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Copyright © Paola Aleksandra, 2020

Todos os direitos reservados.

Preparação: Alba Marchesini Milena

Revisão: Grazi Reis

Diagramação: Tici Pontes

Imagens: Freepik/Depositphotos

Capa: Marina Ávila

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes, personagens, lugares
e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Esta obra segue as Normas da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados a autora. São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução


de qualquer parte desta obra, através de quaisquer meios - tangível ou intangível – sem o
consentimento escrito da autora.

Criado no Brasil

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184
do Código Penal.
Sumário

Querido leitor

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Epílogo

Agradecimentos

Sobre a autora

Outras Obras
Escrevi essa novela três anos atrás, quando viver da escrita parecia um sonho
inalcançável e quando minha mente perfeccionista era minha maior inimiga. Lembro de ser
assombrada, a cada nova frase digitada, pela necessidade de aceitação. Meu maior pavor era não
ser vista como uma escritora. O que é engraçado já que eu mesma não conseguia me ver como
tal.

Na época, eu não sabia que tramas imperfeitas também são capazes de aquecer corações e
vivia com medo de escrever. Não conhecia minha voz e tudo o que criava parecia raso e
imperfeito — e, exatamente por isso, eu nunca dava um fim para as histórias que começava.

Mas isso mudou com Joana e Filipe. Esses personagens, tão únicos e cativantes,
quebraram minhas amarras e me ajudaram a acreditar no sonho de escrever. Com essa novela eu
terminei uma história pela primeira vez e, seja por ser minha primeira ou pelo apelo que ela
carrega, a emoção de digitar seu ponto final sempre me acompanhará.

Depois de escrever O Roubo eu publiquei dois romances de época, Volte para Mim e
Livre para Recomeçar. Aprendi muito de lá para cá, mas nunca esqueci do pontapé inicial da
minha carreira como escritora. Por isso, e por acreditar que palavras têm poder, resolvi publicar a
história da minha pirata e do meu lorde italiano favoritos. Joana e Filipe não são perfeitos, assim
como essa novela também não é, mas são os primeiros de muitos personagens que habitam
minha mente. E tanto quanto as primeiras vezes da vida são dolorosas, elas também são intensas.

Apresento-lhes a primeira vez que realmente me aventurei no mundo da escrita. Apesar


de revisar o texto, mantive-o ao máximo semelhante com o que escrevi no começo da minha
carreira. Isso porque desejo apresentar uma parte vulnerável de mim, tanto quanto incentivá-los a
lutar por seus sonhos. Afinal, para cruzar a linha de chegada e escrever seu próprio ponto final,
antes é preciso começar.

Que essa história aqueça seu coração e, acima de tudo, lhe dê força para enfrentar as
primeiras vezes da vida.
Com carinho,

Paola Aleksandra.
Janeiro de 1858, em algum lugar do Rio Sena

Não me surpreende encontrá-lo na galeria privativa da embarcação. Desde que roubamos


a famosa Máscara Preta — uma relíquia amaldiçoada que modificou a história de gerações de
amantes infortunados — meu pai não consegue tirar os olhos do seu mais novo tesouro. Nós dois
temos consciência de que sem o outro par, a Máscara Branca, não teremos sucesso na missão que
nos foi conferida. Contudo, é quase impossível não ser seduzido por tudo o que essa única e
delicada máscara significa.

— O senhor mandou me chamar? — digo ao entrar no aposento mal iluminado e encarar


a caixa de vidro que protege nosso espólio.

Negra como o céu da mais escura tempestade, a temida máscara me afronta com altivez,
convidando-me a mergulhar em suas profundezas e desafiando-me a usá-la — como o canto de
uma sereia em noite de luar. Antes de vê-la, não conseguia entender como um objeto inanimado
foi capaz de dizimar gerações. Mas agora, com a máscara a poucos metros, sinto o chamado por
trás da beleza lustrosa do metal que a compõe e do brilho de ébano que emana dos seus
contornos.

Não pela primeira vez em meus vinte e oito anos, muitos deles marcados pela busca
desenfreada dos mais valiosos tesouros, penso em como histórias bem contadas são capazes de
atravessar gerações. Olhando para a máscara vejo a promessa de um presente de riqueza e poder,
assim como o prenúncio de um futuro marcado pela dor e pelo sofrimento. A perfeição simétrica
da joia é capaz de roubar o ar, mas são os amores ceifados pelas máscaras amaldiçoadas que
tornaram memorável a história por trás delas.

Um ano atrás fomos contratados para roubar um par de máscaras venezianas. Concebidas
para as comemorações dos primeiros festejos carnavalescos de Veneza, elas ficaram conhecidas
como máscaras enamoradas — e não por um bom o motivo. Segundo a crença popular, o par foi
criado para que dois jovens desafiassem seus pais e se casassem sem a aprovação deles. Porém,
no melhor estilo Romeu e Julieta, na última noite do carnaval eles encontraram um final trágico
para o amor que nutriam. Depois disso, o uso das máscaras foi atrelado à má sorte, contudo,
quando todos os portadores da Máscara Branca e da Máscara Preta passaram a ser castigados
pelo destino, o acaso ganhou um novo nome e as máscaras, uma reputação inestimável. Desde
então, elas são caçadas, leiloadas, herdadas e, considerando que uma delas está em nossa posse,
até mesmo roubadas.

— Chamei-a para comemorar — Robert diz com sua típica voz de capitão, exigindo
minha atenção. — Recebemos informações valiosas sobre o paradeiro da Máscara Branca. Uma
pista tão palpável que consigo nos imaginar longe do mar, usufruindo do ouro que nos garantirá
uma rotina cômoda e segura. Finalmente, minha pequena Joana, poderemos recuperar nossa
dignidade.

Dignidade? Afundo as unhas nas palmas das mãos, usando a dor momentânea para
controlar a raiva represada que ameaça me consumir. Não consigo imaginar um futuro longe do
mar. Navegar, primeiro como piratas e depois como corsários, é tudo o que somos. Meu pai, que
vem de uma distinta linhagem de piratas, viveu mais tempo nas águas do que em terra. Enquanto
eu, desde a morte de minha mãe, quinze anos atrás, decidi segui-lo e trocar a segurança de uma
vida insignificante pela liberdade que encontrei na proa do Destinazione.
Mas quem é que poderia imaginar que Napoleão III, em toda a sua glória por ter vencido
a Guerra da Crimeia ao lado da Inglaterra e do Reino da Sardenha, assinaria um tratado
extinguindo nossas profissões? Será que em algum momento o Imperador pensou no que
aconteceria com as centenas de corsários que trabalhavam para ele? Em todos aqueles que já
saquearam navios inimigos em nome da Coroa? Não, é claro que não pensou. Nenhum
governante pensa na plebe que depende dele. E agora, enquanto a paz reina no solo francês,
precisamos viver no anonimato como ladrões. Sobrevivendo dos trabalhos ilícitos que nos são
solicitados pela nobreza.

Trabalhar para a nobreza nos torna fracos. E nenhum pirata gosta de se sentir fraco.

— Se continuar mergulhada em autopiedade, logo seus pensamentos serão mais pesados


que nossas três âncoras. — Mesmo sem encará-lo, consigo sentir o sorriso zombeteiro em suas
palavras. — Devo me preocupar com seu desejo de nos afundar, filha?

— O senhor realmente consegue nos imaginar em uma rotina cômoda? — Apesar da


fúria com a qual pontuo minhas palavras, a pergunta é sincera. Meu coração é e sempre será do
mar. Mas, pelo bem da minha família, gostaria de acreditar que somos capazes de deixar o
passado para trás. — Não serei estúpida ao dizer que prefiro lutar contra meu o Imperador para
impor nossa vontade de voltar dois anos atrás, antes do acordo ser assinado em termos tão pouco
favoráveis. Mas vivo nesse navio desde os quinze anos, pai. E o senhor chama o Destinazione de
lar há tantas décadas que nem consegue recordar a sensação de estar em terra firme. Como é que
vamos nos estabelecer? Como vamos esquecer de todas as aventuras que a vida no mar nos
proporcionou?

Após um longo e angustiante silêncio, ele desvia o olhar da máscara e me encara. Seus
olhos em tom de cinza, como o mar depois de uma tempestade, e exatamente da mesma cor dos
meus, me encaram com um misto de pesar e amor. Ambos possuímos olhos claros e uma tez
marcada pelos anos de exposição ao sol, mas fisicamente parecemos os lados opostos de uma
mesma moeda: papai com seus cabelos loiros e nariz aquilino e eu com longas madeixas negras e
traços delicados. Contudo, em espírito, é certo que somos feitos da mesma matéria-prima: nosso
amor pela vida livre que levamos.

E é exatamente por isso que sei que ele não está conformado com a extinção da pirataria
marítima, da mesma forma que compreendo que meu pai abriria mão de qualquer coisa por mim
e por seus marujos, até mesmo do seu amado navio. Ele realmente acredita que está fazendo o
melhor para nós. No fundo, teme que ao continuar navegando possamos chamar a atenção da
Patrulha Marítima e acabar como tantos antes de nós: enforcados ou decapitados.
— Nosso destino foi traçado e tudo o que podemos fazer é nos adequar a ele, Joana —
Robert quebra o encanto exercido pela Máscara Preta e se aproxima de mim, envolvendo nossas
mãos em um gesto de conforto. — Sabe tão bem quanto eu que precisamos do dinheiro que essas
máscaras nos darão. Só assim teremos ouro suficiente para comprar uma boa propriedade, não
apenas para nós dois, mas também para todos os tripulantes que estão ao nosso serviço. Não
vamos ficar longe do mar, já conversamos sobre isso. O que precisamos é concluir essa missão e
recomeçar, talvez em um braço de rio no sul da Itália, ou até mesmo nas terras remotas da Índia.
Piratas não lamentam, minha menina. Eles roubam, conquistam e, o mais importante,
permanecem vivos.

Respiro fundo, assimilando tudo o que foi dito — assim como o que ficou subentendido:
é preferível uma vida pacata longe do mar a, obviamente, não ter uma vida.

Encarando-me com um olhar inquisitivo, provavelmente para ter certeza de que entendi o
peso de suas palavras, meu pai acaricia minhas mãos até que elas parem de tremer. São nesses
momentos, quando me olha com o peso da sabedoria conquistada através de décadas navegando
pelos mares, que recordo quem ele realmente é. Robert Lancaster: negociante reconhecido
através dos mares e terras, pirata temido e admirado, detentor de um dos sobrenomes mais
aclamados da França.

De nobre a pirata, de pirata para corsário, de defensor da nação para mercenário. Quem
imaginaria que esse seria o legado final da dinastia Lancaster?

— Sinto muito por parecer petulante, mas o senhor sabe que nunca lidei bem com
mudanças.

— E a mocinha sabe que, se dependesse de mim, viveríamos no mar até os nossos


últimos dias.

— Mocinha? Está querendo ser desafiado para um duelo? Preciso lembrá-lo que, dá
última vez que lutamos, o golpe final veio da minha espada?

Encaro-o com uma expressão de desafio — a mesma que passei anos ensaiando em frente
ao espelho, ansiando por aprender como demonstrar minha força —, mas tudo o que recebo em
resposta é uma sonora e contagiante gargalhada. Meu pai e eu sabemos que nossos duelos não
passam de brincadeira e que, em um combate real, eu não duraria um segundo diante dele.

— Precisa mesmo ser tão orgulhosa quanto sua mãe, Joana? — Com uma única e simples
frase, ele alivia toda a tensão em meus ombros. Lembrar de mamãe possui um efeito
tranquilizante. — Lembre do que ela sempre dizia: “o que está feito...
— Não pode ser desfeito — completo a frase por puro instinto.

Aquecida pela memória de minha mãe, calo o ódio, as lamentações e o medo do futuro.
Meu pai tem razão, reclamar não vai me levar a lugar algum. Carrego o sangue de homens e
mulheres valentes, que mudaram o rumo da história. Então é claro que descobrirei novos meios
de ser feliz. Um Lancaster sempre descobre.

Beijo a face de meu pai, como um agradecimento por suas palavras tranquilizantes, e
caminho até a lateral do cômodo. Enquanto ando pelo aposento, deixo que o movimento da
embarcação me abrace, que o cheiro almiscarado de água me preencha e que a luz inebriante
atravessando as pequenas janelas do convés me console. Nos parcos segundos que levo até
alcançar o carrinho de bebidas e me servir de uma dose de rum, aceito que nosso futuro está no
roubo da Máscara Branca. Essa será a nossa última missão como mercenários do mar, então farei
valer a pena.

— Afinal, qual é a pista? Para onde a máscara nos levará? — Tomo um gole da bebida e
encaro o sorriso estampado na face de meu pai. Trata-se do sorriso de quem tem um plano em
mente e que está pronto para obter sucesso.

— A correnteza está a nosso favor, Joana. Vamos desembarcar exatamente onde


queríamos, em Paris.

— E de lá seguiremos para...?

— Sem escalas, menina. A máscara está na França.

Não consigo esconder a surpresa. Passamos um longo ano procurando a Máscara Branca.
Rodamos mares, portos, países e — vez ou outra — voltamos para nossa terra natal a fim de
recomeçar a busca. Contudo, como o filho pródigo que retorna ao lar, planejamos nossos
retornos a partir dos rios parisienses com base em interesses nem um pouco profissionais.

Eis um segredo: piratas amam uma boa festa. Se houver música e rum, melhor ainda. É
por isso que costumamos atracar em Paris sempre que uma comemoração é anunciada. É um
momento bom para os negócios e para renovar os ânimos dos nossos homens. Eles esperam
ansiosamente por esses dias de festa, quando poderão beber, comer à vontade e deleitar-se com o
flerte às belas raparigas.

Tudo o que queremos são algumas raras e bem-vindas noites de bonança. Dessa vez,
planejamos apartar em Paris em plena comemoração do carnaval. Uma semana de festas, bebidas
e muito sexo.

— Talvez, se estivéssemos mais focados no trabalho e menos necessitados de alguns dias


de diversão, não tivéssemos deixado passar o fato de que a máscara esteve bem debaixo do nosso
nariz esse tempo todo — digo, por fim.

— Ora, pare de tentar ferir meus sentimentos, Joana! Acredita mesmo que eu seria tolo
ao ponto de deixar passar uma informação tão valiosa? A máscara só chegou em Paris graças ao
Sir Filipe de Bourbon. Recebi um comunicado de que ele veio da Itália para conhecer sua futura
esposa, a filha de um lorde francês abastado. E junto com seu séquito, trouxe a famosa Máscara
Branca. Antes desse boato, todos davam o objeto como perdido, mas o tolo apaixonado resolveu
exibi-la em uma de suas recentes festas de noivado ao prometê-la como presente de casamento à
sua bela noiva.

— Apaixonado? Mas quem em sã consciência presentearia sua amada com um objeto


amaldiçoado?

Em minhas pesquisas sobre as máscaras também descobri que, juntas — Preto e Branco,
Yin e Yang, Início e Fim —, as máscaras trazem aos seus amantes a promessa de um final feliz.
Enquanto, separadas, só geram desgraça aos que ousam amar. Então não entendo por qual
motivo um homem apaixonado escolheria exibir a maldita máscara em sua festa de noivado.
Talvez ele acredite que seu sangue nobre cessará a maldição ou, na melhor das hipóteses, não
conhece a maldição que agoura o objeto. Mas algo me diz que o sir, assim como a maioria dos
nobres que conheço, é apenas mais um estúpido ostentador. Aposto que, por possuir um objeto
magnífico e valioso, Filipe Bourbon acredita ser invencível.

— Imagino que nossa função seja roubar a Máscara Branca antes do casamento do Sir
Filipe, certo? — pergunto ao caminhar pelo aposento com uma nova dose de rum nas mãos.
Andar em círculo sempre me ajuda a desanuviar os pensamentos. — Já sabemos os próximos
eventos nos quais ele e a Máscara Branca estarão? Não me diga que precisarei invadir um
casamento!

