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ESTA NOITE MÃE CORAGEM – UFMG (2023)

QUADRO I
A entrada do público será feita pela rua atrás da EBA, pelo portão maior que dá acesso à
Escadaria. No ponto mais alto da escadaria há um telão de onde Foca e Tôca, vigiam a subida. O
auditório é o Centro Cultural da Comunidade que será fechado “para obras”, por tempo
indeterminado, depois da apresentação.
Marcação de cena/movimentação:
 O público, que será entendido como moradores do Ladilá (visitantes), enquanto esperam a
liberação da entrada, ouvem pela Rádio Oficial do Governo ultradireitista, músicas
saudosistas e que apresentam um “morro” idílico e passivo. Na ROG também são dados
comunicados que coloquem o público no “clima”, situando-o no futuro: década de 40 dos
anos 2000. Às vezes acontecem interferências da Rádio Revolta na ROG.
 O ingresso será um crachá de VISITANTE, entregue pela Funcionária da Favela’s Tour -
programa que permite a ida com fins turísticos dos moradores do Ladilá para conhecerem o
Ladicá - e que deverá ser devolvido ao final. Ela informa sobre “curiosidades” da
comunidade e sobre como os Visitantes (espectadores) devem se comportarn’Ladicá,.
 A funcionária do governo, sempre acompanhada de um agente das Forças de Segurança,
tem a chave dos portões e da porta de acesso ao auditório. Com o megafone, informa os
visitantes sobre os perigos da comunidade. Para a comunidade, ela prescreve o
comportamento adequado, e obrigatório, durante a visita dos Duladilá.
 Quando o público entrar a Produtora e o elenco da Cia de Teatro Ladilá, estarão nos
banheiros do auditório terminando de se aprontar enquanto aguardam para apresentarem
a peça Mãe Coragem e Seus Filhos, de Bertolt Brecht, o que só será feito depois da entrada
de todos os espectadores. Os banheiros não estarão interditados, caso entrem “visitantes”
continua a preparação.
Ainda do lado de fora do prédio da EBA, os Visitantes verão cenas e serão abordados na fila
pelos moradores da comunidade d’Ladicá,.
1. - Catarina toca acordeom e tem uma latinha para ver se alguém joga dinheiro. Esta
ação prossegue até que a Mãe a chame para ajudar com as sacolas.
2. Dona Beth, que é madrinha de Jéssica e muito amiga de Jeniffer, usa uma placa de
propaganda, daquelas de VENDO OURO! por exemplo, distribui panfletinhos, etc.

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3. Manteiga e Jéssica correm pelo espaço. Manteiga sempre tentando agarrar e beijar
Jéssica.
4. Jenifer, que deixou o carrinho marcando lugar no primeiro lugar da fila, cata
recicláveis na área em que os visitantes fazem fila./
5. Ana Felinto chega com as sacolas. Chama Catarina e Manteiga para ajudarem.
Sobem o morro por onde inicialmente seria a peça.
FG abre o portão. Os primeiros a entrar serão Jeniffer e Jéssica, que vão com os carrinhos para a
porta fechada do auditório, e Beth. Quando todo o público entra e o portão é fechado:
JENIFER – Eu quero é ver se agora que acabou o dinheiro pra essa tal “Contrapartida Social” vai
aparecer algum artista importante por aqui.
JÉSSICA – E qual artista importante vai querer vird’Ladicá,? Só tem pobreza, ignorância. Tristeza
viver do lado de cá. Olha, esse povo aí. No Ladilá são tudo gente bem de vida. Vão fazer o que
aqui? Mas eu ainda vou pro lado de lá, é só...
JENIFER – Fica quieta, garota. Tem muita coisa boa n’Ladicá,. A gente tem é que lutar para ter uma
vida decente do lado de cá. Você é muito alienada! Eu nem acredito que te pari! Fecha essa boca e
pede a lata daquela dona alí.
(Ana e os filhos entram pelo portão lateral e são barrados por Foca e Toca no alto da Escadaria)
FOCA – Tão indo prá onde, dona?
ANA – Tô indo entregar umas encomenda pro Grandão?
FOCA – Vai dá não, dona!
MANTEIGA – Você sabe com quem está falando?
FOCA – Não faço a menor ideia.
MANTEIGA E CATARINA (em Libras) – Ela é a Mãe Coragem.
FOCA– (impede o acesso) Mas aqui não pode ir subindo assim, não. Cadê o papel?
ANA – Papel? Que papel, rapá!?
FOCA – O salvo-conduto. Tem que tá assinado pelo grandão.
TÔCA – (ainda de fora) O que tá acontecendo aí? (entra) Que isso, Foca? Você não a reconhece?
FOCA – Nunca ouvi falar.
(Manteiga larga as sacolas e assume uma postura de luta, Ana Filinto lhe dá um tapa na cabeça.
Ele reclama e ela reage. Joga o calçado nele que sai puto e tenta ir para perto de Jéssica. Catarina
pega algumas das sacolas que ele deixou e Ana tenta ajudar Catarina.)
FOCA – E por que chamam ela de Coragem?

