Você está na página 1de 11

ISSN 1982 - 1913

2007, Vol. I, nº 1, 25-35


www.fafich.ufmg.br/mosaico

“Conte-me sua história”:


reflexões sobre o método de História de Vida

“Tell me your history”: reflections about the Life History method

Aline Pacheco Silva


Carolyne Reis Barros
Maria Luísa Magalhães Nogueira
Vanessa Andrade de Barros
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte – MG, Brasil

Resumo
O presente artigo propõe-se a descrever e situar o método de Historia de
Vida dentro da ciência destacando suas características singulares. O
método de Historia de Vida se insere dentro de metodologias qualitativas
(Abordagens Biográficas) que surge com a Escola de Chicago. O método
de Historia de Vida objetiva apreender as articulações entre a historia
individual e a historia coletiva, uma ponte entre a trajetória individual e a
trajetória social. Discutimos também o vinculo entre pesquisador e sujeito,
dimensão priorizada no método de historia de vida. Essa dimensão não
invalida o método, nem tampouco o classifica fora de métodos científicos.
Dessa maneira o método de historia de vida pode ser classificado como um
método cientifico, com a mesma validade e eficiência de outros métodos,
sendo que o compromisso maior do pesquisador é com a realidade a ser
compreendida.

Palavras-chave: História de vida; método; metodologia; pesquisa


qualitativa.

Abstract
The present article is considered to describe and to point out the method of
Life History inside science detaching its singular characteristics as well as
its referring limitations the use of this. The Life History method inserts
inside of qualitative methodologies (Biographical Boardings) that it appears
with the School of Chicago.The Life History method objective to
apprehend the joints between the individual history and the collective
history, a bridge between the individual trajectory and the social
trajectory. We also argue the tie between researcher and citizen to it,
dimension prioritized in Life History method. This dimension does not
invalidate the method, nor neither classifies it outside of scientific methods.
In this way the method of history of life can be classified as a cientifico
method, with the same validity and efficiency of other methods, being that
the commitment biggest of the researcher is with the reality to be
understood.

Key-words: Life history; method, methodology; qualitative research.

______________________________________________________________________ 25
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35
Aline Pacheco Silva - Carolyne Reis Barros - Maria Luísa Magalhães Nogueira - Vanessa Andrade de Barros

“ As margens da memória, uma vez


fixadas com palavras, cancelam-se”
Ítalo Calvino

Introdução método especifico que visa sistematizar o


conhecimento produzido. Lima, 2001 nos
A ciência firmou-se como um cam- aponta para a seguinte questão: “Ao nos
po de conhecimento sólido ao tentar prendermos a um método, perdemos o
entender o mundo através de uma contato com a realidade a ser compre-
sistematização e uma acumulação do endida ou investigada, na medida em que
conhecimento produzido sobre os passamos a nos apoiar em um modus
fenômenos. Ao tentar compreender uma operandi autônomo e independente dessa
realidade, faz-se necessária a busca de realidade...” a autora acrescenta ainda a
definições como ponto de partida. Nesse necessidade de partirmos do real, do
sentido, com o artigo propomos uma concreto antes de usar qualquer instru-
breve discussão sobre metodologia mento para acessar a realidade. Segundo
qualitativa, dando ênfase ao método de Goldenberg (2000, pág. 104), método
História de Vida e às características que o seria “(...) a observação sistemática dos
diferenciam dos demais. Para tanto, fenômenos da realidade através de uma
partimos de uma breve discussão sobre sucessão de passos, orientados por
ciência. conhecimentos teóricos, buscando ex-
De acordo com Goldenberg (2000 plicar a causa desses fenômenos, suas
p. 103) “ a ciência é um conjunto correlações e aspectos não-revelados;
organizado de conhecimentos relativos a conjunto sistemático de regras e proce-
um determinado objeto, obtido através da dimentos que, se respeitados em uma
observação e da experiência; (...) é um investigação cognitiva, conduzem-na à
corpo de conhecimentos sistemáticos, verdade”.
adquiridos com um método próprio, em De forma geral, podemos dividir os
um determinado meio e momento.” métodos e metodologias da ciência em 2
Entendemos que a ciência é categorias: qualitativos e quantitativos.
historicamente construída e não se Goldenberg (2000, pág. 62) contribui
sobrepõe aos outros campos de com- muito para a discussão do uso das
hecimento, como a religião e a arte, metodologias quantitativas e qualitativas.
esferas igualmente úteis para compre- De acordo com a autora “... a escolha de
ender o homem em sua complexidade. No trabalhar com dados estatísticos ou com
século passado a neutralidade e a um único grupo ou indivíduos, ou com
objetividade guiavam a ciência, mas hoje ambos, depende das questões levantadas
o que se vê é o reconhecimento da e dos problemas que se quer responder”.
impossibilidade dessa neutralidade, na Mais adiante a autora acrescenta que “(...)
mesma medida em que o compromisso o importante é ser flexível e criativo para
com a sociedade1 vai sendo reafirmado e explorar todos os possíveis caminhos e
suas estratégias reinventadas e não reificar a idéia positivista de que os
estabelecidas.Uma das características que dados qualitativos comprometem a obje-
define a ciência é a existência de um tividade, a neutralidade e rigor cienti-
fico.” .

