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SIM, ESTAMOS VIVENDO” E “AGORA, NÓS VAMOS

INVADIR SUA PRAIA”. PODEM NOS CHAMAR DE


“EDWARD, MÃOS DE TESOURA” OU EDUCADORES DE
MUSEU.

Girlene Chagas Bulhões

Palavras-chaves: Educadores de Museus; Patrimônio Cultural Urbano.


Em 1985, Roger Moreira, líder e vocalista da banda brasileira Ultraje a Rigor, fez
o país inteiro cantar a invasão da nossa “praia” pelos estranhos, feios, pobres, (na
concepção de alguns) que vinham “chacoalhar” a nossa aldeia, “sem óleo nem creme”.
Anos depois, em 1990, com o filme “Edward, Mãos de Tesoura”, o cineasta norte-
americano Tim Burton anunciou ao mundo a sua visão de um dos mais presentes e
adoráveis incômodos da pós-modernidade: ao contrário de épocas anteriores que os
temia, o diferente, o feio, o grotesco, o inacabado, o inusitado, agora estavam convidados
a conviver conosco, em nossas casas, à vontade para bagunçar o mundo ideal, mas irreal,
que acreditávamos ter construído (aqui no Brasil, nos lembremos do “Milagre
Econômico” e das propagandas da Ditadura Militar), com suas casas iguais enfileiradas
em ruas iguais absolutamente limpas, onde todos conversam em igual voz baixa e suave,
os mesmos assuntos iguais, amenos e agradáveis, com os seus sorrisos de Monalisa
grudados à face e a sujeira devidamente varrida para debaixo dos tapetes e maquiada
pelos cosméticos vendidos pela Peg36.

Ou exposta em museus, onde há tempos é permitido o “diferente”.


Desde os grandes exploradores e descobridores dos séculos XVI e XVII, passando
pelos Renascentistas do Século XVIII, a raridade e estranheza das “minorias esmagadas”
está presente nos “Quartos das Maravilhas” e Museus dos Senhores da história oficial,
expostas em vitrines devidamente fechadas, de onde o público visitante as pode admirar,
a uma segura distância, para conforto de todos, inclusive do museólogo/conservador.
Herdeiros que são destes “Gabinetes de Curiosidade”, falecidos no Século XIX,
nos museus contemporâneos a estranheza e o longínquo no tempo ou no espaço também

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Peg, personagem interpretada pela atriz Diane Wiest, é uma simpática dona-de-casa, vendedora de
produtos cosméticos e a responsável por tirar Edward do isolamento em que ele vivia na sombria e isolada
mansão onde ele foi criado e leva-lo para a sua casa, na cidade.

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estão presentes desde sempre, mas a novidade de agora, explicitada na Carta de Santiago
do Chile (1982), é que em nossos dias os estranhos são de mais perto.
Sim, a nossa aldeia agora é o mundo e o “exótico” não é mais o que nasceu em
distantes plagas ou priscas eras, é o andarilho que perambula displicentemente por nossas
ruas, o tatuado, o cabeludo, o viciado, o disforme, o “fora dos padrões”, o “vizinho
esquisitinho” que mora na casa ao lado ou, no máximo, um pouco afastado do centro da
cidade, como o Edward ou o “cara vindo do interior”, cantado por Belchior.
Em “Nós vamos invadir sua praia” Roger anunciava uma invasão e alertava que
caso fossemos ficar incomodados com a chegada “deles”, não adiantaria os desprezar,
melhor seria nos mudar.
E o que fizeram os museus? Mudaram. Mudaram, mas nem todos, mas nem tanto,
nem todos ao mesmo tempo. Os que mudaram fizeram como a Peg: convidaram “eles”,
os de cabelos desgrenhados e cortantes mãos de tesouras, a entrarem em suas casas,
trazendo a farofa, a galinha e também a vitrolinha, o seu patrimônio cultural, e com eles
construíram novas práxis museais. O resultado disso é o que aí está: museus de território,
museus comunitários, ecomuseus, museus de favela, sociomuseologia. Mesmo museus
concebidos de forma tradicional, transformaram suas abordagens, suas concepções, suas
ações e exposições.
No Museu das Bandeiras (MUBAN) esta “invasão” bate à porta desde a sua
criação na década de 1950 e consolida-se em meados dos anos 2000, seguindo o fluxo
das transformações levadas a cabo pela comunidade museal brasileira, “demarcadas” com
a criação, em 2003, do Departamento de Museus e Centros Culturais (DEMU) do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), departamento este que
ganhou autonomia, em 2009, tornando-se o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM),
autarquia criada através da lei nº 11.906, de 20/01/2009.
O Museu das Bandeiras é uma das 30 unidades museais brasileiras sob
responsabilidade direta do Ibram. Localizado na cidade de Goiás-GO, tombada como
Patrimônio Cultural Mundial em 2001 pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), tem como ponto central da sua missão “retratar
a memória nacional relativa à ocupação bandeirante na região Centro-oeste do país,
enfatizando as contribuições dos diversos segmentos sociais presentes neste processo”
(Plano Museológico do MUBAN, 2007).
Criado em 1949 (Decreto-Lei nº 394/49, de 03 de dezembro de 1949), como de
praxe para a maioria das instituições museais dos anos 1950-70, em seu acervo
museológico não houve muito espaço para as “contribuições” dos povos e comunidades
indígenas, africanas e afrodescendentes “presentes neste processo”. Nem para eles nem
para os pertencentes às classes economicamente menos favorecidas. Desta forma, a sua
exposição de longa duração, a forma de comunicação por excelência e melhor tradutora
da missão dos museus, não abarcava essa variedade, privilegiando as formas do saber
fazer cultural das elites econômicas, que em nosso país são (ou se acham),
predominantemente, brancas (ou não declaradas negras ou indígenas).

