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Ficha

Técnica
Título: O
Triunfo dos
Porcos
Título
original:
Animal Farm
Autor: George
Orwell
Edição: José
Prata
Tradução do
inglês:
Francisco J.
Gonçalves
Revisão:
Rosário Nunes
Capa: Rui
Rosa / Leya
S.A.
ISBN:
97897220715
98

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Este livro
segue o Novo
Acordo
Ortográfico de
1990.
George
Orwell
O Triunfo
dos Porcos
Animal
Farm
Traduzido do
inglês por
Francisco J.
Gonçalves
O Triunfo
dos Porcos
CAPÍTULO
UM
O Sr. Jones,
da quinta
Manor, tinha
trancado os
galinheiros
para a noite,
mas estava
demasiado
bêbado para
se lembrar de
fechar as
portinholas.
Com o anel de
luz da lanterna
a dançar de
um lado para
o outro,
atravessou o
pátio aos
tropeções,
desfez-se das
botas na porta
das traseiras,
encheu um
último copo
de cerveja no
barril da copa
e subiu para o
quarto, onde a
Sr.ª Jones já
ressonava.
Assim que a
luz do quarto
se extinguiu,
estalou uma
agitação e um
esvoaçar de
asas nos
estábulos e
galinheiros da
quinta.
Constara
durante o dia
que o velho
Major, o porco
premiado da
raça Middle
White, tivera
um estranho
sonho na noite
anterior e
desejava
comunicá-lo
aos outros
animais. Ficou
combinado
que se
reuniriam no
celeiro grande
quando o Sr.
Jones se
afastasse. O
velho Major
(como sempre
lhe
chamavam,
apesar de o
nome com que
foi a concurso
ter sido
Willingdon
Beauty) era
tão respeitado
na quinta que
todos estavam
dispostos a
perder uma
hora de sono
para escutar o
que tinha a
dizer.
Numa das
pontas do
celeiro
grande, numa
espécie de
plataforma
elevada,
Major estava
já acomodado
na sua cama
de palha, sob
um candeeiro
suspenso
numa viga.
Tinha doze
anos e nos
últimos
tempos tinha
engordado
bastante, mas
era ainda um
porco
majestoso, de
aparência
sábia e
benevolente,
apesar de
nunca lhe
terem cortado
os colmilhos.
Os outros
animais
começaram a
chegar pouco
depois e a
instalar-se
confortavelme
nte, cada um à
sua maneira.
Chegaram
primeiro os
três cães,
Bluebell,
Jessie e
Pincher, e
depois os
porcos, que se
dirigiram para
a palha diante
da plataforma.
As galinhas
empoleiraram-
se nos
parapeitos das
janelas, os
pombos
esvoaçaram
até às vigas
transversais,
as ovelhas e as
vacas
deitaram-se
atrás dos
porcos e
começaram a
ruminar.
Boxer e
Clover, os
dois cavalos
de tiro,
chegaram
juntos,
caminhando
muito devagar
e assentando
os enormes
cascos
peludos com
grande
cuidado, não
fosse estar
escondido na
palha algum
animal
pequeno.
Clover era
uma égua
corpulenta e
maternal, a
caminho da
meia-idade,
que nunca
recuperou
inteiramente a
silhueta
depois do
quarto filho.
Boxer era um
animal
enorme, com
quase dezoito
palmos de
altura e tão
forte como
dois cavalos
vulgares
juntos. Uma
faixa branca
ao longo do
focinho
conferia-lhe
uma aparência
algo estúpida
e não era, de
facto, dotado
de inteligência
superior, mas
todos o
respeitavam
pela firmeza
de carácter e
pela tremenda
capacidade de
trabalho.
Depois dos
cavalos,
chegaram
Muriel, a
cabra branca,
e Benjamin, o
burro.
Benjamin era
o animal mais
velho da
quinta e o
mais
rabugento.
Raramente
falava e,
quando o
fazia, era
habitualmente
para algum
reparo cínico
– dizia, por
exemplo, que
Deus lhe dera
uma cauda
para afastar as
moscas, mas
que teria
dispensado a
cauda e as
moscas. Era o
único animal
da quinta que
nunca se ria.
Se lhe
perguntavam
porquê,
respondia que
não via
motivos para
rir. Contudo,
embora não o
admitisse
abertamente,
tinha grande
apreço por
Boxer, com
quem passava
frequentement
e os
domingos.
Pastavam lado
a lado no
pequeno
cercado junto
do pomar, sem
trocar uma
palavra.
Os dois
cavalos
tinham
acabado de se
acomodar
quando uma
ninhada de
patinhos que
haviam
perdido a mãe
se adentrou no
celeiro,
piando
baixinho e
indo de um
lado para
outro até
encontrar um
lugar onde
não fossem
pisados.
Clover fez
uma espécie
de parede em
redor deles
com a imensa
pata dianteira
e os patinhos
aninharam-se
no interior,
adormecendo
prontamente.
No último
momento,
Mollie, a
bonita e
estouvada
égua branca
que puxava a
charrete do Sr.
Jones, entrou
devagar, com
ar afetado e
mastigando
um torrão de
açúcar.
Ocupou um
lugar à frente
e começou a
sacudir a crina
branca, na
esperança de
atrair as
atenções para
os laçarotes
vermelhos que
a adornavam.
A última a
entrar foi a
gata, que,
como era seu
hábito,
procurou o
lugar mais
quente e
acabou
aninhada entre
Boxer e
Clover; ali
instalada,
ronronou
satisfeita
durante todo o
discurso de
Major, sem
ouvir uma
única palavra
do que ele
dizia.
Todos os
animais
estavam agora
presentes,
com exceção
do Moisés, o
corvo
domesticado,
que dormia
num poleiro
junto da porta
das traseiras.
Quando Major
viu que todos
se tinham
instalado de
forma
confortável e
aguardavam
atentos,
aclarou a
garganta e
começou:
“Camaradas
, já ouviram
falar do
estranho
sonho que tive
na noite
passada. Mas
voltarei ao
sonho mais
tarde. Tenho
uma coisa
para vos dizer
antes disso.
Não creio,
camaradas,
que fique
entre vós
muito mais
tempo, e antes
de morrer
sinto ter o
dever de vos
transmitir a
sabedoria que
alcancei. Tive
uma vida
longa, tive
muito tempo
para pensar
enquanto
estava sozinho
na minha
pocilga e creio
poder dizer
que percebo a
natureza da
vida neste
mundo tão
bem como
qualquer outro
animal vivo. É
sobre isto que
vos quero
falar.
“Muito
bem,
camaradas,
qual é a
natureza desta
nossa vida?
Sejamos
honestos, as
nossas vidas
são
miseráveis,
árduas e
curtas.
Nascemos, é-
nos dada
somente
comida
bastante para
manter o
alento dos
nossos corpos
e todos
quantos
estiverem
capazes de
trabalhar são
forçados a
fazê-lo até ao
último fôlego;
e no preciso
momento em
que a nossa
utilidade
chega ao fim,
somos
abatidos com
uma crueldade
hedionda.
Nenhum
animal em
Inglaterra
conhece o
significado da
felicidade ou
do ócio depois
de cumprir um
ano de vida.
Nenhum
animal em
Inglaterra é
livre. A vida
de um animal
é miséria e
escravatura:
essa é a pura
verdade.
“Mas será
isto inerente à
ordem natural
das coisas?
Será porque
esta nossa
terra é tão
pobre que não
pode
assegurar uma
vida decente a
quem nela
vive? Não,
camaradas,
mil vezes não!
O solo de
Inglaterra é
fértil, tem um
bom clima,
pode
assegurar
comida em
abundância a
um número
bem superior
de animais do
que os que
agora nela
habitam. Só
esta nossa
quinta poderia
sustentar uma
dezena de
cavalos, vinte
vacas,
centenas de
ovelhas – e
permitindo a
todos eles um
conforto e
uma dignidade
praticamente
inimagináveis
para nós.
Porque
continuamos,
então, nestas
condições
miseráveis?
Porque
praticamente
todo o produto
do nosso
trabalho nos é
roubado por
seres
humanos.
Esse é,
camaradas, o
cerne de todos
os nossos
problemas.
Resume-se
numa única
palavra –
Humanos. Os
seres humanos
são o único
verdadeiro
inimigo que
temos.
Retirem os
seres humanos
de cena e a
causa da fome
e do excesso
de trabalho
será abolida
para sempre.
“Os seres
humanos são
as únicas
criaturas que
consomem
sem produzir.
Não dão leite,
não põem
ovos, são
demasiado
fracos para
puxar o arado,
não
conseguem
correr rápido
o suficiente
para apanhar
coelhos.
Apesar disso,
são senhores
de todos os
animais.
Põem-nos a
trabalhar, dão-
lhes apenas o
suficiente para
os impedir de
morrer à fome
e guardam o
resto para si
mesmos. O
nosso trabalho
cultiva os
campos, o
nosso estrume
fertiliza-os e,
apesar disso,
não há um
único entre
nós que
possua mais
do que a pele.
Vós, vacas,
que aqui vejo
ante mim,
quantos litros
de leite destes
no último
ano? E que foi
feito desse
leite que
deveria ter
servido para
criar vitelos
robustos? Foi
parar, até à
última gota, às
gargantas dos
nossos
inimigos. E
vós, galinhas,
quantos ovos
pusestes no
último ano e
quantos desses
ovos
chocaram para
dar pintos? O
resto foi
levado ao
mercado para
fazer dinheiro
para o Sr.
Jones e para
os seus
empregados.
E tu, Clover,
onde estão
esses teus
quatro potros
que deviam
ter sido o
amparo e o
prazer da tua
velhice?
Foram
vendidos com
um ano de
idade – nunca
mais verás
nenhum deles.
Em troca das
quatro vezes
que ficaste
doente a
recuperar e de
todo o teu
trabalho nos
campos, o que
tiveste para
além das
meras rações e
de um
estábulo?
“E nem
mesmo nos
permitem que
possamos
viver as
nossas vidas
miseráveis até
ao fim da sua
duração
natural. Eu
não posso
lamentar-me,
pois sou um
dos
afortunados.
Tenho doze
anos e tive
mais de
quatrocentos
filhos. Essa é
a vida natural
de um porco.
Mas, no fim,
nenhum
animal escapa
à faca cruel.
Vós, jovens
leitões
sentados
diante de
mim, dentro
de um ano
estareis a
gritar como
loucos no
matadouro.
Todos
chegaremos a
esse momento
de horror –
vacas, porcos,
galinhas,
ovelhas,
todos. Nem
mesmo
cavalos e cães
têm melhor
sorte. Tu,
Boxer, no dia
em que esses
teus grandes
músculos
perderem o
seu poder,
Jones vender-
te-á ao
talhante, que
te cortará o
pescoço e o
cozinhará para
dar aos cães
de caça.
Quanto aos
cães, quando
chegam a
velhos e ficam
sem dentes,
Jones prende-
lhes um tijolo
ao pescoço e
afoga-os no
lago mais
próximo.
“Não será
claro como
água,
camaradas,
que todos os
males desta
nossa vida
provêm da
tirania dos
seres
humanos? Se
nos
libertássemos
do Homem, o
produto do
nosso trabalho
seria nosso.
Poderíamos
ficar ricos e
livres
praticamente
de um dia para
o outro. O que
devemos
então fazer? É
claro como
água que
devemos
trabalhar,
noite e dia, de
corpo e alma,
para derrubar
a raça
humana! É
essa a minha
mensagem
para vós,
camaradas:
Rebelião! Não
sei quando
chegará o dia
dessa rebelião,
poderá ser
daqui a uma
semana ou
daqui a uma
centena de
anos, mas sei,
com a mesma
certeza com
que vejo esta
palha debaixo
das minhas
patas, que
mais cedo ou
mais tarde
será feita
justiça.
Ponham nisso
os vossos
olhos,
camaradas,
durante o
curto tempo
de vida que
vos resta! E,
acima de tudo,
passem esta
minha
mensagem aos
que vierem
depois de vós,
para que as
futuras
gerações
prossigam a
luta até à
vitória.
“E lembrai-
vos,
camaradas,
nunca percam
a vossa
determinação.
Nenhum
argumento
deve desviar-
vos do
caminho. Não
escuteis
quando vos
disserem que
os humanos e
os animais
têm interesses
comuns, que a
prosperidade
de uns é a
prosperidade
dos outros.
Tudo isso são
mentiras. Os
humanos não
servem os
interesses de
nenhuma
criatura além
deles mesmos.
E haja entre
nós, animais,
perfeita
unidade,
perfeita
camaradagem
na luta. Todos
os humanos
são inimigos.
Todos os
animais são
camaradas”.
Estalou
nesse instante
um tremendo
alvoroço.
Enquanto
Major falava,
quatro grandes
ratazanas
tinham saído
dos seus
buracos e
estavam agora
sentadas sob
as patas
traseiras a
escutá-lo. Os
cães
avistaram-nas
subitamente e
só graças a
uma veloz
corrida para
os buracos é
que as
ratazanas
escaparam
com vida.
Major
levantou a
pata, pedindo
silêncio:
“Camaradas
”, disse, “eis
um ponto que
tem de ser
esclarecido.
As criaturas
selvagens, tais
como
ratazanas e
coelhos – são
nossos amigos
ou nossos
inimigos?
Façamos uma
votação.
Ponho esta
questão à
assembleia: as
ratazanas são
camaradas?”
A votação
foi realizada
de imediato e
foi decidido,
por maioria
esmagadora,
que as
ratazanas
eram
camaradas.
Houve apenas
quatro
dissidentes, os
três cães e a
gata. Esta,
veio depois a
saber-se, tinha
votado a favor
e contra.
Major
prosseguiu:
“Pouco mais
tenho a dizer.
Repito
somente:
lembrai-vos
sempre do
vosso dever
de inimizade
para com os
humanos e os
seus hábitos.
Tudo quanto
caminha em
duas pernas é
um inimigo.
Tudo quanto
caminha em
quatro pernas
ou tem asas é
um amigo. E
lembrai-vos
também que,
ao lutar contra
os humanos,
não devemos
assemelhar-
nos a eles.
Mesmo depois
de os terdes
derrotado, não
adoteis os
seus vícios.
Nenhum
animal deve
alguma vez
viver numa
casa ou
dormir numa
cama, vestir
roupas, beber
álcool, fumar
tabaco, tocar
em dinheiro
ou envolver-se
em atividades
comerciais.
Todos os
hábitos dos
humanos são
maus. E,
acima de tudo,
um animal
nunca deve
tiranizar os
seus iguais.
Fracos ou
fortes,
inteligentes ou
ingénuos,
somos todos
irmãos. Nunca
um animal
deve matar
nenhum outro
animal. Todos
os animais são
iguais.
“E agora,
camaradas,
vou falar-vos
do meu sonho
da noite
passada. Não
posso
descrever-vos
esse sonho.
Foi um sonho
sobre como a
Terra será
quando os
humanos
tiverem
desaparecido.
Mas trouxe-
me à memória
uma coisa há
muito
esquecida. Há
já muitos
anos, quando
era um
pequeno
porquinho, a
minha mãe e
os outros
porcos
costumavam
cantar uma
velha cantiga
da qual só
sabiam a
música e as
primeiras três
palavras.
Sabia essa
canção
quando era
pequeno, mas
tinha-a
esquecido há
muito.
Contudo, na
noite passada
voltou-me à
memória no
sonho. E, mais
importante
ainda,
recordei
também as
palavras da
canção –
palavras essas
que foram,
seguramente,
cantadas pelos
animais de
antanho e que
durante muitas
gerações
andaram
esquecidas.
Vou cantar-
vos agora essa
canção,
camaradas.
Estou velho e
a minha voz é
rouca, mas
quando vos
tiver ensinado
a música,
podereis
cantá-la
melhor para
vós mesmos.
Chama-se
‘Animais de
Inglaterra’”.
O velho
Major aclarou
a garganta e
começou a
cantar. Como
dissera, a sua
voz era rouca,
mas cantou
bastante bem
e a cantiga era
emocionante,
algo entre
‘Clementina’
e ‘La
Cucaracha’.
Os versos
eram assim:
Animais de
Inglater
ra,
animais
da
Irlanda,
Animais de
todas as
terras e
climas,
Escutai as
minhas
jubilosa
s novas
Sobre os
dourado
s
vindour
os dias.
Cedo ou
tarde
chegará
a hora,
Em que os
homens
tiranos
serão
derruba
dos,
E os férteis
campos
de
Inglater
ra
Somente por
animais
serão
pisados.
As argolas
vão
deixar
os
nossos
focinho
s,
E os arreios
os
nossos
lombos,
Freios e
esporas
para
sempre
a
enferruj
ar,
Os cruéis
chicotes
não
mais a
estalar.
Riquezas
mais do
que
imagina
r se
possa,
Trigo e
cevada,
aveia e
feno,
Trevos,
feijões e
beterrab
as de
forrage
m
Serão
nossos
nesse
dia
mesmo.
Brilhar vão
os
campos
de
Inglater
ra,
Mais puras
as suas
águas
serão,
Mais doces
ainda
soprarã
o as
brisas
No dia da
nossa
libertaç
ão.
Para esse
dia
devemo
s todos
batalhar
,
Ainda que
morrer
no
esforço
possam
os;
Vacas e
cavalos,
gansos
e perus,
Todos pela
liberdad
e
trabalha
r
devemo
s.
Animais de
Inglater
ra,
animais
da
Irlanda,
Animais de
todas as
terras e
climas,
Escutai bem
e
espalhai
as
minhas
novas
Sobre os
dourado
s
vindour
os dias.
O entoar
desta canção
causou nos
animais a
mais viva
excitação.
Começaram a
cantá-la para
si mesmos
praticamente
antes de
Major chegar
ao fim. Até os
mais estúpidos
entre eles
tinham já
apanhado a
música e
alguns dos
versos, e
quanto aos
mais
inteligentes,
como os
porcos e os
cães, passados
escassos
minutos já
sabiam toda a
canção de cor.
E de seguida,
após umas
tentativas
preliminares,
toda a quinta
desatou a
cantar
‘Animais de
Inglaterra’
num tremendo
uníssono. A
música foi
entoada pelos
mugidos das
vacas, uivos
dos cães, balir
das ovelhas,
relinchar dos
cavalos,
grasnar dos
patos. E
ficaram tão
deliciados
com a cantiga
que a
entoaram
cinco vezes
seguidas sem
parar, e teriam
continuado a
noite inteira se
não tivessem
sido
interrompidos.
Infelizmente
, o barulho
acordou o Sr.
Jones, que
saltou da
cama para se
assegurar de
que não havia
raposa na
capoeira.
Agarrou na
espingarda,
que guardava
pronta num
canto do
quarto, e
desferiu um
disparo para
as trevas. Os
chumbos
cravaram-se
na parede do
celeiro e a
reunião
dispersou
apressadament
e. Todos
fugiram para
os respetivos
lugares de
pernoita. Os
pássaros
saltaram para
os poleiros, os
animais
aninharam-se
na palha e
passados
alguns
instantes toda
a quinta
estava
adormecida.
CAPÍTULO
DOIS
Três noites
depois, o
velho Major
morreu
tranquilament
e durante o
sono. O seu
corpo foi
sepultado ao
fundo do
pomar.
Era o início
de março.
Durante os
três meses
seguintes
houve muita
atividade
secreta. O
discurso de
Major tinha
dado aos
animais mais
inteligentes da
quinta uma
perspetiva
inteiramente
nova sobre a
vida.
Desconheciam
quando teria
lugar a
Rebelião
prevista pelo
Major, nada os
levava a
pensar que
seria durante
as suas vidas,
mas viam
claramente
que tinham o
dever de se
preparar para
ela. O trabalho
de ensinar e
organizar os
outros recaiu
naturalmente
sobre os
porcos, que
eram
reconhecidos,
de forma
generalizada,
como os mais
inteligentes.
Destacavam-
se entre os
porcos dois
jovens
chamados
Snowball e
Napoleão, que
o Sr. Jones
estava a criar
para venda.
Napoleão era
um porco
Berkshire
grande e de
aspeto
bastante feroz.
Era o único
Berkshire da
quinta. Era de
poucas falas
mas tinha
fama de levar
a sua avante.
Snowball era
um porco
mais vivaz do
que Napoleão,
mais inventivo
e de palavra
mais pronta,
mas não era
visto como
alguém com a
mesma
profundidade
de caráter.
Todos os
outros porcos
que viviam na
quinta eram
para engorda.
O mais
conhecido
deles era um
porco pequeno
e gordo
chamado
Squealer, com
bochechas
muito
redondas,
olhos
rutilantes,
movimentos
lestos e voz
esganiçada.
Era um
conversador
brilhante e
quando
procurava
defender um
argumento
difícil tinha
um modo de
saltitar de um
lado para o
outro e de
sacudir a
cauda que era
estranhamente
persuasivo. Os
outros diziam
de Squealer
que conseguia
tornar branco
o que era
negro.
Estes três
porcos tinham
elaborado e
transformado
os
ensinamentos
do velho
Major num
sistema
completo de
pensamento,
ao qual deram
o nome de
Animalismo.
Várias noites
por semana,
depois de o Sr.
Jones
adormecer,
faziam
reuniões
secretas no
celeiro e
expunham aos
outros animais
os princípios
do
Animalismo.
Esbarraram
inicialmente
com muita
estupidez e
apatia. Alguns
animais
lembravam o
dever de
lealdade para
com o Sr.
Jones, ao qual
se referiam
como
‘Senhor’, ou
faziam
observações
básicas como
esta: “O Sr.
Jones dá-nos
de comer. Se
desaparecesse,
morreríamos
de fome”.
Outros
colocavam
questões como
“porque
haveríamos de
nos preocupar
com o que
acontece
depois de
morrermos?”,
ou então, “se
esta Rebelião
acontecer
mesmo, que
diferença faz
se
trabalhamos
ou não para a
levar por
diante?”, e os
porcos tinham
grande
dificuldade
em fazê-los
compreender
que isto era
contrário ao
espírito do
Animalismo.
As perguntas
mais estúpidas
de todas
foram
colocadas por
Mollie, a égua
branca. A
primeira
pergunta que
fez a
Snowball foi:
“Vai continuar
a haver açúcar
depois da
Rebelião?”
