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Réquiem para a cultura popular

Noelio Dantaslé Spinola1

"Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a


tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do
sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante
tarefa de viver." Ariano Suassuna (2007)

Resumo

Texto elaborado para o IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos. Trata
do conflito entre as formas primitivas e ingênuas da arte, que integram a cultura popular e consequentemente a
economia cultural, e a indústria cultural engendrada pelo sistema capitalista. Parte de um conjunto de definições
e analisa alguns aspectos do carnaval, da produção de instrumentos musicais e do artesanato, fazendo a ligação
destes com a influência africana e suas repercussões na economia do turismo. O texto é centrado num quadro que
o autor, num estilo irreverente e heterodoxo, pinta para a cidade do Salvador, no estado da Bahia.

Palavras-chave: Economia cultural. Indústria cultural. Cultura popular. Salvador.

Abstract

Text prepared for the IX National Meeting of the Association of Urban and Regional Studies. This text deals
with the conflict between the primitive and naive art, incorporated popular culture and consequently the cultural
economy and cultural industry engendered by the capitalist system. Starting on a set of definitions, examines
some aspects of carnival, the production of musical instruments and crafts, linking them with the African
influence and its impact on the tourism economy. The text is centered on author’s framework, in an irreverent
style and unorthodox city of Salvador painting in Bahia state.
Key words: Cultural economy. Cultural industry. Popular culture. Salvador.

Uma introdução pouco formal

Meus mestres me ensinaram há muito tempo que um texto acadêmico deve ser austero,
rígido, mais frio que um defunto, recheado de citações, atento às normas da ABNT que
mudam frequentemente aos caprichos de um comitê de “sábios”, para o desespero de autores
e revisores indefesos, e sem qualquer concessão ao humor, sarcasmos e ironias. Distância!
Use sempre a terceira pessoa!
Rident castigat mores, ensinaram os romanos, mandando para o inferno o formalismo,
no que foram bem copiados por Gil Vicente e Voltaire, mestres da irreverência. O humor, o
riso, está na base da nossa cultura popular. Por que não celebrarei seu funeral segundo a
ortodoxia acadêmica? Porque estou com o poeta Noel Rosa cantando Fita Amarela: “quando
eu morrer, não quero choro nem vela…”. Porque também estou com o poeta Ariano
Suassuna, em sua Iniciação à Estética: “do ponto de vista social, o riso é uma espécie de
castigo ou reprimenda que a sociedade inflige a alguma coisa que a ameaça” (2007, p. 155).
Através do riso, relata Petry (2010, p.1) os costumes que estavam em desacordo com a
moral eram castigados e, a partir disso, o riso passa a ser um fenômeno, sobretudo social e

1
Doutor em Geografia e História pela Universidade de Barcelona (ES). Professor Titular de Economia Regional e Métodos
de Análise Regional no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU) da Universidade
Salvador (UNIFACS). E - mail: dantasle@uol.com.br
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humano e que ocorre somente em circunstâncias onde, de alguma forma, a sociedade vê-se
ameaçada. Eu penso que a morte da cultura popular pela sua massificação é uma grande
ameaça.
Sorrio então, com este estilo, cansado de ser academicamente correto, já encerrando a
simbólica idade de 69 anos, e correndo o risco de ter meu texto reprovado por ser assim
heterodoxamente irreverente.
Sorrindo decidi com desencanto dar meu adeus à cultura popular, naif, e a economia
por esta engendrada a partir de múltiplos lugares, como o interior do Nordeste que gerou
sertanejos famosos a exemplo dos Vitalino, Nhô Caboclo, Luiz Antônio da Silva e tantos
outros; dos undergrounds de Salvador e Recife, responsáveis pelos magníficos carnavais,
verdadeiros vulcões que transbordavam uma preciosa criatividade nos batuques dos afoxés,
do pau elétrico de Dodô e Osmar,2 transformado em guitarra baiana por Moraes Moreira, da
Vassourinha de Joana Batista3 e Matias da Rocha, sucedidos por tantos outros cuja lista é
interminável.
Seguindo o conselho de Chaplin, quando dizia: “Ei! Sorria... Mas não se esconda atrás
desse sorriso...” trato neste artigo de um problema identificado, ainda na década de 1940
por Horkheimer e Adorno (1944) que em sua Dialética do Iluminismo denunciam o
surgimento da indústria cultural que no sistema capitalista passa a dominar e absorver a
economia cultural. Assim la participación en tal industria de millones de personas impondría
métodos de reproducción que a su vez conducen inevitablemente a que, en innumerables
lugares, necesidades iguales sean satisfechas por productos estándar. La industria cultural,
en suma, absolutiza la imitación (p. 50).
Sorrindo vejo sumir a arte ingênua responsável por muitos empregos na economia da
cultura popular que nesta implacável marcha da modernidade é transformada em produto da
indústria cultural e dá lugar a uma estética padronizada pela máquina e o computador, ou é
descartada e esquecida quando inadaptável aos gostos padronizados.
Talvez pareça que sou um saudosista romântico daqueles que gostariam de congelar o
passado. Sou não! Concordo apenas com Adorno e Horkheimer que há 66 anos diziam: no se
trata de conservar el pasado, sino de realizar sus esperanzas (1944, p. 4).
Apenas deploro e protesto pela sorte dos pequenos artesãos nordestinos que enfrentam
a concorrência desleal e maciça da China que copia descaradamente e sem pagar direitos
autorais as suas imagens4; dos músicos e outros artistas populares que de protagonistas vão
sendo reduzidos a assalariados eventuais da indústria fonográfica; dos produtores de
instrumentos musicais que são massacrados pela concorrência das multinacionais; dos mestres
carpinteiros dos saveiros do Recôncavo Baiano liquidados pelo fiberglass e o IBAMA; dos
cordelistas que não substituem mais um Patativa do Assaré, um Cuica de Santo Amaro, um
Leandro Gomes de Barros ou João Martins de Athayde, até porque as feiras, que eram seus
palcos originais, estão acabando, substituídas por centros de abastecimento e pela Internet que
decretou o fim do papel impresso. Não vivemos mais na galáxia de Gutenberg, e eu que sou
um velho reacionário não acredito em cordelista digital. Não vejo mais a banda passar pelo
coreto da praça, nem os circos anunciados pelos palhaços de longas pernas de pau, cantando
inocentemente o hoje politicamente incorreto refrão: “olê, olê, olê bambu, fio de nego é
urubu!” e seguidos por uma multidão de crianças deslumbradas que lotavam os espetáculos.
Os “theatros” desaparecem por falta de salas e patrocinadores. As salas de cinema viraram

2
A “fobica” de Dodô foi transformada em Trio Elétrico.
3
Como sempre nesta seara: há controvérsias.
4
Encontrei similares de produtos da cerâmica afro-baiana fabricados artesanalmente em Maragogipe e Nazaré das Farinhas, e
vendidos na Feira dos Caxixis, no Mercado Modelo e na Feira de São Joaquim, em lojas de artesanato de Buenos Aires,
Santiago, Lima, Lisboa e Madrid. Todos muito bem feitos, perfeitos, made in China!
3

igrejas evangélicas. As “philarmônicas” e as “lyras” populares também sumiram. Estão


acabando os músicos que tocavam por partitura. Os festejos religiosos estão sumindo
gradualmente ou sofrendo transformações radicais que os descaracterizam como é o caso da
Lavagem do Bonfim e das festas da Conceição da Praia, do Rio Vermelho de São Lázaro, de
Santa Bárbara e de São Cosme e São Damião. Os que sobrevivem se transformam em
carnaval ou desfile de políticos como a famosa lavagem do Bonfim. E por ai vai…
Pois bem, é nestas categorias da cultura popular, ingênua, naif, (que geravam
emprego e renda e absorvia muitas vezes na informalidade um montão de gente) que agoniza
a economia cultural.
Neste artigo, pretendo apresentar algumas considerações sobre o problema tratando de
alguns aspectos conceituais e de setores da economia cultural popular, como: o carnaval e as
festas populares, o artesanato popular, a música, as artes plásticas e cênicas, e a culinária.
Limito-me ao território baiano, notadamente Salvador, onde fica a minha tribo, com um
lembrete para os demais nordestinos: quando a gente vê as barbas do vizinho arder, é melhor
meter as nossas de molho!

E o que vem a ser economia cultural?

Segundo dizem os doutos, economia cultural é uma categoria que abarca um


notável campo de produção, circulação e consumo de bens e serviços simbólicos, de
natureza material e imaterial, genericamente denominados bens ou produtos culturais.
O uso desta terminologia é frequente na academia, e na mídia, embora a bibliografia sobre o
assunto seja exígua. Assim sendo, não há uma conceituação explícita do seu significado. Não
existe uma separação entre a economia cultural popular que estuda as categorias mais
simples e mais pobres e a economia cultural da elite que estuda as categorias mais
sofisticadas. Para compreendê-la melhor analisaremos os seus termos em separado, para
depois ressignificá-los em seu conjunto.
Sobre a economia, ciência por demais conhecida, a sua importância pode ser
observada nos diversos mundos culturais, em todas as épocas históricas e em todas as
sociedades. No modo de produção capitalista o mercado torna-se o regulador da vida social.
Nestes termos tudo é interpretado como mercadoria. Marx (1971, p.79) destaca que “o
sistema capitalista transforma todos os objetos úteis em mercadorias”. Para ele, o fetiche ou
caráter ilusório das mercadorias, que afinal satisfazem necessidades humanas, não se deve ao
seu valor de uso, mas, sim, ao seu valor simbólico.
A primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa trivial e que se compreende por
si mesma. Pela nossa análise mostramos que, pelo contrário, é uma coisa muito
complexa, cheia de sutilezas metafísicas e de argúcias teológicas. Enquanto valor-
de-uso, nada de misterioso existe nela, quer satisfaça pelas suas propriedades as
necessidades do homem, quer as suas propriedades sejam produto do trabalho
humano. O caráter místico da mercadoria não provém, pois, do seu valor-de-uso.
Não provém tão pouco dos fatores determinantes do valor. O carácter misterioso da
forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente em que ela apresenta aos
homens as características sociais do seu próprio trabalho como se fossem
características objetivas dos próprios produtos do trabalho, como se fossem
propriedades sociais inerentes a essas coisas; e, portanto, reflete também a relação
social dos produtores com o trabalho global. Este fetichismo do mundo das
mercadorias decorre do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias.
Os objetos úteis só se tornam em geral mercadorias porque são produtos de
trabalhos privados, independentes uns dos outros. (MARX, 1971, p.81)

Galbraith (1968) e Canclini (1997) destacam que a sociedade capitalista, ao


generalizar e expandir o mercado, aumentando a quantidade de mercadorias nele
transacionadas promovendo a diversificação dos seus padrões de qualidade e ampliando
4

através do marketing a escala das necessidades, transforma os consumidores, massificando-os


e reduzindo subliminarmente a sua liberdade de escolha. Esta generalização dos mercados e
de ampliação das necessidades e padrões de consumo da sociedade contemporânea é
responsável pela “cultura do consumo”, primordialmente, entendida como “consumo de
signos”.
O caráter simbólico das mercadorias é quem nos permite falar em economia cultural.

Mas, e o que é cultura?

É um território em permanente conflito. No nosso entendimento cultura é uma


categoria polissêmica e, como tal, são vários os seus significados. Em alguns contextos, que
certamente não é o nosso, ela aparece como sinônimo de erudição ou educação acadêmica.
No cenário midiático, cultura aparece geralmente vinculada ao mundo das artes:
televisão, teatro, cinema, música, literatura, artes plásticas, esportes etc. Do ponto de vista
antropológico, entretanto, a cultura é concebida de forma muito mais ampla. O velho
antropólogo britânico Edward Burnett Tylor ([1881] 2011) citado por todo mundo, definiu
cultura como a expressão da totalidade da vida social do homem. Para ele a cultura trata de
“todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer
outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade.
Trata-se de uma categoria onipresente, pois ocorre em todos os setores do dia a dia:
econômico, político, espiritual religioso, etnolinguístico, genético, e sociocomportamental. A
cultura dos povos é a interconexão de todas estas esferas, perpassando ainda os aspectos
históricos e geográficos do tempo e do espaço.
Towse (2003, p.19) ensina que a expressão economia cultural ou da cultura é, em certa
medida, uma denominação incorreta e que se utiliza na falta de outra melhor. Sua
denominação pioneira foi “economia das artes”, mas este rótulo “se mostrou inadequado por
ser restrito e elitista” 5. Ficou-se então com a economia da cultura, como la aplicación de la
economia a la producción, distribución y consumo de todos los bienes y servicios culturales,
e a explicitação de que todos os bens e serviços culturais devem ter em comum o fato de
incluir um elemento artístico ou criativo.
Os economistas que constituem uma fauna estranha, da mesma forma que desprezaram
os aspectos espaciais da economia, não tomaram conhecimento da economia cultural. Nas
palavras de Lasuén (2005, p.39):

Mientras, desde Ia Ilustración, Ias otras ciencias sociales han venido dando, en su
seno, una importancia creciente a Ia cultura; Ia economía, llevada de su propósito
obsesivo de convertirse en una ciencia natural, hasta fechas muy recientes Ia ha
considerado irrelevante o perniciosa. A. Smith y K. Marx, y sus escuelas
respectivas, es decir, Ia mayor parte de los economistas, han juzgado, durante los
dos últimos siglos, que su actividad era, como Ia de todos los servicios,
improductiva y, por tanto, irrelevante. Los únicos economistas que rompieron una
lanza por Ia cultura y el arte fueron, naturalmente, los más cultos, Robbins y
Keynes. EI primero, como se ha dicho, superando Ia línea clásica que afirrnaba que
el objeto de Ia economía era aumentar y distribuir mejor Ia riqueza nacional, dijo
que el objeto genérico de Ia economía era garanrizar Ia mejor asignación de
recursos escasos a Ia obtención de fines dados, y que éstos podían ser tanto
maximizar a riqueza como la cultura. Keynes, por su parte, consiguió que, en Ia
Inglaterra tradicionalmente opuesta a toda subvención pública del arte, se creara el
National Endowment for the Arts. Pero ninguno de los dos adujo que hubiera que
estudiar con criterio económico las actividades culturales y, mucho menos, que se

5
Discordo da autora, por que a arte só existe (na e) para a elite?
5

analizara la influencia de la cultura en el análisis y política económicos. (Grifos


nossos).

A economia cultural abrange a arte produzida tanto por ricos quanto por pobres.
Tanto o Louvre e a Opera de Paris quanto o Circo Picolino, baiano e o gaúcho Teatro de Lona
Serelepe são objetos do seu estudo. A literatura disponível sobre o tema, produzida
substancialmente nos países do chamado “primeiro mundo” (detesto esta expressão, é tão
ridícula quanto “primeira dama”) contempla normalmente os produtos culturais para a “elite”
(não só a burguesia, mas também os sofisticados da classe média). Já a literatura brasileira
que conheço está geralmente vinculada aos piedosos e esperançosos propósitos dos devotos
do desenvolvimento sustentável e solidário.
E a cultura popular? Não vou entrar na briga e nas controvérsias sobre o que é popular
ou erudito. Porém faço minhas as palavras de Saldanha (2010) quando diz que a indefinição
dos termos tende invariavelmente a derivar no preconceito, e na criação de hierarquizações
axiológicas de âmbito sociocultural, ou mesmo socioeconômico, excessivamente datadas. Por
isto me socorri em Mascelani (2009) que numa linguagem antropológica diz que no Brasil,
“costuma-se chamar de “arte popular” a produção de esculturas e modelagens feitas por
homens e mulheres que, sem jamais terem frequentado escolas de arte, criam obras de
reconhecido valor estético e artístico.” 6 Para mim também estão incluídos nesta classificação
os artistas cênicos, da escrita e da música. Esta é, pois, a cultura do povo a quem me dedico. É
o resultado de uma interação contínua entre pessoas de determinadas regiões. Nasceu da
adaptação do homem ao ambiente onde vive e abrange inúmeras áreas de conhecimento:
crenças, artes, moral, linguagem, idéias, hábitos, tradições, usos e costumes, artesanato,
folclore, etc. Ainda nas palavras da antropóloga Angela Mascelani:

O universo da arte popular é fecundo e está em permanente movimento. Atravessa


todos os recantos da imaginação e em seu rastro revolve e traz à tona antigas
tradições quase esquecidas, inventa temas nunca antes pensados, colhe novidades no
repertório da vida cotidiana, transforma com frescor o patrimônio de muitas
gerações. No Brasil, seus revigorantes caminhos conduzem a campos praticamente
ilimitados: da música e do cancioneiro aos shows de habilidades e performances; da
literatura de cordel às invenções e bricolages; das festas comunitárias ao folclore; do
teatro às brincadeiras de rua, das artes plásticas ao artesanato. Abrange variada gama
de produções feitas por pessoas que, sem jamais terem freqüentado escolas de arte,
criam obras nas quais se reconhecem valor estético e artístico. Obras que encontram
sentido e, de certa forma, revelam importantes aspectos da cultura em que surgem.
(MASCELANI, 2009, p.12)

Acredito que a arte popular vem sendo gradativamente absorvida, transformada e


canibalizada, pela indústria cultural que, nas palavras de Adorno e Horkheimer (1944 p.37)
ao introduzir a tecnologia viabiliza o atendimento simultâneo a milhões de pessoas impondo a
adoção de métodos automatizados de reprodução e possibilitando que em inumeráveis
lugares, necessidades iguais sejam satisfeitas por produtos padronizados.

La tarea que el esquematismo kantiano había asignado aun a los sujetos la de


referir por anticipado la multiplicidad sensible a los conceptos fundamentales le es

6
Seus autores são gente do povo, o que, em geral, quer dizer pessoas com poucos recursos econômicos, (pouca ou nenhuma
instrução formal) que vivem no interior do país ou na periferia dos grandes centros urbanos e para quem “arte” significa,
antes de mais nada, trabalho. Apesar de fortemente enraizada na cultura e no modo de viver das pequenas comunidades nas
quais tem origem, a arte popular exprime o ponto de vista de indivíduos cujas experiências de vida são únicas. Apresenta os
principais temas da vida social e do imaginário — seja por meio da criação de seres fantásticos ou de simples cenas do
cotidiano — numa linguagem em que o bom humor, a perspicácia e a determinação têm lugar de destaque. (MASCELANI,
2009).
6

quitada al sujeto por la industria. La industria realiza el esquematismo como el


primer servicio para el cliente. Según Kant, actuaba en el alma un mecanismo
secreto que preparaba los datos inmediatos para que se adaptasen al sistema de la
pura razón. Hoy, el enigma ha sido develado. Incluso si la planificación del
mecanismo por parte de aquellos que preparan los datos, la industria cultural, es
impuesta a ésta por el peso de una sociedad irracional - no obstante toda
racionalización-, esta tendencia fatal se transforma, al pasar a través de las
agencias de la industria, en la intencionalidad astuta que caracteriza a esta
última. Para el consumidor no hay nada por clasificar que no haya sido ya
anticipado en el esquematismo de la producción. El prosaico arte para el pueblo
realiza ese idealismo fantástico que iba demasiado lejos para el crítico. Todo viene
de la conciencia: de la de Dios en Malebranche y en Berkeley; en el arte de masas,
de la dirección terrena de la producción. No sólo los tipos de bailables, divos, soap-
operas retornan cíclicamente como entidades invariables, sino que el contenido
particular del espectáculo, lo que aparentemente cambia es a su vez deducido de
aquéllos. Los detalles se tornan fungibles. (ADORNO; HORKHEIMER, 1944 p.40)

Segundo Adorno (1999), na Indústria Cultural, tudo se torna negócio. Enquanto


negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada
exploração de bens considerados culturais É aí que mora o problema, posto que a indústria
cultural na busca da maximização dos lucros preconiza a produção em massa. Nisto padroniza
o “produto cultural” e prostitui o criador. Fazendo isto mata a criatividade que deriva da
espontaneidade posto que dispensa o fluxo de experiências e movimentos na relação com o
meio.
Em 1978, o eminente antropólogo e etnólogo francês Claude Lévi-Strauss, em seu
clássico Myth and Meaning, dizia com grande propriedade:

Provavelmente, uma das muitas conclusões que se podem extrair da


investigação antropológica é que a mente humana, apesar das diferenças
culturais entre as diversas frações da Humanidade, é em toda a parte uma e
a mesma coisa, com as mesmas capacidades. Creio que esta afirmação é
aceite por todos. Não julgo que as culturas tenham tentado, sistemática ou
metodicamente, diferenciarem-se umas das outras. A verdade é que
durante centenas de milhares de anos a Humanidade não era numerosa na
Terra e os pequenos grupos existentes viviam isolados, de modo que nada
espanta que cada um tenha desenvolvido as suas próprias características,
tornando-se diferentes uns dos outros. Mas isso não era uma finalidade
sentida pelos grupos. Foi apenas o mero resultado das condições que
prevaleceram durante um período bastante dilatado. Chegados a este
ponto, não queria que pensassem que isto é um perigo ou que estas
diferenças deveriam ser eliminadas. Na realidade, as diferenças são
extremamente fecundas. O progresso só se verificou a partir das
diferenças. Atualmente, o desafio reside naquilo que poderíamos
chamar a supercomunicação – ou seja, a tendência para saber
exatamente, num determinado ponto do mundo, o que se passa nas
restantes partes do Globo. Para que uma cultura seja realmente ela
mesma e esteja apta a produzir algo de original, a cultura e os seus
membros têm de estar convencidos da sua originalidade e, em certa
medida, mesmo da sua superioridade sobre os outros; é somente em
condições de subcomunicação que ela pode produzir algo. Hoje em dia
estamos ameaçados pela perspectiva de sermos apenas
consumidores, indivíduos capazes de consumir seja o que for que
venha de qualquer ponto do mundo e de qualquer cultura, mas
desprovidos de qualquer grau de originalidade. (LÉVI-STRAUSS, 1978,
p.31/32) Grifos nossos.
7

Onde floresce a economia cultural popular

É na informalidade que nasce, cresce e morrem a maioria dos protagonistas da


economia cultural popular. No seio deste gigante invisível operam milhões de despossuídos,
visto não haver restrições de entrada; o aporte de recursos é mínimo e normalmente de origem
doméstica; a propriedade dos instrumentos de produção, quando existe, é individual ou
familiar; as operações ocorrem em pequena escala sendo os processos produtivos intensivos
em trabalho e tecnologia adaptada; a mão de obra é qualificada externamente ao sistema
escolar formal; a atuação ocorre em mercados competitivos e não regulados; possui
tendências fortemente anarquistas por rejeitar a autoridade governamental e seus ditames
burocrático-fiscalistas.
O segmento reúne atividades que empregam tecnologias simples ou rudimentares, que
alcançam baixa produtividade, entre as quais se inclui uma ampla gama de unidades
produtivas que vão desde a pequena oficina de trabalho manual até o ponto de venda
ambulante, agrupando, por um lado, trabalhadores que atuam numa modalidade de
contratação não legal e, por outro, aqueles que se auto-empregam em atividades de serviço de
pouca qualificação, não sendo nítida a divisão entre capital e trabalho e, portanto, a
configuração de classes, no seu interior, não obedece à configuração de classes predominantes
nos setores modernos.
O retrato da informalidade modifica-se continuamente no que se refere à
variedade de atividades que abrange.

“A informalidade é um campo criativo, que infiltra a sociedade econômica


formalmente organizada, pondo-a contra seu próprio tabu da eficiência. Famílias e
pessoas sobrevivem na informalidade, quando não conseguem sobreviver no
mercado formal de trabalho. Assim, a informalidade é continuamente infiltrada
pelas transformações técnicas da economia formal, que em grande parte realiza uma
burocratização do saber” (PEDRÃO, 1998, p.19).

Nos países do apelidado “Terceiro Mundo” a informalidade e a pobreza são


fenômenos vinculados, em grande parte devido ao caráter errático das rendas geradas pelo
setor e pela precariedade das condições de vida e trabalho dos seus agentes e associados aos:
“(...) segmentos mais pobres da população ocupada sem levar em conta as formas de
inserção do trabalhador na produção, (...) se por conta própria ou assalariado -, a
forma de organização do estabelecimento produtivo e sua inserção no mercado de
bens e ou produtos e o tecido heterogêneo e diversificado do setor informal”
(CACCIAMALI, 1991, p.125).
O segmento informal é dito subordinado no sentido de que seu espaço econômico é
delimitado pela dinâmica do capital, sendo continuamente redefinido. As atividades informais
atuam em espaços “ainda não ocupados, abandonados, criados e recriados pela produção
capitalista” (CACCIAMALI, 1983, p. 608), caracterizando-se, pois, por uma inserção
intersticial na estrutura econômica. Trata-se de ressaltar a aderência do segmento à dinâmica
do capital, sem resvalar para o mecanismo do atrelamento funcional.
O setor informal tende a guiar-se por uma lógica empresarial diversa da racionalidade
econômica formal, baseada no retorno sobre o capital investido, na taxa de lucro e na
acumulação (reinvestimento). Entende-se, então, que o setor informal possui, sim, uma lógica
própria de atuação no mercado. É a lógica da sobrevivência que consiste na busca de um
retorno financeiro de curtíssimo prazo priorizando a manutenção das necessidades básicas da
família.

Trocando em miúdos: a metamorfose econômica do carnaval.


8

A produção cultural baiana transita entre a informalidade e a formalidade. Nesta


passagem a economia cultural cede lugar à indústria cultural. Parte dos artistas se transforma
em empresários, outra parte em assalariados e muitos desaparecem.
Na análise deste fenômeno recorremos a Singer (1980), que observou serem o
progresso e a miséria produtos do mesmo processo, que consiste na penetração e na expansão
do capitalismo num meio em que predominavam outros modos de produção. Trata-se de um
processo de transformação estrutural, que evolui ao longo do tempo. O capital penetra em
determinados ramos de atividade em que possui maiores vantagens em relação ao modo
de produção preexistente, revolucionando os métodos de produção e introduzindo
outras relações de produção. Ou então, ele surge mediante a implantação de atividades
novas, que só ele é capaz de suscitar. Cria-se, então, um inter-relacionamento dinâmico
entre o segmento capitalista e os outros modos de produção que são postos à disposição
do capital, transformando-se, por exemplo, em reservatório de mão de obra.
Aí está exatamente o que vem ocorrendo com o Carnaval, a maior manifestação da
cultura popular baiana
Como demonstram as estatísticas oficiais, o carnaval baiano transformou-se num
mega-empreendimento capitalista, onde as chances de geração de micro e pequenos negócios
estão sendo gradativamente eliminadas pela maior capacidade de articulação e
competitividade de diversos grupos de interesse internos e externos à festa.
Os conhecidos efeitos de Hirschman (1958) “para trás” (backward linkage effects) e
“para frente” (forward linkages effects) que a festa produzia em relação a uma miríade de
atividades culturais que gravitava em seu entorno vão gradativamente se transferindo para
outras regiões (Sudeste) onde um parque manufatureiro com custos competitivos (escala)
possibilita um suprimento mais eficaz. E aí desaparece a fonte local de renda para artesãos
dos mais diversos segmentos e outros produtores culturais. Veja, por favor, a figura 1,
perto daqui.
Em 2003 surgiu na Bahia uma brilhante idéia de organizar os micro e pequenos
empresários do carnaval para que suprissem com mais eficácia e produtividade as demandas
dos grandes blocos carnavalescos e dos foliões em geral, tratava-se da fábrica do carnaval.
Nas palavras de Eliana Dumet que, com o finado Nilo Coelho de Araújo (grande técnico), foi
a autora do projeto: a fábrica funcionaria como uma oficina de criatividade na área de
instrumentos (principalmente percussão), fantasias, elementos decorativos etc. e ofereceria
cursos voltados para a formação e gestão de bandas com músicos que soubessem ler partitura.
Hoje em dia, qualquer tocador de pandeiro ou atabaque, de qualquer esquina, forma uma
banda para tocar de ouvido. As partituras, na Bahia, perderam a finalidade. A fábrica
funcionaria o ano inteiro e seria uma grande geradora de emprego e renda para a
população da cidade. A idéia era também a de criar núcleos nos bairros, nos anos
seguintes, e em cada um deles os trabalhadores cadastrados seriam do próprio bairro. Esta
idéia de Dumet foi copiada no Brasil por inúmeros estados, principalmente no Sudeste. Sabe-
se que as “fabricas” estão funcionando muito bem no Rio de Janeiro e São Paulo. A da Bahia,
criada com “pompa e circunstância” em 2006, fechou sem maiores explicações. Faltou
interesse e competência ao poder público para organizar grupos complexos, administrar
conflitos e conciliar interesses. A demanda que seria desta fábrica acabou direcionada para a
região Sudeste.
9

Nossa tese é a de que o Carnaval da Bahia é uma festa negra7 e, como tal, fortemente
influenciado pela cultura africana. Sendo assim não se pode deixar de falar na negritude e
pobreza da cidade.

Figura 1 – Cadeia produtiva do carnaval baiano.


Fonte: O autor.
Salvador é uma cidade negra e pobre, sendo pobre porque é negra. Nas raízes desta
pobreza estão os esforços mobilizados pela filosofia e evangelização da Igreja Católica, que ao
longo dos séculos sempre se postou a serviço das classes dominantes. Objetivando trazer os
negros para os “braços de Jesus” através da catequese e, de tabela, amansá-los para as senzalas
canavieiras, os zelosos padres jesuítas que compactuaram cinicamente com uma escravidão
cruel, não conseguiram suprimir sua cultura ancestral, conservada e transmitida de geração a
geração através da tradição oral maior parte do tempo encapuzada no sincretismo. Muito grave,
porém foi que, como sequela, os fez conformarem-se com o pouco, num determinismo fatalista
que os levou a aceitarem pacificamente a pobreza como sendo uma condição, um destino, “uma
sina”, convencidos nas recompensas da eternidade posto que Jesus mandara lhes dizer que era
mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus.
Atualmente quem perpetua estruturalmente o quadro é o circo montado pela indústria
cultural
A movimentação negro-mestiça está calcada no sentido genérico de “raízes africanas”.
Essa referência a uma origem ancestral procura afirmar uma memória coletiva localizada
numa África, muitas vezes, mítica e genérica. O que é apropriado do vasto repertório africano
são elementos como a religião, a gastronomia, a música-dança, a moda expressa na
indumentária e nos penteados, em variadas formas de usar os cabelos-sinais diacríticos que

7
A extrema direita irá discordar desta afirmativa. Não estou dizendo que os negros criaram o carnaval. Uma festa que
segundo Cardoso (2010) surgiu no Egito quatro mil anos antes de Cristo e foi trazida para o Brasil como o Entrudo
português. Quem acompanha – analiticamente – o carnaval baiano pode perceber claramente a influência negra e mística no
carnaval baiano com os Filhos de Ghandi, Ylê Ayê, Olodum, Timbalada e outros menos votados.
10

procuram estabelecer o contraste através da imagem de africanidade (GUERREIRO, 2000).


Cada um desses elementos apresenta um vasto potencial econômico.
Penso que a exploração colonialista do negro, com todas as suas trágicas
consequências, impediu que ele se inserisse no processo de acumulação capitalista européia
ocorrido na Bahia, fazendo com que, sincreticamente, assumisse uma lógica econômica
própria. A religião negra, praticada nos numerosos terreiros de Salvador foi, e continua sendo,
a esfera sociocultural em que é mais evidente a compreensão ingênua ou crítica, das
condições alienadas da sua vida e o ponto de partida de organização da sua consciência social.
Assim, a religião, em conjunto com a magia, o folclore e a música reteve as características
africanas, mais do que a vida econômica.
Segundo eu mesmo [Spinola (2003)] é neste contexto que o negro pratica a arte da
sobrevivência com alegria. E é aí que ele desponta inovador e empreendedor. Com acesso
deliberadamente limitado à instrução básica (até o século XIX a educação dos negros era, por
lei, proibida na sociedade escravagista) e muito menos à científica e tecnológica, o negro
baiano valorizou, da sua herança cultural, o corpo e os sons, somatizando a dor da
discriminação e da injustiça social a que foi condenado, num processo atávico de defesa,
subconsciente e coletivamente percebido, inovando, adaptando e empreendendo na dança, na
música e no carnaval que passaram a constituir novos modos de produção, resistentes à
racionalidade econômica e cultural das classes dominantes.
Mesmo com a mudança de postura da elite intelectual negra a partir da década de
1960, com os movimentos da consciência negra pipocando pelo mundo a fora, esta alternativa
genuína de subsistência começou a ser gradativamente subtraída pela ação de diversos grupos
de interesse internos e externos à festa carnavalesca. Isto é o que se constata ao observarem-se
os rumos que assume esta festa eminentemente popular. Percebe-se o desenvolvimento de
uma elite negra (mas de alma e preconceitos brancos (FANON, 1983)) cooptada pela
indústria do entretenimento que, utilizando um discurso racial de apologia aos negros, na
realidade apenas os manipula para satisfazer seus projetos de acumulação. E, neste plano, é
apoiada tacitamente pelo sistema político dominante (principalmente por aqueles interesses
vinculados à mídia, notadamente à televisiva) que, numa apropriação indevida do espaço
público, gradativamente expulsa da folia o pequeno negociante do carnaval, os pequenos
blocos, o vendedor ambulante etc.
Esta postura é reforçada no plano governamental pois, segundo Olivieri (2002) apud
Doria (2003) “com a criação das leis de incentivo fiscal à cultura (...) o Estado brasileiro
passou a atuar apenas como facilitador da ação cultural”. Entenda-se: o governo federal
se estruturou apenas para facilitar que portadores de direitos de saque sobre o Tesouro da
União, por força da renuncia fiscal, pudessem agir no mercado como compradores de bens e
serviços culturais “segundo os seus interesses publicitários, promovendo a subordinação
do fazer cultural ao marketing institucional das corporações. No final do processo, uma
prestação de contas formal encerra o controle público, e é só.” (DORIA, 2003)
Várias foram as consequências desse laissez-faire cultural. A primeira foi
substituir o artista, o criador de cultura, por empresários culturais na
apropriação dos recursos públicos. Não é mais quem escreve um livro, quem
canta, quem compõe, quem toca, quem pinta, o beneficiário imediato dos
recursos financeiros: é uma empresa ou uma associação, uma pessoa jurídica
constituída com o precípuo objetivo de gerenciar a produção cultural como um
negócio. O impacto dessa mudança foi profundo numa economia onde o mercado de
consumo, por ser limitado, elitizado, segmentado e especializado, se baseava
essencialmente no artesão. O artesanato cultural era o aspecto contraditório da
produção cultural brasileira que o atual governo resolveu “pelo alto”: ao mesmo
tempo em que expressava a desorganização e fragilidade do setor ele garantia
minimamente uma presença difusa da produção cultural no tecido social. Pequenos
grupos, produtores isolados, ou foram cooptados por estruturas empresariais
11

ou simplesmente desapareceram por absoluta falta de recursos a irrigar suas


atividades localizadas e descontínuas. O artesão foi substituído pelo produtor
cultural, essa figura nova, mista de intérprete do gosto geral da sociedade e dos
complexos cálculos da relação custo-benefício que estavam fora do alcance dos
artesãos culturais. (DORIA,2011) (Grifos nossos).

Assim o carnaval baiano deixou de ser uma festa popular transformando-se em show
business. E, neste plano, é conduzido pelo poder público que, por conta de um processo
organizacional dos palcos da cidade, vai tornando, gradativamente, mais difícil a exploração
da folia pelos pequenos artistas e produtores culturais.
Em síntese, a elite artística, hoje milionária e integrada ao show business nacional,
notadamente o televisivo, não somente monopoliza os espaços físicos da festa, como absorve
grande parte dos patrocínios e dos benefícios fiscais como os da Lei Rouanet. Conclusão a
qualidade artística musical baiana vem declinando sensivelmente, dada a falta de inspiração e
de criatividade que leva os compositores atuais a descambar para a “mesmice” e para uma
produção de péssimo gosto e qualidade. Justiça se lhes faça o estímulo e a pressão que sofrem
da indústria fonográfica e dos empresários do ramo que insistem na exploração de uma
temática vulgar, mas de grande aceitação pelo povão.
Agindo em conluio, consciente ou não, artistas já famosos – os mesmos donos da festa
que brilham todos os anos – empresários do ramo, a mídia e a indústria fonográfica,
restringem o acesso à criação de novos valores que não encontram espaço para divulgar a sua
produção.
Assim sendo elimina-se as chances de renovação artística e cultural. Na ânsia pelo
lucro rápido, a indústria cultural não quer perder tempo investindo na formação de novos
valores.
Alguns produtores artísticos acrescentam que o fácil acesso aos equipamentos de
gravação e reprodução tem feito com que muitos jovens – com talento ou não – dispensem a
orientação técnica de produtores experientes e se lancem no mercado de forma atabalhoada
acabando por se queimar precocemente ou a vegetar em um limbo do qual dificilmente sairão.

Candomblé informatizado & orixás8 cibernéticos

Sendo o carnaval, na sua essência, uma festa predominantemente negra, o Candomblé


tem tudo a ver, por constituir o elemento dominante na formação da cultura popular de
Salvador, uma cidade que contava 1 961 256 pretos e pardos no total de 2 675 656 habitantes
em 2010, (IBGE, 2011).
Segundo pesquisa deste autor nos registros da Federação dos Cultos Afro, constatava-
se a existência de 617 terreiros funcionando na cidade do Salvador no ano de 2005. Entre seus
responsáveis predominavam os descendentes da nação Ketu (Yorubá) que possuíam 414
terreiros, ou 67% do total registrado. Em segundo lugar apareciam os descendentes da nação
Angola (Bantos) com 166 terreiros ou 27% . Em menor número apareciam os oriundos da
nação Ijexá (também dos Yorubás) , com 20 terreiros, equivalentes a 3%; seguidos dos jegê
(daomeanos) com 14 terreiros, ou 2%; e apenas 2 da nação Congo (0,3%). Este número é
discutível porque muitos terreiros fecham e não dão baixa do registro e outros surgem e não
se registram. Tomando-se por base estes dados e considerando-se que a cidade possui cerca de

8
A rigor seria Orisá ou Orixá porque em Yorùbá não existe plural formado pela adição da letra "s" ou quaisquer outras
modificações das palavras, como no Idioma Português. O plural é formado pela adição dos pronomes. Como a palavra foi
aportuguesada seguiremos as regras gramaticais do idioma português.
12

20 mil logradouros registrados pela Prefeitura, observa-se que os terreiros ocupam um espaço
equivalente a apenas 2,7% dos logradouros da cidade.
O candomblé, embora com adeptos em todos os extratos sociais, tem a grande
maioria de seus membros entre as camadas pobres da população sobre a qual exerce grande
influência, e um papel dinâmico de estímulo a certas atividades econômicas, particularmente
o comércio e o artesanato. Os ricos patrocinam, compram a proteção dos Orixás. São os Obás.
No seu culto as divindades, se revestem de rica e complexa simbologia que, na prática, se
expressa em vestimentas, adornos os mais diversos e objetos rituais, próprios a cada
divindade. Existe ainda o emprego de sementes, ervas, folhas, plantas em diversas cerimônias
e rituais. Todos esses elementos têm a peculiaridade de obedecer a certos requisitos rituais, o
que implica na observância de procedimentos consagrados pela liturgia na sua produção,
levando a que sua oferta não seja afetada por qualquer tipo de modernização9. Assim sendo, o
candomblé é responsável direto pelo emprego de artesãos que produzem os adornos e objetos
rituais; costureiras encarregadas das vestimentas e produtores e comerciantes dos diversos
gêneros e materiais antes citados. Tendo conquistado o reconhecimento e o respeito da
sociedade em geral, o candomblé amplia o seu prestígio, verificando-se, nos últimos anos, a
disseminação do uso de muitos de seus adornos (pulseiras, colares, etc.) por pessoas e turistas
sem qualquer vínculo com a prática ou compromisso com a fé religiosa (SPINOLA, 2006)
Pode-se afirmar que a existência e a força do candomblé em Salvador constituem um
fenômeno peculiar de nossa sociedade, com reflexos evidentes e poderosos na vida da sua
economia e cultura popular, particularmente sobre atividades desenvolvidas em bases
informais.
Esta influência ocorre e é transmitida de forma sutil, dissimulada e misteriosa. Existe
um silêncio, um pudor cuidadoso e uma reserva atávica que remonta aos tempos da repressão,
do feitor e da polícia. Este é um mundo onde não existe o sim ou o não absolutos. Predomina
o talvez. E às vezes um sim pode significar um não e o não um sim. Definitivamente este é
um mundo diferente do ocidental. Nele um alemão, ou um paulista, pirariam.
A comercialização dos produtos e serviços referentes a esta religião é geralmente
clandestina e as transações são feitas por numerosos atravessadores. São vários os
fornecedores para alguns produtos e, para outros, a situação é de monopólio ou oligopólio
comercial por se tratar de itens específicos.
Porém os cultos afro estão ameaçados de extinção ou degradação, sendo absorvidos
pela indústria cultural numa escala crescente. A divulgação da sua prática e dos seus produtos
vem alastrando-se na rede mundial de computadores através de uma imensa quantidade de
sites que comercializam objetos e serviços dos mais variados pela Internet, quase todos sem
demonstrar preocupação com a veracidade das informações que propagam, misturando o
candomblé com umbanda, macumba e espiritismo e outros divulgando propositadamente
informações falsas para adquirirem vantagens comerciais. Tudo isto vem abastardando o culto
e reduzindo a sua capacidade cultural de influência.10
Percebe-se que a divulgação do candomblé pela internet coincide com a sua destruição
pela modernidade. A expansão urbana tem levado à aquisição das áreas dos terreiros pelas
grandes imobiliárias. Os Orixás precisam de espaço, o Ylê Axé Apó Ofanjá, por exemplo, é
dono de uma área que mede cerca de 39.000 m2. Porém a redução de áreas verdes da cidade

9
Se você ouvir a explicação de um Babalorixá ou Yalorixá autênticos de como se faz uma vestimenta, prepara uma comida
ou um banho de “descarrego”, um patuá ou de como se consagra um atabaque, nunca mais abriria uma página sobre o
assunto na Internet.
10
Caso o leitor queira conhecer um candomblé genuíno, puro, visite o Ilê Axé Opó Afonjá, tombado pelo IPHAN, e um dos
templos mais importantes das religiões de matriz africana no mundo. Governado por yalorixás, este Candomblé rompeu com
o sincretismo, eliminando a relação dos seus santos com os santos católicos. Estiveram ou estão vinculados a ele
personalidades como Jorge Amado, Vivaldo da Costa Lima, Antonio Olinto, Pierre Verger e Gilberto Gil, entre outros.
13

vai reduzindo o espaço para a prática, o que leva a situações esdrúxulas como as de
candomblés funcionando nos espaços restritos de apartamentos.
E os Orixás estão gradativamente perdendo a força original.

Balagadans, brinco de ouro, colar no pescoço e patuás

O artesanato de Salvador também sofre uma forte influência dos cultos afro.
Verdadeiras obras de arte popular são produzidas em cerâmica, madeira e metal. A Feira de
São Joaquim, o Pelourinho e o Mercado Modelo são os maiores centros de comercialização
de artesanato religioso da capital baiana.
Os patuá11, que revelam a fé do povo negro baiano, são comercializados através das
miniaturas de Orixás cerâmicas, quadros, esculturas, pulseiras e colares de contas, e metal,
búzios, contreguns12 etc. Entre os produtos artesanais que merecem destaque está a fitinha do
Senhor do Bonfim, que é utilizada sincreticamente também por membros do candomblé.
Os materiais utilizados nos cultos afro-brasileiros vêm sendo modificados pela
introdução de técnicas e materiais novos, como tecidos sintéticos, metalóides, linhas de nylon,
contas plásticas e de resinas, galvanização de metais, que são amplamente usados por
artesãos, possibilitando a produção de objetos em maior escala, o que barateia o produto final.
As fitinhas do Senhor do Bonfim, por exemplo, deixaram de ser fabricadas em tecido
de algodão substituído pelo nylon. Seu uso obedece a um rito que exige a benção da fita. Ao
amarrá-la no pulso o crente deve dar três nós. Para cada nó faz um pedido. Quando a fita se
arrebenta é porque os pedidos são atendidos. Segundo alguns crentes, confeccionadas em
nylon, as fitas se tornaram mais resistentes e perderam o seu efeito, pois, neste novo material
custa muito se romper no pulso do fiel. É o que dá misturar tecnologia com religião. As fitas
são fabricadas em São Paulo...
Em geral, lucros elevados são obtidos no processo de comercialização dos objetos
confeccionados pelos artesãos religiosos. Os padrões têm sido apropriados à revelia de
seus criadores. Na maioria dos casos o controle desse processo escapa aos artistas, que
muitas vezes, costumam receber quantias quase simbólicas por seu trabalho de criação.
Os artesãos baianos não recebem qualquer apoio governamental. Estão sendo expulsos
do mercado pelos concorrentes oriundos de outros estados e da China, que inunda o mercado
com réplicas, vendidas a preços bastante inferiores.

Rum, Lé e Rumpi13, do sagrado ao profano

No embalo da sonoridade, Salvador e o Recôncavo eram conhecidos pela produção de


instrumentos musicais. Dizia-se até que as empresas de aviação que serviam à cidade
deveriam mudar o design e o tamanho dos porta bagagens das cabinas dos seus aviões para
melhor acomodarem os berimbaus que os turistas em retorno conduziam.
Tudo isto acabou, as fábricas localizadas em São Paulo ocuparam o mercado e vendem
berimbaus pela Internet em condições vantajosas para os consumidores.
Os fabricantes locais de berimbaus e de outros instrumentos de percussão estão
dispersos pelos subúrbios da cidade, trabalhando artesanalmente em fabriquetas de “fundo de

11
Amuleto. Bentinho.
12
Um dos objetos mais populares do candomblé é o contregun, um bracelete de palha que se coloca em torno do pulso ou
braço, que serve para afastar, após uma cerimônia fúnebre do candomblé, a alma do morto, que pode possuir aqueles que
assistem à cerimônia. Então se usa esse objeto para proteger as pessoas que ali estão, mas hoje em dia, caiu no gosto popular
e foi disseminado o seu uso pelos baianos e turistas que muitas vezes nada têm a ver com a religião e não sabem o que estão
fazendo.
13
São os três atabaques sagrados que comandam os cultos do Candomblé.
14

quintal”, na maioria das vezes em condições as mais rudimentares possíveis. Os equipamentos


utilizados são pouco sofisticados (usuais de carpintaria), muitos fabricados ou adaptados pelos
próprios artesões e as instalações físicas também são extremamente precárias e insalubres.
O trabalho é realizado em família, numa tradição que passa de pai para filho. Utilizam
como matéria-prima restos de madeira obtida na construção civil (num autêntico mercado de
sucata). A pele dos instrumentos é originária do interior do Estado, sendo muito utilizado o
couro de bode e de cobra. A cidade de Araci é o ponto de partida de vários fornecedores,
sendo que a intermediação é muito grande havendo o caso de existirem três intermediários
entre o produtor e o fabricante. O nível de instrução beira o analfabetismo e a propensão
associativa é inexistente (no que pouco difere das camadas mais esclarecidas da população).
Vêem com profunda desconfiança e ceticismo a possibilidade de receberem algum tipo de
ajuda.A Fazenda Garcia, a Baixa do Fiscal, o Pelourinho e Periperi são alguns dos locais onde
ficam estes artesanatos. Alguns comerciantes do Mercado Modelo também possuem fabricos
localizados em outros bairros da cidade.
Setenta por cento dos fabricantes de instrumentos que entrevistamos, trabalham na
informalidade, pois não possuem qualquer tipo de registro junto aos órgãos públicos
competentes. Segundo eles, o principal motivo para que não ocorra uma formalização é o
receio de pagar impostos, de sofrer qualquer tipo de fiscalização e serem obrigados a pagar
multas ou de terem seus estabelecimentos fechados pelo governo. Ademais, não vêem
qualquer vantagem em seres formais.
Os pequenos produtores alegam que a margem de lucro do setor é muito baixa,
tornando-se insustentável a legalização de alguns deles. Para se ter idéia, a maioria possui
uma receita mensal de até R$ 5.000,00 e outra parcela, também significativa, não ultrapassa a
receita mensal de até R$ 3.000,00. Desta forma, quando os custos são pagos, o que se obtêm
de resultado é insignificante. Estes valores de receita poderiam ser muito maiores se não
existisse uma quantidade exorbitante de atravessadores no sistema, que se apropriam da maior
parte do lucro gerado na comercialização final dos instrumentos. Ver tabela 1. O mercado
funciona na forma de um oligopsônio. Os grandes compradores (comerciantes) muitas vezes
recebem os produtos em consignação (só paga ao produtor depois que vende, além de pagar
com atraso) e costumam fixar os preços que pagarão. É pegar ou largar. Os artesãos não
encontram alternativa. O Instituto Mauá que é a instituição responsável pela política de
fomento e preservação do artesanato da Bahia, não dá conta do recado. Carente de recursos
humanos qualificados e de recursos financeiros o órgão transforma-se num expectador
privilegiado do processo.
Cerca de sessenta por cento dos produtores não possuem ponto de vendas e, por isto,
vendem para lojas localizadas em pontos de grande passagem turística, como o Pelourinho, o
Mercado Modelo, o shopping Barra e o aeroporto. Segundo dados coletados por Spinola
(2006), a maior parte das vendas ocorridas no Mercado Modelo, são para turistas. Os outros
mercados também possuem as mesmas características. Assim sendo, os instrumentos musicais
aqui fabricados possuem como destino final os outros estados da federação sendo também
levados por visitantes estrangeiros para diversos países14. Estes bens culturais possuem uma
demanda sazonal que atinge seu pico no verão, quando a Bahia recebe o maior número de
visitantes.
As grandes lojas que atuam no mercado local de instrumentos musicais são supridas
por instrumentos fabricados fora do estado procedentes em sua maior parte da região Sudeste
e do exterior. Neste caso, predominam verdadeiras grifes estabelecidas por marcas que

14
Constatou-se na pesquisa de campo a existência de uma pequena fábrica na Baixa do Fiscal que tinha franceses como
clientes. Periodicamente faziam encomendas e levavam quantidades razoáveis de produtos para a França (Marselha).
15

conferem status aos seus possuidores. Grandes músicos brasileiros poderiam também usufruir
a qualidade sonora dos instrumentos baianos, auxiliando o crescimento e a profissionalização
do setor. Porém, isto não ocorre, pois as grandes fábricas produtoras, muitas vezes utilizando-
se do know how baiano, acabam produzindo instrumentos em série, com qualidade sonora um
pouco inferior, porém padronizados, o que acaba influenciando a decisão de compra dos
músicos. Ademais, as grandes fábricas de percussão possuem ampla vantagem de venda sobre
os pequenos produtores locais devido a sua associação com as grandes lojas de instrumentos
do Brasil.

Tabela 1 – Relação preço/custo de alguns instrumentos musicais em 2006.

