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O JEGUE

Noelio Dantaslé Spinola

O Jegue é um mamífero da família dos equinos, classificado cientificamente como


Equus asinus. Ele também é conhecido como asno e jumento, vive em várias regiões do
mundo, de clima quente, semiáridas. Para os norte-americanos ele é o donkey, mascote do
Partido Democrata.
Ele carregou no lombo, na Palestina, a sagrada família e foi testemunha ocular do
nascimento de Jesus Cristo, a quem conduziu na sua fuga de Herodes e sua matança dos
inocentes.
É um animal muito popular no Nordeste brasileiro, servindo, desde a época colonial,
como força de trabalho e de transporte de pessoas e mercadorias.
Na atualidade, está ameaçado de extinção porque, o mesmo nordestino que usufruiu
dos seus serviços ao longo de séculos, está abatendo-o para vender a sua carne para as
indústrias produtoras de rações para os Pets.
O jegue, além do seu lado produtivo, é um animal folclórico.
Lembro-me de um espécime raro, criado pelo meu avô Horácio na nossa fazenda dos
Barreiros, no meio da caatinga, distante cinco léguas de Amargosa. O meu avô, era o meu
herói. Sertanejo forte, alto, mestiço distante de tupinambás e espanhóis, tinha a pele queimada
pela exposição diária ao sol do sertão era muito valente, além de simpático e brincalhão. Mas
era daqueles que não levava desaforo para casa. Certa feita, sabendo que meu pai - o oposto
dele, magricelo, intelectual e essencialmente urbano - ia ser agredido por adversários
políticos na Câmara de Vereadores, disparou com a sua “mula grande”, um animal do porte de
um cavalo, e montado, de chicote na mão, invadiu o plenário da câmara, distribuindo
chicotadas a “torto e a direito” e resgatou o meu pai, perplexo, do meio do furdunço. Meu
avô tinha em torno de 70 anos. Estava aposentado, depois de ter exercido diferentes funções,
sempre na esfera privada. Ele não gostava de governo. No final da vida estava pobre. Meu pai,
então, entregou a ele uma fazenda para administrar. Foi mesmo que soltar uma raposa num
galinheiro. Nunca vi meu avô mais feliz. Uma das suas distrações era a de negociar animais
com ciganos, que passavam na fazenda a rodo. O desafio era de quem enganava quem. Era
um tal de abrir a boca dos pobres animais, para examinar os dentes e determinar a idade, que
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dava pena.

Meu avô me levava para fazenda, eu tinha oito anos e era extremamente doente. Sofria
com uma asma alérgica que, na década de 1940, era considerada doença e não sintoma pela
medicina. E os médicos quase me mataram. Revoltado, meu avô me raptava para a fazenda,
com a cumplicidade da minha mãe, pois meu pai não via esta experiência com simpatia. Ele
era urbano. Estruturalmente citadino.