“Não”,
respondeu
Snowball,
com firmeza.
“Não temos
maneira de
fazer açúcar
nesta quinta.
E, além disso,
não precisas
de açúcar.
Terás toda a
aveia e feno
que quiseres”.
“E poderei
continuar a
usar laços na
crina?”,
perguntou
Mollie.
“Camarada”
, disse
Snowball,
“esses laços
aos quais estás
tão apegada
são o símbolo
da escravidão.
Não
consegues
perceber que a
liberdade vale
mais do que
esses laços?”
Mollie
assentiu, mas
não pareceu
muito
convencida.
Os porcos
tiveram ainda
mais
dificuldade
em combater
as mentiras
espalhadas por
Moisés, o
corvo
domesticado.
Moisés, que
era o animal
de estimação
especial do Sr.
Jones, era um
espião e um
alcoviteiro,
mas tinha
igualmente o
dom da
palavra.
Garantiu saber
de um lugar
misterioso
chamado
Montanha de
Açúcar, para
onde iam
todos os
animais
quando
morriam.
Situava-se
algures no
céu, um pouco
acima das
nuvens,
segundo dizia
Moisés. Na
Montanha de
Açúcar era
domingo sete
dias por
semana, havia
trevos em flor
todo o ano, e
torrões de
açúcar e bolos
de linhaça
cresciam nas
sebes. Os
animais
odiavam
Moisés por
inventar
histórias e por
não trabalhar,
mas alguns
acreditaram na
Montanha de
Açúcar, e os
porcos
tiveram de
argumentar
demoradamen
te para os
persuadir de
que tal lugar
não existia.
Os seus
mais fiéis
discípulos
eram Boxer e
Clover, os
cavalos de
carga. Tinham
grande
dificuldade
em pensar por
si mesmos
mas, tendo
aceitado os
porcos como
professores,
assimilavam
tudo quanto
lhes diziam e
transmitiam a
mensagem aos
outros animais
com
argumentos
simples.
Nunca
faltavam às
reuniões
secretas no
celeiro e eram
os primeiros a
cantar
‘Animais de
Inglaterra’,
canção com a
qual
encerravam
todas as
reuniões.
A rebelião
acabou por
acontecer bem
mais cedo e
com mais
facilidade do
que alguém
podia esperar.
Em anos idos,
o Sr. Jones,
sendo embora
um amo
severo, fora
um agricultor
capaz, mas
ultimamente
caíra em
desgraça.
Ficou muito
desmotivado
depois de
perder
dinheiro num
processo
judicial e
começou a
beber mais do
que seria
aconselhável.
Ficava dias
seguidos
sentado na
cozinha, na
sua cadeira
Windsor, a ler
os jornais, a
beber,
alimentando
Moisés uma
vez por outra
com côdeas de
pão molhadas
em cerveja.
Os
empregados
preguiçavam e
enganavam-
no, os campos
estavam
cheios de
ervas
daninhas, os
estábulos e os
celeiros
precisavam de
novos
telhados, as
sebes não
eram
cuidadas, e os
animais
passavam
fome.
Junho
chegou e o
feno estava
praticamente
pronto para a
ceifa. Na
véspera da
festa de
1
Midsummer ,
que calhou
num sábado, o
Sr. Jones foi a
Willingdon e
embebedou-se
no Red Lion a
um ponto tal
que só voltou
para casa no
domingo ao
meio-dia. Os
empregados
mungiram as
vacas de
manhã cedo e
depois foram
caçar coelhos,
não se dando
ao trabalho de
alimentar os
animais.
Quando o Sr.
Jones voltou,
adormeceu de
imediato no
sofá, com o
News of the
World2 sobre a
cara, pelo que,
ao fim da
tarde, os
animais ainda
não tinham
comido. Não
podiam
aguentar mais
aquilo. Uma
das vacas
arrombou a
porta do
armazém com
uma cornada e
os animais
começaram a
comer dos
caixotes. Só
então é que o
Sr. Jones
acordou.
Correu para o
armazém
seguido pelos
empregados.
De chicotes na
mão,
desferiram
golpes à
esquerda e à
direita. Aquilo
era algo que
os animais
esfomeados
não podiam
suportar.
Embora nada
estivesse
planeado,
abalançaram-
se à uma sobre
os verdugos.
Jones e os
seus homens
deram por si a
levar cornadas
e coices de
todos os lados.
A situação
ficou fora de
controlo.
Nunca tinham
visto animais
a
comportarem-
se daquela
maneira, e a
revolta súbita
de criaturas
que se
habituaram a
espancar e a
maltratar
como bem
entendiam
deixou-os
amedrontados
até à raiz dos
cabelos.
Rapidamente,
desistiram de
tentar
defender-se e
fugiram dali
para fora. Um
minuto
depois, os
cinco homens
corriam a
grande
velocidade
pelo caminho
que ia
desembocar
na estrada
principal,
perseguidos
pelos animais
triunfantes.
A Sr.ª Jones
olhou pela
janela do
quarto, viu o
que estava a
acontecer,
meteu à pressa
algumas
coisas num
saco e
escapuliu-se
da quinta por
outro
caminho.
Moisés saltou
do poleiro e
esvoaçou atrás
dela, a crocitar
a plenos
pulmões. Os
animais
tinham
entretanto
afugentado
Jones e os
seus homens
até à estrada e
fechado o
portão da
quinta. Dessa
forma, quase
sem se
aperceberem
disso,
executaram a
Rebelião com
sucesso; Jones
foi expulso e a
Quinta Manor
era deles.
Nos
primeiros
minutos os
animais mal
conseguiam
acreditar na
sua sorte. O
seu primeiro
gesto foi
galoparem
juntos pelos
limites da
quinta, como
para se
assegurarem
de que não
havia nenhum
ser humano
escondido;
regressaram
depois aos
estábulos,
numa corrida
precipitada,
para varrerem
os últimos
vestígios do
odiado
reinado de
Jones. A porta
da sala dos
arreios, ao
fundo dos
estábulos, foi
arrombada; os
freios, as
argolas para
os focinhos, as
correntes dos
cães, as facas
cruéis com as
quais o Sr.
Jones
costumava
castrar porcos
e carneiros,
foi tudo
atirado para o
poço. As
rédeas, os
cabrestos, os
antolhos, as
degradantes
cevadeiras, foi
tudo parar à
fogueira
ateada no
pátio. O
mesmo
destino foi
dado aos
chicotes.
Todos os
animais deram
pulos de
alegria quando
viram os
chicotes
consumidos
pelas chamas.
Snowball
atirou também
para a
fogueira as
fitas e os laços
que
habitualmente
decoravam as
crinas e
caudas dos
cavalos nos
dias de feira.
“Laços”,
disse ele,
“devem ser
considerados
roupas, algo
que identifica
um ser
humano.
Todos os
animais
devem andar
despidos.”
Quando
Boxer ouviu
isto, pegou no
pequeno
chapéu de
palha que
usava no
verão para
afastar as
moscas das
orelhas e
atirou-o para a
fogueira.
Num curto
espaço de
tempo os
animais
destruíram
tudo quanto
lhes fazia
lembrar o Sr.
Jones.
Napoleão
levou-os então
outra vez para
o armazém e
serviu-lhes
uma ração
dupla de
milho, e dois
biscoitos para
cada um dos
cães. Depois
entoaram
“Animais de
Inglaterra” de
uma ponta à
outra, sete
vezes
seguidas,
acomodando-
se então para a
noite e
dormindo
como nunca
tinham
dormido.
Mas
acordaram
com a
alvorada,
como era
hábito e,
recordando-se
subitamente
dos
acontecimento
s gloriosos da
véspera,
correram
todos juntos
para o pasto.
Um pouco
mais adiante
havia um
outeiro de
onde se podia
avistar a
quinta quase
toda. Os
animais
apressaram-se
até ao cimo e
olharam em
redor na luz
alva da
manhã. Sim,
era seu – tudo
quanto
podiam avistar
pertencia-
lhes! No
êxtase desse
pensamento,
correram e
saltaram de
um lado para
o outro,
atiraram-se ao
ar em grandes
pulos de
excitação.
Rebolaram-se
no orvalho,
arrancaram a
doce erva do
verão com
dentadas que
lhes enchiam
a boca,
arrancaram
com patadas
pedaços de
terra negra e
aspiraram o
seu cheiro
forte. Depois
fizeram uma
volta de
inspeção por
toda a quinta e
examinaram,
com uma
estupefação
silenciosa, as
terras
lavradas, os
campos de
feno, o pomar,
o tanque, o
bosque. Era
como se
nunca
tivessem visto
essas coisas
antes e mesmo
nesse
momento
custava-lhes
acreditar que
tudo aquilo
lhes pertencia.
Enfileiraram
depois de
regresso aos
edifícios da
herdade e
pararam, em
silêncio,
diante da casa.
Também ela
lhes pertencia,
mas receavam
entrar.
Contudo,
volvido um
momento,
Napoleão e
Snowball
arrombaram a
porta com um
encontrão e os
animais
entraram em
fila indiana,
caminhando
com o
máximo
cuidado,
receando
desarrumar
alguma coisa.
Foram em
bicos de patas
de quarto em
quarto, com
medo de falar
mais alto do
que um
sussurro e
olhando com
uma espécie
de veneração
temerosa para
o luxo
inacreditável,
para as camas
com colchões
de penas, para
os espelhos,
para o sofá de
crina de
cavalo, para a
carpete de
Bruxelas, para
a litografia da
rainha Vitória
por cima da
cornija da
lareira da sala.
Vinham a
descer as
escadas
quando se
aperceberam
de que a
Mollie tinha
desaparecido.
Voltaram para
trás e
perceberam
que tinha
ficado no
melhor quarto.
Tinha tirado
um pedaço de
fita azul do
toucador da
Sr.ª Jones e
segurava-o
contra o
ombro,
admirando-se
ao espelho de
forma bastante
ridícula. Os
outros
repreenderam-
na com
rispidez e
saíram. Uns
quantos
presuntos que
estavam
pendurados na
cozinha foram
levados para
serem
sepultados e o
barril de
cerveja da
copa foi
destruído por
Boxer com
um coice.
Tudo o resto
ficou intacto.
Foi aprovada
de imediato,
por
unanimidade,
uma resolução
determinando
que a casa
fosse
preservada
como museu.
Todos
concordaram
que nenhum
animal deveria
viver naquele
lugar.
Os animais
tomaram o
pequeno-
almoço e
depois
Snowball e
Napoleão
voltaram a
reuni-los.
“Camaradas
”, disse
Snowball,
“são seis e
meia e temos
um longo dia
diante de nós.
Começamos
hoje a ceifa do
feno. Mas há
outro assunto
que tem de ser
tratado
primeiro”.
Os porcos
revelaram,
então, que nos
últimos três
meses tinham
aprendido
sozinhos a ler
e a escrever,
usando para o
efeito um
velho livro de
ortografia dos
filhos do Sr.
Jones que
tinha sido
atirado para o
lixo. Napoleão
mandou
buscar latas de
tinta preta e
branca e abriu
caminho até
ao portão de
cinco barras
próximo da
estrada
principal.
Nessa altura,
Snowball
(pois era ele o
melhor a
escrever)
pegou num
pincel,
apertando-o
entre as patas,
apagou a
inscrição da
barra superior
do portão
onde se lia
QUINTA MANOR
e substituiu-a
por QUINTA
DOS ANIMAIS.
Seria esse o
nome da
quinta a partir
daquele dia.
Regressaram
depois aos
edifícios da
quinta;
Snowball e
Napoleão
pediram que
fossem buscar
uma escada
para colocar
contra a
parede do
fundo do
celeiro.
Explicaram
que, graças
aos estudos
dos últimos
três meses, os
porcos tinham
conseguido
reduzir os
princípios do
Animalismo a
sete
mandamentos.
Esses sete
mandamentos
seriam agora
inscritos na
parede;
constituiriam
uma lei
inalterável
pela qual os
animais da
quinta
deveriam
viver para
sempre. Com
alguma
dificuldade
(pois não é
fácil para um
porco
equilibrar-se
numa escada),
Snowball
trepou e
preparou-se
para meter
patas à obra,
com Squealer,
alguns
degraus
abaixo, a
segurar a lata
de tinta. Os
mandamentos
foram
inscritos na
parede
revestida de
alcatrão em
grandes letras
brancas, que
podiam ser
lidas a trinta
jardas de
distância.
Diziam o
seguinte:
OS SETE
MANDAMENTOS
1. Tudo
quanto
andar em
duas
pernas é
um
inimigo.
2. Tudo
quanto
andar em
quatro
patas, ou
tiver asas,
é amigo.
3. Nenhum
animal
usará
roupas.
4. Nenhum
animal
dormirá
numa
cama.
5. Nenhum
animal
beberá
álcool.
6. Nenhum
animal
matará
qualquer
outro
animal.
7. Todos os
animais
são
iguais.
Estava
escrito com
muito cuidado
e, excetuando
o facto de
‘amigo’ estar
escrito
‘aimigo’ e de
um dos ‘S’
estar ao
contrário, a
ortografia
estava correta
do princípio
ao fim.
Snowball leu
tudo em voz
alta para os
outros
perceberem.
Todos os
animais
acenaram,
manifestando
absoluta
concordância,
e os mais
inteligentes
começaram
imediatamente
a aprender os
mandamentos
de cor.
“Agora,
camaradas”,
gritou
Snowball,
atirando ao
chão o pincel,
“para o
campo!
Vamos tornar
isto um ponto
de honra e
terminar a
ceifa mais
depressa do
que Jones e os
seus homens
conseguiriam
fazer”.
Mas nesse
momento as
três vacas, que
pareciam
inquietas há já
algum tempo,
começaram a
mugir
ruidosamente.
Não eram
ordenhadas há
vinte e quatro
horas e os
úberes
estavam quase
a rebentar.
Depois de
pensarem um
pouco, os
porcos
mandaram que
se trouxessem
baldes e
ordenharam as
vacas com
bastante
sucesso, pois
as unhas das
suas patas
adaptavam-se
bem à função.
Em pouco
tempo
encheram
cinco baldes
de leite
cremoso para
os quais
muitos dos
outros animais
olharam com
considerável
interesse.
“O que vai
acontecer a
todo esse
leite?”, disse
um deles.
“Jones
costumava às
vezes misturar
algum na
nossa
comida”, disse
uma das
galinhas.
“Esqueçam
o leite,
camaradas!”,
gritou
Napoleão,
colocando-se
diante dos
baldes.
“Alguém
tratará disso.
A ceifa é mais
importante. O
camarada
Snowball vai
liderar-vos. Eu
juntar-me-ei a
vocês dentro
de alguns
minutos.
Avante,
camaradas! O
feno espera-
vos”.
E lá foram
os animais em
manada até ao
campo para
iniciar a ceifa
e quando
regressaram,
ao fim da
tarde,
repararam que
o leite tinha
desaparecido.
1 Celebrações
tradicionais do
solstício de
Verão que
acontecem em
junho e que
têm em
Portugal
expressão
semelhante
nas festas dos
Santos
Populares. [N.
do T.]
2 Criado em
1843, foi
pioneiro do
jornalismo
sensacionalist
a. Era o mais
barato jornal
da altura no
Reino Unido.
[N. do T.]
CAPÍTULO
TRÊS
Como
labutaram e
suaram para
recolher o
feno! Mas o
seu esforço foi
recompensado
, pois a ceifa
foi um
sucesso maior
do que
esperavam.
Por vezes o
trabalho era
duro; as
ferramentas
tinham sido
criadas para
seres humanos
e não para
animais e o
facto de
nenhum
animal
conseguir usar
qualquer
utensílio que
implicasse
erguer-se
sobre as patas
traseiras era
um grande
inconveniente.
Mas os porcos
eram tão
inteligentes
que
conseguiam
sempre
descobrir uma
maneira de
contornar as
dificuldades.
Quanto aos
cavalos,
conheciam
cada
centímetro dos
campos e, na
verdade,
percebiam
muito mais de
como fazer a
ceifa e
enfeixar o
feno do que
Jones e os
seus homens.
Os porcos não
trabalhavam
no campo,
mas dirigiam
e
supervisionav
am os outros.
Dotados de
conhecimento
s superiores,
era natural
que
assumissem a
liderança.
Boxer e
Clover
prendiam-se à
máquina de
ceifa ou ao
ancinho de
arrasto (agora,
como é óbvio,
não eram
necessários
freios nem
rédeas) e
avançavam
pesadamente
dando voltas
ao campo,
com um porco
atrás a gritar,
consoante o
caso, ‘Arre,
camarada!’ ou
‘Xô,
camarada!’ E
todos os
animais, do
maior ao mais
pequeno,
trabalhavam
limpando e
juntando o
feno. Até os
patos e as
galinhas se
esforçavam,
para trás e
para a frente,
à torreira do
sol,
carregando
pequenos
punhados de
feno nos
bicos.
Acabaram por
concluir a
ceifa dois dias
mais cedo do
que
habitualmente
demoravam
Jones e os
seus
empregados.
Além disso,
aquela foi a
maior ceifa
que a quinta já
tivera. Não
houve
qualquer
desperdício;
as galinhas e
os patos, com
os seus olhos
argutos,
tinham
juntado até à
última haste, e
nenhum
animal da
quinta roubou
sequer um
punhado de
feno.
Durante
aquele verão o
trabalho na
quinta
funcionou
como um
relógio. Os
animais
sentiam-se
felizes como
nunca
pensaram ser
possível. Cada
bocado de
comida era
um prazer
imenso, agora
que
verdadeirame
nte lhes
pertencia, que
era produzida
por eles e para
eles mesmos,
e não
repartida de
má vontade
por um
senhor. Com a
partida dos
seres humanos
inúteis e
parasitas havia
mais para
todos
comerem. E,
apesar da falta
de experiência
dos animais,
havia
igualmente
mais tempo
livre.
Encontraram
muitas
dificuldades
pelo caminho
– por
exemplo,
perto do final
do ano,
quando
colheram o
milho, tiveram
de o debulhar
à moda antiga,
separando os
grãos das
espigas com o
seu próprio
sopro, pois
não havia uma
debulhadora
na quinta –
mas os porcos,
com a sua
inteligência, e
Boxer, com os
seus grandes
músculos,
conseguiram
sempre
superar as
dificuldades.
Boxer era
admirado por
todos. Fora
um
trabalhador
incansável
mesmo no
tempo dos
Jones, mas
parecia agora
valer por três
cavalos;
nalguns dias
dava a
impressão de
que todo o
trabalho da
quinta recaía
sobre os seus
ombros
poderosos.
Puxava e
empurrava de
manhã à noite,
estando
sempre onde o
trabalho mais
apertava.
Tinha feito um
acordo com
um dos galos
para que o
despertasse de
manhã meia
hora mais
cedo do que
todos os
outros, e fazia
trabalho
voluntário, no
que quer que
fosse mais
urgente, antes
do início da
jornada
normal de
trabalho. A
sua resposta
para cada
problema,
para cada
contratempo,
era dizer “vou
trabalhar
ainda mais!” –
frase que
adotara como
lema pessoal.
Mas todos
trabalhavam
de acordo com
as suas
capacidades.
As galinhas e
os patos
salvaram
cinco
alqueires de
milho durante
a colheita, ao
juntarem os
grãos
dispersos.
Ninguém
roubava,
ninguém se
queixava das
rações; as
querelas, as
picardias e os
ciúmes,
aspetos
normais da
vida nos
velhos
tempos,
tinham
praticamente
desaparecido.
Ninguém se
esquivava –
ou quase
ninguém.
Mollie, é
certo, não
gostava muito
de se levantar
de manhã e
tinha o hábito
de deixar o
trabalho cedo,
com o
argumento de
que tinha uma
pedra no
casco. E o
comportament
o da gata era
algo peculiar.
Cedo se
percebeu que
quando havia
trabalho para
fazer ninguém
conseguia
encontrá-la.
Andava
desaparecida
horas a fio,
para
reaparecer,
como se nada
fosse, a tempo
das refeições
ou ao fim da
tarde, depois
de o trabalho
ter terminado.
Mas arranjava
sempre
desculpas tão
convincentes e
ronronava de
forma tão
afetuosa que
era impossível
não acreditar
nas suas boas
intenções. O
velho
Benjamin, o
burro, parecia
não ter
mudado desde
a rebelião.
Fazia o
trabalho que
lhe cabia do
mesmo modo
obstinado e
lento que já
era o seu no
tempo de
Jones, nunca
se esquivando,
mas também
nunca se
voluntariando
para fazer
trabalho extra.
Sobre a
rebelião e
sobre os
resultados que
tivera não
exprimia
qualquer
opinião.
Quando lhe
perguntavam
se não estava
mais feliz
agora que
Jones se tinha
ido embora,
dizia somente:
“Os burros
vivem muitos
anos. Nunca
nenhum de
vocês viu um
burro morto”.
E os outros
tinham de se
contentar com
esta resposta
enigmática.
Aos
domingos
nunca se
trabalhava. O
pequeno-
almoço era
uma hora mais
tarde do que o
habitual e
depois havia
uma
cerimónia que
se repetia
todas as
semanas, sem
falta. Primeiro
hasteava-se a
bandeira.
Snowball
tinha
encontrado na
sala dos
arreios uma
velha toalha
de mesa verde
da Sr.ª Jones e
pintou nela
um casco e
um chifre com
tinta branca.
Era içada
todos os
domingos de
manhã no
mastro da
bandeira, no
jardim da casa
da quinta.
Snowball
explicou que a
bandeira era
verde para
representar os
campos
verdejantes da
Inglaterra,
enquanto o
casco e o
chifre
significavam a
futura
República dos
Animais, que
seria criada
quando a raça
humana
tivesse sido
finalmente
derrubada.
Depois do
hastear da
bandeira, os
animais iam
juntos para o
celeiro
grande, para
uma
assembleia
geral que era
conhecida
como A
Reunião. Era
ali planeado o
trabalho da
semana
seguinte e
eram
apresentadas e
debatidas
resoluções.
Eram sempre
os porcos que
apresentavam
resoluções. Os
outros animais
sabiam como
votar, mas
nunca
conseguiam
pensar em
resoluções
próprias.
