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© 2021 - Islay Rodrigues

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quaisquer meio eletrônico, mecânico e processo xerográfico, sem a permissão da

autora. (Lei 9.610/98)

Essa é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, lugares e acontecimentos

descritos na obra são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança


com nomes e acontecimentos reais é mera coincidência.

PRINCESA PERVERSA ♦ ENCANTO EGÍPCIO – 3 [primeira publicação –

20 de novembro de 2021]

Islay Rodrigues / 1ª edição — 2021


Encanto Egípcio é uma série de romances que se passam na antiguidade. Esse é

um romance de época, não histórico, a autora usa elementos e detalhes das

culturas para criar seu próprio enredo, mas sem nenhuma intenção de alterar ou

coincidir os eventos nos livros com fatos históricos reais.

As cidades citadas, com exceção de algumas, são fictícias, saídas da mente da


autora para que não haja confusão.

Os quatro livros retratam um pouco de cada cultura dessa época tão fascinante e

essencial para o desenvolvimento da civilização que temos hoje.

Os livros são:

Princesa Cativa • Disponível na amazon

Princesa Submissa • Disponível na amazon

Princesa Perversa • Disponível na amazon


Princesa Vingativa • em 2022
Índice
PRINCESA PERVERSA
Copyright © 2021 - Islay Rodrigues
SOBRE A SÉRIE
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EPÍLOGO
DARWISH E NORVINA
AGRADECIMENTOS
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Na frente de um espelho grande e bem polido, o príncipe Darwish
encarava o próprio reflexo. O homem do outro lado o fitava de volta, feito dois
rivais em uma luta de espadas. Os olhos exprimiam serenidade e altivez, e o
rosto era uma mistura homogênea dos traços da mãe e do pai. Nariz fino, lábios
grossos, maxilar bem marcado, pele escura e a característica mais indelével: os
olhos azuis. Ele era mesmo um homem peculiar, mas, apesar de saber que aquele
era o próprio reflexo, não parecia possível. Darwish não se reconhecia em quase
nada, era inadmissível que alguém tão destruído por dentro, aparentasse ser tão
normal por fora.
— Está nervoso? — perguntou Áster, tirando Darwish de seus
pensamentos.
Ele riu com desdém.
— Me dê uma boa razão para estar.
— As dez mais belas mulheres do Oriente Médio esperam por você no
salão de cerimônias, uma delas será sua esposa, não é razão o bastante?
Darwish analisou seu interior. Por algum motivo achou que seria uma boa
ideia beber vinho no desjejum e, naquele momento, parecia que alguém fazia das
suas tripas as cordas de uma cítara. Não obstante isso, sentia-se o mesmo de
todas as manhãs: bêbado e pronto para estragar o dia de alguém.
— Você ficou nervoso quando teve que conhecer Zaya?
— Achei que fosse vomitar um órgão. — Áster deu o pequeno sorriso
idiota que sempre aparecia em seu rosto ao mencionar a esposa. — Me joguei
sobre ela para ter certeza de que era real.
— Sei.
Darwish podia afirmar que o irmão revivia algum acontecimento com a
esposa, mas não tinha interesse em saber qual. Seria mais agradável rolar na
lama com um chacal no cio do que ter que aturar o romantismo aborrecedor de
Áster logo depois do almoço, ou acabaria vomitando. Estava à beira de tomar a
decisão mais importante de sua vida e esperava não a fazer motivado por um
sentimento que, para ele, só traria distração.
Em seus vinte e oito anos, Darwish testemunhara muitas formas de amor:
do mesmo jeito que o vira queimar em sua chama mais devastadora, também o
vira apagar pelo sopro mais fugaz. Testemunhara homens se tornarem monstros
em nome do sentimento. O limiar que o separava da loucura era frágil, cheio de
rachaduras e, se manejado de forma irresponsável, capaz de se transformar em
uma arma imbatível. Na circunstância em que se encontrava aprisionado,
apaixonar-se apenas o desvirtuaria do seu propósito. O único interesse que tinha
em tal sentimento era de entender como funcionava para que pudesse aprender a
fugir dele. Isso mesmo, queria fugir. Fugir. Fugir.
— Se não está nervoso agora, ficará quando vir a filha do imperador de
Sartor. — Ramessés se enfiou na conversa.
— O que a moça tem de extraordinário?
Ramessés abriu as duas mãos frente ao peito e arqueou uma sobrancelha.
Darwish o repreendeu com um olhar gélido.
— Você fala dos peitos de uma mulher que poderá ser minha esposa.
Ramessés jogou uma perna sobre a outra, confortável na cadeira.
— Não seja tão estoico, Darwish, de que vale o seu noivado se não
pudermos tirar um pouco de diversão do seu sofrimento?
— Me reconforta saber que meu suplício lhe traz algum prazer.
— Estoico? — Áster repetiu a palavra com uma careta. — Soa como o
nome que se dá às fezes dos porcos.
— Isso é esterco. — Ramessés reiterou com um dedo esticado no ar. — E
as duas palavras se encaixam com perfeição no que eu quis dizer.
— Em que momento você se tornou uma imitação mais irritante e menos
atraente de mim? — perguntou Darwish a Ramessés, juntando as sobrancelhas,
insultado.
O irmão mais novo fez uma expressão condescendente.
— Desde quando você abandonou o posto para se transformar nesse ser
desagradável.
Darwish fez uma cara muito azeda. Havia algum tempo que percebera que
já não era o mesmo, mas notar que as pessoas ao seu redor começavam a ver isso
também, não era muito reconfortante. Não sabia em que momento e nem o
porquê, mas já não encontrava consolo para suas insônias na bebida. Os anos
passavam e levavam consigo a juventude dele, Darwish ficava velho e ranzinza,
e a realidade o atingira alguns dias atrás.
Um homem põe tudo em perspectiva ao acordar com a cara afundada na
própria poça de vômito. Doera em seu ego, mas a pancada fora necessária para
chacoalhar o cérebro de Darwish e acender uma luz em sua mente, clareando a
parte ébria com uma solução para seus problemas que não o levariam rumo á
morte prematura.
Ele devia se casar.
Só teve que esperar alguns meses e colocar um pouco de fé nos admiráveis
dons de casamenteira de sua mãe para reunir as dez mulheres mais belas do
Egito. Entre elas, Darwish escolheria a esposa, sem que envolvesse o amor nisso.
Faria sua escolha com base em interesses em comum, influência, posições
políticas e, óbvio, atração física. Podia renunciar ao afeto romântico, mas não ao
prazer carnal. Já que não tinha intenção de conseguir mais de uma esposa, e
menos ainda de gastar seu tempo com casos extraconjugais. Ainda que sua
posição permitisse isso.
— Você tem certeza? — Áster indagou, com um semblante sério que
Darwish vira no rosto do irmão poucas vezes durante a vida. — A partir do
momento que entrar naquele salão, terá que escolher uma esposa. É uma decisão
importante, se não a maior da sua vida.
— Tenho, e, se for o caso, sei lidar muito bem com arrependimentos. —
Tentou fazer soar como uma piada, mas era um assunto delicado demais para tal
e a única entonação possível era a trágica. Darwish lutava contra seus
arrependimentos há mais tempo do que se lembrava.
— Que assim seja. Vamos indo na frente para prepararmos sua entrada. —
Áster se levantou e puxou Ramessés pela gola da túnica. — Veremos você no
salão, se sobrevivermos aos ataques de nossa mãe.
— O que é um casamento na nossa família sem nossa mãe para pôr fogo
nos nervos de alguém? — Ramessés brincou, desamassando a roupa elegante.
— Digo a sério, Darwish, desde que você anunciou seu desejo de se casar,
ela tem atormentado o juízo de todos. Escolha logo uma noiva, se possível ainda
essa noite, ou os criados farão um motim e virão atrás de você com facas e lanças
afiadas. — Áster o alertou.
Darwish parou de rir da situação ao ver que o irmão falava sério.
Seus irmãos saíram, deixando-o sozinho para lidar como bem entendesse
com suas preocupações. O príncipe voltou a atenção para o próprio reflexo no
espelho de cobre.
Não parecia um homem que se comprometeria com alguém em breve,
esperava estar estonteante e contente, mas parecia mais que comera lesmas no
almoço, e naquele momento elas rastejavam pela sua garganta em busca da
saída. Seus pulsos queimavam sob os braceletes, ele apertou os punhos para
aliviar o ardor, lembrando-o com isso da razão principal para estar fazendo todo
esse espetáculo. Assim que se virou para a porta, o som abafado de algo pesado
caindo no chão veio da sacada do aposento. Inclinou a cabeça para trás e viu
uma silhueta curvilínea escalar a balaustrada.
Seu coração deu um salto quando a luz do dia revelou a figura de Norvina.
Ela limpou um pouco de areia do joelho e se ergueu, vendo-o parado no meio do
quarto, olhando para ela com uma expressão meio estúpida. Não, muito estúpida.
— Aí está você. — Norvina atravessou a porta da sacada e adentrou o
território dele.
Darwish recuou, intimidado, e estudou cada movimento dela de maneira
astuciosa. “Ai está você.” Foi o que ela disse, como se fossem íntimos, grandes
amigos que compartilharam risadas em volta de um barril de cerveja na noite
anterior. Como se aquelas não fossem as primeiras palavras que ela dizia a ele
em dez meses.
Ele limpou a garganta.
— Como você entrou aqui?
— Escalando — respondeu, entediada, como se fazer tal pergunta fosse
um atestado de burrice.
— Eu sei que foi escalando, sua… — Exalou ar para se acalmar, Norvina
erguera uma sobrancelha impetuosa, esperando pela ofensa. Ela o tirava do sério
com o olhar superior. — Quero dizer, não seria mais fácil entrar pela porta?
— Eu prefiro evitar que me vejam entrando nos seus aposentos sozinha,
não desejo perder o pouco valor que me resta.
Ele retesou a mandíbula.
— O que você quer?
— Preciso da sua ajuda.
Os olhos azuis dele cintilaram.
Ajuda?
Em nome de Amon-Rá, de que modo ele poderia ser útil para ela? Nunca,
desde que a conhecia, Norvina demonstrou fraqueza diante dele. Darwish
detestava a necessidade que tinha de impressioná-la. Quase desejava que um
leão caísse do teto só para matá-lo ante a ela, na tentativa de lhe arrancar um
ínfimo sorriso de aprovação. Era humilhante saber que jamais conseguiria.
Não sabia o que provocava tais pensamentos, mas eles jorravam toda vez
que Norvina ocupava o mesmo cômodo que ele. Não importava se estavam entre
uma multidão ou se separados por dezenas de obstáculos, os olhos de Darwish a
buscavam a todo momento e sempre, sempre, sabiam onde encontrá-la.
Parecia tolo, mas era isso que ele era, um tolo por aceitá-la em seu quarto
depois de dez meses fingindo que nada acontecera entre os dois.
Darwish andou até a mesa de cabeceira e tirou do meio do compartimento
uma garrafa do vinho persa envelhecido que ganhara de Aslan, seu cunhado, ao
deixarem a Pérsia dez meses atrás. Recorria ao vinho em situações de desespero,
o que, tratando-se de si mesmo, era quase sempre. Cinco goles eram o suficiente
para derrubar um homem em poucos instantes. Tirou a rolha com os dentes e a
cuspiu longe, em seguida virou a garrafa na boca, ainda olhando a mulher parada
próximo à cama.
Era perigoso tê-la em seu quarto, sozinha, com a cama bem ali à
disposição. As roupas de Norvina não eram fáceis de tirar, ela usava um
conjunto militar com calças e muitas fivelas que ela mesma inventara, mas
Darwish tinha certa prática em remover roupas de corpos femininos. Além disso,
não precisava retirar a roupa dela para conseguir um lugar em seu corpo.
— Deve ser importante para você renunciar ao seu precioso orgulho e vir
até aqui. — Despejou sobre ela todo o sarcasmo que conseguiu reunir.
— Você me conhece bem demais.
Norvina andou até ele e tomou a garrafa de sua mão. O príncipe parou de
respirar no curto momento em que ela ficou muito perto da pele dele. O corpo de
Darwish ainda a reconhecia, inferno, como se pudesse esquecer.
— Não diga isso em voz alta, se alguém ouvir podem tirar conclusões
precipitadas sobre nós. — Ele sussurrou.
A mulherzinha ardilosa sorriu e exibiu os dentes manchados de vinho.
— Quanto a isso, você não corre perigo, as pessoas sabem que tenho bom
gosto.
O príncipe cerrou os olhos.
— Você devia ser mais gentil com a pessoa a quem está prestes a pedir um
favor em segredo, Bonita.
Norvina limpou a boca com o dorso da mão quando o vinho lhe escorreu
pelas comissuras dos lábios.
— Como sabe que é um segredo?
— Se não fosse, não teria arriscado a vida subindo a sacada para que
ninguém a veja comigo.
Norvina apertou os olhos e sorriu, as pontas dos caninos roçando seu farto
lábio inferior.
— Você é mesmo inteligente. — Ela o observou com os olhos de raposa.
— Não entendo o porquê de parecer surpresa.
— Os homens têm certa dificuldade em se dedicar a mais de uma
atividade ao mesmo tempo. Logo, se a atenção de um homem está voltada para
uma área da sua vida, em consequência outra é deixada de lado. É nítido que
você se preocupa demais com sua aparência.
Darwish fez uma pausa para piscar.
— Me deixe ver se entendi, você diz que por eu ser bonito, sou burro?
Ela agitou a cabeça para cima e para baixo.
— Você simplificou bastante meu ponto.
Ele suspirou, exasperado.
— Você me evita por meses, quando me procura é para pedir um favor e
ainda me insulta?
Darwish se virou para partir, pisando duro.
— Espere. — Norvina praguejou. — Tudo bem, me desculpe.
Darwish voltou a ficar de frente para ela em um giro lento de seus
calcanhares. Tentava disfarçar o fato de que a mulher o atordoava. Até mais do
que o vinho que bebera pela manhã, porque em vez das tripas, Norvina movia as
artérias do coração dele. Darwish estava convencido de que seu interesse nela
era motivado pela aparência distinta que Norvina ostentava e por estar sempre
pelos cantos, parecendo guardar segredos. Ele se irritava muitíssimo com o fato
de que ninguém achava estranho que ela surgisse e desaparecesse nos lugares
sem avisos prévios, e que nunca perguntassem sobre o passado dela.
Era tão claro quanto o sol que Norvina não pertencia ao deserto. Sejam
quais forem as matérias que os deuses usaram para criá-los, a dela era diferente.
Enquanto Darwish tinha a pele escura e áspera do deserto, Norvina parecia que
fora colhida entre as pétalas de um dente de leão.
Desde o primeiro instante em que a viu, a insubordinação dela, e a pouca
capacidade de manter a língua dentro da boca fizeram uma antipatia repentina se
apossar de Darwish. Às vezes, ele se imaginava apertando o pescoço de Norvina
até fazê-la vomitar a maldita arrogância, mas em algum momento a fantasia
mudava, e os dois acabavam sem roupa.
Era sempre assim, o príncipe começava matando-a e terminava se
acabando de prazer com ela. Ou dentro dela. Darwish não conseguia nem
descrever o quão frustrante era.
E vergonhoso também.
Norvina era um desafio intrínseco, uma abominação da natureza que é tão
perfeita que ninguém ousa questionar a existência. Ela guardava segredos por
baixo de todas aquelas sardas e beligerância. Por dentro dos olhos de raposa —
sempre vigilantes e astutos — ela era um enigma, que quase implorava para ser
desvendado.
Se a aparência de Norvina não fosse uma incógnita por si só, ainda tinha o
sotaque atraente embalado por uma voz forte que lhe provocava arrepios e a
personalidade — que por mais que Darwish tentasse se convencer de que
desprezava, achava o ápice da feminilidade. Norvina era firmeza, astúcia,
palavras diretas, e olhares profundos cobertos por uma cortina de impetuosidade.
Perigo, uma ameaça a tudo que Darwish pretendia proteger.
— Diga o que quer, eu tenho pressa. — Ele quis aparentar indiferença.
— Você vai ter que vir comigo.
— Isso não vai ser possível. — Darwish deu uma baforada nas unhas e as
lustrou na roupa elegante. — Como pode ver, vou conhecer minha futura esposa.
Ela desceu os olhos por ele de modo furtivo. Mesmo o gesto rápido e
impessoal, toda a pele de Darwish se arrepiou, e os ossos vibraram dentro de sua
carne, chacoalhando seu espírito, acendendo sua alma.
— Ah, claro, eu me esqueci que era hoje. — Norvina deu outro gole
generoso na garrafa. — Vai conhecer a jovem afortunada usando isso?
Com o dedo indicador, ela apontou para a roupa de Darwish com desdém.
Ele sabia que não tinha nada de errado com suas vestimentas; Norvina gostava
de deixar claro o tempo inteiro como desaprovava tudo sobre ele, suas roupas,
seu jeito de falar, seu modo existir, no começo isso o irritava a ponto de passar
dias pensando uma forma de retaliação, mas agora... agora ele só queria saber as
razões para ela rejeitá-lo tanto.
— Sim.
Ela enrugou o pequeno nariz.
— Sua língua é maior que esse saiote.
— Não é a única parte do meu corpo maior que ele.
Os olhos de Norvina dispararam para onde o saiote dele terminava, de
modo involuntário. O sangue dela se fez evidente sob a pele, e Darwish sentiu-se
adorável.
— Que nojo. — Ela o esnobou com uma virada de cabeça. — Não diga
isso para a sua pretendente, a coitada não merece saber que se casará com um
degenerado.
— Não se preocupe, isso eu só digo para as mulheres por quem não me
sinto atraído.
Norvina colocou a garrafa de vinho sobre a mesa com tanta força que
Darwish surpreendeu-se que o recipiente não se estilhaçasse com a pancada.
— Sorte a minha. — Norvina se virou para ele em sua postura severa. —
Eu dou minha palavra de que vai chegar a tempo para escolher sua felizarda.
— Desde quando sua palavra significa alguma coisa?
Ela jogou a cabeça para o lado, a fim de evitar o olhar de Darwish. Era tão
difícil lê-la, todas as pessoas tinham um padrão de expressão que tornava muito
fácil a tarefa de lhes identificar os sentimentos, mas Norvina… era como se a
fórmula que os deuses usaram para criá-la estivesse em um idioma único e
rústico, inescrutável a meros mortais.
Ela me intriga, deuses, ela me intriga muito.
— Por favor, Darwish. — A voz dela trepidou, com medo e desespero.
Darwish sentiu seus tendões se esticando de satisfação.
Devia ser mesmo algo grave para Norvina renunciar ao próprio orgulho
duas vezes. Darwish era muito curioso para dizer não. Sim, era apenas
curiosidade, nada tinha a ver com a insana necessidade que ele tinha de servi-la.
Fingiria que não esteve inclinado a aceitar o pedido dela desde lhe saiu pela
boca.
— Está bem, está bem, mas você fica me devendo.
Ela bufou com escárnio.
— Eu devia imaginar que você pediria algo em troca.
— Francamente, você não viria até mim se já não esperasse por isso.
Em vez de seguirem para o norte, onde ficava o coração de Alvorada,
Darwish seguiu Norvina em silêncio pelos corredores estreitos que levavam aos
cômodos dos criados e às cozinhas do palácio. Ela parecia conhecer muito bem
as passagens, mais até do que ele, que vivera a vida toda ali. Alguns corredores
estavam muito escuros, e, mesmo assim, ela sabia onde devia dobrar e qual porta
atravessar.
A luz do sol alcançou Darwish ao saírem do palácio e ele protegeu os
olhos com uma mão, se soubesse que sairiam, teria passado kohl[1] para protegê-
los. Chegaram em um portão estreito na lateral dos muros, e Norvina se abaixou
por detrás de uma pedra, de onde tirou uma sacola que continha dois mantos
longos com capuz.
— Vista isso.
Jogou um para ele, e o tecido azul bateu em cheio no rosto do príncipe.
Darwish resmungou um palavrão e se cobriu com a peça, como Norvina fazia.
Ele era o comandante da guarda real e fazia parte da sua função conhecer
cada reentrância, canto e buraco escuro do palácio, mas não se lembrava de ter
estado naquela parte antes. Parecia abandonado, e não se via nem um guarda nas
redondezas.
Atrás de um morrinho de terra, sob a sombra de uma palmeira, um alazão
esperava por eles.
— Para onde estamos indo? — perguntou enquanto a seguia para fora da
proteção das muralhas do palácio.
— O Mercado da Pechincha.
Norvina livrou o cavalo da corda e ajeitou o assento de couro para montar
em seguida, indicando, impaciente, que ele subisse atrás.
— O Mercado da Pechincha não é lugar para uma dama. — Darwish se
posicionou atrás dela, tomando o cuidado de deixar um palmo de distância entre
os dois.
— Não se preocupe, ninguém vai notar sua presença lá.
Norvina colocou o cavalo para correr antes que o príncipe pensasse em
uma resposta à altura do seu atrevimento.
Não demorou para alcançarem a cidade, e em menos tempo ainda estavam
serpenteando pelas ruas estreitas e sempre cheias de Astória.
— Quais seus interesses no Mercado da Pechincha?
Darwish teve que erguer a voz para ser ouvido por cima do galope do
cavalo e da confusão de gente nas ruas.
— Eu preciso de uma coisa que não conseguiria se não fosse de maneira
arbitrária.
Foi difícil entendê-la por baixo do véu azul espesso que cobria metade do
rosto de Norvina.
— Com arbitrária, você quer dizer ilegal. — Ele quase encostou a cabeça
na dela, as mãos de Norvina apertaram com força as rédeas do cavalo.
Darwish se afastou, aprendera com o custo de sua própria dignidade que
nada de bom resultava da aproximação dos dois.
— Ora, vamos meu Guerreiro de Ébano, não me diga que você é o mártir
das normas e regras.
Darwish fechou os olhos, cativado pelo tom sedutor da voz dela.
Norvina só dizia essas coisas para atiçar o pior dele, mas ele nunca
conseguia resistir e não demorou a fantasiar os dois, com menos roupas, um
pouco de suor — ou muito, dependendo do vigor da atividade — naquela mesma
posição, só que em vez de estarem sobre o cavalo, ela estaria montada nele.
Darwish arranhou a garganta para se livrar dos pensamentos libidinosos.
Estava prestes a noivar, e uma parte dele se retorcia de culpa por desejar uma
mulher que nunca seria nada além de uma fantasia.
— Eu tento seguir, pelo menos.
— Me poupe, eu sei que você ordena ao seu lacaio vir ao mercado
escondido para comprar elixir para o sono.
Ele ficou muito rígido.
— Como você sabe disso?
Os olhos verdes de Norvina se fixaram nos dele.
— Você não é o único observador por aqui, alteza.
Darwish ficou em silêncio, a verdade era que não conseguiria falar sobre o
assunto, mesmo se sua vida dependesse daquilo. Era atordoante saber que ela
prestava atenção nele. Ou ela disfarçava muito bem ou conseguira a informação
de outra forma.
Estranho, muito estranho.
Eles pararam na frente de um templo de adoração, desmontaram, e
Norvina amarrou o cavalo em um alpendre perto de um cocho abastecido com
água limpa. Ela gesticulou para que Darwish a seguisse, e eles atravessaram a
porta desgastada para dentro do local com cheiro de madeira velha e fumaça de
incenso. Alguns homens vestidos com mantas longas viraram as cabeças para
eles e os encararam com uma carranca mal-humorada quando Darwish deixou
que a porta fechasse em uma pancada estrondosa.
Norvina revirou os olhos, enfiou a mão dentro do manto, sem paciência,
pegou alguma coisa na cintura e a colocou com descrição na mão de um dos
sacerdotes. Darwish percebeu ser uma peça de ouro. O homem avaliou o objeto
e o mordeu, testando a qualidade da moeda. Ao se dar por satisfeito, indicou os
fundos do templo com a cabeça, voltando para a postura concentrada de antes.
Norvina deu passagem para Darwish, que continuou a segui-la pelo final
do corredor até avistarem uma fresta de luz que escapava por baixo de uma
porta. Com o pé, ela empurrou a porta, e o Mercado da Pechincha foi revelado
diante deles. Era muito parecido com qualquer mercado comum, barulhento,
agitado e úmido de suor, com o diferencial de que ninguém encontraria nada de
bom sendo vendido por aquelas bandas.
Norvina costurava entre as pessoas sem demorar a atenção em nada, ele
caminhava apressado atrás dela, mantendo-se por perto para não a perder de
vista. Tantas coisas estranhas explodiam ao redor deles que ninguém se
importava que duas pessoas, de aparências excêntricas, cruzassem o mercado
cobertos com mantos longos e capuz em plena luz do dia.
— Não toque nisto. — Ela ralhou, e acertou um tapa na mão dele, o
impedindo de acariciar um vapor azulado que saía de dentro de uma lâmpada
dourada. — Você não quer sujar sua aparência impecável. Pense em quão
decepcionada sua futura esposa ficará ao se dar conta de que você não é perfeito.
— Me pergunto se a razão para estar tão incomodada com o meu noivado
é porque não está entre as pretendentes. — Darwish a alfinetou, correndo um
grande risco de ter seu ego destroçado outra vez, caso ela risse dele ou lhe desse
uma resposta desdenhosa.
Norvina desceu os olhos para os pés cobertos por botas de couro e soltou
um muxoxo.
— Eu não tenho intenção de me casar, príncipe, e se tivesse, jamais me
colocaria em uma situação em que precisasse ser sorteada entre outras dez
mulheres.
— Muitas veem como uma honra estar entre as dez eleitas. Ainda que eu
escolha só uma, as outras nove não passarão muito tempo solteiras depois de
terem cativado o meu interesse.
— Minha honra vale mais do que seu interesse, e eu nunca aceitaria menos
do que ser a primeira opção. — Norvina percebeu que Darwish se manteve
quieto. — Além disso, eu não tenho tempo para incertezas.
— Incertezas? — Ele riu sem humor. — Como eu poderia estar incerto
sobre isso? Nenhum homem nesta terra está mais decidido a se casar do que este
na sua frente.
— Alteza, você não sabe o que quer, e a maior prova disso é que nem
conhece a mulher que será sua esposa.
— É para isso que existe a realeira. — Darwish se defendeu, puxou-a pelo
braço para que parasse de andar e olhasse para ele, porque precisava provar para
Norvina algum ponto que não tinha certeza do que se tratava ainda. — Eu terei
tempo de conhecê-las, e aquela que escolher, será porque não tenho dúvidas a
respeito dela.
Norvina se livrou do aperto da mão dele em seu pulso e amaciou a carne.
— Claro, por que dá para saber tudo sobre uma pessoa em uma única
conversa, não é verdade?
Ele odiava aquele maldito tom de voz que o fazia sentir-se a mais
estúpidas das criaturas.
— Não tudo, é claro.
Norvina esbaforiu.
— Me diga, Darwish, o que fará quando isso passar? Na teoria tudo é
lindo, mas depois do “sim” é que o jogo fica interessante. Tem coisas que você
só descobrirá depois de casado.
— Como o quê?
— Coisas, ora. Coisas íntimas.
— Você parece ter bastante propriedade sobre o assunto. — Ele arqueou
uma sobrancelha. — Elucide para mim, Raposinha.
Norvina o fulminou com os olhos ao ouvir o apelido sarcástico.
— E se você odiar o jeito como ela come?
Darwish franziu a testa.
— Isso é importante?
— Como não? Eu odiaria comer todos os dias perto de alguém que
mastiga como um camelo banguela.
— Se ela tiver qualidades que se sobreponham a isso, não vejo porque me
incomodaria.
— E se ela for frígida?
Darwish estancou.
Norvina conseguira preocupá-lo. Ele até podia aceitar uma mulher
banguela de etiqueta duvidosa, mas esperava que a esposa tivesse muita
disposição no leito conjugal, porque tinha a intenção de repovoar a terra com
seus descendentes. Se tinha algo do qual ele jamais abriria mão, era de ser pai.
Por muito tempo pensara em uma maneira de se redimir por seus pecados
e por todas as atrocidades que cometera, achara que jamais poderia chegar a um
ponto de redenção, até perceber que podia ter filhos. Um para cada pecado.
— Eu saberei — afirmou ele.
— Como? Esse é outro tipo de coisa que você só descobre depois de
casado.
— Através do beijo, é óbvio. De que outro modo conseguiria?
O pescoço de Norvina quase deu uma volta completa para olhar para ele.
— Pretende beijar todas elas?
Darwish tentou distinguir a emoção que a fez soltar aquela pergunta.
— Acredite, eu nem precisarei fazer esforços para ter isso.
— Mas isso é nojento! — Norvina parecia indignada.
— Eu não acho. — Ele deu um sorriso devasso.
Norvina continuou a escrutiná-lo, com o rosto vermelho salpicado de
sardas e os olhos cheios de repulsa.
Aquele era um dos raros momentos em que a emoção que sentia era tão
forte que ela não conseguia disfarçá-la com seus sorrisos desdenhosos. Os
sentimentos se escancaravam em seu rosto, voz e gestos. Parecia mais humana e
menos deusa. Darwish só não sabia o porquê de ela parecer tão zangada.
Cogitou a hipótese de ser ciúme, mas a descartou rápido de tão ridícula
que soava. Não podia ser ciúme, já que ciúme é a variante de um sentimento
mais forte, e duvidava que a mulher diante dele tivesse um coração. Não se
surpreenderia se enfiasse uma faca no peito de Norvina e vertesse gelo no lugar
de sangue.
— Não sei por que ainda espero qualquer atitude digna vinda de você. —
Ela disse por fim e voltou a andar apressada e tempestuosa.
Darwish a seguiu de uma certa distância, Norvina parecia que lançaria um
raio no primeiro que olhasse torto em sua direção.
Eles chegaram em uma viela estreita que dava para a porta dos fundos de
um templo bem parecido com o que eles atravessaram para entrar no mercado.
Darwish avistou quatro homens, levavam túnicas longas e niqabs[2] negros, para
proteger suas identidades.
— Não diga nada e fique perto de mim.
Repensando se ir até lá fora uma boa ideia, Darwish concordou com a
cabeça. Não queria confiar em Norvina, ainda mais quando tudo indicava que
não deveria fazê-lo, mas se viu fazendo o oposto, mesmo assim.
Ela entrou no beco, e os homens se aproximaram. Parou de andar, e eles
fizeram o mesmo, depois se curvaram em uma reverência diante dela. O menor
entre eles parecia ser o líder, foi quem deu um passo à frente e a cumprimentou
em um idioma que era familiar aos ouvidos de Darwish.
— Estou esperando. — Norvina falou e foi perturbador como adquiriu
uma postura imponente que ele nunca a vira usar antes. As costas eretas, os
ombros alinhados, o nariz altivo e uma confiança atraente.
Parecia majestosa.
— A informação tem um custo — disse o contrabandista, sibilando ao
falar.
Sem tirar os olhos do homem, Norvina levou a mão ao cinto, desamarrou
uma bolsinha de couro negro e atirou no peito de um dos sujeitos. Pelo tilintar
metálico, Darwish chegou à conclusão de que eram moedas. O homem apanhou
a bolsa e a abriu, mostrou o conteúdo para o menor deles, que pareceu nada
satisfeito.
— Minha senhora, o trabalho que tive para obter o que procura não vale
algumas moedas de ouro.
— Imaginei que seria assim. — Ela baixou a cabeça e por baixo do capuz
disparou um olhar para Darwish. — Como sou uma mulher precavida, trouxe
isto.
Norvina baixou o capuz que protegia o príncipe de uma vez, e os homens
vislumbraram a figura combatente de Darwish.
— Este egípcio nos seria importante para quê?
O príncipe cerrou os punhos para o jeito insultante como o homem disse
“egípcio”, mas não retrucou porque também estava interessado na resposta de
Norvina.
— Não é um egípcio comum. — Darwish a encarou com as sobrancelhas
franzidas. Ela o elogiara? Não parecia. — É o astuto príncipe Darwish, o
comandante da guarda real do poderoso faraó Radamés.
Os homens adquiriram uma postura cautelosa no mesmo instante e o
avaliaram temerosos. Um deles até colocou a mão sobre o punho da espada na
bainha. Menos o líder, ele fitava Darwish com uma fome cobiçosa que trouxe
um péssimo presságio para o príncipe.
— O que você está fazendo? — Darwish perguntou a Norvina sem mover
os lábios. Ela só o ignorou.
— Já ouvimos falar de seus feitos, claro. — O líder alisou uma mão na
outra, deliciando-se. — Nós teremos mais prejuízo se ele vier conosco do que o
contrário.
— O quê? — Darwish se fez ouvir.
Eles estão planejando me levar?
Eu!
E por que demônios ninguém parecia alarmado com isso além dele?
— Ele é de suma importância para o exército egípcio, pense em quanto
ouro pagariam por ele. — Norvina o barganhava.
Darwish jogou uma maldição sobre ela com os olhos.
— Eu aceito seu pagamento — disse o líder, fastidioso. Ao olhar para
Darwish outra vez foi como se já não enxergasse o príncipe, mas uma montanha
de ouro.
— Aceita coisa nenhuma. — O príncipe se preparou para deixar o lugar.
— Detenham-no.
Os homens avançaram e Darwish foi encurralado. Quando um deles
colocou as mãos em cima do príncipe, esse o afastou com um belo soco no
queixo que o levou ao chão feito uma tora de madeira. O pé do outro sujeito foi
plantado nas costas de Darwish e suas pernas falharam, o levando a cair de
joelhos na terra suja. Rápido, foi imobilizado pelo pé de um homem em seu
pescoço.
— Agora me dê o que eu quero. — Norvina exigiu, sem olhar para o
príncipe.
O líder chegou perto dela e a beijou.
Darwish esperou que Norvina o empurrasse, mas ela não o fez, apenas se
deixou ser beijada. O homem se afastou com um sorriso satisfeito. O cenho de
Norvina adquiriu várias sombras e uma ruga cresceu entre as sobrancelhas
grossas.
Ela só voltou a si quando Darwish gritou:
— Sua raposa traiçoeira, eu vou espremer o seu pescoço até…
Não pôde concluir a ameaça, o sujeito que lhe prendia o pescoço sentou-se
em cima dele, e o pouco ar que lhe restava nos pulmões, Darwish usou para se
manter vivo.
Norvina se abaixou até estar na altura dele e chegou bem perto de seu
rosto, deu dois toques em seu queixo com aquele olhar prateado sedutor e
divertido.
Darwish ia matá-la.
— Se quiser se vingar, e sei que vai, estarei pronta para você, meu
Guerreiro de Ébano.
— Por que eu confiei em você? — gritou, esperando que a resposta
aparecesse assim que as palavras lhe deixaram a boca.
— Francamente, você não teria vindo comigo se já não esperasse por isso.
— Norvina devolveu as palavras amargas para ele.
Darwish rosnou alguns palavrões para ela, que se levantou ostentando um
olhar de triunfo.
— Se eu fosse vocês, vendaria os olhos dele, é verdade o que dizem, eles
são mágicos.
Ela deu as costas, como se tivesse se desfazendo de uma mercadoria e não
dele, e começou a se distanciar. Norvina partia e o largava ali, sem remorso.
À medida que Darwish era prensado no chão úmido e imundo, um pano
foi amarrado ao redor de sua cabeça e a última imagem que viu foi a de Norvina,
abandonando-o.

