ser
sincera.
Mas hoje, por algum motivo, decido mandar.
Respiro fundo, levando a ponta dos dedos até o teclado, e
escrevo:

Vi sua foto e bateu saudade. Quando você vem para NY de novo? Quero te ver.

E pronto.
Às vezes na vida, quando você quer muito consertar as coisas
com alguém, é necessário mandar o orgulho à merda e dar o
primeiro passo.
Acho que acabei de entender isso.

A tarde na Charlotte passa como um borrão.


É sério. Acho que fiz tanta coisa, que meu cérebro nem ao
menos teve tempo suficiente para processar tudo e criar
lembranças.
Direciono as modelos para seus lugares na fileira, viradas de
frente para a câmera. Abigail me deixou encarregada de ajudar
Hugo, nosso estilista, com as fotos de hoje. Está sendo um saco.
As quatro garotas são lindas, todas com cores de pele, alturas
e corpos diferentes, e sabem muito bem o que estão fazendo, mas
também são um pouco teimosas.
Paro ao lado de Hugo, que rói as unhas, concentrado no
fotógrafo e nas meninas, que fazem poses diferentes umas das
outras, vestindo roupas de estilos distintos, mas igualmente
chamativos, focando em acabar logo com isso e tirar uma boa foto
para a capa da revista sobre pessoas reais.
Odeio, do fundo do meu coração, estar aqui agora.
— Você ainda vai precisar de mim? — pergunto para Hugo, em
meio ao som dos cliques da câmera ao nosso lado.
O estilista apenas nega com a cabeça, mantendo os olhos
concentrados nas modelos, e faz um gesto com a mão, como se me
dissesse para dar logo o fora dali.
E eu obedeço, agradecendo mentalmente por ser tão
indiferente para algumas pessoas.
Volto para minha mesa como um raio, animada para sentar em
frente ao laptop e continuar trabalhando na matéria proibida sobre
pessoas reais.
No dia da última reunião, quando presenciei um momento raro
e vi minha ideia de tema ser aceita pela editora-chefe, antes de ser
rejeitada para escrever uma matéria para a revista e decidir mesmo
assim que faria, fui ao encontro de Lorelei Fable, uma mulher de 36
anos, que trabalha vendendo cachorro-quente pelas ruas. Costumo
passar por ela algumas vezes, quando estou saindo do trabalho,
voltando para casa, e sempre achei engraçado o fato de que,
mesmo trabalhando atrás de um carrinho de hot dog sob o sol
quente, Lorelei sempre veste o mesmo estilo de roupas.
Um vestido longo bonito e um sapato de salto alto colorido.
E, sendo bem sincera, ela é uma das mulheres mais bonitas
que já vi na vida. Com a pele branca, as maçãs do rosto bem
marcadas, os cabelos pretos e longos caindo como cascatas até a
cintura, o corpo esguio e a postura exemplar de quem nunca vai
precisar se preocupar se vai ou não ficar corcunda na velhice,
Lorelei é o tipo de pessoa que todo mundo bate o olho e pensa:
Uau.
E a história que ela carrega também é digna de um uau. Um
bem grande, aliás.
Sempre fiquei curiosa. Sempre passava por ela e pensava:
Meu Deus! Essa mulher não se sente desconfortável usando essas
roupas para andar pelo centro de Nova York o dia inteiro?
E ao entrevistá-la, tive minha resposta.
Não, ela não se sente.
Lorelei tem duas filhas. Zelda, de 3 anos, e Lucy, de 6. As duas
são apaixonadas por princesas e contos de fadas da Disney. Depois
que o pai das meninas — e namorado de Lorelei — faleceu, no ano
passado, as três passaram a morar juntas em uma pequena casa,
em um bairro longe de ser considerado seguro.
Enquanto eu comia um dos seus cachorros-quentes, a mulher
de 36 anos me contou que depois que Mark, o pai das crianças, não
resistiu a um acidente de carro, elas passaram pelos dois piores
momentos de sua vida.
1- A perda de uma das pessoas que mais amavam no mundo.
2- A mais desesperadora dificuldade financeira que poderiam
imaginar.
Lorelei me disse que sentia o coração rasgar ao ver as filhas
fazendo apenas uma única refeição por dia. Me disse que, mesmo
que sentisse sua barriga roncar todas as noites, mesmo que se
sentisse absurdamente fraca, ela jamais chegou a cogitar a ideia de
também comer em vez de dar tudo para as meninas.
Essa não era uma opção.
Não foram meses fáceis, mas, depois de um tempo, Lorelei
conseguiu arrumar um emprego como vendedora de cachorro-
quente para um dos restaurantes da cidade. Agora ela circula todos
os dias pelo centro de Nova York, usando vestidos longos e saltos
enormes.
E o porquê disso é uma das mais puras demonstrações de
amor que já presenciei.
Suas filhas amam princesas. Então, sempre que Lorelei vai
buscá-las na escolinha, no fim do dia, ela chega o mais parecida
possível com uma princesa.
E as duas meninas vão à loucura.
Lorelei me disse que foi um dos jeitos que encontrou para
fazer as filhas sorrirem novamente, após a perda do pai. Disse que,
contanto que veja um sorriso se estampar no rosto de Zelda e Lucy
no fim do dia, não se importa em lidar com alguns calos nos pés,
nem em passar calor com longos vestidos.
E, ao ouvir tudo isso, a única coisa que passou pela minha
cabeça foi: preciso escrever sobre essa mulher.
Então foi isso o que fiz.
Escrevi uma matéria inteira sobre Lorelei Fable, a vendedora
de cachorro-quente que usa vestidos longos e saltos enormes para
trabalhar sob os fortes raios do sol. A mãe que se veste como uma
princesa, apenas para deixar as filhas contentes no fim do dia. A
mulher que perdeu o homem que amava, passou por dificuldades,
deu a volta por cima e hoje vive cada instante com um sorriso no
rosto.
Uma pessoa real.
Que, como diria John Peter Jones, possui muito mais carga do
que qualquer um poderia imaginar além da ponta do seu iceberg.
Além dos seus vestidos e saltos bonitos.
Solto um longo suspiro ao digitar o último ponto no rascunho
da matéria, me sentindo genuinamente feliz e satisfeita com o
resultado. Como qualquer escritor, sei que terei de revisar o texto
mais algumas milhares de vezes, mas não poderia estar mais
contente com o que escrevi.
Estou prestes a verificar a agenda online da Abigail, buscando
checar que horas sua reunião acaba, quando sinto minha própria
mesa tremer sob meus cotovelos. O som do celular vibrando invade
os meus ouvidos.
Entro em alerta imediatamente, levando uma das mãos até ele,
acendendo a tela para ver a mensagem que acabei de receber.
De repente estou estampando um sorriso gigante nos lábios.

Clarice: Não sei ainda. Vou resolver uma data e te aviso, ok? :) Fiquei feliz que
me mandou mensagem. Estou com saudades.
Saio para o corredor, fechando a porta do banheiro abafado
atrás de mim, depois de verificar se deixei a janela aberta para o
vapor quente do meu banho sair. Esfrego uma toalha branca nos
cabelos molhados com força, os secando enquanto caminho até a
sala.
Percebo alguns respingos dos meus fios castanhos caírem na
camiseta cinza clara que estou vestindo.
— Vai sair? — pergunto, chegando ao fim do corredor,
encontrando um Brandon de camisa social, encharcado por um
perfume enjoativo que suga todo o ar do ambiente e afivelando o
relógio em um dos pulsos.
Parado em frente ao sofá, ele se vira para mim.
— Vou. — Sorri. — Eu e Eve vamos jantar em um restaurante
que ela está doida para ir.
Levanto as sobrancelhas, afastando a toalha da cabeça.
— O que vocês dois têm é sério mesmo, não é? Você nunca
mais para em casa.
O sorriso que marca seus lábios dobra de tamanho.
— Está com ciúmes, Kale Howard? — Brandon provoca, me
fazendo revirar os olhos no mesmo instante. Ele ri um pouco. —
Pode ficar tranquilo. Nunca vou te abandonar. Se você quiser, posso
até deixar um horário livre na minha agenda para nossa noite dos
meninos. A gente pode passar aquelas máscaras nojentas na cara,
sabe, para limpar a pele, e ouvir algumas músicas da Taylor Swift,
assistir aos filmes mais legais da Barbie e...
— Tudo bem, Houston — o interrompo, desejando
desesperadamente que pare de falar. — É melhor você calar a boca
e ir logo encontrar sua namorada.
O rosto do meu melhor amigo se ilumina ao ouvir a forma
como me refiro à Eve. Seus olhos azuis brilham um pouco.
Ele pigarreia, depois de um tempo em silêncio.
— Certo. Tem razão. — Passa as mãos nos cabelos,
arrumando seus cachos da maneira que gosta. — Você vai fazer o
que hoje à noite? Vai passar as horas sendo o solteirão que é, ou
vai receber a Jessie aqui em casa e continuar lendo aquela
baboseira de diário velho?
Caminho até ele, deixando a toalha molhada que estava
usando em cima da mesinha de centro.
— A segunda opção.
Brandon parece se animar ainda mais.
— Pretendem terminar o que começaram nesta manhã? —
provoca, arqueando uma sobrancelha, dando um fraco soco no meu
ombro. Faço uma careta. Houston ri antes de soltar um som
parecido como um miado de um gato. — Garanhão.
Reprimo a gigantesca vontade de revirar os olhos.
— Nunca vou conseguir entender o fato de que você tem uma
namorada e eu não — comento, desabando no sofá. Pego uma das
almofadas horrendas, abraçando-a em frente ao peito.
Brandon solta um risinho.
— Ainda — diz. — Você não tem ainda. — Sua voz vai
diminuindo à medida que ele se afasta até a cozinha.
Desta vez, meus olhos praticamente se reviram sozinhos.
Hoje de manhã, depois que cheguei do apartamento da Jessie,
encontrei Brandon na sala, sentado na poltrona, com uma caneca
fumegante de café nas mãos e as pernas cruzadas, incorporando
qualquer mãe de filme adolescente que pega o filho no flagra, ao
chegar em casa às escondidas.
Foi um pouco assustador. Isso eu não nego.
Quase tive um ataque de susto, e Houston sequer hesitou em
começar a me bombardear com o interrogatório. “Onde você
estava? Com quem você estava? Poxa, Howard, sou seu melhor
amigo, por que diabos você não me conta as coisas?”, e por aí foi.
Tive que responder a todas suas mil e uma perguntas, e
quando o nome de Jessie chegou à conversa, Brandon surtou.
Ele começou a pular no sofá, feito uma criança alegre que
acabou de ganhar um daqueles pirulitos gigantes de parques de
diversões.
— Ah, esqueci de te avisar. — A voz do meu melhor amigo me
fisga para longe dos meus pensamentos. Levanto a cabeça, vendo-
o se aproximar enquanto segura um envelope branco em uma das
mãos. — Isto aqui chegou para você hoje de manhã. Estava
voltando do mercado quando o zelador me pediu para te entregar.
— Um vinco se forma em sua testa quando ele dá uma breve
analisada no envelope, o estendendo em minha direção em
seguida. — Você está fazendo aquele negócio de mandar cartas
para presidiários ou algo assim?
Franzo o cenho enquanto pego a carta, chacoalhando a
cabeça em negação.
Por que caralhos ele está me perguntando isso?
— Não. Nem sabia que isso era possível. — Encaro o papel
em minhas mãos.
— Bom, então acho melhor você verificar se isso aí é mesmo
para você — Brandon diz, se afastando até o cabide ao lado da
porta, pegando um moletom azul marinho com a logo do New York
Islanders.
Abro um sorrisinho nos lábios. Meu melhor amigo, com
certeza, deve ser a única pessoa no mundo que sai para jantar com
uma camisa social branca e leva um moletom de hóquei como
garantia para caso esfrie.
— Preciso ir — avisa o ruivo, se virando para mim. — Tenho
que buscar a Eve no apartamento dela e não posso me atrasar.
Meneio a cabeça em concordância.
— Está com sua chave, né?
Ele faz que sim, levando as mãos até a maçaneta da porta.
Quando Houston está prestes a sair, se vira para mim novamente.
— Ah, e... vai ser o da princesa e da plebéia.
Franzo o cenho.
— O quê?
— O filme — Brandon explica. — Vai ser Barbie em A Princesa
E A Plebéia.
E, simples assim, ele bate a porta.
Sou incapaz de conter o riso que escapa pelos meus lábios
quando meu melhor amigo deixa o apartamento.
Brandon consegue ser a pessoa mais irritante do mundo
quando se esforça, mas, meu Deus... eu amo esse idiota.
O sorriso que rasga meu rosto se desfaz no momento que
meus olhos vão de encontro com o envelope branco novamente, me
deparando com o local de envio e nome do remetente. E, de
repente, todas as peças se encaixam.
E não é preciso muito esforço para entender o que o papel
entre meus dedos significa.

Prisão Para Mulheres do Tennessee (TPFW).


Remetente: Violet Harper.
Minhas mãos suam ao redor da carta.
Meus olhos se fixam no papel branco do envelope, lendo e
relendo o nome escrito em caneta azul por mais vezes do que posso
contar.
Uma onda de pânico atinge meu corpo impiedosamente,
fazendo as mãos tremerem.
Durante os meus 25 anos, aprendi que existem momentos que
se tornam memoráveis em nossas vidas. Momentos bons ou ruins.
Momentos que relembramos antes de dormir, que contaremos para
os nossos futuros filhos e que, independentemente da carga que
carregam ou de quanto nos afetam de forma positiva ou negativa,
levaremos conosco até o túmulo.
E acho que este é um desse tipo.
Acho que daqui 45 anos, quando eu estiver com meus 70 anos
de idade, vou me lembrar perfeitamente do dia em que recebi uma
carta da minha mãe desaparecida há 23 anos.
Do dia em que descobri que ela estava no Tennessee, presa
em uma prisão para mulheres.
Do dia de hoje.
Porque, depois de tanto tempo me esforçando para agir como
se eu não ligasse para o paradeiro da mulher que me abandonou,
receber notícias dela é sinônimo de um tapa estalado e ardido na
cara.
É sinônimo de dor e desespero.
Meus dedos tremem quando, enfim, tomo coragem para abrir o
envelope. Não sei quanto tempo passou desde que Brandon deixou
o apartamento. Desde que meus olhos grudaram no papel branco.
Talvez minutos. Ou horas. Não tenho ideia. Só sei que agora,
enquanto jogo o envelope para o meu lado no sofá e seguro a carta
dobrada perfeitamente, quero poder voltar no tempo e pedir para o
meu melhor amigo não me entregar esta merda.
Porque tenho medo do que pode estar escrito aqui.

De: Violet Harper.


Para: Kale Howard.
Prisão Para Mulheres do Tennessee (TPFW), 2 de maio de 2021,
16:34.

Meu filho, espero não te assustar com esta carta.


Nem ao menos sei se você sabe ou não meu nome. Não sei se
ainda espera, ou se algum dia já esperou, receber algum sinal de
vida vindo de mim. Não sei se me odeia e nem mesmo se tem
esperança de que algum dia possamos nos reencontrar e,
finalmente, nos conhecer de verdade.
Quando deixei você e seu pai, eu tinha 20 anos. Não estou tentando
justificar minhas escolhas usando minha idade ou falta de
maturidade, mas todos sabemos que eu teria sido uma péssima
mãe para você.
E você, meu pequeno Howard, com aqueles redondos olhos verdes
brilhantes e os curtos fios de cabelo castanho, não merecia ter
alguém como eu em sua vida.
Nem você e nem o seu pai.
Richard sempre foi um homem muito bom e honesto. Nunca deveria
ter se envolvido com uma mulher como eu.
E eu jamais deveria ter permitido que Richard Howard se
apaixonasse por mim. Sempre soube que aquilo não era justo.
Não sei se você sabe a história por trás da sua vinda ao mundo ou
sobre meu relacionamento com seu pai, mas saiba que, naquele
dia, há mais de 20 anos, quando cheguei no bar e aceitei uma
bebida vinda dele, jamais imaginaria que aquele homem me daria
vontade de consertar tudo o que sempre existiu de errado em mim.
Jamais poderia imaginar que eu tentaria mudar quem sou por causa
dele.
E eu tentei, viu?
Eu me esforcei ao máximo para me consertar, porque eu o amava.
Mas não foi o suficiente.
E aprendi que, às vezes, só o amor não é capaz de fazer com que
duas pessoas tenham seu “felizes para sempre”. Aprendi que essa
merda não existe na vida real, apenas nos contos de fadas. Porque
é necessário muito mais do que apenas amar alguém
profundamente para fazer com que as coisas funcionem da maneira
certa.
Foi por isso que a gente nunca funcionou.
Porque um homem bom, que junta agasalhos todo inverno para
distribuir para moradores de rua, que faz trabalho voluntário em
asilos e hospitais e que distribui folhetos de animaizinhos perdidos
pela cidade, jamais deveria acabar com uma alcoólatra e viciada
como eu.
E ainda bem que fugi. Porque Richard, perdidamente apaixonado
por mim, enxergando esperança onde tudo o que existia era o mais
tempestuoso caos, dizia que jamais aceitaria me perder.
E eu sabia que, se continuássemos juntos, ele acabaria se
perdendo também.
Porque sou como uma pincelada de tinta em um papel branco.
Quando pintado, o papel nunca mais volta a ser o mesmo.
E deixar Richard e você serem pintados e danificados por mim,
minhas atitudes de merda ou cabeça fodida nunca foi algo que eu
quis.
Por isso, três anos depois de conhecer seu pai naquele bar, quando
você tinha apenas 2 anos, tomei a decisão de deixá-los.
Deixei Scottsdale e fugi para Evansville, no estado de Indiana.
Foram dias cansativos de viagem, mas tirei boas sonecas nos
ônibus.
E roubei a carteira de um cara. Ele tinha 700 dólares no bolso! Me
diz quem anda por aí com tudo isso? Merecia ser furtado apenas
por ser tão idiota.
Quando finalmente cheguei em Evansville e me instalei em um hotel
que paguei com o dinheiro roubado, conheci uma mulher em uma
casa de jogos clandestina. O nome dela era Zoe McKenna. Ficamos
inseparáveis desde essa noite.
Zoe sempre andava com muito dinheiro, então eu não precisava me
preocupar com minha grana. Só a usava para pagar a diária do
hotel, porque todo o resto McKenna pagava para mim. Desde as
drogas e bebidas, até roupas de marca, já que ela sempre alegava
que as que eu usava eram nojentas.
Nunca entendi por que Zoe tinha tanta grana até o dia em que meus
700 dólares acabaram e me expulsaram do hotel, depois de duas
noites dormindo sem pagar e enrolando os funcionários.
Eu não sabia o que fazer, mas ela mandou eu me acalmar e disse:
— Merdas acontecem, Harper. Não esquenta a cabeça com isso. Já
sei onde você vai morar.
Zoe nunca me chamava pelo primeiro nome. Ela dizia que Violet
não combinava comigo. Dizia que era “menininha demais”.
Eu achava isso ridículo.
Mas foi só quando chegamos à mansão onde ela morava que
entendi de onde vinha seu dinheiro infinito.
Brady McKenna.
Seu irmão.
O maior traficante do estado de Indiana.
E o único cara com quem já fui casada.
Brady estava na sala quando entramos. Me lembro da cena até
hoje. Tinha pó na mesa de centro, em frente ao sofá, onde ele
estava sentado, e ele sorriu assim que me viu. Seus olhos famintos
deslizaram dos meus pés até a cabeça, e então Zoe contou que eu
moraria lá com eles.
O sorriso no rosto do Brady se alargou quando ele disse:
— Uma pena que temos um quarto sobrando. Ela poderia muito
bem ficar comigo.
E Zoe mandou ele calar a boca quando me segurou pelo braço e me
arrastou escada acima.
A casa era linda. E eu estaria mentindo se dissesse que o
proprietário não era também.
Com a pele branca, os cabelos pretos cortados em corte militar,
olhos azuis, um sorriso capaz de derreter qualquer um e os braços
fechados por tatuagens, Brady McKenna era a personificação de
uma pintura perfeita.
Acho que foi por isso que ele conseguiu me levar para a cama na
segunda noite que passei na mansão.
Zoe não estava em casa. Ela tinha saído com um cara que tinha
conhecido em uma festa.
Pessoas com o mínimo de senso achariam perigoso se uma amiga
deixasse a outra sozinha em uma casa repleta de homens
drogados, mas eu e Zoe tínhamos tudo naquela época, menos
senso.
E eu nem me preocupei, para falar a verdade. Estava tão louca, que
nem mesmo conseguia pensar.
Algumas semanas depois, eu e Brady já estávamos namorando. Ele
me comprou um celular. Era daqueles velhos de antigamente, mas
era bem caro. Foi o primeiro que ganhei.
15 dias depois, eu já tinha mudado todas as minhas coisas para o
quarto dele. Foi quando ganhei um carro.
Um mês depois, tinha um anel de noivado em meu dedo.
E, após pouco tempo, eu estava casada.
O que eu sentia por Brady era totalmente diferente do que eu sentia
pelo seu pai. Aquilo não era amor. Mas, como eu disse, o amor não
é tudo. McKenna podia me proteger e me dar tudo o que eu queria.
Eu estava pouco me fodendo para quantas mulheres ele levava
para o quarto de hóspedes, achando que eu não estava vendo, ou
para todas as vezes que escapava às escondidas no meio da noite
e estava de volta quando eu abria os olhos de manhã. Ele me dava
dinheiro. Muito dinheiro.
E isso bastava.
Alguns homens costumam pensar que mulheres servem para serem
feitas de idiotas. Mas quem estava sendo feito de trouxa nessa
história toda era o Brady. Porque eu sabia de tudo o que ele tentava
esconder, enquanto ele pensava estar arrasando.
E, dois anos depois, após descobrir todos os seus segredos, seus
podres e suas falhas, fiz com que todos seus caras se virassem
contra ele. E me tornei o novo Brady. Assumi o poder e me
transformei na maior traficante do estado de Indiana.
Eu e Zoe nos mudamos para uma mansão ainda maior, me separei
de Brady, mandando-o à merda, e comecei a produzir meu próprio
dinheiro.
Eu era poderosa.
Mas o que ninguém te conta sobre o poder é que, quanto mais você
tem, mais fácil fica se afundar.
E não demorou muito para que isso acontecesse comigo.
Todo o meu esquema foi descoberto, quarenta e sete dos meus
caras foram presos ao redor do estado, e eu e Zoe passamos a fugir
e nos escondermos pelo país.
Em 2012, eu estava com 36 anos quando voltei para Scottsdale.
Você tinha 16 anos na época, e eu estava pronta para me deparar
com um adolescente rebelde quando cheguei à cidade, procurando
por você e pelo seu pai.
Foi então que descobri que Richard estava morto há 10 anos.
E que você tinha apenas 6 quando ficou sozinho no mundo.
Eu estava chapada naquela hora, filho, eu estava sempre chapada,
mas foi como se toda a droga consumida nos últimos 14 anos
deixasse meu corpo de uma vez só, sendo substituída por uma
enxurrada de arrependimento, um aperto no peito e um grito
ensurdecedor, que ecoou pela minha cabeça, reverberando pelas
paredes do meu cérebro.
E foi aí que decidi me entregar.
O sangue que corre pelas minhas veias é feito de erros. E o maior
deles foi deixá-los. Hoje entendo isso.
Sempre desejei poder te proteger do mundo e de todas as merdas
que nele existem, mas como eu poderia fazer isso se eu, Violet
Harper, me encaixo nesse meio?
Então, sinto muito. Sinto muito por não ser a mãe que você merece.
Sinto muito por não ter sido a namorada ou esposa que seu pai
merecia. Sinto muito por ser o caos que sou.
Se pudesse voltar no tempo e fazer tudo diferente, eu faria, Kale.
Quero que saiba disso.
Passei anos tentando entrar em contato com você, mas só agora
um policial resolveu me ajudar a achar seu endereço. Eu nem sei se
o que ele fez foi certo, mas estou pouco me fodendo. O importante é
que agora, finalmente, depois de tanto tempo tentando te dizer
essas coisas, consigo me explicar.
Não espero o seu perdão. Só quero que saiba que eu te amei e que
continuo te amando.
Torço para que se torne pelo menos a metade do que Richard foi
um dia.
E que encontre alguém que te faça se sentir da maneira como ele
me fazia. Alguém que te olhe como se você valesse a pena de
verdade.
Seu pai foi o grande amor da minha vida, e encontrar isso é algo
raro para a maioria das pessoas.
Espero que para você não seja.

Com amor, Violet.

Mal tenho tempo de processar tudo o que acabei de ler quando


o ranger da porta sendo aberta de súbito invade meus ouvidos.
Em um gesto automático, escondo a carta atrás do corpo
rapidamente.
Me ajeito no sofá, levando o olhar até a entrada do
apartamento, vendo uma Jessie contente, exalando felicidade ao
esboçar um grande sorriso nos lábios, entrar saltitando pelo carpete.
Ela fecha a porta atrás de si, remexendo o corpo em uma dancinha
ridícula.
Apesar da situação em que me encontro, de tudo o que meus
olhos acabaram de ler e de toda a informação que ainda tenho que
processar, uma risadinha escapa pelos meus lábios ao vê-la alegre
dessa forma.
— Teve um dia bom? — pergunto, minha voz saindo
embargada devido a quantidade de vezes que engoli em seco nos
últimos minutos.
— Mais do que bom — Campbell responde, caminhando até
mim. Sou pego de surpresa quando sinto suas grandes unhas
fazerem um carinho de leve na minha nuca e um beijo ser estalado
em minha cabeça.
Um sorrisinho ridículo toma meu semblante.
— Vai me contar o que aconteceu?
Ela se joga ao meu lado no sofá, alcançando o diário do John
sobre a mesinha de centro à nossa frente, ao lado da minha toalha
molhada.
— Consegui terminar de escrever uma matéria incrível —
conta, me encarando fixamente, seus olhos brilhando em alegria.
Me esforço para esconder ao máximo qualquer desconforto que se
faça presente em meu rosto, devido aos últimos acontecimentos. —
E combinei de me encontrar com minha irmã, da próxima vez que
ela vier para Nova York.
Meu sorriso dobra de tamanho.
— Você o quê?
Campbell solta um gritinho empolgado. Algo derrete dentro de
mim ao vê-la assim, completamente diferente de ontem à noite.
— Eu sei! É maravilhoso! — diz. — Resolvi deixar o orgulho de
lado e mandar uma mensagem para ela. Clarice e eu éramos muito
próximas antes dos nossos pais resolverem me odiar. — Seu
semblante se transforma um pouco, murchando. — Sinto falta dela.
— Que bom que vocês vão se reencontrar então — me
apresso em dizer, querendo vê-la alegre novamente.
Campbell faz que sim, voltando a sorrir.
— E você? — pergunta.
Me remexo um pouco no sofá, desconfortável com a
inesperada mudança de foco na conversa.
— O que tem eu?
— Como foi seu dia?
— Foi... — Enrolo um pouco. Não quero mentir, mas também
não quero falar a verdade. Não quero dizer que recebi uma carta da
minha mãe, que ela está presa, que era uma viciada, que amava o
meu pai, mas mesmo assim nos deixou, que se tornou a maior
traficante de Indiana... Meu Deus! Não quero dizer nada dessas
merdas. Pelo menos não até conseguir processar tudo isso. Então,
limpando a garganta e estufando o peito um pouquinho para tomar
coragem, resolvo mentir. — Foi bom.
Os lábios de Jessie, pintados de batom vermelho, se repuxam
um pouquinho ao ouvir a falsa notícia.
Vestindo uma calça jeans, uma regata preta, uma jaqueta de
couro e usando aqueles coturnos pretos que eu tanto gosto,
Campbell está linda.
Como sempre.
Acho que nunca vou me cansar de pensar nisso. Porque,
honestamente, Jessie Campbell é uma das mulheres mais bonitas
que já vi na vida.
— Certo — diz ela, abrindo o diário do John em seu colo, o
olhar focado nas páginas que folheia. — Paramos no ano de 1951.
Me remexo no sofá, deslizando um pouco para me aproximar
de Campbell. Quando nossas pernas se tocam, um súbito arrepio
me percorre. Pigarreio, tentando disfarçar qualquer sinal do efeito
que Jessie tem sobre mim.
Observo quando ela começa a ler, seus olhos correndo de um
lado para o outro do papel. Respiro fundo, tentando acompanhá-la,
mas quando meu olhar se foca na letra do John Peter Jones, tudo o
que consigo ver é a caligrafia da minha mãe.
E as palavras lidas voltam à minha mente como enxurradas
desesperadas e impiedosas.
Sempre desejei poder te proteger do mundo e de todas as
merdas que nele existem, mas como eu poderia fazer isso se eu,
Violet Harper, me encaixo nesse meio?
E aprendi que, às vezes, só o amor não é capaz de fazer com
que duas pessoas tenham seu “felizes para sempre”. Aprendi que
essa merda não existe na vida real, apenas nos contos de fadas.
Porque é necessário muito mais do que apenas amar alguém
profundamente para fazer com que as coisas funcionem da maneira
certa.
Em 2012, eu estava com 36 anos quando voltei para
Scottsdale.
Foi então que descobri que Richard estava morto há 10 anos.
E que você tinha apenas 6 quando ficou sozinho no mundo.
Eu estava chapada naquela hora, filho, eu estava sempre
chapada, mas foi como se toda a droga consumida nos últimos 14
anos deixasse meu corpo de uma vez só, sendo substituída por uma
enxurrada de arrependimento, um aperto no peito e um grito
ensurdecedor, que ecoou pela minha cabeça, reverberando pelas
paredes do meu cérebro.
Sou fisgado para fora dos meus pensamentos quando Jessie
estala os dedos em frente ao meu rosto, me encarando com um
olhar preocupado e a testa franzida.
— Desculpe... eu...
— Para onde você foi, Howard? — pergunta ela. — Parecia
que estava bem longe.
Suspirando profundamente, tomo coragem e ergo um pouco os
quadris, alcançando a carta atrás de mim.
Os olhos de Campbell se apertam um pouco ao focarem no
papel entre meus dedos.
— É uma carta — me adianto em explicar, já sentado
novamente. — Da minha mãe.
Jessie tapa a boca com as duas mãos em surpresa, seus
olhos se arregalando.
— Brandon me entregou antes de você entrar — conto. — Tem
muita coisa aqui que ainda preciso processar... Desculpe por estar
meio desconcentrado hoje.
Ela afasta as mãos do rosto no mesmo instante, chacoalhando
de leve a cabeça em negação.
— Não precisa pedir desculpas por nada, Kale — diz. — Está
tudo bem.
Expiro demoradamente, esvaziando meus pulmões, focando o
olhar na caligrafia bonita de Violet.
— O que você vai fazer? — pergunta Jessie.
Franzindo o cenho, levanto a cabeça para olhá-la novamente.
— Como assim?
— Pretende responder? — questiona ela, com o diário do John
agora fechado sobre o colo.
— Não sei ainda — digo com sinceridade, a voz falhando um
pouco. — Sequer tive tempo para raciocinar tudo isso.
Campbell estica um dos braços, deixando o diário de volta na
mesinha antes de voltar a se sentar corretamente, se virando para
me encarar, e levar uma das suas mãos em concha sobre a minha,
tentando demonstrar que está ali por mim.
Da mesma forma que demonstrei estar lá por ela ontem à
noite.
— Sabe — começa —, você pode escrever, mas não precisa
enviar. Dizem que é bom desabafar em forma de palavras no papel.
Posso fazer junto com você, se quiser.
E é então que, engolindo em seco e inflando o peito para
tomar coragem, digo:
— Eu quero.
AS CARTAS

De: Kale Howard.