Snowball e
Napoleão
eram, de
longe, os mais
ativos nos
debates. Mas
cedo se
percebeu que
nunca estavam
de acordo:
fosse qual
fosse a
sugestão que
um deles
fizesse, podia
ter-se a
certeza de que
o outro estaria
contra.
Mesmo
quando se
decidiu – algo
a que ninguém
conseguia
colocar
objeções –
que o pequeno
cercado atrás
do pomar
fosse usado
como casa de
repouso para
animais que já
não podiam
trabalhar,
houve um
debate
tumultuoso
sobre a idade
certa para a
reforma de
cada tipo de
animal. A
Reunião
terminava
sempre com o
entoar de
‘Animais de
Inglaterra’ e a
tarde era
dedicada à
recreação.
Os porcos
tinham
reservado para
si mesmos a
sala dos
arreios, para
servir de
quartel-
general.
Estudavam
ali, ao fim da
tarde, as
técnicas de
ferragem, de
carpintaria e
de outras artes
necessárias,
lendo os livros
trazidos da
casa da quinta.
Snowball
ocupava-se
ainda a
organizar os
outros animais
naquilo a que
chamou
Comités
Animais. Era
infatigável
nessa missão.
Formou o
Comité de
Produção de
Ovos, para as
galinhas, a
Liga das
Caudas
Limpas, para
as vacas, o
Comité para a
Reeducação
dos
Camaradas
Selvagens (o
seu objetivo
era domesticar
os ratos e os
coelhos), o
Movimento da
Lã Mais
Branca, para
as ovelhas, e
vários outros,
para além de
ter igualmente
instituído
aulas de
leitura e
ortografia. No
todo, esses
projetos foram
um fracasso.
A tentativa de
domesticar as
criaturas
selvagens, por
exemplo,
terminou
quase de
imediato.
Continuaram
todas a
comportar-se
mais ou
menos como
de costume e
quando eram
tratadas com
generosidade
aproveitavam-
se disso. A
gata juntou-se
ao Comité de
Reeducação e
mostrou-se
muito
empenhada
durante alguns
dias. Foi vista
uma vez,
sentada num
telhado, a
falar com
alguns pardais
que estavam
praticamente
ao seu
alcance.
Estava a dizer-
lhes que todos
os animais
eram agora
camaradas e
que qualquer
pardal podia
empoleirar-se
na sua pata se
assim
quisesse; mas
os pardais
mantiveram as
distâncias.
As aulas de
leitura e
ortografia
foram,
contudo, um
enorme
sucesso.
Quando o
outono
chegou, já
praticamente
todos os
animais da
quinta tinham
um grau
mínimo de
literacia.
Quanto aos
porcos,
sabiam ler e
escrever na
perfeição. Os
cães
aprenderam a
ler bastante
bem, mas não
estavam
interessados
em ler nada
para além dos
Sete
Mandamentos.
Muriel, a
cabra, sabia
ler um pouco
melhor do que
os cães e por
vezes lia para
os outros, ao
fim da tarde,
textos de
jornais velhos
encontrados
no lixo.
Benjamin
sabia ler tão
bem como
qualquer
porco, mas
nunca exercia
essa
capacidade.
Tanto quanto
sabia, dizia
ele, não havia
nada digno de
ser lido.
Clover
aprendeu o
alfabeto todo,
mas não
conseguia
juntar as
palavras.
Boxer não
conseguia
passar da letra
D. Desenhava
A, B, C, D na
terra, com o
enorme casco,
e depois
ficava a olhar
para as letras,
com as
orelhas para
trás,
sacudindo por
vezes o topete
da testa, a
tentar, com
todas as
forças,
lembrar-se do
que vinha a
seguir e nunca
o
conseguindo.
Na verdade,
conseguiu
algumas vezes
aprender E, F,
G, H, mas,
assim que
aprendia essas
letras, acabava
por se
esquecer do
A, B, C e D.
Acabou por
decidir
contentar-se
com as
primeiras
quatro letras e
costumava
escrevê-las
uma ou duas
vezes por dia,
para reavivar
a memória.
Mollie
recusou-se a
aprender mais
do que as
cinco letras do
seu nome.
Formava-as,
com muito
cuidado,
usando
raminhos e
decorava-as
depois com
uma ou duas
flores,
caminhando
em volta delas
para as
contemplar.
Nenhum
outro animal
da quinta
conseguia ir
além da letra
A. Percebeu-
se ainda que
os animais
mais
estúpidos,
como as
ovelhas, as
galinhas e os
patos, eram
incapazes de
aprender de
cor os Sete
Mandamentos.
Depois de
muito pensar,
Snowball
declarou que
os Sete
Mandamentos
podiam, na
verdade, ser
reduzidos a
uma única
máxima, a
saber: “Quatro
pernas bom,
duas pernas
mau”. Isto,
disse ele,
continha o
princípio
essencial do
Animalismo.
Quem o
percebesse
como deve ser
estaria a salvo
das
influências
humanas. As
aves
opuseram-se
inicialmente a
esta ideia, pois
parecia-lhes
claro que
também elas
tinham duas
pernas, mas
Snowball
provou-lhes
que não era
bem assim.
“A asa de
uma ave,
camaradas”,
disse ele, “é
um órgão de
propulsão e
não de
manipulação.
Deve ser
visto, por isso,
como uma
perna. A
marca
distintiva dos
humanos é a
mão,
instrumento
com o qual
praticam todas
as suas
maldades.
As aves não
perceberam as
palavras
complicadas
de Snowball,
mas aceitaram
a explicação e
todos os
animais mais
simples se
empenharam
em aprender a
nova máxima
de cor. Na
parede do
fundo do
celeiro, por
cima dos Sete
Mandamentos,
e em letras de
tamanho
maior, foi
escrito:
QUATRO
PERNAS BOM,
DUAS PERNAS
MAU. Assim
que
conseguiram
aprendê-la de
cor, as ovelhas
passaram a
gostar muito
desta máxima
e muitas
vezes, quando
estavam
deitadas no
campo,
começavam
todas a balir
‘Quatro
pernas bom,
duas pernas
mau! Quatro
pernas bom,
duas pernas
mau!’ e
continuavam
naquilo, horas
a fio, sem se
cansarem de o
repetir.
Napoleão
não se
interessava
nada pelos
comités de
Snowball.
Dizia que a
educação dos
jovens era
mais
importante do
que tudo
quanto
pudesse fazer-
se pelos que já
eram
crescidos.
Acontece que
Jessie e
Bluebell
tiveram
filhotes pouco
depois da
ceifa, dando à
luz nove
robustos
cachorrinhos.
Mal foram
desmamados,
Napoleão
tirou-os às
mães, dizendo
que se
encarregaria
da sua
educação.
Levou-os para
um sótão onde
só podia
chegar-se por
uma escada a
partir da sala
dos arreios, e
manteve-os aí
de tal forma
isolados que
os outros
animais da
quinta
depressa se
esqueceram da
sua existência.
O mistério
do
desaparecime
nto do leite foi
resolvido
passado pouco
tempo. Era
misturado
todos os dias
com a
lavadura dos
porcos. As
maçãs
temporãs
estavam agora
quase maduras
e a erva do
pomar estava
pejada de
frutos atirados
ao chão pelo
vento. Os
animais
partiram do
princípio que
o mais lógico
seria reparti-
los de forma
equitativa;
contudo,
circulou certo
dia a ordem de
que todas as
maçãs caídas
deviam ser
recolhidas e
levadas para a
sala dos
arreios, a fim
de serem
usadas pelos
porcos. Isto
suscitou
rumores entre
os outros
animais, mas
de nada
serviu. Os
porcos
estavam de
pleno acordo
quanto a isto,
até Snowball e
Napoleão.
Squealer foi
enviado para
dar as
explicações
necessárias
aos outros.
“Camaradas
!”, gritou ele.
“Não estais a
imaginar,
espero bem,
que nós, os
porcos,
façamos isto
num espírito
de egoísmo e
privilégio? Na
verdade,
muitos de nós
não gostamos
de leite nem
de maçãs. Eu
próprio não
gosto. O nosso
único objetivo
ao tomarmos
estas coisas é
preservar a
nossa saúde.
O leite e as
maçãs (isto é
algo
demonstrado
pela ciência,
camaradas)
contêm
substâncias
absolutamente
necessárias
para a saúde
de um porco.
Nós, porcos,
somos
trabalhadores
intelectuais.
Toda a
administração
e organização
desta quinta
depende de
nós. Velamos,
de dia e de
noite, pelo
vosso bem-
estar. É por
causa de vós
que bebemos
o leite e
comemos as
maçãs. Sabeis
o que
aconteceria se
nós, porcos,
não
cumpríssemos
o nosso
dever? O
Jones voltaria
para casa!
Sim, o Jones
voltaria para
casa! Tenho a
certeza,
camaradas”,
gritou
Squealer,
quase numa
súplica,
saltando de
um lado para
o outro e
agitando a
cauda,
“certamente
nenhum de
vós deseja o
regresso do
Jones?!”
De facto, se
alguma coisa
havia sobre a
qual os
animais não
tinham
dúvidas era
que não
queriam o
regresso de
Jones. Quando
as coisas lhes
foram
apresentadas
daquela
maneira não
souberam o
que
acrescentar. A
importância
de manter os
porcos
saudáveis era
demasiado
óbvia.
Chegou-se por
isso a acordo,
sem mais
discussões,
que o leite e
as maçãs
caídas das
macieiras (e
também a
maior parte da
colheita de
maçãs quando
estivessem
maduras)
deveriam ser
reservados
exclusivament
e para os
porcos.
CAPÍTULO
QUATRO
Perto do
final do verão,
as notícias
sobre os
acontecimento
s na Quinta
dos Animais
tinham-se
espalhado por
metade do
país. Snowball
e Napoleão
mandavam,
todos os dias,
bandos de
pombos com
instruções
para se
misturarem
com os
animais das
quintas
vizinhas, a fim
de lhes
contarem a
história da
Rebelião e
lhes
ensinarem a
canção
‘Animais de
Inglaterra’.
A maior
parte desse
tempo passou-
a o Sr. Jones
sentado no bar
Red Lion, em
Willingdon, a
queixar-se, a
quem quisesse
ouvi-lo, da
monstruosa
injustiça que
sofrera ao ser
expulso da sua
propriedade
por um bando
de animais
sem qualquer
préstimo. Os
outros
agricultores
mostravam-se
solidários por
uma questão
de princípio,
mas não se
prontificaram
a dar-lhe
ajuda. No
fundo, cada
um deles se
perguntava
secretamente
se não poderia
ganhar alguma
coisa com o
infortúnio de
Jones. Por
sorte, os
donos das
duas quintas
contíguas à
Quinta dos
Animais
mantinham
querelas
permanentes.
Uma delas,
chamada
Foxwood, era
uma quinta
grande,
negligenciada
e antiquada,
cheia de
matagal, com
as pastagens
desgastadas e
os cercados
em condições
deploráveis. O
proprietário, o
Sr. Pilkington,
era um
agricultor
educado, de
trato fácil, que
passava a
maior parte do
tempo a
pescar ou a
caçar,
consoante a
época do ano.
A outra
quinta,
chamada
Pinchfield, era
mais pequena
e estava mais
cuidada. O
dono era um
Sr. Frederick,
homem duro e
astuto,
permanenteme
nte envolvido
em processos
judiciais e
famoso por
conseguir
bons
negócios.
Estes dois
gostavam tão
pouco um do
outro que era
difícil
chegarem a
qualquer tipo
de acordo,
mesmo em
defesa dos
seus próprios
interesses.
Não
obstante,
estavam
ambos
profundament
e
amedrontados
com a rebelião
da Quinta dos
Animais e
ansiavam
evitar que os
seus próprios
animais
viessem a
saber
demasiado
sobre ela.
Fingiram
inicialmente
desdenhar a
ideia de ver
animais a
administrarem
uma quinta
sem ajuda.
Aquilo
terminaria
num par de
semanas,
diziam eles.
Fizeram
circular o
rumor de que
os animais da
Quinta Manor
(insistiam em
chamar-lhe
assim, não
tolerando o
nome ‘Quinta
dos Animais’)
tinham
desavenças
permanentes e
estavam
rapidamente a
morrer de
fome. À
medida que o
tempo passou
e se tornou
evidente que
os animais
não tinham
morrido à
fome,
Frederick e
Pilkington
mudaram de
música e
começaram a
falar da
terrível
perversidade
que agora se
multiplicava
na Quinta dos
Animais.
Fizeram saber
que os
animais
daquela quinta
praticavam o
canibalismo,
torturavam-se
uns aos outros
com
ferraduras em
brasa e
partilhavam as
fêmeas. Era
esse o
resultado de
se revoltarem
contra as leis
da Natureza,
diziam
Frederick e
Pilkington.
Contudo,
essas histórias
nunca
chegaram a
convencer
completament
e. Rumores
sobre uma
quinta
maravilhosa,
da qual os
humanos
tinham sido
expulsos e
onde os
animais
tomavam
conta dos seus
próprios
assuntos,
continuavam a
circular em
versões vagas
e distorcidas,
e durante todo
esse ano uma
vaga de
revolta
percorreu as
zonas rurais.
Bois que
sempre tinham
sido dóceis
tornavam-se
subitamente
selvagens,
ovelhas
partiam os
cercados e
comiam os
trevos, vacas
derrubavam os
baldes da
ordenha,
cavalos
usados nas
caçadas
recusavam-se
a saltar as
barreiras e
atiravam os
cavaleiros
para o outro
lado. Acima
de tudo, a
música e até
os versos de
‘Animais de
Inglaterra’
eram
conhecidos
em todo o
lado. Tinham-
se espalhado
com uma
velocidade
assombrosa.
Os seres
humanos não
conseguiam
conter a raiva
ao ouvir a
canção,
embora
fingissem
considerá-la
ridícula. Não
conseguiam
compreender,
diziam eles,
como até os
animais
podiam cantar
aqueles
disparates
desprezíveis.
Qualquer
animal
apanhado a
entoar a
canção era
imediatamente
chicoteado. E,
mesmo assim,
foi impossível
reprimi-la. Os
melros
piavam-na nos
cercados, os
pombos
arrulhavam-na
nos ulmeiros,
passou até a
ouvir-se no
martelar dos
ferreiros e no
dobrar dos
sinos das
igrejas. E,
quando os
seres humanos
a ouviam,
tremiam em
segredo,
escutando nela
a profecia da
sua futura
desgraça.
No início de
outubro,
quando o
milho já tinha
sido cortado e
empilhado, e
algum estava
já debulhado,
um bando de
pombos
chegou num
turbilhão e,
em grande
alvoroço,
pousou no
pátio da
Quinta dos
Animais.
Jones e todos
os seus
homens, e
ainda uma
dezena de
outros de
Foxwood e
Pinchfield,
tinham
passado o
portão de
entrada e já
estavam a
subir o
caminho da
quinta. Todos
traziam paus,
exceto Jones,
que
caminhava na
frente do
grupo de
espingarda na
mão. Parecia
evidente que
iam tentar
recapturar a
herdade.
Isto era algo
esperado há
muito e todos
os
preparativos
tinham sido
realizados.
Snowball, que
estudara um
velho livro
sobre as
campanhas de
Júlio César,
descoberto na
casa da quinta,
comandava as
operações
defensivas.
Deu as suas
ordens com
rapidez e em
poucos
minutos todos
os animais
estavam nos
respetivos
postos.
Quando os
seres humanos
se
aproximaram
dos edifícios,
Snowball
lançou o
primeiro
ataque. Os
pombos, num
total de trinta
e cinco,
voaram sobre
a cabeça dos
homens, uma
e outra vez,
lançando os
seus
excrementos
sobre eles; e
enquanto os
homens se
protegiam, os
gansos, que
esperavam
escondidos
atrás da sebe,
chegaram de
surpresa e
bicaram-lhes
as pernas com
violência. Mas
esta era tão só
uma
escaramuça de
diversão,
visando criar
desordem,
pelo que os
homens
afastaram
facilmente os
gansos à
paulada.
Snowball
lançou então a
segunda linha
ofensiva.
Muriel,
Benjamin e
todas as
ovelhas,
lideradas por
Snowball,
abalançaram-
se a toda a
velocidade e
desferiram
cornadas e
marradas por
todos os lados,
enquanto
Benjamin se
voltava para
desferir coices
com os seus
pequenos
cascos. Mas
os homens,
com os paus e
as botas
cardadas,
revelaram-se
novamente
demasiado
fortes para
eles; e a um
guincho súbito
de Snowball,
que era o sinal
de retirada,
todos os
animais
fugiram pelo
portão do
pátio.
Os homens
deram um
grito de
triunfo.
Pensando ver
os inimigos
em fuga,
correram atrás
deles de forma
desordenada.
Era
exatamente
isto que
Snowball
pretendia.
Assim que
todos
entraram no
pátio, os três
cavalos, as
três vacas e o
resto dos
porcos, que
esperavam
emboscados
no curral,
emergiram
subitamente
pela
retaguarda,
deixando-os
cercados.
Snowball deu
então o sinal
de ataque. Ele
mesmo correu
direito a
Jones. Este,
vendo-o
aproximar-se,
levantou a
arma e
disparou. Os
chumbos
abriram
golpes
sangrentos nas
costas de
Snowball e
uma ovelha
caiu morta.
Sem parar um
só instante,
Snowball
arremessou os
seus quase
cem quilos
contra as
pernas de
Jones, que foi
lançado contra
uma pilha de
excrementos,
largando a
arma na
queda. Mas o
espetáculo
mais aterrador
foi ver Boxer
erguer-se nas
patas traseiras
para desferir
golpes com os
enormes
cascos
ferrados,
como um
garanhão. O
seu primeiro
golpe apanhou
na cabeça um
moço de
estrebaria de
Foxwood e
atirou-o para a
lama,
inanimado.
Perante isto,
vários homens
desfizeram-se
dos paus e
tentaram
escapar. O
pânico tomou
conta deles e
de imediato
todos os
animais
começaram a
persegui-los,
em voltas e
mais voltas
pelo pátio.
Foram
atacados e
feridos com
cornadas,
coices,
dentadas e
pisadelas. Não
houve um
único animal
da quinta que
não se tenha
vingado deles
à sua maneira.
Até a gata
saltou
inesperadame
nte de um
telhado para
os ombros de
um vaqueiro e
enterrou-lhe
as garras no
pescoço,
fazendo-o
soltar gritos
horríveis.
Aproveitando
uma aberta, os
homens
fugiram,
aliviados, e
correram a
toda a pressa
para a estrada
principal. E
assim,
decorridos
apenas cinco
minutos de
invasão,
deram consigo
numa retirada
ignominiosa
percorrendo o
mesmo
caminho por
onde tinham
chegado,
levando no
encalço um
bando de
gansos a bufar
e a desferir-
lhes bicadas
constantes nas
pernas.
Todos os
homens
partiram,
menos um. De
regresso ao
pátio, Boxer
tentava, com a
pata, voltar o
moço de
estrebaria, que
estava caído
no chão de
cara para
baixo. O rapaz
não se mexia.
“Está
morto”, disse
Boxer com
tristeza. “Não
queria fazer
isso. Esqueci-
me que tenho
os cascos
ferrados.
Quem
acreditará que
não o fiz de
propósito?”
“Nada de
sentimentalis
mos,
camarada!”,
gritou
Snowball,
com as feridas
ainda a pingar
sangue.
“Guerra é
guerra. Um
ser humano só
é bom quando
está morto.”
“Não tenho
qualquer
desejo de tirar
vidas, nem
mesmo de
seres
humanos”,
repetiu Boxer,
com os olhos
rasos de
lágrimas.
“Onde está
a Mollie?”,
perguntou
alguém.
De facto,
Mollie tinha
desaparecido.
Por
momentos,
todos ficaram
alarmados;
receava-se que
os homens lhe
tivessem feito
algum mal, ou
até que a
tivessem
levado com
eles. Mas lá
acabaram por
a encontrar.
Estava
escondida no
estábulo, com
a cabeça
enterrada no
feno da
manjedoura.
Escapara ao
ouvir o
primeiro
disparo da
espingarda. E,
quando todos
os outros
voltaram das
buscas,
descobriram
que o moço de
estrebaria, que
na verdade
estava
somente
atordoado,
tinha
recuperado os
sentidos e
fugido.
Os animais
voltaram a
juntar-se,
tomados ainda
de grande
excitação, e
cada um
elevava a voz
mais do que
os outros para
contar as suas
proezas na
batalha. Foi de
imediato
improvisada
uma
celebração da
vitória. A
bandeira foi
hasteada e o
hino ‘Animais
de Inglaterra’
foi entoado
várias vezes.
Foi
seguidamente
realizado um
funeral solene
para a ovelha
morta em
combate e na
sua tumba foi
plantado um
espinheiro.
Snowball fez
um pequeno
discurso,
sublinhando a
necessidade
de todos os
animais
estarem
preparados
para morrer
pela Quinta
dos Animais,
se tal fosse
necessário.
Os animais
decidiram, por
unanimidade,
criar uma
condecoração
militar –
‘Herói Animal
de Primeira
Classe’ –
atribuída
desde logo a
Snowball e a
Boxer.
Consistia
numa medalha
de latão (na
verdade não
passavam de
pedaços de
decorações
para cavalos
encontrados
na sala dos
arreios), a ser
ostentada aos
domingos e
feriados.
Havia ainda a
condecoração
‘Herói Animal
de Segunda
Classe’,
conferida, a
título
póstumo, à
ovelha
falecida.
Houve acesa
discussão para
decidir o
nome a dar à
batalha.
Acabou por
ser designada
Batalha do
Curral, pois
tinha sido esse
o local da
emboscada. A
espingarda do
Sr. Jones foi
encontrada na
lama e na casa
da quinta foi
descoberta
uma provisão
de cartuchos.
Foi tomada a
decisão de
colocar a
espingarda
junto do poste
da bandeira,
como uma
peça de
artilharia, e
dispará-la
duas vezes por
ano – uma vez
a 12 de
outubro,
aniversário da
Batalha do
Curral, e outra
vez no dia 24
de junho,
aniversário da
Rebelião.
CAPÍTULO
CINCO
Com o
avançar do
inverno,
Mollie
tornava-se
cada vez mais
problemática.