1
Basta olhar os programas que as instituições de
educação fazem para aproximar a ciência da sociedade
(feira de ciências, intervenções realizadas pelas
universidades nas cidades. Etc.)
26 ______________________________________________________________________
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35
“Conte-me sua história”: reflexões sobre o método de História de Vida

A metodologia quantitativa tem modelo positivista aplicado ao estudo da


como característica principal a vida social.” Goldenberg (2000, pág.17).
quantificação tanto na coleta dos dados Dessa maneira, rompe-se com a tradição
como na interpretação através da de que para se alcançar a realidade o
utilização de ferramentas estatísticas. “A único método é o experimental, que
abordagem quantitativa sacrifica a levaria a um desvelamento da “verdade”
compreensão do significado em troca do única, entendendo a metodologia como o
rigor matemático” (Goldenberg, 2000 conhecimento crítico dos caminhos do
p.61). Sendo assim, a metodologia processo científico, que indaga e ques-
quantitativa revela a forte influência tiona acerca de seus limites e possi-
positivista de aplicar modelos das bilidades Demo (1989), inclusive em ter-
ciências naturais às ciências sociais, mos ideológicos; concordamos com Za-
limitando o fenômeno ao observável e luar (1986) quando acrescenta que a
com ênfase ao dado empírico. relação entre sujeito pesquisador e sujeito
pesquisado é uma relação social e
A visão que se deve ter ao se falar política.
de metodologias, é que as metodologias Nesse sentido, uma característica
quantitativas e qualitativas não são importante da metodologia qualitativa é a
opostas. Paulilo, (1999, p. 135) sugere que relação entre sujeito pesquisador e sujeito
pesquisado, que embora perpassada por
“... ambas são de natureza diferenciada, relações de poder, constitui momento de
não excludentes, e podem ou não ser construção, diálogo de um universo de
complementares uma à outra na experiências humanas. É nessa possi-
compreensão de uma dada realidade. Se a
relação entre elas não é de continuidade, bilidade de diálogo que reside a principal
tampouco elas se opõem ou se diferença com as ciências ditas naturais2 e
contradizem. Somente quando as duas o seu objeto: o objeto das ciências sociais
abordagens são utilizadas dentro dos “é transparente e opaco” (Da Matta, 1991
limites de suas especificidades é que
podem dar uma contribuição efetiva para o
p. 27), isto é, trata-se de um sujeito –
conhecimento...” . possuidor de seu próprio ponto de vista,
suas interpretações, que muitas vezes
À metodologia qualitativa são colocam as do pesquisador em xeque.
atribuídas muitas críticas devido a Emolduradas na metodologia
algumas características (como qualitativa, as abordagens biográficas
objetividade, lógica argumentativa, entre caracterizam-se por um compromisso com
outras) que a distinguem da metodologia a história como processo de rememorar,
quantitativa. Segundo Paulilo (1999, p. com o qual a vida vai sendo revisitada
137) “(...) A pesquisa qualitativa não tem, pelo sujeito. Neste contexto, a memória é
assim, a pretensão de ser representativa algo presente na existência do homem, o
no que diz respeito ao aspecto distributivo que implica numa valiosa importância de
do fenômeno e se alguma possibilidade seu resgate cuidadoso e ético.
de generalização advier da análise De acordo com Campos (2004,
realizada, ela somente poderá ser vista e p.43) “dentro do quadro referencial da
entendida dentro das linhas de demar- metodologia qualitativa biográfica
cação do vasto território das possi- destacam-se: a História Oral, Biografia,
bilidades”. Autobiografia e História de Vida”. Cada
A pesquisa qualitativa é adotada um desses métodos implica em
por cientistas opostos ao método expe-
rimental de pesquisa nas ciências. “Os
pesquisadores qualitativistas recusam o 2
Embora consideramos a distinção entre ciências sociais
e naturais um anacronismo.