Então meu avô forrava um dos panacuns presos na lateral da sela de Borracho, um
jumento grande que era cria da família, e lá ia eu, todo calafetado, dentro do panacum, para
a fazenda.
Era uma transformação radical. Parecia passarinho preso quando abrem a gaiola. A
asma desaparecia e eu voltava a ser o moleque travesso que enlouquecia a minha avó e a
multidão de rendeiras que perambulavam pela casa da fazenda. Meu avô, para desespero de
minha avó, só achava graça e me estimulava. Me deu até um cavalo de presente.
Todos os dias me despertava as cinco horas da manhã e me levava para o curral, onde
estavam ordenhando as vacas. Lembro que, ao lado do curral, havia uns pés de eucaliptos que
ficavam amarelos de tantos canários da terra pousados em seus galhos, cantando sua
liberdade. Meu avô levava uma terrina (tipo sopeira sem alça) e um copo grande, cheios de
açúcar, e ordenhava as vacas diretamente para as vasilhas. Eu tomava um copo de 500 ml de
leite fresco, toda manhã.
Lembro de Borracho, um jumento que era esperto como gente. Era capaz de adivinhar
chuva, tinha medo de assombração e adorava tomar Coca-Cola, que meu tio lhe dava todo
sábado. Também gostava e tinha paciência com os bebuns.
Lembro, também, do meu tio Xico que morava na cidade, mas não arredava o pé da
fazenda. Era uma figura notável, dono de uma inteligência brilhante e de uma sensibilidade
que o fazia poeta. Adorava charadas e enigmas, toda vez que me via tinha uma charada para
eu decifrar. Era um horror, porque eu nunca acertava e ficava me achando burro. Meu tio era
casado e tinha muitos filhos. Indianista, fã de José de Alencar, colocou em todos nome de
índio. Era uma tribo bagunceira. Era estatístico e um pinguço de carteirinha. Eu creio que ele
bebia tanto, porque seu talento era muito maior do que o meio em que vivia e ele carregava
uma grande frustração. Dia de sábado, depois da feira, ele já estava “calibrado”.
Aí pegava Borracho e seguia para a fazenda onde ia curtir a “carraspana” na casa de
uma das suas namoradas. O Jumento já estava acostumado com ele. Depois de beber um balde
de Coca-Cola, que o tio Xico lhe dava, um ritual de todos os sábados, seguia viagem, dando
cada arroto escandaloso e equilibrando o peso dele na sela. Quando ele pendia para a direita,
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Borracho entortava para a esquerda, mantendo o equilíbrio. E vice-versa. Quando o porre


estava muito alto e ele caia, o tranquilo Jumento aguardava ao lado dele, até que se levantasse
e montasse de novo. Ele não seguia direto para a fazenda. Parava em toda a birosca do caminho
que vendia a “cana”, para confraternizar com a peonada que aquela altura também já estava
“alta”. Eram vários os pontos e as paradas. E Borracho conhecia todas e parava disciplinado,
em cada uma delas, esperando-o pacientemente e levando-o depois, maquinalmente, até a
casa da amante, sem a interferência de terceiros.
Aquele Jumento, de burro não tinha nada. Minha avó, sabedora das artes dele, dizia
que se tratava da reencarnação de um velho vaqueiro que havia cuidado dele quando ainda
era cria.
O fato é que Borracho foi tratado como gente. Quando ficou velho, imprestável para o
serviço, foi aposentado. Meu avô construiu uma “manga” para ele, com água e muito capim,
onde curtiu os últimos anos da sua vida.
As vezes, na fazenda, ele estacionava para dormir na porta de um barraco que ficava num
local bem distante da sede. Ali era tranquilo, habitado apenas por um velho peão. Uma tarde,
parou na porta do barraco uma equipe de geólogos da capital que estava fazendo prospecções na
área. Pediram água, que o velho prestativo trouxe logo numa moringa. Tiveram uma prosa
animada e o velho convidou a equipe para pernoitar no barraco pois, segundo ele, iria chover à
noite. Chuva braba. Os geólogos acharam graça, porque o céu estava limpo, estrelado, sem uma
nuvem. Agradeceram o convite e disseram que iam dormir ao relento, vendo as estrelas. O velho
não questionou. Escureceu, a noite caiu, e o grupo se arranchou no meio do terreno .
As horas se passaram e lá pra meia-noite caiu um toró danado, a equipe encharcada e
todos, com cara de tacho, correram para o barraco do velho a pedir arrego. De manhã,
quando acordaram, quiseram saber do velho como ele sabia que ia chover, contra a opinião
científica deles técnicos. O matuto não se fez de rogado. Saindo do barraco, apontou para um
juazeiro bem copado. Vosmecês estão vendo aquele jumento encostadinho no pé da árvore?
Pois é, na boca da noite, quando ele corre para ali, é chuva na certa!
O jumento era Borracho.
Salvador, 12 de maio de 2023
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BORRACHO DESCANSANDO

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