Nuvens negras explodiram em trovões ensurdecedores, lançando
pesadas gotas de chuva sobre o manto de Norvina. Ela ergueu o rosto para o céu
e praguejou ao não ver nem o rastro do sol. Cobriu a cabeça com o capuz e
apressou o passo, desviando dos contrabandistas que recolhiam as mercadorias
antes que a chuva arruinasse tudo. Levou vários esbarrões, mal conseguia se
mover no alarido de pessoas que corriam para se protegerem da tempestade que
só se tornava mais furiosa.
Sem enxergar nada à sua frente, parou de andar para decidir uma direção a
seguir e foi empurrada por um homem que colidiu com seu ombro. O corpo dela
deu um solavanco para trás, e Norvina foi arremessada de bunda no chão
enlameado.
— Pelas chamas de Hades! — gritou e protegeu o rosto para não levar
uma joelhada, que a faria desmaiar bem ali.
Fez uma careta de nojo para a lama com fedor de urina que ensopava suas
roupas. Tinha que sair dali antes de ser pisoteada até a morte.
À sua frente, em uma resposta para seu apelo, materializou-se uma bonita
tenda de lona roxa, com astros celestes bordados em fios de prata por toda sua
extensão. Norvina ignorou o aviso na entrada, que dizia que estavam fechados, e
engatinhou até lá em busca de abrigo.
Só ao estar segura embaixo da tenda que se levantou, seu manto estava
pesado por causa da água da chuva, então o retirou para o espremer e se livrar do
excesso.
— Ah, é uma lástima. — Norvina se esbaforiu ao ouvir a voz esganiçada
vindo de algum canto da tenda atrás dela. — Eu avisei que choveria hoje, mas
ninguém me ouviu, nunca me ouvem.
Uma mulher saiu das sombras, e a luz de uma vela roxa atrás dela projetou
uma aura fantasiosa no desenho de sua silhueta. Levava os cabelos recolhidos
dentro de um turbante de cetim dourado, as unhas enormes pintadas de um roxo
parecido com o das petúnias dos jardins do palácio e um gato malhado com
grandes olhos verdes descansava em seus ombros.
Apesar do tempo tenebroso, dentro da barraca estava quente e convidativo
e cheirava a chá de mel morno com limão. Parecia uma tentação, feita de forma
presumida, para alguém que fugia de uma tempestade.
— O céu estava limpo um instante atrás.
— É, alguma coisa muito grande deve ter acontecido, ou está para
acontecer, para os deuses decidirem trazer você até mim.
Norvina balançou a cabeça, sem dar muita importância para o que a
mulher disse, e limpou as palmas sujas de lama nas laterais do seu manto.
— São apenas algumas nuvens passageiras — falou, com alguma
esperança de que o céu parasse de ameaçar desabar em sua cabeça. Como
resposta, um trovão cortou o ar e exterminou suas parcas expectativas.
— Hmmm. — A mulher a avaliou com minucia. — Parece que temos uma
cética em nossa barraca, Physis.
Norvina demorou para entender que a mulher falava com a gata deitada
em seus ombros. O bicho olhou para Norvina, e ela sentiu a necessidade de
cobrir o rosto com o capuz. Não gostava de ser observada, sobretudo por
criaturas que tinham olhos tão expressivos e que pareciam ver através do escudo
de sua casca mortal.
— Como adivinhou? Já sei, os deuses sussurraram no seu ouvido!
A cigana levantou uma de suas finas sobrancelhas.
— Acha que é a primeira pessoa que entra em minha tenda e questiona
meus dons?
Norvina suspirou, displicente, voltando a passar o manto pelos braços.
— Perdoe-me, não quis ofendê-la, só quero me abrigar da chuva.
A cartomante sorriu com cordialidade, as maçãs do rosto rechonchudo
quase tapando seus olhos puxados.
— Você é bem-vinda, … — Norvina quase abriu a boca para agradecer. —
...desde que me deixe ler seu futuro.
Norvina devia ter previsto isso. Soltou uma risada sem humor.
— Obrigada, mas dispenso. Como você afirmou, sou uma cética. Não
acredito em nada disso.
— Nada disso?
— Futuro, destino, essas coisas que vigaristas usam para tirar dinheiro de
pobres esperançosos. — Um pouco tarde demais, ela mordeu a língua para
impedir que as palavras jorrassem. No entanto, a cartomante aparentava esperar
que dissesse algo dessa natureza.
— Se você não acredita não tem motivos para temer, não é? — Ela fez um
malabarismo com as mãos. — Sente-se.
Indicou a cadeira vazia à sua frente. Norvina permaneceu de pé, sem
intenção de se mover.
— Ou… pode voltar a ser pisoteada na chuva, você decide. — A mulher
deu de ombros.
Norvina jogou uma olhada para a rua por cima do ombro. A loucura de
pessoas não diminuíra em nada, e uma criança começara a berrar em algum lugar
daquele pandemônio. Por isso, mudou o curso de seus olhos para a cadeira vazia
e soltou uma maldição. Sem opções, andou até a mesa e sentou-se a uma
distância segura da mulher. Não cooperaria.
A cartomante deu um sorriso satisfeito e se acomodou também.
— Me chamo Illyana, a propósito. — E ofereceu a mão, que Norvina
ignorou.
— Termine logo com isso, Illyana. — Mesmo com a grosseria, a mulher
manteve o semblante simpático, o que fez Norvina se sentir uma rabugenta
desnecessária.
— Antes, o meu pagamento.
Norvina balançou a cabeça.
— No final, se você me disser algo de útil, pagarei.
— Não é assim que funciona, querida, meus dons precisam de um…
estímulo para aflorar.
— Quem poderia imaginar, não é? — resmungou e arrastou uma moeda na
mesa até a cartomante, mas Illyana permaneceu de palma aberta, esperando por
mais.
Norvina bufou em descrença.
— Você deve estar brincando.
A cartomante não disse nada, só friccionou os dedos pedindo por mais
moedas. Norvina continuou a colocar moedas na mão dela até seu saquinho se
esvaziar. Ao se dar por satisfeita, Illyana guardou o dinheiro no decote e
estendeu a mão para Norvina de novo.
— Eu não tenho mais dinheiro, você já me depenou inteira!
Talvez Norvina devesse largar a guarda para virar cartomante, pagava
muito melhor.
A mulher balançou a cabeça, bufando em uma língua estrangeira.
— Eu preciso da sua mão, moça opiniosa — esclareceu, com
aborrecimento.
— Minha mão? Não vai jogar as cartas, ver através de uma bola de cristal,
algo assim?
Os lábios tingidos de dourado de Illyana foram para o lado.
— Poderia. Poderia. — Ela abriu a própria mão em cima da mesa e riscou
com o dedo as linhas que lhe marcavam a palma. — Mas as cartas só diriam o
que você vai ter, eu quero saber também do que você precisa.
Norvina fez uma cara de profundo tédio e estirou a mão sobre o cetim
roxo da toalha que cobria a mesa. A pele dela sofreu um leve calafrio ao contato
dos dedos frios de Illyana, a cartomante admirou a palma pálida de Norvina por
alguns instantes. Só o barulho da chuva, que batia na lona da tenda; e a madeira,
que crepitava em um fogareiro mais à esquerda, suprimiam o vazio do lugar.
Norvina observou as reações da mulher, primeiro Illyana pareceu tensa,
quase triste, e logo depois seu rosto se modificou em um sorriso que fez Norvina
se curvar por sobre a mesa e olhar para a própria mão para ver se enxergava
alguma coisa lá.
Tirando a aquisição de um novo calo, sua palma era a mesma palma sem
graça de sempre. Do jeito que as palmas das mãos devem ser.
— Hmmmm, sim, isso é muito interessante.
Illyana inclinou a cabeça, aparentava ouvir algo que a gata falava, e
ponderou. Soltou a mão de Norvina, puxou o baralho de papiro grosso e
depositou três cartas em sua frente. Mais algum tempo de silêncio veio enquanto
a mulher analisava os desenhos feitos com tinta de ocre e os mostrava para a
gata que agitava a calda longa e esguia em círculos suaves.
— O que você acha? — A mulher colocou uma carta diante do focinho
rosado do animal e riu baixinho. — Sim, parece que sim.
Norvina exalou o ar e se mexeu impaciente na cadeira, nem acreditava que
se desfizera de uma fortuna para ver uma mulher louca conversar em
pensamentos com um animal.
— E então?
Os olhos das duas, mulher e gata, voltaram-se para ela ao mesmo tempo.
— Aqui diz que você já cruzou tempestades muito piores do que esta. —
Com uma unha pintada de roxo, a mulher traçou a linha contínua que cortava a
palma de Norvina.
Ela permaneceu em silêncio, não diria nada, sabia que a cartomante
esperava que dissesse algo do seu passado para que o usasse como uma
revelação do destino. Não era a primeira vez que se via diante de uma pessoa
que dizia prever o futuro. Por essa mesma razão estava ali, em um país
estrangeiro, destinada a vagar como uma alma condenada, sempre sozinha,
sempre fugindo. Por essa mesma razão teve toda a vida alterada, com crueldade,
manipulada e manchada com o sangue de sua família.
— Os deuses vão recompensar você com uma vida longa. Seu futuro será
cheio de saúde, e… sim, felicidade. Você será muito feliz.
Felicidade…
Norvina se recordava de um tempo em que era feliz. Foi tão feliz, mas tão
feliz, que passou a acreditar que cada pessoa ao nascer ganhava uma quantia de
felicidade, e ela já usufruíra de toda a sua. Não existia espaço para felicidade no
futuro dela. Isso era para as pessoas boas, para aqueles que mereciam.
— Isso qualquer um pode supor.
Illyana fechou os olhos, tentando ter paciência com ela, parecia exigir um
certo esforço. Suspirou e voltou sua atenção para as cartas.
— Sua felicidade vai depender de uma pessoa. Espera… não, será de três
pessoas. — Disparou os olhos escuros para ela. — Você, por um acaso, está
noiva?
Norvina riu de nervoso.
— Olhe para mim, tenho cara de quem está noiva?
— Não dá para dizer, mas dá para saber que não foi com o seu bom-humor
que conquistou o rapaz.
Norvina estreitou os olhos.
— Não, eu não estou noiva. — Ela aumentou a voz para enfatizar.
— Tem certeza? Aqui fala sobre um homem. Vocês estão amarrados por
um fio inquebrável. Esse fio já esteve muito enrolado, foi esticado, roído e
maltratado, mas, aos poucos, volta a ser uma linha contínua. Partindo dele e
terminando em você. Em geral isso aparece para amantes, mas pode ser alguém
por quem você tem sentimentos fortes. Ou os dois.
Uma terrível voz traiçoeira sussurrou um nome lá nos confins da mente de
Norvina, mas ela a espantou antes que pudesse distingui-lo.
— Eu não tenho sentimentos fortes por ninguém.
— Certo, certo. — Illyana não parecia ter acreditado. — Esse “ninguém”,
por acaso, tem preferência pela cor azul?
Norvina pensou nos grandes e indômitos olhos azuis de Darwish, no modo
como mudavam de cor de acordo com suas emoções. Ela sentia-se ridícula por,
às vezes, irritá-lo só para ver em que novo e inexplicável tom de azul os olhos
dele refletiriam.
Começava a se zangar. Em geral não tinha muita paciência, usava a
austeridade de escudo para manter as pessoas longe de si de modo a evitar o que
Illyana fazia, que percebessem que tinha sentimentos.
Norvina construíra uma represa dentro de si mesma: cada pedra era uma
de suas inseguranças, seus medos e anseios, algumas pedras eram tão grandes
que precisariam de um batalhão para movê-las de lugar; já outras, muito
pequenas; mas cada uma tinha a única função de impedir que seus sentimentos
jorrassem.
Embora ignorasse eles a maior parte do tempo, não gostava de lembrar
que os tinha e que eles eram fortes a ponto de ameaçarem romper sua represa.
Isso jamais poderia acontecer. Por isso, dia após dia, Norvina depositava uma
nova pedra em sua muralha indestrutível.
A muralha agora era maior do que ela, a ponto de engoli-la se um dia
ruísse.
— Como você pode saber? — Cuspiu a pergunta.
— Não diz ao certo, só diz que é uma das coisas que você admira nele. O
que é bom, azul é para as almas puras.
— De puro aquele lá não tem nada — resmungou.
— A-há! Então tem alguém. — Illyana apontou um dedo para ela.
Norvina sentiu o sangue se aglomerar nas bochechas, tinha a pele muito
clara, o que tornava inútil qualquer esforço em disfarçar o embaraço. Passou
uma mão pelo rosto para abrandar o furor do sangue.
— O que mais diz aí?
— Que seu “ninguém” vai trazer grandes mudanças à sua vida, concessões
em sua maior parte. Terá que renunciar a coisas que reluta em aceitar, mas que,
para estar ao lado dele, terá que fazer. — Illyana mexeu um pouco nas cartas. —
E sim, você vai ser traída.
Norvina se inclinou sobre a mesa, mais interessada.
— Por quem?
— Não diz.
— Que conveniente.
— O “quem” não importa tanto quanto o “porque”.
— O que isso quer dizer?
— Se eu tivesse todas as respostas, garanto que meu serviço seria bem
mais caro, garotinha.
Mais caro?
Norvina quase gritou, mas se controlou e focou no que interessava.
— Você disse que minha felicidade dependerá de três pessoas, como isso é
possível?
Norvina só conseguia pensar em Zaya e em Darissa, elas eram o mais
próximo que tinha de uma família. Contudo, desde que Zaya se casara e tivera os
gêmeos, ela se afastara de forma significativa; e Darissa estava sempre ocupada
com a cara enfiada em pergaminhos, após se tornar uma aprendiz de escriba real.
Norvina não as culpava, cada uma buscava para si o destino que almejava.
Ficava feliz por elas, mesmo que as invejasse por terem o privilégio de poderem
escolher.
A liberdade é um luxo, e são poucos nessa vida que tem o privilégio de
obtê-la.
Illyana refletiu por algum tempo e outra vez se inclinou para a gata que
não tirava os olhos de Norvina, o que começou a irritá-la.
— As cartas dizem que seu “ninguém” é a chave para a sua felicidade e, se
estou certa, em breve você receberá a visita da deusa Hera.
Norvina puxou a mão de súbito, e seu rosto adquiriu formas sombrias.
Levantou-se em um movimento brusco, e a cadeira caiu para trás em um
estrondo. A deusa Hera.
Sua mente a levou para anos atrás, nas noites em que sua mãe escovava
seus cabelos antes de deitá-la para dormir em uma cama confortável de plumas e
cobertas de algodão. A voz dela, sempre macia e acalentadora, contava a história
de como pediu para a deusa uma filha forte e bonita. Dizia que se Norvina orasse
com muito fervor, um dia, a deusa também daria a ela uma filha com essas
qualidades, pois Hera era a deusa da maternidade.
— Essa é a maior prova de que você é uma farsante. — Ela tremia e seu
corpo ficou muito frio, de uma vez, sentia que a tempestade lá fora se abrigara
dentro dela. Norvina sentiu a necessidade de se abraçar. — Se fosse… se
chegasse pelo menos perto de ser verdade… você saberia que não posso ter…
Illyana arregalou os olhos, parecendo chegar a alguma conclusão que
antes não estava de todo claro. Norvina deu as costas para a mesa, pronta para
enfrentar a chuva. Nenhum risco a sua integridade física poderia machucá-la
mais do que o que aquela mulher cruel fizera ao colocar tão terrível esperança
dentro dela.
Tentou impedir que a sensação rasteira se infiltrasse em seus ossos, mas
era tarde demais, já se alojara dentro de Norvina em uma culpa que carregava
por todos aqueles anos.
Antes que saísse, Illyana a agarrou pelo braço.
— Seu tempo se estreita. Em breve, você não conseguirá mais evitar o seu
reflexo. Aquele que é a sua imagem e semelhança está perto e ameaça o seu bem
mais precioso.
Assustada, Norvina tentou puxar a mão, mas os dedos de Illyana estavam
tão apertados em volta do seu pulso que começava a impedir a passagem de
sangue.
— Quem mandou você? — Norvina perguntou, sentindo que o bolo de
emoções que duelavam dentro dela sairia pela garganta.
Illyana só sorriu.
— Você precisa abraçar a ruína para ter forças para o que há de vir.
Norvina ainda puxava seu braço com muita força, no instante em que
Illyana a soltou, o que a fez cambalear para fora da barraca e voltar para o ponto
inicial, de bunda no chão lamacento. Estava atordoada. Feito uma bêbada, tateou
pelo chão em busca de apoio e sua mão encontrou com um par de sandálias
muito familiares.
Ergueu o pescoço e contemplou a forma máscula de Darwish. O azul dos
olhos dele a soterraram com ódio, e Norvina se engasgou com o próprio ar.
— Achei você. — Foi o que saiu da boca dele.
Os olhos dela dispararam para a tenda uma última vez, mas assim como o
seu ventre, o lugar estava vazio.
As mãos de Darwish a seguraram com firmeza pelos braços, e ele a pôs
de pé sem qualquer dificuldade. Norvina foi arrastada para fora do Mercado da
Pechincha, muito abalada pelos recentes acontecimentos para formular um
protesto ao ser puxada sem delicadeza.
Eles refizeram os mesmos passos na metade do tempo e, sem delongas,
caminhavam em direção ao cavalo.
Darwish não disse mais nada em momento algum, o que era preocupante.
Norvina nunca o vira daquele jeito, tão sombrio. Ele andava sempre
acompanhado por um sorriso jovial e uma altivez que ela achava enervante, mas,
vendo-o rodeado por uma nuvem sombria, concluiu que preferia o irritante
pomposo de antes.
Quem guiou o cavalo foi Darwish, e ela não teve coragem de questioná-lo.
Foi erguida como uma menina para o meio das pernas torneadas dele e se
encolheu entre os braços fortes para que não fosse atingida pela raiva que
emanava dos poros do príncipe. Em algum momento, a chuva parou de cair, mas
Norvina nem percebeu, estava mais ocupada tentando não sufocar no calor do
corpo de Darwish.
Chegaram em Alvorada já à noite, o príncipe foi direto para os estábulos e
deixou o cavalo aos cuidados de um cavalariço, sem soltá-la. Talvez para
garantir que Norvina não fugiria. Depois, ele a puxou pelos corredores solitários
do palácio.
Ela entrou em algum tipo de torpor ao ter o braço dele em volta da sua
cintura, e o corpo grande do príncipe apoiado ao dela. Tudo em Darwish era
dominante. O toque dele provocava o caos dentro dela, Norvina teve que enterrar
as unhas nas palmas das mãos para não o empurrar com toda a força para longe.
Diferente do que muitos acreditavam, ela tinha uma fraqueza, e tal qual um
animal encurralado, Norvina atacava para se defender.
Já percebera há algum tempo que o homem diante dela não provocava a
mesma repulsa que sentia ao ser tocada por qualquer outra pessoa. Norvina ainda
não confiava nele, mas o calor de Darwish a acalmava, o cheiro dele anestesiava
suas feridas, era quase como fumaça de ópio, entrando pelas narinas dela e
subjugando sua racionalidade.
O que aconteceria se eu o deixasse me tocar? Levar-me com os dedos?
Sufocar-me com a boca?
Norvina sabia para onde a curiosidade a levaria. Teria o mesmo destino do
gato. Envenenada pela própria cobiça. Era vergonhoso, nauseante. Ela sentia-se
culpada por ter tais emoções incontroláveis. Por não poder refreá-las.
Assim que chegaram a um corredor vazio, iluminado pela fraca luz de um
archote, Darwish a soltou, e ela pôde voltar a respirar. Mas não durou muito,
porque em um piscar de olhos as mãos de Darwish estavam ao redor do pescoço
de Norvina. Não espremiam ainda, como ele prometera que faria, mas a forma
assassina como ele a encarava, deixava claro que em breve o faria.
— Você disse que estaria pronta quando eu quisesse me vingar. — A voz
dele, melodiosa e suave feito uma canção tocada em uma harpa, soou como uma
nota executada por um movimento brusco.
As labaredas dos olhos de Darwish a atingiram mesmo na meia luz do
corredor. Já vira aquele homem demonstrar muitas emoções, raiva, gratidão,
felicidade, mas aquela emoção que desfigurava o rosto dele era diferente de
qualquer outra. Parecia ser fisicamente impossível alguém querer matá-la ao
mesmo tempo em que parecia querer sugá-la para dentro de si, mas era isso que
Norvina sentia que aconteceria.
Ela sorriu sarcástica, mesmo que toda a situação a desesperasse e quisesse
se livrar do aperto de Darwish em sua carne, não demonstraria a ele. Jamais o
deixaria ver que ela era, na verdade, uma fraca. Que, por baixo das roupas
molhadas, os mamilos dela estavam arrepiados, mandando ondas de calor para
suas entranhas e criando uma pulsação quente no meio de suas pernas.
Argh, nojento.
— Bom, eu não esperava que fosse tão cedo.
Ele arranhou os dentes de forma audível.
— Você ainda ousa agir como uma cretina depois de me deixar?
Norvina teve a decência de se envergonhar.
— Eu não deixei você.
— Você me deu as costas e partiu. Isso não é deixar?
Ela tremeu com o tom grosso da voz de Darwish. Não era medo, sentia
tudo, menos medo.
— Tudo bem, eu posso ter deixado um pouco, mas eu voltaria em algum
momento para resgatar você.
— Você é impossível! — gritou ele, transtornado. Seus dedos gelados
fizeram uma leve pressão em torno da garganta de Norvina. — Eu devia acusar
você de traição diante da corte.
— Vá em frente, seria uma morte mais digna do que mereço.
Darwish lambeu o lábio superior, e Norvina se assustou com a beleza dele.
Era um susto toda vez que o rosto de Darwish enchia a visão dela, porque
parecia assombroso que alguém pudesse ser tão bonito. Ele estava todo
desgrenhado, molhado e fedia a um trapo que rolara em fezes, mijo, ainda assim
era terrível de tão atraente. Duvidava que estivesse perto de se acostumar, do
mesmo jeito que duvidava que ele deixaria de parecer mais bonito a cada
maldito nascer do sol.
— É, tem razão, uma morte rápida seria um presente. Não é, princesa?
A aflição provocada pelo toque dele se foi de imediato, e Norvina ficou
pálida.
O que aconteceu com aquele dia?
Por que tudo estava indo contrário aos planejamentos dela?
A mulher usou os dois braços para reunir forças e empurrá-lo, um no
queixo e outro no peito de Darwish. Um pouco de pressão e estava livre da
opressão do cheiro dele. Segura o bastante para colocar as emoções nos seus
devidos lugares, bem longe do controle de suas decisões e palavras.
Ela o encarou, indiferente. Darwish respirava com uma dificuldade
excruciante, mantendo os punhos cerrados dos lados do corpanzil. Era possível
ver as veias saltadas em toda parte, nos braços, no pescoço. Duas na barriga
atraiam o olhar dela, ficavam uma de cada lado do abdômen e formavam um
caminho que se perdia dentro do saiote.
— Como você descobriu?
Darwish adquiriu um semblante dissoluto.
— O quê? Que você é uma princesa?
Ela se chacoalhou ao ouvi-lo chamá-la daquela forma. Há muito tempo
ninguém se referia a ela de tal modo, há tanto tempo que Norvina se esquecera
quem era. Melhor, quem fora.
— Repetir isso não vai mudar a realidade, alteza — disse, mais calma do
que se sentia de fato.
Era outra coisa sobre ela, sabia disfarçar muito bem o que sentia. Alguns
chamariam isso de qualidade, mas Norvina não tinha mais tanta certeza, já que
disfarçar os sentimentos virara seu mecanismo de defesa.
— Você deveria escolher melhor as pessoas com quem negocia. Por um
pouco mais de ouro consegui comprar minha liberdade e a sua cabeça.
Ela devia saber que ele conseguiria persuadir os contrabandistas a libertá-
lo. Darwish tinha a capacidade de fazer uma pessoa acreditar que era noite ainda
que o sol queimasse em sua cabeça.
— Vai ficar decepcionado em descobrir que minha cabeça não vale muita
coisa.
— Não interessa o quanto ela vale! — Darwish esbravejou. — Você
mentiu para mim e me trocou por um beijo!
— Me desculpe, eu não… — A garganta dela se fechou em um aperto,
doía falar. Norvina não gostava da forma como se sentia ao saber que o
decepcionara, odiava com todo o seu ser a ânsia de agradá-lo. — Eu pretendia
ser sincera ao reencontrar você.
Darwish investiu outra vez sobre ela, encurralando-a contra a parede. As
costas da mulher bateram no calcário frio, e o príncipe colocou cada braço em
um lado da cabeça de Norvina, formando uma jaula com o corpo. Tentou
respirar, mas foi um erro, porque o aroma de homem a invadiu feito uma toxina
venenosa. Ela prendeu a respiração, se tragasse demais dele, demoraria meses
para conseguir se desintoxicar outra vez.
— Você devia ter sido sincera desde o maldito momento em que cruzou o
portão da casa de meus pais. — Ele quase rosnava contra a bochecha dela. A
respiração de Darwish acariciava a orelha de Norvina, e ela se arrepiava. —
Minha mãe abrigou você, ela recebeu você como uma filha, e, em troca, você lhe
dá mentiras.
Norvina plantou as mãos no peito dele e o empurrou, as palmas dela
ficaram quentes por vários segundos, como se tivesse tocado uma chapa de ferro
em brasa.
— Nunca questione minha lealdade para com sua mãe! Ela é a única de
sua família que tem meu respeito incondicional.
Ele avaliou a sinceridade das palavras dela e deve ter acreditado, porque
não a questionou mais quanto a isso. Eles se desafiaram com os olhares, as
respirações de ambos entrecortadas. A tatuagem de cobra que Darwish tinha no
braço se movia cada vez que seus músculos friccionavam, dando a ilusão de que
a cobra negra tinha vida própria e encarava Norvina com os olhos de rubi.
— O que aqueles contrabandistas disseram para você? — Quis saber ela.
— Que você é uma princesa, e que eu deveria alertar meu pai sobre o tipo
de gente que abriga no palácio dele. Algo sobre ele caminhar em direção a uma
guerra, a qual não fez nada para conseguir.
Norvina fez o possível para não demostrar o alívio que sentiu ao saber que
eles não tinham dito o mais importante sobre ela.
— Nunca menti sobre quem era, e não importa quem fui, jamais voltarei a
ser. — Ela fez uma pausa para escolher as palavras corretas. — Quero que saiba,
Darwish, que eu seria capaz de morrer pela sua família.
A família dele era a junção das pessoas mais bizarras e desordeiras que ela
já vira, parecia uma brincadeira de mal gosto dos deuses que fossem parentes.
Tinham tantos defeitos que não caberiam em uma lista, mas restauraram a fé dela
na humanidade. Norvina seria grata a eles por toda a eternidade por terem
lembrado a ela como era ser humana outra vez. Jamais os colocaria em perigo de
novo, se tivesse que tomar essa decisão, iria embora dali antes.
Darwish deu um passo na direção dela, mas se deteve. Todo o corpo de
Norvina ficou tenso e rígido como a parede que a impedia de cair.
— Se você me disser do que foge, não precisará chegar a esse ponto.
Ela o olhou por baixo dos cílios, desconfiada.
— O que você quer saber?
— Tudo — disse ele, com regozijo escancarado. Norvina não esperava
menos dele, ao se tratar de Darwish nada era pela metade.
— Você acha que eu sou idiota? Se eu disser tudo que quer saber, amanhã
estarei diante de um carrasco.
— Você não tem escolha aqui, pequena Raposa.
Norvina olhou para dentro dos olhos dele, esperando encontrar o homem
sensato que Darwish costumava ser. Agora que ele sabia quem ela era, Norvina
não tinha escapatória. Odiou se encontrar indefesa, vulnerável a ele. Darwish
jogaria com ela até cansá-la, igual o gato que brinca com o rato até levá-lo à
exaustão, para só então o devorar.
Norvina esfregou as pálpebras cansadas com os dedos. Isso seria um
desastre. O evitava porque tinha a certeza de que, em algum momento,
chegariam naquele ponto, bem ali, equilibrando-se no muro da entrega completa
ou do definitivo afastamento. O assustador foi perceber que não queria se afastar.
Os últimos meses foram cruéis, fingir que Darwish não existia fora tão eficaz
quanto negar seus sentimentos por ele.
— Eu prometo contar tudo, mas não de uma vez. Preciso garantir minha
segurança aqui, comandante.
Darwish pensou um pouco, estudando suas opções, e assentiu uma vez,
chegando à conclusão de que ter um pouco era melhor do que não ter nada.
Conhecendo Norvina, o príncipe devia saber que se ela não quisesse falar, não
existia nada que ele pudesse fazer para persuadi-la. Se ele a entregasse, corria o
risco de jamais saber dos segredos dela e isso o mataria.
— Acho que posso ficar satisfeito com isso por agora.
Norvina não teve nem tempo de comemorar antes das mãos dele virem
para o pescoço dela outra vez, e Darwish a puxar de forma brusca para encará-lo
bem de perto. Ele a fez ficar na ponta dos pés para não ser enforcada pela
pressão dos seus dedos longos e gentis. Sim, apesar de tudo soar violento, o
toque dele não conseguia deixar de ser gentil.
Norvina podia afirmar isso, já conhecera a verdadeira humilhação da
brutalidade de um homem. Quando Darwish a puxava para sussurrar palavras
venenosas dentro da boca dela, ele não podia estar mais distante de ser violento.
— Mas não tente me passar a perna ou porei uma coleira nesse seu
pescocinho e a manterei perto de mim o tempo todo.
Ela sorriu, irreverente, rezando para que seus mamilos ouriçados não
marcassem o tecido úmido de sua vestimenta. Um líquido grosso lhe empapava
as coxas, Darwish despertava o corpo de Norvina para a perversão, era culpa
dele que ela estivesse excitada por um homem que lhe apertava o pescoço e
ameaçava lhe colocar uma coleira.
— Parece que você vai ter que confiar em mim, príncipe.
Ele olhava para a boca dela, resistindo à tentação.
— Maldita gárgula. — Ele rilhou e separou-se dela de modo tão brusco
que Norvina cambaleou.
— Ah, que bom que disse isso, por um instante achei que fosse declarar
sua paixão unilateral por mim.
Darwish exalou ar quente pelas narinas dilatadas.
— No dia da sua morte ou da minha.
Ela gargalhou, parecia bêbada. Sentia-se bêbada, toda embriagada de
luxúria por aquele cretino soberbo.
A última coisa que Norvina queria que acontecesse, era que eles dois
tivessem uma ligação mais forte. Algo que impedisse seu tolo coração de se
desligar de Darwish por completo. Nada de bom resultaria dessa brisa outonal
que ele criava em seu interior. Era isso que queria evitar, que o príncipe criasse
raízes em seu coração por um sentimento que nunca deveria ser alimentado, pois
jamais seria correspondido.
Os dois ouviram a música vir de algum lugar do castelo e, ao olharem para
o lado, eles se deram conta de que estavam diante das portas duplas do grande
salão cerimonial onde Darwish era aguardado pelas pretendentes.
Uma flor de desapontamento desabrochou no solo árido do coração de
Norvina, mas era melhor assim. Escolhendo uma noiva, ele a deixaria de lado,
iria se esquecer do que acontecera entre os dois meses atrás, e poderia provar
que o que a cartomante dissera não passava de mentira para arrancar o dinheiro
dela.
Darwish nunca será meu, e eu nunca serei feliz e nunca terei… Chega.
Não pensaria mais nisso.
— Olhe para mim, estou imundo.
Norvina olhou e se arrependeu, Darwish tinha uma sujeira aqui e ali, mas
só contribuía para fazê-lo parecer mais perfeito.
— Eu disse que traria você a tempo, não intacto. Boa sorte.
Ela deu as costas, já vivera experiências demais por aquela noite e gastara
mais tempo ao lado de Darwish do que julgava saudável. Antes que pudesse dar
um passo à frente, as portas do salão se abriram e Zahara deu o ar de sua graça.
— Darwish. — Ela disse assim que viu o filho. Estava ali apenas para
procurá-lo. E então, os olhos de Zahara foram para Norvina. Parecia surpresa em
encontrá-los sozinhos em corredor vazio e meio escuro. — Norvina, veio
participar da cerimônia?
E ver Darwish desfilando a noite inteira com um enxame de mulheres?
Ela não conseguia vislumbrar um pior desfecho para a noite.
— Não, majestade, quis garantir que o comandante chegaria são e salvo.
— Norvina deu dois tapinhas nas costas dele.
— Não me chame de majestade, querida.
Claro, Norvina se esquecia que a mulher não era mais rainha desde que se
divorciara do faraó. Zahara era tão elegante e polida que era difícil não a
enxergar como uma soberana. A antiga rainha-consorte se virou para o filho e
adquiriu o ar de repreensão que vinha antes de uma bronca.
— Onde você estava e que roupa suja é essa?
Norvina pensou que seria muito divertido ver o príncipe se atrapalhar para
formular uma desculpa, por isso não se retirou, colocou as mãos para trás e
tentou conter o sorriso de deleite.
— Houve um pequeno imprevisto na minha caminhada até aqui. — Para o
desapontamento dela, Darwish parecia tranquilo demais. — O motivo do meu
atraso envolve uma das minhas pretendentes.
Zahara se exasperou e levou uma mão ao peito.
— Por favor, não me diga que alguém desistiu em cima da hora.
— Não, pelo contrário, temos mais uma concorrente. — Ele nem olhava
para Norvina, mas ela viu o exato momento que os olhos do príncipe brilharam
com a ideia infame.
— Ah, é? Quem?
Sem que ele precisasse dizer, Norvina já sabia. Sentia na medula dos seus
ossos.
— Norvina me pediu para ser minha décima primeira eleita, e eu, como a
alma caridosa que sou, disse sim.
— Nossa!
Foi o que saiu pela boca da mãe de Darwish. O príncipe esperava um
pouco mais de escândalo, com certeza, mas a simples junção de quatro letras
parecia resumir de modo ainda mais eficiente o que queria provocar. Pavor,
gritos e desordem!
Sorriu, de uma orelha a outra.
— Norvina? — Zahara indicou a mulher embasbacada ao lado dele.
— Sim. — Darwish nem fazia esforço em disfarçar a satisfação na voz.
— Essa Norvina aqui na minha frente? Norvina?
Darwish encarou a mãe com uma leve irritação, o sorriso vacilando.
— Sim, mãe, Norvina, por que é tão difícil acreditar?
Não era segredo que ele e a mulher fossem como cão e gato, rivais por
natureza, mas não lhe agradava a ideia de que fosse tão impossível assim
Norvina se interessar por ele. E o incomodava mais ainda era que fosse a
realidade.
— É uma reviravolta inesperada, é claro, mas muito feliz. — Zahara se
alegrou, uma expressão entusiasmada brilhando em seu rosto jovial. Darwish
experimentou uma felicidade distinta ao saber que a mãe aprovava Norvina
como sua esposa.
Isso pareceu ser o beliscão que Norvina precisava para sair de seu transe.
Ela encarou Darwish com os olhos esbugalhados, os lábios formavam uma linha
fina e pálida. Ele se preparou para pegá-la nos braços caso desmaiasse em cima
dele.
— Espere, eu não…
— É melhor entrarmos, sim? — Ele a interrompeu antes que arruinasse
tudo.
Zahara, que ainda parecia não acreditar no que se estendia em sua frente,
passeou um olhar desconfiado pelos dois. A mãe dele tinha o faro de um cão
quando se tratava de problemas. Darwish se tornara exímio na arte de esconder
seus tormentos, mas de sua mãe não conseguia fugir. Tinha que sair dali o
quanto antes.
O príncipe se virou para o salão, para garantir que Norvina entraria
também, colocou uma mão na lombar dela e a empurrou com sutileza. Talvez ela
ainda estivesse um pouco chocada para verbalizar um protesto, o que aumentou
ainda mais a gratificação dele. Sabia bem o que ela sentia, sentira o mesmo ao
ser abandonado naquele mercado, humilhado, sujo e traído.
A raiva ainda fazia o coração de Darwish ribombar forte, injetando o
veneno do rancor em suas veias, sobretudo por se dar conta de que se deixara ser
magoado por ela outra vez.
As grandes portas do salão foram abertas por dois lacaios, e os três
atravessaram o bonito umbral de ouro. Darwish estava entretido demais em
Norvina para perceber que estava sob o olhar atento de uma pequena multidão.
Ele quase tropeçou ao mover os olhos para frente e encontrar no final do salão
uma fila de belas mulheres, todas vestidas em tecidos luxuosos, lavrados em
cores ofuscantes, com penteados espalhafatosos e joias reluzentes.
As posturas eram impecáveis e os corpos… digamos que Darwish teria
uma difícil decisão pela frente.
O vestido de uma delas imitava as cores dos areais vermelho-carmesins do
baixo-Egito, com pedras de turmalina negra bordadas nas barras. Outra tinha
uma aparência muito distinta, seu vestido era feito de retalhos de pele de
diversos animais, abria-se na cintura e revelava as calças de montaria por baixo,
mas o que a tornava diferente eram os olhos apertados, de um povo estrangeiro
que prosperava no delta do Nilo. Assim como elas, todas as outras usavam
adereços que remetiam às regiões de onde vieram, desde os escaravelhos de ouro
com as asas abertas no pulso de uma, à pele de cobra bordada no vestido de
outra. Todas eram lindas e singulares.
Darwish sentiu-se envergonhado por parecer que fora mastigado e
cuspido. Era nítida a confusão nos rostos das suas pretendentes ao verem o seu
estado lastimável. Fulminou Norvina, parada ao seu lado, era tudo culpa dela.
Maldita Gárgula!
— Ocupe seu lugar na fila, querida. — Em voz baixa, Zahara instruiu
Norvina, que, nesse instante, ficou mais pálida do que já era.
Norvina olhou para Darwish à espera, quase implorando para que ele
acabasse com a brincadeira, mas ele deu um sorriso cruel para ela e apontou para
o final da fila.
— Ocupe o seu lugar, querida. — Burlou.
O príncipe não dava a mínima que parecesse cruel, faria Norvina lamentar
cada segundo de sofrimento que o fizera passar naquele beco, e quando ela
estivesse na beira do abismo da loucura, ele a empurraria um pouco mais e se
jogaria com ela.
Norvina trincou o maxilar, e Darwish teve a certeza de que, se estivessem
sozinhos, teria uma faca pressionada contra a própria garganta.
Sem um pingo de firmeza e com as pernas trêmulas, Norvina caminhou
até a fila sob o olhar atento e confuso de todos. Ela se colocou no final, com a
cabeça baixa e os cabelos a lhe ocultarem o rosto. Era ofuscada pelas outras
pretendentes, já que o estado de suas vestimentas não era muito melhor que o do
príncipe.
— Boa noite, senhoritas. — Darwish tirou os olhos de Norvina e se
curvou em uma breve e elegante reverencia. A chuva e a lama podiam tê-lo
transformado em um maltrapilho, mas precisaria de bem mais que isso para
demover o príncipe que existia dentro dele desde que se entendia por gente.
Passou os olhos astutos pelo rosto de cada jovem mulher. — Peço que perdoem
o meu atraso, como compensação pelo meu descaso, prometo minha inteira
devoção a vocês pelo tempo que ficarem em Alvorada.
Puderam ouvir suspiros apaixonados por todo o salão.
Embevecido, Darwish ocupou o lugar ao lado do trono em que seu pai
estava bem acomodado na postura ostensiva de soberano. Por cima do kafle[3] do
faraó, o príncipe avistou Áster olhando-o de forma interrogativa e sinalizou que
conversariam depois.
— Presumo que tenha uma explicação para essa sujeira respingando no
meu tapete. — Radamés falou, de forma discreta, enquanto uma por uma, as
donzelas eram apresentadas pelo arauto e colocavam aos pés do faraó um
presente.
— Me distraí e caí em uma poça de lama.
O faraó o mirou de forma especulativa.
— Se distraiu? Você? Que coisa mais impossível de acreditar.
Darwish inclinou um pouco a cabeça.
— Há uma exceção para tudo.
— Me pergunto se a poça seria a mesma em que a moça que entrou com
você aqui caiu.
Darwish evitou os olhos do pai, focando-se na bonita princesa que se
ajoelhava e colocava um pequeno crocodilo de ouro com olhos de esmeralda na
pilha.
— Sim, é o que se ganha por agir como um herói inconsequente. —
Sorriu. — O senhor sabe que não suporto ver uma donzela em perigo. Ouvi dizer
que isso está no sangue de todo príncipe.
Radamés o avaliou com uma sobrancelha arqueada.
— Temo que esteja, assim como a vilania, ambos em perfeito equilíbrio —
disse ele, contemplativo.
Darwish se pegou refletindo sobre as palavras do pai. Que tipo de príncipe
ele era? Um não muito bom, presumia.
— Apresento a senhorita Darissa de Meshed. — O arauto anunciou com
sua voz estridente.
Zahara acompanhou Darissa até o trono, o que fez o faraó encerrar a
conversa para encarar a ex-mulher de uma maneira que Darwish achou muito
errado testemunhar. Parecia que ele e o restante das pessoas no salão eram
intrusos em um momento de intensa intimidade.
Darissa se ajoelhou e colocou um delicado aparato de prata junto dos
outros presentes.
— O que é isso? — perguntou ele.
— É um anel, alteza, pertenceu à minha mãe, e é o que eu tenho de maior
valor.
Darwish anuiu, era uma grande ironia do destino que Darissa estivesse
diante dele. Ele, que anos atrás tomara a família e os sonhos dela. Se fosse
honroso, tomaria Darissa como esposa sem fazê-la passar pela realeira. No
entanto, faltava-lhe coragem. Ele a adorava, era muito bonita e bem-humorada,
mas não conseguia enxergá-la de outro jeito a não ser como uma irmã mais nova,
o que era muito errado em vista de que, no fim de tudo, seria ela quem ele
escolheria.
Os pensamentos de Darwish foram afugentados pelo burburinho que
varreu o salão com a entrada de Norvina. Aquele devia ser o mais peçonhento e
inimaginável pesadelo dela, caminhar diante do olhar de tantas pessoas. Ela
andou até o trono sem nenhuma elegância, com pressa e se curvou com menos
argúcia ainda, sem separar os olhos belicosos dos dele. Norvina o desafiava até
na respiração.
Ah, valeu a pena tê-la feito passar por isso só pelo belo vislumbre de tê-la
curvada perante mim.
Ele guardaria a memória em um recôndito especial da mente.
— Desculpe-me, majestade, não tenho nada para presentear à vossa alteza
além das roupas que cobrem o meu corpo.
— Não se preocupe…
— Elas servem. — Darwish se meteu na frente do faraó, o olhar azul
esculpido por uma crueldade voraz.
Ele de fato não era um herói, se fosse, não diria tais palavras.
Eles travaram uma batalha infindável de silêncio. Seria possível ouvir o
som de um alfinete se chocar contra o chão. Darwish podia sentir na língua o
sabor salgado do suor no ar, o vento quente que antecede um acontecimento
histórico.
— Me dê as suas roupas — exigiu.
Os músculos do príncipe ferviam, sabendo que aquele era o momento em
que Norvina se curvaria e imploraria por clemência.
— Tudo pela sua satisfação, meu príncipe.
O deleite de Darwish durou muito pouco.
Mulher ardilosa e cruel!
Norvina fez o impensável. Seria pedir demais que ela agisse conforme a
razão e somente pedisse perdão a ele? Parecia impossível que Norvina baixasse a
guarda ante Darwish. Naquele instante mesmo, ele quase não podia acreditar no
que ela fazia. O manto que a cobria caiu aos seus pés de forma vagarosa, para
não deixar dúvidas do que pretendia fazer. Sem demora ela retirou as botas e ao
ver que a mulher inescrupulosa tiraria a camisa e ficaria nua, Darwish pulou os
três degraus do trono e enfiou os dedos na carne do braço dela.
— Mudei de ideia, não é necessário que me dê uma regalia — falou,
ríspido.
— Eu faço questão, alteza.
Norvina puxou o gibão de couro batido pela cabeça e ficou somente com
uma fina bata de linho branco que deixava ver tudo sob o pano. Tudo.
— Chega, Norvina. — Darwish rosnou, fora de si e bufando, arrastou-a
para fora do salão sem nem se preocupar com a plateia que os acompanhavam
com olhares abismados.
Na privacidade do corredor, Norvina puxou o braço com brusquidão.
— O que você fez? — Ele esbravejou, furioso com ela por ter se exibido
daquela forma.
— Obedeci às suas ordens, comandante.
Como ela ainda ousava ser sarcástica?
Deuses, ela vai me matar!
Não, antes disso eu a mato!
Muita gente tentara, mas ninguém tirara Darwish do sério aquele ponto.
Ele podia sentir os batimentos do seu coração em todo o corpo e nem sabia que
era possível até aquele momento. Parecia que algo dentro dele explodiria.
— Você já provou que não tem medo de mim, agora vista-se!
Norvina arqueou uma sobrancelha.
— Atitude estranha vindo de alguém que é conhecido pelas orgias de que
participa.
— Não vejo a relevância de falar sobre isso nessa situação.
— Você não é um exemplo de pudor, alteza, então não me olhe com esses
olhos cheios de julgamento.
Ah! Ela acha que é um julgamento?
Darwish quase gargalhou. Sequer conseguia resistir à imagem dos
mamilos de Norvina marcando o tecido da roupa intima, e ela acreditava que a
exasperação no rosto dele se devia a um tipo de hipocrisia moralista.
Maldita seja!
Ela era mais bonita do que ele idealizara em suas fantasias vulgares. E
tinha curvas, muitas curvas. Ele percebeu que elas ficavam escondidas em
muitas camadas de roupa feia e de péssima qualidade. Norvina tinha músculos,
mas eles não a deixavam menos feminina. Os seios dela pareciam luas cheias,
brancas e palpáveis. O príncipe engoliu a saliva que explodia em sua boca.
A pele dela era toda cheia de pequenas sardas castanhas, e a cintura
delgada e curvilínea, e...
Os olhos dele se detiveram no ventre de Norvina, onde havia uma cicatriz
que ia de um lado a outro da barriga.
Ela percebeu que ele olhava e se cobriu rápido com o gibão.
Darwish elevou os olhos para o rosto dela, esperando uma explicação, mas
Norvina optou por fingir que nada acontecera.
Como sempre.
— Espero que isso tenha bastado para suprimir sua sede de vingança.
Darwish tentou colocar a mente em ordem outra vez, precisou de um
tempo.
— Não chegou nem perto, Bonita.
Norvina apontou um dedo para o peito dele como se fosse uma faca. Os
olhos do príncipe acompanharam os movimentos insubordinados dela, mas
parecia que para Norvina não fazia a menor diferença se ele era um maldito
príncipe.
— Eu não vou ser objeto da sua diversão, Darwish. Amanhã você vai
comunicar a todos que mudei de ideia. Não serei levada ao ridículo por você. —
O tom melífluo da voz dela fez o príncipe se desarmar inteiro. Ele a magoara de
alguma forma e a dor que sentiu o pegou desprevenido. Precisava se redimir.
— Não é minha intenção levá-la ao ridículo e jamais me divertiria com a
sua humilhação.
Como ela consegue fazer minhas emoções mudarem de forma tão
repentina?
Darwish não sabia e evitaria saber.
— Não é o que parece. — Norvina disfarçava muito bem, mas ele
conseguiu enxergar a mágoa por trás da nuvem de austeridade no olhar dela.
O príncipe passou uma mão pela testa suada. Não negaria que a colocara
na realeira para sentir algum prazer em vê-la se humilhar, mas não chegara nem
perto disso. Pensou que o que o irritara mais cedo fora ser abandonado por ela,
mas a verdade era que não conseguia esquecer a imagem da boca de Norvina
sendo beijada por outro homem. Assim que reconheceu que era o real motivo de
seu incomodo, Darwish entendeu que não tinha nenhuma humilhação pela qual a
fizesse passar que poderia fazê-lo se sentir melhor.
— Uma vez na vida você terá que confiar em mim.
— O que você ganha me mantendo aqui?
— Você estará perto de mim, e eu terei você.
Talvez aquela fosse a pior escolha de palavras possível, nada pôde refrear
a tensão tangível que surgiu entre os dois. O silêncio era palatável, o olhar de
Norvina era inescrutável, e a boca dela entreaberta, respirando quente e fluido,
deixou-o duro de uma forma incompreensível. Darwish precisava se meter em
alguém logo, era uma lástima que tivesse decidido semanas atrás que se
guardaria para sua futura esposa. A vida de celibatário não era para ele,
definitivamente.
— Quero dizer... — Ele arranhou a garganta. — Por que não posso perder
você de vista, os seus segredos são meus agora, lembra? Além disso, você me
deve um favor, e eu o estou cobrando. Você será minha parceira.
Norvina ergueu as sobrancelhas bem-feitas.
— Eu e você? Parceiros? — Ela riu pelo nariz. — Só passamos três horas
juntos, já nos ameaçamos de morte três vezes e houve duas traições.
— É, isso deve mudar. — Darwish nem acreditava no que estava prestes a
propor. — Podemos ser amigos ou podemos seguir nessa guerra eterna, nenhum
de nós vai ganhar nada com isso.
Norvina suspirou uma rendição.
— O que você propõe?
— Você vai ser minha informante. Vai manter a farsa de que participará da
realeira para estudar as pretendentes e me manter informado do que for
descobrindo. Com base no que você me disser, eu escolherei uma delas.
— Colocará em minhas mãos a responsabilidade de escolher sua esposa?
Darwish balançou a cabeça.
— Não, a decisão será minha. — Ele enfatizou. — Você só deve me dizer
qual delas me quer pelo que sou, e não pelos meus poderes aquisitivos.
— E se eu escolher a pior delas pensando em infernizar sua vida?
— Você só teria que se casar comigo, ninguém consegue me infernizar
como você.
Ela o encarou com aqueles grandes olhos de raposa, na meia luz da noite
eles pareciam lazúlis mergulhados em um rio raso. Darwish não conseguia tirá-
los da mente, mesmo ao passar dez meses sem falar com ela, a memória dos
olhos cheios de lascívia estava fresca. Fazia-o pulsar mesmo depois de tantos
meses. Norvina virou o rosto, rompendo sem piedade a conexão deles e voltou a
ser a coisa sem vida e inexpressiva a qual ele se acostumara.
— Muito bem, eu faço isso por você. Mas você me liberta da dívida e me
deixa em paz a respeito do meu passado.
Ele balançou a cabeça em uma negativa.
— Não, seu passado está fora da barganha.
— Você não acha que será muito favorecido com esse acordo?
Darwish passou o polegar no indicador, um gesto que aparentava
tranquilidade, mas que na verdade era uma tática para disfarçar o nervosismo.
Ele tinha a perfeita noção da dimensão do que propunha, toda a sua
racionalidade ordenava que ele impedisse o desastre de acontecer, mas não
conseguia. Não tinha forças para lutar contra o desejo de manter Norvina por
perto. Jamais admitiria que tinha receio de dar as costas e ela o ignorar por mais
dez meses. Ela era a distração que ele tentava evitar a todo custo.
— É essa a intenção, e eu tenho poder o suficiente para convencê-la a
aceitar, sabe, pelo bem ou pelo mal.
— Se acha que pode me intimidar, pense duas vezes. Eu sempre carrego
uma faca comigo e sei entrar despercebida nos lugares.
Darwish engoliu de modo audível com a ameaça.
— Só aceite minhas condições e prometo tentar não fazer dessa tarefa um
inferno para você.
— Impossível, mas eu aceito desde que me diga por que você escolheu
chamar isso de “realeira”.
Darwish não esperava que ela fosse impor algo tão superficial em troca
dos seus favores. De tudo que ela podia exigir em troca — ouro, poder, prazer
—, Norvina pedia uma informação insignificante. Bem, não seria ele quem
reclamaria.
— Nas colmeias, as abelhas operárias separam um lugar especial para
guardar as larvas das candidatas à abelha rainha. Chamei esse lugar de realeira.
Essas larvas são mantidas dentro desse berço e alimentadas por uma substância
especial, até o dia que são obrigadas a sair para lutar pelo posto de rainha, a mais
forte vence.
Norvina divagou nas palavras dele.
— Como você descobriu isso tudo?
Darwish deu de ombros.
— Muitas semanas de observação. O que você acha?
Ela o olhou por entre as mechas de cabelo luminoso.
— Eu acho que você tem muito tempo livre.
Darwish, com muito esforço, conseguiu reprimir um sorriso de triunfo.
A mulher amarrou as tiras do gibão e empurrou os cabelos para trás, dando
a ele um pequeno vislumbre do pescoço delgado.
Ele deu um breve tapa no ombro dela, e Norvina ficou olhando para onde
a mão dele a tocou.
— Quem diria que um dia seríamos aliados — disse ele, havia um certo
prazer em sua voz.
Ela divagou e meneou a cabeça, seus cabelos pretos e lisos dançaram
soltos atrás dela, como uma sombra.
— Não comemore ainda. Até onde sei, Hades e Perséfone eram aliados e
isso não o impediu de trancá-la no inferno com ele.
Ao fim da cerimônia, todas as onze selecionadas foram alojadas em um
harém a leste do palácio. As moças teriam a liberdade para caminhar por
Alvorada, mas sempre acompanhadas por suas servas e suas necessidades mais
urgentes seriam atendidas pela sacerdotisa que ficou incumbida delas. Se não
fosse ruim o bastante dividir um cômodo com mais dez mulheres, Norvina ainda
tinha que ouvi-las suspirar sobre as incontáveis qualidades do príncipe Darwish.
— Ao sorrir ele tem bonitas covinhas. — Suspirou uma delas e foi seguida
por uma horda de gritinhos irritantes.
— E a voz…
— E os músculos!
— Nunca vi olhos tão magníficos.
Norvina gostaria de ter pensado melhor antes de concordar com a proposta
de Darwish. Se soubesse o que teria que presenciar, arrancaria a própria língua
antes que pudesse dizer sim. Ignorou o rebanho de tolas e continuou a arrumar
suas roupas em um baú aos pés da pequena cama.
Não tinha muitos pertences para guardar, diferente das outras mulheres
que traziam montanhas de vestidos e baús exclusivos só para joias e adornos. O
sol nascia para todos, mas a sombra era para quem podia.
Ela moveu os olhos para a cama vizinha à sua, onde Darissa também
organizava seus baús. Desde que conseguira uma posição importante dentro do
parlamento, alguns meses atrás, Darissa ganhara alguns privilégios. Uma ótima
remuneração era um deles, e pelo que Norvina via, Darissa gastava tudo em
vestidos elegantes.
Norvina não podia se dar ao luxo de gastar seu dinheiro com roupas, não
recebia muito trabalhando na guarda real. Tinha seus truques para conseguir um
pouco a mais, mas guardava todo lucro para um eventual contratempo. Não sabia
quando teria que deixar tudo para trás de novo.
Se ao menos a cartomante tivesse previsto algo de útil…
Norvina balançou a cabeça, afugentando os pensamentos para os confins
de sua mente, nunca foi de acreditar nessas baboseiras e não seria depois de
velha que mudaria. Aprendera a ser realista depois de muito sofrimento, o que a
manteve viva. Sonhos serviam apenas para atrapalhar reais objetivos.
— Confesso que sua presença aqui me surpreendeu. — Darissa se esticou
na borda da cama. Norvina não sabia em que ponto, entre o dia que chegaram
em Astória e aquele, Darissa se tornara uma mulher.
Ainda lembrava da primeira vez que a vira entrar pelos portões do oásis de
Astarte, assustada após ter perdido toda a família em um massacre de guerra.
Norvina a ouviu chorar todas as noites durante seis meses. Até que um dia se
cansou e se deitou na cama com ela. Ofereceu seu ombro para Darissa chorar e,
pela manhã, disse que ela usasse o sofrimento como arma, que escondesse as
lágrimas ou seus inimigos as usariam para afogá-la.
Ela tinha onze anos, haviam-se passado nove desde então, e Darissa nunca
mais chorou.
Já era uma mulher, tão forte que os olhos eram um escudo e o sorriso
inocente uma arma.
As duas se evitavam desde que Darissa declarara a intensão de se casar
com Darwish meses atrás. Era uma grande bobagem. Por certo, Norvina não
diria que a informação a pegara de surpresa, ficara chateada por muitos dias, mas
jamais admitiria que o motivo do afastamento entre ambas envolvia Darwish.
Darissa merecia a felicidade, e Norvina não tinha motivos e nem se colocaria
entre a amiga e seu objetivo.
Para provar para si mesma que não se importava, faria o impossível para
Darissa ser a escolhida do príncipe.
— Não é o que pensa — falou, fechando o único e pobre baú em um
baque sólido.
Norvina parou de se mover ao sentir a mão fria de Darissa na sua.
— Eu posso desistir, Norvi. Basta você me dizer, e eu jamais competirei
com você por ele.
Um aperto no coração de Norvina quase a fez soltar palavras que não
deveria, e abriu o sorriso mais difícil de sua existência.
— Não diga besteiras, não existe competição entre nós por um homem,
nem que seja um príncipe. Meu acordo com Darwish não envolve um
matrimônio. Ele é meu comandante, eu sou sua oficial inferior, recebo ordens
dele e as obedeço, só isso.
Rezou para que tivesse sido convincente. Darissa sorriu, aliviada.
— Ótimo, isso tira uma grande preocupação de minha cabeça.
Norvina retribuiu o sorriso o melhor que podia, sem parecer estar com dor
de barriga, e apertou a bochecha magra da amiga.
— Como anda sua vida agora que é uma parlamentar?
Era ridículo, elas nem se viam há semanas. Moravam no mesmo palácio,
mas Alvorada era tão grande que poderia abrigar a cidade inteira em seu cerne.
Some isso ao fato de que as duas viviam ocupadas com suas profissões, Darissa
com seus dilemas reais, e Norvina com suas pancadas para distribuir.
Darissa passou uma mão pelo linho luxuoso do vestido verde esmeralda
que usava.
— Você sabe, ambição é como ópio, você começa ingerindo de pouco em
pouco e, quando menos percebe, se torna uma escrava. Quanto mais se tem, mais
se quer.
Norvina a encarou, especulativa.
— E o que você quer?
Antes que pudesse responder, Darissa foi atropelada por uma voz vindo do
meio do aposento:
— O que as duas tanto confabulam?
Uma das selecionadas, uma mulher alta e curvilínea levando uma peruca
longa cheia de contas douradas, olhava para elas exigindo uma resposta. A
beleza dela era intimidadora.
— Cuide da sua vida. — Norvina disparou, um sibilo na voz.
— Você não deveria falar assim com sua futura senhora. — A mulher
sorriu sarcástica, ao tentar provocá-la.
Uma emoção gélida e destrutiva subiu por Norvina e a fez cerrar os
punhos.
— Não dê ouvidos a Zaphenat, ela leva competições muito a sério — disse
outra moça, à direita dela. Pelas roupas que usava, Norvina podia presumir que
era do país de Naamer, conhecido pelas suas armas engenhosas. — Sou Kiara.
Norvina a cumprimentou com a cabeça.
— Sou Norvina e esta é Darissa. — Indicou a outra com um gesto de mão.
— Ouvi dizer que vocês duas conhecem o príncipe há mais tempo. O que
podem nos dizer sobre ele?
Norvina foi soterrada por dez pares de olhos cheios de expectativa. Puxou
o cabelo para o rosto e, por instinto, seus ombros vieram para a frente.
— Ele adora lírios, manjar de figo, e que o chamem de Dadá —
respondeu, sem pensar.
— Não se esforcem muito, não terão resultados de qualquer maneira, o
príncipe já é meu. — Zaphenat se vangloriou, até sua voz era melódica e suave,
sensual.
Norvina achava a confiança um atrativo, mas se enfeitada com arrogância
não passava de presunção. Era isso que Zaphenat era, um poço de presunção
com um par de peitos enormes.
— Está um pouco cedo para contar vitória, não acha? — Kiara falou.
Zaphenat deixou a escova que usava para pentear a peruca de lado, um
adereço que, por si só, evidenciava toda a sua riqueza, e olhou para elas com um
sorriso escarnecedor.
— A diferença é que eu posso contar, além de ser a mais rica e influente
daqui, tenho artimanhas que vocês são ingênuas demais para entender.
Norvina odiou saber sobre o que ela falava.
Argh, que mulher detestável!
Zaphenat era muito bonita, com quadris fartos, coxas torneadas e uma
galhardia que vinha de berço. Ela nem precisava se esforçar para acender a
luxúria de um homem. E o que deixou Norvina mais inquieta e desgostosa a
respeito da mulher foi perceber que desde a unha do dedo mindinho ao último
fio de cabelo, ela era perfeita para Darwish.
Ele estava certo, aquelas mulheres jogariam muito baixo para garantir a
posição de princesa-consorte. O príncipe era o segundo na linha de sucessão,
com o nascimento dos gêmeos de Áster, Darwish estava cada vez mais distante
do trono, ainda assim, era de conhecimento popular que ele tinha poder e
riquezas o bastante para jamais precisar sentar-se nele. E, pelo que Norvina
conhecia do príncipe infame, apostaria seu punhal que ele escolheria Zaphenat.
A sacerdotisa responsável pelo harém escancarou as portas ao entrar no
quarto, caminhou entre elas apagando as lamparinas e encerrando a conversação.
Norvina se deitou na cama, e não muito depois, Darissa se juntou a ela, como
nos velhos tempos, na época em que as duas acreditavam que morreriam entre as
muralhas intermináveis do oásis de Astarte, onde a jornada delas começara.
Após estarem imersas na escuridão, e o silêncio reinar no quarto, Darissa se
virou para Norvina e acariciou uma mecha do cabelo de azeviche da amiga.
— Do que acha que Zaphenat falava? — indagou, Norvina mordeu o lábio
inferior.
Não parava de pensar nas palavras da mulher desde que ouvira. O que
Zaphenat planejava oferecer a Darwish? Duvidava que fossem somente beijos, já
que não seriam o bastante para convencer um homem como Darwish a se casar.
Decidiu parar de pensar no assunto e ignorou a angústia em seu peito. Cobriu o
ombro de Darissa com o lençol e se aconchegou para dormir. Seu corpo
implorava por descanso depois de um dia tão conturbado.
— Eu não sei, mas com certeza não serão seus dotes com costura.
Darissa sorriu e continuou acariciando a mecha de cabelo ondulado de
Norvina.
— Eu achei que ele fosse alérgico a lírios e odiasse figo.
Foi a vez de Norvina sorrir.
— E ele odeia, mas isso pode ficar entre nós.
— O que você fez?
Darwish mal entrou na sala de estar e foi alvejado por Ramessés. Parou na
soleira. Toda a família esperava por ele. E não exagerou ao dizer “toda a
família”, até mesmo os sobrinhos — Aspen e Orion —, que não tinham nem sete
meses de vida, estavam lá. Kamilah e seu cônjuge, Aslan, vieram da Pérsia para
assistir ao casamento dele, e ao que parecia, a única coisa capaz de manter seu
pai e sua mãe no mesmo cômodo era a promessa de uma fofoca raiando no
horizonte.
— Será que posso tomar uma bebida antes de ser dilacerado como um
pedaço de carne em um lago infestado de crocodilos?
O príncipe subiu as mangas da túnica, e todos ficaram em silêncio à
medida que ele enchia um cálice com vinho em um aparador de bebidas.
Darwish ingeriu um farto gole e apreciou a dormência na língua. Com sorte, até
o fim da noite não sentiria mais parte alguma do próprio corpo.
— E então? Você a subornou?
O líquido voltou queimando pelas narinas do príncipe, que engoliu um
palavrão em respeito aos sobrinhos e encarou Ramessés ultrajado.
— O que você acha que eu sou?
— Colocou uma faca no pescoço dela? — Foi Áster quem falou.
Darwish olhou para o alto, pedindo forças para não assassinar um parente.
— Óbvio que não! — Se existia a possibilidade de alguém colocar uma
faca no pescoço de alguém, seria ele a vítima, não Norvina. Deixou o cálice de
lado antes que o arremessasse na cabeça de alguém. — É reconfortante saber
que minha própria família me tem em tão pouca credibilidade.
— Não é bem assim. — Zahara tentou abrandar a situação, mas ninguém
pareceu envergonhado pelas acusações.
Darwish respirou fundo, de todas as famílias do mundo por que fora
agraciado justo com um bando de mexeriqueiros?
O único que não parecia interessado na vida dele era Aslan, que tentava de
modo inútil não chamar atenção, em um canto da sala. Darwish apreciava isso
no cunhado, a indiferença dele sobretudo, menos sobre Kamilah. Ao se tirar
tantas vidas, chega um momento em que é inevitável se tornar apático sobre
coisas banais, era uma consequência feral. Darwish admirava muito Aslan por
ser forte o bastante para não deixar que o peso das mortes o impedisse de ser
feliz e, em especial, de fazer Kamilah tão feliz.
— Não nos leve à mal, Darwish, mas nós conhecemos você e conhecemos
Norvina — disse Kamilah, como se isso, por si só, explicasse muita coisa.
Darwish permaneceu impassível.
— E?
— Norvina sempre fugiu de aparições públicas — explicou Zaya.
Darwish apertou o osso do nariz na ânsia de organizar os pensamentos.
Algumas coisas começavam a se encaixar. Os contrabandistas não disseram
muito a ele, mas era meio óbvio que sabiam bem mais sobre o passado de
Norvina, tudo que conseguiu comprar com o bracelete de ouro foi a informação
de que a mulher era uma princesa fugitiva.
Darwish ainda tinha tantas coisas a desvendar, como por exemplo, de
quem Norvina fugia e o porquê.
— Já pararam para pensar que ela gosta de mim, e por isso decidiu
participar?
Ninguém esboçou nenhuma reação e, pelas expressões, ficou nítido que
aquele era o último pensamento que lhes passou pela cabeça.
— Bem, isso é um tanto… — Ramessés começou a dizer e parou para
encontrar a palavra adequada.
— Bizarro? — Áster sugeriu. Ramessés apertou os olhos testando a
palavra e balançou a cabeça.
— Não, eu diria que medonho. — Ele complementou e sorriu contente. —
O pensamento de Norvina interessada em você é medonho.
Medonho.
Darwish repetiu a palavra inúmeras vezes em sua cabeça. Por que não
parecia medonho? Por que não conseguia convencer a si mesmo de que era
errado, em vez de se sentir ainda mais tentado pela estupidez de fazê-la dele, só
para provar a todos que estavam enganados?
O príncipe sentiu algo tateando por sua perna, era o pequeno Orion, que se
arrastara até ele e lhe mordia as tiras da sandália na canela. Os gêmeos estavam
em uma fase terrível de dentição e, por consequência, enfiavam tudo na boca.
Darwish ignorou a todos e pegou o sobrinho no colo. O bebê abriu um
sorriso ao ser erguido no ar e ser chacoalhado. A gargalhada entusiástica da
criança foi o suficiente para diminuir a irritação que o príncipe sentia. Um filete
de baba caiu da boca de Orion e atingiu o rosto de Darwish.
— Sua coisinha gosmenta. — Ele resmungou para o sobrinho, que pareceu
entendê-lo e sorriu, exibindo a gengiva sem dentes.
O príncipe limpou a baba com a gola da túnica e espalhou beijos pelas
costelas frágeis de Orion. Ele sentia que se fizesse um pouco de força nos dedos
poderia machucá-lo e isso lhe dava aflição. O bebê gargalhava, e Darwish sentia
uma felicidade involuntária e inexplicável, não via a hora de ter o seu próprio
bebê. Ele o teria, em breve.
Muito em breve. Prometeu a si mesmo.
— Sinto muito em decepcionar vocês, família, mas estão enganados. Não
é tão surreal assim que Norvina e eu tenhamos interesse um pelo outro, nós
passamos bastante tempo juntos nos campos de treino, não sei se lembram, mas
eu sou o comandante dela. Ela deve ter visto que sou irresistível em algum
momento, porque convenhamos, qual mulher seria louca de não se apaixonar por
mim?
— Como sempre, muito modesto. — Áster resmungou, em um revirar de
olhos.
E era verdade, antes de tudo acontecer há dez meses, eles passavam muito
tempo juntos. A maior parte dele era preenchido por provocações e xingamentos,
e Darwish sempre se controlava para não pular em cima dela e lhe calar a boca.
A única parte que não era real era a que Norvina se apaixonara por ele.
Desafiando todas os paradigmas do universo, ela era imune a todos os encantos
do príncipe.
Ela não era a mulher mais bonita que Darwish já vira — nem a mais
atraente — e contava com uma escassez horrível de qualidades para ser uma boa
esposa ou até mesmo para alguém que deveria caminhar à solta por aí. Na maior
parte do tempo Norvina se escondia atrás de inúmeras camadas de roupas cinza e
sem vida, e sempre tinha o cabelo solto, cobrindo a maior parte do seu rosto,
como um capuz de fios negros profundos, e, ainda assim, conseguia tirá-lo do
juízo como nenhuma outra jamais fizera. Nos raros momentos em que ela
pensava que ninguém a olhava, Darwish podia ver a mulher que existia
enjaulada em algum lugar daquela muralha, gritando para ser resgatada das
grades de sua prisão.
Ele queria escalar a terrível torre e tirá-la de lá, porém, Norvina não
parecia ser alguém que precisasse de resgate. Se ela estava na torre, era por
vontade própria.
— Não é impossível que vocês gostem um do outro, só é suspeito, porque
até semana passada você a chamava de “Serpente de Apófis.” — Zaya fez
questão de lembrá-lo.
— Se até o sol e a lua, que são opostos, se atraem uma vez a cada ano, por
que nós não poderíamos ser iguais?
— Existe uma razão para o sol e a lua viverem separados. O que nós
tememos é o que a junção de vocês dois possa acarretar. — Áster pontuou,
Darwish não teve como retrucar, visto que também se preocupava. Se fosse
sincero consigo mesmo, assumiria que já tinha as respostas para suas perguntas
sobre Norvina, e não eram muito agradáveis.
— Bem, isso me deixa aliviada e receosa. Aliviada por saber que se casará
com a mulher que ama e receosa porque existe o risco de vocês se matarem antes
de me darem netos. — Zahara foi até ele e o abraçou.
— Eu ainda não me decidi, mãe.
Ela olhou nos olhos do filho, Darwish sentiu-se invadido e nu.
— Tem certeza que não?
Darwish abriu um sorriso amarelo, voltando a brincar com Orion, porque
não queria mais encarar ninguém.