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ANA FELINTO – Me chamam de Coragem porque quando tiraram os comerciantes do centro, meti
o peito e vim pro Ladicá. Quando as traçantes passam, sou eu que entro e saio, eu que vou de um
lado para o outro trazendo o que essa gente precisa, vai de pão a escopeta.
TÔCA – Aí Foca, se liga, mano: Mãe Coragem tem livre acesso / Dispensa o foguetório / Não
empina a pipa / que Mãe Coragem tem livre acesso
FOCA – Pode passar, desculpa aí, dona. Eu sou novo na comunidade.
(Foca, demonstrando interesse por Catarina, e Toca ajudam com as sacolas e todos somem atrás do
telão.)
(FG abre a porta do auditório, Jéssica e Manteiga, Jenifer, que carrega o carrinho, entram e vão
para as duas primeiras filas. O carrinho fica na rampa, perto de Jenifer. Enquanto os visitantes
entram ouvem as discussões dos atores do Ladilá no banheiro e, enquanto se acomodam ouvem a
rádio oficial, que toca Alvorada até : https://www.youtube.com/watch?v=QFfwRYf3YzE
LOCUTOR OFICIAL - Este programa é um oferecimento de Favela’s Tour com o apoio do
Ministério do En... (interferência. Entra a Rádio Revolta:
RÁDIO REVOLTA : Rádio Revolta, resistência e informação desde 2042. A única em
funcionamento após o bloqueio do sinal. https://www.youtube.com/watch?v=R_4Clufmtq8 até
1:02(?)
(Interferência. Volta a ROG)
ROG – ( Retoma a música interrompida) ... Daqui a 6 meses, a partir de dezembro de 2044, será
liberado o porte de arma para todos os cidadãos de bem. O Estado oferecerá aulas de tiro gratuitas
para maiores de 70 anos e na assembleia discute-se o anteprojeto que autoriza aulas de tiro nas
escolas particulares. O ministro da Fazenda e Agronegócio anunciou que os cofres estão vazios. O
ministro diz que sente muito, mas não vai poder pagar as aposentadorias. Quando todo o público
está acomodado, ainda se ouvem discussões do Elenco do Ladilá que está nos banheiros-camarins.
TONY RAÍZES – Eu não vou levar esse bambu!
MARIA INÊS Nem eu. Isso é um abuso! Cadê os contrarregras?
CARLA (Qual o sobrenome?) Vocês arranjam confusão com tudo.
PRODUTORA – Não vieram. (chamando a FG e a FFT) Os contrarregras faltaram de novo, vocês
precisam ajudar.
FFT – (para os visitantes) Por favor, não saiam daqui! Não andem por aí sozinhos, por favor. Eu
volto num minuto.
(Acontecem as confusões com o telão. No susto do primeiro sinal dado pela produtora, o telão
finalmente fica pronto. Entra a imagem da Logo do Projeto Contrapartida. Segundo sinal. A atriz
que faz o engajador fala com o público)
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MARIA INÊS – Boa noite a todes. É uma alegria estar aqui com vocês e uma tristeza por estarmos
encerrando o importantíssimo projeto Contrapartida Social, criado pelo Ministério da Cultura do
governo anterior e infelizmente...
FUNCIONÁRIA DO GOVERNO – ...felizmente encerrado pelo Ministério do Entretenimento e Tiro
ao Alvo, do governo atual que, em breve, lançará um novo edital, mas sem a mamata das antigas leis
de incentivo. Aguardem!
(Terceiro sinal. Aparece projeção1 da parte explicativa sobre a peça de Brecht )
CARLA - (Entra e enquanto ela “lê” aparecerão projeções) – “A peça ‘Mãe Coragem e seus filhos’
é a crônica de uma ambulante e sua carroça de cantina durante a época da guerra, entre 1624 e 1636.
A guerra dos trinta anos já se desenrola a algum tempo, quando Ana Fierling chamada Coragem,
aparece com seus três filhos de pais diferentes Eilif, Queijo Suíço, e a muda Katrin. Os dois filhos
puxam a carroça da comerciante. Diante desse pano de fundo, desordenado e soturno, de destruição
da vida e da propriedade, sua sorte varia. Diminui quando há promessa de paz, aumenta quando há
guerra. No final, ela acaba inteiramente só, tendo perdido seus três filhos. A desolação das últimas
cenas, simboliza os únicos aproveitadores da guerra, a própria guerra e aqueles que no alto lutam por
seus próprios interesses. Os personagens são esmagados pelas circunstâncias históricas que não
compreendem, nem questionam.” (Para de ler e repete a última frase) “Os personagens são
esmagados pelas circunstâncias históricas que não compreendem, nem questionam.” (Lê a referência
que é projetada.) EWEN, Frederic. Bertolt Brecht. Sua vida, sua arte, seu tempo. 1 Edição, São
Paulo, 1991. página 332.
PROJEÇÃO: PRIMAVERA DE 1624. EM DALARNE, O GENERAL OXENSTJERNA RECRUTA
TROPAS PARA A CAMPANHA DA POLÔNIA. A COMERCIANTE ANNA FIERLING,
CONHECIDA PELO APELIDO DE MÃE CORAGEM, FICA SEM UM DE SEUS FILHOS.
ENGAJADOR – Como vamos recrutar aqui uma companhia? Acredite, sargento, às vezes só me
apetece suicidar. Quando consigo apanhar um tipo, faço vista grossa, sem me importar se tem varizes
ou espinhela caída... Então ele diz que tem que ir lá fora...Não sabem o que é palavra de homem, não
tem honra, não tem lealdade. Foi nesta terra que perdi a minha confiança nos homens, sargento.
SARGENTO –Vê-se bem que por aqui não tem passado a guerra há muito tempo. Donde queres tu
que venha a moral, pergunto eu? A paz não passa de desleixo, somente a guerra para colocar tudo em
ordem. Sem a Guerra, a humanidade aumenta a torto e a direito. Desperdiçam-se homens e cabeça de
gado, como se nada fosse. Cada um mete no bucho o que pode, um naco de queijo no pão e depois
uma fatia de toucinho. (Acaba a luz)
(Blackout total. Toca e Foca acendem suas lanternas. Vão examinando os visitantes para ver se
acham alguém para recrutar)
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FOCA – Ah irmão, já passei dos vinte, tô ficando velho pra essa parada, às vezes eu tenho vontade
de fazer merda, fazer merda adoidado, levar um chumbo no peito e adeus! Se eu não chegar com uns
soldado lá na boca, o Grandão me dá uma coça mano, me enfia no pneu e taca fogo. É uma merda,
sei lá o que foi, mas os menó daqui tá tudo com cagaço, os que não tão trabalhando pros inimigo,
mano, tão a fim de cavar uma merda de salário mínimo. O que sobra é só porcaria. Não tem perfil.
Pra trabalhar na boca tem que ter perfil. A gente paga uma cerveja, dá um baseado, eu vô te dizer,
mano, eles diz que vão, tu pensa que tá tudo em cima, tu procura e... sumiu! Tu não pode contar. Se
os inimigo aparecer mano, eles amarela.
TÔCA – Tudo frouxo! E não é só aqui. Há quanto tempo a boca da comunidade vizinha tá
funcionando sem ninguém falar nada? Os FSs vão lá, levam o troco deles e fica tudo por isso mesmo.
É por isso que o Grandão tá articulando uma invasão, tem que rolar uma guerra pros negócios terem
sucesso. A comunidade fica mole, covarde, só fazendo filho. Você já viu a pá de moleque que tem
aqui no conjuntinho? É por isso que eu falo, só mesmo a guerra por novos territórios vai dar um
futuro para eles.
FOCA - Isso aí, vão viver pouco, mas com dignidade, mano, com dignidade.
TÔCA - Logo que a invasão começar eles vão ver que estão por conta própria, que não tem nenhum
filho da puta se fudendo pra eles. Aí eles vão querer o ferro na mão, sacô... pra poder salvar a pele
(A companhia de teatro do Ladilá, que está toda desorganizada, a funcionária do governo e a da
Favela’s Tour, que baixaram os telões, são surpreendidas pela volta da Luz e se recompõem. Ouve-
se uma gaita.)
SARGENTO – Assim como todas aquelas coisas de categoria, também a guerra custa a começar.
Mas mal desabrocha, ganha raízes, soldados marchando, o som de tambores rufando...[...]A
princípio, tem-se medo da guerra. Sempre é coisa desconhecida.
ENGAJADOR – Olha sargento, aí vem uma carroça.
(Projeção: é corrigida os atores se encaixam na imagem)
ENGAJADOR – Duas mulheres e dois rapazes. Manda parar a velha. Se não for desta vez, acabou-
se, eu já estou farto de ficar aqui.
ANA FIERLING – Bom dia, senhor sargento.
SARGENTO: Bom dia, boa gente. Quem sois?
ANA FIERLING– Somos comerciantes.
QUEIJINHO – Essa é a mãe Coragem!
(EILIF E QUEIJINHO ainda presos à carroça. Ana Fierling vai para trás do TM, pega uma
garrafa enquanto Kattrin pega um copo.)
SARGENTO – Por que se chama Coragem?
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ANA FIERLING – (enquanto enche o copo do Engajador) Chamo-me coragem, sargento, porque
tinha medo de ficar arruinada e atravessei o fogo da artilharia de Riga, com cinquenta pães na
carroça. Já estavam cheios de bolor, e por isso não havia tempo a perder, que eu não tinha outro
remédio.
(Ana Fierling faz sinais para Kattrin pegar outro copo. Kattrin vai à carroça atrás do TM, pega o
copo, volta e serve o sargento. Ana Fierling, o engajador e o sargento bebem).
ANNA FIERLING – É toda a papelada que tenho, sargento. Um livro de missa, todo inteirinho,
serve para embrulhar pepinos, [...] Chega de papelada senhor sargento?
SARGENTO – A mim não me seduzes, atrevida. Sabes muito bem que precisas de uma licença.
ANNA FIERLING – O senhor, fale decentemente comigo e não diga na frente dos meus filhos que
pretendo seduzi-lo, que isso não são inconveniências que se digam. Nunca andei metida consigo.
ENGAJADOR – Sargento, esta criatura manifesta um espírito rebelde. No acampamento apreciamos
a disciplina.
ANNA FIERLING – Julgava que apreciavam mais as salsichas. (risos do pessoal do morro que
assiste à peça)
SARGENTO – Nome?
ANNA FIERLING – Anna Fierling.
SARGENTO – São todos Fierling, portanto?
ANNA FIERLING – Todos por quê? Eu sou Fierling. Eles não.
SARGENTO – Então não são todos teus filhos?
ANNA FIERLING – São, sim, senhor, mas isso é razão para terem o mesmo sobrenome? (Aponta o
primeiro filho) Este, por exemplo, chama-se Eilif Nojocki, por quê? Porque o pai dele dizia sempre
que se chamava Kojocki ou Mojocki. O rapaz lembra-se muito bem dele, mas, na verdade, é de outro
que ele se lembra, de um francês de barbicha. Mas, à parte isso, herdou do pai a inteligência; o pai
era capaz de tirar as calças a um lavrador sem que este desse por isso sargento. E assim cada um de
nós tem um nome diferente.
SARGENTO – Um sobrenome para cada um?
ANNA FIERLING – Ora, sargento, até parece que nunca viu disso.
SARGENTO – Então aquele é filho de chinês?
ANNA FIERLING – Errou, de suíço.
SARGENTO – Depois do francês, foi um suíço?
ANNA FIERLING – Depois de qual francês? Não sei de franceses. Não embaralhe as coisas, se
quiser acabar com isto antes do anoitecer. É suíço, mas chama-se Fejos. O pai chamava-se de outra
maneira e era um construtor de fortalezas que bebia como uma esponja.
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JENIFER - É assim mesmo! Eu tive um homem assim, bebia que nem um gambá, quebrava tudo.
FUNCIONÁRIA DO GOVERNO – Fica quieta! Vai catar seu lixo!
JENIFER – Lixo é o caralho! É material reciclável.
SARGENTO – Mas por que ele se chama Fejos?
ANNA FIERLING – Não quero ofendê-lo, sargento, mas a imaginação não é o forte de Vossa
senhoria. Chama-se Fejos, já se vê, porque quando viu a luz do mundo andava eu com um húngaro,
JENIFER – Essa é das minhas. Homem bom é o que tá na mão.
FUNCIONÁRIA DO GOVERNO - Cala a boca, isso é teatro!
ANNA FIERLING - e a esse tudo lhe era indiferente,
JENIFER - (interagindo com a plateia) Quem me mandou calar a boca? Ninguém me manda calar a
boca!
ANNA FIERLING - e a esse tudo lhe era indiferente...
JENIFER – eu sei que é teatro, eu estou gostando, quero falar. Por que eu não posso falar?
ANNA FIERLING – tudo lhe era indiferente...
FUNCIONÁRIA DO GOVERNO - É teatro sério!
ANNA FIERLING – e a esse tudo lhe era indiferente, indiferente...
FUNCIONÁRIA DA FAVELA’S TOUR - (soprando) Tinha uma doença mortal nos rins...
ANNA FIERLING - Tinha uma doença mortal nos rins...
JENIFER – Coitado, era cirrose? O pai do meu mais novo morreu de cirrose.
ANNA FIERLING – Embora nunca bebesse pinga.
JENIFER – O meu também não gostava de pinga, só entornava é na cerveja.
ANNA FIERLING – Este eu chamo de Queijinho e ele é uma beleza para puxar a carroça.
JENIFER – Puxar carroça não é fácil, não.
ANNA FIERLING – Esta, chama-se Kattrin Haupt e é metade alemã.
SARGENTO – Uma bela família, não haja dúvida.
ANNA FIERLING – Pois é. Já atravessei o mundo inteirinho puxando carroça.
JENIFER – Duvido que tenha andado mais do que eu colega. Se eu botar na ponta do lápis....
VOZES - Cala a boca!
JÉSSICA – Fica quieta, mãe! Não tá dando pra escutar nada do teatro.
FUNCIONÁRIA DO GOVERNO - Cala a boca e vai embora!
FUNCIONÁRIA DA FAVELA’S TOUR – Fala baixo, querida. Está atrapalhando!
JENIFER – atrapalhando o quê? (para a atriz que faz ANNA FIERLING) Diz aí, colega, eu estou
atrapalhando? Eu sei que é teatro.