Para: Violet Harper.
Nova York, 24 de junho de 2021, 21:52.

Oi, mãe,
Não sei se algum dia você vai chegar a ler esta carta, mas uma
amiga minha me convenceu a te escrever de volta, mesmo que eu
nunca chegue, de fato, a te enviar.
Eu não fazia ideia.
Nunca soube muito sobre você. Acredito que o papai tenha me
contado algumas coisas, mas eu tinha apenas 6 anos quando ele
faleceu.
Tudo o que me lembro de ouvi-lo dizendo foi que meus olhos são
como os seus, esverdeados, e que nossos cabelos também
possuem o mesmo tom de castanho.
Estaria mentindo se dissesse que passei os últimos anos esperando
por qualquer notícia sua, mas, sinceramente, ler a carta que me
enviou me atingiu como um baque, me desconcertando. Ainda estou
tentando raciocinar tudo o que li.
Richard faleceu em 2002.
Eu tinha 6 anos.
Não lembro de muita coisa da minha infância, mas essa foi uma
cena que ficará guardada comigo para todo o sempre. Eu tinha
acabado de voltar de uma partida de futebol com meus amigos do
bairro. A gente nunca jogava futebol, sequer sabíamos que era um
esporte tão legal, mas era ano de copa do mundo e, mesmo que
aqui nos EUA isso não signifique um evento muito grande, eu e
meus amigos assistimos alguns jogos pela TV e tentamos reproduzir
o que sabíamos. Foi um desastre, como já era de se esperar. Mas
eu gostei. Estava animado e ansioso para tagarelar com o papai e
dizer que tinha aprendido uma coisa nova quando, ao entrar em
casa, vi o corpo de Richard sobre o piso desgastado de madeira
velha da sala.
A televisão estava ligada em uma partida de hóquei. Eu nem sabia o
que era hóquei naquela época.
Me lembro de chutar os tênis para longe dos meus pés enquanto
corria para a mesinha onde o telefone ficava.
Eu sabia que tinha alguma coisa errada. Após chamá-lo pelo nome
diversas vezes e não obter nenhuma resposta, sabia que ele não
estava bem.
Mas não tinha certeza se estava morto.
Quando liguei para os policiais, não conseguia parar de gaguejar.
Minhas mãos tremiam em volta do telefone amarelo que tínhamos.
Nunca fui de decorar números telefônicos, mas Richard sempre me
fazia repetir o número da polícia em voz alta. Ele dizia que era por
precaução e que todas as crianças deveriam saber.
Era como se o universo já estivesse me preparando para o que
estava por vir.
Eu só sabia chorar quando os policiais chegaram, juntos à
ambulância, e vi o corpo morto do meu pai ser levado para todo o
sempre.
A gente não tinha ninguém. Nossa família era eu e ele. Apenas.
Acho que você já deve saber disso.
Três dias depois, fui levado a Phoenix, onde passei a morar no
orfanato da cidade. Conheci meu melhor amigo lá. O nome dele é
Brandon, e hoje nós moramos juntos em Nova York. Somos donos
de uma lanchonete bem legal. O The Rock’s.
Não estou te contando minha história para que sinta pena de mim
ou para que se culpe ainda mais por ter nos deixado, mas, sei lá,
acho que... se você realmente amava o papai do jeito que diz ter
amado, merece saber como ele deixou este mundo.
Não me lembro de como era minha relação com ele, nem de vê-lo
juntando agasalhos todo inverno para distribuir para moradores de
rua, fazendo trabalho voluntário em asilos e hospitais, ou
distribuindo folhetos de animaizinhos perdidos pela cidade, mas fico
feliz em saber que ele realmente fazia essas coisas. Sempre o pintei
como uma pessoa boa na minha cabeça. Algo dentro de mim me
dizia para imaginá-lo assim. Como alguém do bem. Alguém que, se
tivesse tido a chance de sobreviver a uma parada cardíaca, teria
cuidado do filho com todo amor e carinho.
Como um bom pai faria.
Não é tarde demais para se arrepender dos seus erros, Violet.
Nunca é.
Espero que algum dia você possa recomeçar e fazer tudo de novo.
Da maneira certa.
E sobre encontrar alguém que me olhe como se eu valesse a pena
de verdade, acho que já encontrei.
E, saiba, não vou deixá-la escapar.

Howard.

De: Jessie Campbell.


Para: Louise e Willian Campbell.
Nova York, 24 de junho de 2021, 21:53.

Estou escrevendo esta carta para ajudar um amigo. Muito


provavelmente vocês nunca chegarão a ler nada do que irei relatar
aqui, mas acho que isso é bom, de certa forma.
Não consigo me expressar bem o suficiente quando preciso
conversar com vocês.
Nunca consegui, para ser sincera.
Sabe, pai e mãe, eu queria que as coisas pudessem ser mais fáceis
entre nós. Se um gênio da lâmpada aparecesse para mim agora e
me concedesse 3 desejos, eu não pensaria duas vezes antes de
pedir.
Primeiro, eu diria que quero ter o amor de vocês de volta. Que quero
que voltem a me tratar com carinho, mesmo que seja daquele único
jeito estranho que sabem mostrar afeto.
Em segundo, eu diria que queria que me entendessem. Pelo menos
um pouco. Pediria para que, ao invés de tentarem me convencer de
que meus sonhos e escolha de vida são erros, se esforçassem um
pouquinho mais para me ouvir e tentar me entender.
Fiz a minha escolha. Já estava decidida mesmo antes da formatura
no ensino médio. Escolhi ser feliz do meu jeitinho, sem
universidades da Ivy League ou milhões de dólares na conta.
E estou feliz.
Uma vez ouvi que a verdadeira felicidade só nos alcança quando
estamos bem com quem somos. E, sabe, estou contente com a
mulher que venho me tornando.
Tenho muito o que aprender ainda, mas acho que isso é uma coisa
humana, não é? Estamos em constante evolução.
O meu terceiro e último pedido seria para que fizessem parte da
minha vida de novo. Porque, mesmo com todas as discussões,
brigas e dias ruins, ainda somos uma família.
E aprendi recentemente, com um cara bem especial, que a família é
algo importante em nossas vidas.
E, mesmo que tenha me ensinado, ele cresceu sem uma.
Ainda me impressiono ao pensar na sua história de vida. E ainda
mais em saber que, mesmo depois de tudo o que passou, ele não
baixou a cabeça nem por um único segundo e conseguiu se tornar
um ser humano incrível.
Sinto falta de vocês.
E gosto de pensar que algum dia sentirão a minha também.

Com carinho, sua filha.


Minhas mãos suam ao segurar o fino maço dos papéis que
contam a história de Lorelei. Com o peito subindo e descendo
conforme os profundos suspiros que sopro, encaro a porta de vidro
da sala de Abigail, tentando tomar a coragem necessária para
atravessá-la e apresentar a minha chefe o que tem tirado meu sono
nessa última semana.
Não tenho ideia de como ela vai reagir.
Essa mulher é a personificação exata de uma caixinha de
surpresas. Nunca consigo adiantar como ela vai agir, o que vai dizer,
se irá gritar, fechar a cara e me mandar sumir da sua frente.
Geralmente, quando se está acostumado a conviver com a
pessoa pelo menos cinco dias por semana, vocês acabam criando
um laço, mesmo que mínimo, e conhecendo alguns gostos e
costumes uma da outra.
Comigo e Abigail nunca foi assim.
Mesmo trabalhando para ela há 3 anos, agendando reuniões,
atendendo a telefonemas, tendo de sair correndo da faculdade para
chegar ao trabalho a tempo e servindo de babá para seus cães e
sobrinha, tudo o que eu sei sobre Abigail Veronica é que ela odeia o
café da máquina da Charlotte, mas que às vezes o bebe em
reuniões para não parecer metida demais.
Sei disso porque ela mesma já me falou.
E, quer saber? Não faz o menor sentido.
Todo mundo que trabalha aqui — sem exagero — enxerga
Abigail como uma cobra de nariz empinado.
No dia de reunião de pauta, por exemplo, quando minha ideia
de tema para a próxima edição da revista foi aceita por ela, me
surpreendi ao ver a expressão positiva e o sorriso discreto que se
curvou em seus lábios.
Uma assistente que realmente conhece sua chefe saberia
perfeitamente do que ela gosta, adiantaria sua reação e não ficaria
tão surpresa quanto fiquei.
Desde que pisei na Charlotte pela primeira vez, tenho buscado
impressioná-la. Abigail nunca foi muito aberta a me ouvir, mas, na
reunião, quando ficou satisfeita em escutar a minha proposta e fez
com que a sementinha do resquício de esperança no meu coração,
de ter um futuro na revista como escritora, voltasse a crescer, algo
dentro de mim me disse que agora é a hora certa. Me disse que eu
deveria continuar tentando. Quantas vezes forem necessárias.
Posso estar me iludindo muito agora, mas algo me diz que
meu momento está prestes a chegar. Que coisas grandiosas
acontecerão na minha carreira.
Meu plano inicial era usar o diário do John para impressioná-la.
Era trabalhar em cima dele, escrever uma matéria incrível e
apresentá-la para a editora-chefe, buscando deixá-la de queixo
caído.
Ainda vou fazer isso um dia, no futuro. Mas agora, vendo que
outras portas estão se abrindo para mim, sinto a necessidade de
estender o braço e impedi-las de se fecharem.
Sinto vontade de agarrar a oportunidade que está estampada
bem diante do meu nariz.
— Meu amor, você vai ficar parada aí ou vai andar logo? — a
voz vem de trás de mim. Imediatamente, me viro, me deparando
com um Mike de sobrancelha arqueada, segurando uma folha nas
mãos, me encarando como se estivesse apressado. — Está
atrapalhando o caminho, Campbell. Você sabe como funcionam as
coisas nesta revista. Não pode ficar parada aí o tempo inteiro! As
pessoas precisam usar o corredor para se locomoverem! — Ele
afina a voz para passar um ar forçado de indignação.
Preciso me esforçar ao máximo para não revirar os olhos. Mike
é um exagerado. O corredor é gigante, tem vários espaços vazios
para passar. Ele poderia muito bem desviar de mim, mas resolveu
fazer uma cena, como de costume.
— Inclusive — Mike volta a falar antes que eu possa abrir a
boca para dizer quanto está sendo ridículo. Ele verifica seu relógio
de pulso, sobre a pele negra, ainda como uma estátua petrificada
atrás de mim. Quando traz seus olhos até os meus novamente,
esboça um sorriso extremamente irritante no rosto. — Sabe que
está 10 minutos atrasada, não sabe? Abigail vai te matar.
Meus lábios se curvam em um sorrisinho desdenhoso.
— Por que você não cuida da sua própria vida? — disparo. —
Acabou seu estoque de impressoras para quebrar?
Mike ri um pouco.
Sinto vontade de socá-lo.
— Não, Campbell, não acabou. — Ele cruza os braços em
frente ao peito coberto pela camisa social vermelha, ainda
segurando o papel que carrega. — E estou tentando cuidar da
minha vida, mas isso fica um pouco difícil quando se tem alguém
que não sai da sua frente.
Solto um grunhido irritado, cruzando os braços também. Se
esse idiota acha que vai conseguir me tirar do seu caminho apenas
tentando me irritar, está muito enganado.
— Você sabe que o corredor tem bastante espaço e que você
pode muito bem desviar de mim, não sabe?
— Você sabe que já deveria estar trabalhando há mais de 10
minutos, não sabe? — ele retruca. Dessa vez, reviro os olhos para
valer. — Abigail vai ficar furiosa com você.
Franzo o cenho, indignada.
— Desde quando virou baba-ovo da nossa chefe, Mike?
Ele dá de ombros, permanecendo com os pés cravados no
chão. Coberta pela raiva, firmo os meus ainda mais.
O som de grandes saltos batendo contra o piso surge atrás de
nós, nos despertando.
Ah.
Tinha me esquecido. A única coisa que sei sobre Abigail, além
de seu repúdio por cafés baratos e de como sua voz fica grossa ao
gritar com toda a força, é o som que ela faz ao andar.
Em choque, como se fosse uma criança sendo pega no flagra
pela mãe, giro nos calcanhares, me virando para minha chefe. Um
sorrisinho nervoso toma meus lábios.
Parada em frente à sua porta de vidro, Abigail cruza os braços.
Vestindo um blazer cor carmim e uma calça pantalona branca, ela
nos encara com furiosos olhos.
— Os dois. Para a minha sala. Agora.
Engolindo em seco e prendendo a respiração, endireito a
postura e sigo em linha reta em sua direção. Mike me acompanha a
cada passo, em silêncio.
Pelo menos agora ele finalmente calou a boca. Ótimo.
Quando, enfim, entramos em sua sala, sou tomada pela
surpresa ao me deparar com uma Suzzie sentada no sofá, me
encarando com os olhos redondos brilhando em alegria.
— Consegui convencer minha tia a me trazer. — É o jeito que
a garotinha de 8 anos encontra para me dizer oi. — Disse que
queria brincar com você hoje.
Sou tomada pelo sorriso que molda meus lábios.
Ao meu lado, Mike resmunga, como se estivesse incomodado
com o bom relacionamento que eu e Suzzie temos. Enquanto ouço
Abigail fechar a porta atrás de nós, lanço um olhar para ele,
franzindo o cenho.
Mike apenas empina o nariz e passa por mim, raspando
nossos ombros brevemente como forma de afronta, indo até a mesa
da nossa chefe.
Me esforçando ao máximo para não perder a paciência com
esse folgado, dirijo meu olhar até a garotinha ruiva novamente,
vendo quando ela procura por algo na sacola de pano ao seu lado.
— Certo — a voz de Abigail soa como um alarme. Me viro para
ela no mesmo instante, observando enquanto caminha até sua
poltrona de veludo roxa, atrás de sua mesa. — Primeiro, quero
entender por que você está atrasada, Jessie. — Seu olhar
fulminante vai até mim quando ela se senta. Sentindo a garganta
oscilar, aperto as folhas com força em minhas mãos. — Depois,
quero entender por que vocês dois estavam discutindo feito duas
crianças de oito anos no corredor.
— Ei! — Suzzie, ainda remexendo no que quer que tenha
dentro da sacola, solta um gritinho ofendido.
Abigail leva seus olhos até a sobrinha no mesmo instante,
abrindo um leve sorriso carinhoso nos lábios.
Acho que nunca vou me acostumar com o fato de que ela
sabe, realmente, sorrir.
— Desculpe, querida. Não quis te ofender. — É o que minha
chefe diz.
Assim que desliza a atenção para Mike e eu novamente, seu
semblante se fecha no mesmo segundo.
— Estou aguardando pelas explicações.
Parado a uma curta distância de mim, o recepcionista limpa a
garganta antes de responder:
— Campbell se atrasou porque é incompetente. Não tive nada
a ver com isso.
Algo cresce dentro de mim. Talvez seja o ódio que criei pelo
meu colega de trabalho nesses últimos 5 minutos.
Com certeza é.
— Tive meus motivos, seu idio- — Paro de falar no instante em
que Abigail arregala os olhos em minha direção. Mike solta um
risinho irritante, satisfeito ao ver nossa chefe me repreendendo
apenas com os olhos. — Desculpe — peço com a voz baixa. — Tive
meus motivos para me atrasar. Não vai se repetir. — Omito a parte
de que cheguei à Charlotte no horário certo, mas fiquei encarando a
porta da minha chefe por vários minutos até me perder no tempo.
— Espero mesmo que isso não se repita, Campbell — diz
Abigail. — Sabe como sou exigente em relação aos seus horários.
Engolindo em seco, apenas aceno com a cabeça.
— E você, Mike? Por que está aqui e não na recepção? — Seu
olhar autoritário vai até ele.
— Preciso te entregar um papel que deixaram aqui mais cedo
— Mike se justifica. — Acho que é importante.
Enquanto eles conversam, volto minha atenção para Suzzie,
que agora me encara com um sorrisinho nos lábios. Usando um
vestido verde limão cheio de babados e segurando duas Barbies
nas mãos — provavelmente as que tirou da sacola de pano —, a
ruiva balança os pés no ar.
Acho que Suzzie Veronica é a garotinha de 8 anos mais
baixinha que já conheci.
— Era só isso? — Escuto Abigail dizer, parecendo irritada.
— Sim, senhora — Mike responde.
No instante em que volto a olhar para minha chefe, ela bate a
folha na mesa com tudo, se levantando abruptamente. Sua poltrona
roxa é empurrada para trás no chão, rangendo.
— Estou de saco cheio desses idiotas. Já falei mil vezes que
não estou interessada, mas, mesmo assim, continuam tentando
entrar em contato comigo de alguma forma. — Ela passa as mãos
no rosto, furiosa.
Não sei o que perdi da conversa deles, mas, seja o que for que
tenha nessa folha, não parece deixar Abigail feliz.
— Leve isto embora daqui. — Ela estica o papel na direção do
Mike, que não hesita em pegá-lo, murmurando um “claro”.
É só quando o recepcionista finalmente deixa a sala, fechando
a porta atrás de si e nos deixando sozinhas, que Abigail volta a se
sentar, suspirando, buscando se acalmar.
— Está tudo bem? — pergunto, apesar de que a resposta
esteja óbvia e estampada bem na minha frente.
Minha chefe me encara, levantando um pouco a cabeça.
— Estão me oferecendo uma vaga na Sunset — explica, se
referindo à revista que todos nós odiamos. Os escritores de lá
possuem uma rixa antiga com os nossos, e a Sunset já roubou
várias das pessoas que chegaram a trabalhar aqui. Acho que
chegou a vez de tentarem a sorte com Abigail. — Aqueles
merdinhas não sabem ouvir não como resposta. São extremamente
insistentes. Pediram para o Mike me entregar um papel com outro
número de telefone para contato, já que sempre bloqueio todos.
Odeio aqueles idiotas. E me recuso a trabalhar em um lugar onde
98% das pessoas em cargos altos são homens.
Ela se recosta na cadeira, passando as mãos pelo rosto mais
uma vez, extremamente esgotada pela insistência vinda da Sunset.
Acho que nunca tinha visto Abigail assim antes. É estranho me
deparar com qualquer sinal de vulnerabilidade vindo dela. Abigail
Veronica sempre tem tudo sob controle. Sempre exibe a mesma
feição fria no rosto. Nunca fica como agora. Ela costuma gritar muito
e sentir muita raiva, claro, mas não é como neste momento. Não é
como se pudesse deixar sua raiva dominá-la e explodir a qualquer
momento.
De repente me pergunto se tem alguma coisa a incomodando
além do trabalho.
Talvez seja algum problema em casa ou no casamento... Meu
Deus! Conheço ela tão pouco que nem mesmo sei se é casada.
— Enfim, Campbell — começa, com a voz baixa, se obrigando
a endireitar a postura. — Perdoarei seu atraso hoje, mas espero que
não se repita.
— Não vai — garanto mais uma vez.
— Ótimo. — Abigail lança um olhar na direção de Suzzie antes
de voltar a me encarar novamente. — Está dispensada de suas
tarefas de hoje na revista. Minha sobrinha me disse que queria te
ver, então eu a trouxe para cá. Ela comentou algo sobre querer
comer naquele lugar aonde vocês foram da última vez.
— O The Rock’s! — exclama Suzzie, animada, ainda do sofá.
Sorrio um pouco ao olhar para ela.
A conhecendo como conheço hoje, é difícil reclamar de ter que
atuar como babá para Abigail mais uma vez.
— Isso — minha chefe diz, me fazendo voltar a encará-la. —
Ela disse que amou essa lanchonete.
— Os donos são meus amigos — conto, me arrependendo
imediatamente de ter soltado uma informação desnecessária.
Abigail costuma odiar papo furado.
— Ótimo — diz ela. — Então fale para os seus amigos abrirem
uma conta em meu nome. Acerto e pago tudo quando sair do
trabalho.
Concordo com a cabeça, fazendo uma nota mental para não
me esquecer disso.
— A gente pode ir agora? Ainda não tomei café da manhã.
Me viro para Suzzie, vendo-a descer do sofá, ainda segurando
as duas bonecas nas mãos.
— Minha barriga está roncando — continua, fazendo uma
careta extremamente fofa.
— Claro que sim, querida — começo. — Também estou
faminta! Vamos torcer para...
Três batidas na porta interrompem minha fala.
Todos os olhares da sala se viram para Sophie, a diretora de
mídias sociais da revista, que invade o espaço feito um furacão. Seu
rosto perfeitamente simétrico exibe uma feição atordoada, seu
cabelo rosa está uma bagunça, como se ela tivesse corrido para
chegar até aqui, e seus castanhos olhos arregalados vão até
Abigail, que, pressentindo que uma bomba está prestes a explodir
diante de sua própria cara, se levanta abruptamente da poltrona
roxa.
— Desculpe invadir assim... — começa Sophie, ofegando ao
falar. — Mas preciso te contar sobre a bagunça que está
acontecendo no primeiro andar e...
O corpo inteiro de Abigail se enrijece. A postura da minha
chefe se torna perfeitamente ereta, transparecendo todo o ar de
autoridade que ela sabe que tem. Seus olhos parecem prestes a
faiscar.
Sinto os pelos do meu braço se arrepiarem quando, com a voz
grossa, Abigail pergunta:
— Que bagunça está acontecendo no primeiro andar?
Sophie apoia as mãos nos joelhos, cansada, ofegando antes
de responder:
— Estão fazendo uma revolta pelo pedido que foi negado na
última semana, sobre acrescentar mais uma máquina de café ao
lugar.
Sentindo que minha chefe está prestes a explodir em chamas,
seguro o fino maço de folhas mais forte em minhas mãos.
Péssimo dia para contar a ela sobre a matéria da Lorelei, pelo
visto.
— Já estou descendo — a voz furiosa da editora-chefe avisa.
— Tente fazer com que eles se acalmem, enquanto isso.
Sophie apenas dá um breve aceno de cabeça antes de sair
apressada pelos corredores, deixando que a porta de vidro bata
atrás de si.
Suzzie estremece com o barulho, focando seus olhos na tia
furiosa.
— Preciso resolver isso — Abigail se dirige a mim. Ela fecha
os olhos, esfregando o rosto, parecendo esgotada. — Merda! Por
que as pessoas neste lugar não conseguem agir como ser humanos
normais pelo menos por um dia? — Minha chefe desengata a
desabafar. — Preciso avaliar as matérias para a edição da revista
sobre pessoas reais. Hoje é o último dia. Pelo visto, terei de ficar
acordada até de madrugada. Apenas por total incompetência e birra
dos funcionários desta empresa.
Meus olhos se arregalam enquanto ouço Abigail grunhir em
irritação.
Último dia.
Hoje é o último dia para as matérias serem avaliadas e
julgadas por ela.
Sei como é em relação a prazos e que de jeito nenhum
aceitará ler algo depois da data que fora combinada.
Ainda mais algo que nem está previsto para entrar na revista.
Assim como minha matéria.
— Sobre isso... — me pego dizendo antes que dê tempo
necessário para meu cérebro processar minhas futuras ações.
Os olhos de Abigail se focam em mim, atentos, esperando pelo
desenrolar da minha fala.
Apertando ainda mais os papéis em minha mão, procuro
buscar por algum tipo de conforto vindo deles. Talvez, se meus
dedos doerem, a expressão negativa de Abigail ao ver que
desrespeitei suas ordens e escrevi minha matéria não me fira tanto
assim.
— Eu... meio que tenho uma coisa para te contar — confesso.
Abigail cruza os braços sobre o peito coberto pelo blazer
carmim. Um leve vinco confuso se apossa de sua testa.
Percebendo que, apesar de toda a confusão que deve estar
acontecendo no primeiro andar da Charlotte, minha chefe parece
querer me dar ouvidos, fecho brevemente os olhos, soltando um
suspiro profundo, tomando coragem para dizê-la que desobedeci a
sua ordem.
Quando meus olhos se abrem, minha mão já está estendendo
o fino maço de papéis na direção da editora-chefe.
Minhas pernas fraquejam quando, ao ver o vinco em sua testa
se intensificar, me dou conta do que estou fazendo.
Suzzie permanece em silêncio, em frente ao sofá, enquanto
sua tia pega os papéis bem grampeados de minhas mãos, que
agora suam como nunca.
— Mas o quê... — começa Abigail, um tom indecifrável
tomando conta de sua voz enquanto seu olhar rola pelas linhas
digitadas. Ela fecha os olhos lentamente, respirando fundo antes de
prosseguir. — O que significa isso, Campbell?
De repente sinto meu coração entrar em disparada.
Assim como Kale faz quando fica nervoso, levo uma das mãos
até o cabelo, esfregando-o.
— É a matéria que preparei para a edição sobre pessoas reais
— confesso sem rodeios.
Os olhos de Abigail se abrem, se fixando nos papéis. Sinto
uma súbita calmaria me invadir quando percebo que ela está
realmente lendo o que escrevi sobre Lorelei.
Que ela está realmente me dando uma chance e...
— Arrume suas coisas, Campbell.
De repente toda a esperança que estava começando a sentir
despenca ladeira abaixo.
Uma desesperadora e dolorida queda.
— Mas, eu... — tento dizer algo, mas começo a ter dificuldades
para respirar.
— Campbell — Abigail me corta, trazendo seu olhar afiado até
meu rosto. Estremeço quando ela bate com os papéis na mesa, se
livrando deles. — O que foi que eu te disse? — A raiva e o
desapontamento se fazem presente em seu tom de voz.
Engulo em seco, fazendo com que as lágrimas que anseio em
liberar deslizem garganta abaixo. Minhas mãos tremem ao lado do
corpo, mas me esforço para escondê-las.
Não, Jessie. De jeito nenhum.
Isso não pode estar acontecendo.
— O que foi que eu te disse, Campbell? — ela insiste,
passando as mãos no rosto mais uma vez. Quando percebe que
não consigo respondê-la, as afasta e volta a se sentar em sua
poltrona, parecendo esgotada. Abigail respira fundo antes de,
finalmente, dizer: — Eu te avisei, Jessie. Te avisei que não era para
criar expectativas e achar que poderia realmente fazer parte desta
edição. Você não trabalha como escritora, Campbell! Pelo amor de
Deus, se coloque no seu devido lugar!
Mordo as bochechas, me esforçando para conter as lágrimas
que ameaçam escorrer por meus olhos a qualquer segundo. Sinto
algo tocar em minhas pernas e, quando lanço uma rápida olhada
para baixo, vejo Suzzie me abraçando enquanto encara a tia.
Meu coração amolece um pouco dentro do peito, apesar da
situação, e isso faz com que precise me esforçar milhões de vezes
mais para não chorar.
— Eu... Eu sinto muito, Abigail — começo a dizer, a voz saindo
trêmula. — Pensei que... como tinha dado a ideia da pauta, pudesse
impressioná-la se tentasse apresentar algo decente. — Engulo em
seco, diminuindo o tom de voz ao continuar. — Foi estúpido de
minha parte.
Minha chefe aperta a ponte do nariz, como se tentasse se
conter para não explodir a qualquer momento.
— Campbell — começa ela, a voz baixa e controlada. Abigail
fixa seus olhos na mesa, evitando trazê-los até mim. — Os últimos
dias estão sendo uma bagunça por aqui. Se tem algo que realmente
não preciso, é de uma assistente que acha que possui o mesmo
talento que um escritor. — A farpa me atinge como uma adaga
atravessando o coração.
— Você... Você ao menos leu o meu texto? — Me arrependo
no mesmo instante em que pergunto.
Os olhos indignados de Abigail correm em minha direção, se
fixando em meu rosto. Ela franze a testa, como se não acreditasse
que depois de tudo, depois de tê-la desobedecido e tirado sua
paciência, eu esteja mesmo questionando sobre isso.
— Não, Campbell. Não li — retruca com a voz dura. Abigail
solta um riso indignado e fraco, chacoalhando a cabeça em
negação.
Ela parece extremamente desapontada comigo.
E, para ser sincera, também estou.
O que foi que passou pela minha cabeça?
Eu devia ter ouvido Eve desde o começo. Não devia ter me
sacrificado tanto.
Até parece que algum dia Abigail Veronica daria ouvidos e um
voto de confiança a mim, Jessie Campbell, sua assistente e babá
particular.
Meus olhos ardem quando sinto Suzzie abraçar uma das
minhas pernas com mais força, como se sentisse minha tristeza em
si mesma.
Levo uma das mãos trêmulas às suas costas, afagando-as em
forma de agradecimento.
— Esta revista está uma confusão, Jessie. Meu dia está uma
confusão — continua Abigail, se esforçando para manter a voz
controlada. Seus olhos permanecem focados em mim dessa vez. —
O primeiro andar está revoltado por conta da merda de uma
cafeteira, a Sunset está me perseguindo como se fossem cães atrás
da bosta de um osso e, na semana passada, perdemos quatro
funcionários. Não posso me dar ao trabalho de ter uma assistente
que, ao invés de ajudar, age como se fosse superior a todos e maior
do que verdadeiramente é.
— Mas, você... — Tento falar que ela nem ao menos me deu
uma chance, tento falar que me esforço há três anos, tento falar que
é meu sonho e tento, com toda a força, pedir para que Abigail leia
pelo menos um pouco do que escrevi, mas todas as palavras
simplesmente morrem em minha garganta.
— Por favor, só... — Ela esfrega o rosto mais uma vez. — Só
saia da minha sala e vá pegar suas coisas, Campbell. Está demitida.
Então é essa.
Essa é a sensação de enxergar a vida despencando sob os
próprios pés.
Essa é a sensação de ver seu sonho sendo destruído e todos
seus planos esmagados e pisoteados.
Essa é a sensação de atingir o fundo do poço e enxergar
apenas um borrão branco em seu futuro, que tinha de tudo para ser
promissor.
Essa é a sensação de ter falhado e estragado tudo.
Meus parabéns, Jessie Campbell. Você arruinou tudo.
Enquanto deixo a sala de Abigail, passando pela porta,
deixando uma Suzzie chorando atrás de mim, em frente à mesa da
tia, em que minha matéria sobre Lorelei foi descartada, praticamente
sou capaz de ouvir a voz da minha mãe me dizendo essas palavras.
E o que mais dói é saber que agora ela está mesmo certa.
Acabei de estragar meu futuro.
O cheiro de fritura invade minhas narinas à medida que
caminho até a mesa ocupada por um casal, levando a bandeja com
seus pedidos. Dois hambúrgueres, duas batatas fritas grandes e um
milk-shake de morango.
Nunca vou ser capaz de entender como alguém consegue
comer fast food a essa hora da manhã. E nunca me canso de ficar
surpreso com a quantidade significativa de pessoas que realmente
fazem isso.
— Obrigada — a mulher loira agradece, assim que deixo os
lanches sobre sua mesa, sorrindo para mim.
Abrindo um sorriso, dou um breve aceno de cabeça como
resposta e giro nos calcanhares, voltando para o balcão do The
Rock’s, onde estou encarregado de ficar durante o dia de hoje.
Com o pedido de demissão de Haven dias atrás, que resolveu
sair dos Estados Unidos e se mudar para a França com o
namorado, para tentar salvar o relacionamento que estava
passando por uma fase complicada, as coisas estão um tanto
corridas por aqui, e eu e Brandon estamos precisando nos revirar do
avesso em alguns casos, fazendo o dobro de coisas que fazíamos
antes e atendendo mais mesas do que de costume.
O movimento no The Rock’s nunca esteve tão bom quanto nas
últimas semanas. O que, apesar de aumentar a correria, é excelente
para nossa conta bancária no fim do mês.
Fico feliz em saber que, finalmente, depois de anos, nossa
lanchonete está começando a receber o reconhecimento que
verdadeiramente merece.
— Quebraram mais um copo na mesa 17 — Brandon avisa
quando atravesso o balcão, parando ao lado dele, que passa o pano
pelo mármore frio. — Foi aquela criança encapetada de novo — ele
resmunga, me fazendo soltar um fraco riso.
Lanço um breve olhar para a mesa redonda, vendo a mãe de
aproximadamente 40 anos tentando dar comida para seu filho de
cabelos ruivos e sardas no rosto, que berra quando ela aproxima a
colher de sua boca.
— Acho que o mal está no cabelo — brinco, voltando a encarar
meu melhor amigo, que franze o cenho, ainda focado em esfregar o
balcão. — Pessoas ruivas tendem a ser difíceis de lidar.
Brandon dirige o olhar até mim no mesmo instante, fazendo
uma careta.
— Há-há! Muito engraçado, Howard — seu tom sai carregado
de ironia. — Por que você não desiste da lanchonete e passa a ser
comediante, hein?
Rio ao encarar sua feição irritada, apoiando os cotovelos no
mármore que acabou de limpar.
— Talvez eu vire — comento, recebendo uma revirada de
olhos do meu melhor amigo.
O sino da entrada tilinta, fazendo com que eu leve meu olhar
até a porta no mesmo instante, observando quando uma garotinha
de lisos cabelos ruivos entra, com um vestido verde limão cheio de
babados e olhos vermelhos, como quem esteve chorando há pouco
tempo. Atrás dela, a estatura alta de um homem de pele negra e
cabelos raspados a acompanha, atravessando a porta logo em
seguida.
Franzindo o cenho, fixo meu olhar na menina, me esforçando
para lembrar de onde a conheço.
E é só quando ela passa a correr na minha direção, sendo
seguida pelo homem de cara fechada, como quem gostaria de estar
em qualquer lugar menos aqui, que finalmente a reconheço.
É a Suzzie. A sobrinha da chefe de Jessie. A garotinha que ela
trouxe para almoçar aqui há alguns dias.
— Preciso de ajuda. — Ofegante, é a primeira coisa que ela
diz assim que se aproxima do balcão.
Eu e Brandon fixamos nossos olhos alarmados na sua direção,
esperando pelo desenrolar de sua fala.
— O que aconteceu? — pergunto.
Suzzie, parecendo perturbada, apoia as mãos nos joelhos,
tomando fôlego antes de responder:
— Minha tia acabou de demitir a Jessie.