Todas as
manhãs
chegava
atrasada ao
trabalho,
dando a
desculpa de
que voltara a
adormecer e
queixava-se
de dores
misteriosas,
apesar de
manter um
excelente
apetite. Usava
todos os
pretextos para
fugir ao
trabalho e ir
até ao tanque,
onde ficava a
olhar para o
seu próprio
reflexo na
água com um
ar idiota. Mas
circulavam
rumores de
algo mais
sério. Certo
dia, quando
Mollie ia
despreocupad
amente até ao
pátio,
abanando a
longa cauda e
mastigando
um ramo de
palha, Clover
chamou-a de
parte.
“Mollie”,
disse ela,
“tenho uma
coisa muito
séria para te
dizer. Esta
manhã vi-te a
olhar por cima
da sebe que
separa a
Quinta dos
Animais de
Foxwood. Um
dos
empregados
do Sr.
Pilkington
estava do
outro lado. E
ele – eu estava
longe, mas
tenho quase a
certeza disto
–, ele falava
contigo e tu
deixavas que
te fizesse
festas no
focinho. O
que significa
isso, Mollie?”
“Ele não fez
isso! Eu não
estava a olhar!
Não é
verdade!”,
gritou Mollie,
começando a
empinar-se e a
bater com as
patas no chão.
“Mollie!
Olha-me nos
olhos. Dás-me
a tua palavra
de honra de
que esse
homem não
estava a fazer-
te festas no
focinho?”
“Não é
verdade!”,
repetiu
Mollie, mas
sem conseguir
olhar Clover
nos olhos e,
logo a seguir,
afastou-se a
galope para o
fundo do
terreno.
Clover teve
uma ideia e,
sem dizer
nada a
ninguém, foi à
baia de Mollie
na estrebaria e
revirou a
palha com o
casco.
Escondidos
debaixo da
palha estavam
um montinho
de torrões de
açúcar e
vários pedaços
de fitas de
diferentes
cores.
Três dias
depois, Mollie
desapareceu.
Durante
semanas nada
se soube do
seu paradeiro,
até que os
pombos
disseram tê-la
visto no outro
lado de
Willingdon.
Estava
atrelada a uma
bonita
carruagem
pintada de
vermelho e
preto, parada
diante de um
bar. Um
homem de
rosto
vermelho,
com calções
de xadrez e
polainas, que
parecia dono
do
estabelecimen
to, acariciava-
lhe o focinho
e dava-lhe
torrões de
açúcar. Tinha
o pelo recém-
cortado e
ostentava um
laço
encarnado na
parte dianteira
da crina.
Parecia muito
satisfeita,
disseram os
pombos.
Nenhum
animal voltou
a falar de
Mollie.
Em janeiro,
o tempo
tornou-se
muito agreste.
A terra estava
dura como
ferro e não se
conseguia
fazer nada nos
campos.
Foram
realizadas
muitas
assembleias
no celeiro
grande e os
porcos
ocuparam-se a
planear o
trabalho da
estação
seguinte.
Todos
acabaram por
aceitar que os
porcos, que
eram
manifestament
e mais
inteligentes do
que os outros
animais,
deveriam
decidir tudo a
respeito da
quinta,
embora as
suas decisões
tivessem de
ser ratificadas
por voto
maioritário.
Esta
organização
das coisas
teria
funcionado
bem se não
fossem as
disputas entre
Snowball e
Napoleão.
Conseguiam
discordar
sempre que o
desacordo era
possível. Se
um sugeria
aumentar o
cultivo de
centeio, logo o
outro pedia
maior cultivo
de aveia, e se
um dizia que
certo pedaço
de terreno era
perfeito para
couves, o
outro
sentenciava
que não
prestava a não
ser para
tubérculos.
Cada um tinha
os seus
seguidores,
que se
envolviam em
acalorados
debates. Nas
assembleias,
Snowball
remava muitas
vezes contra a
maré e
convencia a
oposição
maioritária
com discursos
brilhantes,
mas Napoleão
era melhor a
reunir apoios
nos
bastidores.
Tinha especial
sucesso com
as ovelhas.
Ultimamente,
as ovelhas
tinham
ganhado o
hábito de balir
‘Quatro
pernas bom,
duas pernas
mau’, e nem
sempre o
faziam nas
alturas certas,
interrompendo
frequentement
e as reuniões
daquela
maneira. Cedo
se percebeu
que tinham
mais
tendência para
desatar a
entoar ‘Quatro
pernas bom,
duas pernas
mau’ em
momentos
cruciais dos
discursos de
Snowball.
Este tinha
estudado
atentamente
alguns
números
atrasados da
revista
Agricultor e
Criador de
Gado que
encontrou na
casa da quinta,
e estava cheio
de planos para
melhorias e
inovações.
Falava com
grande
fluência sobre
sistemas de
drenagem,
silagem e
fosfatos e
concebeu um
esquema
complicado
para que todos
os animais
largassem
diretamente os
excrementos
nos campos,
todos os dias
num sítio
diferente, para
dessa forma
pouparem nos
esforços de
transporte do
estrume.
Napoleão, por
seu lado,
parecia estar à
espera de uma
oportunidade.
Não concebia
esquemas,
mas dizia
calmamente
que as ideias
de Snowball
não dariam
em nada. Mas,
de todas as
controvérsias
que tiveram, a
mais azeda foi
por causa do
moinho.
No longo
prado, não
muito longe
dos edifícios
da quinta,
erguia-se um
pequeno
outeiro que
era o ponto
mais elevado
da herdade.
Depois de
inspecionar o
local,
Snowball
declarou ser
aquele o sítio
mais
adequado para
um moinho de
vento, que
poderia
alimentar um
dínamo e
fornecer
energia
elétrica à
propriedade.
Isso permitiria
iluminar os
estábulos e
aquecê-los no
inverno, e
poderia ainda
acionar uma
serra, um
cortador de
feno e outro
de beterrabas
e ainda uma
ordenhadora
elétrica. Os
animais nunca
tinham ouvido
falar daquilo
(pois a quinta
era antiquada
e nela só havia
instrumentos
primitivos),
pelo que
escutaram
boquiabertos,
enquanto
Snowball
invocava
imagens de
maquinarias
fantásticas que
fariam o
trabalho todo
enquanto eles
pastavam nos
campos ou
aperfeiçoavam
os seus
conhecimento
s com leituras
e trocas de
ideias.
Decorridas
algumas
semanas,
Snowball
terminou os
planos para o
moinho. Os
detalhes
mecânicos
eram baseados
essencialment
e em três
livros do Sr.
Jones – Mil
coisas úteis
para fazer em
casa, Todos
somos
pedreiros e
Eletricidade
para
principiantes.
Snowball usou
como estúdio
de trabalho
uma
arrecadação
onde antes
havia
incubadoras.
Tinha um
soalho de
madeira suave
e liso,
adequado para
desenhar.
Passava horas
seguidas
encerrado
naquele lugar.
Com uma
pedra sobre os
livros para os
manter abertos
e com um
pedaço de giz
preso na pata,
mexia-se de
cá para lá,
desenhando
linhas sobre
linhas e
soltando
guinchinhos
de excitação.
Os planos
cresceram e
tornaram-se
gradualmente
uma
complicada
massa de
manivelas e
roldanas que
cobria mais de
metade do
chão e que os
outros animais
consideraram
ininteligíveis,
mas
impressionant
es. Todos eles
iam, pelo
menos uma
vez por dia,
admirar os
desenhos de
Snowball. Até
mesmo
galinhas e
patos iam
espreitar,
fazendo
grande esforço
para não pisar
as linhas de
giz. Napoleão
era o único a
manter-se
alheado.
Manifestara
bem cedo a
sua oposição
ao moinho.
No entanto,
certo dia,
chegou
inesperadame
nte para
examinar os
planos.
Passeou-se
pesadamente
em volta da
arrecadação,
olhou
atentamente
para cada
detalhe dos
planos e
fungou uma
vez ou duas.
Ficou depois
algum tempo
a contemplá-
los por um
canto do olho
e, de súbito,
levantou a
perna, urinou
em cima dos
planos e foi-se
embora sem
proferir
palavra.
A quinta
estava
profundament
e dividida
sobre a
questão do
moinho.
Snowball não
negava que a
construção
seria
complicada.
Teria de se
extrair a pedra
para erguer as
paredes,
tinham de ser
feitas as pás
do moinho e
as suas velas e
seriam ainda
necessários
dínamos e
cabos
(Snowball não
explicou onde
os iriam
encontrar).
Mas insistia
que se poderia
fazer tudo
num ano. E
depois disso,
declarou ele,
seriam
poupados
tantos
esforços que
os animais só
teriam de
trabalhar três
dias por
semana.
Napoleão, por
seu lado,
defendeu que
a necessidade
mais urgente
era aumentar a
produção de
comida e que
se perdessem
tempo com o
moinho
morreriam de
fome. Os
animais
dividiram-se
em duas
fações, sob os
slogans:
‘Votem por
Snowball e
pela semana
de três dias’ e
‘Votem por
Napoleão e
pela
manjedoura
cheia’.
Benjamin foi
o único a não
tomar partido.
Recusava-se a
acreditar que a
comida viesse
a ser mais
abundante e
também que o
moinho
pudesse
poupar
trabalho.
Dizia ele que,
com moinho
ou sem
moinho, a
vida
continuaria a
correr como
sempre
correra – isto
é, mal.
Para além
das disputas
quanto ao
moinho, havia
a questão da
defesa da
quinta. Era
evidente que,
embora os
seres humanos
tivessem sido
derrotados na
Batalha do
Curral,
poderiam
fazer uma
nova tentativa,
mais
determinada,
para
reconquistar a
quinta e repor
o Sr. Jones no
poder. O facto
de as notícias
da sua derrota
terem
circulado
pelos campos
vizinhos,
tornando os
animais mais
rebeldes do
que nunca,
davam-lhes
razões
acrescidas
para o fazer.
Como sempre,
Snowball e
Napoleão não
estavam de
acordo.
Napoleão
defendia que
os animais
deviam
arranjar armas
de fogo e
treinar-se na
arte de as
disparar.
Snowball
entendia que
deviam enviar
ainda mais
pombos para
incitar uma
rebelião entre
os animais das
outras quintas.
Um
argumentava
que se não
pudessem
defender-se
arriscavam ser
conquistados;
o outro
explicava que
se houvesse
rebeliões por
todo o lado
não
precisariam de
se defender.
Os animais
ouviram
primeiro
Napoleão e
depois
Snowball e
não
conseguiam
decidir quem
tinha razão; na
verdade,
tendiam a
concordar
com aquele
que estivesse
a falar no
momento.
Chegou
então o dia em
que os planos
de Snowball
ficaram
finalmente
concluídos.
Na reunião do
domingo
seguinte seria
votada a
questão de
saber se a
construção do
moinho devia
ir por diante.
Quando os
animais se
acomodaram
por fim no
celeiro
grande,
Snowball
ergueu-se e,
embora
interrompido
ocasionalment
e pelos
balidos das
ovelhas,
apresentou os
seus
argumentos
em defesa da
construção do
moinho. De
seguida,
levantou-se
Napoleão para
responder.
Disse, com
muita calma,
que o moinho
era um
disparate e
que não
aconselhava
ninguém a
votar pela
obra, voltando
a sentar-se
muito
depressa;
falara somente
durante uns
trinta
segundos e
quase parecia
não lhe
importar se as
suas palavras
tinham sido
bem
acolhidas.
Perante isto,
Snowball pôs-
se de pé num
pulo e, dando
um grito para
calar as
ovelhas, que
estavam a
balir outra
vez, iniciou
uma defesa
apaixonada do
moinho. Até
ali, os animais
dividiam-se
mais ou
menos a meio
nas suas
simpatias, mas
a eloquência
de Snowball
rapidamente
os cativou.
Pintou, com
frases
brilhantes, um
quadro da
Quinta dos
Animais do
futuro, desse
momento em
que os seus
lombos já não
teriam de
suportar o
peso sórdido
do trabalho.
Desta vez
deixou que a
sua
imaginação
fosse
transportada
muito para
além dos
cortadores de
nabos e de
feno. A
eletricidade,
dizia ele,
acionava
debulhadoras,
arados e
ancinhos
mecânicos e
ainda
cilindros,
segadoras e
enfeixadoras,
para além de
fornecer luz
elétrica aos
estábulos,
água quente e
aquecimento.
Quando
acabou o
discurso não
restavam
dúvidas
quanto à
orientação do
voto. Mas
Napoleão
levantou-se
naquele
preciso
momento e,
com um
estranho olhar
de soslaio
dirigido a
Snowball, deu
um guincho
muito agudo
como
ninguém
jamais lhe
ouvira.
Nessa
altura,
chegaram sons
terríveis de
latidos vindos
do exterior e
nove cães
enormes, com
coleiras de
pregos,
entraram para
o celeiro num
pulo.
Arremeteram
direitos a
Snowball, que
mal teve
tempo de
saltar do seu
lugar para
escapar às
terríveis
mandíbulas.
Num abrir e
fechar de
olhos estava já
a sair porta
fora, com os
cães no seu
encalço. Tão
assustados e
surpreendidos
que nem
conseguiam
falar, os
animais
amontoaram-
se junto da
entrada para
ver a
perseguição.
Snowball
corria pela
imensa
pastagem que
desembocava
na estrada.
Corria como
só um porco
consegue
correr, mas os
cães mordiam-
lhe os
calcanhares.
De repente,
escorregou e
parecia que ia
ser apanhado.
Mas levantou-
se de novo e
correu ainda
mais depressa,
e depois os
cães voltaram
a ganhar
terreno. Um
deles deu uma
dentada bem
perto da cauda
de Snowball,
mas este
sacudiu-a e
libertou-se
mesmo a
tempo. Deu
então um
impulso final
e, apertando-
se à justa,
esgueirou-se
por um buraco
da cerca e não
mais foi visto.
Num
silêncio
aterrorizado,
os animais
arrastaram-se
novamente
para dentro do
celeiro. Os
cães chegaram
pouco depois.
A princípio
ninguém
conseguia
imaginar de
onde teriam
surgido
aquelas
criaturas, mas
o enigma
depressa foi
solucionado:
eram os
cachorros que
Napoleão
tinha tirado às
mães e criado
num lugar
isolado.
Embora ainda
não fossem
adultos, eram
já cães
enormes e
com um
aspeto tão
feroz que mais
pareciam
lobos.
Mantinham-se
bem perto de
Napoleão.
Abanavam as
caudas para
ele,
exatamente
como os
outros cães
costumavam
fazer com o
Sr. Jones.
Seguido
pelos cães,
Napoleão
subiu então
para a parte
elevada do
celeiro, onde
Major
pronunciara o
seu discurso.
Anunciou que
as reuniões de
domingo
ficavam
suspensas a
partir daquele
momento.
Eram
desnecessárias
e uma perda
de tempo,
disse ele. Dali
em diante,
todas as
questões
relacionadas
com o
funcionament
o da quinta
seriam
resolvidas por
um comité
especial de
porcos,
presidido por
ele próprio.
As reuniões
seriam
privadas e as
decisões
seriam depois
comunicadas
aos restantes.
Os animais
continuariam
a reunir-se aos
domingos de
manhã para
saudar a
bandeira,
cantar
‘Animais de
Inglaterra’ e
receber as
ordens da
semana; mas
não haveria
mais debates.
Apesar de
estarem ainda
em estado de
choque pela
expulsão de
Snowball, os
animais
ficaram
consternados
com este
anúncio.
Muitos deles
teriam
protestado se
tivessem
encontrado os
argumentos
certos. Até
mesmo Boxer
ficou
vagamente
perturbado.
Pôs as orelhas
para trás,
sacudiu a
crina
repetidamente
e esforçou-se
por ordenar as
ideias; mas
acabou por
não se lembrar
de nada para
dizer.
Contudo,
alguns dos
porcos
mostraram-se
mais
eloquentes.
Quatro
pequenos
leitões na
primeira fila
lançaram
guinchos
agudos de
desaprovação
e, levantando-
se de um pulo,
começaram a
falar todos ao
mesmo tempo.
Mas os cães
sentados em
volta de
Napoleão
soltaram
repentinament
e rugidos
ameaçadores e
os porcos
calaram-se e
voltaram a
sentar-se. As
ovelhas
desataram
então num
balido
impressionant
e, repetindo
‘Quatro
pernas bom,
duas pernas
mau!’ durante
quase um
quarto de
hora, pondo
assim um
ponto final
num eventual
debate.
Squealer foi
de seguida
enviado a
percorrer a
quinta para
explicar aos
outros a nova
organização
das coisas.
“Camaradas
”, disse ele,
“acredito que
todos os
animais
valorizam o
sacrifício que
o camarada
Napoleão fez
ao encarregar-
se ele mesmo
deste trabalho
adicional. Não
pensem,
camaradas,
que a
liderança é um
prazer! Pelo
contrário, é
uma profunda
e pesada
responsabilida
de. Ninguém
acredita com
maior firmeza
do que o
camarada
Napoleão que
todos os
animais são
iguais. Nada o
poderia deixar
mais feliz do
que permitir
que tomásseis
as vossas
próprias
decisões. Mas
poderíeis, por
vezes, tomar
as decisões
erradas,
camaradas, e
onde é que
isso nos
levaria?
Suponhamos
que tínheis
decidido
seguir
Snowball,
com a sua
miragem dos
moinhos –
esse Snowball
que, como
agora
sabemos, não
passa de um
criminoso?”
“Ele lutou
com bravura
na Batalha do
Curral”, disse
alguém.
“A coragem
não basta”,
disse
Squealer. “A
lealdade e a
obediência são
mais
importantes.
E, quanto à
Batalha do
Curral, penso
que chegará o
dia em que
iremos
perceber que o
papel de
Snowball foi
muito
exagerado.
Disciplina,
camaradas,
disciplina
férrea! Essa é
a palavra de
ordem do
presente. Um
passo em falso
e os nossos
inimigos
apanham-nos.
Tenho a
certeza,
camaradas,
que não
querem o
regresso de
Jones!?”
Uma vez
mais, ninguém
teve resposta
para este
argumento. É
claro que os
animais não
queriam o
regresso de
Jones; se os
debates de
domingo
podiam trazê-
lo de volta,
então os
debates
tinham de
acabar. Boxer,
que nessa
altura já tinha
conseguido
pensar um
pouco, deu
voz ao
sentimento
geral quando
disse: “Se o
camarada
Napoleão o
diz é porque
deve ser
verdade”. E
daí em diante
adotou a
máxima:
“Napoleão
tem sempre
razão”,
somando-a ao
seu lema
pessoal de
“vou trabalhar
ainda mais”.
Por essa
altura, o
tempo tinha
melhorado e
decorria a
lavoura da
primavera. A
arrecadação
onde
Snowball
delineara os
planos do
moinho tinha
sido fechada
e, segundo se
dizia, os
desenhos
teriam sido
apagados.
Todos os
domingos de
manhã, às dez
horas, os
animais
reuniam-se no
celeiro grande
para
receberem as
ordens da
semana. A
caveira do
velho Major,
agora já limpa
de carne, tinha
sido
desenterrada e
colocada
sobre um
tronco baixo,
junto ao
mastro da
bandeira, ao
lado da
espingarda.
Depois do
hastear da
bandeira, os
animais
tinham de
passar em fila
pela caveira,
de forma
respeitosa,
antes de
entrarem no
celeiro. Agora
já não se
sentavam
todos juntos
como antes.
Napoleão,
com Squealer
e outro porco
chamado
Minimus, que
tinha uma
capacidade
notável para
compor
canções e
poemas,
sentavam-se
na frente da
plataforma
elevada, com
nove cães
jovens a
formar um
semicírculo
em seu redor e
os outros
porcos
sentados atrás
deles. Os
restantes
animais
sentavam-se
de frente para
eles na área
central do
celeiro.
Napoleão lia
as ordens para
a semana num
tom áspero de
estilo militar
e, depois de
cantarem
‘Animais de
Inglaterra’
uma única
vez, todos os
animais
dispersavam.
No terceiro
domingo após
a expulsão de
Snowball, os
animais
ficaram algo
surpreendidos
ao ouvirem
Napoleão
anunciar que o
moinho seria
realmente
construído.
Não deu
qualquer razão
para o facto de
ter mudado de
ideias,
limitando-se a
alertar que
esta tarefa
suplementar
implicaria
trabalho muito
duro; poderia
mesmo ser
necessário
reduzir as
rações. Mas os
planos tinham
sido
preparados até
ao último
pormenor. Um
comité
especial de
porcos
trabalhara
neles durante
as últimas três
semanas. A
construção do
moinho,
juntamente
com vários
outros
melhoramento
s, deveria
estar
finalizada daí
a dois anos.
Naquela
noite,
Squealer
explicou em
privado aos
outros animais
que Napoleão
nunca se tinha
verdadeirame
nte oposto ao
moinho. Pelo
contrário, fora
ele quem
defendera a
ideia logo de
início e o
plano que
Snowball
tinha
desenhado no
chão do
armazém das
incubadoras
fora, na
verdade,
roubado a
Napoleão. O
moinho era,
de facto, da
autoria de
Napoleão.
Nesse caso,
perguntou
alguém, por
que motivo se
tinha oposto
tão fortemente
à ideia?
Squealer
respondeu
com ar
matreiro. Isso,
disse ele, foi
um
estratagema
do camarada
Napoleão. Ele
deu a
entender que
se opunha ao
moinho
somente numa
manobra para
se ver livre de
Snowball, que
era uma
pessoa
perigosa e
uma má
influência.
Agora que
Snowball fora
afastado, o
projeto podia
ser levado a
cabo sem a
sua
interferência.
A isto chama-
se tática, disse
Squealer. E
repetiu várias
vezes, ‘tática,
camaradas,
tática!’, dando
saltinhos e
sacudindo a
cauda
enquanto
soltava
risadinhas
joviais. Os
animais não
sabiam muito
bem o que a
palavra queria
dizer, mas
Squealer foi
tão
persuasivo, e
os três cães
que o
acompanhava
m rosnaram
de forma tão
ameaçadora,
que eles
aceitaram a
explicação
sem mais
perguntas.