Denominação Preços Margem (%)


Mercado Modelo (A) Pelourinho (B) Custo Fábrica (C) A/C B/C
Berimbau Gunga 25 23 15 166,67% 153,33%
Berimbau Viola 25 23 15 166,67% 153,33%
Berimbau Médio 25 23 15 166,67% 153,33%
Bongô 8 9 5 160,00% 180,00%
Atabaque (lé) 75 62 40 187,50% 155,00%
Agogô 12 10 6 200,00% 166,67%
Ganzá 5 5 2 250,00% 250,00%
Cabuletê 5 5 3 166,67% 166,67%
Pau-de-chuva 10 8 5 200,00% 160,00%
Pandeiro 9 6 5 180,00% 120,00%
Xequerê 35 29 15 233,33% 193,33%
Bacurei 25 20 13 192,31% 153,85%
Triângulo 25 20 10 250,00% 200,00%
Afoxé 15 12 8 187,50% 150,00%
Jebê 0 400 50 0,00% 800,00%
Kalimba 10 8 4 250,00% 200,00%
Kechada 25 20 12 208,33% 166,67%
Xequerê 35 29 15 233,33% 193,33%
Pífano 15 10 3 500,00% 333,33%
Apito 12 8 3 400,00% 266,67%
Maraca 15 10 7 214,29% 142,86%
Berrante 70 70 25 280,00% 280,00%
Arpa 50 50 30 166,67% 166,67%
Baculete 7 5 4 175,00% 125,00%
Timbal 35 30 20 175,00% 150,00%
Tchimba 35 30 15 233,33% 200,00%
Mini-Tchimba 20 15 10 200,00% 150,00%
Kaxixi 12 10 5 240,00% 200,00%
Fonte: Pesquisa do autor

Segundo os principais estabelecimentos comerciais de Salvador, especializados em


instrumentos musicais, existem poucas possibilidades de venderem produtos locais pela
absoluta falta de legalização dos fabricantes. Para mim isto é desculpa para esconder o
preconceito.
16

Apenas uma loja adquire no mercado produtor local os aguidá15, numa quantidade
média de cem unidades mensais. Admitem, contudo, que se superado este problema de
legalização e investindo-se em tecnologia será vantajosa a comercialização, notadamente dos
instrumentos de percussão
Assiste-se, assim, ao gradativo desaparecimento dos grandes artesãos locais que desistem de
dar continuidade ao ofício, preparando sucessores, pois inclusive a maioria dos seus filhos e
netos não manifesta interesse pela atividade sendo atraídos por outras mais interessantes e
promovidas pela mídia.
Mas, nem tudo está perdido, como diz o povão cuja esperança não morre, “quando
Deus fecha uma porta, abre uma janela”. Registra-se que alguns blocos como o Olodum, o
Araketu, a Timbalada, o Ilê Aiyê e o Malê de Balê , além da Banda Didá, “retrabalham”
alguns instrumentos de percussão tradicionais, dotando-os de adereços que os adequam às
suas peculiaridades.
Observe-se que os instrumentos de percussão podem ser obtidos com os mais diversos
materiais, desde que estes sejam tocados com as mãos ou baquetas. Todos estes blocos
possuem escolas de percussão realizando um trabalho de cunho social, retirando crianças das
ruas, e ao mesmo tempo utilitário, por preparar novas gerações para as suas bandas A
Pracatum, de Carlinhos Brown, é uma escola de percussão. Ensina as crianças a tocar. Brown
é um músico criativo que inova constantemente, de forma heterodoxa, (adoro este termo pela
forma de ser que expressa) fabricando os mais inusitados instrumentos de percussão. Isto não
quer dizer que estes possam ter cunho comercial em nível de escala. Admite-se, contudo, a
hipótese de que, deste processo criativo, possam aparecer alguns novos instrumentos que
venham a ser produzidos em massa e se constituam num sucesso de mercado, como tantas
coisas que surgem na Bahia. Afinal, onde há vida sempre sobra esperança.

Fim de festa

Todos sabem que as atividades turísticas estabelecem uma forte relação entre a cultura
e o mercado. E, na cidade do Salvador, dona de uma marcante personalidade cultural isto não
é diferente. Por isso mesmo o turismo cultural é uma prioridade na velha capital baiana que já
mudou do patamar de turismo de demanda para o de turismo de oferta. Isto, para quem não
entende destas terminologias, quer dizer que passamos do estágio onde os ditos turistas
vinham até nós, nos “descobriam” e ficavam embasbacados, para outra onde somos nós que
corremos atrás deles.
Éramos cantados em prosa e verso por gigantes como Dorival Caymmi, Ary Barroso,
Jorge Amado. A nossa negritude era pintada por Presciliano da Silva, Mário Cravo, Hansen
Bahia, Carybé, Sante Scaldaferri e fotografada por antropólogos como Pierre Verger. E depois,
na obra de poetas mais novos como Capinam, Caetano Veloso e Gilberto Gil e no cinema de
Glauber Rocha. Mas o tempo passa, muitos gigantes morreram e mesmo os poetas mais novos
são hoje sessentões cuja inspiração e criatividade já “brocharam”. O pior é que, depois da
“gloriosa” de 1964, não surgiu uma nova geração de poetas compositores do porte dos
anteriores. Provavelmente devido à brutal queda de qualidade da educação básica e secundária.
No meu tempo os colégios da Bahia, Severino Vieira e o Instituto Normal Isaías Alves, todos
públicos, eram uma referência de excelência. Hoje não são sequer sombras do que foram.
Associe-se a censura da ditadura que castrou toda uma geração; os mecanismos da eletrônica
sonora que tornou muito fácil a produção de besteirol e a urbanização intensiva que desarticulou
todo um modo de vida que servia de base para a construção da velha cultura.

15
Baquetas para os não iniciados. São pequenas varas de madeira com que se percutem os tambores. São sagradas. Antes do
uso devem “dormir com os santos”.
17

Surgiram novos polos turísticos, todo Nordeste se transformou, Recife passou a oferecer
um carnaval bem melhor que o baiano. Apesar da repetição obsessiva de Vassourinha, o frevo
rei, o grau de participação popular nele é bem maior. Fortaleza e Natal são as mecas do turismo
sol e praia. Em toda a região muitas praias, muita arte popular e beleza natural. E também muitas
“sodomas “e “gomorras” para todos os gostos. Assim, passamos para o turismo de oferta.
Temos de correr atrás, pegar o “turista a laço”. Sendo esta argumentação verdadeira é possível
imaginar que, do ponto de vista da atração turística a destruição da herança cultural implica
numa substancial perda de “clientes” e da renda que eles aqui deixam, alimentando a nossa
economia cultural.
Do que falei, o carnaval, no estágio em que se encontra, é um produto de uma política
neoliberal, que vem sendo desenvolvida pela Prefeitura de Salvador desde o governo do PFL
ao do PT. A ideologia ficou no discurso!
A Prefeitura vem preparando os palcos da cidade para que neles prospere uma
indústria cultural que fatura milhões de reais e surja uma nova classe, a do artista-empresário
que acumula fortunas.
Ali se observa uma acelerada concentração da renda em poder de um oligopólio , que
elimina as chances competitivas dos pequenos atores e reduz o espaço de chão da festa para
os “foliões pipocas” que constituem a parcela majoritária do público brincante.
Isso, além de elitizar a festa, está matando a galinha dos ovos de ouro.
Ao romper com suas raízes culturais, ao sufocar a criatividade natural que brota dos
pequenos, ao deixar de ser original, ao ser bitolada pelos parâmetros tecnológicos da mídia, a
festa vai ficando chata, repetitiva e começa a cansar. E aí o público foge. Se não mudarem
rápido vai piorar. Os soteropolitanos fogem da cidade nesta época, cansados do repeteco. A
cidade fica em mãos dos turistas. Não se renovando, e haja criatividade, vai acabar. Quem
viver verá!
Quanto aos instrumentos musicais acredito que a tendência será a de expandir a sua
venda pela Internet. As fábricas da região Sudeste, notadamente São Paulo e Paraná suprirão a
demanda com imbatível qualidade e preço. Viva o capitalismo tupiniquim!
Os nossos artesãos já são poucos, não deixam herdeiros, com o tempo sumirão. Talvez
fique um ou outro excelente para servir de referência.
As festas populares, berços da cultura popular, como falei no início, estão acabando ou
se prostituindo numa baderna de cachaça, sexo e pó. Veja-se a Conceição da Praia que abre o
ciclo de festas baiano. Há muito que Exu assumiu o lugar de Oxum que se mandou e não dá a
ousadia de aparecer por lá. E o restante vai mais ou menos ao mesmo ritmo. Perguntem aos
mais velhos…
Por tudo isto meus nobres (ah que saudade do cordel!) vos conto este conto sem
aumentar um ponto. Manda o Rei meu senhor que me contem outro. Estou concluindo este
relato, questionando se não perdi o meu tempo. Quem teve paciência para ler este texto até o
fim deve ser um poço de tolerância ou um idealista romântico como eu. Todos sem poderes
para interferir ou mudar a situação que descrevi. E aqueles que poderiam fazer alguma coisa,
nunca o lerão. Ou porque são iletrados ou porque os “interesses” são outros…
Assim, estamos naquela situação em relação à cultura popular: se ela correr o bicho
pega, se ela ficar o bicho come.
Não posso fazer mais nada senão sorrir. Sorrir pra não chorar!
18

Referências

CACCIAMALI, Maria Cristina. A economia informal e submersa: conceitos e distribuição de


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Study-of-Man-and-Civilization
1

Tempero baiano no desenvolvimento urbano: uma análise dos


restaurantes da cidade do Salvador

Paulo Patrício Costa 1


Noelio Dantaslé Spinola2
Abstract
This paper presents the analysis of an important segment of the service sector that
usually does not attend the pages of academic studies. This is the trade / food
services. That is, the restaurants. By highlighting the relevance of the tertiary sector
to national economy, an approach brings about the birth of the Napoleonic Paris
restaurateur of the eighteenth century, and makes a qualitative analysis of
statistical data from respondents on the basis of information from RAIS / CAGED /
SEI and on IBGE the participation of the business segment of restaurants in the
national market, regional and state levels. To delineate the economic situation of the
business sector of restaurants in Salvador, builds a comparative ranking among the
most prominent gastronomic squares, making the lifting of the volume of active
establishments and promoting cross-checks of population, GDP, per capita income,
employment, profitability education and training sector workers. Among the 10
leading gastronomic capitals with the highest expression, just making a direct
comparison with Porto Alegre, which has the best indicators of employability in the
sector nationally.
Key words: Services, Food Shops, Restaurants, Salvador; Urban Development
Resumo
Este texto apresenta a análise de um segmento importante do setor de serviços que
não frequenta usualmente as páginas dos estudos acadêmicos. Trata-se do
comércio/serviços de alimentação. Ou seja: os restaurantes. Ao destacar a
relevância do setor terciário para economia nacional, traz uma abordagem sobre o
nascimento do restaurateur da napoleônica Paris do século XVIII, e faz uma análise
qualitativa a partir de dados estatísticos pesquisados em base de informações da
RAIS/CAGED/SEI e IBGE sobre a participação do segmento empresarial de
restaurantes no mercado nacional, regional e estadual. Para delinear a situação
econômica do setor empresarial de restaurantes de Salvador, constrói um ranking
comparativo entre as praças de maior destaque gastronômico, efetuando o
levantamento do volume de estabelecimentos ativos e promovendo cruzamentos de
dados de população, PIB, renda per capita, empregabilidade, rentabilidade e
formação educacional dos trabalhadores do setor. Entre as 10 principais capitais
com maior expressão gastronômica, acaba fazendo uma comparação direta com
Porto Alegre, responsável pelos melhores indicadores de empregabilidade no setor
nacional.
Palavras-chave: Serviços; Comércio de Alimentos; Restaurantes; Salvador;
Desenvolvimento Urbano. Economia Cultural

1 Business Administrator. Master in Urban and Regional Development University Salvador


(Unifacs).
2Economist. Doctor of Geography - Regional Analysis, University of Barcelona (ES). Professor of

the Graduate Program in Urban and Regional Development (PPDRU) University of Salvador - UNIFACS
2

JEL Classification: L80; L81; L66; R11.

Introdução
Ontologicamente os serviços existem como atividade desde os primórdios da
humanidade. Afinal, se educar é um serviço, foram prestadores de serviços vultos ilustres
como Buda e Confúcio, Zoroastro e Jesus Cristo e, entre outros, todos os filósofos gregos a
partir de Sócrates a Aristóteles ou médicos como o prolixo egípcio Imhotep (que também
era arquiteto e engenheiro) e o grego Hipócrates o mais famoso do ramo, conhecido como
o pai da arte de curar. E porque não citar a prostituição uma das mais antigas profissões
do mundo, aqui no Brasil incluída na Classificação Brasileira de Ocupação (CBO) como a
profissão 5198-05, profissional do sexo?
Somente para os economistas nas suas discussões sobre a Teoria do Valor ou as
Contas Nacionais é que os serviços primitivamente não foram reconhecidos, como foi o
caso dos Fisiocratas e parcela expressiva dos Clássicos. 3
A visão dos clássicos a respeito dos serviços e do seu papel na dinâmica
econômica está relacionada fundamentalmente às diferentes concepções a
respeito do processo de geração de valor na economia. Especificamente, é
um debate entre, de um lado, a teoria do valor-trabalho, aqui representada
por Marx e Smith, cuja ótica de análise está voltada para os aspectos de
oferta, em que a produção industrial é o “hard core” do sistema econômico —,
sobrepondo-se a toda e qualquer atividade intangível como é o caso das
atividades de serviço —; e, de outro lado, a teoria do valor-utilidade, aqui
representada por Say, Mill e Walras, baseada numa ótica de análise voltada
essencialmente para os aspectos de demanda, em que as diferenças técnico-
produtivas entre as diversas atividades econômicas —, sejam elas de
produção de bens ou de serviços —, não são critérios de definição do caráter
produtivo e da relevância econômica das atividades no sistema econômico.
(Meirelles, 2006, p. 120)

O setor serviços, integrante do terciário da economia, uma classificação oriunda dos


estudos da econometria, ainda na primeira metade do século XX, é hoje, em todo o mundo,
a atividade econômica mais significativa em termos de participação na formação dos
produtos internos brutos.
Segundo Kuznets (1983, apud Meirelles, 2008, p. 23 - 35), a evolução histórica da
participação do setor de serviços no produto nacional e na mão-de-obra empregada ao
longo dos séculos XIX e XX pode ser dividida em dois períodos distintos: entre 1800 e 1950,
período em que o crescimento econômico é liderado pela indústria; e o período pós 1960, a
partir do qual os serviços passam a ganhar forte expressão econômica.

3
Esta discussão foge ao escopo deste trabalho. Uma visão mais ampla pode ser obtida em Meirelles,
2006.
3

Meirelles (2008, p. 25) afirma que:


[...] a partir da segunda metade do século, o setor de serviços iniciou uma
trajetória de crescente participação no produto total das economias
desenvolvidas, atingindo no final do período, uma participação média de
65% do produto total. Em contrapartida, a indústria ganhou relativa
estabilidade, situando-se num patamar entre 20% e 30% de participação. A
agricultura, por sua vez, manteve a tendência de queda, inaugurada no
século anterior, porém, verificou-se uma estabilização a partir dos anos 80,
com uma participação média em torno de 3% do produto total.

No Brasil, segundo divulgação do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas –


IPEA (2010) os Serviços já empregam 13 milhões de pessoas. Ou seja: um em cada dois
empregos criados no Brasil em 2009 foi no setor de serviços. E é nesse segmento da economia
que se encontra o campeão das vagas na última década, a categoria dos empregados na área
de turismo. Ao todo, os serviços empregam quase tanto trabalhadores quanto o comércio e a
indústria somados.
Com o advento da sociedade pós-industrial assiste-se em todo o mundo, inclusive em
países emergentes como o Brasil, o desenvolvimento intenso das ciências e das tecnologias
em geral. A globalização, impulsionada pelo “salto” no ritmo das mudanças nos sistemas de
transportes e nas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) conduziram a notáveis
avanços nos sistemas organizacionais, respondendo pelo esgotamento das estratégias
tradicionais de produtividade e pela busca por uma diferenciação competitiva. Tudo isto
resultou no incremento dos serviços e na consequente passagem do estágio da produção em
massa para a mass customization e a especialização flexível.
Os serviços passam a ser na sociedade pós-industrial a estrela da economia onde se
destaca a importância do capital humano e do capital social – ou relacional derivado da
intensa busca por uma nova concepção e visão das empresas, objetivando a criação e extração
de valor. São estes capitais que vão potencializar a força dos recursos não materiais
(intangíveis).
A conceituação de serviços tem dado margem a muita polêmica tendo em vista a
circunstância destes englobarem uma grande variedade de atividades.
Meirelles (2008, p. 32) apresenta uma definição bastante resumida e extremamente
objetiva desta atividade. Para ela, serviço é única e exclusivamente trabalho, mais
especificamente trabalho em processo. A prestação de serviços revela sua natureza
contratual na própria etimologia da palavra. Etimologicamente, prestação corresponde à ação
de satisfazer, do latim praestatione. Do ponto de vista jurídico, prestação é o ato pelo qual
alguém cumpre a obrigação que lhe cabe, na forma estipulada no contrato.
4

Complementarmente se pode considerar que os serviços constituem atividades de


produção de bens intangíveis, frequentemente de consumo imediato e não estocáveis.
Téboul (2002, p. 7) busca uma definição simples citando a revista inglesa The
Economist que, numa nota de humour tipicamente britânico, afirma representar um serviço
“toda coisa vendida no comércio e que não seja possível deixar cair em cima do pé!”
Existem diversas classificações para a atividade de serviços, variando das acadêmicas
até aquelas adotadas pelos organismos oficiais como o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) e a Secretaria da Receita Federal (SRF). A despeito de se trabalhar neste
texto com a classificação oficial, visto que ela é quem vale para as instituições de fomento,
far-se-á referência a algumas abordagens acadêmicas como a de Meirelles (2008, p. 33) que
baseada na sua definição de serviços, anteriormente exposta, classifica os diferentes serviços
de acordo como o processo de trabalho desenvolvido. Esta classificação é demonstrada
sinteticamente no Quadro 1.
Por seu turno, Corrêa e Caon (2002, p .75) apresentam uma tipologia dos serviços
“com base nos contínuos de volume e variedade/customização do serviço”. Estes autores
introduzem o conceito de “pacote de valor” em substituição à usual denominação de
produtos. Isso porque, segundo eles, na venda de muitos produtos estão embutidos serviços
que compõem o seu valor total.
Outra classificação importante dos serviços refere-se àqueles prestados às empresas e
que são intensivos em conhecimento. São conhecidos nos meios de consultoria como KIBS
(da sua denominação original Knowledge-intensive Business Services). O ponto de partida para
o debate com este termo KIBS está no texto de Miles et al (1995), intitulado Knowledge-
intensive Business Services: Users, Carriers and Sources if Innovation. Nesse trabalho, seus autores
discutem a importância do setor de serviços para a economia a partir da centralidade que um
grupo de atividades definido como KIBS passa a ter nos últimos anos. Os autores tratam a
ideia de conhecimento e tecnologia a partir dos KIBS, bem como avançam no debate sobre
KIBS e inovação (tanto a inovação deles mesmos como seu peso em outros setores) nas
recomendações de políticas públicas para o desenvolvimento destas atividades. Os KIBS são
definidos por eles como serviços às empresas que fornecem funções de informação e
conhecimento. (MILES et al., 1995: 24). Para os autores, são serviços que dependem
fortemente de conhecimento profissional (cientistas, engenheiros, técnicos e experts de todos
os tipos), e alguns deles estão envolvidos em mudanças tecnológicas, especialmente
relacionadas a tecnologias da informação.
Quadro 1 – Classificação dos serviços segundo os processos econômicos.
5

PROCESSO TIPO DE SERVIÇO EXEMPLOS

Trabalho puro Serviço puro Serviços domésticos; Serviços de entretenimento


Consiste em realizar um trabalho e lazer; Serviços de consultoria; Serviços de
único e exclusivo. O resultado do assistência técnica; Serviços de pesquisa e
processo de trabalho é o próprio desenvolvimento de produtos; Serviços de
trabalho, não há necessariamente saúde e educação; Serviços governamentais de
um produto resultante. defesa e segurança, etc.
Transformação Serviço de transformação Serviços de alimentação; Serviços decorrentes
Consiste em realizar o trabalho da terceirização de etapas do processo de
necessário à transformação de transformação.
insumos e matérias-primas em
novos produtos.
Troca e Serviço de troca e circulação Serviços bancários; Serviços comerciais;
Consiste em realizar o trabalho de Serviços de armazenamento e transporte;
circulação
troca e circulação, seja de pessoas, Serviços de comunicação; Serviços de
bens (tangíveis ou intangíveis), distribuição de energia elétrica, água, etc.
moeda, etc.
Fonte: Meirelles (2008, p. 33)
O IBGE a partir de 2007 adotou a Classificação Nacional de Atividades Econômicas -
CNAE, o que levou a alterações em suas pesquisas econômicas e ensejou o início de uma
nova série continuada de dados. Os sete segmentos apresentados a seguir, nas tabelas do
IBGE/CNAE se desdobram em 44 divisões, 123 grupos, 230 classes e 306 subclasses que
representam o total das atividades do setor serviços consideradas como atividades
econômicas. A Pesquisa Anual de Serviços – PAS do IBGE (2009) investiga as atividades
descritas em divisões e classes da CNAE 2.04 relacionadas ao segmento de serviços.
1. Serviços prestados às famílias - serviços de alojamento; serviços de alimentação;
atividades culturais, recreativas e esportivas; serviços pessoais; e atividades de
ensino continuado.
2. Serviços de informação e comunicação telecomunicações; tecnologia da
informação; serviços audiovisuais; edição e edição integrada à impressão; e
agências de notícias e outros serviços de informação.
3. Serviços profissionais, administrativos e complementares - serviços técnicos
profissionais; aluguéis não imobiliários e gestão de ativos intangíveis não
financeiros; seleção, agenciamento e locação de mão de obra; agências de viagens,
operadores turísticos e outros serviços de turismo; serviços de investigação,
vigilância, segurança e transporte de valores; serviços para edifícios e atividades
paisagísticas; serviços de escritório e apoio administrativo; e outros serviços
prestados principalmente às empresas.
4. Transportes, serviços auxiliares dos transportes e correio - transporte ferroviário
e metroferroviário; transporte rodoviário de passageiros; transporte rodoviário de
cargas; transporte dutoviário; transporte aquaviário; transporte aéreo;
armazenamento e atividades auxiliares dos transportes; e correio e outras
atividades de entrega.
5. Atividades imobiliárias - compra e venda de imóveis próprios; intermediação na
compra, na venda e no aluguel de imóveis.
6. Serviços de manutenção e reparação - manutenção e reparação de veículos
automotores; manutenção e reparação de equipamentos de informática e
comunicação; e manutenção e reparação de objetos pessoais e domésticos.
6

7. Outras atividades de serviços - serviços auxiliares da agricultura, pecuária e


produção florestal; serviços auxiliares financeiros, dos seguros e da previdência
complementar; e esgoto, coleta, tratamento e disposição de resíduos e recuperação
de materiais.

É de se observar que no âmbito do Sistema Estatístico, a PAS tem por objetivo


fornecer informações dos segmentos produtivos não financeiros para o Sistema de Contas
Nacionais. Por motivos não explicados pelo IBGE, exclui também, os serviços de saúde e
contempla parcialmente a área educacional.
Atentando especificamente para as nossas peculiaridades regionais podemos
considerar a seguinte estrutura para os serviços:
a. Serviços tradicionais: serviços pessoais (jurídicos, educação, médicos especialistas,
dentistas, cabeleireiros, cafés, restaurantes, oficinas);
b. Serviços modernos: serviços prestados às empresas (tecnologia da informação
(TI), centros de pesquisa, consultorias seniores)
c. Casos atípicos: grande equipamentos de serviços de massa (hotéis, hospitais,
parques de recreação)

Santos (1979) considerava o espaço urbano dividido em dois circuitos, um superior e


outro inferior, onde se situam, respectivamente, as atividades de alta e baixa-renda. O
circuito superior originou-se diretamente da modernização tecnológica e seus elementos mais
representativos hoje são os monopólios. O essencial de suas relações ocorre fora da cidade e
da região que os abrigam e tem por cenário o país ou o exterior. O circuito inferior, formado
de atividades de pequena dimensão e interessando principalmente às populações pobres, é,
ao contrário, bem enraizado e mantém relações privilegiadas com sua região.
Os serviços prestados pelo circuito inferior sustentam a economia urbana de cidades
como Salvador, ocupando parcela majoritária da sua população que opera em grande parcela
na informalidade. São serviços oferecidos pela população de renda baixa, culturalmente
herdados ou fruto da oportunidade de mercado, tais como:
• Serviços domésticos
• Serviços autônomos de manutenção e reparos
• Serviços de costura e confecções diversas
• Serviços de beleza
• Serviços religiosos (notadamente os afro)
• Serviços de biscate
• Serviços de transporte e segurança
• Serviços de alimentação
O quadro seguinte fornece uma informação mais detalhada da distribuição dos
serviços.
Quadro 2 Distribuição e peculiaridade dos serviços
7

Fonte: Santos (1979, p. 34)

O segmento de restaurantes no contexto de serviços

A literatura não é clara em relação ao enquadramento do setor de restaurantes


como sendo industrial ou de serviços, visto que este segmento envolve muita
transformação em seu composto produtivo. Não obstante a classificação industrial para o
segmento de restaurantes é imediatamente desconsiderada visto que os processos de
transformação não podem se enquadrar sob muitos aspectos ao da indústria. Contudo na
divisão comércio versus serviços é mais complexa de se estabelecer uma divisão
conceitual delimitadora. O misto serviços/comércio ou comércio/serviços, como
queiram, define melhor a atividade de restaurante, visto que as duas atividades
coexistem e completam-se.
Na PAS o IBGE considera o setor de acordo com a CNAE 2.0 nas categorias agregadas
56.1- Restaurantes e outros estabelecimentos de serviços de alimentação e bebidas e serviços
ambulantes de alimentação; e 56.2 - Serviços de catering, bufê e outros serviços de comida
preparada.
Classificações a parte, na prática quando um consumidor/cliente procura um
restaurante, busca satisfazer uma necessidade, que pode ser definida segundo Limeira
(2003, p. 4) como um estado de carência e privação sentido por uma pessoa, que provoca
a motivação para o consumo. A necessidade inata é inerente à natureza humana e não
se esgota. A necessidade adquirida é derivada do ambiente cultural e social e pode ser
esgotada. Ocorre que estas necessidades, no aspecto alimentar são intangíveis, e podem
8

variar muito de acordo com o poder de compra e a condição social de cada consumidor,
que somente os serviços podem atender (conveniência, status, satisfação de desejos,
socialização, mimos, etc.), além das necessidades básicas (MASLOW, 1954). Maslow
esclarece ainda que a necessidade é moldada por um desejo que “é a vontade que os
indivíduos têm de satisfazer as suas necessidades de uma determinada maneira”.
As necessidades moldadas por desejos serão atendidas essencialmente na ação da
prestação de serviços, pois embora o segmento de restaurantes ofereça um composto
significativo de venda de produto acabados (comércio), o atendimento é formatado pelos
desejos intangíveis da procura/preferência sentida pelo consumidor. Assim, somente será
possível a sua plena satisfação no diferencial de serviços. Os institutos de pesquisa têm,
basicamente, o mesmo entendimento.
Segundo Spang (2003) na França, tradicionalmente vinculada à comida, o moderno
termo restaurante era traduzido, por volta do Século XVIII como restaurater que transmitia a
ideia de restauração. Isto porque era um hábito popular os fregueses sentarem-se em suas
mesas e pedirem um caldo (o consumê) para “restaurar as forças”. No final daquele século o
restaurante passou a ser visto como um espaço social urbano. Até então quando se falava em
restaurante, à ideia que se tinha era a de restaurar.
Ainda segundo Spang, em torno de 1765, um parisiense conhecido por Boulanger abriu
seu estabelecimento, nele colocando a seguinte legenda: venid ad me ommis qui stomacho
laboratis, ego restaurado vos, 4 . Seu caldo um regoût 5, tinha o poder de reestabelecer as
forças das pessoas debilitadas.
Em 1782, Antoine Beauvilliers fundou o primeiro restaurante, nos moldes atuais.
Chamava-se “Grande Taverne de Londres“, localizado na Rua de Richelieu, em Paris.
Permaneceu 20 anos sem rival (PITTE 1998).
O surgimento dos restaurantes no Brasil acompanha o período da urbanização, na
medida em que o ato de alimentar-se ao longo do dia foi se tornando cada vez mais difícil de
ser praticado em casa. As jornadas de trabalho, as distâncias maiores entre o local de trabalho
e a residência, o tráfego intenso das cidades levaram as pessoas a fazerem refeições fora de
casa. É a mesma necessidade prática que fazia, no passado, com que os restaurantes fossem
construídos à beira das estradas, em casas de pouso, locais onde viajantes e passantes
paravam para restaurar as forças. (MELO, 2010).
A chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, com seus hábitos europeus, e
exigências próprias do seu paladar, impulsionou o surgimento dos restaurantes no país. A

4 Vinde a mim, vós que trabalhais, e restaurarei vosso estomago.


5 Preparo composto com vários ingredientes ensopados à base de um tipo de carne.
9

abertura dos portos (com a possibilidade de importação de novos ingredientes e especiarias)


também teve sua parcela de contribuição para o desenvolvimento do setor. Foi na Corte, no
Rio de Janeiro, que apareceram os mais importantes restaurantes, instalados em hotéis, e
também como estabelecimentos independentes, chamados de leiterias ou confeitarias. O mais
antigo do Rio de Janeiro ainda em funcionamento é o Bar Luiz, fundado em 1887, na Rua da
Carioca. Outro ícone da cidade em atividade fica na Rua Gonçalves Dias é a Confeitaria
Colombo, de 1894 e grande tradição cultural.
Melo (2010) afirma que em 1881 foi fundado o restaurante italiano O Carlino (Rua
Vieira de Carvalho – centro de São Paulo), impulsionado pela imigração italiana, oferecendo
no cardápio massas, pizza e vinho.
Brillat-Savarin (1825. p. 279) em seu livro A fisiologia do gosto, diz que:
Restaurateur é aquele cujo comércio consiste em oferecer ao público um festim sempre
pronto, e cujos pratos são servidos em porções a preço fixo, a pedido dos consumidores.
Savarin analisa com admiração o empreendedor (anônimo) que concebeu o primeiro
restaurante comercial moderno da seguinte forma:
“... poucos já pararam para pensar que o homem que criou o
primeiro restaurante deve ter sido um gênio e um profundo
observador da natureza humana.” p. 279 [...] “Enfim,
apareceu um homem de tino que percebeu que uma causa tão
ativa não podia permanecer sem efeito; que, reproduzindo-se a
mesma necessidade diariamente as mesmas horas, os
consumidores iriam em massa até lá, onde teriam certeza de
satisfazer agradavelmente essa necessidade”. [...] “Esse homem
pensou ainda em muitas outras coisas fáceis de adivinhar. Ele
foi o criador dos restaurantes, e estabeleceu uma profissão que
chama a fortuna sempre que exercida com boa-fé, ordem e
habilidade.” p. 280.

Dos tempos de Savarin pra cá, vários modelos de restaurantes apareceram,


muitas variáveis econômicas foram acrescentadas ao setor; o caldo da sua complexidade
tornou–se substancialmente espesso; as técnicas de produção, que vão da semente
posta na terra até o cafezinho junto com a conta na mesa do restaurante, foram
exaustivamente reinventadas; a profissionalização do trabalho e do empreendedor
foram intensamente lapidadas; os seus recursos foram universalmente ampliados; e o
gosto ficou cada vez mais diversificado, com público dia-a- dia mais exigente.
Atualmente seria quase impossível imaginar a vida moderna sem a conveniência e a
disponibilidade dos restaurateur. Para a economia é indispensável, pelo prazer que
proporciona aos amantes de boa mesa, pelo seu valor econômico motriz de emprego e
renda; pelo desenvolvimento.
10

Os serviços de alojamento e alimentação 6 não ocupam uma posição de destaque


na formação do PIB baiano. Com uma participação equivalente a 3,1% em 2009 não
reflete o potencial turístico do Estado e da cidade do Salvador, tendo mantido
praticamente estagnada esta posição no período de 2002/2009.

Tabela 1 – Índice de participação setorial no PIB do Estado da Bahia 2002-2009

Ranki Ano
Tipo de Atividade
ng 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

1 Indústria de Transformação 15,9 15,8 16,5 16,9 15,8 14 13,1 13,2


2 Administração, saúde e educação públicas 16,3 16,1 15,2 15,8 17 16,6 16,9 16,9
3 Comércio/serviços manutenção e reparação 10,5 11,3 11,6 11,1 11,5 13,4 13,8 13,8
4 Atividades imobiliárias e aluguel 9,6 9,4 8,9 8,4 8,5 8,2 8,6 8,2
5 Construção Civil 7,2 6,4 7 8,2 7,4 7 7,2 7,5
6 Agricultura e Exploração Florestal 8,1 7,9 8,6 6,5 5,8 6,8 6,6 5,8
7 Transportes, armazenagem e correio 4,1 4,3 3,9 4,3 4,6 4,5 5,1 4,8
8 Financeira, seguros e previdência 4,9 3,9 3,4 3,8 3,9 4 3,6 4
9 Serviços prestados às empresas 3,1 3,6 3,9 3,8 3,9 4,9 4,1 4
10 Eletricidade e gás, água, esgoto limpeza urban 4,4 5,2 5,5 5,4 5,4 5,4 5,4 3,9
11 Serviços de alojam ento e alim entação 2,4 2 2,2 3 2,4 2,4 2,3 3,1
12 Saúde e educação mercantis 3,8 3,7 3,5 3 3,2 3,1 3 2,9
13 Serviços às famílias e associativos 2,1 1,9 1,9 2 2,3 2,2 2,1 2,2
14 Serviços de informação 2,8 3,2 2,8 2,9 2,9 2,7 2,5 2,1
15 Pecuária e Pesca 2,4 2,7 2,3 2,1 2,1 1,8 1,9 1,9
16 Serviços Domésticos 1,2 1,1 1,1 1,2 1,3 1,4 1,4 1,4
17 Indústria Extrativa Mineral 1,3 1,4 1,7 1,7 2,1 1,8 2,3 1,1
Total - - - - - - - 100
Fonte IBGE/SEI
Observa-se, contudo, nos dados colhidos na RAIS, à existência de uma forte
correlação entre os dados do adensamento populacional e os do segmento de restaurantes em
todo o País. Assim assumiu-se a hipótese de que este segmento de Salvador possa ser
analisado através da comparação com os seus congêneres do mercado nacional e do mercado
interno baiano.
Em termos nacionais o estado da Bahia ocupava o 7º lugar no ranking dos
estabelecimentos ativos em 2010, com 6.266 restaurantes, refletindo uma participação de 4,14
no quantitativo do País.

Tabela 2 - Ranking de estabelecimentos, segundo a divisão de: restaurantes, serviços de


alimentação e bebidas - Brasil – 2010.

6
A RAIS, CAGED e SEI, só oferecem informações quantitativas num limite de desagregação
de dados que incorpora o setor hoteleiro (Serviços de alojamento e alimentação).
11

Part. %
Ranking Unidade Federal Total
País
1 São Paulo 48.603 32,11
2 Minas Gerais 17.749 11,73
3 Rio de Janeiro 14.013 9,26
4 Rio Grande do Sul 12.137 8,02
5 Paraná 11.457 7,57
6 Santa Catarina 9.498 6,27
7 Bahia 6.266 4,14
8 Distrito Federal 4.021 2,66
9 Goiás 4.014 2,65
10 Pernambuco 3.600 2,38
11 Outros 19.999 13.21
Brasil 151.393 100,00
Fonte: IBGE/RAIS

Segundo a RAIS o mercado baiano possui 6.266 restaurantes, sendo que a sua capital
Salvador, com 2.619 estabelecimentos, absorve 41,80% do total.
De modo geral as cidades com maior número de restaurantes seguem a lógica do
adensamento populacional característico da natureza econômica do setor. Contudo algumas
alterações podem ocorrer pela forte presença de outros fatores que influenciam a demanda
de serviços, como a população flutuante que amplia sazonalmente a procura vez que atraída
pelo grau de centralidade das cidades que exercem uma força gravitacional em relação aos
centros periféricos e outros mais distantes em função da sua natureza e peculiaridades
(centro político, administrativo e jurídico, centro de negócios, turismo, educação, saúde etc.).
A cultura e os hábitos consolidados com o suporte do nível da renda per capita constituem
outro elemento atracional que se contrapõem à regra meramente quantitativa.
A geografia também exerce a sua influência. Cidades que não são litorâneas – não
possuem praias – tendem a possuir mais restaurantes. A praia constitui uma alternativa de
lazer acessível para todas as camadas da população e nela prospera um comércio de
alimentos ao ar livre, normalmente informal que afasta a população dos restaurantes. Este é
o caso, em termos nacionais, de cidades como Belo Horizonte, Brasília, Curitiba e Porto
Alegre todas com menor adensamento populacional e que superam Salvador (a 3ª capital
mais populosa do Brasil com 2.668.405 habitantes em 2010 segundo o IBGE) em número de
restaurantes.
Os fatores precitados são válidos também ao nível municipal, tomando-se por base o
impacto da atividade turística e da periferização habitacional. O primeiro impactua pela
população flutuante e o segundo pela tendência da construção da 2ª residência e fuga da
moradia no congestionado centro urbano. Na Bahia, Porto Seguro é um exemplo categórico
da primeira tendência ao confrontar o fato de estar na 13ª posição em termos populacionais,
12

e ocupar a 3ª posição no ranking dos restaurantes. Lauro de Freitas, conurbado a Salvador,


espelha o segundo caso, por ser o 9° em população, e ocupar o 5° lugar no total de
restaurantes ativos do estado. Neste caso específico ainda constitui fator locacional aspectos
de disponibilidade e custo espacial.

Tabela 3 - Restaurantes, serviços de alimentação e bebidas, nos principais municípios da Bahia -


2010 –
Part. %
Ranking Município Total
Estado

1 Salvador 2.619 41,80


2 Feira de Santana 380 6,06
3 Porto Seguro 289 4,61
4 Vitoria da Conquista 238 3,80
5 Lauro de Freitas 181 2,89
6 Ilhéus 173 2,76
7 Itabuna 168 2,68
8 Camaçari 129 2,06
9 Juazeiro 93 1,48
10 Barreiras 90 1,44
Fonte: RAIS

Entre todos os fatores que impactam sobre a localização e instalação de restaurantes


está a disponibilidade de recursos, ou seja: a renda da população.
Considerando que a alimentação fora do lar, em linhas gerais, representa um custo
maior que a refeição doméstica, este hábito terá maior força cultural entre as sociedades com
melhor condição econômica e social, devido ao seu impacto nos orçamentos familiares e,
obviamente, o setor empresarial de restaurantes terá maior desenvolvimento nas localidades
de maior renda.
Salvador é uma metrópole classificada como extremamente pobre, em termos
nacionais. E esta pobreza consegue barrar impulsos positivos decorrentes dela ser um centro
turístico de grande projeção além de exercer fortes efeitos gravitacionais no território
estadual. É o que se pretende demonstrar a seguir.
O quadro 3 elaborado em 2012, pela Comissão para Definição da Classe Média no
Brasil da Secretaria de Estudos Estratégicos da Presidência da República, apresenta uma
síntese das classes de rendimento do Pais.

Quadro 3 – Brasil – Classes de Renda Familiar (2012)


13

Classe Renda Familiar média (R$/mês)


Extremamente pobre 227,00
Pobres, mas não extremamente 648,00
Vulnerável 1.030,00
Baixa classe média 1.540,00
Média classe média 1.925,00
Alta classe média 2.813,00
Baixa classe alta 4.845,00
Alta classe alta 12.988,00
Nota: Valores expressos em R$ de abril de 2012
Fonte: Estimativas produzidas com base na Pesquisa Nacional por Amostras de
Domicílios (PNAD).

Na cidade do Salvador a população que compõe os extratos que vão da extrema


pobreza até a média classe média soma 1.699.144 pessoas (64% da população total da cidade).
Com uma renda familiar que vai até R$ 1.925,00 é válido supor que estas pessoas não
possuem condições de frequentar restaurantes.
Assim sendo, se compararmos a distribuição social da renda de Salvador com a de
Porto Alegre, (Tabela 4) pode-se inferir que o grau de desigualdade entre as duas capitais
contribui, independente de outros fatores, para que esta supere consideravelmente aquela em
termos do número de restaurantes.

Tabela 4 - População residente, partic. e variação per., por classe social ‒ Salvador X Porto
Alegre ‒ 2010.
Salvador - 2010 Porto A legre - 2010
Classes Soc iais
Populaç ão Part. % Populaç ão Part. %

Extremamente Pobre 225.441 8,4 47.682 3,4


Pobre 196.018 7,3 41.214 2,9
Vulnerável 477.875 17,9 119.573 8,6
Baixa Classe Média 396.797 14,9 139.013 9,9
Média Classe Média 403.283 15,1 184.887 13,2
Alta Classe Média 342.384 12,8 226.856 16,2
Baixa Classe Alta 381.818 14,3 357.429 25,6
Alta Classe Alta 244.789 9,2 281.576 20,1
Total 2.668.405 100,0 1.398.230 100,0

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico: dados da


amostra, 2000/2010.
Nota 1: Classe Social conforme a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da
República, SAE/PR.
Nota 2: População residente: exclusive parcela com renda domiciliar per capita nula.

Na capital gaúcha entre a população classificada como extremamente pobre e a média


classe média existem 532.369 pessoas (38,07% da população total da cidade). Nesta a classe
alta, de modo geral, representa 45,7% da população total enquanto em Salvador este número
é de 23,5%.
14

O valor social do trabalho é um principio tratado desde o artigo 1° e 170 da


Constituição Federal, até uma vastidão de literatura na área dos recursos humanos.
Seu exame conceitual não cabe no reduzido espaço deste trabalho. Mas pode-se dizer
que existe uma grande relação entre este valor e a satisfação obtida pelo trabalhador
no exercício do trabalho. Ressaltadas algumas exceções e patologias, pode-se dizer
que quanto maior o salário, maior a satisfação do trabalhador e, para ele, maior o
valor social do trabalho. Isto tem reflexo direto na qualidade do trabalho
desempenhado. Quanto mais satisfeito está o trabalhador, mais receptivo estará para
o treinamento e o aprendizado assim como para dispensar um bom tratamento aos
usuários dos seus serviços. Quando o valor social do trabalho é baixo, não lhe pesa
muito a perda pela demissão. Tudo isto aqui é dito para acentuar que em Salvador o
valor social do trabalho é muito baixo. Não fossem elementos culturais7 que
contribuíram para certa docilidade e bom-humor dos “serviçais” baianos o
tratamento dispensado aos clientes nos restaurantes da capital baiana seriam muito
piores.
Na Tabela 5, que reflete o ranking nacional dos municípios em relação ao
salários pagos pelos restaurantes, vemos que Salvador despenca da tabela das 10
principais cidades, indo ocupar a 17ª posição no ranking nacional geral. A cidade que
melhor remunera é Porto Alegre, que chega a pagar mais que o dobro dos salários de
Salvador.

Tabela 5 - Rendimento médio dos trabalhadores formais nos restaurantes, serviços de


alimentação e bebidas ‒ Capitais ‒ 2010.

7
Não cabe aqui um estudo sociocultural e antropológico do povo baiano. A respeito ver Spinola (2004)
15

Vínculo
Ranking Capital
Ativo
1 Porto Alegre 1.405,49
2 São Paulo 915,36
3 Florianópolis 874,71
4 Cuiabá 796,88
5 Vitória 785,31
6 Rio de Janeiro 762,78
7 Brasília 770,24
8 Curitiba 797,41
9 Goiânia 759,20
10 Belo Horizontes 725,56
... ... ...
17 Salvador 675,52

Fonte: IBGE
Quando se busca entender o baixo desempenho do segmento empresarial de
restaurantes em Salvador e a qualidade ruim dos seus serviços, percebe-se claramente como
o valor social do trabalho para o empregado é muito baixo. Para ele, perdê-lo não significa
um grande prejuízo, afinal através dele não consegue um grau razoável de satisfação das
suas necessidades e expectativas pessoais e como a regra de pagar mal é uniforme no
segmento, o turnover é intenso. O recrutamento também se faz nas classes de renda mais
baixa da população. O baiano, de modo geral, vê com bastante preconceito as atividades
ligadas aos serviços de alimentação consideradas próprias das classes de baixa renda. Por
isto mesmo, no cruzamento de dados salariais com o grau de instrução, considerando a
média salarial paga para os trabalhadores sem curso superior, o segmento de restaurantes de
Salvador cai ainda mais, ocupando a 19ª posição no ranking nacional de capitais. O primeiro,
sob esta ótica de análise, continua sendo a capital gaúcha.

Tabela 6 - Rendimento médio do trabalhador dos restaurantes, serviços de alimentação e bebidas


segundo o grau de instrução ‒ Capitais ‒ 2010.
16

Ensino
Ensino Ensino
Fundam en Ensino Educação Educação
Fundam en Médio
Capital Analfabeto tal Médio Superior Superior
tal Incom plet
Incom plet Com pleto Incom pleta Com pleta
Com pleto o
o
1 Porto Alegre 678,02 802,75 809,94 875,20 1.009,86 4.319,29 6.037,42
2 São Paulo 867,22 926,49 899,12 874,38 872,79 1.392,14 2.122,58
3 Florianópolis 777,30 826,29 850,09 789,73 882,39 1.035,09 1.324,39
4 Curitiba 686,50 743,92 760,96 741,16 822,32 1.041,85 1.456,12
5 Cuiabá 804,10 755,18 738,72 842,54 775,53 996,62 1.411,56
6 Vitória 778,82 739,40 786,72 754,81 776,08 1.047,45 1.363,05
7 Brasília 652,48 743,86 725,74 721,54 767,86 1.051,64 1.940,16
8 Rio de Janeiro 675,05 735,19 729,18 715,19 753,87 1.241,96 1.990,67
9 Goiânia 703,76 693,48 739,04 758,54 764,24 843,65 1.184,21
10 Porto Velho 671,74 717,39 732,42 718,46 733,17 694,55 1.393,16
... ... ... .. ... ... ... ... ...
19 Salvador 664,28 652,20 659,80 605,67 672,81 916,68 1.698,22
Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) ‒ Relação Anual de Informações Sociais (RAIS),
2010. Dados sistematizados

Ao proceder-se uma análise com recorte da empregabilidade nos postos de trabalho


ocupados por trabalhadores com nível superior e assumindo-se que a escolaridade influencie
na qualidade do serviço prestado, observa-se um grande hiato na qualidade da mão de obra
empregada entre as duas capitais. Enquanto a soma dos postos de trabalhos ocupados por
profissionais de nível superior em Porto Alegre fica em aproximadamente 60% do total de
vínculos ativos, no segmento empresarial de Salvador é menor que 10% da massa
trabalhadora. Registre-se, como uma consequência natural que Porto Alegre tem mais
trabalhadores ganhando salários acima de R$ 10 mil (282 trabalhadores) do que toda a soma
de empregados de nível superior empregados em Salvador (245 trabalhadores), onde o
rendimento máximo se concentra em até R$ 4,8 mil.
É bem verdade que Porto Alegre em termos de remuneração aos trabalhadores do
setor de restaurantes, está muito acima da média nacional, superando inclusive a cidade de
São Paulo.
Tabela 7 – Comparativo de rendimentos Salvador/Porto Alegre
Salvador Porto Alegre
Trabalhadores com nível superior / Restaurantes Absoluto Partic % Absoluto Partic %
Rendimentos entre R$ 268,88 a 1.165,94 105 4,0 113 4,12
Rendimentos entre R$ 1.165,94 a 4.754,99 127 4,8 572 20,83
Rendimentos entre R$ 4.754,99 a 9.839,47 11 0,4 671 24,44
Rendimentos entre R$ 9.839,47 a 30.177,40 2 0,1 282 10,27
Total ativo com Nível Superior 245 9,4 1638 59,65
Total Geral Absoluto 2619 100,0 2746 100,00

Fonte: IBGE/RAIS
17

Fazendo uma análise de indicadores síntese entre Porto Alegre e Salvador, em relação
à ocupação de postos de trabalho por trabalhadores com nível superior temos a seguinte
tabela comparativa:
Tabela 8 – Comparativo Porto Alegre / Salvador
Porto Alegre - RS Salvador-BA
Mínimo: R$ 268,68 R$ 172,97
Máximo: R$ 30.177,40 R$ 16.850,00
Desvio Padrão (8): 3.944,17 1.706,94
Média Aritmética Simples (9): R$ 6.037,42 R$ 1.698,22
Ocorrências (10): 1.638 245
Estoque de Trabalhadores 22.962 22.480
Número Estabelecimentos Ativos 2.619 2.746
População estimada 2010 1.436 mi 4 mi
Renda per capita / Posição no ranking R$ 26.312,45 (4ª) R$ 10.948,50 (10ª)

Salvador supera Porto Alegre apenas em população. Dado que, numa análise mais
crítica, não reflete em nenhuma vantagem, exceto pelo o fato de que, talvez, com uma
população menor o quadro soteropolitano seria ainda pior. No comparativo direto entre
Porto Alegre e Salvador, a capital gaúcha leva vantagem em todos os indicadores. Assim,
enquanto Salvador dispõe de 2.619 restaurantes para uma população total de 2.668.405
habitantes, uma relação de 1.019 habitantes por restaurante, Porto Alegre dispõe de 2.746
restaurantes para 1.398.230 habitantes, ou seja, uma relação de 509 habitantes por
restaurante. O dobro da flexibilidade de atendimento baiana. Coincidentemente a renda per
capita, de Porto Alegre é mais que o dobro da de Salvador, o que significa que o seu mercado
é mais favorável para o segmento de restaurantes em comparação com o de Salvador.
Embora Porto Alegre seja significativamente menor em população que Salvador e possuindo
um número superior de restaurantes, emprega menos trabalhadores no segmento. Esta
situação indica que os porto-alegrenses conseguem ser mais produtivos e obter melhores
resultados com um volume de capital humano menor que o soteropolitano. Certamente o
valor social do capital para estes empregados é melhor, implicando diretamente em melhor
qualidade dos serviços.