— Não chegaremos a tanto, menina. Estou certo de que a próxima exibição da máscara
será no Baile da Ópera. Segundo as más línguas, a noiva do Sir não participará das celebrações
desse ano, preferindo permanecer no campo com a mãe. — Papai segue meus passos e serve sua
própria dose de rum, piscando com cumplicidade ao verter o líquido todo de uma única vez. —
Imagino que Filipe aproveitará ao máximo suas últimas semanas como solteiro, esbaldando-se
nos seios das grandes festas de Carnaval.

Ah, sim. Sei quais seios ele aproveitará.

Rio e, mais uma vez, cravo meu olhar sobre a Máscara Preta. Se seu par for tão
deslumbrante quanto imagino, tenho certeza de que um homem vaidoso e exibicionista adorará o
prazer de desfilá-la pelos bailes de Carnaval — não sei a quem eu quero enganar, eu mesma
adoraria a oportunidade de usá-la. Então seja Sir Filipe Bourbon um egocêntrico ou não, algo me
diz que ele não resistirá à chance de usar a Máscara Branca no maior e mais famoso baile de
máscaras de Paris.

— Dizem que o Sir é apreciador da beleza — papai se aproxima e coloca as mãos em


meus ombros, incitando-me a encará-lo —, por isso, e porque foi exatamente assim que me senti
ao colocar meus olhos em sua mãe, tenho certeza de que ele ficará hipnotizado por seus
encantos. Basta um olhar e ele esquecerá da noiva, das promessas feitas e até mesmo de seu
próprio nome. Sinto que a máscara lhe será oferecida de bandeja, Joana. Então não roubaremos
na calada da noite e muito menos usaremos força ou chantagem. Aproveitaremos o Baile da
Ópera e o anonimato criado por milhares de pessoas fantasiadas para roubar o que já nos
pertence.

— Propõe que eu o seduza? Que o faça confiar em mim, que o atraia com a minha beleza
e então roube a máscara em seu primeiro momento de fraqueza? — respondo com um sorriso nos
lábios.

É claro que já fiz isso antes, sou perita na arte de atrair o inimigo. Ao longo dos anos
descobri que amo um bom desafio, principalmente quando envolve a oportunidade de deixar um
nobre de joelhos.

Mentir é fácil, assim como enganar e tentar um homem. Mas o que me atrai é o momento
do roubo, o instante exato no qual a vítima percebe que foi enganada por seus olhos, que confiou
na pessoa errada. Cansei de usar a aparência ao meu favor. Ser mulher, em meio a tantos piratas,
faz qualquer garota descobrir como transformar sua beleza em uma vantagem. Além do mais,
reconforta-me saber que uso essa artimanha para vencer a patética ideia de que mulheres não são
nada mais do que corpos quentes, macios e bonitos. Assim como Anne Bonny, a pirata mais
aclamada da Irlanda, sou bem mais do que enxergam.

Sou filha de meu pai, criada nos limites de um navio, incitada a viajar pelos mares e a
desvendar os mistérios do mundo. Sou inteligente, rápida com a espada, e habilidosa na arte da
persuasão. Se os homens que me enfrentaram ao menos houvessem tentado enxergar meu
espírito, se tivessem visto mais do que minha aparência dócil e frágil, com certeza eles ainda
estariam vivos. De fato, tolo é o nome dado para todos aqueles que não acreditam na força de
uma mulher.

— Está disposta a roubá-lo, menina? Essa será nossa última missão, a porta de acesso
para um novo futuro. — Seus olhos brilham de antecipação, imagino que da mesma maneira que
os meus.

Ah, papai sabe muito bem como me convencer a entrar de cabeça em um de seus planos.

— Não vejo a hora de ter a Máscara Branca em minhas mãos, pai. Tenho certeza de que
depois desse carnaval, Filipe nunca mais esquecerá da pirata que roubou seu bem mais valioso.
Fevereiro de 1858, Paris

[1]

Atracamos em Paris dez dias antes do início das festividades de Carnaval, ainda assim, já
consigo sentir a cidade pulsar com a típica energia que conduz a celebração. As ruas estão mais
movimentadas do que o comum e, para qualquer direção que eu olhe, vejo pessoas vestidas com
luxo exagerado, casais com os braços enlaçados rindo de forma nada discreta e crianças correndo
com as mãos lotadas de doces.

Em dias normais não acho a capital francesa charmosa — a França industrial tardou a se
fortalecer e a população, que pouco tempo atrás sofreu com a desigualdade e a miséria, deixou de
investir força e dinheiro na cidade. Mas agora, superando as adversidades, Paris voltou a pulsar
vida e a esbanjar uma beleza que conquista até os corações mais descrentes. Ao menos, o meu
coração foi completamente arrebatado pela luminosidade da cidade. O que me surpreende, já que
não me sentia assim desde meus anos de menina, quando explorava os arredores com minha
mãe.
Atravesso a rua Saint-Jacques, atentando-me ao brilho fraco da luz artificial que emana
dos restaurantes e das casas de chá, ao cheiro açucarado que atravessa as janelas das padarias e
domina a calçada, as flores coloridas que decoram os canteiros, e as vozes que emanam do
mercado ao ar livre ao redor do rio Sena. Admiro a paisagem como alguém que vê, não pela
primeira vez, uma obra de arte.

Nesse instante, sinto-me mais francesa do que nunca.

Talvez, quando finalmente estivermos em posse da recompensa prometida em troca das


Máscaras Branca e Preta, eu possa passar um período em Paris. Algo me diz que não será tão
difícil me acostumar com a rotina da cidade.

— Minha cara senhorita... — Um jovem trajando vestes espalhafatosas, decoradas por


dezenas de losangos brancos e pretos, surge repentinamente no meu caminho. Dançando ao meu
redor de forma cômica e tentando tocar meu cabelo, ele me encara com um sorriso divertido. —
Tão bela és tu! Será minha Colombina?

Fico sem saber o que fazer, dividida entre afastá-lo e entrar na brincadeira. Fitando-o com
atenção, percebo que decidiu seguir as tradições carnavalescas de Veneza e vestir-se de
Arlequim. Foi lá que o carnaval ganhou vida e que as fantasias baseadas em figuras teatrais,
assim como o uso de máscaras coloridas, tornaram-se populares. Arlequim, Pierrô e Colombina
são os amantes infortunos de uma famosa peça italiana. E, talvez por esse motivo, sejam as
fantasias mais comuns e previsíveis.

— Sinto muito, senhor. Não posso ser sua Colombina. — Giro com um floreio, fugindo
de seus passos desajeitados de dança. — Se eu fosse me vestir como um dos personagens da
Commedia dell’Arte nesse carnaval, de certo eu não seria a pobre e bela serviçal.

— Quem seria, então? — O jovem fantasiado cessa o andar cambaleante e levemente


embriagado e, com as mãos na cintura, me encara com um olhar galanteador.

— Ora, provavelmente a autora da peça. Gosto de controlar o futuro e de fazer as pessoas


dançarem conforme a minha música. — Recebo uma sonora gargalhada como resposta. E, com
um floreio das mãos, ele se despede e segue seu caminho. O gesto divertido me fez perceber o
anel de ouro em seu dedo mindinho. A peça revela que, apesar das vestes de segunda mão, a
fantasia de Arlequim esconde um nobre. E se fosse apostar, diria tratar-se de um terceiro filho ou
de um sir falido pós-revolução.

Enquanto atravesso a rua e entro no suntuoso ateliê da Madame Violla, uma das modistas
mais renomadas da França, penso que durante o carnaval é comum encontrarmos homens e
mulheres prontos a esquecerem suas linhagens e aproveitarem a liberdade de uma semana sem
regras, distinção social ou obrigações trabalhistas.

Claro que os nobres, em sua maioria, procuram bailes exclusivos — motivo pelo qual os
eventos da Companhia da Ópera são tão requisitados. Mas essas festas de elite não resumem o
verdadeiro carnaval: o baile que acontece na rua, que reúne pessoas de várias descendências e
classes sociais, que faz homens e mulheres embarcarem em um mundo de prazer e faz de conta.

Antigas gerações narram histórias de princesas, duques e herdeiros do trono que usaram o
carnaval de rua como diversão em meio às classes mais pobres; dançando e bebendo como se a
alegria do momento fosse a única coisa que importasse no final do dia. E até hoje o carnaval é o
palco perfeito para a união de opostos.

Pobre e rico, belo e feio, pirata e lady… No final, disfarçados e contagiados pelo espírito
de carnaval, quem somos é a última coisa que importa.

E é exatamente por isso que tenho passe livre para o Baile da Ópera desse ano. Meu pai
conseguiu um convite, com certeza chantageando e ameaçando alguém, e agora serei a adorável
e encantadora Lady Moreau — comum o suficiente para passar despercebida —, convidada de
honra de uma das famílias idealizadoras do evento. Terei acesso ao camarote principal e poderei
desfilar e conversar tranquilamente com todos os integrantes da elite francesa. Confesso que
estou tão animada com o roubo da Máscara Branca, quanto com o baile. Sempre gostei de
observar o comportamento humano, principalmente em noites em que homens e mulheres,
comumente presos nas garras das convenções sociais, despem-se dos limites para sentirem-se
verdadeiramente livres.

Durante o carnaval ninguém está preocupado com fatos, apenas com a diversão. Em
eventos como esse é a aparência que conta, então se eu me portar como uma dama da sociedade,
se domar meus longos cabelos, usar luvas para disfarçar os calos em minhas mãos e sorrir
sempre que puder, tenho certeza de que serei vista como a mais bela e perfeita lady. Por uma
noite, serei como um deles, vestindo uma bela e suntuosa fantasia que, em vez de me esconder,
revelará quem sou longe das máscaras impostas por uma sociedade excludente.

Essa é a magia de se fantasiar: você pode ser quem sempre desejou ser, sem se preocupar
com as consequências de suas ações.

Abro a porta do ateliê e um sino irritante ecoa. Decorado com suntuosidade, em uma
mistura de tecidos esverdeados e luzes douradas, o local resplandece luxo. Algumas jovens
costureiras passam apressadas por mim, seguindo para a área dos provadores onde mulheres
belas e esbeltas esperam com olhos ansiosos. Sigo até os fundos da loja, mantendo-me
despercebida dos olhares desatentos. Enviei um bilhete para madame Violla ontem de tarde,
combinando de encontrá-la em seu escritório.

Atravesso um mar de tecidos coloridos, máscaras brilhantes e chapéus extravagantes,


lembrando meus dias de menina. Sinto falta de minha mãe; de ouvi-la suspirar ao abraçar um
tecido recém-comprado, das músicas que cantava ao costurar suas encomendas, e do sorriso em
seu rosto ao usar-me de manequim para criar suas invenções. Ainda tenho guardado, em um baú
escondido embaixo da cama, todas as peças que ela costurou para mim. Elas não me servem
mais, mas ainda possuem o cheiro dela. E, quando preciso de colo e conforto, recorro a essas
peças; abraçando-as com a mesma intensidade que abraçava minha mãe.

— Senhorita Joana? — Sua voz aguda atravessa o mar de tecidos e afasta meus
devaneios.

— Bon jour, madame. — Faço uma leve reverência. Não preciso, mas o faço mesmo
assim. — Sinto muito por impor minha presença com tamanha urgência, mas recebi um convite
inesperado e nenhum dos meus vestidos parecem certos para a ocasião.

Se houvesse tempo, eu mesma faria minha fantasia. Não costuro tão bem quanto minha
mãe, mas ao acompanhá-la em suas longas jornadas de trabalho aprendi o suficiente para
costurar vestidos e camisões de modelagem tradicional. Contudo, para a noite do baile, sei que
preciso de roupas tão belas e suntuosas quanto a máscara que pretendo roubar. E não há ninguém
melhor do que Violla para me vestir com suntuosidade.

Eu e minha mãe acompanhamos seu trabalho há anos. Sempre que podíamos,


caminhávamos até sua loja para encarar a bela e charmosa vitrine — cada semana ela exibia um
modelo diferente e único, o que alegrava os olhos de minha mãe. Naquela época, não entendia
por que mamãe sempre levava consigo um bloco de papel para tomar notas. Mas agora sei que
ela buscava inspiração em Violla para criar seus próprios modelos; vestidos e conjuntos de caça
com cortes modernos, mas feitos com tecidos e pedras baratas o suficiente para suas clientes.

— Minha jovem, está prestando atenção ao que digo? — Madame Violla bate com o
leque em minha cabeça, guiando meu olhar para uma arara de tecidos volumosos e coloridos. —
Tenho alguns vestidos prontos que podem ser ajustados ao seu corpo em tempo. Posso mostrá-
los?

— Peço perdão, madame. Por um instante, deixei-me levar em pensamentos. Podemos ver
essas opções, pois não? Tenho certeza de que ao menos uma delas será perfeita para a ocasião.
— Ela sorri e, enlaçando meu braço no seu, nos conduz até o seu escritório, ocasionalmente
parando para mostrar um ou outro vestido. Ela pergunta o que acho das cores e dos tecidos, mas
antes que eu possa pensar no que dizer, madame vocifera respostas incoerentes que me arrancam
gargalhadas.

Segundo meu pai, as melhores pessoas são as que falam em voz alta consigo mesmas. O
que nada mais passa do que uma desculpa de marujo, já que, por passarmos boa parte dos dias
presos em um navio, precisamos aprender a conviver com a voz que ecoa em nossa mente.

— Temo que o decote ficará indecoroso. Seu busto é maior do que o esperado, mas é
carnaval, mostrar um pouco de pele não matará ninguém. Ao menos, é o que espero. Não
pretende matar ninguém, certo? Seria um desperdício de tecido. — Ela para em frente a um
manequim protegido por metros de tecido preto. Encarando-me com curiosidade, madame revela
o vestido escondido por baixo do pano e, por um segundo, rouba-me o ar. Nunca sonhei com
vestidos rodados e príncipes, mas por esse vestido, receio que até mesmo eu gostaria de viver um
sonho encantado. — O mais belo e adorável dos cines. Com esse vestido, é nisso que se
transformará na noite do baile, chérie.

Madame me olha com um sorriso caloroso enquanto me empurra até um provador. Sinto
as mãos tremerem ao tocar a peça com delicadeza, receando macular sua perfeição. Mesmo sem
prová-lo, sei que o vestido é exatamente do que preciso.

Em uma única noite, deixarei de lado as botas de couro e os culotes sem-graça,


abandonando a liberdade de movimento que tanto amo em nome do luxo e da vaidade.

Terei poucas horas para conquistar a confiança de Filipe Bourbon. Então de patinho feio
e pária de uma sociedade rodeada por regras tolas, transformar-me-ei em um majestoso cisne
branco.

Belo, mas tão falso quanto as máscaras invisíveis que a nobreza veste diariamente, seja
em noite de carnaval ou não.
Filipe

Dizer que estou incomodado é pouco. Será que esse jantar nunca chegará ao fim? Não é
que eu goste de refutar um bom vinho ou carne de qualidade — afinal, comida é sempre comida.
Mas do que adianta servirem um banquete se as companhias embrulham o estômago? Não gosto
de pensar no futuro, mas é impossível deixar de pensar que estarei ao lado dessas pessoas em
muitos outros jantares, bailes, recepções, idas à ópera… Eu deveria ser capaz de escolher com
quem cear, mas sou Filipe Bourbon e, graças ao sobrenome que carrego, perdi o direito de
definir meu futuro assim que nasci.