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SARGENTO – ( Eilif) Forte como um touro! Eu achava melhor que vocês se chamassem boi –Jacó e
boi-Esaú.......
JENIFER - Esse é o problema. A gente puxa a carroça, mas não é boi não. A gente é cidadão! Tem
direitos...
FUNCIONÁRIA DO GOVERNO – Cala a boca!
JENIFER – Cala a boca o quê. Vem aqui! Vem aqui pra me fazer calar a boca. Não posso falar nessa
merda de teatro, então pra que que isso me serve? Merda, tá ouvindo? Vocês tão se achando muito
melhor que eu. Essa carroça aí é de mentirinha, a minha não! Não posso falar na merda do teatro, de
que me serve? (dando uma banana) Aqui pro’cês (para os atores), aqui pro’cês (para o público do
teatro), aqui pro’cês tudo (para o público.) Anda, menina!
JÉSSICA – Ai, que vergonha. (Saem)
SARGENTO – [...] Vejo que estes rapazes [...] tem boa peitaça e pernas bem robustas: palavra que
gostava de saber por que é que essa gente se quer livrar do serviço militar?
ANNA FIERLING – Nada a fazer, sargento, os meus filhos não foram feitos para os trabalhos da
guerra.
ENGAJADOR – Mas por que não? A guerra dá lucros e glória. Vender calçado é coisa de mulheres.
(para Eilif) Avance, quero apalpar os teus músculos. Ou és um maricas?
ANNA FIERLING – És um maricas! (Ouvem-se tiros.) O que é isso?
TONY RAÍZES – Deve ser foguete... (ouvem-se muitos tiros)
MANU - Corre gente, que é tiro!
DEFINIR E REGISTRAR OS RUMOS DE TODOS DEPOIS DO TIROTEIO
Fim do primeiro quadro. Rádios. A diretora e o ausente fazem o rearranjo dos elementos
cênicos se necessários. Projeções: estatísticas da violência, feminicídio e sobre outras questões
atuais, mas sempre datadas como futuro.
QUADRO II
PROJEÇÃO – PRIMAVERA DE 2044.n’Ladicá,, NO DIA SEGUINTE AO TIROTEIO, ANA
FELINTO, CONHECIDA COMO MÃE CORAGEM, PRESSENTE BOAS POSSIBILIDADES DE
NEGÓCIOS E PERDE UM FILHO.