Considerações finais

Para que o mercado empresarial de restaurantes de Salvador venha a oferecer um


serviço de restaurantes que corresponda à sua condição de 3ª metrópole mais populosa do

8
Desvio Padrão: Estabelece a distribuição média dos rendimentos. Medida de dispersão. Quanto
menor o indicador significa que os rendimentos são mais homogêneos.
9
Média Aritmética = Massa Salarial / Numero absoluto de trabalhadores ativos
10
Ocorrências de trabalhadores com nível superior
18

Brasil, e a sua posição de importante cidade turística do País é necessário que uma
verdadeira revolução ocorra na estrutura urbana da cidade e no segmento em especial.
O mercado empresarial de restaurantes de Salvador até que oferece uma boa oferta de
postos de trabalho, em comparação com a média nacional e regional, mas o problema está na
qualidade deste emprego, que se situa na 19ª posição em termos de valor da remuneração do
setor o que se reflete na prestação dos serviços pela sua mão de obra muito mal qualificada.
É baixíssimo o volume de empregados com nível superior.
Embora faltem informações importantes como o faturamento setorial, percebe-se que
o segmento de restaurantes de Salvador sofre uma estagnação no seu ritmo de crescimento,
que consequentemente a leva a perder espaço na participação e na relevância nacional do
setor.
Duas amostras significativas dos restaurantes e respectivas especialidades existentes
na cidade do Salvador são apresentadas pela Emtursa, e pela revista Veja – Salvador. Na
análise das informações contidas nestas fontes observa-se que a cozinha regional (nordestina,
baiana e de frutos do mar) perde espaços a olhos vistos. Os restaurantes de “comida a quilo”
vêm aumentando exponencialmente seu quantitativo explorando o crescimento do business
service na cidade. As cozinhas italiana, gaúcha, oriental e internacional são majoritárias. Este
fato decorre das transformações por que passa a cidade do Salvador a partir dos últimos 30
anos com a instalação dos parques industriais químico/petroquímico e automobilístico na
sua periferia.
O afluxo considerável de técnicos e operários e outras categorias profissionais
oriundas das regiões Sul e Sudeste e o retorno de migrantes reciclados que antes partiram
para o Sudeste em busca de novas oportunidades , segundo a SEI, tem contribuído para
modificar os hábitos e costumes da cidade, abalando inclusive as suas venerandas tradições
culturais. Salvador vai aos poucos se distanciando da sua cultura afro e também vai
perdendo a sua criatividade musical transformando-se num grande dormitório dos
trabalhadores industriais forâneos, que remunerados em patamares superiores aos pagos à
grande massa local de peões, ditam as modas e as preferências, habilmente farejadas pelo
mercado. Como diria Octávio Mangabeira a seu respeito: “Salvador é uma péssima mãe, mas
uma excelente madastra”.
Existe, é claro, um grupo seleto de bons restaurantes típicos, mas existem muitos
problemas a merecer cuidados, notadamente no que se refere à culinária típica baiana que,
além de enfrentar a concorrência das outras cozinhas, chegadas com o cosmopolitismo da
velha capital baiana, padece de deficiências (na qualidade dos pratos e no padrão dos
serviços) que são resultantes dos estrangulamentos no suprimento de insumos, da entrada e
19

saída no setor de pequenos empresários sem capacitação gerencial e da falta de mão-de-obra


qualificada.
A pesquisa realizada pela equipe do Gecal 11, em 2011, identificou uma queixa comum
entre os comerciantes desse ramo de negócios quanto à baixa qualidade do fornecimento de
insumos, falta de padronização e escassez dos produtos, preços altos, descontinuidade no
suprimento e falta de profissionalismo. Aqueles que possuem maiores recursos importam os
produtos que processam da região Sudeste, como é o caso de frutos do mar e carnes. Os de
menor porte adquirem seus insumos na Bahia, em mão de intermediários que os importam
do interior de estado e de outras regiões do país. O fato é que as deficiências de
abastecimento constituem um elemento importante na elevação dos preços dos produtos
finais.
A taxa de mortalidade dos negócios é considerável, dada à inconstância e infidelidade
da clientela, normalmente muito exigente e atraída pelo fenômeno da moda.
O setor carece de um cadastramento rigoroso e de um programa de assistência técnica
que deveria envolver os organismos de fomento da Prefeitura e do Estado.
Uma medida muito importante consistiria no estabelecimento de um selo de
qualidade e um guia anual de restaurantes típicos que funcionaria como uma referência para
os turistas (principalmente) e um mecanismo para estimular a busca de qualidade pelo setor.

Referências
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Política, vol. 26, nº 1 (101), pp. 119-136 janeiro-março/2006.

MEIRELLES, Dimária Silva e Limeira. (2008). Serviços e desenvolvimento econômico:


características e condicionantes. Revista de Desenvolvimento Econômico – RDE: Ano X, n.º
17 - janeiro.

11
Grupo de Estudos da Economia Cultural de Salvador - GECAL
20

FISCHER, A. G. (1939). Production, primary, secondary and tertiary. Economic Record, June.
KUZNETS, S. (1983) Crescimento Econômico Moderno. Coleção Os Economistas, São Paulo:
Abril Cultural.
BOLETIM IPEA N° 172 (2010). Serviços já empregam 13 milhões de pessoas. Disponível em
www.ipea.gov.br/sites/000/2/.../12/.../Mailing368.htm. Acesso em 26 set 2010.
TEBOUL, J. A (2002) A era dos serviços: uma nova abordagem de gerenciamento. São
Paulo: Qualitymark.
CORREA, Henrique L; CAON, Mauro. (2002). Gestão de Serviços. São Paulo: Atlas, 2002.
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Carriers and Sources of Innovation. Manchester: University of Manchester
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PAS 2009, v. 11. Rio de Janeiro: IBGE.
SANTOS, Milton (1979). O espaço dividido. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
VIDIGAL, Tania Maria. (2003). Administração das comunicações de marketing. In: DIAS,
Sérgio Roberto (Coord.). Gestão de marketing. São Paulo: Saraiva
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BRILLAT - SAVARIN, Jean-Anthelme (2009). Fisiologia do Gosto – São Paulo, Cia da Letras.
21

http://pt.shvoong.com/social-sciences/1705312-karl-marx-conceito-mais-
valia/#ixzz1UN51SL9O
VALOR, Econômico (2010)..
1

Réquiem para a cultura popular

Noelio Dantaslé Spinola1

"Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a


tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do
sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante
tarefa de viver." Ariano Suassuna (2007)

Resumo

Texto elaborado para o IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos. Trata
do conflito entre as formas primitivas e ingênuas da arte, que integram a cultura popular e consequentemente a
economia cultural, e a indústria cultural engendrada pelo sistema capitalista. Parte de um conjunto de definições
e analisa alguns aspectos do carnaval, da produção de instrumentos musicais e do artesanato, fazendo a ligação
destes com a influência africana e suas repercussões na economia do turismo. O texto é centrado num quadro que
o autor, num estilo irreverente e heterodoxo, pinta para a cidade do Salvador, no estado da Bahia.

Palavras-chave: Economia cultural. Indústria cultural. Cultura popular. Salvador.

Abstract

Text prepared for the IX National Meeting of the Association of Urban and Regional Studies. This text deals
with the conflict between the primitive and naive art, incorporated popular culture and consequently the cultural
economy and cultural industry engendered by the capitalist system. Starting on a set of definitions, examines
some aspects of carnival, the production of musical instruments and crafts, linking them with the African
influence and its impact on the tourism economy. The text is centered on author’s framework, in an irreverent
style and unorthodox city of Salvador painting in Bahia state.
Key words: Cultural economy. Cultural industry. Popular culture. Salvador.

Uma introdução pouco formal

Meus mestres me ensinaram há muito tempo que um texto acadêmico deve ser austero,
rígido, mais frio que um defunto, recheado de citações, atento às normas da ABNT que
mudam frequentemente aos caprichos de um comitê de “sábios”, para o desespero de autores
e revisores indefesos, e sem qualquer concessão ao humor, sarcasmos e ironias. Distância!
Use sempre a terceira pessoa!
Rident castigat mores, ensinaram os romanos, mandando para o inferno o formalismo,
no que foram bem copiados por Gil Vicente e Voltaire, mestres da irreverência. O humor, o
riso, está na base da nossa cultura popular. Por que não celebrarei seu funeral segundo a
ortodoxia acadêmica? Porque estou com o poeta Noel Rosa cantando Fita Amarela: “quando
eu morrer, não quero choro nem vela…”. Porque também estou com o poeta Ariano
Suassuna, em sua Iniciação à Estética: “do ponto de vista social, o riso é uma espécie de
castigo ou reprimenda que a sociedade inflige a alguma coisa que a ameaça” (2007, p. 155).
Através do riso, relata Petry (2010, p.1) os costumes que estavam em desacordo com a
moral eram castigados e, a partir disso, o riso passa a ser um fenômeno, sobretudo social e

1
Doutor em Geografia e História pela Universidade de Barcelona (ES). Professor Titular de Economia Regional e Métodos
de Análise Regional no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU) da Universidade
Salvador (UNIFACS). E - mail: dantasle@uol.com.br
2

humano e que ocorre somente em circunstâncias onde, de alguma forma, a sociedade vê-se
ameaçada. Eu penso que a morte da cultura popular pela sua massificação é uma grande
ameaça.
Sorrio então, com este estilo, cansado de ser academicamente correto, já encerrando a
simbólica idade de 69 anos, e correndo o risco de ter meu texto reprovado por ser assim
heterodoxamente irreverente.
Sorrindo decidi com desencanto dar meu adeus à cultura popular, naif, e a economia
por esta engendrada a partir de múltiplos lugares, como o interior do Nordeste que gerou
sertanejos famosos a exemplo dos Vitalino, Nhô Caboclo, Luiz Antônio da Silva e tantos
outros; dos undergrounds de Salvador e Recife, responsáveis pelos magníficos carnavais,
verdadeiros vulcões que transbordavam uma preciosa criatividade nos batuques dos afoxés,
do pau elétrico de Dodô e Osmar,2 transformado em guitarra baiana por Moraes Moreira, da
Vassourinha de Joana Batista3 e Matias da Rocha, sucedidos por tantos outros cuja lista é
interminável.
Seguindo o conselho de Chaplin, quando dizia: “Ei! Sorria... Mas não se esconda atrás
desse sorriso...” trato neste artigo de um problema identificado, ainda na década de 1940
por Horkheimer e Adorno (1944) que em sua Dialética do Iluminismo denunciam o
surgimento da indústria cultural que no sistema capitalista passa a dominar e absorver a
economia cultural. Assim la participación en tal industria de millones de personas impondría
métodos de reproducción que a su vez conducen inevitablemente a que, en innumerables
lugares, necesidades iguales sean satisfechas por productos estándar. La industria cultural,
en suma, absolutiza la imitación (p. 50).
Sorrindo vejo sumir a arte ingênua responsável por muitos empregos na economia da
cultura popular que nesta implacável marcha da modernidade é transformada em produto da
indústria cultural e dá lugar a uma estética padronizada pela máquina e o computador, ou é
descartada e esquecida quando inadaptável aos gostos padronizados.
Talvez pareça que sou um saudosista romântico daqueles que gostariam de congelar o
passado. Sou não! Concordo apenas com Adorno e Horkheimer que há 66 anos diziam: no se
trata de conservar el pasado, sino de realizar sus esperanzas (1944, p. 4).
Apenas deploro e protesto pela sorte dos pequenos artesãos nordestinos que enfrentam
a concorrência desleal e maciça da China que copia descaradamente e sem pagar direitos
autorais as suas imagens4; dos músicos e outros artistas populares que de protagonistas vão
sendo reduzidos a assalariados eventuais da indústria fonográfica; dos produtores de
instrumentos musicais que são massacrados pela concorrência das multinacionais; dos mestres
carpinteiros dos saveiros do Recôncavo Baiano liquidados pelo fiberglass e o IBAMA; dos
cordelistas que não substituem mais um Patativa do Assaré, um Cuica de Santo Amaro, um
Leandro Gomes de Barros ou João Martins de Athayde, até porque as feiras, que eram seus
palcos originais, estão acabando, substituídas por centros de abastecimento e pela Internet que
decretou o fim do papel impresso. Não vivemos mais na galáxia de Gutenberg, e eu que sou
um velho reacionário não acredito em cordelista digital. Não vejo mais a banda passar pelo
coreto da praça, nem os circos anunciados pelos palhaços de longas pernas de pau, cantando
inocentemente o hoje politicamente incorreto refrão: “olê, olê, olê bambu, fio de nego é
urubu!” e seguidos por uma multidão de crianças deslumbradas que lotavam os espetáculos.
Os “theatros” desaparecem por falta de salas e patrocinadores. As salas de cinema viraram

2
A “fobica” de Dodô foi transformada em Trio Elétrico.
3
Como sempre nesta seara: há controvérsias.
4
Encontrei similares de produtos da cerâmica afro-baiana fabricados artesanalmente em Maragogipe e Nazaré das Farinhas, e
vendidos na Feira dos Caxixis, no Mercado Modelo e na Feira de São Joaquim, em lojas de artesanato de Buenos Aires,
Santiago, Lima, Lisboa e Madrid. Todos muito bem feitos, perfeitos, made in China!
3

igrejas evangélicas. As “philarmônicas” e as “lyras” populares também sumiram. Estão


acabando os músicos que tocavam por partitura. Os festejos religiosos estão sumindo
gradualmente ou sofrendo transformações radicais que os descaracterizam como é o caso da
Lavagem do Bonfim e das festas da Conceição da Praia, do Rio Vermelho de São Lázaro, de
Santa Bárbara e de São Cosme e São Damião. Os que sobrevivem se transformam em
carnaval ou desfile de políticos como a famosa lavagem do Bonfim. E por ai vai…
Pois bem, é nestas categorias da cultura popular, ingênua, naif, (que geravam
emprego e renda e absorvia muitas vezes na informalidade um montão de gente) que agoniza
a economia cultural.
Neste artigo, pretendo apresentar algumas considerações sobre o problema tratando de
alguns aspectos conceituais e de setores da economia cultural popular, como: o carnaval e as
festas populares, o artesanato popular, a música, as artes plásticas e cênicas, e a culinária.
Limito-me ao território baiano, notadamente Salvador, onde fica a minha tribo, com um
lembrete para os demais nordestinos: quando a gente vê as barbas do vizinho arder, é melhor
meter as nossas de molho!

E o que vem a ser economia cultural?

Segundo dizem os doutos, economia cultural é uma categoria que abarca um


notável campo de produção, circulação e consumo de bens e serviços simbólicos, de
natureza material e imaterial, genericamente denominados bens ou produtos culturais.
O uso desta terminologia é frequente na academia, e na mídia, embora a bibliografia sobre o
assunto seja exígua. Assim sendo, não há uma conceituação explícita do seu significado. Não
existe uma separação entre a economia cultural popular que estuda as categorias mais
simples e mais pobres e a economia cultural da elite que estuda as categorias mais
sofisticadas. Para compreendê-la melhor analisaremos os seus termos em separado, para
depois ressignificá-los em seu conjunto.
Sobre a economia, ciência por demais conhecida, a sua importância pode ser
observada nos diversos mundos culturais, em todas as épocas históricas e em todas as
sociedades. No modo de produção capitalista o mercado torna-se o regulador da vida social.
Nestes termos tudo é interpretado como mercadoria. Marx (1971, p.79) destaca que “o
sistema capitalista transforma todos os objetos úteis em mercadorias”. Para ele, o fetiche ou
caráter ilusório das mercadorias, que afinal satisfazem necessidades humanas, não se deve ao
seu valor de uso, mas, sim, ao seu valor simbólico.
A primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa trivial e que se compreende por
si mesma. Pela nossa análise mostramos que, pelo contrário, é uma coisa muito
complexa, cheia de sutilezas metafísicas e de argúcias teológicas. Enquanto valor-
de-uso, nada de misterioso existe nela, quer satisfaça pelas suas propriedades as
necessidades do homem, quer as suas propriedades sejam produto do trabalho
humano. O caráter místico da mercadoria não provém, pois, do seu valor-de-uso.
Não provém tão pouco dos fatores determinantes do valor. O carácter misterioso da
forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente em que ela apresenta aos
homens as características sociais do seu próprio trabalho como se fossem
características objetivas dos próprios produtos do trabalho, como se fossem
propriedades sociais inerentes a essas coisas; e, portanto, reflete também a relação
social dos produtores com o trabalho global. Este fetichismo do mundo das
mercadorias decorre do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias.
Os objetos úteis só se tornam em geral mercadorias porque são produtos de
trabalhos privados, independentes uns dos outros. (MARX, 1971, p.81)

Galbraith (1968) e Canclini (1997) destacam que a sociedade capitalista, ao


generalizar e expandir o mercado, aumentando a quantidade de mercadorias nele
transacionadas promovendo a diversificação dos seus padrões de qualidade e ampliando
4

através do marketing a escala das necessidades, transforma os consumidores, massificando-os


e reduzindo subliminarmente a sua liberdade de escolha. Esta generalização dos mercados e
de ampliação das necessidades e padrões de consumo da sociedade contemporânea é
responsável pela “cultura do consumo”, primordialmente, entendida como “consumo de
signos”.
O caráter simbólico das mercadorias é quem nos permite falar em economia cultural.

Mas, e o que é cultura?

É um território em permanente conflito. No nosso entendimento cultura é uma


categoria polissêmica e, como tal, são vários os seus significados. Em alguns contextos, que
certamente não é o nosso, ela aparece como sinônimo de erudição ou educação acadêmica.
No cenário midiático, cultura aparece geralmente vinculada ao mundo das artes:
televisão, teatro, cinema, música, literatura, artes plásticas, esportes etc. Do ponto de vista
antropológico, entretanto, a cultura é concebida de forma muito mais ampla. O velho
antropólogo britânico Edward Burnett Tylor ([1881] 2011) citado por todo mundo, definiu
cultura como a expressão da totalidade da vida social do homem. Para ele a cultura trata de
“todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer
outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade.
Trata-se de uma categoria onipresente, pois ocorre em todos os setores do dia a dia:
econômico, político, espiritual religioso, etnolinguístico, genético, e sociocomportamental. A
cultura dos povos é a interconexão de todas estas esferas, perpassando ainda os aspectos
históricos e geográficos do tempo e do espaço.
Towse (2003, p.19) ensina que a expressão economia cultural ou da cultura é, em certa
medida, uma denominação incorreta e que se utiliza na falta de outra melhor. Sua
denominação pioneira foi “economia das artes”, mas este rótulo “se mostrou inadequado por
ser restrito e elitista” 5. Ficou-se então com a economia da cultura, como la aplicación de la
economia a la producción, distribución y consumo de todos los bienes y servicios culturales,
e a explicitação de que todos os bens e serviços culturais devem ter em comum o fato de
incluir um elemento artístico ou criativo.
Os economistas que constituem uma fauna estranha, da mesma forma que desprezaram
os aspectos espaciais da economia, não tomaram conhecimento da economia cultural. Nas
palavras de Lasuén (2005, p.39):

Mientras, desde Ia Ilustración, Ias otras ciencias sociales han venido dando, en su
seno, una importancia creciente a Ia cultura; Ia economía, llevada de su propósito
obsesivo de convertirse en una ciencia natural, hasta fechas muy recientes Ia ha
considerado irrelevante o perniciosa. A. Smith y K. Marx, y sus escuelas
respectivas, es decir, Ia mayor parte de los economistas, han juzgado, durante los
dos últimos siglos, que su actividad era, como Ia de todos los servicios,
improductiva y, por tanto, irrelevante. Los únicos economistas que rompieron una
lanza por Ia cultura y el arte fueron, naturalmente, los más cultos, Robbins y
Keynes. EI primero, como se ha dicho, superando Ia línea clásica que afirrnaba que
el objeto de Ia economía era aumentar y distribuir mejor Ia riqueza nacional, dijo
que el objeto genérico de Ia economía era garanrizar Ia mejor asignación de
recursos escasos a Ia obtención de fines dados, y que éstos podían ser tanto
maximizar a riqueza como la cultura. Keynes, por su parte, consiguió que, en Ia
Inglaterra tradicionalmente opuesta a toda subvención pública del arte, se creara el
National Endowment for the Arts. Pero ninguno de los dos adujo que hubiera que
estudiar con criterio económico las actividades culturales y, mucho menos, que se

5
Discordo da autora, por que a arte só existe (na e) para a elite?
5

analizara la influencia de la cultura en el análisis y política económicos. (Grifos


nossos).

A economia cultural abrange a arte produzida tanto por ricos quanto por pobres.
Tanto o Louvre e a Opera de Paris quanto o Circo Picolino, baiano e o gaúcho Teatro de Lona
Serelepe são objetos do seu estudo. A literatura disponível sobre o tema, produzida
substancialmente nos países do chamado “primeiro mundo” (detesto esta expressão, é tão
ridícula quanto “primeira dama”) contempla normalmente os produtos culturais para a “elite”
(não só a burguesia, mas também os sofisticados da classe média). Já a literatura brasileira
que conheço está geralmente vinculada aos piedosos e esperançosos propósitos dos devotos
do desenvolvimento sustentável e solidário.
E a cultura popular? Não vou entrar na briga e nas controvérsias sobre o que é popular
ou erudito. Porém faço minhas as palavras de Saldanha (2010) quando diz que a indefinição
dos termos tende invariavelmente a derivar no preconceito, e na criação de hierarquizações
axiológicas de âmbito sociocultural, ou mesmo socioeconômico, excessivamente datadas. Por
isto me socorri em Mascelani (2009) que numa linguagem antropológica diz que no Brasil,
“costuma-se chamar de “arte popular” a produção de esculturas e modelagens feitas por
homens e mulheres que, sem jamais terem frequentado escolas de arte, criam obras de
reconhecido valor estético e artístico.” 6 Para mim também estão incluídos nesta classificação
os artistas cênicos, da escrita e da música. Esta é, pois, a cultura do povo a quem me dedico. É
o resultado de uma interação contínua entre pessoas de determinadas regiões. Nasceu da
adaptação do homem ao ambiente onde vive e abrange inúmeras áreas de conhecimento:
crenças, artes, moral, linguagem, idéias, hábitos, tradições, usos e costumes, artesanato,
folclore, etc. Ainda nas palavras da antropóloga Angela Mascelani:

O universo da arte popular é fecundo e está em permanente movimento. Atravessa


todos os recantos da imaginação e em seu rastro revolve e traz à tona antigas
tradições quase esquecidas, inventa temas nunca antes pensados, colhe novidades no
repertório da vida cotidiana, transforma com frescor o patrimônio de muitas
gerações. No Brasil, seus revigorantes caminhos conduzem a campos praticamente
ilimitados: da música e do cancioneiro aos shows de habilidades e performances; da
literatura de cordel às invenções e bricolages; das festas comunitárias ao folclore; do
teatro às brincadeiras de rua, das artes plásticas ao artesanato. Abrange variada gama
de produções feitas por pessoas que, sem jamais terem freqüentado escolas de arte,
criam obras nas quais se reconhecem valor estético e artístico. Obras que encontram
sentido e, de certa forma, revelam importantes aspectos da cultura em que surgem.
(MASCELANI, 2009, p.12)

Acredito que a arte popular vem sendo gradativamente absorvida, transformada e


canibalizada, pela indústria cultural que, nas palavras de Adorno e Horkheimer (1944 p.37)
ao introduzir a tecnologia viabiliza o atendimento simultâneo a milhões de pessoas impondo a
adoção de métodos automatizados de reprodução e possibilitando que em inumeráveis
lugares, necessidades iguais sejam satisfeitas por produtos padronizados.

La tarea que el esquematismo kantiano había asignado aun a los sujetos la de


referir por anticipado la multiplicidad sensible a los conceptos fundamentales le es

6
Seus autores são gente do povo, o que, em geral, quer dizer pessoas com poucos recursos econômicos, (pouca ou nenhuma
instrução formal) que vivem no interior do país ou na periferia dos grandes centros urbanos e para quem “arte” significa,
antes de mais nada, trabalho. Apesar de fortemente enraizada na cultura e no modo de viver das pequenas comunidades nas
quais tem origem, a arte popular exprime o ponto de vista de indivíduos cujas experiências de vida são únicas. Apresenta os
principais temas da vida social e do imaginário — seja por meio da criação de seres fantásticos ou de simples cenas do
cotidiano — numa linguagem em que o bom humor, a perspicácia e a determinação têm lugar de destaque. (MASCELANI,
2009).
6

quitada al sujeto por la industria. La industria realiza el esquematismo como el


primer servicio para el cliente. Según Kant, actuaba en el alma un mecanismo
secreto que preparaba los datos inmediatos para que se adaptasen al sistema de la
pura razón. Hoy, el enigma ha sido develado. Incluso si la planificación del
mecanismo por parte de aquellos que preparan los datos, la industria cultural, es
impuesta a ésta por el peso de una sociedad irracional - no obstante toda
racionalización-, esta tendencia fatal se transforma, al pasar a través de las
agencias de la industria, en la intencionalidad astuta que caracteriza a esta
última. Para el consumidor no hay nada por clasificar que no haya sido ya
anticipado en el esquematismo de la producción. El prosaico arte para el pueblo
realiza ese idealismo fantástico que iba demasiado lejos para el crítico. Todo viene
de la conciencia: de la de Dios en Malebranche y en Berkeley; en el arte de masas,
de la dirección terrena de la producción. No sólo los tipos de bailables, divos, soap-
operas retornan cíclicamente como entidades invariables, sino que el contenido
particular del espectáculo, lo que aparentemente cambia es a su vez deducido de
aquéllos. Los detalles se tornan fungibles. (ADORNO; HORKHEIMER, 1944 p.40)

Segundo Adorno (1999), na Indústria Cultural, tudo se torna negócio. Enquanto


negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada
exploração de bens considerados culturais É aí que mora o problema, posto que a indústria
cultural na busca da maximização dos lucros preconiza a produção em massa. Nisto padroniza
o “produto cultural” e prostitui o criador. Fazendo isto mata a criatividade que deriva da
espontaneidade posto que dispensa o fluxo de experiências e movimentos na relação com o
meio.
Em 1978, o eminente antropólogo e etnólogo francês Claude Lévi-Strauss, em seu
clássico Myth and Meaning, dizia com grande propriedade:

Provavelmente, uma das muitas conclusões que se podem extrair da


investigação antropológica é que a mente humana, apesar das diferenças
culturais entre as diversas frações da Humanidade, é em toda a parte uma e
a mesma coisa, com as mesmas capacidades. Creio que esta afirmação é
aceite por todos. Não julgo que as culturas tenham tentado, sistemática ou
metodicamente, diferenciarem-se umas das outras. A verdade é que
durante centenas de milhares de anos a Humanidade não era numerosa na
Terra e os pequenos grupos existentes viviam isolados, de modo que nada
espanta que cada um tenha desenvolvido as suas próprias características,
tornando-se diferentes uns dos outros. Mas isso não era uma finalidade
sentida pelos grupos. Foi apenas o mero resultado das condições que
prevaleceram durante um período bastante dilatado. Chegados a este
ponto, não queria que pensassem que isto é um perigo ou que estas
diferenças deveriam ser eliminadas. Na realidade, as diferenças são
extremamente fecundas. O progresso só se verificou a partir das
diferenças. Atualmente, o desafio reside naquilo que poderíamos
chamar a supercomunicação – ou seja, a tendência para saber
exatamente, num determinado ponto do mundo, o que se passa nas
restantes partes do Globo. Para que uma cultura seja realmente ela
mesma e esteja apta a produzir algo de original, a cultura e os seus
membros têm de estar convencidos da sua originalidade e, em certa
medida, mesmo da sua superioridade sobre os outros; é somente em
condições de subcomunicação que ela pode produzir algo. Hoje em dia
estamos ameaçados pela perspectiva de sermos apenas
consumidores, indivíduos capazes de consumir seja o que for que
venha de qualquer ponto do mundo e de qualquer cultura, mas
desprovidos de qualquer grau de originalidade. (LÉVI-STRAUSS, 1978,
p.31/32) Grifos nossos.
7

Onde floresce a economia cultural popular

É na informalidade que nasce, cresce e morrem a maioria dos protagonistas da


economia cultural popular. No seio deste gigante invisível operam milhões de despossuídos,
visto não haver restrições de entrada; o aporte de recursos é mínimo e normalmente de origem
doméstica; a propriedade dos instrumentos de produção, quando existe, é individual ou
familiar; as operações ocorrem em pequena escala sendo os processos produtivos intensivos
em trabalho e tecnologia adaptada; a mão de obra é qualificada externamente ao sistema
escolar formal; a atuação ocorre em mercados competitivos e não regulados; possui
tendências fortemente anarquistas por rejeitar a autoridade governamental e seus ditames
burocrático-fiscalistas.
O segmento reúne atividades que empregam tecnologias simples ou rudimentares, que
alcançam baixa produtividade, entre as quais se inclui uma ampla gama de unidades
produtivas que vão desde a pequena oficina de trabalho manual até o ponto de venda
ambulante, agrupando, por um lado, trabalhadores que atuam numa modalidade de
contratação não legal e, por outro, aqueles que se auto-empregam em atividades de serviço de
pouca qualificação, não sendo nítida a divisão entre capital e trabalho e, portanto, a
configuração de classes, no seu interior, não obedece à configuração de classes predominantes
nos setores modernos.
O retrato da informalidade modifica-se continuamente no que se refere à
variedade de atividades que abrange.

“A informalidade é um campo criativo, que infiltra a sociedade econômica


formalmente organizada, pondo-a contra seu próprio tabu da eficiência. Famílias e
pessoas sobrevivem na informalidade, quando não conseguem sobreviver no
mercado formal de trabalho. Assim, a informalidade é continuamente infiltrada
pelas transformações técnicas da economia formal, que em grande parte realiza uma
burocratização do saber” (PEDRÃO, 1998, p.19).

Nos países do apelidado “Terceiro Mundo” a informalidade e a pobreza são


fenômenos vinculados, em grande parte devido ao caráter errático das rendas geradas pelo
setor e pela precariedade das condições de vida e trabalho dos seus agentes e associados aos:
“(...) segmentos mais pobres da população ocupada sem levar em conta as formas de
inserção do trabalhador na produção, (...) se por conta própria ou assalariado -, a
forma de organização do estabelecimento produtivo e sua inserção no mercado de
bens e ou produtos e o tecido heterogêneo e diversificado do setor informal”
(CACCIAMALI, 1991, p.125).
O segmento informal é dito subordinado no sentido de que seu espaço econômico é
delimitado pela dinâmica do capital, sendo continuamente redefinido. As atividades informais
atuam em espaços “ainda não ocupados, abandonados, criados e recriados pela produção
capitalista” (CACCIAMALI, 1983, p. 608), caracterizando-se, pois, por uma inserção
intersticial na estrutura econômica. Trata-se de ressaltar a aderência do segmento à dinâmica
do capital, sem resvalar para o mecanismo do atrelamento funcional.
O setor informal tende a guiar-se por uma lógica empresarial diversa da racionalidade
econômica formal, baseada no retorno sobre o capital investido, na taxa de lucro e na
acumulação (reinvestimento). Entende-se, então, que o setor informal possui, sim, uma lógica
própria de atuação no mercado. É a lógica da sobrevivência que consiste na busca de um
retorno financeiro de curtíssimo prazo priorizando a manutenção das necessidades básicas da
família.

Trocando em miúdos: a metamorfose econômica do carnaval.


8

A produção cultural baiana transita entre a informalidade e a formalidade. Nesta


passagem a economia cultural cede lugar à indústria cultural. Parte dos artistas se transforma
em empresários, outra parte em assalariados e muitos desaparecem.
Na análise deste fenômeno recorremos a Singer (1980), que observou serem o
progresso e a miséria produtos do mesmo processo, que consiste na penetração e na expansão
do capitalismo num meio em que predominavam outros modos de produção. Trata-se de um
processo de transformação estrutural, que evolui ao longo do tempo. O capital penetra em
determinados ramos de atividade em que possui maiores vantagens em relação ao modo
de produção preexistente, revolucionando os métodos de produção e introduzindo
outras relações de produção. Ou então, ele surge mediante a implantação de atividades
novas, que só ele é capaz de suscitar. Cria-se, então, um inter-relacionamento dinâmico
entre o segmento capitalista e os outros modos de produção que são postos à disposição
do capital, transformando-se, por exemplo, em reservatório de mão de obra.
Aí está exatamente o que vem ocorrendo com o Carnaval, a maior manifestação da
cultura popular baiana
Como demonstram as estatísticas oficiais, o carnaval baiano transformou-se num
mega-empreendimento capitalista, onde as chances de geração de micro e pequenos negócios
estão sendo gradativamente eliminadas pela maior capacidade de articulação e
competitividade de diversos grupos de interesse internos e externos à festa.
Os conhecidos efeitos de Hirschman (1958) “para trás” (backward linkage effects) e
“para frente” (forward linkages effects) que a festa produzia em relação a uma miríade de
atividades culturais que gravitava em seu entorno vão gradativamente se transferindo para
outras regiões (Sudeste) onde um parque manufatureiro com custos competitivos (escala)
possibilita um suprimento mais eficaz. E aí desaparece a fonte local de renda para artesãos
dos mais diversos segmentos e outros produtores culturais. Veja, por favor, a figura 1,
perto daqui.
Em 2003 surgiu na Bahia uma brilhante idéia de organizar os micro e pequenos
empresários do carnaval para que suprissem com mais eficácia e produtividade as demandas
dos grandes blocos carnavalescos e dos foliões em geral, tratava-se da fábrica do carnaval.
Nas palavras de Eliana Dumet que, com o finado Nilo Coelho de Araújo (grande técnico), foi
a autora do projeto: a fábrica funcionaria como uma oficina de criatividade na área de
instrumentos (principalmente percussão), fantasias, elementos decorativos etc. e ofereceria
cursos voltados para a formação e gestão de bandas com músicos que soubessem ler partitura.
Hoje em dia, qualquer tocador de pandeiro ou atabaque, de qualquer esquina, forma uma
banda para tocar de ouvido. As partituras, na Bahia, perderam a finalidade. A fábrica
funcionaria o ano inteiro e seria uma grande geradora de emprego e renda para a
população da cidade. A idéia era também a de criar núcleos nos bairros, nos anos
seguintes, e em cada um deles os trabalhadores cadastrados seriam do próprio bairro. Esta
idéia de Dumet foi copiada no Brasil por inúmeros estados, principalmente no Sudeste. Sabe-
se que as “fabricas” estão funcionando muito bem no Rio de Janeiro e São Paulo. A da Bahia,
criada com “pompa e circunstância” em 2006, fechou sem maiores explicações. Faltou
interesse e competência ao poder público para organizar grupos complexos, administrar
conflitos e conciliar interesses. A demanda que seria desta fábrica acabou direcionada para a
região Sudeste.
9

Nossa tese é a de que o Carnaval da Bahia é uma festa negra7 e, como tal, fortemente
influenciado pela cultura africana. Sendo assim não se pode deixar de falar na negritude e
pobreza da cidade.

Figura 1 – Cadeia produtiva do carnaval baiano.


Fonte: O autor.
Salvador é uma cidade negra e pobre, sendo pobre porque é negra. Nas raízes desta
pobreza estão os esforços mobilizados pela filosofia e evangelização da Igreja Católica, que ao
longo dos séculos sempre se postou a serviço das classes dominantes. Objetivando trazer os
negros para os “braços de Jesus” através da catequese e, de tabela, amansá-los para as senzalas
canavieiras, os zelosos padres jesuítas que compactuaram cinicamente com uma escravidão
cruel, não conseguiram suprimir sua cultura ancestral, conservada e transmitida de geração a
geração através da tradição oral maior parte do tempo encapuzada no sincretismo. Muito grave,
porém foi que, como sequela, os fez conformarem-se com o pouco, num determinismo fatalista
que os levou a aceitarem pacificamente a pobreza como sendo uma condição, um destino, “uma
sina”, convencidos nas recompensas da eternidade posto que Jesus mandara lhes dizer que era
mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus.
Atualmente quem perpetua estruturalmente o quadro é o circo montado pela indústria
cultural
A movimentação negro-mestiça está calcada no sentido genérico de “raízes africanas”.
Essa referência a uma origem ancestral procura afirmar uma memória coletiva localizada
numa África, muitas vezes, mítica e genérica. O que é apropriado do vasto repertório africano
são elementos como a religião, a gastronomia, a música-dança, a moda expressa na
indumentária e nos penteados, em variadas formas de usar os cabelos-sinais diacríticos que

7
A extrema direita irá discordar desta afirmativa. Não estou dizendo que os negros criaram o carnaval. Uma festa que
segundo Cardoso (2010) surgiu no Egito quatro mil anos antes de Cristo e foi trazida para o Brasil como o Entrudo
português. Quem acompanha – analiticamente – o carnaval baiano pode perceber claramente a influência negra e mística no
carnaval baiano com os Filhos de Ghandi, Ylê Ayê, Olodum, Timbalada e outros menos votados.
10

procuram estabelecer o contraste através da imagem de africanidade (GUERREIRO, 2000).


Cada um desses elementos apresenta um vasto potencial econômico.
Penso que a exploração colonialista do negro, com todas as suas trágicas
consequências, impediu que ele se inserisse no processo de acumulação capitalista européia
ocorrido na Bahia, fazendo com que, sincreticamente, assumisse uma lógica econômica
própria. A religião negra, praticada nos numerosos terreiros de Salvador foi, e continua sendo,
a esfera sociocultural em que é mais evidente a compreensão ingênua ou crítica, das
condições alienadas da sua vida e o ponto de partida de organização da sua consciência social.
Assim, a religião, em conjunto com a magia, o folclore e a música reteve as características
africanas, mais do que a vida econômica.
Segundo eu mesmo [Spinola (2003)] é neste contexto que o negro pratica a arte da
sobrevivência com alegria. E é aí que ele desponta inovador e empreendedor. Com acesso
deliberadamente limitado à instrução básica (até o século XIX a educação dos negros era, por
lei, proibida na sociedade escravagista) e muito menos à científica e tecnológica, o negro
baiano valorizou, da sua herança cultural, o corpo e os sons, somatizando a dor da
discriminação e da injustiça social a que foi condenado, num processo atávico de defesa,
subconsciente e coletivamente percebido, inovando, adaptando e empreendendo na dança, na
música e no carnaval que passaram a constituir novos modos de produção, resistentes à
racionalidade econômica e cultural das classes dominantes.
Mesmo com a mudança de postura da elite intelectual negra a partir da década de
1960, com os movimentos da consciência negra pipocando pelo mundo a fora, esta alternativa
genuína de subsistência começou a ser gradativamente subtraída pela ação de diversos grupos
de interesse internos e externos à festa carnavalesca. Isto é o que se constata ao observarem-se
os rumos que assume esta festa eminentemente popular. Percebe-se o desenvolvimento de
uma elite negra (mas de alma e preconceitos brancos (FANON, 1983)) cooptada pela
indústria do entretenimento que, utilizando um discurso racial de apologia aos negros, na
realidade apenas os manipula para satisfazer seus projetos de acumulação. E, neste plano, é
apoiada tacitamente pelo sistema político dominante (principalmente por aqueles interesses
vinculados à mídia, notadamente à televisiva) que, numa apropriação indevida do espaço
público, gradativamente expulsa da folia o pequeno negociante do carnaval, os pequenos
blocos, o vendedor ambulante etc.
Esta postura é reforçada no plano governamental pois, segundo Olivieri (2002) apud
Doria (2003) “com a criação das leis de incentivo fiscal à cultura (...) o Estado brasileiro
passou a atuar apenas como facilitador da ação cultural”. Entenda-se: o governo federal
se estruturou apenas para facilitar que portadores de direitos de saque sobre o Tesouro da
União, por força da renuncia fiscal, pudessem agir no mercado como compradores de bens e
serviços culturais “segundo os seus interesses publicitários, promovendo a subordinação
do fazer cultural ao marketing institucional das corporações. No final do processo, uma
prestação de contas formal encerra o controle público, e é só.” (DORIA, 2003)
Várias foram as consequências desse laissez-faire cultural. A primeira foi
substituir o artista, o criador de cultura, por empresários culturais na
apropriação dos recursos públicos. Não é mais quem escreve um livro, quem
canta, quem compõe, quem toca, quem pinta, o beneficiário imediato dos
recursos financeiros: é uma empresa ou uma associação, uma pessoa jurídica
constituída com o precípuo objetivo de gerenciar a produção cultural como um
negócio. O impacto dessa mudança foi profundo numa economia onde o mercado de
consumo, por ser limitado, elitizado, segmentado e especializado, se baseava
essencialmente no artesão. O artesanato cultural era o aspecto contraditório da
produção cultural brasileira que o atual governo resolveu “pelo alto”: ao mesmo
tempo em que expressava a desorganização e fragilidade do setor ele garantia
minimamente uma presença difusa da produção cultural no tecido social. Pequenos
grupos, produtores isolados, ou foram cooptados por estruturas empresariais
11

ou simplesmente desapareceram por absoluta falta de recursos a irrigar suas


atividades localizadas e descontínuas. O artesão foi substituído pelo produtor
cultural, essa figura nova, mista de intérprete do gosto geral da sociedade e dos
complexos cálculos da relação custo-benefício que estavam fora do alcance dos
artesãos culturais. (DORIA,2011) (Grifos nossos).

Assim o carnaval baiano deixou de ser uma festa popular transformando-se em show
business. E, neste plano, é conduzido pelo poder público que, por conta de um processo
organizacional dos palcos da cidade, vai tornando, gradativamente, mais difícil a exploração
da folia pelos pequenos artistas e produtores culturais.
Em síntese, a elite artística, hoje milionária e integrada ao show business nacional,
notadamente o televisivo, não somente monopoliza os espaços físicos da festa, como absorve
grande parte dos patrocínios e dos benefícios fiscais como os da Lei Rouanet. Conclusão a
qualidade artística musical baiana vem declinando sensivelmente, dada a falta de inspiração e
de criatividade que leva os compositores atuais a descambar para a “mesmice” e para uma
produção de péssimo gosto e qualidade. Justiça se lhes faça o estímulo e a pressão que sofrem
da indústria fonográfica e dos empresários do ramo que insistem na exploração de uma
temática vulgar, mas de grande aceitação pelo povão.
Agindo em conluio, consciente ou não, artistas já famosos – os mesmos donos da festa
que brilham todos os anos – empresários do ramo, a mídia e a indústria fonográfica,
restringem o acesso à criação de novos valores que não encontram espaço para divulgar a sua
produção.
Assim sendo elimina-se as chances de renovação artística e cultural. Na ânsia pelo
lucro rápido, a indústria cultural não quer perder tempo investindo na formação de novos
valores.
Alguns produtores artísticos acrescentam que o fácil acesso aos equipamentos de
gravação e reprodução tem feito com que muitos jovens – com talento ou não – dispensem a
orientação técnica de produtores experientes e se lancem no mercado de forma atabalhoada
acabando por se queimar precocemente ou a vegetar em um limbo do qual dificilmente sairão.

Candomblé informatizado & orixás8 cibernéticos

Sendo o carnaval, na sua essência, uma festa predominantemente negra, o Candomblé


tem tudo a ver, por constituir o elemento dominante na formação da cultura popular de
Salvador, uma cidade que contava 1 961 256 pretos e pardos no total de 2 675 656 habitantes
em 2010, (IBGE, 2011).
Segundo pesquisa deste autor nos registros da Federação dos Cultos Afro, constatava-
se a existência de 617 terreiros funcionando na cidade do Salvador no ano de 2005. Entre seus
responsáveis predominavam os descendentes da nação Ketu (Yorubá) que possuíam 414
terreiros, ou 67% do total registrado. Em segundo lugar apareciam os descendentes da nação
Angola (Bantos) com 166 terreiros ou 27% . Em menor número apareciam os oriundos da
nação Ijexá (também dos Yorubás) , com 20 terreiros, equivalentes a 3%; seguidos dos jegê
(daomeanos) com 14 terreiros, ou 2%; e apenas 2 da nação Congo (0,3%). Este número é
discutível porque muitos terreiros fecham e não dão baixa do registro e outros surgem e não
se registram. Tomando-se por base estes dados e considerando-se que a cidade possui cerca de

8
A rigor seria Orisá ou Orixá porque em Yorùbá não existe plural formado pela adição da letra "s" ou quaisquer outras
modificações das palavras, como no Idioma Português. O plural é formado pela adição dos pronomes. Como a palavra foi
aportuguesada seguiremos as regras gramaticais do idioma português.
12

20 mil logradouros registrados pela Prefeitura, observa-se que os terreiros ocupam um espaço
equivalente a apenas 2,7% dos logradouros da cidade.
O candomblé, embora com adeptos em todos os extratos sociais, tem a grande
maioria de seus membros entre as camadas pobres da população sobre a qual exerce grande
influência, e um papel dinâmico de estímulo a certas atividades econômicas, particularmente
o comércio e o artesanato. Os ricos patrocinam, compram a proteção dos Orixás. São os Obás.
No seu culto as divindades, se revestem de rica e complexa simbologia que, na prática, se
expressa em vestimentas, adornos os mais diversos e objetos rituais, próprios a cada
divindade. Existe ainda o emprego de sementes, ervas, folhas, plantas em diversas cerimônias
e rituais. Todos esses elementos têm a peculiaridade de obedecer a certos requisitos rituais, o
que implica na observância de procedimentos consagrados pela liturgia na sua produção,
levando a que sua oferta não seja afetada por qualquer tipo de modernização9. Assim sendo, o
candomblé é responsável direto pelo emprego de artesãos que produzem os adornos e objetos
rituais; costureiras encarregadas das vestimentas e produtores e comerciantes dos diversos
gêneros e materiais antes citados. Tendo conquistado o reconhecimento e o respeito da
sociedade em geral, o candomblé amplia o seu prestígio, verificando-se, nos últimos anos, a
disseminação do uso de muitos de seus adornos (pulseiras, colares, etc.) por pessoas e turistas
sem qualquer vínculo com a prática ou compromisso com a fé religiosa (SPINOLA, 2006)
Pode-se afirmar que a existência e a força do candomblé em Salvador constituem um
fenômeno peculiar de nossa sociedade, com reflexos evidentes e poderosos na vida da sua
economia e cultura popular, particularmente sobre atividades desenvolvidas em bases
informais.
Esta influência ocorre e é transmitida de forma sutil, dissimulada e misteriosa. Existe
um silêncio, um pudor cuidadoso e uma reserva atávica que remonta aos tempos da repressão,
do feitor e da polícia. Este é um mundo onde não existe o sim ou o não absolutos. Predomina
o talvez. E às vezes um sim pode significar um não e o não um sim. Definitivamente este é
um mundo diferente do ocidental. Nele um alemão, ou um paulista, pirariam.
A comercialização dos produtos e serviços referentes a esta religião é geralmente
clandestina e as transações são feitas por numerosos atravessadores. São vários os
fornecedores para alguns produtos e, para outros, a situação é de monopólio ou oligopólio
comercial por se tratar de itens específicos.
Porém os cultos afro estão ameaçados de extinção ou degradação, sendo absorvidos
pela indústria cultural numa escala crescente. A divulgação da sua prática e dos seus produtos
vem alastrando-se na rede mundial de computadores através de uma imensa quantidade de
sites que comercializam objetos e serviços dos mais variados pela Internet, quase todos sem
demonstrar preocupação com a veracidade das informações que propagam, misturando o
candomblé com umbanda, macumba e espiritismo e outros divulgando propositadamente
informações falsas para adquirirem vantagens comerciais. Tudo isto vem abastardando o culto
e reduzindo a sua capacidade cultural de influência.10
Percebe-se que a divulgação do candomblé pela internet coincide com a sua destruição
pela modernidade. A expansão urbana tem levado à aquisição das áreas dos terreiros pelas
grandes imobiliárias. Os Orixás precisam de espaço, o Ylê Axé Apó Ofanjá, por exemplo, é
dono de uma área que mede cerca de 39.000 m2. Porém a redução de áreas verdes da cidade

9
Se você ouvir a explicação de um Babalorixá ou Yalorixá autênticos de como se faz uma vestimenta, prepara uma comida
ou um banho de “descarrego”, um patuá ou de como se consagra um atabaque, nunca mais abriria uma página sobre o
assunto na Internet.
10
Caso o leitor queira conhecer um candomblé genuíno, puro, visite o Ilê Axé Opó Afonjá, tombado pelo IPHAN, e um dos
templos mais importantes das religiões de matriz africana no mundo. Governado por yalorixás, este Candomblé rompeu com
o sincretismo, eliminando a relação dos seus santos com os santos católicos. Estiveram ou estão vinculados a ele
personalidades como Jorge Amado, Vivaldo da Costa Lima, Antonio Olinto, Pierre Verger e Gilberto Gil, entre outros.
13

vai reduzindo o espaço para a prática, o que leva a situações esdrúxulas como as de
candomblés funcionando nos espaços restritos de apartamentos.
E os Orixás estão gradativamente perdendo a força original.

Balagadans, brinco de ouro, colar no pescoço e patuás

O artesanato de Salvador também sofre uma forte influência dos cultos afro.
Verdadeiras obras de arte popular são produzidas em cerâmica, madeira e metal. A Feira de
São Joaquim, o Pelourinho e o Mercado Modelo são os maiores centros de comercialização
de artesanato religioso da capital baiana.
Os patuá11, que revelam a fé do povo negro baiano, são comercializados através das
miniaturas de Orixás cerâmicas, quadros, esculturas, pulseiras e colares de contas, e metal,
búzios, contreguns12 etc. Entre os produtos artesanais que merecem destaque está a fitinha do
Senhor do Bonfim, que é utilizada sincreticamente também por membros do candomblé.
Os materiais utilizados nos cultos afro-brasileiros vêm sendo modificados pela
introdução de técnicas e materiais novos, como tecidos sintéticos, metalóides, linhas de nylon,
contas plásticas e de resinas, galvanização de metais, que são amplamente usados por
artesãos, possibilitando a produção de objetos em maior escala, o que barateia o produto final.
As fitinhas do Senhor do Bonfim, por exemplo, deixaram de ser fabricadas em tecido
de algodão substituído pelo nylon. Seu uso obedece a um rito que exige a benção da fita. Ao
amarrá-la no pulso o crente deve dar três nós. Para cada nó faz um pedido. Quando a fita se
arrebenta é porque os pedidos são atendidos. Segundo alguns crentes, confeccionadas em
nylon, as fitas se tornaram mais resistentes e perderam o seu efeito, pois, neste novo material
custa muito se romper no pulso do fiel. É o que dá misturar tecnologia com religião. As fitas
são fabricadas em São Paulo...
Em geral, lucros elevados são obtidos no processo de comercialização dos objetos
confeccionados pelos artesãos religiosos. Os padrões têm sido apropriados à revelia de
seus criadores. Na maioria dos casos o controle desse processo escapa aos artistas, que
muitas vezes, costumam receber quantias quase simbólicas por seu trabalho de criação.
Os artesãos baianos não recebem qualquer apoio governamental. Estão sendo expulsos
do mercado pelos concorrentes oriundos de outros estados e da China, que inunda o mercado
com réplicas, vendidas a preços bastante inferiores.