— Gostou do comunicado de casamento, filho? — meu futuro sogro, que parece ler
pensamentos, pergunta da outra ponta da mesa. Seu olhar afiado me desafia a contrariá-lo, mas
ambos sabemos que não o farei.
— Está perfeito! — Encaro o jornal mais uma vez, sentindo um nó na garganta. De fato,
o comunicado é perfeito: direto e, ainda assim, suntuoso com nossos nomes envoltos por
arabescos intrincadamente desenhados e impressos em letras garrafais. Exatamente o que se
espera para o casamento de um membro da nobreza. É uma pena algo tão belo ser grandioso
apenas no papel.

Ninguém mandou pedi-la em casamento, seu tolo! Minha cabeça lateja, e não pela
primeira vez desde o início da noite.

— Disse alguma coisa, Filipe? — meu futuro cunhado pergunta com um sorriso irônico
no rosto. Ele é o único, além de mim, que sabe o quanto esse casamento está me custando.

— Disse que preciso de mais vinho. — Levanto a taça para ser servido, mas só então
noto que ela ainda está cheia. Arthur ri da minha falta de atenção, mas o ignoro, vertendo o
líquido de uma só vez. — Pronto. Será que agora posso ter uma dose a mais de vinho?

— Ora, é claro que pode, meu amigo — ele interrompe meu valete e, erguendo a garrafa
de vinho na direção do pai, faz um brinde silencioso e verte uma dose da bebida direto do bico.
Acho que é por isso que nos damos tão bem, ambos possuímos uma relação amigável com
nossos pais. — Dou graças a quem inventou o álcool. Nada melhor do que uma porção certeira
de esquecimento, não é mesmo?

Ele sorri, mas seus olhos continuam nebulosos. Ignoro o olhar reprovador do meu futuro
sogro e, pegando a bebida das mãos de Arthur, tomo um longo gole. Apesar do calor
entorpecedor, o vinho faz com que eu lembre de casa. É impossível comparar o sabor
demasiadamente adocicado da bebida em minhas mãos com os excelentes vinhos que produzo na
Itália — sorte que trouxe algumas garrafas comigo. Antes mesmo de chegar em Paris eu sabia
que sofreria com a proximidade do casamento com lady Catherine.

A verdade é que minha posição social é delicada. Sou sobrinho do Duque de Maine e
filho do Marquês de Bourbon, títulos há anos manchados por filhos ilegítimos e homens
corruptos. Já senti na pele, mais de uma vez, o que é ser chamado de gatuno, imoral e, o pior de
todos entre tais títulos, degenerado. Apesar da má reputação que herdei dos meus ancestrais,
detenho o sobrenome, o dinheiro e a pose de um verdadeiro lorde. Por anos, isso foi suficiente
para manter-me longe da nobreza. Mas, quando minhas vinícolas começaram a se autossustentar
e meu vinho ficou conhecido por toda a Europa, os boatos passaram a afetar os negócios de tal
maneira que um casamento arranjado com uma lady de nome pareceu a única solução.

Ao menos é o que digo para mim mesmo quando me olho no espelho. No fundo, sei que
o casamento com a filha mais velha de Albert também supre uma necessidade obscura de apagar
os erros de meu pai. Que homem não buscaria um casamento honesto e honrado ao descobrir que
o pai, aquele que deveria ser seu maior herói, corrompeu uma jovem inocente para forçá-la ao
casamento? Na época, Richard Bourbon almejava unir-se à família do Duque de Maine, uma das
mais distintas da Inglaterra, e conseguiu seu objetivo ao manipular Beatrice, a irmã do Duque.
Vossa Graça, conhecido por ser impiedoso, em vez de vingança encontrou no marquês um
aliado. O ato de abuso criou um vínculo entre os dois monstros. E, juntos, mentindo e
manipulando todos ao redor, construíram um império. Dinheiro sujo que hoje abastece meus
cofres.

Às vezes me pego pensando na roda do destino e em suas surpresas. Graças aos boatos da
traição de minha mãe — não que a culpe por ter encontrado uma maneira de fugir das garras do
marido — nunca fui amado por meu pai; desprezo que passou a ser recíproco assim que atingi a
maioridade e finalmente entendi as atrocidades cometidas por ele. Em contrapartida, meu tio se
esforçou ao máximo para tentar ganhar minha afeição, o que só me fez odiá-lo cada dia mais.
Uma parte de mim nunca conseguiu deixar de questionar que tipo de homem eu me tornaria caso
aceitasse o afeto daquele que não lutou pela honra da própria irmã.

Para eles, um verdadeiro Bourbon deveria aceitar os erros passados e assumir com
orgulho a herança da família — no caso, jogos e apostas arriscadas, casos fora do casamento,
filhos bastardos espalhados pelo continente, e comércio ilegal de frotas de vinho. Claro que não
o fiz. Na época preferia ser chamado de impostor do que seguir os caminhos trilhados pelo
marquês. Desde então, vivo sob a certeza de que nunca venderei minha alma para conquistar a
aprovação daqueles que não a merecem.

Mas nada disso importa. Não mais. Duque e Marquês fizeram o favor de morrer em uma
excursão à Índia, deixando-me como único sucessor de todo poderio criado por eles. Eu, aquele
que eles não foram capazes de moldar e manipular, como único herdeiro de toda essa fortuna
imunda. Como posso deixar de acreditar que a justiça tarda, mas não falha?

Em vez de lamentar a podridão que gira em torno do meu nome, como último
descendente dos Bourbons, decidi ditar como serão os próximos membros da nossa casa. E meu
voto é que serão honrados. É por isso que eu preciso desse casamento, não apenas para manter o
bom nome dos meus negócios, mas para salvar o futuro dos meus descendentes.

— Mais vinho, milorde? — meu lacaio pessoal indaga com um olhar repreensivo. Ele se
inclina na mesa para retirar meu copo vazio e sussurra no meu ouvido: — Coloque um sorriso no
rosto e deixe para cair no poço da autopiedade quando estiver sozinho.

— Então preciso de algo mais forte do que vinho. — Faço o que ele diz e estampo um
sorriso no rosto para afastar possíveis olhares curiosos. Contudo, apesar de Jorge tentar esconder,
ainda consigo ver seus olhos serem tomados pela piedade. — Pare de se preocupar, meu velho.
Eu vou ficar bem.

Ele balança a cabeça em um gesto contido, para que nossa interação amigável permaneça
em segredo. É claro que meu sogro não aprovaria a presença de Jorge caso soubesse que, para
mim, ele é o mais perto de um membro da família que possuo. Foi esse velho reclamão e
intrometido que esteve ao meu lado quando mais precisei.

— Talvez uma ou duas doses do conhaque que trouxemos de viagem, pois não? Quem
sabe a bebida reavive seu apetite. Se continuar revirando a comida no prato vou chamar o
médico para verificar sua temperatura. Só pode estar doente para deixar de apreciar esse assado.

Sua voz é carregada de humor, mas o olhar preocupado permanece. Respiro fundo e me
concentro na dose de conhaque em minhas mãos. Bebo para afastar as lembranças e clarear os
pensamentos: estou aqui para cumprir um objetivo, para traçar um novo futuro e dar uma chance
de felicidade aos meus descendentes. Olho ao meu redor e observo com mais atenção o homem
na ponta da mesa. Meu futuro sogro é pomposo e arrogante, mas não é de todo mau. E, apesar de
não estar me casando por amor, desejo para os meus filhos um futuro — e um nome — que
apague os erros de seus antepassados.

Minha noiva, lady Catherine, é uma jovem bela e doce, com um bom dote e, mais
importante ainda, com o peso do nome de uma família respeitável. Nosso enlace será simples e
favorável para os dois lados; sem muitas expectativas ou exigências.

Mas então por que estou tão incomodado com essa união? Por que parece que estou
prestes a caminhar para a guilhotina?

— Está preparado para o Baile da Ópera, Filipe? Creio que esse ano o evento será ainda
mais prazeroso. M. Strauss é um excelente regente — meu futuro sogro, Albert Monfort,
questiona em uma tentativa de engatar ao menos uma conversa banal.

— Vinho e boa música em um só lugar? Ora, Monfort, claro que estou animado. Só seria
melhor caso tivéssemos a companhia de belas mulheres — digo na intenção de retomar o
controle da situação. Apesar das emoções nebulosas que me confundem, por fora eu continuo
sendo o infame Sir Bourbon. — É certo que lady Catherine não retornará do campo para as
celebrações?

Já sei a resposta, mas pergunto mesmo assim. Desde o começo do noivado vi minha
noiva três vezes, e em apenas duas dessas ocasiões consegui conversar com ela. Com o acordo
assinado era esperado mais privacidade, mas meu sogro está obstinado em manter-nos separados.
Talvez ele tenha medo de que eu desista do enlace. Ou pior, que a filha descubra que está prestes
a casar com um sapo, em vez do príncipe encantado que merece, e fuja amedrontada.

Como é que seremos marido e mulher se ao menos me recordo com exatidão da cor de
seus olhos?

— Sinto muito, filho. Catherine voltará no momento certo. Enquanto isso, não se
preocupe com companhia feminina. Faremos questão de encontrar beldades que aceitem lhe
acompanhar durante as festividades. — O pré-julgamento que recebo de meu sogro não me
espanta, tanto quanto mal reajo ao ouvi-lo ignorar meu compromisso com a sua filha. Todos os
homens dessa mesa conhecem a reputação que me precede, os boatos e lendas que giram em
torno do meu nome. Gostaria de provar o quanto estão errados em acreditar em fofocas. Mas se
tem algo que aprendi sendo um Bourbon é que a sociedade não gosta de lordes de moral limpa e
maculada, eles querem homens pecaminosos, sujos e desleais. Só assim terão de quem falar.

Arthur me dá um soco no ombro, talvez para lembrar-me de que, assim como eu, ele sabe
o que é carregar o peso de uma reputação pouco merecida. Olhando em meus olhos, ele levanta
sua taça mais uma vez, instigando-me a beber uma nova dose de conhaque. Já perdi as contas de
quantas tomei, mas quem é que está contando?

— Escute o que estou dizendo e aproveite o anonimato do carnaval — Albert diz após
alguns segundos de silêncio. — Desde o anúncio do noivado perdi minha privacidade e mal
posso visitar minhas amantes sem olhar para trás e me deparar com meia dúzia de homens
seguindo meus passos. Até mesmo meus companheiros de apostas estão me seguindo como cães
farejadores, na esperança de conseguirem um convite para o casamento.

Graças ao anúncio público do enlace entre o italiano degenerado e a famosa e bela lady
francesa, meu nome está na boca de todos. Os boatos estão correndo entre as ruas, espalhando
minha futilidade, meu charme e minha desonra. Meu pai ficaria orgulhoso, só que logo depois
decepcionar-se-ia ao descobrir que tudo não passa de falatório e de mentiras. Às vezes questiono
meu desejo de ter um filho, imaginando se quero mesmo fazê-lo carregar o peso de um nome
sujo, que traz com ele histórias desleais e sombrias.

Não pela primeira vez, sinto a ansiedade acelerar meus batimentos cardíacos e escurecer
meus olhos. O mundo começa a girar e sei que a dor de cabeça que me aflige não foi causada
exclusivamente pela bebida. Preciso me acalmar, parar de pensar no passado e de dar tanta
importância ao que dizem sobre mim.

Preciso de tantas coisas, mas nenhuma delas me parece alcançável.

Resolvo dar por finalizado o jantar, o apetite já se foi há tempos, assim como a vontade
de passar o carnaval preocupando-me com coisas que não sou capaz de controlar. Meu sogro tem
razão em uma coisa: devo aproveitar o anonimato desses dias de festa para repensar minhas
escolhas ou me conformar com elas.

— Por favor, se me derem licença, vou me retirar. Caso as promessas de Albert forem
reais, precisarei poupar meu vigor para tornar meu carnaval memorável. — Sorrio enquanto me
levanto, sentindo a bile crescer ao encenar o papel que esperam de mim.

Ao caminhar até meus aposentos, seguido por Jorge que engata um monólogo entediante
sobre minhas vestes para o Baile da Ópera, tiro um minuto para implorar aos céus por um sopro
de felicidade antes da queda derradeira.

Por favor, preciso de um sinal de que estou no caminho certo.

Não sei o que o futuro me reserva, mas escolho ter fé. Ao menos por um instante, decido
acreditar que amanhã será diferente, que amanhã serei capaz de eliminar os demônios do passado
que dançam em meu encalço.
— Está esplêndida, menina. — Meu pai sorri ao tocar meu cabelo. Resolvi deixá-lo solto,
prendendo apenas duas mechas finas que se encontram atrás de minha cabeça e descem em uma
delicada trança. — Está parecendo sua mãe com os cabelos arrumados dessa maneira. Uma vez a
vi com um vestido como o seu, foi no dia do nosso casamento. Naquele dia, mais do que em
todos os outros que passamos juntos, a alegria que emanava dela parecia aquecer nossa casa.

Lembro do vestido e de vê-la se aprontar. Essa é uma das poucas memórias boas que
ainda guardo comigo. Ainda assim, preciso segurar o choro. Falar de minha mãe, e recordar a dor
de perdê-la, não é fácil. Por anos ela esperou o momento certo de se casar, teimando em aceitar
as escolhas feitas pelo companheiro que passava meses no mar enfrentando os perigos de uma
vida como pirata. Fui criada em um lar rodeado de amor e, apesar de querer ver meus pais juntos,
desde menina entendi que o amor que os unia era tão único que, para vivê-lo, nenhum deles
precisou se anular. Meu pai amava minha mãe, mas também amava o mar. Já Isabel amava meu
pai tanto quanto não se imaginava vivendo em outro lugar que não fosse seu chalé em Paris. Eles
passaram anos vivendo sob um acordo respeitoso, levando uma vida de casados apesar de não o
serem no papel. Contudo, após anos separados, minha mãe decidiu que estava pronta para
construir uma nova casa e seguir meu pai em suas aventuras.

A felicidade completa finalmente estava ao nosso alcance, nos esperando, clamando para
que finalmente ficássemos juntos, sem longas separações. Mas a morte foi mais rápida e destruiu
todos esses sonhos.

Na época eu poderia ter me afogado em um poço de lamentações, mas — apesar da dor


— não fui capaz de desistir da vida. No momento mais difícil de toda a minha existência tive
uma segunda chance, a oportunidade de construir um futuro ao lado de quem amo. Todos esses
anos ao lado de meu pai, aventurando-me por oceanos inexplorados, não supriram a falta diária
que sinto de Isabel, mas me ajudaram a descobrir outros meios de ser feliz. Tive uma mãe
maravilhosa e sempre irei carregá-la comigo, seja na alma ou em minhas ações. Mas, nos últimos
anos descobri que sua presença em minha vida independe do fato de ela ter sido arrancada de
mim cedo demais. O que ficou gravado não foi a perda, mas sim sua presença terna.

— Sinto orgulho de parecer com ela. Nunca vou esquecer do amor que mamãe plantou
em nossos corações. Se não fosse por ela, nossa família já teria se perdido há anos... — Apoio a
cabeça no ombro de meu pai e, confortada por seu carinho, tiro um instante para lembrar das
canções de ninar, das histórias de conto de fadas protagonizadas por piratas, e de como ela
sempre acreditava que Robert iria voltar vivo e feliz para sua amada família.

— Sempre amarei sua mãe. Ela me deu um dos melhores presentes da minha vida.

— A oportunidade de amar e ainda ser livre? — questiono, curiosa. Sempre admirei a


entrega de minha mãe. Ela nunca esperou ou cobrou que o companheiro mudasse, muito pelo
contrário, usava seu amor para incentivá-lo a seguir o chamado do mar. Para mim, isso que é
amor: soltar e não aprisionar.

— Ora, é claro que meu maior presente é você, Joana. Sua companhia me salvou de uma
vida solitária em meio ao luto. — Ele interrompe nosso abraço e me encara com os olhos
marejados. Somos piratas com sangue nas mãos, mas isso não significa que nosso coração não
transborde amor. — Agora chega de lembrar do passado, precisamos nos concentrar no futuro.
Então trate de se apressar, pois sua carruagem lhe espera, senhorita.

