Você está na página 1de 5

PESQUISA QUANTITATIVA: BUSCANDO CADERNOS DE

A MÉTRICA DA QUALIDADE? FORMAÇÃO

Kester Carrara1
METODOLOGIA DE
PESQUISA CIENTÍFICA
Duas razões prioritárias contribuíram para que a literatura em metodo- E EDUCACIONAL
logia científica e epistemologia enfatizassem, a partir dos anos 70, as possíveis
incompatibilidades entre pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa. Por um PESQUISA
lado, as polêmicas em torno da classificação das diversas novas ciências (Psi- QUANTITATIVA:
cologia e Sociologia, por exemplo) no quadro referencial das ciências naturais BUSCANDO...
ou das ciências sociais, sob os argumentos mutuamente excludentes de que o
comportamento humano é parte da natureza física geral ou de que possui
uma natureza diversa dos demais fenômenos e, por conseguinte, necessitaria PÁGINAS
de outro tipo de método para ser estudado. Por outro lado – e, de certo 55 A 60
modo, como conseqüência – a utilização ou não de procedimentos estatísti-
cos inferenciais no tratamento e análise dos dados de pesquisa ou, ainda que
de modo ideal, a possibilidade ou não de se empregarem fórmulas matemáti-
cas para expressar características humanas (de modo mais direto, para expres-
sar relações entre variáveis explicativas do comportamento humano). No con-
texto dessa polêmica, naturalmente muitas outras variáveis e questões apare-
ceram, como a tese de que, ao se atribuir ao comportamento (ou à consciên-
cia, ou à alma humana) uma dimensão monista-fisicalista, o que se está fa-
zendo é reduzi-lo à condição de “coisa”, de “objeto” similar aos demais even-
tos inanimados do mundo fenomênico geral.
Dada a natureza meramente introdutória deste texto, tal polêmica aca-
ba apenas apontada, sendo impraticável, sob o ponto de vista prático, avan-
çar na sua importante análise. Além disso, embora questão perene, o assunto
já vem sendo discutido, sob enfoques diversos, há mais de 50 anos (GOODE
& HATT, 1952,p.399): “...não importa quão precisas sejam as medidas, o
que é medido continua a ser uma qualidade”. Em última análise, a oposição
qualidade-quantidade, em pesquisa, põe-se de modo a fazer compreender
que ao cientista não interessam, via de regra, os números em si mesmos, mas
o que estes significam quando associados a um determinado fenômeno. O
mesmo em relação à estatística, que, quando (bem) utilizada, serve como
instrumento para facilitar a compreensão sobre como se relacionam determi-
nadas variáveis.
Importa ao leitor, de todo modo, o fato de que encontrará na literatu-
ra, invariavelmente, referências a métodos quantitativos e métodos qualitati-
vos (ou ao método, por excelência, seja qualitativo ou quantitativo). Em de-
corrência, algumas distinções práticas podem ser feitas. Como a própria ex-
pressão indica, a pesquisa quantitativa vale-se do emprego da avaliação, regis-
tro e interpretação de quantidades, através de diversas unidades de medida
possíveis (freqüência de ocorrência, duração e outras dimensões). Neste caso,
1
Professor Livre-Docente do
é típica a pesquisa experimental, onde a manipulação de uma variável (inde- Departamento de Psicologia da
pendente) pode resultar em alterações concomitantes ou subseqüentes em Faculdade de Ciências da
outra variável (dependente), sob a lógica do controle de variáveis estranhas. UNESP, Campus de Bauru.
Há um procedimento geral de mensuração dos valores de cada variável e a
interpretação do cientista sobre o que representa o comportamento de tais
Cadernos ##
de Formação