Rum, Lé e Rumpi13, do sagrado ao profano

No embalo da sonoridade, Salvador e o Recôncavo eram conhecidos pela produção de


instrumentos musicais. Dizia-se até que as empresas de aviação que serviam à cidade
deveriam mudar o design e o tamanho dos porta bagagens das cabinas dos seus aviões para
melhor acomodarem os berimbaus que os turistas em retorno conduziam.
Tudo isto acabou, as fábricas localizadas em São Paulo ocuparam o mercado e vendem
berimbaus pela Internet em condições vantajosas para os consumidores.
Os fabricantes locais de berimbaus e de outros instrumentos de percussão estão
dispersos pelos subúrbios da cidade, trabalhando artesanalmente em fabriquetas de “fundo de

11
Amuleto. Bentinho.
12
Um dos objetos mais populares do candomblé é o contregun, um bracelete de palha que se coloca em torno do pulso ou
braço, que serve para afastar, após uma cerimônia fúnebre do candomblé, a alma do morto, que pode possuir aqueles que
assistem à cerimônia. Então se usa esse objeto para proteger as pessoas que ali estão, mas hoje em dia, caiu no gosto popular
e foi disseminado o seu uso pelos baianos e turistas que muitas vezes nada têm a ver com a religião e não sabem o que estão
fazendo.
13
São os três atabaques sagrados que comandam os cultos do Candomblé.
14

quintal”, na maioria das vezes em condições as mais rudimentares possíveis. Os equipamentos


utilizados são pouco sofisticados (usuais de carpintaria), muitos fabricados ou adaptados pelos
próprios artesões e as instalações físicas também são extremamente precárias e insalubres.
O trabalho é realizado em família, numa tradição que passa de pai para filho. Utilizam
como matéria-prima restos de madeira obtida na construção civil (num autêntico mercado de
sucata). A pele dos instrumentos é originária do interior do Estado, sendo muito utilizado o
couro de bode e de cobra. A cidade de Araci é o ponto de partida de vários fornecedores,
sendo que a intermediação é muito grande havendo o caso de existirem três intermediários
entre o produtor e o fabricante. O nível de instrução beira o analfabetismo e a propensão
associativa é inexistente (no que pouco difere das camadas mais esclarecidas da população).
Vêem com profunda desconfiança e ceticismo a possibilidade de receberem algum tipo de
ajuda.A Fazenda Garcia, a Baixa do Fiscal, o Pelourinho e Periperi são alguns dos locais onde
ficam estes artesanatos. Alguns comerciantes do Mercado Modelo também possuem fabricos
localizados em outros bairros da cidade.
Setenta por cento dos fabricantes de instrumentos que entrevistamos, trabalham na
informalidade, pois não possuem qualquer tipo de registro junto aos órgãos públicos
competentes. Segundo eles, o principal motivo para que não ocorra uma formalização é o
receio de pagar impostos, de sofrer qualquer tipo de fiscalização e serem obrigados a pagar
multas ou de terem seus estabelecimentos fechados pelo governo. Ademais, não vêem
qualquer vantagem em seres formais.
Os pequenos produtores alegam que a margem de lucro do setor é muito baixa,
tornando-se insustentável a legalização de alguns deles. Para se ter idéia, a maioria possui
uma receita mensal de até R$ 5.000,00 e outra parcela, também significativa, não ultrapassa a
receita mensal de até R$ 3.000,00. Desta forma, quando os custos são pagos, o que se obtêm
de resultado é insignificante. Estes valores de receita poderiam ser muito maiores se não
existisse uma quantidade exorbitante de atravessadores no sistema, que se apropriam da maior
parte do lucro gerado na comercialização final dos instrumentos. Ver tabela 1. O mercado
funciona na forma de um oligopsônio. Os grandes compradores (comerciantes) muitas vezes
recebem os produtos em consignação (só paga ao produtor depois que vende, além de pagar
com atraso) e costumam fixar os preços que pagarão. É pegar ou largar. Os artesãos não
encontram alternativa. O Instituto Mauá que é a instituição responsável pela política de
fomento e preservação do artesanato da Bahia, não dá conta do recado. Carente de recursos
humanos qualificados e de recursos financeiros o órgão transforma-se num expectador
privilegiado do processo.
Cerca de sessenta por cento dos produtores não possuem ponto de vendas e, por isto,
vendem para lojas localizadas em pontos de grande passagem turística, como o Pelourinho, o
Mercado Modelo, o shopping Barra e o aeroporto. Segundo dados coletados por Spinola
(2006), a maior parte das vendas ocorridas no Mercado Modelo, são para turistas. Os outros
mercados também possuem as mesmas características. Assim sendo, os instrumentos musicais
aqui fabricados possuem como destino final os outros estados da federação sendo também
levados por visitantes estrangeiros para diversos países14. Estes bens culturais possuem uma
demanda sazonal que atinge seu pico no verão, quando a Bahia recebe o maior número de
visitantes.
As grandes lojas que atuam no mercado local de instrumentos musicais são supridas
por instrumentos fabricados fora do estado procedentes em sua maior parte da região Sudeste
e do exterior. Neste caso, predominam verdadeiras grifes estabelecidas por marcas que

14
Constatou-se na pesquisa de campo a existência de uma pequena fábrica na Baixa do Fiscal que tinha franceses como
clientes. Periodicamente faziam encomendas e levavam quantidades razoáveis de produtos para a França (Marselha).
15

conferem status aos seus possuidores. Grandes músicos brasileiros poderiam também usufruir
a qualidade sonora dos instrumentos baianos, auxiliando o crescimento e a profissionalização
do setor. Porém, isto não ocorre, pois as grandes fábricas produtoras, muitas vezes utilizando-
se do know how baiano, acabam produzindo instrumentos em série, com qualidade sonora um
pouco inferior, porém padronizados, o que acaba influenciando a decisão de compra dos
músicos. Ademais, as grandes fábricas de percussão possuem ampla vantagem de venda sobre
os pequenos produtores locais devido a sua associação com as grandes lojas de instrumentos
do Brasil.

Tabela 1 – Relação preço/custo de alguns instrumentos musicais em 2006.

Denominação Preços Margem (%)


Mercado Modelo (A) Pelourinho (B) Custo Fábrica (C) A/C B/C
Berimbau Gunga 25 23 15 166,67% 153,33%
Berimbau Viola 25 23 15 166,67% 153,33%
Berimbau Médio 25 23 15 166,67% 153,33%
Bongô 8 9 5 160,00% 180,00%
Atabaque (lé) 75 62 40 187,50% 155,00%
Agogô 12 10 6 200,00% 166,67%
Ganzá 5 5 2 250,00% 250,00%
Cabuletê 5 5 3 166,67% 166,67%
Pau-de-chuva 10 8 5 200,00% 160,00%
Pandeiro 9 6 5 180,00% 120,00%
Xequerê 35 29 15 233,33% 193,33%
Bacurei 25 20 13 192,31% 153,85%
Triângulo 25 20 10 250,00% 200,00%
Afoxé 15 12 8 187,50% 150,00%
Jebê 0 400 50 0,00% 800,00%
Kalimba 10 8 4 250,00% 200,00%
Kechada 25 20 12 208,33% 166,67%
Xequerê 35 29 15 233,33% 193,33%
Pífano 15 10 3 500,00% 333,33%
Apito 12 8 3 400,00% 266,67%
Maraca 15 10 7 214,29% 142,86%
Berrante 70 70 25 280,00% 280,00%
Arpa 50 50 30 166,67% 166,67%
Baculete 7 5 4 175,00% 125,00%
Timbal 35 30 20 175,00% 150,00%
Tchimba 35 30 15 233,33% 200,00%
Mini-Tchimba 20 15 10 200,00% 150,00%
Kaxixi 12 10 5 240,00% 200,00%
Fonte: Pesquisa do autor

Segundo os principais estabelecimentos comerciais de Salvador, especializados em


instrumentos musicais, existem poucas possibilidades de venderem produtos locais pela
absoluta falta de legalização dos fabricantes. Para mim isto é desculpa para esconder o
preconceito.
16

Apenas uma loja adquire no mercado produtor local os aguidá15, numa quantidade
média de cem unidades mensais. Admitem, contudo, que se superado este problema de
legalização e investindo-se em tecnologia será vantajosa a comercialização, notadamente dos
instrumentos de percussão
Assiste-se, assim, ao gradativo desaparecimento dos grandes artesãos locais que desistem de
dar continuidade ao ofício, preparando sucessores, pois inclusive a maioria dos seus filhos e
netos não manifesta interesse pela atividade sendo atraídos por outras mais interessantes e
promovidas pela mídia.
Mas, nem tudo está perdido, como diz o povão cuja esperança não morre, “quando
Deus fecha uma porta, abre uma janela”. Registra-se que alguns blocos como o Olodum, o
Araketu, a Timbalada, o Ilê Aiyê e o Malê de Balê , além da Banda Didá, “retrabalham”
alguns instrumentos de percussão tradicionais, dotando-os de adereços que os adequam às
suas peculiaridades.
Observe-se que os instrumentos de percussão podem ser obtidos com os mais diversos
materiais, desde que estes sejam tocados com as mãos ou baquetas. Todos estes blocos
possuem escolas de percussão realizando um trabalho de cunho social, retirando crianças das
ruas, e ao mesmo tempo utilitário, por preparar novas gerações para as suas bandas A
Pracatum, de Carlinhos Brown, é uma escola de percussão. Ensina as crianças a tocar. Brown
é um músico criativo que inova constantemente, de forma heterodoxa, (adoro este termo pela
forma de ser que expressa) fabricando os mais inusitados instrumentos de percussão. Isto não
quer dizer que estes possam ter cunho comercial em nível de escala. Admite-se, contudo, a
hipótese de que, deste processo criativo, possam aparecer alguns novos instrumentos que
venham a ser produzidos em massa e se constituam num sucesso de mercado, como tantas
coisas que surgem na Bahia. Afinal, onde há vida sempre sobra esperança.

Fim de festa

Todos sabem que as atividades turísticas estabelecem uma forte relação entre a cultura
e o mercado. E, na cidade do Salvador, dona de uma marcante personalidade cultural isto não
é diferente. Por isso mesmo o turismo cultural é uma prioridade na velha capital baiana que já
mudou do patamar de turismo de demanda para o de turismo de oferta. Isto, para quem não
entende destas terminologias, quer dizer que passamos do estágio onde os ditos turistas
vinham até nós, nos “descobriam” e ficavam embasbacados, para outra onde somos nós que
corremos atrás deles.
Éramos cantados em prosa e verso por gigantes como Dorival Caymmi, Ary Barroso,
Jorge Amado. A nossa negritude era pintada por Presciliano da Silva, Mário Cravo, Hansen
Bahia, Carybé, Sante Scaldaferri e fotografada por antropólogos como Pierre Verger. E depois,
na obra de poetas mais novos como Capinam, Caetano Veloso e Gilberto Gil e no cinema de
Glauber Rocha. Mas o tempo passa, muitos gigantes morreram e mesmo os poetas mais novos
são hoje sessentões cuja inspiração e criatividade já “brocharam”. O pior é que, depois da
“gloriosa” de 1964, não surgiu uma nova geração de poetas compositores do porte dos
anteriores. Provavelmente devido à brutal queda de qualidade da educação básica e secundária.
No meu tempo os colégios da Bahia, Severino Vieira e o Instituto Normal Isaías Alves, todos
públicos, eram uma referência de excelência. Hoje não são sequer sombras do que foram.
Associe-se a censura da ditadura que castrou toda uma geração; os mecanismos da eletrônica
sonora que tornou muito fácil a produção de besteirol e a urbanização intensiva que desarticulou
todo um modo de vida que servia de base para a construção da velha cultura.

15
Baquetas para os não iniciados. São pequenas varas de madeira com que se percutem os tambores. São sagradas. Antes do
uso devem “dormir com os santos”.
17

Surgiram novos polos turísticos, todo Nordeste se transformou, Recife passou a oferecer
um carnaval bem melhor que o baiano. Apesar da repetição obsessiva de Vassourinha, o frevo
rei, o grau de participação popular nele é bem maior. Fortaleza e Natal são as mecas do turismo
sol e praia. Em toda a região muitas praias, muita arte popular e beleza natural. E também muitas
“sodomas “e “gomorras” para todos os gostos. Assim, passamos para o turismo de oferta.
Temos de correr atrás, pegar o “turista a laço”. Sendo esta argumentação verdadeira é possível
imaginar que, do ponto de vista da atração turística a destruição da herança cultural implica
numa substancial perda de “clientes” e da renda que eles aqui deixam, alimentando a nossa
economia cultural.
Do que falei, o carnaval, no estágio em que se encontra, é um produto de uma política
neoliberal, que vem sendo desenvolvida pela Prefeitura de Salvador desde o governo do PFL
ao do PT. A ideologia ficou no discurso!
A Prefeitura vem preparando os palcos da cidade para que neles prospere uma
indústria cultural que fatura milhões de reais e surja uma nova classe, a do artista-empresário
que acumula fortunas.
Ali se observa uma acelerada concentração da renda em poder de um oligopólio , que
elimina as chances competitivas dos pequenos atores e reduz o espaço de chão da festa para
os “foliões pipocas” que constituem a parcela majoritária do público brincante.
Isso, além de elitizar a festa, está matando a galinha dos ovos de ouro.
Ao romper com suas raízes culturais, ao sufocar a criatividade natural que brota dos
pequenos, ao deixar de ser original, ao ser bitolada pelos parâmetros tecnológicos da mídia, a
festa vai ficando chata, repetitiva e começa a cansar. E aí o público foge. Se não mudarem
rápido vai piorar. Os soteropolitanos fogem da cidade nesta época, cansados do repeteco. A
cidade fica em mãos dos turistas. Não se renovando, e haja criatividade, vai acabar. Quem
viver verá!
Quanto aos instrumentos musicais acredito que a tendência será a de expandir a sua
venda pela Internet. As fábricas da região Sudeste, notadamente São Paulo e Paraná suprirão a
demanda com imbatível qualidade e preço. Viva o capitalismo tupiniquim!
Os nossos artesãos já são poucos, não deixam herdeiros, com o tempo sumirão. Talvez
fique um ou outro excelente para servir de referência.
As festas populares, berços da cultura popular, como falei no início, estão acabando ou
se prostituindo numa baderna de cachaça, sexo e pó. Veja-se a Conceição da Praia que abre o
ciclo de festas baiano. Há muito que Exu assumiu o lugar de Oxum que se mandou e não dá a
ousadia de aparecer por lá. E o restante vai mais ou menos ao mesmo ritmo. Perguntem aos
mais velhos…
Por tudo isto meus nobres (ah que saudade do cordel!) vos conto este conto sem
aumentar um ponto. Manda o Rei meu senhor que me contem outro. Estou concluindo este
relato, questionando se não perdi o meu tempo. Quem teve paciência para ler este texto até o
fim deve ser um poço de tolerância ou um idealista romântico como eu. Todos sem poderes
para interferir ou mudar a situação que descrevi. E aqueles que poderiam fazer alguma coisa,
nunca o lerão. Ou porque são iletrados ou porque os “interesses” são outros…
Assim, estamos naquela situação em relação à cultura popular: se ela correr o bicho
pega, se ela ficar o bicho come.
Não posso fazer mais nada senão sorrir. Sorrir pra não chorar!
18

Referências

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Study-of-Man-and-Civilization
REFLEXÃO SOBRE A ECONOMIA DA CULTURA EM SEUS
ASPECTOS TEÓRICOS E APLICADOS

Claudia Fardin Soares Pereira1


Noelio Dantaslé Spinola 2

RESUMO
Este artigo tem por objetivo realizar uma reflexão sobre a economia e a cultura na
sociedade atual, a partir da observação da importância que a produção cultural tem obtido
em todo o mundo, inclusive no Brasil e na Bahia. Para tanto, são apresentado conceitos
importantes para o entendimento da economia da cultura, aspectos da produção cultural
mundial, nacional e local e o processo de sua organização e funcionamento. Conclui
afirmando que a produção cultural para ser capaz de contribuir de forma decisiva para o
desenvolvimento das nações requer a adoção de políticas públicas sérias e direcionadas,
capazes de articulação e diálogo com os demais setores públicos e privados e
fundamentalmente a comunidade;
PALAVRAS-CHAVE: Economia da cultura. Produção cultural. Financiamento e
Investimento.

ABSTRACT
This article aims to carry out a reflection on the economy and culture in today's society,
from the observation of the importance of cultural production has obtained worldwide,
including Brazil and Bahia. To that end, presented important concepts for understanding
the economy of culture, aspects of global cultural production, national and local, and the
process of its organization and operation. Concludes that the cultural production to be able
to contribute decisively to the development of nations requires the adoption of serious and
targeted public policies capable of articulation and dialogue with other public and private
sectors and fundamentally the community;
KEY WORDS: Economy of Culture. Cultural production. Finance and investment.

JEL CLASSIFICATION: Z1

1 – INTRODUÇÃO
A gente não quer só comida, / a gente quer comida, diversão e arte.
Comida (Titãs)

As atividades oriundas do setor cultural vêm despertando um especial interesse no


debate econômico da atualidade, nos diversos segmentos da sociedade, porque além de ser
responsável pela geração de parcela expressiva de ocupação e/ou emprego e riqueza,
consequentemente também contribui para que seus atores participem do mercado de
trabalho de forma dinâmica e transformadora. Isso se dá porque os bens culturais possuem
um valor diferenciado, adquiridos a partir de seus componentes simbólicos e, quando

1
Economista. Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Salvador – UNIFACS. E-mail:
claudiafardinsp@gmail.com.
2
Economista. Doutor em Geográfica pela Universidade de Barcelona. Professor Titular VI da Universidade
Salvador – UNIFACS. E-mail: spinola.noelio@gmail.com

1
disponibilizados no mercado, adquirem o status de bens econômicos tradicionais, capazes
de gerar renda, emprego e bem-estar social.
Ao se fazer uma análise da sociedade atual é facilmente observável que a produção
cultural vem ganhando crescente destaque como um dos elementos mais dinâmicos e
imprevisíveis de mudança histórica no novo milênio e, então, o seu estudo torna-se
determinante para o entendimento do setor como uma estratégia para o desenvolvimento
local, regional e nacional.
A produção cultural no Brasil, conforme entendimento do Ministério da Cultura
(MINC) envolve, historicamente, os segmentos do artesanato, música, moda, culinária,
dança, literatura, arquitetura, patrimônio, antiquários, design, cinema, artes híbridas e artes
performáticas, dentre outras, e ainda as atividades ligadas à música, como dança, banda,
grupos musicais e corais.
Estas atividades, com presença marcante em todas as regiões do País, indicam que
o Brasil efetivamente possui em grande força em suas manifestações culturais, muitas
vezes associadas a um movimento regionalista e folclórico, ou provenientes de tendências
e movimentos nacionais e internacionais.
A Bahia, e em especial a sua principal cidade e capital – Salvador, são detentoras
de identidade singular, que se manifesta sob forte expressão em inúmeros segmentos
culturais, na música, nas artes cênicas, nas artes plásticas, na arquitetura, no artesanato, na
culinária, na moda e na religião, fato este que acaba por desencadear as muitas atividades
na cidade. (REIS apud GUERREIRO, 2008)
É neste cenário que a produção cultural vem ocupando um lugar de destaque e
ganhando espaço significativo na economia baiana.

2 - ECONOMIA DA CULTURA

Durante o século XX, com o crescimento das indústrias culturais 3, a cultura passa a
ter uma significativa importância no ramo da economia. O progresso tecnológico
proporciona grande impulso à produção massiva na área cultural, principalmente advindo
da introdução de novas tecnologias digitais.
Mais especificamente a partir do pós-guerra, começa a ser sentida, a nível mundial,
a importância da produção, circulação e consumo de bens e serviços culturais nas
economias das nações. Porém, é somente a partir dos anos 1970, que a Economia da
Cultura ganha importância entre os debates e estudos no mundo acadêmico; e,
progressivamente, passa a obter destaque entre os órgãos internacionais de cooperação, que
percebem seu grande potencial na geração de riqueza para os diversos países. (REIS, 2008)
Em 2003, o Banco Mundial estimou a participação da Economia da Cultura em 7%
do PIB mundial, classificando-o como um setor de grande dinamismo e potencial
crescimento. (MINC, 2011)
Essa produção cultural destaca-se como um dos elementos mais dinâmicos e
imprevisíveis de mudança histórica no novo milênio e estudá-la e entendê-la torna-se
determinante e importante estratégia para o desenvolvimento dos países na atualidade.

3
O termo “indústria cultural” foi cunhado por Adorno e Horkheimer, na década de 40, referindo-se ao
movimento de padronização e produção em série dos produtos e serviços decorrentes da atividade cultural. A
cultura é transformada em mercadoria e comercializada em grande escala. (ADORNO & HORKHEIMER,
1985, p. 144) Este termo, então, refere-se ao conjunto de indústrias cuja atividade econômica é a produção de
bens e serviços culturais, com fins de exploração mercantil e geração de lucro.

2
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES 4 - define a
economia da cultura como “um setor estratégico e dinâmico, tanto pelo ponto de vista
econômico, como sob o aspecto social. Baseados em criatividade, ideias, conceitos e
valores geradores de propriedade intelectual, os bens e serviços culturais são ativos
intangíveis que integram a chamada “economia do conhecimento”, base de sustentação das
economias nacionais.” (BNDES,2013). Pensar em cultura é procurar entender o aspecto
criador do indivíduo, com sua liberdade e individualidade que lhe são próprias, sem se
deixar cair no erro de acorrentá-la a regras e conceitos que lhe inserem no mundo limitador
do mercado capitalista, como toda e qualquer mercadoria produzida para o mero fim de
produção de lucro, e, como bem define Spinola (2006),
“Para pensar as potencialidades econômicas da cultura é preciso
alcançar sua dimensão mais complexa para não aprisioná-la nas regras da
indústria cultural. Afinal de contas, os produtos culturais estão enraizados na
vida cotidiana dos povos. Eles são resultado de uma experiência sensível, às
vezes, tramado no anonimato da vida comunitária e esse capital cultural que
agora emerge como mercadoria aponta para um redimensionamento das noções
de centro e periferia. Nesse contexto, as fronteiras perdem densidade para dar
lugar à experiência concreta do pertencimento a um espaço, um bairro, um
território, uma cidade.” (SPINOLA, 2006, p. 25).

O IBGE (2006) também defende que:


O município é o lócus privilegiado do fazer e da fruição cultural, na medida em
que é a instância mais próxima dos “modos de vida” da população. Assim sendo,
tem uma posição decisiva do ponto de vista da gestão pública do setor cultural.”
(IBGE, 2006, p. 24).

A questão cultural ganha significativa relevância econômica e social e passa a ser


vista com certa prioridade na elaboração das políticas públicas. E, para tal, é crescente a
necessidade de produção e elaboração de dados e informações estatísticas no campo da
formulação e avaliação de políticas públicas de cultura, onde a construção de indicadores
culturais para a realização de um estudo mais detalhado e criterioso sobre a matéria adquire
grande importância.

2.1- Uma breve discussão conceitual

Definido conceitualmente pela primeira vez por Edward Tylor5 em sua obra
Primitive Culture, o vocábulo inglês culture designou inicialmente todo o conhecimento, a
arte, moral, leis, costumes, capacidade e hábitos adquiridos pelos homens. Tylor entendia a
cultura como um fenômeno natural, cujo estudo resultaria na identificação de leis que
permitiriam a sua evolução. (TYLOR, 1920)
Mais tarde, com o evoluir do pensamento e observação sobre as práticas sociais,
este mesmo termo passou a expressar também todo o conjunto do comportamento
assimilado e apreendido, que independe de uma transmissão genética.

4
O BNDES é um órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, cuja
atuação se faz nas áreas de agropecuária, comércio, serviço e turismo, cultura, desenvolvimento social e
urbano, esporte, exportação e inserção internacional, indústria, infraestrutura, inovação, meio-ambiente e
mercado de capitais.
5
Para Tylor (1871), cultura é o produto de tudo o que é produzido pela humanidade no plano concreto ou
imaterial, é processo de seus conhecimentos e suas habilidades empregadas socialmente, independente da
questão biológica. Edward B. Tylor era professor da Universidade de Oxford que edita sua obra Primitive
Culture em dois volumes.

3
Para a antropóloga Ruth Benedict, a cultura é como uma lente através da qual o
homem vê o mundo, e, por isso, suas práticas e seus comportamentos tendem a se
modificar conforme os povos observados e o local onde estão inseridos. Sob outro ângulo,
numa visão antropológica, a cultura refere-se aos códigos morais e de valores dos homens,
e pode ser contextualizada através dos costumes e dos modos de vida, nas experiências
cotidianas, que produzem e deixam uma marca no tempo e no espaço em que vivem.
(BENEDECT, 1972)
Pode-se dizer, de uma forma simplista, mas nem por isso errônea ou irreal, que a
cultura é toda e qualquer manifestação produzida pelo ser humano, seja na área das artes,
religião, música, dança, língua, economia ou de seu comportamento.
Por sua própria definição e constituição, toda a produção resultante da atividade
cultural é carregada de simbologia e de um significado único. Isso faz com que os bens
culturais possuam um valor diferenciado, adquiridos a partir de seus componentes
simbólicos e estes bens, quando disponibilizados no mercado, adquirem um status de bens
econômicos tradicionais, inseridos no processo de produção, reprodução e circulação e, por
isso mesmo, capazes de gerar ocupação, emprego, renda e bem-estar social. Porém,
enquanto a percepção de seu valor se dá de forma individual, o seu consumo tende a ser
impulsionado por hábitos e interesses coletivos – ou seja, é o gosto, o interesse pelo seu
consumo, que determina sua demanda.
É assim que a produção resultante da atividade cultural tende a se profissionalizar,
gerando profissionais, estudiosos e especialistas. O seu caráter simbólico se consolida e
procura a obtenção de legitimidade e difusão num mercado marcado por produtores e
consumidores de bens culturais, que originam a criação de culturas de massa. E, desta
forma, esse produto cultural emerge na sociedade como mercadoria e, como tal, passa a ser
estudada pela economia da cultura.
A produção cultural está presente nas vozes e imagens, na moda e na dança, no
artesanato e na culinária, na língua e no comportamento, atrelada, pelo consumo, às
tendências e às modas. E é por isso que não se pode concebê-la simplesmente como uma
variável de menor importância ou secundária, mas deve ser pensada e entendida como
fundamental, constitutiva e determinante para a sociedade.
A partir dessa concepção, a produção advinda dos diversos setores da cultura
transforma a prática mercantil. Agora, o mercado deixa de ser um simples espaço de trocas
de mercadorias, para ser também um lugar onde se processam as interações sociais e
simbólicas entre os indivíduos. O seu consumo não implica somente a satisfação de
necessidades básicas ou de apropriação imediata de bens. O ato de consumir certos
produtos passa a dizer algo sobre quem os consome, sua posição social, seu status, o lugar
a que pertence e os vínculos que os indivíduos são capazes de estabelecer com os demais,
com o mercado e com a sociedade como um todo.
Esta produção cultural foi observada desde o início dos estudos econômicos por
muitos teóricos, de forma pontual e sob um caráter esporádico, considerada sem grande
relevância para a sociedade devido à intangibilidade de seus bens e serviços e por seu
processo produtivo e de consumo, atípico, não se inserindo no modo de produção
comumente observado. Ainda assim, alguns economistas clássicos, como Adam Smith e
David Ricardo, a incluíam em uma categoria de satisfação de luxo e prazer ou, ainda, uma
categoria improdutiva, mais indispensável ao bem-estar social.
Em A Riqueza das Nações, vol. II (1776), A. Smith cita que a produção artística
gera um efeito positivo na sociedade. Porém, para o autor as desigualdades observadas
entre as remunerações dos artistas estão relacionadas à escassez dos talentos e ao desprezo
da opinião pública. É dele o comentário citado sobre as representações culturais:

4
O Estado, ao estimulá-las, isto é, ao dar inteira liberdade de ação a todos
aqueles que, movidos pelo próprio interesse, procurassem, sem escândalo ou
indecência, divertir e distrair o povo com a pintura, a poesia, a música, a dança,
com todos os tipos de representações e exibições, facilmente dissiparia, na maior
parte da população, a melancolia e a tristeza que quase sempre alimentam a
superstição e o fanatismo populares. (...) A alegria e o bom humor que essas
diversões inspiram seriam totalmente inconciliáveis com esse estado de espírito
que constitui o terreno mais propício para os propósitos desses fanáticos ou sobre
o qual eles podem trabalhar melhor. (SMITH, 1983, p. 310)

Jean Baptiste Say, em sua obra Traité d'Economie politique (1803), sobre o talento
artístico e a desigualdade imperante na classe, escreve:
Quando, além de treinamento caro, é requerido um peculiar talento natural por
um ramo particular da indústria, a oferta é condicionada à demanda, e deve ser,
por conseguinte, melhor remunerada. Uma grande nação provavelmente terá dois
ou três artistas capazes de pintar um quadro superior ou esculpir uma bonita
estátua; se tal acontecer, então, poucos serão para suprir grande parte da
demanda, ainda que grande parte dos lucros retorne em forma de juros ao capital
investido na aquisição das obras de arte, mais uma vez o lucro trará um
excedente muito grande. (SAY, 1803, apud RENGERS, 2002, p. 4).

Marx (1987) ao versar sobre trabalho produtivo e improdutivo, considerou que as


atividades culturais só teriam um caráter produtivo se fossem capazes de gerar riqueza para
as pessoas que exploram as atividades assalariadas dos trabalhadores que as produzem.
Marshall (1948) em sua obra Princípios de Economia (1890), incluiu na análise do
comportamento econômico o contexto cultural e histórico, e foi o primeiro autor a citar
exemplos de atividades culturais, como quando analisa o consumo da música, ou seja,
enquanto no consumo do produto industrial, a satisfação dos indivíduos tende a diminuir a
partir de certo nível de consumo, caracterizando uma utilidade marginal decrescente, no
consumo da música o princípio é invertido, quanto mais escutada, mais ela é apreciada.
Então, para a música e, em geral, para os bons serviços culturais, é válido o princípio da
utilidade marginal crescente. (SALARODRIGUES; SOLÉ, 2003)
A partir de meados dos anos 1960, a cultura passa a ter algum destaque no discurso
teórico acadêmico, que começa a prestar mais atenção aos aspectos da produção humana
advinda de seus modos particulares de convivência, a partir da observação da relação
existente entre os povos e o tempo, o espaço em que habitam, o gosto e o modo particular
de produzir determinado objeto de sua arte e contribuindo também para a dinamização da
economia de diversas nações.
Em 1968 na obra Performing Arts: the Economic Dilemma, de W. Baumol e W.
Bowen, considerada um marco para a Economia da Cultura, os autores observam que o
setor cultural torna-se diferente dos demais setores econômicos pelo uso intensivo do
trabalho e por não ser esse sensível aos ganhos obtidos com a produtividade tecnológica e,
então, defendem que deveriam ser esses setores subsidiados por políticas. Outra
observação feita pelos autores foi que os salários de técnicos e artistas tendiam à
estagnação, sem acompanhar as tendências do mercado em geral.
A partir de Baumol e Bowen, outros autores passam a dispensar interesse pelo
estudo da cultura e seu comportamento econômico, como David Throsby, Gary Backer e
Ruth Towse.
Com seu conceito ainda em construção, a economia da cultura ganha importância
como uma disciplina integrante da Ciência Econômica, cujo objetivo é estudar e
compreender os fenômenos culturais, com seus símbolos, sua subjetividade e
intangibilidade que lhe são próprias.

5
A Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento -
UNCTAD 6, em seu Creative Economy Report, define a Economia da Cultura como:
[Cultural Economics is].... the application of economic analysis to all of the
creative and performing arts, the heritage and cultural industries, whether
publicly or privately owned. It is concerned with the economic organization of
the cultural sector and with the behaviour of producers, consumers and
governments in this sector. The subject includes a range of approaches,
mainstream and radical, neoclassical, welfare economics, public policy and
institutional economics” (UNCTAD, 2010, p. 34)7

O que torna o estudo da economia da cultura bastante peculiar e, de certo modo,


também o seu conceito difícil de ser homogeneizado, é o fato de que as atividades do setor
são bastante heterogêneas e envolvem diferentes práticas, modalidades de organização
produtiva, empresarial e tecnológica, assim como as operações que envolvem sua
circulação. Cada área cultural tem diferentes inserções e graus de participação na dinâmica
da produção cultural.
Neste cenário, para dar visibilidade, suporte e responder à demanda criada em torno
dos bens provenientes do setor cultural, que surgem e se desenvolvem as indústrias
culturais, com uma nova lógica de aplicação dos processos industriais aos produtos da
criação artística e cultural, permitindo a massificação dos bens e serviços provenientes da
criação humana e a mercantilizando os produtos da cultura, dando-lhes certa padronização.
O termo “indústria cultural” foi primeiramente empregado por Adorno e
Horkheimer, no livro Dialética do Esclarecimento, datado de 1947, com o objetivo de
substituir o termo “cultura de massa”, onde sua produção é voltada para o consumo de
grande parcela da população, de acordo com a demanda por ela determinada, com algum
planejamento. O termo refere-se ao processo de estandardização da produção de
determinado bem, como é o que se verifica na produção de filmes ou CDs e DVDs, dentre
outros.
Essa indústria cultural abarca diversos ramos do segmento da cultura que, ao se
apropriarem do produto da arte popular, fazem sua adaptação ao consumo das massas,
através da padronização de seus bens e racionalização das técnicas utilizadas para sua
distribuição. Neste novo processo de produção, o saber individual é associado a
procedimentos técnicos, à divisão do trabalho e ao uso de maquinarias.
Assim, a arte passa a ser assimilada pela indústria, perdendo parte do seu conteúdo
inspirador, criativo e único, e transformando-se em mera mercadoria, inserida em um
processo de controle social, que gera a demanda e dita as normas e padrões necessários à
sua produção, conforme descrito por Adorno:
O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é
o sujeito dessa industriaria, mas seu objeto. (...) As massas não são a medida,

6
A Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) é órgão das Nações
Unidas (ONU) para discussão e promoção do desenvolvimento econômico por meio de incremento no
comércio internacional. Em suas linhas de discussão, encontram-se assuntos relacionados às áreas de
finanças, tecnologia, investimento e desenvolvimento sustentável. Suas ações visam aumentar as
oportunidades de comércio, investimento e progresso dos países em desenvolvimento, ajudando-os a
enfrentar e superar os desafios derivados da globalização e a integrar-se na economia mundial em condições
equitativas. Para tanto, utiliza-se da investigação e análise de políticas econômicas e de desenvolvimento, a
cooperação técnica e a interação com a sociedade civil e o mundo da economia (MDIC, 2013)
7
Para a UNCTAD (2010), a Economia Cultural refere-se à aplicação da análise econômica às artes cênicas e
criativas, ao património e às indústrias culturais, públicas ou privadas. Preocupa-se com a organização
econômica do setor cultural e com o comportamento dos produtores, consumidores e governos no setor.
Desta forma, o tema inclui uma variedade de abordagens, tradicional e conservadora, neoclássica, bem como
a economia do bem-estar, políticas públicas e economia institucional. (tradução nossa)

6
mas a ideologia da indústria cultural, ainda que esta última não possa existir sem
a elas se adaptar. (ADORNO, 1994, p. 93)

A expressão indústria cultural é um termo polêmico para os dias atuais. Para


Adorno e Horkheimer, essa indústria da cultura merece bastante reflexão, pois ao mesmo
tempo em que massifica sua produção, torna o ser humano um ser explorado e um escravo
do consumo.
A cultura converteu-se totalmente numa mercadoria difundida como
uma informação, sem penetrar nos indivíduos dela informados. (...) O
pensamento reduzido ao saber é neutralizado e mobilizado para a simples
qualificação nos mercados de trabalho específicos e para aumentar o valor
mercantil da personalidade. (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 184)

Em outro trecho, os autores argumentam:

A verdade em tudo isso é que o poder da indústria cultural provém de


sua identificação com a necessidade produzida, não da simples oposição a ela,
mesmo que se tratasse de uma oposição entre a omnipotência e impotência. A
diversão é o prolongamento do trabalho sobre o capitalismo tardio. Ela é
procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se
pôr de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização
atingiu um tal poderio sobre: a pessoa em seu lazer e sobre a felicidade, ela
determina tão profundamente a fabricação das mercadorias destinadas à
diversão, que esta pessoa não pode mais perceber outra coisa senão as cópias que
reproduzem o próprio processo de trabalho. O pretenso conteúdo não passa de
uma fachada desbotada; o que fica gravado é a sequência automatizada de
operações padronizadas. Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se
pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio. Eis aí a doença incurável de toda
diversão. O prazer acaba por se congelar no aborrecimento, porquanto, para
continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de se
mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais. O espectador
não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve
toda reacção: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que
exige o pensamento – mas através de sinais. (ADORNO & HORKHEIMER,
1985, p. 184)

Esta indústria atua transformando tudo em bem de consumo, seja ele um produto da
criatividade, nas áreas da arte, música, cinema, literatura, moda, ou da arquitetura. Este
produto é levado ao mercado para ser comercializado sob a lógica do capital, inserido no
contexto mercadológico de fins lucrativos.
Em Adorno (1994), o termo “indústria cultural”, então, veio a substituir outro
concebido como “cultura de massas”. Diferentemente da cultura que surge
espontaneamente do povo, na indústria cultural a sua produção é dirigida para as massas e
determinada para o seu consumo e vice-versa.
A indústria cultural se preocupa primordialmente com o produto que vai chegar às
massas, que devem consumi-lo integralmente e com grande aceitação, seja ele um
espetáculo, uma mostra de arte ou uma mídia eletrônica. Neste segmento, com o apoio
fundamental dos veículos de comunicação de que dispõem, ao mesmo tempo em que
divulga sua arte, cria continuamente necessidades, sem admitir críticas.
Neste cenário, manipulado pelo capital, é promovida a integração proposital das
duas artes, separadas há tempos: a superior – das elites culturais, que acaba sendo desfeita
em sua seriedade e erudição pela especulação –, e a inferior – das culturas populacionais,
que seria controlada em seus caracteres rudes e manipulada socialmente. O mercado passa
a padronizar o gosto pelas artes, subtraindo dos consumidores a liberdade de estipularem

7
seus critérios e exigências e dos autores a liberdade da criação comprometida somente com
os seus ideais artísticos. Conforme Adorno (1971):
A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus
consumidores. Ela força a união dos domínios, separados há milênios, da arte
superior e da arte inferior. Com o prejuízo de ambos. A arte superior se vê
frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde,
através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e
rude, que lhe era inerente enquanto o controle social não era total. (ADORNO,
1971, p. 287)

Em nível mundial, o setor de cultura é organizado para dar suporte à produção de


inúmeros de seus segmentos, que passam a ser vistos com bastante interesse pelas
autoridades, em virtude do aporte de recursos que movimenta, compondo importantes
percentuais em seus Produtos Internos Brutos – PIBs. O mesmo acontece com o Brasil, que
desde os amos 30 já procurava estabelecer as primeiras políticas públicas para o setor.
Porém é a partir dos anos 90 que passou a organizar sua área cultural através do Ministério
da Cultura, com uma política mais voltada para as relações mercadológicas e a interação
entre economia e cultura, com uma proposta de elaboração de diretrizes e metas culturais
para os diversos segmentos do setor.

2.2- A POLÍTICA CULTURAL E SEU FINANCIAMENTO

Os governos começaram a perceber, então, que o incentivo à cultura poderia ser


uma estratégia importante na busca e autoafirmação de sua identidade nacional, sua
diferenciação e singularidade, e que este saber-fazer era visto como um diferencial capaz
de gerar ao mesmo tempo encantamento e valor e, consequentemente, desenvolvimento
econômico e social. Procuraram, então, incentivar, conservar, promover e expor sua
produção e seus autores. Paralelamente, amantes e admiradores, de algum modo, faziam
incentivos, seja adquirindo, divulgando ou estimulando as obras de artistas nos mais
variados gêneros, a depender do gosto, seja na pintura, na música, artes cênicas, escultura,
e outros mais.
Em meio aos discursos econômicos e políticos, nos últimos tempos, tornou-se uma
questão central para o desenvolvimento humano e social as questões relacionadas à cultura
e, a forma de financiamento desta atividade, uma preocupação de governos e gestores, que
buscam cada vez mais uma maior interlocução entre os cidadãos e instituições públicas e
privadas.
Fruto da necessidade de uma diálogo íntimo, principalmente entre as áreas da
sociologia, antropologia, economia, política e artes, que se mostram indispensáveis à
concepção e delimitação do campo de atuação da cultura, o conceito de política cultural
ainda não é um consenso entre os estudiosos do tema, embora de grande importância na
sociedade moderna.
Para fins deste trabalho, foi adotada a definição dada por Coelho (1997) em seu
Dicionário Crítico de Política Cultural:

[...] a política cultural é entendida habitualmente como programa de


intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou
grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da
população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas.
Sob este entendimento imediato, a política cultural apresenta-se assim como o
conjunto de iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a
produção, a distribuição e o uso da cultura, a preservação e divulgação do

8
patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas
responsável. (COELHO, 2004, p. 292)

Canclini (2001), ao abordar o tema, infere que a política cultural é:


[El] Conjunto de intervenciones realizadas por el estado, las
instituciones civis y los grupos comunitarios a fin de orientar el desarrollo
simbólico, satisfacer las necesidades culturales de la población y obtener
consenso para un tipo de orden o transformación social. (CANCLINI, 2001,
p.65) 8.

Embora este conceito não tenha sua aceitação entre a maioria dos pensadores que
discorrem sobre o assunto, nos dá um embasamento para melhor entender a necessidade de
uma estratégia conjunta entre os diversos agentes, sob a coordenação e planejamento de
um dos entes centrais (no caso, o governo – seja de qualquer âmbito: nacional, regional,
estadual ou local) para a intervenção e promoção da cultura na sociedade.
De forma a sintetizar o assunto, podemos admitir que as políticas culturais são o
conjunto de intervenções promovidas pelo Estado, com o objetivo de satisfazer as
necessidades da população e estimular e incentivar o desenvolvimento de suas
representações simbólicas em sua esfera de atuação, para tal contando com a interlocução e
o apoio de empresas privadas, organizações civis e/ou grupos comunitários que, ao se
unirem, juntam esforços para promover o bem-estar social.
Gilberto Gil (2007), ex-ministro, cantor, compositor, artista contemporâneo,
discursa sobre a importância da cultura e das práticas e políticas que incentivem a
diversidade e a promoção cultural no desenvolvimento local no texto Cultura, diversidade
e acesso, cujo trecho se reproduz abaixo:
Vivemos um momento histórico privilegiado. As mudanças das formas
de produção, significação e distribuição dos conteúdos culturais apontam para
um espaço novo e dinâmico das políticas culturais. A revolução digital abre
novas portas aos países em desenvolvimento. Trata-se de uma chance única de
intervenção no modelo de globalização vigente, uma oportunidade de
praticarmos o júbilo da diversidade cultural.
A cultura possui um incrível potencial de produzir sedimentos que
ativam a mudança histórica. Em muitos casos, ela é o lugar onde a mudança
efetivamente se realiza. Mas sua atuação discreta e incisiva nos rumos das
relações internacionais, suas novas potencialidades econômicas e sua atuação
transversal ainda padecem de um grande desconhecimento – e até desconfiança –
das burocracias públicas tradicionais. É hora de atentarmos à força
contemporânea da cultura, à força de modernizar agendas e atualizar discussões
públicas, de promover paz, prazer e conhecimento mútuo – para o bem dos
países em desenvolvimento, para o bem da América do Sul. (GIL, 2007)
Inúmeros desafios vêm sendo enfrentados no campo das políticas culturais no
mundo contemporâneo, desde a sua organização mais moderna, que aconteceu a partir de
meados do século XX, quando novos elementos passaram a ser incorporados a este
conceito, cuja transversalidade passou a abarcar áreas distintas, e até então desconexas,
como a sociologia, economia, política e antropologia, para citar algumas.
Desde os anos 40 a política cultural passou a ser uma área de expressão na Europa,
quando foi instituída a Arts Council, na Inglaterra, e posteriormente com a criação do
Ministério dos Assuntos Culturais, na França, cujo objetivo principal estava assentado na

8
Para Nestor Garcia Canclini, a política cultural representa o conjunto de intervenções realizadas pelo estado,
pelas instituições civis e pelos grupos comunitários com o objetivo de orientar o desenvolvimento simbólico,
satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou transformação
social. (tradução nossa)

9
universalização das obras culturais, tornando-as acessíveis aos franceses e tendo por base a
preservação ampla, a difusão e o acesso de seu amplo patrimônio artístico e cultural.
A França insere o tema das políticas culturais como questão relevante para a
organização da cultura e de sua gestão a nível nacional. Porém, quem posteriormente
internacionaliza o tema e intensifica o debate é a Organização das Nações Unidas para
Educação, Ciência e Cultura – UNESCO, que já em 1952 elabora a Declaração Universal
dos Direitos do Autor, e mais tarde, dentre alguns de seus tema importantes, produz a
Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural (1972), a
Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2002) e a Convenção sobre a Proteção
e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005), de onde ser retira o conceito
de diversidade cultural:

"Diversidade cultural” refere-se à multiplicidade de formas pelas


quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais
expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A
diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais
se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade
mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos
diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das
expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias
empregados. (UNESCO, 2006, p. 4)

Assim, questões relevantes envolvendo o debate cultural e amplo começaram a ser


maciçamente abordadas ao longo dos continentes.
São inúmeros os exemplos de gestão e cada país tem a liberdade de adotar uma
política que melhor possa satisfazer seus interesses e de seus cidadãos, a fim de proteger
seu patrimônio material e imaterial, sua cultura, sua história. Muitas são as formas de
intervenção observada. O que se torna uma prática comum, porém, ao analisarmos os
modelos de financiamento da cultura é que em todos os países, atuando em blocos ou
isolados, há a adoção de uma forma de financiamento para o setor cultural que mescla
recursos advindos diretamente do setor público com recursos financeiros do setor privado,
através de mecanismos como incentivos fiscais e/ou doações diretas à classe artística.
Assim como o financiamento público, o financiamento privado da cultura é
amplamente adotada pelos diversos países, embora seja um tema ainda muito carente de
estudos e publicações.
No caso brasileiro, as políticas públicas, em qualquer das áreas, são adotadas sob os
moldes de uma intervenção estatal na vida da sociedade, visando a resolver e/ou prevenir
algum problema social detectado, dando-lhe a solução possível, e atualmente com o
envolvimento dos mais variados agentes e setores, todos integrados e sob a coordenação de
um ente público responsável, conforme aponta Saravia e Ferrarezi:

(...) sistema de decisões públicas que visa a ações ou omissões,


preventivas ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a realidade de
um ou vários setores da vida social, por meio da definição de objetivos e
estratégias de atuação e da alocação dos recursos necessários para atingir os
objetivos estabelecidos. (SARAVIA e FERRAREZI, 2006: 29).

Ao falar sobre o investimento cultural no país, o ex-ministro da Cultura, Gilberto


Gil (2009), enfatiza que:
Portanto, quando falamos de cultura, falamos da essência da vida
humana. De algo tão vital quanto o ar, quanto a própria natureza. Por isso, é
necessário conectar a cultura a todas as dimensões da existência, ao que faz o
mundo funcionar, sobretudo à economia e aos negócios. Algo tão fundamental

10
precisa de atenção, de cuidado. Precisa do investimento de todos: governos,
empresas, organizações não governamentais, cidadãos. (GIL, 2009).

As formulações e práticas referentes às políticas culturais no Brasil remontam aos


primeiros anos da década de 1930. Porém, foi em 1988 que o setor cultural ganhou
considerável destaque e relevância no debate nacional, ao ser promulgada a Constituição
Federal, que trouxe a garantia de acesso à cultura nacional, cuja política é feita sob um
planejamento de mais longo prazo (4 anos), com o estabelecimento e a necessidade de
elaboração do Plano Nacional de Cultura. A Carta Magna do País garantiu ainda a
instituição do Sistema Nacional de Cultura, sob uma forma descentralizada e participativa,
em regime de colaboração entre os demais órgãos públicos e a sociedade em geral.
A partir daí surgiu também a necessidade de organização dos diversos segmentos
da sociedade, que passaram a dar voz à participação popular e criar de conselhos de
políticas públicas em todas as esferas políticas, com o objetivo de auxiliar o poder
executivo no encaminhamento de demandas, elaboração de propostas políticas e
orçamentárias e fiscalização, uma nova forma de gestão através dos orçamentos
participativos e das parcerias com diversos agentes sociais e a sociedade civil em geral.
Este fato também se tornou realidade na área da cultura.
Foi o mesmo documento que também determinou aos governos estaduais e
municipais que deveriam ser editadas leis próprias para a organização de seus Sistemas de
Cultura. E, ao mesmo tempo, foi propiciada a elaboração de políticas públicas direcionadas
à realidade política e socioeconômica de cada região, transferindo para o nível local o
planejamento, a regulação e a execução das ações do setor cultural, bem como a maior
parte do ônus das ações.
Historicamente, o setor cultural no Brasil sempre se apresentou frágil politicamente
e com insuficiência de recursos e na maior parte do tempo esteve atrelado a outras áreas,
que demandavam grande parte de seus planejamentos e, consequentemente, maior aporte
financeiro.
No plano federal, em 1986 foi sancionada a primeira lei de incentivos fiscais para o
setor – a Lei nº 7.505, de 02 de junho de 1986, conhecida como Lei Sarney. Esta lei
apresentava alguns problemas técnicos, muitas críticas e pouca eficiência. Por exemplo,
não havia a exigência de aprovação prévia de projetos por um corpo técnico, mas somente
o cadastramento da entidade proponente junto ao Ministério da Cultura, o que favorecia o
surgimento de inúmeras irregularidades e desvios. Em 1990, foi revogada.
Em 1991 foi promulgada a Lei nº 8.313 – conhecida como Lei Rouanet, ainda em
vigor que utiliza a renúncia fiscal como principal mecanismo para o financiamento de
projetos ligados à área da cultura no País. Esta legislação instituiu o Programa Nacional de
Apoio à Cultura – PRONAC, cujo objetivo é, dentre outros, promover o estímulo à
produção, distribuição e acesso a produtos culturais, proteção e conservação do patrimônio
histórico e artístico e a promoção e difusão da cultura brasileira, com ênfase na diversidade
regional.
O PRONAC possui, atualmente, dois mecanismos que permitem sua viabilização: o
Fundo Nacional de Cultura (FNC) e o Incentivo Fiscal (Renúncia Fiscal ou Mecenato 9). O

9
O mecenato é um termo que data da Antiguidade, de origem italiana, do tempo do Império Romano. Trata-
se de uma referência a Caio Mecenas, conselheiro do imperador, que reuniu um círculo de intelectuais e
poetas e os patrocinava com a doação de bens materiais e proteção política. Atualmente, o termo faz
referência à forma de patrocinar as artes, através benefícios fiscais. Em geral, o poder público abre mão da
cobrança de determinado tipo de imposto para que a iniciativa privada passe a investir em determinado setor.
Assim, pessoas jurídicas e físicas podem financiar projetos culturais por meio de patrocínios e doações, com
a posterior dedução de um percentual do valor investido, no imposto devido.

11
primeiro é um fundo contábil que prevê o financiamento de até 80% dos projetos culturais
apresentados por pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas. O segundo instrumento
é uma forma encontrada pelo governo federal para a participação do setor privado no
segmento cultural, que pode financiar projetos da área previamente aprovados, permitindo
a pessoas físicas e jurídicas a aplicação de parcelas de seu imposto de renda em projetos
culturais, por meio de doações ou patrocínio.
Foi somente em 1992 que a cultura passou a ter definitivamente um ministério
próprio, com a função de elaborar políticas em nível nacional voltadas exclusivamente para
esta área, através do Ministério da Cultura (MinC).
Segundo dados liberados pelo MinC, do período de 1996 a 2011 foram
apresentados 93.786 projetos no total, sendo destes 75.112 aprovados e 32.206 captados,
via Pronac, conforme Tabelas 1 e 2. Em termos monetários, estes projetos correspondem a
RS 68.494.584,00 apresentados, R$ 40.616.707,00 aprovados, porém somente R$
9.683.035,00 foram efetivamente captados (ou seja, 14,14% do total), que representam, em
valores, um percentual pequeno e um valor ainda mais ínfimo perto da grandiosidade do
segmento cultural no País. (2012).
Um dado que chama a atenção, refere-se ao valor captado no ano de 1996, que
representou 7,71% do total dos projetos aprovados e em 2001 passou para 33,74%, com
grandes oscilações, até que em 2011 chegou ao percentual de 23,88%.