Depositando um beijo em minha fronte, Robert segue para a saída do navio. Antes de
segui-lo, tiro um momento para controlar minhas emoções. Do outro lado do aposento o espelho
reflete — pelo menos no primeiro instante — a mulher que nós, últimos Lancasters, amamos
sem medida. Espanta-me ser tão parecida com a minha mãe, com os cabelos que brilham como a
escuridão, o porte esguio e alto demais para a moda parisiense, e o nariz arrebitado que já me
causou muitas encrencas. Viro de lado, observando o efeito adorável que meu pequeno giro cria
na saia do vestido, aproveitando o instante para listar as características de meu pai que vejo em
mim: a pele bronzeada e os olhos que, deveriam ser azuis, mas beiram o cinza. Sou audaciosa
como ele e esperançosa como ela. Sou fruto do amor que os uniu e, sortuda como sou, carrego o
melhor dor dois.

Escolhi esse vestido exatamente pelo efeito que ele cria em minha pele, ressaltando tudo
aquilo que sou; meus traços, sonhos e origens. A seda prata, quase branca, quando combinada
com minha pele e o tom do meu cabelo faz com que eu me sinta tão poderosa quanto a lua que
brilha na escuridão da noite. Ou, como madame Violla disse: como um cisne que ressurge em
noite de luar.

A base do modelo é simples, composta por um decote baixo que vai de ombro a ombro,
cintura marcada, e uma saia rodada que brilha conforme ando. Mas, graças aos bordados
intricados em forma de estrela e a saia de caimento rodado e fluído, a peça ganha um ar especial
e sofisticado. Sinto-me confiante e, encarando o suntuoso reflexo que vejo no espelho, afirmo:
nessa noite roubarei a Máscara Branca e garantirei o futuro daqueles que amo. Farei isso pela
senhora, mamãe.

Chegou a minha vez de lutar por minha família. Meu pai merece um final feliz em terras
que são suas e que lhe garantirão uma vida tranquila e digna. E hoje é exatamente isso que darei
a ele: um novo começo.

O cabriolé resplandece luxo e dinheiro. Com certeza meu pai pagou caro para alugá-lo,
mas os gastos são necessários quando é preciso chamar a atenção da nobreza. Quero e preciso ser
notada. E, em um baile como este, lotado de milhares de mulheres como eu, ostentar não é uma
opção, mas sim uma obrigação.

A noite está escura, mas a lua ilumina o céu e os foliões que andam e dançam pelas ruas.
Aproveito o trajeto para observar essas pessoas; algumas damas vestidas de homens e rapazinhos
em vestidos improvisados. Muitos outros, possivelmente artistas, com a previsível roupa de
dominó tão comum nos carnavais de Veneza. Mas, diferente dos festejos de que participei nos
últimos anos, as ruas estão tomadas por passistas usando vestes engraçadas, coloridas e até
mesmo sensuais. Observo com atenção um grupo de mulheres usando máscaras pretas que lhes
cobrem o rosto e trajes que, bem, não cobrem muito de seus corpos. Elas riem, dançam e
contagiam a todos com tamanha beleza. Não é apelativo vê-las alegres, mas sim inspirador. Se
quisermos, todas nós podemos ser assim, leves e livres.

O veículo para de forma abrupta, fazendo-me praguejar de preocupação com as pregas


perfeitamente passadas do meu vestido. Olho pela janela com atenção redobrada, mas vejo que
ainda estamos longe do meu destino final. A Academia Imperial da Música, onde os Bailes da
Ópera acontecem todos os anos desde que eu era uma menininha, está a vários quarteirões de
distância.

— Malcom, por que paramos? — grito para o pirata que faz as vezes de cocheiro, um dos
marujos mais velhos e experientes e uma espécie de tio para mim. Confiaria minha vida a ele
sem pensar duas vezes, mas admito que dirigir um veículo com rodas não parece ser sua
especialidade.

— Joana, quando é que aprenderá a ser paciente? Não está vendo que a maldita rua está
congestionada! — Com seu típico bom humor, Malcom cantarola uma de suas canções
preferidas, e nada apropriada para o momento, enquanto tenta controlar o cavalo inquieto. —
Pare de sonhar acordada e olhe pela janela, estamos atracados.

Ele tem razão, estava tão absorta nos foliões que não prestei atenção no trânsito. À nossa
frente, o fluxo de cavalos e carruagens é assustador. Mal consigo ver o início da fila, de tantos
veículos parados. Pelo jeito, o Baile desse ano chegará à capacidade máxima de lotação. Abro a
boca para responder, mas Malcom me interrompe com um olhar irônico:

— Você tem três opções: pode ir a pé, já que é perfeitamente saudável; pode esperar, o
que acho pouco provável levando em conta seu temperamento... — Controlo a vontade de
repreendê-lo. Como sempre, Malcom tem razão. Paciência nunca será uma das minhas
qualidades. — Ou pode levantar o traseiro desse belo assento acolchoado e ir tirar satisfação com
o tolo que está atrasando o trânsito.

O pirata bem-humorado chama minha atenção ao apontar para algumas carruagens à


nossa frente, onde um veículo luxuoso reúne uma pequena plateia. O trânsito continuará lento
com ou sem a minha intervenção, mas é melhor um caminhar vagaroso do que ficarmos parados
no mesmo lugar a noite toda.
— E então, doce lady, o que será? — Ele sorri como se já soubesse a resposta.

Claro que, se pudesse, iria ao baile andando. O problema é que, com esse vestido, não
posso me arriscar a andar mais que poucos passos — nada adiantará encontrar sir Bourbon com
os barrados sujos de lama. Preciso chamar atenção pela minha beleza e não pelo desleixo que
tanto choca a nobreza. Ainda assim, não consigo ficar parada por muito tempo, então visto a
capa que faz conjunto com o meu belo vestido e pulo do cabriolé.

Segurando o tecido das minhas vestes para que não toquem o chão, sigo três carruagens
até descobrir o real motivo de estarmos parados. É uma criança, um rapazinho na realidade. Ele
grita e chora desesperado, gesticulando freneticamente para algo embaixo da carruagem
responsável. Sinto-me incomodada com sua dor ao ver desespero sincero em seus olhos.

Em poucos minutos o garoto é rodeado por exclamações impacientes, encarado por uma
dúzia de olhares curiosos e ignorado pelos passantes desatentos que caminham pela rua lotada
como se nada estivesse acontecendo, rindo, dançando e bebendo. Além de mim, um único
homem parece preocupado com o garoto. Ele se aproxima do rapazinho com um sorriso discreto
no rosto e, ajoelhando-se para ficar da mesma altura que ele, coloca as mãos em seu ombro em
um gesto de conforto.

Noto que as vestes surradas do garoto contrastam com o ambiente e seu olhar vagueia da
carruagem luxuosa para o homem ajoelhado à sua frente. Ele parece assustado com tamanha
pompa, o que faz com que eu me aproxime dele — ao menos, é o que digo para mim mesma.
Caso contrário, teria que assumir que meu coração amoleceu ao escutar as lamúrias infantis do
pequeno.

— O que está acontecendo? — Homem e menino me encaram sobressaltados, talvez meu


tom não tenha sido doce o suficiente. Ao falar com estranhos, tendo a usar minha voz de
almirante. Então pigarreio, forçando-me a lembrar de que não estou no convés de um navio. —
Sinto muito, não queria assustá-los.

O garoto tenta afastar as lágrimas que lhe escorrem pelas faces, sujando ainda mais o
rosto marcado pela poeira. E o lorde ao seu lado — pelas roupas, com certeza um homem rico e
nobre — se levanta e faz uma mesura. Seu olhar é divertido, assim como o sorriso que tenta
esconder.

— Encantado, milady — o cumprimento é tão inesperado que não sei como respondê-lo.
Passei dias escolhendo minhas vestes e acabei esquecendo de me preparar para conversas
pomposas com lordes mais pomposos ainda. — Também ofereci minha ajuda, mas nada do que
ele diz faz sentido. Se puder entender o que aflige esse pobre garoto, juro que lhe serei
eternamente grato.

Seu bom humor afasta meu estupor. Viro-me para o garoto, que me encara com um misto
de desolação e admiração.

— Qual é o seu nome?

— Oliver, milady. — Seguro-lhe pela mão, abandonando de vez a preocupação com a


barra do vestido.

— Pois bem, Oliver. Pode me chamar de Joana. Gostaria de ajudá-lo, mas preciso que se
acalme e explique o que aconteceu. Ninguém lhe fará mal, só queremos entendê-lo. — Ele
respira fundo, aparentemente tentando abrandar os ânimos, mas ao abrir a boca solta uma
torrente de palavras, juntas e com teor de desespero, que não apresentam lógica alguma. —
Calma, uma palavra de cada vez. Olhe para mim, Oliver. E, sem pressa, me diga o que
aconteceu.

— Petter… Petter está preso. Petter é meu amigo. Único amigo. Mamãe disse para nós
não virmos, era para eu passear com ele só até a casa vizinha. Mas fui teimoso. Sou sempre
teimoso, milady. Agora Petter está preso, será que ele morreu? Ah, ele morreu...

Oliver volta a chorar e, com as mãos tremendo, gesticula para a carruagem à nossa frente.
Não sei como lidar com a sua aflição, não é como se convivesse com crianças o tempo todo,
então sigo o exemplo de meu pai e o abraço. Sempre que preciso de calma, seus braços me
confortam. E, pelo jeito, o mesmo acontece com o garotinho. Em menos de um segundo, seus
ombros param de tremer e ele rodeia minha cintura com as mãos ossudas. Seu choro permanece,
porém de uma maneira quase silenciosa. O que, na minha opinião, é quase pior do que vê-lo aos
berros.

A dor que guardamos é sempre a mais perigosa.

— Está dizendo que seu amigo foi parar embaixo da minha carruagem? Pelos céus,
Oliver! Será que o atropelamos? — O lorde me encara com um olhar preocupado. Nesse
instante, a luz da lua banha sua face por completo, permitindo que eu veja o quanto ele é belo. Os
cabelos, negros como os meus, caem em ondas suaves e incomuns, com certeza uns dois dedos
mais compridos do que o corte masculino ditado pela sociedade. Sua boca carnuda está chispada
de preocupação, assim como seu semblante. Ele detém uma charmosa ruga de desassossego em
seu cenho. Lindo é pouco para definir o rosto do homem.

— Petter é o cachorro de Oliver, senhor. E, se não estiver enganada, algo que raramente
estou, acredito que o animal tenha ficado preso em uma de suas rodas. Deve precisar de um
único homem para soltá-lo e resolver os problemas desse garotinho, não é mesmo Oliver? — O
rapazinho me encara apavorado e, antes que possa falar ou recomeçar a chorar, o abraço um
pouco mais apertado. — Não se apavore, tenho certeza de que seu cãozinho está vivo. Animais
de estimação são muito mais espertos do que pensamos.

Enquanto me abraça, o garoto encara o lorde misterioso com um misto de dúvida e


esperança.

— Um cachorro? Como não percebi isso antes! — o belo homem exclama ao chamar um
dos seus cavalariços, pedindo que o mesmo procure por Petter na base da carruagem. Enquanto
esperamos, ele me encara, pegando-me desprevenida com seus penetrantes olhos verdes. Tudo
nele exala beleza, mas de uma forma rude, com seus cabelos ondulados, seu olhar inquisidor e a
mandíbula marcada.

Com essa aparência, ele daria um ótimo pirata.

Sei que deveria ser mais discreta, mas raramente dito meu comportamento pelo que
dizem ser meu dever como mulher. É impossível ignorar que a aparência desse homem é
magnífica. Então sigo encarando-o, observando cada detalhe do seu rosto. Ele sustenta meu olhar
e, ciente de minha avaliação, resolve fazer o mesmo. Estamos jogando, e talvez
inapropriadamente flertando, mas não me importo. Não existe nada de errado em encarar um
belo par de olhos, não é mesmo?

— Aqui, milorde. Achamos o cão. Ele está bem, só havia prendido a coleira em uma das
rodas.

Oliver solta minha cintura e pula em cima do pobre cocheiro. Ele o abraça e agradece e,
ao pegar Petter em seus braços, o aperta com tanto carinho — e talvez com uma pressão maior
do que o pobre animal gostaria — que não consigo deixar de sorrir.

— Olhe, lady Joana — ele segura o cachorro na altura do meu rosto, obrigando-me a
encarar o animal —, a senhorita salvou a vida de Petter! Obrigado, sou grato, minha mãe não
brigará comigo. E Petter viverá. Olhe, ele também deseja agradecê-la.

Quando dou por mim, estou com o pequeno cachorro no colo. Ele é novo, não deve ter
mais de quatro meses, e pode ser resumido em uma bola de pelos babona e alegre — e suja
também. Meu casaco, outrora cinza como meu vestido e coberto por intrincados bordados feitos
com fios de prata, está definitivamente arruinado. Agora a peça ganhou um curioso tom de
marrom, com patinhas em sua extensão que, devo admitir, marcam o tecido de uma maneira
graciosa.
— Oliver — o misterioso lorde de olhos verdes diz —, Petter é um belo cachorro, mas
ainda não está acostumado a andar por ruas movimentadas. Na próxima vez o treine antes de
sair, pois não? E perdoe-me por não o ter visto, ficaria desolado caso tivéssemos atropelado o
pobre animal.

— O senhor me ajudou, sou grato, minha mãe também e Petter também.

Estou prestes a interromper o discurso do garoto e devolver seu cachorro quando, com
uma naturalidade surpreendente, ele avança alguns passos e abraça seu salvador. Noto que os
olhos verdes do lorde se enchem de alegria e deduzo, meio que a contragosto, que talvez ele seja
um homem bom. Nobre ou não, foi o único nessa rua abarrotada de carruagens que se importou
com os lamentos de Oliver.

— Está tudo bem, menino. O importante é que Petter está bem. Agora vamos mandá-lo
para seus pais, eles devem estar preocupados. Vou pedir para o cocheiro deixá-lo em casa. Assim
não correrá novos riscos e, sem dúvida, não levará uma bronca de sua mãe. — Após me oferecer
uma piscadela divertida, o lorde direciona o garoto até a carruagem.

Oliver pega Petter dos meus braços, despede-se com um sorriso e segue até o veículo
com o rosto dominado pela animação. Viro-me na intenção de voltar para o cabriolé alugado e
retomar minha missão, mas uma mão desconhecida segura meu pulso na clara intenção de frear
meus passos. Giro na direção do agressor, pronta para alcançar a faca que mantenho escondida
entre minhas ligas, mas paro abruptamente ao ver o lorde misterioso sorrir para mim.

— Confesso que por um instante fiquei apavorado. — Ele falha miseravelmente na tarefa
de segurar o riso zombeteiro. — A senhorita pretendia mesmo me golpear?

— Golpear é uma palavra doce demais para o que pretendia fazer com o senhor. Não
gosto que me toquem sem permissão — imediatamente sinto sua mão abandonar meu pulso —, e
acredito que uma mulher precisa saber como infligir dor aos palermas que teimam em ser
inconvenientes.

Enquanto falo, a diversão abandona seu belo rosto.