55a60.p65 55 30/12/03, 14:33


variáveis, comumente visível através das tendências de curvas e gráficos.
CADERNOS DE Subjacente a tal tipo de pesquisa está a idéia da busca de objetividade cientí-
FORMAÇÃO
fica, tal objetividade sendo sempre uma questão de grau. Corrobora essa idéia
de gradação a concepção de mundo empírico constituído de regularidade de
METODOLOGIA DE ocorrência dos vários fenômenos. Nesse sentido, os fenômenos humanos se-
PESQUISA CIENTÍFICA riam igualmente parte da natureza geral e, conseqüentemente, passíveis de
E EDUCACIONAL serem compreendidos através da formulação de leis científicas. Os testes
empíricos assegurariam, mediante procedimentos objetivos de observação e
registro, a obtenção de parâmetros para a construção de teorias, por sua vez
PESQUISA
QUANTITATIVA: geradoras de novas hipóteses e corolários passíveis de novos testes. Em última
BUSCANDO... instância, se é, de fato, viável dividir a metodologia em pesquisa qualitativa e
quantitativa, esta última se distinguiria pelo esforço de mensuração e pela
expressão matemática de relações probabilísticas entre variáveis. Para Kerlinger
(1980,p.297), as críticas à objetividade assumem duas formas principais: 1)
por um lado, a objetividade conduz a ciência a preterir os valores humanos
por conta de sua frieza inerente; nessa perspectiva, não se pode confiar em
conhecimento “...adquirido em sistema tão desumano, porque a ele falta sa-
bedoria verdadeira e profunda, que vem apenas da percepção intuitiva de
verdades humanas”. 2) por outro lado, a objetividade constituiria ideal im-
possível, argumento que, às vezes, é confundido com a idéia de ciência neu-
tra; por certo, a objetividade aludida diz respeito aos procedimentos, mais
que ao comportamento do cientista e, ainda assim, seu parâmetro não é abso-
luto, mas probabilístico. Hoje, a pesquisa já está muito distante de uma inter-
pretação literal das palavras escritas por Claude Bernard, em 1865: “...o pes-
quisador, como dissemos, constata pura e simplesmente o fenômeno que tem
sob seus olhos... sua mente deve ficar passiva, ou seja, deve calar-se”. Obvia-
mente, a complexidade dos fenômenos humanos levou os cientistas a uma
reflexão crítica e a um distanciamento do positivismo ingênuo de Comte,
Bernard e Durkheim, exigindo revisões profundas nos métodos e técnicas na
medida em que avançavam as pesquisas sobre as ações humanas. Mesmo os
esforços mais ingentes da psicofísica e da reflexologia, para citar exemplos da
busca de aplicação direta de procedimentos de medida típicos das ciências
naturais, não foram suficientes para cobrir todas as necessidades de explica-
ção das relações humanas com o ambiente físico, químico, biológico e social.
Desenvolveram-se, face a essas dificuldades e no cenário de turbulen-
tos (mas auspiciosos e construtivos) debates, as atuais tendências, que persis-
tem enfatizando a dicotomia quantidade-qualidade. Atualmente, parece que
as “ciências naturais” e as “ciências humanas” partilham de algumas preocu-
pações comuns. Para Laville e Dionne (1999,p.41), diriam respeito, generi-
camente, aos seguintes aspectos: “1) centrar a pesquisa na compreensão de
problemas específicos; 2) assegurar, pelo método de pesquisa, a validade da
compreensão; 3) superar as barreiras que poderiam atrapalhar a compreen-
são”. Ainda com os mesmos autores:

Na realidade, esse debate, ainda que muito presente, parece inútil e até
falso. Inútil, porque os pesquisadores aprenderam, há muito tempo, a con-
jugar suas abordagens conforme as necessidades. Vê-se agora pesquisadores
de abordagem positivista deixar de lado seus aparelhos de quantificação de
entrevistas, de observações clínicas, etc., e inversamente, vê-se pesquisadores
#$ Cadernos
de Formação

55a60.p65 56 30/12/03, 14:33


adversários da perspectiva positivista que não procedem de outro modo
quando é possível tratar numericamente alguns de seus dados para melhor CADERNOS DE
FORMAÇÃO
garantir sua generalização. Inútil, sobretudo, porque realmente é querer se
situar frente a uma alternativa estéril. A partir do momento em que a
pesquisa centra-se em um problema específico, é em virtude desse problema METODOLOGIA DE
específico que o pesquisador escolherá o procedimento mais apto, segundo PESQUISA CIENTÍFICA
ele, para chegar à compreensão visada. Poderá ser um procedimento quan- E EDUCACIONAL
titativo, qualitativo, ou uma mistura de ambos. O essencial permanecerá:
que a escolha da abordagem esteja a serviço do objeto de pesquisa, e não o
PESQUISA
contrário, com o objetivo de daí tirar, o melhor possível, os saberes deseja- QUANTITATIVA:
dos. Nesse sentido, centralizar a pesquisa em um problema convida a con- BUSCANDO...
ciliar abordagens preocupadas com a complexidade do real, sem perder o
contato com os aportes anteriores. (LAVILLE & DIONNE, 1999, p. 43).