Tabela 1- Quantidade de projetos apresentados, aprovados e com captação para o mecanismo


de incentivo (em unidades) – PRONAC – 1996-2011

Projetos Projetos Projetos RELAÇÃO


Anos
Apresentados (A) Aprovados (B) Captados (C) (B/A) (C/A) (C/B)
1996 2.372 2.316 451 97,64% 19,01% 19,47%
1997 3.781 2.773 735 73,34% 19,44% 26,51%
1998 3.800 3.437 915 90,45% 24,08% 26,62%
1999 4.036 3.027 955 75,00% 23,66% 31,55%
2000 3.434 2.511 1.098 73,12% 31,97% 43,73%
2001 3.972 2.390 1.215 60,17% 30,59% 50,84%
2002 5.405 4.218 1.373 78,04% 25,40% 32,55%
2003 4.856 4.069 1.543 83,79% 31,78% 37,92%
2004 5.726 4.958 2.040 86,59% 35,63% 41,15%
2005 9.263 5.990 2.475 64,67% 26,72% 41,32%
2006 7.763 6.533 2.928 84,16% 37,72% 44,82%
2007 9.402 6.358 3.228 67,62% 34,33% 50,77%
2008 8.337 6.874 3.158 82,45% 37,88% 45,94%
2009 5.823 4.668 3.036 80,16% 52,14% 65,04%
2010 7.928 7.287 3.402 91,91% 42,91% 46,69%
2011 7.888 7.703 3.654 97,65% 46,32% 47,44%
TOTAL 93.789 75.112 32.206 80,09% 34,34% 42,88%
Fonte: Selic – MinC-Pronac. Adaptado.

Ao ser analisada a série histórica, o que se percebe é um aumento considerável no


número de projetos aprovados e captados, que passaram de 2.316 e 451 (em 1996,
respectivamente) para 7.703 e 3.654 (em 2011, respectivamente). Embora o percentual e o
valor dos projetos captados sejam relativamente baixos quando comparados com os
projetos aprovados, estes números melhoraram significativamente nos dezesseis anos da
série analisada, embora essa melhora não seja constante e regular.
Tabela 2- Valor apresentado, aprovado e captado por projetos apoiados no mecanismo de
incentivo (Em R$ 1.000) – PRONAC – 1996-2011

12
Valores Apre- Valores Valores Captados RELAÇÃO
Anos
sentados (R$) (A) Aprovados (R$) (R$) (C) (B/A) (C/A) (C/B)
1996 1.469.385 1.448.785 111.703 98,60% 7,60% 7,71%
1997 2.297.178 1.415.889 207.949 61,64% 9,05% 14,69%
1998 2.350.041 1.311.324 232.573 55,80% 9,90% 17,74%
1999 2.517.674 1.271.365 211.371 50,50% 8,40% 16,63%
2000 2.098.443 1.120.333 290.014 53,39% 13,82% 25,89%
2001 2.517.893 1.090.856 368.051 43,32% 14,62% 33,74%
2002 3.309.665 1.921.881 344.632 58,07% 10,41% 17,93%
2003 3.399.850 1.928.728 430.844 56,73% 12,67% 22,34%
2004 4.328.016 2.389.156 511.748 55,20% 11,82% 21,42%
2005 6.537.030 3.070.393 725.571 46,97% 11,10% 23,63%
2006 5.543.923 3.300.679 852.983 59,54% 15,39% 25,84%
2007 6.849.462 3.044.650 989.410 44,45% 14,45% 32,50%
2008 7.338.509 3.962.729 960.376 54,00% 13,09% 24,24%
2009 4.814.806 2.824.756 979.865 58,67% 20,35% 34,69%
2010 6.497.837 5.054.508 1.162.089 77,79% 17,88% 22,99%
2011 6.624.872 5.460.675 1.303.856 82,43% 19,68% 23,88%
TOTAL 68.494.584 40.616.707 9.683.035 59,30% 14,14% 23,84%
Fonte: Selic – MinC-Pronac. Adaptado.

Segundo o PRONAC, as áreas de música e artes cênicas apresentaram a maior


quantidade de projetos no período em análise e, correspondentemente, aos maiores valores
captados. Somente estas duas áreas culturais corresponderam a cerca de 50,00% dos
projetos apresentados, em cada um dos anos analisados, em conjunto, e 47,00% dos
projetos captados, enquanto as outras áreas não conseguiram captar mais que 16,00% do
total do volume de recursos disponíveis, separadamente. 10
Gráfico 1- Projetos apresentados por área cultural – PRONAC – Total do período: 2009-2011

Música

17% 25% Artes


Cênicas
10%
12% 25% Patrimônio
7% Cultural
4% Artes
Visuais

Fonte: Selic – MinC-Pronac. Elaboração própria.

Gráfico 2- Projetos captados por área cultural – PRONAC – Total do período 2009-2011

Música
9%
8% 25%
Artes Cênicas
16%
9% 22%
11% Patrimônio
Cultural

Fonte: Selic – MinC-Pronac. Elaboração própria.

Outro dado apresentado pelo Ministério da Cultura para o mesmo período de 2009
a 2011 refere-se à quantidade de projetos apresentados, bem como aos valores captados por

10
O relatório “Mecanismo de Incentivo” foi elaborado pela Diretoria de Desenvolvimento e Avaliação de
Mecanismos e Financiamentos – DDAMF, da Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura – SEFIC, do
Ministério da Cultura, no ano de 2012. Está disponível no site do Ministério da Cultura.

13
estado da federação, cujas tabelas nos permitem inferir sobre o comportamento do setor
cultural no Brasil, seu grau de concentração e o percentual de distribuição dos recursos
financeiros disponíveis.
Tabela 3- Quantidade e valor dos projetos apresentados para o mecanismo de incentivo
(Participação das unidades da federação em relação à região) – 2009-2011

Quantidade e valor dos projetos apresentados Participação em relação à Região (%)


REGIÕES 2009 2010 2011 2009 2010 2011
/ UF Projetos Valor (R$) Projetos Valor (R$) Projetos Valor (R$) Projetos Valor Projetos Valor Projetos Valor
São Paulo 2.033 2.043.354.181 2.561 2.537.327.787 2.472 2.595.302.467 49,87% 55,04% 46,55% 50,38% 47,63% 51,86%
Rio de
2.078 1.852.174.991 1.772 1.700.748.100
Janeiro 1.389 1.286.032.525 34,07% 34,64% 37,77% 36,77% 34,14% 33,99%
Minas
800 588.586.535 862 598.440.796
Gerais 611 357.895.941 14,99% 9,64% 14,54% 11,69% 16,61% 11,96%
Espírito
63 58.775.793 84 109.718.929
Santo 44 24.916.498 1,08% 0,67% 1,15% 1,17% 1,62% 2,19%
SUDESTE 4.077 3.712.199.145 5.502 5.036.865.106 5.190 5.004.210.292 70,02% 77,10% 69,40% 77,52% 67,38% 75,54%
Paraná 269 157.643.902 354 170.692.903 428 286.630.419 27,90% 31,92% 28,18% 27,83% 34,19% 42,14%
Rio Grande
570 306.764.758 492 249.800.719
do Sul 442 199.761.301 45,85% 40,45% 45,38% 50,01% 39,30% 36,73%
Santa
332 135.981.977 332 143.706.442
Catarina 253 136.487.284 26,24% 27,64% 26,43% 22,17% 26,52% 21,13%
SUL 964 493.892.487 1.256 613.439.638 1.252 680.137.580 16,56% 10,26% 15,84% 9,44% 16,25% 10,27%
Bahia 176 121.927.326 280 211.168.567 327 209.763.064 40,27% 40,49% 41,12% 46,79% 42,91% 42,76%
Pernam-
143 87.685.501 132 109.124.999
buco 87 93.408.970 19,91% 31,02% 21,00% 19,43% 17,32% 22,25%
Ceará 124 61.408.436 141 84.472.933 174 92.072.279 28,38% 20,39% 20,70% 18,72% 22,83% 18,77%
Maranhão 9 4.948.234 29 27.618.905 25 23.952.236 2,06% 1,64% 4,26% 6,12% 3,28% 4,88%
Paraíba 12 3.634.738 35 9.702.879 42 17.603.814 2,75% 1,21% 5,14% 2,15% 5,51% 3,59%
Sergipe 7 8.150.468 15 14.659.613 21 14.908.062 1,60% 2,71% 2,20% 3,25% 2,76% 3,04%
Rio Grande
14 6.910.611 21 10.722.475
do Norte 8 2.000.911 1,83% 0,66% 2,06% 1,53% 2,76% 2,19%
Piauí 7 3.428.191 16 3.868.230 12 8.843.132 1,60% 1,14% 2,35% 0,86% 1,57% 1,80%
Alagoas 7 2.243.346 8 5.259.103 8 3.561.050 1,60% 0,74% 1,17% 1,17% 1,05% 0,73%
NORDES-
TE 437 301.150.620 681 451.346.342 762 490.551.111 7,50% 6,25% 8,59% 6,95% 9,89% 7,40%
Distrito
206 222.714.240 216 200.464.509
Federal 173 195.929.022 59,66% 69,38% 50,86% 66,46% 51,31% 58,68%
Goiás 83 67.202.985 116 60.817.903 133 102.910.242 28,62% 23,80% 28,64% 18,15% 31,59% 30,13%
Mato
59 35.701.478 49 22.780.875
Grosso 21 16.093.026 7,24% 5,70% 14,57% 10,65% 11,64% 6,67%
Mato Gros-
24 15.895.661 23 15.453.590
so do Sul 13 3.190.018 4,48% 1,13% 5,93% 4,74% 5,46% 4,52%
CENTRO-
OESTE 290 282.415.051 405 335.129.282 421 341.609.216 4,98% 5,87% 5,11% 5,16% 5,47% 5,16%
Acre 3 538.334 2 592.104 5 1.675.539 5,45% 2,14% 2,38% 0,97% 6,41% 1,55%
Amazonas 13 9.539.332 21 6.262.771 21 83.014.679 23,64% 37,93% 25,00% 10,26% 26,92% 76,61%
Pará 29 9.887.731 48 48.752.765 30 17.225.193 52,73% 39,32% 57,14% 79,85% 38,46% 15,90%
Rondônia 9 4.519.665 5 2.387.620 6 2.746.636 16,36% 17,97% 5,95% 3,91% 7,69% 2,53%
Tocantins 1 663.811 5 1.294.419 10 2.413.206 1,82% 2,64% 5,95% 2,12% 12,82% 2,23%
Amapá 0 0 1 117.652 4 788.197 0,00% 0,00% 1,19% 0,19% 5,13% 0,73%
Roraima 0 0 2 1.648.935 2 500.194 0,00% 0,00% 2,38% 2,70% 2,56% 0,46%
NORTE 55 25.148.873 84 61.056.266 78 108.363.644 0,94% 0,52% 1,06% 0,94% 1,01% 1,64%
TOTAL 5.823 4.814.806.176 7.928 6.497.836.634 7.703 6.624.871.843

Fonte: Selic – MinC-Pronac. Adaptado.

A região sudeste apresentou o maior número de projetos e também conseguiu


captar a maior parte dos recursos disponibilizados nos três anos analisados. Dentro desta
região merecem destaque os estados de São Paulo e Rio de Janeiro que, em conjunto, no
ano de 2011 apresentaram mais de 55% dos projetos, cujo valor representou em torno de
64,8% do total do País, correspondendo a 4.296 milhões de reais, o que evidencia a
posição destes, o seu grau de importância no contexto nacional e a consequente
determinação da região como eixo da manifestação cultural do País, para onde convergem
os maiores incentivos, as principais políticas e as práticas culturais, ditando assim
princípios e regras que passam a ser seguidas pelos demais estados da federação.
A segunda região a apresentar o maior número de projetos é a região Sul (16,25%
no último ano da série, cujo valor foi de aproximadamente 680 milhões).
A Região Nordeste vem logo em seguida, ocupando a terceira posição em projetos
enviados para análise do Ministério da Cultura. Há que se ressaltar que esta região conta
com nove estados que, em conjunto não conseguiram apresentar 10% do total em nenhum

14
dos anos analisados. Nesta região merece destaque o estado da Bahia, que sozinho
apresentou 43,34% dos projetos da região, seguida por Pernambuco que apresentou em
média 24,23% dos projetos. Porém, quando se passa a analisar os valores efetivamente
captados, a posição destes estados se inverte, ficando Pernambuco com a primeira posição
(32,17%), seguido da Bahia (26,67%).
Percebe-se que a região que mais capta recursos para o setor da cultura no Brasil é a
Sudeste, onde os estados de São Paulo e Rio de Janeiro obtêm as maiores somas, refletindo
o seu grau de importância no contexto nacional e a consequente determinação da região
como eixo da manifestação cultural do País, para onde convergem os maiores incentivos,
as principais políticas e as práticas culturais, ditando assim princípios e regras que passam
a ser seguidas pelos demais estados da federação.
A região Nordeste ocupa a terceira posição dentre as regiões nacionais, com índices
que não ultrapassam 6,70% dos valores totais captados. As demais regiões – Centro-Oeste
e Norte – vêm a seguir, nesta ordem, respectivamente.

Gráfico 3: Valores captados para o mecanismo de incentivo por Região – Período de 2009-
2011 (em %)

100,000%

50,000%

,000%
SUDESTE SUL NORDESTE CENTRO NORTE
OESTE

2009 2010 2011

Fonte: Selic – MinC-Pronac. Elaboração própria.

Nesta região, os estados que mais captaram recursos foram Pernambuco, Bahia e
Ceará. Os demais estados nordestinos não conseguiram atingir juntos 24% dos valores
captados em qualquer dos anos em análise.
Particularmente, o estado da Bahia, somente em 2010 conseguiu superar
Pernambuco em termos de valores captados, ficando atrás nos demais anos, seguido de
perto pelo Ceará.
Gráfico 4: Valores captados para o mecanismo de incentivo por estados do Nordeste – Período
de 2009-2011 (em %)
40,000%
30,000%
20,000%
10,000%
,000%
Pernambuco Bahia Ceará Demais
Estados

2009 2010 2011

Fonte: Selic – MinC-Pronac. Elaboração própria.

15
Embora o Ministério da Cultura tivesse desde o princípio como um de seus eixos
básicos a promoção da descentralização na execução das políticas culturais, além da
promoção da diversidade e do regionalismo cultural, o que se observa na prática é uma
concentração, que persiste nas ações culturais do eixo Rio-São Paulo, além da promoção
de atividades geradoras de maiores lucros, já consolidadas pelo setor.
Outro instrumento de gestão na esfera federal é o Plano Nacional de Cultura –
11
PNC , instituído pela Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010, que criou também o
Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC. Conforme esta
legislação, o PNC deve privilegiar o reconhecimento e promoção da diversidade cultural; a
criação, fruição, difusão, circulação e consumo da cultura; a educação e produção de
conhecimento; a ampliação e qualificação de espaços culturais; o fortalecimento
institucional e articulação federativa; a participação social; o desenvolvimento sustentável
da cultura; os mecanismos de fomento e financiamento para o setor cultural; as políticas
setoriais.
O PNC, quando de sua elaboração, exige uma gestão participativa, onde o cidadão
vê democratizado o acesso à arte, num movimento denominado de Democratização
Cultural.

O acesso universal à cultura é uma meta do Plano que se traduz por


meio do estímulo à criação artística, democratização das condições de produção,
oferta de formação, expansão dos meios de difusão, ampliação das possibilidades
de fruição, intensificação das capacidades de preservação do patrimônio e
estabelecimento da livre circulação de valores culturais. (PNC, 2008, p. 12)
Entre suas metas estão o fomento à produção artística – com criação, preservação e
difusão de espaços culturais; desenvolvimento de ações de qualificação, capacitação e
formação de artistas, produtores e demais agentes culturais; estímulo à participação da
população em eventos culturais diversos; reconhecimento e estímulo à diversidade da
produção artística e cultural; formulação de políticas públicas em cultura e capacitação e
qualificação de seus gestores; divulgação de informações e indicadores culturais; inserção
da cultura na educação formal curricular; fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura,
com aumento dos investimentos no setor.
O Governo do Estado da Bahia, seguindo uma tendência nacional, organizou a
Secretaria de Cultura e Turismo – SCT – em meados da década de 90. Neste período o
Estado passou a utilizar como um dos mecanismos para o financiamento para suas
atividades culturais a renúncia fiscal, estabelecida através da Lei Estadual nº 7.015, de 9 de
dezembro de 1996, onde criou o Programa Estadual de Incentivo à Cultura – o Fazcultura –
, em vigência até os dias atuais, cujo principal objetivo é o estímulo à produção artístico-
cultural nas áreas de música, pintura, teatro, cinema, literatura, artesanato, folclore, museu,
biblioteca, arquivo e patrimônio cultural.
Há, no Estado, outra forma de incentivo cultural, o Fundo de Cultura, que apoia
projetos nas áreas de música; artes cênicas; artes plásticas e gráficas; cinema, vídeo e

11 O PNC, que faz parte do Sistema Nacional de Cultura (SNC), é o norteador da política cultural nacional.
Ele estabelece objetivos, diretrizes, ações e metas para dez anos (2010 a 2020), e foi construído com base em
discussões ocorridas nas conferências municipais, estaduais e nacionais de cultura e consolidadas no
Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). Por isso, o PNC reflete anseios e demandas de todo o país,
com respaldo do poder público e da sociedade civil.
Os planos territoriais de cultura contemplam as necessidades regionais e locais e colaboram para que estados,
municípios e distritos atinjam as metas do PNC. Ao aderir ao SNC, cada um desses entes federados deve
elaborar um documento de planejamento para o período de dez anos. (Ministério da Cultura, 2013, p. 9)

16
fotografia; literatura; folclore; artesanato; museus, bibliotecas e arquivos; patrimônio
cultural, através de demanda espontânea, editais, instituições e projetos culturais.
No ano de 2007 foram desmembradas as áreas de cultura e turismo e, então, foi
criada a Secretaria de Estado da Cultura, com o objetivo de promover a diversidade, o
desenvolvimento, a descentralização, a democratização, o diálogo e a transparência nas
ações que envolvem o segmento da cultura na Bahia. 12
Em Salvador, o planejamento e a execução das políticas culturais estiveram
inicialmente atrelados à área da educação, integrando a Secretaria Municipal da Educação
e Cultura – SEMEC, a qual, posteriormente, juntaram-se as áreas de esporte e lazer,
constituindo a Secretaria Municipal da Educação, Cultura, Esporte e Lazer – SECULT. Em
dezembro de 2012, porém, a área de cultura foi dissociada da educação e passou a unir-se
ao turismo, constituindo assim a Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Turismo e
Cultura – SEDES.
As políticas públicas municipais referentes ao setor da cultura, porém, ficaram
sempre a cargo da Fundação Gregório de Matos – FGM, que é uma autarquia, criada em
1986 através da lei municipal nº 3.601, cujos objetivos incluem a organização e promoção
de atividades culturais na Cidade e a preservação e divulgação do patrimônio histórico e
cultural, dentre outros. Em sua operacionalização, mantém alguns equipamentos culturais,
que funcionam como espaços para promoção e divulgação de atividades culturais
(exposições e oficinas) para a população em geral: o Espaço Cultural da Barroquinha –
com uma área para espetáculos de teatro, dança e música; o Museu da Cidade (Centro
Histórico); a Casa Benin (Pelourinho) – espaço dedicado à exposições e oficinas artísticas;
o Arquivo Histórico Municipal (Centro); o Teatro Gregório de Matos (Centro); a Galeria
da Cidade (Centro); a Biblioteca Pública Municipal Prof. Edgard Santos (na Ribeira); a
Biblioteca Pública Municipal Denise Tavares (Liberdade); a Biblioteca do Arquivo
Municipal (Centro).
A Fundação desenvolve na Cidade algumas atividades de mostra de cinema, teatro
e música, em áreas populares ao longo do ano, ao ar livre, de fácil acesso à população dos
vários bairros do município – alguns a preços populares e outros gratuitos. Tais atividades
buscam proporcionar a formação e informação cultural dos munícipes.
A FGM conta ainda com o Projeto “Arte em Toda Parte”, que busca financiar
projetos nas áreas de linguagens artísticas (artes visuais, audiovisual, circo, dança, teatro,
música e literatura), culturas populares e identitárias e festivais e mostras de arte e cultura.
No ano de 2005 foi sancionada a lei municipal nº 6.800 que estabeleceu a
concessão de incentivos fiscais, com a redução do Imposto sobre Serviços de Qualquer
Natureza (ISS) e Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) para o
financiamento de projetos na área cultural, no âmbito do município de Salvador. Tal lei
vigorou até o final do exercício de 2011, sem que fosse renovada.
No mesmo ano foi promulgada a lei municipal nº 6.914, que criou o Fundo
Municipal de Cultura – vinculado à Fundação Gregório de Matos, para prestar apoio a
projetos artísticos e culturais. Em 2007, através da lei nº 7.315 foi criado o Conselho
Municipal de Cultura, constituído por comissões temáticas nas áreas de artes cênicas
(teatro, dança e artes circenses); música; artes visuais e audiovisuais; livro e literatura;
patrimônio histórico e cultural; cultura negra e indígena e patrimônio imaterial; eventos de
rua; educação, ciência e tecnologia.
Para o período de 2010-2013, a Prefeitura de Salvador adotou como estratégia de
planejamento o Plano Plurianual - PPA, que segue uma determinação federal, onde se
encontra delimitado o modelo de gerenciamento e execução a ser seguido em toda a

12
Governo do Estado da Bahia (2013).

17
cidade, buscando o seu desenvolvimento sustentável, conforme lei municipal nº
7.729/2009.
A gestão municipal iniciada em 2012, tendo à frente o prefeito Antônio Carlos
Magalhães Neto, propôs à sociedade o Plano Estratégico elaborado para o período de
2013-2016. Algumas linhas de ação foram propostas, com metas e iniciativas, em dez
áreas, como: educação, saúde, justiça social, ambiente de negócios, turismo e cultura,
mobilidade, ambiente urbano, ordem pública, gestão para entrega e equilíbrio de contas.
Na área específica de cultura, três pontos marcam o planejamento da cidade:
projetos de requalificação e reformas estruturais em equipamentos culturais, relançamento
do Projeto Boca de Brasa e o lançamento do edital Arte em toda a parte. (SALVADOR,
2013, p. 11)
O Projeto Boca de Brasa, relançado em 2013, oferta cursos e oficinas nas áreas de
produção cultural, direção artística e gestão de grupos, criação musical, grafite, dança de
rua e criação literária, levando aos bairros periféricos da cidade oficinas e apresentações,
aproximando população, arte e artista, em palcos abertos. O Arte em toda Parte refere-se a
um edital de apoio às atividades de arte e cultura e realização de ações de fomento à
cultura nos segmentos da dança, teatro, literatura, artes visuais, cinema e vídeo, circo e
música e culturas populares e identitárias.
No início do exercício de 2014 foi implantado o Sistema Municipal de Cultura de
Salvador (SMC), através da Lei Municipal nº 8.551, datada de 28/01/2014, com o objetivo
de assegurar e fortalecer os processos de criação, produção, pesquisa, difusão e
preservação das manifestações culturais, bem como dos espaços a elas destinados,
estabelecer parcerias público-privadas e agendas de ações nas áreas culturais. Para tal,
utilizará como instrumentos o Plano Municipal de Cultural, sistema de indicadores e
informações, programas de financiamento, programas de formação e qualificação, dentre
outros. As instâncias para sua articulação na cidade serão o Conselho Municipal de Política
Cultural e a Conferência Municipal de Cultura.
Ao finalizar este assunto, sem entretanto pretender esgotá-lo, é preciso ressaltar que
toda política pública só consegue alcançar seus objetivos se estiver diretamente atrelada ao
conceito de território, cuja identidade está intimamente ligada à noção de história, espaço,
tempo, recursos naturais e povo. As políticas públicas – de modo geral – devem
necessariamente passar pelo contexto social. Devem respeitar a territorialidade, com suas
limitações e imposições, com suas vantagens naturais e as vantagens adquiridas ao longo
de seu processo de formação, e com sua gente, aquela que nasceu, cresceu e se estabilizou
na localidade, mas também com aqueles que ali se fixaram, com suas origens, suas
histórias, suas tradições e culturas, e com o passar do tempo receberam influências e
influenciaram todo o contexto social.
Santos (2007), ao descrever sobre a formulação de práticas políticas, fala sobre a
necessidade de políticas mais igualitárias e justas, capazes de promover o humano em seu
território.
[...] Nosso problema teórico e prático é o de reconstruir o espaço para
que não seja veículo de desigualdades sociais e ao mesmo tempo reconstruir a
sociedade para que não se crie ou preserve desigualdades sociais [...] reestruturar
a sociedade e dar uma outra função aos objetos geográficos concebidos com um
fim capitalista (SANTOS, 2007, p. 81-82)

III - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cultura é entendida como o conjunto dos saberes e fazeres de um povo, que se


expressa em determinado tempo e espaço e se perpetua por gerações, é transmitida em uma
cadeia de ensinamentos, que a torna única. Para tal, torna-se fundamental que haja uma

18
relação de proximidade entre os indivíduos e o poder aí constituído, fornecendo as
condições necessárias para que esses povos, ao mesmo tempo em que possam expressar
seus hábitos culturais, o coloquem à disposição da sociedade, gerando bem-estar, ocupação
e renda para toda a comunidade.
Partindo do entendimento de que a economia da cultura busca estudar os produtos
da criação simbólica e os instrumentos com os quais essa cultura adquire valor e se
mercantiliza e que os bens e serviços culturais tem em comum um componente da cultura e
da criatividade, foi possível perceber que estes bens, quando transformados em mercadoria,
passam a ter um valor diferenciado, a partir de seus componentes simbólicos, sob o status
de bens econômicos tradicionais, inseridos no processo de produção, reprodução,
circulação e distribuição e, por isso mesmo, são importantes instrumentos na geração de
ocupação, emprego, renda e bem-estar social.
As atividades culturais são bastante heterogêneas e envolvem diferentes práticas,
modalidades de organização produtiva, empresarial e tecnológica, assim como as
operações de produção e circulação. São alguns segmentos do setor a música, dança,
literatura, artesanato, pintura, tradições populares, culinária, religião, moda, linguagem,
numa relação que não se exaure aqui.
Uma vez que o espaço cultural é composto necessariamente pela tríade Homem x
Tempo x Território, para trabalhar as potencialidades que o setor fornece é necessário
observá-lo através de suas peculiaridades, direcionando-se para a localidade, suas
especificidades e limitações.
Depois da década de 90, o que se verifica é o crescimento do setor cultural, a
multiplicação de oportunidade na área, a institucionalização da cultura no País e a
profissionalização dos agentes culturais. Com isso, o setor cultural ganha importância no
debate econômico, sendo concebida como um importante recurso, capaz de contribuir para
o desenvolvimento socioeconômico de determinada região, e instrumento de construção e
autoafirmação do cidadão na sociedade em que habita, fornecendo imensas possibilidades,
principalmente em termos de empregabilidade e rentabilidade.
Para que a produção cultural seja capaz de contribuir de forma decisiva para o
desenvolvimento das nações é preciso que sejam adotadas políticas públicas sérias e
direcionadas, capazes de articulação e diálogo com os demais setores públicos e privados.
Há alguns mecanismos de financiamento para o setor cultural, como a Lei Rouanet
– a nível nacional – e o Fazcultura – do estado da Bahia, que oferecem incentivos fiscais
com base em isenções ou deduções tributárias, a empresas privadas e pessoas físicas. Além
destes, os Fundos Federal, Estadual e Municipal de Cultura também financiam projetos de
diversas áreas culturais em seus âmbitos de atuação.
Porém, estas políticas e programas de governo, para serem eficazes em suas
proposições, devem observar a constituição e práticas da população a nível regional e
local, bem como a possibilidade de desenvolvimento de seu saber-fazer, de acordo com o
território específico em que deverá ser implantada.

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21
1

Por que perdemos o bonde da História?1


Noelio Dantaslé Spinola 2
Introdução

A lenda teológica conta-nos que o homem foi condenado a comer o pão


com o suor do seu rosto. Mas a lenda econômica explica-nos o motivo por
que existem pessoas que escapam a esse mandamento divino. Aconteceu
que a elite foi acumulando riquezas e o restante da população ficou
finalmente sem ter outra coisa para vender além da própria pele. Temos aí
o pecado original da economia. Por causa dele, a grande massa é pobre e,
apesar de se esfalfar, só tem para vender a própria força de trabalho,
enquanto cresce continuamente a riqueza de poucos, embora tenham
esses poucos parado de trabalhar há muito tempo. (KARL MARX 1971
[1890], p. 829)

Este texto apresenta um estudo da economia baiana no período


compreendido entre os primórdios da colonização até os dias atuais. Pretende
responder por que a Bahia “perdeu o bonde da História”. Ou seja, porque não se
desenvolveu como era esperado apresentando, na atualidade, um quadro
significativo de desigualdade social e de concentração da renda? Pretende, também,
especular quanto às perspectivas do seu futuro imediato.
Em verdade, como diriam Furtado (1974), Baran (1960), Arrighi (1977) e
muitos outros teóricos da Economia o desenvolvimento econômico que importa
numa divisão da riqueza, é um mito, ou uma ilusão. Há quase meio século,
escrevendo sobre o mito do desenvolvimento, explicava Celso Furtado (1974, p.15)
como estes têm exercido uma inegável influência sobre a mente dos homens que se
empenham em compreender a realidade social. Funcionam como faróis que
iluminam o campo de percepção dos cientistas sociais permitindo-lhes vislumbrar
com clareza certos problemas e nada ver de outros, ao mesmo tempo em que lhes
assegura certo conforto intelectual, pois as discriminações valorativas que realizam
surgem ao seu espírito como um reflexo da realidade objetiva. Neste sentido, não
sem certa desilusão, constatava Celso Furtado que pelo menos noventa por cento
da literatura sobre desenvolvimento econômico produzida até aquela já distante
época se fundava na ideia que se dava por evidente “segundo a qual o

1
Este texto é uma síntese atualizada e acrescida de novos conteúdos de obra anterior do autor
intitulada A trilha perdida: caminhos e descaminhos do desenvolvimento baiano no século XX.
2
Economista. Doutor em Geografia pela Universidade de Barcelona (Es). Professor Titular V da
Universidade Salvador. Curso de Ciências – Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento
Regional e Urbano – PPDRU. E-mail: dantasle@uol.com.br
2

desenvolvimento econômico, tal qual vem sendo praticado pelos grandes países que
lideraram a revolução industrial pode ser universalizado.” (1974, p.16). Ou seja,
pretendia-se especificamente que os padrões de consumo da minoria da
humanidade que vive no primeiro mundo fossem accessíveis às grandes massas
que sobrevivem no terceiro mundo. Esta ideia, segundo Furtado, era “seguramente
uma prolongação do mito do progresso, elemento essencial na ideologia diretora da
revolução burguesa, dentro da qual se criou a atual sociedade industrial.” (Ibid.16).
Também Paul Baran, no final da década de 1950, e no auge da Guerra Fria,
com a expectativa da vitória do socialismo na então União Soviética, dizia que:
(...), o desenvolvimento econômico sempre significou uma profunda
transformação da estrutura econômica, social e política, da
organização dominante da produção, da distribuição e do consumo.
O desenvolvimento econômico sempre foi impulsionado por classes
e grupos interessados em uma nova ordem econômica e social,
sempre encontrou a oposição e a obstrução dos interessados na
preservação do “status quo”, dos que usufruem benefícios e hábitos
de pensamento do complexo social existente, das instituições e
costumes prevalecentes. O desenvolvimento econômico sempre foi
marcado por choque mais ou menos violentos; efetuou-se por ondas,
sofreu retrocessos e ganhou terreno novo – nunca foi um processo
suave e harmonioso se desdobrando, placidamente ao longo do
tempo e do espaço (BARAN 1960, p.14).

Estarão certos os neomalthusianos quando afirmam que se caminha para


uma era de graves e duradouros conflitos regionais e mundiais, na medida em que a
maioria dos sete bilhões de terráqueos quiser ascender às condições mínimas de
segurança alimentar? E que tal pretensão acabará com a humanidade ou dará forma
a uma nova ordem social cujos padrões serão estabelecidos pelos mais fortes com a
eliminação radical ou submissão dos mais fracos, confirmando as profecias de
Huxley (1969)?
A confirmação deste padrão e a perspectiva da sua irreversibilidade são
demonstradas por Arrighi (1997), que citando Harrod (1958) fala da divisão da
riqueza pessoal em dois tipos que estão separados por obstáculos intransponíveis.
O primeiro deles refere-se à riqueza democrática que constitui “um domínio
sobre os recursos que, em princípio, está disponível para todos em relação direta
com a intensidade e eficiência de seus esforços” (ARRIGHI, 1997, p. 216). O
segundo tipo é constituído pela riqueza oligárquica que nada tem a ver com a
intensidade e a eficiência de quem a possui e nunca está disponível para todos, por
mais intensos e eficientes que sejam seus esforços. Isso se demonstra pelo conceito
3

de troca desigual que explica não podermos todos ter domínio sobre produtos e
serviços que incorporam o tempo e o esforço de mais de uma pessoa de eficiência
média.
Assim o uso ou o gozo da riqueza oligárquica pressupõe a eliminação de
outros. O que cada um de nós pode realizar, não é possível para todos.
Segundo Arrighi (1997, p. 217) ao transpormos este raciocínio para a análise
dos sistemas mundiais (e regionais) numa economia capitalista encontramos um
problema de “adição” semelhante e muito mais sério do que aquele que enfrentam
os indivíduos quando buscam obter riqueza pessoal. “As oportunidades de avanço
econômico, tal como se apresentam serialmente para um Estado de cada vez, não
constituem oportunidades equivalentes de avanço econômico para todos os
Estados” (ARRIGHI, 1997, p.217).
Como afirma Wallerstein (1988), “desenvolvimento neste sentido é uma
ilusão” Ou seja: a riqueza dos estados do núcleo orgânico (o chamado Primeiro
Mundo em termos globais, a região Sudeste no caso brasileiro) é análoga à riqueza
oligárquica de Harrod. Esta riqueza não pode ser generalizada porque se
fundamenta em processos de exploração e de exclusão que pressupõem a
reprodução contínua da pobreza da maioria da população num contexto regional.
Por outro lado, como demonstra Santos (1979) ao tratar dos circuitos superior
e inferior que constituem os espaços urbanos nas regiões subdesenvolvidas, a
pobreza absoluta ou relativa dos estados semiperiféricos (Brasil Sudeste em relação
ao primeiro mundo) e periféricos (Brasil Nordeste em relação ao Brasil Sudeste)
induz continuamente suas elites a participar da divisão internacional do trabalho por
recompensas marginais que deixam o grosso dos benefícios para os integrantes dos
estados do núcleo orgânico. Arrighi (1997) afirma que a luta contra a exclusão leva à
busca de um nicho comparativamente seguro na divisão internacional do trabalho o
que induz os estados semiperiféricos a uma maior especialização em atividades
onde possa obter algum tipo de vantagem competitiva o que leva a uma relação de
trocas desigual (deterioração dos termos de intercâmbio) na qual o estado
semiperiférico fornece mercadorias que incorporam mão-de-obra mal remunerada
para os estados do núcleo orgânico em troca de mercadorias que incorporam mão
de obra bem remunerada e a uma exclusão mais completa dos estados periféricos
das atividades nas quais o estado semiperiférico busca maior especialização.
4

Na luta pela reversão deste estado de coisas, que mobilizou o que tinha de
melhor a inteligência econômica baiana nas décadas de 1950/1960, Manoel Pinto de
Aguiar, já dizia em 1972, que “aqueles Estados que conseguiram, à força de labuta e
esforço, uma taxa de crescimento maior que a nossa lutarão certamente para
conservá-la. E se a nossa subordinação econômica for um elemento importante para
isto, tentarão mantê-la”.
Como, de fato, mantiveram. E a Bahia está hoje na periferia da semiperiferia
da economia mundo.
Isto se constata no estudo da sua história, entremeada por ciclos de
expansão e contração quando a Bahia apresenta nos albores do Século XXI um
quadro de relativa prosperidade. Mas, não esqueçamos que o crescimento
econômico é multiplicação, é acumulação de riqueza nas mãos de poucos.
O grau de crescimento econômico do estado expresso pelos números de um
Produto Interno Bruto (PIB) totalizava 145 bilhões de reais em 2010 3. Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ocupava a Bahia àquela época,
em termos absolutos de importância econômica no Brasil a 6ª posição entre as
demais unidades da federação sendo a 1ª. em termos da região Nordeste. Não
obstante, apesar desta posição, naquele mesmo ano, com uma população de 14
milhões de habitantes dos quais 1/3 na área rural 4 era apontada pelo Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome como o estado com a maior
concentração de pessoas em situação de extrema pobreza. Segundo também as
informações da Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial – SEPROMI
em 2010 a Bahia possuía 2.407.990 habitantes extremamente pobres, o que
significava 14,8% da população do país e 25,1% da região Nordeste. Com o maior
número absoluto de extremamente pobres, em termos relativos ocupava a 8ª
posição no ranking da miséria. Este número de extremamente pobres da Bahia
superava em mais de quatro vezes o registrado em toda região Centro-Oeste; três
vezes o registrado em toda região Sul. Quanto ao gênero 50,4% eram do sexo
feminino. Eram negros ou pardos 79,5%. O estado ocupava a 19ª posição na renda
per capita entre os 27 estados brasileiros.

3
Estimado pela Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI)
4
A taxa de urbanização da Bahia, segundo os dados do IBGE varia de 72% considerando os municípios como
um todo e 67% computando apenas as sedes municipais. Existem controvérsias entre os demógrafos quanto
aos critérios adotados pelo IBGE para a determinação das taxas de urbanização.
5

Esta é a realidade sobre a qual trabalhamos, somos ricos, mas somos pobres
e tudo indica que frente à concorrência das outras regiões do País a tendência é que
fiquemos nacionalmente e em termos relativos cada vez mais pobres, conforme
mostram os dados mais recentes do PIB (IBGE/2013) que nos rebaixou para a 8ª.
posição no ranking nacional.
Não existe um único fator a quem acusar como sendo o vilão responsável
pelo nosso atraso. São vários já identificados por diversos estudiosos em diferentes
análises históricas revisitadas neste trabalho onde se busca confirma-las como
hipóteses que explicam como o atraso econômico da Bahia foi consequência de
uma trama de circunstâncias que ao longo do tempo produziram a situação atual.
Entre as mais importantes pode-se relacionar os problemas políticos, sociais e
econômicos vivenciados pela nação portuguesa, nossa matriz colonizadora, desde a
sua fundação e o mercantilismo europeu dos séculos XV ao XVIII; a escravidão e o
modelo de exploração agroexportador; a incompetência administrativa, o padrão de
vida perdulário e a corrupção que caracterizaram a elite brasileira e baiana; a má
condução política do Estado durante a Primeira República; as secas e demais
condições edafoclimáticas adversas; e a política macroeconômica do governo
federal, ao longo do século XX. Essas circunstâncias confluíram para formar a má
qualidade do nosso capital humano, em última instância o nosso maior problema.
O exame destes fatores será realizado nos tópicos seguintes deste texto que
buscam numa sequência cronológica analisa-los.

1. Ad majorem Dei gloriam – patrimonialismo e religião

No âmbito das causas de natureza política, sociais e econômicas os fatores


que determinaram a gradativa perda da liderança da Bahia no cenário político e
econômico brasileiro, decorrem do processo de colonização, derivado dos eventos
que condicionaram a história do pequeno reino de Portugal desde a sua fundação
em 1145 pelo conde leonês Afonso Henriques, notadamente nos três primeiros
séculos da nossa história. Portugal nasceu com uma espada na mão e um crucifixo
na outra. Mas nasceu fraco em termos demográficos e econômicos. O seu destino,
6

desde a fundação foi comandado por um sistema patrimonialista 5, responsável em


última instância pela pobreza lusitana e sua fragilidade perante as demais nações
contemporâneas como a Inglaterra, França e Espanha.
Como senhor da guerra o seu rei também era o senhor da terra. Como relata
Faoro (1984, p.4) Portugal não conheceu o feudalismo. “O rei como o maior
proprietário, ditará, em consonância com a chefia da guerra, a índole qualitativa,
ainda mal colorida, da transformação do domínio na soberania – do dominare ao
regnare”. (FAORO, 1984, p.5). Em outras palavras, o Estado português surgiu
absoluto como uma propriedade do rei a quem tudo pertencia e que como chefe
supremo não admitia aliados ou sócios. Entre ele e os súditos não haviam
intermediários: um comanda e todos obedecem.
A inexistência do feudalismo impediu o desenvolvimento da burguesia que em
outros países, como a Inglaterra e a França intermediou o conflito entre reis e
nobres, financiando as monarquias e permitindo o surgimento dos estados nacionais
absolutistas. Neles o comércio se tornou forte e o Estado se tornou seu aliado na
construção da riqueza nacional.
Nas palavras de Faoro (1984) e de Campante (2003, p.1) as circunstâncias
que levaram a montagem da estrutura de poder patrimonialista estamental
plasmada historicamente pelo Estado português, posteriormente congelada,
transplantada para o Brasil, reforçada pela transmigração da corte lusa no início do
século XIX transformou-se em padrão a partir do qual se estruturou a nossa
organização política até a Primeira República.
Uma imutabilidade histórica, que se constitui através de arranjos
intimamente relacionados nos campos econômico e sociopolítico. No
primeiro, prevalece o capitalismo politicamente orientado. O Estado
não assume o papel de fiador e mantenedor de uma ordem jurídica
impessoal e universal que possibilite aos agentes econômicos a
calculabilidade (termo caro a Weber, amplamente usado por Faoro)
de suas ações e o livre desenvolvimento de suas potencialidades; ao
contrário, intervém, planeja e dirige o mais que pode a economia,
tendo em vista os interesses particulares do grupo que o controla, o
estamento. Não há “regras do jogo” estáveis na economia, pois elas
atendem ao subjetivismo de quem detém o poder político. Esse tipo
de capitalismo adota do moderno capitalismo a técnica, as máquinas,

5
O patrimonialismo é o sistema onde o soberano é o Estado; um exemplo está na frase de Luis XIV:
“o Estado sou eu”. Não há bens públicos. Tampouco, particulares. Todos os bens são do soberano,
do Estado. Esse poder funda-se, em regra, no Direito Divino: o governante é uma divindade ou
representante maior dela. Assim, sua vontade é a lei, sendo inquestionável, irremediável. Governa
despoticamente. Tudo é sua propriedade, inclusive os seus súditos; sobre esses, tem poder de vida e
morte. Não existe a coisa pública.
7

as empresas, sem lhe aceitar, todavia, a “alma” – a racionalidade


impessoal e legal-universal. Um arranjo tradicional, mas maleável em
face da modernidade capitalista, a qual aceita seletivamente, mas
sem vender a alma – conformada à racionalidade personalista e
casuística. O capitalismo não brota espontaneamente na sociedade,
mas vicia-se no estímulo e na tutela estatal: tire-se do capitalismo
brasileiro o Estado e pouco ou nada sobrará, adverte Faoro.
(CAMPANTE 2003, p.1)

Neste sistema, como aponta Faoro, a sociedade não se organiza em classes


que são substituídas por estamentos6. Ou seja: estavam abortadas as condições
essenciais para o deslanche de um processo de desenvolvimento capitalista visto
que o mercado e a livre competição foram substituídos pelo Estado e a sua
burocracia fiscalista.
Além do rei e dos funcionários da coroa (sua corte), outro protagonista da
tragédia portuguesa foi a Igreja Católica, notadamente sua alta hierarquia que
possuía uma influência visceral sobre o governo. Portugal foi, notadamente até o
Século XVIII, um país de beatos a começar pela casa real. Nele a Inquisição
(Tribunal do Santo Ofício) criada a pedido de D. Manuel em 1536, funcionou como
uma máquina de fortalecimento do poder real e de arrecadação de recursos para a
coroa. Em 1539 o Infante (e Cardeal) D. Henrique (O Navegador), irmão do rei e
depois o próprio rei, tornaram-se inquisidores gerais do reino. Segundo Herculano
(1875, p.205), D. João III de Portugal (1521 – 1557) alcunhado de "O Piedoso” além
de mentalmente limitado e totalmente inculto era um fanático religioso obcecado
contra os judeus. Foi praticamente conduzido pela Igreja durante seu longo reinado,
na perseguição daquele povo que, segundo Herculano controlava a “riqueza
monetaria e, em grande parte, o commercio e a indústria portuguesas.” Esta
perseguição representou um verdadeiro “tiro no pé” da economia de Portugal –
lamentada pela maioria dos historiadores e, inclusive políticos portugueses da
época. Perseguidos e expulsos da Península Ibérica, os judeus transferiram

6
Camadas sociais não econômicas. Nas palavras de Faoro (1984): "O estamento burocrático comanda o ramo
civil e militar da administração e, dessa base, com aparelhamento próprio, invade e dirige a esfera econômica,
política e financeira. No campo econômico, as medidas postas em prática, que ultrapassam a regulamentação
formal da ideologia liberal, alcançam desde as prescrições financeiras e monetárias até a gestão direta das
empresas, passando pelo regime das concessões estatais e das ordenações sobre o trabalho. Atuar
diretamente ou mediante incentivos serão técnicas desenvolvidas dentro de um só escopo. Nas suas relações
com a sociedade, o estamento diretor provê acerca das oportunidades de ascensão política, ora dispensando
prestígio, ora reprimindo transtornos sediciosos, que buscam romper o esquema de controle".
8

volumosos recursos para os Países Baixos e a Inglaterra, contribuindo de forma


destacada para a riqueza e prosperidade daquelas nações
Já no século XVIII, D.Luis da Cunha, Chanceler do rei D.João V, predecessor
e protetor do Marques de Pombal, e uma das figuras expoentes da chamada
“ilustração portuguesa” dizia em sua carta... que “a terça parte de Portugal estava
possuída pela Igreja, que não contribuía para a despesa e segurança do Estado”
(PORTO, 1998) e propunha a expropriação de todos os seus bens, inclusive pelo
uso da força. D. Luís da Cunha e o próprio Sebastião de Carvalho e Melo--
rebelavam-se, sobretudo contra o que legitimamente se pode chamar de “opção pela
pobreza”, que a Igreja católica acabara impondo a Portugal e através da Inquisição
bloqueava a ruptura tentada no Brasil, através do empreendimento açucareiro, isto
para não falar da conspiração dos jesuítas que acabaram por ser expulsos do reino
e de suas colônias em 1759. A chave, para eles, era a manufatura --a grande
novidade surgida na Europa, e que, a começar da Inglaterra, mais adiante iria
desembocar na Revolução Industrial- como destacava D. Luís da Cunha e Pombal
iria dar mostras de tê-lo compreendido perfeitamente. Também dizia o
desembargador João Rodrigues de Brito7, um profundo conhecedor da agricultura
baiana, como se verá adiante. Em 1807 ele dizia que “era má a influencia da Igreja
sobre os costumes da sociedade. Os votos monásticos fomentariam a despovoação
do território. Por exemplo, o voto de castidade era contrário à procriação; o de
pobreza, contrário à riqueza. E o grande número de dias santos seria nocivo por
interromper o trabalho, além de que o trabalhador aproveitaria o tempo livre para
beber, arruinando sua saúde!”.

2. A burocracia lusitana e o atraso da Bahia

Um dos relatos mais impressionantes sobre as causas que provocaram o


atraso da Bahia no Século XIX data de 1807 quando foi redigida a carta do
desembargador João Rodrigues de Brito em resposta ao ofício do governador
Conde da Ponte que, a mando do governo português formulava um conjunto de

7
Formado Bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, Desembargador da Casa de Suplicação em
Lisboa, Deputado às Cortes Constituintes em 1821.
9

questões relacionadas ao estado da agricultura na Bahia: 8 O desembargador, que


era admirador de Adam Smith e J. B. Say, dentro dos limites do liberalismo
econômico da época, diagnosticou a crise econômica e social da Bahia e propôs
medidas práticas de transformação que foram enviadas ao Governador da Capitania
e, através dele, à administração portuguesa de ultramar. Este mesmo texto, cujo
título é Cartas econômicas e políticas da Bahia, foi publicado em Lisboa, em 1821,
quando seu autor exercia o mandato de deputado nas Cortes de Lisboa.
No seu diagnóstico, ele demonstra o papel negativo da burocracia lusitana a
qual entravava uma economia que possuía um grande potencial para desenvolver-
se e progredir. Afirmava que os principais obstáculos ao desenvolvimento da Bahia
do início do século XIX se resumiam na falta de liberdade, facilidades e instruções.
Faltava liberdade aos lavradores de empregarem seu trabalho e seu capital
da forma como bem entendessem. Faltava facilidades, ou seja, infraestrutura na
forma de pontes, estradas e outras obras que diminuiriam as despesas e obstáculos
das comunicações e transportes. E, por fim, faltava instruções necessárias aos
lavradores para se aproveitarem destas liberdades e facilidades.
Explicitando a falta de liberdade dizia o desembargador que “para os
lavradores lograrem a plena liberdade que pede o bem da lavoura era precioso que
eles tivessem: 1º, a de cultivar quaisquer gêneros que bem lhes parecesse; 2º, a de
construir quaisquer obras e fábricas que julgassem convenientes para o
aproveitamento dos seus frutos; 3º, as de os mandar vender em qualquer lugar, por
qualquer caminho e pelo ministério de quaisquer pessoas, de que se quisessem
servir, sem ônus ou formalidade alguma; 4º, a de preferir quaisquer compradores
que melhor lhos pagassem e 5°, finalmente, a de os venderem em qualquer tempo,
que lhes conviesse.”
Justificando a sua argumentação explicava o desembargador que “repetidas
leis ... obrigam os lavradores do Recôncavo a plantarem quinhentas covas de
mandioca por cada escravo de serviço que empregarem, e aos negociantes de
escravatura a cultivarem quanta baste para o gasto de seus navios”. Pretendia-se

8
Em verdade foram quatro as cartas respondendo às questões formuladas pelo governador. Além do
desembargador João Rodrigues de Brito, redigiram-nas Manoel Ferreira Câmara; José Diogo Gomes Ferrão
Castelo Branco e Joaquim Ignácio de Sequeira Bulcão. Ver FIEB(2004).
10

com estas leis favorecer o comércio da escravatura, e assegurar o abastecimento da


população “prevenindo a escassez e a fome.”
Dizia o desembargador em sua argumentação que esta legislação não atingiu
seus objetivos e que pelo contrário, prejudicava a economia como um todo
Citando Adam Smith, J.B. Say e Young, afirmava na sua carta: “em geral,
todas as vezes que a administração pública se intromete a prescrever aos cidadãos
o emprego, que eles hão de fazer de suas terras, braços e capitais, ela desarranja o
equilíbrio, e natural distribuição daqueles agentes de produção das riquezas, cujo
uso ninguém pode melhor dirigir que o próprio dono que é nisso o mais interessado,
e que por esta razão faz deles o objeto das suas meditações”
Quanto à indagação do governador “se a mesma lavoura tem recebido
progressivo augmento, de que tanto depende a prosperidade do Commercio desta
Capital, e qual o motivo favoravel ou desfavoravel a este respeito responde o
Desembargador que, não gozam mais liberdade os nossos lavradores, porque lhe é
proibida a fundação de fabricas, alambiques, armações de pescar, e engenhos de
açúcar sem licenças pendentes de certos requisitos, e formalidades dispendiosas.
Tudo quanto dificulta o estabelecimento destas fabricas, agrava a espécie de
monopólio natural que logram os senhores das atuais, precisamente raras por
dispendiosas, principalmente os engenhos; e deteriora em consequência a condição
já demasiadamente dura dos lavradores, que os não têm; os quais muitos anos vêm
perder suas canas, por não acharem onde as moer, apesar de pagarem metade do
seu produto por esse beneficio, além da renda da terra, no que sofrem
principalmente os que têm servidão, que os obriga a moê-las sem engenho
determinado; pois os senhores dele preferem naturalmente aos Lavradores
desobrigados, com escandalosa lesão dos outros, que não ousam queixar-se pela
absoluta dependência em que estão postos, não vendo próximo outro engenho em
que possam moer suas canas.”
Sobre os “vexames do comércio” afirma em resposta à terceira questão
formulada pelo governador que “tolher aos lavradores a liberdade de vender os seus
gêneros nas cidades ,vilas , ou lugares em que têm maior valor, nem pela mão de
seus escravos, ou agentes quaisquer, é o mesmo que roubar-lhes uma porção
desse valor; isto é privá-los das riquezas, que eles fizeram nascer com o suor do seu
rosto, e emprego dos seus fundos. E esta privação tem infalíveis e fatais
11

consequências contra a lavoura; porque o lavrador não fez nascer aqueles frutos
senão pela esperança, de próprio interesse: é lei universal da natureza, que se não
pode violar impunemente.”
Em síntese a colônia reproduzia o modelo da metrópole. Todas as atividades
estavam reguladas pelo Estado, ou pela Igreja. E neste sistema medrava uma
imensa corrupção, subornos, troca de favores, nepotismo e clientelismo. Desde o
Século XVI o poeta Gregório de Mattos assim descrevia a cidade da Bahia: A cada
canto um grande conselheiro/ que nos quer governar cabana, e vinha/ não sabem
governar sua cozinha/e podem governar o mundo inteiro.... Estupendas usuras nos
mercados/ todos, os que não furtam, muito pobres/ e eis aqui a cidade da Bahia.