— A senhorita tem razão, peço que perdoe meu comportamento inconveniente, ele não
irá se repetir. Vivo em um meio no qual os homens são criados para dominar em vez de respeitar
e as mulheres são ensinadas a se defender, seja resguardando-se ou acatando em silêncio uma
infinidade de abusos. O quanto isso revela de nossa sociedade, não é mesmo? — Sua resposta
quebra-me ao meio, não estava preparada para o olhar de dor que nubla sua expressão. Mas a
raiva e a mágoa passam rápido, e logo o lorde misterioso está sorrindo como se nada no mundo o
preocupasse. — Mas, por favor, estou curioso. Como pretendia defender sua honra?
Decidida a aliviar o clima de tensão que se instalou, resolvo pegá-lo desprevenido. E,
com um movimento ágil que aprendi a fazer quando completei dez anos de idade, capturo seu
braço direito com minhas mãos, girando-o de encontro as costas e imobilizando-o com a força do
meu corpo. O pobre homem é invadido pelo choque, o que liberta meu humor negro e me faz
gargalhar sem pudor algum. Contudo, o feitiço vira contra o feiticeiro quando ele dá um passo
para trás, colando suas costas no meu peito e aproximando nossos corpos de uma maneira
imprópria. Meu nariz quase toca a sua nuca, tornando impossível a tarefa de não inspirar o cheiro
inebriante que exala dele. E sua mão, presa entre nós graças ao meu golpe, acaricia levemente os
bordados da minha capa, provocando-me com o calor que emana dos seus dedos. Nesse
momento, ambos respiramos com dificuldade. Mas não pelos motivos certos.

— Graças aos céus estão ensinando as mulheres a lutarem, tenho certeza de que dormirei
mais tranquilo essa noite. — Ele vira a cabeça para trás, encarando-me com um olhar repleto de
promessas perigosas.

Fazia anos que não sentia os pelos dos meus braços arrepiarem apenas com um mísero
olhar de desejo. E, espantada com o batimento acelerado do meu coração, solto seu braço e dou
um passo para trás; fugindo dele e do seu olhar ora divertido, outrora intenso e sério. Algo me
diz que preciso me manter longe desse homem. Ele exala encrenca e, como minha mãe
costumava dizer, eu adoro uma boa encrenca.

— Está indo para o Baile da Ópera, milady? — ele pergunta como se nada tivesse
acontecido, sem ao menos se importar com o fato de uma mulher tê-lo dominado. E, o que mais
me espanta, completamente recomposto do momento de intimidade que compartilhamos há
pouco.

Maldição, agora minha mente está pensando em todas as maneiras que eu poderia
desconcertá-lo ao ponto de fazê-lo esquecer de si mesmo.

— Estou sim, milorde — respondo por fim. Após ponderar por um segundo, decido
acompanhá-lo na mudança de assunto. — Apesar de que, nesse instante, estou tentando encontrar
desculpas para não precisar entrar no baile com parte das vestes arruinadas dessa forma.

— Arruinada? A senhorita está perfeita, poderia aparecer vestida de lama e ainda


arrancaria suspiros por onde passasse. — Seu sorriso é sedutor, mas marcado por um olhar
risonho e não predador.

Percebo que gosto dele. Porém, por mais interessada que possa estar, não devo esquecer
de que estou aqui a trabalho. Essa noite resume-se a uma única coisa: o roubo da Máscara
Branca.
— Só espero que os suspiros não sejam de espanto. Imagino que seja pouco comum uma
dama chegar à Academia com os barrados sujos de lama — decido não esperar por sua resposta.
Com um aceno de despedida, caminho na direção do veículo alugado por meu pai, encarando o
olhar debochado de Malcom. Quando terminarmos essa missão vou desafiar esse velho sabichão
para um duelo de espadas. Ele anda muito engraçadinho.

— Espere, lady Joana! — Paro ao escutar meu nome, dividida entre o prazer de ouvi-lo
sair de seus lábios e a frustação gerada pela minha falta de atenção. Era para eu ter usado um
nome falso, mas ao me apresentar para Oliver, esqueci completamente da farsa que estou
vivendo. — Por favor, conceda-me a honra de acompanhá-la. Não posso prometer o esplendor de
uma viagem tranquila, já que cedi minha carruagem para o Oliver, mas juro que serei uma ótima
companhia.

— Não sei, senhor. Parece-me uma troca injusta: dividir o conforto da minha carruagem
em troca de alguns minutos de conversa com um desconhecido.

— Ora, não sou mais um desconhecido. A senhorita acabou de me imobilizar — ele sorri
com os olhos, o que amolece minha resolução —, além disso, não estou pedindo-lhe uma carona.

— Não? Então o que pretende, senhor olhos verdes? — As palavras me escapam, mas
não me incomodo, são olhos notáveis e ele sem dúvida sabe disso.

— São poucas quadras até a Academia... — Se meu comentário o envaidece, ele não
deixa transparecer, o que faz com que eu goste ainda mais desse misterioso e belo estranho. —
Então venha comigo. Vamos andar até lá e aproveitar um pouco as belezas do carnaval de rua,
deixando-nos consumir pelo ânimo dos foliões.

Seus olhos brilham em expectativa e seu rosto se ilumina com um sorriso capaz de
rivalizar com a lua. Confesso que, em outros momentos, adoraria gastar meu tempo em sua
companhia. Tenho certeza de que nossa conversa seria tudo menos sem graça. Entretanto, tenho
outro lorde para seduzir. Ensaio uma negativa, mas o estranho rouba-me o ar ao tocar meus
lábios com os dedos, silenciando-me por um momento — sua mão está enluvada e, ainda assim,
sinto o toque queimar minha pele e arrepiar os pelos de minha nuca.

O que é que está acontecendo comigo?

— Sinto que já se decidiu, mas reconsidere, milady. Não lhe farei mal, tens a minha
palavra! — Ele ultrapassa o limite da decência e mantém nossos corpos demasiadamente
próximos. — Mais cedo ou mais tarde vai descobrir que carrego um nome manchado pelos erros
cometidos pela minha família, mas sou diferente de todos eles. Isso eu lhe asseguro.
Seus olhos assumem um tom escuro, como se o fato de lembrar da família lhe causasse
dor. Mas o sentimento não transborda apenas do seu olhar perdido, todo o rosto do misterioso
lorde é tomado pela aflição. Suas expressões são tão intensas e sinceras que, apesar de conhecê-
lo há pouco tempo, consigo lê-lo com facilidade. E isso só aumenta a atração que sinto.

Sei que não deveria, mas decido entrar um pouco mais no seu jogo. Dou as costas para
Malcom, ignorando a expressão zombeteira do pirata que me alcança mesmo estando a metros de
distância, e encaro o estranho com curiosidade. Já estou atrasada mesmo, e não é como se o
trânsito estivesse seguindo rápido. O caos cessou, mas a fila de carruagens permanece. E, sendo
completamente sincera comigo mesma, faz tempo que não me sinto tão bem. Que não
experimento o flerte, o desejo e o prazer da companhia masculina.

— Percebi que não fomos devidamente apresentados, senhor. Então diga-me qual é o
horrível sobrenome que precede sua reputação? — Sorrio para ele de forma sedutora, e permito
quando avança mais um sinal e enlaça nossas mãos. Se antes, com um mero toque, meu corpo
todo havia sido aquecido. Agora, sinto-me incendiar.

— Eis a pergunta que preferia não responder... — ele beija minhas mãos como uma
saudação tardia — mas, por favor, não se assuste caso tenha escutado rumores a meu respeito,
prometo que todos são falsos. Ou, ao menos a maioria deles. Sou Filipe Bourbon, sinto-me
honrado em conhecê-la, milady.

Meu peito irrompe em batidas descompensadas. Bourbon? Esse é o homem apaixonado


que preciso roubar?

Ah, doce e surpreendente destino. Sem esforço algum me trouxe um presente. Agora
basta descobrir se é prêmio ou infortúnio.
[2]

Andar com ele pela rua de braços dados, conversando e rindo de coisas banais, foi uma
experiência agridoce. Filipe é encantador. E, o mais surpreendente, sincero. Não demorei para
perceber que os boatos sobre ele são falsos, e mais: que os títulos pejorativos pesam sobre seus
ombros. Lorde Bourbon gostaria de ser reconhecido por quem é — um homem risonho,
verdadeiro e inteligente — e não pelos rumores que o precedem. É uma pena ter que enganar
alguém tão genuíno. Por um instante, antes de ele revelar seu nome, nos imaginei apenas como
homem e mulher, como dois opostos sendo atraídos um para o outro. Claro que seu sorriso fácil
quase me fizera esquecer do motivo de estar indo ao Baile da Ópera, mas o lorde misterioso
revelou seu nome e então o encanto acabou.

Não seja hipócrita, Joana. O encanto continua, só que agora manchado pelas mentiras.

— Minha lady... — Sei que ele está sendo educado, mas gostaria que não me chamasse
assim. E não pelo pronome de posse, mas porque minhas entranhas emanam fogo toda vez que
ele usa o termo. — Por acaso perdeu-se em pensamentos? Ora, sinto muito se estou lhe
entediando.

Filipe ri, provavelmente pela centésima vez desde que nos encontramos, e meu coração
decide bater um pouco mais rápido.

— Eu que peço perdão, senhor olhos verdes — empurro-o levemente com o meu ombro,
brincando e provocando, mas ao mesmo tempo buscando uma desculpa para tocá-lo —, estava
pensando que se eu tivesse olhos como os seus, sem dúvida, já teria realizado todos os meus
desejos.

Por mais culpada que eu me sinta por ter de enganá-lo, não consigo controlar a
necessidade de manter nossos corpos cada vez mais próximos.

— E posso saber quais são eles, lady Joana? — Percebo tardiamente que chegamos muito
rápido ao nosso destino.

Do outro lado da rua movimentada, vejo a Academia Imperial de Música transbordando


luxo, luz e música. E os convidados, em seus magníficos trajes, seguindo animados para o Baile.
Enquanto isso eu e Filipe permanecemos parados, um de frente para o outro, talvez na ânsia de
prolongar ao máximo esse momento de encanto e intimidade. Não quero que isso, seja lá o que
for, acabe tão cedo.

— Poder? Liberdade? Ouro? Um pouco mais da sua companhia? Não sei ao certo,
senhor. Desejo tantas coisas…, mas, no momento me contentaria com uma boa taça de vinho.
Toda essa agitação me deixou sedenta.

Jogo algumas mechas de cabelo para trás, aproveitando a brisa fresca que passa por nós.
Andar pela rua fez com que elas colassem em meu pescoço, ressaltando o calor de estar rodeada
por uma multidão dançante. Como estamos próximos do destino final, resolvo me adiantar e
abrir a capa grossa que protege meu vestido. É um alívio saber que não preciso mais de uma
entrada triunfal, afinal, já capturei a atenção de Filipe.

Estou acostumada com noites frias, com a umidade do mar e com ventos tempestuosos,
então suspiro de prazer ao sentir o frescor da noite. Fecho os olhos por um momento, deixando o
vento acalmar meus pensamentos. Perdi o controle sobre a missão de hoje no exato instante em
que conheci Filipe, porém, por mais envolta que eu esteja, não posso esquecer o que está em
jogo. Eu preciso da Máscara Branca, meu futuro e o daqueles que eu amo, depende disso.

— Também estou sedento — Sinto suas palavras antes mesmo de ouvi-las. Ele está mais
próximo do que deveria. — Peça-me o que quiser e eu lhe darei, Joana. Em troca, quero apenas
desvendar seus pensamentos.

— Meus pensamentos são tortuosos demais, senhor — minha respiração está


descontrolada, então as palavras saem com dificuldade —, e, infelizmente, não existe bem
material capaz de domá-los.

— Ora, mas não desejo ordem, Joana... — Por mais que eu tente negar, ouvi-lo usar meu
nome, sem título ou formalidade, me desestabiliza. Se pudesse, me afundaria no caos e me
perderia em seus belos olhos. Pois, nesse instante, tudo o que desejo é desvendá-lo por inteiro.

Filipe corre as mãos pelos meus braços, e a necessidade de vê-lo, de ler os sentimentos
estampados em seu rosto, é tamanha, que elimino a distância que nos separa e cravo meus olhos
nos seus. Estamos tão próximos que consigo escutar sua respiração entrecortada e sentir o cheiro
forte e límpido que emana dele. Suspiramos juntos enquanto nosso olhar permanece cravado. É
óbvio que ele me deseja. Foi fácil conquistar seu interesse, fácil demais. Mas temo que o
problema esteja no fato de que eu também o desejo.

Quero descobrir seu corpo com minhas mãos, passear os dedos por seus cabelos
volumosos e sentir seus lábios nos meus. Mas, mais assustador que isso é o desejo de terminar
essa noite ao seu lado.

— Vamos realizar alguns dos seus desejos, milady? Talvez eu não seja capaz de realizar
todos, mas tenho certeza de que posso abrandar parte da sua sede... — Filipe toca meu rosto com
suavidade, afastando algumas mechas de cabelo que teimam em se rebelar.

— Não tenho dúvida de que pode fazê-lo, lorde Bourbon. — E imaginá-lo aplacando meu
desejo faz meu corpo tremer em antecipação.

Por que ele precisa ser tão instigante?

Ciente de que estou brincando com fogo, ignoro os alertas em minha mente e aproveito a
doçura do seu toque. Ele roça os dedos pela lateral do meu rosto, parando próximo aos meus
lábios. Imagino que Filipe vai me beijar, bem ali, no meio do carnaval de rua de Paris, mas ele
parece reconsiderar no último minuto. O momento passa e, por fim, ele me segura pelas mãos e
começa a me levar até uma das entradas laterais da Academia.

— Para onde vamos? Desistiu de participar do Baile tradicional, milorde?

— Essa noite saímos com a intenção de beber, dançar e aproveitar o Carnaval. E é


exatamente isso que teremos, mas não de um camarote lotado pela nobreza — ele aponta para o
andar superior do prédio da Academia, onde as sacadas estão lotadas de homens e mulheres
perfeitamente vestidos —, vamos aproveitar como os melhores foliões.
Seguimos alguns metros pela lateral do prédio, guiados pelas luzes que iluminam os
salões e atravessam as janelas. Sorrio ao me dar conta de que vamos entrar por uma delas; uma
abertura mais baixa e ampla, de fácil acesso para quem passa na rua.

— Vamos invadir o Baile, lorde Bourbon? Por acaso o senhor não foi convidado?

Ele ri e vira o rosto para mim. Seu olhar é como o de um garoto prestes a embarcar em
uma aventura.

— A entrada tradicional separa os lordes dos outros convidados. É assim que ficamos na
segurança de nossos camarotes, aproveitando o espetáculo de cima, enquanto o resto da
população dança pelo salão — Filipe olha para os dois lados da rua, certificando-se de que
ninguém notará nossa entrada pouco tradicional, e empurra a abertura da janela. — Claro que
alguns lordes podem descer, mas quando o fazem são facilmente notados. Não quero ser notado,
lady Joana. Quero aproveitar essa noite ao seu lado e sem me preocupar com mais nada. Mas não
quero sobrepujar minha vontade, então deixo a escolha em suas mãos: de qual forma
aproveitaremos a noite?

Ele aguarda minha resposta com um sorriso de expectativa estampado no rosto. Mais uma
vez penso no quanto é diferente dos boatos que maculam seu nome. Por que diriam que alguém
como Filipe é tolo, egoísta e mesquinho? Tudo que vejo é um homem simples, marcado pelo seu
nome, e dono de um olhar extremamente sincero.

Sou boa em ler os homens, então sei que os sentimentos refletidos nos olhos de Filipe são
reais. Sinto que uma parte de mim gostaria que ele não passasse de um nobre mentiroso e
manipulador — seria muito mais fácil roubá-lo, caso não sentisse a verdade em suas palavras.
Mas não posso mentir para mim mesma: Sir Bourbon é um homem sincero e bondoso. E talvez
seja por isso que eu atiro a cautela para os céus ao permitir que ele dite o rumo da nossa noite.

— Começo a desconfiar que possui a terrível habilidade de ler meus pensamentos,


milorde. Uma noite de diversão despretensiosa, longe de regras tolas e companhias enfadonhas, é
tudo o que mais desejo.

Assim que termino de responder, Filipe engancha minha cintura na clara intenção de me
levantar até a janela.

— Não vou machucá-la, pois não? A altura é baixa e facilmente tocará o chão do outro
lado do salão.