______________________________________________________________________ 27
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35
Aline Pacheco Silva - Carolyne Reis Barros - Maria Luísa Magalhães Nogueira - Vanessa Andrade de Barros

procedimentos próprios, independentes – ao que constitui o núcleo central do


ainda que possamos encontrar casos em método: a dimensão do contar e da
que a imprecisão metodológica narrativa.” No mais, o que se observa é
encaminha o pesquisador a equívocos que uma ausência total de consenso. Para uma
vão desde a nomenclatura até os recursos melhor compreensão do método da
técnicos e de procedimento. Segundo história de vida algumas singularidades
Barros e Silva (2002, p. 136) “... a das abordagens supracitadas devem ser
referência comum entre as abordagens destacadas, o que pode ser visto no
que se pretendem biográficas diz respeito quadro a seguir.

Características das abordagens biográficas

METODOLOGIA ABORDAGENS BIOGRÁFICAS


MÉTODOS HISTÓRIA ORAL BIOGRAFIA AUTOBIOGRAFIA HISTÓRIA DE
VIDA
 Elaboração  Utilização  Discurso  Preocupação
de um projeto; de diversas direcionado ao leitor; com o vínculo
fontes; entre
 Definição  Preocupação com a pesquisador e
prévia de um  Recolhime seqüência temporal; pesquisado;
grupo de nto enviesado
pessoas a serem dos dados;  Intencionalidade.  Há uma
entrevistadas; produção de
sentido tanto
 Planejamento  Irrelevânci para o
da condução das a da falta de pesquisador
gravações; relação entre quanto para o
pesquisador e sujeito: “saber
 Transcrição e sujeito em
conferência do pesquisado. participação”;
depoimento;
CARACTERÍSTICAS

 História
 Inexistência contada da
da preocupação maneira própria
com o vínculo. do sujeito;

 Ponte entre
o individual e o
social

História Oral  Definição de um grupo de pessoas


(ou colônia) a serem entrevistadas;
O método de História Oral envolve  Planejamento da condução das
o estudo do indivíduo na sua sin- gravações;
gularidade. Segundo Meihy (1996, p.15),  Transcrição e conferência do de-
existem alguns critérios práticos e éticos poimento;
para a condução da método de História  Autorização para o uso da história;
Oral, a saber:  Publicação dos resultados, sempre
que possível;
 Elaboração de um projeto;

28 ______________________________________________________________________
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35
“Conte-me sua história”: reflexões sobre o método de História de Vida