— Estava mais interessante quando eu achei que você a subornara. —
Ramessés brincou.
— Mas não descarte a hipótese de um assassinato, ainda. — Darwish soou
ameaçador, e Ramessés parou de sorrir no mesmo instante.
— Já que não tem ninguém sendo ameaçado, vou colocar meus filhos para
dormir.
Áster veio até ele e lhe deu um olhar que dizia que conversariam a sós em
outro momento, pegou Orion dos braços de Darwish e saiu, acompanhado de
Zaya, que levava um Aspen já sonolento.
Depois foram Ramessés, Kamilah e Aslan, e em seguida Zahara. Darwish
pensou que poderia enfim respirar, mas estava muito enganado. Ao se virar,
reparou que seu pai ainda estava no mesmo canto, tão silencioso que parecia um
móvel da sala.
— Posso beber com você? — perguntou o faraó.
Darwish apenas queria estar só, mas era a primeira vez na vida que o pai
fazia uma proposta como aquela. Além disso, era pouco provável que recusaria
um convite para beber. Acenou com a cabeça e serviu ao soberano um cálice da
bebida fermentada. Sentou-se no outro extremo da sala e permaneceu em
silêncio.
O faraó sempre estivera tão ocupado durante a infância dele, era estranho
tê-lo tão acessível. Por muito tempo, Darwish acreditara que seu pai era uma
entidade e mesmo naquele momento não sentia-se confortável na presença dele.
— Você tem algo a dizer, não tem? — Radamés disse depois de beber um
primeiro gole.
— Por que acha isso?
— Porque você sempre tem.
Os cantos da boca de Darwish se curvaram para cima em um sorriso.
— Mais cedo o senhor disse que um príncipe pode ser um herói ou um
vilão. Quem determina o que é “mau” para classificar alguém como uma pessoa
ruim?
O pai dele o escrutinou.
— Você mesmo.
Isso não ajudava em muita coisa. Darwish passou os últimos anos tentando
se convencer de que era jovem demais para entender a profundidade de suas
ações, mas seu coração o impedia de mentir. Lá no fundo ele sabia que era uma
pessoa horrível, devido a tudo o que fez no passado. As mãos do príncipe
começaram a ferver, e ele as esfregou para suprimir a lembrança do sangue
quente em sua pele.
Voltou a pegar o cálice de vinho e o usou como um escudo ante o peito.
— Aquela moça, Norvina, você parece nutrir afeição por ela.
Darwish piscou muitas vezes. Não gostava da ideia de ter Norvina longe
dele, mas, se ela estava perto, tudo que ele fazia era tentar não espremer o
pescoço dela. Isso é afeição?
— Não sei onde quer chegar, meu pai, mas já expliquei.
Radamés ergueu a mão para silenciá-lo.
— Não é porque eu não estive presente em boa parte da sua infância que
não conheço você, garoto. Além disso, você tem os olhos de Zahara, jamais
poderia mentir para mim.
Darwish olhou em outra direção.
— Eu não posso dizer — revelou.
Não podia dizer o porquê de parecer ridículo confessar para o pai que
obrigara Norvina a participar da realeira para ter a doce ilusão de que ela
poderia ser dele, nem que fosse por meio de uma farsa.
— E você não precisa me dizer. — Radamés se levantou. — Você quer
que ela seja sua?
Darwish encarou o chão, a resposta estava na língua, mas entre o querer e
o precisar, existiam léguas de distância.
— Ela é minha oficial inferior, eu lhe incumbi de uma tarefa, e ela a está
realizando. Não passa disso e nunca passará — disse, tentando convencer não
somente ao pai, mas também ao seu volátil coração.
Radamés o encarou, diferente de Darwish, os olhos do faraó eram escuros.
Era semelhante a encarar a superfície de um lago negro, apesar de toda a
profundidade e tudo que se escondia por baixo do negrume, tudo que você
encontraria era o seu reflexo.
— Certo, certo. — Radamés anuiu e girou o vinho do cálice antes de virá-
lo garganta abaixo. — Eu prometi a mim mesmo que não interferiria na vida de
meus filhos com base no que acho que seja bom. Eu devo deixar que você decida
o que quer, porque será assim que aprenderá o que de fato é bom para você, mas
aquela moça… ela carrega muitas correntes, e é importante que você saiba que
se ela se atirar ao mar, aquele que estiver preso nas correntes se afundará com
ela.
Darwish engoliu em seco, não queria pensar nas consequências naquele
momento. Tinha a consciência de que não importava o quanto adiasse, uma hora
teria que escolher uma esposa, e não seria Norvina. Em algum momento
renunciaria à obsessão que tinha por ela e a deixaria em paz para sempre, mas o
momento não era aquele.
Norvina respirou o ar puro e fresco do corredor ao conseguir escapar da
loucura do harém. Quem diz por aí que uma tempestade de areia é perigosa,
nunca esteve em um quarto com outras dez mulheres competindo por um
príncipe. Foi a primeira a se vestir para o jantar formal, já que era a única que
não dava a mínima para estar bonita.
Colocou o uniforme que ela mesma desenhara e costurara. As calças justas
lhe modelavam as pernas, a camisa de linho branco com mangas longas e o
gibão adornado com fivelas de ferro cobriam quase tudo, menos as mãos e um
pouco do pescoço. Permitiu aos cabelos secarem soltos, caídos pelo rosto pois
lhe davam segurança. Seu único adereço era o punhal que nunca saía do coldre
ao redor de sua coxa.
Esperou do lado de fora do harém, andando de um lado para o outro com
as mãos unidas na base da coluna, pensando que poderia fazer algo de útil com o
tempo em vez de participar daquela baboseira.
A razão da demora era que alguém roubara o vestido de uma das
pretendentes, e tiveram que fazer um novo às pressas. Ao que parecia, a moça
não podia vestir um outro da sua enorme coleção. O sumiço do vestido era o
sinal de que a competição das abelhas pela mão do príncipe dera início, e quem
não ficasse esperta, poderia acordar sem os cabelos. Mulheres são perigosamente
ardilosas ao compartilharem um objetivo.
Você precisa do mel para atrair as formigas, mas corre o risco de atrair
uma abelha, Darwish atraiu dez delas.
O que pareceu uma eternidade depois, todas estavam prontas. Foram
guiadas por uma sacerdotisa até o salão de banquete, onde os três príncipes, a
rainha da Pérsia e seu consorte, o faraó e a rainha deposta as esperavam.
Ao se colocar ao lado das outras donzelas na fila, Norvina se arrependeu
por não ter dado mais atenção à sua aparência. Até mesmo a moça que teve que
fazer um vestido às pressas estava mais apresentável. Não precisava de tantos
adornos, mas poderia pelo menos ter colocado um vestido, ou algo que não a
fizesse parecer um guarda. Ela se assemelhava a um pedaço de carvão colocado
por acidente entre joias raras.
Os vestidos eram deslumbrantes, pareciam terem sido costurados nos
corpos das mulheres, de tão bem que caiam em suas curvas, emanavam
luxuosidade e elegância. Em uma sincronia perfeita, as onze mulheres fizeram
uma reverência diante do soberano do Egito. O faraó Radamés sorriu, extasiado,
teceu alguns elogios e, sem demora, liberou-as para circularem pelo salão.
Norvina larapiou um cálice de vinho da bandeja de um criado e deu um
jeito de ficar imperceptível atrás de uma pilastra. Não teve que fazer muito
esforço, ela era a pessoa menos interessante em todo o palácio.
De onde estava, conseguia ver Darwish tentando se desenrolar do engodo
de mulheres que competiam pela sua atenção. Chegava a ser cômico ver o
nervosismo dele, buscava sempre atenção e, no momento em que a tinha, não
sabia o que fazer com ela. Norvina tirou os olhos do príncipe por meio minuto,
somente o tempo de conseguir outra taça cheia e, ao voltar a olhá-lo, deparou se
com Zaphenat na companhia dele. Não sabia como, mas a mulher encontrara um
jeito de ficar sozinha com Darwish.
Norvina gostaria de saber o que conversavam, o que, de tão interessante,
Zaphenat dizia para fazê-lo sorrir tanto. Ela percebeu que apertava com
demasiada força a haste do cálice e mudou o curso de seus olhos, deixando
Darwish, Zaphenat e seus sorrisos frouxos para lá. Em um canto do salão,
avistou Darissa e Ramessés conversando. As cabeças deles estavam inclinadas,
um para o outro, e tudo denunciava que era uma conversa como qualquer outra,
mas os olhos de Norvina captaram algo mais. Ela não sabia dizer o quê, mas era
tão visível quanto a lua cheia no céu noturno.
— Você não vai tentar impressionar o seu príncipe? — A atenção dela foi
tomada por Zaya, que se esgueirara para o lado dela feito uma sombra.
Norvina bebericou do cálice, o vinho era péssimo, já tomara três taças e
estava sóbria demais para passar pelo jantar.
— Só conseguiria esse feito se me cobrisse de ouro da cabeça aos pés.
— Parece que alguém já teve essa ideia.
Zaya apontou para uma das pretendentes, era Grisha, da cidade de
Heliópolis, famosa pelas minas de ouro, seu corpo franzino estava coberto por
um vestido de seda brilhante da cor do ouro líquido, sua peruca estava cheia de
pó dourado e miçangas da mesma cor, joias de ouro lhe envolviam os dois
braços, da maquiagem até a cor da tintura das unhas era dourada.
— Isso que eu chamo de empenho.
As duas riram.
— Mesmo assim, não tem intenção de conversar com ele?
Norvina balançou a cabeça. Seus olhos foram para Darwish contra sua
vontade, só para encontrá-lo beijando a mão de Zaphenat. O decote da mulher
acabava embaixo do umbigo, onde tinha uma joia verde que refletia cada vez
que um facho de luz batia sobre ela. Podia dizer qualquer coisa de Zaphenat, mas
não podia chamá-la de feia.
— Não acho que ele precise de mim para lhe encher o ego.
— Tem razão, ele sempre foi cheio sem precisar de ajuda para isso. —
Zaya a fez sorrir outra vez.
Norvina não via como podia competir com as outras. Há muito chegara a
ser parecida com elas, tivera a pele sedosa e limpa, a feminilidade a
acompanhara em tudo e tivera a beleza da inocência. O deserto a presenteou com
uma pele ressecada pelo sol e cheia de sardas, as espadas fizeram desenho em
sua alma, e tornaram suas mãos calejadas de tanto empunhá-las. Norvina não
gostava da forma de seu corpo, seus quadris avantajados, se destacavam em
comparação com a finura de sua cintura e o cabelo… digamos que estava longe
de ser uma de suas qualidades. Além de não ser tão bonita quanto elas, não tinha
tanta influência e dinheiro. Darwish queria fazer um casamento vantajoso,
Norvina podia ter um título de princesa, mas há muito deixara de ser uma.
O banquete foi anunciado e mais algumas horas de martírio interminável
começaram. Se observar Darwish sendo bajulado de longe era péssimo, ter que
presenciar tão de perto foi como estar amarrada na roda de Ixion, girando sem
parar nas chamas do seu pior pesadelo.
Pelo menos pôde fingir que nada a incomodava e comer. No palácio ela
vivia bem, como guarda, conseguira algumas regalias, mas nem se comparava a
vida na realeza, em que a comida era sempre fresca e ricamente temperada, sem
mencionar a variedade. A cornucópia transbordava de frutas frescas e limpas.
Eles serviram travessas cheias de carneiro assado com batatas e condimentado
com calda bem grossa de damasco, era agridoce e atiçava suas papilas
gustativas; para a sobremesa serviram pão torrado molhado no mel. Por um
tempo, tudo que ocupou a mente de Norvina foi a festa de sabores em sua boca.
Quem dera isso fosse suficiente para impedi-la de ouvir a conversa que
acontecia à sete cadeiras da sua.
— Você precisa conhecer Bahae, alteza, qualquer um que passe pela
minha cidade jamais sai dela insatisfeito.
— Qual a festividade mais conhecida em Bahae? — Darwish quis saber.
— Com certeza, a festa de Tekh. Uma vez por ano o imperador, meu pai,
libera cerveja para todo o povo e por uma semana inteira bebemos em
homenagem a Hathor. É uma maneira de nos livrarmos de preconceitos e
inibições, uma forma de nos unirmos mais intimamente ao povo.
O príncipe arqueou uma sobrancelha, seus lábios formaram um sorrisinho
astucioso.
Será que Darwish continuará tão bonito se eu... sei lá, partir o nariz dele
com um soco?
— Ah é?
A mulher levou a mão para o bíceps dele e deu um leve aperto ali. Norvina
passou os olhos pela mesa, ninguém vira aquela pouca vergonha?
Argh!
— Sim, eu adoraria conhecer você mais, intimamente, Dadá.
Norvina pôde ver o músculo da bochecha de Darwish saltar ao ouvir o
apelido. O rosto dele azedou em uma velocidade impressionante. O que quer que
surgira entre ele e a garota despudorada, morreu no mesmo instante.
Ela estrangulou uma risada.
Darwish bebeu um gole do cálice de ouro e se virou para a mulher do
outro lado, deixando a primeira com uma expressão confusa, perguntando-se o
que tinha feito de errado. Norvina quase se sentiu culpada. Quase.
— Você precisa conhecer minha família, alteza. Como você, tenho vários
irmãos. Temos um invejável histórico de fertilidade. Eu sou a sétima filha de
minha mãe e minha irmã mais velha já está no terceiro filho em somente quatro
anos de casada.
Como se isso fosse uma vantagem. Norvina pensou, cortando a carne do
carneiro em seu prato, o cenho franzido e uma expressão perturbada.
— Isso é bom, eu adoro crianças.
A comida virou argila na boca de Norvina e seu apetite foi aniquilado. Seu
estômago ficou pesado e uma melancolia aterradora cresceu em seu peito, mas
antes que pudesse se fixar no significado dela, Darwish deu um espirro e mais
outro que desencadeou uma série de novos espirros.
— O que há de errado? — perguntou a garota fértil, ela se chamava Yunet,
ou algo parecido, Norvina não tinha certeza.
— Não sei, eu… — Outro espirro. — Por que sinto cheiro de lírios?
A garota arregalou tanto os olhos que Norvina surpreendeu-se que não
tivessem ido parar no prato dela.
— É o me-meu pe-perfume, alteza, pensei que gostasse de lírios.
Norvina sentiu pena da pobre coitada.
— Eu sou alérgico a lírios — disse ele, com a voz esganiçada, seus olhos
já começavam a lagrimejar.
O humor de Norvina ficou ótimo outra vez. Fingir que fazia parte da
realeira seria melhor do que achara. A comida, com certeza, fazia valer a pena,
mas nada lhe traria mais prazer do que ver Darwish em situações embaraçosas
como essa.
— Vou ter que pedir para que troque de lugar, querida. — Zahara levantou
a voz, condescendente. — Norvina, você pode ceder sua cadeira?
Norvina levantou a cabeça tão rápido que seu pescoço fez um som
horrendo. Só podia ser um castigo por ter confabulado contra Darwish. Pensou
em recusar, mas todos na mesa olhavam para ela, esperando por uma resposta, e
seria muito rude da parte de Norvina dizer não a uma rainha, ainda que essa
rainha não tivesse mais o trono. Norvina se levantou a contragosto e rodeou a
mesa em direção à cadeira vazia ao lado do príncipe.
— Está melhor agora? — Zahara quis saber, em tom atencioso. Darwish
gesticulou com a cabeça.
— Estando ao lado de Norvina, o único risco que corro é o de morrer de
tédio. — Ele falou, de um modo que só ela ouviu.
— Não descarte morte por envenenamento, Dadá. — Ela retrucou,
escondendo um sorriso dentro da taça.
Ele cerrou os olhos azuis para ela. Estavam com um tom muito semelhante
ao do fogo que destruía de pouco em pouco uma floresta inteira.
— Foi você, não foi?
Norvina fez uma cara inocente e bateu as pestanas longas.
— Eu não sei do que me acusa, alteza.
O rosto dele adquiriu uma sombra libertina.
— Eu sou um príncipe, você sabe, tudo que eu tenho que fazer é dizer que
você tentou me matar e ninguém ousará discordar de mim. — Ele soou
ameaçador. Havia algo de provocante ali.
— Você é bom demais para fazer algo tão cruel.
A pele nua da coxa dele tocou a dela em uma carícia rápida e abrasadora.
Norvina engoliu em seco e disparou os olhos para lá. Ao erguer a cabeça outra
vez, ela se assustou ao se dar conta de que eles estavam muito próximos. Podia
até sentir o cheiro doce do vinho nos lábios de Darwish.
— Não sei, uma eternidade tendo a cabeça devorada por Ammit ainda
parece insignificante em comparação com o prazer que eu sentiria em ver você
gritando pela minha misericórdia.
Aquela conversa deveria apavorá-la, Norvina já esteve à mercê da
crueldade de um homem. Mas por que não sentia-se do mesmo modo quando era
Darwish quem a ameaçava? Porque tudo que ele dizia, soava como outro tipo de
penitência, outro tipo de misericórdia. Talvez ela estivesse sendo conduzida pelo
vinho e imaginava obscenidades.
— Você teria coragem de machucar uma mulher indefesa? — Ela
estranhou o som de sua própria voz, então molhou os lábios ressecados.
Darwish jogou a cabeça para trás e encheu os ouvidos de Norvina com
uma gargalhada que mandou arrepios por todo o corpo dela. O movimento fez
com que o príncipe exibisse o pomo onde a cabeça da cobra repousava, e onde
ela sentia os lábios doerem para saborear.
Queria encostar a boca na veia que crescia no pescoço de Darwish, sempre
que ele ria de algo, e senti-la pulsar em seus lábios. Queria senti-lo pulsar nela
como um todo.
— Eu jamais seria ingênuo a ponto de crer que você é uma mulher
indefesa. Já fiz isso uma vez e me custou sua entrada no meu batalhão.
Norvina encarou o próprio prato meio vazio, tentando permanecer sóbria,
ou, pelo menos, parecer sóbria.
— Alteza, está perdendo seu tempo comigo, talvez deva devotar sua
atenção a uma mulher que o queira de fato.
Um breve silêncio se introduziu entre eles.
— Você só está dizendo isso porque eu venci.
— Nem tudo sobre nós dois é uma competição.
Ele se inclinou mais para perto dela, Norvina resfolegou ao sentir a
respiração de Darwish em sua orelha. Era muito inadequado, e ela tinha a plena
convicção de que muitos olhos na mesa estariam neles dois, mas nada parecia
importar para o príncipe. Ele era um homem sem pudores e pouco se preocupava
com o que os outros pensavam a respeito dele.
— Não é? Você confidenciou minhas fraquezas às pretendentes quando
deveria me ajudar a conquistá-las. Seja sincera, Raposinha, você está tentando
sabotar o nosso acordo.
Norvina riu pelo nariz.
— Por que eu faria isso?
— Ciúme.
Um arrepio a fez tremer ao ouvir a voz de Darwish, lânguida e melíflua,
sussurrando em seu ouvido. O rosto de Norvina se virou para o dele de forma
involuntária, olhos nos olhos. Eles não podiam fingir que não existia um latente
desejo que queimava e os atraia um para o outro.
— Confesse. — O cálido hálito do príncipe beijou a pele fina dos lábios
da mulher.
Norvina fechou os olhos, sorvendo a tênue carícia.
— Você teria minha língua em uma bandeja antes de ter minha confissão.
Oh, como isso é errado…
Darwish e ela eram faíscas, separados não proporcionavam quase, ou
nenhum, perigo, mas juntos fariam a terra arder em fogo pela eternidade.
Com um sorriso no canto da boca ele disse:
— Eu me contento em apenas ter sua língua.
Norvina chacoalhou a cabeça.
— Você não passa de um sedutor barato.
O fim do banquete veio mais cedo do que ela esperava, e as pretendentes
foram acompanhadas de volta para o harém. A noite não fora um completo
desperdício para Norvina que comeu bastante e bebeu mais ainda. Podia ser
efeito do álcool, mas sua perna ainda ardia na região onde a de Darwish roçara, e
a sensação agradável que teve ao sentar-se ao lado dele ainda estava dentro dela.
— Eu nem pude falar com ele! — Uma garota choramingou e escondeu o
rosto no travesseiro para chorar.
— Não fique assim, você terá outra chance, Layla. — Outra das
pretendentes a acalentou.
— Poupem seus esforços — disse Zaphenat, que ficara em silêncio todo o
jantar, o que era muito estranho.
Kiara lançou um olhar nada agradável para ela.
— Não seja insensível, não vê que para muitas de nós o casamento com o
príncipe é a única oportunidade de salvar nossas famílias da falência iminente?
Zaphenat deu de ombros e se deitou despreocupada na cama. Descansou a
cabeça na mão e suspirou em deleite.
— Eu estou ajudando vocês, impedindo-as de criarem esperanças.
— Você não tem como saber quem ele vai escolher.
— É? Então, por que fui a única a quem ele convidou para um passeio
amanhã?
Norvina, que estava distraída tirando a roupa, voltou toda a atenção para a
conversa.
— Isso não quer dizer nada, ele levará todas nós a um passeio antes de se
decidir quem será sua esposa — disse Kiara.
— Sendo a primeira, eu poderei fazê-lo se apaixonar por mim e ficará
impossível para qualquer uma de vocês chegar aos meus pés.
— Não se engane, Darwish leva muito o caráter de alguém em
consideração. — Norvina admoestou e odiou que soasse na defensiva.
— Se apegue a isso querida, já que essa deve ser a única coisa que você
tem a oferecer. — Zaphenat jogou água na brasa de animação que mantinha
Norvina aquecida.
Que ser desprezível!
A sensação agradável que a embalava se dissipou e toda a raiva que sentia
de Darwish voltou a lhe quebrar os ossos.
Depois disso, o harém seguiu em silêncio. Norvina repousou a cabeça no
travesseiro e fez esforço para ir para os braços de Morpheu. Seu corpo estava
exausto, mas seus olhos se recusavam a descansar. Rolou entre os lençóis,
primeiro com muito frio e depois com muito calor. Reviveu em sua cabeça a
conversa que tivera com Darwish no Mercado da Pechincha a noite inteira.
Ele dissera que beijaria todas as pretendentes — e com todas, queria dizer
que Zaphenat e Darissa estavam incluídas. Norvina ainda não sabia o porquê,
mas tinha que impedir que acontecesse a qualquer custo.
O sol estava escaldante e Darwish estava cansado de remar. Se a
atividade física não fosse cansativa o suficiente, ainda tinha que aturar minutos
infindáveis de um passeio com Zaphenat. Na noite anterior, ele conversara com
ela por alguns minutos. Era uma mulher linda, era inegável, mas nem toda a
beleza do mundo seria capaz de esconder que era muito enfadonha.
Ele prestava atenção no movimento dos remos na água enquanto ela falava
sem parar para respirar.
Quantas palavras um ser humano pode usar para descrever um vestido?
Ela fazia parecer que não tinham fim. Darwish não conseguia deixar de
comparar com as conversas que tinha com Norvina, mesmo sendo farpas o
tempo todo, divertiam-no e o faziam sorrir nos momentos mais inoportunos.
Vez ou outra, a moça se inclinava para apanhar uma fruta de dentro do
cesto e o decote do vestido revelava um tentador pedaço de pele. Zaphenat era
uma mulher confiante e experiente. O que comentavam era que o pai dela, o
imperador de Sartor, estava senil pela idade, e a ausência de filhos homens
empurrara Zaphenat para uma precoce posse do governo. Há anos ela
comandava a cidade por trás do esqueleto esquálido do pai, sem nunca poder
assumir o trono por ser uma mulher. Era a candidata perfeita para o que Darwish
buscava, uma mulher que colocasse a vontade da maioria do povo abaixo dos
próprios interesses.
Ele parou de remar para que os dois pudessem comer alguma coisa
apreciando a vista dos jardins externos do palácio.
Enquanto comiam, ela chamava atenção para algumas partes do seu corpo.
Darwish não se dava ao trabalho de fingir que não via as intenções de Zaphenat.
Ela colocou uma uva na boca e se demorou, deixando que o suco escorresse pelo
queixo, chamando a atenção para os lábios fartos que abrangiam a fruta. Apesar
das tentativas infindáveis de excitá-lo, Darwish não era mais um moleque
suscetível aos prazeres da carne. Buscava um pouco mais de profundidade em
uma mulher além da que tinha no decote.
— Está muito quente. Se importa se eu der um mergulho? — Zaphenat
indagou e começou remover as roupas antes de receber uma resposta.
Darwish ergueu as sobrancelhas, surpreendido pela ousadia. Esticou o
braço em direção ao lago, se a mulher queria tomar um banho, não seria ele
quem se oporia.
Ele se recostou na borda do barco e a observou, com certa diversão,
remover as vestes. O que não demorou muito, não eram muitas.
O príncipe tinha que dar um crédito a ela por ser tão desinibida, do jeito
que ele gostava que uma mulher fosse; não tinha vergonha da própria nudez, o
que dizia bastante sobre como seria na cama. Ela mergulhou com desenvoltura e
demonstrando certa habilidade, nadou ao redor do barco.
Darwish lhe assistiu, maravilhado. Só um homem tolo não apreciaria uma
mulher que se exibia para ele de bom grado. Apoiou o queixo na mão e
descansou o cotovelo na borda de madeira envernizada do barco. A água refletia
os raios de luz do sol no rosto dele.
Zaphenat se apoiou na beirada do barco e se ergueu, tirou mais da metade
do corpo para fora da água, exibindo suas curvas fartas na claridade cintilante do
dia. Seus mamilos estavam bem marcados. Darwish sorriu, envaidecido, pegou a
mão dela nas suas.
— A água está formidável, alteza, você deveria se juntar a mim. — Os
lábios dela faziam os movimentos certos para parecerem irresistíveis. Tudo nela
era sedutor e excitante.
Ele devia remover as roupas, empurrar as preocupações para os confins da
mente e se esfregar com Zaphenat debaixo d’água. Então, por que não conseguia
se mover? De modo involuntário, Norvina lhe invadiu os pensamentos. Veio lá
dos cantos mais escabrosos da sua mente, derrubou tudo que se atrevesse a se
interpor em seu caminho. Pensar nela se tornara recorrente desde a viagem dos
dois à Pérsia, dez meses atrás. Era uma espécie de escravidão, e ele almejava
vorazmente a liberdade.
Gritos estridentes irromperam à esquerda, e Darwish moveu a cabeça na
direção do som, rompendo a tensão luxuriante com Zaphenat. Percebeu estar
muito próximo dos pátios de treino. Alguma coisa estava errada, não se
lembrava de ter marcado um treino para aquela tarde.
Deixou um beijo na mão úmida da mulher à sua frente.
— Me espere aqui, ao voltar, eu me juntarei a você.
Ela não pareceu nada contente em ser deixada de lado, mas se alegrou com
a promessa de que ele voltaria. Sorriu, toda voluptuosa, e voltou a nadar.
— Não demore muito, a água pode acabar apagando todo o meu calor.
Darwish jogou um sorriso galanteador para ela e levou o barco até a
margem, então caminhou a rápidas passadas até os pátios de treino. O calor que
vinha do lugar era palpável, assim como o cheiro de sangue e os gritos de dor.
Na entrada Darwish sabia que o que quer que acontecia ali, Norvina estava
envolvida.
Ao entrar, ninguém deu atenção para ele, seus homens estavam cativados
pela luta que decorria no centro do pátio.
Darwish prendeu a respiração após uma súbita puxada de ar.
Norvina estava seminua, usava apenas uma saia de tecido branco imundo
presa ao quadril e uma faixa — tão fina quanto a paciência dele — para lhe
segurar os seios. Uma trança longa lhe prendia o cabelo para trás, dançando
como um chicote a cada movimento mais brusco que ela fazia. Era possível ver
todo o corpo dela, cada curva, músculos, barriga, sardas que salpicavam a pele
de suas costas e a parte interna de suas coxas.
Ela era deslumbrante, divina, pura e destrutiva. Nenhum homem seria
capaz de desviar o olhar diante da desenvoltura com a qual ela segurava o cabo
da espada e investia para cima do adversário.
Norvina era uma deusa mortífera, experiente em arrancar sangue e gritos
de dor.
Ao lutar, não tinha medo de apanhar, não temia a morte nem a dor, ela
avançava, aceitando cada ferimento que a levaria para a vitória, e era algo
magnífico de presenciar. Foi o que a fez ganhar a luta contra ele meses atrás,
Darwish não conseguira prever a besta que o enfrentava, e ela tinha todo o
mérito, porque o vencera com exímia facilidade.
Pelo pequeno porte de Norvina, ela era ágil, recebia um soco e revidava,
sem parar para se importar com o ferimento que, com certeza, deixaria estragos
no dia seguinte. Ao ser encurralada, a situação era a pior possível para o
adversário. O instinto de sobrevivência dela era acionado e só lhe restava o
desejo de liberdade.
De fato, Norvina não servia para ser uma esposa. Ela era todo o oposto da
imagem da mulher e mãe dedicada que Darwish procurava. O lugar dela era ali,
em uma arena de batalha, distribuindo socos e chutes como se isso fosse acabar
com a injustiça no mundo.
Chegar a essa conclusão o fez agonizar por dentro e ele percebeu que abrir
mão dela seria muito difícil, mas o correto a fazer.
O adversário conseguiu desarmá-la com um golpe na costela. Norvina
revidou com uma rasteira, mesmo cambaleando em um tornozelo, chutou a
espada dele para longe assim que o metal atingiu o chão. A plateia se ouriçou, e
o ar ficou tangível, maleável. A poeira subia com a força que os homens batiam
os pés no chão, dançando como se tivessem vida própria, em euforia. Seria o
momento que os lutadores cansariam seus corpos até a derrota iminente ou até
alguém cair desmaiado.
Norvina foi a primeira a avançar, preparou o punho, direcionou toda a
força para o braço e foi em busca de um pouco de sangue e dentes. Tudo
indicava que ela ia atrás de um nocaute, mas, em vez de acertar um soco, como
todos previam, esquivou por baixo do braço do outro homem e o acertou na
costela. Uma série de gemidos de dor irromperam da plateia. Para a infelicidade
dela, o homem também era experiente e retribuiu a gentileza com um soco no
rosto de Norvina, que a fez cair no chão em um rodopio e segurar-se com as
mãos antes de colidir com tudo na terra batida.
Darwish se exasperou até ela, o coração batia na garganta, mas Norvina se
recuperou rápido. Com o corpo para a frente e para trás, como uma árvore
grande prestes a cair, ela se levantou antes que fosse prensada no chão. Deu uma
rasteira no oponente, que o fez cair em um baque surdo.
Rápido, Norvina subiu sobre ele e encruzilhou as pernas em volta do
pescoço do infeliz, obliterando sua respiração. Era uma questão de tempo até o
homem implorar a rendição, mas ela não queria vencer. Norvina soltou o
oponente quando ele estava vermelho, quase desmaiando, e voltou para o ponto
inicial, preparando-se para um recomeço. O pobre miserável mal se mantinha de
pé, cambaleava como um bêbado. Norvina queria continuar com aquilo até a
exaustão física, continuar a apanhar e apanhar até sentir todo o corpo dormente.
Darwish sabia como ela sentia-se, já estivera na mesma situação, ansiando
chegar ao limite do próprio corpo para não sentir mais nada.
Ela tirou alguns fios de cabelo do rosto, a pele escorria de suor, e o rosto
estava coberto por uma máscara de sangue.
Um nó doloroso se formou na garganta do príncipe, não suportaria mais
presenciar a luta. Darwish começou a aplaudir e aos poucos seus homens
perceberam sua presença e começaram a se dispersar, fugindo de serem
advertidos.
Norvina ergueu os olhos de raposa, tentando enxergar o que estragara sua
diversão e, ao vê-lo, seu rosto se contorceu. Respirando com um esforço
tremendo, ela cuspiu sangue puro no chão.
— Você tomou minha vitória!
Darwish juntou as sobrancelhas.
Ela está irritada comigo?
Acabei de impedir que ela morresse de apanhar e ainda tem o disparate
de gritar comigo?
— Eu me lembro de ter proibido essas lutas clandestinas.
Norvina tencionou o maxilar, as narinas dilatadas expeliam o desaforo. Ele
podia sentir o gosto do suor dela em suas papilas gustativas, de tão forte que era
o cheiro. Era nojento o quão excitado estava ao vê-la daquela forma, em vista de
que odiava vê-la machucada, mas seu pau pulsava, seu corpo dilatava e contraía,
sua língua estava seca e mal podia se controlar.
— Eu preciso ganhar dinheiro, alteza, e o salário que você oferece é
patético. — Ela rosnou.
— Você não pode passar por cima de uma ordem minha!
Darwish estava furioso com ela, mal conseguia olhá-la, detestava o sangue
que lhe cobria a pele e a forma selvagem como ela se comportava. Sobretudo,
detestava o desejo que ela tinha que sentir dor. Era quase como se quisesse se
punir.
— Por que você se importa?
O príncipe buscou uma explicação que não o fizesse parecer um tolo.
— Não me importo. Se quer perder todos os dentes da boca, faça bom
proveito, mas fora do meu batalhão. O que acontece com esses homens e com
você é responsabilidade minha!
A resposta de Norvina foi um olhar desdenhoso, levantou-se de um pulo e
seu rosto se contorceu em uma careta de dor pelo movimento brusco. Com uma
última olhada de desprezo, ela deu as costas para o príncipe e o deixou sozinho.
Darwish não conseguia colocar em palavras a raiva que sentia quando ela fazia
aquilo.
Maldição de mulher!
Foi atrás dela, cuspindo maribondos de indignação. Caminhou em longas
passadas até as salas privadas onde sabia que Norvina estaria. Ele a encontrou
mergulhando um pano em uma bacia de água limpa para remover a sujeira
pegajosa do rosto. Foi reconfortante ver que o sangue não era dela, pelo menos
não a maior parte.
— Não me deixe sem uma resposta!
Norvina empertigou as costas em uma postura afrontosa, o olhar belicoso
e arguto.
— Sim, senhor.
— Você entende que o seu comportamento rebelde coloca em questão
minha autoridade diante dos meus homens?
— Sim, senhor.
— E promete que vai parar de promover essas lutas?
— Não, senhor.
Darwish perdeu a pouca sanidade que restava. O desejo que tinha de
comê-la estava o enfraquecendo, não apenas como comandante, mas também
como homem. Darwish não tinha mais forças para lutar contra ela. Estava
vencido, fraco, derrotado.
Essa mulher... ela ainda vai me levar à loucura!
O príncipe dizimou a distância entre os dois e tomou o pano da mão de
Norvina em um gesto brusco. Se ela queria sentir dor, ele faria isso por ela.
— Em algum momento você vai acabar se matando, sua mulher idiota.
— Então eu terei alcançado meu objetivo.
Darwish a segurou pelos ombros e teve vontade de a chacoalhar,
chacoalhar, chacoalhar, até um pingo de juízo brotar na cabeça teimosa de
Norvina.
— Você não teme a morte?
— Não, eu temo uma jaula. Nem você, e nem ninguém, vai me colocar em
uma.
Darwish apertou os ombros dela. Jamais a colocaria em uma jaula. Quem
seria louco de tentar? Norvina era um desastre da natureza e nada, nada em
absoluto, seria forte o bastante para conter sua destruição.
— Se não matar a si mesma, vai acabar matando a mim.
Os lábios dela, manchados de vermelho, modelaram um sorriso malvado.
— Isso seria um lucro.
Darwish suspirou, resignado.
— Você sequer deveria estar trabalhando agora que é uma das minhas
pretendentes.
Norvina franziu o nariz.
— Ah, por favor, não me chame desse jeito. É insultante.
Darwish não conseguiu disfarçar a mágoa em seu olhar.
— Pertencer a mim a ofende tanto assim?
Norvina o encarou de forma dura e impassível, os lábios juntos em uma
linha pálida, mas não respondeu. Darwish atravessou a barreira de indiferença
que os distanciava e chegou bem perto dela. Quando estava perto dela, não
precisava se esforçar para esconder nada, tudo que ele era, tudo que fazia, era
por livre e espontânea vontade.
Um ímpeto violento e vulgar fez os membros dele agirem à parte, quase
como se ele fosse um mero espectador. Encostou os lábios em um dos ombros de
Norvina e, muito audacioso, lambeu o suor que a cobria, degustando o sabor
salgado dela com a língua. Gemeu de forma inconsciente, as mãos que estavam
nos ombros de Norvina desceram pelas costas e pararam na trança comprida,
Darwish deu uma volta com a trança na mão e fez força para baixo.
O corpo dela estremeceu uma confissão.
Fazer amor com uma mulher era uma luta, e Darwish era um exímio
lutador, sabia quais movimentos fazer para tirar as roupas dela e como chegar ao
prazer e levá-la com ele, mas não sabia fazer isso com Norvina. Não podia lutar
com ela, e a única vez que tentou, foi derrotado.
Se era errado querê-la tanto, por que parecia a coisa mais sã que já fizera?
Por que sentia como se tivesse nascido para aquela maldita mulher? Frustrado,
ele puxou ainda mais a cabeça dela para trás pelos cabelos. Norvina o olhava
com o pescoço envergado. Darwish já podia ver a saliência de sua garganta.
Cativado pelo doce aroma que inundava todo o seu ser, Darwish lhe tocou
o cotovelo e subiu com a outra mão pela barriga lisa e feminina de Norvina.
Desafiando-a a empurrá-lo, ele espremeu a carne dela na mão. Ela apertava os
olhos com muita força, e ele daria tudo para saber contra o que ela lutava, o que
a impedia de abrir às pernas bem ali e acabar de vez com aquela servidão que
impunha a ele.
A inescrutável devoção do corpo de Darwish ao dela não tinha limites. O
desejo fervia em suas vísceras, abria espaço para algo muito mais colossal e
destrutivo. A mão livre do príncipe encontrou as curvas dos seios de Norvina,
encaixou-o entre o polegar e indicador e desbravou a curvatura. Ela não fazia
nada, só o observava temerosa, quase esperando que algo horrível acontecesse
por ele a tocar de forma inapropriada.
Ela estava imobilizada, sendo tocada e puxada, mas os dois sabiam que se
Norvina quisesse se soltar, nada a impediria, o que tornava o desejo de Darwish
ainda mais feroz.
— É tão horrível assim? — A voz dele era só um bolo indecifrável de
luxúria.
Assim como no dia que lutaram, ela o encarou, parecia tentar decifrar as
intenções dele. Darwish só tinha as piores, a mente faminta e imoral do príncipe
não parava de mandar fantasias dela nas posições menos pudicas possíveis.
— Como foi o seu passeio com Zaphenat?
Era o tipo de pergunta que ele jamais esperava ouvir enquanto a tocava.
Darwish resvalou o polegar no mamilo de Norvina. O bico estava duro e sensível
e o corpo dela deu um espasmo sensual. Se ao menos pudesse colocá-los em sua
boca…
— Promissor — respondeu, ainda ocupado, tentando desvendar a intenção
por trás da pergunta.
Norvina lambeu o lábio cortado e manteve os olhos no dedo sobre o
mamilo dela.
— Você a beijou?
Ele se inclinou, todo o corpo tremia e oscilava, encostou a boca na orelha
dela.
O corpo de Norvina ficou rígido, mas os quadris ondularam para a frente
por instinto, Darwish apostava que entre as pernas, ela latejava. Ele a segurou
com o braço livre pela cintura e a sentou sem delicadeza na mesa atrás deles. A
madeira fez um ruído, e o príncipe se perguntou quão forte precisaria fodê-la até
que a mesa cedesse.
Darwish sentia que o sexo deles seria forte e duro, era possível saber pela
maneira como ela respondia à sua presença e aos seus toques. Ele não abrandava
a força com que puxava o cabelo de Norvina pela trança, ainda assim ela não
fazia o mínimo ruído de protesto. Com um pouco de empáfia e sem nenhuma
entrega. Fodê-la seria uma luta e vencer seria mais prazeroso do que jogar sua
essência quente no interior de Norvina.
Ele molhou o pano na bacia e voltou para limpar o restante do sangue que
a cobria. A trança ainda enrolada em sua mão.
— Se eu disser que não, vai fazer alguma diferença?
Ela pensou um pouco, observando a mão dele trabalhar em sua pele alva.
Darwish escolhia os lugares mais vermelhos para exercer pressão com o pano.
— Bom, não deve ter beijado mesmo, caso contrário teria caído morto por
ingerir o veneno daquela cobra. — Ela fugiu da pergunta, descaradamente.
— Não gosta dela?
— Me surpreenderia se alguém gostasse.
Norvina mordeu o lábio e chiou quando ele passou o pano pela bochecha
machucada dela com muita pressão. O príncipe se desculpou com um olhar e foi
mais cuidadoso ao devolver o pano para o machucado.
— Eu gosto dela. — Darwish disse apenas para ver a reação da mulher.
— Claro que gosta, ela é mal caráter e desprezível, como você.
Ela o empurrou no momento em que Darwish lhe limpava o busto, o
movimento brusco fez a mão dele puxar o tecido sujo que cobria os seios dela, o
príncipe tentou impedi-lo de cair, mas foi o que aconteceu. As costelas dela
começaram a subir e a descer com mais velocidade, os ossos marcavam a pele
fina e frágil, mas ela não usou as mãos, que estavam livres o tempo todo, para se
cobrir. Norvina deixou que ele olhasse para seus seios, desinibida. Darwish
manteve a respiração em um ritmo constante ao lutar para não enfiar o mamilo
dela na boca e fazer com que parasse de falar sobre outras mulheres enquanto o
pau dele latejava de forma dolorosa por ela.
— Não está com vergonha?
— Da minha nudez? — Ele anuiu. — Sim, cada bater de coração que você
passa me olhando é uma agonia, mas tento aprender a valorizar meu corpo outra
vez, e a maneira como você o olha ajuda bastante.
Darwish apertou o pano com força.
— Foi por isso que decidiu treinar vestindo esses trapos? — O ciúme lhe
dominou o cérebro e estalava em suas veias com fulgor.
— Eu queria saber se essa era uma particularidade sua ou se qualquer
homem poderia me fazer sentir assim. Mas quando os outros homens me
olhavam na arena, eu só pensava em partir o crânio de todos eles.
— E agora? Você quer me matar?
Norvina prendeu o lábio inferior entre os dentes.
— Se eu quisesse te matar, acha que ainda estaria respirando?
Darwish suspirou uma risada de alívio e fascínio. Devagar, foi abrindo as
coxas dela com os quadris largos. Tão lento que Norvina nem se deu conta,
estava ocupada, prestando atenção demais nas mãos dele para perceber o perigo
dominar o espaço por baixo. O príncipe arrancou um suspiro de susto dela ao
amassar sua dureza na carne íntima de Norvina. Ele sentiu a umidade empapar o
tecido do saiote que usava. Os mamilos dela pareciam flechas, apontando em
direção ao peito dele. Seu ego inflou e ele se sentiu o homem mais voluptuoso
do mundo, porque conseguia fazer uma mulher como Norvina ficar molhada de
desejo. A boca dela se abriu, exasperada, e ele sorriu devasso. Desceu os olhos
para onde eles formavam um belo contraste.
Como eu gostaria que não tivesse nada entre nós…
— E isso? — Ele moveu os quadris para frente e para cima e se espremeu
contra ela e sentiu, com deleite, o calor e o pulsar. — Você também tentou
descobrir se consegue ser tocada por outro homem?
Norvina trincou o maxilar, odiando não poder mentir.
— Eu só deixo você fazer isso comigo.
Darwish sentiu uma violenta felicidade cair sobre ele.
— Então, abre mão do seu orgulho por mim.
— Tire esse sorriso do rosto, patife.
— Você deveria selecionar melhor seu linguajar quando for falar comigo,
eu ainda sou seu comandante. — Ele fez um movimento suave com os quadris,
os seios de Norvina saltaram, e ela arfou doce.
O olhar de raposa dela reluzia em um milhão de pensamentos, parecia
desbravar os limites da própria decência.
— Fique longe de Zaphenat.
— Você está me dando uma ordem? — Darwish sussurrou grosso no
ouvido de Norvina, e as mãos da mulher se espalmaram na barriga exposta do
príncipe.
O oskh [4]de pedras negras intrincadas com fios de ouro que ele usava se
tornaram um empecilho. Gostaria de estar nu para sentir as mãos dela em sua
pele. Era a primeira vez que ela o tocava e o príncipe desejou se esfregar em
Norvina e se lambuzar inteiro naquele suor até que cheirasse como ela.
Queria que as pessoas sentissem o cheiro de Norvina nele e que
soubessem que ele a tinha. Ele a tinha. Nada soou mais impossível e distante, o
que fez Darwish a querer com ainda mais força.
— Não, claro que não. — Parte da animação dele, esmoreceu. — Você
disse que eu devia manter você informado sobre o comportamento das suas
pretendentes, e Zaphenat é a pior delas.
Não pôde reprimir a decepção que o invadiu. Claro que Norvina não
estava com ciúmes dele, não sabia nem o porquê de chegar a cogitar tal hipótese.
Darwish arranhou a garganta.
— Muito bem então, vou deixar que escolha a próxima que levarei para
um passeio.
— Darissa.
Teve a impressão de que ela fizera esforço para dizer o nome, ainda assim
Darwish detestou a rapidez com que ela disse. Ele ainda esmagava o corpo no
dela, as veias do príncipe doíam do tanto que se controlava para não socar o mais
forte que conseguir dentro dela, feito um selvagem. Não era possível que apenas
ele estivesse sem fôlego e sem condições de pensar em outra mulher naquele
momento.
Como ela consegue ser tão irreverente?
Ele a tocava para inflamar o desejo nela por ele e, enquanto isso, ela o
atirava nos braços de outra.
— Ela pode não ser tão bela ou obstinada quanto Zaphenat, e nem ter
tantos atributos, mas é de longe a melhor entre elas.
Irritado, Darwish se afastou de forma brusca e tirou as mãos pequenas do
corpo dele de um jeito rude. Percebeu que ela arfou de alívio. A frustração era a
maior companheira do príncipe quando o assunto era Norvina, por mais que
tentasse, nunca conseguia prever o próximo golpe que ela daria em sua vaidade.
— Você ficará feliz se eu a convidar? — Ele indagou, indiferente, na
esperança de que ela dissesse alguma coisa, qualquer coisa que desse indício de
que não fora o único que sentira algo diferente entre eles um instante atrás.
Norvina não olhou nos olhos de Darwish ao responder, cobrindo os seios.
— Sim.
Darwish assentiu, fora arrastado, de forma brutal, para a realidade do que
a relação dos dois era: um acordo, um negócio.
— Então eu a chamarei.
De maneira dolorosa, Darwish compreendeu o que seu pai dissera no outro
dia. Devia aceitar o futuro e parar de se privar de viver a experiência, porque
alimentava uma ridícula ilusão de que traía seu caráter. Desde o princípio, sabia
que jamais se casaria com Norvina, as razões eram tantas que nem sabia por
onde começar, mas, em especial, por ela ser o epítome de tudo que ele tentava
evitar.
Um casamento baseado em amor. Humph!
Darwish recobrou a razão e aproveitou para se recompor. Precisava de
uma esposa e se Norvina não estava disposta a sê-lo, procuraria uma que
estivesse.
Norvina teve que fazer uma boa caminhada até encontrar Zaya na ala
do palácio onde ficavam as habitações do príncipe herdeiro. Logo após
chegarem de Valhala, alguns meses atrás, Zaya descobrira a gravidez. Os gêmeos
nasceram somente seis meses depois, o que indicava que a futura rainha-consorte
estava de barriga há algum tempo sem ter conhecimento.
O príncipe Áster se mudara com a esposa e os bebês para uma ala mais
afastada da agitação do palácio, queria criar os filhos sem toda a perturbação do
reinado e ter privacidade nos primeiros anos de vida dos bebês.
Norvina fora até lá uma única vez, no dia do nascimento de Aspen e
Orion. Parecia que fazia uma eternidade. Assim como fazia com o seu passado,
ela evitava aquela parte do palácio pelo medo do que descobriria se chegasse
perto demais, mas era justo ali o único lugar onde poderia conseguir o refúgio
que ansiava.
Os pés dela se detiveram na entrada do jardim onde avistou Zaya, seus
dois filhos e seu marido, sentados em uma toalha sobre a grama alta. Eles eram
uma imagem de paz e felicidade, e Norvina sentiu-se uma intrusa.
Girou nos calcanhares para voltar, quem sabe encontraria uma sala vazia
onde pudesse se encolher no escuro e respirar até tudo passar, mas as solas das
suas botas fizeram atrito com a areia no chão e Áster ergueu a cabeça.
— Norvina, aconteceu alguma coisa? — Ele pareceu preocupado. Não era
para menos, a presença dela ali era um acontecimento inusitado.
Ela pigarreou ao colocar o cérebro para formular uma desculpa plausível.
— Não, eu… — Moveu os olhos para os bebês deitados sobre a toalha e
sentiu um aperto no âmago. — Eu estava pelas redondezas e quis fazer uma
visita.
Zaya e Áster se entreolharam, Norvina pôde ver com nitidez que eles
tiveram uma conversa silenciosa na troca de olhares.
— Que coincidência, lembrei que tenho que ir ver o meu pai. — O
príncipe Áster se levantou. — Você pode ficar e fazer companhia a Zaya.
Que péssima encenação!
Ele podia ter apenas saído e poupado Norvina da vergonha. Ela moveu a
cabeça uma vez, ao concordar.
Áster beijou a testa da esposa, depois dos dois filhos, deu um sorriso
amigável ao passar por Norvina e sumiu atrás das portas duplas.
Zaya a olhou de onde estava, muito confortável em sua toalha.
— Sente-se conosco.
Ainda sem saber se deveria, Norvina adentrou o jardim e estragou a grama
verde com as botas gastas. Andou até a toalha e depois de desamarrar o punhal
da coxa, sentou-se. Olhou ao redor, temerosa, ainda achava que uma criatura
brotaria do chão e a arrastaria para fora por sujar a beleza do momento com sua
presença infame.
Não se lembrava da última vez que se permitira ser uma pessoa comum,
ter a liberdade de sentar-se em uma toalha na grama em um dia de sol quente e
sentir o vento na pele. Sem medo, sem culpa. Estar viva podia ser exaustivo às
vezes.
— Você quer um biscoito de mel? — Zaya esticou um pote na direção
dela. — Aspen babou em cima de todos eles, mas presumo que ainda estejam
bons.
Norvina fez uma careta de nojo para o biscoito, mas pegou um em formato
de gato, porque achou que magoaria Zaya se o recusasse.
— Eles parecem o dobro do tamanho. — Norvina disse, referindo-se aos
bebês.
Não conseguia olhar muito para eles sem ser açoitada pela culpa. Eles
eram a verdadeira razão para ela evitar pisar ali, os bebês lembravam a Norvina
tudo o que ela mais queria e que jamais poderia ter. A cicatriz em sua barriga
pinicou, e ela abraçou as pernas contra o peito para suprimir a dor invisível que a
devorava por dentro.
Por vezes, acreditava que chegaria a um ponto em que não restaria mais
nada para ingerir. Seu corpo era oco, e a única coisa capaz de prosperar dentro
dele eram ódio e trevas.
Zaya sorriu de forma amorosa para os filhos.
— Eu e Áster dormimos apenas um quarto de hora noite passada. —
Norvina percebeu que tinha profundas manchas roxas debaixo dos olhos da
princesa-consorte. — Eles não estão mais acompanhando um ao outro. Quando
um dorme, o outro desperta. Às vezes acho que vou desmaiar de exaustão.
Zaya levou a mão à boca para bocejar, e Norvina aproveitou para jogar o
biscoito babado atrás de uma moita.
— Áster tem um truque para fazê-los dormir, mas se recusa a me contar o
que é. Alega que é porque ele é o preferido deles. — Zaya rolou os olhos, e
Norvina deu seu primeiro sorriso sincero em semanas.
Olhando para a amiga não podia imaginar outra vida para Zaya que a
deixasse mais feliz. A maternidade fizera muito bem a ela, mas Norvina
suspeitava que o marido tivesse parte da culpa pelo brilho que emanava da pele
da princesa, mesmo que estivesse puída de cansaço.
— Vai me dizer agora o real motivo pelo qual veio até aqui?
Norvina estagnou, o sorriso congelou em seu rosto.
— Como?
Zaya apoiou a cabeça na mão e a fitou.
— Você testa minha inteligência ao supor que eu acreditaria que apenas
andava pelas redondezas.
Norvina mordeu seu lábio.
— Eu não sabia que precisava de desculpas para vir ver você.
— Claro que não, mas eu conheço você, Norvina.
Pelo visto, muita gente conhecia, menos ela mesma.
— Estão dando uma festa sem mim?
As cabeças das duas se viraram para a entrada do jardim, que Darissa
acabara de atravessar. A mulher caminhou até elas, gingando seus quadris que
pareciam estar mais fartos a cada dia e faziam as saias do vestido longo de linho
amarelo bailar com o vento. A cor dava luz a ela.
O vestido estava apertado por um cinto de pedrarias na cintura — nos
últimos dias, a peça não faltava em suas indumentárias — e caía em uma cascata
de tules iridescentes. Ela estava estonteante.
— Se isso fosse uma festa teria vinho. — Norvina resmungou.
— Eu posso providenciar. — Zaya ofereceu.
Norvina negou com a cabeça.
— Por mais que seja tentador, é um pouco cedo para estar bêbada.
— Como estão meus homens preferidos no mundo todo? — Darissa parou
na borda da toalha e retirou as sandálias antes de se deitar de barriga para baixo
perto dos gêmeos, um deles enfiava o pé na boca e o outro ensopava a roupa de
saliva ao comer um biscoito de mel. Darissa pegou um em seus braços.
Norvina não sabia dizer quem era quem. Os meninos se pareciam demais.
Zaya chegara a confundi-los uma vez, acabara supondo a identidade de cada e,
desde então, um dos bebês sempre carregava um fio de ouro no tornozelo, mas
até aquele dia não tinha certeza se identificara o bebê certo.
— Não o balance demais ou ele deixará o almoço em sua roupa. — Zaya
avisou, e Darissa achou melhor obedecer.
— Como anda a competição pelo príncipe?
Não, não, não! Tudo menos esse assunto.
Norvina se perguntou se seria tarde demais para dizer que mudara de ideia
sobre o vinho.
— É como estar no oásis de Astarte outra vez. — Darissa ria ao contar. —
Essa manhã o harém estava um caos, porque alguém colocou tintura na loção de
cabelo de uma das pretendentes e agora o cabelo da mulher está verde.
— Oh, e não sabem quem foi?
Darissa balançou a cabeça.
— Não fazem nem ideia.
— Nada como um belo príncipe de recompensa para trazer à tona o
espírito competitivo de uma mulher — disse Zaya, sorrindo.
Norvina a repreendeu com um olhar.
— Não é por ele que estão fazendo isso, é pelo título.
— Claro, claro. O fato dele ser estúpido de tão bonito não deve influenciar
em nada!
Norvina sentiu o rosto enrubescer.
Seria ridículo negar, ele era mesmo um espécime atraente. Fora preciso
mergulhar em um tonel de água fria no dia anterior para se livrar das chamas
fogosas que ele instaurara no corpo dela com os dedos e os toques indevidos.
Darwish a confundia tanto! Era como estar rasgada ao meio. Uma parte queria
estar com ele, a outra o rejeitava; uma parte oprimia a outra. Norvina estava
exausta de lutar contra a razão.
Virou a cabeça na direção oposta para esconder o desejo escancarado no
rosto, e piscou algumas vezes, a silhueta grande e avantajada de Darwish invadiu
sua visão. Pensou que delirava, mas ao ver o desprazer estampado no rosto dele
por vê-la ali, soube que não era uma miragem. Ele levava no corpo aquele
maldito saiote preto em corte diagonal que exibia a musculatura firme de suas
coxas e um gorjal[5] de ouro com turmalinas. Os olhos pintados de preto, como
sempre, destacavam o azul celestial das íris; no pescoço ele levava uma
gargantilha incrustada com obsidiana; nos pulsos, pulseiras longas que
terminavam na metade do antebraço. Pensando bem, Norvina nunca o vira sem
elas.
Ela engoliu em seco.
— Parece que todo mundo resolveu me visitar hoje. — Zaya observou,
mantendo os olhos no rosto lívido de Norvina. — Darwish, a que devo o prazer
da sua presença?
Ele desprendeu os olhos de Norvina e os direcionou para a cunhada.
— Passei por Áster no corredor, e ele me disse que eu encontraria Darissa
aqui. — O príncipe juntou as mãos atrás do corpo, ressaltando as veias de seu
abdômen ao fazê-lo. — Eu vim chamá-la para um passeio.
Norvina riu da mórbida ironia do destino. Justo aquilo que evitava de ver,
a razão pela qual atravessara todo o palácio para se esconder no último lugar
onde acreditava que precisaria presenciar Darwish chamar Darissa para um
passeio.
Os efeitos foram os esperados. Dentro dela, as pedras da sua represa
começaram a se retorcer, ameaçando ruir e afogá-la nos sentimentos conflitantes.
Levou as mãos para as coxas e tentou não ficar vermelha.
— Claro, majestade, estou pronta para ir. — Darissa disse, esfuziante.
Norvina estava com a cabeça baixa e ficou a impossibilitada de prever o
que Darissa faria.
Na pressa de calçar as sandálias, a mulher fez o impensável: depositou o
bebê nas mãos de Norvina.
Ao sair de seus aposentos privados naquela manhã, Darwish pensava ter
a certeza do que queria para a própria vida dali em diante. Não perderia mais seu
tempo com trivialidades, pararia de alimentar o monstro em seu peito e seria
direto no seu propósito: escolheria uma mulher e a faria sua esposa, sem
enrolação, sem jogos de sedução e, acima de tudo, sem dúvidas sobre se o que
faria era certo. Mas tudo ruiu de forma desastrosa ao ver Norvina com Aspen
nos braços.
Ele nunca teve dúvidas sobre o que queria ser ao se tornar um homem. No
entanto, vendo-a tão esplendorosa, acreditou que queria ser outra coisa, qualquer
coisa que envolvesse Norvina e um bebê, de preferência se esse bebê tivesse
parte do sangue dele. O ar foi arrancado sem piedade de seus pulmões, e o
príncipe achou que fosse morrer, afogando-se na beleza incontestável de Norvina
com o bebê no colo.
O sol criava uma aura reluzente ao redor da mulher e não existia mais
nada da princesa violenta e sanguinária do dia anterior. Por muitos meses ele
tentou entender o que existia em Norvina que o intrigava tanto, tentou dissecá-la,
desvendar suas masmorras interiores. Naquele momento Darwish soube: ela era
uma farsa, assim como ele.
Ela podia se enganar o quanto quisesse ao fingir não se importar com nada
nem com ninguém, mas aquela era a verdade sobre a alma de Norvina: ela
nascera para ser mãe. O modo como olhava para a criança, como se tivesse nas
mãos um tesouro que era indigna de tocar.
Todas as certezas do príncipe foram colocadas em dúvida e, por um
instante de agonia, pensou que era o que queria: ela, Norvina, aquela visão todas
as manhãs. Queria colocar seus filhos dentro dela.
Os olhos verdes prateados dela procuraram pelos de Darwish, e a garganta
dela se elevou ao engolir. Do mesmo jeito que ele, enfim, enxergara o que ela
escondia a todo custo, a mulher enxergara o que ele já não fazia questão
nenhuma de esconder.
Rápido, ela devolveu o bebê para a toalha, ao lado do irmão, e foi como se
em algum lugar, alguém apagasse a luz que saltava dela, subvertendo-a em
escuridão.
— Podemos ir? — Darwish tomou um susto ao ouvir Darissa perguntar, e
pelo modo como a mulher olhava para ele, teve certeza de que ela já perguntara
aquilo antes, e ele não ouvira.
Darwish se recompôs, arranhando a garganta.
— Claro. — Ofereceu o braço para Darissa e, após fazer uma mesura com
a cabeça para as duas mulheres que ficavam, guiou sua parceira para fora do
jardim.
O príncipe teve que se concentrar o dobro no caminhar, porque não tinha
certeza se suas pernas ainda se lembravam de como se mover. Somente ao estar
a uma distância segura daquela que lhe deixava doente, voltou a ser o dono de
suas ações.
— Para onde me levará? — Darissa perguntou, sempre muito extrovertida.
Darwish se esforçou para sorrir, queria que desse certo entre eles,
precisava fazer com que desse.
— Você já caçou?
Darissa ergueu as sobrancelhas.
— Não, nunca.
— Hoje você irá.
Ela abriu um sorriso que ocupou todo o seu rosto, e ele sentiu-se feliz pela
escolha do entretenimento, qualquer outra pretendente desmaiaria ao saber que
passaria a manhã caçando. Foram o restante do percurso até o vale atrás do
palácio em silêncio. Eles pegaram um carro de guerra que Darwish reservara, e
ele a ajudou a subir. Fez questão de conduzir para que pudessem ficar a sós. Era
muito estranho, eles tinham um relacionamento agradável, mas o desconforto
entre os dois era tangível.
Chegaram nos portões do vale, e Darissa o ajudou a apanhar os
instrumentos de caça no chão do carro de guerra. Os guardas que faziam a
segurança da entrada concederam a passagem, e Darwish a guiou por uma
vereda com cuidado.
— Esse vale foi criado pelo meu ancestral Amenadiel, o primeiro faraó a
erguer uma necrópole em Astória. Os sacerdotes mais velhos dizem que no
início, tudo era areia e a vida começou a partir de uma semente daquela árvore.
— Ele apontou para o grande carvalho com uma casca grossa e acinzentada, seu
tronco se curvava para o lado, como a coluna de um ancião, e os seus galhos,
longos e grossos, eram cheios de folhas verdes. As outras árvores pareciam
respeitá-la, criando uma cúpula ao redor dela. — Depois disso, os animais
vieram e trouxeram em seus bicos mais sementes de outras árvores, até este
lugar se tornar o que é hoje.
Darissa prestava atenção nos lugares onde pisava, sempre atenta ao que o
príncipe dizia.
— Eu pensei que fosse proibida a caça nos arredores do palácio — disse
ela, apoiando-se no ombro dele para descer um relevo de terra.
— Meu pai gosta de preservar algumas espécies aqui, por isso proíbe a
caça, mas uma vez por ano temos que dar conta dos javalis, ou eles viram uma
praga.
Ele ofereceu uma mão para ajudá-la a pular um tronco de pinheiro no
caminho. A palma de Darissa fez um aperto cálido sobre a dele, ela acabara de
abandonar a mocidade, e ainda carregava traços pueris demais, isso o
incomodava um pouco.
— Aqui. — Darwish parou de caminhar abruptamente e esticou o braço
por cima do ombro para puxar o sabre. Ele deixou a mulher onde estava e se
distanciou um pouco para cortar alguns galhos de espessura mediana de uma
árvore mais baixa.
Darwish passou uma lâmina menor nas elevações dos galhos, para os
deixar retos, e depois começou a arrancar talos de madeira para deixá-los
pontiagudos. Tirou do alforje preso nas costas um longo fio de papiro, com ele
juntou os galhos em um quadrado e os empilhou até formar uma caixa completa.
— Eu pensei que íamos caçar — disse Darissa depois de observá-lo por
um tempo.
Darwish, resfolegante pelo esforço, sorriu.
— E estamos. — Ele se abaixou perto do local onde pararam e continuou
usando as mãos na geringonça engenhosa. Darissa parecia desapontada, embora
não conseguisse parar de olhar a eficiência dele. — Já sei, você esperava algo
mais selvagem.
Ela se balançou sobre seus pés.
— Não vou mentir, esperava sim.
Darwish apreciou a sinceridade dela.
— Eu deixo essa parte primitiva para meus irmãos. Áster gosta de lanças,
Kamilah de arco e flecha, Ramessés prefere esperar até a hora de estraçalhar o
animal cozido em seus dentes, mas você já deve ter visto ele comendo, é tão
selvagem quanto. — Darissa corou ao sorrir com os lábios. — Já eu, prefiro usar
minha arma mais eficiente.
Ele bateu o dedo indicador na têmpora.
— Como isso funciona?
— É, de forma resumida, uma jaula. Eu atraio o animal com alguma
comida e, ao entrar, ele pisa nessa linha amarrada à porta, que, ao ser abaixada,
solta, e prende o animal.
— É mesmo eficiente, mas não muito prática. Você conseguiria capturar
uma quantidade maior de animais usando um arco e flecha.
Darwish sorriu.
— De fato, mas eu tento me poupar da violência do abate.
— Um tanto hipócrita, não crê?
Ele refletiu por um momento e deu de ombros.
— Esse não é a meu pior defeito.
— Um dia você vai me contar sobre seus defeitos?
Darwish sorriu sem mostrar os dentes.
— Os piores eu vou levar comigo para o além-túmulo.
— Você fala da morte com muita naturalidade.
— A morte não é o fim para nós.
Ela moveu a cabeça de forma vagarosa, compreendendo.
— Há algo de reconfortante nisso, em saber onde seus entes queridos
estão descansando.
Darwish baixou a cabeça, a culpa o atravessava com mais força do que o
calor escaldante do sol. Ainda se lembrava da invasão que levou ao massacre da
família de Darissa. Jamais poderia esquecer porque fora quando conhecera o
cheiro e o calor da morte.
Foi nomeado comandante aos quatorze por ter ministrado um ataque que
trouxe a vitória para o faraó. Por muitos anos inventou estratégias de longe sem
nunca se envolver de verdade com as batalhas — pelo menos era o que dizia a si
mesmo para aliviar o peso na consciência —, até o dia em que decidiu ir para a
linha de frente de batalha, na cidade de Meshed, onde Darissa nascera.
Naquele dia Darwish morreu um pouco também. Era um menino revoltado
por ter um pai ausente e uma mãe que só vivia para chorar as traições do marido.
A mesma arma que exibia diante de Darissa, Darwish usara para criar táticas de
guerra sem pensar nas consequências que trariam para sua sanidade anos mais
tarde. O estrago era tão grande que Darwish duvidava que um dia poderia ser
normal outra vez. O prazer de encostar a cabeça no travesseiro, sem lembrar das
milhares de famílias que destruíra por mesquinharia.
Às vezes, a culpa o pegava com tanta brutalidade que não era capaz de
sentir nada além dela. Então, passava dias a beber e a foder com mulheres. Mas
nem sempre bastava, por isso ele dobrou a quantidade, pensou que conseguiria
alívio, mas só o que ganhou foi a fama de devasso.
Quando Darissa chegou em Alvorada, quase dois anos atrás, ele não
acreditou. Chegou a crer que era o destino mandando-a em forma de castigo
pelas atrocidades que cometera, até que entendeu que também podia ser uma
chance que os deuses davam a ele de se redimir.
Darissa não merecia o futuro que teve, e, por ter tirado a família dela, ele
lhe daria uma outra. Ela seria sua escolhida. Era uma grande infelicidade que
não existisse atração física entre eles. Darwish tinha uma esperança de que
pudesse mudar o quadro se passasse mais tempo com ela. Pedira à sua mãe para
organizar a realeira na esperança de alcançar esse objetivo, mas era como tentar
acertar uma pedra na lua.
Ele tirou algo do bolso e esticou para ela.
— Pegue, isso deve ficar com você.
Ao ver o anel de sua mãe, Darissa o pegou rápido, levou-o a boca,
beijando-o com devoção e carinho.
— Obrigada, Darwish, eu…
Darwish diminuiu o espaço entre os dois em duas passadas e a beijou.
Pressionou a boca dela na dele por um tempo anormal de tão longo. Não fizeram
mais nada, só esmagaram os lábios um no outro de forma tosca e frígida. Ele
abraçou a nuca dela com os dedos, na esperança de que surgisse uma chama,
uma brasa, ficaria satisfeito até com um vento morno, mas nada aconteceu. Não
tinha nada além de um grito desesperado que lhe dizia que não era certo.
Darwish se afastou, Darissa estava com as bochechas em chamas e
envergonhada.
— E agora, o que fazemos? — Ela indagou, tentando amenizar o clima
insuportável após o beijo.
— Agora, nós esperamos.
O restante da tarde foi agradável, pacata e normal, do jeito que deveria ser.
Ele chegou a capturar duas lebres e um gato selvagem, mas nenhum javali. Não
houve grandes acontecimentos ou conversas inteligentes recheadas de
provocações.
Nosso casamento será assim?
Não era bem o que Darwish esperava, mas parecia um pequeno preço a se
pagar.
Por quê?
Deuses, por quê?
Por que, de todas as pessoas, justo eu? Oh, que destino impiedoso!
Que fatalidade… que… que…
— Buh! — O bebê nas mãos de Norvina gargalhou quando a bolha de
cuspe estourou em sua boca.
Norvina o encarou, lívida. As mãos pegajosas e minúsculas capturaram
uma mecha dos cabelos dela e levaram para a boca.
— Ei, larga isso, coisinha gosmenta! — Por fim, recobrou a voz. O bebê
ensopava o cabelo dela com baba, e, em protesto, ela puxou a cabeça, mas
apenas fez com que ele gargalhasse mais.
— Ele gosta de você. — Zaya disse, divertindo-se com o desespero de
Norvina.
Gosta?
Norvina repetiu o movimento, e, outra vez, o bebê riu. Dessa vez ela não
resistiu e acabou rindo junto. Uma risada inocente e idiota, chacoalhando os seus
ossos e fazendo-a sentir-se viva. Em um instante seu rosto queimava de
felicidade, e no outro foi chutada sem dó para fora do paraíso.
A felicidade atingiu seu pico e se subverteu em tristeza.
O bebê, a forma como os olhos inocentes se prenderam nela e ele sorriu,
fez Norvina sentir que estava morta por dentro. Se não estava, morrera, porque
seu coração parara dentro dela e doía de modo que Norvina levou a mão para o
peito na ânsia de suprimi-lo.
O bebê deslizou de suas mãos e Zaya o pegou depressa antes que caísse. O
susto fez o bebê começar a chorar.
— Norvina, sente-se bem?
Ela se levantou, assustada com a força com que desejou a vida que Zaya
tinha. Tudo que Zaya tinha.
— Sim, eu apenas… — Apanhou o punhal do chão e se dirigiu para fora
do jardim. — Eu me lembrei que na ausência de Darwish, tenho que vistoriar o
treino desta tarde.
— Está bem, venha me visitar em outro momento.
Norvina sacudiu a cabeça, embora duvidasse que pisaria ali outra vez.