CAPÍTULO
SEIS
Durante
todo esse ano,
os animais
trabalharam
como
escravos. Mas
sentiam-se
felizes no
trabalho; não
lamentavam
nem
enjeitavam
qualquer
esforço ou
sacrifício,
cientes de que
tudo quanto
faziam era em
seu próprio
benefício e
para o bem
dos seus
descendentes,
e não para um
bando de
humanos
preguiçosos e
ladrões.
Na
primavera e
no verão
trabalharam
sessenta horas
por semana e
em agosto
Napoleão
anunciou que
também
teriam de
trabalhar nas
tardes de
domingo. Esse
trabalho era
estritamente
voluntário,
mas qualquer
animal que
faltasse veria
a ração
cortada para
metade.
Apesar disso,
considerou-se
necessário
deixar alguns
trabalhos por
fazer. A
colheita não
teve tanto
sucesso como
no ano
anterior e dois
campos onde
deviam ter
sido plantados
tubérculos, no
início do
verão, ficaram
por cultivar
por não ter
sido possível
lavrá-los a
tempo.
Adivinhava-se
que o inverno
seguinte seria
muito duro.
O moinho
colocou
dificuldades
inesperadas.
Havia na
quinta uma
boa pedreira
de rocha
calcária e
tinham sido
igualmente
encontrados
cimento e
areia em
abundância
num dos
edifícios
anexos. Ou
seja, tinham
ao dispor
todos os
materiais
necessários
para a
construção.
Mas o
primeiro
problema que
os animais
enfrentaram
foi o de como
partir a pedra
em pedaços de
tamanho
adequado.
Parecia não
ser possível
fazê-lo a não
ser com
picaretas e
pés-de-cabra,
que nenhum
animal
conseguia
usar, pois
nenhum deles
conseguia
manter-se de
pé nas patas
traseiras.
Somente após
semanas de
esforços
infrutíferos
alguém teve a
ideia certa –
isto é, usar a
força da
gravidade.
Pedregulhos
enormes,
demasiado
grandes para
poderem ser
utilizados,
jaziam
dispersos pela
pedreira. Os
animais
prenderam
cordas em
volta dessas
pedras e
depois, todos
juntos, vacas,
cavalos,
ovelhas,
qualquer
animal que
pudesse pegar
na corda – até
os porcos se
juntavam ao
esforço em
momentos
críticos –
arrastavam-
nas com uma
desesperante
lentidão pela
encosta acima,
até ao topo da
pedreira, de
onde eram
empurradas do
precipício
para se
desfazerem
em pedaços.
Transportar a
pedra depois
de partida era
bem mais
simples. Os
cavalos
carregavam-
na às carradas,
as ovelhas
arrastavam
blocos
isolados, até
Muriel e
Benjamin se
atrelaram a
uma velha
carroça e
fizeram a sua
parte. Quando
o verão
chegou ao fim
já tinham
acumulado
pedra
suficiente e
deu-se início à
construção
sob a
superintendên
cia dos
porcos.
Mas era um
processo lento
e laborioso.
Era frequente
ser necessário
um dia inteiro
de esforços
extenuantes
para arrastar
um único
pedregulho até
ao cimo da
pedreira e, por
vezes, quando
era atirado
para o
precipício,
acabava por
não se partir.
Nada teria
sido possível
sem Boxer,
cuja força
parecia
equiparar-se à
de todos os
outros animais
juntos.
Quando um
pedregulho
começava a
escorregar e
os animais
gritavam de
desespero ao
verem-se
arrastados
colina abaixo,
era sempre
Boxer quem
se aferrava à
corda e
conseguia
travar o
rochedo. Ver
como se
esforçava
colina acima,
centímetro a
centímetro,
ofegante, com
os cascos
cravados no
solo e os
imensos
flancos
escorrendo
suor, enchia
todos os
outros de
admiração.
Clover
alertava-o, por
vezes, para
que evitasse
esforçar-se
demasiado,
mas Boxer
nunca a
escutava. As
suas duas
máximas:
‘Vou esforçar-
me ainda
mais’ e
‘Napoleão tem
sempre razão’,
bastavam-lhe
para responder
a todos os
problemas.
Tinha pedido
ao galo para o
acordar todas
as manhãs três
quartos de
hora mais
cedo, em vez
da meia hora
de antes. E
nas horas
vagas, que
agora não
abundavam, ia
sozinho para a
pedreira,
pegava numa
carga de
pedras
partidas e
arrastava-a,
sem ajuda, até
ao local das
obras do
moinho.
Apesar da
dureza do
trabalho, os
animais não se
deram mal
durante o
verão. Se não
tinham mais
comida do que
no tempo de
Jones, pelo
menos
tinham-na em
igual
quantidade.
As vantagens
de terem
somente de se
alimentar a si
mesmos, não
sendo
forçados a
sustentar
também cinco
seres humanos
extravagantes,
eram tão
grandes que
seria preciso
muita coisa
falhar para as
anular. E o
modo como os
animais
faziam as
coisas era
mais eficiente
em muitos
aspetos e,
além disso,
poupava
trabalho.
Tarefas como
mondar, por
exemplo,
podiam ser
feitas com um
rigor e uma
minúcia
impossíveis
aos seres
humanos.
Além disso,
como agora
nenhum
animal
roubava, era
desnecessário
vedar as terras
aráveis para as
separar dos
pastos, o que
poupava
muito trabalho
na
manutenção
de vedações e
cancelas.
Apesar de
tudo, à medida
que o verão
avançava,
começaram a
sentir-se
várias falhas.
Faltava óleo
de parafina,
pregos, corda,
biscoitos de
cão e ferro
para as
ferraduras dos
cavalos, tudo
coisas que não
podiam ser
produzidas na
quinta.
Depressa
começou a
faltar também
sementes e
fertilizantes
artificiais,
para além de
ferramentas e
da maquinaria
para o
moinho.
Como se iria
arranjar tudo
isso, ninguém
conseguia
imaginar.
Numa
manhã de
domingo,
quando os
animais se
reuniram para
receber
ordens,
Napoleão
anunciou que
tinha decidido
impor uma
nova política.
A partir
daquele
momento, a
Quinta dos
Animais
passaria a
negociar com
as quintas
vizinhas:
naturalmente,
sem
propósitos
comerciais,
mas
simplesmente
para obter
certos
materiais
urgentemente
necessários.
As
necessidades
do moinho
deviam
sobrepor-se a
tudo o resto,
disse ele.
Estava, por
isso, a ser
aprontada a
venda de uma
meda de feno
e de uma parte
da colheita de
trigo. Se fosse
preciso mais
dinheiro,
teriam de
vender ovos,
para os quais
havia procura
constante em
Willingdon.
As galinhas,
disse
Napoleão,
deviam saudar
esse sacrifício,
encarando-o
como a sua
contribuição
especial para a
construção do
moinho.
Os animais
voltaram a
sentir um
vago
desassossego.
Nunca manter
contactos com
seres
humanos,
nunca se
envolver em
relações
comerciais,
nunca usar
dinheiro – não
tinham sido
estas algumas
das primeiras
resoluções
aprovadas
nessa
assembleia
triunfal
realizada
depois de
Jones ser
expulso?
Todos os
animais se
recordavam de
terem
aprovado
essas
resoluções:
ou, pelo
menos,
pensavam
recordar-se.
Os quatro
leitões que
tinham
protestado
quando
Napoleão
aboliu as
assembleias
levantaram as
vozes
timidamente,
mas foram
prontamente
silenciados
por um
tremendo
rosnar dos
cães. Depois,
como
habitualmente,
as ovelhas
desataram
num balido de
‘Quatro
pernas bom,
duas pernas
mau!’, e
aquele
constrangimen
to
momentâneo
passou. Por
fim, Napoleão
ergueu a pata
para pedir
silêncio e
anunciou que
já tinha tudo
preparado.
Nenhum
animal teria
necessidade
de manter
contactos com
seres
humanos, algo
claramente
indesejável.
Seria ele
quem arcaria
pessoalmente
com todas as
responsabilida
des. Um tal Sr.
Whymper,
advogado em
Willingdon,
aceitara ser
intermediário
entre a Quinta
dos Animais e
o mundo
exterior, e iria
à quinta todas
as segundas-
feiras de
manhã para
receber
instruções.
Napoleão
terminou o
discurso com
o grito
habitual de
‘Viva a Quinta
dos Animais!’
e, depois de
entoado o
hino ‘Animais
de Inglaterra’,
foi dada
ordem de
dispersar.
Squealer
fez, de
seguida, uma
ronda à quinta
e sossegou os
animais.
Assegurou-
lhes que a
deliberação
contra o
envolvimento
em atividades
comerciais e
contra a
utilização de
dinheiro
nunca tinha
sido aprovada
ou, sequer,
debatida. Era
pura
imaginação e
teria origem,
possivelmente
, em mentiras
postas a
circular por
Snowball.
Alguns
animais
continuavam a
ter vagas
dúvidas, mas
Squealer
perguntou-
lhes, com
astúcia: “Têm
a certeza de
que isto não é
algo que
viram em
sonhos,
camaradas?
Têm algum
registo dessa
deliberação?
Estará isso
escrito nalgum
lado?” E
como era
seguramente
verdade que
nada do
género
estivesse
escrito, os
animais
deram-se por
satisfeitos e
admitiram ter-
se enganado.
Como
combinado, o
Sr. Whymper
visitava a
quinta todas
as segundas-
feiras. Era um
homenzinho
de aspeto
matreiro, com
suíças
compridas.
Advogado de
pequenas
causas e de
negócios
menores, era
perspicaz ao
ponto de ter
sido o
primeiro a
perceber que a
Quinta dos
Animais
precisaria de
um mediador
e que as
comissões
seriam bem
chorudas. Os
animais
observavam as
suas idas e
vindas com
uma espécie
de temor e
evitavam-no a
todo custo.
Apesar de
tudo, ver
como
Napoleão,
apoiado nas
suas quatro
patas, dava
ordens a
Whymper, que
caminhava
sobre duas
pernas,
despertava-
lhes o orgulho
e reconciliava-
os, até certo
ponto, com o
novo modo de
fazer as
coisas. As
relações que
mantinham
com a raça
humana não
eram agora
exatamente
como tinham
sido até aí. Os
seres humanos
não sentiam
menos ódio
pela Quinta
dos Animais
agora que era
próspera. Na
verdade,
odiavam-na
mais do que
nunca. Todos
os seres
humanos
acreditavam,
com uma fé
cega, que a
quinta iria à
falência mais
cedo ou mais
tarde e, acima
de tudo, que o
moinho seria
um fracasso.
Reuniam-se
em bares e
cafés e
demonstravam
uns aos
outros, por
meio de
diagramas,
que o moinho
estava
condenado a
ruir, ou que,
caso viesse a
aguentar-se de
pé, nunca
funcionaria.
Desenvolvera
m, no entanto,
a contragosto,
um certo
respeito pela
eficiência com
que os
animais
geriam os seus
próprios
assuntos.
Sintoma disso
mesmo, era
terem
começado a
mencionar a
Quinta dos
Animais pelo
seu novo
nome,
deixando de
fingir que se
chamava
Quinta Manor.
Tinham
também
deixado de
defender
Jones, que
desistira de
recuperar a
propriedade e
se mudara
para outra
região do país.
À exceção de
Whymper,
continuava a
não haver
quaisquer
contactos
entre a Quinta
dos Animais e
o mundo
exterior, mas
circulavam
rumores
persistentes de
que Napoleão
estava na
iminência de
firmar um
acordo
comercial ou
com o Sr.
Pilkington, de
Foxwood, ou
com o Sr.
Frederick, de
Pinchfield –
mas nunca,
repare-se bem,
com ambos ao
mesmo tempo.
Foi por essa
altura que os
porcos se
mudaram
subitamente
para a casa da
quinta e
passaram a
viver nela. Os
animais
tiveram
novamente a
sensação de se
recordarem de
ter sido
aprovada, nos
primeiros
dias, uma
resolução
contra isso, e
novamente
Squealer
conseguiu
convencê-los
de que as
coisas não se
tinham
passado dessa
maneira. Era
absolutamente
necessário,
disse ele, que
os porcos, os
cérebros da
quinta,
tivessem um
lugar tranquilo
para trabalhar.
Além disso,
era também
mais
adequado à
dignidade do
Líder (título
pelo qual
ultimamente
ganhara o
hábito de se
referir a
Napoleão)
viver numa
casa e não
numa mera
pocilga.
Apesar disso,
alguns
animais
ficaram
perturbados ao
saber que os
porcos não só
comiam na
cozinha e
usavam a sala
como espaço
recreativo,
como também
dormiam nas
camas. Como
habitualmente
fazia, Boxer
encerrou o
assunto com a
máxima
‘Napoleão tem
sempre razão’,
mas Clover,
convencida
como estava
de se lembrar
de uma regra
clara contra a
utilização de
camas,
dirigiu-se até
ao fundo do
celeiro e
tentou decifrar
os Sete
Mandamentos
que ali
estavam
inscritos. Ao
perceber que
só conseguia
ler letras
isoladas, foi
pedir ajuda a
Muriel.
“Muriel,
podes ler-me o
Quarto
Mandamento?
”, pediu ela.
“Não diz
alguma coisa
sobre nunca
dormirmos
numa cama?”
Com
alguma
dificuldade,
Muriel
soletrou.
“Diz:
‘Nenhum
animal deverá
dormir numa
cama com
lençóis’”,
acabou ela por
anunciar.
Curiosamen
te, Clover não
se lembrava
de que o
Quarto
Mandamento
mencionasse
lençóis; mas
se estava
escrito ali na
parede, devia
ser verdade.
Squealer, que
por acaso
passava por
ali naquela
altura,
escoltado por
dois ou três
cães,
aproveitou
para pôr tudo
em pratos
limpos.
“Ouvistes
então dizer,
camaradas”,
disse ele, “que
os porcos
dormem agora
nas camas da
quinta? E
porque não?
Não
imaginais, por
certo, que
tenha alguma
vez existido
uma regra
contra camas?
Cama
significa
apenas um
sítio para
dormir. Bem
vistas as
coisas, um
monte de
palha num
estábulo é
uma cama. A
regra era
contra os
lençóis, que
são uma
invenção
humana. Nós
retirámos os
lençóis de
todas as
camas e
dormimos
entre
cobertores. E
as camas são
realmente
confortáveis!
Mas nada
demais tendo
em conta
aquilo de que
precisamos,
isso posso
garantir-vos,
camaradas,
com todo o
trabalho
cerebral que
somos
obrigados a
fazer hoje em
dia. Não
desejaríeis
roubar-nos o
nosso
repouso, pois
não,
camaradas?
Não gostaríeis
de nos ver
demasiado
cansados para
realizarmos as
nossas
tarefas? Estou
certo de que
nenhum de
vós quer o
regresso de
Jones!”
Os animais
tranquilizaram
-no de
imediato
relativamente
a isso e não se
falou mais
sobre o facto
de os porcos
dormirem nas
camas da casa
da quinta. E
quando,
volvidos
alguns dias,
foi anunciado
que os porcos
passariam a
levantar-se
uma hora mais
tarde do que
os outros
animais,
também
ninguém se
queixou disso.
Quando o
outono
chegou, os
animais
sentiam-se
cansados, mas
felizes. O ano
tinha sido
difícil e,
depois de
vendidos parte
do feno e do
milho, não
restavam
grandes
reservas de
comida para o
inverno, mas o
moinho
compensava
tudo. A obra
estava já
praticamente a
meio. Depois
das colheitas,
houve um
período de
bom tempo e
os animais
trabalharam
mais do que
nunca,
convencidos
de que valia a
pena
arrastarem-se
de sol a sol,
para trás e
para diante,
carregando
blocos de
pedra, se com
isso
conseguissem
levantar mais
um palmo de
muro. Boxer
chegava a sair
de noite para
trabalhar,
sozinho, uma
hora ou duas,
iluminado
pela lua cheia.
Nos tempos
livres, os
animais
andavam em
volta do
moinho em
construção,
admirando a
força e
perpendiculari
dade das
paredes, e
maravilhando-
se por terem
conseguido
construir algo
tão
imponente. Só
o velho
Benjamin
recusava
entusiasmar-se
a esse ponto
com o
moinho,
embora, como
era seu hábito,
nada mais lhe
ouvissem
dizer para
além da
observação
enigmática de
que os burros
vivem muito
tempo.
Novembro
chegou, com
ventos
tempestuosos
de sudoeste. A
construção
teve de parar
porque o
tempo estava
demasiado
húmido não
para misturar
o cimento.
Veio então
uma noite
com um
vendaval tão
violento que
os edifícios da
quinta foram
sacudidos até
às fundações e
algumas telhas
do celeiro
voaram. As
galinhas
acordaram a
cacarejar de
terror, porque
tinham
sonhado o
mesmo sonho,
no qual
ouviam
disparos ao
longe. De
manhã, os
animais
saíram dos
estábulos para
descobrir que
o poste da
bandeira fora
derrubado
pelo vento e
que um
ulmeiro no
extremo do
pomar tinha
sido arrancado
pelas raízes,
como um
rábano. Ainda
mal se tinham
apercebido
disto, quando
um grito de
desespero
brotou de
todas as
gargantas. Os
seus olhares
desvendaram
uma visão
terrível. O
moinho estava
em ruínas.
Precipitara
m-se a toda a
pressa para o
local.
Napoleão, que
raramente
estugava o
passo, correu
mais depressa
do que todos
eles. Sim, ali
jazia ele, o
fruto de todos
os seus
esforços,
arrasado até
aos alicerces,
com as pedras,
que tão
laboriosament
e tinham
partido e
arrastado,
espalhadas em
volta.
Incapazes de
dizer palavra,
ficaram a
olhar
entristecidos
para as pedras
dispersas.
Napoleão
caminhou para
trás e para a
frente, em
silêncio,
farejando o
chão aqui e
ali. A sua
cauda ficou
rígida e
abanava de
um lado para
o outro, o que
era nele um
sinal de
intensa
atividade
intelectual.
Estacou de
súbito, como
se tivesse
tomado uma
decisão.
“Camaradas
”, disse ele
com muita
calma, “sabeis
quem é
responsável
por isto?
Sabeis quem é
o inimigo que
veio de noite
para derrubar
o moinho?
SNOWBALL!
”, rugiu ele
subitamente,
com uma voz
trovejante;
“Snowball fez
isto! Por pura
maldade, com
a intenção de
retardar os
nossos planos
e de se vingar
da sua
expulsão
ignominiosa,
este traidor
rastejou até
aqui a coberto
da noite e
destruiu o
trabalho de
quase um ano.
Camaradas,
condeno
Snowball,
aqui e agora, à
pena de morte.
Ofereço a
condecoração
‘Herói animal
de segunda
classe’ e meio
alqueire de
maçãs ao
animal que o
trouxer
perante a
Justiça. Um
alqueire
inteiro a quem
o capturar
com vida!”
Os animais
sofreram um
choque
tremendo ao
saber que até
alguém como
Snowball
podia ser
culpado de tal
crime. Houve
gritos de
indignação e
começaram
todos a pensar
na melhor
maneira de o
capturar,
acaso voltasse
à quinta.
Foram
descobertas,
praticamente
de imediato,
pegadas de
porco na
relva, a curta
distância do
outeiro. O
rasto era
visível
somente em
escassos
metros, mas
parecia
conduzir a um
buraco na
vedação.
Napoleão
farejou
profundament
e e declarou
que as
pegadas eram
de Snowball.
Manifestou a
opinião de que
teria vindo,
muito
provavelment
e, da direção
da Quinta
Foxwood.
“Sem mais
demoras,
camaradas!”,
gritou
Napoleão,
depois de as
pegadas serem
examinadas.
“Há trabalho
para fazer.
Começaremos
esta mesma
manhã a
reconstruir o
moinho, e
vamos
trabalhar nas
obras durante
todo o
inverno, faça
chuva ou faça
sol. Vamos
mostrar a este
miserável
traidor que
não é assim
tão fácil
destruir o
nosso
trabalho.
Lembrem-se,
camaradas,
não deve
haver
alterações nos
nossos planos:
serão
cumpridos à
risca, até ao
fim. Avante,
camaradas!
Viva o
moinho! Viva
a Quinta dos
Animais!”
CAPÍTULO
SETE
O inverno
foi rigoroso.
Depois do frio
e da chuva,
veio o granizo
e a neve, ao
que se seguiu
uma geada
que só
abrandou em
meados de
fevereiro. Os
animais
prosseguiram
a reconstrução
do moinho o
melhor que
puderam,
conscientes de
que o mundo
exterior tinha
os olhos
postos neles e
de que os
invejosos
seres humanos
se
regozijariam e
triunfariam
caso o moinho
não fosse
concluído a
tempo.
Por
despeito, os
seres humanos
fingiam não
acreditar que
tinha sido
Snowball a
destruir o
moinho:
diziam que
tinha caído
porque as
paredes eram
demasiado
finas. Os
animais
sabiam que
não era
verdade.
Apesar disso,
foi tomada a
decisão de se
construírem as
paredes com
praticamente
um metro de
espessura, em
vez dos cerca
de cinquenta
centímetros
anteriores, o
que implicava
acarretar
quantidades
de pedra
muito
maiores. A
pedreira
esteve durante
muito tempo
coberta por
um espesso
manto de
neve, pelo que
nada se pôde
fazer. No
tempo gelado
que se seguiu
foi possível
avançar um
pouco, mas
era um
trabalho cruel
e os animais já
não tinham a
mesma
confiança nos
resultados.
Sentiam-se
sempre
gelados e
também com
fome. Só
Boxer e
Clover nunca
desanimaram.
Squealer fez
grandes
discursos
sobre as
alegrias do
serviço e
sobre a
dignidade do
trabalho, mas
os animais
sentiam-se
mais
inspirados
pela força de
Boxer e pelo
seu grito
infalível de
‘vou trabalhar
ainda mais!’
Em janeiro
faltou a
comida. A
ração de
milho foi
drasticamente
reduzida e foi
anunciado
que, para
compensar,
seria servida
uma ração
extra de
batata.
Descobriu-se
depois que a
maior parte da
colheita de
batata tinha
congelado nas
pilhas de
armazenament
o, que não
tinham sido
cobertas com
uma camada
protetora
suficientement
e espessa. As
batatas tinham
ficado moles e
sem cor, e
somente uma
pequena parte
era
comestível.