MARIA INÊS – (Chorando e sendo consolada por D. Zezé) Eu ainda não acredito que o Wem
morreu. Uma morte horrível.
ZEZÉ – Console-se, dona Maria Inês, é a vida. Um dia se está vivo e no outro
MARIA INÊS – Morto.
MANTEIGA – (para Fernanda) Ô tia, cês já tinham ouvido barulho de tiro antes na vida?
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MARIA INÊS – Só na televisão.
MANU – Eu também. Deus me livre! Eu quase morri de medo. Achei que não saía viva daqui.
GRANDÃO – (chegando no bar com Ivonete) Agora tá tudo sobre controle.
TÔCA – Os F.S. ontem invadiram, mas a gente derrubou uns dez, sacô? Foi ou não foi Grandão?
GRANDÃO – Uns três, né mano? (para Manu) Se as moças quiserem ir, o resto do povo do teatro já
ralou peito mesmo, né? (para o Braço-direito) Ô Tôca, acompanha as duas aí, mano.
JENIFER – Eu acho melhor elas esperarem um pouco.
MARIA INÊS – Olha eu quero ir logo para casa encontrar o pessoal. Vamos embora?!
MANU – Ah, eu não vou embora agora não.
MARIA INÊS - Você ficou louca?
MANU – Que isso? Eu sempre quis saber como esse pessoal vive. Vou ficar aqui um pouco. Depois
eu vou.
TÔCA - A moça gostou da quebrada?
JENIFER – Ah, que bom, assim a moça conta para gente como é que termina a história da Mãe
Coragem
IVONETE – O que é isso, Jennifer? Você acabou com o teatro lá ontem.
JENIFER – Ah, quem acabou com o teatro lá ontem foi aquele tiroteio.
TÔCA – Chega de lero lero. Vamo nessa dona.
MARIA INÊS – Tchau, dona Zezé.
ZEZÉ –Tchau, minha filha, vai com Deus.
MARIA INÊS - Brigada seu Grandão.
GRANDÃO – Aí, tia, pode ficar tranquila eu vou cuidar da moça aqui pessoalmente.
(MARIA INÊS sai com Tôca)
IVONETE – (Com ciúme, percebendo os olhares entre Manu e Grandão) Ô Grandão, meu amor,
vamo pra casa que eu tô com dor de cabeça.
GRANDÃO – Toma um remédio. Zezé, dá um remédio aqui pra Ivonete, uma branquinha pra minha
mesa (para a mesa que está Ana e seus filhos Aleph e Manteiga. Jéssica e Jennifer, catam
recicláveis) Ei, vocês aí, o que querem beber?
JÉSSICA – Um refrigerante... por favor!
JENIFER – Você nem bebe refrigerante! Deixa de ser oferecida!
GRANDÃO – Deixa a menina! Pega lá o refrigerante, com a D. Zezé.
JÉSSICA – Muito obrigada, seu Grandão. Só tem desse D. Zezé?
ZEZÉ – Bota a mão pro céu que ainda tem desse, o caminhão não sobe mais.
JÉSSICA- Desse não gosto. Posso trocar por uma coxinha, Seu Grandão?
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GRANDÃO – Claro, pega o que quiser.
JÉSSICA – Gratidão.
IVONETE – (Já com ciúmes) Educadinha sua menina, hein Jennifer?
JÉSSICA – Seu sapato é tão bonito, Dona Ivonete.
GRANDÃO – E vocês aí?
ANA – Obrigada, viu? Mas não queremos nada.
(Grandão sai com Manu)
ZEZÉ – Ô Ana vê se consegue mais umas latas prá mim.
ANA – Tá difícil, Zezé. É mais fácil conseguir uma bazuca do que umas lata de cerveja.
(Ana e os filhos saem. Zezé dá umas latas para Jeniffer que vai embora pela rampa. Jéssica fica de
longe “hipnotizada” pelos sapatos vermelhos de Ivonete)
IVONETE – Luna, bota as cartas pra mim.
LUNA – Si pagar.
IVONETE – Claro.
LUNA – Antecipado. (Ivonete paga) Ay mija, sobre o Grandão otra vez? Que te preocupas?
IVONETE – Preciso saber...preciso saber se eu vou ou não ser trocada. Se vai ter algumazinha pra
tomar meu lugar do lado dele.
LUNA – Hmm.. (embaralha rapidamente e tira algumas cartas pra colocar na mesa *imperatriz,
imperador, rainha de espadas, amantes, roda da fortuna invertida, o mundo, 9 de espadas, a torre, a
morte, 10 de espadas*, ajeita as cartas e observa um pouco antes de voltar a falar) Não vou mentir
pra você mija, tem uma moça pintando na área que pode ser un dolor de cabeza, ela tem vocação..é
uma atriz, pero no cambiará nada entre vocês dois. O que vocês tienen é muy más grande.
IVONETE – Então não tem com o que eu me preocupar né? E essas outras cartas todas aí? Não
gostei dessa morte não, ta querendo dizer o que?
LUNA – Você tem guardado essas dúvidas e ficado muito ansiosa, mas sobre eso va a estar bien..o
que veo es otra cosa. (separa as cartas e mostra pra ela enquanto explica) Vai ter uma mudança
imparable logo adelante, e tem a ver com o Grandão. Veo dolor y perda, dificuldade más pode ser
mudado.. para el fin de um ciclo, algo que acaba não bem, más también não mal.
IVONETE – Que isso Luna...e o que eu faço?
LUNA – Se preza por ele, mantente con él. Não é algo que você pode parar, ele faz as próprias
escolhas e destino. Mas se quieres, tenho aqui una bolsita de buena suerte comigo, te vendo por
metade do preço y tu pondrás por de bajo do travesseiro dele.
(Ivonete não compra(?) e sai. Jéssica segue os sapatos com os olhos. Na casa de Ana, acontece a
conversa dela com os filhos.
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MANTEIGA – Eu não entendi, mãe, foi o Grandão que ofereceu. Por que a senhora não aceitou?
ALEPH – E por que a mãe teria que aceitar algo de um criminoso, Manteiga?
MANTEIGA – O Grandão não é um bandidinho como você pensa, ele protege a gente, ajuda a
comunidade.
ALEPH – Ajuda como? Aliciando os menó pro tráfico? Vendendo droga por todo lado? Você morre
com um tiro, ou com o nariz branco, grande ajuda.
ANA – Parou vocês dois. É sempre assim, dois minutos conversando e começam a discutir. (para
Aleph) O que você queria falar comigo, filho?
ALEPH – Eu vou me juntar às Forças de Segurança, mãe.
ANA – Ficou louco de vez, Aleph?! Às FS?!
ALEPH – Isso mesmo, as FS estão aceitando qualquer um que queira entrar. A coisa está ficando
séria mãe. A gente tá numa guerra e eu quero estar do lado certo.
MANTEIGA – Lado certo? Como que é o seu ‘lado certo’? Quando as FS invade mata todo mundo
que tá na frente, não importa se é criança, trabalhador, estudante. Se mora aqui prá eles é tudo
bandido. Você tá querendo é montar milícia e receber dinheiro da galera que mora aqui...
ALEPH – Me respeita! Você acha que o Grandão é um santo, né? O tráfico não é como você está
pensando, Manteiga. Ele pode até conseguir alimentar algumas bocas, mas muita gente tem que
sofrer pra isso.
ANA – Tenha juízo, capeta. Você quer virar x9? Quer nunca mais poder entrar na comunidade? Quer
levar um tiro do Grandão?
ALEPH – Não tenho medo. Eu quero é o Grandão na cadeia. Eu quero é acabar com o tráfico aqui na
comunidade...
ANA – Deixa de ser tonto... já não basta a Catarina querendo salvar o mundo. Tenha juízo e fique
com a sua mãe!
ALEPH – Eu vou hoje, mãe, já está decidido.
RÁDIO OFICIAL – Atenção! Comunicado urgente. “O General Ostraterna comandante-chefe das
Forças de Segurança, comunica que finalmente todas as entradas e saídas de vilas e favelas, todos os
acessos às comunidades por terra, mar e ar estão controladas pelas forças de segurança.
Não haverá qualquer espécie de invasão ou (Diálogos entre traficantes no radinho)
violência, FOCA – Alô? Alô? Pipa1, na escuta mano?
apenas o controle de entrada e saída para a TÔCA – Pipa1, na escuta Pipa2.
segurança de todos os moradores. Denuncie FOCA – Aí irmão, sujou o bagulho, o bondão de FS tá
os criminosos! Sua identidade será subindo.
preservada. TÔCA – Entendido Pipa 2. Pipa1 Grandão na escuta?
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Não haverá qualquer espécie de invasão ou GRANDÃO – Na escuta mano, qual foi?
violência, TÔCA – Aí, as FS tão invadindo o morro.
apenas o controle de entrada e saída para a GRANDÃO – Se liga na atividade malandragem,
segurança de todos os moradores. Denuncie vamo barulhar os cara.
os criminosos, sua identidade será TÔCA – Demorô! Demorô!
preservada.
ANA – Aleph, leva o Manteiga pra casa. Eu vou ver o que está acontecendo.
MANTEIGA – Eu sei me virar sozinho!
ANA – Vão agora!
CORO - Cerca elétrica,
caco de vidro,
arame farpado.
Uns não entram, outros não saem.
Quem, afinal, está cercado?
Foguetes, pipas, barreiras, olheiros.
Uns não entram, outros não saem.
Quem, afinal, está cercado?

Fim do segundo quadro. Rádios. A diretora e o ausente fazem o rearranjo dos elementos
cênicos, se necessário. Surgem projeções sobre questões atuais, mas sempre datadas como
futuro.

QUADRO III
PROJEÇÃO – ANA FELINTO APROVEITA O CERCO E EXPANDE SEUS NEGÓCIOS.
VENDE UM FRANGO TEMPERADO COM CURRY E UM 38 DE FABRICAÇÃO NACIONAL.

CORO – (atrás do telão e com incidência de luz que os tornem “crianças”) Mãe Coragem tem livre
acesso / Dispensa o foguetório / Não empina a pipa, que Mãe Coragem / tem livre acesso / Dispensa
o foguetório.
ANA – (Descendo, com sacolas, o corredor que dá em sua casa. É como se as “Crianças estivessem
ao redor dela) Sai, menino! Ô, fiadaputada, que merda! Pra ajudar a gente não acha ninguém. Esses
menino não tem mãe não, vive tudo na rua, vai dar nada que presta. Saí daqui. Saí daqui! Alma boa
pra ajudar não tem nenhuma, mas pra encher o saco tem mais de mil. Ô, vou te contar, viu? Ô bosta,