A História Oral possui larga vivido; (2) a preocupação com a


utilização entre os historiadores que tem rememoração das experiências pessoais e
como finalidade entender e aprofundar sua articulação num contexto histórico
conhecimentos sobre determinada rea- mais amplo destacando assim uma
lidade ( ex: um dado momento histórico) preocupação com a seqüência temporal;
através de conversas com pessoas e (3) o uso da descrição para revelar os
relatos orais. Esse método levanta a momentos de sua história. Como aponta
possibilidade de uma maior aproximação Lacerda (2000, p. 84) “...as lembranças
com a realidade na qual o sujeito está aparecem como produtos de um
inserido, fazendo uso de uma pesquisa testemunho ocular da historia de seu
mais direcionada através de inte- tempo, como se cada escritora pudesse
rrogatórios. Nas palavras de Campos elaborar seu discurso de forma imper-
(2004 p.46) meável às contradições, às interpretações
“... o objetivo não é compreender como sociais e às subjetividades...”
cada sujeito re-significa sua existência a
partir da narrativa, como reelabora
aspectos pessoais numa teia coletiva. Os
historiadores pretendem conseguir História de Vida
depoimentos sobre a história cotidiana,
contada por grupos oprimidos, que irão
nortear as reflexões históricas. Em outras A História de Vida é um método
palavras dar voz aos esquecidos pela
história oficial.”
que tem como principal característica,
justamente, a preocupação com o vínculo
Cabe ressaltar a inexistência, entre pesquisador e sujeito. Haguette
nesse método, da preocupação com o (1992) sugere que o método de história de
vínculo entre pesquisadores e sujeitos da vida, dentro da metodologia de
pesquisa – importante distinção com abordagem biográfica, relaciona duas
relação ao método de Historia de Vida, perspectivas metodológicas intimamente,
como veremos. podendo ser aproveitado como docu-
mento ou como técnica de captação de
dados. Acrescentamos, nas duas pers-
Biografia e Autobiografia pectivas, a produção de sentido –
importante proposta da aplicação deste
método.
Já na Biografia diversas fontes são
utilizadas com a finalidade de entender a
história e o percurso de vida de uma Histórico do método de História de Vida
pessoa. Através de cartas, fotos, filma-
gens, documentos pessoais, depoimentos, A obra pioneira a utilizar o método
entre outros recursos, o pesquisador da história de vida foi a dos sociólogos
objetiva captar a profundidade da história W.I.Thomas e F. Znaniecki, trabalho
do sujeito. A pesquisa pode ser em- intitulado “The Polish Peasant in Europe
viesada, já que sua apresentação depende and América” (1918), cujo tema central
da compreensão e intenção que o era o processo de organização e
pesquisador desenvolve no recolhimento reorganização dos poloneses ao se
dos dados . integrarem à cultura americana, isto é,
como grupo que se insere em uma nova
Há ainda a chamada Autobiografia, sociedade. Tal estudo se desenvolveu
cujas características principais são: (1) o pautado em intenso trabalho de campo,
discurso direcionado ao leitor, levando através do recolhimento de relatos
muitas vezes uma não-reflexão sobre o

______________________________________________________________________ 29
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35
Aline Pacheco Silva - Carolyne Reis Barros - Maria Luísa Magalhães Nogueira - Vanessa Andrade de Barros

biográficos, bem como de análise de mundo a ser estudado, pois esses


documentos e análise de cartas. Os fenômenos são precisamente as produ-
autores buscaram com tais estratégias a ções sociais significantes construídas
compreensão e a interpretação desses pelos agentes.
emigrantes a partir da significação Encontramos nos aspectos
subjetiva que os sujeitos denotavam às metodológicos uma grande inovação pro-
suas ações (Barros, 2000). Segundo Le posta pelo interacionismo simbólico,
Grand (2005) essa obra é importante pois quando propões ceder o lugar do saber
é fundadora da sociologia americana ao agente social, postulando que o
nascente. Assim, as contribuições mais conhecimento deve ser construído a partir
significativas quanto a constituição da das interpretações, significações, daquele
história de vida como método surgem em que está inserido no fenômeno social a
com a chamada Escola de Chicago. ser estudado. O conhecimento de deter-
A expressão “Escola de Chicago” minada ação só vai, então, fazer sentido se
(Coulon, 1995) resume em si um entendido dentro de seu contexto, na
movimento que teve, e tem, muito realidade em que é experimentada.
significado para a Sociologia e para a Assim, a sociologia se faz apoiada na
Psicologia Social, compreendendo um prática dos indivíduos, logo se é
conjunto de trabalhos de pesquisa necessário
sociológica (desenvolvidos por volta de “preservar a integridade do mundo social
1915/1940) por professores e estudantes para poder estudá-lo, e levar em conta o
ponto de vista dos agentes sociais, pois é
da “recém” criada Universidade de através do sentido que atribuem a objetos,
Chicago (havia sido criada em 1890). indivíduos e símbolos que os rodeiam, que
O movimento da Escola de eles fabricam seu mundo social”
Chicago não apresenta homogeneidade (Coulon,1995 p.22).
total, mas possui grande sintonia em seus
direcionamentos tanto no que se refere Tais concepções teóricas do mundo
aos aspectos metodológicos quanto à social acabaram por fazer com que a
construção de conceitos fundamentais – o sociologia se voltasse para o trabalho de
que lhe confere a unidade necessária à campo, para uma sociologia da ação.
impressão que causou na sociologia e nas Uma segunda geração de soci-
ciências humanas de forma geral – ólogos de Chicago teve imensa im-
garantindo-lhe um espaço particular na portância neste contexto direcionando a
sociologia americana. Segundo Golden- sociologia humanista para uma orientação
berg (2000), a pesquisa da escola de mais científica. Podemos destacar Tho-
Chicago teve a marca do desejo de mas, Park e Burgess, que foram muito
produzir conhecimentos úteis para a importantes neste sentido, contribuindo
solução de problemas sociais concretos com trabalhos que retratavam de forma
enfrentados no cenário da cidade de coerente e consistente a metodologia que
Chicago, naquele período. ali se desenvolvia.
Ainda neste contexto emerge a Já no final dos anos 50 e início dos
teoria do interacionismo simbólico de anos 60 o trabalho do antropólogo norte-
George Herbert Mead (1863-1931), que americano Oscar Lewis (1914 – 1970)
enfoca a natureza simbólica da vida social também trouxe uma enorme contribuição.
– traço facilmente percebido na Em seu livro “The Children of Sanchez”,
metodologia dos estudos produzidos pela citado por diversos autores ( Le Grand
Escola de Chicago. Assim, o acesso aos 2005, Nogueira 2004, Barros e Silva 2002),
fenômenos a serem estudados pelo Lewis faz uso do recolhimento da história
pesquisador só pode se dar quando ele de vida de uma família mexicana visando
participa ativamente, como agente, no apreender os diversos aspectos da vida