Durante dias
seguidos, os
animais nada
mais tinham
para comer
além de palha
e beterraba. A
fome parecia
inevitável.
Era vital
esconder este
facto do
mundo
exterior.
Incentivados
pelo colapso
do moinho, os
seres humanos
inventavam
novas
mentiras sobre
a Quinta dos
Animais.
Circulavam
novamente
rumores de
que os
animais
estavam a
morrer de
fome e de
doenças, que
lutavam
continuamente
entre si, e até
já recorriam
ao
canibalismo e
ao
infanticídio.
Napoleão
estava
plenamente
consciente das
perigosas
consequências
negativas que
poderiam
advir da
descoberta da
verdade sobre
a escassez de
alimentos e
decidiu usar o
Sr. Whymper
para espalhar
a ideia
contrária. Os
animais
tinham tido,
até então,
pouco ou
nenhum
contacto com
Whymper
durante as
suas visitas
semanais à
quinta: mas
entretanto,
alguns
animais
selecionados
para o efeito,
sobretudo
ovelhas,
receberam
instruções
para referir
casualmente,
na sua
presença, que
as rações
tinham sido
aumentadas.
Para além
disso,
Napoleão
ordenou que
os caixotes
quase vazios
do armazém
fossem
enchidos com
areia e
cobertos de
seguida com
os escassos
cereais e
farinha que
restavam.
Arranjando
um pretexto,
Napoleão
levou
Whymper ao
armazém para
espreitar os
caixotes. O
estratagema
enganou-o e
por isso
continuou a
contar ao
mundo que
não faltava
comida na
Quinta dos
Animais.
Apesar
disso, quando
janeiro se
aproximava
do fim,
tornou-se
evidente a
necessidade
de arranjar
mais cereais.
Nessa altura,
Napoleão já
só muito
raramente
aparecia em
público.
Passava o
tempo todo na
casa da quinta,
guardada a
rigor por cães
de aspeto
feroz. Quando
aparecia era
com grande
pompa,
acompanhado
por seis cães
que o
cercavam de
perto e
rosnavam
quando
alguém se
aproximava.
Muitas vezes,
nem
comparecia
nas manhãs de
domingo e
mandava
outro porco
comunicar as
suas ordens,
geralmente
Squealer.
Num
domingo de
manhã,
Squealer
anunciou que
as galinhas,
que estavam
precisamente
na altura de
pôr ovos,
deviam
entregar os
ovos todos.
Com a
mediação de
Whymper,
Napoleão
tinha aceitado
um contrato
para fornecer
quatrocentos
ovos por
semana. O
dinheiro da
venda
permitiria
comprar
cereais e
farinha em
quantidade
suficiente para
manter a
quinta até as
coisas ficarem
mais fáceis
com a
chegada do
verão.
Ao saberem
disto, as
galinhas
criaram um
tremendo
rebuliço.
Tinham sido
avisadas que
aquele
sacrifício
poderia ser
necessário,
mas nunca
pensaram que
chegasse
realmente a
acontecer.
Preparavam-
se para chocar
as ninhadas da
primavera e
protestaram,
dizendo que
levar os ovos
naquela altura
era homicídio.
Pela primeira
vez desde a
expulsão de
Jones
aconteceu
algo parecido
com uma
rebelião.
Lideradas por
duas frangas
negras, as
galinhas
fizeram de
tudo para se
opor à
vontade de
Napoleão. O
método
escolhido foi
voarem para
as traves do
telhado e
porem daí os
ovos, que se
esmagavam
contra o chão.
Napoleão
reagiu
prontamente e
de forma
impiedosa.
Ordenou a
suspensão das
rações das
galinhas e
decretou que
qualquer
animal que
alimentasse
uma galinha,
com um grão
de milho que
fosse, seria
punido com a
morte. Os cães
encarregaram-
se de fazer
cumprir estas
ordens. As
galinhas
resistiram
cinco dias e
acabaram por
capitular,
regressando
aos
galinheiros. A
resistência
custou a vida
a nove
galinhas.
Foram
sepultadas no
pomar e foi
comunicado
que tinham
morrido de
coccidiose.
Whymper
nada soube de
tudo isto,
sendo os ovos
entregues na
altura devida e
levados numa
carrinha da
mercearia, que
ia buscá-los à
quinta todas
as semanas.
Durante
todo esse
tempo
ninguém vira
Snowball.
Circulavam
rumores de
que estaria
escondido
numa das
quintas
vizinhas, em
Foxwood ou
Pinchfield.
Napoleão
mantinha
agora relações
ligeiramente
melhores com
os outros
agricultores.
Deu-se o caso
de haver no
pátio uma
pilha de
madeira, ali
deixada havia
dez anos,
depois do
desbaste de
um bosque de
faias. Estava
bem seca e
Whymper
aconselhara
Napoleão a
vendê-la;
tanto o Sr.
Pilkington
como o Sr.
Frederick
estavam
desejosos de a
adquirir.
Napoleão
hesitava,
incapaz de
decidir a qual
deles vender.
Todos
repararam
que, quando
ele parecia à
beira de
firmar acordo
com
Frederick,
constava que
Snowball se
escondia em
Foxwood e,
quando se
inclinava para
Pilkington,
dizia-se que
Snowball
estava em
Pinchfield.
Subitamente
, no início da
primavera, foi
feita uma
descoberta
alarmante.
Snowball
visitava a
quinta em
segredo
durante a
noite! Os
animais
ficaram tão
perturbados
que mal
conseguiam
dormir.
Constava que
todas as noites
ele entrava, a
coberto das
trevas, e fazia
as mais
diversas
patifarias.
Roubava
milho,
entornava
baldes de
leite, partia
ovos, pisava
as
sementeiras,
roía a casca
das árvores de
fruto. Tornou-
se um hábito
culpar
Snowball
sempre que
alguma coisa
não corria
bem. Se uma
janela se
partia ou um
esgoto ficava
entupido, era
garantido que
alguém
culparia
Snowball de
ter ido fazer
aquilo durante
a noite. E
quando a
chave do
armazém se
perdeu, todos
se
convenceram
que Snowball
a tinha atirado
para o poço. O
mais curioso é
que
continuaram a
acreditar
nisso, mesmo
depois de a
chave
extraviada ter
aparecido
debaixo de um
saco de farelo.
As vacas
garantiam, em
coro, que
Snowball se
infiltrara no
curral para as
ordenhar
enquanto
dormiam.
Dizia-se ainda
que as
ratazanas, que
naquele
inverno
tinham
causado
inúmeros
desacatos,
estavam em
conluio com
Snowball.
Napoleão
decretou a
abertura de
uma
investigação
exaustiva às
atividades de
Snowball.
Acompanhado
pelos seus
cães de
guarda, saiu
para fazer
uma ronda de
inspeção aos
edifícios da
quinta, com os
animais no
seu encalço, a
uma distância
respeitosa. A
cada meia-
dúzia de
passos,
Napoleão
parava e
farejava o
chão, em
busca de
vestígios das
pegadas de
Snowball, que
dizia poder
detetar pelo
cheiro.
Farejou por
todos os
cantos, no
celeiro, no
curral, nos
galinheiros, na
horta, e
detetou
vestígios de
Snowball
praticamente
em toda a
parte. Punha o
focinho no
chão, farejava
com duas ou
três inalações
profundas e
exclamava,
com uma voz
terrível:
“Snowball
esteve aqui!
Consigo
cheirá-lo
claramente!”
E, ao ouvirem
a palavra
“Snowball”,
os cães
soltavam
rugidos de
gelar o sangue
nas veias e
punham os
colmilhos de
fora.
Os animais
estavam
completament
e aterrados.
Snowball
afigurava-se-
lhes como
uma espécie
de influência
invisível,
permeando o
ar e
ameaçando-os
com perigos
de todos os
géneros. À
noite foram
convocados
por Squealer,
que, com uma
expressão de
alarme no
rosto, disse ter
notícias muito
sérias.
“Camaradas
!”, gritou
Squealer,
dando
saltinhos
nervosos, “foi
descoberta
uma coisa
terrível.
Snowball
vendeu-se a
Frederick, da
quinta
Pinchfield,
que neste
preciso
momento
conspira para
nos atacar e
nos roubar a
quinta!
Snowball será
o seu guia
quando o
ataque
começar. Mas
há mais.
Pensávamos
que a revolta
de Snowball
era causada
somente pela
sua vaidade e
ambição. Mas
estávamos
enganados,
camaradas.
Sabeis qual é
a verdadeira
razão?
Snowball
esteve aliado a
Jones desde o
primeiro
momento! Era
o agente
secreto de
Jones. Tudo
isto está
demonstrado
em
documentos
que deixou
para trás e que
só agora
foram
encontrados.
A meu ver,
isto explica
muita coisa,
camaradas.
Não vimos
nós, com os
nossos
próprios
olhos, como
tentou –
felizmente
sem sucesso –
conduzir-nos à
derrota e à
destruição na
Batalha do
Curral?”
Os animais
ficaram
estupefactos.
Isto era uma
maldade
muito pior do
que a
destruição do
moinho.
Levaram
algum tempo
a assimilar a
notícia. Todos
se
recordavam,
ou pensavam
recordar-se, de
ver Snowball
a liderar a
carga sobre o
inimigo, na
Batalha do
Curral, de ver
como os
reunia e
incentivava a
cada passo, e
como se
mostrara
incansável,
não se
detendo nem
mesmo
quando os
chumbos da
arma de Jones
o atingiram
nas costas.
Custou-lhes
um pouco
reconciliar de
imediato esta
imagem com
essa outra em
que era aliado
de Jones. Até
mesmo Boxer,
que raramente
fazia
perguntas,
ficou confuso.
Deitou-se com
as patas
dianteiras
aninhadas
debaixo do
corpo, fechou
os olhos e
conseguiu, a
muito custo,
formular os
seus
pensamentos.
“Não
acredito
nisso”, disse
ele. “Snowball
combateu
corajosamente
na Batalha do
Curral. Vi-o
com os meus
próprios
olhos. Não lhe
atribuímos a
condecoração
‘Herói animal
de primeira
classe’ logo a
seguir à
batalha?”
“Erro nosso,
camarada.
Pois sabemos
agora – está
tudo escrito
nos
documentos
secretos que
encontrámos –
que na
verdade
tentava
enganar-nos e
conduzir-nos à
derrota”.
“Mas foi
ferido”, disse
Boxer. “Todos
nós o vimos a
correr com
sangue no
corpo”.
“Isso fazia
parte do
plano!”, gritou
Squealer. “O
disparo de
Jones só o
apanhou de
raspão.
Poderia
mostrar-vos
isso escrito
pelo seu
próprio
punho, se
soubésseis ler.
O plano era
que Snowball,
no momento
crítico, desse
sinal de
retirada e
abandonasse o
campo de
batalha ao
inimigo. E
quase
conseguiu.
Diria mesmo,
camaradas,
que sem a
intervenção do
nosso líder, o
Camarada
Napoleão, ele
teria
conseguido.
Não vos
lembrais
como,
justamente
quando Jones
e os seus
homens
entraram no
pátio,
Snowball se
voltou de
repente e
fugiu, levando
muitos
animais com
ele? E não vos
lembrais,
também, que
foi exatamente
nessa altura,
quando o
pânico
alastrava e
tudo parecia
perdido, que o
camarada
Napoleão se
atirou para
diante, com
um grito de
‘Morte à
Humanidade!’
, e enterrou os
dentes na
perna de
Jones? De
certeza que
vos lembrais
disso,
camaradas?”,
exclamou
Squealer,
saltitando de
um lado para
o outro.
Agora que
Squealer
descrevia a
cena de forma
tão vívida,
parecia-lhes,
realmente, que
se lembravam.
Recordavam-
se, pelo
menos, de ter
visto
Snowball
voltar-se e
fugir no
momento
crucial da
batalha. Mas
Boxer
continuava um
pouco
incomodado.
“Não
acredito que
Snowball
fosse um
traidor desde
o início”,
acabou por
dizer. “O que
fez desde
então é
diferente. Mas
estou
convencido de
que, na
Batalha do
Curral, ele foi
um bom
camarada”.
“O nosso
Líder, o
Camarada
Napoleão”,
anunciou
Squealer,
falando de
forma muito
pausada e
firme,
“declarou
categoricamen
te –
categoricamen
te, camarada –
que Snowball
era um agente
de Jones
desde o
princípio –
sim, desde
muito antes de
a Rebelião ter
sequer sido
pensada”.
“Ah, isso é
diferente!”,
disse Boxer.
“Se o
Camarada
Napoleão o
diz é porque
deve ser
verdade”.
“Essa é a
atitude certa,
camarada!”,
gritou
Squealer, mas
todos se
aperceberam
do olhar
desagradável
que lançou a
Boxer, com
aqueles seus
olhos
pequeninos e
brilhantes.
Voltou-se para
se ir embora,
depois estacou
e acrescentou,
num tom
impressionant
e: “Alerto
todos os
animais desta
quinta que
devem manter
os olhos bem
abertos.
Temos razões
para acreditar
que há agentes
secretos de
Snowball à
espreita entre
nós neste
preciso
momento!”
Quatro dias
depois, ao fim
da tarde,
Napoleão
ordenou a
todos os
animais que se
juntassem no
pátio. Quando
estavam todos
reunidos,
Napoleão
emergiu da
casa da quinta,
ostentando
ambas as
condecorações
(pois tinha
atribuído
recentemente
a si mesmo a
‘Herói Animal
de Primeira
Classe’ e
também a
‘Herói Animal
de Segunda
Classe’) e
fazendo-se
acompanhar
pelos seus
nove cães
enormes, que
saltitavam em
seu redor,
lançando
rugidos que
provocavam
calafrios.
Encolheram-
se todos nos
seus cantos,
em silêncio,
parecendo
adivinhar que
alguma coisa
de terrível
estava para
acontecer.
Napoleão
levantou-se e
olhou para a
audiência com
ar de poucos
amigos.
Emitiu depois
um grunhido
agudo, ao que
os cães se
lançaram de
imediato sobre
quatro porcos.
Agarraram-
nos pelas
orelhas e
levaram-nos
arrastados a
guinchar de
dor e de terror,
largando-os
aos pés de
Napoleão. As
orelhas dos
porcos
sangravam, os
cães sentiram
o sabor do
sangue e, por
momentos,
pareciam
enlouquecidos
. Para surpresa
de todos, três
deles
lançaram-se
sobre Boxer.
Boxer
antecipou o
ataque, lançou
o seu
poderoso
casco e
apanhou um
deles ainda no
ar,
derrubando-o
e
imobilizando-
o no chão. O
cão ganiu,
pedindo
misericórdia,
enquanto os
outros dois
fugiam com o
rabo entre as
pernas. Boxer
olhou para
Napoleão,
para saber se
devia esmagar
o cão ou soltá-
lo. De
semblante
transfigurado,
Napoleão
ordenou num
tom ríspido
que Boxer
soltasse o cão,
pelo que o
cavalo ergueu
a pata e o cão
esgueirou-se,
ferido e a
uivar.
O tumulto
cessou de
imediato. Os
quatro porcos
esperavam,
trémulos, com
a culpa
estampada no
rosto.
Napoleão
instou-os a
confessarem
os seus
crimes. Eram
os mesmos
quatro porcos
que tinham
protestado
quando
Napoleão
aboliu as
assembleias
de domingo.
Não foram
necessários
mais
incitamentos
para os levar a
confessar que
tinham
mantido
contactos
secretos com
Snowball
desde a sua
expulsão, que
tinham
colaborado
com ele para
destruir o
moinho e que
tinham
chegado a um
acordo para
entregar a
Quinta dos
Animais ao Sr.
Frederick.
Acrescentara
m ainda que
Snowball
tinha admitido
perante eles,
em privado,
ser agente
secreto ao
serviço de
Jones desde
há anos.
Assim que
terminaram as
confissões, os
cães
despedaçaram
-lhes de
imediato as
gargantas, e
Napoleão
perguntou,
numa voz
tremenda, se
havia mais
animais que
quisessem
confessar
alguma coisa.
As três
galinhas que
tinham
liderado a
tentativa de
revolta por
causa dos
ovos,
avançaram e
declararam
que Snowball
lhes surgira
num sonho
para as incitar
a desobedecer
às ordens de
Napoleão.
Também elas
foram
abatidas.
Avançou,
depois, um
ganso e
confessou ter
escondido seis
espigas de
milho durante
a colheita do
ano anterior,
para as comer
de noite. A
seguir, uma
ovelha
confessou ter
urinado no
tanque de
água para
beber –
incitada por
Snowball,
segundo disse
– e duas
outras ovelhas
confessaram
ter matado um
velho
carneiro,
seguidor
particularment
e fervoroso de
Napoleão,
fazendo-o
correr sem
parar em volta
de uma
fogueira,
quando estava
constipado.
Foram todos
chacinados na
hora. E as
confissões e
as execuções
sucederam-se,
até haver uma
pilha de
cadáveres aos
pés de
Napoleão e o
ar ficar
saturado pelo
cheiro do
sangue, algo
que não
acontecia
desde a
expulsão de
Jones.
Quando
aquilo chegou
ao fim, os
animais que
restavam, com
exceção dos
porcos e dos
cães, sairam
de fininho dali
para fora,
todos muito
coladinhos
uns aos
outros.
Estavam
abalados e
tristes. Não
sabiam o que
era mais
chocante – se
a aleivosia dos
animais que se
tinham aliado
a Snowball,
ou a retaliação
cruel a que
tinham
assistido. Nos
tempos
antigos, cenas
de carnificina
tão terríveis
como aquela
eram
frequentes,
mas desta vez
parecia muito
pior, por
acontecer
entre animais.
Desde que
Jones deixara
a quinta,
nenhum
animal tinha
matado outro
até àquele dia.
Nem sequer
uma ratazana
tinha sido
morta. Tinham
caminhado até
ao pequeno
outeiro onde
se erguia o
moinho em
construção e,
de comum
acordo,
deitaram-se
muito juntos,
como se
procurassem o
calor uns dos
outros –
Clover,
Muriel,
Benjamin, as
vacas, as
ovelhas e todo
o bando de
gansos e
galinhas –,
todos, de
facto, à
exceção da
gata, que
desaparecera
subitamente,
pouco antes
de Napoleão
ter ordenado a
reunião.
Durante
algum tempo
ninguém
quebrou o
silêncio.
Somente
Boxer
permanecia de
pé. Andava
para trás e
para a frente,
sacudindo a
sua longa
cauda negra
contra os
flancos e
emitindo
ocasionalment
e um pequeno
relincho de
surpresa. Por
fim, disse:
“Não
percebo. Não
consigo
acreditar que
tais coisas
possam
acontecer na
nossa quinta.
Deve ser por
causa de
alguma falha
nossa. A
solução,
segundo creio,
é trabalharmos
ainda mais. A
partir de
agora, vou
levantar-me
uma hora mais
cedo todas as
manhãs”.
E partiu em
direção à
pedreira, no
seu trote
pesado e
lento. Aí
chegado,
juntou duas
cargas de
pedra e
arrastou-as até
ao moinho
antes de se
recolher para
dormir.
Os animais
aconchegaram
-se junto a
Clover, sem
trocar palavra.
Do outeiro
onde estavam
deitados,
podiam ver os
campos até
bem longe.
Avistava-se
grande parte
da Quinta dos
Animais – o
grande pasto
que se
alargava até à
estrada, o
campo de
feno, o
pequeno
bosque, o
tanque de
água para
beber, os
campos
lavrados onde
o trigo novo
era espesso e
verde, e os
telhados
vermelhos das
estruturas da
quinta, com o
fumo a sair
das chaminés
em suaves
ondulações.
Era um fim de
tarde claro de
primavera. A
relva e as
sebes em flor
eram douradas
pelos raios do
sol poente.
Nunca antes a
quinta – e
ocorreu-lhes,
com uma
espécie de
surpresa, que
a quinta era
deles,
pertencia-lhes
até ao último
pedaço – se
lhes afigurara
um lugar tão
desejável.
Enquanto
olhava o
horizonte,
Clover ficou
com os olhos
rasos de
lágrimas. Se
conseguisse
exprimir o que
sentia, teria
dito que não
era aquilo que
queriam
quando, anos
antes, se
decidiram a
fazer tudo o
que fosse
possível para
derrubar a
espécie
humana. Estas
cenas de terror
e massacre
não
correspondia
m ao sonho
daquela noite
em que o
velho Major
os incitou à
rebelião. Se
ela própria
tinha chegado
a ter alguma
visão do
futuro, era a
de uma
sociedade de
animais
libertados da
fome e do
chicote, todos
iguais, cada
um
trabalhando
segundo as
suas
capacidades,
com os fortes
a protegerem
os fracos,
como ela
protegera,
com a pata, o
bando de
patinhos
perdidos na
noite do
discurso de
Major. Em vez
disso – e ela
não percebia
porquê –
tinham
chegado a um
momento em
que ninguém
se atrevia a
dizer o que
pensava, em
que havia por
todo lado cães
ferozes a
rosnar e em
que se tinha
de ver os
camaradas a
serem
despedaçados
depois de
confessarem
crimes
chocantes.
Não lhes
passava pela
cabeça ideias
de rebelião ou
desobediência.
Sabia que,
mesmo na
situação atual,
estavam muito
melhor do que
nos tempos de
Jones e que
era preciso,
acima de tudo,
impedir o
regresso dos
seres
humanos.
Acontecesse o
que
acontecesse,
continuaria a
ser fiel,
trabalharia
com afinco,
cumpriria as
ordens que lhe
fossem dadas
e aceitaria a
liderança de
Napoleão.
Ainda assim,
não era para
aquilo que ela
e todos os
outros animais
tinham
trabalhado,
não era o que
tinham
desejado. Não
era para
aquilo que
tinham
construído o
moinho e
enfrentado os
disparos da
espingarda de
Jones. Tais
eram os seus
pensamentos,
embora lhe
faltassem as
palavras para
os exprimir.
Por fim,
como se em
parte isso
substituísse as
palavras que
lhe faltavam,
começou a
cantar
‘Animais de
Inglaterra’. Os
outros
animais,
sentados em
redor,
imitaram-na e
cantaram o
hino três
vezes seguidas
– muito
afinados, mas
devagar e
numa toada
triste, como
nunca antes o
tinham
cantado.