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Desde, pelo menos, a década de 196037, na gestão da Srª Maria Luiza Brandão, o
Museu das Bandeiras oferece à população local atividades educativas. Durante alguns
anos, a principal delas foi a oficina de confecção de papel artesanal em fibra de
bananeira, iniciada pela Srª Maria Luiza. Mesmo muito bem-vinda e digna de parabéns,
esta ação, também como de praxe para a maioria das instituições museais da época,
expressava a mentalidade tecnicista, utilitarista e paternalista que prevalecia então.
Com a oficina, o Museu oferecia à chamada “população carente”, para além dos
ensinamentos práticos e técnicos da oficina e da fruição da materialidade dos estranhos
objetos nele expostos, a autorização para que eles ali estivessem (e uma das refeições
diárias que, possivelmente, para alguns dos alunos, importava tanto ou mais que aprender
ou não a confeccionar papel).

Está escrito acima “estranhos objetos”?


Sim, pois é bastante provável que, para os “atendidos” pelas ações educativas do
Museu das Bandeiras, estranhos fossem os objetos em exposição: a urna eleitoral com a
sua manivela; a carretilha da forca, que tem um gancho na ponta, igualzinho ao braço do
Capitão Gancho; as gargalheiras; a escarradeira (hã???); a urna funerária indígena, que
mais parece um pote gigante. De onde vieram? Pra que servem? Quem os usava? “Nunca
vi igual a este em minha casa, nem na casa da minha avó, nem do vizinho”!!!
Assim como, talvez, para Edward os estranhos fossem a Peg, a sua família e
vizinhos, com toda a “normalidade” que eram capazes de externar.
O escritor e pintor Otto Marques (1915-1988), que afirmava ter aprendido a pintar
na Cadeia, com “um preso chamado Pedro”, registra no conto “A cadeia centenária”, do
seu livro “Casos e Lendas” (1977), a frenética vida que ali acontecia em seu tempo de
criança. Neste conto, verifica-se que eram eles, os “Edwards”, os que invadiram praias a
eles interditadas, que habitavam os espaços hoje ocupados pelo Museu.

“Sobre essa prisão bastante secular e que tanto aterrava a muitos, que pelo seu aspecto
externo ou interno, bem que eu desejaria, se assim pudesse, compor um capítulo todo
especial, nesta presente série das recordações a que me reporto aqui tentando, com a
minha incompetência literária, reconstituir, ao vivo, os seus dramas íntimos, descrevendo,
para vocês todos, de forma minuciosa e clara, a conduta, a estória e a pessoa física de
cada um dos seus pobres inquilinos, muitos deles provindos de vários pontos diferentes
do nosso Estado imenso, ou daqui mesmo do nosso município de Goiás e que ali
cumpriam obrigatoriamente, as sentenças inexoráveis de trinta e até cento e tantos anos de
reclusão.
E o interessante, mesmo, é que muitos daqueles celerados possuíam as mais diferentes
aptidões profissionais, pois ali processava-se um artesanato perfeito: havia pau pra toda

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Não temos informações a respeito das ações socioeducativas desenvolvidas pelos dirigentes
anteriores a Srª Maria Luiza.