3. Colônia de uma colônia

A fragilidade portuguesa frente à Inglaterra que expandia o seu império


mundial contribuiu para que, na prática, se exacerbasse um processo de exploração
que constituiu a marca da dominação lusitana. Esta fragilidade e uma relação de
dependência financeira e militar fizeram de Portugal, desde o século XVI, um
“intermediário” na apropriação das riquezas extraídas ou produzidas pela colônia
brasileira, as quais, preponderantemente, acabavam canalizadas inicialmente para
os holandeses e, a partir do século XVIII, para os ingleses.
Outro exemplo deste processo de dependência é o leonino tratado de
Methuen, também referido como Tratado dos Panos e Vinhos, firmado entre a
Inglaterra e Portugal, em 1703, que transformou o Brasil, do ponto de vista
econômico, numa colônia de uma colônia, visto que os portugueses, a partir desta
época, abdicaram praticamente da sua autonomia (colocando-se sobre a proteção
militar inglesa) e, consequentemente, da capacidade de gerir com independência os
seus negócios ditando seus rumos, notadamente no setor industrial.
O alvará de 5 de janeiro de 1785, baixado por D. Maria I, proibindo a
existência de fábricas no Brasil e mandando fechar as que existiam é um
testemunho eloquente desta dependência 9. Com ele inaugurava-se a primeira
medida política de (des) industrialização em nossas plagas, favorecendo à Inglaterra

9
Alvará ditado pelos ingleses, temerosos com a concorrência de várias fábricas de tecido que começavam a
surgir na Bahia e no Brasil.
12

cujo sistema imperialista passava a dominar econômica e financeiramente a colônia


portuguesa até o final do século XIX.
Ainda cabe destacar a nossa formação humanista nos primórdios da
colonização, fortemente influenciada pelos colégios jesuítas, que nos legaram o
espírito bacharelesco que dominou as nossas elites dirigentes até, pelo menos a
segunda metade do século XX. Esta elite, de formação eminentemente jurídica,
aliada aos representantes do comércio exportador – importador e aos grandes
produtores agrícolas, dominou a máquina governante do império durante todo o
século XIX e foi responsável por uma política liberal que abortou todas as
possibilidades de uma emancipação manufatureira tanto do Brasil quanto,
particularmente, da Bahia. Na prática não fomos simplesmente uma colônia. Mas
que isto, desde o malfadado tratado de Methuen fomos do ponto de vista econômico
colônia de uma colônia, visto que os portugueses a partir desta época abdicaram da
possibilidade de industrializar-se.
Em 1808, com a abertura dos portos, e em 1810 10 com os tratados que
transformam a Inglaterra em potência privilegiada, com direitos de
extraterritorialidade e tarifas preferenciais, consolida-se no Brasil o imperialismo
inglês e formata-se praticamente a matriz do nosso subdesenvolvimento.
Estas medidas são complementadas com o acordo de 1827, e a
eliminação do poder pessoal de D.Pedro I em 1831, o que consolida o papel
dominante (no plano político) da classe formada pelos senhores da grande
agricultura de exportação (FURTADO, 1959, p.115) e, no plano econômico, pelo
grande comércio exportador.
No caso específico da Bahia, seu declínio inicia-se com a transferência
do Governo Geral de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, perdendo a
província sua condição de capital política do país e todos os ganhos inerentes a
essa condição. Segundo Tavares (2001) isto se deveu ao fato do polo de
desenvolvimento do Brasil ter saído do Norte/Nordeste, firmando-se no Sudeste
(Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo). A descoberta do ouro nas Minas Gerais
e posteriormente o advento do ciclo do café plantado inicialmente no Rio de Janeiro
e posteriormente em São Paulo deslocaram o eixo da economia marginalizando
para sempre as províncias do Nordeste e do Norte.
10
Segundo Costa (1991) pelo tratado de 1810 eram concedidas alíquotas preferenciais de 15% aos produtos
ingleses; sendo os produtos portugueses taxados em 16% e os dos demais amigos em 24%.
13

Por questões estratégicas para a Coroa Portuguesa “era necessário


estabelecer um centro de poder e administração que ficasse mais próximo de Minas
Gerais e Goiás e que facilitasse uma comunicação mais rápida com as capitanias de
São Paulo e Rio Grande do Sul (...), mas o que a decidiu realmente foi a nova
situação das fronteiras do Brasil com os Vice-reinados da Espanha na América do
Sul”. (TAVARES, 2001:113).
A transferência da Família Real portuguesa e de todo o aparato
cultural, técnico e político da Metrópole lusitana para o Rio de Janeiro, em 1808,
constituiu o golpe de misericórdia nas pretensões baianas de assumir uma posição
hegemônica na economia nacional. Como bem assinala Braudel (1996), a
convivência e a cumplicidade com o Estado são essenciais para o desenvolvimento
do sistema capitalista. O investimento político e cultural efetuado no Rio de Janeiro a
partir da sua transformação em sede da monarquia portuguesa transformou aquela
cidade na metrópole do Brasil colonial, ali centralizando todo o poder político e
econômico que prevaleceu ao longo do Século XIX e parte do Século XX.
Assim fundaram-se as bases do sistema dominante que, não só
marcaria em definitivo os desequilíbrios regionais que se acentuaram no século XX,
como praticamente definiu-se a matriz da decadência baiana.

4. – O tumultuado século XIX: apogeu e declínio

O século XIX esteve muito longe de ser um período tranquilo e de grande


prosperidade para a província baiana. O seu transcurso foi marcado por revoltas,
epidemias, secas, crise na agricultura, adversidades no comércio internacional e a
perda do poder político nos anos iniciais com a instalação da corte no Rio de
Janeiro, e no começo da primeira república com a ascensão ao governo da afluente
classe dos barões do café.
As revoltas ocorreram entre os escravos e os nativos mulatos e brancos todas
motivadas pelo anseio de liberdade dos grilhões da escravidão, do jugo português,
das condições precárias da vida em Salvador e em protesto pela perda da primazia
politico administrativa.
A primeira foi a Conjuração Baiana (também chamada de Revolta dos
Alfaiates) em 1789, uma conspiração de caráter emancipacionista, articulada por
14

pequenos comerciantes e artesãos, destacando-se os alfaiates, além de soldados,


religiosos, intelectuais, e setores populares. Seguiram-se as lutas de 1822 / 1823,
pela independência da Bahia, talvez o movimento mais importante e danoso para
a economia da província. Esta guerra constituiu uma autêntica luta de classes que
objetivava na prática abrir caminho para a afluente sociedade brasileira de brancos e
mestiços aos cargos e posições dominados pelos portugueses nas esferas políticas,
sociais, militares e notadamente econômicas. Foi vitoriosa, mas abortou o ciclo de
crescimento dos vinte primeiros anos do século XIX, cobrando um elevado preço à
Bahia por todo o restante do século pois a criação e as despesas logísticas de um
exército improvisado, com mais de treze mil homens em armas, consumiram
fortunas e arruinaram fazendas, lançando na miséria famílias outrora abastadas.
Segundo Calmon (1979:27) “O golpe sofrido foi terrível para a vida econômico-
financeira (da Bahia). Esta se desconjuntou e, desde então, começa a série
infindável das desgraças que nos perseguiram durante todo o século XIX”.
Porém outros incidentes marcaram o conturbado século XIX, a partir do
Levante dos Periquitos em 1824, que na visão de Tavares (2001) indicava a
frustração da província da Bahia na institucionalização do império com um Estado
monárquico, autoritário e centralizador.
O sentimento anticolonial era muito forte e, em vários momentos entre 1823 e
1831, ocorreram revoltas populares contra os portugueses, apelidados de marotos.
Estes ataques denominados de Mata-Marotos se traduziam em saques a casas
comerciais, agressões, assassinatos e exigência de demissão dos portugueses dos
cargos públicos. Muitas abastadas famílias portuguesas abandonaram a Bahia
levando consigo consideráveis fortunas acumuladas ao longo de séculos de
dominação colonial. 11 Este fato contribuiu para a desarticulação do monopólio
português do comércio e de uma ordem e conjunto de relações sedimentados por
fortes laços de intercâmbio importador e exportador que respondiam, até então, pela
prosperidade mercantil da província.
Araújo e Barreto (1978, p.46) relatam que os portugueses expulsos não foram
substituídos pelos brasileiros, visto que inexistiam capitais nacionais disponíveis na
província para financiar todas as atividades econômicas. Assiste-se, então, ao
controle do comércio de importação e exportação pelos ingleses. Ocorre, também, a

11
Fortunas estas que se aqui ficassem poderiam contribuir para o processo de acumulação de capital.
15

penetração de casas comerciais de outras nacionalidades, principalmente alemãs.


Aos brasileiros restaram apenas as atividades internacionais relacionadas com o
tráfico de escravos e a intermediação do comércio do porto com as fontes de
produção no interior. 12
Entre 1832 e 1833 a Revolução Federalista proclamou a Federação da
Província da Bahia na então vila de Cachoeira, tornando a Bahia independente do
comando político e administrativo emanado do Rio de Janeiro. Sem apoio o
movimento fracassou. Demonstrava, porém, a inconformidade dos baianos com a
perda de autonomia que resultou na transferência desde 1763 do Governo Central
para o Rio de Janeiro, agora muita mais percebida e economicamente sentida com a
criação do Império.
Em 1835 eclodiu a Revolta dos Malês a mais importante revolta negra na
Bahia. Esta revolta que constituiu um movimento bem articulado por negros de
religião islâmica, possuía uma ideologia religiosa libertária e não foi uma insurreição
repentina como ocorreu em movimentos anteriores. Foi arquitetada para abranger o
Recôncavo baiano e incorporar a população negra convertida ao Islã. Os malês, se
vitoriosos pretendiam matar todos os brancos, mestiços e africanos libertos e
escravos que não professassem a fé islâmica. Segundo sugere Reis (2003:265)
instalariam um califado baiano.
Em 1837 surge a Sabinada um movimento separatista liderado pelo médico
Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira. Segundo Chiavenato (2005:51), em 7 de
novembro de 1837, a revolução é vitoriosa conquistando a adesão de parte das
tropas do governo, tendo sido proclamada à república. Os sabinos não conseguiram
obter apoio da massa popular ou das elites locais. Sendo derrotados em 1838.
Outros movimentos populares, ligados mais ás condições precárias da vida
da população soteropolitana notadamente a fome, e a um grande sentimento de
insatisfação popular, ocorreram na metade do século XIX, merecendo registro pelas
suas peculiaridades. A Cemiterada, em 1855, consistiu na destruição do primeiro
cemitério construído em Salvador pela Santa Casa de Misericórdia, proibindo-se os
enterros nas igrejas como era a tradição. O segundo, denominado "Carne sem
osso, da farinha sem caroço e do toicinho do grosso" ocorreu em 28 de
fevereiro de 1858, se repetindo vinte anos depois. Nas palavras de Mattoso (1992)
12
Na verdade a expulsão de comerciantes portugueses não implicou na participação desses do
comércio provincial, apenas eliminou a sua hegemonia.
16

“A revolta de 1858 inscreveu-se num período de crises epidêmicas, misturadas aos


problemas de abastecimento da cidade”.
Pelos seus efeitos perversos sobre a economia baiana, cabe também
registrar a Guerra do Paraguai (1864 – 1870) que recrutou da Bahia cerca de
dezenove mil soldados, em sua maioria negra, aumentando a escassez de braços
na lavoura. (CALMON, 1978:79).
Encerrando este tumultuado século, a Guerra de Canudos (1896/1897)
travou-se nos sertões da Bahia, mobilizando mais de 10 mil soldados oriundos de 17
estados brasileiros e distribuídos em 4 expedições militares. Estima-se que
morreram mais de 25 mil pessoas, culminando com a destruição total do Arraial de
Canudos a fortaleza sertaneja de Antonio Conselheiro. Uma das muitas tragédias
brasileiras Canudos foi um produto da fome, da miséria, da ignorância, da patologia
do catolicismo e do absoluto abandono a que esteve (esteve?) condenada a
população do Semiárido nordestino ao longo da história e no curso do processo de
exploração econômica inerente ao capitalismo mercantil associado aos interesses
da classe dominante.
Os infortúnios que marcaram Salvador, no século XIX, como anteriormente
destacado, não se limitaram aos motins, revoltas e guerras. A cidade não possuía
saneamento sendo as condições sanitárias e higiênicas extremamente precárias.
Ademais o grosso da população, constituída por negros libertos, mulatos e
brancos pobres, sofria permanentemente com a escassez e os altos preços dos
alimentos, a precariedade das habitações e a promiscuidade. Isso tudo constituía
um quadro de saúde pública caótico e receptivo a epidemias. Entre estas,
mereceram maior destaque histórico as epidemias de febre amarela e do cólera,
que ocorreram entre 1850 e 1855 atingindo em seu conjunto mais de 125 mil
pessoas. (SILVEIRA, 2000 p.100).
Outro problema com que se defrontou a província da Bahia e que influenciou
de forma considerável a sua formação política e econômica foi o fenômeno da seca
que, de tão recorrente praticamente deixou de ser um fenômeno. Sendo inevitável,
constitui um dos fatores que mais contribuem para o drama da pobreza regional.
Mattoso (1992, p.461) informa que entre 1809 e 1889 “registraram-se
25 anos secos e onze de chuvas excessivas”, ambos nocivos para a agricultura.
17

O fato é que a seca impediu a formação de uma atividade agrícola regular em


2/3 do território baiano, contribuindo para a formação de oligarquias rurais nas
esparsas “ilhas de fertilidade”; a impossibilidade de surgimento de um mercado
interno e sérias crises de abastecimento que marcaram todo o século XIX.
A partir das secas de 1833/1834, agravam-se, mais ainda, as crises de falta
de alimentos e o surgimento de movimentos especulativos com os produtos
essenciais à sobrevivência da população. Segundo Calmon (1979: 83), “Em 1845, o
negócio da farinha de mandioca mostrava-se em conjuntura difícil, provocada pela
exportação que se fez para o Norte do Império, com o fim de socorrer a fome que ali
era intensa”
Funcionavam as leis de um Estado patrimonialista, o monopólio do
abastecimento e as práticas atravessadoras, custeadas pelos capitais liberados do
tráfico negreiro em decadência, faturavam alto em cima da escassez produzida pela
seca. É Calmon (1879:84) quem diz: “Apareceram os atravessadores, em regra,
comerciantes de largos recursos e capitaes, cuja acção se exercia de modo a evitar
que chegasse o genero ao Celleiro Publico, visando pelo processo que empregavam
elevar o preço para grangearem ganhos excessivos [sic]”. 13
A despeito do quadro social conturbado, a Bahia também vivenciou períodos
de prosperidade, com os sucessivos governadores, desde o Marquês de Aguiar até
os Condes dos Arcos, estimulando a economia e tomando medidas de ordem
pública que melhoraram o potencial atrativo da sua praça e a feição urbana de
Salvador.
No plano econômico, como se verá a seguir, as atividades comerciais
dominaram os negócios da Província da Bahia ao longo de todo o século XIX.
Segundo Batista e Araújo (1978, p.11) o raio físico de ação dos comerciantes era
extenso e conseguia controlar os produtores, expropriando-os de parte do seu lucro.
Como o comércio na prática, estava subordinado às empresas estrangeiras,
predominantemente inglesas, parte substancial deste lucro era transferido para o
exterior, reduzindo-se drasticamente a capacidade de geração de poupanças que
financiassem a formação bruta de capital fixo.
Araújo e Barreto (1978, p.47) informam que a dominação comercial europeia,
pela sua diversidade, não substituiu o antigo monopólio português. O comércio

13
Em todo o texto optou-se pela manutenção da ortografia original das fontes transcritas.
18

inglês (predominante) era realizado no porto e deixava um amplo espaço para a


intermediação entre as fontes de produção (as fazendas) e o porto, atividade que
era explorada pelos comerciantes brasileiros. A estes cabia também exercer o tráfico
de escravos, o comércio com o interior da província e outras regiões nacionais,
inclusive pelo sistema de cabotagem. Mantendo contato direto com os produtores,
os comerciantes brasileiros, além de intermediários comerciais, atuavam como
intermediários financeiros estabelecendo casas de crédito e companhias de seguros.
Em 1818, instalava-se a “Caixa de Descontos”, filial do 1º. Banco do Brasil. Após a
Independência, em 1834, instalava-se a Caixa Econômica, posteriormente Banco
Econômico da Bahia com o fim de “oferecer às classes laboriosas meios fáceis de
acumular seus capitais [...]” Mais adiante, em 1845, funda-se o Banco Comercial da
Bahia, em 1848, a Sociedade Comércio da Bahia, o Banco Hipotecário da Bahia e a
Caixa Comercial da Bahia.
Percebe-se pelos relatos de inúmeros historiadores, desde o tempo do padre
Anchieta, que uma fortuna fabulosa foi gerada na província da Bahia até o
século XIX. Estes recursos foram canalizados para o exterior como apropriação de
lucros obtidos pelo sistema financeiro que se estruturou explorando aquilo que
Wanderley Pinho (1982, p.485) classificou de “luxo dissipador”.
Sem as despesas excessivas de ordem pessoal, sem o luxo
dissipador, poderia talvez o senhor de engenho emancipar-se das
dívidas, e passar, pelo menos, a adquirir os suprimentos à vista, com
dinheiro de contado, a quem mais barato lhe vendesse. Quando não
tivesse tino ou habilitações comerciais para negociar o produto de
suas fábricas, isentando-se do intermediário, libertar-se-ia da
obrigação de comprar -ou receber de seu comissário-credor
mercadorias por preços muito mais altos que os comuns, e ainda
sobrecarregados de juros. Manter o senhor de engenho naquela
sujeição muito importava ao comissário e para isso assoprava
orgulhos, faustos e ostentações, e ainda reformas de fábricas, para
que continuasse sempre amarrado à sua cobiça o devedor. O ideal
do comerciante-comissário era ganhar, ajuntar, enriquecer. O ideal
aristocrático do senhor de engenho era mandar, estender domínios,
exibir poder e grandeza, mostrar desprezo por dinheiro e apego aos
bons cavalos, às casas amplas e enfeitadas.

Antonil, em seu Diálogo das Grandezas do Brasil (1618) dizia que um senhor
de engenho precisava gastar muito, pois havia de ter "50 peças de escravos de
serviço bons, 15 ou 20 juntas de bois com seus carros aparelhados, cobres
bastantes e bem consertados, oficiais bons, muita lenha, fornaria, grande quantidade
de dinheiro, além de serem muito liberais em darem a particulares dádivas de muita
19

importância. E eu vi já afirmar a homens muito experimentados na corte de Madri


que se não traja melhor nela do que se trajam no Brasil os senhores de engenhos,
suas mulheres e filhas, e outros homens, afazendados e mercadores"
Numa justificativa desta cultura perdulária que contrariava todas as regras da
moral anglo-saxã 14 responsável pelo processo de acumulação capitalista, Wanderley
Pinho (1982, p.502) ele também descendente de usineiros do açúcar, diz que “o
fausto dos senhores de engenho representava mais alguma coisa além de um
personalíssimo gozo. A constância daqueles fatos, durante três séculos, dando-lhes
a força de uma lei, desafia a acuidade do sociólogo e a pesquisa dedutora e
interpretativa do historiador”. Neste quadro ele vislumbra algo, nada superficial mas
ao contrário, profundo, que vem dos alicerces e da estrutura de “uma casta formada
nos primeiros dias da colônia e só abalada pela libertação dos escravos e pela
comercialização e a desindivídualização da usina”. Os conceitos de honra da época
foram “responsáveis pela prodigalidade dos Senhores do Recôncavo.” Isto explica e
fornece os “fundamentos históricos de tal vício, ou melhor, dessa lei dos gastos
excessivos” E aí cita “as grandes áreas de terras que dão a impressão de maiores
domínios; escravatura numerosa que vale uma extensão de mando; aparato de
cavalos, cadeirinhas, joias, vestidos, bengalas, espadins - a pompa pessoal como
insinuações a ritos e reverências prestigiantes; festas e hospedagens faustosas que
entretêm e alargam a clientela; educação superior dos filhos para refletir o prestígio
nobilitador dos letrados da família a colaborarem em governos, parlamentos e
partidos”.
Semelhantes exteriorizações de riqueza e poder que foram ao mesmo tempo
essência da casta, decorriam de uma situação latifundiário-econômico-militar que,
desde o Regimento de Tomé de Sousa, “dera eclosão à entidade singularíssima do
Senhor de Engenho. Nenhum poderia fugir às obrigações de fausto e mando. A
sesmaria, a escravatura índia ou negra, os lavradores de partido sujeitos a moerem
canas no engenho, a casa-forte, as armas, os serviços e postos político-militares
tramaram o tecido daqueles preconceitos. criando para o Senhor de Engenho um
ambiente de poder e grandiosidade, que devia ser mantido a todo custo”. A vaidade,
o orgulho, império e desperdícios não foram, pois, defeitos de cada um, mas de todo
o sistema.
14
Ver Benjamin Franklin, A ciência do bom homem Ricardo (1732)
20

Observe-se, por oportuno que os “coronéis” do cacau, repetiram aqui na


Bahia em meados do século XX os mesmos erros dos senhores de engenhos do
século XIX.
O peso da agricultura
Entende-se que as atividades agrícolas e industriais que se desenvolveram
na Bahia, ao longo do século XIX e em boa parte do século XX, constituíram
extensões dos interesses do capital mercantil, carecendo de condições que
possibilitassem o estabelecimento de um processo de desenvolvimento
autossustentável em longo prazo, pela dificuldade estrutural da formação de uma
classe média assalariada, capaz de constituir um mercado interno estimulador da
produção local em setores da atividade industrial e de serviços.
No caso baiano, na medida em que o comércio revela-se como setor
hegemônico e que a acumulação de capitais se processa no circuito típico de uma
economia mercantil, ou seja, na esfera da circulação, torna-se dificultado o processo
de transformações das relações de trabalho em direção ao assalariado, pereniza-se
o hiato entre circulação e produção, dificultando as transformações estruturais da
sociedade engendrada no escravismo. (BAPTISTA E ARAÚJO, 1981, p.28).
Entre as atividades do setor primário da economia baiana, destacaram-se, no
século XIX, o açúcar, o tabaco, o café e, gradativamente, o cacau, além de outros
produtos de menor peso à época em sua balança comercial como o algodão, a
pecuária, a extração e a lavra dos diamantes.
O açúcar, que atingiu o seu apogeu nos séculos XVII e XVIII, inicia, no século
XIX, o seu longo processo de agonia e declínio, mantendo-se, porém, no centro das
atenções, por constituir a base econômica da classe politicamente dominante que
tinha pelo sua recuperação uma ideia fixa que perdurou até os anos 1930.
Segundo Mattoso (1992, p.521), 40% das exportações de açúcar da Bahia
destinaram-se para a Inglaterra no período de 1852/1856. Após 1857, mais da
metade e até 60% dessas exportações tinham o mesmo destino.
A Bahia vivia, pois, sob forte dependência do comércio inglês. Como este
tinha pouca necessidade de açúcar, sendo suprido por suas colônias, não espanta
que o açúcar baiano tivesse problemas de mercado.
Porém o século XIX assiste o inexorável declínio desta cultura no território
baiano. Várias foram as explicações para o fenômeno. Almeida, R. (1977) por
21

exemplo, afirmava que dois fatores contribuíram para essa decadência. O primeiro,
refere-se à evasão da mão-de-obra escrava como decorrência da atração exercida
pela mineração do ouro a partir do século XVIII e o segundo, está associado com a
elevação dos custos de produção. Destaca também a competição internacional,
demonstrando que, já no final do século XVIII, o Brasil havia sido reduzido a pouco
mais de 10% do mercado mundial de açúcar.
Evidentemente, o fumo não teve o mesmo peso do açúcar no valor das
exportações baianas no século XIX, mantendo, porém, uma produção mais regular,
a despeito de também estar sujeito às variações climáticas. Em alguns anos, ele
assumiu a liderança nas exportações baianas. Moeda de troca no tráfico negreiro o
fumo foi responsável pelo intenso comércio entre a Bahia e o Golfo de Angola e de
Benguela.
A exemplo das demais culturas agrícolas baianas do século XIX, a do fumo foi
dominada pelo capital mercantil, representado hegemonicamente por firmas alemãs.
Isto significa que o excedente gerado por essa atividade foi apropriado por essas
firmas e não revertido em inversões nas zonas de produção.
O café, introduzido na Bahia na metade do século XIX, não produziu, nesta
província, os mesmos efeitos de transformação gerados em São Paulo. Segundo a
CPE (BAHIA – CPE 1978, p.159), a cafeicultura baiana não conseguiu dar o “salto
capitalista” derivado do desenvolvimento do capitalismo em termos internacionais
por ter se mantido sob o regime de trabalho escravista e de um campesinato ou
parcerias precariamente vinculados ao circuito de trocas.
A produção do cacau, na Bahia, somente vai assumir grande significação no
século XX. O seu cultivo, porém, responde por intensos movimentos migratórios e
pela ocupação da região Sul da província. Em termos econômicos, sua exploração
segue o mesmo padrão ditado pelo capitalismo mercantil que marcou o processo
espoliação da Bahia ao longo do século analisado. Em outras palavras, os
excedentes gerados pela cultura do cacau nunca retornaram sob a forma de
inversões na região cacaueira ou em outras regiões da província.
Merecem registro ainda no setor primário da economia baiana a produção de
algodão e a pecuária.
A produção do algodão no Brasil, e consequentemente na Bahia, sempre
dependeu de fatores externos. Ou seja, das flutuações dos preços internacionais do
22

produto. Sempre que estes aumentavam, em decorrência de conflitos na Europa ou


na América do Norte, a atividade algodoeira se expandia em terras brasileiras.
A pecuária teve papel importante na economia baiana pelo seu papel no
suprimento alimentar da população urbana e pela ocupação do território. No plano
das exportações, a participação dos seus sub- produtos – couros e peles – não foi
significativa, dadas as condições do mercado e a concorrência dos criatórios do Rio
Grande do Sul.
Outro fato de destaque na economia baiana, que contribuiu significativamente
para o povoamento de sua região Sudoeste, foi a descoberta, em 1842, de
diamantes na Chapada Diamantina (então Chapada Grande). A lavra teve uma
produção significativa no período compreendido entre 1852 e 1870, atingindo seu
ponto máximo de produção em 1856, quando foram exportadas oficialmente 7 714
oitavas (equivalentes a 27,770 kg). Segundo a CPE (BAHIA – CPE, 1978, p.125), a
exploração do diamante na Chapada, deflagrando um movimento populacional de
grande magnitude no centro da província, não foi suficiente, contudo, para
desarticular o tradicional predomínio do Recôncavo sobre a economia baiana. Por
outro lado, seguindo a tendência geral, a subordinação da empresa diamantina ao
merca- do internacional e ao controle do capital mercantil não permitiu que
surgissem nas lavras relações de produção do tipo capitalista, embora o trabalhador
livre convivesse com o escravo.
Indústria
No capítulo relativo à industrialização constata-se que ela foi bastante
incipiente. Segundo Tavares (1982, p.37) a economia de exportação rejeitava a
industrialização com a mesma eficiência de quem sabe impossível o enxerto de
pessegueiro em bananeira. As iniciativas como a da criação em 1846 da
Companhia para Introdução e Fundação de Fábricas Úteis na Província da Bahia
não obtiveram sucesso numa economia dominada pelos interesses vinculados à
exportação de produtos primários e sustentada por relações de trabalho escravo ou
semiescravo. Ainda Tavares informa que o capitalismo industrial da Europa e dos
Estados Unidos, estimulava no Brasil o progresso da iluminação a gás, das estradas
de ferro, dos transportes urbanos, dos engenhos centrais , mas com a participação
dos seus capitais, de suas máquinas, dos seus técnicos
23

O exame da atividade industrial da Bahia no século XIX pode ser sumariada


da forma seguinte e com base no estudo da CPE 1978 p. 266-267).
O setor industrial, na economia baiana, estava dividido entre indústrias e
manufaturas. Estas últimas com seu processo produtivo concentrado em atividades
manuais. A maior parte dos estabelecimentos, tanto industriais como
manufatureiros, era de pequeno porte, a julgar por fatores tais como capitais
investidos e mão-de- obra empregada. As grandes empresas eram de caráter fabril,
pertencendo à agroindústria açucareira e ao setor têxtil. Havia, entretanto, grandes
empresas manufatureiras no setor fumageiro e, em menor escala, no setor de
vestuário.
No plano da modernização tecnológica registram-se diversas iniciativas em
praticamente todos os gêneros de atividades. Essas tentativas de modernização não
tiveram maior repercussão sobre uma sociedade como a baiana, na qual a estrutura
social era impermeável. Ao contrário, no Sudeste do país, onde as inovações
tecnológicas foram acompanhadas de mudanças nas relações de trabalho, toda a
estrutura social se transformou.
As matérias-primas empregadas eram de procedência local e das províncias
vizinhas, excetuando-se setores como metalurgia e, por algum tempo, madeira,
couros e peles.
Predominava a produção de artigos grosseiros destinados ao consumo
popular, uma vez que a elite importava os bens de que necessitava
preferencialmente da Europa. Na manufatura do fumo mesclava-se a matéria-prima
local com a importada das províncias do Sul, de melhor qualidade, quando se
pretendia obter um produto mais fino. Contudo, muitos bens eram consumidos por
todas as classes sociais, indistintamente. Enquadravam-se neste caso os produtos
dos setores de madeira, química, cerâmica (telhas e tijolos), alimentos e bebidas e
vestuário (chapéus de feltro). A indústria têxtil tinha considerável parcela de sua
produção consumida pela agroindústria açucareira, sobrevivendo, em grande parte,
devido à demanda de sacos para embalagem dos produtos primários em bruto ou
sem beneficiados, como o açúcar. Também a indústria metalúrgica fabricava, como
um dos seus principais itens, maquinário para engenhos e peças de reposição. As
dificuldades e a paulatina decadência da agroindústria açucareira não poderiam
deixar de refletir-se negativamente sobre outros setores industriais. Parte da
24

produção manufatureira e fabril era absorvida por outras províncias, como o fumo e
os tecidos. Em 1875, exportava-se a terça parte dos tecidos aqui produzidos para
outras províncias, exportação essa que decorria basicamente da privilegiada posição
da Bahia como importante entreposto comercial.
A maior parcela da mão-de-obra empregada era livre, porém, em 1872, cerca
de 15% ainda eram escravos, existindo estabelecimentos, até à década de 1860,
nos quais predominava o trabalho escravo Esse tipo de relação de trabalho deveria
prevalecer também nos engenhos. Quando, porém, foram criadas as fábricas
centrais de açúcar, nelas passou a preponderar o trabalho assalariado e, de um
modo geral, o trabalho livre foi-se generalizando.
O grande comércio de exportação era o responsável pelos capitais aplicados
no setor industrial. A existência de matéria-prima local possibilitava ao comerciante –
que agia como financiador – o controle da produção agrícola, sua transformação e
comercialização. O caso mais evidente é o do fumo. Quanto aos tecidos, a matéria-
prima era oriunda principalmente das províncias vizinhas, e esse setor se constituía
no mais importante depois da agroindústria açucareira. Até 1875, a Bahia foi o maior
centro têxtil do Brasil, mas sua perda de posição, daí por diante, seria constante e
irreversível. Persistiria, para além do século XIX, na Bahia, um tipo de economia
mercantil originária da colônia, enquanto, no Sudeste do Brasil, deslanchou, mesmo
que tardiamente o processo de desenvolvimento capitalista calcado no modelo
europeu ocidental pós-revolução industrial (CPE,1978 p.267).
Spinola (2014) informa que a Bahia encerrou o século XIX com um déficit
acumulado de US$ 372.153,99 milhões na sua balança comercial. Somente
apresentou superávit em sua balança comercial em dez anos no período de 1839 a
1899. Esse déficit que prevaleceu na balança comercial baiana ao longo do século
gerava uma carência de poupança interna necessária para a formação de capital
fixo e, consequentemente, o deslanche de um processo de acumulação que
propiciasse o crescimento real das atividades econômicas
No plano da política tributária praticada no século XIX, o estabelecimento das
tarifas baseou-se preponderantemente na taxação dos produtos importados. Com o
controle político do governo pelos grandes proprietários de terras, lançava-se sobre
o conjunto da população o ônus pela sustentação da máquina pública, como
assinalam Furtado (1959) e Sampaio, J. (1975). Em 1844, com a expiração dos
25

prazos estabelecidos pelos diversos tratados comerciais, foram editados pelo


governo imperial onze “pacotes” tributários. Todos compreenderam tarifas incidentes
sobre as importações. De forma geral a política fiscal atendeu ao lobby dos grandes
proprietários rurais e comerciantes interessados na manutenção de uma política
antiprotecionista, prejudicando claramente os interesses da classe industrial.
Segundo a pesquisa da CPE (1978), os mecanismos da política tributária e
financeira do governo imperial foram desfavoráveis para a economia baiana. Mesmo
tendo participação elevada nas exportações e importações brasileiras, no período, a
Bahia sofreu substancial drenagem de recursos, através da taxação dos “direitos de
exportação e importação”.
Dados das contas públicas da província obtidos no Anuário Estatístico da
Bahia, de 1923, indicam que no período de 1850/1889, 54% dos exercícios
financeiros foram deficitários. Esses déficits públicos levaram ao endividamento
interno do governo provincial, mediante a contratação de sucessivos empréstimos
junto aos agentes financeiros locais. O agravamento desta situação no final do
século, a partir de 1872, vai levar ao primeiro empréstimo externo da província, em
1888 15. Esta situação iria transformar-se num processo de endividamento crônico,
agravando e comprometendo o desempenho das administrações estaduais ao longo
da primeira metade do século XX.
Em termos demográficos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), a Bahia encerra, em 1900, o século XIX com uma população de
2.177.956 habitantes, correspondentes a 12,58% da população do país. Salvador,
neste mesmo ano, totalizava 205 813 habitantes equivalentes a 9,72% do Estado.
Segundo Mattoso (1992, p.119), em 1872, a população baiana era composta
de 72,4% de negros e mulatos (dos quais 12,2% escravos), 24% de brancos e 3,6%
de índios e caboclos. Também Sampaio, C. (1999, p.51) registra que, em 1890, o
número de analfabetos correspondia a 81,9% da população, percentual este que
não se modifica com a virada do século, pois, em 1920, a porcentagem situava-se
praticamente inalterada, em torno de 81,6%.

15
O empréstimo foi obtido junto ao Sindicat Brésilien de Paris, no valor de 22,5 milhões de francos que,
convertidos, importavam em 6.317.947$445. Este empréstimo na verdade serviu para o pagamento de dívidas
internas do governo com o sistema financeiro nacional (entre eles o Banco da Bahia), sobrando líquido para a
caixa do tesouro menos de 1% (CPE, 1978 v. 3, p. 71).
26

5. A Bahia no século XX e a síndrome do caranguejo


.
No final da década de 1950, intelectuais baianos, entre eles Luís Henrique
Dias Tavares (O problema da involução industrial da Bahia), discutiam as causas da
contradição entre os avanços obtidos pela Bahia na formação dos seus sistemas de
transportes e energético, no crescimento demográfico, na melhoria urbana da capital
e, em muitos outros aspectos, a redução da importância da sua indústria na primeira
metade do século XX. Enfim, perguntavam-se: por que a Bahia não se desenvolveu
como os principais estados da região Sudeste?
Com efeito a primeira metade do século XX foi marcada pela estagnação
econômica. Neste sentido, Tavares (1966) registra uma relevante diferenciação
entre os avanços obtidos pelo estado na conformação dos seus sistemas de
transportes e energético, no crescimento demográfico, na balança comercial
externa, na receita tributária, na melhoria urbana da capital e em muitos outros
aspectos e a redução da importância da indústria, comparativamente ao
desempenho do final do século XIX, quando tudo levava ao “prognóstico de que a
velha província manteria destacada posição no evoluir da indústria no país” (p.5).
A partir de uma pesquisa em fontes diversas e dos dados censitários de 1920
a 1940, o autor constatava então “uma impressionante estagnação nas indústrias
têxtil e fumageira e, doutra parte (...), o desaparecimento do leque de empresas
manufatureiras que se abria multicolorido de esperanças naqueles primeiros anos
da República” (TAVARES, 1966,p.4).
Octávio Mangabeira, espantado com o que viu ao assumir o governo do
estado (1946/1950), cunhou a expressão enigma baiano e, preocupado com a
estagnação da economia estadual, encomendou a Ignácio Tosta Filho o primeiro
Plano de desenvolvimento da Bahia, documento pouco divulgado na atualidade e
praticamente desaparecido.
Também Pinto de Aguiar escreveu uma monografia com o título Notas sobre
o enigma baiano. Aguiar (1972, apud SPINOLA, 2003 p.103) listava em seu trabalho
três causas responsáveis pelo nosso atraso:
1. o problema de instabilidade da nossa economia, que, preponderantemente
primária e evidentemente reflexa, depende, endogenamente, da sazonalidade das
safra e, exogenamente, das flutuações dos mercados exteriores e dos preços nestes
vigentes;
27

2. o desgaste do nosso intercâmbio comercial interno, com a política cambial


vigente no país, agravando a tendência estrutural da deterioração da relação de
preços dos produtos que enviamos para os outros estados e das mercadorias que
deles recebemos;
3. a escassa capacidade de poupança, decorrente destas causas, e o
reduzido estímulo aos investimentos, em virtude de tais variáveis.
Rômulo Almeida (1977, p. 19-54) por seu turno, culpava “o ritmo fraco de
capitalização devido à decadência política da Bahia na república, efeito e
novamente, causa das dificuldades de transportes e a carência de energia, que,
para vencê-las, não encontravam recursos na economia colonial baiana, as quais
terão sido também causa de outra carência, a quase nula imigração.” Rômulo, muito
adiante do seu tempo, aprofundava o seu argumento e avançava pela seara
moderna dos estudos do capital humano, social e relacional, apontando, além da
falta de imigrantes, como um outro fator, a falta de interesse dos ricos comerciantes
da terra nos empreendimentos da produção: “não tinham tirocínio industrial e,
com isso, o espírito de iniciativa e indústria (grifo nosso), tão vivo e tenaz na
história ainda recente da Bahia, havia de desencorajar-se e evadir-se [...], enquanto
a indústria evoluía noutras partes.” (1977, p.19-54).
Já o ex-ministro da Fazenda e banqueiro Clemente Mariani (1977) em estudo
divulgado em fins dos anos 1950, sob o título Análise do problema econômico
baiano, sintetiza e amplifica as considerações dos autores aqui citados em seu
diagnóstico da economia estadual.
Nesse estudo Mariani situa a proeminência econômica da Bahia nos séculos
iniciais da colonização e estuda o que chama de começo e progressão da relativa
decadência econômica do Estado. Em sua opinião, os primórdios dessa decadência
encontram-se na perda de importância do açúcar em nosso comércio exterior,
acelerando-se com o fim da escravatura. Contudo, salienta que, com a nova lavoura
do cacau, a economia estadual recupera-se, ensejando a realização de várias obras
de infraestrutura. Detém-se também no exame da política econômico-financeira
oficial do pós-guerra que considera nociva para a Bahia. O autor concluiu essa parte
da exposição afirmando que o desenvolvimento da lavoura do cacau teria criado
novas perspectivas de enriquecimento do Estado, com a consequente possibilidade
de aplicação da poupança decorrente em benefício da sua economia, se o
28

monopólio de câmbio, iniciado com a Revolução de 1930 (a quem chamava de


madrasta da Bahia) e até hoje mantido sob formas diversas, não houvesse
representado uma perfeita espoliação dos recursos do Estado, em benefício do
governo federal que, desse modo, obteve as divisas baratas para atender a suas
necessidades administrativas ou mesmo a sua política econômica, geralmente
traçada com absoluta insensibilidade para com o interesse do Estado e de sua
população (MARIANI, 1977, p. 55-121). Só que Mariani se esqueceu, ou omitiu que
na monocultura cacaueira os resultados obtidos eram transferidos para o exterior
pelas empresas exportadoras, e gastos no Rio de Janeiro e São Paulo, quando não
em Paris, pelos familiares e descendentes dos velhos coronéis do cacau, repetindo
os hábitos de “novos ricos” dos senhores de engenhos do açúcar.
Abrindo um parêntese, faz-se necessário ressaltar, que a raiz do problema,
que persiste até os dias atuais, está na pobreza e consequente ignorância da
população baiana, que frustra as possibilidades da mobilidade social que propicie a
existência de um mercado interno com elevado poder de compra.
O estado nos primeiros cinquenta anos do século XX, foi administrado por 21
governadores, entre titulares, interinos e interventores.
Até hoje toda uma considerável energia e capacidade política, que poderiam
convergir para beneficiar o Estado mediante projetos que promovessem seu
desenvolvimento, foram desperdiçadas em disputas movidas por interesses
pessoais, ciúmes, vinganças políticas, intrigas, conspirações e outras atitudes
negativas que, vistas de hoje, desmerecem vultos históricos como Ruy Barbosa,
Luis Viana, Severino Vieira, José Marcelino, Araújo Pinho, J. J. Seabra e Antonio
Moniz de Aragão 16. O governo federal, que frequentemente se envolvia nas querelas
provinciais, também teve sua parcela de responsabilidade: por exemplo, o
presidente Hermes da Fonseca mandou bombardear Salvador em apoio a JJ.Seabra
e Epitácio Pessoa que firmou acordo irresponsável com os “coronéis jagunços” em
1920, ignorando radicalmente o governo estadual. A este respeito, em 11 de janeiro
de 1912, em editorial na sua primeira página, intitulado Lagrimas de Sangue,
escrevia o Diário de Notícias:
[...] A política, nesta boa terra, bradamos todos os dias, nós os
prejudicados, tem sido a causadora de todos os nossos males de

16
Não foram citados outros vultos mais recentes como Juracy Magalhães, Simões Filho, e Antonio
Carlos Magalhães que no governo ou fora dele marcaram sua época.
29

todas as nossas queixas, de todas as nossas amarguras, de todas


as nossas grandes infelicidades, passadas, presentes, e, talvez,
futuras. O egoísmo criminoso de muitos, não querendo respeitar a
soberania popular; a ambição natural, embora ilimitada de outros; a
falta de patriotismo, por falta de comprehensão das coisas; a
teimosia, a vaidade dos nossos homens públicos, arrastaram a
Bahia, digna de ser um dos estados que marcham na vanguarda
victoriosa da Federação Brazileira, á triste condição que o seu povo
chora actualmente, com lagrimas de sangue...

Um balanço apurado das atividades realizadas pelos diversos


governadores do período não assinala atividades seminais em prol do
desenvolvimento do estado. Limitaram-se ao “feijão com arroz”, às intensas brigas
paroquiais, e a consumir-se com as finanças combalidas do estado. Perderam a
representividade junto aos poderes da república ficando fora da política do “café com
leite” comandada por São Paulo e Minas Gerais. Os governadores passaram suas
gestões tentando equilibrar o caixa do tesouros estaduais, sempre deficitários e
dependentes de uma dívida pública que se acumulava a cada ano. Segundo
levantamento efetuado no governo Góis Calmon , em dezembro de 1927, esta dívida
totalizava, ao câmbio de estabilização, Rs 149.038:032$140 que correspondiam em
89% a créditos ingleses e o restante, a créditos franceses. Em moeda estrangeira, a
dívida totalizava £ 3.267.438-4-0 e Frs.48.230.500.
Basicamente até a metade do século assinalavam-se investimentos na
construção de infraestrutura com destaque para o sistema ferroviário que na
realidade constituiu um excelente negócio para a Inglaterra, numa época em que a
modernização de suas ferrovias, com a mudança de bitola das estradas, sucateava
compulsoriamente grande parte do material rodante que, defasado, necessitaria ser
descartado. É impressionante o depoimento do governador Góis Calmon que em
1924 afirmava:
Efetivamente, enquanto crescia o parque ferroviário do Sul, sempre
fazendo crescer os mercados de consumo, nós nos limitávamos a
uma estrada de penetração para o São Francisco, uma outra para o
sudoeste, e uma que tentava o centro. No mais, ficávamos
arranhando o litoral como caranguejos. Enquanto todo o Norte,
incluída a Bahia, possuía, em 1919, cerca de 5.290 km de ferrovias,
o nosso Estado possuindo 1.728, o Sul possuía 22.548 km,
sendo que São Paulo com 6.615 e Minas com 6.613. A
situação não se alteraria para o futuro, com o decréscimo, para
nós, em qualidade, a disparidade ocorrendo, também, no setor
das rodovias.
30

Em 1958, já no final do governo Antonio Balbino, quando a CPE de Rômulo


Almeida elabora o Plandeb, não havia mais como recuperar o tempo perdido pela
Bahia no processo de crescimento da economia brasileira. Ademais, as ações
desenvolvidas na segunda metade do século XX, na formulação das políticas
públicas e no planejamento econômico estadual, não obtiveram o sucesso almejado
ao conferir prioridade ao princípio da geração de externalidades e de concessão de
subsídios através de incentivos fiscais, tratando-os como elementos suficientes para
a implantação e o desenvolvimento de parques industriais e elegendo a grande
indústria produtora de bens intermediários, como o “motor” do desenvolvimento
regional. Esta política, resultou na geração de uma base monoindustrial no Estado,
fundada no segmento químico/petroquímico que assumiu a forma de um enclave.
A segunda metade do século XX
Justificando e ilustrando esta conclusão apresenta-se a seguir uma análise
periodizada do período 1960/2000. .
O primeiro período pode ser datado entre os anos 1950 e meados da
década de 1960, a partir de quando começam a surtir efeito as medidas de política
econômica adotadas após o movimento militar de 1964. Contribuíram para o
desenvolvimento industrial do estado, nesse período, alguns investimentos
significativos, na construção da Usina Hidroelétrica de Paulo Afonso, da Refinaria
Landulpho Alves – Mataripe (RLAM), na criação do Banco do Nordeste do Brasil
(BNB) e da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).
No terreno das ideias, é de se registrar a efervescência intelectual da década
de 1950, que culminou com a edição do Plandeb, a criação da CPE, etc. Nesse
período, o parque industrial que se desenvolveu estava concentrado no segmento
das indústrias tradicionais, entre as quais se destacavam as das classes de produtos
alimentares, têxtil, fumo, couros, peles e similares. Essa indústria estava vinculada à
base agrário-exportadora da Bahia e dependente das relações deste setor com o
mercado internacional. Financiada pelo capital-mercantil, operava com baixa
renovação tecnológica e comprando tecnologia pronta ou utilizando aquelas de
domínio público, dependentes apenas do know-how para o diferencial
mercadológico. Em termos de comercialização da produção, tinha o seu tamanho
e condições de expansão e de escala limitadas pela fragilidade do mercado regional.
31

Essa indústria não resistiu ao esforço modernizador da economia brasileira,


deflagrado com o Plano de Metas, em 1956, e gradativamente perdeu espaço para
os competidores do Sudeste, como foi o caso das fábricas de tecidos que
compunham o parque têxtil, nas décadas de 1930/1950.
Foi bastante limitada a participação da Bahia no tipo de industrialização
que é geralmente identificado no Brasil como a substituição de importações.
Uma análise retrospectiva permite observar que, no período marcado pela
predominância desse mecanismo de política econômica, que funcionou como
elemento motor da industrialização brasileira basicamente de 1946 a 1960, a
expansão da indústria na Bahia em seu conjunto foi um movimento tímido,
constituído por alguns projetos industriais de pequenos e médios portes, com
tecnologia equivalente ou inferior à média da produção nacional em cada caso.
O atraso da Bahia no processo de substituição de importações manifestar-se-ia
na pouca diversificação de seu parque industrial e, mais tarde, explicaria as
razões da elevada concentração dos programas industriais. Segundo Pedrão
(1996, p. 76-77) a participação do setor industrial no produto bruto do Estado
passou de 10,5% em 1939, sucessivamente, a 6,8% em 1947, a 13% em 1957,
voltando a 7,6% em 1967, justamente quando se supõe que a substituição de
importações no Brasil já estava em declínio. Ao que tudo indica, esta pouca
participação na substituição de importações estaria vinculada com as
condições de desenvolvimento do sistema financeiro na região e com as
transformações na própria estrutura da empresa, afetando as operações
financeiras, bem como as industriais.
Em síntese, o que ocorreu nesse período foi que a expansão industrial
baiana continuou carente de um impulso predominante que rompesse com o
esquema de economia regional estagnada, característico do período de 1920 a
1950, que tantas inquietações provocou na intelectualidade e nos governantes
baianos. A ampliação do parque industrial entre 1950/1964 não foi suficiente para
sustentar a “decolagem” a partir do aproveitamento significativo das matérias primas
regionalmente disponíveis. Segundo Baer (1996, p. 297), dando números aos
clamores de Clemente Mariani, “o superávit de exportações da Bahia (cacau) para o
exterior resultante da industrialização centrada no Sudeste – o primeiro sendo
obrigado a comprar do segundo sob relações de troca menos favoráveis – implicou
32

numa transferência de renda da região mais pobre do país para a mais rica...No
período de 1948 / 1960 foram transferidos mais de US$ 413 milhões de capital...O
sistema cambial representou uma carga adicional para a economia baiana.” Mesmo
que sendo perdulários e sem talento para investir esta oportunidade nos foi negada.
O segundo período do processo de industrialização da Bahia pode ser
situado entre o final da década de 60 e o início dos anos 80, quando o Estado
experimentou um notável ritmo de crescimento econômico, com as taxas anuais
médias de incremento do PIB superiores a 7% a.a., atingindo 11,3%, em 1978, e
11,1% em 1980. Nesse período, quatro fatores influenciaram o desenvolvimento
industrial, a saber: i) o impacto inicial de uma política de industrialização,
fundamentada na construção dos distritos industriais do Interior, do CIA e Copec na
RMS, combinada com a atração de investimentos mediante a oferta de
externalidades nestes distritos industriais; ii) o ingresso de substanciais
transferências de recursos federais, através do BNDE, da Secretaria de
Planejamento da Presidência da República (a fundo perdido) e do Sistema
Financeiro de Habitação, o que ativou o mercado regional baiano, dada a realização
de um impressionante conjunto de obras de infra-estrutura física e urbano-social, de
conjuntos habitacionais e da montagem industrial, notadamente no CIA / Copec, que
expandiram consideravelmente a criação de empregos; iii) a disponibilização de
financiamento público preferencial, através do sistema de incentivos fiscais federal e
estadual, que promoveu uma transferência considerável de empresas da região
Sudeste para a Bahia, mesmo que revertida quando do esgotamento do prazo dos
benefícios concedidos; iv) a integração dos projetos baianos com os do governo
federal, notadamente no que se refere à petroquímica.
Nesta época consolidou-se o plano rodoviário federal para o Nordeste, com a
pavimentação da BR-116 (Rio–Bahia) e BR-101 (Litorânea). Essas rodovias
viabilizaram o modelo econômico regional em construção, assegurando as
condições para o escoamento dos intermediários fabricados na Bahia em direção ao
Sudeste, e o abastecimento, por este, do Nordeste, com os produtos de consumo
final oriundos do seu moderno parque de indústrias. Entretanto, a construção do
complexo rodoviário estadual, que possibilitaria a articulação das diversas regiões
33

baianas, produzindo um impacto positivo na integração e expansão do mercado


regional, apesar de planejada em 1950, não foi executada. 17
A opção rodoviária implementada coincidiu com o desmonte do sistema
ferroviário estadual. A desativação da Estrada de Ferro de Nazaré e do Porto de São
Roque do Paraguaçu, na baía de Todos os Santos, implicou na desarticulação do
sistema de transportes que sustentara a produção têxtil e fumageira estadual. Com
isso, ficaram isoladas as bacias do Jaguaribe e do Jiquiriçá, indiretamente
desestimulando o crescimento da região Sudoeste do Estado, cortando-se a relação
interna entre a indústria têxtil e sua região supridora de matérias-primas 18.
Contudo, esse período foi o mais importante da história econômica recente da
Bahia e o seu movimento de industrialização, segundo a estratégia concebida no
Plandeb, foi conduzido pela implantação das principais indústrias dinâmicas do
estado, como as da petroquímica (Copec/CIA), as metalúrgicas Usiba, Sibra e Alcan
(no CIA) entre outras, produtoras de bens intermediários que, de uma participação
da ordem de 43% no valor bruto da produção estadual em 1959, passaram para
80% nos anos 80.
Abstraindo a indústria químico petroquímica, que gradativamente dominou a
economia industrial do Estado, destacavam-se, nesse período, como segmentos
altamente promissores, o siderúrgico e, sobretudo, os da metalomecânica e elétrica.
Entretanto, na década seguinte, o setor siderúrgico acabou não prosperando
pela prioridade conferida pelo governo federal aos projetos desse setor implantados
na região Sudeste. O mesmo ocorreu com a metalomecânica cuja limitação, na
Bahia, não foi apenas de volume da demanda, mas de sua capacidade de estimular
sua renovação e ampliação.
Na ausência de uma indústria de bens de capital, como as de veículos ou a
naval, com as quais se integrasse em relação de complementaridade, ficou a
metalomecânica em completa dependência da indústria do petróleo. Só podia
renovar seu capital e aprofundar sua especialização na medida em que a Petrobras
sustentasse suas compras, o que acabou não ocorrendo.