Salto do táxi, correndo até a entrada do prédio onde moro. As


grossas gotas de chuva despencam do céu nublado, caindo sobre
minha cabeça, molhando meus fios de cabelo e o moletom vermelho
que visto.
Empurrando a porta de vidro, entro no saguão, saindo aos
tropeços até o elevador. Meu coração entra em disparada quando
afundo um dos dedos no botão, fazendo com que um círculo
vermelho se acenda ao redor dele, indicando que a caixa metálica já
está a caminho.
Quando Suzzie invadiu o The Rock’s e deu a notícia sobre a
demissão de Jessie, tudo o que fui capaz de pensar foi em quanto
ela devia estar devastada.
Nos últimos dias, ao me aproximar mais de Campbell, percebi
quanto seu trabalho era importante para ela. Vamos ser honestos...
Quantas pessoas hoje em dia levariam os cães de seus chefes para
dormir no seu apartamento? Quantas pessoas atuariam como babá
particular para as sobrinhas deles?
Campbell sempre buscou agradar sua superiora. Isso sempre
esteve muito claro.
E meu coração se parte só de imaginar quanto ela deve estar
devastada agora, vendo que todo seu esforço foi em vão.
Acho que meu desespero ficou perfeitamente estampado na
minha cara, já que Brandon se apressou em me dizer que estava
tudo bem se eu deixasse a lanchonete por algumas horas e viesse
correndo para casa. Eu o agradeci, obviamente, mas já estava bem
claro que, mesmo que não pudesse sair da lanchonete, mesmo que
tudo estivesse uma loucura e milhões de mesas ainda precisassem
ser atendidas, eu tacaria o mais grandioso foda-se e sairia correndo
até Jessie mesmo assim.
Suzzie me abraçou antes de sair, me implorando para me
certificar de que Campbell ficasse bem, fazendo com que o tal do
Mike — sim, esse é o nome do cara alto que a acompanhava — me
encarasse com uma feição desdenhosa, como quem não dá a
mínima para a atual situação.
Precisei me esforçar para reprimir a vontade de mandá-lo à
merda.
Quando o plim que indica a chegada do elevador invade meus
ouvidos e a grande porta metálica se abre, eu a atravesso sem
hesitar, apertando o botão do sexto andar desesperadamente.
Esfrego as palmas das mãos suadas na calça de moletom
enquanto respiro fundo, fechando os olhos, buscando me acalmar.
Quando a porta à minha frente finalmente se abre, depois do
que pareceu ser uma eternidade aos meus olhos, volto a correr,
atravessando o corredor, passando por todas as portas até chegar
em frente a de Jessie.
Afundo um dos dedos na campainha apenas uma única vez,
reprimindo a gigantesca vontade de explodir o botão de tanto
apertá-lo. Esfrego as mãos suadas umas nas outras, inquieto,
ansioso para finalmente vê-la.
Minutos de silêncio se passam até que o som da chave
encaixando na fechadura invade meus ouvidos, vindo do outro lado
da madeira que me separa da garota que quero desesperadamente
abraçar.
Quando a maçaneta começa a girar, meu corpo todo explode
em ansiedade. E no momento em que Jessie aparece no meu
campo de visão, usando seu pijama de calça e blusa de manga
comprida com estampa de elefante, os cabelos presos em um
coque no topo da cabeça, deixando as mechas azuis à mostra, os
olhos vermelhos e o rosto coberto pelas manchas da maquiagem
borrada, meus passos são automáticos.
Vou até ela sem dizer uma única palavra, a puxando para mim,
envolvendo sua cintura com meus braços. Campbell fica sem
reação por um momento, ainda processando o fato de que estou ali,
mas logo retribui o abraço e afunda seu rosto no meu ombro,
desabando em lágrimas.
Ainda em silêncio, deslizo uma das mãos em suas costas, a
levando até seu cabelo, onde meus dedos fazem um suave cafuné.
Aperto o corpo de Jessie mais forte contra o meu, buscando dizê-la
que estou ali.
Que estou ali. Por ela. E que não vou a lugar algum.
— Como você ficou sabendo? — Sua voz sai fraca em meio
aos soluços causados pelo choro.
— Suzzie — respondo, sem me afastar. — Ela foi desesperada
até o The Rock’s, buscando avisar o Brandon e eu.
Jessie solta um longo e exausto suspiro, afastando a cabeça
do meu ombro, me permitindo ver as lágrimas que escorrem por
suas bochechas.
Sinto o coração se apertar dentro do peito.
— Estou tão fodida — comenta ela, passando as mangas do
pijama de elefante nos olhos, secando as lágrimas que por ali
escorrem. — Mas tão fodida...
— Quer falar sobre o que aconteceu? — Ainda segurando sua
cintura, é o que pergunto.
Campbell afasta as mãos do rosto, assentindo devagar com a
cabeça.
— Acho que sim.
— Certo — respondo, deslizando o olhar pela sala ao segurar
sua mão. — Vem cá.
Jessie me segue até o sofá, se sentando ao meu lado.
Pigarreando, dirijo o olhar e toda minha atenção a ela.
— Sou todo ouvidos.
Campbell dá um breve aceno de cabeça. Observo o
movimento que sua garganta faz assim que engole em seco.
— Fiz algo estúpido — começa, a voz saindo fraca. — Durante
a reunião de pauta da próxima edição da revista, ninguém estava
dando uma ideia que conquistasse Abigail, minha chefe, e resolvi
me pronunciar. Dei uma ideia incrível, que fez com que ela ficasse
satisfeita e aceitasse sem ao menos hesitar. — Ela engole em seco,
se esforçando para não voltar a chorar, percebo. — Por isso, no final
da reunião, eu, como a boba ingênua que sou, resolvi falar com ela
e pedir uma chance para apresentar uma matéria que poderia ou
não ser avaliada e entrar na revista. Abigail apenas riu da minha
cara, me dizendo para não sonhar tão alto. E mesmo tendo ouvido
de sua própria boca que não era para eu fazer nada, eu fiz.
Desobedeci a sua ordem e fui atrás de Lorelei, uma mulher que
vende cachorro-quente de vestido longo e saltos enormes. Você já
deve ter visto ela por aí, o carrinho dela costuma ficar na rua de trás.
Assinto. Realmente já a encontrei algumas vezes.
Não sei como essa mulher consegue passar tanto tempo de pé
naqueles saltos gigantes. Imagino que seu pé deva ser cheio de
calos.
— Escrevi uma matéria sobre ela. — Jessie respira fundo,
esfregando o rosto, desapontada consigo mesma. Ela solta um
risinho indignado, como se não acreditasse em suas próprias
atitudes, antes de prosseguir. — E achei que, se mostrasse meu
trabalho para Abigail, ela me daria uma chance. Amei o resultado,
de verdade. Fiquei satisfeita com algo que eu mesma fiz, o que é
raro se tratando da minha escrita. Sei que sou capaz e tenho
potencial, mas minha insegurança se sobrepõe a tudo isso, sempre
tentando me sabotar. Mas, dessa vez, eu realmente achava que
conseguiria, enfim, impressionar a editora-chefe da revista em que
eu sonhava em trabalhar como escritora. — Ela faz uma breve
pausa, tomando fôlego. Permaneço a encarando, ouvindo seu
desabafo com atenção. — Fui à Charlotte hoje na esperança de
mostrar à Abigail meu trabalho, mas quando soube que ela não
estava em um dia muito bom, pensei em desistir e apresentá-la
outro dia. Porém, acabei descobrindo que a data final para a
avaliação das matérias que passariam para a revista era hoje, então
minha boca grande e língua solta não foram capazes de se conter.
Comecei a agir no automático e entreguei a ela as folhas com minha
matéria impressa. E foi aí que Abigail me demitiu, destruindo
qualquer esperança que eu tinha de ver meu nome se destacar em
uma das revistas mais cobiçadas dos Estados Unidos e de ganhar
minha própria coluna algum dia.
Campbell funga, suas orbes se enchendo de lágrimas
novamente. Determinada a não as deixar cair, ela esfrega as
mangas da blusa nos olhos, os secando.
— Sinto muito — digo. — De verdade.
Jessie me encara em silêncio por alguns segundos antes de
acenar levemente com a cabeça.
— Eu não devia ter sido tão burra.
Estendo meu braço, segurando suas mãos no mesmo instante
em que ouço essas palavras saindo por seus lábios.
O âmbar de seus olhos se fixa nos meus, transbordando uma
intensidade sem fim.
— Por favor, Campbell, nunca repita isso. — É o que o tom
baixo da minha voz diz. Com o olhar fixo no seu, passo a ponta da
língua no lábio inferior antes de prosseguir. — Você não foi burra.
Sabe que nunca foi valorizada lá dentro. Não como deveria.
Jessie permanece paralisada por um instante. Em silêncio,
apenas me encarando fixamente. Pelo seu olhar, percebo que está
revivendo todos os últimos momentos do dia de hoje, tentando fazer
com que seu cérebro realmente entenda o que aconteceu.
— Não tenho mais como pagar a faculdade, Howard — revela,
depois de um tempo, diminuindo o tom de voz a cada uma de suas
palavras, envergonhada pela confissão. — Apesar da baixa
mensalidade da Easton, o meu salário na Charlotte era péssimo.
Não tenho economia nenhuma. Não tenho nada.
Meu coração se aperta ao notar o desespero e a vergonha em
sua voz. Deve ser difícil para alguém que nasceu em uma família
rica e viveu por anos tendo todas as mordomias do mundo admitir
que está quebrada. E, apesar de saber que foi escolha de Jessie
trocar a vida milionária para seguir o sonho sem garantia alguma,
entendo o sentimento que preenche seu corpo por inteiro neste
momento.
Jessie Campbell sente que falhou.
— Você vai dar um jeito. — Aperto sua mão na minha. —
Sempre dá.
Ela assente devagar com a cabeça, me encarando fixamente.
— Vou estar aqui, caso precisar de alguma coisa.
Meu coração amolece ao ver um fraco riso escapar por seus
lábios. Um riso alegre dessa vez.
— Queria me lembrar quando foi que nós fechamos um acordo
que dizia que você passaria a ser meu defensor particular — brinca
ela, acariciando minha mão com a ponta do polegar.
Um sorrisinho molda meus lábios.
— Sei que também vou poder contar com você quando
precisar, linda — digo, me surpreendendo com a facilidade na qual o
apelido escapa pelos meus lábios. — Pense nessa relação como
uma via de mão dupla.
Os lábios de Jessie se repuxam para cima, e preciso me
esforçar para conter a gigantesca vontade que sinto de beijá-la.
Mesmo com o rosto manchado pela maquiagem borrada, os
olhos vermelhos de quem passou horas chorando e vestindo um
pijama com uma estampa infantil de elefante, Jessie Campbell ainda
consegue ser a mulher mais maravilhosa do mundo.
E sua beleza avassaladora só se intensifica quando ela sorri,
alcançando o inalcançável.
Sinto algo vibrar no meu bolso, afastando a mão da de Jessie
para puxar meu celular para fora da calça de moletom, já
imaginando ser uma mensagem de Brandon. Quando meus olhos
se conectam à tela, minha teoria se confirma.

Brandon: PARA DE NAMORAR E VEM LOGO, HOWARD! Vou enlouquecer aqui


sozinho!!!!! Preciso que volte agora. Manda um beijo para a Jessie. Espero que
ela esteja bem.

E de repente me sinto como um personagem de desenho


animado, com uma lâmpada acesa sobre a cabeça, tendo uma ideia
brilhante. Guardando o aparelho de volta no bolso e ignorando meu
melhor amigo, volto os olhos para Jessie, observando enquanto ela
morde a ponta da unha pintada de azul, com o olhar distante, fixo
em algum ponto do carpete.
— Acho que acabei de resolver seus problemas — digo,
chamando a atenção da garota imediatamente de volta para mim.
Um leve vinco confuso se forma em sua testa quando ela
pergunta:
— O que quer dizer com isso?
Meus lábios se moldam em um sorrisinho.
— Há alguns dias, uma das nossas garçonetes mais antigas
pediu demissão — revelo. — Ela estava com problemas no
relacionamento e se mudou para a França com o namorado,
buscando reacender a chama que estava se apagando entre os
dois. Eu e Brandon estamos tendo que fazer muito mais do que
fazíamos antes, nos virando para cuidar de toda a burocracia e
ainda atender mais mesas do que estamos acostumados. O
movimento nunca esteve tão bom, o que nos dá mais trabalho
ainda. — O vinco em sua testa se suavizou, dando espaço para que
uma feição concentrada tomasse posse de seu rosto. — Então,
como você está precisando de um emprego e o The Rock’s de uma
garçonete nova, podemos unir o útil ao agradável e nos juntar para
resolvermos nossos problemas, nos ajudando temporariamente,
além de todo o resto.
Um sorriso de orelha a orelha irrompe em seu rosto enquanto
Jessie se joga na minha direção, deitando a cabeça em meu colo.
Contente, ela ergue o rosto, trazendo o âmbar de seus lindos olhos
ao tom esverdeado dos meus.
— Acho que ainda vou te dever “obrigadas” até a próxima vida,
Kale Howard.
Solto uma risadinha diante de seu comentário, envolvendo seu
corpo com meus braços.
— Se isso significar que ainda nos falaremos em uma vida
futura, aceito seus “obrigadas” com o maior prazer, Campbell.
Jessie ri, erguendo um dos braços, levando uma das mãos até
minha nuca, que suas unhas começam a acariciar com delicadeza.
— É sério — diz ela, sua voz saindo em um tom sério dessa
vez. — Obrigada. De verdade.
— Espero que seja boa em carregar bandejas por aí.
Campbell sorri, se levantando até se sentar em meu colo, o
rosto próximo ao meu. O doce cheiro do seu xampu de morango
invade minhas narinas, fazendo com que um sorrisinho involuntário
tome meus lábios.
Meu Deus! Amo o cheiro dela.
— Acho que consigo, sim — diz, soltando um riso anasalado,
os olhos focados nos meus, a mão ainda deslizando e acariciando
meu pescoço.
Jessie me puxa pela nunca, aproximando ainda mais nossos
rostos, colando seus lábios aos meus. A sensação é de ter algo
explodindo dentro de mim.
De todos os beijos que já experimentei na vida, nenhum deles
se compara aos de Jessie Campbell.
Nem um físico como Isaac Newton saberia explicar o que
ocorre quando nossas bocas se chocam. É como se tudo em nós
faiscasse. Como se cada mísera parte dentro de mim ardesse em
chamas.
É como se aquilo que eu nunca sequer procurei fosse
encontrado.
E agora percebo que nenhum momento, em toda a minha vida,
pareceu mais certo do que aqueles em que tenho Jessie nos
braços.
Acho que o Kale de algumas semanas atrás estaria rindo do
Kale de agora, se soubesse que ele está se transformando no maior
cadelinha pela sua vizinha ranzinza.
Ainda não sei o motivo para Jessie ter mudado da água para o
vinho comigo do dia para a noite, se transformando em uma pessoa
completamente diferente da que costumava ser, mas, sinceramente,
não dou a mínima.
Gosto desse lado dela.
Gosto muito.
Agora com Jessie montada em mim, após aprofundar o beijo,
deslizo minhas mãos para sua cintura, por baixo da blusa do pijama,
passando a ponta dos dedos por sua pele quente. Sorrio em seus
lábios ao percebê-la se arrepiando sob meu toque.
— Como é que você consegue ficar tão sexy vestida com uma
roupa de elefante? — minha voz baixa quebra o beijo por um breve
instante, mas meus olhos permanecem fechados.
Jessie ri um pouco, colando sua boca à minha novamente.
Casa.
Se me perguntassem, essa seria a palavra que eu usaria para
me referir a este momento.
De trás do balcão, meus olhos permanecem fixos nela
enquanto se desloca entre as mesas do The Rock’s. Vestindo o
avental azul com a logo da lanchonete sobre a roupa
completamente preta, Campbell equilibra a bandeja em uma das
mãos, levando o pedido da mesa número 4 antes de voltar a bater a
sola de seus coturnos pretos pelo piso, quando recebe um sorriso
do cliente com um boné do New York Islanders afundado na cabeça.
Para quem está ingressando em um trabalho novo,
completamente diferente do que estava acostumada a fazer, Jessie
Campbell está se saindo maravilhosamente bem.
Melhor do que Brandon e eu quando começamos, com
certeza.
Não faço ideia de quantos copos quebramos nos nossos
primeiros meses de trabalho, mas tenho certeza de que foram
muitos. Acho que foi por isso que perdi as contas. Porque era
cansativo acrescentar pelo menos 3 copos quebrados à minha lista
de desastres diária.
Como se pudesse ouvir meus pensamentos a elogiando,
Jessie tropeça no pé de uma cadeira vazia, mas consegue impedir a
tempo que algum desastre aconteça, endireitando o corpo antes de
cair no chão. Pousando uma das mãos sobre o coração, ela fecha
os olhos, soltando um longo suspiro, como se estivesse aliviada
pela bandeja em sua mão estar desocupada.
Apoiando os cotovelos no mármore do balcão, meus lábios se
moldam em um sorriso diante da cena.
Jessie Campbell é a criatura mais adorável de todo o universo.
— Você está encarando ela de novo. — É o que a voz irritante,
vinda de trás de mim, comenta pela décima vez.
Girando nos calcanhares, me viro na direção de Brandon, que,
saindo pela porta da cozinha, estampa um sorrisinho ainda mais
irritante nos lábios.
— Não estou, não — minto, sentindo-me estúpido ao perceber
a voz saindo mais aguda do que o esperado.
Meu melhor amigo se aproxima de mim, permanecendo com o
sorriso no rosto, me dando vontade de enfiar os dedos em seus
perfeitos cachos ruivos e arrancá-los de sua cabeça, deixando-o
careca.
— Está, sim — diz o insuportável, parando a poucos passos de
mim. — E está fazendo daquele jeito.
Franzo a testa.
— De que jeito?
O sorriso irritante deixa o rosto do meu melhor amigo, dando
espaço para que um repleto de malícia ocupe seu lugar.
— Você, Kale Howard, está olhando para Jessie Campbell
como se os dois pertencessem à mesma estrela.
A frase me pega de surpresa, me desconsertando por inteiro.
Tento dizer algo, mas sou incapaz de fazer qualquer coisa além de
levantar as sobrancelhas e separar os lábios, paralisado, sem que
uma única palavra sequer saia por minha boca.
Brandon ri um pouco diante da minha reação.
— Eu não sou idiota, Kale — ele fala. — Te conheço como a
palma da minha mão. Sei quando está apaixonado.
E então Brandon sai.
E eu permaneço com as solas dos tênis cravadas no chão,
sem mover um único músculo sequer, tentando entender como
alguém como Brandon Houston poderia falar algo tão poético, e
questionando a mim mesmo se, talvez, ele tenha razão.