Tinham
acabado de
cantar pela
terceira vez o
hino, quando
Squealer,
acompanhado
por dois cães,
se aproximou,
com ar de
quem tem
algo
importante a
dizer.
Anunciou que,
por decreto
especial do
Camarada
Napoleão, o
hino ‘Animais
de Inglaterra’
fora abolido.
A partir
daquele
momento era
proibido
cantá-lo.
Os animais
ficaram
desconcertado
s.
“Porquê?”,
gritou Muriel.
“Já não faz
falta,
camarada”,
disse
Squealer,
muito rígido.
“’Animais de
Inglaterra’ era
uma canção
da revolta.
Mas a
Rebelião está
agora
finalizada. A
execução dos
traidores esta
tarde foi o ato
final. Tanto o
inimigo
externo como
o interno
foram
derrotados.
Em ‘Animais
de Inglaterra’
exprimíamos
o nosso anseio
por uma
sociedade
melhor, em
dias
vindouros.
Mas essa
sociedade já
foi criada. É
claro, por isso,
que esta
canção já não
serve qualquer
objetivo”.
Por mais
assustados que
estivessem,
alguns
animais
podiam talvez
ter protestado,
mas nesse
preciso
instante as
ovelhas
começaram
com o
habitual balir
de ‘Quatro
pernas bom,
duas pernas
mau’, que se
prolongou
durante vários
minutos e pôs
fim à
discussão.
Por isso,
‘Animais de
Inglaterra’
nunca mais foi
cantado. Para
o substituir, o
poeta
Minimus
compôs outra
canção, que
começava
assim:
Quinta dos
animais,
Quinta
dos
animais,
A minha
mão
não te
fará mal
nunca
mais!
e este tema
era cantado
todos os
domingos de
manhã, a
seguir ao
hastear da
bandeira. Mas
nem as
palavras, nem
a música,
pareceram aos
animais
equiparáveis
às de
‘Animais de
Inglaterra’.
CAPÍTULO
OITO
Dias depois,
quando o
terror causado
pelas
execuções já
esmorecera,
alguns
animais
lembraram-se
– ou pensaram
lembrar-se –
que o Sexto
Mandamento
decretava:
‘Nenhum
animal matará
qualquer outro
animal’. E,
apesar de
ninguém se ter
dado ao
trabalho de o
referir na
audiência dos
porcos e dos
cães, todos
sentiram que
os assassínios
que ali haviam
tido lugar não
se
conciliavam
com isto.
Clover pediu a
Benjamin para
lhe ler o Sexto
Mandamento,
e quando
Benjamin,
como de
costume, disse
que recusava
imiscuir-se
nessas
questões, ela
foi buscar
Muriel, que
lhe leu o
mandamento.
Dizia o
seguinte:
‘Nenhum
animal matará
qualquer outro
animal sem
uma causa’.
Fosse lá como
fosse, os
animais
tinham-se
esquecido das
duas últimas
palavras. Mas
viam agora
que o
Mandamento
não tinha sido
violado; pois
era evidente
que havia
boas razões
para matar os
traidores que
se tinham
aliado a
Snowball.
Ao longo
desse ano, os
animais
trabalharam
ainda mais do
que no ano
anterior.
Reconstruir o
moinho com
paredes duas
vezes mais
grossas do que
antes e
terminá-lo na
data prevista,
fazendo
simultaneame
nte o trabalho
habitual da
quinta, era um
esforço
tremendo.
Houve alturas
em que os
animais
tiveram a
impressão de
trabalhar mais
horas e de não
comer melhor
do que nos
tempos de
Jones. Nos
domingos de
manhã,
Squealer,
segurando
uma longa
folha de papel
com a pata,
lia-lhes listas
de estatísticas
que
demonstravam
um aumento
de duzentos
por cento na
produção de
todos os tipos
de produtos
alimentares,
ou até,
conforme os
casos, de
trezentos por
cento, ou de
quinhentos
por cento. Os
animais não
viam motivos
para duvidar,
sobretudo
porque já não
se recordavam
muito bem de
como eram as
coisas antes
da Rebelião.
Seja como for,
sentiam por
vezes que
preferiam
menos
números e
mais comida.
Todas as
ordens eram
agora
comunicadas
por Squealer
ou por outro
porco.
Napoleão só
aparecia em
público uma
vez de quinze
em quinze
dias. Quando
realmente
aparecia, era
acompanhado,
não só pelo
seu séquito de
cães, como
também por
um galo preto,
que marchava
na frente dele
e fazia as
vezes de
trombeteiro,
soltando um
sonoro ‘có-có-
ró-có’ antes
de ele falar.
Dizia-se que
até mesmo na
casa da quinta,
Napoleão
vivia separado
dos outros.
Comia
sozinho,
servido por
dois cães, e
usava sempre
o serviço de
jantar Crown
Derby
encontrado na
cristaleira da
sala. Foi
também
anunciado que
a arma seria
disparada
todos os anos
no aniversário
de Napoleão,
bem como nos
dois outros
aniversários
consagrados.
Napoleão
nunca era
agora referido
somente pelo
nome. Era
sempre
mencionado,
em estilo
formal, como:
‘o nosso
Líder,
Camarada
Napoleão’. E
os porcos
gostavam de
inventar-lhe
títulos, como:
Pai de todos
os animais,
Terror da
Humanidade,
Protetor do
Redil, Amigo
dos Patinhos e
outros que
tais. Quando
discursava,
Squealer
falava, com as
lágrimas a
escorrerem-
lhe pelas
bochechas, da
sabedoria de
Napoleão, do
seu coração
bondoso e do
profundo
amor que
nutria pelos
animais de
todo o mundo,
especialmente
pelos que,
noutras
quintas, ainda
viviam na
ignorância e
na
escravatura.
Tornou-se
habitual
conceder a
Napoleão a
autoria e o
mérito de
todos os
empreendime
ntos bem-
sucedidos e
todos os
acontecimento
s felizes.
Ouvia-se,
muitas vezes,
uma galinha
dizer a outra:
“Guiada pelo
nosso Líder, o
Camarada
Napoleão, pus
cinco ovos em
seis dias”; ou
duas vacas a
exclamarem,
enquanto
bebiam no
tanque:
“Graças à
liderança do
Camarada
Napoleão,
como estas
águas sabem
bem!” O
sentimento
generalizado
na quinta foi
expresso num
poema
intitulado
‘Camarada
Napoleão’.
Escrito por
Minimus,
dizia o
seguinte:
Amigo dos
que não têm
pais!
Fonte da
felicidade
sem mais!
Senhor dos
baldes de
lavadura!
Oh, como a
minha alma
se incendeia
ao
contemplar
Vosso calmo
e imponente
olhar,
Como o sol
bem alto no
ar,
Camarada
Napoleão!
Sois vós o
provedor
De tudo a
quanto
vossos
servos têm
amor,
Barriga
cheia duas
vezes ao
dia, palha
limpa
Para
rebolar;
Todos, do
mais
pequeno ao
maior
animal
Dormem em
paz no
curral,
A todos tu
salvas do
mal,
Camarada
Napoleão!
Tivesse eu
um porco
pequeno,
Antes de
ficar grande,
aqui no
feno,
Ainda do
tamanho de
uma garrafa
Ou de um
rolo da
massa,
Bem cedo
aprenderia
Como a vós
ser
verdadeiro e
leal com
mestria,
Sim, e logo
no primeiro
grunhido
diria
‘Camarada
Napoleão!’
Napoleão
aprovou o
poema e
mandou que
fosse inscrito
na parede do
celeiro
grande, no
lado oposto ao
dos Sete
Mandamentos.
Foi encimado
por um retrato
de Napoleão,
de perfil,
desenhado a
tinta branca
por Squealer.
Entretanto,
com a
mediação de
Whymper,
Napoleão
estava
envolvido em
negociações
complicadas
com Frederick
e Pilkington.
A pilha de
madeira
continuava
por vender.
Frederick
mostrava-se
mais ansioso
por se apossar
dela, mas não
oferecia um
preço
aceitável. A
par disso,
corriam novos
rumores de
que Frederick
e os seus
homens
planeavam
atacar a
Quinta dos
Animais e
destruir o
moinho, cuja
construção
deixara
Frederick
furioso de
inveja. A meio
do verão, os
animais
ficaram
alarmados ao
saber que três
galinhas
tinham
confessado
que,
instigadas por
Snowball,
faziam parte
de uma trama
para
assassinar
Napoleão.
Foram
executadas
imediatamente
e foram
tomadas novas
precauções
para garantir a
segurança de
Napoleão.
Quatro cães
guardavam a
sua cama de
noite, um em
cada canto, e
um leitão
chamado
Pinkeye foi
encarregado
de provar a
sua comida,
não fosse
alguém querer
envenená-lo.
Foi
comunicado,
pela mesma
altura, que
Napoleão
combinara
vender a
madeira ao Sr.
Pilkington; ia
igualmente
firmar um
acordo para a
troca regular
de certos
produtos entre
a Quinta dos
Animais e
Foxwood. As
relações entre
Napoleão e
Pilkington,
embora
levadas a cabo
somente por
intermédio de
Whymper,
eram agora
quase
amigáveis. Os
animais não
confiavam em
Pilkington,
sendo ele
humano, mas
preferiam-no,
de longe, a
Frederick, que
não só temiam
como
odiavam. À
medida que o
verão se
aproximava
lentamente do
fim e o
moinho estava
quase
completo,
cresciam os
rumores sobre
a iminência de
um ataque à
traição.
Constava que
Frederick
pretendia usar
vinte homens,
todos com
armas de fogo,
e que teria já
subornado
magistrados e
polícias, para
que ninguém
fizesse
perguntas,
caso
conseguisse
apossar-se dos
títulos de
propriedade
da Quinta dos
Animais.
Além disso,
chegavam de
Pinchfield
histórias
terríveis sobre
o tratamento
cruel que
Frederick
dava aos seus
animais.
Vergastara um
cavalo velho
até à morte,
matava as
vacas à fome,
atirou um cão
para o forno
para o matar,
divertia-se, ao
fim da tarde,
forçando galos
a lutarem com
esporões
metálicos
atados nas
patas. Os
animais
ferviam de
raiva ao saber
como eram
tratados os
seus
camaradas e
por vezes
reclamavam
permissão
para atacar a
Quinta
Pinchfield, a
fim de
expulsar os
humanos e
libertar os
animais. Mas
Squealer
aconselhou-os
a evitarem
ações
precipitadas e
a confiarem
na estratégia
do Camarada
Napoleão.
Apesar
disso, a
oposição a
Frederick
continuou a
crescer. Numa
manhã de
domingo,
Napoleão
apareceu no
celeiro e
explicou que
jamais pensara
vender a pilha
de lenha a
Frederick;
considerava
indigno da sua
pessoa, disse
ele, fazer
negócios com
escumalha
daquele
calibre. Os
pombos que
continuavam a
ser enviados
com a missão
de espalhar a
boa nova da
Rebelião
foram
proibidos de
pôr os pés em
Foxwood e
foi-lhes
igualmente
ordenado que
abandonassem
o slogan de
‘Morte à
Humanidade’,
trocando-o por
‘Morte a
Frederick’. No
final do verão
foi desvelada
outra
maquinação
de Snowball.
A colheita de
trigo estava
cheia de joio e
descobriu-se
que, numa das
suas visitas
noturnas,
Snowball
tinha
misturado
ervas daninhas
com os grãos
de milho. Um
ganso com
conhecimento
direto do
plano tinha
confessado
tudo a
Squealer,
suicidando-se
de seguida
com
mortíferas
bagas de
beladona. Os
animais foram
também
informados de
que Snowball
nunca
recebera a
condecoração
‘Herói Animal
de Primeira
Classe’, como
muitos
acreditavam
ainda. Isso
não passava
de uma lenda,
espalhada a
seguir à
Batalha do
Curral pelo
próprio
Snowball.
Longe de ser
condecorado,
fora censurado
por cobardia
em combate.
Uma vez
mais, ao ouvir
isto, alguns
ficaram um
pouco
desconcertado
s, mas
Squealer
depressa os
convenceu de
que a culpa
era das suas
memórias.
No outono,
graças a um
esforço
tremendo e
extenuante –
pois as
colheitas
tiveram lugar
quase ao
mesmo tempo
–, o moinho
foi concluído.
Faltava ainda
instalar a
maquinaria
interna, cuja
compra estava
a ser
negociada por
Whymper,
mas a
estrutura
estava
finalizada.
Batalhando
contra todas
as
dificuldades, e
apesar da
inexperiência,
das
ferramentas
primitivas,
dos
infortúnios e
da perfídia de
Snowball, a
obra tinha
sido terminada
pontualmente
no dia
agendado!
Esgotados,
mas
orgulhosos, os
animais
andaram uma
e outra vez em
volta da sua
obra-prima,
que lhes
parecia agora
ainda mais
bela do que
quando fora
construída
pela primeira
vez. Além do
mais, as
paredes
tinham agora
o dobro da
espessura.
Desta vez, só
explosivos as
poderiam
derrubar! E
quando
pensavam no
esforço que
lhes tinha
custado, nos
obstáculos que
tiveram de
superar, e em
como as suas
vidas
mudariam
quando as
velas do
moinho
andassem à
roda e os
dínamos
estivessem a
funcionar –
quando
pensavam em
tudo isto,
esqueciam-se
do cansaço e
cabriolavam
em redor do
moinho,
soltando gritos
de triunfo. O
próprio
Napoleão,
acompanhado
pelos cães e
pelo galo, foi
inspecionar a
obra; felicitou
pessoalmente
os animais
pela proeza e
anunciou que
se chamaria
Moinho
Napoleão.
Dois dias
depois, os
animais foram
convocados
para uma
reunião
especial no
celeiro.
Ficaram
mudos de
espanto
quando
Napoleão
anunciou a
venda da
madeira a
Frederick. As
carroças de
Frederick
chegariam no
dia seguinte
para começar
a transportá-
la. Durante a
fase da sua
aparente
amizade com
Pilkington,
Napoleão
tinha, de
facto, mantido
um pacto
secreto com
Frederick.
Todas as
relações com
Foxwood
tinham já sido
suspensas e
mensagens
insultuosas
tinham sido
enviadas a
Pilkington. Os
pombos
haviam
recebido
ordens para
evitar a
Quinta
Pinchfield e
para mudarem
o slogan de
‘Morte a
Frederick’
para ‘Morte a
Pilkington’.
Ao mesmo
tempo,
Napoleão
assegurou que
as histórias
sobre um
ataque
iminente à
Quinta dos
Animais eram
completament
e falsas e que
os relatos
sobre a
crueldade de
Frederick para
com os seus
próprios
animais
tinham sido
muito
exagerados.
Todos esses
rumores
tinham
provavelment
e origem em
Snowball e
nos seus
agentes. Ao
que parece,
Snowball não
estava, afinal,
escondido na
Quinta
Pinchfield e
nunca lá teria
estado: estava
a viver em
Foxwood –
com um luxo
considerável,
segundo se
dizia – e era,
na verdade,
hóspede de
Pilkington há
já alguns anos.
Os porcos
estavam em
êxtase com a
astúcia de
Napoleão. Ao
fingir-se
amigo de
Pilkington
tinha forçado
Frederick a
aumentar a
sua oferta em
doze libras.
Mas a
qualidade
superior da
inteligência de
Napoleão
revelava-se,
segundo
Squealer, no
facto de não
confiar em
ninguém, nem
mesmo em
Frederick.
Este queria
pagar a
madeira com
uma coisa
chamada
cheque, que
mais não era,
ao que parece,
do que um
pedaço de
papel com
uma promessa
de pagamento
escrita. Mas
Napoleão foi
mais esperto
do que ele.
Exigiu o
pagamento em
notas
verdadeiras de
cinco libras,
entregues
antes da
remoção da
madeira.
Frederick já
tinha feito o
pagamento e a
soma paga era
suficiente para
comprar a
maquinaria do
moinho.
Entretanto,
a madeira
estava a ser
carregada e
levada a toda
a pressa.
Depois de ter
sido levada,
foi realizada
uma nova
reunião
especial no
celeiro, para
que os
animais
pudessem
examinar as
notas
bancárias de
Frederick.
Com um
sorriso
beatífico e
ostentando
ambas as
condecorações
, Napoleão
estava deitado
numa cama de
palha, sobre a
plataforma,
com o
dinheiro ao
lado,
empilhado
sobre um
prato de loiça
trazido da
cozinha da
quinta. Os
animais, todos
em fila,
passaram
devagar pelas
notas e
olharam até se
fartarem.
Boxer esticou
mesmo o
focinho para
cheirar as
notas, e as
finas folhas
brancas
agitaram-se e
restolharam
sob a sua
respiração.
Três dias
depois, houve
um enorme
alarido.
Branco como
a cal,
Whymper
chegou a toda
a velocidade,
montado na
sua bicicleta,
atirou-a para o
chão ao
chegar ao
pátio e entrou
a correr na
casa da quinta.
Pouco depois,
ouviu-se nos
aposentos de
Napoleão um
sufocado urro
de raiva. As
notícias sobre
os
acontecimento
s deram a
volta à quinta
com a rapidez
de um
relâmpago. As
notas eram
falsas!
Frederick
tinha levado a
madeira de
borla!
Napoleão
convocou de
imediato os
animais e,
numa voz
terrível,
condenou
Frederick à
morte.
Quando fosse
capturado,
disse ele,
deveria ser de
imediato
cozido vivo.
Alertou
também que,
depois desta
traição, era de
esperar o pior.
Frederick e os
seus homens
poderiam
fazer a
qualquer
momento o
ataque há
tanto
esperado.
Foram
colocadas
sentinelas em
todas as vias
de acesso à
quinta. E
foram ainda
enviados
quatro
pombos a
Foxwood,
com uma
mensagem
conciliadora,
na esperança
de
restabelecer
boas relações
com
Pilkington.
O ataque
chegou
precisamente
na manhã
seguinte. Os
animais
tomavam o
pequeno-
almoço,
quando os
vigias
chegaram à
pressa com as
notícias de
que Frederick
e os seus
seguidores já
tinham
franqueado o
portão
principal. Os
animais
investiram
corajosamente
contra eles,
mas desta vez
não tiveram
uma vitória
fácil como na
Batalha do
Curral. Havia
ao todo quinze
homens, meia
dúzia dos
quais armados
de
espingardas,
que abriram
fogo mal eles
chegaram a
uma distância
de cerca de
cinquenta
metros. Os
animais não
conseguiam
fazer frente às
terríveis
explosões e
aos chumbos
que lhes
mordiam a
pele e, apesar
dos esforços
de Napoleão e
de Boxer para
os reagrupar,
depressa
foram
repelidos.
Alguns deles
já estavam
feridos.
Refugiaram-se
nos edifícios
da quinta e
espreitavam
cuidadosamen
te por fendas e
buracos na
madeira. O
prado grande,
incluindo o
moinho, caíra
nas mãos do
inimigo.
Naquela
altura, até
Napoleão
parecia não
saber o que
fazer. Andava
para trás e
para a frente
sem dizer uma
palavra, com a
cauda rígida e
contraída. Os
olhares
desviavam-se
melancolicam
ente para
Foxwood. Se
Pilkington e
os seus
homens os
ajudassem,
poderiam
ainda triunfar.
Mas nesse
momento
regressaram
os quatro
pombos
enviados no
dia anterior e
um deles
trazia uma
mensagem de
Pilkington.
Nela estavam
escritas as
palavras: ‘É
muito bem
feito!’
Entretanto,
Frederick e os
seus homens
tinham parado
junto do
moinho. Os
animais
olharam para
eles e um
murmúrio de
desalento
percorreu as
suas fileiras.
Um dos
homens tinha
um pé-de-
cabra, e outro
tinha uma
marreta. Iam
destruir o
moinho.
“Impossível
!”, gritou
Napoleão.
“Construímos
paredes
demasiado
grossas. Não
conseguiriam
derrubá-las
nem numa
semana.
Coragem,
camaradas!”
Mas
Benjamin
seguia
atentamente
os
movimentos
dos homens.
Os que tinham
a marreta e o
pé-de-cabra
faziam um
buraco junto
da base do
moinho.
Devagar, e
com um ar
quase
divertido,
Benjamin
acenava com
o seu
comprido
focinho.
“Bem me
parecia”,
disse. “Não
percebem o
que estão a
fazer? Daqui a
pouco, vão
encher o
buraco de
pólvora”.
Os animais
esperaram,
aterrorizados.
Era agora
impossível
arriscarem-se
a deixar o
abrigo dos
edifícios.
Minutos
depois, viram
os homens a
correr em
todas as
direções.
Ouviu-se
então um
rugido
ensurdecedor.
Os pombos
esvoaçaram
assustados e
todos os
animais,
excluindo
Napoleão, se
atiraram de
barriga para o
chão e
protegeram a
cabeça.
Quando
voltaram a
levantar-se,
uma nuvem de
fumo negro
pairava sobre
o lugar onde
se erguera o
moinho.
Desvaneceu-
se aos poucos,
levada pela
brisa. O
moinho já não
existia!
Ante aquela
visão, os
animais
recobraram a
coragem. O
medo e o
desespero, que
haviam
sentido
momentos
antes, foram
afogados pela
raiva contra
aquele ato vil
e desprezível.
Elevou-se um
poderoso grito
de vingança e,
sem
esperarem
novas ordens,
carregaram
todos juntos
em direção ao
inimigo.
Agora, nem se
apercebiam
das cruéis
saraivadas de
chumbos que
caíam sobre
eles como
granizo. A
batalha foi
selvagem e
implacável.
Os homens
dispararam
uma e outra
vez e, quando
os animais se
aproximaram,
desferiram
golpes com os
paus e com as
botas
cardadas.
Uma vaca,
três ovelhas e
dois gansos
foram mortos,
e quase todos
os outros
ficaram
feridos. Até
Napoleão, que
dirigia as
operações na
retaguarda, foi
atingido por
um chumbo
que lhe cortou
a ponta do
rabo. Mas os
homens
também não
escaparam
ilesos. Boxer
golpeou três
deles com os
cascos e
partiu-lhes a
cabeça, outro
foi corneado
na barriga por
uma vaca e
outro quase
ficou sem
calças com as
dentadas de
Jessie e
Bluebell. E,
quando os
nove cães da
guarda pessoal
de Napoleão,
aos quais dera
ordens para
irem à volta a
coberto da
sebe, surgiram
subitamente
por um flanco,
a ladrar com
ferocidade, os
homens
entraram em
pânico.