30 ______________________________________________________________________
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35
“Conte-me sua história”: reflexões sobre o método de História de Vida

dessa família de uma forma mais abran- vida contada da maneira que é própria do
gente. sujeito, tentamos compreender o universo
Barros (2000) sugere que os do qual ele faz parte. Isto nos mostra a
trabalhos desenvolvidos por Franco faceta do mundo subjetivo em relação
Ferraroti na Itália (em 1970) e por Daniel permanente e simultânea com os fatos
Bertaux (1976) na França, ofereceram sociais. (Barros e Silva, 2002).
novo fôlego ao método de História de Ferraroti (apud Barros, 2000)
vida. Os seminários de “Romance lembra que ao se apropriar do social o
Familiar3 e Trajetória Social” que atual- indivíduo nele inscreve sua marca e faz
mente se desenvolvem na Universidade em sua subjetividade uma re-tradução
de Paris VII4, são exemplos concretos do deste social, reinventando-o a cada
aproveitamento do método de história de instante. O processo por ele expe-
vida no cenário científico contemporâneo. rimentado exprime o “psicossocial” 5
Neste sentido, tais pesquisas se onde ele está inserido, no processo
aproximam da construção identitária do dialético de construção de sua própria
indivíduo, da afirmação da identidade a identidade e de reconstrução social –
partir dos relatos biográficos, e procura- mobilidade da história para a história de
se elaborar a articulação entre o social e o vida, e da história de vida para o coletivo.
psicológico a partir da trajetória social Além disso tudo, a experiência de relatar
individual e a inserção no romance sua história de vida, oferece àquele que a
familiar. conta uma oportunidade de (re)-
Oscar Lewis (Lewis apud Barros, experimentá-la, re-significando sua vida –
2000) defende tal método por acreditar o que implica numa dimensão ética do
que oferece uma visão cumulativa, estudo, trazendo uma contribuição que
múltipla e panorâmica da situação ana- consideramos essencial – como acabamos
lisada. Barros (2000) observa que o de ressaltar mais acima.
método de história de vida funciona como De acordo com Nogueira (2004), a
uma possibilidade de acesso do indivíduo história de vida propõe uma escuta
(e à realidade que lhe transforma e é por comprometida, engajada e participativa.
ele transformada) “pelo interior”, na Na relação de cumplicidade entre
busca da apreensão do vivido social, das pesquisadores e sujeitos pesquisados em-
práticas do sujeito, “por sua própria contra-se a possibilidade daquele que
maneira de negociar a realidade onde narra sua história experimentar uma re-
está inserido”. significação de seu percurso e dar
continuação à construção de um sentido
frente a este relato endereçado.
Objetivos do método de História de Vida Podemos apontar a dimensão
terapêutica proporcionada pela história
Gaulejac (2005) aponta que o de vida. Ao construir o texto, a narrativa
objetivo do método da história de vida é de sua vida, o sujeito se re-constrói.
ter acesso a uma realidade que ultrapassa Marilena Chauí (1973, p. 20) apresenta:
o narrador. Isto é, por meio da história de “lembrar não é reviver, é re-fazer”.
Becker (1999, p. 109) aponta, entre
3
A idéia de romance familiar foi inicialmente elaborada as contribuições que a história de vida é
por Freud (a partir de seus estudos sobre a problemática capaz de dar, uma como fundamental. “A
‘psicoafetiva’ edipiana). Dá se o nome de “romance história de vida, mais do que qualquer
familiar” ao processo de contrução de um caráter
fantasioso da história da família que cada indivíduo
elabora para si.
4 5
Mini-curso ministrado por Roselynne Orofiamma, por É patente e justificada a necessidade de encontrar um
ocasião do VII Colóquio de Psicossociologia e Sociologia conceito de psicossocial que exprima as pressuposições
Clínica, Belo Horizonte – 02/07/2001 aqui apresentadas