— Agora é a hora da verdade, Howard. — É o que Jessie diz,


vindo na direção do sofá onde estou sentado, trazendo consigo um
grande balde de pipoca amanteigada de micro-ondas.
É quase de madrugada e estamos na sala do meu
apartamento. A fraca lâmpada amarela de um abajur é a única luz
que ilumina o ambiente, além da tela inicial da Netflix estampada na
televisão.
Se acomodando ao meu lado e puxando o grosso edredom
preto para o seu colo, Campbell ri ao perceber minha testa franzida
em confusão.
— Estou querendo dizer que hoje é o dia em que decidirei se
vou ou não continuar falando com você.
Franzindo a testa mais ainda, praticamente colando as
sobrancelhas nas pálpebras, cruzo os braços, permanecendo
confuso diante de todo esse papo estranho.
— Não faço ideia do que você está falando.
Jessie ri um pouco, enfiando uma das mãos no balde.
— Costumo julgar as pessoas pelo tipo de série que elas
gostam de assistir — enfim começa a explicar, enchendo a boca de
pipoca amarelada. — Se seu gosto for duvidoso, você não é o tipo
de pessoa com quem eu gostaria de conviver.
Incrédulo, arqueio uma das sobrancelhas.
— Está dizendo que se não gostar das coisas que costumo
assistir vai parar de falar comigo e de me beijar mesmo depois de
eu ter te oferecido um emprego? — forço um tom de indignação
exagerado, fazendo com que os olhos de Jessie venham em direção
aos meus e um sorrisinho divertido se curve em seus lábios, sua
boca ainda cheia de pipoca.
— Talvez — ela responde, dando de ombros. Seus olhos
brilham, brincalhões.
Me acomodo no sofá, virando-me de lado, sentando sobre as
pernas cruzadas e focando o olhar em seu rosto.
— Estou pronto — revelo, forçando uma voz séria e grossa.
Campbell ri, deixando o balde de pipoca no braço do sofá
antes de se virar para mim, também se sentando sobre as pernas
cruzadas sob o cobertor.
— Pronto para o que exatamente? — questiona ela, sem
conseguir parar de sorrir, como se só de estar na minha presença
ficasse contente.
Meu coração amolece um pouco diante desse pensamento.
— Para te responder sobre minhas séries favoritas — explico,
gesticulando com as mãos. — Quer saber se sou o cara certo para
te dar uns pegas, Jessie? Vá em frente! Investigue.
Como se se preparasse para adentrar um assunto
extremamente sério e digno de toda sua atenção, Campbell leva as
mãos aos cabelos, os prendendo em um coque despojado sem a
ajuda de elástico algum. As pulseiras douradas em um de seus
braços tilintam um pouco ao bater umas nas outras sobre a pele
negra, o que me faz sorrir.
Jessie fica ainda mais maravilhosa quando usa acessórios.
E... puta merda! Ainda mais maravilhosa de cabelo preso.
— Certo — diz ela, a expressão séria tomando seu rosto
enquanto seus olhos me encaram. — Vou te perguntar o nome da
sua série favorita e, se ela não for boa o bastante para mim, a gente
fica sem se beijar por duas semanas.
Deixo que uma risada alta e exagerada escape por meus
lábios.
— Nós dois sabemos muito bem que você não conseguiria.
Jessie arqueia uma sobrancelha, me encarando seriamente.
Minha risada se dissipa no mesmo instante.
— Você quer me ver tentando, Howard? — É o que ela diz.
Por um segundo, sinto um pouco de medo da garota à minha
frente.
Acho que alguns hábitos nunca morrem...
Sem hesitar, balanço a cabeça em negação. Esfregando uma
das mãos na outra, me preparo para respondê-la.
— Tudo bem. Estou pronto para te mostrar que somos
compatíveis, baby! — Só percebo quão ridículo o apelido é quando
ele já escapuliu pelos meus lábios.
Como se pensasse o mesmo, Jessie falha ao tentar manter a
expressão séria, franzindo os lábios ao se esforçar para não deixar
que um sorriso os invada.
— Certo, baby — ela dá ênfase na palavra, claramente
zombando da minha cara. — Me diga qual é sua série favorita, Kale.
Apoiando as duas mãos atrás da cabeça e me recostando um
pouco no sofá, sequer preciso pensar para responder.
— Brooklyn Nine-Nine.
Os olhos da mulher à minha frente se iluminam, intensos,
enquanto seu corpo permanece paralisado, como se estivesse em
choque. Campbell separa os lábios para responder, mas nada sai.
Impressionada o bastante para se esquecer de fechá-los, ela passa
a me encarar boquiaberta.
Não sou capaz de conter a risadinha que escapa pelos meus
lábios.
— Impressionada? — pergunto, levantando as sobrancelhas.
Jessie não se move ao responder:
— Não até você me dizer quem é seu personagem favorito.
Inflo as bochechas, soltando uma lufada de ar pela boca,
tentando demonstrar que a resposta é fácil e só existe uma.
— O Jake Peralta, óbvio! Quem mais seria?
Quando me dou conta, Jessie já está se jogando em mim, me
envolvendo com seus braços enquanto apoia a cabeça em meu
peito. Soltando uma risada alta, afasto as mãos da cabeça e a
abraço, colando seu corpo ainda mais contra o meu.
— Passei no seu teste? — É o que minha voz pergunta em
meio a risos.
Ela faz que sim com a cabeça, levantando o rosto um pouco
para me encarar.
— Passou e ainda ganhou uma estrelinha de mérito — diz,
tirando mais uma risada dos meus lábios. — É sério! Onde estão
todos os caras como você?
Forço uma feição indignada, arrancando um fraco riso dos
lábios de Jessie dessa vez.
— Você é perfeito demais para ser verdade, Howard. Tem que
haver alguma pegadinha nisso! — ela comenta, ainda agarrada a
mim, semicerrando os olhos como se me analisasse. — Que defeito
ainda não descobri sobre você? Só toma dois banhos por semana?
Não gosta de comida japonesa? Começa a comer o churros pela
ponta sem o doce de leite? — Ela faz uma pausa, apertando os
olhos ainda mais, desconfiada. — Se a resposta for que você
começa a comer o churros pela bundinha, Kale, sinto muito, mas
nunca mais poderei falar com você na vida
Inclinando a cabeça para trás, solto uma risada alta, incapaz
de me controlar.
— Eu não começo a comer o churros pela bundinha, Campbell
— esclareço. — E, sim, tomo banho todo dia e gosto de comida
japonesa.
Jessie apoia as mãos no sofá para se afastar. Tiro meus
braços de seu redor antes que ela volte a se sentar ao meu lado, me
encarando como se estivesse perplexa.
— Você é um alienígena — solta ela.
Aperto a barriga com uma das mãos ao voltar a rir, já a
sentindo doer.
— Eu não sou um alienígena, está bem? — questiono o óbvio,
rindo mais baixo enquanto fito o âmbar de seus olhos. — Qual é?
Não é tão difícil assim de entender que sou o amor da sua vida,
Campbell.
À minha frente, Jessie parece congelar. Observo quando seu
corpo todo fica tenso e suas orbes se arregalam, se transformando
no formato exato de bolinhas de gude perfeitamente redondas.
Demoro um pouco para entender o que acabou de acontecer.
Para perceber quais palavras acabaram de escapulir por meus
lábios.
Minhas mãos começam a suar no mesmo instante,
transparecendo toda a enxurrada de nervosismo que me preenche
impiedosamente.
— O que... — Ainda desnorteada, ela engole em seco,
tentando encontrar forças necessárias para falar. Sua testa se
franze. — O que foi que você disse?
Engolindo saliva como se fosse cacos de vidro, que descem
raspando e cortando a garganta, meu corpo todo permanece
tensionado, sem que consiga mover um único dedo sequer.
Nós estamos ficando há um tempo, mas nunca falamos
abertamente sobre nossa relação. Não sei se Campbell considera
algo sério ou fechado. Tudo sempre aconteceu muito naturalmente,
sem que precisássemos nos preocupar em entrar em um consenso
sobre em qual passo estamos ou quais passos pulamos.
Por isso, percebendo a tremenda burrada que cometi ao soltar
a frase tão naturalmente, me forço a mudar de assunto.
— O diário! — exclamo, me levantando do sofá em um pulo. —
Faz tempo que a gente não lê o diário!
Saio aos tropeços até a bancada da cozinha, onde o
caderninho de capa escura do John Peter Jones se encontra. Sinto
os olhos confusos de Jessie me acompanhando a cada passo.
— Achei que a gente fosse assistir TV — comenta ela,
franzindo a testa.
Aflito, tateio a parede, buscando encontrar o interruptor mais
próximo. Quando meus dedos o localizam, uma nova luz invade a
sala, iluminando o ambiente que até então contava apenas com a
lâmpada amarelada do abajur.
— Nós vamos — respondo, abrindo um sorrisinho nervoso.
Tento esconder a tremedeira em minhas mãos, que seguram o
diário como se ele fosse o escudo perfeito para me ajudar a fugir da
situação complicada na qual eu mesmo me enfiei. — Mas acho que
seria legal se lêssemos o diário antes. Faz um tempo desde que
acompanhamos a vida do John pela última vez. — Soltando uma
risada nervosa, passo uma das mãos no cabelo, em minha mania
habitual.
De repente, enquanto encaro Jessie, que permanece no sofá,
sem se mover e nem dizer nada, sou tomado por uma vontade
avassaladora de sair correndo pela porta da frente do meu próprio
apartamento, deixá-la sozinha, descobrir o endereço da Eve e me
lamentar por ser tão idiota nos braços do meu melhor amigo
enquanto eles têm um jantar romântico e agradável.
— Você está bem? — Campbell pergunta, ainda com o cenho
franzido.
Assinto, apesar de sentir uma gota nervosa de suor escorrer
por minha testa.
Sorrindo forçadamente, afasto a mão do cabelo, a secando
enquanto tento disfarçar, caminhando em passos curtos em direção
ao sofá. Quando volto a me sentar, Jessie se movimenta, se
aproximando de mim.
— Está mesmo tudo bem, Kale? — É o que seu tom
preocupado pergunta, o vinco confuso ainda presente em seu rosto.
— Você ficou todo estranho e saiu tropeçando pelo carpete.
Obrigo meus lábios a se moldarem em um sorrisinho enquanto
concordo novamente com a cabeça, me esforçando para disfarçar
os resquícios de desespero que ainda tomam conta de mim.
Jessie, ainda que desconfiada, resolve esquecer o assunto,
deitando a cabeça no meu ombro enquanto abro o diário sobre meu
colo, folheando até encontrar o ano em que paramos, o qual
tentamos ler no dia que recebi a carta da minha mãe.
Solto um longo suspiro antes de focar meus olhos no papel,
assim como Jessie.

9 de novembro de 1951, às 5 horas da manhã.


Nunca fui um homem com muitos medos.
Acho que isso foi um dos vários resultados da minha infância,
quando meu pai vociferava que “homens que são homens de
verdade jamais podem ser vulneráveis” sempre que me pegava com
lágrimas nos olhos por qualquer motivo, seja ele digno ou não de
choro.
Eu não acredito nisso, obviamente. Mas acho que, de tanto que o
ouvi repetir essas mesmas palavras durante a infância, sempre que
chegava em casa com o joelho ralado sangrando ou via um
cachorrinho atropelado no asfalto da estrada, minha mente foi capaz
de gravá-las, mesmo que involuntariamente.
Só queria que alguém tivesse sido tão duro com o meu pai quanto
ele foi comigo em relação a isso, mas que ao invés de dizer que
homens não podem chorar, dissesse: “homens que são homens de
verdade jamais devem levantar a mão para uma mulher. Homens
que são homens de verdade não devem dormir com todas as
mulheres que encontram, e sim respeitar a esposa.”
Não cheguei a conhecer o meu avô paterno. Meu pai uma vez me
disse que ele morreu em 1861, durante a Guerra de Secessão, que
eclodiu em abril do mesmo ano, quando as forças separatistas
atacaram o Fort Sumter, na Carolina do Sul, pouco depois de
Abraham Lincoln ter assumido o cargo de presidente dos Estados
Unidos. Meu pai tinha 8 anos na época.
Me pergunto se meu avô chegou a expressar que o amava alguma
vez, durante os 8 anos que passaram juntos.
E me pergunto o que os dois diriam se me vissem neste momento,
chorando no chão de um quarto de hospital, às 5 da manhã, com as
mãos trêmulas após descobrir que a mulher que amo, Celeste
Laurent, está doente, internada pela mesma doença que matou meu
pai. O câncer de pulmão.
Gostaria de saber se algum deles gritaria comigo por ser tão
vulnerável e por sentir tanto medo agora.

23 de março de 1952, às 20 horas e 44 minutos.

Nos últimos meses, passei todos os dias desejando ter um coração


gelado.
Desejando não sentir nada além de um vazio no peito.
Ser “menos vulnerável”, como meu pai costumava me dizer para
ser.
Nestes últimos meses, me peguei desejando fortemente ter dado
ouvidos a ele. Me peguei desejando não ter chorado quando ralava
o joelho. Quem sabe, assim, as coisas pudessem ser mais fáceis
agora?
Faz semanas que minha vida tem sido um pesadelo. E a cada dia
desejei estar no lugar de Celeste naquela cama de hospital.
Nunca entendi muito bem o que é a morte. Ainda não entendo.
Só me pego desejando tê-la feito feliz durante sua jornada aqui. Me
pego desejando que agora, seja lá onde ela esteja, se encontre em
paz e feliz por ter me conhecido. Feliz por ter passado bons
momentos comigo ao seu lado. Por ter dividido a vida com John
Peter Jones, o homem da banca de jornais que entrou em sua
floricultura e a flagrou lendo um livro da Jane Austen, com as pernas
cruzadas sobre a madeira do balcão.
O homem que se apaixonou por ela desde a primeira vez que a viu.
Nunca fui muito de acreditar em amores à primeira vista, até
conhecê-la. E não foi necessário que Celeste me encarasse de volta
para que eu me apaixonasse loucamente por ela.
Só bastou vê-la segurando seu vestido amarelo florido, o impedindo
de se erguer com o vento, enquanto procurava pelas chaves da
floricultura dentro da bolsa e tinha os cabelos balançando pela brisa.
Nunca fui um mentiroso.
Por isso, ontem, no dia 22 de março de 1952, enquanto segurava
sua mão e a via me deixar, a mentira que soprei foi amarga em
minha boca.
— Aguente firme, querida — eu disse, encarando aquele infinito
oceano no azul de seus olhos carregados de dor. — Você é forte.
Tudo isso vai passar. Você vai ver.
E realmente passou.
Mas não foi do jeito que nós dois esperávamos.
Celeste faleceu três horas depois de ter ouvido a minha mentira. E
enquanto eu gritava que a amava pela porta, com lágrimas
desesperadas descendo pelo rosto e me debatendo nos braços do
médico que me segurava, a assisti partir, levando uma parte do meu
coração junto de si.
E nesta manhã, enquanto caía de joelhos em frente ao caixão sendo
enterrado, senti o abraço de Marcus, meu filho, depois de quase 6
anos sem sentir seu toque.
Ele está com quase 22 anos agora. Está se tornando um homem
incrível e, mesmo de longe, mesmo sem saber no que falhei em
relação a nós, meu coração de pai transborda de orgulho por ele.
Enquanto o abraçava, me peguei pensando como seria se Celeste e
eu tivéssemos dado uma irmãzinha para ele. Como seria se ela
tivesse realizado seu sonho de ser mãe.
Ela seria uma mãe maravilhosa, sem dúvida alguma.
Meu coração se apertou ao imaginar Celeste ao lado de uma
garotinha de marias-chiquinhas, com a pele branca, os cabelos
loiros e os olhos azuis, assim como os da mãe.
Se a vida tivesse sido mais fácil para nós dois, talvez esse sonho
teria se realizado.
Talvez Celeste teria deixado este mundo sem esse arrependimento.
Talvez teria deixado mais um pedaço de si para trás, além desse
que parece me ocupar por inteiro.
Celeste Laurent morreu aos 49 anos, vítima de um impiedoso
câncer de pulmão, depois de ter trazido luz para a minha vida,
depois de ter me transformado e me ensinado como é estar
apaixonado de verdade.
Hoje o amor ganhou um significado diferente para mim.
Sempre que me perguntarem o que é o amor, responderei: Para
mim, é aquilo que se foi e jamais voltará.
A mochila pesa em minhas costas à medida que atravesso os
portões da Easton, caminhando até o meio-fio, onde um táxi
aguarda para levar um dos alunos.
A vida tem sido mais leve nos últimos dias, já que não tenho
mais Abigail no meu ouvido, me apressando para chegar à Charlotte
e nem me ligando em horários inoportunos, quando ela sabia muito
bem que eu estava ocupada. Estou até mesmo tendo mais tempo
para estudar, o que é excelente e uma novidade para mim, pois
passei meus três anos de curso trabalhando como assistente de
uma mulher um tanto intensa, que não deixava muito espaço para
lidar com os assuntos da universidade na minha agenda.
Me acomodando no banco de couro do táxi amarelo,
cumprimento o motorista e dito o endereço do The Rock’s, onde
preciso estar em uma hora.
Kale e Brandon são chefes excepcionais, super flexíveis em
relação aos meus horários. Trabalhar com eles é extremamente
diferente de trabalhar para Abigail, mas, mesmo que seja ótimo e
que eu esteja gostando dessa nova experiência, não é o que eu
quero para minha vida.
Apesar da demissão, meu sonho ainda não morreu.
E na Charlotte ou não, ainda vou ter meu momento de brilhar.
Acredito nisso com todo meu coração.
Sei que o futuro está planejando algo melhor para mim.
Só espero que não demore tanto.
Deixando a mochila ao meu lado no banco, quando o taxista
arranca com o carro e passa a dirigir pelo trânsito de início de tarde
de Nova York, tiro o celular do bolso de trás da calça jeans. Um
sorriso molda meus lábios quando me deparo com uma notificação
de uma mensagem de bom dia vinda de Kale, enviada há pouco
mais de uma hora.
Desbloqueando a tela, eu o respondo, recebendo um emoji de
coração no mesmo instante.
Saindo da nossa conversa, deslizo pelos meus contatos,
procurando o nome da Eve. Quando o encontro, me deparo com
duas mensagens não lidas, enviadas ontem à noite, quando eu
estava muito ocupada chorando com o diário do John para
conseguir prestar atenção no celular.

Eve: Precisamos conversar sobre sua demissão e mudança de vida, eu sei. Estou
me sentindo péssima por não ter tido tempo para isso ainda. Até diria que sou
uma péssima melhor amiga, mas eu juro que estou tentando arrumar um horário
na agenda para te visitar. Abigail está me enlouquecendo.
Ela surtou depois que você foi mandada embora e começou a nos dar trabalho
em dobro. Não aguento mais essa mulher.

Soltando uma risada sufocada, levo os dedos até o teclado.

Eu: Está tudo bem, não se preocupe. Imaginei que isso fosse acontecer, para ser
sincera. Ela não sabe muito bem lidar com mudanças. Já começou a procurar por
outra assistente?

Para a minha surpresa, a resposta da minha melhor amiga


chega instantes depois.

Eve: Sim, e por enquanto ela está usufruindo da boa vontade do baba-ovo do
Mike da recepção. Aquele cara é insuportável. Só falta beijar o pé dela e latir
quando ela passa.
Eu: Hahahaha, nem me fale. Pelo menos alguém tirou ele de perto daquela
impressora que ele vivia quebrando.
Eve: Não gosto dele.
Eu: Bem-vinda ao clube.
Eve: QUE ÓDIO, JESSIE! Estou com saudades! Não sei trabalhar neste inferno
sem você.
Brandon me convidou para jantar com os pais dele esta noite. Acho que nem
tenho mais água no meu corpo de tanto que suei de manhã, morrendo de
nervosismo.
Eu: Vocês vão jantar no apartamento dele?
Eve: Siiiimmmmm! A gente pode aproveitar para se ver e colocar o papo em dia.
Preciso de atualizações sobre você e o Howard. Faz tempo que não conversamos
sobre isso.
Eu: Ótimo! Quando tiver um tempinho, passa lá em casa.
Eve: Certo. Agora preciso ir. Tenho que engolir meu almoço antes de voltar ao
Hospício de Abigail Veronica.
Te amo.
Eu: Boa sorte. Te amo mais.