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ô bunda, ô merda! Vai trabalhar, trem. Pra encher o saco tem mais de mil, viu? Larga do meu pé
chulé. Ô inferno! Capeta. Cadê a mãe dessas merda?
(Ivonete de sua casa – que é a escada – e com o acompanhamento do violonista, canta: O morro
não tem vez. Enquanto a música é cantada, atrás do telão: - Foca ensina Manteiga a mexer com a
“escopeta” e lhe dá drogas para vender. - Aleph, em posição de sentido, bate continência para um
superior que lhe entrega um mosquete.)
O morro não tem vez
e o que ele fez
já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro, toda a cidade vai cantar
O morro não tem vez
e o que ele fez já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro, toda a cidade vai cantar
Morro pede passagem,
morro quer se mostrar
Abram alas pro morro, tamborim vai falar
É um, é dois, é três, é cem, é mil a batucar
O morro não tem vez... https://www.youtube.com/watch?v=D-p_QKTU1ho Até 1:28.
ANA – (já subindo a escada) Ô de casa. Tô entrando, Ivonete. Tá ensaiando? Olha a superoferta de
hoje. Pensei logo em você. (Mostra o frango) Só vinte e cinco reais novos.
IVONETE - Vinte cinco reais novos por esse franguinho miserável?
ANA – Franguinho miserável, Ivonete? Um frango deste tamanho, limpo, temperado, fresco, pronto
para ir para a panela. E o guloso do Grandão? Ele não tem vinte e cinco reaizinhos novos? Coitada
de você se não lhe der nada para comer!
IVONETE – Ô Ana, bicho como esse aqui eu arranjo às dúzias por dez, é só descer o morro...
ANA - É? Então desce! Desce, que eu quero ver! O morro tá cercado. E você, sendo mulher de quem
é, vai se arriscar a descer? Não vai descer? Ah, se não fosse eu me arriscar, vocês iam tudo morrer de
fome. Quer saber? O frango é meu. você quer levar? Faço por trinta?
IVONETE – Você falou vinte e cinco, agora quer trinta?
ANA – Tá achando trinta e cinco demais? Então não leva. Se o Grandão não encontrar nada para
comer, ele torce o seu pescoço. (Ivonete compra o frango. Ana vai para casa).

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(Em casa, Ana conta os trinta e cinco reais novos que ganhou na venda do frango e verifica se a
nota é falsa, guarda na sua caixa-cofre. - Ari começa a trabalhar no muro.)
ROG - Atenção comunidade: Foi fechado o acordo entre as autoridades federais, estaduais e
municipais que garante recursos do banco Mundial para a construção do muro da paz. O governador
afirmou que desta vez o muro sai mesmo.//
MISSIONÁRIA – (chega à casa de Ana e bate palmas. Ana vai para “os fundos Catarina atende.)
Boa tarde. A dona Ana está? (Catarina a observa) A Dona Ana, que tem por apelido Coragem, ela
está? Meu nome é Joana. Sou sargento do...
ANA – (entrando) Sargento? O que houve? Somos negociantes, gente honesta. Por que o exército
vem a minha casa?
MISSIONÁRIA – Dona Ana? (entrega um papel)
ANA – Felinto. Ana Felinto. Prazer.
MISSIONÁRIA – Sou Joana, soldado de Deus. Onde cresce a agitação, onde desponta a violência,
aí estamos nós, marchando com tambores e bandeiras, lembrando aos homens que Deus existe, coisa
que todos esquecem. (Catarina tira o chapéu da missionária e o experimenta) Nós nos dizemos
soldados porque formamos um exército, que marcha contra as forças das trevas, contra as forças que
nos puxam para baixo e...
ANA – (que leu o panfleto) Ah, entendi. A senhora não é soldado? Não é sargento de verdade? (para
Catarina) Devolve o chapéu, menina!
MISSIONÁRIA – Somos soldados de Deus! Ele é a solução definitiva. Lutamos para que todos
possam disputar um lugar lá em cima, e não aqui embaixo. O importante, dona Ana, é ser o primeiro
no céu e não na terra, que não resolve. Aliás, vocês mesmos estão vendo como é precária a felicidade
terrena e...
ANA – Tira isso, Catarina!
MISSIONÁRIA – A desgraça cai sobre nossas cabeças de repente e sem explicação, como a chuva
que nos molha sem que ninguém seja culpado. Haveria acaso, um responsável pelas suas desgraças?
ANA – Deus?
MISSIONÁRIA – Não, Dona Ana.
ANA – Está certo, mas o que a senhora quer comigo?
MISSIONÁRIA – Estou aqui para cumprir a minha missão e fui informada de que a senhora é uma
pessoa respeitada na comunidade. Eu preciso que alguém me apresente...
ANA – Devolve essa merda desse chapéu, Catarina! (Ela devolve) Desculpa. Eu sou só uma
comerciante, o poderoso, o general do pedaço é o Grandão.
MISSIONÁRIA – E onde eu posso encontrá-lo?
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(Catarina, em libras, se oferece para levá-la até Grandão)
ANA – Tá bom, Catarina. Leva a dona na casa do Grandão, mas não demora não, volta logo.
ARI – Massa mole, massa mole.
CORO DOS OPERÁRIOS: Tem que ser concreto forte / Duro como a miséria do lado de cá / Forte
como o medo do lado de lá / Pra ninguém mais duvidar de que lado está. / Tem que ser concreto
forte / Duro como a miséria do lado de lá / Forte como o medo do lado de cá / Massa mole, massa
mole / Pra ninguém mais duvidar de que lado está.
ARI - Massa mole, massa mole.
CORO DOS OPERÁRIOS: Tem que ser concreto forte / Duro como a miséria do lado de cá
MISSIONÁRIA – Qual será a razão da sua pobreza? (Catarina deixa claro que não sabe) Eu vou
explicar. A sua pobreza não reside na falta de bens terrenos – estes não dão mesmo para todos – mas
na sua falta de espiritualidade. É por isso que vocês são pobres.
CATARINA – Mas por que os bens terrenos não dão para todos? (A fala em libras, é traduzida em
português no telão)
CORO DOS OPERÁRIOS: Forte como o medo do lado de lá
MISSIONÁRIA - As satisfações baixas a que vocês aspiram: uma janta, a casa arranjada, o cinema,
são satisfações vulgares e materiais, mas a palavra de Deus é um prazer mais fino, mais íntimo, mais
requintado. Vocês talvez não imaginem nada mais doce que um sorvete, mas a palavra de Deus é
muito mais doce, ela é infinitamente doce! É como leite e mel, e quem mora com ele, mora num
palácio de ouro e mármore...
CATARINA – Não precisamos de palácios de ouro e mármore. (A fala em libras, é traduzida em
português no telão)
CORO DOS OPERÁRIOS: Para ninguém mais duvidar de que lado está.
MISSIONÁRIA – Gente sem fé! Os pássaros que cruzam os céus não têm carteira de trabalho, os
lírios do campo não têm emprego, mas Deus lhes dá o sustento, para que cantem a sua glória...
CORO DOS OPERÁRIOS: Tem que ser concreto forte / Duro como a miséria do lado de lá
MISSIONÁRIA – Vocês só pensam em subir na vida, mas subir para onde? Subir de que maneira?!
CORO DOS OPERÁRIOS: Forte como o medo do lado de cá / Massa mole, massa mole / Para
ninguém mais duvidar de que lado está.
CATARINA – Eu também canto a Glória do Senhor, mas lírios são lírios e gente é gente! (A fala em
libras, é traduzida em português no telão)
(Catarina e a Missionária chegam à casa do Grandão. Focão está na “porta", Catarina o vê e sai
correndo).
MISSIONÁRIA – Com licença? O senhor é o senhor Grandão?
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FOCA – Quem quer saber?
MISSIONÁRIA – Joana. Sargento de Deus?
FOCA – Sargento?
MISSIONÁRIA – (Começa a repetir o que já falou para Ana) Somos soldados de Deus! Ele é a
solução definitiva. Lutamos para que todos possam disputar um lugar lá em cima, e não aqui
embaixo. O importante...
FOCA – Espere aí, que eu vou ver se ele pode atender. Espera aí.
ANA – (Em casa) Está tudo parado, todo mundo com medo, ninguém entra e ninguém sai. Amanhã
eu vou descer de novo. Enquanto continuar o cerco, a gente aumenta as vendas. Quando o tal muro
ficar pronto, vai melhorar ainda mais. (Catarina chega em casa) Catarina, onde está seu irmão? (ela
não responde). Ele sumiu desde ontem. Ele some e nós temos que cuidar de tudo sozinhas, minhas
costas já estão um bagaço, ele pelo menos podia carregar as sacolas...
CATARINA – A senhora devia ter dado o dinheiro que ele pediu.
ANA – Dar o dinheiro que ele pediu? Vocês pensam que dinheiro é capim. Para que o seu irmão ia
precisar de dinheiro?
CATARINA – Ele está devendo para o Grandão.
ANA – Grandão? Ele tá devendo ao Grandão? Devendo ao Grandão o quê? Seu irmão não usa
“tóchico”, por que ele está devendo? Hoje é o dia da despedida da Zezé. Sem poder vender
bebida...coitada... Eu vou lá cantar, eu prometi para Zezé, e a gente tem que sair. Tem que levar a
vida, não é? Por que você não vem comigo? (Catarina mostra uma notícia em um jornal – que é o
mesmo que o público recebeu como programa. Ana lê). “...os tiros foram dados à queima-roupa.
Aparentam ser menores, mas estavam completamente desfigurados”. Ah, não! Você vai ficar
maluca, Catarina, de tanto ler desgraça. Não tem nenhuma notícia boa nesse jornaleco. Esquece isso,
Catarina. Eu vou no bar da Zezé, ouvir música boa, cantar um pouco, espairecer. Se chegar algum
cliente, você não atende, Catarina. Não abre a porta para ninguém, entendeu? (Catarina não
responde) se o seu irmão chegar, diz para ele não sair antes de eu voltar, entendeu? Entendeu ou não
entendeu?
(Catarina em casa toca o acordeom. Ana vai para o bar cantando pelo caminho, a música que
Catarina toca. Em cena muda, Grandão chega em casa com Jéssica, que está com o sapato
vermelho de Ivonete – ou igual ao dela. Fica claro que fizeram sexo. Grandão despacha Jéssica,
que sai feliz com seu sapato novo. Grandão assume o lugar mais alto de sua casa. No telão aparece
Manteiga se drogando.)
FOCA – Grandão, a moça aí tá dizendo que é soldado de Deus.