______________________________________________________________________ 31
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35
Aline Pacheco Silva - Carolyne Reis Barros - Maria Luísa Magalhães Nogueira - Vanessa Andrade de Barros

outra técnica, exceto, talvez, a observação e vão construindo juntos o processo.


participante, pode dar um sentido à Assim encontramos a possibilidade desse
superexplorada noção de processo”. sujeito de refazer sua trajetória, de recon-
struí-la, resignificando seu caminho.
Denise Paraná (além de Barros,
Bosi, Ferrarotti e Lewis) sugere que um
método como esse possibilita uma
abordagem histórica muito mais Procedimentos do método de História de Vida
democrática, além de oferecer flexi-
bilidade ímpar, considerando a promoção O método começa a partir do
da capacidade de dominar a evidência desejo do entrevistado de contar sua vida.
humana exatamente onde ela é nece- Pede-se ao sujeito que conte sua história,
ssária. Trata-se de uma tentativa de como achar melhor – nos moldes de
oferecer escuta e, ainda mais, “de dar voz entrevista não-estruturada. Este sujeito vai
àqueles cujo discurso foi calado ou teve ser escolhido a partir das relações já
desenvolvidas pelo pesquisador no
pouca influência no discurso dominante”
contexto, de acordo com seu desejo de
(Paraná, 1996 p. 317) .
Alguns pontos são importantes a participar. É a partir da relação que vai
sendo estabelecida – o vínculo, a com-
destacar no que diz respeito a esse
fiança, a construção de sentidos – que o
método, como o vínculo entre pesqui-
método se desenvolve. Trata-se da
sador e sujeito, a questão da relação
interlocução
estabelecida, o sentido que o sujeito dá
A história de vida não pode ter um
para sua história, e sua re-significação e
sentido, mas sim vários – na concepção de
condição do discurso ser uma ponte entre
Pierre Bordieu7 - o relato não corresponde
o social e o individual.
necessariamente ao real, a vida não é uma
Barros, Bosi e Paraná realçam em história. O que importa é o sentido que o
muito a importância do vínculo de sujeito dá a esse real, de forma que o
confiança – e até amizade (Bosi, 19996) – momento de análise posterior dê conta do
que o pesquisador acaba por estabelecer indivíduo como social.
com quem narra sua história, com quem, O relato colhido é uma “produção
ali, cria um sentido para seu percurso de si” que o sujeito elabora (Bordieu apud
biográfico. “Da qualidade do vínculo vai Preuss 1997) e não uma “apresentação de
depender a qualidade da entrevista. Se si”. A maneira como o indivíduo conta
não fosse assim, a entrevista teria algo oferece o acesso a outras dimensões,
semelhante ao fenômeno da mais valia, como ao sociológico, a ponte entre su-
uma apropriação indébita do tempo e do jeito/coletivo. Ao contar sua vida, o sujeito
fôlego do outro.” (Bosi, 1999, p.60) fala de seu contexto – fala do processo por
A análise do objeto de pesquisa ele experimentado, intimamente ligado à
não parte da elaboração de hipóteses conjuntura social onde ele se encontra
previamente estabelecidas, mas se inserido. Ao se trabalhar o vivido
desenvolve a partir e na relação, produ- subjetivo dos sujeitos, através do método
zindo um saber em participação Ferraroti de História de vida, temos acesso à
(apud Barros 2000). Para tanto, o sujeito e cultura, ao meio social, aos valores
o pesquisador situam-se num mesmo nível