17
Essa lacuna no plano rodoviário estadual, que persiste até os dias atuais, implica numa séria ameaça
territorial para a Bahia, que vê a possibilidade de parte considerável do oeste baiano ser polarizado pelo eixo
ferroviário programado pela Ferronorte que ligará o Porto do Itaqui no Maranhão ao Planalto Central
18
Posteriormente, em 1996, a Rede Ferroviária Federal – Leste Brasileiro, 7ª Região, que atendia ao Estado da
Bahia, Sergipe e Minas Gerais, com 1.905 km de linhas, foi privatizada. Atualmente o sistema está inoperante e
completamente sucateado (SPINOLA, 2005).
34

Isto posto, o sistema industrial na Bahia estruturou-se com base no conjunto


das vantagens embutidas na oferta de insumos derivados de combustíveis e de uma
oferta crescente de energia hidrelétrica que sustentou a articulação operacional do
complexo petroquímico. O uso maciço de energia a preços administrados
representou um subsídio significativo que operou a favor das empresas
petroquímicas, usuárias desses energéticos, comparando-se com a estrutura de
custos das demais empresas 19.
O terceiro período do processo de industrialização da Bahia inicia-se na
metade dos anos 80, quando as transformações da economia nacional, nas décadas
de 1980 e 1990, refletiram o que tem sido denominado “décadas perdidas” para o
desenvolvimento econômico da quase totalidade da América Latina. Na década de
1980, a economia brasileira ficou na dependência dos reajustes impostos pelas duas
crises mundiais do petróleo, que funcionaram como indutoras de um reordenamento
muito mais amplo dos controles internacionais de mercado, a partir de grandes
políticas de gestão energética nos países mais ricos, do controle do consumo de
energia e do desenvolvimento da informática.
Com a introdução dos processos de automação e a realização de
investimentos maciços em técnicas de conservação de energia e de energéticos, os
países mais industrializados deslocaram as condições internacionais de
concorrência, abriram novas oportunidades de investimento em renovação
tecnológica e, especificamente, nas tecnologias guiadas pela proteção do meio
ambiente. Atualizar-se tecnologicamente tornou-se mais caro, para países e
empresas, levando os mais ricos a estratégias que evoluíram ao longo desse
período, desdobrando-se de diversos modos, no sistema de produção,
estabelecendo, consequentemente, consideráveis vantagens competitivas vis-à-vis
os países em processo de desenvolvimento.
Esses fatores obrigaram as empresas a uma reorganização produtiva muito
maior que a indicada por suas necessidades de reposição de capital. Por sua vez,
isso determinou um atraso no atendimento de necessidades sociais, acumulando
uma dívida pública, externa e interna, que, com os custos sociais da própria política
de estabilização, tomou a forma de uma dívida social que se projetou sobre os anos
seguintes até a atualidade. Para os países subindustrializados como o Brasil, essa
19
Cifras do balanço energético estadual para 1993 indicavam que os grandes compradores de
energia pagavam preços que equivaliam a um terço dos custos de produção desse insumo.
35

pressão adicional traduziu-se numa ampliação de seu atraso relativo em


investimentos em infra-estrutura, limitando sua capacidade de competir em
mercados internacionais. A despeito da crise econômica das décadas de 1980/1990,
manteve-se a predominância do segmento químico e petroquímico que determinou o
perfil da indústria metalomecânica e elétrica e condicionou, inclusive, as pequenas
empresas dos ramos de serviços. Esse parque industrial ganhou dimensões que lhe
permitiram substituir a produção cacaueira como líder da economia estadual. Em
1995,representava 12% do PIB e 25% da arrecadação do estado, com uma
produção de 5 milhões de t/ano, representando uns 55% da produção nacional.
Gerava cerca de 17 mil empregos diretos e 9 mil indiretos, apesar de ter então caído
do patamar de 26 mil empregos diretos e 27 mil indiretos registrados em 1986,
segundo os registros da SICM / Sudic.
Em 1996, a despeito do seu valor bruto da produção ter correspondido a
apenas 59% do registrado em 1980,as indústrias do complexo petroquímico
acusaram resultados favoráveis, apesar da contenção de seus lucros, causada pela
elevação dos preços da nafta. As vendas do complexo, em relação a 1995,
aumentaram em 6%, permanecendo a Copene como maior empresa da Bahia, com
uma receita líquida de R$ 1,1 bilhão. Suas exportações foram 27% maiores que as
do ano anterior. A elevação da capacidade de produção de eteno para 1,1 milhão de
t /ano foi concretizada. A privatização desse setor foi marcada por uma intensa
atividade dos grupos empresariais na busca de composições acionarias que lhes
assegurassem a sobrevivência e perspectivas de crescimento nos anos
subsequentes do século XXI, o que de fato vem ocorrendo notadamente na
expansão em direção a outras regiões do país, como as do cone Sul.
Vale ainda observar que a tentativa de industrialização polarizada na Bahia,
de fato realizada na década de 1970, surgiu justamente quando se acelerava o
reordenamento mundial da produção industrial, ficando portanto, previamente
condenada a um envelhecimento tecnológico precoce, que foi reforçado pela
estrutura organizada a partir do sistema tripartite de constituição do capital das
empresas e sustentado pelo oligopólio do sistema Petroquisa, que garantiu preços
subsidiados de matéria prima (nafta). O peso relativo do valor da matéria prima na
composição dos custos dessas empresas, retirado o subsídio, compromete a sua
competitividade em um mercado do capital globalizado.
36

Por outro lado, a elevada mortalidade de empresas, registrada nos distritos


industriais da Bahia, notadamente no Centro Industrial de Aratu – CIA, ao longo
desse período, não se deveu somente ao encerramento de uma fase de
aproveitamento especulativo dos subsídios e dos incentivos fiscais, mas, também, a
autênticos problemas de administração de empresas, que vão desde a gestão
insatisfatória dos negócios, da inadequação tecnológica dos processos e
equipamentos às dificuldades de financiamento.
Os problemas hoje enfrentados na promoção de novas empresas, sob
diversas formas, enfrenta, precisamente, essas questões que ligam a eficácia
gerencial com o quadro de financiamento e os usos adequados de tecnologia.
Mas o endurecimento do ambiente competitivo internacional, paralelamente à
perda de capacidade de financiamento do Estado, pôs a nu as dificuldades internas,
tanto as do próprio setor petroquímico, para subsidiar a indústria polarizada, como
problemas de gestão das empresas, decorrentes do desenho institucional e das
bases culturais das empresas envolvidas nesse processo. Verificaram-se perdas
substanciais de diversas empresas e várias falências, no trajeto, que levaram ao
reordenamento da capitalização e da operacionalidade do setor.
Entre 1980 e 2000 a indústria baiana sobreviveu num ambiente de mudança
de mercado, em que passou de uns 80% de vendas a um mercado interno
oligopolizado, a ter que vender proporção equivalente concorrendo no ambiente
internacional controlado por produtores de maior porte. Isso significa que, nesse
período, a industrialização na Bahia passou, novamente, a depender diretamente de
ajustes na economia nacional em um dos seus setores mais sensíveis, no qual o
realinhamento do capital se fez mediante investimentos de alta densidade de capital
e alta tecnologia.
Por extensão, isto significa ainda que o perfil da indústria implantada no
complexo de Camaçari rapidamente tornou-se parte dos movimentos mais
acelerados de concentração de capital no país.
O quarto período do processo de desenvolvimento industrial da Bahia
começa no alvorecer século XXI com o advento de um parque automobilístico
(Projeto Amazon /Ford) a grande esperança do meio técnico governamental. A
despeito de representar um investimento superior a US$ 2 bilhões este projeto não
produziu os efeitos de encadeamento almejados pelo governo estadual. O parque
37

brasileiro de autopeças solidamente instalado no país e operando com capacidade


ociosa e o progresso tecnológico recente tanto nos processos produtivos quanto na
infraestrutura e na logística impediram que se repetissem os efeitos multiplicadores
registrados na região Sudeste na década de 1950. Também outras montadoras, a
despeito da expectativa local não se instalaram no estado, refletindo a saturação
nacional do setor. O novo século não começou sorrindo para a indústria baiana, pelo
menos nos seus primeiros quinze anos. A petroquímica cumpriu o destino vaticinado
por alguns analistas independentes20 enfrentando nesses últimos anos uma grave
crise decorrente da falta de modernização tecnológica, perda de escala e
consequentemente de competitividade.
A concentração das atividades econômicas na RMS ainda se mantem
respondendo por 48% do PIB estadual segundo a SEI O colapso do projeto
petroquímico que não correspondeu às expectativas estaduais levou o governo a
retornar aos antigos projetos de fomento a industrialização do interior, sempre
obcecado pela palavra “polo” apesar de que, certamente, a maioria dos seus
governantes jamais tenha ouvido falar em François Perroux. Pelas respostas obtidas
presume-se que tais projetos não tenham produzido os resultados pretendidos,
notadamente pela forma equivocada que norteou a sua promoção como foi o caso
do denominado “polo calçadista”.

6. Padrasto cruel

Quanto a outra hipótese assumida neste texto que se refere ao papel da


política macroeconômica do governo federal, discriminatória, ao longo do século XX
para com a Bahia, observe-se, em primeiro lugar, que, no passado, este
frequentemente se envolvia nas querelas provinciais, respondendo por uma parcela
de responsabilidade nos descaminhos políticos baianos, como ocorreu, por exemplo,
nas administrações dos presidentes Hermes da Fonseca (1910-1914) que mandou
bombardear Salvador e Epitácio Pessoa (1919-1922), com o acordo irresponsável
com os “coronéis jagunços” do sertão baiano em 1920, by-passando radicalmente
o governo estadual, o que veio contribuir sensivelmente para a concentração das
atividades dos governos no que viria ser a Região Metropolitana de Salvador,

20
A propósito ver Spinola (2003, p.285 e seguintes).
38

abandonando-se o interior a sua própria sorte e, por fim, Arthur Bernardes (1922-
1926), com a intervenção federal na Bahia, movido pela sua inimizade com J. J.
Seabra. Em segundo lugar, isto se confirma pela exclusão da Bahia, dos benefícios
modernizadores da Revolução de 30 pois Getúlio Vargas, buscando modernizar o
estado e acabar com a força do “coronelismo”, marginalizou toda a “brigona”
oligarquia baiana, nomeando para seu lugar novas figuras como Juracy Magalhães
um novo coronel vindo do Ceará. Clemente Mariani banqueiro e legitimo
representante da agricultura baiana, chama a Revolução de 30 de madastra
notadamente pela adoção de uma política cambial desfavorável ao estado. Mariani
deteve-se também no exame da política econômico-financeira oficial do pós-guerra,
concluindo que o monopólio do câmbio, iniciado com a Revolução de 30 e mantido
sob formas diversas, representou uma perfeita espoliação dos recursos da Bahia,
em benefício do governo federal que, desse modo, obteve as divisas baratas, para
atender às suas necessidades administrativas, ou mesmo à sua política econômica,
geralmente traçada com absoluta insensibilidade para com o interesse do estado e
da sua população. Aguiar (1972) também responsabilizava, entre outros fatores que
contribuíam para a estagnação da economia baiana, o desgaste do intercâmbio
comercial interno com a política cambial vigente no país, agravando a tendência
estrutural da deterioração da relação de preços dos produtos exportados para os
outros estados e das mercadorias deles importadas; a escassa capacidade de
poupança, decorrente destas causas e o reduzido estímulo aos investimentos, em
virtude de tais variáveis. Segundo Baer (1996, p. 297) a Bahia e o Nordeste através
deste mecanismo cambial vigente no período de 1948 / 1960 viram transferidos mais
de US$ 413 milhões de capital para o Sudeste.
Quando da elaboração do PLANDEB, único plano de desenvolvimento
elaborado na Bahia, registram-se queixas do tratamento dispensado pelo Governo
Federal: “A Bahia reivindica há muito, investimentos compensatórios pela baixa
remuneração de suas exportações, que a tem privado de capacidade para realizar
investimentos básicos no seu território, a fim de propiciar mais largas possibilidades
de emprego à sua população. Tal reivindicação, que corresponde a inversão de
parte dos saldos dos ágios das exportações baianas, a Bahia está pronta a partilhar
com todo o Nordeste (BAHIA – CPE, 1960). (...) Lamentavelmente, entretanto, a
realização das “metas” no território baiano não tem obedecido ao mesmo ritmo que
39

se verifica em outras partes do Pais. Exemplo conspícuo é o atraso no programa


relativo às construções rodoviárias e ao reequipamento da ferrovia federal Leste
Brasileiro. Os exemplos podem ser repetidos em todos os setores. Nem mesmo o
acesso a Brasília – que é reputado “meta síntese” pelo governo Federal – foi
considerado a partir da Bahia, a despeito de se localizarem em sua costa os portos
que estão mais próximos da futura Capital do País e cujas ligações se favorecem
por sensível redução de distância virtual .Aparentemente, a Bahia ficou relegada
para outra época (grifo nosso), seja pelas condições políticas já ultrapassadas, seja
peIa duvidosa doutrina de concentrar todos os recursos nacionais no suposto centro,
dinâmico do Pais, a fim de que dai se possa irradiar mais tarde o progresso para o
resto do Brasil. Não tem sido levados em conta pelo Governo Federal 3 fatores que
impõem prioridade para investimentos na Bahia: 1) a existência de recursos naturais
e humanos que possibilitam uma alta produtividade a investimentos programados,
em “benefício de exportações e do programa de desenvolvimento do País”; 2) a
compensação parcial às contribuições da economia baiana para o desenvolvimento
geral do País (contribuição cambial e petróleo); 3) o necessário e inadiável
atendimento de padrões mínimos de subsistência e de educação a todos os
brasileiros, como objetivo que, mantendo e valorizando o capital humano da
nacionalidade pretere, inclusive, investimentos de tangível carater
desenvolvimentista. Não nos referimos a um estímulo ao consumo convencional,
prejudicando as poupanças, nem a um igualitarismo impossível nos níveis de vida,
mas apenas ao atendimento das condições mínimas de nutrição, de educação e de
emprego, sem o que não existe um povo organizado e muito menos um mercado
interno que dê base ao desenvolvimento industrial . Evidentemente, o “Programa de
Metas” do Presidente Juscelino Kubitschek não pretendeu desconhecer essa
necessidade. O programa da Bahia apela, só como último argumento, para esse
objetivo nacional de manter e valorizar o potencial humano, porque realmente
apresenta todas as outras condições para se integrar plenamente no programa
nacional de desenvolvimento (BAHIA – CPE, 1960 p. 14-15).
Ademais, a Bahia além de não participar do processo de substituição de
importações não foi contemplada pelo Plano de Metas de Juscelino Kubitschek,
40

justamente quando ocorria o take off da economia brasileira. 21Também não


conseguiu sediar a Sudene ou o Banco Nordeste ou qualquer outra autarquia federal
da região o que, decerto contribuiria e muito, para melhorar a formação do seu
capital humano e social.
E assim, em termos concretos, a Bahia perdeu, ou foi empurrada, do bonde
da história pelas circunstâncias aqui descritas e pela incompetência e desunião das
suas lideranças.

7. Um discurso a favor do Capital Social

A Bahia não conseguiu formar ao longo do tempo um estoque de capital


humano e social que alimentasse as máquinas do desenvolvimento como aquele
que os imigrantes trouxeram para o Sul e Sudeste do Brasil, confirmando o que dizia
Marshall (apud FONSECA,1992, p.65) que no longo prazo, a riqueza nacional é
governada mais pelo caráter da população do que pela abundância de
recursos naturais . Como assinala R. Reisman, Marshall via no "caráter nacional",
ou seja, nos atributos éticos e intelectuais da população, "um dos mais valiosos
entre todos os insumos da função de produção, um dos ingredientes mais decisivos
na receita do crescimento econômico" (Reisman, 1986: 174). Para ele, "objetos,
organização, técnica eram acessórios: o que importava era a qualidade do homem"
(Pigou, 1925: 82). Justamente o que nos faltou e nos tem faltado ao longo da
história.
Empreendedorismo, dinamismo e competitividade sempre foram termos
ausentes na história da Bahia inclusive no século XX. Como causa disto não se
pode desprezar o efeito da formação humanista transmitida desde os primórdios da
colonização, fortemente influenciada pelos colégios jesuítas, que nos legaram a
formação escolástica dominante até, pelo menos, a segunda metade do século XX.
Vem daí nossa resistência às atividades manuais, consideradas indignas dos
“homens bons” e, consequentemente, a nossa dificuldade para o desenvolvimento
de manufaturas e tecnologia.(SPINOLA, 2003). Mas este preconceito não era

21
A construção da BR-116 , Rio-Bahia , inserida no programa rodoviário de JK foi um atendimento ás
demandas do parque industrial paulista ansioso para atingir os mercados nordestinos com os
produtos de suas fábricas, muitas dimensionadas com capacidade ociosa dadas as escalas de
produção dimensionadas em função da tecnologia moderna.
41

apenas da elite portuguesa. Era geral entre os brancos. Segundo o desembargador


João Rodrigues de Brito em sua célebre carta de 1807 (2004, p.118):
A preocupação nacional, que excluía dos empregos todos
aqueles que por si, seus pais, ou avós, tivessem exercido artes
mecânicas, isto é, que tivessem contribuído com o seu trabalho
para a multiplicação das riquezas. Um escrivão da mais
insignificante Câmara não pode encartar-se na propriedade de
seu ofício, sem provar verdadeira, ou falsamente, a perpétua
inação de seus braços e dos de seus pais e avós.

E por isso Salvador, como de resto as grandes cidades coloniais, se


transformava numa das ”lixeiras dos impérios” (Boxer, 1969). Aventureiros,
excluídos de toda a natureza vindos do Reino, aqui buscavam fazer o seu “Brasil”,
ou seja, mudar de condição social, fazendo valer apenas a brancura da pele e a
condição de reinol, portanto superiores ao conjunto dos nascidos na Bahia, mesmo
os mais ricos. Estes eram os grandes trunfos de uma população portuguesa em uma
sociedade escravista baiana que terminariam por constituir o grande contingente de
ociosos urbanos que recusavam todo trabalho de negro, ou seja, todo trabalho
manual que os pudessem desqualificar como superiores.
Já quase na metade do século XX o governador Góes Calmon, assessorado
por Anísio Teixeira, seu secretario da educação, tentava romper claramente com o
humanismo jesuítico e optar pela formação técnica e pragmática, Góes Calmon
estabelecia uma comparação com a escola americana, mostrando que,
diferentemente da nossa, aquela faz com que [...] a creança americana deix [e] (a) a
escola como um pequenino e emprehendedor homem de trabalho, (grifo nosso)
cheio de iniciativa, levando mais em conta os resultados materiais de sua actividade
do que os cuidados com a sua cultura intelectual. E acrescentava
[...] ora, na America, os trabalhos manuais e o desenho têm sido a
grande escola de desenvolvimento da personalidade pelo cultivo
intensivo da vontade e do pensamento. Enquanto as escolas
theoricas e livrescas desenvolvem a intelligencia e a imaginação,
descurando a vontade, a educação americana fortifica sobretudo
esta pela acção. Toda a educação primaria americana assenta nesse
principio froebeliano: educar pela ação” (1924,p.65).

Observe-se que, há 90 anos, atrás Góes Calmon já falava, pioneiramente, na


formação empreendedora e dinâmica do nosso povo. Por que isso não ocorreu?
42

Os esforços de promoção do desenvolvimento das regiões têm-se


concentrado, historicamente, na formação bruta de capital fixo, mediante a atração
de indústrias e a construção de infraestrutura que ofereça externalidades para as
empresas atraídas para a região.
A despeito da importância desta política, não se tem conseguido, por seu
intermédio, resolver questões relacionadas com o desemprego e com os
desequilíbrios sociais da renda, assistindo-se à permanência e à intensificação dos
índices de pobreza, que funcionam como freios às possibilidades de ampliação de
um mercado e da aceleração do processo de desenvolvimento.
Percebe-se que a industrialização, por si própria, tende a gerar cada vez
menos empregos diretos e que os seus efeitos multiplicadores sobre as demais
atividades econômicas não ocorrem com a intensidade de décadas passadas. Por
seu turno, a agroindústria, na medida em que se moderniza, contribui para a
expulsão da população do campo, deslocando-a para as periferias das cidades.
Tomando a Bahia como exemplo, observamos que a ausência de uma
política nacional e regional de industrialização, a má conservação da malha
rodoviária estadual e outras carências infraestruturais contribuem significativamente
para que mantenhamos uma rarefação espacial que nos acompanha desde o
período colonial, fazendo com que nossos centros dinâmicos do interior, como
Juazeiro, Barreiras, Vitória da Conquista, Feira de Santana e Ilhéus, por exemplo,
pouco ou quase nada se comuniquem entre si e circundem um vazio que
conhecemos como Semi-árido.
Por esses motivos e pelas características do nosso processo de
desenvolvimento capitalista tardio, não conseguimos fazer funcionar os mecanismos
de complementaridade agroindustrial e comercial de que falavam os teóricos do
desenvolvimento ainda na década de 60. Em outras palavras, não temos um parque
de transformação ou cadeias de produção integradas que assegurem o nosso
desenvolvimento auto-sustentado. Somos, assim, uma economia reflexa da
economia do Sudeste e comandada de fora para dentro de acordo com as
estratégias mercadológicas dos grandes grupos capitalistas nacionais e
internacionais.
Queixamo-nos de que não temos empresários, daí a necessidade de importá-
los. Só que, com isto, em diversas circunstâncias e a despeito da nossa boa-fé,
43

atraímos muitos predadores que aqui não vêm para fincar raízes, mas para explorar
ao máximo as vantagens atracionais oferecidas, na eterna disputa que marca os
esforços de promoção do crescimento econômico dos estados nordestinos.
Talvez um dos nossos problemas mais sérios consista no nosso
aprisionamento a um paradigma que nos desvia a visão de outras perspectivas a
explorar. Ou seja, há quarenta anos que repetimos a mesma política, ainda traçada
por Rômulo Almeida no Plandeb, quando não trabalhamos em curto prazo num
pragmatismo radical que nos leva a explorar com relativo sucesso, as oportunidades
que se apresentam, como foi recentemente o caso do projeto Ford, de elevada e
penalizante relação custo benefício para as finanças públicas. Mas é fato que estes
sucessos episódicos, associados a uma postura neoliberal, nos fez parar de pensar
a Bahia em longo prazo. Paramos de planejar o nosso futuro. Paramos de discuti-lo.
Nos governos dos liberais, até agora apeados do poder, assumiu-se uma visão
dogmática e maniqueísta de que as ações do estado no campo econômico seriam
improdutivas. Exaltava-se o mercado e a iniciativa privada. Os socialistas atualmente
no poder implantaram um sistema hibrido em que aceitam vários paradigmas
liberais, mas os limitam por um regulacionismo radical. Porém, em qualquer dos
regimes, o que prevalece como um contraponto é o patrimonialismo que nos foi
transmitido pela herança lusitana.
Uma das consequências mais preocupantes desta estrutura é a ausência
de uma política de formação de capital humano. Que, talvez, se formulada de
forma consistente, poderia induzir, em médio prazo, respostas aos desafios
que enfrentamos para promover o desenvolvimento da Bahia em condições
mais justas e duradouras.
Falar em capital humano nos remete obrigatoriamente a questão educacional
onde somos um desastre. Um exemplo clássico é o da taxa de analfabetismo na
Bahia que passou de 14,43% para 15,86% entre 2011 e 2012. O número de baianos
analfabetos cresceu nos últimos dois anos e já atinge 1,712 milhão de pessoas.
Esses dados são resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
de 2012, divulgados recentemente pelo IBGE. Mas o governo vem gastando milhões
em propaganda para convencer os baianos de que o seu programa TOPA – Todos
pela Alfabetização, vem acabando com o analfabetismo e já alcançou mais de um
milhão de adultos. Os dados do Pnad desmascaram essa conta do governo.
44

A disparidade entre a falácia da propaganda governamental e o mundo real


do ensino também é constatada no histórico dos recursos aportados nos últimos
anos para a Educação. A tendência fortemente declinante das aplicações financeiras
estaduais mostram o descompromisso com a Educação e contraria o discursos
político de prioridade ao setor repetido pelo Governo. Em 2006 o percentual de
aplicação de recursos em Educação com relação a Receita Líquida de Impostos foi
de 28,96%. De lá pra cá esse percentual vem reduzindo chegando a 25,89% em
2011. Cai ainda mais para 25,51% em 2012, o menor índice aplicado dos últimos 12
anos na Bahia.
O estrago desse tipo de gestão descompromissada com a eficiência do
ensino já é bem visível e revelado pelo Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica- IDEB, indicador criado pelo governo federal para medir a qualidade de
ensino das escolas públicas. Os resultados do IDEB de 2011, sinalizaram a queda
dos indicadores do Nível Médio na rede estadual baiana em comparação com 2009,
recuando de 3,1 para 3,0 afastando-se ainda mais da média brasileira que foi de 3,4.
O desastroso desempenho da rede estadual de educação em relação à sua
principal atribuição, que é o nível médio, infelizmente ficou confirmado com a
divulgação no início de março deste ano do 5º Relatório Anual de Olho nas Metas –
2012. O acompanhamento é feito a partir dos resultados obtidos em Língua
Portuguesa e Matemática no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica do
Ministério da Educação e Cultura – SAEB, realizado a cada dois anos.
A gravidade dos resultados obtidos para o Ensino Público do Nível Médio na
Bahia é que, além de serem muito baixos, mostraram uma queda acentuada. Para
Língua Portuguesa, em 2009, apenas 23,35% dos alunos tinham aprendizado
considerado adequado. Em 2011 caiu para 17,2%, uma queda de 26,15%,
revelando inegavelmente que a qualidade de ensino na rede estadual despencou
entre 2009 e 2011. Em Matemática, a situação do ensino baiano é ainda mais
dramática. Em 2009 apenas 4,5% dos alunos tinham aprendizado considerado
adequado. O problema é que em 2011 esse número foi reduzido a apenas 2,8%,
uma queda de 37,7% em relação a 2009, bem superior à queda registrada na média
brasileira, que foi de 10%.
Sentimos a necessidade da formulação de uma política que contribua para o
aproveitamento dos jovens profissionais egressos das universidades baianas,
45

lançados anualmente num mercado que não oferece oportunidades de trabalho,


consolidando nossa posição de exportadores de mão-de-obra qualificada. A
despeito da crise universal do emprego, como categoria social, isto se agrava na
Bahia, porque as empresas que aqui se implantam preferem importar mão-de-obra
das suas regiões de origem por considerá-la mais produtiva, num preconceito
injustificável e odioso para com os baianos, mas que se alicerça no próprio
pensamento de parte das elites locais. Ouvimos de um ex-líder empresarial a
afirmação de que se “espremidas” todas as sete universidades baianas não dariam
meia xícara de uma Unicamp ou de uma USP. E aí a preferência é pela contratação
de consultorias, estudos e pesquisas às universidades do Sudeste, até porque são
grifes. Este fenômeno, que se agrava e generaliza (o mercado baiano de empresas
de consultoria desapareceu) é o retrato perfeito do neocolonialismo interno de que
somos vítimas.
Pode parecer xenofobia, mas não é. Basta que se observe atentamente o que
vem ocorrendo no mercado de trabalho. Precisamos, e muito, da proteção do
governo estadual e de uma política de follow-up em relação aos projetos que se
implantam na Bahia com forte apoio governamental, a qual deve ser exercitada
pelos nossos organismos de fomento.
Além dessa ação no mercado, junto às empresas beneficiadas com
incentivos, como requisito para a geração de empregos locais (parece que isso já
ocorre no Projeto Amazon, apesar das críticas de que apenas os salários mais
baixos são destinadas à mão-de-obra local) existe um grande potencial de
cooperação nas universidades baianas que pode ser utilizado pelo governo
estadual.
Por exemplo, por que não montar uma espécie de Projeto Rondon, utilizando
professores e estudantes universitários de diversas áreas para atuar em programas
de saúde pública, de desenvolvimento local, de combate a pobreza etc. etc.? Por
que não intensificar a prática de utilização de estagiários nos órgãos públicos,
segundo um programa estruturado de treinamento que ampliaria consideravelmente
o raio de ação do governo a custo significativamente reduzido? Por que não utilizar o
potencial de pesquisa dos diversos doutorados e mestrados, canalizando-os para
temas de interesse local e regional? Por que não privilegiar a universidade baiana
46

nos contratos de consultoria que, na maioria da vezes, são ajustados com


instituições do Sudeste e mesmo do exterior?
É bem verdade que se torna necessária uma melhor articulação das
universidades locais. É preciso que se estabeleçam critérios de aferição de
qualidade dos serviços e exigências quanto aos cumprimentos de prazos e normas
técnicas.
Para que uma política desta natureza tenha sucesso, é necessária uma firme
decisão de governo e um sólido apoio político. Muitos serão os interesses
contrariados, os preconceitos a serem vencidos, além da falta de união e de
solidariedade que é marca da comunidade acadêmica. É necessário que não se
perpetue o quase-monopólio da UFBA, que leva à discriminação até as
universidades estaduais, nos parcos serviços e recursos alocados para a área. É
necessário que se abra espaço para as duas universidades particulares (UCSAL e
UNIFACS), vítimas de um viés ideológico ultrapassado no tempo, mas que insiste
em sobreviver. É necessário que esta política esteja contemplada entre as
prioridades do planejamento governamental, assegurando-se que não terá o destino
dos esforços da década de 70 que se frustraram com a destruição do Ceped.

7. Passado e futuro – breve discurso utópico

Permanecendo nos primórdios do século XXI os efeitos dos problemas que


marcaram a história da Bahia no século passado e que, com todas as causas aqui
alinhadas, a fizeram perder a trilha do seu desenvolvimento, o prognóstico é de um
futuro sombrio. A manutenção de um status quo de pobreza e de miséria cobrará um
preço cada vez mais alto à segurança e a qualidade de vida dos seus cidadãos,
como de resto se vem assistindo no cotidiano.
Segundo o Banco Central do Brasil - BACEN (2012, p.83) a Bahia se
caracteriza pela produção de bens intermediários e matérias primas, destinados à
exportação para o exterior e para a indústria de outras regiões. Sendo assim é
geradora de divisas para o país e mercado consumidor de produtos finais oriundos,
principalmente, do Sudeste e do Sul, características que limitam e condicionam a
dinâmica de sua economia a movimentos exógenos. Como dito, em termos da
medição macroeconômica já foi a 6ª.economia do País e hoje ocupa a 8ª.posição. A
sua participação no PIB do Brasil segundo o Banco Central se mantem inalterada ao
47

longo dos últimos 15 anos, situando-se em torno de 4,0%. Ou seja, na soma de


relativos está estagnada.
Ainda é a 1ª.economia do Nordeste mas isto não serve de consolo. Ademais,
Pernambuco e Ceará estão crescendo e em breve poderão suplanta-la.
Os esforços de promoção do desenvolvimento estadual têm-se concentrado,
historicamente, na formação bruta de capital fixo, mediante a atração de indústrias e
a construção de infra-estrutura que ofereça externalidades para as empresas
atraídas para a região.
A despeito da importância desta política, não se tem conseguido, por seu
intermédio, resolver questões relacionadas com o desemprego e com os
desequilíbrios sociais da renda, assistindo-se à permanência e à intensificação dos
índices de pobreza, que funcionam como freios às possibilidades de ampliação de
um mercado e da aceleração do processo de desenvolvimento.
Percebe-se que a industrialização, por si própria, tende a gerar cada vez
menos empregos diretos e que os seus efeitos multiplicadores sobre as demais
atividades econômicas não ocorrem com a intensidade de décadas passadas. Por
seu turno, a agroindústria, na medida em que se moderniza, contribui para a
expulsão da população do campo, deslocando-a para as periferias das cidades.
Outro problema grave da Bahia, é a corrupção que, como de resto em todo o
país, é endêmica. A administração pública está repleta de pessoas pouco
qualificadas para o exercício de funções técnicas e especializadas. Não existe
mérito. Não existe competência e profissionalismo salvo poucas e honrosas
exceções.
O estado ou o município bem ao estilo do velho patrimonialismo são fazendas
de propriedade dos estamentos políticos que negociam entre si e loteiam os cargos
para onde se nomeia os afilhados sem qualquer capacidade de exercê-los.
O pior, que perpassa todos os problemas, como uma característica genética
está no comportamento individualista e egoísta do seu povo. O velho e sábio
Octavio Mangabeira já dizia, na década de 1950, captando traços do caráter dos
habitantes desta província que: por pura inveja, o baiano gasta cem mil réis para que
o seu vizinho não ganhe dez mil réis. Muito antes dele e parece que fazendo escola
o poeta Gregório de Matos, o Boca do Inferno, declamava no século XVI: Senhora
Dona Bahia/nobre e opulenta cidade/Madrasta dos naturais/e dos estrangeiros
48

madre./Dizei-me por vida vossa/ Em que fundais o ditame/De exaltar os que aqui
vêm,/E abater os que aqui nascem?
E perguntam qual o futuro que se pode antever para a Bahia ?
Sem mudar este quadro escabroso – e note-se que foi descrito de forma
muito gentil – não muda nada! A Bahia continuará onde está, em marcha a ré, cada
vez mais com uma população assalariada que ganha até dois salários mínimos e
que se dá por feliz com o pão do bolsa família e o circo do carnaval. Ficará, como
ficou no passado a sua hoje rica região Oeste na dependência de um efeito spillover
o qual segundo a teoria de integração neofuncionalista, explica que um dos efeitos
da integração de determinada função gera a integração de outras funções numa
reação em cadeia e por meio de um efeito de transbordamento que levaria à
intensificação dos processos de integração em curso (HAAS, 1970). Ou seja, com o
passar do tempo o estado acabará se beneficiando do progresso dos seus vizinhos
do Sul e Sudeste e do Nordeste (Pernambuco e Ceará) com a migração de mão de
obra qualificada e dos empreendedores que não temos aqui. Numa provável
saturação dos seus mercados de trabalho muita gente começará a identificar aqui na
Bahia grandes oportunidades não aproveitadas ou mal aproveitadas pelos nativos
que não oferecerão qualquer resistência. Este foi o fenômeno que assistimos no
cerrado (Barreiras, Luiz Eduardo) e que começamos a assistir em Salvador como
efeito colateral do CIA/Copec a partir dos anos 1970, notadamente na área de
serviços e na educação superior.
E mudar internamente não é fácil posto que exigiria um Pacto Social que
envolvesse as lideranças políticas, empresariais, acadêmicas e comunitárias.
Este pacto social implicaria num gigantesco e solidário esforço, liderado pelo
governo do estado. Deveria concentrar-se na promoção de investimentos no
capital humano e social da Bahia. Seria necessário uma reforma administrativa do
estado que enxugasse a sua máquina e estabelecesse carreiras profissionais de
servidores públicos; implantação de sistemas de incentivo e valorização do mérito e
da produtividade; treinamento e reciclagem do funcionalismo – notadamente do
pessoal da área educacional, de saúde e de segurança pública. Reforma radical do
ensino fundamental – a exemplo do que ocorreu no governo Serra em São Paulo,
eliminando-se a politiquice crônica incrustada nesta área e estabelecendo padrões
de eficácia e qualidade no ensino. Reestruturação da área de planejamento e de
49

pesquisas desvinculando-a das atividades de gestão orçamentária inerentes à área


fazendária. Descentralização efetiva da administração pública estadual (o que se
almeja desde 1966), criando-se Coredes como no Rio Grande do Sul.
Fortalecimento das universidades estaduais notadamente equipando-as para
atuarem nas áreas de ciências e tecnologia. Integração programática com as
universidades federais, eliminando o distanciamento criado desde os anos 1970.
Integração com a Federação das Indústrias, Comércio e Agricultura, recuperando o
CEPED e associando-o ao SENAI/Cimatec.

Considerações finais, à guisa de conclusão

Aqui não há porque falar em investimentos na infraestrutura, obras,


equipamentos, programas e projetos, porque não se trata de um texto de
planejamento tendo sido seu objetivo responder a duas questões. A primeira, que
lhe da o nome, indaga por que, a Bahia não se desenvolveu como era esperado
apresentando, na atualidade, um quadro significativo de desigualdade social e de
concentração da renda ao longo do tempo e aí perdendo o rumo. A segunda arrisca
algumas considerações sobre o que se deve fazer para uma mudança de status
quo.
Uma tarefa arriscada posto que existem muitos que acreditam que está tudo
no lugar certo, que a Bahia vai bem e tudo mais não passa de crises de pessimismo
ou discurso de oposição.
Questões de opinião, de informação e de sensibilidade.
Vale aprender com Mahatma Gandhi, quando dizia que ”o erro não se torna
verdade por multiplicar-se na crença de muitos, nem a verdade se torna erro por
ninguém a ver...” um dia a luz se faz, só é de se esperar que não seja muito tarde.
Acreditamos ter confirmado com dados históricos que pululam em todos os
livros que analisam a história do Brasil e da Bahia as hipóteses formuladas
inicialmente. Ou seja como o atraso econômico da Bahia foi consequência de uma
trama de circunstâncias que ao longo do tempo produziram a situação atual. A
associação de problemas políticos sociais e econômicos vivenciados pela nossa
matriz colonizadora, que nos legou as amarras de uma burocracia patrimonialista, o
imperialismo vicejante no mercantilismo europeu dos séculos XV ao XVIII ; a
50

escravidão e o modelo de exploração agroexportador; a incompetência


administrativa, o padrão de vida perdulário tão minunciosamente descrita pelo
baiano Wanderley Pinho e a corrupção que caracterizaram a elite brasileira e
baiana; a má condução política do Estado durante a Primeira República; as secas e
demais condições edafoclimáticas adversas; e a política macroeconômica do
governo federal, ao longo do século XX. Uma dose gigantesca de problemas que se
não matou o povo baiano, no mínimo o aleijou.

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OURO E PEDRAS PRECIOSAS UMA RIQUEZA ESTÉRIL

RESUMO

Trata-se aqui de uma breve análise das atividades relacionadas com a extração de minerais ditos
preciosos com destaque para o ouro e as gemas, tomando como espaço de referência física o território
brasileiro e especificamente o baiano, considerando o período compreendido entre os séculos XVI e
XX. Busca-se comprovar a hipótese de que esta mineração traz em si embutida uma espécie de trade-
off posto que, a despeito da fortuna que produz, não compensa aos seus produtores primários e a
economia das suas respectivas regiões que são exploradas e espoliadas. Trabalhou-se com uma
metodologia dedutiva, utilizando-se a análise documental e a pesquisa bibliográfica o que resultou na
confirmação da hipótese aqui assinalada.
Palavras chave: Mineração. Ouro. Pedras preciosas. História Econômica. Brasil. Bahia

GOLD AND PRECIOUS STONES A WEALTH BARREN

ABSTRACT

It is a brief analysis of the activities related to the extraction of precious minerals, especially gold and
precious stones, taking as a physical reference space Brazil and, specifically, Bahia, considering the
period between the sixteenth and twentieth century. The object is to prove the hypothesis that mining
has produced a kind of trade-off since, despite the wealth it produces, does not compensate its primary
producers and the economy of their regions that are exploited and dispossessed. We used a deductive
methodology by analysis of documents and literature that resulted in confirmation of the hypothesis
here marked.
Keywords: Mining. Gold. Precious stones. Mineral economy. Brazil. Bahia

JEL CLASSIFICATION SYSTEM: N36; N56; N96; Q32

1
O ouro brasileiro deixou buracos no Brasil, templos em
Portugal e fábricas na Inglaterra.
(Eduardo Galeano, 1971)

INTRODUÇÃO

Na história do desenvolvimento econômico registra-se que as atividades mineradoras quase nunca


beneficiaram os países pobres e subdesenvolvidos detentores de grandes reservas de ouro e de pedras
preciosas. Estão aí os países da África e da América Latina, entre outros, para comprovar essa
assertiva.
A lenda do Eldorado que invadiu a Europa mercantilista do século XVI foi um mito que em parte
provocou o massacre dos povos americanos pelos espanhóis e portugueses. Tudo acabou resultando
em benefício da Inglaterra que pela potência da sua economia – e a força das suas armas – associada
à habilidade dos seus diplomatas tornou-se a principal receptadora e beneficiária do saque e extração
do ouro, prata e gemas pela Espanha e Portugal nas colônias americanas. Galeano (1971, p.40)
descrevendo o denominado “imperialismo bucaneiro”1 dizia que a:
Inglaterra e Holanda, campeãs de contrabando de ouro, que juntaram
grandes fortunas no tráfico ilegal da carne negra, açambarcam por meios
ilícitos, segundo se calcula, mais da metade do metal que correspondia ao
imposto do “quinto real” que deveria receber, do Brasil, a coroa portuguesa.
(...) Da mesma maneira que a prata de Potosí repicava no solo espanhol, o
ouro de Minas Gerais só passava de trânsito por Portugal. A metrópole
converteu-se em simples intermediária.

Neste estudo, comenta-se este quadro paradoxal onde, tanto no passado quanto no presente, a
produção de riqueza, representada pelo ouro e pelas pedras preciosas e semipreciosas não determina
resultados favoráveis para as fontes produtoras posto que são vitimados por um processo espoliativo,
próprio do imperialismo, que somente beneficia as nações cujos oligopólios dominam o mercado.
Esta premissa maior é analisada neste estudo mediante a utilização do método dedutivo, que segundo
Santos (2008) derivou do pensamento racionalista de Descartes, Spinoza e Leibniz, que assume ser
apenas a razão quem pode conduzir ao conhecimento verdadeiro. Neste caso assumiu-se como
verdadeira e inquestionável a premissa maior, aqui referida para assim estabelecendo relações com
uma proposição particular (o imperialismo) e, a partir do raciocínio lógico, chegar à verdade daquilo
que se propõe (conclusão). Ou, utilizando as palavras de Galliano (1979, p. 39) “a dedução consiste
em tirar uma verdade particular de uma verdade geral na qual ela está implícita”.

1 Segundo Hobsbawm (1988, p.59) a palavra (imperialismo) não aparece nas obras de Karl Marx e foi introduzida na política da
Inglaterra em 1870. Literariamente surge com o livro de J.A. Hobson intitulado Imperialism: a Study publicado em 1902. Somente
em 1916, Vladimir Ilyich Lenine publica o seu clássico O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. O termo bucaneiro é originária
do francês boucanier. Este termo era utilizado pejorativamente pelos espanhóis para denominar os piratas apoiados pela Coroa
Inglesa como Francis Drake e Hawkins que fizeram fortunas com suas pilhagens. A Inglaterra começava, decididamente, a
ameaçar a força armada espanhola. Durante os séculos 17 e 18 a pirataria atingiu o seu ponto máximo e rapidamente a palavra
bucaneiro se tornou comum. (FERNANDES, 2015). A junção dos dois termos expressa uma classificação do fenômeno numa
fase pré-capitalista.
2
Nesta abordagem do caso brasileiro com ênfase no estado da Bahia foram utilizadas técnicas de
pesquisa documental e bibliográfica em fontes primárias e secundárias focadas nas principais áreas
produtoras do país e complementadas por entrevistas semiestruturadas realizadas especificamente
para o setor de gemas e pedras preciosas. No plano documental foram compiladas e consolidadas
informações de inúmeros organismos técnicos como o Departamento Nacional da Produção Mineral
(DNPM); Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM); Museu Geológico da Bahia;
Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI-Ba.); Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE); Centro de Tecnologia Mineral (CETEM) e o Arquivo Público do
Estado da Bahia. Em termos bibliográficos procedeu-se a uma revisão da literatura produzida pelos
autores, antigos e modernos do Brasil e do exterior, que em livros e artigos trataram da questão. Entre
estes se destacam: Antonil (1711); Southey (1810); Varnhagen (1854); Abreu (1907); Azevedo
(1928); Calógeras (1932); Eschwege (1941); Simonsen (1962); Prado Júnior (1957/1959); Furtado
(1959); Sodré (1963); Boxer (2000); Vilhena (1969); Pinto (1979); Teixeira (2001) e muitos outros
referenciados ao final do texto.
A pesquisa se concentrou na extração do ouro e das pedras preciosas desprezando-se a prata que é
escassa no Brasil. 2 Neste texto abordou-se no primeiro capítulo os aspectos históricos numa sequência
ouro, pedras preciosas e Brasil, Bahia no período compreendido entre os séculos XVI e XIX. O
segundo capítulo trata do assunto na atualidade, séculos XX e XXI, na mesma sequência. Segue-se a
conclusão.

1. ELDORADO, MERCANTILISMO E COLONIALISMO

Os séculos XV e XVI assistem no mundo dominador do ocidente um período de profundas


transformações que começam com as grandes navegações que liquidam a hegemonia comercial
veneziana alçando os países ibéricos ao protagonismo econômico mundial; o “renascimento” e a
reforma luterana que inauguram a denominada “idade moderna” e um período de desmontagem
progressiva do que ainda restava do feudalismo e de edificação gradual da nova ordem capitalista.
Surge o mercantilismo cujos princípios segundo Blaug (2001, p.27) são bem conhecidos:
O ouro em barras e as riquezas de todas as classes como a essência da
riqueza; a regulação do comércio exterior (monopólios) para gerar a entrada
de ouro e prata; a promoção da indústria mediante o estímulo às
importações de matérias primas baratas; o protecionismo; o estímulo às
exportações de bens finais e a insistência no crescimento demográfico para
manter baixos os salários e fornecer carne para os canhões.