Controlo a vontade de rir. Pular uma janela é a coisa mais fácil que farei essa noite.
Sorrio para ele e, com delicadeza, me desvencilho de suas mãos. O toque estava agradável, é
claro, mas não preciso dele para entrar. Apoio as mãos no parapeito e levanto meu corpo até estar
sentada no beiral. Por causa do vestido não consigo pular diretamente, então recolho as pernas
para dentro do salão e, só então, caio do lado de dentro. Consigo ouvir o suspiro de Filipe do
outro lado da janela. Gostaria de ver a surpresa estampada em seus olhos.

Aproveito o breve momento de solidão para observar o salão. A Academia é linda;


esplêndida seria mais apropriado. Assimilo o teto abobado e os milhares de arcos banhados a
ouro que o compõem, os camarotes que se assomam até o topo do salão, os lustres que iluminam
os presentes com uma luz suave e baixa e, por fim, o palco suntuoso e revestido de mármore.
Giro ao redor e vejo cantores de um lado, lordes rindo e bebendo em seus camarotes, e homens e
mulheres dançando por todo o salão. São tantas pessoas reunidas, todas alegres e livres, que é
impossível não sentir o clima do carnaval tomar posse do meu coração. A vontade que tenho é de
celebrar como se não houvesse amanhã, como se todos os meus problemas — as máscaras, o
ouro, o futuro do meu pai e a lei antipirataria — não fossem reais.

— Impressionada? — Filipe sussurra em meu ouvido, tocando de leve meus ombros. —


Essa é sua primeira vez no Baile da Ópera? Porque se for, prometo que farei valer a pena.

Suas palavras desencadeiam um arrepio de prazer que faz meu corpo ondular. Era para eu
seduzi-lo, não o contrário. Ansiando por desestabilizá-lo, dou um passo para trás, apoiando meu
corpo no dele. Danço no ritmo da música que ecoa pelo salão, fingindo que não o estou tocando
propositalmente. Sorrio ao ouvir o gracejo estrangulado que Filipe exala.

Touché, dois podem jogar esse jogo.

— Sim, lorde Filipe. Essa é a minha primeira vez — giro para encará-lo nos olhos, ainda
mantendo nossos corpos colados —, e espero que faça valer a pena. Por isso, milorde, minha
diversão está em suas mãos. O que tem em mente para nós?

— Algo me diz que ficaria assustada com o rumo indecoroso dos meus pensamentos,
Joana. — Filipe abaixa a cabeça, fazendo cócegas em minha pele com seu cabelo volumoso, e
sussurra em meu ouvido: — Primeiro seus olhos, depois sua língua afiada e agora a surpresa de
vê-la irromper salão adentro por uma janela. Ah, melhor guardar o que tenho em mente só para
mim.

Pegando-me desprevenida, Filipe termina de falar e deposita um beijo em minha testa. O


toque leve é tão caloroso que me desestabiliza, fazendo-me refletir que — pela primeira vez em
anos — encontrei um oponente à altura. Toda vez que avanço um passo, meu lorde avança mais
dois. E o jogo é tão instigante quanto o cheiro delicioso que emana dele.

Nossa dança particular me faz lembrar da última vez que realmente me senti desejada.
Meus últimos enlaces não passaram de desejo simples e carnal, mas com Filipe as coisas são
diferentes. Um toque não é apenas o encontro de peles, mas uma explosão de sensações e olhares
inebriantes. E, tanto quanto isso me instiga, também me assusta.

Consciente dos motivos que me trouxeram até ele, afasto-me de Filipe e tiro a capa que
esconde meu vestido. O calor do salão é tão sufocante quanto os pensamentos conflitantes em
minha mente. E, ansiando por uma distração, busco pela saleta dos casacos. Observando os
foliões ao meu redor, dou-me conta de que esqueci da minha máscara.

Ciente do olhar atento de Filipe, retiro da manga um pedaço de seda prata — não quis
máscaras elaboradas, apenas um pequeno pedaço do mesmo tecido que compõe meu vestido
decorado na lateral com pequenas e delicadas plumas brancas. Ao vesti-la, não me sinto como
um belo e magnífico cisne, mas sim como uma impostora. Nada mais sou do que uma pirata
presa em uma missão decadente.

Volto a encarar Filipe, e o que vejo em sua face faz meus joelhos tremerem. Ele observa
cada detalhe do meu corpo em um misto de reverência e luxúria. Seus olhos descem até meus
lábios, param nos ombros revelados pelo decote generoso e seguem até a ponta das delicadas
sapatilhas que a barra do vestido não consegue esconder.

— És tão linda, Joana. Olhá-la é como ver a imensidão da lua refletida nas águas escuras
do mar... — Nossos corpos estão colados novamente, como ímãs que são atraídos um para o
outro. — Seu olhar me hipnotiza e me faz ansiar por coisas com as quais nunca sonhei, Joana.

O sorriso de Filipe é amplo ao percorrer com as pontas dos dedos a máscara em meu rosto.
Suspiro diante da delicadeza do toque, mas então ele se afasta e tira algo do bolso interno do
paletó. Minha alegria vacila, meu coração acelera, meu mundo congela.

Meu misterioso senhor de olhos verdes se foi. Não, agora ele é Filipe de Bourbon. Lorde,
rico, noivo e dono do meu destino. No rosto, ele carrega o objeto que me fez vir aqui essa noite.

A famosa Máscara Branca, decorada com um metal lustroso e magnífico, emoldura seu
rosto e o deixa ainda mais belo. Todo de preto, com os cabelos bagunçados pelo vento, Filipe
consegue aumentar o encanto da máscara. Ele é lindo, ela é linda. E, nesse instante, percebo que
estou perdida.

De uma forma ou de outra serei acometida pelo fracasso até o final da noite. Preciso da
máscara, mas, se for sincera comigo mesma assumiria que também desejo o homem por trás
dela.
Bebemos e andamos de mãos dadas pelo salão, rindo das fantasias ao nosso redor e das
histórias — pouco respeitáveis — contadas por Filipe. Ele parece conhecer cada lorde do recinto
e, para a minha surpresa, saber dos pecados de todos eles.

Apesar do clima leve entre nós, não paro de pensar nas máscaras e no fato de estar tão
próxima de uma delas. Sabia que isso ia acontecer, mas a verdade é que não estava nem um
pouco preparada para vê-la em sua completa magnitude. Diferentemente da Máscara Preta, seu
par não conta com adornos em joias ou fios de ouro. A Máscara que esconde o rosto de Filipe é
decorada apenas por um conjunto de fios de ferro — e, em alguns pontos, conseguimos ver nela
as marcas do passado. Mas, mesmo em sua simplicidade, a máscara é brilhante e magnífica.

— Concede-me a honra dessa dança, Joana? — A culpa furta minhas palavras, então
limito-me em concordar com um leve dar de ombros. — Vejo em seus olhos que está pensando
demais. Não sei o que lhe incomoda, mas lhe dê uma folga. Nós dois merecemos uma noite de
escape da realidade, não concorda?

Quero perguntar de qual realidade Filipe deseja fugir, mas abafo minhas perguntas
porque sei que elas me levarão por caminhos perigosos. E ele tem razão, estou pensando demais,
dando vazão à culpa que pesa em meus ombros e deixando de aproveitar tudo o que a noite de
hoje pode oferecer.

Perdidos em um silêncio confortável, deixamos nossas taças de vinho em uma mesa no


canto do salão e seguimos para a pista de dança. A música é tão animada quanto as pessoas ao
nosso redor. As mulheres, trajando vestidos justos ou conjuntos compostos por coletes brilhosos
e calças bufantes, dançam de uma maneira irreverente e surpreendente. Elas jogam as pernas
para o alto, dando piruetas e formando manobras sincronizadas, enquanto sorriem e esbanjam
sensualidade.

— Qual é o nome dessa dança? — Sinto-me tola ao fazer a pergunta, como se eu devesse
conhecê-la. Mas a vergonha é facilmente sobrepujada pela curiosidade.

— São passos de cancan, uma espécie de quadrilha. Tornou-se popular há menos de uma
década e está tomando conta do carnaval francês. Quer tentar, lady Joana? Se desejar, podemos
arriscar alguns passos.

O olhar de Filipe é desafiador. Uma parte de mim adoraria aventurar-se nos passos dessa
dança sensual e encantadora, mas a verdade é que sou uma péssima dançarina. Engano alguns
passos, mas não o suficiente para arriscar em demasia.

— Asseguro com veemência que, caso tenha amor pela vida, devemos escolher algo mais
comum — quase sem perceber, uso minha voz de pirata, pontuando minhas palavras com
autoridade. — Prefiro não assustá-lo com minhas habilidades na pista de dança, milorde. Tenho
certeza de que o senhor prefere voltar para casa com os dois pés intactos.

Ele joga a cabeça para trás, libertando uma gargalhada que atrai uma dúzia de olhares
curiosos. Desde que chegamos, Filipe recebeu mais de seis olhares apaixonados, quatro
risadinhas de flerte e, até mesmo, dois esbarrões desajeitados de belas jovens procurando por
parceiros para uma nova dança. Não que eu esteja com ciúmes, apenas é inevitável não perceber
como as mulheres orbitam — mesmo sem notar — ao seu redor.

— Venha, Joana. Vamos dançar como se não precisássemos nos preocupar com o futuro.
— Ele rodeia minha cintura com suas mãos e, pegando-me de surpresa, gira meu corpo no alto,
fazendo minhas saias rodopiarem ao redor do nosso corpo. — Não é esse o sentido do carnaval?
Libertar-nos, mesmo que por uma noite, das amarras que nos prendem à realidade?
Aceito sua sugestão e me deixo contagiar pela música animada que dá vida ao salão. Não
penso na Máscara Branca, no futuro do meu pai e muito menos em minha inaptidão na pista de
dança. Entrego-me, consciente das mãos habilidosas de Filipe a me guiar pela pista de dança, e
rio como uma garotinha. Sinto-me feliz ao ser conduzida por ele com tamanha destreza,
constatando que uma parte de mim sente falta de diminuir o controle rígido que exerço sobre
minha vida.

A cada troca de olhares, roçar de dedos e enlace de pernas, meu desejo por Filipe cresce.
A necessidade de tocá-lo, de afundar-me nele, é quase insuportável. Reprimo uma maldição ao
notar que a melodia encabeçada por um extenso piano de calda e um conjunto de violinos é
rápida demais para o meu gosto, então assumo a dianteira e interrompo Filipe em um de seus
passos ritmados. Ele me olha, surpreso, quando enlaço os braços em seu pescoço e apoio a
cabeça em seu peito, escutando as batidas aceleradas de seu coração.

— Valse comigo, senhor olhos verdes — digo ao inspirar seu cheiro, pouco me
importando com o recato.

Enquanto dançamos ele segura meu rosto com as duas mãos, obrigando-me a encará-lo.
Sustentamos o olhar um do outro e giramos pelo salão, silenciando o mundo por um instante.
Tudo o que percebo é o ritmo do meu coração, a intensidade do olhar de Filipe sob mim e o calor
que emana de sua pele. Tentada pela luz bruxuleante dos candelabros, mergulho as mãos em seus
cabelos, correndo os dedos pelas mechas brilhosas.

— É loucura querê-la ao ponto de esquecer-me de quem sou? — ele diz com a testa
apoiada na minha. Seu abraço fica ainda mais intenso e seus lábios param a milímetros dos meus.
Quero tanto sentir seu sabor, mas estou determinada a esperar pelos avanços dele. Temos tanto
em jogo nessa noite, não quero me precipitar. — Há anos não sinto tamanha necessidade. O que
fez comigo, Joana? Estou no limite de atirá-la nos ombros e dar vazão aos pensamentos infames
que dominam minha mente.

Filipe retira suas luvas brancas com os dentes, jogando-as no chão com uma urgência
assombrosa. No segundo em que suas mãos estão livres, ele toca meus lábios com os dedos. O
desejo que transborda de seus olhos é tão forte quanto o que corre em minhas veias. Talvez seja
por isso, por estarmos os dois presos em uma nuvem de luxúria, que derrubo as barreiras ao
redor do meu coração e beijo-o sem me importar com as pessoas ao nosso entorno.

É um beijo puro, apenas um leve toque de lábios, mas é o suficiente para fazer-nos
padecer no paraíso.

— Se o que sente é loucura, então estamos os dois perdidos — sussurro em seus lábios.
— Sinto que acabei de ser roubada, Filipe. Como se houvessem tirado tudo de mim e restado
apenas o desejo de estar em seus braços.

Um mísero segundo e nosso destino é traçado. Com as mãos em minha cintura e o olhar
preso no meu, Filipe ergue meu corpo — criando a impressão de que estou flutuando — e, sem
deixar de me encarar, nos gira pelo salão com rapidez e graciosidade. Estou tão concentrada nele,
no desejo refletido em seus olhos, que mal percebo que abandonamos o salão principal.

Lorde Bourbon me carrega por um corredor mal iluminado e, retirando uma chave
dourada do bolso, destranca a trave e abre uma pesada porta de madeira aos pontapés. Quase rio
de sua insistência em me manter elevada, mas fica difícil pensar em alguma coisa quando
entramos no camarote privativo e meu corpo é prensado contra a parede. A escuridão
momentânea nos alcança, incitando o desejo que tentamos reprimir ao longo das últimas horas.
Se em meio à multidão mal conseguimos tirar as mãos um do outro, não consigo imaginar o que
seremos capazes de fazer em um cômodo privado.

— Finalmente poderei dar vazão às fantasias que dominam minha mente desde o
momento em que seus olhos cruzaram com os meus — ele diz com a boca a centímetros da
minha orelha. Arrepio ao sentir sua respiração quente e, encorajado pela minha reação, suas
mãos apertam minha cintura com mais determinação enquanto seus lábios deixam um rastro de
beijos molhados que começam na lateral do meu pescoço e terminam no canto interior da minha
boca.

Fecho os olhos, esperando por seu beijo, mas em vez de dar a atenção devida aos meus
lábios, Filipe volta a beijar meu rosto, dessa vez concentrando-se na linha do meu maxilar.

— Ora, pare de me provocar! — Puxo seu rosto até o meu, segurando-o pelos cabelos
com veemência. Ele me encara com um sorriso zombeteiro, mas o mesmo desaparece quando lhe
devolvo a provocação ao depositar beijos castos por todo o seu rosto, ignorando seus lábios de
forma proposital. E, em uma cartada final, mordisco seu queixo. — Beije-me, Filipe.

Depois disso, ele cola os lábios nos meus e o mundo deixa de fazer sentido; é como se o
tempo parasse e só existíssemos eu e ele.

Inicialmente, nosso beijo é tão doce quanto mel, mas após alguns minutos nos
explorando, Filipe me surpreende ao liberar um som gutural e aprofundar o beijo. Sou assolada
por uma infinidade de sensações, não esperava por uma união tão explosiva e inebriante. Sua
língua passeia entre meus lábios e suas mãos, fortes e quentes, exploram meu corpo no mesmo
ritmo com que nos beijamos. Por longos minutos tudo é sensação: suspiro, toque e dois corpos
que se devoram.
Seus lábios abandonam os meus e começam a explorar meu colo. Filipe beija a base do
meu pescoço, o centro da minha clavícula, o topo dos meus seios e, depois de me olhar com uma
expressão repleta da mais pura luxúria, mordisca os bicos intumescidos e sensíveis por cima do
vestido. Minhas pernas vacilam e suas mãos voltam a me sustentar. Minha ânsia por ele é
tamanha que as vestes que separam nossas peles começam a incomodar. Sem pensar duas vezes,
corro as mãos por suas costas, braços e ombros, tirando-lhe a casaca, a blusa de algodão e —
sem um pingo de pudor — seguindo para as calças. Contudo, antes que eu possa abri o fecho, ele
se afasta de mim com um pulo.