Empurro a porta de vidro do The Rock’s, me deparando com a


lanchonete lotada. Tristan, uma outra garçonete, sorri assim que
seus olhos me encontram, mas rapidamente volta a circular entre as
mesas, carregando sua bandeja junto de si.
Passo a andar sobre o piso quadriculado preto e branco,
atravessando até o balcão, a caminho da salinha onde guardamos
nossas coisas.
Meus pés se cravam no chão no mesmo instante em que meus
olhos se deparam com uma cena mais do que inesperada. Em
frente ao mármore do balcão, onde Kale me encara com um sorriso
moldando os lábios, está Suzzie, me observando com um sorriso
ainda maior. Ao seu lado, a figura alta de um Mike com os olhos
vendados por um pano vermelho a acompanha.
Franzo a testa no mesmo instante, confusa diante do que vejo.
Mas o que eles estão fazendo aqui?
— O que está acontecendo? — É o que pergunto assim que
me aproximo, sendo recebida por um caloroso abraço da garotinha
de 8 anos.
— Suzzie veio te visitar — Kale responde, rindo baixinho,
provavelmente da feição confusa que se estampa em meu rosto.
Como se para confirmar o que ele disse, Suzzie me aperta
ainda mais contra si. Sorrindo, afago suas costas com uma das
mãos.
— Você está bem, Jess? — a garota pergunta, fazendo com
que um sorriso maior ainda se estampe em meus lábios ao ouvir o
apelido.
— Jess? A Jessie está aqui? Como assim a Jessie está aqui?
Essa é a voz dela? — pergunta um Mike atordoado, olhando para
todas as direções possíveis, mesmo sem conseguir enxergar nada
além do vermelho pano que cobre sua visão.
Quando deslizo os olhos por ele, percebo suas mãos
amarradas por outro pano atrás do corpo, exatamente como um
sequestrador faria com sua vítima. Assustada, volto meu olhar para
Suzzie novamente, que apenas pisca diversas vezes, tentando
exalar um falso ar angelical.
— Como assim você prendeu as mãos dele? — questiono,
embasbacada, me afastando da garota.
A risada de Kale, que permanece atrás do balcão, invade
meus ouvidos
Suzzie bufa, cruzando os bracinhos.
— Ele não iria me trazer para cá se soubesse aonde eu queria
ir — ela se explica, dando de ombros, como se amarrar o homem
fosse a única solução plausível para seu dilema. Quando arqueio
uma sobrancelha, tentando demostrar que não concordo com a
saída que escolheu, Suzzie gesticula com as mãos, apontando para
o homem atrás de si. — Eu tive que amarrá-lo! A polícia não pode
prender uma garota de oito anos só por ter obrigado um homem
adulto a levá-la para almoçar!
— Nós estamos naquela lanchonete de novo? — Mike
resmunga, parecendo exausto. — Meu Deus, Suzzie! Sua tia vai me
matar!
— Para de surtar! — Suzzie vocifera na direção do mais velho.
— Ela não vai descobrir nada!
Atrás do balcão, Kale volta a rir, mas para no mesmo instante
em que o fuzilo com o olhar. Ele murmura um pedido de desculpas
antes de franzir os lábios, se esforçando para não voltar a gargalhar.
De repente, ao mover meus olhos para Suzzie de novo, tento
imaginá-la contando uma mentira criativa a Mike, enganando-o,
apenas para prendê-lo e obter sucesso ao colocá-lo no banco
traseiro de um táxi.
— Você não podia ter feito isso — digo, enfim. A garota me
encara com uma expressão sofrida, exatamente igual a toda
máscara que crianças travessas usam para tentar convencer os pais
que não passam de pessoas com pouca idade e por isso podem
fazer quantas merdas quiserem na vida, sem nunca serem
repreendidas em troca. — Não foi certo — concluo enquanto
caminho até o antigo recepcionista destruidor de impressoras,
deslizando o pano vermelho pelo seu rosto, o afastando de seus
olhos.
Mike pisca algumas vezes, se adaptando à luz do ambiente. A
nossa volta, alguns dos clientes mais próximos nos encaram com as
testas franzidas, tentando entender por que tem um homem
amarrado dentro da lanchonete que escolheram para almoçar no dia
de hoje. Algumas crianças riem, sendo repreendidas pelos pais, que
as mandam calar a boca e voltar a comer.
— Obrigado — Mike agradece, ainda piscando fortemente.
— Imagina — respondo, o virando para desamarrar o nó do
pano branco que prende suas mãos atrás do corpo. — Pelo amor de
Deus, cara! Como foi que conseguiu ser persuadido por uma garota
de 8 anos? Como ela conseguiu te amarrar?
— Eu sou mais esperta do que a maioria das crianças da
minha idade, Jess — atrás de mim, Suzzie responde antes que Mike
possa ter a chance de abrir a boca. — Não me subestime.
Lançando uma rápida olhada a ela, enquanto meus dedos
continuam lutando para soltar o recepcionista, franzo a testa,
impressionada com como uma garotinha fofa como ela consegue
ser tão maquiavélica e dizer palavras complexas como “subestime”.
Acho que me enganei quando pensei que Suzzie Veronica
fosse o completo oposto de sua tia. Elas são pessoas extremamente
diferentes, obviamente, mas, ainda assim, a perseverança para
conseguir o que quer é uma característica que se faz presente nas
duas.
Talvez seja de família.
— Obrigado — Mike agradece, soltando um suspiro cansado
quando finalmente o solto. Enquanto leva as mãos até a nuca,
desfazendo o nó do pano vermelho que cobria seus olhos e deslizou
até ali, e um sorriso em forma de agradecimento se estampa em
seus lábios, faço questão de lembrá-lo:
— Eu poderia ter deixado você amarrado para sempre.
O sorriso deixa o rosto do antigo recepcionista no mesmo
instante, dando abertura para que uma feição repleta de pânico
tome seu lugar.
— Lembre-se disso quando resolver ser um tremendo babaca
comigo de novo — faço questão de lembrá-lo, diminuindo o tom de
voz, travando o maxilar após soltar a ameaça.
Quando Mike engole em seco e faz que sim com a cabeça,
demonstrando que entendeu, eu me afasto.
— O que vocês dois vão querer pedir? — É o que um Kale
sorridente pergunta, como se ignorasse toda a confusão que acabou
de acontecer, ainda posicionado atrás do balcão, onde passou os
últimos minutos. Seus olhos brilham, brincalhões.
Enquanto dou a volta no balcão, indo até ele, franzo os lábios
diante da cena, me esforçando para não rir.
— Dois hambúrgueres, por favor! — Suzzie pede, com um
sorriso rasgando seu rosto, também agindo como se não tivesse
acabado de amarrar um cara adulto como as próprias mãozinhas,
exatamente como sequestradores fazem com suas vítimas.
Mike a encara atordoado, balançando a cabeça em negação,
como se não acreditasse no que acabou de acontecer. Pelo jeito
que a olha, imagino que esteja se esforçando para criar uma nota
mental que o diz para nunca mais confiar em Suzzie Veronica.
— Certo. — Com a ajuda da primeira caneta azul que
encontrou no porta-lápis, Kale anota o pedido em um bloquinho de
papel. — Podem se sentar. Eu levo o pedido de vocês quando ele
ficar pronto.
Ainda exalando felicidade, Suzzie assente antes de dar as
costas, caminhando em direção a uma mesa encostada em uma
das paredes do restaurante, um tanto afastada do balcão onde
estamos. Sem perder tempo, Mike a segue, ainda tonto diante de
tudo o que acabou de passar.
Quando os dois já estão a passos de distância o suficiente
para não conseguirem nos ouvir, deixo a mochila, que até então
pesava em minhas costas, no chão, permitindo que a risada que me
esforcei para reprimir durante todo esse tempo escape por meus
lábios.
Ao meu lado, Kale faz o mesmo, apoiando os cotovelos no
balcão e escondendo o rosto com as mãos enquanto ri.
— Como foi que você deixou que ele ficasse todo esse tempo
amarrado? — pergunto entre risos.
Kale endireita a postura, voltando a me encarar.
— Falei para ela que era melhor soltá-lo, mas ela não me deu
ouvidos — explica. — Disse que só o soltaria depois que você
aparecesse.
— Meu Deus! — Agora sou eu que apoio os cotovelos no
balcão e escondo a risada. — Suzzie é doida.
Kale ri, se encostando no mármore enquanto me olha.
— Essa garota gosta mesmo de você.
— Acho que sim — comento, franzindo levemente a testa. —
Nunca entendi direito o porquê, para ser sincera.
Ao meu lado, Howard não hesita em expressar sua indignação.
— Está brincando? — pergunta ele, fazendo com que volte a
encarar o tom esverdeado dos seus olhos no mesmo instante. —
Jessie, você é uma pessoa sensacional.
Quando me dou por mim, um sorriso inevitável já tomou meus
lábios e meu coração já se derreteu completamente diante da
sinceridade genuína em sua fala.
Acho que nunca vou entender o que fiz para merecer alguém
como Kale Howard em minha vida.
— Tem algo para fazer hoje à noite, Howard? — pergunto,
ainda com a felicidade moldando os lábios.
Sorrindo também, Kale nega com a cabeça.
— Nadinha — diz. — Estou totalmente livre.
— Isso é bom — respondo, falhando ao tentar manter a
animação longe do meu tom de voz.
Ao perceber, Howard solta uma risada fraca.
— Por quê?
— Estava pensando que a gente poderia sair hoje — solto,
fazendo com que o sorriso feliz em seus lábios se transforme em
sugestivo.
— Tipo um encontro? — Kale pergunta.
E é então que, deixando qualquer resquício de orgulho que
ainda me restava de lado e derrubando as últimas peças do muro
que passei dois anos construindo para me manter longe de Kale, eu
respondo:
— É. Tipo um encontro.
Nunca me esforcei para ser o tipo de cara romântico, que
prepara jantares à luz de velas, compra buquês de flores e joga
pedrinhas na janela de alguma garota no meio da noite, esperando
que ela coloque a cabeça para fora, me alcance com os olhos e
escute a maravilhosa serenata que passei horas preparando e
ensaiando como a mais singela forma de demonstrar meu amor.
Mas, por algum motivo, com Jessie Campbell é muito fácil ser
esse tipo de cara.
Não estou me referindo à serenata, obviamente. Somos
vizinhos. Não sou nenhum tipo de idiota. Nunca pegaria pedras no
meio da noite e as jogaria em sua porta. Todos nossos vizinhos me
matariam pelo barulho. E, do jeito que nosso prédio é, não duvido
que a porta cairia.
Acontece que a parte do jantar à luz de velas eu meio que...
fiz. E não me senti em um clichê idiota. Muito pelo contrário. Foi algo
espontâneo. Apenas liguei para o restaurante de um dos amigos do
Brandon, pedindo para que ele reservasse uma mesa um tanto
inusitada e a decorasse para um jantar romântico.
Beth uma vez me disse que quando estamos apaixonados
temos tendência a fazer coisas ridículas. Coisas que
consideraríamos bregas se estivéssemos em nosso estado normal.
Por isso, quando Beatrice e eu estávamos noivos e eu nunca tinha
tido vontade de fazer algo mirabolante para ela, duvidei de Beth.
Mas agora, após saltar do táxi, segurando a mão de Jessie em
meio a noite de uma Times Square lotada, percebo que a espertinha
da Beth sempre esteve certa em todos seus ensinamentos. E com
esse não foi diferente.
Jessie me encara sorrindo, os olhos vendados pelo mesmo
pano que Suzzie usou para praticamente sequestrar Mike nesta
tarde. As inúmeras luzes coloridas ao nosso redor refletem em todos
os cantos, iluminando seu rosto e o vestido branco colado ao corpo,
chegando até suas coxas.
As pessoas à nossa volta, a maioria turistas, esperam o sinal
abrir para atravessarem na faixa de pedestres. Algumas nos
observam com expressões curiosas, intercalando seus olhares entre
nós e a mesa montada ao nosso lado, bem no meio de toda a
muvuca da calçada que separa duas ruas, onde táxis e carros
passam sem intervalos.
O barulho em um dos destinos mais famosos do mundo,
localizado no coração de Manhattan, é alto e único, sendo
inconfundível para quem já esteve aqui algumas vezes. Por isso,
quando buzinas ecoam ao nosso redor, o semáforo para os
pedestres troca da luz vermelha para a verde e as pessoas
começam a andar, atravessando as duas ruas que nos cercam, e
vejo o sorriso estampado no lindo rosto de Jessie aumentar de
tamanho, percebo que ela já sabe onde estamos.
Delicadamente, com um sorriso idiota moldando os lábios,
aproximo as mãos do pano que cobre seus olhos, tirando o nó e o
afastando de seu rosto, permitindo que Campbell veja tudo o que há
em sua volta.
Ela pisca algumas vezes, apertando os olhos, fazendo com
que algumas rugas se formem em sua testa, tentando se adaptar a
todas as luzes coloridas e painéis luminosos que a cercam.
— Você só pode estar brincando comigo — comenta,
esfregando os olhos após dar uma breve espiada, ainda com
dificuldade para se adaptar depois de tempos enxergando nada
além do pano vermelho.
Rindo, seguro em um de seus braços, a puxando para mim e
tirando-a do caminho de dois adolescentes que tentam passar. Um
deles sorri na minha direção em forma de agradecimento, dando um
breve aceno de cabeça antes de chegar ao meio-fio.
— Você está bem? — pergunto para Jessie, que parece
finalmente ter se adaptado a toda a iluminação e agora passa a
deslizar os olhos brilhantes pelos arredores,
— Eu... Eu estou... — Ela parece se esquecer de como falar
quando seus olhos se conectam ao garçom vestido de branco a
nossa frente, ao lado da mesa que fora preparada especialmente
para nós.
Nunca, em toda minha vida, fui tão grato pelas amizades fáceis
que Brandon faz nas filas de baladas.
— Estou impressionada — Campbell sopra, a voz saindo
baixa, quase inaudível.
O garçom sorri para nós dois, vestindo um smoking sobre a
camisa branca de botões e segurando uma bandeja metálica com
nossos pratos em uma das mãos.
— Senhores — cumprimenta ele, dando um breve aceno de
cabeça. Sigo seus movimentos com os olhos quando aponta para
trás de si, mostrando o que foi organizado especialmente para nós.
— Esta é a mesa de vocês.
Com velas acesas e uma garrafa de vinho à nossa espera, ao
lado de duas taças de cristal vazias, uma toalha branca se estende
pela mesa redonda.
Ao meu lado, Jessie leva as palmas das mãos à boca,
tapando-a, surpresa. Solto uma fraca risadinha diante de sua
reação.
O que está à nossa frente é ridiculamente romântico. E,
levando em consideração que todos ao nosso redor nos encaram
com olhos curiosos ao atravessar as ruas e que nunca fui um cara
que gostasse de chamar a atenção, em outras circunstâncias e em
meu “estado normal”, como Beth costumava dizer, eu jamais
consideraria estar em uma posição como esta.
Mas recentemente o destino tem se mostrado traiçoeiro em
minha vida. Acompanhado do futuro, que há algumas semanas se
mostrou uma caixinha de surpresas.
Entrelaçando minha mão na de Jessie, que permanece
embasbacada diante de tudo, eu a guio até a mesa, me sentando a
sua frente. Nick, o garçom atencioso, sorri durante todo o tempo em
que nos serve, saindo pela rua após avisar que, caso precisemos de
algo, temos que apenas apertar um botão sobre a mesa.
Campbell permanece deslizando o olhar pelas luzes que nos
cercam, suas orbes brilhando em encantamento. Um fraco riso me
escapa ao vê-la tão deslumbrada com tudo ao redor, os olhos
transbordando luz, exatamente como uma criança ficaria diante de
um ídolo pop com quem sonha em se casar.
— Como foi que conseguiu este lugar? — pergunta Jessie,
enfim, a voz saindo carregada pelo fascínio.
Dou de ombros, mantendo o sorrisinho estampado nos lábios,
me esforçando para manter o suspense por trás da pergunta. Falho
quando Campbell arqueia uma das sobrancelhas em minha direção,
como se me dissesse para contar tudo a ela aqui e agora.
— O Brandon conhece o dono de um restaurante nesta rua —
passo a explicar, me dando por vencido. — Liguei para ele à tarde,
buscando apenas reservar mais uma mesa normal como todas as
outras, e descobri que era possível fazer algo diferente. Ele
organizou tudo isso e ainda cobrou o preço de uma mesa normal,
sem acréscimos, pois disse que Brandon Houston é seu “irmão”, o
que sinceramente não entendo, pois eles se conheceram em uma
fila de balada e devem ter se encontrado apenas duas vezes na
vida.
No mesmo instante em que as palavras param de sair por
minha boca, Jessie fecha os olhos, levando as mãos ao peito e
soltando um longo e aliviado suspiro.
Franzo o cenho diante do gesto.
— O que foi? — questiono, já criando mil hipóteses na cabeça
de que algo não está lhe agradando.
— Eu me obriguei a ser uma ótima atriz para tentar disfarçar,
mas meu coração estava quase parando só de imaginar que você
havia pagado uma fortuna por esta mesa — esclarece, sorrindo
aliviada, deslizando a mão pela mesa até alcançar a minha. — Não
pense que não gostei, Howard — clarifica, entrelaçando nossos
dedos. — Eu amei. De verdade. Mas quase enfartei só de imaginar
que você poderia ter gastado tanto comigo.
De repente sinto meu coração derreter como calda quente.
E começo a me questionar o que fiz para merecer ter Jessie
em minha vida. Onde ela esteve todo esse tempo? Por que
passamos dois anos inteiros um ao lado do outro, mas nos
envolvendo com amores rasos e mostrando ser quem não éramos?
Jamais, em toda minha vida, eu poderia me imaginar aqui, em
uma situação como esta, em um encontro, com Jessie Campbell.
E neste momento, enquanto a observo recolher seu braço de
cima da mesa e fazer uma dancinha ridícula enquanto segura os
talheres e encara o jantar em seu prato, percebo que jamais
gostaria de estar em outro lugar ou com outro alguém.
E essa sensação é algo surreal. Algo que passou a ser
habitual para mim a partir do dia em que engatamos juntos na
missão de desbravar a vida de John Peter Jones.
A partir do dia em que vi Jessie com o diário em seu colo,
prestes a dar início ao ano de 1930, e senti algo novo se aflorar
dentro de mim ao me aproximar dela, deslumbrado diante de sua
beleza, levando alguns segundos para me recompor e desviar os
olhos, que observavam seus grossos cílios e lábios pintados
perfeitamente de vermelho.
Acho que foi nesse instante que meu coração começou a dar
um novo significado para ela. Porque, por incrível que pareça,
Jessie Campbell, mesmo ainda sendo a vizinha ranzinza na época,
me trazia sensações boas, de alguma forma.
Penso que seja esse o sentimento que John disse uma vez.
Que essa seja a verdadeira representação de estar se
apaixonando.
Quando o corpo sente mais do que podemos explicar em
palavras.
Era assim que eu me sentia na presença dela. E é assim que
continuo me sentindo a cada instante, ao ser cumprimentado com
um beijo ou ao observar todos os sorrisos que tomam seus lábios
durante os dias.
E é por isso que, neste momento, enquanto a ouço contar de
forma empolgada sobre fofocas de celebridades que nem ao menos
sei quem são, sorrisos fáceis se estampam em meu rosto.
E percebo que Brandon tinha razão quando disse que a olho
como se nós dois pertencêssemos à mesma estrela.
Porque é exatamente assim que me sinto diante de sua
presença. Como se estivéssemos destinados até mesmo antes de
existirmos.

A noite nos abraça enquanto caminhamos em frente ao


caminhão de sorvetes, em uma praça agora mais próxima do nosso
prédio. Jessie pediu para o taxista nos trazer aqui antes mesmo que
eu pudesse abrir a boca para recitar nosso endereço.
A nossa volta, as folhas verdes das grandes árvores farfalham
com o vento sobre as mesas de piquenique, em que alguns adultos
e crianças conversam, tomando seus sorvetes e rindo de assuntos
engraçados. A luz que a Lua Cheia emana e os postes decorativos
a nosso redor são os únicos responsáveis por manter a praça
iluminada em meio à intensa escuridão.
— Você nunca me contou a história por trás de tudo isso —
solta Jessie, levando a pazinha com seu sorvete de maracujá até a
boca enquanto nos sentamos em um dos bancos de madeira.
Franzindo o cenho, raspo superficialmente minha única bola de
sorvete de torta de limão, dando uma leve colherada.
— Como assim?
— Você nunca me explicou direito como o diário foi parar nas
suas mãos — Campbell esclarece.
Endireitando a postura, deixo a pazinha cair dentro do potinho
que seguro enquanto minhas lembranças me levam de volta à noite
quando tudo começou.
— Eu tinha ido buscar minhas coisas no apartamento da
Beatrice naquele dia. A caixa que você me viu segurando, quando
ficamos presos no elevador, estava cheia de recordações de
momentos que marcaram os anos do nosso relacionamento —
começo, percebendo os olhos de Jessie me encararem atentos
enquanto ela continua devorando o sorvete. — A tempestade
daquela noite fez com que eu ficasse sozinho no The Rock’s, já que
o Brandon tinha ido a um encontro com a Eve, que eu não sabia
quem era na época.
“A chuva caía forte e o vento arrastava alguns galhos e folhas
até a vidraça da lanchonete, por onde consegui perceber a rua
deserta, sem uma única pessoa sequer. Sem nada para fazer,
comecei a vasculhar a caixa que fui buscar com a Beatrice e, de
repente, escutei o sino da entrada tilintar. Ergui a cabeça e vi um
cara estranho entrando na lanchonete, se aproximando de mim
enquanto eu dizia que estávamos fechados. Por alguns instantes,
pensei que ele fosse me assaltar, e fui surpreendido quando o
assisti apenas deixar o diário sobre o balcão e dar as costas, indo
embora em meio ao caos que caía do céu.”
Solto uma gargalhada ao perceber os olhos de Jessie
arregalados, como se sequer pensasse que havia sido dessa forma
que a vida de John Peter Jones acabou parando nas minhas mãos.
— Isso deve ter sido um tanto assustador — comenta ela,
arrancando outra risada dos meus lábios. — Eu sabia que um cara
tinha te entregado, mas não sabia que tinha sido desse jeito.
Me recostando na madeira do banco, resgato minha pazinha,
agora melada de sorvete.
— Sua vez — digo. Um vinco confuso se apossa da testa de
Jessie, me fazendo explicar: — Quero que me conte o porquê de ter
se mostrado tão interessada nisso desde o início, quando ficamos
presos no elevador.
De repente Campbell congela, arregalando um pouco os olhos,
como se a simples pergunta tivesse caído como um baque sobre
ela. Sua mão permanece paralisada em frente ao rosto, segurando
a pazinha que estava a caminho da boca.
Solto uma risada diante da cena.
— O que foi?
Jessie imediatamente chacoalha a cabeça, se forçando a
voltar para a realidade. Observo o movimento que sua garganta faz
ao engolir em seco, como se estivesse nervosa ou apreensiva por
algum motivo.
— Na... Nada — sua voz falha ao tentar se expressar. — Está
tudo bem. — Campbell abre um sorrisinho nervoso, levando
finalmente a pazinha à boca. — Só dei uma viajada. Não foi nada
demais.
Dando uma colherada no sorvete de torta de limão, digo:
— Pode ser sincera. O que te deixou tão interessada no
diário?
Jessie dá de ombros, sem me encarar, fixando seus olhos no
pote que segura e levando a pazinha mais uma vez à boca.
— Não sei — ela responde. — Talvez só quisesse me
aproximar de você.
Solto uma risadinha, fazendo com que Campbell erga o rosto e
volte a me encarar no mesmo instante. Com um sorrisinho tímido
moldando seus lábios, até mesmo os olhos de Jessie parecem
felizes, se apertando um pouquinho.
Meu coração derrete diante da cena.
Nunca vou me cansar de ressaltar quanto Jessie Campbell é
incrivelmente adorável.
— Pensei que você sempre tivesse me odiado — comento.
O sorriso que rasga seu rosto se alarga, e, pela timidez em
seus olhos, percebo que uma confissão está prestes a se revelar.
— Eu fingia te odiar, Howard.
Separo os lábios no mesmo instante, boquiaberto. Jessie deixa
o potinho de sorvete de lado, tapando o rosto com as palmas das
mãos, envergonhada do que acabou de dizer.
— Espera! — Deixo meu pote de lado também, me inclinando
para frente, segurando em seus pulsos e afastando suas mãos do
rosto, me permitindo ver a vergonha presente em seus olhos e no
sorriso nervoso que Jessie estampa. — Você fingia ser uma vizinha
ranzinza porque sentia alguma coisa por mim?
Jessie aperta os olhos, rindo envergonhada.
— Eu sentia tudo por você, Kale — ela revela, jogando a
bomba de uma só vez, fazendo com que minha boca se escancare
ainda mais, refletindo perfeitamente a incredulidade que me
preenche como uma inesperada avalanche.
— Como assim? — minha voz sai muito mais aguda do que o
esperado. Solto seus pulsos, me afastando enquanto observo
Jessie sorrir sem jeito.
— É complicado — ela explica em meio a tímidas risadinhas.
— Você namorava quando nos conhecemos. E eu estava passando
por uma fase complicada após o término com o Vincent. Não podia
ter uma queda por você. Ainda mais sabendo que você já estava em
um relacionamento. Isso vai contra tudo o que defendo.
— Foi por isso que você se afastou do Brandon tão de
repente? — questiono, sem sucesso em tentar esconder o sorriso
surpreso que se forma em meus lábios. — Por que ele e eu somos
melhores amigos?
Hesitante, Jessie faz uma careta antes de concordar
brevemente com a cabeça, repleta de vergonha.
Rindo, estico uma das mãos, a puxando para mim. Campbell
afunda o rosto no meu peito, coberto pela camiseta de botões que
uso, e suspira, como se tivesse tirado um peso das costas ao me
contar isso.
— Você é tão idiota. — Ainda achando graça, eu a envolvo
com meus braços, apertando seu corpo mais contra o meu,
depositando um leve beijo em seu cabelo
— Eu sei. — Jessie ri baixinho, erguendo a cabeça para me
encarar.
— Sabe, foi fofo admitir isso. — Levo uma das mãos até seu
rosto, pescando uma mecha de cabelo que ameaçava ficar presa
em sua boca. — Quer dizer, não admitir que você é idiota, mas
admitir todo o resto.
Jessie solta mais uma risadinha, voltando a se envergonhar.
E eu permaneço encarando seus olhos, inexplicavelmente
rendido pela beleza da mulher diante de mim.
Esperando que meu olhar diga que nenhum de nós precisa
mais lidar com questões do passado.
Que diga que estou aqui. E que não planejo ir a lugar algum.
E que esclareça que ela me tem. E eu a tenho também.