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GRANDÃO – Já entendi. Toma moça, é para os pobres, está ouvindo? Mas saiba que eu não tenho
obrigação nenhuma. Só faço isso porque gostei do seu rostinho tão fofo e ingênuo.
MISSIONÁRIA – Senhor Bocão...
TÔCA – É Grandão.
MISSIONÁRIA – Sr. Grandão, eu agradeço, mas o que eu precisava é que o senhor nos
recomendasse à comunidade.
GRANDÃO – OK! Pode dizer por aí que eu aprovo a atividade de vocês. Mas desde que a moça-
sargento cuide de seu exército e não se meta com o meu.
MISSIONÁRIA – Fique tranquilo, Sr. Grandão, pois nossa luta é contra o mundo de trevas!
Seguimos contra o avanço dos vermelhos que ameaçam o livre exercício da nossa fé, que querem
destruir nossas famílias e desvirtuar nossas crianças. Deus é a nossa bandeira! A fé é nossa arma
contra a violência.
GRANDÃO - Nós usamos a violência na medida necessária à proteção e ao sucesso do nosso
negócio.
ROG (vinheta: – https://www.youtube.com/watch?v=n3SBckyhfP8 Agora é oficial. Está
terminantemente proibido o consumo de bebida alcoólica nas comunidades em situação de
vulnerabilidade. Com a intenção de diminuir os alarmantes índices de alcoolismo, que destrói as
famílias, e para aumentar a segurança da população mais vulnerável. Pensando no bem-estar do
povo, foi aprovado na Câmara e no Senado o decreto que não permite mais a venda ou o consumo de
álcool nas comunidades, vilas e favelas. A fiscalização será redobrada e as Forças de Segurança...
(interferência da Rádio Revolta). https://www.youtube.com/watch?v=R_4Clufmtq8 Até 1.16 . (?)
Volta a ROG.
ROG - Fiquem atentos as novas regras! https://www.youtube.com/watch?v=n3SBckyhfP8
No bar.
(Mesa 1: Ana, Jenifer, Jessica, Ari. - Mesa 2: Manu, Ivonete, Grandão. As mesas estão separadas,
mas próximas o suficiente para um se intrometer na conversa do outro)
JENIFER – E aí, Zezé? Vai ter mesmo que fechar o bar?
ZEZÉ – Fazer o quê? E pensar que esse bar foi a minha finada mãe quem levantou. Foi ela, que
Deus a tenha!
MISSIONÁRIA – (entrando) Amém!
IVONETE – Saravá!
ZEZÉ – Foi ela quem levantou. Trabalho nele desde os meus 5 anos, e agora vou ter que fechar.
ARI – Mas não tem nada que dá pra fazer, Zezé?

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ZEZÉ - E o que tem pra fazer, Ari? Desde que esse governo assumiu as coisas só pioram, acabou o
forró de terça, as rodas de samba de sábado. E agora com essa proibição de venda de bebida
alcoólica como vou manter o bar aberto? Só com refrigerante? Quem mandou o povo ter memória
curta e esquecer de 2018. Eu pensava que os fascistas nunca mais voltariam ao poder... Mas hoje é
dia de festa! Tenho que diminuir o prejuízo, vender o que ainda tenho. É festa! Quero todo mundo
comprando e se divertindo.
ANA - Tá certa, Zezé. Sempre se dá um jeito. Cê num vê eu? A gente se arranja do jeito que dá.
GRANDÃO – É Festa. Vai lá, Zezé! Uma branquinha pra todo mundo que eu tô pagando.
ANA – Ô Ari, e essa história de muro. Ele sai mesmo?
JENIFER – Sai. Ari já foi até contratade. Já começou a trabalhar.
ARI – Eu e mais um monte de gente d’Ladicá. A grana é pouca, mas é certa!
MISSIONÁRIA – O pouco com Deus é muito. O muito sem Deus é nada!
ARI – E o que a senhora tá achando do muro, D. Ana?
ANA – Ah, eu? Eu não acho nada. Eu só quero meus filhos d’Ladilá. (apontando alguém da plateia)
do lado daquela(e) moça(o) ali, ó.
ARI – Vai cercar tudo de fora a fora e vai separar os pessoal dos bandido.
JENIFER – Ah, vai separar o pessoal dos bandido. O pessoal eles e os bandido nós, né?
ARI – Você é bandido? Eu sou bandido? Então, eles vão construir o muro, mas os pessoal vai poder
passar de lá pra cá de cá pra lá.
MANU - E como a gente atravessa o muro?
MISSIONÁRIA – Não há muros para quem tem fé! A fé remove montanhas!
ARI – Eu num sei direito como atravessa. Eles disseram que vão colocar umas catraca.
JENIFER – Catraca, Ari? Catraca? E como eu vou passar com a carroça?
ARI – Num sei. O pessoal vai subir aqui, e vai fazer um cadastro, depois vai distribuir umas
carteirinhas pra gente.
JENIFER – Carteirinha, Ari? E com essa carteirinha, eu consigo passar com a carroça?
MANU – Deve ser um cartão hipertropmagnético. D’Ladilá tudo é com cartão hipertropmagnético!
É uma beleza.
ARI – É isso. Quando um cara for passar pela catraca, se ele tiver com dívida ou ficha nas Força de
Segurança a catraca para.
JENIFER – E se a catraca parar na vez da gente?
ARI – Você tem ficha nas FS? Eu tenho ficha nas FS? Então, a gente passa.
MANU – E aí, missionária, o que você tem a dizer sobre isso?
MISSIONÁRIA – A fé remove catracas. (vai embora)
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JENIFER – (já um pouco bêbada) Ô, gente, isso é inconstitucional. Nós precisamos fazer alguma
coisa.
MANU – Esse muro nunca que vai ficar pronto.
ARI – Vai ficar logo, logo. É trabalho 24 horas por dia. Eu acabei de sair do meu e o pessoal do
turno da noite acabou de entrar. Esse muro tem que tá pronto até as próximas eleições.
JENIFER – Não. Não. Isso é inconstitucional! Inconstitucional! Precisamos reagir e...
ARI – Vai reagir, mulher? Você quer que eu perca meu emprego?
JENIFER – Não, queride, mas como é que eu vou passar com a porra da minha carroça.?
MANU – Já sei! Tive uma ideia ótima: a gente vai fazer uma peça política, bem brechtiana, para

discutir a questão do muro. Pode até ser um musical.