Ela só conseguiu recobrar a respiração ao entrar no harém e encontrá-lo às
avessas. O chão estava ensopado e escorregadio, e uma trilha de roupas levava a
um grupo de mulheres ao redor de uma das camas.
Norvina abriu espaço entre elas para conseguir passagem e tomou um
susto ao ver o motivo da balbúrdia. Uma das selecionadas estava encolhida na
cama, toda molhada e enrolada em uma toalha, em prantos. Ela falava algo com
sua voz aguda e estridente, gesticulava para o pedaço de pele acima do olho
esquerdo em que deveria estar sua sobrancelha.
Norvina levou uma mão à boca.
— Como foi mesmo que isso aconteceu?
Norvina ouviu uma voz masculina e familiar e percebeu que Ramessés
também estava no harém.
A moça soluçou rápido e toda vez que tentava falar, voltava a cair em um
choro de suplício. Era de dar dó.
— Em nome de Hathor, mulher! Desembuche! — Alguém perdeu a
paciência.
Ela respirou fundo e com a voz embargada disse por entre os lábios
trêmulos:
— Não tinha ninguém no harém, e achei que não tinha problema dormir
por alguns segundos, ao acordar, apanhei meus pertences para tomar um banho
nas fossas, notei as pessoas me olharem estranho no caminho, mas não dei
atenção. Foi só ao olhar meu reflexo na água que vi isto! — A garota se olhou no
espelho só para se maltratar e se debulhou em lágrimas outra vez.
— Nós vamos encontrar quem fez isso com você, Layla — prometeu
Kiara, prestativa, abraçando a garota chorosa pelos ombros.
— Acabou para mim. — Layla fungou. — Perdi todas as minhas chances
de me casar com o príncipe, como serei levada à sério depois disto?
— Não se preocupe, querida, se ele não escolher você, não será porque lhe
falta uma sobrancelha.
Norvina notou que algumas meninas se controlavam para não rir da
situação, mas Zaphenat foi a única cruel o bastante para zombar da pobre Layla.
— Se eu fosse você, ficaria em silêncio. Nós temos motivos de sobra para
achar que foi você quem fez isso. — Kiara veio em defesa da amiga, indignada.
Norvina notara que algumas das moças já perdiam a paciência com
Zaphenat, não era sem motivos.
— Claro, é bem mais fácil acusar a megera do que buscar o verdadeiro
culpado. — Zaphenat se defendeu e, apesar de ser repugnante, Norvina não
achava que ela mentia.
— Se não você, quem foi? — Outra pretendente fez a pergunta de ouro, e
o silencio das outras foi opressivo.
As mulheres se entreolharam, desconfiadas umas das outras.
A verdade era que ninguém podia acusar alguém sem ter evidências
contundentes. Se levassem a conversa para o príncipe, ele teria que desclassificar
a acusada e isso poderia gerar conflitos políticos. Quem quer que estivesse por
trás das artimanhas, sabia muito bem quem atingir e de quais maneiras. O clima
no harém era estranho, sem mencionar o fato de que existia uma traidora entre
elas, existia também a dúvida e o suspense de quem seria a próxima vítima.
A disputa pela vaga de abelha rainha estava mais mortal do que nunca.
Norvina só esperava que não mexessem com ela, ou alguém ficaria sem os
dentes.
— Meninas, não briguem. — Ramessés tentou apaziguar a situação,
porque o ambiente era o mesmo de uma guerra à espreita. — Vocês não
conhecem nenhum truque de pintura que possa ajudar Layla?
— Bem, nós podemos tentar, mas vai ficar desigual. A não ser que
raspemos a outra. — Kiara sugeriu.
— Quê? — Layla berrou e protegeu a única sobrancelha que restava como
se fosse seu bem mais precioso.
— Nós vamos pensar em alguma coisa.
Todas as pretendentes, com exceção de Zaphenat, começaram a dar
sugestões do que poderiam fazer para amenizar o horror na face de Layla.
— As mulheres me assustam. — Ramessés disse apenas para Norvina
escutar. Ele se esgueirara até ela e usava o corpo dela como escudo.
Norvina o olhou com atenção por cima do ombro, devia ser a primeira vez
que ele falava com ela. Ela sempre gostara do rosto de Ramessés, da forma como
existia um equilíbrio em seus traços. Não era bonito demais, nem muito normal,
era apenas… Ramessés.
— Você tem permissão para estar dentro do harém? — Ela quis saber.
— Permissão é uma palavra muito forte.
A boca dela se esticou em um sorriso involuntário. Era outra coisa que
gostava sobre ele, diferente de Darwish que usava o bom humor como uma
máscara, Ramessés, de fato, tinha o dom de fazer a mais infeliz das pessoas
sorrir.
— O que você busca, alteza?
Ele passou os olhos castanho-avermelhados pelo cômodo, a procura de
algo ou alguém.
— Darissa. — Norvina franziu a testa. O rosto de Ramessés não chegou a
ficar vermelho, mas suas pupilas tremularam, indicando timidez. Arranhou a
garganta. — Vim buscá-la para uma reunião do conselho.
Norvina assentiu sem desviar os olhos dos dele, que lhe diziam algo que
ela encontrava dificuldade de decifrar.
— Ela está com o príncipe Darwish. — Norvina disfarçou o tom áspero na
voz.
Fazia pouco mais de uma hora que os dois saíram juntos e essa era a
mesma quantidade de tempo que Norvina tentava não fazer uma grande idiotice.
Uma sombra passou pelo rosto do príncipe mais jovem.
— Claro. — Podia ser só coisa da cabeça dela, mas Norvina captou certo
amargor na voz macia de Ramessés. Um amargor que estava na voz dela um
instante atrás. O príncipe se virou rumo à porta, mas se deteve. — Quando você
a vir…
Ele faria um pedido, mas pareceu mudar de ideia no meio do raciocínio,
então balançou a cabeça em um gesto fleumático.
— Esqueça. — Ele suspirou e junto com o ar pareceu mandar para fora a
razão da sua perturbação. Sorriu para Norvina, exibindo os dentes caninos
particularmente afiados.
Ramessés a levou para fora do palácio, mas não muito distante. Ainda na
parte nobre da cidade, eles entraram em um templo de prazer.
— Lugar peculiar para beber. — Ela disse, desviando das tendas de
tecidos translúcidos e coloridos que formavam uma colmeia no templo. A
utilidade do tecido era mera formalidade, era possível ver tudo que acontecia
dentro das tendas.
— É onde servem o melhor vinho de Astória.
A prostituição era um negócio que dava lucro no lugar onde ela nascera,
chegando a ser cobrado impostos pelos serviços, mas os templos de prazer no
Egito eram diferentes. Mulheres e homens iam ali para desfrutarem de seus
corpos sem inibições, muitos chegavam a levar seus próprios amantes. O que era
incompreensível para Norvina.
— Aqui é a tenda onde eu e meus irmãos costumávamos ficar.
Era um pouco maior do que as demais, e mais discreta também.
— Vocês vinham para cá com frequência?
Ramessés empurrou um lado da cortina para ela passar, e Norvina se
abaixou para não bater a cabeça no teto da lona. Sempre foi considerada alta
para o seu sexo.
— Antes de Áster se casar sim. Essa é a primeira vez que venho em quase
dois anos.
Norvina se perguntou então se a razão para o príncipe tê-la levado ali foi
porque sentia falta dos irmãos. Ele era o filho mais jovem do faraó, o último
solteiro. Pelo que Norvina sabia, Ramessés não pretendia se casar.
A tenda era mais espaçosa por dentro do que parecia ao ser vista por fora,
um grosso tapete forrava o chão, e almofadas de diversos tamanhos estavam
espalhadas para todo o lado. O cheiro forte do incenso de mirra fez Norvina se
sentir tonta e quente. Os dois sentaram-se em uma das almofadas, e Ramessés
passou um cálice de vinho para ela.
— Há apenas duas coisas que podem regenerar um homem, príncipe, a fé
ou uma mulher. — Disse a ele ao bebericar do vinho e descobrir a razão por ser
o melhor do Egito.
Ramessés exibiu suas presas em um sorriso irreverente.
— Se engana, sou um homem de pouca fé e meu coração continua
pertencendo a mim mesmo. — Norvina descobriu duas coisas sobre o príncipe
Ramessés naquela noite: uma, ele fazia jus ao que diziam por aí sobre sua
personalidade dócil e duas, ele era um grande mentiroso. — A razão por ter
deixado de frequentar esse lugar é que chegou um momento que perdeu o
encanto.
Mais ao fundo, um leito rodeado por um véu e muitas lanternas parecia
convidativo, no meio dele Darwish estava deitado, as mãos e os pés amarrados e,
até onde Norvina podia dizer, nu.
— Parece que você foi o único. — Ela disse, quando Ramessés também se
virou e viu o príncipe.
Ele puxou a respiração, assustado.
— Será que ele está desmaiado?
— Por que você não vai conferir?
— Porque tenho medo de que ele esteja! Você sabe acordar uma pessoa
desmaiada? Ouvi dizer que é perigoso.
Norvina revirou os olhos e caminhou até Darwish. A aparência dele estava
muito diferente da que viu no começo da tarde, ao sair com Darissa para um
passeio. Ela passeou os olhos pelo peito e abdômen dele, parecia vulnerável.
Será que fora com ela que ele viera para o templo de prazer? Norvina odiou os
pensamentos com tanta força que desejou acordar Darwish a chutes, mas se
fosse assim, Darissa estaria com ele.
Acertou um tapa leve no rosto de Darwish.
— Darwish. — Mais um tapa. — Acorde. Acorde, sua besta estúpida.
— Me deixa! — Ele resmungou e se virou para o outro lado, o tecido caiu
um pouco, revelando o princípio de sua virilha e o contorno do seu cetro real.
Bom, desmaiado ele não estava, o que queria dizer que, para estar ali, nu e
amarrado, devia estar com alguém. O ciúme irracional impulsionou dentro de
Norvina, e o vinho que estava no cálice dela foi parar sobre o rosto de Darwish.
O príncipe acordou tossindo, os olhos arregalados.
— Você está tentando me matar? — disse a ela, ao puxar ar para os
pulmões.
— Você não acordava, eu tive que tomar uma atitude!
A vista dele foi desanuviando e Darwish reconheceu o lugar onde se
encontravam, olhou para Norvina, para Ramessés, depois para o templo, para
Norvina e, por fim, para as cordas em seus pulsos.
— O que você está fazendo aqui? — Quase gritou, tentando, inutilmente,
esconder as cordas.
— Eu a trouxe, não sabia que você estava… usando a tenda.
Norvina sacudiu a cabeça, não ficaria ali mais nem um instante.
— Não vou mais atrapalhá-lo, comandante.
— Espere! — Darwish se levantou e na pretensão de correr atrás dela,
esqueceu-se que estava com as pernas amarradas e caiu como uma tora de
madeira no chão.
Gemeu e disse algo ininteligível.
— Onde estão suas roupas, Darwish? — Ramessés quis saber.
— Era o que estava tentando dizer, me roubaram.
— Um ladrão de péssimo gosto. — Norvina resmungou, e Darwish lhe
lançou um olhar fulminante.
— Preciso que alguém vá ao palácio e pegue umas para mim, não posso
sair daqui dessa forma.
— Eu faço isso!
Ramessés saiu da tenda tão rápido que Norvina nem teve tempo de dizer
que o acompanharia. Traidor! Ao contrário, ela se manteve naquela situação
vexatória, porque decidiu sair para beber com Ramessés. Já devia ter aprendido
que acompanhar qualquer pessoa daquela família era o mesmo que clamar por
confusão.
— Você poderia me ajudar. — Darwish disse, olhando para ela de onde
estava.
Norvina pensou em diversas formas de maltratá-lo por estar amarrado e
nu, de rosto no chão, mas já era humilhante o suficiente e achou melhor o ajudar
a ficar de pé. E também nunca o deixaria esquecer.
— Você é mesmo um depravado, não é?
— Não pense o pior de mim.
— Você está sem roupa e amarrado em um templo de prazer, o que eu
deveria presumir?
Darwish mordeu o lábio inferior.
— As aparências enganam.
— Exceto quando dizem respeito a você.
Ela o ajudou a se sentar e ia se erguer quando a mão dele circulou seu
braço.
— Por isso reluta em me aceitar? Por que crê que eu sou um pervertido?
— Você é um pervertido.
Norvina tentou não se deixar levar pela aura luxuriante que surgiu entre
eles. Era injusto, eles estavam no templo de prazer e era possível sentir a tensão
sexual por todo lado. Ele estava nu, por baixo do pano que ocultava suas partes
íntimas, e tinha todos aqueles toques e olhares sedutores. Como ela podia
resistir? Norvina sequer tinha forças para o combater.
— Mas minhas razões são mais profundas que isso. — Ela retrucou.
— Me diga quais são, e eu destruirei todas elas.
Foi nesse instante que ela percebeu que ele estava bêbado, o cheiro do
vinho era imperceptível em seu hálito, mas ele jamais diria uma coisa dessas se
estivesse em seu juízo perfeito.
— Falando assim, meu Guerreiro de Ébano, você quase me faz acreditar
que me quer.
Norvina tomou um susto quando as mãos dele, ainda amarradas, passaram
pela cabeça dela e a puxaram para ele, logo Darwish caiu sobre o leito e a levou
junto. Norvina estava montada sobre ele. Arregalou os olhos, com o rosto tão
próximo dele que o ar saía da boca de Darwish e entrava na dela.
— Deixe que meu corpo fale por si só. — Ele a empurrou para baixo com
as mãos e Norvina sentiu a ereção maciça forçando-se contra o tecido de sua
calça. Doía de tão duro que estava.
— A mulher que esteve com você mais cedo não foi capaz de saciar a sua
fome? — A voz dela estava trêmula e vergonhosamente melíflua.
— Não existe essa mulher, eu vim para beber até perder os sentidos.
— Está tentando me dizer que se amarrou sozinho?
Outra vez as mãos dele a empurraram para baixo, esmagando seus corpos
um no outro. Uma forte influência de prazer fez Norvina desejar abrir mais as
pernas.
— Uma habilidade que adquiri com o hábito.
Norvina franziu o cenho, era um absurdo que ele esperasse que ela fosse
acreditar. Com certeza ele esteve com uma mulher e se envergonhava em
admitir.
— Mentiroso. — Norvina enfiou as unhas nos ombros dele e atirou a
cabeça para trás ao ser outra vez amassada pela ereção de Darwish.
Por que isso é tão diferente?
Ela sentia-se muito bem, seus quadris passaram a repetir o movimento
involuntário e de bom grado, esfregando-se em Darwish em busca de algo que
ela não compreendia. Apoiou a testa no ombro dele e lhe mordeu o peito,
arrancado de Darwish um gemido grosso.
— Não é o bastante. — Ele arfou, e Norvina soltou um pequeno grito ao
ser erguida.
Darwish desceu as calças dela sem nem abrir os fechos, Norvina sentiu o
pânico com tudo, entorpecendo seus sentidos, mas, junto a ele, naquela corrida
desenfreada pela posse dela, vinha também o enorme desejo que sentia por
Darwish. Envenenando sua racionalidade. Outra vez ele a sentou em seu colo e
Norvina sentiu a entrada do seu sexo ser apunhalada, seu rosto ardia, seu corpo
fervia.
— Isso dói, Darwish. — Ela choramingou.
— Só a ponta. — Darwish prometeu em um sussurro devasso. Aquele
homem, ele era a definição de depravação. — Confie em mim.
Norvina não teve nenhuma ação depois desse pedido, era demais, ele
exigia demais dela, confiar seu corpo a outra pessoa era impossível. Norvina não
podia, ela não podia. Pelo menos era o que acreditava até Darwish mover seus
quadris, só um pouco, só o bastante para causar fricção.
Oh!
Era estranhamente magnífico. Não era o bastante para ela, faltava algo,
talvez um pouco de força, mas a forma como ele delirava embaixo dela parecia
muito excitante. Com os dedos fincados nas coxas dela, Darwish seguia
descendo-a até o limite, não chegava a entrar, apenas batia na porta como um
amante ansioso, mas paciente. Chegou a um ponto em que aquela suave fricção
começou a produzir um som instigante, era excitante de muitas maneiras e o alto
do sexo de Norvina latejava em abandono.
Ela choramingou, agarrando-se aos ombros de Darwish obstinada para não
ceder e sentar-se sobre a ereção maciça.
— Você está ordenhando a cabeça do meu pau, Norvi. — Ele arfou. —
Não posso aguentar, quero soltar tudo dentro de você.
Enquanto se segurava nele para não cair, Norvina avistou algo em sua
visão periférica. Ela desceu do colo dele com as pernas bambas, era humilhante
a forma como sua calça estava no meio das suas pernas. Norvina estava muito
envergonhada com a umidade escorrendo entre suas coxas, mas não deu
importância a isso.
Esticou a mão para trás do leito e apanhou as roupas de Darwish que
estavam entre os panos.
— Você disse que fora roubado.
Ainda meio embriagado, pela bebida ou pelo prazer, ele estreitou os olhos
para ela.
— É, foi o único modo de me livrar de Ramessés.
— Você é incorrigível! — Ela gritou, furiosa, mas não sabia com o quê.
— O que você está fazendo?
Ela se virou para ele no caminho para fora da tenda.
— Indo embora.
— Você ainda está com minhas roupas! — Ela adorou o desespero na voz
de Darwish.
— Acho que você não vai sentir falta delas já que gosta tanto de exibir
esses músculos por aí.
Ela deixou a tenda, ouvindo os gritos dele às suas costas.
Pelas semanas seguintes, Norvina vivenciou o próprio castigo de
Prometeu cada vez que Darwish entrava no harém para chamar uma pretendente
para um passeio. Era o mesmo que ter uma ave lhe bicando o fígado todas as
manhãs.
Dia após dia, menos mulheres sobravam e mais perto chegava o dia em
que o príncipe escolheria sua consorte. A única alegria de Norvina era saber que
depois estaria livre do suplício. O príncipe diria o nome da escolhida em um
grande festejo, diante de centenas de pessoas de cada canto do deserto.
Norvina, para se poupar, manteve-se afastada e voltou para os treinos na
guarda. Ia contra as ordens do comandante outra vez, mas lutar era a única forma
de se distrair. Exauria o corpo para que não tivesse forças para ir até Darwish e
gritar o que o coração parecia não ser mais capaz de segurar. Sobretudo por não
ter nenhum direito de fazê-lo. Não voltaram a se falar depois do acontecido no
templo de prazer. Norvina descobrira que seu corpo era capaz de produzir
aqueles gemidos de prazer, de ter aquele tipo de reação, e sua mente parecia não
ser capaz de pensar em outra coisa, estava inquieta. Darwish já tinha muitas
preocupações e não precisava de mais uma. Sem mencionar que não faria a
menor diferença, não era como se ele fosse escolhê-la. A ideia era ridícula até
mesmo na cabeça dela, e Norvina jamais seria tola de crer que poderia ser
diferente.
Passou muitas noites em claro com a mente presa nas palavras da
cartomante. Em uma ronda pela cidade, chegou a ir ao Mercado da Pechincha
para ver se a encontrava outra vez, precisava esclarecer algumas dúvidas, mas o
local onde ficava a barraca estava vazio.
Norvina chegou a perguntar pela mulher nos arredores, mas ninguém a
vira e, mesmo que a tivessem visto, não diriam. Uma coisa sobre os bandidos e
malfeitores era que eles eram muito leais uns aos outros. Ela passou a questionar
sua sanidade, mas era um pouco tarde demais para dizer que não tinha certa
esperança de que cada uma das previsões fosse verdade. Alimentou um monstro,
e ele ficou tão grande, massivo e barulhento, que ela não podia ignorá-lo.
E se eu pudesse me casar com Darwish? E se eu pudesse dar filhos a ele?
Segundo Illyana, Darwish era a solução que Norvina almejava. Ao mesmo
tempo que desejava que fosse verdade, ela se lembrava das muitas outras razões
pelas quais desejar era ignóbil.
— O que te incomoda? — perguntou Darissa, chegando por trás dela.
Norvina não mexeu a cabeça, movia os dedos nas cordas da lira,
produzindo o que parecia o som de gatos em uma rinha.
— Por que pergunta?
— Estou com pena dessa pobre lira, você arrebentará as cordas dela se
continuar assim.
Norvina diminuiu a intensidade do toque, envergonhada.
— Estou apenas praticando.
Mentiu, óbvio que mentiu, jamais admitiria o caos de um metro e noventa,
pele de ébano e olhos de cigano dissimulado que perturbava o seu juízo. O
pensamento de que, mais dia, menos dia, Darissa seria a mulher de Darwish agia
feito uma farpa no cérebro de Norvina. Quanto mais tentava remover, mais
profundo entrava. Norvina odiava que isso a incomodasse a ponto de doer, já que
fora ela quem arranjara os dois.
Merecia seu peso em ouro por ser tão parva.
— Claro que algo a incomoda. — Norvina largou de vez as cordas da lira
ao ouvir a voz irritante de Zaphenat. — Se eu estivesse na situação dela, também
estaria incomodada.
Norvina era madura demais para se deixar levar pelas provocações de
Zaphenat, mas estava sedenta por um motivo para ser desagradável com alguém
há dias.
— Que situação?
— Até agora você foi a única que o príncipe não quis ver.
Norvina fingiu não se importar, mas as palavras de Zaphenat foram um
belo soco no estômago. Desde o princípio ficou claro que Darwish só a usaria
para espreitar as pretendentes e conseguir informações. Mas, deuses, ela jamais
poderia mentir para a única pessoa que gostaria de poder enganar: ela mesma. A
verdade era vergonhosa.
— Darwish está sempre com Norvina, ele é o comandante dela. De todas
nós, ela é a única que já esteve mais tempo com ele. — Darissa veio em defesa
dela o que a fez sentir-se ainda pior.
Norvina percebeu pela maneira cheia de pena que as outras pretendentes
a olhavam que o boato se espalhara há muito tempo sem que ela soubesse.
Que deprimente. Agora sou conhecida como a “rejeitada” pelo príncipe.
— Não me surpreende que ele não tenha interesse, que homem iria querer
se casar com uma mulher que se veste como um ferreiro e fala como um? —
Zaphenat constrangia Norvina com um olhar zombador. — E não vamos
mencionar a horrenda cicatriz que ela tem na barriga…
Foi um golpe certeiro, Norvina lutou com todas as forças para não levar as
mãos para a cicatriz. Estava coberta pelas muitas camadas de vestimenta, mas
sentia como se estivesse nua diante dos olhos de todas aquelas mulheres.
— Já chega, Zaphenat. — Darissa a cortou, tomando a frente de Norvina
ao perceber que a amiga mudava de cor. — Você tem sido uma megera.
— Ela tem que ser, ou vai deixar que vejam que não passa de uma
ovelhinha assustada. — Norvina enfim conseguiu arranjar voz para retorquir,
deixou a lira de lado e se levantou. Sorriu com crueldade ao ver que atingira
Zaphenat bem onde doía.
— Você não sabe o que diz.
— Eu sei que você se sente ameaçada por todas nós, sobretudo por mim.
— Norvina deixou a mulher sem palavras, com as veias do pescoço saltadas no
desespero de retrucar.
— Ah, por favor, por que o príncipe escolheria você? — Zaphenat gritou.
Norvina buscou uma resposta para a pergunta e não encontrou nenhuma.
Darwish não tinha motivos para escolhê-la, ela era desagradável, grosseira, não
tinha riquezas, tratava-o com indiferença e, o mais importante, Norvina nunca
seria capaz de lhe dar o que ele mais desejava.
Jamais alimentou a fantasia de ter um homem como Darwish só para ela,
quanto mais se casar com ele. No entanto, sua parte que ainda era doce e gentil,
ao se dar conta de que Darwish nunca seria dela, ficou de luto.
— E por que ele escolheria você, Zaphenat? — Outra pretendente se
enfiou na discussão e poupou Norvina de ter que se humilhar para dizer o que
todas já sabiam.
— Não é óbvio? — Zaphenat empertigou os seios enormes.
— Ele procura uma esposa, não uma ama de leite. — A moça chamada
Layla disse, e uma chuva de risadas inundou o harém.
Zaphenat ficou muito vermelha, e a raiva deformou seu rosto, deixando-a
muito perto de ficar feia.
— Olha quem fala, a garota sem uma sobrancelha. Pelo menos raspe a
outra, deve ser um crime aparecer assim diante do príncipe — disse Yunet.
Layla se entalou com o choro iminente ao ser lembrada da sobrancelha
que lhe foi usurpada.
— De crime você entende, não é? Afinal, tem que ser muito insidiosa para
colocar tintura na loção de cabelo dos outros.
Todas no harém puxaram o fôlego, chocadas.
— Você?! — Nefertari, que ainda parecia que equilibrava um grande bolo
de lodo na cabeça, avançou na direção de Yunet, mas Norvina a segurou pelos
ombros.
— Eu só fiz isso, porque Ala me disse que você escondeu o meu vestido!
— A garota se defendeu, correndo para perto das janelas para fugir da outra.
— Eu não escondi o seu vestido — Nefertari grasnou enquanto Norvina
perdia as forças tentando impedir que a moça pulasse sobre a outra. — Kiara
escondeu!
— Kiara?!
Todas as cabeças se moveram para uma única direção. Norvina foi pega de
surpresa. Que grande reviravolta! A todo o tempo, elas buscavam uma única
culpada para as trapaças, quando todas as mulheres sabotavam umas às outras.
— Ah, por favor, cada uma deve lutar com as armas que têm. — Kiara
alegou diante dos olhares acusadores ao seu redor, ela empertigou as costas,
revelando uma personalidade diferente e determinada. — Zaphenat mesmo
disse, nós até podemos competir em igualdade pelo príncipe, mas não somos
iguais. Se eu não posso vencê-las em beleza, farei com que se igualem a mim.
Quem tem algum problema com isso pode vir reclamar comigo.
Nem se Norvina quisesse, conseguiria controlar o grande caos que
explodiu ao seu redor. A briga começou com Nefertari que foi prestar contas
com Kiara pelo vestido e, de algum modo, todas as princesas se embolaram em
gritos e puxões de cabelo. Perucas e pedaços de tecido voavam para todas as
direções, e ela fazia o possível para não ser pega no olho do furacão de mulheres
loucas estapeando-se.
— Solte o meu cabelo!
— Ai, isso dói!
— Minha canela, alguém mordeu minha canela!
Norvina conseguiu se esquivar a tempo de um vaso que voava em sua
direção, o objeto bateu na parede e um monte de joias caíram por todos os lados.
Sua sorte não durou muito tempo, ao se virar, foi pega por um soco no peito que
a fez cair de bunda no chão. Ah, não! Alguém morreria naquele instante.
Norvina respirou fundo cinco vezes antes de perder a cabeça.
Bufou ar quente pelas narinas e foi até os baús, recolhendo todos os
vestidos dentro deles até não restar mais nenhum, depois, marchou até a sacada
do harém.
— Já chega! — gritou, sua voz de general ecoou no teto alto do harém.
Todas as mulheres paralisaram nas mesmas posições em que estavam para
olhar a origem do grito.
— Se eu ouvir mais um som que seja de briga, vou jogar todos os seus
preciosos vestidos pela janela!
Ninguém ousou se mexer.
— Isso é tudo culpa sua! — Zaphenat, com a maquiagem toda borrada e o
cabelo desgrenhado, apontou um dedo para Norvina.
— Minha?
— É! Se você não tivesse surgido para roubar toda a atenção do príncipe,
nós não precisaríamos nos esforçar tanto para fazê-lo se apaixonar por uma de
nós.
Norvina não teve palavras. Dissera que Zaphenat a via como uma ameaça
por provocação, mas jamais cogitara que fosse verdade.
Darwish? Apaixonado por mim?
Ele a desejava, sim, mas ele era homem, e a achava inalcançável.
Como ninguém disse nada, Norvina percebeu que todas acreditavam
mesmo na possibilidade de Darwish escolhê-la. Ficou tão chocada que quase
deixou os vestidos deslizarem de seus braços. Ela os jogou no chão, aos seus
pés, e passou uma mão pela testa suada, ansiando que o gesto organizasse seus
pensamentos.
O coração de Norvina batia tão forte, o sangue parecia ser composto
apenas de esperança.
— Eu não sou ninguém. — Não soube o porquê foi a primeira coisa que
veio à sua mente, mas depois de pensar um pouco mais tudo fez sentido. —
Vocês são as dez mulheres mais belas e disputadas do Egito, qualquer homem
mataria para possuir uma de vocês, e vê-las nessa situação, estapeando-se,
sabotando umas às outras, por causa de um príncipe, me decepciona. A
sobrancelha de uma mulher foi raspada, pelos deuses!
Ninguém respondeu, estavam envergonhadas demais. Aos poucos,
começaram a soltar os cabelos e canelas umas das outras. Norvina sentiu-se
melhor, mas seu peito ainda doía.
— Era ele quem deveria lutar pela atenção de vocês! Sem vocês, ele não
tem esposa. O poder está com vocês, sempre esteve. — As moças refletiram
sobre o que ela falava. — Quero dizer, o príncipe Darwish é o homem mais
íntegro que já conheci. Ele jamais escolheria uma mulher como esposa pelo
tamanho dos seus seios ou da sua fortuna, não se importaria se tem o cabelo
verde ou apenas uma sobrancelha, não se acha tão bonita ou se estiver vestida
com retalhos. Se fosse assim, ele não chamaria dez de vocês até aqui. Então, ao
invés de se preocuparem em buscar o que o príncipe mais gosta e se espremerem
para caber no molde, pensem no que vocês mais gostam em si mesmas e deixem
que ele veja isso. — Foram as palavras mais sinceras que deixaram a boca de
Norvina.
— Ah!
Ela virou a cabeça tão rápido que ficou tonta. Um calafrio desceu por sua
espinha e só parou em seu rego.
Darwish estava parado na entrada do harém e, pelo jeito que a olhava,
estava de pé ali há um bom tempo. Norvina levou a mão ao estômago, tentando
de forma desesperada manter o almoço ali.
— Alteza. — Zaphenat quase encostou a testa no chão em uma reverência.
Darwish nem moveu os olhos para a mulher, ainda encarava Norvina. Ele
não sorria, mas as covinhas de suas bochechas estavam em evidência e seus
olhos cintilavam feito estrelas. Ela gostaria de saber o que a expressão
significava.
— Me acompanha? — Ele não falou o nome dela, mas Norvina conseguia
saber só pelo tom da voz de Darwish que era com ela.
Sem ter motivos para recusar, ela o seguiu para fora do harém. Sentia
como se suas pernas andassem por vontade própria.
Fecharam as portas do harém em um baque nas costas dos dois, e eles
ficaram sozinhos no corredor, com os guardas. Norvina não conseguia encará-lo,
manteve os olhos no pedaço de pele que escapava na túnica de Darwish, onde
podia ver a cabeça da cobra negra.
— Eu agradeço por defender minha honra. — Era claro que ele não
perderia a chance de mostrar que a ouvira.
Ela coçou a garganta, seus olhos não paravam quietos. Não sabia se tinha
coragem de encará-lo depois de ter visto o rosto dele se contorcer daquela forma
tão cheia de prazer.
— É o meu dever, você é meu comandante. — Era a desculpa mais
ridícula que alguém já tivera a coragem de dizer, mas foi a mais rápida que
Norvina conseguiu pensar.
Darwish deu uma risada suave.
— Certo, claro que sim.
Eles se fitaram em um silêncio que deixava muitas coisas implícitas.
— Por que me chamou? — Norvina quis saber.
Darwish começou a passar o dedo indicador no polegar de modo vagaroso.
— Resta apenas uma pretendente para que eu possa escolher minha
esposa.
Norvina franziu o cenho, aborrecida. Ele me chamou no corredor para
dizer isso?
Ela sabia que a condição do acordo exigia uma aproximação entre os dois,
mas não os tornava amigos. Norvina não queria saber o que ele achava das
mulheres ou o que ele fazia com elas no tempo livre. Seria cruel demais ter que
ouvir os planos de Darwish a respeito de um futuro com outra mulher.
— Você quer que eu chame a pobre alma? — Ela indagou, ansiosa para
sair da presença do príncipe.
Ele sorriu, e as covinhas de suas bochechas ficaram mais profundas, para a
infelicidade dela, deixando-o muito atraente. Norvina sentiu o coração se
retorcer como um maldito rato envenenado. Tão suscetível!
— A pobre alma é você.
Norvina piscou algumas vezes.
Entendi direito?
— Eu? — Repetiu só para ouvi-lo confirmar. Não podia confiar na própria
mente.
— Sim.
— Mas… — Norvina arranhou a garganta. — O nosso acordo não
envolvia… isso.
Darwish meneou a cabeça, sendo razoável.
— Se eu não chamasse você, levantaria suspeitas. Para todos os efeitos,
você faz parte da realeira.
Norvina buscou de forma sedenta por uma desculpa que não a fizesse ter
que passear com Darwish por uma tarde inteira, mas o argumento dele era muito
plausível. Xingou em pensamentos. Ela o olhou, estranhando que parecesse tão
calmo. Deu de ombros, não tinha nada de abominável em dar uma volta com ele.
Corria um grande risco de estar tão iludida quanto já estava, mas suspeitava que
não era algo que pudesse evitar.
— Eu aceito... — E fez uma pausa dramática. — Se pedir “por favor”.
Darwish ofereceu o braço para ela.
— Aceita ter um momento a sós comigo, por favor?
Norvina estranhou que ele não tivesse feito um protesto, já que era um ser
pedante e orgulhoso. Assentiu com a cabeça, mas não aceitou o braço estendido.
Não era seguro estar tão perto dele.
— Perdoe minhas vestimentas, aposto que gostaria que eu usasse um traje
à sua altura.
Darwish desceu os olhos pelo corpo dela, e Norvina sentiu-se acariciada
em cada centímetro de pele.
— Não se incomode, eu gosto de você assim.
O rosto dela se encheu de calor. O elogio fez um estrago no coração de
Norvina. Mesmo assim, ela gostaria de ter vestido algo mais… feminino e
apropriado. Não as roupas que ela mesma fizera e, por isso, pareciam costuradas
por uma criança.
Eles caminharam a passos lentos e tranquilos pela estrada de grama verde,
em direção às grandes piscinas nas laterais do palácio. Norvina achou muito
estranho andar ao lado de Darwish, não atrás, como faziam ao estarem nos
postos de comandante e guarda. Darwish era um homem grande, um titã preso
no corpo de um mortal, de beleza intimidadora; ele ofuscava qualquer pessoa,
nada conseguia competir com ele ao adentrar um recinto. Além do cheiro, doce e
convidativo, que hipnotizava e atraía feito um feitiço em forma da canção de
uma flauta.
Entraram em um caminho de árvores de ipê, em que os galhos das árvores
eram tão grandes que se encontravam e formavam uma bonita cúpula de folhas
amarelas e flores recém desabrochadas. Norvina fingia admirá-las para fugir do
olhar do príncipe, que não a abandonava nunca.
— O que você me diz? — A voz de Darwish, grossa e melódica, fez a pele
dos braços dela enrijecer.
A respiração de Norvina se tornou lenta e comedida, ela piscou os olhos.
— Sobre o quê?
Darwish riu de alguma coisa.
— Das minhas pretendentes, é óbvio, você não é meu lobo entre as
ovelhas?
Norvina mordeu a bochecha para conter a frustração. Era claro, devia
saber que ele nunca a chamaria para um passeio só para apreciar o esplendor da
sua companhia.
— Primeiro nos comparou com abelhas, agora somos lobos e ovelhas.
Qual seu problema com analogias que envolvem animais?
— Só você é um lobo, mas tem razão, talvez eu tenha passado muito
tempo observando o comportamento dos bichos e chegado à conclusão de que
eles não diferem muito de nós, na verdade, alguns são até mais organizados e
justos.
— Depende do que você considera justiça. Por exemplo, a fêmea do
louva-a-deus come a cabeça do parceiro durante o acasalamento.
— Mas sem isso os filhotes não sobreviveriam e acarretaria a extinção da
espécie.
— Tenho certeza de que o macho que tem a cabeça devorada deve
discordar de você.
— A função de um pai não é prover alimento para os filhos?
— Parece que não chegaremos a um consenso, alteza.
Darwish aquiesceu.
— Eu ficaria espantado se chegássemos.
Norvina segurou um sorriso.
— Bem… — Ela parou para pensar.
A verdade era que todas as concorrentes tinham seus defeitos, apesar
disso, todas, em igual, mereciam se tornar uma princesa. Até Zaphenat que,
apesar de ser insuportável, apenas almejava um casamento vantajoso para que
pudesse assumir de vez o governo de sua cidade. Norvina descobrira alguns dias
atrás, pelos cochichos entre as outras concorrentes. Cada uma das meninas tinha
seus motivos para desejar esse casamento. Não conseguiria tomar de nenhuma
delas esse sonho. A grande questão era se alguma delas merecia Darwish, e, bem
lá no fundo, Norvina sabia que nem uma merecia. Duvidava que existisse mulher
no mundo que viria a merecer.
Ele era um grande patife irritante e presunçoso; e também era um bom
homem, leal, honesto, prezava pelo bem-estar dos outros e defendia a família
acima de tudo. Norvina conhecera muita gente ruim, também muita gente por
quem valia a pena lutar, algumas pessoas tinham essas qualidades, mas não todas
de uma vez. Darwish era um tesouro, ela, que nunca fora gananciosa, desejava-o
todo para si.
Norvina ergueu a cabeça para olhá-lo, já que o príncipe era muito maior
que ela.
— Depois de pensar muito, acredito que essa seja uma decisão que você
deve tomar, sem influências.
Darwish pareceu surpreso com a resposta e logo seu rosto se mostrou
satisfeito, como se devesse ter esperado que Norvina faria algo desse tipo.
Se ele soubesse… claro que era sincera ao afirmar que as moças são todas
qualificadas, mas também não podia dizer um nome porque… bem, não
conseguia.
— É, foi o que minha mãe me falou esta manhã. — Ele ergueu a mão e
uma folha de ipê soltou-se da árvore e dançou no ar até pousar na palma alva e
macia do príncipe.
— Então, você já decidiu qual delas vai ser sua esposa? — Norvina
pensou se tinha a liberdade de fazer tal pergunta, afinal, ele era um príncipe, e
eles não eram amigos, mas chegou à conclusão que não estava nem aí para o que
podia ou não fazer.
Darwish inclinou a cabeça até encostar a orelha no ombro, sua mente era
um universo único, e Norvina imaginava que viver dentro dela devia ser uma
verdadeira aventura. Ou um castigo.
— Todas elas dariam excelentes esposas, isso é inegável, mas creio que
Darissa seria a escolha certa para mim.
Doeria em Norvina ouvir qualquer um dos nomes, mas o de Darissa era
como uma facada nas costas. Ela lutou contra o ímpeto de se encolher.
“A escolha certa para mim.”
— Ela é educada, de agradável aparência, minha família a estima. Eu não
precisaria me mudar para perto da família dela, ela é inteligente e os resultados
dos meus recentes esforços me dizem que podemos ser um bom casal.
As pernas de Norvina travaram, e ela se virou para ele com as juntas
enrijecidas. O coração batia como um malho no ferro quente e abrasante.
— Você a beijou? — Naquele instante, ela nem tentou fingir que não se
importava.
Darwish não expressou nada, tudo parecia tão superficial para ele.
— Eu tinha que beijar para atestar que éramos compatíveis.
Céus.
O que fez Norvina parar de andar, também a fez voltar. Dessa vez rápido,
quase tropeçando em suas pernas e sem nunca olhar para trás. Sentiu Darwish
segui-la em passadas rápidas. Pensou que se corresse seria muito ridícula.
— Norvina, pare. — Só serviu para fazê-la andar mais rápido. — Pare!
Os pés dela obedeceram de modo involuntário ao tom mais grave da voz
dele e ela tombou para a frente, despencando no chão de grama úmida. Norvina
sentiu uma torrente de emoções com tudo e enterrou os dedos na grama.
— Não precisava ter parado de uma vez. — Darwish se deitou sobre ela,
acalmando os nervos em colapso com um calor mais forte do que o sol.
— E são? — Ela rolou na grama, ficou de frente para ele em um arroubo
de coragem e raiva. Piscou para aliviar o ardor nos olhos e encontrou o rosto
dele pairando sobre o dela. — São compatíveis?
O rosto de Darwish mudou também, ele estava sério de um modo
perigoso, e seus olhos anunciaram uma tempestade.
— Você me confunde. Foi você quem disse que eu devia chamá-la para
um passeio!
A pior parte era essa. Norvina quase deu com a mão na testa. Burra!
Burra! Burra!
— Você vem fazendo tudo ao contrário do que eu peço há quase dois anos
e justo agora decidiu me obedecer?
— Eu acreditei que escolhê-la para ser minha esposa deixaria você feliz.
— Uma das mãos dele abraçou o quadril dela.
— Ah, agora você quer minha felicidade?!
Os músculos de Darwish se esticaram para dominá-la. Norvina podia
senti-lo em tudo, as pernas se entrelaçando às dela, o tronco fazendo-a afundar
na grama.
— Você não tem o direito de se irritar, Norvina. Foi você quem me trocou
por um beijo no Mercado da Pechincha, lembra-se?
Ele apertou a carne dela com força, e um gemido a traiu. O rosto de
Norvina entrou em erupção.
— Eu não troquei você por um beijo, seu grande patife, foi por isso. —
Desajeitada, ela retirou um pedaço de papiro do coldre em sua coxa.
Darwish pegou o papel, abriu-o e averiguou seu conteúdo.
— O que é isso?
— É o nome de uma cidade perto de Memphis.
— É a localização daqueles de quem você foge?
Ela assentiu com um movimento de cabeça.
— Sim, meu irmão, Petrus. — As palavras foram empurradas pela
garganta dela com força. Era a primeira vez, em anos, que Norvina falava do
irmão, tinha medo que, de alguma maneira, ao dizer o nome, ela o invocasse.
— Foi o mais perto que ele já chegou de me encontrar.
Darwish ergueu as sobrancelhas, Norvina esperava uma avalanche de
perguntas que não estava pronta para responder. Como sempre, Darwish fez
questão de mostrar que estava errada em achar que o conhecia e descartou o
assunto como se não tivesse a importância que tinha.
— Isso não muda o fato de que beijou alguém. E na minha frente!
— Se você quer usar isso para diminuir sua culpa, vá em frente. — Ela ia
se erguer e voltar a andar, mas Darwish a empurrou de volta contra a grama,
pressionando o corpo grande no dela.
A grama arranhou as costas de Norvina e ela arfou. Seus sentidos ficaram
apurados, e ela manteve as mãos onde pudesse ver, para não tomar uma atitude
da qual se arrependeria. Apesar do medo — um homem grande e forte estava
sobre ela, olhando-a como se fosse sugar sua alma —, Norvina não sentia que
corria perigo.
— Você vai continuar fingindo que nada aconteceu entre nós?
Esse tom de voz…
Norvina desejou ter algum objeto nas mãos para direcionar sua atenção e
evitar os inescrupulosos olhos azuis de Darwish.
— Nada aconteceu entre nós, nove meses atrás.
O príncipe bufou.
— Foi há dez meses. Nada? — Ele a escrutinou, desfragmentando a alma
dela com o olhar avassalador.
— O que aconteceu não teve importância. — Ela achou que dizer em voz
alta, tornaria mais real, no entanto, não ocorreu.
— Teve importância o bastante para você me evitar por todos esses meses.
— Ah, vamos Darwish! Como se você tivesse sentido minha falta nesses
últimos nove meses. Se bem me lembro, você tinha coisas mais urgentes com o
que se ocupar, como vasculhar o Egito de uma ponta a outra atrás de esposas.
— Dez meses, foram dez meses!
Ela revirou os olhos e esbaforiu.
— Que seja, nove ou dez meses.
— Você não pode me culpar, não pode, eu te fiz uma pergunta e… — Ele
tragou saliva, desviando os olhos para o pescoço dela. — Você disse não.
— Não, eu não disse nada. — Norvina enfatizou a palavra.
Darwish se calou, puxou o ar para os pulmões com força. Ele a olhou com
uma fome de dilacerar a alma. Aproximou ainda mais o rosto do dela, e Norvina
quase se fundiu ao chão para fugir dele e do que ele pretendia fazer. Seu olhar é
tão quente e conflituoso...
— E então? — Ela o olhou de forma interrogativa. — Me responda agora.
Norvina mordeu o lábio inferior, dessa vez ele não estava bêbado. Não era
justo. Ele não entendia no que se meteria, o que pedia para ela sacrificar, ainda
mais, do que abriria mão, sem nem saber. A incapacidade de dizer não para ele
era o que mais a frustrava, tudo em Darwish abalava as estruturas da represa
dentro de Norvina. Os sentimentos dela estalavam, ansiosos para devorá-la. Pela
primeira vez, as metades que viviam em conflito dentro de Norvina se fundiram
em um único objetivo. Ela tinha que dar um fim a eles.
Encarou Darwish sem intenção de fugir.
— Me espere em seu aposento essa noite, irei até você e levarei a resposta.
— Ela prometeu, mesmo sabendo que depois disso, estaria para sempre
arruinada.
Dez (ou nove) meses atrás