Espero Jessie entrar em seu apartamento antes de atravessar


o pequeno espaço que separa nossas portas e seguir para o meu.
Com um sorriso de idiota moldando os lábios, giro a maçaneta, já
imaginando que a porta esteja destrancada.
Hoje de manhã, Brandon me avisou sobre o jantar especial
que ele estava preparando para a Eve. Houston não me contou
muitos detalhes, mas disse o básico. Falou que muito
provavelmente ele estaria ocupado demais “fazendo sala” para se
preocupar em atender a porta quando eu chegasse.
Que ótimo melhor amigo eu escolhi para minha vida, não é
mesmo?
Assim que dou o primeiro passo para dentro de casa, sinto
meu corpo congelar imediatamente diante do que vejo. Sentados à
mesa de jantar, Brandon, Eve, Grace Houston e Sebastian Houston
me encaram, os quatro com expressões contentes no rosto, o que
me faz imaginar que a noite tem sido extremamente agradável até
então.
— Meu Deus! Por que ninguém me contou que vocês estariam
aqui? — É o que pergunto enquanto ando até os pais de Brandon,
que se levantam de suas cadeiras e me cumprimentam com um
abraço caloroso e um sorriso no rosto.
Com seus 49 anos, Grace Houston continua sendo a
maravilhosa mulher que sempre foi. Com os cabelos castanhos
presos em um coque no topo da cabeça, usando um longo vestido
rosa florido e com uma pulseira prateada cintilando no pulso, sobre
a pele branca, ela parece a mesma mulher que chegou ao orfanato
para adotar Brandon, há 11 anos, como se a idade não tivesse
deixando marcas em sua aparência.
O mesmo acontece com Sebastian, seu marido, que continua
praticamente igual, se não levarmos em consideração os músculos
assustadoramente grandes que cresceram em seus braços. Com
seus quase dois metros de altura, uma paixão avassaladora por
musculação e bebidas proteicas e um amor incondicional pelo filho
adotivo, Sebastian Houston ainda é o mesmo cara espontâneo e
sorridente que conheci.
— Queríamos fazer uma surpresa — diz o homem de pele
negra, ainda de pé, passando um dos braços ao redor do meu
pescoço, apertando meu ombro com sua grande mão e energia
paterna. — Pedimos para o Brandon não te contar nada, mas não
sabíamos que não estaria em casa quando chegássemos.
Sebastian lança um olhar de repreensão para o filho, como se
questionasse por que não foi avisado do meu compromisso nesta
noite. Sentado ao lado de Eve, que leva uma taça de vinho aos
lábios, o Houston mais novo se apressa para se defender:
— Não tenho culpa se ele decidiu que iria para um encontro de
última hora! — Meu melhor amigo levanta as palmas das mãos,
como se se rendesse ao explicar. — Ele só me avisou que iria sair
quando estávamos fechando a lanchonete. Eu juro.
— Você foi a um encontro? — movimentando os talhares e
prato usados para a cadeira vazia ao lado, os invertendo com o jogo
de mesa limpo, Grace pergunta, genuinamente curiosa.
Sorrio ao perceber que ela espera que me sente em meio a ela
e seu marido.
— Sim — respondo, acenando com a cabeça em forma de
agradecimento ao me acomodar na cadeira que antes era ocupada
por ela. Sebastian volta a se sentar, assim como sua esposa. —
Estou saindo com uma garota — começo, observando ambos me
encararem com olhares interessados. — O nome dela é Jessie. Ela
é melhor amiga da Eve. — Aponto para a Wade que, do outro lado
da mesa, sorri assim que todos os olhos deslizam em sua direção.
— Vocês se conheceram através do Brandon e da Eve? —
pergunta Sebastian.
— Não — Eve se apressa em responder. — Na realidade, foi
ao contrário. Eu e seu filho nos conhecemos através dos dois. —
Seus lábios pintados de vermelho se repuxam nos cantos enquanto
ela leva uma de suas mãos para cima da mesa, pousando-a
levemente sobre a de Brandon, que por ali descansa.
— Jessie é nossa vizinha de porta — meu melhor amigo
explica. — Eve tinha vindo buscar um vestido na casa da amiga
quando nos encontramos pela primeira vez.
— Isso é fofo — comenta a senhora Houston, dando mais uma
garfada no prato quase vazio de macarrão a sua frente.
— Não vai comer, filho? — ao meu lado, Sebastian questiona
baixinho enquanto sua esposa, nora e filho engatam na conversa
dos detalhes sobre o primeiro encontro e de como Brandon e Eve se
apaixonaram. Sinto o coração amolecer um pouco diante do apelido
carinhoso. Um leve sorrisinho se molda em meus lábios quando o
encaro.
— Já jantei — esclareço. — O que me arrependo um pouco
agora, já que sei muito bem quanto o macarrão que sua esposa faz
é maravilhoso. — Solto uma fraca risada, acompanhada pelo pai de
Brandon, que não demora muito para levar a atenção a seu prato
novamente e voltar a devorar a massa.
Sentindo o incomodo do celular e a carteira pesando na calça,
levo a mão até um dos bolsos, os tirando de lá e pousando sobre a
estrutura da mesa, ao lado do meu prato vazio. Viro a tela do celular
para cima, apertando o botão rapidamente para checar o horário.
— Como ela é? — A voz da senhora Houston invade meus
ouvidos. Levanto a cabeça, movendo meus olhos até seu rosto no
mesmo instante, franzindo a testa em confusão. — A Jessie — a
mãe do Brandon esclarece, com um sorrisinho doce. — Como ela
é?
Me recosto na cadeira, suspirando, permitindo que um sorriso
bobo tome meus lábios.
— Ela é linda — digo, sequer ligando para a maneira como
minha voz sai, completamente rendida, como se estivesse me
referindo a uma obra de arte e não a uma pessoa. — É três anos
mais nova e cursa jornalismo.
— Ah, ela faz faculdade — comenta Grace, lançando um olhar
sugestivo ao filho no mesmo instante, como se dissesse nas
entrelinhas que adoraria se Brandon seguisse os passos de Jessie.
— Que ótimo! — continua, fazendo com que o filho revire os olhos e
um riso fraco escape pelos meus lábios.
— Ela trabalhava na Charlotte, na mesma revista que eu — diz
Eve, também rindo um pouco diante da cena. — Mas, infelizmente,
saiu na semana passada.
Sinto um estranho alívio ao percebê-la omitindo o que
realmente aconteceu. Sei que os pais de Brandon dificilmente
formariam uma opinião ruim sobre alguém sem antes conhecê-lo,
mas dizer que Jessie foi demitida com certeza não passaria uma
primeira impressão positiva.
E como, além de Beth, os dois sempre foram os mais próximos
que já considerei família, o que eles pensam sobre a mulher com
quem estou saindo é importante para mim.
— Que pena — a mãe de Brandon lamenta, voltando seus
olhos para o prato em sua frente, dando a última garfada no
macarrão.
De repente, sinto a mesa onde estamos começar a tremer,
acompanhada pela fraca vibração que invade meus ouvidos. Me
empertigo na cadeira, direcionando o olhar até a tela do meu celular
no mesmo instante, franzindo o cenho diante do nome que por ali se
estampa, logo acima dos botões de aceitar ou recusar a ligação.
Ao meu lado, Grace é a única que segue meus movimentos,
me lançando um olhar de lamento enquanto todos na mesa
continuam conversando.
— Com licença. — É tudo o que peço antes de segurar o
aparelho e me levantar, fazendo com que o ranger dos pés da
cadeira se arrastando pelo chão seja audível.
Sentindo o smartphone vibrar em minhas mãos, atravesso o
corredor em passos largos, encostando a porta do meu quarto após
entrar. Soltando um longo suspiro ao me sentar na cama, atendo a
ligação, aproximando o aparelho do ouvido enquanto fecho os
olhos.
— Kale? — É a primeira coisa que escuto a voz de Beatrice
dizer, vinda do outro lado da linha.
Meu coração se acelera dentro do peito. Não por nervosismo,
acredito eu. Estou muito bem resolvido hoje em dia, mas ainda
assim é difícil ignorar certas coisas. Difícil ignorar a lembrança de
vê-la correndo pela calçada do centro de Nova York, fugindo de
nosso casamento com lágrimas nos olhos.
Difícil impedir que o que senti ao ser abandonado no altar
venha à tona.
— Oi — respondo, sentindo a língua amarga.
Do outro lado da linha, a minha ex-noiva suspira pesadamente,
como se buscasse encontrar coragem para dizer o motivo que a fez
me ligar a esta hora da noite.
— É a Beatrice — ela esclarece, como se tivesse dúvidas se
ainda tenho seu número salvo. Por um segundo, me sinto um idiota
por ter esquecido de apagá-lo. — Estou ligando porque preciso te
contar uma coisa.
— Vá em frente — digo, completamente neutro, evitando
expressar qualquer sentimento na voz.
Ainda não sou capaz de encontrar uma palavra que possa
expressar genuinamente o que sinto sempre que penso no nosso
relacionamento falho. Eu estava cego. Me entreguei de corpo e
alma para uma pessoa que claramente não sentia tudo na mesma
intensidade que eu. Para ser sincero, nem ao menos sei se tudo o
que senti era real ou se estava obrigando meu coração a se apegar
a alguém. Me obrigando a dar início a uma família, buscando ser um
bom pai e mascarar todo o espaço vazio do afeto familiar que me
faltou durante a vida toda.
Hoje, vendo a maneira como me sinto diante de Jessie, vendo
que sou capaz de me submeter a coisas ridículas, como jantar em
meio à Times Square, penso que talvez nosso amor não tenha sido
tão forte, no fim das contas.
E é por isso que não julgo Beatrice por ter dado um fim a tudo.
Só acredito que poderíamos ter feito de outra maneira.
Porque se sentir da forma que ela me fez sentir, diante de
todos os convidados do que era para ser o dia mais importante de
nossa vida, é algo que não desejo para ninguém.
— Eu e Peter estamos noivos. — É o que ela solta,
acompanhado de um suspiro.
A informação não tem efeito negativo algum sobre mim, o que
acaba me surpreendendo um pouco.
— Parabéns! — exclamo, genuinamente contente por ela. —
Espero que sejam muito felizes. De verdade.
— Obrigada, Kale — diz Beatrice, e pela maneira que sua voz
sai, percebo que está sorrindo, como se estivesse aliviada. — Achei
que fosse importante você saber. Tem muitas coisas que não
ficaram claras entre nós.
Chutando os sapatos para fora dos meus pés, solto um longo e
cansado suspiro antes de escalar minha cama e desabar com a
cabeça no travesseiro, grudando os olhos no teto.
— Quero que saiba que talvez você possa ter entendido tudo
errado — Beatrice continua. — Não quero dar mais um passo na
minha vida antes de acabar com todas as dúvidas que ficaram
pendentes.
— Para falar a verdade, nunca criei muitas teorias sobre nosso
término — digo, repleto da mais pura sinceridade. — Sei que, por
pior e mais caótico que tenha sido nosso fim, aconteceu porque
tinha que acontecer.
— Eu não te traí — revela ela, de uma vez por todas. — Juro
que não tinha sequer encostado no Peter até fugir do nosso
casamento.
Engulo a tremenda vontade que sinto de discursar, dizendo
que, quando se está se relacionando fixamente com outra pessoa,
traição não é só quando lábios ou corpos se encontram. Nossos
pensamentos e sentimentos são mais fortes do que qualquer outra
coisa.
— Eu nunca faria algo assim com você — continua ela. —
Quero que saiba disso.
— Está tudo bem — falo. — Não precisa se preocupar quanto
a isso.
Suspirando pela milésima vez, ela responde:
— Ótimo. Quero que seja feliz, Kale. De verdade.
Meus lábios se repuxam um pouco para cima quando digo:
— O mesmo para você.
E então encerramos a ligação, nos despedindo com breves
palavras.
Deixando que o celular escorregue para o meu lado na cama,
permaneço com um sorrisinho emoldurando os lábios. Porque
Beatrice estava certa em querer esclarecer as coisas e dar um digno
ponto final a nossa história. Para que possamos seguir em frente,
sem pendências passadas.
Para que possamos continuar nossas vidas. Ao lado das
pessoas certas.
Das pessoas que verdadeiramente nos completam.
— Kale? — vinda do corredor, a voz da mãe de Brandon me
chama, acompanhada por fracas batidinhas na porta.
Me sentando na cama, aviso que a porta está aberta, e a
mulher de baixa estatura não demora muito para abri-la e aparecer
em meu campo de visão, com um sorriso marcando o rosto e
vestindo um casaquinho de lã branca sobre o vestido florido.
— Está tudo bem? — pergunta ela, se aproximando. — Eu e
Sebastian estamos indo embora. Vim te chamar para nos
despedirmos.
— Estou bem — respondo, me levantando. — Tem certeza de
que não querem ficar mais? Nem tivemos tempo de colocar a
conversa em dia direito.
Senhora Houston sorri ainda mais, negando de leve com a
cabeça quando paro a sua frente.
— Infelizmente não podemos, querido — sua voz doce diz. —
Temos uma passagem comprada para a Austrália amanhã de
manhã. Ainda precisamos terminar de arrumar as malas. Você sabe
como Sebastian é em relação às roupas. Ele é difícil. Muito indeciso.
Sorrio ao me lembrar de uma viagem que fizemos à Califórnia,
certa vez. Foi logo após Brandon e eu alugarmos o apartamento, e
Sebastian era o que mais levava tempo para se arrumar para
sairmos.
— Kale — Grace me chama, a voz saindo séria enquanto uma
de suas mãos vai de encontro a minha. Ela franze os lábios, como
se lamentasse por algo.
Não preciso de muito esforço para entender que está se
lembrando de ver o nome de Beatrice aceso na tela do meu celular.
— Sei que você não é meu filho, querido — ela começa,
soltando um longo suspiro enquanto suas unhas pintadas de laranja
acariciam de leve o dorso da minha mão. — Mas você sabe que te
amo como se fosse. Sabe que daria de tudo para te ver feliz.
Aceno de leve com a cabeça, sentindo os olhos marejados.
Os Houston estavam presentes no dia do casamento. Eram
alguns dos poucos convidados que chamei. Eles assistiram à cena
toda, viram a dor em meu olhar. Me levaram para casa após me
encontrarem chorando em meio ao centro da cidade, com os joelhos
colados na calçada.
— Você merece encontrar alguém que o faça se sentir
completo — continua Grace, sorrindo docemente. — Porque você é
um ser humano incrível, querido.
E é então que, suspirando profundamente e endireitando a
postura, eu digo:
— Acho que já encontrei.
E não me surpreendo com a facilidade com que essas
palavras escapam por meus lábios.
Porque é verdade.
Jessie Campbell é a minha pessoa.
E a sensação de finalmente encontrar alguém que me faça
sentir inteiro é, sem dúvida alguma, a mais maravilhosa que já
experimentei na vida.
— Vocês foram jantar em um restaurante na Times Square? —
sentada no sofá da sala do meu apartamento, segurando sua
caneca fumegante de chá, Eve pergunta, antes de voltar a assoprar
a bebida, tentando fazer com que esfrie mais rápido
É de manhã e, assim como fora combinado, minha melhor
amiga resolveu me fazer uma visitinha para colocarmos a fofoca em
dia, já que dormiu no apartamento de Brandon e Kale na noite
passada, logo após o jantar que teve com os pais do seu namorado,
que alega serem pessoas maravilhosas.
— Não exatamente. — Sorrio, saindo da cozinha, trazendo
minha caneca de café junto a mim. Ainda vestindo o pijama de
bolinhas coloridas, me aproximo da minha melhor amiga, que
desliza um pouco para o lado no sofá, me dando espaço mais do
que suficiente para sentar.
— Como assim? — Eve arqueia uma sobrancelha,
bebericando seu chá pela primeira vez. Uma careta toma seu rosto,
como se tivesse queimado a própria língua.
— Não foi exatamente em um restaurante, mas no meio da
Times Square. Tipo, literalmente — explico, arrancando um
arregalar de olhos da minha melhor amiga. Disfarçando o sorrisinho
de boba apaixonada que toma meus lábios, os levo até a caneca de
café imediatamente.
— Como assim no meio? — questiona ela, parecendo um
tanto abismada.
— É. — Rio um pouco diante da feição descrente que toma
seu semblante. — Ao que parece, ele e Brandon conhecem o dono
do restaurante, então Kale meio que conseguiu que colocassem
uma mesa no centro de duas ruas, onde os pedestres esperam para
atravessar.
Eve tapa a boca com uma das mãos, quase derrubando o chá
no meio do caminho, impedindo a tempo que um desastre aconteça.
— Então vocês estão, tipo... namorando?
Dou de ombros, sem saber ao certo o que responder.
— Eu não sei — esclareço. — Nunca chegamos a conversar
sobre o que temos. Mas eu gosto dele. E vejo pelos olhos dele que
também gosta de mim.
— Fico feliz por você — minha melhor amiga diz, pousando a
mão livre delicadamente sobre a minha, em meu colo. Sinto o
coração amolecer um pouco diante do gesto carinhoso. Eve Wade
é, com certeza, um presente na minha vida. — Você merece alguém
legal, Jessie. De verdade. Fico feliz em saber que se livrou de
qualquer que tenha sido o bloqueio emocional que aquele babaca
do Vincent deixou em você.
Permitindo que um sorrisinho volte a emoldurar meus lábios,
deixo a caneca de café sobre o braço do sofá, ao meu lado, antes
de puxar minha melhor amiga para mim, a abraçando
calorosamente.
— Me desculpe por ter sido tão dura com você no dia da
reunião. Não quis, e nem quero, de maneira alguma, passar a ideia
de que não acredito no seu potencial — Eve começa, me lembrando
de uma cena que estava quase apagada em minha memória. — Eu
sabia o que iria acontecer se você afrontasse a Abigail. Estava
apenas tentando te proteger.
— Eu sei — murmuro, afagando suas costas. — E entendo
seus motivos. Mas sabia que minha ideia era boa. Assim como
também sei que a matéria que a entreguei antes de ser demitida era
maravilhosa.
— Acho que Abigail se sente um pouco amedrontada por você,
de certa forma — minha melhor amiga revela, se afastando. Seus
olhos permanecem focados em mim. — Você é boa, Jessie. Boa de
verdade. E talvez para ela seja um pouco estranho ter uma
assistente que escreve matérias melhores do que as dela. Acredite
em mim quando digo isso. Abigail é boa em ser firme, chata, em
avaliar coisas e em dar ordens. Ela é o tipo de editora-chefe que
muitas revistas por aí procuram, não uma escritora. Não mais. A
época em que seu nome brilhava nas colunas das revistas mais
cobiçadas do país já passou. E sei que ela se sente frustrada por
isso.
— Ofereceram uma vaga para ela na Sunset — revelo,
fazendo com que minha melhor amiga revire os olhos no mesmo
instante. A rixa existente entre as revistas é evidente em todo
mundo que trabalha na Charlotte. — Ela estava furiosa quando me
demitiu. Nem sequer leu as primeiras linhas do que escrevi.
Wade se empertiga ao meu lado, dando mais um gole no seu
chá antes de questionar:
— Onde você deixou a matéria impressa quando foi embora?
Trouxe consigo ou deixou na mesa dela?
— Deixei na mesa dela — respondo, um pouco confusa diante
da pergunta.
— Ela, com toda a certeza do mundo, leu, Jessie. — Eve
pousa sua caneca no braço do sofá ao seu lado, assim como fiz
anteriormente. — O ser humano é curioso. Ela, mesmo que pareça
uma máquina às vezes, não é diferente.
Estalando a língua no céu da boca, dou de ombros.
— Isso não importa mais. Não faz diferença alguma agora.
Não trabalho mais para ela, não preciso que leia algo meu ou me
avalie.
A de cabelos castanhos concorda levemente com a cabeça,
fixando seus pensativos olhos novamente em meu rosto.
— O que pensa em fazer agora? Continuar trabalhando com
os meninos na lanchonete?
Enrugo o nariz, me recostando no sofá.
— Por enquanto, sim. Até surgir uma oportunidade de trabalho
dentro da minha área — revelo. — Estou gostando de trabalhar no
The Rock’s, apesar de ser algo que nunca fiz na vida,
completamente fora da minha zona de conforto, e agora consigo
focar mais nos estudos, então estou bem. Não tenho pressa.
— E aquela história toda com o diário? — questiona minha
melhor amiga, cruzando as pernas, se mostrando interessada. — O
plano inicial não era usá-lo para impressionar no trabalho?
Encolhendo os ombros e soltando um suspiro demorado,
respondo:
— Era. Mas as coisas não saíram conforme o planejado, e
agora me peguei apegada à história do John Peter Jones. — Estalo
os dedos da mão sobre meu colo, inquieta diante do tema da
conversa. — Ontem, Kale entrou no assunto do por que me mostrei
tão interessada no diário. Menti. Não completamente, é claro, mas
deixei o ponto mais importante de lado.
Me lembro do choque que tomou meu corpo diante da
pergunta inesperada, e de todas as engrenagens do meu cérebro
que tive que obrigar a trabalhar em busca de um caminho para
desviar do assunto.
O que Howard pensaria sobre mim se soubesse que me
aproximei dele para usá-lo, de certa forma? O que pensaria se
soubesse que, na louca busca pela minha promoção no trabalho, fui
capaz de enganá-lo?
— É uma pena que não tenha dado certo — diz Eve. — Teria
sido uma excelente matéria. Chamativa, com certeza.
Dou de ombros, indiferente em relação a isso.
Abigail me demitiu. Mesmo que eu saiba que Eve tem razão,
pensar nisso agora não mudaria nada.
Volto a segurar minha caneca de café, dando mais um gole
enquanto observo Wade tirar o celular do bolso da calça de moletom
antes de verificar algo na tela e logo levar os dedinhos de escritora a
ela, enviando uma mensagem.
— Preciso ir — avisa minha melhor amiga, se levantando.
Seus olhos se voltam para mim, que permaneço sentada. —
Brandon quer ir se despedir dos pais no aeroporto. Eles estão indo
passar algumas semanas na Austrália.
— Tudo bem. — Meus lábios se repuxam um pouco para cima.
Eve também sorri enquanto se abaixa para me abraçar, se
despedindo.
— Foi bom falar com você. Eu estava com saudades. — É o
que ela diz. Fecho os olhos, a apertando mais forte contra mim
antes de soltá-la. — Estou feliz por você estar bem.
— Também estou feliz por te ver bem — comento, repleta da
mais pura e genuína sinceridade.
Em toda minha vida, Eve Wade foi a única amiga sincera que
tive ao meu lado. Como uma garota que cresceu no Upper East
Side, estudando em uma escola com uma altíssima mensalidade,
cercada por adolescentes de narizes em pé e falsidade
transbordando o corpo, é bom finalmente ter encontrado alguém
como ela para chamar de amiga.
Nossa amizade está longe de ser perfeita, mas sei que sempre
a terei do meu lado.
Para receber abraços ou puxões de orelha.
Não importa o que aconteça.
Cruzando as pernas e tomando mais um pequeno gole de
café, assisto Eve parar em frente à porta e levar as mãos à
maçaneta. Mas quando ela a gira, tornando o ranger da porta se
abrindo audível, por mais que baixinho, e me deparo com a figura de
estatura alta parada do outro lado, com ombros relaxados,
cabisbaixo e com o desapontamento tomando o verde dos olhos,
praticamente cuspo o café de volta na caneca, a afastando dos
lábios imediatamente.
— Ah, oi, Howard. — É o que uma Eve sorridente diz antes de
passar por ele e deixar meu apartamento, atravessando o corredor
em alguns passos até a porta de Brandon e Kale.
Quando percebo que ela já chegou à casa deles e ouço a
porta batendo, pouso a caneca no braço do sofá, ao meu lado, e
deslizo os olhos até Kale, sentindo meu corpo todo tenso diante de
sua expressão.
Me empertigando, pigarreio antes de questionar, tentando usar
meu tom mais natural possível:
— Há quanto tempo está aí?
Howard permanece em silêncio ao atravessar a porta, a
fechando atrás de si antes de se virar para mim, cruzando os
braços. De repente sou tomada por uma pontada de desespero ao
vê-lo tão sério, como se houvesse algo errado.
— Mais do que eu gostaria. — É o que responde.
Suspirando, passo as mãos no rosto, já ciente do motivo pelo
qual está tão estranho.
— Ouvi o que você contou à Eve, se é isso o que quer saber
— Kale esclarece antes que eu possa perguntar, sua voz saindo
séria. — Estava prestes a bater na porta quando ouvi meu nome ser
jogado na conversa. Você e a Wade não falam muito baixo, sabia?
Me levanto no mesmo instante, pronta para encontrar uma
maneira de consertar as coisas.
— Eu... Eu posso explicar...
Ele faz que não com a cabeça enquanto estende a palma da
mão no ar, na minha direção, me pedindo para parar.
— Por favor, Campbell. Não quero ouvi-la me dizendo que se
aproximou de mim apenas para me usar — Kale fala, sua voz e
seus olhos transparecendo toda sua dor e desapontamento.
De repente me sinto a pior pessoa do mundo.
— Não foi apenas por isso — me apresso em explicar, o
desespero para ser ouvida presente em minha voz. — Juro. O que
te falei ontem era verdade. Eu realmente afastei o Brandon porque
tinha uma queda por você. Realmente sempre quis me aproximar de
você. Não foi só por conta do diário que me tornei próxima a você,
Howard.
Kale solta uma risada amarga, beirando ao cinismo.
— Ouvi você contando à Eve, Jessie — ele cospe as palavras
na minha direção. Sua dor se faz presente em cada ruga em seu
rosto, todas formadas pela decepção que sente por mim neste
momento. Meu coração se parte dentro do peito, me quebrando por
inteira. — É a vida do John naquele diário. E você queria usá-la a
seu favor. Me desculpe, Campbell, mas tolero muitas coisas, menos
mentiras ou querer usar alguém para benefício próprio. E, querendo
ou não, essas foram as duas coisas que você fez comigo! — Ele
passa as mãos no rosto, soltando um fraco riso desapontado. — Eu
te perguntei ontem mesmo quais foram seus motivos. E você
mentiu. — Kale volta a me olhar, chacoalhando a cabeça levemente
em negação. — Você escolheu mentir, Jessie.
Meu peito dói diante da cena. Poderia muito bem considerar
suas palavras e gestos como um total exagero, mas tudo o que já o
ouvi dizendo volta a minha mente como uma verdadeira enxurrada.
Kale Howard assiste todas as pessoas que importam em sua vida
irem embora desde os dois anos de idade. E agora ele está se
sentindo traído.
Se sentindo traído por mim.
Ele passa as mãos no rosto novamente, exasperado, e então
se vira para mim, me encarando de uma maneira que faz os milhões
de cacos quebrados do meu coração se partirem ainda mais.
— Você só pensa em provar quão capaz é no seu trabalho,
Jessie — diz, as duras palavras me atingindo com toda a força. — E
estava disposta a me usar para conseguir a merda de uma
promoção na revista. — Kale solta uma risadinha amarga, passando
a palma da mão na testa. — Pode não ter sido só por conta do
diário, mas foi isso o que te fez tomar a iniciativa. E para mim já é o
suficiente.
— O suficiente para quê? — questiono, sem forças, a voz
saindo baixa.
— Para te dizer que estou desapontado com você. — Ele
suspira demoradamente, fechando os olhos.
Permanecendo a passos largos de distância, nenhum de nós
move um músculo sequer por alguns segundos. O silêncio toma o
cômodo antes de Kale abrir os olhos e se virar, sem dizer mais uma
única palavra, visando se aproximar da porta.
No mesmo instante, saio apressada em sua direção, sequer
ligando quando bato o dedinho do pé contra a mesinha de centro.
Antes de dar a chance necessária para que Howard leve a mão até
a maçaneta, seguro seu cotovelo, o impedindo.
Kale se vira para mim, hesitante. Erguendo o rosto
minimamente, eu encontro o tom esverdeado das suas íris
machucadas, repletas de desapontamento.
— Sinto muito — digo, carregada da mais pura sinceridade, a
voz saindo desesperada. — Eu... Eu sinto muito.
Howard apenas faz que sim com a cabeça, sem pronunciar
uma única palavra.
Ofegando, cansada e desesperada, encosto minha testa em
seu peito, me abaixando um pouco devido aos 4 centímetros que
diferenciam nossas alturas.
— Por favor, fala alguma coisa — sussurro, fechando os olhos,
sentindo as lágrimas começarem a se formar. — Por favor...
Percebo Kale engolir em seco antes de, finalmente, me
responder:
— Não consigo — sua voz sai fraca. Ergo a cabeça no mesmo
instante, encontrando seu olhar novamente. Ele trava o maxilar,
como se precisasse usufruir de toda a força presente dentro de si
antes de continuar: — Porque estou apaixonado por você,
Campbell. E não sou capaz nem sequer de olhar para seus olhos
agora.
E então, Kale se vira, indo até a porta, por onde sai no mesmo
instante.
E eu permaneço aqui. Parada. Tentando processar suas
palavras enquanto sinto o coração doer diante delas.
Enquanto me sinto horrível por não ter pensado nas
consequências dos meus atos e em quanto egoísta estava sendo
apenas ao pensar em realizá-los.
Atravesso a lanchonete, a sola dos meus tênis batendo contra
o piso quadriculado, a caminho de uma das únicas duas mesas
ocupadas por clientes. Segurando a bandeja com dois
hambúrgueres vegetarianos e uma porção extragrande de batatas
fritas, me aproximo da mulher de cabelos loiros e pele branca e da
garotinha que se senta junto a ela, que aparenta ter
aproximadamente 10 anos, com os cabelos igualmente loiros presos
em um rabo de cavalo alto.
As duas sorriem para mim em forma de agradecimento, e me
forço a dar um mergulho fundo dentro de mim, buscando qualquer
mínimo resquício da alegria que existia no meu corpo até ontem.
Consigo que meus lábios se repuxem um pouco para cima antes de
girar nos calcanhares, voltando a caminho do balcão, onde um
Brandon desocupado me espera com uma feição tediosa marcando
o rosto.
Acontece que mesmo com a ausência de Jessie, que ontem,
após a nossa discussão, mandou uma mensagem para meu melhor
amigo, avisando que não conseguiria trabalhar hoje por culpa de
uma dor de barriga provavelmente inventada, eu e Brandon estamos
praticamente de mãos abanando, feito completos desocupados,
extremamente diferente da forma que agimos nos últimos dias
diante da lanchonete lotada.
Estou começando a pensar que sempre que algo passa a dar
errado na minha vida, todo o resto o acompanha.
Brigar com a garota pela qual estou apaixonado em uma noite
e ter o The Rock’s vazio no dia seguinte. Que combo excelente!
— Você está bem? — É o que Brandon pergunta quando
atravesso o balcão, me juntando a ele.
Seus olhos preocupados se fixam em mim quando deixo a
bandeja sobre o mármore, ouvindo o tilintar do objeto metálico o
encontrando.
— Não — respondo, sem rodeios. — Estou na merda.
Ontem, quando voltei para casa, Brandon e Eve estavam
saindo para se despedirem do senhor e senhora Houston no
aeroporto, antes que embarcassem para a Austrália. Não foi
necessário que uma única palavra escapasse pela minha boca para
que meu melhor amigo percebesse que havia algo de errado.
— Conversamos quando eu voltar. — Foi o que ele disse antes
de fechar a porta, me deixando sentado no sofá da sala, lutando
contra meus próprios pensamentos e a vontade avassaladora que
senti de bater desesperadamente na porta de Jessie e beijar seus
lábios no instante em que ela a atendesse.
Foram necessárias duas horas de repetidos episódios de
“Brooklyn Nine-Nine” para me distrair. O que não deu totalmente
certo, porque, pela primeira vez, não consegui focar meus olhos na
tela e desfrutar a companhia agradável de Jake Peralta.
Nem mesmo em um dos episódios do roubo de Halloween.
— Sabe, cara. — Brandon me fisga para longe dos meus
pensamentos, pousando sua mão em um dos meus ombros. — O
movimento por aqui está uma merda. Você pode ir embora, se
quiser. Acho que vai te fazer bem. Está precisando espairecer a
cabeça um pouco.
Me viro para ele, encontrando seus olhos, que exalam a mais
genuína empatia.
— Tem certeza? — questiono, recebendo um aceno certeiro de
cabeça em resposta. — Tudo bem.
Me afastando alguns passos do mármore, levo as mãos até as
fitinhas do avental, desamarrando-as antes de tirá-lo pela cabeça, o
deixando em uma das gavetas do balcão, onde ficam algumas das
tralhas que temos preguiça de guardar.
— Valeu por isso — agradeço ao meu melhor amigo, dando a
volta no balcão. — Fico te devendo uma.
— Imagina. — Brandon apoia os cotovelos na bancada,
deixando que o sorrisinho de quem está prestes a dizer alguma
gracinha tome conta de seu rosto. — Apesar de você não topar
ouvir Taylor Swift comigo, ainda sou seu irmão.
Lanço um dedo do meio em sua direção antes de dar as
costas e sair a caminho da porta, ouvindo a fraca risada que meu
melhor amigo solta atrás de mim.
E, quando a brisa de Nova York beija minha pele e a porta de
vidro da lanchonete bate atrás do meu corpo, me pego sorrindo
depois de horas emburrado.
Acho que esse é o efeito que Brandon Houston tem sobre as
pessoas, no fim das contas.

Chutando os sapatos para longe dos meus pés, fecho a porta


do meu apartamento, tateando a parede em busca do interruptor,
iluminando a sala que até então contava apenas com a luz do sol
que entra pelas cortinas fechadas.
Enfiando a mão no bolso da calça de moletom, enquanto meus
pés me levam até o balcão da cozinha, pego o celular e a carteira e
os deixo ali. Bocejando preguiçosamente, vou até a geladeira,
abrindo a porta metálica e tirando a primeira latinha dos
refrigerantes peculiares de Brandon que encontro, a abrindo logo
em seguida, dando o primeiro gole.
Não sou muito fã de bebidas gaseificadas, diferente do meu
melhor amigo, que é fissurado pelas mais doce que existem.
Faço uma careta ao sentir o líquido sabor tutti-frutti descer pela
garganta, extremamente doce e enjoativo.
De volta ao balcão, puxo um dos banquinhos, ouvindo o ranger
baixinho de seus pés se arrastando pelo piso. Alcançando o diário
do John, que deixei sobre o mármore por algum motivo após me
despedir dos pais de Brandon quando vieram jantar, abro nas
páginas onde paramos. Na morte de Celeste Laurent.
E então, deixando que uma careta tome meu rosto ao dar mais
um gole no refrigerante horrível, começo a ler.

23 de março de 1961, às 19 horas e 3 minutos.

Hoje completam 9 anos.


Passei todo esse tempo sem escrever aqui. É difícil para mim
folhear as páginas deste diário. É difícil ler e reler o nome dela
diversas vezes enquanto minha mente revive todos os momentos
relatados nessas páginas.
Nunca contei a vocês, mas Celeste uma vez me disse que era
apaixonada por dançar. Ela sempre quis que eu me juntasse a ela
na sala, afastasse os móveis, ligasse uma música e a rodopiasse
por aí. Mas eu nunca tive muito jeito para a coisa, então neguei
todas as vezes, soltando um risinho nervoso e recebendo uma
feição tediosa de volta, vinda dela.
Hoje me arrependo profundamente de ter sido tão cabeça-dura.
Se pudesse ter apenas uma chance de voltar ao passado, não
pensaria duas vezes antes de segurar sua mão, a puxar para mim e
dançar junto a ela até meus pés incharem e meu corpo dizer chega.
Passei meu dia com Florescer hoje.
Me deitei em sua sombra, sobre a grama verde.
E nós dois choramos juntos. Rodeados de flores amarelas.

13 de julho de 1964, às 10 horas e 26 minutos.

Todo mundo morre.