— Não posso, não é justo. Me perdoe, Joana... não posso fazer isso — ele murmura sem
parar, repetindo as palavras em murmúrios abafados que me deixam ainda mais confusa.

A escuridão do ambiente não permite que eu veja sua face, mas sinto em seu tom de voz
que algo o está incomodando. Estou furiosa, não apenas por ele ter parado, mas por ser capaz de
fazê-lo. Como pôde não sucumbir ao desejo? Eu preciso dele com uma ânsia desconcertante, do
seu corpo sob o meu, então nem se quisesse conseguiria afastá-lo. Eu estou queimando, de raiva
e de desejo; preciso de água ou de algo mais forte para apagar o fogo do desejo. Então decido
procurar um lampião que possa me guiar até o aparador de bebidas.

Assim que acendo o candeeiro vejo, no canto direito do camarote, uma bandeja. Sirvo
dois copos do que acredito ser conhaque e me viro para Filipe. Oh, céus. Por um instante tudo o
que consigo fazer é reparar em como a parca luz do aposento banha seu corpo. Claro que ele é
lindo, mas o que me faz virar — de uma só vez a dose que acabei de servir — não é vê-lo todo
glorioso sem camisa, mas sim a percepção de que Filipe continua com a maldita máscara branca.
Por que ela precisa ficar me lembrando que essa noite não é minha? E que, por mais que eu o
deseje, nunca poderei tê-lo?

— O que não é justo, Filipe? — abrando minha raiva e me aproximo dele, oferecendo-lhe
o copo de conhaque.

— Eu estou noivo, Joana. Vim para a França para acertar os detalhes do casamento. —
Apoiando o corpo na beirada de um sofá e convidando-me a sentar ao seu lado, ele me encara
com um misto de pesar e solidão. — Desde o início das negociações sabia que o casamento não
passaria de acordo de negócios. Porém, cada vez que penso em entrar em uma igreja e dizer sim
a uma mulher que mal conheço meu coração dispara. Sinto-me estrangulado, mas até agora não
sabia por quê.

Delicadamente ele tira o copo das minhas mãos e as segura, virando-me para que
fiquemos frente a frente, separados por uma distância curta demais para o nosso próprio bem.
Não consigo deixar de fitá-lo, de memorizar cada detalhe que compõe esse homem. Reparo que
ele possui uma cicatriz no ombro esquerdo e mantenho minha atenção nela, tentando evitar por
um momento seus olhos penetrantes.

Estou confusa: minha mente grita que devo atentar-me à máscara, que é por causa dela
que estou aqui, enquanto meu coração bate acelerado e clama para que eu cuide e conforte o
homem ao meu lado. Pela primeira vez em anos, não faço a menor ideia do que fazer. Devo
seguir meu coração ou dar vazão à razão?

— Encontrei lady Catherine três vezes, mas não me recordo da cor de seus olhos e muito
menos de rir em sua companhia. Pensei, ou tentei convencer minha mente orgulhosa, de que
eram coisas que o tempo traria. Não sou tolo, Joana. Nunca esperei por amor. Mas almejo um
matrimônio feliz, que gere frutos e que seja diferente do relacionamento dos meus pais. Quero
ver meus filhos crescendo em um lar afortunado, quero que eles construam um futuro diferente
dos Bourbons antes de mim.

— Tenho certeza de que irá conquistar tudo isso, Filipe. — Desvencilho-me de seu toque,
experimentando o amargor do ciúme; dói escutá-lo falar do futuro. — Não precisei de muito
tempo para crer em seu coração bondoso, então acredite no que digo, será um ótimo marido e o
melhor pai para os seus filhos.

— Mas a que custo? Dei-me conta de que não quero viver para me esforçar. Consegue
ver o que fez comigo, Joana? — O desespero em sua voz reflete a mesma confusão que assola
minha mente. Não entendo como chegamos a esse exato momento. Eu acabei de conhecê-lo e,
ainda assim, parece que esperei por ele minha vida toda. Não acredito em almas gêmeas, mas
aqui estou, torcendo para ele ser meu. — Passar essa noite ao seu lado mostrou-me o que não
quero: uma vida mediana, um futuro no qual precisaria estar sempre lutando para manter um lar
construído sob o orgulho e o egoísmo, um casamento no qual nunca serei o companheiro que
minha mulher merece. Em poucas horas nós dois construímos uma afinidade que nunca terei
com Catherine. E isso me fez entender que não quero casar só para vencer os demônios criados
por meus antepassados. Eu quero mais, muito mais do que mereço, mas ainda assim mais.

Em um gesto inflexível de confusão, ele esfrega o rosto com as mãos e puxa os próprios
cabelos; a dor que ameaça quebrá-lo me alcança e, sem saber como confortá-lo com palavras,
decido abraçá-lo.

— Filipe — falo ao apoiar sua cabeça em meu ombro —, o que de fato deseja? Quando
pensa no futuro, como se vê?

Ele enlaça minha cintura com os braços e me puxa para o seu colo. Penso em protestar,
mas mudo de ideia ao encarar seu olhar perdido.

— Quero viver sem o medo de afligir dor nas pessoas que amo. — Filipe respira fundo,
como se precisasse de um momento para ordenar suas próximas palavras. — E desejo, com uma
ânsia perigosa, a oportunidade de provar que não sou como meu pai.

— E o que exatamente isso significa?

— Que almejo uma casa alegre, com cheiro de uva recém-colhida e com crianças
risonhas correndo pela varanda. — É fácil notar a mágoa por trás de suas palavras. Minha mãe
sempre dizia que amor não se compra e, vendo Filipe falar de seu pai, compreendo o que ela
realmente queria dizer. O dinheiro, assim como um título de nobreza, não compra laços que só o
amor é capaz de construir. — Às vezes, enquanto caminho por minhas vinícolas, imagino-me
com meus futuros filhos. Consigo ver uma garotinha correndo e rindo pelos campos, com os
cabelos trançados e as botas sujas de barro. Seu nome seria Beatrice, como um presente tardio à
minha mãe.

— E acha que com Lady Catherine não conseguirá isso? Talvez, se compartilhar seus
sonhos com sua noiva, descobrirá que ela também deseja conforto, calmaria e uma casa povoada
por meia dúzia de filhos.

— Algo me diz que nunca sentir-me-ei confortável ao lado dela e de seus familiares.
Sempre estarei acompanhado da sensação de não pertencer, de ser um reles Bourbon insuficiente
e desonrado. — Ele abranda nosso abraço para fitar meus olhos. — Agora entendo que preciso
estar com alguém capaz de enxergar quem eu realmente sou, sem rótulos, títulos ou histórias
sobre o passado. Talvez um dia Lady Catherine consiga essa proeza, mas não desejo um talvez,
quero me sentir inteiro agora.

— Às vezes pensamos demais, quando tudo o que devemos é seguir o chamado do nosso
coração. Se é assim que se sente, lute para construir um futuro diferente, Filipe. Não desista de
suas crenças, tenha fé em si mesmo. — Toco seu rosto, ou a parte dele que não está coberto pela
maldita máscara branca, de forma delicada. Apenas desejo sentir, uma última vez, a maciez de
sua pele.

— Lutarei, Joana. — Suas palavras são tão intensas quanto os beijos que deposita em
minhas mãos. — Posso? — Toca minha máscara na intenção de tirá-la. Assinto e faço o mesmo
por ele, sentindo as mãos tremerem por finalmente apanharem o objeto com poder de definir meu
futuro.

— És tão lindo quanto a máscara que traz na face. Mas acho que sabe disso, não é mesmo
Filipe? — Ele sorri, e consigo ver que afastei a dor que nublava seus pensamentos.
— Sei que amanhã as dúvidas me assolarão e terei inúmeras decisões para tomar, Joana.
Mas hoje, por essa noite, minha única certeza é de que quero estar ao seu lado. Escolha-me e
serei seu.

Finjo ignorar o peso de suas palavras e, com as mãos trêmulas, termino de tirar a máscara
de seu rosto. Trata-se de um pedaço de metal, mas um metal que já mudou a vida de dezenas de
pessoas. Fico, por mais tempo do que deveria, encarando a máscara em minhas mãos. Toco
suavemente sua superfície e vejo nela meu próprio reflexo. Ela espelha uma Joana amedrontada.
Será que Filipe consegue ver o meu impasse? Será que enxerga o que essa máscara pode
significar para mim? Sinto-me confusa, desejosa e dilacerada. Lorde Bourbon diz que o fiz
desejar mais e, sinceramente, tal verdade não poderia ser mais recíproca. Eu quero muito mais do
que roubar-lhe a Máscara Branca, mas o que desejo nunca poderei ter.

Uma pirata e um lorde só combinam em noites de carnaval, então é isso que teremos:
uma noite digna de contos de fadas.

— Ela é linda, não é? — Filipe rodeia minhas mãos que seguram a máscara com
delicadeza. — Foi do meu tio, o antigo Duque de Maine. Em uma de suas viagens para a
Espanha ele se apaixonou por uma mulher casada. Os dois se encontravam à surdina e ela
sempre usava essa máscara, com medo de ser reconhecida. Infelizmente o disfarce não durou
muito tempo e, depois de alguns meses, seu marido descobriu a traição. Meses depois a mulher
foi encontrada esquartejada em sua própria cama.

— E o Duque saiu vivo? — Já havia ouvido algumas histórias sobre as mortes causadas
pelas máscaras, mas nunca imaginei que elas realmente haviam acontecido.

— De certa forma ele não saiu vivo. Viu sua amada ser assassinada e passou a se culpar
por isso. Depois de anos, o Duque acabou casando e tendo várias filhas, mas nunca superou o
fato de que a mulher que amava foi morta por sua culpa. Dizem que ele andava com essa
máscara no bolso do casaco, usando-a para lembrar do preço pago em nome de um amor
proibido. Antes de morrer, o Duque me fez prometer que um dia eu presentearia a mulher que
roubasse meu coração com a infame máscara.

“Na época ri de tamanha afronta. Nós nunca tivemos um bom relacionamento, então em
vez de ouvi-lo, decidi exibir a máscara como desonra a tudo o que ele fez minha família sofrer. E
aqui estava, prestes a presentear minha noiva, pela qual não nutro sentimento algum, com o que
para ele representou o maior dos amores. Agora percebo que estava tentando vingar-me do
Duque. — Filipe balança a cabeça e solta um riso triste. — Mas de que adianta reger meu futuro
sob os erros de homens mortos? Essa máscara não significa nada para mim. Tudo o que vejo
quando olho para ela é vergonha dos meus antepassados”.

Livro-me da máscara, abandonando-a de vez aos nossos pés — decido pensar nela
depois, em uma tentativa fraca de fingir que não me importo com ela — e aproveito um instante
para contemplar o rosto de Filipe. Os cabelos ondulados lhe tocam a testa, então os afasto na
tentativa de observar melhor seus olhos esverdeados. Deposito pequenos beijos em sua fronte,
testa, bochechas e nariz, secando as lágrimas silenciosas que ele derramou.

— Quem de nós nunca errou ou precipitou-se por caminhos tortuosos? Não somos
perfeitos, Filipe. Todos nós somos suscetíveis ao orgulho, ao medo e ao rancor. Então engana-se
ao pensar que um homem bom é aquele desprovido de maldade. — Toco seu peito exposto, na
altura do coração. — Às vezes vencemos às tentações, outras vezes não. A bondade é uma
escolha diária, não um dom.

— Cresci ouvindo que os homens da linhagem Bourbon nunca seriam dignos de amor e
ou benignidade. Lutei contra as garras do meu pai e do meu tio, fazendo de tudo para me tornar
um homem diferente — ele enlaça minha mão, e ficamos em silêncio por alguns minutos, apenas
sentindo as batidas aceleradas do seu coração. — Mas agora percebo que esse casamento aflorou
o pior de mim. Cheguei em Paris pensando que a máscara seria o presente perfeito para celebrar
uma união fadada ao fracasso.

— Fadado ao fracasso? Pelo jeito seu coração sempre soube qual caminho gostaria de
seguir. Talvez, só falte um pouco de coragem para ouvi-lo e assumir seus verdadeiros desejos.

Percebo em minha voz um leve tom de esperança, e quase rio. Sei que não tenho direito
nenhum sob esse homem, mas parece que minha alma teimosa acredita que ele é meu.

— Sim, a senhorita tem razão. — Ele toma meu rosto com as duas mãos e sussurra no
meu ouvido: — Se conhecesse os desejos do meu coração nesse momento, Lady Joana, tenho
certeza de que fugiria assustada. Caso minha vida mudasse por conta desse instante, pode ter
certeza de que essa máscara seria sua. E dessa vez como um símbolo real de esperança, e não de
sofrimento.

Vejo em seus olhos a verdade por trás de cada uma dessas palavras e, seguindo meu
próprio conselho, reúno coragem suficiente para tomar uma decisão. Por hoje, serei dele e ele
será meu.

Levanto-me do sofá sem tirar os olhos de Filipe. E, ciente de que a luz do lampião banha
meu corpo, descalço as luvas e desabotoo o vestido. O tecido cai sob meus pés e nessa hora só
consigo pensar que antes dessa noite nada pareceu tão certo.
Filipe se levanta e, sem tirar os olhos dos meus, toca meu corpo com veneração. Suas
mãos incendeiam-me e quando ele me beija sinto que descobri, na delicadeza de seu toque, que
não me importo mais com o futuro e com a vida imprevisível que me espera. Meu misterioso
lorde de olhos verdes me deu algo inesperado e, finalmente, entendo que as pequenas surpresas
da vida são maravilhosas. Não viverei mais com raiva do futuro, apenas velejarei de acordo com
as ondas do destino.

Filipe afasta meus cabelos e beija meu rosto, meu pescoço, e um lugar em meu ombro
que me deixa ainda mais entregue. Toque após toque, seus lábios criam um rastro de desejo em
minha pele e, soltando um gemido abafado ergue meu corpo, incitando-me a envolvê-lo com
minhas pernas. Estamos cada vez mais unidos, mas ainda não é suficiente. Agarro seus ombros e
o trago para mais perto, mergulhando de corpo e alma em um emaranhado de sensações que
variam entre o desejo e o romance.

Deitando-nos com delicadeza no sofá, Filipe usa seu corpo para me aquecer mais e mais.
Ser amada por ele, que reverencia meu corpo com as mãos e os lábios, me dá a certeza de que
nunca mais esquecerei desse homem e dessa noite, que sempre serei dele — mesmo longe,
mesmo manchando-o com minhas mentiras, mesmo não podendo ver essa paixão crescer e,
quem sabe, virar um grande amor. Nunca mais serei a mesma, meu coração de pirata encontrou
um porto, e — enquanto fito a máscara branca, esquecida no chão junto com nossas roupas, e
percebo o brilho diáfano que emana dela — sinto-me amaldiçoada. Agora entendo seu poder.

Por meio dela encontrei minha metade, mas também por causa dela terei que abrir mão
dessa felicidade.
— Eu planejava roubá-lo.

Pela primeira vez durante toda a noite, sinto que o silêncio entre nós dois é opressor,
então decido preenchê-los da única forma possível: contando a verdade. Gostaria de ter sido
corajosa e falado antes, mas só consigo revelar meus segredos agora, com Filipe dormindo
completamente relaxado ao meu lado.