Já havia algum tempo que Darwish a observava. Norvina estava
debaixo de um pessegueiro florido, sentada em um tapete feito das flores rosadas
que caíam da árvore frondosa. Ela usava o punhal de prata para rabiscar algo no
tronco ressecado, e o vento assobiava uma melodia funesta na montanha onde
ficava o castelo de Nortrund. Ela parecia uma deusa condenada a passar a
eternidade em solidão, em uma gaiola invisível.
Não precisou ir muito longe para encontrá-la, só teve que seguir o rastro
de enxofre que ela deixava para trás.
Norvina despertava uma impressionante quantidade de sentimentos dentro
de Darwish, e esses sentimentos viviam em contínuo conflito. Ele não conseguia
parar de olhar. De vez em quando, ela se movia e lhe dava um vislumbre da nuca
por baixo da manta de cabelos negros, salpicado de sardas, onde a alça do
vestido deslizava toda vez que ela relaxava. Pequenas e doces recompensas que
valiam a pena todo o tempo que passava apenas a observá-la.
Darwish fazia isso mais vezes do que gostaria de admitir, e há um tempo
anormal também. Começou com uma pequena curiosidade, ela o intrigava, sua
aparência o perturbava. Ele a achava atraente demais. As sardas que Norvina
tinha nos ombros, e nos braços, e no rosto, deixavam-no doente de fascinação, e
ele era flagelado pela curiosidade de saber se todo o restante do corpo de
Norvina era coberto pelas sardas tentadoras.
Ela se ergueu para apanhar um pêssego maduro que o vento derrubou e, ao
se abaixar, exibiu a parte de trás das coxas no vestido. Uma nova fantasia
disparou na mente pouco sã do príncipe. Norvina, na cama dele, as mãos
apoiadas na beirada, erguendo o traseiro para deixá-lo entrar na velocidade que
quisesse e com a força que julgasse satisfatória.
Darwish sacudiu a cabeça e resolveu que se continuasse olhando-a,
acabaria melando-se sem nem se tocar. Mexeu em seu membro enrijecido ao
tentar deixá-lo confortável na túnica antes de sair do seu esconderijo e caminhar
até a fonte de sua perdição.
— Confesso que estou desapontado, esperava um pouco mais de desafio.
— Norvina se virou de uma vez para ele, o cabelo dela a acompanhou, criando
uma sombra negra em volta de si. Até mesmo esse tinha personalidade.
— Você trapaceou. — Ela o acusou, apertando o cabo do punhal com
força em sua mão pequena, mas letal.
— Não seja uma péssima perdedora, Bonita. O jogo era esconde-esconde,
eu devia encontrar você e o fiz, seja uma boa garota e admita minha vitória.
Ela bufou, resignada.
— Eu já disse para parar de me chamar assim. — Norvina rilhou os
dentes.
— Por quê? Alguma vez já menti para você?
Ela abriu a boca para responder, mas acabou que nada veio. A pele de
Norvina brilhou com um suor, apesar do frio, em um rosado provocante.
— Como você me achou?
Ele deu de ombros.
— Você é previsível. Eu só tive que achar o lugar mais distante da
civilização, sabia que era onde você estaria.
Norvina mastigou um xingamento. Deveria achar insultante que ele a
conhecesse tão bem.
— Você tem que ser um idiota presunçoso?
— Sim, é um dos grandes privilégios de ser tão bonito.
Ela cerrou o maxilar, desejando poder discordar dele, mas era uma mentira
dizer que não o achava bonito e seria bem óbvio para os dois.
Darwish ouvira sua vida inteira sobre sua beleza. Entre os irmãos, ele foi o
único a herdar os olhos azuis de Zahara, e a pele negra de Radamés, essa era
uma combinação atrativa em qualquer civilização. Jamais alguém vira outro
como ele. Darwish sorriu, mostrando os dentes, e a mulher rolou os olhos.
— Você é até bonitinho.
Darwish levou uma mão ao peito, fazendo-se de ofendido.
— Bonitinho é alguém que você não tem intenção de levar para a cama.
— Os outros já saíram dos esconderijos? — Norvina ignorou o que ele
disse.
A copa da árvore dava certa privacidade a eles, e o cheiro pungente de
pêssego dava languidez a Darwish. A luz da noite não conseguia diminuir em
nada o quanto Norvina parecia assustadora de tão bela.
— Áster arrastou Zaya para os aposentos dos dois, Ramessés e Darissa
foram para as cozinhas do castelo, não quero nem saber onde estão Aslan e
Kamilah e o que estão fazendo.
O silêncio se fez presente como uma terceira pessoa enquanto Norvina
pensava.
— Muito bem, você ganhou, mas isso não prova que estou errada sobre
você ser competitivo.
— Meu objetivo com esse jogo não era provar nada sobre mim, mas sobre
você.
Ela girou o punhal nos dedos e o guardou na bota em um movimento ágil.
— Espera que eu pergunte o quê? — Ela se ergueu e se apoiou com uma
perna no tronco do pessegueiro.
— Que você queria que eu viesse atrás de você.
Norvina deu uma risada que mais parecia ser provocada pelo nervosismo
do que por qualquer outra emoção.
— Insinua que eu possa ter uma paixão reprimida por você? — Ele não
disse nada e ela riu mais alto, de um jeito que o fez cerrar os punhos de raiva. —
Nem você seria tão louco.
— Se eu fosse você, não diria isso. — Darwish passou um polegar pelo
outro.
— E por que não, príncipe? — A acidez do deboche era perceptível na voz
dela.
— O destino tem essa mania de voltar para morder nosso traseiro.
— Você está vendo aquela lua? — Ela apontou para o céu.
Darwish fez que sim.
— Sabe por que eu a invejo?
Ele esperou que ela fosse dizer algo simbólico ou romântico.
— É a distância que eu quero entre nós dois agora.
A cara dele foi ao chão.
— Sua gárgula, um dia eu ainda vou pôr uma coleira em você! — Darwish
esperneou.
Norvina riu, descrente, juntou as mãos frente a boca e exalou ar quente,
agasalhando as mãos. Fazia muito frio, e Darwish sequer percebera. Por cima do
ombro dela, ele avistou um movimento no tronco do pessegueiro. A árvore
estava com uma suave elevação, dando a impressão de que a casca rugosa e
marrom se movia em círculos. Norvina seguiu a direção dos olhos dele e a
percebeu também. Ela se esquivou rápido e puxou o punhal da bota, preparou-se
para golpear o tronco, mas antes que o fizesse, Darwish agarrou a mão dela.
O olhar afiado de Norvina o buscou, interrogativo.
— Não faça isso — pediu e colocou uma mão na barriga dela para
empurrá-la com gentileza.
Levou uma mão para o animal no tronco, que ao notar a agitação, parou
para olhar para eles. Os pequenos olhos negros da serpente se fixaram na mão de
Darwish e, com cuidado, ele transferiu o animal para sua palma. Ela enrolou seu
corpo longo e esbelto no braço esquerdo do príncipe, parando em uma posição
semelhante à tatuagem que ele tinha lá.
— Ela não oferece perigo, vê? Você fez uma confusão na casa dela, e ela
veio reclamar.
Norvina o encarou. Tentava entendê-lo.
— Já entendi, você é um amante de cobras.
— Pelo contrário, eu costumava as temer. Fui picado no dedão por uma
delas aos oito anos de idade e fiquei inconsciente por três dias.
— Se é assim, por que você tem uma tatuada no braço?
Ele inclinou um pouco a cabeça, o toque da cobra em era suave e tácito,
quase como um abraço.
— O meu povo acredita que uma grande cobra tenta engolir o sol todos os
dias, Amon-Rá a enfrenta e a bani para as profundezas, mas ela persiste, ainda
que a vitória seja improvável. Uma cobra foi a única arma que Ísis achou para
convencer Amon-Rá a trazer vida a Osíris. As cobras representam a proteção,
mas também representam o caos. Elas podem ser os dois, em perfeito equilíbrio.
Darwish sentiu-se exposto diante do olhar de Norvina, por isso, virou-se e
depositou o animal de volta na árvore. Observou-o até se camuflar entre os
galhos.
— Mas isso é só para quem acredita — admoestou.
Ela devia achá-lo tolo por acreditar em algo tão fora da realidade.
— De onde eu venho, não existe uma história por trás do raiar do sol, mas
existe uma para os meses de frio — disse ela, em uma tentativa de fazê-lo sentir-
se menos tolo. — Perséfone era filha de Deméter, a deusa da lavoura. Ela era
muito bonita e chamava a atenção de muitos deuses. Entre eles estava Hades, o
senhor do submundo. Assim que a viu, ele se encontrou perdido de paixão e,
enquanto Perséfone colhia jacintos nos jardins de Olimpo, ele a raptou. No
submundo Perséfone comeu as sementes de uma romã e, por isso, foi
amaldiçoada a ficar por lá. Ela não teve escolha a não ser se casar com Hades.
Arrasada, Deméter condenou a terra a um frio rigoroso, que formou geleiras
imensas e trouxe as trevas para os humanos. Por intermédio de Zeus, o senhor de
todos os deuses, Hades então chegou a um acordo com Perséfone: ela passaria
cada seis meses no ano ao lado da mãe, e depois, voltaria para ele.
Darwish achou que era uma maneira muito romântica de enxergar a
realidade.
— Eu não sabia que você era uma pessoa religiosa.
O olhar de Norvina se tornou triste e distante, e ele de imediato se
amaldiçoou por ter uma língua.
— Eu costumava ser.
Darwish também, mas há muito tempo deixara de esperar que os deuses
trouxessem alívio para o seu sofrimento. Ele baixou a cabeça e avistou o cabo
prateado do punhal que saía da bota no pé dela.
— Por que você sempre carrega esse punhal? — Era uma peça bonita com
uma lâmina ondulada e entalhes nos dois lados do cabo de prata.
Norvina puxou os lados do vestido para frente.
— Estou pensando se devo responder. — Ela foi ríspida, como sempre.
— Por quê? Somos amigos, não somos?
— Não, não somos, mas se eu contar, acho que seremos e estou decidindo
se é uma boa ideia.
Darwish soltou as amarras do cinto de sua cintura e retirou a camisa.
— O que você está fazendo? — Norvina perguntou, ultrajada.
— Garantindo que não vou sujar minha roupa de sangue depois que você
me esfaquear com seu punhal.
— E por que eu faria isso?
Ele avançou na direção dela.
— Por isso.
Darwish a pressionou contra o tronco do pessegueiro, Norvina arregalou
os olhos com a proximidade repentina. Nem ele sabia o que o levara a cair sobre
ela, mas estava tão perto que não conseguia voltar atrás. Norvina leu as
intenções de Darwish com perfeição, reconheceu o desejo dele, o que ele
pretendia fazer, e não fez nada para impedi-lo. Pelo contrário, fechou os olhos e
o ar passou a sair denso de seus lábios rosados de frio.
O rosto de Darwish pairava sobre o dela, o hálito acariciava a pele
sardenta e frágil. Norvina evitou os olhos dele a todo custo, relutante em
entregar aquela parte sua para ele. Darwish a buscou em tudo, no ar, no tato,
passeou os olhos pela pele jamais vista dos seios dela que escapava pela fresta
do vestido. Quando, por fim, os olhos dela dispararam para os dele, foi como um
pedido. A boca de Darwish saqueou a dela em um golpe impetuoso, os dois
puxaram ar para os pulmões em chamas. O príncipe sentiu como se tivesse se
liquefeito, uma poça de nervos trêmulos e um pau duro.
Norvina era como figo, para se chegar ao doce da fruta, teria que
atravessar a casca dura que a envolvia. Como quase tudo que é adquirido com
esforço, ela era maravilhosa. Darwish atravessaria quantas cascas fossem
necessárias se a recompensa fosse a doçura dos lábios de Norvina nos dele, o
suspiro de paixão que ela soltava ocasionalmente. Os seios dela espremidos
contra o seu tórax, subindo e descendo de forma agressiva. Ela resfolegou, em
busca de ar, e ele penetrou a boca dela com a língua, lambendo-a de dentro para
fora e gemendo como um maldito pervertido.
As mãos de Norvina agarraram a cabeça do príncipe, ela o puxou,
acabando com a pouca distância que ainda mantinha a paz entre os dois e foi
uma loucura. Darwish sentiu o corpo pequeno e generoso da mulher se moldar
ao dele e perdeu o juízo, chegando a soar como um animal ao puxá-la pela perna
e enlaçá-la em seu quadril, rosnando. Ela puxou a cabeça com força para respirar
e protestou de dor pelo lábio mordido, ele não queria soltá-la. Darwish atacou o
pescoço dela com a boca, os lábios defloraram a pele branca e a corromperam
com os dentes vorazes.
Eles se fundiam como ferro a marretadas.
Ele a colidiu contra a árvore outra vez para conseguir apoio e roubou um
gemido de Norvina. Quase explodiu em gozo de tanto prazer que sentiu só em
ouvi-la gemer. As alças do vestido fizeram o favor de cair no meio da loucura da
paixão, e o início dos seios dela estava exposto na noite fria. Darwish procurou
Norvina com os olhos, ela o encarava tão submissa, volátil e feminina.
Foi quase como se o destino sussurrasse uma resposta para todas as
indagações da mente dele. Nas noites insones, era Norvina sua melhor
companhia; nos dias de tédio, ouvir os insultos dela o divertia; o único motivo de
se levantar da cama todos os dias era a desculpa de vê-la nos pátios de treino,
lutando. Ela também tinha seus defeitos, por isso, ele sabia que se existia uma
mulher no mundo capaz de entendê-lo, era ela.
Por que não ela?
Pode ser ela.
Deve ser ela.
Darwish encostou a testa na dela.
— Parece que meu corpo ansiou isso por tempo demais.
O príncipe nunca fora assaltado por emoções tão verdadeiras, o que
Norvina causava nele, fazia todas de as outras sensações patéticas.
— Meu Guerreiro de Ébano, você não procura por uma noiva? — Norvina
disse, a voz rouca e sedutora.
Darwish acariciou o osso da clavícula dela com os dedos.
— Procuro. — A voz dele saiu gutural e melíflua, a pele de Norvina se
arrepiou ao ser tocada no vale entre os seios.
— Ah, então eu sou sua despedida?
Ele ergueu a cabeça para encará-la.
Darwish odiou ouvir o nome dela e “despedida” juntos na mesma frase.
Acabara de beijá-la e não conseguia pensar em nada que não em fazê-lo outra
vez, e outra vez, quem sabe mais uma, quem sabe mais forte, quem sabe sem
tantas roupas.
— A não ser que você concorde em sê-lo.
Ele pôde sentir cada músculo de Norvina ficar rígido em seus braços. Ela
o encarou, inexpressiva. Para o caso de ela fingir que não o entendeu,
acrescentou:
— Minha esposa, quero dizer. A não ser que você concorde em ser minha
esposa.
Foi interessante observar as inúmeras expressões pelas quais a face dela
viajou, cada recanto sórdido que a mente dela visitou. Darwish ansiou, quase
implorou, por uma resposta. Norvina desceu o rosto para outro beijo e, de
alguma forma, despedaçou o coração de Darwish. Ele sabia que significava um
“não”. Aquele era o jeito dela de recusar a proposta de casamento.
Darwish pensou em inúmeras formas de convencê-la do contrário, mas,
conhecendo Norvina, devia saber que não tinha qualquer possibilidade de
acontecer. Ela estava em seus braços, enroscada em seu quadril, não iria para
lugar nenhum. Se aquela era a única chance que ele teria de tê-la, então
aproveitaria cada mísero bater do seu coração. Tocou os ombros dela, desceu as
mãos por suas costas e desenhou a cintura em formato de alaúde.
Ele a sentiu, a forma como ela se encaixava nele, mesmo pequena,
conseguia ser perfeita e perigosa. Quase desejou rir, rir, rir, de puro êxtase.
Darwish puxou mais as alças do vestido para baixo, e os seios dela saltaram para
fora. Ela tinha aréolas grandes e cor de rosa, e ele não sabia se pelo frio ou se
pela paixão, os bicos estavam duros. Norvina respirava com dificuldade, era
possível ouvir à distância. Darwish escondeu um mamilo na boca e a sentiu se
retorcer em seu quadril.
As mãos dele a puxaram e a esmagaram contra o corpo, ele abriu mais a
boca e quase tomou todo o seio dela em seu interior. Com um desejo antinatural,
segurou a cintura de Norvina e a puxou com rudez para espremê-la em sua
ereção.
Foi rápido demais.
De um rompante, Norvina separou-se dele, antes que Darwish pudesse
sentir o frio da falta dela, ele estava no chão, as costas doendo pela colisão, e
Norvina montada sobre ele, com o punhal pressionado em sua garganta. O rosto
transformado em uma máscara de ódio, e… medo. Ela está com medo de mim.
Não, dele não, aquela mulher sobre ele não era Norvina. Darwish sentia o gume
do punhal lhe abrir a pele. Com cuidado, ele tocou nas mãos dela.
— Norvi — disse, carinhoso. — Sou eu, Darwish.
Norvina rangeu os dentes e enfiou a faca mais fundo, ele sentiu o quente
do sangue desfilando em sua pele. Segurou as mãos dela com mais força e
acariciou os braços macios de Norvina, até pousar em seu coração. Ela o sentiu e
piscou, foi como se o toque dele a trouxesse de algum pesadelo, e mais do que
nunca Darwish se enxergou nela. Norvina tentava reconhecer o mundo ao seu
redor, então olhou para ele e pareceu se dar conta do que acontecera.
— Norvina. — Ele falou, os olhos arregalados. Com cuidado, segurou a
mão dela e lhe tomou o punhal. Norvina ainda estava sem acreditar no que
acontecera e tremia muito. Dessa vez Darwish sabia que não tinha nada a ver
com o frio. — O que houve?
Ela saiu de cima dele, voltando a cobrir os seios. Darwish ergueu o torço,
apoiando-se nas mãos. Sem dizer nada, ela tomou o punhal da mão dele, parecia
com raiva de Darwish, ou de si mesma.
— Norvina! — Ele gritou mais uma vez antes de ser abandonado sem
nenhuma explicação.
O pio de uma coruja foi o sinal que Norvina esperava para levantar da
cama. Fazendo o menor barulho possível, ela vestiu um penhoar por cima da
túnica de dormir. Passou pela cama de Darissa e notou que estava vazia, com a
coberta intocada.
Que estranho... Mas não deu muita importância e fez o caminho para fora
do harém.
Passou por alguns guardas que faziam ronda nos corredores, recebeu
alguns olhares enviesados, mas ninguém a impediu de prosseguir ou a
questionou para onde ia. Norvina adquirira autoridade entre os guardas nos
últimos meses. Gostava de pensar que conquistara o respeito deles e que não era
apenas resultado do medo que tinham dela.
Ao entrar na guarda, após derrotar Darwish diante dos homens dele, teve
que ouvir muitos comentários desagradáveis nos corredores. Chegou a receber o
avanço de três homens, dois deles saíram mancando e um terceiro até caíra no
choro ao ser questionado sobre o que acontecera.
Com os meses, Norvina conseguiu conquistar seu espaço, tinha a ousadia
de acreditar que poderia até virar comandante um dia. Mas isso atrairia atenção
demais para si e jamais colocaria a vida da família de Darwish em perigo outra
vez por questões egoístas. Se soubessem o que ela fizera, porque se calara, ou
quem era, jamais seria perdoada. Darwish seria o primeiro a apontar uma flecha
para o meio de sua testa.
Doía pensar que ele poderia odiá-la. Norvina deixara que ele a conduzisse
no jogo de sedução. Não sabia o que acontecia com ela, sempre fora racional e
prudente.
Ainda assim, as palavras da cartomante não lhe davam trégua desde que as
ouvira e cada vez mais se tornavam tangíveis. Às vezes parecia que Norvina só
teria que esticar a mão e pegá-lo.
As coisas voltariam ao normal depois daquela noite, no fim da semana o
príncipe Darwish escolheria uma esposa e o mais importante: não seria ela.
Seus pés descalços pararam frente a porta dos aposentos dele. Decidida,
Norvina deu dois toques na madeira maciça. Não houve respostas. Ela colocou o
ouvido contra a superfície e ouviu a lareira crepitar. Darwish estava atrás da
porta, podia sentir, então por que não vinha abri-la?
Norvina bateu outra vez, mais forte, e a porta abriu apenas uma fresta.
Com medo, ela a empurrou, sentindo uma forte rajada de vento em sua pele
suada. As dobradiças rangeram e um calafrio subiu por ela. Foi só erguer os
olhos que encontrou Darwish na sacada do aposento, o penhoar que ele vestia
era jogado para trás com a força do vento outonal. O fogo da lareira acesa emitia
um resplendor dourado na pele escura de Darwish, um singelo saiote de linho
branco amarrado à cintura e os braceletes o impediam de estar nu. Não era a
primeira vez que ela o via vestido de forma tão indecente, no entanto, daquela
vez sentia-se intimidada pela nudez do príncipe.
Corajosa, Norvina deu um passo à frente. O calor lá dentro era agradável,
e ela se perguntou se esse calor vinha dela mesma, de Darwish ou da fogueira.
Parecia vir de todas as direções. As portas para a sacada batiam contra a parede
devido a velocidade do vento, eles estavam sozinhos e não seriam interrompidos.
Ótimo. Mas por que ele permanece sem se virar para mim?
Então Norvina percebeu, ao dar mais cinco passos para dentro do cômodo,
que ele estava sobre a balaustrada e muito perto de cair. Os instintos dela a
empurraram com violência em direção à sacada e os dedos se cravejaram na gola
do penhoar do príncipe. Ele era um homem pesado, e ela sozinha jamais seria
capaz de detê-lo. Naquele instante, ela soube que cairia com ele, mas jamais o
soltaria.
— Darwish, perdeu a cabeça? — gritou, sentindo que o corpo dele pendia
para a frente.
Puxando fôlego, Norvina se colocou entre ele e a balaustrada, espalmou as
mãos no peito do príncipe e o empurrou com toda a força para trás. Ele
cambaleou e piscou, seus olhos desvaneceram e revelaram que ele dormia.
Inacreditável! A pele dele estava suada — bem mais do que a dela — a
respiração corria furiosa e carregava uma expressão apavorada, como se fugisse
de algo.
— Você quase me matou de susto!
Darwish ainda piscava, tentando fazer a conexão entre a respiração
ofegante dos dois e o fato de estarem na sacada.
— Eu esperava por você na cama, devo ter caído no sono. — E riu.
Por pouco Norvina não entrou em desespero, ele ria mesmo, ignorando o
fato de que quase se matara durante o sono.
— Eu achava que você era um perigo para a minha sanidade, mas pelo que
vejo, também é um perigo a si mesmo.
Ele gesticulou com as mãos, recuperado por completo.
— Não dê tanta importância a isso. — Girou nos calcanhares e voltou para
o aconchego do aposento.
Ainda respirando com dificuldade, Norvina fez o mesmo. Ao passar pela
sacada, fechou as portas apenas por precaução. Darwish estava perto de um
decanter, servindo-se de água. Um aperto em seu coração a lembrou de que
depois daquela noite, Darwish não iria mais querer saber dela.
— Eu não sou daqui. — Ela passou uma mão pela garganta e permaneceu
de costas, porque, assim, seria mais fácil para falar o que tinha a dizer. — De
onde eu venho, as colinas não são de areia, mas verdes e cheias de árvores
frondosas. Existem mares que se estendem até os limites de sua visão e
montanhas que tocam o céu.
Uma emoção nostálgica a fez sorrir.
— Agora me diga uma coisa que eu já não saiba. — Darwish pediu,
displicente.
Ela se virou para ele, o olhar pesaroso mal conseguia encará-lo.
— Há muito tempo, em uma terra próspera, uma rainha deu à luz um
casal.
“A menina nasceu primeiro, era um pouco maior do que o irmão e tinha
olhos de um tom prateado de verde. O garoto, um pouco magro, nasceu logo
depois.”
“O rei, embevecido pelo nascimento dos filhos perfeitos, entendeu que o
acontecido raro era uma mensagem dos deuses, mas ficou indeciso sobre quem
deveria herdar o trono, já que a primogênita era a menina, e por questões
políticas deveria ser o garoto. Para tirar a dúvida, ele levou os filhos até o
oráculo dos Delfos para que trouxessem luz ao impasse. O oráculo disse que por
serem gêmeos opostos, eles eram também opostos em tudo, enquanto um gêmeo
seria benevolente, o outro seria beligerante, um carregaria a prosperidade, o
outro derramaria desgraça sobre sua casa.”
“Abalado, o rei não conseguiu escolher um dos filhos e deixou que o
tempo respondesse sua questão.”
“A princesa cresceu e, com ela, a fama. Não existia ninguém no reino que
não a admirasse por sua bondade e grandeza. Enquanto o príncipe, que mesmo
sendo a imagem e semelhança da irmã, era seu oposto em tudo. Com os anos,
ficou evidente que a princesa seria uma governante mais adequada, e o rei
decidiu nomeá-la sua sucessora. Enraivecido pela escolha do pai e decidido a
não acatar sua decisão, o príncipe conspirou com inimigos. Esperou várias luas
cheias e incontáveis invernos até que surgisse a oportunidade de se vingar”.
“No aniversário do décimo terceiro ano de vida dos gêmeos, o rei decidiu
celebrar e mandou fazerem um banquete regado a vinhos e iguarias. A festa
começou em uma noite de lua cheia, durou por todo um mês e, no último dia, em
homenagem aos filhos, o rei pediu que fizessem uma peça teatral reencenando a
noite do nascimento dos gêmeos.”
“A história era conhecida por toda a província, já que o rei, sempre muito
orgulhoso dos filhos, não perdia a oportunidade de repeti-la. O espetáculo
deveria ser monótono como sempre fora, por isso ninguém esperava a grande
reviravolta que viria no ápice da encenação. No instante em que a falsa rainha
dava a vida aos gêmeos, um grito tenebroso sacudiu a multidão de convidados e,
ao lado do grande palco, o príncipe assassinou o rei e a rainha em um banho de
sangue diante dos olhos embasbacados do povo.”
Norvina esticou a mão e apanhou o punhal na bainha em sua coxa,
vislumbrou seu reflexo distorcido na lâmina que um dia esteve banhada com o
sangue de seus pais.
— Aqueles que se opuseram também foram assassinados, um por vez, até
que não restasse mais nenhum membro da família real a não ser a princesa. Uma
era de tirania começava.
Norvina guardou o punhal e fungou antes de prosseguir:
— Na mesma noite, o príncipe regicida foi coroado rei e deu sua irmã em
casamento a um nobre. Não demorou muito e a princesa descobriu sua primeira
gravidez, após sofrer um aborto espontâneo. Anos se passaram, e ela continuava
dando à luz bebês natimortos, poucos deles chegavam aos nove meses de
gestação. Os que chegavam, nasciam com alguma anomalia e eram descartados.
A cada gestação, e a cada bebê perdido, a princesa sentia que perdia um pouco
da vontade de viver. Foi assim por inúmeras luas, até que ela chegou a última
gestação, e o marido decidiu que não perderia aquele bebê também. Convencido
de que o problema estava na princesa, o homem mandou abrirem a barriga dela e
remover o bebê de lá.
“A criança nasceu sem forma, mãos e pernas, só uma bola confusa de
sangue, veias e um pequeno coração que batia devagar. Mesmo ferida e violada,
a princesa decidiu gastar o último resquício da sua coragem para fugir com seu
bebê.”
“Enganou a guarda, passando-se por uma criada e usou uma saída
subterrânea para escapar da cidade onde crescera e onde perdera a liberdade;
onde vira os pais morrerem e onde perdera parte da sua humanidade.”
“A princesa assistiu, em meio às lágrimas, enquanto os últimos suspiros
deixavam o corpinho mole e incompleto do seu filho, uma vida que nem chegara
a existir antes de ser arrancada dela.”
“Ela o enterrou em uma cova sem nome no deserto, cobriu-o com o manto
das estrelas e o embalou em um sono sem sofrimento. Partiu, abandonando junto
com o cadáver de seu bebê, os restos da mulher que um dia fora. Vagou pelo
deserto em busca da vida de uma nova mulher. Uma que não se curvava diante
de ninguém e que nunca mais se apegaria a outro ser humano, para não sentir a
dor de uma perda. E, à medida que cruzava as dunas de areias infinitas, com a
única certeza de que não podia morrer sem sentir como era viver livre, a princesa
prometeu para si mesma que nunca mais perderia sua liberdade.”
Norvina conseguiu chocá-lo, Darwish tateou pelos móveis até encontrar
uma cadeira, onde se deixou cair. Ele a encarou em silêncio, cauteloso. As
chamas do fogo dançavam no azul noturno dos olhos indolentes dele.
— Por que está me contando isso? — A voz dele estava trêmula.
— Porque a princesa dessa história morreu junto com o bebê no deserto, e
a pessoa que está diante de você hoje, jamais poderia ser a esposa que você
busca. Você merece alguém que possa lhe dar filhos. Alguém que possa… amá-
lo. — A palavra foi expelida para fora da boca de Norvina, como se não fosse
certo que alguém como ela pudesse dizê-la.
O cenho de Darwish se franziu em uma máscara de fúria.
— Você disse que me traria uma resposta, mas só me deu desculpas e mais
desculpas.
Ela sacudiu a cabeça. Dizer aquelas palavras a fazia sentir-se tão exposta
que chegava a ser excruciante, mesmo assim, ele agia como se nada do que ela
confessara tivesse a menor importância. Norvina coçou os olhos.
— Por acaso escutou o que acabei de dizer? Eu não poderia lhe dar filhos!
Ela colocou a mão sobre o ventre, os olhos dele pararam no local onde
estava a cicatriz que, mesmo coberta, Norvina sentiu queimar.
— Eu poderei tocar em você?
Ela viu que ele desejava fazê-lo naquele momento. Norvina balançou a
cabeça, desacreditada, o homem era louco!
— Esse não é o ponto. Eu sou defeituosa, Darwish, em mais de um
aspecto.
— Eu também sou defeituoso.
— Isso não é uma competição de aberrações!
As lágrimas passaram a jorrar sem prenúncio dos olhos de Norvina, que
gostaria de segurá-las, mas não tinha força o bastante. Sua garganta doía.
— Norvi, nós podemos dar um jeito.
Esse homem não ouviu nada do que eu disse? Ele é mesmo louco. Não vê
como é arriscado? Eu sou uma arma!
— Eu não vim aqui para você sentir pena de mim e me escolher, eu vim
mostrar porque você não deve fazê-lo! — gritou e sentiu certo alívio na dor em
sua alma.
O rosto de Darwish ficou enigmático aos poucos e profundamente
sombrio.
— Não importa quantas desculpas você arranje, sabe que a única coisa que
a impede de me dizer um sim é porque você é uma covarde. Eu jamais a
colocaria em uma jaula!
— Você viu o que acontece quando me toca? Eu não posso controlar. Está
mesmo disposto a entrar em um matrimônio assim? Em que toda vez que me
toque, corra o risco de ter a garganta aberta?
— Não foi bem isso que aconteceu no templo de prazer... Nós podemos
dar um jeito.
— Aquilo foi um único episódio, e se eu não conseguir repetir? E se eu o
ferir no meio do ato?
Ele ficou em silêncio e uma parte de Norvina queria que Darwish lutasse
mais um pouco, que tentasse convencê-la, mas o príncipe não o faria. Por que
ele iria querer a mim, uma mulher incompleta, se tem tantas outras? O pior foi
perceber que a parte dela que o queria era maior do que a parte racional.
— Se você terminou, já pode se retirar. — Ele ordenou, severo.
Norvina recuou, magoada com a forma impiedosa com a qual ele a
expulsou do aposento. Darwish estava com raiva, era visível, e ela sabia que não
era a primeira vez que ele a detestava, mas era a primeira vez que ele a odiava a
ponto de desejar não a ver.
— Saia!
Norvina assentiu. O coração voltou a ficar duro e frio, e as lágrimas se
pregaram ao seu rosto como rachaduras em um solo seco. Era assim que
acabava, não entendia o porquê de estar tão infeliz, já que sua intenção era
deixar Darwish com raiva. Virou-se para ele uma última vez para se despedir, e
uma forte ânsia de vômito a pegou desprevenida quando a porta bateu em sua
face sem cerimônia.
Darwish terminava de virar o terceiro cálice de vinho quando Áster
entrou no aposento iluminado apenas pela luz lúgubre da lua cheia. Ele parecia
uma pilha de roupas amarrotadas jogadas sobre uma cadeira. Levantou a cabeça
apenas o suficiente para cumprimentar o irmão e voltou ao que fazia, despejando
uma terrível quantidade de vinho no cálice. O som do líquido derramando-se
contra o cobre era estranhamente agradável.
Começou a beber convencendo-se de que esvaziava a taça só para ouvir o
som outra vez, mas, lá pela quarta dose, parou de tentar se enganar.
— Procurei você por todo o palácio. — Áster andou até ele a passadas
vagarosas, especulativo.
— Sério? É na adega. Me surpreende e me desaponta que não tenha vindo
direto para cá. — Bateu o dedo na taça para enfatizar o comentário mórbido. —
Por que está à minha procura?
Áster cruzou os dedos das mãos frente à barriga.
— Bem, é amanhã que você decidirá quem será sua esposa. — Darwish
continuou esperando que o irmão mais velho dissesse qual a finalidade do
raciocínio. — A essa altura, já deve saber quem será.
Darwish sorriu sem humor. Sim, já deveria saber. Fora para isso que criara
a realeira, para saber, acabar com a incerteza que mastigava seu coração, mas,
naquele momento, estava mais confuso do que a princípio. Se fosse esperto
mesmo, teria se casado com Darissa meses atrás, antes de descobrir quais eram
seus reais sentimentos.
Para ser sincero ele sempre soubera, mas, assim como alguém que morre
afogado, ele ainda se debatia na esperança de que pudesse respirar ar fresco
outra vez.
— Darissa. — Ele não parecia ter certeza do que dizia.
O nome era de uma mulher, mas outra saqueava seus pensamentos. Outra
que o deixava inquieto, que colapsava sua circulação sanguínea, que o deixava
revirando nos lençóis por horas da noite, inquieto, angustiado, molhado,
desejando pôr um fim à agonia perniciosa que começava no peito e terminava na
virilha.
Áster parecia esperar que Darwish dissesse outro nome.
— Darissa? De verdade?
Darwish se incomodou com o fato de que o irmão parecia não gostar da
escolha. Ele não acreditava que teria um casamento ruim com Darissa. Não tinha
razões para duvidar, ela era aceitável e a questão de serem incompatíveis
sexualmente poderia ser trabalhada. Com um pouco de esforço, eles poderiam
criar uma vida a dois satisfatória, mas... Darwish não conseguia se contentar com
o satisfatório quando podia ter mais.
— Sim, por quê? — indagou por entre os dentes.
— Bem, ela é ótima, só não é parecida com você.
Darwish bufou.
— Irmão, se fosse para me casar com alguém parecido comigo, tudo que
eu precisaria era da minha mão direita.
Áster arrastou a cadeira pelo chão e sentou-se frente a Darwish. Só então o
príncipe astuto se deu conta de como o irmão mais velho parecia cansado, ele
relaxara todos os músculos ao se sentar e pareceu um velho centenário. Áster
encheu para si próprio um cálice de vinho.
Desde o nascimento dos bebês Áster andava pouco pelo palácio, Darwish
nem se lembrava da última vez que o irmão sentou-se para beber com ele. Tinha
Ramessés, claro, mas era diferente. Darwish não podia dizer que tinha um irmão
preferido sem começar uma guerra, mas tinha uma conexão maior com Áster.
Ramessés era pouco menos de dez anos mais novo que ele, e por ter quase o
criado, Darwish, por vezes, sentia-se mais pai dele do que qualquer outra coisa.
Áster não, ele e o irmão mais velho já compartilharam momentos ruins demais e
conheciam o pior que existia no coração um do outro.
— O que quero dizer é que, sim, deve haver diferenças, mas também deve
haver compatibilidade. Se tem muito de um, e pouco de outro, haverá conflitos.
Você e Darissa não compartilham afinidades em nenhuma área em específico.
— Você parece ter uma opinião sobre quem devo escolher.
A boca de Áster formava um nome quando a porta se abriu e Zaya entrou
com Aspen nos braços, o menino berrava como uma maldita gárgula.
— Perdoe-me. — Ela jogou um olhar de desculpas e desespero para o
marido. — Eu já tentei de tudo, mas ele não para de chorar. Você é minha última
esperança.
Áster se levantou e, displicente, pegou o bebê dos braços da esposa.
— Deixe-o comigo. Pode descansar, querida. — Zaya suspirou um
agradecimento e deixou a sala depois de jogar um sorriso simpático para
Darwish.
O berreiro de Aspen impedia Darwish de pensar em qualquer outra coisa,
e foi bom esquecer o dilema que ele vivia por um momento. Áster voltou a
sentar-se e organizou o pequeno ser vivo irritante em seu colo. O futuro faraó,
soberano de todo o povo, enfiou o dedo no cálice de vinho e o colocou na boca
do filho. O menino parou de chorar no instante seguinte. Áster respirou aliviado
com o silêncio e, ao abrir os olhos, encontrou Darwish julgando-o de sua
cadeira.
— Não conte isso para Zaya.
— O quê? Que você embriaga o seu filho para fazê-lo dormir?
— Não seja exagerado, não chega nem a ser uma gota de vinho.
Darwish observou como seu sobrinho dormia tranquilo e em paz enquanto
sugava com avidez a pontinha do dedo indicador do pai.
— Pobre criança, de todas as qualidades que poderia ter puxado de você,
teve que ser logo a embriaguez.
Áster riu em silêncio, agitando o corpo, uma habilidade que adquirira com
a paternidade, Darwish supôs.
— Você precisa me ajudar, filho. — Ele começou a falar com a criança
com uma voz que Darwish consideraria ridícula em outras circunstâncias. — Eu
quero te dar mais dois irmãos, mas se você continuar tirando o sono da sua mãe,
vai ser bem difícil convencê-la.
— É muito difícil?
Áster suspirou e deixou os ombros despencarem.
— A última vez que fiz amor com minha esposa as uvas que usaram para
fazer esse vinho ainda eram sementes.
Darwish se recostou na cadeira com uma risada.
— Existe uma razão específica para isso? Pelo que sei, o período de
resguardo de uma mulher não dura mais que o intervalo entre uma lua cheia e
outra. — Áster o encarou com estranheza. — Nem me pergunte como sei dessas
coisas, tenho curiosidade e muito tempo livre.
— Você sempre foi estranho. — Áster bocejou. — Enfim, o pouco tempo
que nos resta é quando eles dormem, usamos para dormir, porque não sabemos
quando teremos outra oportunidade. Tentamos muitas vezes nos últimos meses,
mas eles são dois, e começo a suspeitar que estão em um conluio contra mim.
Sabem o momento perfeito para atrapalhar.
Os dois riram baixinho.
Sim, parecia horrível, desesperador e exaustivo, mas Darwish não
conseguia parar de sentir inveja do irmão. Tivera uma infância medíocre e
motivos o bastante para nunca desejar ter filhos, mas queria. Darwish não
conseguia olhar para o futuro e não ver um monte de crianças nele. Não dava! E
saber que se escolhesse se casar com Norvina daria adeus a isso, fazia-o colocar
tudo em perspectiva.
— Norvina. — Áster disse, e Darwish moveu seus olhos para ele,
perguntando-se se seu irmão estava dentro de sua cabeça.
Ele se fez de desentendido.
— Hum?
— Norvina. Era o nome que eu diria, antes de Zaya entrar.
Darwish empurrou alguns goles de vinho goela abaixo.
— Por quê?
Áster inclinou a cabeça, ponderando.
— Bom, em parte porque existe uma aposta, e eu quero ganhar.
Darwish ergueu as sobrancelhas, ultrajado.
— Fizeram uma aposta, e eu não fui incluído?
— Não seria muito justo, não é?
Ele cerrou os olhos e chegou à conclusão que discutir sobre isso com sua
família seria inútil. Exalou pelo nariz.
— E qual o outro motivo?
— Porque parece certo.
Simples assim.
Darwish espremeu as têmporas com as pontas dos dedos gelados, tentando
controlar os pensamentos. Parecia certo, mas, ao mesmo tempo, parecia a coisa
mais errada do mundo. Ele desapontaria Darissa e a si mesmo. Norvina era uma
mulher cheia de traumas, ao pegá-la como esposa, ele assumiria também a
responsabilidade por eles. E, convenhamos, já os tinha demais por si só.
Precisava de alguém para abrandar os traumas que tinha, não outra pessoa
tão destruída quanto ele. A chance de acabar em desastre, se a escolhesse, era tão
grande que consumia Darwish.
Tantas coisas o separavam de Norvina, então por que, com mil demônios,
ele não conseguia deixar de querê-la? Ele a desejava tanto que nem parecia
importante que não poderia ter filhos, e que ele corria o risco de ser esfaqueado
toda vez que fizessem amor. Seu peito esvaziava só de pensar em não ser o nome
dela que diria amanhã.
— Não estou certo se Norvina me diria um sim.
Áster o olhou meio risonho, embalando o filho dormindo profundamente
nos braços.
— Crê mesmo nisso? Porque eu tenho certeza de que ela jamais diria outra
coisa.
Darwish não tinha tanta convicção, embora desejasse isso.
— Você não entende, ela… nós…
Áster se ergueu, colocaria o filho para dormir e era provável que também
dormiria.
— Eu não vim para convencê-lo a nada, eu vim para não deixar que uma
escolha ruim faça você mais miserável do que é. Pela primeira vez na vida, você
pode escolher o que vai ser, eu não pude escolher, Kamilah também não.
Ninguém vai condená-lo por ser egoísta uma única vez. — Áster lhe apertou no
ombro. — Boa sorte, irmão.
Darwish permaneceu sentado, encarando as costas de Áster até ele
desaparecer atrás da porta. O vazio da solidão o encarou de volta, o silêncio foi
necessário para entender que, se existia uma remota chance de ser feliz de
verdade, deveria ser com Norvina.
Ele só tinha que decidir se apenas felicidade bastaria.
Darwish sentia como se o peso do mundo estivesse todo em suas costas.
Assim que entrou no salão cerimonial, onde sua mãe noivara com seu pai, e onde
Áster noivara com Zaya, ele achou que o nervosismo sumiria, mas esse
transformou-se em uma mão feita de gelo e lhe apertava os órgãos sem piedade.
Empurrou o saiote para baixo, sentindo-se exposto por toda a atenção que
recebia. Gostaria de ter colocado algo menos “Darwish” e mais discreto. Um
gorjal de couraça preta, costurado com fios de ouro e adornado com pedras de
obsidiana, cobria-lhe apenas a parte superior do busto, formando uma gola alta
ao redor do seu pescoço. A tatuagem de cobra estava toda exposta, preta e
reluzente, assim como o chanti[6] de linho preto, pregueado na frente, que usava
na parte inferior do corpo. Um grande cinto em triangulo dourado bordado com
astros celestes dava uma volta em sua cintura. Darwish usava brincos nas orelhas
e braceletes nos bíceps e pulsos, como sempre, e uma capa de pele de leopardo
completava seu traje, com as patas do animal atuando como presilhas ante seu
peito. Pesava demais, só o usava por insistência de sua mãe.
A animação das pessoas era tangível, afinal, era um dia de comemoração.
Pessoas de todas as cidades foram encher as ruas de Astória. O faraó decretara
que servissem vinho e pão para todos. Era possível sentir a pressão que vinha
com a escolha que Darwish faria. Ele sentia que deveria estar feliz em respeito
ao povo e, mesmo já sabendo quem escolheria, seu peito martelava sem parar
contra sua caixa torácica.
— Você precisa de uma bebida.
Darwish agradeceu aos deuses por Ramessés tê-lo abordado, não sabia se
aguentaria mais alguém bajulando-o.
Precisava se distrair urgentemente ou faria uma besteira.
— Essa noite não. — Ele recusou a taça que o irmão ofereceu.
Ramessés ergueu as sobrancelhas, surpreendido.
— Ora, veja só, você nem escolheu a mulher ainda, e ela já colocou um
freio na sua boca. — Ele escondeu um sorriso dentro da taça.
— Não ria demais, caro irmão, você ainda está solteiro.
Ramessés suavizou o sorriso e olhou para outro canto do salão.
— Quem você pretende escolher? — indagou, mais baixo.
O imperador de Sartor, pai de Zaphenat, passou por eles se apoiando em
um grande cajado de cobre encriptado com muitas pedras, e os dois fizeram uma
reverência antes de Darwish responder:
— Quer saber para descobrir se ganhou ou não a aposta?
Ramessés não esperava que ele soubesse da aposta, disfarçou o embaraço,
escondendo o rosto dentro do cálice de cerveja.
— Quem lhe contou? Foi nossa mãe? Claro que não, deve ter sido
Kamilah.
Darwish fez pouco caso, evitando levar os dedos aos olhos ou estragaria a
pintura.
— Em quem você apostou?
Ramessés divagou, girando o cálice.
— Eu não direi para não correr o risco de você trapacear, mas se quer
saber, para mim está óbvio desde o início.
— Darissa?
Ramessés parou de girar o cálice de súbito, e o rosto, sempre jovial, se
encheu com malícia. A vida exigiu que Darwish amadurecesse precocemente, o
que deu a ele a habilidade, ou o infortúnio, de enxergar o que a maioria das
pessoas julgavam sem importância.
Tudo que ele fazia era observar, naqueles raros e preciosos momentos em
que as pessoas acreditam que não estão sendo observadas pode se descobrir
coisas realmente magníficas. Por isso, sempre soube que Ramessés tinha um
lado nocivo, que estava tão bem encoberto pela sua doçura que nem mesmo ele
sabia que existia. Darwish sabia que era uma questão de tempo até esse lado
destrutivo de seu irmão vir a tona, pensou que isso aconteceria na infância, como
foi com ele e Áster, mas aparentemente, quem tiraria o pior de Ramessés seria
aquilo que fez Darwish cair em tentação: o amor. Ele olhou para Darwish de um
jeito que o príncipe astuto quase não o reconheceu.
— Não a escolha.
Darwish piscou, estranhando todo o sombrio semblante de Ramessés.
— Por quê? Já não basta Kamilah, eu não sabia que você também não
gostava dela.
Ramessés virou o rosto para outra direção, mas Darwish viu o músculo de
sua bochecha saltar.
— Não é isso. Eu só… — Ele pareceu não encontrar palavras. O que era
assustador, porque Ramessés sempre tinha algo para dizer. — Ela é… quero
dizer…
Darwish achou a reação do irmão mais novo muito intrigante. Perguntou-
se se alguma coisa acontecia entre eles, sem que tivesse conhecimento. Não pôde
continuar a escrutiná-lo, porque uma música de anunciação começou, e as portas
do salão foram abertas para as pretendentes entrarem. As mulheres estavam
sempre muito bem-vestidas, mas reservaram o auge das suas belezas para aquela
noite.
Darwish sentia-se um pouco mal por saber que despedaçaria o sonho de
muitas delas. Não passaram tempo o suficiente juntos para criarem laços
afetivos, mas eram boas mulheres.
As pessoas balbuciavam, admirando-as. As realeiras formavam um lindo
arco-íris brilhante e luminescente.
O príncipe se colocou ao lado do faraó no trono e as observou, encantado.
Sentindo-se afortunado por ter conhecido mulheres tão maravilhosas.
Reteve o fôlego ao ver Norvina.
Ela vinha por último, quase invisível, mas depois que a avistou, o príncipe
não conseguiu olhar para mais nada. Sua existência se resumiu a dela. O
pequeno e gentil corpo de Norvina estava embalado por um vestido branco
longo, que se abria até o chão em duas frestas em cada perna. Parecia enrolada
por faixas, duas lhe cobriam os seios, e expunham toda a pele dela desde o
pescoço ao umbigo, encontrando-se com a parte inferior. As duas faixas que lhe
cobriam os seios em vertical estavam bordadas com folhas de louro de cor
dourada. As costas estavam nuas, e a saia do vestido caía em uma confusão de
tecido branco e translucido brilhante, semelhante as pétalas de uma flor. Ela
estava descalça, somente com uma tornozeleira de ouro no calcanhar feminino e
desenhos em espiral pintados com tinta de ocre e turmalina nos pés.
Seu rosto refletia pelo pó dourado nas têmporas, era emoldurado pelo
cabelo jogado para o alto, com duas tranças nas laterais ornadas com mais folhas
de louro douradas que pareciam saírem de seus cabelos. O restante das mexas
desmaiavam em suas costas nuas formando um manto gracioso. Ela não levava
nenhum adorno no rosto, a não ser as sardas que pareciam pintadas
estrategicamente.
Pela primeira vez, desde que Darwish a conhecera, Norvina queria ser
vista.
Queria que ela o achasse fabuloso, como ele a achava naquele instante.
Como sempre acho. As formas em que foram feitos até podiam ser diferentes,
mas as almas… Darwish tinha a plena convicção de que eram feitos do mesmo
material. O príncipe ansiava por depositá-la em seus lençóis, cobrir-lhe o corpo
pequeno com o seu, depravá-la, puxá-la para junto de si e transformá-los em
uma coisa só. Embora gostasse de sexo, o príncipe nunca sentira necessidade
dele como sentia naquele momento, mastigando sua carne. Sabia que fazê-lo
com Norvina não teria apenas a satisfação do prazer físico. Ela era uma rosa
cheia de espinhos em uma redoma, feita para ser contemplada e não tocada.
Darwish removeria esse obstáculo e sangraria cada vez que fosse tocá-la, mas
por ela, enfrentaria os espinhos.
— Parece que já temos uma vencedora. — Darwish ouviu a voz do pai e
se recompôs ao perceber que o faraó o observava. Não podia deixar os
pensamentos escancarados daquele modo.
As pretendentes fizeram uma reverência perante eles, e a música
continuou a tocar, atingindo uma melodia mais agitada. Elas formaram um
círculo no centro do salão e começaram a dançar ordenadamente. Algumas
vassalas entraram e jogaram pétalas sobre as pretendentes, a música parecia
guiá-las. Darwish sorriu, divertido. Depois, as mulheres foram soltas pelo salão
para reencontrarem suas famílias após semanas de separação.
Darwish procurou Norvina com o olhar enquanto fingia prestar atenção no
que o imperador de Naamer dizia. O príncipe não conseguia ficar quieto, ansiava
o momento de acabar com tudo.
Passou os olhos pelo salão outra vez e avistou o que procurara durante
toda a vida. Deixou o homem falando para trás e caminhou em direção ao seu
futuro. Chegara a hora de comunicar sua decisão.
A música tocava alta, impedindo o raciocínio de Norvina. A cinta que
amarrava o vestido em sua cintura espremia seus órgãos e parecia que tudo
funcionava fora de lugar, o ar entrava no estômago, o vinho fluía para os
pulmões e todos eles espremiam seu coração.
Acostumara-se tanto às roupas bem forradas e compridas que sentia que se
esticasse muito o braço, seu seio pularia para fora do decote. O vento batia em
lugares que não deveria bater, e ela se perguntava o porquê de ter se vestido
daquela forma.
Sua coxa ainda sentia o aperto fantasma da adaga que sempre vivia
amarrada a ela. Em mais de dez anos, era a primeira vez que Norvina a
abandonava. Fora como se desfazer de um órgão.
Pedira a ajuda de Darissa para fazer o penteado, já que não tinha
habilidade para tal, e complementara com a tiara que comprara de um ourives no
Mercado da Pechincha dias atrás, em busca de Illyana. A coroa a lembrava de
casa, dos louros que cresciam nos pilares que sustentavam os tetos das varandas
e dos grandes templos, cheios de estátuas feitas em mármore. Inclusive, o
vestido que usava, ela mesma fizera com retalhos de um linho branco que
conseguira nas cozinhas do palácio. Não tinha uma qualidade muito boa, mas as
outras pretendentes a ajudaram.
Até estar ali, Norvina não tinha certeza do porquê de optar por usá-lo.
Sentia-se patética com ele, e a resposta sempre lhe escapava, até erguer os olhos
e avistar Darwish não muito longe. Duas noites atrás, ao colocar um fim no que
nem chegaram a ter, Norvina achou que o certo a fazer era levar a farsa até o
fim.
Darwish queria a ilusão de que a vencera, e Norvina não tomaria isso dele.
Ele acreditava que os dois estavam em um jogo, e não podia perder, mas, pelo
menos uma vez na vida, ela não precisava ganhar.
Além da forma que se vestia, o jeito como as pessoas a olhavam fazia
sentir-se pior. Ainda que soubesse que, depois do que dissera para Darwish
noites atrás, jamais seria a escolhida, Norvina desejou que seu nome saísse pelos
lábios do príncipe uma última vez, nem que fosse em meio a um xingamento.
— É um fato interessante. — Radamés estava diante dela. Norvina quase
se engasgou com o vinho ao perceber que o faraó saíra do trono só para
cumprimentá-la. Fez uma reverência diante dele.
Aquela devia ser a primeira vez que ele se dirigia a ela.
— Majestade, a que devo o esplendor da sua…
— A mim não deve nada, minha jovem. — Ele a cortou antes que
concluísse. — Mas isso não quer dizer que não deva a alguém.
Norvina teve certeza de que ele falava de algo específico, mas não quis
perguntar e parecer ingênua. Teve a ousadia de encarar o homem, quase não se
viam mais resquícios do ataque que sofrera há mais de um ano. Um peso que ela
carregava na consciência todos os dias de sua existência medíocre.
— Como eu dizia, é um traço interessante, a folha do louro. — Radamés
voltou a falar, os olhos castanhos na tiara na cabeça dela. — Dizem que os
gregos o levam como um símbolo de vitória.
E então, ele olhava para ela. Não somente, mas para dentro dela. Norvina
apertou a haste do cálice. O homem, por um instante, pareceu mergulhar no
fosso mais imundo da alma dela, e Norvina soube que seus segredos não eram
mais só seus. Escondeu as mãos atrás do corpo para lhe acobertar o tremor.
— Majestade?
Os olhos dele confirmaram, o coração de Norvina passou a bater tão lento
quanto sua respiração. Tinha medo de fazer algum movimento que pudesse ser
usado como prova contra ela.
— Meu filho é um bom rapaz, apesar de, como pai, não concordar com a
escolha dele. Sei que o fará sofrer mais cedo ou mais tarde, mas ainda acredito
que o fará feliz.
Para fugir dos olhos excruciantes do faraó, Norvina procurou Darwish
entre as pessoas e o encontrou cruzando o salão. Os olhos dele estavam nela,
vinha em direção a ela, as pessoas abriam espaço para ele passar, atentas ao que
se seguia.
E lá estava Norvina, de pé diante da imensa muralha da sua represa. Sem
esforço, a parede se rompeu, a água a inundou, entrando por seu nariz e boca e a
afogando, ela nem lutou para viver, apenas deixou que toda aquela força a
levasse, e, então, quando os lábios de Norvina se abriram para pronunciar o
nome dele, Darwish passou direto por ela, deixando para trás o vento da sua
ausência e o frio da rejeição.
Para se torturar, Norvina virou a cabeça e seguiu o olhar de toda aquela
gente para ele. Ela o viu parar diante de Darissa.
Na superfície, Norvina era uma rocha de calcário intocável e indiferente
ao que seus olhos viam, mas, por dentro, nas profundezas do seu mar, ela era
uma fera abatida que gania e morria de forma lenta e dolorosa.
Darwish pegou a mão de Darissa na sua e a levou para fora do salão, junto
com o que restava do coração de Norvina.
— Oh! — Darissa parecia chocada. As mãos pequenas pousadas na
barriga, sobre o ventre. Usava o anel com a pedra verde lapidada em uma estrela
de seis pontas. — Bom, isso é inesperado.
Darwish meneou a cabeça, incapaz de controlar o sorriso que cobria mais
da metade do rosto.
— Sim, e bem... não por mim, pelo menos. Uma parte minha sabia que
seria a minha escolhida no fim de tudo, eu só precisava ter a certeza de que não
me arrependeria.
— Você está certo de que ela vai concordar com isso?
Darwish ponderou e acabou dando de ombros.
— Eu tenho meus meios de convencê-la.
Darissa sorriu e suspirou ao mesmo tempo.
— Não direi que estou triste, porque não estou, uma parte minha está
aliviada. Não me interprete mal, seu interesse me lisonjeia, só não é você…
Darwish ergueu as duas mãos.
— Não precisa se explicar, eu sei como se sente.
Ele não era um tolo, demorara para entender o que acontecia entre Darissa
e Ramessés, mas ficara claro. Eles eram um casal tão improvável que ninguém
percebera o envolvimento dos dois debaixo de seus narizes. Agora que Darwish
parara para refletir, fazia muito sentido. Os dois trabalhavam juntos, Ramessés
seria grão-vizir em breve, e Darissa era uma escriba. Só podia supor que em
algum momento entre o tédio das pilhas e pilhas de papiros e inscrições, os dois
encontraram algo de encantador um no outro.
— Quando você vai comunicar a ela? — Darissa quis saber.
— Logo que sairmos daqui. — Darwish devia ter ido direto até ela e
falado, mas sentiu que devia uma explicação a Darissa por consideração.
— Se não tem mais nada a dizer a mim, presumo que essa conversa só
esteja colocando você em profunda agonia.
Sim, deuses! Ele não via a hora de acabar de vez com essa agonia. Ficou
grato por não precisar dizer em voz alta, soaria muito rude deixar uma mulher
sozinha após rejeitá-la.
— Receio que tenha razão.
— Você se importa se eu não voltar para o salão? Estou me sentindo
indisposta, acho que comi algo que me fez mal. — Darwish percebeu certa
palidez no rosto da moça, pensou que fora por causa da notícia, mas não devia
ser isso.
— Você quer que eu chame alguém?
Darissa meneou com a cabeça, rápido.
— De jeito nenhum, já tomei seu tempo demais, alteza. Amanhã terei
tempo de felicitar Norvina pelo noivado.
Darwish continuou a olhá-la, preocupado com ela, Darissa foi até ele deu
um leve aperto em sua mão e deixou a sala antes que ele insistisse em chamar
por amparo. Ao voltar para o salão de cerimônias, o príncipe encontrou rostos
cheios de expectativas, esperando por ele. Passou os olhos pelas cabeças, a
procura de Norvina, mas não a viu em parte alguma. Caminhou para onde a vira
antes de deixar o salão com Darissa.
— Onde está Norvina? — perguntou ao pai.
O faraó, com um ar muito revigorado e as bochechas vermelhas, brilhando
de euforia, sorriu para o filho.
— Ela parecia muito abalada, de fato, e eu sugeri que fosse se refrescar
nas piscinas do palácio. — Radamés parecia bêbado, e isso era bizarro. Ele
piscou para o filho de forma conspiratória.
Darwish estava chocado demais para verbalizar, pediu com os olhos para
que Áster contivesse os convidados e caminhou na direção por onde Norvina
passara. As piscinas ficavam muito ao norte do palácio, ele nem demorara tanto
assim com Darissa. Andou até a ansiedade gritar em seu sangue, então correu.
Estava sem fôlego ao chegar nos jardins. Encontrou sua mulher sentada na
borda da piscina, brincando com os pés na água. O vestido pregado ao corpo e os
cabelos desfeitos indicavam que ela já caíra na água ou se jogara. Chegou por
trás dela, furtivo.
— Você é rápida.
Ela sobressaltou-se e se virou para ele de um rompante.
— O que faz aqui? — Foi ríspida, mas dessa vez a rispidez veio
acompanhada de aspereza e muito ardil. Ódio, rancor, Darwish não sabia
distinguir.
— Ouvi dizer que está uma ótima noite para um banho.
Ele removeu as sandálias e caminhou para a água, borraria toda a tintura
dos olhos e removeria o óleo que dava o tom dourado à sua pele, mas isso era
pouco importante.
Norvina o observou com atenção, Darwish mergulhou e emergiu, puxando
ar com força para seus pulmões.
— Por que não me disse que água está congelando? — indagou, batendo
os dentes.
Ela deu um sorriso cruel, regozijada por vê-lo sofrer.
— Você não me perguntou, alteza — disse, mordaz.
Darwish fez uma carranca, mas não queria começar uma discussão. Não
naquele momento.
Ele se aproximou, as pernas cortaram a água, o peitoral pesado o puxava
para baixo e tornava tudo mais difícil. Ele agia quase feito um felino, abrangia o
espaço dela de pouco em pouco, primeiro roçando-se nas pernas lisas e nuas de
Norvina, para, por fim, conseguir um lugar confortável em seu colo.
Ele afastou as pernas dela e se colocou ali no meio, o peito batia na
murada da piscina. Norvina deixou que Darwish chegasse perto o bastante para
que ele se inclinasse sobre o rosto branco de lua dela e a beijasse na bochecha.
Do rosto de Norvina escorriam muitas gotas de água, mas as que foram parar nos
lábios dele eram salgadas. Ela chorara.
— Você não deveria estar com sua escolhida? — Lá estavam os espinhos
outra vez, mas dessa vez, Darwish não recuaria. O olhar desolado dela atiçou
uma forte esperança no coração do príncipe.
— E eu não estou?
Norvina olhou para o lado, parecia triste, uma reação muito contrária a que
o príncipe esperava.
— Eu sou apenas o lobo entre as ovelhas, você mesmo disse.
— Sim, e um lobo só pode correr com outro lobo. — Ele tocou a mão
dela, e Norvina a afastou de imediato.
— Darwish, você apenas me quer porque sou um desafio e você odeia
perder.
Ele não podia culpá-la por pensar assim, uma parte sua de fato sentiria um
enorme prazer em ganhá-la, mas não era só por isso que a queria. Na verdade, tal
fato não chegava nem a somar.
— Existe um pedestal de diferença entre viver e apenas existir. Tenho
existido há anos e estou convencido de que viver é algo parecido com o que você
me faz sentir cada vez que me olha.
Ela arregalou os olhos, deixando claro que não esperava que ele fosse
dizer algo assim. Darwish voltou a pegar a mão de Norvina, dessa vez, talvez
por ainda estar em choque, ela não o repeliu.
— Você alivia minhas inseguranças. Faz com que meus medos percam o
poder sobre mim.
Ela observou enquanto ele acariciava os nós dos dedos dela com os lábios
carnudos.
— Porque sou mais assustadora que eles?
— Porque diante do medo que tenho de não ter você, eles não são nada.
Norvina suspirou, algo triste, que veio acompanhado de uma nova torrente
de lágrimas. Era um choro silencioso e inexpressivo, desses que doem no fundo
da alma. Darwish não se preparara para vê-la tão frágil, parecia tão pequena e
mortal. Ele sentiu no fundo do seu cerne que podia perdê-la e temeu tanto que
apertou a mão de Norvina com demasiada força.
— Cada vez que você diz essas coisas, diminui mais a minha vontade de
permanecer contraria a isso.
— Então não permaneça.
— Você soa como Hades oferecendo uma inofensiva romã para Perséfone.
— Norvina disse por entre os lábios crispados, com raiva dele, dela, do mundo.
Darwish não sabia distinguir.
— Posso fazer um experimento?
Ela demorou a responder, a ponto de ele achar que diria não, mas acabou
consentindo. Com um sorriso aliviado, Darwish enlaçou a cintura de Norvina
com os braços e a puxou para dentro da piscina com ele. Ela deu um leve grito
ao entrar em contato com a água fria, mas ele a manteve firme contra o próprio
corpo, aquecendo-a.
Esperou até que ficasse mais calma e acariciou os lábios de Norvina com
os dele em um afago suave. Ela ficou tensa, era como ter uma rocha entre os
braços. Darwish entendia que, ao tocá-la em determinado lugar, acionava alguma
memória sombria e o instinto de sobrevivência dela berrava. Ele já vira
comportamentos assim em homens na guerra, quando o medo da morte os
transformava em animais.
Norvina só precisava sentir-se segura, precisava saber que ele jamais a
machucaria, jamais a humilharia, jamais a colocaria em uma posição contra a
vontade dela.
E ele já tinha algumas artimanhas para domar a fera acuada que existia
dentro dela, depois do momento que passaram na casa dos prazeres.
Darwish a tocou no meio das pernas. Norvina piscou várias vezes, confusa
com o que sentia. O corpo dele ficou quente a ponto de esquentar a água ao
redor deles. Tudo que não sentia com Darissa, estalava no corpo de Darwish
quando estava ao lado de Norvina, com a força de um furacão. Ousou afastar a
faixa da roupa de Norvina e a tocou com os dedos. Sob a água, a pele dela era
macia e suave. O toque era lento e ritmado, Norvina tinha pelos, ele percebeu
com certa curiosidade. Não costumava ver muitas mulheres com pelos, notou
que os achava muito femininos e sensuais.
Olhando nos olhos dela, Darwish escondeu um dedo dentro de sua vagina
estreita. As paredes de Norvina o sugaram com força e avidez. Ele mesmo não
foi capaz de reprimir um gemido.
— Darwish. — Ela arfou o nome dele, ruborizada e escandalizada, mas
não o afastou. — Talvez seja o momento de voltar para dentro.
— Eu já estou dentro. — Ele raspou os dentes e a língua no queixo dela.
Encorajado pelo brilho lascivo em toda a pele de Norvina, Darwish puxou
o dedo e voltou a enfiá-lo. Os mamilos dela ficaram visíveis sob o tecido branco
do vestido. Pelos deuses! Ela não o tocava, mesmo assim o desejo enfiava suas
garras dentadas por todo o corpo de Darwish. Seu dedo deslizava para dentro
fácil, mas ao sair, encontrava resistência. Norvina estava muito fechada, o corpo
dela resistia e se recusava a se entregar.
Percebeu que ela tentava enxergar o que ele fazia sob a água, mas o
movimento do braço de Darwish agitava a água e borrava tudo. O corpo do
príncipe tremia, implorava pelo alívio imediato da luxúria que o fazia suar, mas
não fazia aquilo por si próprio, e sim por ela.
Intensificou a velocidade, as narinas de Norvina dilataram ao nasalar, os
lábios rubros se abriram minimamente e um suspiro sôfrego escapou por eles.
Depois disso, vieram os gemidos, ela não entendia o que sentia, mas Darwish
sabia que não era virgem, seu dedo ia até o fundo dentro dela. Sua inexperiência
só podia significar que ela jamais chegara ao orgasmo.
Ele sorriu, envaidecido, e com a outra mão, segurou-a no queixo e
manteve o rosto da mulher para cima para que pudesse ver que expressão ela
faria ao atingir o prazer pela primeira vez. Norvina disparou os olhos de raposa
para os dele, os cílios molhados estavam pregados e formavam uma linha negra
contínua sobre seus olhos. Ela viu algo no rosto dele que a fez explodir ao redor
dos dedos do príncipe, tremendo e o massageando, convulsionando, conhecendo
a deliciosa devassidão. O príncipe roubou para si toda a inocência dela.
Ele latejava em todos os músculos.
Darwish a amparou nos braços quando ela ficou fraca, sentindo o cheiro
do cabelo de Norvina. Pôde saber que voltara a si quando ela tornou a ficar tensa
nos braços dele.
— Desde que você se sinta segura, não corro risco. — Ele disse, feliz por
seu experimento ter um resultado positivo. Norvina o afastou para olhá-lo.
— Darwish, eu não seria capaz de tomar de você o sonho de ser pai.
O príncipe suspirou, sem paciência para a relutância dela. Não conseguia
entender o porquê de ela continuar contrária a algo que, ao ver dele, era
magnífico.
— Essa é uma escolha que eu devo fazer. — Ele colocou uma mecha do
cabelo de Norvina atrás da orelha pequena. — Será que, pelo menos uma vez,
você pode deixar de ser tão desconfiada e fazer algo por pura intuição?
Ela mordeu o lábio inferior.
— O que a sua intuição diz?
— Que essa é a melhor decisão que já tomei.
— E o meu passado?
— Todo mundo tem um.
— Isso não muda o fato que sou uma foragida. — Norvina soltou um
suspiro que veio do fundo da sua alma. — Darwish, as pessoas que me
perseguem… não têm escrúpulos, não pensariam duas vezes antes de machucar
sua família para pôr as mãos em mim.
Darwish inclinou a cabeça, divagando se o que ela falava era sério. Sua
boca se expandiu em um sorriso sombrio que ela jamais vira nele. Norvina se
assustou um pouco, foi como ver outra pessoa diante dela.
— Raposinha, não acha que eu sou capaz de proteger você e minha
família?
O coração dela deu um salto com a voz perniciosa do príncipe.
— Eu não disse isso, e você não entende…
— Nunca mais alguém vai tocar em você sem a sua permissão, se não
pode confiar em mim, confie nessa promessa.
Norvina aquiesceu e por mais que acreditasse na boa vontade do seu
guerreiro de ébano, seu coração jamais deixaria de temer que seu irmão a
encontrasse.
— E Darissa?
— Ela nos mandou felicidades.
— Você está mesmo esperando que eu concorde com isso?
— Sim, e a resposta tem um prazo, Bonita, outras nove mulheres estão lá
no salão competindo pela belezura aqui.
Uma mistura de sorriso e choro surgiu no rosto de Norvina. Darwish
percebeu que ganhara a guerra. Céus, mereço uma esfinge com meu rosto por
esse feito.
— Eu me caso com você, mas já deve saber que sou cheia de manias e, às
vezes, se estiver com muita fome, faço barulho ao comer.
Ele não ouviu mais nada depois do “eu me caso com você”. Darwish se
casaria com Norvina, ela seria sua esposa e que o demônio o levasse se não fosse
o suficiente para fazê-lo feliz por toda a eternidade.
— Eu não me importo, aceito todos os seus espinhos, apenas me suporte
todos os dias como seu marido.
Toda a pele exposta de Norvina ficou vermelha com a crueza das palavras
dele.
— Isso vai ser um desafio e tanto.
Eles selaram o acordo com um aperto de mãos, simples, pacífico, um
gesto de trégua que prometia uma paz momentânea que seria derrubada assim
que se casassem. Voltaram para o salão molhados, de mãos dadas, como fizeram
semanas atrás no começo da realeira.
E quando Darwish disse o nome dela diante de toda aquela gente,
percebeu que não teve dúvidas por nenhum momento.
— Segure isto. — Um grande pedaço de tecido verde foi colocado nas
mãos de Norvina.
Ao redor dela o mundo explodia em cores vibrantes. Não conseguia
respirar, eram tantos comandos ao mesmo tempo, e tantas mãos puxando-a para
fazê-la caber em vestidos e acessórios, que estava tonta e enjoada.
Seus dias eram um caos desde que Darwish pronunciara o nome dela
diante de todos. Norvina era puxada, esticada e comprimida. Foram precisos dez