Essa é a única certeza que temos na vida.
Por isso digo que a melhor coisa que podemos fazer é nos arriscar.
Mesmo se estivermos com medo ou sem a menor noção do que
estamos fazendo. Devemos mergulhar de cabeça e tentar, seja qual
for a ocasião.
A vida é muito curta para colecionar arrependimentos.
E hoje me pego pensando naqueles 6 meses que eu e Celeste
passamos separados, até nos reconciliarmos após a morte de
Joseph.
E acho que esse é o maior arrependimento que carrego comigo.
Se eu pudesse dizer algo para o John da época, lhe diria para voltar
atrás imediatamente. Lhe diria para aproveitar cada instante ao lado
da mulher que ama.
Porque o amor é algo mágico.
E ninguém sabe o que o futuro nos reserva.
Durante todos esses anos, senti como se Celeste Laurent tivesse
plantado as mais belas flores em volta das mais profundas cicatrizes
que carrego.
E agora sinto como se todas essas coloridas e perfumadas flores
estivessem mortas.
A observo pela vidraça do restaurante.
Enquanto carrega um olhar distante, seus dedos tamborilam a
madeira da mesa e a coluna permanece perfeitamente ereta,
acompanhada pelos ombros tensos, que transparecem todo seu
nervosismo. Uma leve camada de maquiagem cobre seu rosto,
sobressaindo apenas no vermelho forte do batom em seus lábios.
Ela afasta uma das mãos da mesa e a leva até os escuros cachos
de cabelo que emolduram o rosto, fazendo com que as duas
pulseiras prateadas em seus pulsos cintilem uma contra a outra
sobre a pele negra retinta.
Um sorriso inevitável se molda em meus lábios ao perceber
seus lindos cachos.
Desde pequena, Clarice Campbell vivia alisando o cabelo. Era
uma necessidade. A única forma de fazê-la se sentir bonita de
verdade.
Fico feliz em saber que, aparentemente, isso mudou.
Os carros passam na rua atrás de mim, e pedestres me
cercam por todos os cantos. Permaneço a observando fixamente,
perdendo a noção do tempo enquanto a encaro.
Hoje de manhã, quando peguei o celular após abrir os olhos e
fui checar minhas mensagens, esperando ter alguma vinda do Kale,
e me deparei com minha irmã avisando que estava na cidade, fui
preenchida por um turbilhão desconexo de sentimentos. Medo,
frustração, esperança, desapontamento, saudade e raiva.
Os pensamentos invadiram minha mente feito desesperadas
enxurradas, trazendo à tona todas as memórias que mais tento
afastar. O jantar, quando contei aos meus pais sobre meus planos e
os desapontei. Todas as brigas que tivemos, todos os momentos em
que eles tentaram me convencer a mudar de ideia e quando me
disseram que não me ajudariam mais financeiramente e
praticamente me expulsaram de casa, apenas por meu sonho ser
diferente do que eles planejaram para mim.
Revivi a dor de todos esses momentos.
E me lembrei de que Clarice, minha irmã, a que sempre esteve
comigo em todas as ocasiões, não fez nada para me confortar ou
mostrar estar do meu lado.
Me lembrei de como isso me machucou na época.
Mas também me senti esperançosa e contente por poder vê-la
depois de tanto tempo e ter a chance de consertar tudo aquilo que
ficou pendente entre nós.
E é mantendo o foco nesse pensamento que, endireitando a
postura e respirando fundo, tomo a coragem necessária para dar os
primeiros passos em direção à entrada do restaurante que sei que
terá mais zeros na conta do que sou capaz de pagar.
Passo pela porta, sorrindo para o recepcionista usando um
chapeuzinho assim que ele me recebe da maneira mais formal
possível. Mark, o nome escrito no broche pregado ao seu paletó,
atravessa comigo pelo restaurante praticamente vazio, me guiando
até a mesa que minha irmã ocupa.
A cada passo que dou, o nervosismo avassalador dentro de
mim se intensifica. Sinto o coração em disparada dentro do peito,
acelerado como nunca. Ou talvez ele esteja parado. Não sei ao
certo. É difícil pensar com lucidez na situação em que me encontro
e...
Os olhos castanhos de Clarice me encontram.
De repente tenho certeza de que meu coração parou de bater.
Estou imóvel. Completamente paralisada.
E sei que nem mesmo meus pulmões se mexem, pois estou
sem respirar desde que comecei a seguir Mark por este restaurante.
Não imaginei que ficaria tão ansiosa assim. Acredito que nem
Clarice, pois minha irmã sequer se levantou de mesa até então. Seu
olhar permanece focado em meu rosto, os lábios separados, a
expressão petrificada de puro choque.
Estamos juntas. Depois de tanto tempo, estamos juntas de
novo.
E eu estaria mentindo se dissesse que esperava que nosso
reencontro fosse acontecer tão cedo.
Como se pudesse ler meus pensamentos, minha irmã mais
velha deixa que um sorriso emoldure seus lábios. Quando me dou
por mim, também esboço uma linha feliz em meu rosto.
Pelo canto de olho, vejo Mark dar as costas, se afastando,
como se sentisse que este é um momento em que devemos ficar
sozinhas.
O ranger da cadeira da minha irmã sendo arrastada
abruptamente pelo piso invade meus ouvidos. Clarice se levanta,
ainda sem dizer uma única palavra, só deixando que o coração
sinta, assim como eu. Quando ela se aproxima de mim de braços
abertos, me chamando para si, e quebro a pequena distância entre
nós, a abraçando, sinto meus olhos se encherem de lágrimas,
mesmo que estejam fechados.
Me imaginei vivendo esse momento muitas vezes. E nenhum
deles conseguiu ser tão especial quanto o que estou vivendo agora.
— Senti sua falta — ela é a primeira a se pronunciar, sua voz
saindo fraca, quase um sussurro. Clarice me aperta mais forte
contra si, como se para se certificar de que estou mesmo aqui. —
Sinto muito, Jessie. Meu Deus, eu sinto tanto! Me desculpa por não
ter feito nada. Eu devia ter dito algo. Eu devia... Sei que se fosse ao
contrário você me defenderia com unhas e dentes. Eu só não... —
Minha irmã deixa a frase morrer. Seus braços ainda me abraçando.
— Está tudo bem — sussurro, falando pela primeira vez.
Porque, apesar de ter ficado ressentida com o fato de Clarice não
ter levantado um único dedo para se mostrar do meu lado, eu a
entendo, de certa maneira.
Eu a entendo de verdade.
Sei que ela não quis decepcionar nossos pais.
Porque, quando se cresce em um lar onde as pessoas ao seu
redor esperam que dê o melhor de si a cada dia, sem jamais
desapontar, sendo um exemplo para tudo e todos, você jamais quer
sentir que falhou. Porque sabe o que vai ouvir. Sabe que,
independentemente de todas suas notas boas na escola e de tudo o
que fez para agradá-los, se desapontá-los uma única vez, por
menor e mais rápida que seja, anulará todo o resto das coisas
positivas.
E viver com meus pais é assim. Diariamente. É sufocante.
Como se milhares de dedos estivessem apontados para seu rosto
durante todas as 24 horas do dia, apenas esperando por um deslize
para que possam te julgar e dizer que falhou.
E Clarice Campbell e falhas nunca se encaixariam na mesma
frase.
— Não está nada bem. — Minha irmã se afasta, me permitindo
observar seu rosto de perto pela primeira vez. Lágrimas se formam
em seus olhos castanhos. — Me sinto péssima. Passamos muito
tempo sem nos vermos. Eu podia ter tentado evitar isso.
Balanço a cabeça em negação no mesmo instante.
— Não, você não podia. — Aperto seus ombros, buscando
confortá-la. Temos praticamente a mesma altura, e é estranho não
precisar levantar ou abaixar a cabeça para encará-la nos olhos.
Quando éramos crianças, ouvíamos muito que não era comum que
garotas fossem altas como nós. Eu costumava mandar todas as
pessoas que diziam isso à merda. Amo minha altura. — Você está
morando em Massachussetts, nos arredores de Boston, e está
estudando em Harvard. Não nos veríamos com frequência de
qualquer maneira. Você tendo feito algo para ficar do meu lado ou
não. E sabemos que nossos pais também não te dariam ouvidos.
Você teria só mais um acréscimo à lista de erros que nós
cometemos.
Ela assente devagar enquanto afasto minhas mãos de seus
ombros. Minha irmã leva a manga da blusa branca que usa aos
olhos, os enxugando antes mesmo que as lágrimas possam ter a
chance de cair. Após isso, afasta a mão do rosto e me encara,
exibindo um fraco sorriso em seus lábios pintados de vermelho.
— Fico feliz que esteja bem, mesmo que aparentemente —
minha irmã diz, arrancando uma fraca risada dos meus lábios. —
Você está linda! Amei o cabelo novo.
Só então me dou conta de que, assim como eu não sabia que
Clarice tinha aceitado seus cabelos cacheados, ela também não
sabia que eu tinha feito mechas azuis nas pontas dos meus.
— Obrigada — respondo, sorrindo. — Você também está
maravilhosa com seus cachos.
Ela sorri, me puxando para um abraço rápido antes de
caminharmos em direção à mesa. Percebendo que voltamos a nos
sentar, Mark, que pelo visto permaneceu de olho em nós duas
durante todo o tempo, se aproxima da mesa, trazendo consigo dois
cardápios, que logo coloca em frente a nossos corpos.
— Caso precisem de algo, podem me chamar. Um garçom já
está a caminho para atendê-las — revela ele, as mãos juntas atrás
das costas, sorrindo. Assim que eu e minha irmã agradecemos em
uníssono, Mark sai, fazendo seu trajeto pelo piso extremamente
claro em direção à entrada do restaurante, onde espera para
recepcionar novos clientes.
Finjo focar meus olhos nas linhas e fotos do cardápio, mas
falho. Um sorrisinho animado se forma em meus lábios, juntamente
com a ansiedade que me invade. Clarice e eu passamos tanto
tempo separadas que sinto como se precisássemos conversar feito
duas tagarelas para colocar o papo em dia.
Minha irmã parece pensar a mesma coisa, pois solta o
cardápio na mesa sem ao menos levar o tempo necessário para lê-
lo e me encara.
— Você gosta de salada, não gosta? — questiona ela,
inclinando a cabeça um pouco para o lado. Sorrindo, meneio em
concordância. — E de suco de laranja? — Assinto novamente. —
Ótimo! — Inquieta, Clarice recolhe os cardápios, os colocando um
sobre o outro na ponta da mesa. Em seguida, apoia os cotovelos na
estrutura de madeira, sustenta o rosto com as mãos e me encara
com seus ansiosos olhos castanhos.
Solto uma risadinha, já sabendo que estou prestes a ser
bombardeada de perguntas.
— Quero saber tudo sobre sua vida — minha irmã esclarece.
— Todos os mínimos detalhes.
E é então que, me empertigando na cadeira e soltando um
longo suspiro, eu a conto tudo. Desde minha ex-chefe ranzinza, a
faculdade, o diário, ter conhecido Eve, minha demissão, até meu
novo trabalho como garçonete na lanchonete do cara por quem
estou apaixonada e que agora não quer me ver nem pintada de
ouro.
Sorrio algumas vezes diante de todas as expressões diferentes
que estampam o rosto da minha irmã. E fico feliz em perceber que
ela escuta tudo com atenção.
Se importando verdadeiramente.
— Mas estou bem. — É a maneira que encontro para finalizar.
— Estou esperançosa. Sei que as coisas vão se ajeitar e sinto que
existe algo maior esperando por mim.
Um sorriso se molda nos lábios vermelhos de Clarice, e ela
desliza a mão sobre a mesa até encontrar a minha, a segurando em
forma de demonstrar apoio.
— Fico feliz em ouvir isso — diz. — Quero que saiba que pode
me ligar sempre que achar necessário. Não estou nem aí para o que
mamãe e papai vão dizer a partir de agora. Você é minha irmã,
Jessie Campbell. E não vou mais te deixar na mão. Nunca mais.
E é então que, sorrindo feito uma verdadeira boba e deixando
que um turbilhão de emoções me invada, aperto a mão dela com
ainda mais força contra a minha.
Porque agora sei que somos nós duas de novo.
E sei que, contanto que esteja junto a mim, Clarice não dá a
mínima para a quantidade de dedos que nossos pais apontam para
ela.
A porta dupla do elevador finalmente se abre, me permitindo
sair da claustrofóbica caixa metálica. Vasculhando minha bolsa em
busca das chaves — que se resumem a do meu apartamento e uma
que dá acesso à casa de Eve, que ela me deu em caso de
emergência —, sequer olho para onde piso, deixando que um vinco
concentrado se forme em minha testa enquanto a procuro. Quando
meus dedos encontram meu chaveiro colorido e o puxo para fora da
bolsa, finalmente levantando o olhar para o corredor, paro de andar
no mesmo instante.
Meus pés se cravam no chão, e sinto o coração entrar em
disparada diante do que vejo.
Sentado ao lado da minha porta, com as costas encostadas na
parede e as longas pernas esticadas, Howard traz seus dois
profundos olhos esverdeados até os meus, deixando que um
sorrisinho triste quase imperceptível se forme em seus lábios.
Suspirando pesadamente, volto a andar, jogando as chaves de
volta à bolsa enquanto me aproximo dele. O som dos meus coturnos
pretos batendo contra o chão é tudo o que consigo ouvir diante do
silêncio ensurdecedor que preenche o corredor por inteiro.
Assim que paro a seu lado, permaneço de boca fechada ao me
encostar à parede e deslizar até o chão. Seu perfume masculino e o
cheiro de loção de barbear invadem minhas narinas imediatamente,
e sinto como se não os sentisse há anos, mesmo que faça menos
de vinte e quatro horas que discutimos.
— Ainda estou chateado com você. — Kale é o primeiro a
falar. Com o olhar fixo em seus tênis, sua voz sai carregada pelo
mesmo desapontamento de ontem. Prendo a respiração diante da
confissão, fixando meu olhar em meus sapatos, o imitando. Depois
do dia incrível que tive, não sei se estou a fim de passar por uma
discussão e acabar com toda minha felicidade, apesar de saber que
preciso enfrentar isso de frente e resolver nosso conflito de uma vez
por todas. — Mas acho que não consigo mais ficar longe de você.
Ao ouvir essas palavras saindo por seus lábios, dirijo meus
olhos até os seus imediatamente, me deparando com suas verdes
íris ainda distantes.
— O que quer dizer com isso? — questiono, mas minha voz
sai tão baixa que nem mesmo sou capaz de reconhecê-la.
Estou prestes a repetir, pensando que Kale não me ouviu,
quando ele diz:
— Estou dizendo que, apesar de não ter gostado nenhum
pouco de descobrir que mentiu para mim e não ter concordado com
suas atitudes, todo o resto que sinto por você ainda consegue
sobressair ao meu desapontamento. — Ele traz seus olhos até os
meus. Sinto um choque percorrer cada mínima parte do meu corpo
diante da intensidade em seu olhar. Kale engole em seco, e vejo o
movimento que sua garganta faz, como se sentisse o mesmo que
eu. — Como foi o reencontro com sua irmã?
Franzo a testa diante da repentina mudança de assunto.
— Bom — murmuro, repleta de confusão. — Mas como você
sabe que fui me reencontrar com ela?
Howard ri um pouco, e sinto o coração se acalmar diante do
gesto descontraído.
— Liguei para Eve, e ela me contou — ele confessa. — Estava
batendo na sua porta há um tempo, gritando para que me desse a
chance de conversarmos, achando que estava me ignorando. Foi só
quando o Senhor Lincoln desceu as escadas e disse que te viu
saindo do prédio que me toquei que você não estava me ignorando,
pois sequer estava na sua casa. — Kale faz uma pausa, franzindo o
cenho ao se lembrar de algo. — Acredita que Lincoln tem um coelho
agora? Estava com ele nas mãos.
Rio um pouco, tentando imaginar a cena.
— Espera aí! — peço. — Você gritou por mim e os vizinhos do
oitavo andar te escutaram?
Ele desvia o olhar, e noto um sorriso discreto se insinuando no
canto de seus lábios. Volto a sorrir quando vejo suas bochechas
ganhando um tom mais rosa.
— Talvez — Howard responde, a voz repleta de vergonha.
Solto uma risada, fazendo-o ficar mais vermelho ainda. Kale
enterra o rosto nas mãos, se escondendo, e sinto meu coração
querer transbordar dentro do peito. Ele é adorável.
Inacreditavelmente adorável. E não sei o que fiz para merecê-lo.
Kale Howard sempre faz as coisas parecerem fáceis,
independentemente das circunstâncias.
Fui demitida do lugar onde poderia ter alcançado o emprego
dos sonhos, não vejo meus pais há meses e tenho um
relacionamento péssimo com eles, e até ontem meu peito doía só
de saber que magoei Kale, mas, cá estou eu, rindo com ele no meio
do corredor vazio sem que nossa briga tenha durado nem mesmo
24 horas.
Ele levanta a cabeça, trazendo seus olhos verdes e bochechas
vermelhas na minha direção novamente. Suspirando, Howard
revela:
— Neste momento não sei se quero te jogar de uma ponte por
ser tão engraçadinha ou te beijar.
Sinto um súbito arrepio percorrer o corpo diante da confissão.
— Posso escolher? — pergunto, arrancando uma risada de
Kale em troca.
Meus olhos o seguem enquanto ele se levanta, parando a
minha frente, bem diante dos meus pés. Howard estende uma das
mãos na minha direção, como um pedido silencioso para que eu me
levante e me junte a ele.
— Aonde vamos? — questiono, segurando seus dedos frios,
tomando o impulso necessário para me levantar.
Com um sorrisinho marcando os lábios, ele diz:
— Você vai ver.
A brisa tranquila do anoitecer beija minha pele quando salto do
táxi. A mistura de cores quentes cobre o céu à medida que o sol se
põe, os altos prédios nos cercam, e o piar dos pássaros se
recolhendo para o fim do dia é o som que sobressai entre todos os
outros, inclusive entre os carros que continuam passando na rua
atrás de nós.
Kale me lança um breve sorriso, analisando minha feição
animada e olhos brilhantes antes de segurar minha mão e sair me
puxando parque adentro.
Árvores nos cercam por todos os lados, suas folhas
farfalhando um pouco com o vento leve. Depois de adulta, vim
poucas vezes ao Central Park, mas ainda carrego boas lembranças
da infância, quando as moças que cuidavam de mim, Clarice e
Robert nos traziam para passar algumas tardes aqui. Fazíamos
piquenique e comíamos cachorros-quentes de barraquinhas
escondido dos nossos pais. Era divertido sair da rotina.
— O que estamos fazendo aqui? — É o que pergunto, sem
conseguir afastar o sorriso que rasga o rosto.
Howard para de repente, se virando para mim com um olhar
divertido de quem está aprontando alguma coisa. Quando o vejo
enfiar as mãos no bolso da calça de moletom preta e puxar seu
celular e fones de ouvido para fora, arqueio uma sobrancelha,
desconfiada.
— Por favor, não me diga que me trouxe aqui para meditar na
grama ou ouvir música enquanto corremos, porque não vai rolar —
me adianto, arrancando uma risada dele em resposta. — Sem
chance. Estou de saia e meus sapatos têm salto.
Howard dá um passo à frente, encurtando ainda mais a
distância entre nossos corpos. Levanto um pouco a cabeça para
olhá-lo nos olhos enquanto conecta os fones à entrada do celular.
Soltando um riso fraco, Kale diz:
— Não vamos correr nem meditar, Campbell. — Ele aproxima
um lado do fone do meu rosto, como se pedisse para colocá-lo. O
seguro, esticando o fio conectado ao celular entre nossos corpos, e
deixo que um vinco se aposse da minha testa, demonstrando toda a
confusão que me preenche. — A gente vai dançar.
Praticamente colo as sobrancelhas às pálpebras.
— O quê? — indago, olhando para as pessoas que passam ao
redor. — Tipo, aqui? Aqui no meio?
Kale ri, assentindo enquanto leva o seu lado do fone até o
ouvido. Ele cola seu corpo ao meu, ainda preocupado em não
romper o fio branco do fone, e repito seus movimentos, confusa,
levando meu lado ao ouvido também.
Seus olhos verdes focam na tela do celular por um instante,
dando play em uma música lenta que logo invade meus sentidos.
Kale guarda o aparelho no bolso da calça, sorrindo para mim ao
deslizar as mãos até minha cintura. Como de costume, sinto o
súbito arrepio diante de seu toque, e quando coloco as mãos em
volta do seu pescoço e vejo o sorriso em seu rosto aumentar, é
como se algo derretesse dentro do meu peito. Seus olhos se
enrugam nos cantos, o que deixa seu sorriso parecendo ainda mais
genuíno.
E então me lembro do que estava escrito nas primeiras
páginas do diário do John.
“Ela costumava me olhar, e eu via a maneira como seus olhos
se apertavam, como se estivessem sorrindo. Celeste Laurent foi a
única pessoa no mundo que me olhou como se eu valesse a pena
de verdade. Como se eu fosse uma pessoa decente.”
E deixo que a felicidade tome meu rosto diante desse
pensamento, porque, estar neste lugar, no parque que marcou a
história de John Peter Jones e Celeste Laurent, com um cara por
quem sou perdidamente apaixonada, e vê-lo me olhar da mesma
maneira que Celeste olhava para o grande amor de sua vida, é
muito mais do que eu poderia imaginar viver um dia.
— Estava no diário dele — Kale revela, quase como se
pudesse ler meus pensamentos. Com as mãos firmes em meus
quadris, ele me guia para onde quer que eu me mova.
Enrugo o nariz, me esforçando em seguir seus passos.
— Como assim?
Howard arqueia uma sobrancelha.
— Promete não ficar brava? — pergunta ele. Rindo fraco, faço
que sim com a cabeça. — Eu meio que li dois anos sem você depois
da nossa briga. John disse que Celeste sempre tentou levá-lo para
dançar, mas ele nunca aceitou. Disse que era um dos seus
arrependimentos.
Meu coração se aperta dentro do peito.
Uma mãe com duas crianças passa ao nosso lado, nos
encarando com um olhar confuso.
— É por isso que estamos aqui, dançando como verdadeiros
doidos em meio a um parque no fim do dia? — pergunto, recebendo
mais um dos sorrisinhos de Kale que tanto amo.
— É. — Ele me puxa para mais perto, apoiando o queixo no
topo da minha cabeça. — E porque também precisávamos fazer as
pazes.
Sorrio, encostando a cabeça em seu peito, inalando seu
perfume.
— Preciso confessar que estava com medo de pisar no seu pé,
Howard — revelo, ouvindo a risada fraca que ele solta em resposta.
— E que ainda não tenho ideia do que estou fazendo, mas acho que
gosto de dançar.
— Você está se saindo bem — comenta ele. — Não tão bem
quanto eu, é claro, mas está... aceitável.
Solto uma risada fraca, afastando o rosto para encará-lo
enquanto dou um leve tapa em seu braço.
— Como pode ser tão irritante, Howard?
Kale dá de ombros, franzindo os lábios, se contendo para não
sorrir.
— Não sei. — Ele falha, deixando que uma linha divertida e
fina se revele em seus lábios. — Pergunta para a Jessie Campbell.
Aquela mulher é louca por mim.
Rindo, dou outro tapa fraco em seu braço antes de voltar a
encostar a cabeça em seu peito novamente, deixando que nossos
corpos se movam juntos, no ritmo da música que sai pelos fones.
Fechando os olhos, solto um fraco suspiro.
Porque, mesmo que tenha dito na brincadeira, ele tem razão.
Jessie Campbell é completamente e desesperadamente louca
por Kale Howard.
Afundo a colher na tigela de cereal quando volto para minha
cama, me sentando sobre as pernas cruzadas ao lado do corpo
esguio de Jessie, que, deitada, vestindo seu pijama com estampa
de elefante, com um vinco concentrado formado na testa, segura o
diário do John e desliza os olhos pelos dois últimos anos que li sem
ela.
— Isso é triste — comenta, se movimentando para se sentar
também, sua voz ainda saindo sonolenta por ter acabado de
acordar.
Sinto o colchão se mexer sobre mim enquanto levo a primeira
colherada de cereal à boca, o mastigando em seguida.
— Já leu? — pergunto de boca cheia assim que vejo seus
ansiosos olhos me encarando. Sorrindo, ela faz que sim com a
cabeça, levando uma das mãos ao meu rosto e a passando
levemente sobre a bochecha, como se limpasse uma sujeirinha que
ali estava.
— Restam poucas páginas, Howard — avisa, seus lábios se
moldando em um bico triste enquanto ergue o diário de capa preta
nas mãos, me permitindo enxergar as poucas folhas que ainda não
lemos. — Espero que ele tenha morrido feliz.
— Eu também — comento, sentindo o coração se apertar um
pouco.
Em silêncio, Jessie se aproxima de mim, e seguro a tigela de
cereal com apenas uma das mãos, levantando o braço livre para
que ela passe a cabeça por ele e se deite em meu colo. Jessie
dobra as pernas, apoiando o diário aberto nelas. E é então que,
soltando um demorado suspiro, ela vira a página e começamos a
ler.

8 de julho de 1977, às 11 horas e 34 minutos.

Este é o fim desta história, caro leitor.


Se chegou até aqui, saiba que sou grato por ter acompanhado
minha vida desde os meus 35 anos. Nesses últimos anos foi difícil
sentar para escrever, confesso, mas isso não me impediu de reler
alguns relatos que escrevi.
Vivo cada dia com saudades dela. Nunca senti uma dor tão forte em
toda a minha vida. Ainda estou pela metade, pois o que me
completava se foi há 25 anos.
Sinto que nos reencontraremos em breve. Sinto que, onde quer que
esteja, Celeste está a minha espera. E sabe que estou chegando.
Estou com 82 anos agora. Sei que não me resta mais muito tempo.
E estou bem com isso.
Sinto que já vivi tudo o que estava escrito na minha história, e o que
vier a partir daqui é bônus.
Espero que você, caro leitor, independente de quem seja, cumpra a
missão e passe este diário para frente. Escreva seu nome nas
primeiras folhas e o entregue a alguém especial, ou até mesmo a
um estranho que encontrar passando pela rua. Sonho com minha
história alcançando inúmeros corações.
E Marcus, meu filho, se algum dia minhas palavras chegarem até
você, saiba que sinto sua falta. E que fiquei devastado com a morte
de Tandara, há três anos. Eu não sei onde você está, filho, mas
ainda sonho em te encontrar antes de partir.
Faz anos que não nos falamos.
Gostaria de ter sido um pai melhor para você. Gostaria de ter te
dado orgulho. Não sei quando falhei com você, e nem quando nossa
relação começou a desandar desta forma, mas ainda me lembro de
quando você era pequeno. Me lembro de te ver correndo para me
alcançar e segurar minha mão quando eu andava rápido demais.
Lembro do toque frio dos seus dedinhos sobre minhas mãos
gigantes. E lágrimas cobrem meus olhos diante dessas memórias
todas as vezes.
Espero, filho, do fundo do coração, que, seja lá onde você estiver
agora, se encontre feliz.
Porque você, meu pequeno Marcus Roche Jones, merece toda a
felicidade presente neste mundo.
E você, caro leitor, saiba que, assim como a meu filho, também
desejo a você tudo o que existe de bom nessa vida.
Espero que vá. Voe. Que se reinvente, cresça e floresça quantas
vezes forem necessárias.
E que nunca, jamais, nem sequer por um segundo, se envergonhe
do que existe além da ponta de seu iceberg.
Porque você, assim como eu, só é quem é hoje por culpa de todas
as turbulências que enfrentou durante a vida. Por todos os erros e
julgamentos pelos quais teve de passar.
Então, sim, me considere o vilão, se quiser.
Sinto que foi como a maioria me taxou quando começou a ler este
diário.
Mas antes conheça o que existe além da ponta do meu iceberg.
Conheça o verdadeiro John Peter Jones.
Eu.
O homem que escreveu todos esses relatos apenas para te ensinar
que borboletas não podem sentir medo de voar.
E que, como dizia minha amada Celeste Laurent, todos devemos
transformar nossas mais profundas e dolorosas cicatrizes em flores.

Com todo meu amor, John Peter Jones.

1982.

John Peter Jones faleceu aos 87 anos, no dia 3 de dezembro de


1982, às 14 horas e 38 minutos.
Causa: Causas naturais.
Assinado: Doutor Oslen.
Levo uma das mãos aos olhos assim que termino de ler.
Dentro do peito, meu coração permanece acelerado. O silêncio
abraça o quarto, e o único som que é possível escutar é a fungada
leve que Jessie dá, com a cabeça ainda deitada em meu colo. Me
inclino para observar seu rosto, me deparando com uma lágrima
solitária escorrendo por sua bochecha. Jessie passa a palma da
mão por ela, a secando enquanto segura o diário fortemente com a
outra.
— Acho que ele morreu sozinho. — É o que ela diz, a voz
saindo embargada.
Deixo a tigela de cereal quase vazia sobre o colchão, sequer
ligando para o caso de ela cair e molhar minha roupa de cama de
leite, e me inclino para frente, depositando um leve beijo em sua
testa. Campbell passa para a próxima das poucas páginas que
restam, mesmo ciente de que estará vazia. Quando a vejo deslizar
um dos dedos pelo branco da folha, franzindo o cenho em sinal de
confusão, pergunto:
— O que foi?
O vinco presente na testa de Jessie se intensifica.
— Estou sentindo algo volumoso. — É o que ela comenta.
Campbell inclina a cabeça um pouco para trás, trazendo seus olhos
acesos até os meus. — Acho que tem um envelope aqui, Kale.
E é então que, feito dois desesperados, nos sentamos
abruptamente, de maneira correta na cama. Eu me viro para o lado
e Jessie se vira para mim, também se sentando sobre suas pernas
cruzadas, colando nossos joelhos.
Deixando o diário entre nossos corpos, seus dedos rápidos
folheiam a última dezena de páginas em branco, parando
subitamente ao chegar à última.
Campbell estava certa.
Tem mesmo um envelope colado a ela.
Sinto o coração entrar em disparada dentro do peito. Minhas
mãos começam a suar, transparecendo todo o nervosismo que me
preenche. De repente se torna difícil respirar, e preciso usar toda a
força existente dentro de mim para não desmaiar neste instante.
Porque, diante do que meus olhos encontram, um emaranhado
confuso de pensamentos cruza minha mente.
E pela expressão que se estampa no rosto de Jessie, percebo
que ela também está tão confusa quanto eu.
Porque, à minha frente, colado à última página do diário escrito
por um homem que morreu há 39 anos, o envelope branco tem
rabiscado em letras grandes e perfeitamente legíveis:

Para Kale Howard.