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obra: sapateiros competentes, solando botinas ou fabricando chinelos a razão de mil e
quinhentos réis o par, latoeiros, floristas, marceneiros, fazedores de cestos, vassouras,
gaiolas, etc.
Um tal de Pedro (e dizia-se até, que ele era galé perpétuo) sujeito meio idiota, já bem
entrado em anos, e o qual passava grande parte do dia grosando palha de milho com um
sovado caramujo ou enrolando centenas de cigarrinhos de fumo em rolo, desenhava, com
lápis de cores tudo o que eu lhe encomendava. E fôra ele, na verdade, o meu primeiro e
único professor de Pintura, quando a semente da arte já começava a germinar na minha
mente”. (MARQUES, 1977, pp. 145-148).

O Museu das Bandeiras nasceu numa Cadeia, na Casa de Câmara e Cadeia da


Província de Goyaz, edifício que abrigou a Cadeia Pública, até 1950. Sim, até 1950. O
MUBAN foi criado em 1949 e até dezembro de 1950 coexistiram na Casa a cadeia e o
museu. Enquanto as reformas de adaptação do prédio estavam sendo realizadas, seis
presos ainda o habitavam, como atestam as cartas que se encontram no Arquivo Histórico
do Museu das Bandeiras, escritas pelo mestre-de-obras russo, Dimitry Rechetnikow,
contratado pelo governo federal para tocar as obras.
Em que pese esta ligação quase atávica com os “estranhos”, tanto o projeto
expográfico quanto o projeto de ação educativa desenvolvidos pelo Bandeiras, até a
primeira década dos anos 2000, não se ocupavam nem se preocupavam com este
estranhamento. Talvez nem os percebesse. E por causa deste alheamento, durante muito
tempo o Museu se afastou do seu “povo”, dos “diferentes”, dos “escorraçados” e
indigestos à sociedade tradicionalista, presentes em sua história desde o início da
construção da Casa de Câmara e Cadeia, no século XVIII. Afinal, foram “eles” que
literalmente construíram esta “Tebas das Sete Portas”.
Para onde foram estes compositores de parte do patrimônio cultural desta urbis?
Onde ficaram preservadas as memórias deles e dos seus descendentes e equivalentes?
Elas não foram apagadas, apesar de silenciadas.
Já que no acervo museológico do Museu não existem peças que atestem esta
presença ausente, em setembro de 2012, dentre as diversas ações socioeducativas e
artístico-culturais que o Museu vem desenvolvendo com o intuito de preencher esta
lacuna, a exposição temporária “Sim, estou vivendo: registros fotográficos de uma
sociedade plural”, parte das atividades do Museu das Bandeiras para 6ª Primavera dos
Museus (24-30/09/2012), trouxe de volta à Casa esses “esquecidos”.
Como escrito em seu texto de abertura, a “Sim, estou vivendo...” foi uma
exposição “feita para afirmar e explicitar a opção dos Museus Ibram em Goiás pela
inclusão social e onde o que menos importa é a falta de qualidade das fotos, tiradas por
uma fotógrafa amadora, com uma máquina amadora e modelos amadores. Todos amantes
do respeito incondicional aos seres humanos de todas as maltas, matilhas e matizes”
(BULHÕES, 2012). Para ela, foram fotografados travestis, lésbicas, homossexuais,
prostitutas, alcoólatras, moradores de rua, presidiários, praticantes de religiões de matriz
africana, pessoas com deficiências mentais e físicas; o primeiro dos quais e inspiração
para a exposição foi o João Marques Argenta, o João Gambá, filho de Otto Marques.

