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O JEGUE
dava pena.
Meu avô me levava para fazenda, eu tinha oito anos e era extremamente doente. Sofria
com uma asma alérgica que, na década de 1940, era considerada doença e não sintoma pela
medicina. E os médicos quase me mataram. Revoltado, meu avô me raptava para a fazenda,
com a cumplicidade da minha mãe, pois meu pai não via esta experiência com simpatia. Ele
era urbano. Estruturalmente citadino.
Então meu avô forrava um dos panacuns presos na lateral da sela de Borracho, um
jumento grande que era cria da família, e lá ia eu, todo calafetado, dentro do panacum, para
a fazenda.
Era uma transformação radical. Parecia passarinho preso quando abrem a gaiola. A
asma desaparecia e eu voltava a ser o moleque travesso que enlouquecia a minha avó e a
multidão de rendeiras que perambulavam pela casa da fazenda. Meu avô, para desespero de
minha avó, só achava graça e me estimulava. Me deu até um cavalo de presente.
Todos os dias me despertava as cinco horas da manhã e me levava para o curral, onde
estavam ordenhando as vacas. Lembro que, ao lado do curral, havia uns pés de eucaliptos que
ficavam amarelos de tantos canários da terra pousados em seus galhos, cantando sua
liberdade. Meu avô levava uma terrina (tipo sopeira sem alça) e um copo grande, cheios de
açúcar, e ordenhava as vacas diretamente para as vasilhas. Eu tomava um copo de 500 ml de
leite fresco, toda manhã.
Lembro de Borracho, um jumento que era esperto como gente. Era capaz de adivinhar
chuva, tinha medo de assombração e adorava tomar Coca-Cola, que meu tio lhe dava todo
sábado. Também gostava e tinha paciência com os bebuns.
Lembro, também, do meu tio Xico que morava na cidade, mas não arredava o pé da
fazenda. Era uma figura notável, dono de uma inteligência brilhante e de uma sensibilidade
que o fazia poeta. Adorava charadas e enigmas, toda vez que me via tinha uma charada para
eu decifrar. Era um horror, porque eu nunca acertava e ficava me achando burro. Meu tio era
casado e tinha muitos filhos. Indianista, fã de José de Alencar, colocou em todos nome de
índio. Era uma tribo bagunceira. Era estatístico e um pinguço de carteirinha. Eu creio que ele
bebia tanto, porque seu talento era muito maior do que o meio em que vivia e ele carregava
uma grande frustração. Dia de sábado, depois da feira, ele já estava “calibrado”.
Aí pegava Borracho e seguia para a fazenda onde ia curtir a “carraspana” na casa de
uma das suas namoradas. O Jumento já estava acostumado com ele. Depois de beber um balde
de Coca-Cola, que o tio Xico lhe dava, um ritual de todos os sábados, seguia viagem, dando
cada arroto escandaloso e equilibrando o peso dele na sela. Quando ele pendia para a direita,
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BORRACHO DESCANSANDO