— Você tem certeza de que não conhecia o cara que te


entregou o diário? — É o que Jessie pergunta pela milésima vez,
recebendo a mesma resposta que dei em todas as outras.
— Não. — Meus olhos levemente arregalados lançam uma
breve olhada ao envelope, ainda grudado à página. Preenchido pela
confusão, levo as mãos ao rosto, as passando por ele, respirando
fundo. — Quer dizer, ele estava encapuzado, eu não cheguei a ver
seu rosto. Mas não conheço muitas pessoas, Campbell. Sou do
Arizona. Não consigo pensar em ninguém que saberia o suficiente
sobre mim para ir aonde trabalho e nem que estaria disposto a
atravessar o país para me dar um caderno em meio a uma
tempestade aterrorizante de Nova York.
Quando afasto as mãos do rosto, me deparo com Jessie me
encarando com uma feição séria. Ela meneia levemente a cabeça
antes de dizer, repleta pela mais forçada naturalidade:
— Tudo bem. — Campbell me surpreende ao levar os dedos
até o envelope perfeitamente branco, aparentemente novo. — Então
vamos descobrir quem te mandou isso.
Separo os lábios para contestar, mas já é tarde demais. Jessie
puxa o envelope com cuidado, se preocupando em não o rasgar
devido a abundante quantidade de cola que fora usada. Meu
coração volta a acelerar dentro do peito, e me esforço para manter a
calma.
É só um pedaço de papel. Não é como se uma bomba
pudesse estar aí dentro.
Mas, da mesma forma, não deixa de ser assustador.
Pensar que alguém que talvez eu conheça se deu ao trabalho
de vestir um capuz e entrar à noite na lanchonete apenas para me
entregar um velho diário e ir embora sem dizer uma única palavra
me aterroriza.
Estava mais feliz quando ainda pensava que o cara
encapuzado apenas me escolheu porque eu era a única alma viva
em meio à tempestade, não que tinha um motivo mais concreto para
isso.
Assisto Jessie abrir o envelope, bisbilhotando o que tem
dentro. Minhas mãos permanecem inquietas no meu colo, e meu
corpo todo sente a ansiedade de descobrir logo que merda está
acontecendo.
Quando Campbell, em silêncio, tira o papel perfeitamente
dobrado de dentro do envelope e o estende na minha direção, não
hesito em segurá-lo. Meus dedos o desdobram com urgência, e
meus olhos se conectam imediatamente a todas as linhas escritas
em caneta azul.
E não é preciso muito esforço para que eu reconheça a
caligrafia.

Para: Kale Howard.


Arizona.

Querido Kale,

Antes de tudo, quero que saiba que venho acompanhando sua vida
pelas redes sociais. Você está se tornando um grande homem,
Howard. E não poderia sentir mais orgulho disso.
Espero não ter te assustado com esta carta, nem com a maneira
tenebrosa que fiz este diário chegar as suas mãos.
Caso esteja se perguntando quem era o homem que o entregou, ele
é meu marido. Xavier Rodriguez. Estamos casados há 3 anos.
Talvez você tenha visto esse nome na lista de todas as pessoas por
quais este diário passou.
Eu não escrevi o meu.
Quis que fosse uma surpresa.
Desejei que embarcasse nessa aventura, que lesse cada página e
que sentisse o turbilhão de emoções e sentimentos que me
preencheram quando recebi este diário pelo correio.
Há alguns meses, perdi uma das pessoas mais importantes na
minha vida. Eu estava sem chão. Foi algo extremamente repentino.
Ninguém esperava. Me encontrava sem esperanças quando, como
se fosse uma jogada do destino, uma mulher me contactou pelo
Instagram. Ela estava em Nova York, alegando ter encontrado o
velho diário de um homem morto e ter pesquisado sobre a família
dele.
Ter pesquisado sobre a minha família.
E chegado a mim através do meu pai.
Marcus Roche Jones, único filho de John Peter Jones e Tandara
Roche.
Meus avós. Pessoas que nunca tive a chance de conhecer, mas
que, por essas páginas, pude saber um pouco mais sobre quem
eram.
Meu pai não gostava muito de falar sobre eles. Ele nunca teve uma
relação muito boa com o meu avô, como você pôde perceber. Ele
dizia que não o entendia. Dizia que passou a infância se
questionando sobre por que outras crianças tinham uma família bem
estruturada e ele não, e cresceu acreditando que a culpa disso era
do meu avô.
Mas Marcus ficou devastado quando soube de sua morte, em 1982.
Eu ainda não tinha chegado à família, já que ele e seu parceiro
secreto, Joshua Davenport, o homem por quem era perdidamente
apaixonado e conheceu durante uma viagem ao Arizona, me
adotaram em 1986, 4 anos após a morte do meu avô.
Tudo foi feito no sigilo, já que, como sabemos, a adoção feita por
casais homoafetivos só foi legalizada por lei nos Estados Unidos há
poucos anos.
Marcus me contou que sofreu quando recebeu a notícia. Com a mãe
já falecida, ele não tinha mais nenhuma família além da que formou
comigo e Joshua.
Joshua faleceu no ano passado, já com bastante idade. Marcus me
deixou há alguns meses, pouco antes do diário chegar às minhas
mãos, quando eu estava devastada.
Ele morreu sem saber da existência desses relatos. Nunca cruzou
os olhos com as palavras que o pai dedicou a ele.
Mas eu li e reli diversas vezes até criar a coragem necessária e
passar para frente, buscando alcançar o coração de outra pessoa.
O coração do pequeno menino travesso que chegou ao orfanato de
Phoenix em 2002, após encontrar o corpo sem vida do pai sobre o
piso de sua pequena casa em Scottsdale. O coração do menino que
teve dificuldade em fazer amigos, mas que o único que fez durante
a infância está ao seu lado até hoje, dividindo um apartamento em
Nova York e cuidando de uma linda lanchonete. O menino do
coração de ouro, que era punido e passava semanas sem
sobremesa, jogava papel higiênico no jardim e assustava as garotas
do orfanato durante o Halloween, usando minhas maquiagens para
tentar parecer aterrorizante.
Você, Kale Howard, o homem que carrega uma carga pesada além
da ponta do seu iceberg, cheia de medos, traumas e superações.
O garotinho que me encantou desde o primeiro dia em que nossos
olhares se cruzaram.
Você é uma pessoa muito especial para mim, Kale. Espero que
saiba disso, apesar de todos esses anos que estamos afastados.
Feito uma mãe coruja, vivo me perguntando como você está. Entro
no seu perfil nas redes sociais com frequência, apenas para matar a
saudade e ver um grande sorriso rasgando seu rosto, sentindo o
coração aquecido por saber que está bem.
Suas fotos com Brandon são minhas favoritas. Me sinto realizada de
saber que a amizade de vocês é uma das mais verdadeiras que
existe neste mundo. Vocês dois são homens maravilhosos. Eu nem
preciso estar presente em suas vidas para afirmar isso.
Nunca tive dúvidas de que, apesar das pegadinhas e teimosias,
Kale e Brandon sempre foram duas pessoas incríveis, com gigantes
e bondosos corações.
Estou aqui, de longe, do outro lado do país, com meus 49 anos e
ainda trabalhando no orfanato, mandando boas energias para vocês
diariamente. Torcendo para que fiquem bem e alcancem o
inalcançável quando se trata de felicidade.
Pode me considerar uma stalker se quiser, não vou negar que sou,
mas vi que você mudou seu status para solteiro há alguns dias.
Saiba que tudo vai ficar bem, Howard.
Porque, como eu te disse um tempo atrás, enquanto estávamos
sentados na grama do jardim do orfanato e eu ignorava todas as
regras ao fumar um cigarro na frente de duas crianças:
Tempestades não duram para sempre.
E, além disso, agora você sabe que é capaz de transformar todas
suas mais dolorosas e profundas cicatrizes em flores.
O destino reserva algo maior para você.
Eu sei disso.

Com todo meu mais genuíno amor,


Beth Roche Jones.

Uma lágrima solitária escorre por minha bochecha. Repleto de


uma intensa emoção jamais sentida antes, levo a mão livre aos
olhos, os secando.
Meu coração parece querer pular para fora do peito. Ele arde e
dói, mas sei que o que sinto está longe de ser tristeza.
Estou feliz. Realizado.
Durante toda minha vida me perguntei como devia ser o
sentimento de ouvir uma mãe lhe dizendo coisas bonitas. É mágico.
E posso afirmar que nunca tinha experimentado nada parecido.
Beth não é minha mãe biológica, mas é a mulher que me
ajudou em todos os momentos da infância e adolescência.
Sei que talvez eu nunca vá sentir o que um filho sente pela
mãe, mas tenho completa noção de que o amor que carrego por
Beth é sobrenatural. Avassalador. De transbordar o peito.
Porque essa mulher me preparou para o mundo.
Desde o primeiro dia em que nos encontramos.
E serei para sempre grato a ela. Por tudo.
Por todos os ensinamentos, que ainda carrego comigo durante
todos esses anos, e por ter feito com que o diário de John Peter
Jones chegasse a minhas mãos.
Nunca fui um cara que acreditava muito no destino.
Mas agora, quando Jessie se inclina para frente e a sinto me
abraçar apertado, mesmo ainda sem saber o motivo causador da
minha choradeira, percebo que talvez ele sempre tenha caminhado
ao meu lado, preparando todos os obstáculos e tempestades
existentes na minha história. Desde meus dois anos de idade.
E que a vida de John Peter Jones sempre esteve destinada a
chegar até mim.
Para me ensinar, me dar forças e me unir à mulher mais
incrível que poderia sonhar em conhecer algum dia.
Jessie Campbell, minha antiga vizinha ranzinza, por quem me
descobri perdidamente apaixonado.
A garota que ficou presa comigo no elevador e se interessou
pela história de um cara morto.
Pela história do avô de Beth.
John Peter Jones, o homem que se apaixonou por uma florista
nascida no Texas, que gostava de ler Jane Austen, tinha os dentes
da frente separados, apertava os olhos quando sorria e sonhava em
ser mãe.
A mulher que transformou suas cicatrizes em flores.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — pergunto, me
assegurando pela milésima vez de que nenhum de nós irá se
arrepender do que estamos prestes a fazer.
Kale, encostado no balcão gélido da agência de correio,
umedece o lábio inferior com a ponta da língua antes de acenar
levemente com a cabeça em concordância. Aperto ainda mais o
envelope em minhas mãos quando, em seus olhos, sou capaz de
perceber a incerteza, mesmo que não demonstrada.
Sei exatamente o que está sentindo.
Está assustado. Temendo o que acontecerá daqui para frente.
E eu o entendo.
Não estou sem falar com minha mãe desde que tinha 2 anos
de idade, mas também sinto esse medo que parece ter força o
suficiente para rasgar o peito.
Medo do que irá acontecer quando nossas cartas, as que
escrevemos há um tempo, revelando todos nossos fragilizados
sentimentos e abrindo nosso coração para aqueles que, querendo
ou não, nos trouxeram ao mundo, cheguem até eles.
Mas sabemos que estamos fazendo a coisa certa.
Que estamos nos movimentando, dando o passo inicial para
tentar consertar as coisas com nossos pais.
Estaria mentindo se dissesse que estou segura de que Louise
e Willian Campbell irão se comover com minhas palavras e se
preocuparem em entrar na minha vida novamente. Meus pais são
pessoas difíceis. Sempre soube disso.
Mas agora, enquanto enviamos as cartas e pagamos pelo
trabalho do correio, sinto que não importa o que aconteça, não
importa se receber uma resposta ou não, ficarei bem. Porque tenho
um cara que amo a meu lado. Um cara incrível, que passou por
muitas merdas na vida, mas que hoje é a prova viva de que o
amanhã é uma nova chance.
E que sempre podemos nos reconstruir e florescer.
Basta olhar para o futuro com olhares diferentes e agarrar
todas as boas oportunidades.
— Está se sentindo bem? — É o que ele me pergunta
enquanto descemos as escadas, deixando o prédio da agência para
trás. Sua mão agarra a minha, e seus olhos esverdeados me
observam com cautela, desconfiados.
Deixando que um sorriso tome meus lábios, faço que sim com
a cabeça.
— Meu coração está tranquilo — revelo.
Howard também sorri, contendo seus passos assim que
chegamos à calçada.
— Isso é bom — diz ele, parando a minha frente, segurando
minhas duas mãos enquanto me olha nos olhos. Kale arqueia uma
sobrancelha. — Não é?
Rio fraco diante de sua vontade de se assegurar de que estou
bem, e então respondo:
— É. — Um profundo suspiro escapa pelos meus lábios, e
uma estranha tranquilidade, sentida pela última vez há muito tempo,
me invade. — É sim.
Howard deixa que uma linha feliz se estampe em sua boca, me
puxando para si. Encosto a cabeça em seu peito, ouvindo as batidas
de seu coração enquanto sinto seus braços me envolverem em um
gesto carinhoso.
Kale deposita um leve beijo no topo da minha cabeça, e o sinto
respirar fundo, como se também sentisse a mesma sensação de
alívio que me preenche.
A nossa volta, o som corriqueiro dos carros e de uma tarde
comum em Nova York é alto, mas não o suficiente. Não o suficiente
para me impedir de ouvir as palavras de Kale. Não o suficiente para
impedi-las de reverberar por todo meu corpo e fazer com que o
sorriso moldando meus lábios se alargue.
— Eu te amo, Jessie Campbell. — É o que ele diz. Sua voz sai
séria, grave, repleta da mais genuína sinceridade. — Não quero me
arrepender de não ter dito isso ainda.
Sinto o coração derreter dentro do peito.
Inspirando profundamente, inalando seu perfume antes de
expirar, esvaziar meus pulmões e de, enfim, encontrar minha voz,
tomo a coragem necessária para responder:
— Também te amo, Kale Howard.
E as palavras escapam pelos meus lábios com uma facilidade
que pensava ser humanamente impossível. Porque é a verdade.
Não me restam dúvidas.
Sou perdidamente apaixonada pelo meu vizinho da porta da
frente.
Me afasto de seu peito, levantando um pouco a cabeça para
olhá-lo nos olhos. Suas íris esverdeadas brilham, refletindo toda sua
felicidade, assim como o sorriso emoldurando seus lábios.
E no momento que nossas bocas se chocam e Kale leva as
mãos até meu rosto, o segurando, sinto algo mágico. Quase como
todas as outras vezes que nossos lábios se encontraram, mas um
pouco diferente agora.
Porque, com este beijo, sinto como se todas minhas partes
quebradas fossem consertadas. Como se a estrela, já sem vida, de
onde vim, voltasse a brilhar, se tornando a mais viva em meio a
todas as outras.
E sei que, por mais incertas que as coisas ainda possam
parecer para mim, por mais perdida que esteja em relação ao
trabalho, a meu sonho ou minha situação com minha família, as
coisas vão se ajeitar.
Tudo vai ficar bem.
Porque vou fazer com que fique.
Pois agora entendo que borboletas não podem sentir medo de
voar.
Três meses depois...

Deslizo os olhos pela tela do computador, sentindo o coração


transbordar de orgulho como em todas as outras vezes. Nunca vou
me cansar de passar horas admirando, lendo e relendo todos os
trabalhos de Jessie.
Ela finalmente se encontrou.
Finalmente é capaz de fazer o que realmente ama. Sem
julgamentos.
E posso afirmar que, pelo modo como anda saltitando pelo
nosso apartamento e por todos os sorrisos que vivem se
estampando em seu rosto, está mais feliz do que nunca.
Com a mão firme, movimento o mouse, deslizando a tela,
fazendo com que todos os longos textos passem rapidamente pelos
meus olhos. Ao chegar ao início da página — minha parte preferida,
diga-se de passagem —, sou tomado mais uma vez pelo orgulho
avassalador que me invade.
Porque, em letras grandes e azuis, está escrito:
Além da Ponta do Iceberg.
Tudo aquilo que você não vê.
Um projeto iniciado por Jessie Campbell.
E ao descer, meus olhos deslizam por todos os textos que
foram escritos por ela nesses últimos meses.
O de Lorelei Fable, uma mãe solteira, que trabalhava como
vendedora de cachorro-quente sob o sol escaldante, usando um
longo vestido e saltos altos coloridos apenas para levar alegria para
as filhas no fim do dia. A mulher que hoje, após tudo o que teve de
passar, após perder o namorado, passar fome e se encontrar sem
chão, deu a volta por cima e agora trabalha como recepcionista em
uma escola de idiomas, ganhando um salário bom o suficiente para
levar conforto à família.
A matéria sobre John Peter Jones que, no fim, Jessie acabou
escrevendo. Ela passou dias digitalizando tudo, não deixando que
uma única etapa importante de sua vida escapasse, lendo e relendo
todas os relatos escritos por ele, deixados para trás no seu diário,
que hoje está de volta às ruas de Nova York, impactando corações e
transformando vidas como fez conosco.
Os leitores da plataforma amam a história dele tanto quanto
amam a de Celeste Laurent.
A vida de Beth Roche Jones também está sendo contada,
tendo um espaço especial apenas para ela. Na foto ao lado do texto,
a mulher incrível de 49 anos, pele em tom de oliva, cabelos loiros,
olhos verdes e um rosto fino salpicado por sardas, estampa um
sorriso gigantesco nos lábios. A mulher com o maior coração que já
conheci, que foi abandonada pelos pais biológicos, cresceu em um
orfanato, foi adotada por Marcus Roche Jones aos 14 anos, em
1986, e depois retornou ao Orfanato de Phoenix, onde começou a
trabalhar, buscando transformar a vida de crianças desamparadas,
assim como transformaram a dela.
Violet Harper também possui o seu espaço. Minha mãe e eu
passamos a nos comunicar frequentemente após a carta que
escrevi ter chegado a ela. Agora evoluímos, claro. Estamos em
2021, ninguém mais conversa por cartas. Ligo para ela sempre que
é permitido. Violet ainda tem bons anos de prisão pela frente, mas
sei que temos tempo. Ela diz que deseja consertar as coisas entre
nós, e acredito nisso. De verdade. E, por mais que tema pelo que
pode acontecer quando nos conhecermos pessoalmente, tenho
tentado manter o coração calmo.
As coisas acontecerão da forma como precisam acontecer.
Hoje me sinto preparado para todas as merdas que forem
colocadas no meu caminho. Sei que sou forte o suficiente para
passar por todas elas de cabeça erguida.
E Jessie fez questão de adicionar essa informação na matéria
sobre mim. A em destaque no site. Acima de todas as outras,
apesar de ser tão importante quanto.
A matéria que conta sobre a vida de um garotinho chamado
Kale Howard, que passou por poucas e boas durante sua história,
viu pessoas que amava o deixarem, cresceu em um orfanato, com
medo do que o futuro o reservava, e que conseguiu passar por
todas as turbulências presentes em seu caminho. O garoto que
hoje, finalmente, depois de anos, conhece o que é sentir a
verdadeira felicidade.
O homem que atualmente divide um grande e incrível
apartamento em um prédio ótimo de Nova York, com uma mulher
maravilhosa por quem é perdidamente apaixonado. O homem que
tem o melhor amigo do mundo, mesmo que às vezes um pouco
irritante, com quem tem uma lanchonete que está bombando na
cidade.
Eu.
Kale Howard.
O cara que conseguiu curar todas suas cicatrizes e encontrar a
tão sonhada esperança no amanhã.
Atrás de mim, ouço quando a porta se abre. Um latido alto
preenche o ambiente, e imediatamente giro na confortável cadeira
de rodinhas, deixando um sorriso moldar os lábios ao me deparar
com Jessie e Pepper parados em frente à porta.
Minha namorada, com os cabelos pretos com mechas azuis
presos no alto da cabeça, em um rabo de cavalo, vestindo um top
branco, tênis de corrida e uma legging confortável, me encara com
olhos que indicam que me esqueci de alguma coisa.
Pepper, nosso mais novo bichinho, um Golden Retriever de
lindos pelos dourados, corre em minha direção, animado em me
encontrar ao voltar do passeio. O som de suas patinhas batendo
contra o piso é audível, e sou pego de surpresa quando ele pula em
meu colo, subindo subitamente na cadeira, dando uma lambida em
meu rosto.
Fazendo uma careta, uso minhas mãos para afastá-lo, o
impedindo de continuar me babando.
Há duas semanas, Jessie decidiu que queria adotar um cão.
Fomos ao centro de adoções, e Pepper estava lá. Ele foi o que nos
chamou mais a atenção. Não apenas pelo seu lindo pelo dourado,
mas principalmente por ter se mostrado animado em nos ver.
Campbell se apegou ao cachorro logo de cara, assim como eu.
Pepper tem dois anos e é o bichinho mais agitado que já conheci na
vida, além de também ser extremamente mimado, graças à mãe.
Jessie passou a primeira semana inteira fazendo brincadeiras
que me comparavam ao Pepper. Ela dizia que era engraçado, pois
sempre me viu como um cara que tem “energia de Golden
Retriever”.
Eu nunca entendi o que ela queria dizer. Sempre que a
questionava, Jessie começava a rir ou mudava de assunto.
Mulheres às vezes podem ser um pouco difíceis de
acompanhar.
Principalmente as que escrevem ou leem muito.
— Não acredito que você esqueceu. — Ouço a voz de Jessie
dizer.
Ainda me esforçando para afastar a língua de Pepper do meu
rosto, já que o pestinha persiste em tentar me babar, eu a olho, me
deparando com ela agora encostada no batente da porta, com os
braços cruzados em frente ao peito.
— O que eu esqueci? — questiono.
De repente Pepper se acalma em meu colo, exibindo a língua
ao colocá-la para fora da boca. Ofegante, ele passa a intercalar a
atenção entre Jessie e eu, como se estivesse curioso para
acompanhar nossa conversa.
Rindo um pouco ao perceber sua reação, faço um breve
carinho em sua cabeça.
— Combinamos que você iria descer e nos encontrar para
sairmos — minha namorada finalmente explica.
Arqueio uma das sobrancelhas em sua direção, sem conseguir
me lembrar.
— Combinamos?
Suspirando, ela revira dramaticamente os olhos antes de se
afastar da porta, a mantendo aberta, e caminhar em minha direção,
ainda de braços cruzados.
— Sim, Howard, nós combinamos — esclarece. — Eu e
Pepper ficamos te esperando por quase 15 minutos em frente ao
prédio.
— Eita. — Abro um sorrisinho nervoso, descendo Pepper do
meu colo antes de me levantar. — Eu não devia estar prestando
muita atenção quando conversamos sobre isso — respondo,
sincero, passando a mão no cabelo. — Desculpe.
Jessie abre um sorriso nos lábios, mesmo que talvez ainda
esteja com um pouco de raiva por dentro, o que me surpreende. Eu
a amo, mas, desde que marcamos um jantar com seus pais na
semana que vem, Campbell tem se mostrado um poço de
nervosismo e ansiedade.
— Tudo bem. — Ela dá as costas, voltando a andar em
direção à porta, segurando a guia da coleira de Pepper em uma das
mãos. — Agora vamos logo.
Me apresso para calçar os chinelos ao lado da mesa ocupada
pelo computador antes de sair quase aos tropeços pela sala,
buscando alcançá-la.
Pepper vem logo atrás de mim.
— Aonde vamos? — pergunto, fechando a porta assim que
chegamos ao corredor vazio perfeitamente iluminado.
— Para o Central Park — Jessie responde, se abaixando para
conectar a guia ao peitoral da coleira, já vestida em Pepper.
Acompanho cada um de seus movimentos enquanto giro a chave na
fechadura. Campbell ergue o rosto, trazendo seus olhos até os
meus. Um sorriso se molda em seus lábios quando ela suspira
pesadamente antes de completar: — Deitar debaixo de uma árvore.
Sei que muita gente não lê, mas, para mim, os agradecimentos são
a parte mais importante de um livro.
Querendo ou não, é o cantinho onde o autor é capaz de expressar
sua gratidão.
E por isso sempre fico pensando por horas sobre o que escrever.
Além da Ponta do Iceberg foi um dos livros que mais demorei para
terminar. Foram 7 longos meses, onde vi minha vida mudar
inúmeras vezes no meio do caminho. Me senti desanimada diversas
vezes durante esse tempo, mas ainda bem que não me deixei levar
por nenhuma delas.
Espero, do fundo do meu coração, ter conseguido passar a
mensagem que busquei desde que comecei o planejamento desta
história. Espero que saia daqui levando algum ensinamento
diferente para sua vida, assim como estou levando.
Kale Howard, Jessie Campbell e John Peter Jones foram
personagens que me ensinaram muito, de várias formas diferentes.
E, mesmo que ADPDI tenha sido um livro que me fez sair da minha
zona de conforto de trabalhar em romances clichês e personagens
perfeitos (apesar de termos alguns aqui), amei ter me desafiado,
mesmo pensando em desistir desta história e me sabotando várias
vezes durante o processo.
Por isso, quero começar agradecendo a minha família. Em 2021
(ano em que eu estou escrevendo isso aqui), contei a vocês que
escrevo desde os 12 anos de idade. Sempre fui muito insegura e
sempre vivi atrás de um pseudônimo nada criativo, mas vocês foram
literalmente os MELHORES por terem me apoiado tanto quando
descobriram. Obrigada por isso. De verdade. Significa o mundo
poder contar com pessoas tão especiais ao embarcar nesse sonho
maluco, muitas vezes complicado e até mesmo desgastante, mas
que, mesmo assim, faz meus olhos brilharem.
Em seguida, quero agradecer a todos os meus leitores do Wattpad.
Já falei isso antes e vou repetir quantas vezes forem necessárias.
OBRIGADA! Vocês mudaram minha vida. Me transformaram.
Também quero agradecer a todas as pessoas incríveis que
passaram a me acompanhar depois de minha chegada à Amazon.
Fico extremamente realizada em ler cada resenha e cada direct que
me mandam no Instagram. Vocês estão tornando tudo isso possível.
Às betas que trabalharam comigo nesta história, Luli e Sofia. Vocês
são perfeitas. Obrigada por tanto.
Ana e Fran, os dois maiores presentes que o Wattpad me deu. Vou
agradecê-las neste livro e em todos os outros que vierem. Para
sempre. Vocês acreditaram em mim desde que bati meu primeiro
100K de leituras no Wattpad, e continuam aqui até agora. Obrigada
por formarem comigo o melhor trio de ex-fanfiqueiras que este
mundo já viu.
E por último, mas longe de ser o menos importante, obrigada a
todos vocês, caros leitores. Obrigada por terem dado uma chance a
este livro, por apoiarem mais uma autora nacional independente e
por estarem fazendo parte de um sonho que vem crescendo junto a
uma garota desde seus 12/13 anos de idade.
Ainda é muito louco para mim saber que tem tanta gente gostando
do que sai da minha cabeça. E é surreal todo esse misto de
emoções que sinto ao cumprir cada meta nesse trabalho.
Peço que, por favor, caso tenham gostado da história, não
esqueçam de avaliá-la na Amazon e no Skoob.
Espero vê-los na próxima!

Com todo meu amor e eterna gratidão, Bel.


Em memória de Walter e de todas as vítimas do COVID-19.
Maria Isabel Mello nasceu em 2003, em Presidente Prudente, no
interior de São Paulo. É estudante de nutrição, autora independente,
leitora compulsiva e hater número #1 de bolo de chocolate.
Sua história com a escrita começou cedo, aos 12 anos de idade,
com as famosas fanfics no Spirit. Em 2020, migrou para o Wattpad,
onde conquistou mais de 2 milhões de leituras em apenas um ano e
meio.
Em 2021, publicou seu primeiro livro na Amazon.

ENCONTRE A AUTORA
Instagram: belautora
Wattpad: mabelbm

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