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Nos painéis fotográficos que a compõem, não está escrita nenhuma referência aos
fotografados, além dos seus nomes e datas de nascimento. São pessoas, cujas vidas
repletas de “inconveniências” se ligam à vida do Museu, e ponto final.
Esta foi uma ação inicialmente entendida apenas como expográfica, que
posteriormente se revelou educativa, comprometida com os novos valores da Museologia
Social, apesar da ausência de uma atividade educativa diretamente relacionada a ela, além
da visita mediada que é costumeiramente oferecida pelo Museu. E, por isso, foi
duramente criticada por alguns que são como o Jim, namorado da Kim, filha da Peg e por
quem o Edward de Tim Burton se apaixona: inconformados resistentes ao novo que
sempre vem, feliz e inexoravelmente.
A partir desta exposição, a maioria dos fotografados voltou ou passou a frequentar
o Museu das Bandeiras, alguns quase diariamente, outros apenas em eventos. Eles não
somente posaram para as fotos da exposição, também participaram da mesa-redonda de
abertura da VI Primavera e deram seus depoimentos nesta e em outras ocasiões.
Trouxeram seus familiares, amigos e “pariceiros”. Trouxeram o “incômodo” de volta ao
lar. Uma senhora se assustou com a presença de dois deles no Museu. Um amigo falou
para uma das fotografadas que achou uma degradação ela ser colocada ao lado daquela
“gentalha, gentalha”. Um outro levantou a (obviamente falsa) suspeita de que o Museu
estivesse explorando velhaca e economicamente as fotografias. A difamação não
adiantou, eles já haviam se tornado nossos amigos.
Rendeu outros frutos: em dezembro de 2012 o Museu inaugurou outra exposição
temporária, em comemoração ao seu 63º aniversário (03/12), “A Cadeia que virou
Museu” (em exibição no MUBAN, até 04/08/2013), onde estão um painel de cada um
dos fotografados, colocados em meio a documentos pertencentes ao Arquivo Histórico do
Museu, relativos aos presos da Cadeia, formando uma espécie de instalação do não-
tempo existente nos museus, a junção passado-presente-futuro que os alimenta; prevista
para postagem em outubro de 2012, em março de 2013, foi publicada na internet a
versão virtual da “Sim, estou vivendo...” (links em
https://www.facebook.com/#!/museusibram.emgoias) e será feita uma nova
montagem (mai-jul/2013) por ocasião da 11ª Semana Nacional de Museus, que
acontecerá entre os dias 13 e 19 de maio de 2013, com o tema “Museus (memória +
criatividade) = mudança social”.
Talvez mais que tudo isso, “Sim, estou vivendo...”, como uma oração gramatical
em voz reflexiva, na qual o sujeito sofre e executa a ação ao mesmo tempo, foi uma ação
educativa PARA o Museu das Bandeiras. Despretensiosa e ciente das suas limitações
técnicas e estéticas, foi um convite que o Museu fez a si mesmo, de reencontro com as
suas memórias, com os “rotos e esfarrapados” que fazem parte da sua história.
Imaginemos que Edward não tivesse aceitado o convite da Peg. O filme teria sido
outro. Caso as 13 pessoas convidadas a fotografar não tivessem aceitado o convite,
possivelmente teria sido outra a história contada nesse texto. Se isto, se aquilo... Bem
sabemos que não levam a nada especulações desta natureza, mas consideramos que,
felizmente, para engrandecimento do MUBAN, João Gambá, Peter Pan, Elizeu, Caiana,
Leona, Irany, P., Denis, Dr. Fernando, Fabrício, João Augusto, Pai Cleuson e Paulo

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Candola aceitaram o convite. Invadiram a nossa praia e tornaram-se verdadeiros
educadores DE museu, educadores DO Museu das Bandeiras, afinal fizeram aquilo
que preconiza uma das raízes etimológicas da palavra educação, a palavra
EDUCERE, que vem do latim e quer dizer “eduzir”: trouxeram para fora o que
sempre esteve “dentro” do MUBAN, esquecido nas suas ações e exposições, mas
impregnado em suas paredes, cochichando nos ouvidos dos seus servidores e
visitantes: o patrimônio humano que rói, dói, mas que o compõe, que compõe a
sociedade humana.
Assim como o fez Edward, que com suas mãos de tesoura, que podem
ferir, trouxe à tona a beleza única e individualizada de cada um dos que cortaram seus
cabelos com ele, de cada árvore que foi podada (embelezada) por ele. Assim como o
fizeram os que invadiram a praia (e museus) dos preconceituosos.

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