7
Aula ministrada pela Prof .Vanessa Andrade de Barros no
curso “História de Vida e Engajamento Militante” (UFMG,
6
De acordo com Guimarães Rosa, amizade é conversar 1º semestre de 2001) e mini-curso ministrado por
desarmado. No caso da entrevista o entrevistador irá para Roselynne Orofiamma, por ocasião do VII Colóquio de
a entrevista desarmado de signos de classe, de status, de Psicossociologia e Sociologia Clínica, Belo Horizonte –
instrução. 02/07/2001

32 ______________________________________________________________________
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35
“Conte-me sua história”: reflexões sobre o método de História de Vida

que ele elegeu e, ainda, à ideologia. conjunto de métodos (o caminho) e o


Um segundo ponto no que se método, por sua vez, constitui um
refere ao procedimento é a questão da instrumento utilizado para investigar uma
implicação do pesquisador. Um relato é determinada realidade.
sempre dirigido a alguém e, assim, Outros autores, como Queiroz
provoca também um efeito em quem o (1988 apud Paulilo 1999), colocam a
ouviu. – logo, tal dimensão é dual, como história de vida no quadro amplo da
bem se estabelece este modelo baseado história oral, já que também inclui
na relação entre aquele que colhe os depoimentos, entrevistas, biografias,
relatos (que pesquisa) e quem os conta autobiografias; o que também denota
(no sentido mais dinâmico que a palavra certa confusão no campo. A distinção do
sujeito conota). lugar da história de vida é importante,
pois sistematiza o estudo e padroniza a
linguagem da ciência de forma a atender
Discussão e Conclusão a demanda de critérios de cientificidade
apresentada por Demo (1989). De acordo
Uma crítica comum ao método de com o autor há critérios de cientificidade
História de Vida diz do rigor cientifico no internos e externos para que um trabalho
que se refere ao contato entre seja considerado cientifico. A ori-
pesquisador e sujeito. A crítica é legítima? ginalidade, consistência, coerência e
Como dissemos anteriormente uma das objetivação seriam critérios internos
características principais do método de importantes.
história de vida é o vínculo de confiança É interessante ressaltar que
que se estabelece entre pesquisador e “objetivação” é o termo usado escolhido
sujeito. Contudo, concordamos com Velho por Demo (1989) para substituir o
(1978, apud Paulilo, p.135 1999), pois conceito de objetividade, pois, segundo
entendemos que o vínculo não invalida ou esse autor, o pesquisador tenta reproduzir
torna menos científico o método de a realidade o mais próximo possível do
historia de vida, isto é: objeto que busca compreender. O critério
“(...) o envolvimento inevitável com o objeto externo seria a intersubjetividade, que
de estudo não constitui defeito ou corresponde ao argumento de autoridade
imperfeição dos métodos utilizados. Sendo o
pesquisador membro da sociedade, cabe-lhe
na ciência, não esquecendo que ela é
o cuidado e a capacidade de relativizar o seu produto histórico, social e em processo de
próprio lugar ou de transcende-lo de forma a formação, pois a ciência avança na
poder colocar-se no lugar do outro. Mesmo medida em que as soluções levantam
assim, a realidade, familiar ou inusitada, será
novos questionamentos, novos problemas.
sempre filtrada por um determinado ponto
de vista do observador, o que não invalida À busca de conclusão, gostaríamos
seu rigor cientifico, mas remete à de ressaltar que o compromisso do
necessidade de percebê-lo enquanto pesquisador é com a realidade, não com o
objetividade relativa, mais ou menos método ou a teoria. Uma postura ética
ideológica e sempre interpretativa...”
implica em não hesitar quando o método
escolhido não der conta de investigar
Outra discussão é relativa à inde-
aquela dada realidade. Entendemos ser
finição quanto à classificação: Nesse artigo
possível, e necessário, que a metodologia
apresentamos, pelo menos, duas ver-
qualitativa investigue e teça conside-
tentes em que não há consenso quanto a
rações sobre uma dada realidade de
discussão se História de Vida é método
forma sistemática, configurando assim o
(Barros e Silva, 2002; Nogueira 2004) ou
olhar cientifico e ético fundamentais à
metodologia (Campos, 2005). A distinção
pesquisa. O método de História de Vida é
é simples, posto que metodologia é o

______________________________________________________________________ 33
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35
Aline Pacheco Silva - Carolyne Reis Barros - Maria Luísa Magalhães Nogueira - Vanessa Andrade de Barros

um método cientifico com toda força,


validade e credibilidade de qualquer
outro método, sobretudo porque revela
que por mais individual que seja uma
história, ela é sempre, ainda, coletiva,
mostrando também o quão genérica é a
trajetória do ser humano. ■

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Barros, V. A. (2000) De la répresentation au pouvoir: une étude sur les trajectoires politiques
dês dirigeants syndicaux au Brésil. Tese de doutorado. Presses de Septentrion, Lille.