anos vagando no deserto para ganhar a pele calejada e dura como uma carapaça.
Em apenas quatro dias, conseguiram remover cada centímetro, substituindo-a
por uma pele mais delicada e pueril demais para o gosto de Norvina. Ela admitia
que apreciava a fragrância de rosas que agora exalava de sua pele, e o brilho que
voltou aos seus cabelos, mas detestava parecer tão delicada quanto um novelo de
algodão.
Fora retirada da cama antes do sol surgir no Leste, ainda sonolenta. O
quarto se encheu de mulheres, Zaya, Darissa, Kamilah, Zahara e tantas criadas
que Norvina não poderia contar nos dedos das mãos.
— Não é perigoso deixar o trono da Pérsia sem supervisão? — Zahara
perguntou para Kamilah. Elas jogavam conversa fora enquanto passavam as
mãos pela diversidade de tecidos dispostos diante de Norvina.
— Aslan vem conquistando cada vez mais a lealdade do nosso povo nos
últimos meses, bem, ele diz que isso é por minha causa, mas não é verdade. —
Kamilah sorriu com afeto. — Pelo menos não tudo.
— Estou orgulhosa de você. Gosto de pensar que puxou a habilidade para
liderar de mim.
Kamilah rodeou os ombros da mãe em um abraço.
— Sim, isso e o apetite por homens de caráter dúbio.
— Kamilah! Que jeito de falar com sua mãe. — As faces de Zahara
ficaram avermelhadas de embaraço.
A jovem rainha riu alto.
— Não vamos falar de mim e de meu casamento, é a vez de Norvina. —
Kamilah soltou a mãe e andou alegre até o palanque onde Norvina estava de pé,
seminua.
— Sim, claro. A mulher que se compromete a suportar Darwish pela
eternidade merece nada menos que todas as atenções e regozijos possíveis. —
Zahara disse, pensando em voz alta.
— Não diga isso, mama, vai amedrontá-la! Se Norvina desistir do
casamento, duvido que meu irmão conseguirá chegar tão perto de se casar outra
vez. — Kamilah sorriu afável para Norvina, que estava muito desconfortável
com o assunto.
— Ele só teria que estalar os dedos e uma dúzia de pretendentes brotaria
perante ele — disse, ao mesmo tempo que lutava para respirar com as costelas
sendo espremidas em uma faixa de tecido vermelho-cintilante.
— Sim, ele fez isso, e acabou escolhendo você. Significa que para o meu
irmão, você é insubstituível.
Foi a vez de Norvina enrubescer de forma violenta, quase desapareceu
dentro da faixa da cor que ficou sua pele.
— Poucas coisas conseguem suprimir o desejo de um homem apaixonado.
— Zahara divagou e ergueu os olhos verdes para Norvina. — É importante que
você saiba o que a espera.
— No que diz respeito a quê? — Norvina não entendia muito bem em que
ponto Zahara queria chegar.
— Bem, você começará uma vida com meu filho e, até onde sei, você não
tem uma família.
Norvina foi pega desprevenida. Ergueu as sobrancelhas e uma ruga se
formou entre elas, ficando na defensiva. Gostaria de ter previsto aquela
conversa, ou não estaria tão magoada como estava.
Zahara não fora nada além de gentil com ela desde que a conhecera, mas
era bem diferente agora que Norvina se tornaria mulher do filho da rainha
deposta do Egito, e estava claro para quem quisesse ver que Norvina era
inadequada em todos os sentidos da palavra.
Ela levantou o queixo e esperou pelo soco que vinha após aquele olhar
carregado de pena e indecisão.
— Isso não pareceu importante para Darwish.
Zahara sorriu sem mostrar os dentes, complacente.
— Quando escolhi Zaya para ser a esposa de Áster, eu a aceitei como
minha filha, ela disse que tinha duas irmãs e que era incapaz de partir sem elas.
Naquele instante eu assumi a responsabilidade por você e por Darissa. Eu lhes
dei opções, podiam escolher o que fazer da própria vida quando vieram para cá,
eram livres. Darissa veio até mim em busca de aconselhamento, e eu esperava
que você fizesse o mesmo, mas não. Você mirou no seu alvo e disparou para ele
sozinha. Eu sei que você gosta de manter sua privacidade e ser independente,
mas, como sua responsável, eu me sinto no dever de dizer o que acontece entre
um marido e uma mulher na noite de núpcias.
A pose de combate de Norvina se dissolveu.
Oh!
Oh.
Então, é só isso?
Norvina piscou, teria suspirado de alívio se as costelas não estivessem tão
apertadas, sufocando os pulmões.
— Pelo que Zaya me contou, você chegou em Astarte tão nova quanto ela,
não deve saber como funciona uma relação íntima entre um casal.
Era um pensamento lógico, nenhuma jovem que ia para Astarte podia ter
sido deflorada por um homem. O corpo de uma mulher que decidia servir aos
deuses, devia ser intocado. Norvina não sabia como dizer para Zahara que não
precisava se preocupar, há muito tempo a virtude lhe fora roubada.
— Ela se casará com Darwish, mama. Acredito que ele tenha experiência
o bastante para os dois. — Kamilah deve ter visto a confusão no rosto de
Norvina e tentou ajudar, mas só conseguiu piorar tudo.
Norvina nunca experimentara o fel do ciúme antes, não até Darwish, e o
detestou. Era azedo e infeliz. Envergou a cabeça para que o cabelo lhe ocultasse
um pouco do rosto, era estranho, mas ela sentia-se mais segura.
— Mesmo assim, é importante que você esteja preparada para que não se
sinta pressionada a fazer algo contra a sua vontade — insistiu Zahara.
Norvina sentiu o corpo esfriar de dentro para fora.
— Darwish jamais faria isso comigo.
Só então ela percebeu o quanto confiava nele. E ao se dar conta disso,
Norvina sentiu medo do que essa entrega podia fazer com ela, caso Darwish
partisse sua confiança e seu coração. Ela colocaria tudo nas mãos dele. Tinha
medo, sim, mas não devia odiar todos os pêssegos porque um lhe deu indigestão,
verdade?
Por muito tempo, Norvina pensou que todos os homens fossem
aproveitadores e pérfidos, mas Darwish, Ramessés e Áster provaram que estava
enganada. Exceto pelo faraó, que apesar de parecer um ótimo homem, fizera
muito mal a Zahara, pelo que Norvina sabia. O que não era muita coisa.
Observando-os ela entendeu que não existia uma fórmula para uma péssima
índole, cada pessoa é o senhor das suas escolhas, e elas sempre vêm com uma
consequência.
— Claro que não, mas eu me coloco na posição de sua mãe, e uma mãe
jamais mandaria a filha para uma arena sem armá-la com uma faca. — Ninguém
fora tão gentil com ela antes. Norvina sentiu os olhos arderem, não conseguia
olhar para Zahara, então olhou para as próprias mãos.
— Minha participação é dispensável uma vez que tudo que tenho que
fazer é virar as costas e deixar que o meu parceiro faça o serviço.
Um silêncio esquisito invadiu o ambiente. Norvina ergueu os olhos e
percebeu que todas as mulheres a olhavam com estranheza. Até mesmo as
criadas.
— O que você quer dizer com “virar as costas”? — Zaya indagou, com
curiosidade genuína.
— É onde o homem deve se introduzir, não é? — Ninguém disse nada, e
ela repetiu. — Não é?
— Bem… — Zaya começou, mas parecia que não achava as palavras
corretas e mandou um pedido de socorro no olhar para Kamilah.
— Veja bem, Norvina, não é por trás que se fazem os bebês.
Norvina riu pelo nariz.
— Disso eu sei, se começa atrás e se termina na frente.
Outra vez as mulheres a olharam como se ela tivesse falado em uma
língua bizarra.
— Alguns homens preferem, é verdade, mas não creio que seja o caso de
Darwish. — Kamilah disse, sem jeito.
Norvina ficou preocupada. Se Darwish não prefere desse modo, de que
outra forma seria? É o único jeito que conheço!
Nas vezes que fora invadida, era sempre por lá. Era terrivelmente doloroso
e, por muitos anos, Norvina se perguntou por que as pessoas se submetiam a
algo tão desprezível e humilhante.
Mas, pensando com cuidado, na noite em que Darwish a pedira em
casamento, ele a tocara entre as pernas e a fizera sentir prazer. Mesmo no templo
de prazer ele não chegou a penetrá-la, mas ele se esfregara na entrada da frente
dela e fora gostoso. Ela nunca sentira prazer. Diferente das outras meninas que
dividiam o quarto com ela em Astarte, nem mesmo sozinha Norvina se tocava.
No entanto, agora ao pensar em seu Guerreiro de Ébano, ela sentia o seu
centro pulsar. Onde ele a tocara nas duas ocasiões. Enquanto olhava para o
vestido e pensava em Darwish, Norvina sentia as paredes doloridas e ardentes
com uma espécie de fome inflexível. A pressão dos dedos dele ainda
prevaleciam, tocando por dentro dela.
Será que estive enganada durante toda a minha vida?
— Essa é uma questão pessoal, não existe uma regra, suponho eu. Com
vinte e tantos anos de casada, eu me sinto tão despreparada para isso quanto
você. Talvez seja por isso que eu esteja solteira. — Zahara deu uma risada
apática. — Com a frequência, o casal encontra o próprio ritmo e
particularidades. Não importa o que eu diga, porque não vai servir de muita
coisa. O que posso aconselhar é que faça o que a faz se sentir bem. — Zahara
finalizou a conversa antes que ficasse mais embaraçosa.
Norvina focou os olhos no vermelho do vestido. Nos grandes momentos
da vida, em que precisou tomar uma decisão, Norvina gostava de ser franca
consigo mesma. Não se iludia com expectativas e nem mentia para si mesma.
Adiara o assunto por receio de que ele a impedisse de se entregar sem medo para
Darwish.
Pensar em fazer sexo era assustador. Norvina não sabia se seria capaz de
renunciar ao controle. Não quando ter o controle do próprio corpo e da própria
vida era tudo que ela fizera desde que pôde recuperá-lo.
Mas ignorar um problema às vezes só fazia com que ele crescesse ainda
mais. Darwish sabia que ela fora casada, e em nenhuma das vezes que fizera
sexo fora por vontade própria. Norvina odiou o próprio corpo e rosto por muitos
anos, não suportava se olhar no espelho. Darwish nunca a fez se sentir assim,
mas a ideia de ficar nua e fazer sexo era aterrorizante. Tinha medo de que a falta
de vontade afastasse Darwish dela. Ele era um homem que gostava de praticá-lo,
e estava acostumado a mulheres experientes e voluptuosas.
E se eu não for capaz de satisfazê-lo?
Norvina duvidava que seria capaz de dividi-lo com outras mulheres.
Mulheres o procuravam o tempo inteiro. Norvina ouvira mais de uma vez os
rumores sobre as esbórnias que o “Príncipe Astuto” sediava e teve a outra noite
quando o pegou dormindo nu e amarrado no templo.
Ela suspirou. Era apenas mais uma preocupação para a pilha que formava
uma curva na cabeça dela.
— É uma casa bonita — comentou Áster. Darwish olhou para cima,
concordando com o irmão. — Quando a comprou?
— Tem alguns meses, ao decidir me casar.
— Vai mesmo deixar o palácio? Lá tem espaço demais, sabe? E depois de
me tornar rei, não tenho pretensão de afastar ninguém.
— Essa é a última das minhas preocupações. Assim como você, quero
evitar cometer os mesmos erros dos nossos pais. Não desejo misturar meus
deveres com minha vida pessoal. No palácio, eu serei o comandante ou o que
precisarem que eu seja, mas nesta casa eu serei apenas um marido e, com um
pouco de esforço, um pai.
Áster assentiu com solenidade, compreendendo.
— Além disso, não fica longe do palácio.
De fato, não era nem uma légua de distância. Era uma casa grande com a
devida privacidade que Darwish queria, cheia de jardins, rodeada de árvores
ciprestes, colunas esculpidas e paredes longas de calcário. Ele a escolhera
pensando que era um ótimo lugar para se criar crianças, suas crianças.
Não importava o quanto Norvina dissesse que era incapaz de lhe dar
filhos, não entrava na cabeça dele. Algo com a história dela estava errada.
Darwish apenas sentia, como uma intuição, que os filhos deles viriam logo.
Estava determinado a não pensar nisso por um tempo e se concentrar na difícil
tarefa de fazer Norvina ir até o fim com o casamento.
— Queria eu ter podido arrastar Zaya para bem longe depois que nos
casamos. — Áster sorriu de lado.
— Pelo que me lembro, você estava ocupado sendo um parvo.
— Como sempre.
Os dois voltaram para o palácio em uma caminhada vagarosa.
— Aliás, quem ganhou a aposta? — Darwish quis saber.
Áster passou um braço pelos ombros do irmão.
— Ninguém ganhou, ninguém tinha dúvidas de que você escolheria
Norvina.
Darwish sentiu um profundo orgulho de sua família, e se sentiu muito
satisfeito também. Fundo, em seu coração, sabia que tomara a decisão correta.
Ele jamais se arrependeria de tê-la escolhido. Independente dos traumas que
ambos carregavam, ele a queria. Tão forte, tão irreverente. Não esperava a hora
de estar com ela, a sós, e poder chamá-la de sua esposa. Norvina ainda estava
muito relutante, Darwish entendia que, assim como as dele, as feridas dela eram
profundas demais para serem saradas sem o auxílio do tempo.
— Eu tenho medo de a estar forçando a isso — confidenciou ao irmão.
— Zaya me disse que nunca a viu tão feliz quanto nesses últimos dias.
Duvido que ela esteja sendo forçada a alguma coisa aqui.
Darwish supunha que sim.
— Tudo que eu peço é que você não tente me dar conselhos matrimoniais,
por favor. — Brincou.
Áster o empurrou com o ombro.
— Não tem muitas coisas que eu poderia dizer a você de qualquer modo.
E é capaz de prejudicar mais do que ajudar. — Áster prendeu os olhos nos dele.
— Ela sabe do seu… da sua condição?
Darwish mudou o rumo dos olhos, crispando os punhos.
— Bom, ela vai descobrir em algum momento.
A verdade era que tinha medo de dizer e ser mais um impedimento para
ficarem juntos. Nada estava a favor deles, Darwish não queria colocar mais um
obstáculo na frente. Percebeu que Áster não concordava, mas o irmão não
manifestaria sua opinião.
— Entendo, só espero que não seja um problema no futuro para vocês.
— Eu também espero que não. — Darwish desejou de todo o coração.
Norvina quase saltou da pele ao ouvir as batidas na porta do aposento
conjugal. Seu coração batia rápido feito as asas de um beija-flor, e ela respirava
quente. Virou-se em direção à porta, quando ouviu o rangido das dobradiças ao
abrir, e o corpo de Darwish dominou o ambiente. Ainda trajava as roupas da
cerimônia que acontecera à tarde. Após o banquete de comemoração, Norvina
fora levada para uma casa opulenta, não muito distante do palácio, e fora
deixada no aposento sem muitas explicações.
Darwish manteve os olhos na mulher a cada passo firme que dava para ela,
parou a pouca distância e a tranquilizou com um olhar atencioso.
— O que você achou? — Ele devia falar do aposento.
Norvina esperava por ele há algum tempo, mas a última coisa que se
preocupara fora com a decoração. Em vez disso, passou todo o tempo olhando
para as cordas acopladas na cabeceira da cama alta.
— Não tive a oportunidade de olhar com a devida atenção — A garganta
dela vibrava, o que fazia a voz sair vacilante.
— Você vai ter tempo para isso.
Ela engoliu em seco ao observar os movimentos de Darwish livrando-se
de algumas peças de roupa. Norvina tremia, por fora era quase imperceptível,
mas por dentro seu esqueleto inteiro chacoalhava.
Darwish notou que o olhar dela desviava vez ou outra para as cordas,
andou até elas, pegou uma corda na mão e a esticou na palma.
— Não se assuste, elas não são para você.
Ele disse na tentativa de tranquilizá-la, mas não funcionou. Norvina notou
que as cordas tinham um padrão de trançado que se mesclava com um fio de um
material mais forte de cor dourada. Parecia resistente.
Ele estendeu a mão para ela, e Norvina a segurou. Darwish colocou a mão
dela sobre a dele na corda.
— Existem coisas sobre mim que eu não quero que você saiba. Não desejo
que você tenha medo de mim agora. Essas cordas não são nada de mais, pense
que elas estão aqui para garantir a minha segurança e a sua.
— Você sabe que só me deixa mais curiosa, não sabe?
— Não vou esconder nada de você, mas é nossa primeira noite de casados,
e a única coisa que quero que sinta essa noite sou eu dentro de você.
Darwish fora compreensivo com ela sobre o passado de Norvina, não a
pressionou para obter respostas. Ele deixou que ela estivesse pronta para dizer, o
mínimo que ela podia fazer era retribuir.
— Você é bom com as palavras, isso é perigoso. — Ela disse, tensa em
todo o corpo.
Ele sorriu, as covinhas derretendo o gelo entorno do coração dela.
— Você está linda.
— Você está mais. — Parecia estúpido dizer algo tão óbvio. Norvina
pressionou as mãos junto do corpo. — Não tive tempo de me lavar.
Darwish sorriu, mostrando os dentes e as presas sedutoras.
— Eu pedi que não o fizessem, também ordenei que não removessem suas
roupas. Essa função será minha esta noite.
O olhar dele é tão inescrupuloso.
Para ela era difícil compreender como Darwish conseguia se expor
daquela forma. Deixar que ela visse tanto dele, ainda que não parecesse nada.
Norvina não sabia como ser carinhosa quando tudo que conhecia era dor e
violência. Tinha vergonha de se mostrar e pavor da vulnerabilidade, mas
Darwish estava diante dela, oferecendo tudo isso sem pestanejar.
Eu não serei covarde.
Norvina levou a mão dele até o próprio rosto, o calor lhe atravessou a pele,
e pela primeira vez ela não temeu. Acariciou a palma dele com o hálito e beijou
o centro dela. Abriu os olhos para encontrar Darwish admirando-a, seu olhar era
uma noite de solstício. Melancólica e lisonjeada ao mesmo tempo.
— Me diga onde tocar em você — pediu ele, solícito. Ansioso para
agradá-la.
Norvina não tinha certeza do que deveria fazer, mas ele colocava todo o
poder nas mãos dela, e ela não podia decepcionar seu homem. Pegou as mãos de
Darwish, depois de beijar uma e depois a outra, levou-as para seus ombros.
Marcou aquele lugar como uma área segura, onde ele poderia tocá-la sem correr
riscos.
O príncipe sorriu e acariciou a pele gelada com os polegares hábeis.
Pareciam traçar o curso das sardas dela, em busca de algum tesouro secreto
escondido debaixo das faixas verdes do vestido.
— Comece por aqui. — Norvina instruiu.
Darwish fez uma pressão deliciosa nas juntas do pescoço dela, as pontas
de seus dedos dissolviam anos de tensão. Desceu as mãos pelas costas de
Norvina, explorando e atento às respostas do corpo da esposa. Os polegares dele
desenharam as curvas dos ombros e a extensão dos braços, fazendo um bom
trabalho em deixá-la arrepiada. Norvina sentiu uma onda de torpor a invadir e
recuou com a intensidade da própria imersão.
Darwish a acalmou com um olhar e voltou a tocá-la, começando do ponto
inicial, mas ao descer as mãos outra vez, direcionou-as para os seios da mulher,
em uma carícia tão rápida que deixou um suspiro insatisfeito de Norvina para
trás. Ele sorriu e fez círculos no abdômen dela, com cuidado, tocou a cicatriz em
seu ventre, e ela sofreu um espasmo. As mãos dele se fecharam na cintura dela, e
outra vez Norvina foi socada por uma espécie de pânico. Ela o empurrou, dessa
vez com mais força.
Ele voltou a se aproximar.
— Não tema, eu só estou conhecendo você. Se precisar me bater, não se
censure, desconte tudo em mim. Seus socos doem menos do que a sua ausência,
só não me afaste outra vez. — A voz de Darwish era muito profunda, e sua boca
passeava muito perto dos lábios dela, fazendo-os pinicar.
Norvina suava frio, puxou a respiração e permitiu que ele continuasse.
Darwish tocou em sua bunda, desceu para as suas coxas, ajoelhando-se, beijou-a
no ventre.
— Você acha que Hades e Perséfone se amaram?
Norvina se mexia, inquieta sob o toque dele. Parou para pensar na
pergunta, molhando os lábios com a língua.
— Alguns dizem que em algum momento ela se apaixonou por ele, mas
gosto de pensar que nenhum amor pode nascer da opressão.
Ele olhou para ela de onde estava, ajoelhado no chão, com a respiração
agitada resvalando o triângulo da feminilidade entre as pernas dela.
— De onde você acha que o amor pode nascer?
— Da mais genuína afeição, do cuidado terno, do respeito. — Não que ela
tivesse qualquer experiência com isso, mas eram qualidades que admirava.
Darwish ergueu as saias dela acima do quadril e, segurando firme uma
perna sobre seu ombro, beijou de forma apaixonada a parte interna da coxa dela.
— Hmmm, estamos em um bom caminho.
O ventre de Norvina entrou em ebulição, fervendo com um desejo imenso
demais para ser enjaulado. Ia além do que podia suportar, ela curvava a pélvis
para ele, seus quadris imploravam pelo que sua boca era incapaz de pronunciar.
Até a respiração quente do nariz dele, tocando o alto da sua vagina, conseguia
trazer um certo alívio passageiro e insuficiente.
— Darwish, você terá vontade de ter uma orgia?
Ele parou de imediato para olhá-la, e Norvina se arrependeu da estupidez,
a boca dele estava quase lá.
— Você quer ter uma orgia?
Ela meneou a cabeça. Só de pensar em ter inúmeras pessoas tocando-a,
sentia o ímpeto de correr como uma louca desvairada.
— Seu toque é o único que tolero. Eu apenas lembrei que você gostava
muito delas, e esse não é o tipo de “costume” que uma pessoa abandona da noite
para o dia.
Norvina ficou vermelha, percebendo que era uma óbvia declaração de seu
ciúme. A risada dele a irritou ainda mais.
— Você não devia encher sua cabeça com isso. Se eu quisesse continuar
com meus hábitos passados, teria permanecido solteiro.
Ela tocou na cabeça dele, e os cabelos curtos do príncipe espetaram sua
mão.
— Você gostava?
— Isso aqui é melhor.
Os dedos dele deslizaram pela vulva de Norvina e ela, que não esperava
pelo toque tão repentino, fechou as pernas com força.
Darwish não gostou, fez uma cara de repreensão, e, contrariado levantou o
corpo. O príncipe puxou sua túnica pela cabeça e a jogou em algum canto do
quarto, para ele era muito fácil estar seminu. Ele era confortável com sua forma
física. Um guerreiro de ébano, musculoso e viril. As mãos de Darwish voltaram
para ela, desafiando-a a impedi-lo, mas Norvina deixou que ele a despisse. Não
tinha nada para mostrar que ele já não tivesse visto, ainda assim, Darwish a
olhou como se fosse engoli-la.
Por baixo do vestido de linho, ela usava uma bata translúcida azul,
amarrada ao pescoço por um fio de ouro, que exibia uma parte do corpo dela por
uma longa fresta frontal.
Com uma mão nas costas dela e outra na nuca, tomando o cuidado de não
a prender, Darwish a puxou para um beijo doloroso. Havia tanta força na forma
como ele enfiava a língua na boca dela, era muito sujo e depravado, mas Norvina
não conseguia enxergar isso de uma forma ruim. Queria ser suja e depravada
com aquele homem enorme.
— Não tenho nada de especial, sou tão comum. Como você quer que eu
acredite que sou melhor do que todas as mulheres com quem já se deitou?
— Você me cativou.
— Certamente não fui a única.
— Você é a minha Raposinha, isso não a torna única?
— Ah, Darwish…
Norvina se desmanchou sobre ele. Podia ser diferente?
Darwish a levou aos tropeços para a cama, onde despencou e a levou junto
em sua nuvem de devassidão.
O príncipe apoiou a cabeça nas duas mãos e permaneceu contemplativo.
— Me mostre como você gosta de foder.
Norvina desceu os olhos por ele, perdida, sem saber para onde ir, ou por
onde começar. Ela queria estar em todas as partes do corpo de Darwish e lamber
todos os músculos e as veias que saltavam dos braços dele, do pescoço e do…
arregalou os olhos. Somente aquela noite não seria suficiente, nem a eternidade
jamais seria suficiente.
O que era a luxúria, se não a face mais primitiva e amoral do ser humano?
Tudo que ela tinha que fazer era deixar que sua natureza conduzisse. Ela se
lembrou da noite na casa dos prazeres e o que, para ela, seria algo confortável.
Um sorriso perverso surgiu em seus lábios.
— Você confia em mim? — indagou a ele, engatinhando por sobre o
príncipe até a altura do rosto dele.
— Tenho medo do que vai vir depois da minha resposta.
Norvina esticou a mão para pegar uma das cordas, com a outra, ela
capturou o braço esquerdo do marido. Ao entender o que ela pretendia, o rosto
de Darwish se encheu de luxúria. Era tão forte que Norvina conseguia sentir o
cheiro. Ele se aconchegou melhor nos travesseiros, dando a ela toda a liberdade
para desfrutar dele, e Norvina prosseguiu. Removeu o bracelete de ouro que ele
tinha no punho e se assustou ao ver as marcas ali. Parecia uma queimadura no
formato de uma pulseira grossa e, pela forma como estava vermelha, parecia ser
recente.
— Continue, apenas continue. — A voz de Darwish soou como uma
súplica. Os olhos fugiam de ter que encará-la.
Norvina decidiu deixar a discussão sobre aquelas marcas para outro
momento e amarrou a corda no braço do marido, dois dedos acima do ferimento.
Repetiu o gesto com o outro braço.
Olhou para Darwish debaixo dela, vulnerável e entregue.
— Espere, o quê… — Ele se engasgou com as palavras ao ser tomado
pela boca dela de forma brusca.
O corpo de Darwish convulsionou e seu rosto foi absorvido por uma
intensa expressão de prazer. Era a perdição no corpo de um homem. Saliva
explodiu dentro da boca de Norvina e escorreu pelo cumprimento dele,
deixando-o molhado e escorregadio. Ela o moveu com presteza para dentro e
fora de sua boca, acariciando-o com a língua e sentindo as veias pulsarem em
seus lábios.
Há um tempo, lágrimas estariam jorrando de seus olhos, mas naquele
momento. Não conseguia parar de se mover, nem de tirar os olhos de cima dele
— da forma sensual e despretensiosa como Darwish recebia a carícia da língua
dela em torno da sua ereção repleta de veias inchadas. Algumas pulsavam nos
lábios dela.
Em sua língua, Norvina sentia o músculo rígido se contrair, preparando-se
para expelir sua semente na boca dela. Removeu-o da boca, fazendo uma última
e firme sucção e subiu sobre o marido, antes que a coragem fosse embora.
Norvina sentou-se de uma vez, sendo empalada por Darwish.
O homem soltou um urro, e Norvina o acompanhou. Não mediu ao certo, e
a ereção de Darwish entrou muito fundo, dando uma fisgada de dor ao se
encontrar com a barreira dentro dela.
As cordas esticaram, ele se esqueceu que estava atado e tentou tocá-la. Os
olhos de Darwish a procuraram. Norvina estava confusa, tentando se adaptar ao
tamanho e a sensação do corpo de outra pessoa invadindo o dela. Ele deve ter
percebido que ela não sabia como prosseguir, respirava pela boca como se fosse
morrer sem ar.
— Querida, eu preciso que você se mova. — Darwish disse por entre os
dentes, tão firme, suado, com veias se sobressaltando por todo o corpo. — Faça
como fiz com meus dedos em você; como fiz no templo de prazer, mas fundo,
bem fundo...
Norvina assentiu, puxou um tanto de coragem e começou a se mover,
imitando os movimentos dele, para frente para trás. Sem coordenação a
princípio, ia, voltava, buscava, explorava. Ele estava muito fundo e chegava a
ser desconfortável, de modo que às vezes doía, então ela se ergueu e ficou de
cócoras sobre Darwish. Em vez de ir para a frente e para trás, começou a subir e
a descer, imitando os movimentos de uma cavalgada.
Ela apoiou a testa no peito dele para olhar, e a visão do eixo do marido
sumindo dentro dela a encheu de volúpia. Era bom, extasiante. Sentir o sangue
quente dele dentro dela era uma experiência única. Norvina começou a sentir
fortes contrações em seu baixo ventre e toda a velocidade do mundo não era o
bastante.
Preciso… preciso…
Darwish passou a içar a cintura para cima, apoiando os pés na cama,
golpeava o sexo da esposa, subindo os quadris para entrar mais fundo
ricocheteando de um jeito lascivo o corpo no dela. Disso, ela precisava daquilo.
Norvina apertou os dentes, muitas coisas passaram a fazer sentido. Seus
mamilos doíam, ela os espremeu com as pontas dos dedos, mas não trouxe o
alívio correto.
— Traga-os para mim. — A voz de Darwish estava gutural, ele molhou os
lábios com a língua vermelha. O desejo tirou de Norvina a capacidade de pensar
com coerência e, sem pensar duas vezes, ela se abaixou sobre o rosto do marido.
A língua de Darwish a alcançou, ele lambeu o mamilo da mulher devagar
com toda a sua extensão.
— Oh! — Ela gemeu com a pancada de alívio em sua carne tenra.
Os lábios dele envolveram a aréola, e ele a chupou com uma forte sucção.
Norvina desabou. Mesmo atado, Darwish conseguia tomar o controle da
situação. Ela não sabia onde sentia mais prazer, entre as pernas, onde ele se
enfiava sem parar ou nos seios, que ele mamava indulgente. Todas as áreas que
ele estimulava mandavam fios de desejo inescrupulosos para o centro de
Norvina e alimentavam algo que parecia a ponto de explodir.
Ela conhecia a sensação, ele a fez sentir algo parecido com os dedos. Mas
ali, era tão mais potente…
Ela miava e gemia, lágrimas de prazer inundaram seus olhos.
— Não se afaste. — Darwish exigiu, a voz grossa e trêmula fez o corpo de
Norvina se arrepiar e retorcer. Ela se apoiou no peito dele, que voltou a meter
dentro dela com mais força, indo em direção ao horizonte que se abriria perante
ela.
Os dois lutavam um contra o outro outra vez. Ela sufocando-se para
manter o controle enquanto ele tentava abdicar de todo o dele. Darwish a
buscava a cada nova estocada, proclamava-a com o corpo dele, metia, metia sem
descanso, ele a impulsionava até fazê-la cansar de segurar as rédeas. Pior, a fazia
desejar se livrar delas.
— Venha por mim. — Ele pediu.
Norvina se rendeu com um gemido desolado, pulsando pelo gozo quente
que dava um jeito de escorrer para fora, ainda que Darwish permanecesse
instalado até o limite dentro dela. O corpo da mulher desabou, a boca aberta
sobre a dele em um grito silencioso. Norvina sentiu o pênis de Darwish pulsar, e
os jatos de sêmen do príncipe foram expelidos em seu interior.
Em meio ao beijo atordoante, ele tentava roubar de volta todo o ar que ela
tirara dele, o que trouxe uma forte carga de culpa e pavor a Norvina. Foi só olhar
nos olhos de Darwish, na cor que adquiriram ao se entregarem ao prazer, que os
receios e dúvidas dela foram ignorados. Norvina continuou subindo e descendo,
bem devagar até sentir que ele não tinha mais nada para cuspir. Só então teve
força para libertar uma das mãos dele, depois caiu sobre o corpo suado do
homem que ela escolhera para ser seu marido.
O gozo dos dois escorria para fora dela em abundância, e Norvina sentiu-
se envergonhada por achar excitante e aconchegante. Descansou a cabeça no
peito dele e apreciou o galope do coração de Darwish. Com a ponta do dedo,
traçou as curvas da cobra desenhada em sua pele.
— A propósito, um dia eu vou matar meu irmão. — Norvina teve certeza
de que ouviu o coração dele errar uma batida.
Darwish ergueu apenas o pescoço para olhá-la.
— Já ouvi dizer que uma pessoa pode se apaixonar depois de fazer amor,
mas é a primeira vez que ouço sobre uma que adquire tendências assassinas.
Ela apoiou o queixo sobre as mãos no peito dele.
— Dez meses atrás você me perguntou por que eu sempre andava com o
punhal, e eu não respondi, porque não queria me envolver com você. Pois bem,
um dia encontrarei Petrus e o farei sangrar.
— Isso quer dizer que agora somos amigos?
Norvina o admirou por não tentar impedi-la, por não a temer, e acima de
tudo por não duvidar da palavra dela nem por um instante.
— Espero que sim, já que seu sêmen ainda escorre pelas minhas pernas.
Darwish suspirou uma risada.
— Você é assustadora.
Norvina alisou o cabelo dele.
— Pois é, mesmo assim você quis se casar comigo.
— Nunca fui muito conhecido pelo meu bom senso.
Norvina imaginava Darwish como um homem do tipo pomposo, que
gostava de esbanjar riqueza, mas ele era, na verdade, muito simples. A casa não
tinha muitos criados e a decoração era discreta. Ficava próximo do grande vale
do faraó, o que dava a ela uma esplêndida visão das flores desabrochando pela
manhã. Como de costume, ele não estava em casa quando ela despertou, fora
assim durante todas as cinco semanas que se passaram. Ela sempre dormia antes
dele e ao despertar a cama estava vazia.
O sol resplandecia, subjugando a escuridão do céu, e o vento ainda trazia a
brisa fria da noite quando Norvina sentou-se na varanda para tomar seu
desjejum. Estava faminta e um tanto dolorida depois de gastar tanto o próprio
vigor. Nem o sabor incrível da torta de figo foi capaz de impedir sua mente de
ser assaltada pelas lembranças da noite anterior.
“Venha por mim.” Ele sempre dizia, e o corpo dela obedecia sem
hesitação.
Norvina tocou os lábios com a cerâmica quente da caneca, o que também
não foi capaz de extinguir a memória do toque da boca de Darwish. Tão quente e
vivido quanto o chá que abrandava o furor em sua garganta. Era estranho estar
tão atenta a partes do próprio corpo que, até dias antes, pareciam adormecidas.
Naquela manhã, ela se olhou no espelho pela primeira vez em muito
tempo e não odiou seu reflexo. Olhou para o próprio rosto e se viu, ela de
verdade, e não os olhos de Petrus, a boca de Petrus, o nariz de Petrus. Apenas
ela, e as marcas das mordidas que Darwish deixara em seu corpo.
Talvez fosse diferente para ela e Darwish. Talvez o prazer estivesse
conectado ao consentimento ou, quem sabe, sentisse tanto prazer por ser
Darwish quem estava dentro dela, quem a tocava, quem a beijava, quem a
reverenciava com os olhos, e a fazia se sentir bonita, e feminina, e…amada.
Ele entregava Norvina de volta para ela mesma.
Os dias anteriores foram compostos por pequenos intervalos de descanso
entre as longas horas na cama. Na manhã seguinte às núpcias, ele a possuiu
sobre a mesa de desjejum, sem dizer uma palavra, sentou-a na borda da mesa e
fez uma refeição entre as pernas dela. Bastava um olhar, e ele abria caminho para
o centro dela. Até então ele já a possuíra na cozinha, no estábulo, no chão do
jardim, e até em uma despensa. Darwish tinha o vigor de um cavalo.
Norvina devia ocupar a mente com as coisas da casa, já que aquele era seu
lar. Tinha que se familiarizar com os funcionários e pedir que reabastecessem a
despensa, tudo que fizera naquelas semanas fora comer depois de gastar energia.
Mas só conseguia pensar na quantidade de vezes em que fizera sexo com o
marido. Oitenta, não, oitenta e sete se contasse as vezes em que ele a fez chegar
ao limite do prazer só com os dedos.
Norvina caminhava para uma dependência física, precisava se distrair ou
enlouqueceria.
Por mais que fosse confortável passar o dia esperando pelo regresso de
Darwish, ela não suportava passar tanto tempo sozinha com seus pensamentos,
era perigoso para sua sanidade.
Mexendo nas gavetas das cômodas do quarto atrás de suas roupas antigas,
ela encontrou algo interessante. A coleira tinha dois centímetros de espessura e
era feita de um couro muito bem batido e confortável, a parte de dentro era
macia, como os pelos de um animal, e por fora ela era incrustada por joias azuis
em formatos de triângulo, circulando toda ela. As bordas eram costuradas por
um fio dourado e terminavam em uma fecho amarrado por dois fios do mesmo
material. O objeto tinha o diâmetro perfeito do pescoço de Norvina.
Ela acariciou o couro com o dedo, o sentindo em sua pele, e pensou o que
Darwish ainda esperava para entregar a peça para ela. Norvina se lembrou do
que o marido disse meses atrás, de que um dia colocaria ela em um coleira. Isso
foi antes de ele saber que ela já era presa a correntes invisíveis, devia ser isso
que o fez escolher não mostrar para Norvina.
A quanto tempo ele mantinha aquela coleira escondida?
Norvina não sabia, nem sabia se um dia teria coragem de o deixar por
nela, mas sabia que se um dia acontecesse seria porque não tinha mais medo.
Isso parecia distante.
— Tem uma visita para a senhora, alteza — disse um criado, ele chegara
de forma tão furtiva no quarto que Norvina deixou a coleira cair. Rápido a
apanhou do chão e a colocou na gaveta da mesma forma que a encontrou.
Quem pode ser?
A cabeça disparou com uma infinidade de possibilidades e o coração foi
junto. O ruim de se viver fugindo, era o medo, que virava seu mais fiel aliado.
Ela sentou-se e engalfinhou a mão no cabo do punhal em sua coxa, pronta para
dar a ele um uso depois de tantos anos.
— Deixe que entre — ordenou e esperou com o furor do sangue nas
orelhas.
Então seu sangue passou a bater de acordo com o som dos passos que se
aproximavam. O alívio a tomou por inteiro ao ver o rosto gentil de Darissa entrar
pela porta. Norvina tirou a mão do punhal e se levantou, sorrindo.
— Me perguntava quanto tempo esperaria para vir me ver. — Ela a
recebeu com um abraço e a levou para sentar-se em uma longa esteira cheia de
almofadas.
— Que alívio, tive medo de atrapalhar suas núpcias. — Darissa sorriu sem
jeito.
Norvina bufou. Já fazia cinco semanas desde que ela e Darwish se
casaram.
— Nós nos conhecemos há uma década, Issa, já passamos por coisas
demais juntas para você pensar que eu a repreenderia por algo tão fútil. Sempre
que quiser me ver, por qualquer razão que seja, não hesite.
Darissa balançou a cabeça, solene.
— Nós tivemos momentos felizes no templo das esposas, não tivemos?
Ela franziu o cenho, desde que saíram do templo onde eram obrigadas a
abdicarem da liberdade para servirem aos deuses, Norvina podia contar nos
dedos de uma só mão quantas vezes Darissa falara sobre o tempo que viveram
lá. O comentário era no mínimo esquisito.
— Sim, é claro que esses momentos estão sempre acompanhados por uma
nuvem de merda, mas sim.
— Não importava quantas estratégias fazíamos para roubar comida da
despensa, sempre éramos pegas.
— Quem dera as punições fossem o bastante para nos impedir de roubar
de novo.
— Pelos pães de mel, valia a pena algumas horas a mais nos campos de
colheita.
— Diga isso para as minhas costas. Até hoje, sempre que me abaixo, os
ossos da minha coluna compõem uma sinfonia.
Darissa gargalhou, e Norvina a acompanhou, cativada pelo som
contagiante da risada da amiga. Essa era a verdadeira Darissa que ela conhecia,
uma menina doce que sacrificava seu bem-estar para dividir um mero pedaço de
pão velho com suas duas amigas. Percebera o quanto sentira falta de vê-la sorrir
daquela forma e se lembrou de imediato o porquê de sempre a acompanhar em
seus roubos de comida noturnos, mesmo que soubesse que no dia seguinte
trabalharia como uma condenada nos campos. Nada era tão bom quanto a
sensação de ver Darissa feliz. Norvina faria qualquer coisa por ela.
As risadas sumiram de pouco em pouco, e um silêncio fúnebre tomou o ar.
— Lembra da primeira vez que falou comigo? Foi na noite em que me
consolou na cama, você disse que eu deveria ser forte e esconder minhas
lágrimas para que não as usassem como uma arma contra mim. Lembra do que
eu disse?
Norvina anuiu devagar.
— Sim, você prometeu que um dia as usaria para se vingar de quem
tomou sua família.
Darissa retesou o maxilar, e suas mãos apertaram o tecido do vestido.
— E olha onde estou, vivendo entre eles, dividindo a comida com eles.
Sou ou não sou uma traidora do meu sangue?
Norvina não podia julgá-la. Não fora uma prisioneira em Astarte, ela
entrara no templo por vontade própria e ainda estaria lá, não fosse Zaya ter sido
escolhida como esposa do príncipe Áster. E se tivesse a chance de se vingar do
homem que matou seus pais, Norvina o faria sem hesitação, mas era de Darissa
que falavam. No fundo, ela sabia que a amiga jamais teria coragem de praticar o
mal a alguém de forma intencional.
— Nesse mundo, se você não garantir que alguém chore, quem acabará
chorando é você.
Darissa enfim ergueu os olhos para ela.
— Ainda que as lágrimas sejam de alguém que amo?
— Se a pessoa te amar o bastante, ela vai entender suas motivações.
Darissa se levantou de um rompante e, nesse ato, a mulher que ela se
tornara ao perder os pais, tomou seu lugar.
— Devo voltar para o palácio.
— Eu vou com você.
Elas andaram juntas até a entrada do grande salão, onde ficava o trono do
faraó e, de lá, tomaram direções diferentes. Antes de dobrar o corredor, Norvina
sentiu a necessidade de olhar para trás. A Darissa que ela conhecera também
olharia, mas aquela mulher que ela se tornara, permaneceu firme, olhando para a
frente, sem nunca vacilar o passo.
De alguma forma, Norvina soube que não veria a amiga outra vez em
muito tempo. Com um aperto no coração, seguiu seu caminho.
Assim que entrou nos pátios de treino, avistou Darwish com os outros
homens perto das grandes pilhas de feno. Um soldado a viu e a indicou com os
olhos, Darwish se virou, já de cenho franzido. Mesmo de longe, Norvina sentiu o
olhar reprovador do marido perfurar sua pele. Outra coisa que descobrira sobre o
sexo, quando feito com alguém por quem se estava apaixonada, criava-se uma
conexão. Ela ainda não tinha certeza se gostava da sensação.
Os outros colegas acompanharam em silêncio enquanto ela caminhava até
as salas privadas para trocar a roupa refinada por algo mais prático. Não
demorou, Darwish estava atrás dela, dominando todo o espaço com sua presença
intimidadora.
— Por que está aqui?
Norvina, sem deixar de abotoar seu gibão, olhou-o por cima do ombro.
— Eu vim trabalhar — disse e se virou para sair da sala, prevendo que não
gostaria nem um pouco das próximas palavras que sairiam da boca do marido.
Ele envolveu a cintura de Norvina com um braço, impedindo-a de
prosseguir. Ela inalou o aroma de suor que escapava de Darwish e tentou conter
a impaciência que sentiu.
— Pensei que estivesse evidente que serei seu provedor.
Norvina molhou os lábios ressecados com a língua.
— Se eu aceitasse, me condenaria a uma vida de tédio e aborrecimento.
— Minha fortuna está à sua disposição, garanto que ela poderá lhe servir
com entretenimento suficiente para não morrer de tédio.
Norvina começou a se irritar com a postura autoritária dele.
— Eu não vou esbanjar a sua riqueza.
— Por que não?
— Não fiz nada para conquistá-la. Sou jovem, nada me impede de
trabalhar, e se eu ficar sozinha naquela casa por mais um dia, vou colocar fogo
nas minhas roupas comigo dentro.
Ele suspirou, inflexível.
— Norvina…. não é correto.
Ela virou o rosto para ele, irritada.
— Diga a verdade, só não concorda porque meu trabalho me torna inferior
a você. A esposa do príncipe não pode se sujeitar a posição de uma reles guarda.
Se fosse uma parlamentar como Darissa ou um arranjo como qualquer uma de
suas pretendentes, você não se oporia ao meu desejo.
Darwish rolou os olhos, o que a deixou muito mais irritada.
— Não diga insanidades.
Norvina tentou fugir do consolo do corpo dele.
— Você não é o meu senhor, Darwish, não pode me proibir de lutar.
As narinas dele dilataram, e ela entendeu que ele odiou cada letra do que
ela acabara de dizer. Os dedos de Darwish afundaram na carne do quadril dela.
— Você sabe que eu posso, eu sou o seu comandante e o seu marido.
Norvina detestou a sensação de não poder negar o que ele disse, mas
detestou mais ainda saber que ela mesma se colocara naquela condição. Darwish
era mesmo seu marido, e, para todos os efeitos, ela lhe devia obediência. Ele
sabia que ela tinha pavor da prisão, que ela gostava de tomar suas próprias
decisões, mesmo assim, aproveitava da posição de marido para privá-la de fazer
parte da guarda.
— É assim que será nosso casamento? Você me dará ordens a todo
momento? O que fará comigo se eu não as cumprir?
Ele passou uma mão pelos cabelos, com raiva.
— Seja razoável, quero apenas garantir o seu bem.
Ele tentou tocar no rosto dela, e Norvina o afastou com um tabefe.
— Não seja condescendente. Eu odeio isso em você.
Darwish a puxou com força contra seu corpo, expulsou o ar que ela tinha
nos pulmões e a jogou contra a parede mais próxima para ficar bem junto dela.
Norvina arfou, bêbada com a rapidez com que ele manipulou o corpo dela.
— O que você prefere? — Ele disse, a boca tão perto que respiravam o
mesmo ar. — Que eu grite e a xingue para que sinta que tem motivos para o
arrependimento que sente?
Norvina colocou a mão sobre o estômago, malditos olhos azuis que
podiam ver tudo.
— Você provoca esse arrependimento com essa postura autocrática.
— Toda vez que você me enfrenta, só me deixa mais excitado, Raposinha.
Ele flexionou os quadris em direção a ela, e Norvina sentiu a rigidez moer
sua carne. Ela arfou, trêmula. A raiva parecia o componente essencial da sua
excitação.
— Eu não tenho um senhor, Darwish, eu sou minha própria mestra.
— Do jeito que você fala, até parece que a jogo aos crocodilos. Tudo que
peço é para parar de tentar se matar!
— Você é muito bom em fazer tudo soar trágico e poético.
Norvina tragou saliva, uma intensa neblina com cheiro de suor e fruta
cítrica impedia sua mente de reunir os pensamentos.
Darwish se descolou dela. Norvina quis fazer um protesto, mas percebeu o
quanto seria confuso. O semblante do príncipe era sério.
— Vá para casa, mais tarde teremos essa conversa.
Ela avaliou as opções.
Não precisava obedecer a Darwish, ainda assim, viu-se fazer seu caminho
de volta para casa, até lá, ela pensou na coleira que a esperava escondida na
gaveta de uma cômoda e ao atravessar a soleira entendeu a razão para Darwish
não a ter mostrado.
Desde que se casara, a parte preferida do dia de Darwish era voltar para
casa, sabendo que Norvina o esperava. Contudo, naquele dia adiou a ida para
casa o máximo que pôde. A primeira briga dos dois depois de casados o
aguardava.
Como podia dizer, sem ofendê-la, que não tinha um problema com o fato
dela trabalhar e treinar com os outros soldados, mas tinha um grande problema
sobre o modo como ela o fazia. Norvina não media as consequências, o que
assustava Darwish. Sempre teve medo da maneira como ela se arriscava, como
parecia não se importar com nada, mas então Norvina tinha que entender que
não estava sozinha no mundo, tinha a ele também e, querendo ou não, aceitando
ou não, eles tinham uma vida a construir.
Darwish não conseguia nem pensar na possibilidade de perdê-la. Seus
ossos enfraqueciam, e o ar se tornava inexistente.
Já discutira com ela diversas vezes, mas aquela seria diferente já que eles
eram marido e esposa. Existia um limite que não podiam ultrapassar. As últimas
semanas foram o maior tempo que passaram sem discutir, e ele sabia que, em
algum momento, brigariam, sobretudo por serem tão diferentes. Porém se
mantivessem o limite intacto, seria a garantia de que tudo ficaria bem.
Casamento é como cuidar de um jardim. Uma vez por outra, você deve
podar os ramos ruins para que os bons cresçam melhor.
Darwish se consolava com o que Áster dissera uma vez: quando se é
casado, o sexo depois de uma briga é o melhor. E ele estava ansioso para
descobrir.
Foi recebido pelos criados na entrada e caminhou pela casa bem iluminada
por chamas acesas em lanternas de cerâmica pintadas à mão. Marchou cauteloso
para o quarto, onde sabia que Norvina esperava por ele, estranhando o silêncio
no ambiente. Ao passar pela sala, encontrou a esposa já sentada à mesa.
Norvina abriu um sorriso cheio de dentes ao vê-lo, estava exuberante.
Usava um vestido azul que se prendia aos ombros por abotoaduras de ouro em
formato de escaravelhos. O cabelo negro estava penteado para o alto, com duas
grandes tranças nas laterais, presas por argolas de louro. A mesa do jantar estava
posta de forma rica.
Darwish piscou, não entendia nada.
— Você chegou. — A voz dela era mansa e entusiasmada.
Norvina se levantou, e o ranger da cadeira no chão fez Darwish se assustar
e se colocar em posição de combate. Ela caminhou até ele. Darwish achou que
Norvina sacaria uma faca das vestes e atravessaria seu pescoço com a arma, mas,
para seu constrangimento, ela só se abaixou para o beijar na mão. Norvina se
livrou do manto que caía sobre os ombros de Darwish, deixando-o apenas com a
túnica fina por baixo. Ele se lembrou de piscar e percebeu que ficara tempo
demais sem fazê-lo, seus olhos arderam quando o fez.
— Eu fiz o jantar.
Ora, pelas penas de Maat!
Isso sim é um fato inacreditável.
— Você sabe cozinhar?
— Não, mas você não contratou uma cozinheira e acabaram os estoques
de comida pronta, então eu me arrisquei com o que tinha.
Isso não parecia uma boa ideia. Darwish soltou um risinho nervoso.
— Venha, coma comigo. — Ela caminhou até a mesa e puxou a cadeira na
cabeceira, esperando que Darwish se sentasse.
Ainda em estado catatônico, ele obrigou suas pernas a se moverem.
Darwish ficou atento aos movimentos de Norvina em suas costas, cada passo
que ela dava, seus músculos tensos se preparavam para correr. Não tinha outra
explicação para aquele comportamento dócil e gentil depois da briga que
tiveram, e a única coisa que ele conseguia pensar era que a esposa planejava
matá-lo.
A mulher pegou a taça de Darwish e a encheu, ele olhou para o líquido
roxo, achando-o suspeito.
E se ela envenenou o vinho e só me der o antídoto se eu concordar em
deixá-la lutar?
O príncipe nem tocou na taça de cobre.
Ainda sorridente e leve como uma pluma, Norvina caminhou até a própria
cadeira e sentou-se com graça. Darwish não sabia quem era aquela mulher, mas
não era a sua Norvina.
Um servo entrou no aposento e destampou as bandejas de comida,
Darwish encarou os alimentos. Reconhecia alguns, mas não sabia do que se
tratava o prato.
A comida tinha uma aparência horrenda, sendo gentil com a escolha de
palavras. O que era para ser uma codorna, parecia um pedaço de carvão, e a
salada tinha uma aparência verde de catarro de meses. Se ela não o matasse
envenenado, ela o mataria de infecção estomacal com certeza.
Decidiu que não era seguro beber e nem comer nada, mas, ao olhá-la,
percebeu que Norvina esperava ansiosa que ele enchesse o prato. Sorrindo
amarelo, Darwish cortou um pedaço da codorna, percebeu que a parte de dentro
estava rosada e crua. Como ela conseguira queimar algo e deixá-lo cru ao
mesmo tempo era um mistério. Ele mergulhou o pedaço no molho para colocar
na boca.
Não sabia se morrer tinha um sabor, mas devia ser parecido com aquele.
Ainda sorrindo, levou a taça de vinho à boca e, com descrição, cuspiu o pedaço
da carne dentro ao fingir que bebia um gole.
— Como foi o restante do dia? — Ela manejava uma faca brilhante e
muito afiada.
Sem conseguir tirar os olhos da faca, ele respondeu:
— Bem, eu acho, depois do treino, fui chamado à sala de tertúlia,
começaram os preparativos para o festival de Wag, e eu devo preparar meus
homens para garantir a segurança da cidade durante o festival.
Norvina já estivera no festival no ano anterior, eles o faziam sempre um
mês depois da passagem de um ano para o outro. Era dedicado à morte de Osíris
e homenageava as almas das pessoas falecidas em sua jornada na vida após a
morte. Durante o festival, as pessoas faziam pequenos barcos em papel e os
colocavam em direção ao oeste, em sepulturas, para indicar a morte de Osíris.
Também flutuavam santuários de papel nas águas do Nilo pela mesma razão.
— Depois do festival, minha mãe pretende sair do palácio de uma vez por
todas.
Darwish não conseguia deixar de sentir-se triste. Quando criança, desejava
muito que os pais se separassem de uma vez para que parassem de tentar se
prejudicar e levar os filhos no processo, mas, vendo que o momento chegara, ele
sentia uma melancolia profunda.
— Nós sempre podemos visitá-la, Darwish. — Norvina disse e a voz dela
o acalentou.
Darwish concordou, sentia que criaria um clima estranho com o pai, mas
eles teriam que superá-lo, e tinha que ser antes dos bebês chegarem, porque ele
não queria contaminar os filhos com os resíduos venenosos do casamento
fracassado de seus pais. Já não bastava o trauma que deixaram nele e em seus
irmãos.
Moveu os olhos para o ventre da esposa, desde que se casaram, esteve em
cima dela como um chacal faminto estraçalhando um pobre coelho, na esperança
dolorosa de que Norvina engravidasse logo.
Quando a taça de Darwish tinha mais pedaços de comida do que vinho,
eles se levantaram para se recolher. O príncipe não tinha feito quartos separados
para eles, não via vantagem no costume. Dentro do cômodo que dividiam, havia
uma porta que levava a uma câmara de banho. Darwish foi para lá e encontrou
uma banheira cheia com sais de banho e água ainda morna.
Norvina também preparara seu banho.
Achou suspeito, mas como não tinha como matá-lo ali, ele se despiu e
entrou na água, sentindo os músculos tensos se libertarem um a um. Estava todo
relaxado quando ouviu a porta se abrir, e Norvina lhe fez companhia. Darwish se
perdeu nas curvas do corpo da esposa, o formato dos seios, a barriga estreita, os
pelos que ela mantinha bem aparados em uma linha reta, igual a um caminho de
grama bem cortada em um jardim. Ele gostava de pensar que só ele podia regar
aquele jardim.
Nada do comportamento dela fazia sentido, e ele logo ficou em alerta,
pensando que Norvina lhe preparou o banho e entraria nua para distraí-lo
enquanto planejava afogá-lo na água. Ficou imóvel ao vê-la entrar na banheira
com ele. Seus músculos voltaram a ficar tensos. Ela ensaboou os braços de
Darwish, e ele suspendia a respiração toda vez que as mãos dela chegavam
muito perto de seu pescoço. Em algum momento, ele se esqueceu do quão
estranho era o comportamento e o apreciou. Em silêncio, Norvina o fez relaxar e
o massageou, apertou com as mãos pequenas cada músculo de Darwish e o
beijou, esfregando os seios molhados no peitoral dele.
Era tão gostoso que Darwish chegou a cochilar com a cabeça escorada na
borda da banheira. Acordou com ela preparando-se para sair da água. Ele a
ajudou para que não escorregasse e a cobriu com um pesado manto. Abraçados,
os dois foram para o aposento conjugal.
— Você vai me comer agora?
Darwish arregalou os olhos. Segurou a esposa pelos ombros e a olhou, a
pele vermelha como ela ficava ao estar excitada, os lábios pesados e entreabertos
e as coxas bem juntas. Cogitou a hipótese de os deuses terem atendido suas
preces e dado a ele uma esposa compreensiva, mas conhecia Norvina bem
demais para se deixar sonhar tão alto.
— O que aconteceu com você? — Ele perguntou, irritado por alguma
razão sem fundamento, já que ela não fizera nada para desagradá-lo, pelo
contrário.
— Não era o que queria? Uma esposa obediente e submissa?
Darwish enfim enxergou a esposa por baixo do tom sarcástico da voz de
Norvina, não a substituta malfeita, mas a esposa de verdade e, por incrível que
parecesse, suspirou de alívio.
— Se eu quisesse essa merda, teria me casado com qualquer uma daquelas
pretendentes, não acha?
Ela cruzou os braços em frente ao peito.
— Sua boca diz isso, mas pela manhã foi o que você deu a entender.
Norvina esticou o braço para apanhar o penhoar e se cobriu, dando as
costas para ele.
— Tudo que pedi foi para parar de se machucar, porque isso me… isso me
machuca.
Ela se virou nos calcanhares para encará-lo, a boca aberta, absorvendo a
verdade e todos os grandes e pequenos sentimentos nas palavras dele.
— Acho que posso me abster de lutar, por um tempo.
Darwish quase não acreditou que ela cedera. Não permitiria que outro
homem encostasse a mão em Norvina nunca mais, mas aceitaria o pedido de
trégua por um tempo. Ele voltou a se aproximar dela, mais leve, e resvalou os
dedos nas bordas do penhoar que ela acabara de vestir. Empurrou o tecido para o
lado, desnudando um único e pálido seio.
— Se você gosta de apanhar, tudo que tem que fazer é me pedir com
carinho.
A indecência tomou o rosto dele, e apesar de Norvina ter ficado vermelha,
ele percebeu que sua provocação a excitou.
Amassou o peito dela na mão, exercendo força, rodeou-a com o outro
braço e a ergueu do chão, apenas o bastante para sentá-la na cama e roubá-la
com sua boca voraz. A forma maluca como ela correspondia, dava a ele vontade
de gargalhar de tanta felicidade. Seu pênis já estava firme e pronto, ansioso pelo
calor e umidade de sua esposa.
Tateando cego, Darwish desfez o no das faixas do penhoar de Norvina, a
luz bruxuleante do fogo iluminou o corpo dela e o revelou para ele. Ele a abriu
de forma imoral, Norvina era muito flexível e a visão dela arreganhada para
recebê-lo seria a causa da ruína dele. Tocou-a bem devagar, ele a sentia tensa, ela
não confiava o suficiente nele a ponto de relaxar, o que o frustrava.
O fato de Norvina achar que ele a machucaria, o magoava. Darwish queria
a liberdade de poder tocá-la sem restrições durante o amor. Ele afastou as mãos,
segurando nos dois lados do dossel e garantindo com o olhar que não a tocaria
onde ela não quisesse.
— Veja para mim se você está pronta. Leve sua mão para baixo, onde eu
quero. — Ele pediu. Norvina enrubesceu, mas a mão dela se moveu,
serpenteando pelo corpo e parou sobre sua vagina. — Enfie, eu quero ver.
Envergonhada, ela introduziu dois dedos dentro de si mesma, seus cílios
tremeluziram e suas costas arquearam. Quando os dedos voltaram, ela os ergueu
e eles brilhavam com o fluido de sua excitação. Darwish lambeu os lábios.
— Me dê aqui. — Ele pediu, sedento. Norvina entendeu muito bem a
intenção dele e enfiou os dois dedos na boca do marido. Ele chupou, e lambeu, e
não os soltou. — Me leve até você.
Com os dedos na boca dele, ela usou a outra mão para segurar o eixo firme
do príncipe e o levou para seu sexo carente. Norvina o esfregou em seu clitóris
uma vez e outra mais, sentindo a boca dele sugar seus dedos, fazendo ali o que
poderia fazer em seu nervo sensível. A fricção era alucinante para os dois, muito
fácil e extasiante, a glande vermelha soltava lubrificação em abundância no
clitóris dela e tornava mais gostoso ainda a fricção. Darwish envolveu o dedo
dela com a língua e sugou firme e ruidosamente.
— Mmmmmhg…. Ah! — Norvina miou, contorceu-se, e ele aproveitou
que ela estava perdida no êxtase para se juntar a ela.
Seu canal pulsava e o apertava, mastigando, esmagando, era a melhor
sensação do mundo. Darwish escondeu o pênis dentro dela e o retirou para vê-lo
brilhar com seus fluidos. Gozar era bom, mas senti-la gozar era melhor. Lutando
com toda a força para manter as mãos longe dela, Darwish puxou os quadris e,
quando ia voltar a meter, as mãos pequenas dela o detiveram no abdômen.
— Espera hoje… eu… quero… — Ela fazia um enorme esforço para
empurrar as palavras para fora — Eu quero você em outro lugar.
Darwish franziu o cenho, confuso. Não foi preciso perguntar, Norvina o
retirou de dentro dela, as mãos em volta do seu pau o tornavam ainda maior. Ela
o moveu mais para baixo. Darwish endureceu, sua pele escura não foi o bastante
para esconder a vermelhidão da vergonha que o pegou, nunca ouvira falar de
mulheres que quisessem ser possuídas por trás.
— Por que você quer que eu faça isso com você? — Indagou, afastando-se
o bastante para seu corpo perder todo o contato com o dela.
Os olhos dela ficavam a todo momento no peito dele, nunca nos olhos. O
queixo de Norvina tremeu, e ele notou que ela segurava o choro.
— É uma parte do meu corpo que eu aprendi a odiar. Eu pensei que você
pudesse me fazer amá-la outra vez, como fez com o restante.
Céus, Darwish suspirou como se tivesse sido atingido por um soco.
— Eu entendo que você ache nojento, jamais o obrigaria a fazer algo que
o deixe desconfortável.
— Norvina. — Ele suspirou e usou uma mão apenas para erguer o rosto
dela com um toque em seu queixo, seus lindos olhos de raposa cintilavam com
lágrimas. — Um dia, eu vou trazer para você as mãos do homem que a
machucou. — Darwish não estranhou a própria frieza ao prometer aquilo, pelo
contrário, sentiu o mais forte ódio que podia comportar em seus um metro e
noventa. — Nada que venha de você me enoja.
Ele faria qualquer coisa por ela, qualquer coisa que a fizesse sentir-se bem.
Ele voltou a se encaixar nela, nunca fizera daquela forma antes, não sabia como
fazer, se deveria ter um tratamento especial. Ela estava bem molhada, então
entrar foi tão fácil quanto respirar. Assim como tudo nela, aquela parte era
quente e aconchegante, espremia-o com muita força. Ela moveu o quadril um
pouco mais para o lado, e ao não achar a posição correta, moveu outra vez,
girando Darwish dentro de si até encontrar a fricção adequada, e ele apreciou a
sensação de ser esmagado pelas paredes dela. Os seios de Norvina endureceram
diante dos olhos dele, e o rosto era uma pintura da própria perversão. Sua virilha
encontrou com a polpa da bunda dela, ele ficou parado dentro da esposa, sem
nada para fora.
— Se toque, se dê prazer comigo dentro da sua bunda. — Ele pediu, os
dedos dela voltaram a entrar em seu sexo frágil.
Darwish observou o modo como ela flexionava os dedos para dentro e
passou a fazer igual com seu pênis. Norvina escorria e, por causa disso, cada vez
que ele saia e regressava, deslizava mais. Era muito bem acolhido cada vez que
retornava para ela e não demorou muito para os dois gemerem enquanto ele a
possuía sedento.
Darwish meteu, meteu, forçou-se para dentro de sua mulher até ter certeza
de que todos os toques que ela recebera ali, estavam dilacerados para sempre.
Todo o corpo de Norvina estava cheio com a essência dele. A luxúria os
transformou em bestas no cio, gemendo dentro da boca um do outro. Darwish a
lambeu desde a garganta até o queixo, Norvina colocou a língua para fora e ele
esfregou a sua na dela. Ela intensificou as estocadas dos dedos no próprio sexo, e
Darwish se preparou para despejar todo o seu leite. Norvina despencou para trás
ao ser açoitada pelo orgasmo, e Darwish jogou a cabeça para trás, urrando como
um animal.
Seu corpo foi totalmente drenado, sugado por ela. Darwish se deixou cair
sobre Norvina, ouvindo a respiração dela se normalizar junto da dele. Encostou o
nariz no pescoço dela e sentiu o cheiro. Eles cheiravam a mesma coisa. Foi ali
que ele caiu no sono mais profundo de sua vida.
Norvina acordou com os pulmões em brasa, alguém a puxava e a segurava
com brutalidade. Ela forçou os olhos a abrirem e não reconheceu o lugar onde
estava. Algo muito pesado a impedia de se mover.
— A culpa é sua, você fez isso!
Todo o seu corpo esfriou.
Essa voz… Ele me achou!
Norvina nem parou para pensar, apenas agiu. Usou o peso dos pés para
direcionar a força para o tronco e se debateu de forma desesperada. Com os
membros livres distribuiu chutes e socos sobre o homem que a agarrava, sem
intenção de deixá-la fugir. Ela foi envolvida pelo pescoço e soube que morreria
ali. O destino a consolou, aceitaria a morte de bom grado, mas nunca mais
voltaria para ele. De alguma forma, ela conseguiu cair da cama e bateu com os
cotovelos no chão. A dor irradiou por cada osso, e ela gritou. Uma névoa foi
retirada dos seus olhos e, aos poucos, percebeu que estava nos aposentos
conjugais com Darwish.
Os acontecimentos voltaram com força à sua mente ébria. Norvina ergueu
a cabeça e tomou um susto ao ver que não era Petrus quem estava sobre ela na
cama, mas Darwish.
Percebendo seu erro, de imediato, Norvina se levantou e foi até Darwish
a passos incertos. Darwish levou as mãos ao rosto dela, e Norvina as afagou e
depois as beijou. Uma por vez, então trouxe seus lábios para os dele.
Ele ainda esperava por uma explicação, estava tendo o mais adorável
sonho depois de anos sem conseguir descansar de verdade, antes que ela
começasse a se debater como se o demônio estivesse sobre ela.
As pernas de Norvina se abriram sobre o colo do príncipe, e ela se
encaixou em sua virilha com as mãos espalmadas sobre o peito dele. Darwish
sabia que ela usaria o sexo para tirar a atenção do que acontecera. Ela o montou
firme e conseguiu fazer com o sexo o mesmo que fazia em suas lutas, adiando o
ápice para que pudesse deixar de sentir o que tanto a apavorava. Ele segurou os
cabelos dela pela nuca e encostou a testa na dela, com a outra mão, deixou-a
bem posicionada para receber as investidas de seu pênis. Darwish colidiu os
quadris com os dela sucessivas vezes até que os dois virassem um só. Ele
gostaria de ser capaz de entregar para ela o alívio que sua alma precisava, mas
não seria com sexo que conseguiria isso. No fim, ela ruiu sobre ele, sem fôlego.
Sem conseguir gozar, apenas desistiu.
Darwish acariciou os cabelos de Norvina até que se acalmasse, seu peito
estava quente pelas lágrimas dela.
Ele tinha que fazê-la entender que não precisava viver com medo, porque
ela nunca estaria sozinha outra vez e, talvez, a única forma de fazer isso fosse
mostrar que ela não era a única com cicatrizes.
Tremendo, ele puxou os braceletes que lhe envolviam os pulsos, deixou
que Norvina visse as marcas que ainda não se recuperaram por completo desde a
última vez.
— Essas queimaduras são provocadas pela fricção das cordas.
Norvina ergueu a cabeça para olhá-lo, os olhos vermelhos e especulativos.
Ele se ergueu com a ajuda dos braços e envolveu o pulso com uma corda,
sob o olhar atento dela.
— Eu tenho pesadelos desde os meus quatorze anos, eles começaram
quando voltei para casa, após minha primeira batalha. Eram leves, e as pessoas
diziam que era normal para um soldado. Com o tempo, os pesadelos são tudo o
que eles têm e os fazem seus companheiros mais leais. Eu acreditei que
passariam, mas eles só se tornavam piores a cada batalha que eu arquitetava.
Passei a me machucar durante o sono. É para isso que as cordas servem, para
que eu não pule da sacada outra vez.
Darwish achou que a faria se sentir melhor, mas só a fez chorar mais.
— Desde que me afastei das batalhas, os pesadelos diminuíram, mas, às
vezes eles vêm com muita força e ao me debater é isso que acontece. — Ele
indicou as marcas. — Eu não queria que você me achasse um fraco, porque você
sempre me tratou como um oponente à sua altura, por isso não contei antes.
Espero que você durma para que não veja eu me amarrar, e me levanto antes de
você.
Norvina pegou o pulso dele e o levou para seus lábios, beijando suas
queimaduras.
— Não são seus músculos que me fazem acreditar que você é um
oponente à minha altura, é sua enorme capacidade em ser irritante.
Ele apreciou que ela tentasse fazê-lo sorrir, mas a boca adorável de
Norvina em contato com a pele machucada do pulso dele, só o fazia sentir nojo
de si mesmo.
— Essas mãos que você beija… — Inspirou fundo. — ...são as mãos de
um assassino.
Norvina franziu o cenho, com raiva.
— Um assassino jamais admitiria ser um.
Ele riu com sarcasmo.
— Só por que fiz as estratégias, não quer dizer que sou um assassino?
Então por que sinto o sangue daquelas pessoas nas minhas mãos até hoje?
— Você fez o que o mundo exigiu que você fizesse, pare de tentar me
fazer enxergar algo que você não é.
Era incrível como Norvina conseguia acreditar na inocência dele, mas se
tratando de si mesma, não era igual.
— Darissa deve pensar diferente de você. O ataque que levou à destruição
da família dela saiu do meu cérebro. Eu fiz de modo deliberado. Os deuses me
abençoaram com inteligência, e eu a usei para destruir famílias inteiras. Você
não sabe o quão inconsequente eu era, eu pensava… — Os olhos dele
inundaram. — ...Eu acreditava que se não podia ter uma família, então por que
as outras pessoas podiam? Não é a coisa mais egoísta que você já ouviu?
— Você é a pessoa menos egoísta que eu conheço. Você é perfeito. —
Darwish virou o rosto para não a olhar. — Sim, é isso que você é. Nunca
considerei você como um amigo, porque o desejei como homem desde o maldito
instante que pus meus olhos em você. Eu pensei que você era a criatura mais
pomposa e bonita que já vira e nunca me senti assim por homem nenhum. Isso
me apavorou.
Ela colocou a mão dele sobre o peito para que sentisse as batidas de seu
coração enfurecido.
— Me apavora até hoje.