De todo modo, ainda parece prevalecer um clima de insegurança entre


pesquisadores das áreas de Educação, Psicologia, ciências humanas e sociais em
geral. Conforme Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (2000,p.145) “Se, de um
lado, essa desorientação parece compreensível, de outro, nada impede que pes-
quisas nesse campo – sejam elas quantitativas ou qualitativas – possam ser rigo-
rosas e sistemáticas, atendendo assim os requisitos da tradição científica”.
Ressalvadas as polêmicas já mencionadas, a pesquisa quantitativa ca-
racteriza-se pela busca do emprego de medidas precisas e instrumentos que
assegurem quantificação; quer seja no momento da coleta de dados, quer seja
na amostragem de sujeitos e condições, quer seja nos procedimentos de
inferência estatística. Essa busca de precisão e objetividade dá-se em várias
instâncias e níveis, não se confundindo com o simples emprego de estatística
descritiva ou inferencial na pesquisa. Está presente, via de regra, o controle
experimental de variáveis, no mais das vezes mediante a manipulação da va-
riável independente, a aleatorização ou controle experimental de variáveis
estranhas e a mensuração apropriada da variável dependente. Nesse sentido,
a quantificação pode estar presente tanto nos estudos descritivos quanto na-
queles que se propõem a investigar relações de “causalidade” (ou de funcio-
nalidade) entre variáveis determinadas. Nos estudos descritivos, geralmente
recomendados para situações onde há limitado conhecimento de possíveis
relações funcionais entre variáveis, a finalidade é investigar “o que é”, ou,
mais precisamente, descrever, caracterizar, categorizar ou, mesmo, classificar
algum tipo de fenômeno. A partir da pesquisa descritiva, abre-se caminho
para a investigação experimental ou, mesmo, para os estudos correlacionais.
Mesmo nestes, onde a relação causa-efeito não fica estabelecida, a quantificação
está presente. Esse tipo de estudo é bastante freqüente na área de ciências
humanas e mesmo da saúde, por vezes devendo-se à impossibilidade
(tecnológica ou ética) de manipulação de algumas variáveis (por exemplo, há
situações onde se estuda o efeito de procedimentos da rotina hospitalar sobre
a saúde dos pacientes, nas quais a ressalva freqüente é a de que as fontes de
dados são constituídas ex post facto e onde, além disso, os registros originais
podem ter sido produzidos por diferentes profissionais, gerando imprecisões
para o estudo em curso). Naturalmente, isso exemplifica que quantificação
não significa, necessariamente, precisão e fidedignidade. Questionários e en-
trevistas “estão na moda”, mas, via de regra e como exemplo, por mais cuida-
Cadernos #%
de Formação