Apesar do alívio físico também entorpecer meus músculos e de desejar perder-me no


abraço de Filipe, sinto minha mente abandoná-lo — talvez por saber que nossa noite juntos está
prestes a terminar. Minha cabeça permanece encostada em seu peito e minha mão, espalmada na
altura do seu coração, acompanha sua respiração leve e ritmada. Ele parece tão tranquilo que
preciso lutar contra a vontade primitiva de fechar os olhos e me entregar ao momento.
— Sou uma pirata, sabia? De uma geração que há décadas vive no mar. Por anos fomos
temidos e por outros aclamados. Éramos queridos e necessários para o Imperador e agora somos
considerados por ele fugitivos da nação. Veja bem, precisamos do dinheiro das máscaras. Talvez
milorde não saiba, mas essa maldita Máscara Branca — aponto para o objeto diáfano aos nossos
pés — tem um par, uma cópia na cor preta, e juntas elas valem uma fortuna. Com o dinheiro da
venda desses objetos eu e meu pai poderíamos construir um novo futuro. E é por isso que estou
aqui, para roubar sua bela Máscara Branca. Ao menos, era isso que pretendia fazer antes de
conhecê-lo.

Levanto-me com cuidado, evitando acordá-lo, e junto as peças de roupa espalhadas pelo
camarote. Do outro lado da porta consigo ouvir a Ópera tocando e os foliões rindo de forma
despretensiosa, completamente alheios à minha dor. Após me vestir, viro-me para Filipe e velo
seu sono. Ele consegue ser ainda mais belo em seu repouso.

— Como serei capaz de deixá-lo? — Sem conseguir resistir, toco-o uma última vez,
sentindo a maciez de sua pele com meus dedos.

Seguro o choro que ameaça me dominar, assustando-me com a intensidade das emoções
que transbordam do meu coração; nunca imaginei que sentiria algo assim por um desconhecido.
Na verdade, olhando para ele e relembrando a delicadeza e entrega com a qual fizemos amor,
compreendo o quanto seríamos incríveis juntos. Se nossa relação dependesse apenas de uma
escolha, a de amá-lo ou não, eu não pensaria duas vezes antes de permanecer ao seu lado por
todo o sempre. Mas escolher amar não é tão fácil quando dizem.

Eu amo quem sou, tanto quanto amo a vida livre e desprendida que levo. Já Filipe ama a
rotina enraizada que construiu — não apenas para si mesmo, mas para os filhos e netos que
almeja ter. E apesar de conseguir me imaginar levando uma vida tranquila em terra firme, sei que
tal realidade faz parte de um possível futuro e não da mulher que sou hoje. Meu misterioso lorde
de olhos verdes merece viver no presente e não mais nas dores do passado ou nas inseguranças
do futuro. Ele, mais do que ninguém, merece um final feliz e uma família amorosa.

Assim como a relação construída entre meus pais, eu e Filipe somos diferentes demais
para permanecermos juntos. Mas, ao contrário deles, não existe acordo capaz de manter-nos
juntos sem que um de nós tenha que abrir mão de quem é ou dos sonhos que carrega.

Em uma única noite, eu encontrei um amor intenso e voraz. E, em poucas horas, também
escolhi deixá-lo partir. Porque é disso que se trata: uma escolha.

— O senhor me deu um presente precioso. Por anos, ouvi minha mãe dizer como foi se
apaixonar por meu pai, como foi sentir o coração saltar do peito e os olhos transbordarem de
emoção a cada reencontro. Achei que nunca viveria algo assim. Então obrigada, Filipe. Obrigada
por tornar-me sua, mesmo que por uma única noite. Claro que depois disso não conseguirei levar
a máscara. Como conseguirei viver sabendo que o roubei quando tudo o que fez foi se doar a
mim? Quando, mesmo sem perceber, me presenteou com um tipo de amor que nunca imaginei
sentir? Eles não serão fáceis, mas sei que a noite de hoje me ajudará a enfrentar as tempestades
que surgirão.

Dessa vez, deixo que as lágrimas corram livremente pelo meu rosto. Dói precisar dizer
adeus. Gostaria que pudéssemos construir nosso felizes para sempre. Mas, às vezes, o amor não é
feito para ser para sempre.

Sei que esse sentimento me acompanhará pelo resto dos meus dias e, para mim, isso é
mais do que suficiente. Ao lado de Filipe descobri sensações e emoções com as quais nunca
sonhei. Por uma única noite, amei e me deixei ser amada. E, por mais que doa partir, doeria
muito mais se não houvesse arriscado e vivido esse momento mágico.

Meu choro se torna mais forte e menos silencioso, deixando claro que estou no meu
limite. Pronta para seguir em frente, beijo os lábios de Filipe uma última vez, gravando o seu
gosto em minha mente.

— Sempre lembrarei dessa noite, senhor olhos verdes... — Pego a máscara que usei no
salão de baile e deixo-a ao lado de Filipe, como um pedido silencioso para que ele não me
esqueça. — Aprendi com minha mãe que o amor pode até roubar nossos sentidos e tomar posse
de nosso coração, mas um sentimento forte como esse sempre é capaz de repor cada assalto com
uma dose extra de alegria. Então, caso nosso futuro esteja entrelaçado, tenho fé de que o destino
encontrará uma forma de nos unir.

É com essa certeza que deixo Filipe para trás: nessa noite, meu coração foi roubado, tanto
quanto presenteado com as mais doces memórias de amor.
11 de fevereiro de 1858, Nápoles

Abro a janela do quarto para sentir a brisa da manhã entrar. Inspiro fundo e, não pela
primeira vez, agradeço por termos escolhido viver tão perto do mar. Às vezes, quando a saudade
do passado ameaça me consumir, espero a lua aparecer no céu para nadar sob sua vigilância,
deixando a água gelada afastar o peso das lembranças. Porém, o dia mal raiou e já sei que, na
noite de hoje, nem mesmo o mar será capaz de confortar meu coração inquieto.

Dez anos se passaram desde o dia em que meu coração foi roubado. Perdi parte de mim e,
em compensação, ganhei o mais valioso dos prêmios. Ainda assim, mesmo que a troca seja mais
do que justa, a tarefa de calar os constantes “e se” que me atormentam fica cada dia mais difícil.
Romancistas insistem que o amor esmorece com o tempo, mas no meu caso ele aumenta a cada
novo dia. E a culpa é dela — o centro da minha vida —, tanto quanto dele.

Lembro-me daquele carnaval como se fosse ontem, assim como recordo cada nuance do
seu cheiro e dos seus olhos esverdeados. Após abandoná-lo, voltei aos prantos para o navio e
passei dias chorando pelos cantos. A sensação era de que a dor nunca abrandaria. E, de fato, ela
nunca abrandou, apenas aprendi a conviver com ela.

Foram tempos difíceis e, mais de uma vez, pude contar com o amor de meu pai. Sem ao
menos saber o que aconteceu, ele deu por finalizada nossa missão e entrou em negociação para
encontrar um comprador interessado na Máscara Preta, desistindo de seu maldito par.
Conseguimos menos ouro do que desejávamos, mas recebemos o suficiente para construirmos
uma vida nova no litoral da Itália. Digo para todos que a decisão de vir para cá foi impensada,
que eu só queria me afastar da França e de tudo que incitava minha dor. Mas a verdade é que
uma parte tola e esperançosa de mim imaginou que, ao vir para a Itália, um dia ele me
encontraria.
Sempre me considerei uma mulher forte, mas quando tive meu coração partido pela
primeira vez, quase desisti de mim mesma. Não queria retomar minha vida, mas precisei fazê-lo
ao descobrir uma nova e maravilhosa fonte de alegria. Desde então, a lembrança dos olhos
verdes de Filipe deixou de gerar dor e passou a representar esperança. Nunca mais o vi ou tive
notícias suas, mas todos os dias acordo encarando olhos exatamente como os seus —
expressivos, risonhos e bondosos.

— Mamãe, posso usar o vestido azul hoje? — Bee pula nas minhas costas e puxa meu
cabelo, fingindo que sou seu cavalo encantado. Ela faz isso desde menininha, quando começou a
inventar suas histórias mágicas com piratas que viram sereias e dragões que cospem vinho. —
Vovô quer me levar para a vila. Ele prometeu me deixar comprar ingredientes para um bolo.
Pensei em fazermos um de frutas vermelhas, o que acha?

Através do reflexo impresso no vão da janela, encaro sua expressão risonha. Ah, esses
olhos! Gostaria que Filipe visse nossa menina crescer e desabrochar, que participasse de sua vida
e lhe mostrasse os segredos do mundo. Cheguei a mandar cartas para todos os endereços de
Bourbons espalhados pela Itália, mas nenhuma delas teve retorno. Sinto tanto por ele perder isso,
por não poder ver o fruto daquela noite bem diante de si, mas sou grata por tê-la ao meu lado. Só
quando Bee nasceu é que eu realmente entendi o que significava amar. Foi isso que me fez
abandonar de vez o passado e seguir em frente.

Gosto de pensar que o destino foi tão bom para Filipe quanto para mim. Aquela noite me
mudou de várias maneiras e sou grata a isso. Por isso, sempre peço aos mares que levem
prosperidade e alegria para o lar de Filipe, independentemente de onde ele estiver e com quem
tenha escolhido partilhar sua vida.

Às vezes, pego-me imaginando uma realidade diferente na qual teríamos construído um


final feliz. Em meus sonhos, a Máscara Branca teria nos abençoado em vez de amaldiçoar, e
estaríamos unidos por toda a eternidade. Viveríamos em um lar amoroso, sem dúvidas perto do
mar, e cheio de crianças felizes e risonhas. Mas uma pirata e um lorde não foram feitos para
ficarem juntos, nem mesmo nos contos de fadas inventados por minha filha nós teríamos um
final feliz.

Fecho os olhos e quase consigo senti-lo comigo, rindo como um garoto e segurando
minhas mãos com reverência. Não importa o que o destino reservou para nós e muito menos se o
desfecho de nossa história não foi como eu gostaria; o fato é que sempre permaneceremos juntos
em minhas lembranças e nos olhos penetrantes e brilhosos de nossa filha.

— Vamos, Beatrice. — Sorrio para minha pequena benção e beijo sua tez marcada pelo
sol. — Vamos buscar o seu vestido azul.

Enquanto caminhamos em direção ao centro da cidade, afundo as lembranças e a dor da


saudade em um canto qualquer da minha mente e faço uma nova prece aos mares:

Por favor, que um dia minha garotinha conheça o homem que, ao roubar meu coração,
mostrou-me o que realmente significa amar.
Querido leitor, obrigada por acreditar na força das minhas palavras e por, dentre tantas
histórias incríveis já escritas e publicadas, escolher dar uma chance para essa novela. Espero que
tenha se apaixonado pelos personagens — tenho um segredo, mais rápido do que imaginam, eles
voltarão com uma nova aventura para contar.

Manoel, meu parceiro e melhor amigo, espero que saiba o quanto sou grata por tê-lo na
minha vida. Você e a Júlia são a família que sempre sonhei construir. Mesmo que, por muitos
anos eu tenha deixado de acreditar ser merecedora de tamanho amor.

Aproveito para agradecer o apoio incondicional que sempre recebi da minha família. Eles
sonham comigo e, mesmo quando a insegurança bate e acredito não ser capaz, suas palavras me
fazem erguer a cabeça e seguir em frente. Se todas as minhas histórias contam com tramas
familiares baseadas no diálogo e no amor é porque vocês me ensinaram o significado de apoio e
conforto.

Não posso deixar de dizer que essa história, e todas as outras que escrevi depois dela, só
nasceu porque minha agente acreditou em mim. Antes mesmo de conhecer os sonhos do meu
coração, a Alba já estava lutando por mim e pelos romances que eu gostaria de escrever. Não
existe nada melhor do que trabalhar com alguém que entende o valor das histórias que desejo
compartilhar com o mundo.

Cada erro e acerto me trouxe até aqui: uma mulher profissionalmente realizada que,
depois de passar anos um trabalho estável e confortável, resolveu arriscar e viver da escrita. O
Roubo faz parte da minha jornada como escritora, então sempre agradecerei por essa novela;
sem ela, eu não teria escolhido dar vida aos infinitos personagens que habitam minha mente.

Por fim, agradeço a Deus pelo dom da vida e pela oportunidade de vivê-la plenamente.
Foi Nele que eu encontrei o poder libertador de ser eu mesma.

Que, assim como eu, vocês possam realizar os sonhos que mantêm guardados no fundo
do coração. E lembrem: a jornada não precisa começar com um passo certeiro. Quando o assunto
é felicidade, a perfeição é subestimada.

Com carinho,

Paola Aleksandra.
PAOLA ALEKSANDRA é administradora por formação e blogueira por paixão. Mãe da
pequena Júlia, criadora do Livros & Fuxicos, fã assumida de bons romances, filmes e tudo o que
contenha chocolate. É a autora de Volte para Mim (2018), Livre para Recomeçar (2019) e
Reflexos do Passado, todos publicados pela Editora Planeta.

Você pode encontrá-la, para falar sobre suas histórias ou para trocar figurinhas a respeito de
literatura, em:

Redes:

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E-mail: contato@paolaaleksandra.com
Sinopse:

Descubra seu lugar no mundo

Aos dezesseis anos, Brianna Hamilton fugiu da Inglaterra para a Escócia, abandonando sua
família e as obrigações como herdeira de um duque. Em meio aos prados escoceses, a jovem
encontrou refúgio e descobriu mais sobre a mulher que desejava ser. Mas, onze anos após a fuga,
uma dolorosa verdade fará com que ela deseje nunca ter partido.
Voltar será como relembrar o passado, a fuga, o medo e as escolhas que precisou fazer. E,
enquanto luta para reconquistar seu lugar junto à família, Brianna precisará superar Desmond
Hunter, melhor amigo e primeiro amor, que anos antes ela escolheu deixar para trás.
Volte para mim é um romance arrebatador sobre recomeços, sentir-se inteira e, acima de
tudo, confiar no amor.

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Sinopse:

Anastácia carrega na pele as marcas deixadas por um casamento odioso. Em sua última
noite como uma mulher livre, ela perdeu o controle do seu futuro e acabou presa no famoso
hospício para alienados do Rio de Janeiro. Mas agora, três anos após sua internação, Anastácia
precisará enfrentar o passado e descobrir como recomeçar. Quem ela escolherá ser longe do peso
do título de Condessa De Vienne?
Benício de Sá é conhecido como o Bastardo do Café. Lutando diariamente contra a
opressão do pai – um dos mais poderosos cafeicultores do Brasil – ele encontrou na construção
civil a oportunidade perfeita de mudar seu futuro e deixar uma marca no mundo. Contudo,
enquanto a Empreiteira de Sá conquista o cenário carioca, Benício continua preso ao passado e
às marcas que carrega na alma. Será que um dia ele conseguirá libertar-se por inteiro das garras
do seu pai?
Anastácia e Benício se conhecem em meio à ruína, mas é durante a esperança de um novo
começo que eles se reencontram. Agora resta saber se estão prontos para recomeçar.

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Sinopse:

De uma das maiores booktubers do Brasil, criadora do canal Livros & Fuxicos.

Em um dos momentos mais intensos da sua vida, Cecília decide permanecer em São
Paulo e enfrentar os desafios da maternidade longe da família. Contudo, a distância física ganha
um novo nome quando um vírus surge para prendê-la em casa. Preocupada com a saúde do filho,
ela passa os dias lutando contra a ansiedade, o medo e a solidão. Mas tudo muda no dia em que o
destino a presenteia com palavras, fotos e memórias repletas de fé.

Ao olhar para o passado, Cecília descobrirá quantas lutas foram travadas para que as
mulheres da sua família sobrevivessem. E, inspirada por tamanha força, desafiará o presente ao
dar vida à esperança.

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[1]
Tradução livre: A administração dos bailes de máscaras da Ópera comunica, quinta de Carnaval, 11 fevereiro, um grande baile
de máscaras. A orquestra será conduzida por M. Strauss. Você é nosso convidado de honra. Venha celebrar o amor, a dança e dar
graças pela vida.”

Fonte
[2]
Tradução livre: “Trabalhe infame, por pouco dinheiro, adeus querida, adeus querida/Adeus, adeus, adeus
querida! Trabalho infame, por pouco dinheiro/E tua vida a consumir!”.
Fonte

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