Darwish encostou a testa na dela.
— Faça amor comigo sem medo, me deixe tocá-la. — Ele implorou em
um sussurro e pela forma como ela se retraiu, já soube a resposta.
— Darwish…
Ele escarneceu.
— Você quer que eu me veja como um herói, mas me coloca no mesmo
patamar do miserável que fez você ter medo de ser tocada. — Ele tirou as mãos
dela de cima dele, de súbito, cansado de todo o dilema que envolvia o
relacionamento dos dois.
— Eu nunca comparei você a ele. — Norvina tinha o rosto assombrado.
— Não? Não é o que você faz quando não me deixa tocar em você? Toda
vez que eu entro no seu corpo, não é nele que você pensa?
Norvina se retraiu.
— Você está sendo tão injusto.
— Você pelo menos se esforça? Quer que eu abdique de muitas coisas,
mas não faz concessões por mim. Você pelo menos tenta engravidar?
Ele desejou retirar as últimas palavras no instante que deixaram sua boca,
mas o estrago estava feito. Os lábios de Norvina empalideceram, e ela ficou em
silêncio por um tempo anormal.
— Isso é cruel, Darwish. — Ela disse tão baixo que Darwish mal
conseguiu ouvir. — Você se casou comigo sabendo que eu não podia conceber.
Eu disse que era incapaz de engravidar, e você me fez acreditar que eu era o
suficiente para você, agora está sendo cruel a ponto de atirar isso na minha cara.
Darwish fez menção de tocá-la, mas recebeu um tabefe na mão e um olhar
com tanto ódio que gelou seus ossos. Retesou o maxilar, contrariado.
— Por que você acha que não pode engravidar?
— Eu já disse, meu útero foi tirado de mim!
Não fazia sentido, ela dizia as palavras, mas Darwish não conseguia
aceitar. Algo não se encaixava. Ela tentou se afastar dele, já que Darwish
permanecia dentro dela, mas ele a manteve cativa.
— Você sangra? — Ela não o entendeu. — Todo mês, você tem
sangramentos?
— Por que isso é relevante?
— Uma mulher que não tem útero, não sangra.
Norvina soluçava em meio ao choro desconsolado, lutando para se livrar
do aperto dele, e ele sentiu-se horrível por fazê-la sofrer, mas a conversa
aconteceria mais cedo ou mais tarde.
— Eu vi, Darwish, com meus próprios olhos. Por que você não acredita
em mim?
— Porque quando você segurou meu sobrinho, eu vi o seu desejo de ser
mãe e soube que seria o pai dessa criança. Ela existe, eu sinto isso, ela está
crescendo em seu ventre agora.
— Pare de falar essas coisas! Pare!
Norvina levou as mãos aos ouvidos, apertando com força para não o ouvir
mais. O coração dele se encheu de pena e remorso, ele a libertou, deixou que ela
deslizasse para longe dos seus braços. Darwish decidiu que era melhor sair antes
que dissesse algo que a machucaria ainda mais.
— Vou deixar você sozinha.
Ele notou que ela quase pediu para ele ficar, mas era orgulhosa demais
para tanto, e, a caminho da sala, ele se amaldiçoou por não ter feito quartos
separados.
Norvina chegou ao grande salão cerimonial do palácio da Alvorada
quando a sala já estava cheia de gente. Era o dia do festival de Wag. Pessoas do
país inteiro se reuniam em Astória para prestar homenagens para aqueles que já
se foram. Era a primeira aparição dela com Darwish desde que se casaram e
receberam alguns olhares ao entrarem no salão apinhado.
Darwish, sabendo que a esposa não gostava de receber tanta atenção,
deixou-a se juntar às amigas. Na verdade, Norvina suspeitava que era uma
desculpa para não ter que passar mais um segundo desconfortável na presença
dela, já que ainda não estavam se tratando muito bem desde a briga que tiveram
há quatro semanas.
Ele falava com ela. Eles se tratavam com toda a cordialidade, mas aquela
chama que queimava desde a noite de núpcias, apagou-se, sem dúvidas, e não
tinha pretensão de voltar.
— Você está radiante. — Zaya disse, passando os olhos por ela.
Norvina achou pouco provável, sentia-se péssima, como se alguém tivesse
a mastigado até perder o sabor e a cuspido no chão. Darwish fora tão cruel com
as palavras. Ela se perguntou como ele tinha coragem de jogar aquilo na cara
dela e o que mais ele podia querer, a alma dela? No fundo, sabia que fizera
concessões por ele. Aceitara parar de lutar, trocara as roupas confortáveis pelos
vestidos chamativos que a faziam se sentir nua.
Norvina sentiu a língua pesada na boca, a esperança feliz na voz de
Darwish de que o desejo dele fosse uma realidade, fizera uma terrível carga de
culpa a castigar por dentro. Já notara a forma como ele a encarava no ventre toda
vez que gozava dentro dela, quase implorando para que fosse suficiente, mas não
adiantaria. Não importava quantas vezes ele pedisse, se fizesse com mais força,
ou se despejasse três vezes numa única noite, plantava sua semente em um solo
inóspito.
O corpo de Norvina era incapaz de fazer a única coisa que deveria fazer,
seu ventre era podre e só podia conceber a morte.
E pensar que estava tão feliz em como as coisas estavam indo. Grande
tola!
Era uma imbecil por acreditar que era o suficiente para ele. Norvina devia
ter esperado pelas palavras cruéis que ele dissera, Darwish nem a questionou ao
ouvi-la dizer que não podia ser mãe. Por que demônios ninguém acredita em
mim?
Primeiro Illyana, e depois ele. Norvina saberia se pudesse engravidar. Não
saberia?
— Onde está Darissa? — indagou depois de passar o olhar pelos rostos
contentes espalhados no salão.
Era um dia de respeito pelos mortos, mas as pessoas estavam felizes e em
festa.
— Ela estava aqui um instante atrás.
Norvina não deixou de notar que Ramessés também não estava em parte
alguma.
Ela sentiu um olhar perfurando sua nuca e virou o rosto para encontrar
Darwish não muito distante, encarando-a. Ele estava tão bonito com a roupa
escura cheia de detalhes dourados, a cobra tatuada no braço cintilava mais preta
do que nunca.
Nesse instante, uma breve pulsação no ventre fez Norvina se assustar e
levar as mãos para lá, quase derrubando a taça da mão. Ela esperou que
acontecesse de novo, mas nada veio. Era possível que fosse coisa da cabeça dela.
Seu desejo de ficar grávida era tão grande que começou a idealizar coisas. Faria
dez semanas de casada, e sua barriga permanecia lisa e trincada.
Pela visão periférica, Norvina avistou uma silhueta familiar cruzar o salão.
Seu sangue ficou denso. Ela entregou o cálice a Zaya e disparou na mesma
direção da pessoa. Passou por Darwish ao deixar o salão, percebeu o olhar
preocupado dele, mas não tinha tempo de tranquilizá-lo, por isso forçou um
sorriso e esperou que fosse o suficiente para ele não a seguir. Norvina chegou ao
corredor que levava às cozinhas, apressou o passo a ponto de correr na mesma
sincronia que as batidas do seu coração. A mulher estava de costas para ela,
organizando uma bandeja com mais cálices de vinho.
Seus olhos não a enganaram, era ela mesma: Illyana.
— Você! — A cartomante lhe sorriu, nem um pouco surpresa. — Você
trabalha aqui?
— Sim — respondeu com a mesma simpatia do dia em que Norvina tivera
o azar de se esconder na barraca dela, atrás de abrigo.
Foi como ter a cabeça aberta, uma mão invisível movia as engrenagens em
seu cérebro, encaixando as peças do enigma que estava diante de si. Céus, agora
tudo faz sentido. Illyana trabalhava no palácio, por isso sabia as informações
pessoais a respeito de Norvina, no dia que lera o futuro dela, não foram
previsões, foram apenas suposições.
O chão sumiu sob os pés de Norvina, e ela se apoiou na mesa para não
ceder.
Com o que restava da força, apertou os punhos até as unhas ferirem a
palma. Estava com tanto ódio de si mesma por ter enfiado Darwish em um
casamento estagnado, porque se deixara levar por uma cartomante farsante que
não passava de uma servil.
— Você me enganou! Mentiu para mim para tirar o meu dinheiro.
Illyana não se abalou com o ódio feroz que envenenava as palavras de
Norvina.
— Será que menti? — A calma dela só deixava Norvina mais furiosa. —
Está casada com ele não está?
Norvina cerrou os punhos.
— Sim, mas você sabia que ele procuraria uma esposa, sabia que ele
gostava de mim. O resto foram apenas mentiras! — gritou.
Pelas chamas do tártaro, como pude ser tão estupida? Quando o ódio
chegou ao seu ponto mais alto, extinguiu-se e restou só a dor. Naquele instante
Norvina percebeu que apesar de não admitir, por um momento real acreditou de
verdade que pudesse ter um filho de Darwish.
— É mentira só o que você quiser que seja, princesa Norvina, herdeira do
trono de Atenas.
Norvina levou uma mão ao estômago, sentiu o vômito vir com tudo pela
garganta. Não foi capaz de segurá-lo, seu corpo se curvou sozinho, e ela
despejou toda a ira para fora. Seu estômago se contraiu para despejar até o
último resquício de líquido. Jamais se perdoaria por ter empurrado Darwish para
aquele casamento. Jamais.
Ao se recompor, Illyana não estava mais na cozinha.
Voltou para o salão e avistou Darwish parado perto da cornucópia, ele
segurava um dos gêmeos de Zaya e colocava um biscoito de mel na boca do
menino. Os olhos dele dispararam para ela, eram transparentes e o que ela viu
neles foi uma sentença.
Arruinara para sempre a vida dos dois.
— Você está bem? — Norvina despertou de um devaneio ao sentir a mão
áspera de Darwish em seu braço.
Arranhou a garganta e moveu a cabeça uma vez.
— Sim. — Ela não sentia-se muito bem, para falar a verdade. Desde que
vomitara a ânsia não a deixara.
— Você está pálida.
— É apenas a minha pele.
— Eu saberia distinguir.
— Eu me sinto ótima, Darwish. — Usou a mão para empurrar uma mecha
de cabelo para trás da orelha e forçou um sorriso que deve ter parecido horrendo.
Darwish a escrutinou.
— Já vão começar a colocar os barquinhos na água, você vem? — Ele
ofereceu a mão para ela, e Norvina entrelaçou seus dedos nos dele. O mal-estar
melhorou de repente, o enjoo ainda estava lá, mas o calor de Darwish abrandava
de alguma maneira o desconforto.
Darwish a cobriu com um manto, e eles seguiram a procissão de pessoas
que desciam as ruas de Astória em direção às margens do Nilo, carregando os
barcos de papiro. O sol se punha no Oeste, iluminando as águas calmas com sua
luz alaranjada.
No tempo certo, as pessoas começaram a colocar seus barcos na água.
Norvina comprou dois de um mercador, um pela sua mãe e outro pelo seu pai, e
eles se juntaram a todos os outros barcos de papel que simbolizavam uma pessoa
que um dia fora muito amada por alguém. Ela observou por um tempo enquanto
eles desciam rio abaixo, em direção ao enorme pôr-do-sol.
A parte mais estranha era que os rostos dos pais dela já não eram nítidos
na memória de Norvina. Lembrava-se de como as mãos do pai eram grandes, da
sensação de proteção que elas a faziam sentir toda vez que ele a pegava no colo e
do sorriso da mãe. Ela nunca foi uma mulher de dizer “eu te amo”, era muito
séria e inflexível, mas, às vezes, quando ninguém estava olhando, ela sorria, e
Norvina acreditava que essa era a forma da mãe dizer “eu te amo”.
Nos últimos momentos de sua vida, enquanto sangrava até a vida deixar o
corpo, sua mãe sorriu para ela e essa era a última lembrança que Norvina tinha
dela. Seu rosto desfigurado pelo sangue, e um sorriso sem vida.
Norvina achou que podia bloquear os sentimentos a ponto de nunca mais
amar alguém, mas o amor era inerente a ela. Para Norvina, o amor era uma
guerra sem escrúpulos, e ela nunca ganhava. Relutou, mas acabou amando Zaya,
amava Darissa, amava a família de Darwish, e Darwish. Dolorosamente. Se ela
não podia deixar de amá-los então faria o possível para nunca os perder.
Ela se virou para Darwish, ele a segurava pelos ombros por trás. Era
impossível, mas ela tentaria dar a ele um filho. Todos os dias, não deixaria de
tentar e estava prestes a dizer isso a ele antes de sentir uma mão gelada em suas
costas.
Era Darissa e parecia aflita, olhando para os lados o tempo inteiro.
— Eu preciso da sua ajuda — disse a garota, enganchando os dedos
trêmulos no braço de Norvina.
— O que aconteceu?
— Você pode vir comigo? O sol está quase se pondo, não tenho tempo, no
caminho eu explico.
Norvina assentiu e tocou na mão de Darwish em seu ombro, ele parecia
não gostar muito da ideia de se afastar dela, mas Norvina o tranquilizou com um
olhar.
— Eu volto logo. — Ela prometeu, e só então os dedos dele afrouxaram
em volta dos dela.
As pernas de Norvina pareciam mais pesadas a cada passo que dava para
longe dele.
— Para onde você está me levando? — indagou à medida que seguia
Darissa entre a multidão.
— Eu preciso entrar no Mercado da Pechincha e sei que você sabe como.
Não era uma boa ideia. Era quase noite, e naquele horário o lugar virava
um antro de perversão.
— Quais negócios você poderia querer no Mercado da Pechincha?
Darissa se virou, parando de andar de uma vez e quase fazendo Norvina
esbarrar nela.
— Eu tenho a chance de recuperar o castelo de minha família, Norvi.
— Nossa! — Norvina não esperava por aquilo. — Achei que o lugar fora
dado como espólio de guerra, e hoje fosse uma base militar.
— E foi. — Darissa tremia muito. — Mas eu posso tomá-lo de volta.
— Você precisaria de um exército para isso.
Ela estendeu a mão de dedos magros.
— Este anel. — Darissa retirou o objeto do dedo indicador. — Está vendo
os relevos nessa pedra?
Norvina assentiu.
— É uma chave, nos manuscritos guardados na biblioteca de Alvorada eu
descobri que existe um cômodo subterrâneo no castelo de Agamenor, que está
cheio do tesouro ancestral da minha família. Minha mãe me deu este anel antes
de me levarem dez anos atrás. Era isso que ela queria me dizer e não teve tempo.
— Isso é incrível, Darissa.
A mulher persa colocou o anel de volta no dedo.
— Mas para chegar ao cofre, eu preciso chegar ao castelo, e quem pode
me ajudar a conseguir isso está no Mercado da Pechincha. — Darissa segurou as
duas mãos de Norvina. — Você pode me ajudar?
Norvina nunca seria capaz de dizer não. Estava mais do que feliz em poder
ajudar Darissa a conquistar de volta o legado da família dela. Apenas seguiu em
frente, em direção à rua onde teria acesso ao mercado. Lá, ela fez todo o ritual de
jogar algumas moedas para os sacerdotes no templo e adentrou a ruela
enlameada com cheiro de urina e fezes.
— Em que direção devemos ir? — perguntou a Darissa.
A mulher abriu um pedaço de papel amassado e passou os olhos ávidos
pelo conteúdo.
— Por aqui.
Norvina a seguiu a passos firmes e largos, tomando o cuidado de esconder
bem o rosto com o capuz. Era a esposa de um príncipe, deixara de ser alguém
sem valor. Se Darwish soubesse que ela fora ao Mercado da Pechincha sozinha,
iria atrás dela para ele mesmo matá-la.
Darissa parou de andar, e, ao erguer a cabeça, Norvina se viu diante do
mesmo beco sujo em que entrara com Darwish várias semanas atrás. O lugar
estava quase completamente escuro, não fosse por um feixe de luz do sol que
escapava por entre as torres do templo.
— Aqui está minha parte do acordo, agora cumpra com a sua! — Darissa
gritou para a escuridão. Norvina franziu o cenho, e sua pele se arrepiou ao
perceber que havia gente escondida nas sombras.
— Bem…
Primeiro ela viu os dedos do pé pálido, e as pernas longas e magras
cobertas por um manto de tecido azul grosso, bordado com folhas de louro nas
barras. O indivíduo saiu da escuridão e o faixe de luz do sol revelou um rosto
semelhante ao dela.
Norvina levou a mão à boca. Não fez questão de reagir ao sentir uma mão
puxar seu capuz e segurar seu rosto com força pelas bochechas.
— É ela mesmo, meu senhor?
Os dentes de Petrus surgiram em um sorriso ignóbil.
— Sim, o sangue do meu sangue que eu decidi não matar. — A voz ativou
em Norvina toda a fúria que estava anestesiada dentro dela.
A princesa fincou os dentes na mão do indivíduo que a prendia, e ele
soltou um berro. Mesmo sabendo que não tinha como fugir, porque sua visão
periférica contava pelo menos dez homens formando uma barricada atrás de si,
Norvina sacou o punhal da bainha na coxa e foi com sede de violência em
direção ao peito franzino de Petrus. A centímetros de conseguir acabar com a
vida daquele miserável, ela foi pega pelas costelas, erguida pelos cabelos e
atirada no chão, aos pés do maldito que lhe tomou tudo. O punhal rolou para
longe dela.
— Olá, irmãzinha. — Petrus sorriu, e Norvina se ergueu apenas para
cuspir em sua cara.
— Morra, seu miserável.
Ele limpou o cuspe com a mão e abriu ainda mais o sorriso.
Filho da puta cruel.
Norvina se debateu para se soltar do aperto em seus cabelos.
— Tudo no seu tempo. — Ele disse, dando um tapa leve no queixo de
Norvina e desviou os olhos para algo atrás dela. — Considere nosso acordo
feito.
Norvina já sabia com quem ele falava, mas se recusou a olhar para trás. A
traição de Darissa não doía mais do que saber que nunca mais veria Darwish
outra vez. Ali, naquele mesmo lugar onde ela o trocara pela informação da
localização do seu irmão, foi usada como moeda de troca por um castelo.
Tudo bem, ela aceitava toda a dor, quando se ama alguém, você se expõe
ao risco. O risco que correu ao se deixar cativar: um coração partido. Semanas
antes, ela dissera a Darissa que devia fazer alguém chorar, caso contrário seria
ela quem choraria. E Darissa tentou, mas Norvina jamais derramaria uma
lágrima.
— Já vai anoitecer e teremos que viajar a noite toda, vamos sair daqui. —
Petrus ordenou para seus homens e chegou mais perto do rosto de Norvina. — O
seu marido está ansioso para matar a saudade desses últimos dez anos.
Apesar dos gritos e protestos, Norvina foi arrastada para um carro de
guerra movido por quatro cavalos sem ninguém vir ao seu socorro. Só parou de
gritar ao ser tarde demais, e estarem fora dos muros da grande cidade. Ela
admirou a cidade de Astória sumir junto dos últimos raios de sol e pensou se
Darwish fazia o mesmo, pensando nela.
— Onde você estava? — Darwish indagou a Áster quando o irmão
apareceu em uma biga nas margens do Nilo.
— Colocando nosso pai para dormir. — Suspirou. — Ele estava bêbado,
discutindo com uma estátua dele mesmo.
Darwish ergueu as sobrancelhas.
— Nosso pai? Bêbado? — A ideia é... bem, muito absurda.
— Pois é. Acho que o divórcio não está fazendo muito bem para ele.
— O casamento também não fez.
— Pelo menos nossa mãe parece feliz. — Áster disse, vendo Zahara
ajudar Orion a colocar seu primeiro barquinho na água.
— Às vezes eu me questiono se está mesmo ou se aprendeu a fingir muito
bem com os anos. — Darwish refletiu.
— Onde está Norvina?
— Ela saiu para ajudar Darissa com… — Darwish parou de falar ao ver
uma criança correndo não muito longe. Não foi a criança em si que capturou a
sua atenção, mas o que ela tinha nas mãos.
Deixou Áster para trás e caminhou apressado antes que perdesse o menino
de vista.
— Ei, você, onde conseguiu isso? — perguntou, talvez com muita avidez.
A criança arregalou os olhos de medo e correu para se esconder nas saias da
mãe. A mulher se exasperou e manteve a cabeça abaixada.
— Perdoe-o alteza. Eymael, responda à pergunta do príncipe.
O menino, com os olhos chorosos, colocou só a cabeça para fora das saias
da mulher.
— Eu encontrei na saída da cidade. Não roubei, eu juro!
Darwish franziu o cenho e pegou uma moeda de ouro das vestes.
— Aqui, eu o compro de você por essa moeda de ouro, o que me diz?
O menino abriu um sorriso entusiasmado e estendeu para ele o objeto,
esquecendo-o assim que sentiu o peso da moeda de ouro na mãozinha suja.
Darwish desejou saúde para os dois e voltou para a companhia de Áster
com o objeto frio em sua mão. Suas tripas se retorciam com a certeza de que
alguma coisa errada acontecera.
— O que é isso?
— Estranho… — disse para Áster. — Este é o punhal de Norvina.
— O que fazia com aquele menino?
— É isso que é estranho, desde que eu a conheço, Norvina nunca se separa
desse punhal.
— Pode ter caído sem que ela tenha notado.
— Improvável, esse punhal é quase como um membro à parte dela. Se
caísse, ela sentiria. — Ele observava o punhal sem se mover.
Áster franziu o cenho, lendo o que se passava na cabeça em
funcionamento de Darwish.
— Irmãos!
Os dois viraram as cabeças na mesma direção, Ramessés cortava a
multidão tão furiosamente que parecia que o mundo se acabava em trevas.
— O que houve? — Áster perguntou, aparando Ramessés para que não
caísse de cansaço depois de ter corrido todo o trajeto do palácio até o Nilo.
— É Darissa, as coisas dela desapareceram. — Ele falou resfolegante.
Áster e Darwish compartilharam o mesmo olhar. O tempo desacelerou ao
redor de Darwish e o cabo do punhal ficou frio em sua mão. Cego, o príncipe
começou a andar na direção da saída da cidade. Cada passo que dava, parecia
que algo o puxava para trás e o distanciava ainda mais de Norvina.
— Darwish, para onde você vai?
Ele parou apenas para dar uma última ordem a Áster.
— Convoque todos os homens. Nós vamos para uma guerra.
A pequena cidade de Meshed ficava no sul gélido da Pérsia. Era uma
cidade rica em minerais, composta por artesãos que viviam da ferraria e
exportação de armas e aparatos engenhosos. Duas vezes Meshed fora
massacrada, dez anos atrás pelos egípcios, e naquele momento, pelos espartanos.
Havia sangue por toda parte.
Petrus não fazia o tipo piedoso, ele era cruel e nada o deleitava mais do
que cometer suas barbáries. O exército de quinhentos homens chegou à cidade
no amanhecer do segundo dia. Correram por duas noites sem descanso e
invadiram a cidade antes que as mulheres e crianças tivessem chance de escapar.
Foi uma carnificina.
O Forte dos Corvos era um pouco menor do que Alvorada, mas ainda era
um lindo castelo. O palácio, todo revestido em pedra calcária polida, brilhava
quando exposto à luz do sol. As pontas das colunas, e as colunas em si, eram
todas revestidas em ouro. Norvina ouvira Darissa falar tantas vezes dele, uma
pena que a imagem que tinha do castelo estivesse manchada com sangue de
inocentes. Ninguém fora poupado, e os poucos que restaram, buscaram abrigo no
deserto.
Enquanto o exército de Petrus se certificava de remover cada grama de
sangue egípcio da cidade, Norvina entrou no castelo. As correntes amarradas às
pernas dela, faziam barulho ao serem arrastadas no chão. Suas mãos também
estavam presas. Fugir seria inútil. O castelo tinha uma arquitetura bem
trabalhada, com colunas longas bem esculpidas e o chão de mármore polido. Ela
subiu uma longa escada e seguiu em direção à sacada ampla que dava uma visão
da cidade. Darissa estava lá, admirando sua conquista.
Norvina parou ao lado dela e assistiu enquanto um homem foi puxado de
dentro de sua casa e assassinado pela espada de um soldado.
— Você conseguiu. — Norvina disse, sentindo o vento frio com cheiro de
sangue fresco tocar sua pele. Fechou os olhos, enojada.
Darissa virou o rosto para ela, não se olharam nenhuma vez desde Astória,
quando ela enfiara uma faca nas costas de Norvina.
— Como se sente? — perguntou para Darissa.
Darissa limpou o rosto coberto de lágrimas em um gesto rude.
— “Nesse mundo se você não garantir que alguém chore, quem chorará
será você.” Você disse. Passei dez anos chorando, agora é a vez deles.
— Olhe para lá. — Ela apontou para baixo, onde cadáveres se espalhavam
pela cidade. — Não restou ninguém para chorar além de você.
Darissa recuou, o corpo tenso.
— Você não pode me julgar, não pode. Se tivesse a chance de matar quem
matou seus pais, você não o faria?
— A diferença entre nós duas é que eu nunca trairia você para conseguir
isso.
Darissa caiu de joelhos no chão, as mãos sobre a barriga.
— Não importa, o castelo é meu outra vez — disse entre soluços.
— Felicitações. Você virou a imperatriz do nada. — Norvina a olhou e só
conseguiu sentir pena. Darissa trocara toda uma vida feliz por um castelo, por
uma vingança. Ela conseguira o que sempre quisera, mas, no fim, não tinha mais
nada.
— Adeus, Darissa.
— Você disse que se me amasse o bastante, entenderia minhas razões! —
Ela gritou, antes que Norvina saísse do salão.
— Eu entendo suas razões e perdoo você... mas você, Darissa, vai se
perdoar algum dia?
Com isso, Norvina deixou o salão, indo de encontro à saída do castelo
onde encontrou Petrus esperando-a em uma pose relaxada, banhado de sangue.
— Parece que nossa diversão aqui não acabou. — Ele falou, enlaçando a
cintura de Norvina com os braços e tocando no rosto dela com as mãos sujas de
sangue ainda quente. — Meus homens me avisaram que um exército se
aproxima a Leste.
O coração de Norvina deu um solavanco. Era Darwish, ele encontrara o
punhal que ela deixara para trás e vinha resgatá-la. Tolo.
— Por que você é importante para eles? — Petrus indagou, desconfiado.
Norvina pensou em uma resposta rápida, Petrus não podia saber que ela se
casara com Darwish ou surtaria e daria um fim à vida dela ali mesmo.
— Você acabou de massacrar uma cidade cheia de egípcios. E devo
lembrá-lo do ano passado, quando você sequestrou o faraó e o torturou até levá-
lo à beira da loucura?
— Ah, isso... ah! — O maldito sorriso ressurgiu, como se apreciasse a
memória. — A propósito.
Norvina teve seus órgãos afundados pelo punho de Petrus. Seu corpo se
contraiu para a frente, com a dor do soco em sua barriga. Tossiu e, outra vez,
sentiu algo pulsar em seu ventre, e parecia tão vívido como se sentisse aquela
dor com ela. Petrus agarrou Norvina pelos cabelos e a obrigou a olhá-lo.
— Você me deve por me fazer pedir ajuda aos Espartanos, e agora temos
uma dívida enorme com eles.
Norvina ainda se recuperava do soco, mas sorriu. Passara metade da vida
tentando se convencer de que, apesar de ser fisicamente idêntica ao irmão, suas
almas eram diferentes. Mas, talvez, estivesse tentando se enganar, porque era tão
sádica quanto ele.
— Faz o seu tipo, você se escora em homens fortes, porque não passa de
um covarde atrás de um título.
Petrus retorceu o maxilar magro, e Norvina teve a certeza de que ele
guardaria as palavras dela para puni-la depois da pior forma possível.
— O que faremos senhor? Estamos em menor número — disse o
superintendente.
Petrus largou Norvina com brusquidão.
— Vamos voltar para Atenas. Deixe que eles nos sigam até os portões da
cidade, lá teremos mais homens. — Petrus se virou para ela só para lhe mostrar o
sorriso atroz. — Além disso, minha irmãzinha deve estar com saudade de casa.
Ele segurou nas correntes em volta dos pulsos dela e a puxou para o carro
de guerra como um cão.
A viagem durou cinco dias sem paradas, até a Grécia, e mais uma noite
até que chegassem em Atenas. Assim que a cidade surgiu por trás das grandes
montanhas cobertas de neve, Norvina se ergueu para a vislumbrar. Seus olhos se
encheram de lágrimas, nunca achou que viveria para colocar os pés ali outra vez.
Ainda era o seu berço, o lugar onde nascera, mas estava diferente. À medida que
adentravam, a mudança se tornou mais evidente, as pessoas corriam para dentro
das casas ao som do galope dos cavalos, e a quantidade de prostitutas e crianças
pedintes nas ruas era exorbitante.
— O que você fez? — Ela indagou a Petrus, horrorizada.
— Parece que o oráculo tinha razão, meu amor, um de nós era a ruína da
cidade. — Ele disse com uma cara de amargor. — É uma pena que nosso pai não
esteja aqui para ver. Ele tentou evitar tanto que acontecesse, não foi?
Norvina foi possuída por um ódio mortal e partiu para cima de Petrus. Ela
enrolou a corrente ao redor do pescoço dele e fez força nos braços. Os olhos dele
se arregalaram, sofrendo para puxar ar pela garganta que era esmagada pela
corrente. Norvina assistiu com deleite enquanto o rosto de Petrus se avermelhava
e inchava, e a vida deixava o corpo inútil dele.
Quase no fim ela foi atingida na cabeça por algo forte e caiu sem força no
chão do carro em movimento. Norvina permaneceu ali, derrotada. Foi puxada
pelas correntes e se antecipou diante de outro soco.
— Não encoste nela! — Petrus berrou, a voz falha e a respiração sôfrega.
O soldado a soltou de imediato e os olhos vermelhos de Petrus a escalpelaram.
— Quando eu tiver o que eu quero de você, eu a farei sangrar como uma porca,
como fiz com os nossos pais!
A língua dela pesava na boca, Norvina sentiu a cabeça molhada, e sua
visão escureceu de pouco em pouco.
Quais chances Darwish tem de vencer?
Petrus criara um exército sanguinário e sedento de ódio, uma vez dentro
de Atenas, eles não conseguiriam entrar. Talvez ainda desse tempo de ela mandar
uma mensagem, pedindo que ele a deixasse para trás. Ela sempre soube que um
dia voltaria para Atenas, para sua jaula.
Norvina acordou outra vez e se viu dentro de um cômodo grande. Era
noite e fazia frio. Trocaram suas roupas e a lavaram, mas sua pele ainda cheirava
ao seu Guerreiro de Ébano. Ela moveu o pescoço e a cabeça latejou. Levou a
mão para lá, sentindo um calombo ao toque. Colocou as pernas para fora da
cama e tentou ouvir. Muito distante conseguia distinguir o som de música e
risadas. Andou até a janela e empurrou as cortinas, a cidade estava afundada em
sombras, mas conseguiu ver o Parthenon, o lugar onde os pais foram arrancados
dela. Norvina se afastou da janela e cambaleou até a porta dupla.
Dois guardas a seguraram, e Norvina foi arrastada mais uma vez até um
salão bem arrojado. As portas rangeram ao serem abertas.
Os gemidos se tornaram mais alto, e Norvina quase vomitou com a
imagem diante de si. Petrus fazia o que sabia fazer de melhor, enquanto dezenas
de pessoas nuas se esfregavam em toalhas e divãs espalhadas pelo salão, ele
sentava-se confortável no trono. Era alimentado por uvas e abanado por
penachos. Naquele mesmo lugar onde, um dia, o pai sentara-se e a colocara no
colo para lhe ensinar a história de Perséfone e Hades, Petrus era chupado por seu
amante.
Ele a viu chegar e sorriu malicioso. Norvina manteve o olhar no rosto
dele, disposta a não deixar que a intimidasse. Ela não era mais a garota assustada
que ele desfragmentara. Vendo que ela não demonstrava reação alguma, ele
segurou os cabelos do rapaz e empurrou a cabeça dele com mais força e
velocidade em seu eixo. Norvina jogou a cabeça para trás e gargalhou. Petrus
esbaforiu, frustrado e empurrou o outro homem com uma força que o fez cair
sentado.
— Eu não sinto nada! — Ele esbravejou.
— Se me der outra chance, meu senhor, eu posso agradá-lo de outra
maneira. — O rapaz implorou.
— Cornell, pelo visto continua enchendo sua boca com carne da pior
qualidade. — Norvina provocou, tentando não olhar para as pessoas que
continuavam a se mexer ao redor dela. Os gemidos pareciam vir de todos os
lugares. O cheiro era repugnante.
O homem esbelto que estava ajoelhado se virou, surpreso com a presença
de Norvina. Ele a olhou de cima a baixo.
— Ah, você voltou, Ovelhinha. — Cornell se ergueu do chão e deu uma
volta ao redor dela.
Norvina o acompanhou pela visão periférica, Cornell era o amante de
Petrus desde quando eram adolescentes, ele seria um sem-teto se os pais dela não
tivessem o abrigado e, em retribuição, ele os traiu. Fora Cornell quem abrira a
barriga de Norvina e tirara o bebê de seu ventre. Ele tomara dela o privilégio de
ser mãe.
— Continua a mesma, pelo que vejo, mas por baixo desse vestido você
deve ter uma cicatriz horrenda, não é?
Norvina cerrou os punhos, tremendo de ódio.
— Não a ofenda. — Petrus ergueu a voz, e Cornell abaixou a cabeça de
imediato. Ele pegou um cálice de alguma bebida que um servo lhe estendeu e o
bebeu, olhando para ela. — Os últimos dez anos fizeram de você uma mulher
interessante, Norvina.
Ela deu um passo à frente, e mais outro. Deu uma volta na cadeira do
trono, sentindo o frio mármore em sua palma.
— Você arrancou tudo de mim. Meus pais, minha vida e minha chance de
voltar a ser mãe.
Petrus arqueou uma sobrancelha.
— Por que você acredita nisso?
— Na noite que você deixou seu amante abrir minha barriga, ele não
retirou apenas o bebê, ele tirou também o meu útero.
Ele ficou em silêncio e, de repente, jogou a cabeça para trás em uma
gargalhada.
— Você continua ingênua, meu amor. Por que você acha que eu vasculho
esse maldito deserto atrás de você há dez anos? Por que eu sentia sua falta? —
Ele fez uma pausa, esperando que ela respondesse, mas Norvina nada disse. —
Eu jamais tiraria de você a capacidade de ser mãe, quando seu útero é a única
coisa que me mantém nesse trono.
— Mas eu vi…
Norvina levou uma mão à barriga, sentindo tudo ao mesmo tempo.
Ganhou consciência daquela parte do seu corpo que esteve ignorando há tanto
tempo.
Então… Darwish estava certo? Esse tempo todo estive enganada?
Norvina se lembrou de que não sangrava há dois meses, das ânsias e do
palpitar. Ela estava grávida. Grávida. Ao reconhecer isso, Norvina pôde sentir
vividamente o inchaço em seu ventre. Ergueu a cabeça e encontrou Petrus
olhando-a. Foi como se ele lesse a mente dela, os olhos, que eram iguais aos
dela, encheram-se de escuridão.
Norvina recuou, alarmada. Sabia do que ele era capaz e daria sua vida para
defender a cria que florescia em seu ventre.
— Você não se atreveu… — Ele foi atrapalhado pelo som de uma
trombeta não muito distante, e os dois viraram as cabeças na mesma direção.
As portas do salão foram escancaradas e um guarda disse aos berros:
— Meu senhor, eles estão aqui!
Norvina ergueu as barras do vestido e correu para a sacada que dava uma
vista de toda Atenas. Aos portões, estava o exército que cobriria uma montanha.
— Darwish… — O nome saiu da boca dela com um ar de esperança e
pavor.
— Então é esse o nome dele. — Petrus estava atrás dela, o corpo de
Norvina gelou. — Quero conhecer o homem que foi capaz de arrancar de você
tudo que eu sempre quis.
Com o olhar sanguinário, Petrus deu as costas para ela e deixou o salão em
direção aos portões da cidade.
— Leve-a de volta para o quarto e não deixe que ela saia sob nenhuma
hipótese. — Ele ordenou para Cornell que se aproximou com um sorriso
malicioso de Norvina, para obedecê-lo.
Maldito!
Enquanto era levada de volta para a prisão, Norvina percebeu que, apesar
de ter tido a ilusão de uma liberdade, nunca fora livre. Sempre fugira,
acorrentada ao medo de ser pega e arrastada para aquele inferno outra vez. Ela
fizera uma jaula para si mesma e não deixou que entrassem ali, por anos.
Assistiu enquanto outras pessoas moldavam sua vida, mas acabava ali. Por
Darwish, por ela e pela vida que crescia em seu ventre.
Não foram as crueldades de Petrus que a tornaram uma mulher forte —
Norvina sempre foi forte —, elas a ensinaram a se defender e aquele dia entraria
para a história como o dia em que a princesa Norvina, herdeira do trono de
Atenas, tornou-se uma mulher livre.
— Para o rei além da muralha, eu exijo uma conversa! — Darwish
gritou para o imenso portão.
O silêncio foi sua resposta.
Suando frio, andou de volta para o carro de guerra onde estavam seus
irmãos, seu pai, Aslan e o conselho de guerra.
— Ele não virá, temos que atacar agora!
— Acalme-se, irmão, eles virão. — Áster disse pela quarta vez, mas
quanto mais pedia calma, mais Darwish se desesperava.
Quando levaram Norvina debaixo do nariz dele, oito dias atrás, fora como
se enfiassem uma faca em seu fígado, e cada segundo que ela passava nas mãos
dos seus captores, era como se girassem essa faca.
Ela ficará bem. Ela prometeu que voltaria…
Naquele momento, Darwish entendia como ela sentia-se, não a ter ao lado
dele era o mesmo que estar preso em uma jaula sem buracos, cada vez com
menos ar.
— Esses muros são parecidos com os de Valhala, se quisermos invadir, o
ponto fraco estará nas entradas dos esgotos. — Aslan traçava a estratégia de
batalha.
Ele deixara Kamilah em Astória para dar apoio à Darwish. Tirando
Darwish e o Faraó, Aslan era o mais experiente em guerras, pois já estivera em
muitas. O faraó já não tinha mais vitalidade para combater, e Darwish não estava
em condições de pensar em estratégias. O cérebro do príncipe, que sempre
pareceu grande demais para somente ele, estava tomado por Norvina.
— Mande que cinco homens deem a volta na muralha atrás das entradas
dos esgotos. — O faraó ordenou para Ramessés, que obedeceu à ordem no
mesmo instante. Radamés olhou para o filho do meio. — Darwish, nós vamos
reavê-la.
Darwish balançou a cabeça para o pai. Sim, terei Norvina de volta. Ainda
que custe minha própria vida, não sairei daqui antes de dar a ela toda a
liberdade pela qual ela lutou com tanto afinco.
— Esses homens são os mesmos que atacaram Alexandria anos atrás, os
mesmos que fizeram o senhor de refém. — disse, parecia ser o momento
adequado para revelar isso.
Radamés ergueu as sobrancelhas.
— Norvina era a princesa que eles procuravam?
Darwish anuiu.
— Sim.
— Desde quando você sabe disso?
— Há um tempo.
Norvina não falara nada para ele, claro, tudo que Darwish teve que fazer
fora somar um mais um.
— Bem, então isso é uma questão de honra, esse homem invadiu nossas
terras, tocou no nosso faraó e roubou nossas esposas. — Áster ergueu a voz.
— Não se preocupe, eu vou matá-lo. — Darwish prometeu, frio.
Áster engoliu em seco. Darwish abdicava da promessa que fizera a si
mesmo de que nunca mais machucaria nenhum ser vivo, mas aquele homem não
era gente. Então, se fosse para ser engolido por Ammit, seria por merecer.
Um estalido alto irrompeu e as dobradiças do portão rangeram ao serem
abertas. Darwish olhou para lá e um homem saiu, montado em um cavalo. Atrás
dele vinham mais cinquenta homens com arcos, flechas e espadas. Darwish
desceu do carro de guerra e caminhou até o limite entre os dois, perto o bastante
para ver o rosto daquele homem e o que encontrou foi um rosto igual ao de sua
esposa. Os mesmos traços, cabelos e olhos, ainda assim eram muito diferentes,
esses carregavam a marca de uma abominação.
Maldito.
— Quem é o homem que tem coragem de gritar aos portões de Petrus, o
rei de Atenas, exigindo uma conversa?
Darwish deu um passo à frente.
— O príncipe Darwish, comandante da guarda egípcia e filho do faraó
Radamés.
— Muitos nomes para um simples homem. — Petrus zombou e uma
chuva de risadas veio dos atenienses.
Infeliz!
Darwish apertou com força os dentes, até doer.
— Me diga, príncipe Darwish, comandante da guarda egípcia e filho do
faraó Radamés, por que exige uma conversa?
— Eu vim barganhar.
— Eu não tenho nada a oferecer para você, egípcio.
— Você tem. Liberte Norvina, e eu te deixo com uma das mãos. —
Darwish rosnou por entre os dentes. Sentiu a mão do faraó em suas costas e
tentou se acalmar.
— Norvina? Você vem até o meu portão me exigir algo que me pertence,
rapaz? — O rosto de Petrus foi possuído pela ira. — Como ousa?
Então ela está bem…
Darwish sentiu um pouco de alívio, mas não o suficiente para conseguir
respirar.
— Ela não é sua, ela não é um objeto para pertencer a alguém. Ela é a
herdeira do trono que você usurpou.
Darwish percebeu que conseguira tocar em uma ferida sensível. Petrus se
acomodou no o cavalo, tentando manter a compostura, mas Darwish via nos
olhos dele o ódio que o engolia de dentro para fora.
— Ela contou muitas coisas a você egípcio, pelo que vejo. Acaso sabe que
ela foi a causa da morte dos pais…
— Você os matou, ela não tem nada a ver com isso.
Petrus ficou vermelho.
— Eu nasci primeiro, o trono é meu por direito!
Darwish viu que conseguia atingi-lo.
— Você tem o trono, mas tem a lealdade do povo?
Era possível ver as veias nos olhos cheios de cólera do regicida.
— É para isso que Norvina está aqui, eu tenho o trono, ela tem a lealdade!
— Você não pode forçá-la a ficar, ela deve escolher. Assim como ela
escolheu se casar comigo.
Outra chuva de risadas inundou o ambiente, inclusive a do próprio
regicida.
— Isso é interessante, como ela pode ser casada com você, se é casada
comigo?
Darwish foi arrebatado por uma torrente de calafrios da cabeça aos pés.
— Isso é impossível, vocês são irmãos.
Petrus mostrou os dentes tortos em um sorriso ignóbil. Ele se divertia com
o espanto de Darwish.
— Isso ela não contou, não é? Que eu, o irmão dela, a fodi de todas as
formas que quis e a engravidei sucessivas vezes. Ela não contou que é podre por
dentro?
Darwish enxergou tudo vermelho. Antes que ele percebesse, estava com
um arco e flecha na mão e o mirava bem na cabeça de Petrus.
Seu demônio! Ser abominável!
Ouviu alguém berrando seu nome, mas não se importou, disparou, ansioso
para ver a cabeça de Petrus se partir ao meio, mas foi puxado para o lado e a
flecha passou raspando na bochecha do regicida.
Petrus levou uma mão ao rosto e tocou no sangue fresco que escorria de
sua bochecha. O mesmo ódio que possuía Darwish tomou conta do regicida e
Petrus ergueu a espada.
— É hoje que você morre! — bradou.
E o mundo explodiu em sangue.
— Você tem que me deixar ir, Cornell. — Norvina disse, enquanto era
arrastada para o quarto.
— Se eu te deixar ir, Petrus vai me matar. Agora pare de se debater ou vou
desmaiá-la para levá-la sem esforços.
Norvina ouviu gritos fortes virem do Leste e cerca de trinta homens
passaram correndo por eles. Ela soube que a batalha começara. Não podia ficar
de mãos atada, esperando que os homens decidissem o seu futuro.
— Pense. Pense comigo. Petrus nunca vai assumir você como cônjuge.
Os dedos de Cornell apertaram a carne do braço dela até começar a doer.
— Você não entende, ele é obcecado por você! Ele nunca vai deixar de te
procurar e vai deixar uma pilha de corpos no caminho se for necessário. Você já
não matou gente demais?
Norvina desconfiava disso, significava que apesar de ela ter vindo a vida
junto de Petrus, ele teria que morrer para ela viver.
— Cornell, se me deixar ir, eu posso libertar você.
Cornell parou de andar e jogou Norvina contra a parede, a cabeça
machucada dela bateu outra vez, deixando-a tonta.
— Ovelhinha, você acha mesmo que estou aqui contra a minha vontade?
— As mãos de Norvina tocaram em um objeto cilíndrico, devagar, ela o pegou.
— Eu amo o seu irmão, e vou fazer qualquer coisa para vê-lo feliz, inclusive
deixar que ele foda sua bunda no lugar da minha para conseguir um herdeiro.
Norvina deu um grito estridente e ergueu o objeto em suas mãos com força
para conseguir velocidade ao descê-lo na cabeça de Cornell. O atiçador de
lareira fez o homem desmaiar.
Norvina o olhou, caído no chão.
— Eu não sou uma ovelha, seu desgraçado, sou um lobo.
Ela correu para a sacada e mediu a altura até o chão, estava no segundo
andar do palácio. Jogou a perna para fora da balaustrada e logo depois a outra,
movendo-se de pouco em pouco até a lateral, onde conseguiu se apoiar nos
relevos da parede para descer. A um metro do chão, deslizou e caiu de costas.
Levou uma mão à barriga, rezando para que o bebê estivesse bem.
— Seja forte — disse para ele e correu sem olhar para trás.
Norvina foi para o mesmo lugar por onde escapara da primeira vez, uma
saída de esgoto ao Norte da cidade. Entrou no buraco estreito e se jogou na água
imunda. Nadou até o outro lado e se apoiou na mureta para se erguer, mas
alguém a segurou e a puxou. Ela começou a se debater.
— Me solte, seu rato!
— Norvina, sou eu, Ramessés.
Ela quase morreu de alívio e se jogou nos braços de Ramessés
— Como é bom ver o seu rosto. — Ela disse, sem ar.
— Onde está Darissa?
Norvina abaixou a cabeça para retirar a sujeira da roupa molhada. O
príncipe segurou no queixo dela.
— Norvina, onde ela está?
— Onde estão os outros?
— Na entrada da cidade.
— Me leve até eles — pediu e sentiu uma dor em seu coração pelo olhar
que Ramessés lhe deu, ele não fazia nem ideia.
— Venha comigo.
Não demorou para Norvina subir no carro de guerra onde estava o faraó, o
rei da Pérsia e Áster. Uma batalha violenta seguia-se nos portões de Atenas, não
dava para saber ainda quem vencia, mas os cadáveres cresciam em número.
— Norvina! — Áster gritou ao vê-la. — Pela glória de Rá, você está bem.
— Onde está Darwish? — Ela quis saber.
Eles se entreolharam, desconfiados. Norvina se virou para o faraó.
— Onde está Darwish? — Repetiu a pergunta.
Radamés ergueu o dedo e apontou, Norvina o seguiu e puxou ar para os
pulmões. Eles estavam nas bordas do furacão e, no meio dele, Darwish duelava
com Petrus e mais dez homens. Norvina levou uma mão à boca, tinha que fazer
alguma coisa, Petrus não jogava com justiça. Ela era a única que conhecia seus
truques, não deixaria que Darwish morresse no lugar dela, seria pior do que a
prisão.
Rápida, saiu do carro de guerra, desviando-se dos braços de todos que
tentaram agarrá-la para mantê-la segura com eles. Deixou-os para trás, gritando
pelo seu nome. Norvina roubou uma espada da mão de um homem desfalecido
no chão e tomou a frente da espada de Petrus um instante antes dela acertar a
perna de Darwish. O braço de Darwish envolveu a barriga dela e ele a apertou
com tanta força contra si mesmo que ela gemeu de dor.
— Norvina, você está aqui. — Os olhos do seu amado príncipe se
encheram de lágrimas por vê-la, ele abaixou a espada e a segurou pela cintura.
— Me desculpe…
— Eu disse que voltaria. — Ela falou, sentindo seu peito transbordar com
um monte de palavras que tinha a dizer a ele. — Não baixe sua espada agora.
Ela bloqueou o avanço de um soldado grego e o choque das espadas fez
Darwish despertar, ele voltou a se posicionar.
— Que comovente.
Norvina se virou para Petrus, empunhando a espada com firmeza.
— Você vai pagar por tudo que me fez. — Ela jurou.
— Pense melhor, meu amor, nós fomos ensinados a odiar um ao outro
desde que nascemos, mas não somos opostos, você é a minha metade.
— Você, Petrus, foi o único que me ensinou a odiá-lo! — Os gritos dos
homens e das espadas se chocando eram sobressalentes, mas a voz de Norvina
foi ouvida muito além.
— Eu vou matar esse homem que está com as mãos sobre você, nós
vamos voltar para dentro e depois vou matar o bastardo na sua barriga.
Norvina investiu contra ele. Apesar de serem dois contra um, Petrus era
exímio com a espada, ele bloqueava os golpes e investia de volta. Norvina sentia
o corpo exausto, e ele percebeu. Ela levou uma mão à barriga, Petrus já tirara
pessoas demais dela. Se ele não jogava limpo, ela também não o faria. Norvina
chutou um punhado de terra no rosto do irmão que, ao se esquivar, tropeçou em
um corpo no chão. Nesse instante Darwish separou a mão do regicida de seu
corpo, com a espada.
Petrus caiu no chão berrando de dor e vomitando, e Norvina esmagou a
garganta dele com o pé.
— Darwish, o meu punhal! — Ela gritou e o aparou no ar.
Petrus se debatia espirrando sangue sobre ela, dessa vez ele não tinha
ninguém para salvá-lo.
Norvina se abaixou sobre ele, olhando nos olhos que eram iguais aos seus
uma última vez.
— Você nunca mais vai tocar em mim — sussurrou para ele entre dentes e
enfiou o punhal no coração de Petrus. Continuou a enfiá-lo até o cabo. Até a sua
vida imunda deixar de existir.
Norvina sentiu que desvaneceria e as mãos fortes de Darwish a seguraram,
tirando-a de cima do cadáver do irmão. O sol se abriu sobre a cabeça dela pela
primeira vez na vida. Estava segura. Estava livre. Ao ver que o rei tirano caíra,
os outros homens se renderam, largaram as lanças e espadas. Petrus não tinha a
lealdade do povo, tinha o medo.
Darwish a carregou nos braços para bem longe do cheiro de sangue e
morte.
— Acabou, minha Raposinha, agora você é uma mulher livre. — Ele
sorria, mas seus olhos estavam inundados de lágrimas.
— Você estava certo, eu estou grávida.
Darwish não foi capaz de reprimir um riso de emoção e colou a testa na
dela.
— Casada comigo, você verá que é raro que eu não esteja certo.
Norvina decidiu passar mais um tempo no palácio de Atenas. Ela sentia
que era sua obrigação colocar a cidade em ordem outra vez antes de voltar para o
Egito junto de sua família. O povo estava em festa com a morte do regicida, e os
ventos traziam a promessa de uma era próspera, sem tirania.
Deslizou a mão pelo mármore bem polido do trono.
— Você tem certeza de que não quer se sentar aí? — Darwish perguntou,
fazendo-a se virar para a entrada da sala, onde ele estava. — Combina com você,
e o povo espera que você o assuma. Eles a chamam de “A Justiceira do
Alvorecer”.
Norvina balançou a cabeça. Sim, sentia-se tentada pelos privilégios que o
trono traria, se ela o aceitasse, nunca mais ninguém ameaçaria sua vida e a de
seu bebê, seria a mulher mais poderosa da Grécia. Era isso que seu pai queria
para ela. Mas com o poder, Norvina também ganharia responsabilidades que não
queria. Nem mesmo quando era jovem desejou sentar-se naquela cadeira. Ela
tirara tudo que ela mais amava, por muitos anos. O trono a manteve prisioneira,
e Norvina não passaria os próximos anos de sua vida presa a ele.
Ela passara os últimos dois dias pensando em como faria a escolha do
próximo governante e, por sugestão de Darwish, decidiu que era uma escolha
que o povo deveria fazer. Parecia uma boa ideia, um governante escolhido pelo
povo trabalharia para o povo e não para si mesmo.
— Eu tenho certeza.
Os braços de Darwish a rodearam, e ela suspirou, contente. Aquele era o
único lugar onde ela queria estar.
— Se quiser, nós podemos morar aqui. Sei que você ama esse lugar. Vai
ser um sacrifício vestir roupas mais longas, mas aqui é muito frio.
Ele estremeceu, e ela sorriu.
— Seria uma lástima já que seu corpo é uma ótima visão. — Norvina
moveu o rosto para olhar nos olhos dele. — Você daria adeus à sua família para
viver aqui comigo?
— Minha família sempre vai estar lá para mim, agora eu preciso construir
minha própria família com você.
Norvina o abraçou com toda a força que tinha, amava-o tanto que não
seria capaz de pedir para ele ir para longe dos irmãos, e ela também se apegara a
eles.
— Eu não considero mais este lugar meu lar.
Norvina aceitou a carícia da boca dele de bom grado em sua testa.
— Meu pai mandou nossos homens de volta para Astória. Eles foram
recompensados com riquezas por toda a vida. E agora ele exige que você se
encontre com ele e o restante dos representantes em uma sala.
Norvina deu a mão para Darwish, temerosa, e ele a levou para a grande
sala de astronomia onde o faraó se reunia com Áster, Aslan, alguns conselheiros
e Ramessés. O príncipe mais novo estava muito calado desde o fim da batalha.
— Sei que nesse momento tudo que deve querer é descansar alteza, mas é
necessário que nos diga quem nos traiu. — Radamés pediu, calmo.
Norvina olhou para Ramessés, sentindo muito pela dor que ela lhe
causaria.
— Darissa fez um acordo com meu irmão, se ele a ajudasse a conquistar
de volta o castelo de sua família, ela me entregaria a ele.
— Não faz sentido, Darissa não teria como sobreviver sozinha em um
castelo tão distante. — Aslan falou.
— Ela descobriu em um manuscrito que existe uma câmara subterrânea no
Forte dos Corvos que ninguém conseguira penetrar, cheia de ouro e joias. O anel
que ela usa era a chave.
Norvina olhou de relance para Ramessés, que permanecia em silêncio
encarando o chão. Uma postura combatente e sombria.
— A caminho para cá meu irmão cumpriu a parte dele no trato. Darissa
permitiu que ele matasse cada um dos homens e mulheres que moravam na
cidade.
— Isso é mentira. — Todas as cabeças se voltaram para Ramessés. —
Essa pessoa que descreve não é Darissa. — Ele ergueu o rosto, e Norvina viu o
tamanho do sofrimento que passava por ouvir aquelas palavras. — Ela é uma
mulher doce, jamais faria mal a um ser vivo.
— Se você não quer acreditar, vá até Meshed e a veja sentada em um trono
de cadáveres.
— Se o que diz é verdade, ela deve ser julgada como traidora — disse um
dos conselheiros, e o restante concordou.
— Esperem, eu não duvido da sua palavra alteza, mas essa pessoa que
descreve não parece nada com a mulher que eu vi crescer. Talvez seja mais
prudente ouvir da própria boca de Darissa. — Aslan se aliou a Ramessés.
— Se não restou ninguém na cidade, quer dizer que ela está sozinha. Se
vão pegá-la, esse é o momento. — Áster aconselhou.
— Nós temos que ir. — Ramessés deu um passo à frente, virando-se para
o faraó, ansioso. — Eu preciso… preciso…
Radamés tocou nos ombros do filho para acalmá-lo.
— Nós iremos.
Sete dias depois, a cidade de Atenas tinha um novo governante eleito pela
maioria do povo, e Norvina podia, por fim, dar adeus, sentindo que não deixaria
nada para trás. Na primeira vez que partiu, tentou abandonar a jovem princesa
que acreditava no amor e na humanidade, para que não fosse magoada outra vez.
Naquele momento, fez questão de levá-la consigo.
Aquela princesa sofrera muito, fora dilacerada e machucada, inclusive
pela própria Norvina ao ignorar seus sentimentos, mas ainda existia dentro dela,
resiliente. Levou consigo também a coroa de sua mãe e o anel de rubi de seu pai,
pretendia esquecer de todo o resto, mas não dos dois.
Foram cinco dias de viagem até cruzarem o golfo pérsico e mais dois até
Meshed. Como estavam na presença do rei da Pérsia, a viagem se tornou mais
fácil. Não demorou para cruzarem os portões de Meshed. De longe era possível
sentir a podridão de sangue e morte que exalava da cidade. Estava tão silenciosa
quanto um túmulo. E era isso que Meshed era, um grande túmulo a céu aberto.
Os famosos corvos da cidade já se aglomeravam nos telhados e nas ruas, bicando
as carcaças mortas.
Os carros de guerra pararam diante das portas do palácio, e Darissa surgiu
na grande sacada. A postura digna de uma rainha tirana.
— Perdoem-me por não os receber com a mesma cordialidade que me
receberam em sua casa, mas, como podem ver, ainda não estou em condições de
ter visitas. — Ela disse, altiva.
Ramessés pulou do carro para o chão e deu vários passos adiante.
— Darissa, desça até aqui.
Ela não se dignou a olhá-lo.
— Não me diga o que fazer.
— Você não está em vantagem, se não descer, subiremos e a forçaremos a
descer — disse Darwish, ele ainda estava furioso pelo que Darissa fizera a
Norvina. Pensar que, se algo tivesse dado errado, eles nunca mais poderiam se
ver, era apavorante.
Darissa levantou um grande arco e flecha pela sacada e posicionou uma
flecha, mirando-a para eles.
— Eu tenho defeitos também, Darwish, mas não faço questão de esconder
nenhum deles. Eu sou a imperatriz Darissa de Meshed por direito e honro
minhas promessas!
— Darissa, deixe de falar besteiras! Você não é assim. — Ramessés
bradou, perdendo a compostura.
Darissa enfim moveu os olhos para o príncipe, e eles vacilaram.
— Não dê nenhum passo à frente. — Ela cuspiu as palavras.
— Você não atiraria em mim. — Ramessés arfou, movendo-se para a
entrada do castelo. No instante seguinte ele arquejava no chão, com uma flecha
atravessada em seu joelho.
Áster e Darwish correram para ajudar ao irmão de imediato.
— Quem é você? — Aslan indagou, perplexo.
— Vocês não me conhecem. — Darissa disse, com um sorriso triunfal,
indiferente aos gritos de dor de Ramessés.
— Você disse que me amava. Isso era mentira também? — Ramessés
grasnou, segurando a flecha que, se fosse movida, faria o sangue dele jorrar.
— Sejamos sinceros, você jamais seria o bastante para mim.
— Eu me casei com você!
Todos ficaram escandalizados com a revelação.
— Eu precisava de você para conseguir me tornar escriba, uma pessoa
normal levaria anos para conseguir, e eu fiz o que era necessário para estar aqui
hoje. — Darissa foi impiedosa. Suas palavras foram como outra flecha no
coração do príncipe.
A dor devia ser horrível, Ramessés, devagar, arrancou a flecha do joelho e
se ergueu. Tentou andar, mas a perna falhou e ele voltou a cair. Áster tentou
ajudá-lo a ficar de pé, mas Ramessés empurrou o irmão e voltou a tentar, era
algo humilhante e vergonhoso de se presenciar. Norvina pôde ver o exato
momento em que o jovem rapaz passou por uma transformação, quando ele
ergueu a cabeça pela quinta vez ao tentar se sustentar sobre a perna ferida, já não
era mais o Ramessés que ela conhecia. Um tipo de ódio temeroso que fazia os
olhos castanho-avermelhado do príncipe queimarem como as chamas do tártaro.
— Matem-na, matem-na agora! — gritou, apontando para Darissa como
um louco.
O faraó deu um passo à frente.
— Ramessés…
Vendo que ninguém faria nada, Ramessés gritou:
— Darissa, por traição à coroa, eu a condeno a morte!
Darissa permaneceu onde estava, olhava para o príncipe louco com a boca
entreaberta. Norvina se perguntava se ela enxergava a dimensão do estrago que
fizera na própria vida.
— Vocês não podem tocar em mim. Segundo a lei do Egito, não podem
matar uma mulher que carrega um herdeiro do trono na barriga.
Darissa afastou as faixas da frente do vestido e exibiu a barriga. Ainda era
pequena, mas era possível ver a elevação em seu ventre. Nem mesmo Ramessés
esperava por isso, ele encarou a barriga da mulher, pétreo.
Ele se moveu, indiferente ao sangue que jorrava de sua perna em cascatas.
A dor devia ser insuportável e ainda assim parecia ser isso que o impulsionava
para a frente. A dor e o ódio. Norvina viu que Darissa esperava sem respirar por
uma reação dele.
— Eu amaldiçoo sua existência, amaldiçoo essa criança em seu ventre.
Você nunca mais pisará no mesmo solo que eu, eu a condeno ao exílio até que
um de nós dois morra. — Darissa soltou o ar como se tivesse recebido uma
pancada, mas se manteve altiva e orgulhosa.
A imperatriz deu as costas e andou para dentro do palácio. Aquele destino
era pior do que a própria morte, e Norvina esperava que Darissa não demorasse
demais para percebê-lo. Ramessés se virou para os irmãos, seus olhos se
enchiam de lágrimas:
— Me tirem daqui.
Eles voltaram para os carros de guerra e colocaram os cavalos em
movimento para deixarem a cidade. Antes de cruzar os portões, Norvina olhou
para a torre, e seu olhar se encontrou com o de Darissa, ela olhara para trás.
Os dias se passaram apressados, Norvina buscou aproveitar cada um
deles com o devido merecimento. Passara anos de sua vida apenas existindo e
estava ansiosa para viver. Sua barriga enfim aparecera. As feiticeiras do palácio
descobriram que ela estava grávida há algum tempo, mas, como era muito
musculosa, a barriga não aparentava.
Ela ainda tinha medo de que pudesse perder o bebê. Não podia ignorar o
fato de que nenhuma das gestações anteriores foi para a frente. Por mais que se
sentisse mal por admitir, Norvina nunca sentiu-se como uma mãe de verdade.
Talvez seus bebês nascessem defeituosos por serem fruto da maldade de Petrus,
no entanto, aquele bebê em sua barriga era filho dela e de Darwish, e amor só
podia gerar amor. Não existiria na terra criança mais amada do que aquela, por
isso Norvina sabia que aquele bebê seria perfeito.
Ela era a única com receios, Darwish agia com a maior tranquilidade, o
que a irritava, mas talvez, se não fosse assim, ela não o amasse tanto.
— Estou perdendo a rédea com aqueles homens… — disse Darwish,
entrando no quarto como uma tempestade. — Acho que vou ter que colocar você
na guarda de novo, quando você estava lá eles ficavam apavorados e não me
questionavam.
Ele começou a remover as roupas sem olhar para a cama.
— Acho que eles não teriam tanto medo de mim se me vissem agora. —
Ela falou, atraindo a atenção do príncipe. As pupilas dos olhos de Darwish se
expandiram, e suas narinas dilataram ao vê-la nua, amarrada às cordas na cama,
mas ela o viu perder o raciocínio ao avistar a coleira ao redor do pescoço dela.
— Você a encontrou. — A voz dele soava grossa e perigosa, um calafrio
retorceu as vísceras dela.
— Já tem algum tempo, eu estava esperando que você me mostrasse, mas
como esse dia parecia que nunca chegaria, tomei uma atitude.
Darwish esticou seus lábios para o lado em um sorriso malvado e ela
tragou saliva.
— Eu mandei que a fizessem alguns dias depois de voltarmos da Pérsia,
você fugia de mim e eu senti medo de que as memórias daquele dia sumissem da
minha mente, essa foi a maneira que eu achei de eternizar.
Nunca foi uma questão de posse. A coleira não era uma forma de ele
prendê-la, embora simbolizasse isso, para os dois era o oposto. Foi o começo da
liberdade, dela e dele, e por isso Norvina jamais se arrependeria de usá-la.
— Você se amarrou sozinha?
— Eu sei vários jeitos de usar a boca. — Ela o provocou e viu a garganta
de Darwish subir e descer.
O príncipe tocou na panturrilha de Norvina e subiu na cama, beijando toda
a perna dela com a língua bem molhada.
— Você está segura? — Ele indagou, sempre tão cuidadoso.
Norvina não queria pensar muito, estava ansiosa para receber a boca do
marido entre as pernas.
— Eu não tenho mais medo — prometeu.
Só ao ter certeza, Darwish a lambeu bem devagar na linha que lhe dividia
o sexo fogoso. Sua língua estava muito molhada e tensa, exercia uma pressão
deliciosa em sua carne.
Ela jogou a cabeça para trás e gemeu. A boca dele era boa demais, exceto
quando falava coisas para irritá-la. Os seios de Norvina ficaram pesados, e o
mínimo vento que tocava seus mamilos arrepiavam todo o corpo dela. Norvina
abriu mais as pernas, e as mãos de Darwish se espalmaram nas coxas dela para
conseguir mais firmeza, quase as encostando na cabeça de Norvina, dobrando-a
ao meio.
Desse modo ele ia muito fundo com a língua, fazendo-a revirar os olhos de
prazer e implorar por mais. A boca de Norvina se encostou no próprio joelho, e
ela tremeu ao ter sua carne sensível sugada. Darwish deslizou dois dedos para
dentro dela, empurrando em seu interior com força enquanto chupava seu monte
de nervos. Desejou tocar nos cabelos de Darwish e senti-los espetarem sua mão,
mas quando tentou fazê-lo, as cordas impediram seus movimentos.
Ela ganiu, e Darwish deu um sorriso perverso.
— Agora você sabe como me sinto. — Ela acertou a cabeça dele com o
pé.
— Isso é péssimo.
Ele se ergueu sobre ela e tocou nos seios de Norvina, amassando-os nas
mãos grandes.
— Eu amo a visão de você amarrada, tão devota a mim. Eu amo você. —
Norvina arqueou o quadril na direção do dele, ansiosa para receber a recompensa
por ter sido uma mulher tão generosa.
— Me preencha. — Ela pediu. Não, implorou.
Darwish se livrou das roupas com agilidade e esfregou sua ereção sobre a
vagina da esposa. Deslizou a glande por ela, molhando-a bem, e se empurrou no
interior cálido e faminto de Norvina. Ambos gemeram. Quando ele estava em
cima dela, tão profundamente enterrado que era difícil dizer onde sua virilha
terminava e a dela começava, Darwish a encarou nos olhos e sorriu.
— Oi, você — disse, pairando os lábios sorridentes sobre os dela.
Norvina piscou, assustada com a facilidade de se entregar a ele. Ao
sorriso, ao corpo.
— Oi — disse, suspirando. Tocou no rosto de Darwish e sorriu também,
de modo involuntário. Darwish a florescia.
Começaram uma brincadeira divertida com seus corpos.
Ele fez do jeito que ela gostava, entrando bem rápido para sair bem
devagar, ondulando o quadril e fazendo os seios dela chacoalharem com a
intensidade do amor deles. Darwish a segurou pela coleira e colidiu o corpo no
dela com brutalidade, obrigando Norvina a chegar ao prazer, mas ele ainda
estava bem duro dentro dela.
Darwish se removeu e se posicionou de novo no traseiro dela, Norvina o
sentiu alargando-a até o fim. Era estranho, mas bom, e de algum jeito, ela sentia
cócegas no estômago.
— Olhe para mim. — Ele ordenou, os olhos cheios de luxúria, mas
também angustiado. Norvina só gemeu uma concordância, porque tê-lo dentro
dela era bom demais para fazer qualquer outra coisa que não gemer. — Eu vou
me mover.
— Por favor.
E a cavalgada recomeçou, bruta, mas também amorosa, do jeito deles.
Darwish a puxou pela coleira, apertando levemente a garganta dela, e molhou o
polegar com saliva e fez a pressão perfeita no clitóris dela, movendo-o em
círculos até fazer as pernas de Norvina tremerem outra vez. Seus dentes
morderam a panturrilha dela, e seu corpo grande a levou para outro limite. Ele
veio com ela, depositando tudo em seu interior.
Darwish caiu para o lado, respirando com força e a ajudou a se livrar das
cordas nos pulsos. Agora Norvina entendia o porquê dele se machucar, ela fez
muita força para tocar nele e seus pulsos estavam vermelhos pela fricção com a
corda. Darwish beijou a barriga dela, no ventre, e encostou a cabeça lá como
fazia toda noite antes de dormir.
Norvina acariciou a cabeça dele e suspirou de deleite ao sentir os fios
espetando sua mão.
— Hoje totalizam vinte e oito dias que não tenho um pesadelo. — A voz
grossa dele fazia a barriga dela vibrar.
— É uma nova conquista.
Os pesadelos ainda vinham às vezes, o último o fez acordar aos gritos e
levou um tempo até que ela o acalmasse. Norvina notou que pioravam se ele
dormisse no escuro, então deixava a lareira sempre acesa e dormia bem agarrada
a ele, porque se ele se mexia ela podia sentir. Mas desde que ele passou a falar
sobre isso com ela, a se abrir sobre seus medos e expor suas fraquezas, os
intervalos entre os sonhos ruins estavam cada vez maiores o que aumentava nela
a esperança de que um dia eles sumiriam por completo. Norvina não achava que
era um bom modelo de conselheira, no entanto de alguma forma suas palavras de
conforto o ajudavam.
Darwish ergueu a cabeça e beijou o queixo dela, entregue.
— Será que um dia eles irão embora para sempre?
Ela não podia prometer isso, só podia dar a ele todo o apoio, amor
incondicional e esperar que isso fosse o suficiente para afugentar todos os medos
dele.
Os olhos dele eram tão lindos e a olhavam com tanta devoção, que
Norvina adorava se enxergar neles.
— Eu amo você, meu Guerreiro de Ébano. — Ela disse, e o ouviu suspirar
bem fundo.
— Minha Raposinha, você sabe me fazer seu leal súdito.
Norvina sorriu e arqueou uma sobrancelha.
— Francamente, você não teria vindo a mim se já não esperasse por isso.
— Eu quelo ouvir de novo a histólia da plincesa salvadola, mama.
Norvina sorriu para a garotinha bem agasalhada entre as cobertas da cama.
— Tem certeza? Eu já te contei essa história tantas vezes…
— Você semple conta algo a mais, mama. — Norvina alisou uma mecha
de cabelo da filha, era uma felicidade que a menina tivesse nascido um reflexo
do pai, os olhos azuis, a pele escura, o jeito de olhar para a mãe como quem diz
“eu te amo” e “você é louca, mulher”. Na outra cama, Nikolaos já dormia, o
garotinho era apenas um ano mais novo que Atena e gostava muito de dormir,
diferente da irmã que tinha a mente maligna do pai.
— Tá bem, você me convenceu.
A garotinha sorriu contente, e Norvina sentou-se na borda da cama. Viu
Darwish parado à porta, olhando para eles. Todas as noites ele desejava bons
sonhos para os filhos e, às vezes, Norvina tinha a sorte de encontrá-lo olhando-
os com um amor tão genuíno que ela nem se lembrava de que um dia não fora
amada.
— Há muito tempo, em uma terra próspera, uma rainha deu à luz um
casal… — Ela contou a mesma história que contara para Darwish anos atrás.
Sobre uma princesa que nascera em um reino distante e feliz, que sofrera
pela morte dos pais nas mãos de um príncipe malvado e que fora trancada em
uma torre. No tempo certo Atena descobriria que sua mãe era uma guerreira,
descobriria a verdadeira história que a levara até ali e como fora salva por si
mesma, com a ajuda de um príncipe heroico em um cavalo branco. Mas naquele
momento, tudo que a criança precisava saber era a história de uma princesa que
viveu em um mundo de fantasia. E era verdade, Norvina modificava um pouco a
história a cada dia, mas os finais…
Esses eram sempre felizes.