(Todos se levantam e começam a cantar e dançar)


CORO: (no ritmo animado) Tem que ser concreto forte / Duro como a miséria do lado de lá / Forte
como o medo do lado de cá / Para ninguém mais duvidar de que lado está / Massa mole / Massa mole
/ Pra ninguém mais duvidar de que lado está.
JENIFER – Ô Zezé, bota o karaokê aí. Eu vou cantar aquela de sempre.
TODOS – Não! De novo, não!
JENIFER- Vou cantar! Eu canto essa música desde que eu era pequenininha assim!
JÉSSICA – Ai, Mãe. Que vergonha!
(Jenifer canta: Chupa que é de uva) https://www.youtube.com/watch?v=LM4bZSdP3Ss
Até 01:06 –
Vem meu cajuzinho!
Te dou muito carinho.
Me dá seu coração!
Me dá seu coração!
Vem meu moranguinho!
Te pego de jeitinho.
Te encho de tesão!
Te encho de tesão!
- Me deixa maluca!
Tira o mel da fruta.
Me mata de amor!
Me mata de amor!
Me pega no colo;

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Me olha nos olhos;
Me beija que é bom!
Me beija que é bom!
- Na sua boca eu viro fruta.
Chupa que é de uva!
Chupa! Chupa!
Chupa que é de uva!
Na sua boca eu viro fruta.
Chupa que é de uva!
Chupa! Chupa!
Chupa que é de uva!
Chupa! Chupa!
Chupa que é de uva!
D.BETH – (Chegando) Arrebenta, Jennifer! É isso aí, Zezé. Se é pra fechar, tem que fechar com
crasse, caralho!
MANU – Agora sou eu! Vou cantar uma música que eu amo, amo, amo! É antiga. É de ..... mas eu
amo:
Você se leva a sério demais
Eu acho graça e recomendo duas doses de cachaça
Bem brasileiro
Já que você gosta de imitar a bossa nova
Por falta de bossa nossa, hah!
Sério demais
Você se leva a sério demais
Nossos heróis viraram a cara
Juventude mudando, uma piada
A maioria não entendeu
Que só vale ser saudosista quem viveu
E é sério, tudo tão sério
Mas ninguém nunca mudou nada com mistério
Você se leva a sério demais
(O pessoal vai desanimando. O frequentador misterioso, encapuzado, pede no ouvido de Zezé, uma
nova música. Na introdução de Noite Severina, somente Grandão e Ivonete continuam dançando e
conversam)

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IVONETE – Ô Grandão você lembra da Dona Fininha?
GRANDÃO – O que tem ela?
IVONETE – Ela está muito doente. Precisa fazer uns exames, mas são muito caros.
GRANDÃO – Manda ela fazer que eu pago.
IVONETE – Sabia. Vou falar com ela!
ENCAPUZADO MISTERIOSO – (Canta):
Corre alta Severina noite
De baixo do lençol que te tateia a pele fina
Pedras sonhando pó na mina
Pedras sonhando com britadeiras
Cada ser tem sonhos a sua maneira
Cada ser tem sonhos a sua maneira
Corre calma Severina noite
No ronco da cidade uma janela assim acesa
Eu respiro seu desejo
Chama no pavio da lamparina
Sombra no lençol que tateia a pele fina
Sombra no lençol que tateia a pele fina
In https://www.youtube.com/results?search_query=noite+severina+ney+matogrosso+e+pedro+luis
até 1:15
(desde a música bossa nova bar vai esvaziando. Os últimos a saírem são Grandão e Ivonete. Só
ficam o violonista e Zezé.)
ZEZÉ – Minha vida era um palco iluminado / E eu vivia vestido de dourado / Palhaço das perdidas
ilusões / Cheio dos guizos falsos da alegria / Andei cantando minha fantasia / Entre as palmas febris
dos corações [....]/ (o violonista continua. Zezé pula alguns versos e retoma em; ) A porta do barraco
era sem trinco / Mas a lua furando nosso zinco / Salpicava de estrelas nosso chão........

Fim do terceiro quadro. Rádios. A diretora e o ausente fazem o rearranjo dos elementos
cênicos, se necessário. Surgem projeções sobre questões atuais, mas sempre datadas como
futuro.
Fim do terceiro quadro. Rádios. A diretora e o ausente fazem o rearranjo dos elementos cênicos,
se necessário. Surgem projeções sobre questões atuais, mas sempre datadas como futuro.
QUADRO IV

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JANEIRO DE .......... .MÃE CORAGEM PERDE A FILHA E CONTINUA SOZINHA O SEU
CAMINHO. A GUERRA CONTINUA.

ARI – Massa mole.


CORO DOS OPERÁRIOS: Tem que ser concreto forte / Duro como a miséria do lado de cá / Forte
como o medo do lado de lá / Pra ninguém mais duvidar de que lado está. / Tem que ser concreto
forte / Duro como a miséria do lado de lá / Forte como o medo do lado de cá / Massa mole, massa
mole / Pra ninguém mais duvidar de que lado está.
FOCA – (Bate palmas. Ninguém atende, ele insiste) Ô, dona, não empata, vai? Eu sei que a senhora
está aí. (bate palmas mais uma vez. “Arromba” a porta) Ô, dona, mas que merda! Eu sei que a
senhora (vendo Catarina muito assustada) menina. Desculpa. Desculpa, eu não queria te assustar. Eu
não queria entrar assim, é que...é que... O seu irmão tá ferrado. Ele tá devendo pro Grandão e o
Grandão falou que ele não vai ter chance mais. Ele se ferrou. Eu queria poder ajudar o seu irmão,
mas eu não posso, pô. Eu queria... olha, o seu irmão se fudeu e eu não posso fazer nada. Eu não
queria falar assim é que... a menina não fala muito, não é?
(Catarina não responde)
FOCA – A menina é bem esquisita, sabia? Aí desculpa, eu não queria falar isso, mas é que você é
esquisita... aí desculpa de novo. A menina é esquisita, mas é bonita...
ANA – (subindo a escada cantarolando e entrando em casa) Catarina, sua tonta!
FOCA – Ô dona, não precisa brigar com a menina, acho que ela nem consegue escutar o que eu digo.
Eu entrei porque eu tenho um recado importante do Grandão.
ANA – Deixa de ser idiota, Catarina escuta sim.
FOCA - Então por que ela não fala nada?
ANA – Ah.. Isso foi na vez que teve uma invasão... guerra mesmo. Eu tava subindo com minhas
mercadorias, entrei na casa de uma cliente para vender nem me lembro mais o quê. Catarina ainda
menina ficou presa no meio do fogo cruzado e... a bala entrou por aqui e... Ela quase morreu.
(interrompe) Você disse que tinha um recado importante do Grandão? Mas o que o Grandão...
FOCA – Ele está com o menino e se ele não pagar o que deve...
ANA – Pagar o que deve? Deve o quê?
FOCA - Quinhentos paus.
ANA – Quinhentos pau? Como esse menino deve tanto dinheiro pro Grandão?
FOCA – Eu não quero entrar nesse assunto, eu só vim avisar, que se não pagar...
ANA – Pagar como, meu filho? Isso é tudo que eu tenho em mercadoria. Se eu pagar, eu tô ferrada.
FOCA – Era melhor a senhora dar um jeito agora, dona.
22
ANA – Pede a ele um prazo, amanhã eu pago, amanhã eu pago.
FOCA – Eu não arriscava. A vida é assim. A senhora queria viver da guerra aqui do morro, mas a
dona e os teus tinham de ficar de fora, né dona?
ANA – Vá, fala com ele! É só até amanhã
FOCA – Recado tá dado dona, a senhora que sabe. Até logo, menina. (sai)
ANA – Até amanhã eu dou um jeito, eu converso com a Ivonete. Não tem problema, eu converso
com ela e ela me ajuda.
(Catarina pega a caixa, onde a mãe guarda dinheiro, para levar para o Grandão)
ANA – Que isso Catarina. Ficou doida? Para menina, me dá isso. Esse dinheiro eu estou guardando
para a gente pagar a licença e tentar botar uma banca no galpão D’Ladilá.
(Catarina pega as sacolas de mercadorias e dá para a mãe, empurrando-a para levar para o
Grandão)
ANA – A mercadoria, Catarina? Se a gente entrega a mercadoria, a gente vai viver de quê?
CORO – Quem da guerra quiser se aproveitar
Alguma coisa em troca tem que dar.
O que tem e o que teria
A cria que tem e a que teria
O marido que tem e o que teria
A mulher que tem e a que teria
Um braço, uma perna, um olho.
(Sombra: Manteiga está ajoelhado. Tôca está armado.
TÔCA – Agora você aprende a pagar o que deve, moleque.
MANTEIGA – Faz isso não, Tôca. A minha mãe vai pagar o Grandão.
TÔCA – Agora não precisa mais. (“atira” e sai)
(Manteiga morre. e sai. ) (em casa Catarina toca acordeom. Foca, sem que ninguém veja, cobre o
corpo, acende uma vela.)
ZEZÉ - Ana! Ana!
ANA – O que foi, Zezé? Pra que esse desespero todo, mulher?
ZEZÉ – O Manteiga. Ana. (Ana dá o grito mudo da MÃE CORAGEM)
CATARINA – (Libras c/ tradução no telão). A Minha primeira vontade foi acabar com todos que
mataram o meu irmão. Entrar para o tráfico. Mas o tempo foi passando. Tantos mortos, meu irmão
na foto no jornal de Ladilá. Só as iniciais, que ele era “de” menor. Eles se transformam em iniciais,
sem corpo, sem cheiro, sem voz... números.
(Na casa do Grandão. Acontece uma “dança” entre Grandão e Tôca.
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GRANDÃO – Você tem estofo, parceiro.
TÔCA – Você tinha que ver, Grandão. O moleque não teve tempo nem de gritar. Foram só dois bem
no meio do peito dele.
GRANDÃO – Admiro os soldados corajosos que nem você. Trato como se fosse filho meu.