Barros, V. A. & Silva, L. R. (2002). A pesquisa em História de Vida. In: I. B. Goulart (org.)
Psicologia Organizacional e do Trabalho; teoria, pesquisa e temas correlatos.(pp.
134-158). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Becker, H. S. (1999). Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Ed. Pioneira .

Bosi, E. (2004) O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê
Editorial.

Campos, F. A. (2004). Trabalho e consciência de classe: a história de Dona Antônia e Dona


Maria na luta pela terra. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte, FAFICH-UFMG.

Chauí, M. (1973) Apresentação: Os Trabalhos da Memória. In Bosi, Ecléa. Memória e


Sociedade: Lembranças de Velhos. São Paulo, EDUSP.

Coulon, Alain, (1995) A Escola de Chicago. Campinas: Papirus Editora.

Da Matta, R. (1991) Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro:


Rocco.

Demo, P. (1989) Metodologia científica em ciências sociais. 2. ed. São Paulo: Atlas.

Gaulejac, V. de. (2005) La societé malade de la gestion: idéologie gestionnaire, pouvoir


managérial e harcèlement social. Paris: Seuil.

Goldenberg, M. (1998/2000) A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências


Sociais 3ª edição. Rio de Janeiro: Record.

Haguette, T. M. F., (1992) Metodologias Qualitativas na Sociologia. 3 ed. Petrópolis:Ed.


Vozes.

34 ______________________________________________________________________
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35
“Conte-me sua história”: reflexões sobre o método de História de Vida

Lacerda, L. M. (2000) Lendo vidas: a memória como escritura autobiográfica. In. Cunha, M.
T. S., Bastos M. H. C. e Mignot,A. C. V. (orgs). Refúgios do eu: educação, história e
escrita autobiográfica. (pp. 81-107). Florianópolis: Ed. Mulheres.

Le G. J. (2005) Historia de vida. In Barus-Michel, J. Enriquez, E. Dicionário de


Psicossociologia. Lisboa: Climepsi Editores

Lima, M.E.A. (2001) A Questão do Método em Psicologia do Trabalho. Palestra proferida no II


encontro das Escolas de Psicologia de Belo Horizonte, outubro de 2001.

Meihy, J. C. S. B. (1996) Manual de História Oral. São Paulo: Loyola.

Nogueira, M. L. (2004) Mobilidade psicossocial: a história de Nil na cidade vivida. Dissertação


de Mestrado. Belo Horizonte, FAFICH.

Paraná, D. (1996) O Filho do Brasil: de Luiz Inácio a Lula. São Paulo: Ed. Xamã.

Paulilo, M. A. S. (1999) A Pesquisa Qualitativa e a História de Vida. Serviço social em revista,


v. 1, n.1, 135 - 148. Londrina.

Preuss, M. R. G. (1997) A Abordagem Biográfica – História de Vida – na Pesquisa


Psicossociológica In: Revista Série Documenta, ano VI, nº8, UFRJ.

Zaluar, A. (1986). Teoria e prática do trabalho de campo: Alguns problemas. In: R.C. L.
Cardoso (Org.), A aventura antropológica: Teoria e pesquisa (pp. 107-125). Rio de
Janeiro: Paz e Terra

Recebido em:15/08/2007
Revisado em: 29/10/2007
Aceito em: 31/10/2007

Sobre as autoras:

Aline Pacheco Silva é aluna do curso de graduação em psicologia pela Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista em PROBIC pela FAPEMIG.

Carolyne Reis Barros é aluna do curso de graduação em psicologia pela Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista de extensão.
E-mail: carolynereis@yahoo.com.br

Maria Luísa Magalhães Nogueira é professora assistente do Departamento de Psicologia da


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Vanessa Andrade de Barros é professora adjunta do Departamento de Psicologia da Faculdade de


Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.

______________________________________________________________________ 35
Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 25-35

Você também pode gostar