55a60.p65 57 30/12/03, 14:33


dosa que seja a categorização de respostas à entrevista, apenas está assegurado,
CADERNOS DE enquanto dado, o que o sujeito responde, mas não há, necessariamente,
FORMAÇÃO
congruência entre o que diz que faz e o que realmente faz. São típicos os
problemas científicos com o uso de relatos verbais como fontes de dados
METODOLOGIA DE sobre as ações humanas. Isso sinaliza um direcionamento dos pesquisadores
PESQUISA CIENTÍFICA “quantitativistas” para uma preferência vinculada à pesquisa experimental,
E EDUCACIONAL onde a idéia de controle de variáveis prevalece.
Fica claro que a pesquisa quantitativa não depende, necessariamente,
PESQUISA do número de sujeitos empregados. É viável e comum uma ênfase quantitati-
QUANTITATIVA: va quando n = 1 (é o caso do delineamento de sujeito único, mediante
BUSCANDO...
replicação). Entretanto, a idéia de representatividade amostral é a mais co-
mum e tradicional e implica o emprego de testes estatísticos de hipótese.
Normalmente, quando se emprega metodologia quantitativa nesses casos, o
que se busca é o estabelecimento de regras, princípios, leis científicas que
representem o comportamento do fenômeno. Há procedimentos de cálculo
para se estabelecer qual a amostra ideal para bem representar determinada
população e assegurar que as inferências sejam seguras. Entretanto, é possível
usar tratamentos estatísticos com um número pequeno de sujeitos. Na práti-
ca, ao pesquisador resta a necessidade de análise de cada situação, em função
do que propõe um determinado desenho de pesquisa. Por exemplo, se está
diante da comparação da eficácia de um método de ensino para a população
de estudantes do ensino fundamental, há que selecionar grupos representati-
vos de sujeitos para poder controlar um conjunto de variáveis estranhas (con-
dições físicas do local, professor, horário do dia, experiência anterior dos su-
jeitos, por exemplo) e avaliar as diferenças entre as variáveis principais a se-
rem testadas.
A pesquisa experimental, portanto, melhor representa as tendências da
pesquisa quantitativa, estando aí incluídos os delineamentos experimentais e
quase-experimentais. No primeiro tipo, devem estar presentes, necessaria-
mente, o controle de variáveis, a manipulação de variáveis e uma amostra
representativa ou procedimento semelhante para garantir generalização (caso
da replicabilidade nos delineamentos com n=1). No segundo tipo, devem
estar presentes pelo menos duas das condições do delineamento experimen-
tal. Para Campos (2001), essa classificação ajuda a compreender a diferença
entre o delineamento quase-experimental e o correlacional, já que neste últi-
mo não está presente qualquer condição de confiabilidade entre as três já
mencionadas. Tipicamente, um projeto experimental inclui, basicamente (uma
vez que desdobramentos desse tipo básico são muitos, a depender da
criatividade do cientista e da necessidade decorrente do problema a ser inves-
tigado), a definição de pelo menos um grupo experimental (conjunto de su-
jeitos submetido à variável independente), um grupo controle (sujeitos não
submetidos à variável independente), uma condição de pré-teste e uma con-
dição de pós-teste. As pesquisas experimentais, portanto, caracterizam-se pelo
controle de variáveis, pela manipulação eficaz da variável independente e pelo
uso de amostras probabilísticas (quando se tratar de grupos de sujeitos). É
essa, fundamentalmente, a lógica que traduz a busca de objetividade e que
produz ainda calorosas discussões entre os cientistas, preservando a histórica
dicotomia nomotético-ideográfico (busca do conhecimento vinculada à des-
coberta de leis gerais que regem os fenômenos ou busca da explicação do
#& Cadernos
de Formação

55a60.p65 58 30/12/03, 14:33


comportamento individual dos fenômenos). Por certo, como este texto não
objetiva oferecer uma “fórmula” prática e simplista para fazer pesquisa quan- CADERNOS DE
FORMAÇÃO
titativa, suas bases lógicas devem servir ao leitor que, diante de um problema
de pesquisa e com o auxílio de textos especializados de metodologia, queira
tomar uma decisão apropriada e condizente com sua opção epistemológico- METODOLOGIA DE
metodológica. Por último, certo é que o objetivo da pesquisa determina os PESQUISA CIENTÍFICA
caminhos a serem seguidos, determina o método e suas conseqüentes técni- E EDUCACIONAL
cas. Não parece melhor a pesquisa quantitativa; não parece melhor a pesquisa
qualitativa. Tudo indica que a melhor pesquisa é... aquela que é bem feita!
PESQUISA
QUANTITATIVA:
BUSCANDO...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVEZ-MAZZOTTI, A. J., GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e
sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 2000.
BERNARD, C. (1865) Introduction à l’étude de la médicine expérimentale. Paris: Garnier-
Flamarion,1966.
CAMPOS, L.F.L. Métodos e técnicas de pesquisa em Psicologia. Campinas: Alínea ,2001.
GOODE, W. J., HATT, P. K. Métodos em Pesquisa Social. São Paulo: Companhia Editora
Nacional,1977.
KERLINGER, F. N. Metodologia da Pesquisa em Ciências Sociais: um tratamento conceitual.
São Paulo: EPU-EDUSP,1980.
LAVILLE, C., DIONNE, J. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em
ciências humanas. Porto Alegre: Artmed/Editora UFMG,1999.

Cadernos #'
de Formação

55a60.p65 59 30/12/03, 14:33

Você também pode gostar