MANU – Olha, eu não sei, dizem que o Grandão é muito mau.


IVONETE – Mau? Guloso, sim, mas mau, por quê?
MANU – Mau e covarde, porque o serviço sujo são os seus homens que fazem.
IVONETE – Grandão é um grande General minha filha, e seus soldados são leais e corajosos.
Inclusive ele faz pelo povo dessa comunidade aqui, muito mais do que qualquer vereador ou prefeito
já fez.
MANU (lendo no livro de Brecht) – “Por que um grande general precisaria de soldados corajosos?
Bastavam-lhe soldados comuns, de resto já se sabe, onde há virtudes tão grandes, é prova de que
alguma coisa esta podre.”
IVONETE – Eu achava que era bom sinal.
MANU – “Numa terra boa, não são precisas virtudes, toda a gente pode ser comum, mediana e
covarde quando tiver vontade.”
IVONETE – Não entendi (pega o livro e lê o trecho) “Numa terra boa, não são precisas virtudes,
toda a gente pode ser comum, mediana e covarde quando tiver vontade.”
JENIFER – É isso aí. Concordo com o Brecht.

Vozes Agudas - Fuzilam os fuzis, as lanças lanceiam / O rio engole quem o atravessa / Com a

GUERRA, quem pode? Melhor fugir dela /

Narrador - Assim falou a mulher ao soldado, / Mas o soldado com a bala no cano / Ouve o tambor e

dá risada /

Vozes Graves - Marchar não pode fazer mal nenhum / avante para o norte ou para o sul, / Nas mãos

uma lança bem forte! /

Narrador - Assim falou o soldado à mulher. /

Vozes Agudas - Bem se arrepende quem não atende, / Não ouve sequer os mais velhos, / Maior a

subida, maior o tombo /

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Narrador - Assim falou a mulher ao soldado. / Mas o soldado, com a faca na cintura / Rindo da cara

dela / atravessou a correnteza /

Vozes Graves - A água do rio não me pode fazer mal, / Quando a lua cheia iluminar o telhado / A

gente volta, reza e está tudo acabado.

Narrador - Assim falou o soldado à mulher. / Mas o soldado com a faca na cintura e a lança na mão/

A correnteza levou/ O rio engole quem o atravessa / A lua clareou o telhado e, afogado boiava o

soldado / O que ia dizer a mulher ao soldado?

IVONETE - Como passa a fumaça e o calor passa, / Vocês passam, e os seus feitos não nos

aquecem. / Vai com Deus! Ah, como a fumaça vai depressa!

PROJEÇÃO:

Black -out. Todos dormem. Aleph, com uma lanterna, chega na casa da mãe.)
ALEPH – Catarina, Cat. (Catarina aparece) Cat, vamos embora, rápido! Cadê a mãe?
ANA – (entrando) Aleph! Aleph o que foi? Onde você estava? Eu pensei que você tivesse morrido?
ALEPH – Rápido, mãe. A facção da Logali vai invadir o Ladicá. Começou a guerra! Eles vão pegar
todo mundo dormindo. Vai morrer muita gente, a ordem é derrubar quem encontrar, entrar nas casas.
(Catarina sai correndo com o acordeom) Vamos, mãe.
ANA – Tenho que pegar as mercadorias! O pessoal vai precisar de armas, de munição. Eu posso
fazer umas boas vendas. Vem me ajudar, Catarina. Catarina!
(Catarina – SOMBRA – faz barulho com o acordeom.)
ALEPH – Catarina saiu. Ela quer acordar a comunidade. Merda! Vai atrás dela mãe! Corre, mãe!
(sai).
ANA – Eu vou. (Hesita e antes de ir atrás de Catarina, que continua tocando, pega mais sacolas.
A comunidade acorda, [Ninguém olha para a sombra. Todos fazem como se Catarina estivesse por
trás do público].)
JENIFER – Acorda, Ari! Jéssica!
BETH – A facção da Logali tá invadindo!
ZEZÉ – Catarina! Sai daí!
IVONETE – Grandão!
TÔCA – Foge Grandão, que os homens tão subindo!
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(Muitos tiros. – SOMBRA - Catarina é atingida e morre. Param os tiros).
ANA – E quando o morro escurece...
FOCA - A casa caiu, Grandão.
(Grandão tenta fugir, mas é barrado –por um FS, que é o Aleph.)
ALEPH – Parado aí, cidadão.
GRANDÃO – Eu te conheço,
ALEPH – Perdeu, Grandão.
GRANDÃO – Sem esculacho.
ALEPH – Essa é pelo Manteiga.
(Tiros. Grandão morre.)
CORO:
“Quem da guerra quiser se aproveitar
Alguma coisa em troca tem que dar”.
O que tem e o que teria
A cria que tem e a que teria
o marido que tem e o que teria
A mulher que tem e a que teria
Um braço, uma perna, um olho... a vida.
IVONETE – Eu nem tive tempo de me despedir dele. Ele até que tentou fugir, mas eles logo o
pegaram. O que me contaram foi que ele tremia de medo, e levantou as mãos para o alto, sem
nenhuma reação. Reconheceu o FS e abriu um sorriso, o mesmo sorriso que ele tinha depois do amor
enquanto me acarinhava os cabelos e me prometia presentes. Ele era um homem de palavra, viu?
Sempre cumpria suas promessas. Ele abriu um sorriso, mas não teve tempo de dizer nem um ai. O FS
descarregou o 38, o outro também começou atirar e era tanto tiro, tanto tiro, que ele parecia dançar.
Ele adorava dançar. Na verdade, eu acho que era o que ele mais gostava de fazer. Dançar. Eu nunca
mais vou encontrar um par como ele.
JENIFER COM BETH – (Durante a fala acontece a cena EM SOMBRA da morte do Grandão como
narrada por Jenifer) O que me contaram foi que ele já saiu de arma em punho, com aquele sorriso
abusado na cara, chegou e mirou no FS. O FS ia fazer o quê? Foi um tiro só bem na testa. Eu acho
que eles preferiam pegar o grandão vivo. Se ele não reagisse... (Durante a fala acontece a cena
muda da morte do Grandão como narrada por Jenifer)
IVONETE - Vai com Deus! Ah, como a fumaça vai depressa!
(Na casa de Ana)
ANA - Vai, barracão
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Pendurado no morro
E pedindo socorro
À cidade a seus pés
Vai, barracão
Tua voz eu escuto
Não te esqueço um minuto
Porque sei que tu és
Barracão de zinco
Tradição do meu país
Barracão de zinco
Pobre é tão, infeliz.
Esta música é em homenagem à minha menina, a Catarina...
ZEZÉ – Uma heroína!
ARI – Merecia uma estátua!
ANA – Esta música é em homenagem à minha menina, a Catarina...Ela pensava que podia salvar o
mundo e ao meu filho Manteiga. Hoje faz 3 anos que ele morreu.
MANU – passa muito rápido.
ANA – Amanhã eu vou descer. Alguém precisa de alguma coisa?
ZEZÉ – Ô, Ana, toma cuidado que eles tão de olho.
ANA – Deixa comigo.
ZEZÉ – E como está o Aleph?
ANA – Esqueceu que tem mãe.
(Na antiga casa de Grandão aparecem Aleph, no ponto mais alto, Jéssica e Foca.

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