2 Segundo o DNPM em 2010 o Brasil possuía apenas 0,38% das reservas mundiais de prata, participando com 0,1% da

produção global. (DNPM,2014)


3
A corrida ao ouro alimenta os sonhos portugueses e espanhóis. Portugal a esta altura já é um país
falido 3 e a Espanha segue-lhe os passos. O ouro, a prata e as pedras preciosas por eles extraídos do
Novo Mundo transitam rapidamente pelos seus territórios 4 não gerando investimentos reprodutivos.
Fluem todos para a Inglaterra que marchava célere para o que viria a ser sua revolução industrial nos
séculos XVIII e XIX e através de um possante comércio formava as bases do que viria a ser sua
estrutura capitalista industrial.
Como relata Autor(2009, p.36) o processo de colonização brasileira foi derivado dos eventos
econômicos e políticos que condicionaram Portugal nos três primeiro séculos da nossa história. A
fragilidade portuguesa frente à Inglaterra contribuiu para que, na prática, se exacerbasse um processo
de exploração que constituiu a marca da dominação lusitana. Esta fragilidade e uma relação de
dependência financeira e militar fez de Portugal, na prática um “intermediário” na apropriação das
riquezas extraídas ou produzidas pela colônia brasileira, as quais, preponderantemente, acabavam
canalizadas para os ingleses. Como à época testemunhava ninguém menos que o barão de
Montesquieu, célebre filósofo do Iluminismo, que dizia: “quanto maior for a massa de ouro na
Europa, tanto mais Portugal será pobre, tanto mais será uma província da Inglaterra, sem que por isso
ninguém seja mais rico.” (SCHILLING, 2015). Exemplo disto é o tratado de Methuen 5, firmado entre
a Inglaterra e Portugal, em 1703, que transformou o Brasil, no plano econômico, numa colônia de
uma colônia, visto que os portugueses, a partir desta época, abdicaram praticamente da sua autonomia
(colocando-se sobre a proteção militar inglesa) e, consequentemente, da capacidade de gerir com
independência os seus negócios ditando seus rumos, notadamente no setor industrial.

1.1 O ciclo do ouro

O sucesso espanhol na exploração dos metais preciosos em suas colônias americanas espicaçava a
cobiça portuguesa cujo governo exercia uma pressão constante sobre os seus prepostos brasileiros no
sentido de encontrarem esta ambicionada fonte de riquezas. Este sonho português tornou-se realidade
a partir do final do século XVII. Já não era sem tempo, pois nesta época Portugal e Brasil estavam
numa situação financeira tão precária que só um Eldorado poderia salvá-los, e ele logo seria
descoberto, mas trouxe consigo muitos outros problemas que eliminaram no plano econômico os
benefícios. Segundo diversos autores, a começar por Antonil (1711) relatam que a primeira grande
descoberta deu-se nos sertões de Taubaté. O padre Antonil, no Cultura e Opulência do Brasil, relata:

3 Ver a propósito Azevedo (1928).


4 Quando não foram apreendidos, no caso da Espanha pelos barcos ingleses e no português pelos franceses e holandeses.
5 Este tratado de redação muito simples também conhecido como "Tratado dos Panos e Vinhos", foi um acordo comercial

que em termos práticos eliminou as possibilidades de industrialização de Portugal e, por extensão, do Brasil.
4
O primeiro descobridor dizem, que foi hum mulato, que [...] chegando ao
serro Tripui, desceu a baixo com huma gamela, para tirar agua do ribeiro,
que" hoje chamão do Ouro Preto: e metendo a gamela na ribanceira para
tomar agua, e roçando-a pela margem do rio, vio depois que nella havia
granitos da côr do aço, sem saber o que erão: nem os companheiros, aos
quaes mostrou os ditos granitos, souberão conhecer, e estimar o que se
tinha achado tão facilmente: e só cuidarão, que ali haveria algum metal,
não bem formado, e por isso não conhecido. Chegando, porém, a Taubaté,
não deixarão de perguntar, que casta de metal seria aquelle. E, sem mais
exame, venderão a Miguel de Souza alguns destes granitos, por meia pataca
a oitava, sem saberem elles o que vendião, nem o comprador que cousa
comprava, até que se resolverão mandar alguns dos granitos ao governador
do Rio de Janeiro, Artur de Sá, e fazendo-se exame delles, se achou que era
ouro finíssimo (1711.p.143, Cap. II) [Sic].

Silva Leme (2015), e muitos outros indicam o nome de Antônio Rodrigues Arzão, que, por volta de
1693, teria garimpado uma lavra na Casa da Casca, da qual, porém não chegou a tirar proveito. Seu
parente, Bartolomeu Bueno Siqueira, consegue sucesso, só que nas barrancas de Itaverava em 1697,
“quando o então governador do Rio de Janeiro, Castro Caldas anunciou a descoberta de “dezoito a
vinte ribeiros de ouro da melhor qualidade” pelos paulistas. Iniciou-se então a primeira “corrida do
ouro” na região” (p. 85,86)
Simonsen (1962, p. 297/298) informa que nos 140 anos transcorridos no período compreendido entre
1680 e 1820 a receita total auferida com a extração do ouro correspondeu a US$ 1,003 bilhão, ou
seja, 1.508 toneladas equivalentes a £ 206,013 milhões.
Os diamantes, também de acordo com Simonsen (1962, p.287/289) surgiram em 1729 em Serro Frio
e o seu impacto provocou uma corrida de mineradores e garimpeiros e a queda de 75% do valor do
quilate 6 nos mercados internacionais. A coroa portuguesa assumiu o controle das lavras em 1731.
Simonsen (1962, p.288) apud Azevedo (1928) conta que a produção e a venda sofreram limitações
para evitar a desvalorização do produto. Em 1740 foi adotado o sistema de arrendamento por contratos
que durou até 1771 (neste intervalo de tempo atingiu-se a produção máxima com 1,67 milhão
quilates). A partir daquele ano “substituiu-se o governo violentamente, aos contratantes, apropriando-
se de todas as suas instalações e transformando a exploração e venda definitivamente em monopólio
real”. O total exportado entre 1729 e 1801 está avaliado em 3 milhões de quilates, cerca de £ 9 milhões
não sendo exagerado estimá-lo em £ 10 milhões. (SIMONSEN, 1962, p.289).
Observa-se pela estatística de Azevedo (1928) que no período sob a administração do estado
(1772/1801) a produção teve uma queda de 44%. Azevedo, Simonsen e Calógeras, concordam que

6Segundo a metric-conversions.org/pt-br o quilate é uma medida de peso utilizada para as pedras preciosas. Um quilate é igual a 1/5
de um grama (200 miligramas).
5
no período compreendido entre 1728 e 1801 a produção total de diamantes no Brasil atingiu 3 milhões
de quilates que renderam algo em torno de £ 9,2 milhões. 7
Conforme já observado tanto o Brasil quanto Portugal não se beneficiaram desta riqueza.
No caso do Brasil, segundo explica Pinto (2000, p.29), as características geológicas da região
mineradora 8 condicionaram a estrutura dos empreendimentos que se formaram para a extração do
minério. Tratava-se do ouro de aluvião, que encontrava‑se depositado na superfície ou em pequenas
profundidades no fundo dos rios e de fácil extração, ao contrário das minas do México e do Peru, que
dependiam de profundas escavações. A extração do ouro de aluvião sendo mais simples esgotava-se
mais rapidamente 9. Estas características praticamente eliminavam as barreiras às entradas pela baixa
exigência de capital fixo e foi determinante na organização das lavras sendo as empresas organizadas
no estilo footloose o que conferia à mineração da época caráter nômade. Isto dispensava a realização
de investimentos fixos de grande vulto sendo as empresas intensivas de mão de obra utilizando o
trabalho escravo. A tecnologia adotada era primitiva e representou um dos fatores que determinaram
a decadência da atividade. Esta forma de organização ambulante da economia mineira sem qualquer
ligação direta com a terra, fez com que a riqueza ali produzida fosse dissipada em várias mãos. Essa
pulverização de renda inviabilizou qualquer derivação para alternativas econômicas, (Embeddedness)
já que núcleos manufatureiros, agropecuários ou de transporte foram bloqueados pela draconiana
política fiscalista da Coroa.
Sob o enfoque demográfico a mineração mudou o perfil do país. Segundo Furtado (1959, p.93) “a
crer nas informações disponíveis, a população do Brasil teria alcançado 100.000 habitantes em 1600,
um máximo de 300.000 em 1700 e ao redor de 3.250.000 em 1800.” Furtado calcula que a emigração
portuguesa para o Brasil no século da mineração deverá ter correspondido a 300.000 pessoas podendo
haver alcançado meio milhão. Nestes termos conclui que Portugal contribuiu com um maior
contingente populacional para o Brasil do que a Espanha para todas as suas colônias da América.
A descoberta do ouro aconteceu quase simultaneamente, com o declínio do comércio de açúcar, que
por quase dois séculos foi a base econômica da colônia. Representou uma nova esperança para grande
número de pessoas pobres tanto da metrópole quanto da colônia que não tinham os recursos
necessários para investir nos poucos produtos passíveis de lucro naquela época, o que fez com que
muitos andarilhos migrassem em busca de algo que pudesse ser rentável. Bueno (2006, p.191) relata
que a intensa migração criou um caos no Nordeste brasileiro, com cidades inteiras sendo abandonadas
por habitantes que saíam em busca de ouro nos garimpos. Plantações de cana-de-açúcar foram

7 Segundo o Serviço Geológico do Brasil (CPRM, 2015) o valor de um quilate (ct = 0,2 g) de diamante depende de quatro

fatores (peso, cor e pureza, qualidade da lapidação e forma). Além disso depende das variações do mercado. No caso estimou-
se o valor do diamante bruto (de acordo com o Jornal do Ouro Blogspot em 2015) no valor de € 576 o quilate ou US$ 656,64.
No caso a produção brasileira atualizada para 2015 totalizou algo em torno de € 1,728 bilhão ou US$1,970 bilhão.
8 Quadrilátero Ferrífero situado no Centro-Sudeste do estado de Minas Gerais
9 Em nosso caso durou menos de um século.

6
abandonadas. Houve considerável aumento no preço dos escravos, animais e víveres. Inúmeros povos
indígenas foram dizimados. Como era de se presumir a criminalidade se alastrou por toda a região
das minas.
Sob o enfoque geopolítico a mineração além de induzir a ocupação demográfica da colônia ampliou
significativamente o território expandindo-o para o Oeste e ultrapassando os limites antes fixados
pelo Tratado de Tordesilhas 10. A mineração também deslocou definitivamente o centro econômico e
o aparelho político-administrativo da colônia para a região Sudeste transferindo-se a sede do governo
geral para a cidade do Rio de Janeiro de mais fácil acesso às regiões mineradoras. De acordo com
Autor (2009, p.27) esta medida decretada pelo Marques de Pombal assinala o início da decadência da
economia baiana 11. Nas palavras de Simonsen (1962, p.294) “cessada a mineração, mergulhou o
Centro-Sul na sua primeira grande crise por falta de uma produção rica e exportável.” O enorme
crescimento demográfico criou um mercado interno que passou a demandar a produção local de
alimentos que pudesse suprir as necessidades dos novos habitantes gerando graves problemas de
desabastecimento, carestia e especulação.
Portugal, por seu turno, também não foi feliz com a mineração. Segundo relata J. Lúcio de Azevedo
em seu clássico Épocas de Portugal Económico o país chegava falido ao século XVIII, bastante
atrasado em relação à Inglaterra e Holanda, essencialmente agrícola, dominado por um fanatismo
religioso e por uma Igreja Católica que, com a sua “Santa Inquisição”, cerceava qualquer
possibilidade de modernização e progresso. Vivendo em conflito permanente com o vizinho espanhol,
também bastante atrasado, o país mergulhou num absolutismo feroz e tacanho e afundou
economicamente com seus governantes da dinastia de Bragança especificamente D. João IV o
fundador da dinastia (1640/1650); D.João V (1706/1750) e D. José I (1750/1777). Como relata
Azevedo (1928, p.385) referindo-se a D.João IV “rei feito pela revolução da nobreza, (...) desgostosa
da experiência castelhana (...) antes de aceitar hesitou (...) no receio de perder o patrimônio imenso,
acumulado em três séculos, por capitalização de rendas e dádivas novas.” 12 Azevedo descreve o rei
como “um homem sem escrúpulos, interessado apenas em amealhar riqueza pessoal pouco se
preocupando com o país. Tanto que por duas vezes propôs ceder o reino guardando o título. A
primeira com a França e a segunda com a Espanha” (AZEVEDO. 1928 p. 386). O mesmo autor

10O Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, definiu as áreas de domínio dos territórios ultramarinos, entre Portugal e

Espanha, estabelecendo uma linha de demarcação localizada a 370 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde, de polo a polo.
Caberia a Espanha, as terras do lado ocidental, e a Portugal as do lado oriental. Na prática muita gente desconhecia seus limites
pela deficiência da cartografia na época. Os portugueses avançaram para o Oeste até um ponto que em 1750, pelo Tratado de
Madrid, com base no princípio do uti possidetis defendido pelo luso-brasileiro Alexandre de Gusmão, estabeleceram-se os limites
do território nacional.
11 Antes mesmo da administração pombalina, em 1701 era proibido trânsito de pessoas e o comércio entre a Bahia e Minas

Gerais concentrando-se todo o intercâmbio com as Minas por intermédio do Rio de Janeiro e de São Paulo (CALÓGERAS,
p.76 apud AZEVEDO, 1928, p.315)
12 O futuro rei obtivera para a sua casa ducal a total isenção de impostos, por vinte anos, para a importação de 18 toneladas ano

de especiarias provenientes da Índia, as quais comercializava. (AZEVEDO, 1928, p.385)


7
classifica o rei seguinte D.João V de perdulário e estroina que mediante a realização de obras
faustosas como o Convento de Mafra, donativos e presentes exauriu o tesouro português. Boxer
(2000, p;171) conta que D.João V jactava-se dizendo que “meu avô temia e devia; meu pai devia; eu
não temo nem devo. Seu filho, D. José I, a despeito de contar com ministros da categoria do Marques
de Pombal, ao morrer em 1777 deixava para sua herdeira D.Maria I um pais endividado e beirando a
falência.
A descoberta do ouro no Brasil permitiu o pleno funcionamento do Tratado de Methuen, já que
Portugal adquiriu metais suficientes para financiar todas as importações de produtos ingleses.
Conforme Furtado (1959), o ciclo do ouro brasileiro trouxe para a Inglaterra um forte estímulo ao
desenvolvimento manufatureiro, uma grande flexibilidade à sua capacidade para importar, e permitiu
uma concentração de reservas que fizera do sistema bancário inglês o principal centro financeiro da
Europa (Ibid, p. 40-41).
Guimarães (2014, p.135) assinala a importante contribuição do ouro brasileiro na economia da Europa
Ocidental do Século XVIII um fenômeno que foi destacado em 1728 por Montesquieu e em 1776 por
Adam Smith o qual chegou a concepção de que todo o ouro fundido na Inglaterra na sua época era de
origem brasileira.

1.2 Ouro na Bahia

O historiador baiano V.N. Pinto em seu livro O ouro brasileiro e o comércio anglo-português. Uma
contribuição aos estudos da economia atlântica no século XVIII (1979) reforça após meticulosa
pesquisa a reclamação de Calógeras (1904) quanto à falta de dados sobre a mineração do ouro na
Bahia. Diz Pinto (1979) que “a descoberta e a produção do ouro na Bahia permanecem ainda um
capítulo nebuloso na história da mineração brasileira”. Segundo ele, a despeito da descoberta entre
1702 e 1703 a Metrópole proibiu a exploração até 1720 quando a suspendeu para as minas de Jacobina
e 1721 para as de Rio de Contas.
Neves et al. (2007, p.57) diverge dessas datas informando que a extração do ouro na Bahia começou
entre 1718 e 1719, quando foi descoberto pelo o bandeirante Sebastião Pinheiro da Fonseca Raposo
na região de Rio de Contas localizada ao sul da região da Chapada Diamantina na vertente oriental
da Serra das Almas à margem esquerda do Rio Brumado. Com isso iniciou-se uma fase que marcou
a história da região, fazendo com que o povoado que ali surgiu prosperasse rapidamente. Rica em
ouro de aluvião, a Vila Nova de Nossa Senhora do Livramento das Minas do Rio de Contas, viveu na
segunda metade do século XVIII uma época de grande prosperidade econômica. A partir de 1800 a
então Vila começa a declinar, pelo esgotamento das jazidas aluvionares do minério que é substituído

8
pelo garimpo das pedras preciosas o qual, segundo Mata (2006) teve início em 1844 nos aluviões do
Rio Mucugê.
Mesmo decaindo a extração de ouro, Rio de Contas continuou sendo por muito tempo uma parada
obrigatória nos caminhos reais, que partindo de Cachoeira levava a Goiás e ao Mato Grosso e por
onde passavam as romarias que demandavam a Bom Jesus da Lapa na Bahia e as mercadorias que
chegavam ou saiam do porto de Salvador.
Para Fernandes(2012) a sociedade da mineração na Bahia foi puramente urbana. Rio de Contas
ganhou a cadeira régia de Gramática Latina em 1799 e Tenda de Química e Gabinete Mineralógico
em 1817. Em 1818, Spix e Martius observaram que a população de Rio de Contas “pela educação e
riqueza, se distinguia dos outros habitantes do interior da Bahia”.
Porém a maior estrela da mineração do ouro na Bahia foi a Vila de Santo Antônio de Jacobina, criada
em 1720 e localizada no Piemonte da Chapada Diamantina, no outro extremo do território aurífero
baiano. Devido a um grande êxodo de mineiros para as recém-descobertas minas, a Vila foi elevada
à categoria de cidade pela Lei Provincial nº 2.049 de 28 de julho de 1880, com o nome de Agrícola
Cidade de Santo Antônio de Jacobina. (IBGE-CIDADES,2016)
A ocupação territorial do Piemonte da Diamantina a partir da segunda metade do século XVII e início
do século XVIII não deveu-se exclusivamente à exploração do ouro. A expansão da pecuária em
direção ao sertão do São Francisco, efetivada pelos Guedes de Brito (Casa da Ponte) e pelos
descendentes de Garcia d’Ávila, (Casa da Torre) foi também um importante fator no povoamento
regional.
Em 1725, Jacobina somava 700 bateias e Rio de Contas 830, articulando-se estas duas áreas mineiras,
nos dois extremos da Chapada Diamantina, por um caminho real que servia para o transporte do ouro
processado nas Casas de Fundição 13 instaladas naquelas vilas em 1726, como previa a legislação para
o garimpo. A título de ilustração, entre 1726 e 1727, somente Jacobina fundiu 1.742 quilos de ouro.
As Casas de Fundição foram posteriormente transferidas para Minas Gerais sendo desativadas em
1734 pela introdução do regime das capitações 14. Por fim pela provisão de 1755, o ouro das duas
minas deveria ser enviado à Casa da Moeda de Salvador. Esta movimentada transferência, mudança
de regime e outras medidas de controle assinalava a grande turbulência da época o que levou à
Inconfidência Mineira de 1789 e a Conjuração Baiana uma década depois.

13 Segundo Camargo (2012) As casas de fundição foram criadas pelo “Primeiro regimento das terras minerais”, de 15 de agosto

de 1603, com a finalidade de fundir todo o ouro e prata extraídos das minas, incluindo nesse processo a coleta do quinto.
14 Capitação é o nome dado aos impostos que são pagos e cobrados em diversas épocas da história. O seu valor é independente

do rendimento coletado. No Brasil colonial, foi cobrada a partir de 1734 com o intuito de acabar com a "ociosidade dos negros
forros e dos vadios em geral", que incluía toda a população pobre, fosse branco, negra ou mestiça. Cada dono de escravo, fosse
branco, índio ou negro forro, tinha que pagar, semestralmente, sob pena de confisco do escravo e outras penas, esse imposto de
4 oitavas e 3 quartos de ouro por cabeça de escravo que possuísse. Da mesma forma, os negros forros, os pretos livres e os
brancos pobres, que tivessem ou não escravos, caso trabalhassem com as próprias mãos, também tinham que pagar por si
mesmos esse imposto, sob pena de prisão, multa, com açoites para os negros, e degredo para as reincidências previstas na Lei
da Capitação, com penas diferenciadas para cada casta. (MATOSO,1999)
9
Segundo Pinto (1979) as minas de Araçuaí e as do Fanado, 15 cuja produção passou pela casa de
fundição de Araçuaí, que funcionou de 1728 até 1736, responderam pelo total de 6.403,0 kg de ouro,
enquanto a capitação, de 1739 a 1750, rendeu 1.200,8 kg em face da escassez de documentos e da
localização das minas. Pelas circunstâncias infere-se que ocorreu uma caudalosa corrente de
contrabando do metal através de naus estrangeiras no litoral e dos navios negreiros de partida para a
África.

A despeito dos esforços da Metrópole tudo indica que foi grande na Bahia o desvio do ouro produzido
que contornou sutilmente os cofres governamentais dirigindo-se para as arcas dos coronéis do sertão
ou pirateado para o exterior. Um dos indícios desta evasão é a falta de registros disponíveis para a
produção de ouro pela Bahia. Os informes encontrados cobrem apenas o século XVIII entre os anos
de 1739 e 1750 totalizando nesses 11 anos um total de 1.201,00 kg quando numa soma dos
levantamentos efetuados pelos historiadores indicam valores oito vezes maiores.

1.3 Os diamantes na Bahia

De acordo com o Gold Fields Mineral Services sediado em Londres, na Inglaterra e o Gemmological
Institute of América - GIA, apud Lopes (2001, p.47) o Brasil é considerado e reconhecido como uma
das principais reservas gemológicas do planeta tanto pela quantidade quanto pela variedade de gemas
produzidas. De fato, segundo o Departamento Nacional de Pesquisa Mineral - DNPM, o país é um
dos maiores produtores de águas marinhas, ametistas, esmeraldas, citrinos, berilos, crisoberilos,
topázios, ágata, turmalina, quartzo diversos e diamantes. Destaca-se ainda como o único produtor
mundial de topázio imperial, em Minas Gerais, e turmalina “Paraíba” no Estado com o mesmo nome.

15Segundo Pinto (1979) essas jazidas situadas no território denominado Minas Novas e descobertas em 1727, pertenceram à

Bahia até 1757, quando na divisão territorial passaram para o Estado de Minas Gerais.
10
Foi com esta riqueza que toparam os garimpeiros em meados do século XIX inicialmente na Chapada
Diamantina. Perdidos no tempo os registros oficiais, quando houveram, misturam-se com a lenda. O
geólogo Orville Derby, produziu em 1882 um trabalho que faz referência à descoberta do primeiro
diamante na Chapada, por José de Matos, em 1840, próximo à vizinhança de Santo Inácio, na Chapada
Velha.” Outras descobertas foram registradas, em 1841, na serra do Assuruá, município de Gentio do
Ouro, em 1842, na serra das Aroeiras, em Morro do Chapéu, tornando-se mais tarde um grande
produtor e na vila de Bom Jesus do Rio de Contas, hoje sede do município de Piatã. Theodoro
Sampaio, importante explorador baiano, por seu turno, informa que somente a partir de 1844, a
mineração de diamante tomou rumo com a descoberta feita por José Pereira do Prado, o “Cazuza do
Prado”. Morador da Chapada Velha que ao percorrer as terras marginais do ribeirão Mucugê,
reconheceu o local do terreno como propício e ao fazer um ensaio de algumas horas extraiu grande
quantidade de pedras de alto valor.
O que importa é que, conforme Simonsen (1961) o ciclo do diamante no Brasil durou cerca de 150
anos, da segunda metade do século XVIII até o final do século XIX, quando o País foi o maior
produtor mundial. A produção na Bahia foi iniciada em 1844 e seu apogeu perdurou apenas até 1871,
com declínio da produção e queda de preço que coincidiu com a expansão das jazidas da África do
Sul, descobertas seis anos antes. O colapso da região só não foi maior porque ao lado do diamante
passou a ter valor o carbonado ou carbonato usado na indústria e na perfuração de rochas, sobretudo
durante a abertura e construção do Canal do Panamá.
O contrabando no caso das pedras preciosas encontradas na Bahia foi exponencial em relação ao do
ouro. Os dados oficiais da exportação de diamantes para o período de 1850/1877 indicam um total de
1.762.830 quilates equivalentes a 29.282 contos de réis (US$13.178 milhões). 16 Segundo especialistas
este valor não expressa sequer 1/3 da produção real.
A geografia sempre beneficiou a Bahia na formação de uma caudalosa corrente de contrabando.
Segundo Pinto (1979, p.84) a localização das minas baianas, tanto as de ouro quanto a das pedras
preciosas, seguindo a direção dos rios em que elas se encontravam - Itapicuru (Jacobina), das Contas
(Rio das Contas) e Jequitinhonha (Araçuaí e Fanado) - ligando-as diretamente com o Atlântico foram
vias fáceis para o comércio ilícito, realizado não só com os navios estrangeiros que frequentemente
ancoravam no litoral brasileiro, como também através dos navios negreiros que partiam para a África.
Verger (1987), em seu estudo sobre o tráfico de negros entre o Golfo de Benin e a Bahia, documenta
a presença do ouro brasileiro no comércio com a África, sobretudo na aquisição de escravos de
companhias europeias, principalmente inglesas. Aquele autor transcreve ainda as recomendações do
conselho diretor, em Londres, da Royal African Company a seus representantes na África, para tratar
com civilidade os navios portugueses oriundos do Brasil, e envidar todos os esforços para encorajar

16 Segundo Holloway (1984, p.268) em 1880 o câmbio médio era de US$0,45/1$000 ou seja US$ 1,00/2$222.
11
o comércio do ouro com eles por conta da companhia. Estas recomendações são frequentes entre
1721-24, no exato momento em que as minas de Jacobinas e do Rio das Contas atingem o ápice da
sua produção.
O interessante a observar é que a sonegação dos impostos e o contrabando dos minerais não
contribuíram para a formação de capital na região. Boa parte desta pirataria foi despendida no
consumo suntuário e acabou por vias travessas em mãos dos comerciantes estrangeiros.
Tabela 1 – Bahia: Exportação de diamantes 1850/1878
TAXA DE
CRESCIMENTO VARIAÇÃO DE VALOR
ANOS QUANTIDADE DA QUANTIDADE CRESCIMENTO (Contos de reis)
ANUAL Réis)
(Em oitavas) (Acumulada com (Crescimento relativo)
(1) base em 1850)
1850-51 1.105 100 0 332
1851-52 3.116 182% 182% 935
1852-53 4.072 269% 87% 1.222
1853-54 1.938 75% -193% 581
1854-55 3.188 189% 113% 956
1855-56 6.529 491% 302% 1.959
1856-57 7.714 598% 107% 2.314
1857-58 4.533 310% -288% 1.360
1858-59 5.122 364% 53% 1.537
1859-60 5.321 382% 18% 1.596
1860-61 4.100 271% -110% 1.266
1861-62 4.523 309% 38% 1.357
1862-63 5.478 396% 86% 1.647
1863-64 4.923 346% -50% 1.477
1864-65 4.605 317% -29% 1.382
1865-66 4.586 315% -2% 1.378
1866-67 4.192 279% -36% 1.062
1867-68 5.044 356% 77% 1.519
1868-69 3.532 220% -137% 1.064
1869-70 … … … …
1870-71 2.984 170% 170% 923
1871-72 2.251 104% -66% 678
1872-73 1.383 25% -79% 417
1873-74 1.346 22% -3% 405
1874-75 390 -65% -87% 110
1875-76 1.411 28% 92% 425
1876-77 1.595 44% 17% 490
1877-78 2.955 167% 123% 892
Fonte: FALLAS dos Presidentes da Província da Bahia, Anos 1854,1857, 1861, 1862 PROPOSTAS
e Relatórios apresentados à Assembléia Geral Legislativa pelos Ministros de Estado dos Negócios da
Fazenda- Rio de Janeiro, 1850 a 1888
(1) Uma oitava é igual a 3,6 gramas.
12
2. A ECONOMIA MINERAL BAIANA NA ATUALIDADE

Os dados sob a mineração na Bahia não são fáceis de encontrar. Conflitos tributários reduziram a
eficiência da fiscalização e comprometeram as estatísticas. Por incrível que pareça a indústria
extrativa mineral não aparece no cômputo do PIB baiano, a exceção do petróleo. Teixeira (2001)
informava naquele ano que a Bahia produzia cerca de 40 substâncias minerais, ocupando o terceiro
lugar no ranking entre os estados brasileiros, depois de Minas Gerais e Pará, os grandes produtores
de minério de ferro. Na pauta de exportações destacavam-se: ouro, cobre, magnésio, cromo, ligas de
ferro (ferro-manganês, ferrocromo, ferro-silício-cromo), ligas de alumínio, pedras preciosas e
semipreciosas e rochas ornamentais. Ao mercado interno destinavam-se as produções de água
mineral, areia, areia quartzosa, arenito, argila, artefatos minerais, barita, cal, calcário, calcita, caulim,
diatomito, feldspato, grafita, sal-gema, talco e vermiculita.
O Departamento Nacional da Produção Mineral – DNPM, afirma que o Brasil é reconhecido como
uma das principais reservas gemológicas do planeta tanto pela quantidade quanto pela variedade de
gemas produzidas. Segundo dados do Gold Fields Mineral Services, o volume estimado de transações
no comércio mundial de gemas, joias, metais preciosos e afins é da ordem de US$18, 4 bilhões, no
final da década de 1990, o que aponta para a existência de um grande mercado para um país
considerado o “Paraíso das Gemas” (LOPES, 2001).
Também Lopes (2001) informa que o Estado da Bahia é o 2º produtor nacional de gemas brutas (não
lapidadas) e o 4º em produção primária de ouro, segundo o DNPM. Conhecida pela quantidade e
qualidade de suas esmeraldas, o subsolo baiano também produz ametistas, águas marinhas, citrinos,
topázios azuis, turmalinas, cristal de rocha, quartzos diversos, berilos, diamantes, etc.
Apesar de toda esta potencialidade o Brasil e, em particular, a Bahia, não tem tirado proveito racional
e inteligente dessa riqueza. A realidade atual desse segmento econômico é incompatível com seu
volume de reservas de pedras preciosas e ouro, sobretudo, quando se constata sua ínfima e
inexpressiva participação de aproximadamente 1,4% do mercado internacional (LOPES,2001).
Diz porém a Companha Baiana de Pesquisas Minerais – CBPM que, não obstante esta fragilidade, a
Bahia é o Estado brasileiro que mais investe na atividade mineral. Tais investimentos permitiram a
realização de inúmeras pesquisas e prospecção mineral, mapeamento geológico básico,
desenvolvimento de estudos em distritos mineiros e de pesquisas geocientíficas, com reflexos
positivos, demonstrados no expressivo crescimento e diversificação da produção mineral do estado.
Segundo a CBPM (2015) a Produção Mineral Baiana Comercializada - PMBC em junho de 2015
totalizou R$ 250 milhões, apresentando acréscimo de 16,37% em relação a maio. Comparativamente
a maio de 2014, a comercialização de bens minerais da Bahia apresentou um aumento de 27,91%. De
janeiro a junho de 2015 a PMBC alcançou R$ 1,281 bilhão, crescendo 11,54 % em relação ao mesmo

13
período de 2014. PMBC – Janeiro a Junho 2014 x 2015 No mês houve a comercialização de 24
substâncias minerais oriundas de 116 municípios e extraídas por 199 produtores. Em Junho/2015 as
10 maiores mineradoras, que operam na Bahia, foram responsáveis por 80% do valor da PMBC
demonstrando o elevado grau de concentração desta atividade.
Bélgica, Canadá e Suíça aparecem como os principais importadores do ouro e outros metais preciosos
produzidos pela Bahia. Os dados da tabela 2 são modestos e correspondem na prática a
subnotificações. Parte substancial da produção baiana é desviada para outros estados onde são
lapidadas as pedras preciosas ou contrabandeadas para a Índia que constitui a maior compradora de
esmeraldas.
Indagado em nossa pesquisa se era verdadeiro que o Paraguai era um grande exportador do ouro
brasileiro, Paulo Henrique Leitão Lopes, gemólogo baiano, informou que no mundo, 80% da
produção de ouro e joias está destinada ao mercado, à indústria de joias, e 20% ao mercado financeiro.
No Brasil esta relação é o contrário, 80% da produção é destinada ao mercado financeiro. “Vocês
sabem qual a alíquota que incide sobre o ouro para o mercado financeiro? 1%, enquanto que para a
indústria, que está gerando emprego, produzindo, na Bahia, por exemplo, só a alíquota de ICMS é
25%, fora 20% IPI, PIS, COFINS, etc. Esta é uma distorção. Quando o Paraguai percebeu isso, o
contrabando passou a escoar pelo Paraguai tornando este país um dos maiores produtores de ouro do
mundo sem, no entanto, produzir nada de ouro. Muitas pessoas colocam vinte pedrinhas de
esmeraldas no bolso, lotes que chegam a custar 500 mil dólares, saem, passam pela alfândega,
ninguém pega, e a nossa riqueza está indo embora. A nossa cadeia produtiva está sendo destruída por
estas razões. Fica muito complicado. A pergunta é muito pertinente porque traz à tona os problemas
que estamos atravessando. E, de fato, o Paraguai, por um bom tempo, passou a ser considerado um
grande “produtor” de ouro, ouro proveniente do Brasil.”
Tabela 2 - Bahia principais destinos das exportações minerais 2015/16
PAÍS VALOR MINERAL
US$
BELGICA 18.393.982 Outros metais preciosos
CANADÁ 12.529.095 Ouro, Rochas Ornamentais, Vanádio
SUIÇA 6.595.485 Ouro
COREIA DO SUL 1.639.618 Vanádio
HOLANDA 478.796 Manganês e Vanádio
ARGENTINA 378.431 Grafita, Magnesita, Talco
ESTADOS 368.671 Magnesita, Talco, Rocha Ornamental e Pedras Preciosas
UNIDOS
CHINA 363.124 Rochas Ornamentais, Pedras Preciosas
JAPÃO 275.735 Rochas Ornamentais e Pedras Preciosas
INDIA 132.131 Rochas Ornamentais e Pedras Preciosas
OUTROS 370.701 Diversos
FONTE: CBPM

14
Segundo ainda a CBPM, cabe registrar que, em 1963, teve início a localização de ocorrências de
esmeraldas na Bahia, particularmente, no sertão Norte do Estado, (Serra da Carnaíba). Ali, a
exploração era praticamente toda subterrânea, em túneis de até 100 metros de profundidade. Na
década de 80, essa área chegou a representar quase toda a esmeralda produzida no Brasil e cerca de
25% do total da exportação brasileira de gemas, com exceção dos diamantes. Nos anos 80, foram
descobertos cristais de esmeraldas em Campo Formoso, garimpo de Socotó, há cerca de 40
quilômetros da Serra da Carnaíba, que rapidamente superou a produção de Carnaíba. Uma estimativa
preliminar mais recente das reservas de esmeralda/berilo do Garimpo da Carnaíba sinaliza a
existência de 220 toneladas em Carnaíba de Cima, 105 toneladas em Bráulia-Marota, e 35 toneladas
em Bode-Lagarto-Gavião (LOPES, 2001).
A esmeralda encabeça, em ordem de importância, a lista do segmento de pedras preciosas, com
produção mais expressiva nos garimpos de Campo Formoso e Pindobaçu. Porém, com menores
atividades em Anagé e Pilão Arcado. A ametista ocupa a segunda posição, com produções
concentradas em Brejinhos, Sento Sé, Caetité, Licínio de Almeida, Jacobina e Juazeiro. Em terceiro
lugar, segue a água marinha, com produções em Itanhém, Medeiros Neto, Encruzilhada e Cândido
Sales. Outras gemas, tais como diamante, alexandrita, amazonita, apatita, coríndon, crisoberilo,
quartzo, dumortierita, fluorita, jaspe, sodalita, turmalina, turqueza, malaquita, andaluzita, estaurolita,
lazulita e actinolita, ocorrem em vários municípios do Estado, embora apresentem produção em
menor escala. No que diz respeito ao ouro, na década de 70, foram descobertos depósitos pela
DOCEGEO, no Rio Itapicuru, e concluído estudo de viabilidade da mina da Serra de Jacobina, pela
Mineração Morro Velho. A partir dos anos 80, a Companhia do Vale do Rio Doce (CVRD) iniciou
operações na mina de céu aberto, em Teolândia, na mina subterrânea de Fazenda Brasileiro, e
produção, em Santa Luz, na Mina Maria Preta, que foi desativada em 1996.
Segundo estudo Panorama do Ouro na Bahia, 1998, realizado por Ribeiro (1998), o potencial
aurífero do Estado, longe de exaurir-se, apresenta-se renovado e com novos ambientes, resultando na
produção de mais de sete toneladas no final dos anos 90. Naquele período, existia o registro de 265
garimpos e 230 ocorrências auríferas.

3. NEM TUDO O QUE RELUZ É OURO

Apesar das expectativas otimistas dos organismos estaduais especializados na mineração, as


afirmativas quanto à não socialização e internalização da riqueza produzida pelo ouro e as pedras
preciosas se comprovam nas páginas seguintes.
No que tange à comercialização, apesar da grande produção mineral, a indústria de lapidação e de
artefatos de pedras apresenta-se reduzida, basicamente concentrada na cidade de Salvador e em
algumas regiões produtoras, como Campo Formoso. A maioria das gemas é contrabandeada para
15
outros estados e para o exterior, na sua forma bruta. Para que isto ocorra contribui o próprio governo
cujo nível de tributação, segundo Lopes (2001) atinge o patamar de 61%, o mais elevado do mundo.
As lapidações existentes atendem, preponderantemente, aos turistas que visitam o Estado e à
incipiente indústria joalheira. São todas elas artesanais, com pouca automação. O Estado já ofereceu
alguns incentivos para estimular o desenvolvimento da lapidação, como o Prolapidar, Propese e
Prisma, oferecendo, também, cursos e treinamentos, por meio da implantação de núcleos-escolas, em
diversos municípios produtores, infelizmente, com baixo resultado. A indústria joalheira de ouro e
prata também é artesanal e, preponderantemente, direcionada ao mercado de turistas. O mesmo
acontece com as bijuterias de pedras naturais. Em Salvador, existe uma especialização bastante
definida, tanto em termos de localização quanto do produto ofertado.

Figura 2 - Ocorrências de pedras preciosas na Bahia.

Fonte: Teixeira, 2001.

O segmento joalheiro voltado para atender ao turista está fortemente concentrado no Pelourinho
bairro histórico de Salvador. As lojas de shopping são voltadas, basicamente, para o atendimento do
consumidor local. (LOPES,2001)
Existe em todos os municípios produtores uma tradição de comércio informal sendo as pedras
compradas em estado bruto de garimpeiros e faiscadores por intermediários que as revendem ou
processam em outras regiões auferindo os verdadeiros ganhos do comércio.

16
Entre os intermediários predominam os indianos, israelense e, mais recentemente os chineses informa
Lopes (2001). “Nossas gemas estão sendo lapidadas na Índia, na China, em Israel e depois voltam
para cá para serem consumidas por nós (...) o nosso país tem uma visão meramente fiscalizadora e
arrecadatória, mas não conhece o produto. Quando o indiano chega aqui e compra, ele acondiciona
as nossas esmeraldas em tonéis, sendo que boa parte, a parte extra da esmeralda, vamos dizer “o filé
mignon” é colocado embaixo, a intermediária no meio e o cascalho lá em cima. Quando o fiscal chega
e olha, pensa ser apenas cascalho e libera a exportação. E na verdade, o “filé mignon” está lá embaixo,
e nossa riqueza está indo toda embora.”
Ademais as pedras não são mais encontradas no leito dos rios ou em afloramentos na superfície o que
demanda investimentos muitas vezes volumosos. Isto carreia os empreendimentos para grandes
empresas mineradoras possuidoras de tecnologia avançada e recursos que eliminam praticamente a
participação do pequeno produtor do mercado.

Tabela 4 – Indicadores de pobreza nos municípios da Bahia produtores de pedras preciosas

Cidades Incidência de pobreza Incidência de pobreza subjetiva Índice de


(%) (%) Gini

Anagé 58,14 72,52 0,37

Brejolândia 46,17 60,71 0,37

Campo Formoso 40,00 52,18 0,41

Gentio do Ouro 35,14 44,20 0,36

Jacobina 36,29 41,08 0,47

Jaguarari 36,69 45,64 0,43

Licínio de 46,69 56.60 0,38


Almeida

Pilão Arcado 55,98 68,30 0,38

Pindobaçu 51,24 60,16 0,37

Rio de Contas 35,02 45,40 0,39

Santa Luz 47,71 55,02 0.42

Sento Sé 52,46 60,85 0,37

Teolândia 58,23 70,41 0,40


Fonte: IBGE – Censo Demográfico 2000 e POF 2002/2003

A cultura do imediatismo, os espírito aventureiro do garimpeiro, a resistência ao trabalho sedentário


são fatores que liquidam iniciativas de promoção de empreendimentos. Isto tudo está expresso nos
17
indicadores de pobreza apresentados pela tabela seguinte onde se pode observar o grau de
subdesenvolvimento da população de um território tão rico desde os primórdio da colonização.

CONCLUSÃO

A mineração do ouro no Brasil atingiu seu ponto culminante no século XVIII quando o minério de
aluvião, acessível à grande massa de garimpeiros que não possuíam recursos para maiores
investimentos na lavra, começa a escassear.
O ouro produziu um novo ordenamento territorial no Brasil deslocando o eixo do poder econômico e
político definitivamente do Nordeste para o Centro Sul. Como visto pelas corridas que provocou
aumentou substancialmente a população, criando as condições para a posterior independência do pais.
O declínio da sua exploração gerou uma grande massa de desocupados que refluíram do campo para
as cidades provocando uma desordem social, já que existiam diversas atividades subsidiárias ao ouro,
condição esta que promoveu também o aumento da criminalidade nas vilas.
A Bahia ingressou tardiamente na exploração aurífera, de gemas e pedras preciosas. Suas atividades
de mineração transcorrem notadamente no século XIX e quando o Brasil já não era mais uma colônia
portuguesa.
A diminuição dos depósitos aluvionares, as dificuldades em se ter acesso a técnicas mais avançadas
e o início das corridas à exploração de ouro na África do Sul induziram a produção empresarial de
ouro e dos outros minerais ditos preciosas através da implantação de várias empresas inglesas que, a
partir de aproximadamente 1824, se encarregaram da extração de ouro na Bahia e no Brasil. Essa
estrutura de exploração além de não ter possibilitado a recuperação dos patamares produtivos obtidos
no século anterior, abriu ainda espaço para formas de exploração que elevaram os níveis de
degradação ambiental, principalmente a poluição de rios por mercúrio (Hg), além de promover sérios
impactos socioeconômicos, já que houve uma concentração de renda muito grande. O garimpo passa
a ser então uma técnica marginalizada pelo governo imperial, muito pela falta de controle da
exploração aurífera nestas áreas menores.
Segundo Sanchez e Sanchez (2008) o almocafre 17 e a bateia, instrumentos utilizados em larga escala
no século XVIII, ainda no século XIX serão os mais utilizados nas áreas de mineração de faiscação.
Este processo de exploração provocou considerável agressão ambiental e interferiu na condição
decadente das vilas baianas que foram fundadas através desta atividade econômica, e que no século
XIX foram marcadas pelo avanço de um descontrole social caracterizado pelos crimes particulares e
policiais comandados pelos “coronéis” das oligarquias locais.
Analisando a mineração brasileira dizia Gurfield (1983, p.75) que “a mineração é um
empreendimento instável, em grande parte anárquico. À diferença da cana-de-açúcar, cujo

17 Espécie de enxada usada pelos mineiros


18
crescimento seguiu uma evolução natural, o ouro e os diamantes surgiram de repente no horizonte,
numa série de convulsões inesperadas para tornar-se, dentro de uns poucos anos, indústrias
plenamente desenvolvidas.” Na mesma direção Mello e Souza (1982, p.71) também descrevem o
perfil trágico de garimpeiros miseráveis que se tornaram característicos das sociedades mineradoras,
com a sua agricultura precária, que não impedia a fome de constituir presença constante no cotidiano
das mesas destes trabalhadores.
Ainda Gurfield (1983) em sua análise econômica ressalta o fenômeno universal peculiar à sociedade
mineradora e que se expressa universalmente pela desigualdade e a exploração que aliada a falta de
perspectivas vem degenerar na formação de uma vida social marcada pelo crime. Ele afirma (1983,
p.77)
Somando-se aos aventureiros do ouro e aos desclassificados que Portugal
despejava nas Minas, toda uma camada de gente decaída e triturada pela
engrenagem econômica da colônia ficava aparentemente sem razão de ser,
vagando pelos arraiais, pedindo esmola e comida, brigando pelas estradas
e pelas serranias, amanhecendo morta embaixo das pontes ou no fundo dos
córregos mineiros. Muitos morriam de fome e de doença, mestiços que, não
bastasse a desclassificação social e econômica, traziam estigmatizada na
pele a desclassificação racial.

Para Gurfield (1983, p. 77): “não pode haver dúvida quanto à natureza predatória da vida social ao
redor das minas brasileiras: destituídas de uma base duradoura, racionalmente organizada, a estrutura
das classes gera uma teia frouxa, tecida de relações estratificadas”. E acrescenta: “o individualismo
rude, privado dos seus elementos positivos, reina virtualmente supremo. Em nome do lucro, uma
região fronteira, outrora desabitada, transformou-se, quase que da noite para o dia, num mar de
anarquia”. 18
Nenhuma cidade mineradora da Bahia apresentou qualquer traço de prosperidade fruto desta
atividade extrativista (ver Tabela 4 pretérita). Outras cidades mineiras importantes como Lençóis
apresentava um IDHM de 0,340 em 1981 e 0,478 em 2000, sobrevivendo atualmente graças ao
turismo. A mesma performance social apresentava Rio de Contas com IDHM de 0,394 em 1981 e
0,494 em 2000.
Finalmente, como dizia em sua crueza metodológica Sir Francis Bacon: “o ouro é como adubo; só
presta, se espalhado." Mas isto não ocorreu e tampouco ocorre nos dias atuais. A mineração não
propiciou a formação de poupança local que propiciasse a acumulação de capital e efeitos
multiplicadores na economia regional. A maldição do ouro e das pedras preciosas segue o axioma de
Galeano (1971) que diz: há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países
especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo,
que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos

18 A miséria do garimpo baiano é magistralmente retratada por Hebert Sales no seu livro clássico Cascalho
19
tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua
garganta...”

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21
O PLANDEB
Noelio Dantaslé Spinola1
Resumo pelo governo de Juracy Magalhães
Este artigo rememora o maior pro- (1958/1962) o Plano de Desenvolvi- Antecedentes
jeto de planejamento econômico rea- mento do Estado da Bahia – Plandeb, A Bahia foi o primeiro Estado bra-
lizado na Bahia e que neste ano com- elaborado no governo de Antonio sileiro a desenvolver a atividade de
pleta meio século da sua edição. Tra- Balbino de Carvalho Filho (1954/ planejamento do seu desenvolvimen-
ta–se do Plano de Desenvolvimento 1958) por Rômulo Barreto de Almei- to econômico. Seguindo a tradição de
do Estado da Bahia – Plandeb elabo- da e uma competente equipe técni- José da Silva Lisboa, o Visconde de
rado pelos técnicos da Comissão de ca2, não recebeu dos governos baia- Cayru, que, no início do século XIX,
Planejamento Econômico da Bahia – nos que passaram por este longo editou os seus Princípios de economia
CPE, no governo de Antonio Balbino período a divulgação merecida. política em que buscou difundir as idéi-
de Carvalho Filho, sob a liderança do Juracy não simpatizava com Rômulo as do clássico a Riqueza das nações, num
economista Rômulo Barreto de Almei- e o carlismo, que dominou a Bahia esforço pouco feliz de compatibilizar
da. Numa época em que se comemo- até 2006, consideravam–no e a sua o pensamento liberal de Adam Smith
ra a produção do relatório do GTDN equipe como personae non gratae. Dis- com a cultura vigente em uma econo-
elaborado por Celso Furtado, nada so tudo resultou ficar o plano esque- mia escravagista, e, em 1925, de Fran-
mais justa a recordação deste plano cido na biblioteca da Superintendên- cisco Marques de Góes Calmon, um
que jamais foi igualado nas experiên- cia de Estudos Econômicos e Sociais sutil analista das perspectivas econô-
cias de planejamento baianas. (SEI), consultado por um número micas da Bahia no período de 1808 a
reduzido de pesquisadores e distan- 18895, despontou Estado, nas décadas
Palavras chave: planejamento regio-
te do grande público acadêmico a compreendidas entre 1930 e 1950, o
nal, economia baiana, desenvolvi-
quem muito teria servido pela deta- “iluminismo baiano” no com o surgi-
mento regional.
lhada análise que fez da economia mento de uma geração de estudiosos
baiana e da suas limitações e pela das questões econômicas que contri-
Abstract
demonstração de um método de pla- buiu de forma decisiva para a forma-
This article resembles the major
nejar que sequer foi copiado poste- ção de um ambiente intelectualmente
economic planning project that was
riormente3. favorável à estruturação do planeja-
accomplished in Bahia and now
Este artigo sintetiza um capítulo mento regional. Ressalte–se que, nes-
celebrates half a century. This is
do livro A trilha perdida: caminhos e sa época, também influenciou o pro-
about the State of Bahia Develop-
descaminhos da economia baiana4, edi- cesso de estruturação do planejamen-
ment Planning – Plandeb, that was
tado em 2009, onde se busca corrigir to o intercâmbio de experiências com
developed by the Economic Plan-
uma injustiça perpretada pelos ca- diversas instituições científicas e téc-
ning Comission´s technicians – CPE,
prichos do mandonismo político nicos estrangeiros, notadamente dos
during the Antonio Balbino de Car-
baiano. Estados Unidos da América.
valho Filho government, under the
economist Romulo Barreto de Al-
1
meida leadership. At the time in Doutor em Geografia pela Universidade de Barcelona. Professor do Mestrado e
which we celebrate the GTDN report do Doutorado em Desenvolvimento Regional e Urbano da Universidade Salva-
dor – Unifacs.E–mail: dantasle@uol.com.br
produced by Celso Furtado, it is fair 2
enough to bring to attention the Integrada por: Américo Barbosa de Oliveira (BNDE), Aristeu Barreto de Almeida
(BNB/ETENE), Arthur Levy (Petrobrás), Domar Campos e Sidney Lattini
recall of this unparalleled plan that
(SUMOC), Lawrence Barber, Gerson da Silva, Teixeira Dias e Danin Lobo (EBAP/
was never matched by later planning FGV), Renato Martins (MA) e T.Pompeu Accioly Borges (BNB), entre outros.
experiences that took place in Bahia. Também colaboraram com o plano, sem integrar a equipe, Ignácio Tosta Filho,
Clemente Mariani e Pinto de Aguiar.
Keywords: regional planning, Bahia 3
economy, regional development. O Plandeb deve ser lido em conjunto com outro estudo intitulado Situação e
problemas da Bahia – 1955: recomendações de medidas de governo, que cons-
titui seus termos de referência e foi maldosamente apelidado à época pelo jor-
JEL: O20; 021; 025; P11; Q18; N96. nal A Tarde de Pastas Cor de Rosa.
4
Publicação da Editora da Unifacs, disponível em ppdru@unifacs.br (71–
Introdução 32738528) e editora@unifacs.br (71–32738515)
Cinquenta anos transcorridos da 5
CALMON, Francisco Marques de Góes. Vida econômica – financeira da Bahia:
sua apresentação oficial à Assem- elementos para a história. (1808 a 1899). Salvador: Imprensa Oficial do Estado,
bléia Legislativa do Estado da Bahia, 1925.

RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano XI  Nº 20  Julho de 2009  Salvador, BA 15

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