Começo essa nota contando um segredo: no começo de 2021 eu estava decidida
a parar de escrever a série Encanto Egípcio. Estava muito desanimada com
relação a minha escrita, não por falta de apoio das minhas leitoras, que nunca
desistiram de mim, mas porque eu sentia que não era boa o suficiente para
entregar tudo o que minha mente planejava para Zaya, Norvina, Darissa e
Kamilah.

Antes de chegar a decisão de desistir e declarar o óbito, pensei na hipótese de
escrever Princesa Perversa antes de Princesa Submissa, e nossa, ainda bem que
não fui adiante com essa ideia!
Aslan e Darissa tiveram que vir primeiro para que eu tivesse forças para dar um
final feliz para Darwish e Norvina. Eu já sabia, quando essa história ainda era só
um rascunho na minha mente, que esses dois seriam um desafio. Esses
personagens vivem dentro de mim, e eu senti no meu coração cada dor que eles
passaram através dessas páginas. Tentei fazer com que Darwish e Norvina
tocassem no coração de vocês também através das minhas palavras, espero ter
conseguido.

Veremos esses personagens novamente em 2022. Espero vocês comigo até o fim
dessa jornada. É sempre um prazer, Islay.

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[1]
— Uma mistura de galena (sulfureto natural de chumbo), enxofre e
Kohl
gordura animal que era usada como maquiagem dos olhos. Também servia para
protegê-los do clarão do sol e aliviar inflamações oculares.

[2]
Nicabe é um véu que cobre o rosto e só revela os olhos.

[3]
Kafle — é um adereço de cabeça feito em papiro usado pelos nobres e faraós.

[4]
Oskh: Era uma gola larga coberta por joias, cobrindo o peitoral, usado tanto por homens quanto por
mulheres.
[5]
Gorjal: 1. nas antigas armaduras, a parte que protegia o pescoço.
2. colar largo, ger. de prata, com pedras preciosas.

[6]
Chanti: Era uma espécie de “saia” amarrada na cintura, presa com um cinto, geralmente usada sobre
uma tanga ou com um triangulo protegendo as genitais.
Mulheres não usavam chanti, essa era uma peça de roupa exclusivamente masculina. A única mulher de
quem se tem notícia de ter usado foi a rainha Hatshepsut, que assumiu toda a vestimenta do faraó para se
afirmar como ú nica governante do Egito.

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