Perceberam
que corriam o
risco de ficar
cercados.
Frederick
gritou aos
seus homens
para
escaparem
enquanto
podiam, e
pouco depois
os inimigos
cobardes
fugiam em
corrida
desordenada.
Os animais
perseguiram-
nos até ao
fundo do
prado e
desferiram uns
derradeiros
golpes,
enquanto os
homens
forçavam a
passagem por
entre os
espinhos da
sebe.
Tinham
vencido, mas
estavam
esgotados e
ensanguentad
os.
Começaram a
regressar à
quinta, a
coxear. A
visão dos
camaradas
mortos
estendidos na
relva comoveu
alguns até às
lágrimas. E,
num pesaroso
silêncio,
pararam um
momento
junto do local
onde se
erguera o
moinho. Sim,
já não existia.
O último
vestígio do
seu esforço já
não existia!
Até as
fundações
estavam
parcialmente
destruídas. E
desta vez não
poderiam usar
as pedras
derrubadas
para fazer a
reconstrução.
Desta vez até
as pedras
tinham
desaparecido.
A força da
explosão
tinha-as
arremessado
para distâncias
de centenas de
metros. Era
como se o
moinho nunca
tivesse
existido.
À medida
que se
aproximavam
da quinta,
Squealer,
inexplicavelm
ente ausente
durante a
batalha, veio
saltitando ao
seu encontro,
a abanar o
rabo e
radiante de
satisfação. E
os animais
ouviram
chegar, da
direção dos
edifícios da
herdade, o
estrondear
solene de uma
arma.
“Para que é
esse barulho
de tiros?”,
perguntou
Boxer.
“Para
celebrar a
nossa
vitória!”,
gritou
Squealer.
“Que
vitória?”,
disse Boxer.
Tinha os
joelhos em
sangue,
perdera uma
ferradura,
rachara um
casco e uma
dezena de
chumbos
tinham-se-lhe
alojado numa
das pernas
traseiras.
“Que
vitória,
camarada!?
Não
expulsámos o
inimigo do
nosso
território? Do
solo sagrado
da Quinta dos
Animais?”
“Mas eles
destruíram o
moinho.
Gastámos ali
dois anos de
trabalho!”
“Que
importa isso?
Construiremos
outro.
Construiremos
seis moinhos,
se assim
quisermos.
Não
consegues
dar-te conta,
camarada, da
nossa
grandiosa
realização? O
inimigo
ocupava este
mesmo solo
onde estamos.
E agora –
graças à
liderança do
Camarada
Napoleão –
reconquistámo
s tudo, até ao
último
centímetro!”
“Nesse
caso,
reconquistámo
s o que já
tínhamos”,
disse Boxer.
“É essa a
nossa vitória”,
disse
Squealer.
Coxearam
até ao pátio.
Os chumbos
alojados na
perna de
Boxer
causavam-lhe
uma dor
intensa.
Antevia o
duro trabalho
que seria
necessário
para
reconstruir o
moinho desde
as fundações e
já se
preparava
mentalmente
para a
empresa. Mas
ocorreu-lhe,
pela primeira
vez, que tinha
onze anos e
talvez os seus
músculos
enormes já
não fossem os
mesmos.
Mas,
quando os
animais viram
a bandeira
verde a
drapejar e
ouviram um
novo disparo
da arma – ao
todo, sete
disparos –, e
escutaram o
discurso de
Napoleão, a
felicitá-los
pela sua
conduta,
pareceu-lhes
que, afinal de
contas, tinham
mesmo
conquistado
uma grande
vitória. Foi
realizado um
funeral solene
para os
animais
mortos em
combate.
Boxer e
Clover
puxaram a
carroça que
serviu de
carro
funerário e o
próprio
Napoleão
liderou o
cortejo
fúnebre.
Foram
reservados
dois dias
inteiros para
as
celebrações.
Houve
canções,
discursos e
mais disparos
de espingarda,
e foi
concedida a
oferta especial
de uma maçã
a cada animal,
55 gramas de
milho a cada
pássaro e três
biscoitos a
cada um dos
cães. Foi
anunciado que
a batalha se
chamaria
Batalha do
Moinho e que
Napoleão
tinha criado
uma nova
condecoração,
a ‘Ordem da
Bandeira
Verde’, que
concedeu a si
mesmo. O
júbilo
generalizado
fez esquecer o
caso infeliz
das notas
bancárias.
Foi somente
alguns dias
depois disto
que os porcos
encontraram
uma caixa de
whisky na
cave da casa
da quinta.
Passara
despercebida
aquando da
ocupação.
Nessa noite,
chegaram da
casa da quinta
altas vozes de
cantorias, com
as quais, para
surpresa de
todos, se
misturavam os
acordes de
‘Animais de
Inglaterra’.
Por volta das
nove e meia,
Napoleão,
com um velho
chapéu de
coco do Sr.
Jones na
cabeça, foi
visto
distintamente
a assomar à
porta das
traseiras, deu
uma volta ao
pátio num
galope rápido
e voltou de
novo para
dentro de
casa. Mas, de
manhã, a casa
ficou envolta
num profundo
silêncio.
Nenhum
porco parecia
estar
acordado.
Eram quase
nove horas
quando
Squealer
apareceu,
caminhando
devagar e
abatido, de
olhos baços,
cauda
pendendo
flacidamente,
com o aspeto
de quem está
gravemente
doente.
Reuniu os
animais e
disse-lhes que
tinha uma
notícia terrível
a comunicar.
O Camarada
Napoleão
estava
moribundo!
Ergueu-se
um clamor de
pranto. Foi
espalhada uma
camada de
palha diante
das portas da
casa da quinta,
e os animais
passavam em
bicos de pés.
Perguntavam
uns aos
outros, com
lágrimas nos
olhos, o que
fariam se
perdessem o
Líder. Correu
o rumor de
que Snowball
tinha
conseguido
finalmente
envenenar a
comida de
Napoleão. Às
onze, Squealer
veio fazer um
novo anúncio.
Como ato de
despedida
deste mundo,
o Camarada
Napoleão
tinha
pronunciado
um decreto
solene: o
consumo de
álcool passava
a ser punido
com a morte.
Contudo, ao
início da noite
Napoleão
parecia ter
melhorado e
na manhã
seguinte
Squealer pôde
já anunciar
que a sua
recuperação
estava no bom
caminho. Ao
fim da tarde
desse mesmo
dia, Napoleão
estava de
volta ao
trabalho e no
dia seguinte
ficou a saber-
se que tinha
dado ordem a
Whymper
para comprar,
em
Willingdon,
alguns livros
sobre
fermentação e
destilação.
Uma semana
mais tarde,
Napoleão
ordenou que
fosse lavrado
o pequeno
pasto por trás
do pomar, até
aí reservado
para os
animais já
demasiado
velhos para
trabalhar. Foi
dito que o
pasto estava
exaurido e
precisava de
ser semeado
de novo. Mas
rapidamente
se percebeu
que Napoleão
queria usá-lo
para cultivar
cevada.
Por essa
altura deu-se
um estranho
incidente que
praticamente
ninguém
conseguiu
perceber. Uma
noite, por
volta das vinte
e quatro horas,
ouviu-se um
estrondo no
pátio, tão forte
que os
animais se
precipitaram
para fora dos
estábulos. Era
uma noite de
lua cheia.
Perto da
parede do
fundo do
celeiro
grande, onde
estavam
inscritos os
Sete
Mandamentos,
jazia uma
escada partida
ao meio.
Squealer,
ainda meio
atordoado,
estava
estendido no
chão, tendo
junto dele
uma lanterna,
um pincel e
uma lata de
tinta branca
entornada. Os
cães formaram
de imediato
um círculo em
torno de
Squealer e
escoltaram-no
de regresso à
casa da quinta
logo que
recuperou e
pôde
caminhar.
Nenhum
animal
conseguiu
perceber o
significado
daquilo,
exceto
Benjamin, que
fez acenos
com o
focinho, com
ar de
entendido.
Parecia
compreender
tudo, mas
recusava dizer
fosse o que
fosse.
Contudo,
decorridos
alguns dias,
Muriel, ao ler
para si mesma
os Sete
Mandamentos,
reparou noutro
que os
animais
recordavam de
forma errada.
Pensavam que
o Quinto
Mandamento
era ‘Nenhum
animal beberá
álcool’, mas
havia duas
palavras
esquecidas.
Na verdade, o
mandamento
dizia:
‘Nenhum
animal beberá
álcool em
excesso’.
CAPÍTULO
NOVE
O casco
rachado de
Boxer levou
muito tempo a
sarar. Tinham
iniciado a
reconstrução
do moinho um
dia depois de
terminarem as
celebrações da
vitória. Boxer
recusou ter
uma única
folga e fez
ponto de
honra em que
ninguém
percebesse
como sofria.
Nos fins de
tarde, admitia
em privado a
Clover que o
casco o
incomodava
muito. Clover
tratou o
ferimento com
cataplasmas
de ervas, que
preparava
mastigando-
as, e tanto ela
como
Benjamin
instaram
Boxer a
trabalhar
menos. “Os
pulmões dum
cavalo não
duram para
sempre”, disse
ela. Mas
Boxer
recusava-se a
dar-lhes
ouvidos. Só
lhe restava
uma
verdadeira
ambição, disse
ele – ver o
moinho em
pleno
funcionament
o antes de
chegar à idade
da reforma.
No início,
aquando da
formulação
das leis da
Quinta dos
Animais, a
idade da
reforma tinha
sido fixada
nos doze anos
para cavalos e
porcos, nos
catorze para
vacas, nove
para os cães,
sete para as
ovelhas e
cinco para
gansos e
galinhas.
Foram
definidos
valores
generosos
para as
pensões de
reforma. Até
então, nenhum
animal se
tinha ainda
reformado,
mas o tema
era cada vez
mais debatido.
Agora que o
pequeno
campo atrás
do pomar
tinha sido
reservado para
semear
cevada, dizia-
se que uma
parcela do
pasto grande
seria vedada e
transformada
em pastagem
para animais
aposentados.
Constava que,
para um
cavalo, a
pensão seria
de cerca de
dois quilos de
milho por dia
e, no inverno,
de quase sete
quilos de feno,
com o bónus
de uma
cenoura, ou
talvez de uma
maçã, nos
feriados.
Boxer
celebraria os
doze anos no
final do verão
do ano
seguinte.
Entretanto,
a vida era
dura. O
inverno estava
tão frio como
o anterior e a
comida era
ainda mais
escassa. As
rações foram
reduzidas uma
vez mais,
exceto as dos
porcos e dos
cães. Uma
igualdade
demasiado
rígida nas
rações,
explicou
Squealer, seria
contra os
princípios do
Animalismo.
Seja como for,
não teve
dificuldade
em provar aos
outros animais
que não
tinham
realmente
pouca comida,
apesar das
aparências.
Era certo que,
para já, tinha
sido
necessário
fazer um
reajustamento
das rações
(Squealer
referia-se
sempre a um
‘reajustament
o’, nunca a
uma
‘redução’),
mas, em
comparação
com os
tempos de
Jones, a
melhoria era
enorme.
Lendo as
estatísticas
numa voz
esganiçada e
apressada,
mostrou-lhes
detalhadament
e que tinham
produzido
mais aveia,
mais feno e
mais nabos do
que no tempo
de Jones, que
trabalhavam
menos horas
por dia, que a
água para
beber tinha
mais
qualidade, que
viviam mais
tempo, que
uma
proporção
maior dos
recém-
nascidos
sobrevivia à
infância e que
tinham mais
palha nos
estábulos e
eram menos
incomodados
pelas pulgas.
Os animais
acreditavam
em tudo.
Verdade seja
dita, já quase
não se
lembravam de
Jones nem do
que ele
representava.
Sabiam que a
vida de agora
era dura e
despojada,
que muitas
vezes tinham
fome e outras
tantas vezes
tinham frio e
que, quando
não estavam a
dormir,
estavam
habitualmente
a trabalhar.
Mas,
antigamente
era sem
dúvida pior.
Gostavam de
acreditar
nisso. Para
além do mais,
antigamente
eram escravos
e agora eram
livres, e isso
fazia toda a
diferença,
como
Squealer não
se cansava de
repetir.
Havia agora
muito mais
bocas para
alimentar.
Quatro porcas
tinham parido
no outono
quase ao
mesmo tempo,
produzindo,
ao todo, trinta
e um porcos.
Os porquinhos
eram
malhados e
como
Napoleão era
o único porco
de cobrição da
quinta, era
fácil
adivinhar-lhes
a paternidade.
Foi anunciado
que, assim que
se comprasse
tijolos e
madeira, seria
construída
uma escola no
jardim da casa
da quinta.
Para já, os
porquinhos
recebiam
lições na
cozinha,
ministradas
por Napoleão
em pessoa.
Faziam
exercício no
jardim e eram
desencorajado
s de brincar
com os outros
animais da
mesma idade.
Foi também
por essa altura
que se
estabeleceu a
regra de que
qualquer
animal deveria
desviar-se
quando se
cruzasse com
um porco; e
ainda que
todos os
porcos,
independente
mente do seu
grau
hierárquico,
iam passar a
ter o
privilégio de
usar laços
verdes nas
caudas ao
domingo.
A quinta
tinha tido um
ano bastante
bom, mas
continuava
com falta de
dinheiro. Era
preciso
comprar
tijolos, areia e
cal para a
escola, e seria
igualmente
necessário
recomeçar a
fazer
poupanças
para a
maquinaria do
moinho.
Havia depois
o azeite das
candeias e as
velas para a
casa, açúcar
para Napoleão
(tinha-o
proibido aos
outros,
alegando que
os engordava),
e ainda a
reposição de
coisas como
ferramentas,
pregos, corda,
carvão, fios de
arame, ferro
fundido e
biscoitos de
cão. Um rolo
de feno e parte
da colheita de
batata foram
vendidos, e o
contrato de
fornecimento
de ovos foi
aumentado
para
seiscentos por
semana, pelo
que nesse ano
as galinhas
mal chocaram
pintos
suficientes
para se
manterem em
igual número
na capoeira.
As rações, já
reduzidas em
dezembro,
foram de novo
cortadas em
fevereiro, e
foram
proibidas as
candeias nos
estábulos,
para poupar
azeite. Mas os
porcos
pareciam
viver
confortavelme
nte e, na
verdade,
estavam até a
ficar mais
gordos. Numa
tarde do final
de fevereiro,
um cheiro
forte e
apetitoso
como os
animais nunca
haviam
sentido
espalhou-se
pelo pátio.
Vinha da
pequena
destilaria por
trás da
cozinha,
deixada ao
abandono no
tempo de
Jones.
Alguém disse
que era o
cheiro de
cevada
cozinhada. Os
animais
aspiraram o ar,
famintos, e
perguntaram-
se se estaria a
ser preparada
uma papa
quente para o
jantar. Mas a
papa ninguém
a viu e, no
domingo
seguinte, foi
anunciado que
dali em diante
toda a cevada
seria
reservada para
os porcos. O
terreno atrás
do pomar já
tinha sido
semeado com
cevada. Cedo
circularam
notícias de
que cada
porco recebia
agora uma
ração diária de
uma caneca de
cerveja,
enquanto
Napoleão
tinha direito a
cerca de dois
litros, que lhe
eram sempre
servidos na
terrina de sopa
da loiça
Crown Derby.
Mas as
dificuldades
que era
preciso
suportar eram,
em parte,
atenuadas pelo
facto de a vida
ter agora
maior
dignidade.
Havia mais
canções, mais
discursos,
mais desfiles.
Napoleão
tinha
ordenado a
realização
semanal de
uma coisa
chamada
Manifestação
Espontânea,
cujo objetivo
era celebrar as
lutas e os
triunfos da
Quinta dos
Animais. Na
hora indicada,
os animais
deixariam o
trabalho para
marchar em
volta do
recinto da
quinta, em
formação
militar, com
os porcos
adiante,
seguidos dos
cavalos,
depois as
vacas, depois
as ovelhas e
por fim as
galinhas. Os
cães ladeavam
o cortejo e na
frente de
todos seguia o
galo negro de
Napoleão.
Boxer e
Clover
levavam
sempre uma
bandeira
verde,
marcada com
o casco e o
corno e com a
legenda
‘Longa vida
ao Camarada
Napoleão!’
Seguiam-se
recitais de
poemas
compostos em
honra de
Napoleão e
um discurso
de Squealer,
dando
pormenores
dos mais
recentes
aumentos na
produção de
bens
alimentares e,
em
determinadas
ocasiões, era
disparado um
tiro de
espingarda.
As ovelhas
eram as
maiores
adeptas das
Manifestações
Espontâneas e
se alguém se
queixava
(como alguns
animais por
vezes faziam,
caso não
houvesse
porcos ou cães
por perto) de
que estavam a
perder tempo
e que era
preciso ficar
de pé ao frio,
as ovelhas
logo o
mandavam
calar com um
tremendo
balido de
‘Quatro
pernas bom,
duas pernas
mau!’ Mas, de
uma forma
geral, os
animais
gostavam
destas
celebrações.
Sentiam-se
confortados ao
recordar que,
no fim de
contas, eram
realmente
senhores de si
mesmos e que
o trabalho que
faziam era em
seu próprio
benefício. E
assim, com as
canções, os
cortejos, as
estatísticas de
Squealer, o
troar da
espingarda, o
canto do galo
e o adejar da
bandeira,
conseguiam
esquecer
momentaneam
ente as
barrigas
vazias.
Em abril, a
Quinta dos
Animais foi
proclamada
República e
tornou-se
necessário
eleger um
presidente.
Houve um
único
candidato,
Napoleão, que
foi eleito por
unanimidade.
No mesmo
dia, foi
tornada
pública a
descoberta de
novos
documentos
que revelavam
mais
pormenores
sobre a
cumplicidade
de Snowball
com Jones. Ao
contrário do
que se
pensava,
Snowbal não
se teria
limitado a
planear a
derrota na
Batalha do
Curral,
combatendo
do lado de
Jones. Na
verdade, fora
ele quem
liderara os
combatentes e
tinha entrado
na batalha
com as
palavras ‘Viva
a
Humanidade’.
Os ferimentos
nas costas de
Snowball, de
que muitos
ainda se
lembravam,
tinham sido
infligidos
pelos dentes
de Napoleão.
A meio do
verão, o corvo
Moisés
reapareceu
subitamente
na quinta,
após uma
ausência de
vários anos.
Estava
praticamente
igual,
continuava
sem trabalhar
e falava, como
sempre fizera,
da Montanha
de Açúcar.
Pousava num
tronco, batia
as asas e
falava horas a
fio para quem
quisesse ouvi-
lo. “Ali em
cima,
camaradas”,
dizia ele com
solenidade,
enquanto
apontava para
o céu com o
seu longo bico
– “ali em
cima, do outro
lado daquela
nuvem negra
–, aí fica ela, a
Montanha de
Açúcar, o país
da felicidade,
onde nós,
pobres
animais,
repousaremos
para sempre!”
Garantia
mesmo ter ido
até lá num dos
seus voos
mais altos e
dizia ter visto
os campos de
trevo
eternamente
verdes, os
bolos de
linhaça e os
torrões de
açúcar a
crescer nas
sebes. Muitos
animais
acreditaram
nele. As suas
vidas atuais,
pensavam
eles, eram de
privações e
trabalhos; não
seria correto e
justo que
existisse
algures um
mundo
melhor? Uma
coisa difícil de
avaliar era a
atitude dos
porcos em
relação a
Moisés. Todos
declaravam,
com desprezo,
que as suas
histórias sobre
a Montanha
de Açúcar
eram mentiras
e, contudo,
deixavam-no
continuar na
quinta, sem
trabalhar e
com uma
pensão de um
copo de
cerveja por
dia.
Depois de o
seu casco
sarar por
completo,
Boxer
trabalhou mais
do que nunca.
Na realidade,
todos os
animais
trabalharam
como escravos
nesse ano.
Para além do
trabalho
habitual na
quinta e da
reconstrução
do moinho,
havia a escola
para os
porquinhos,
cuja
construção
começara em
março. Por
vezes era
difícil suportar
tantas horas
de trabalho
quase sem
comer, mas
Boxer nunca
fraquejava.
Em nada do
que fazia ou
dizia dava
quaisquer
sinais de estar
a perder as
forças.
Apenas a sua
aparência
estava um
pouco
mudada; o seu
pelo estava
menos luzidio
e as suas
ancas enormes
pareciam ter
encolhido. Os
outros diziam:
“O Boxer vai
ficar melhor
quando a erva
da primavera
crescer”. Mas
a primavera
chegou e
Boxer não
ganhou peso.
Por vezes,
enquanto
percorria a
encosta até ao
cimo da
pedreira,
quando
retesava os
músculos para
aguentar o
peso de
alguma pedra
maior, dava a
impressão que
só a vontade
férrea de
continuar o
mantinha em
pé. Nessas
alturas, via-se
como os seus
lábios
formavam as
palavras ‘vou
trabalhar
ainda mais’; já
não conseguia
falar. Clover e
Benjamin
voltaram a
alertá-lo para
ter cuidado
com a saúde,
mas Boxer
ignorou-os.
Aproximava-
se o dia dos
seus doze
anos. Pouco
lhe importava
o que
acontecesse
depois, desde
que se
conseguisse
acumular uma
boa
quantidade de
pedras antes
de a sua
reforma
chegar.
Um dia à
tardinha, no
verão, um
rumor súbito
percorreu a
quinta: tinha
acontecido
alguma coisa
a Boxer. Saíra
sozinho para
arrastar uma
carga de
pedras até ao
moinho. E o
rumor veio a
revelar-se
verdadeiro.
Minutos
depois, dois
pombos
chegaram a
grande
velocidade
com as
notícias:
“Boxer caiu!
Está tombado
de lado e não
consegue
levantar-se!”
Quase
metade dos
animais da
quinta
precipitou-se
para o outeiro
onde se erguia
o moinho. Ali
estava Boxer,
entre as hastes
da carroça, de
pescoço
estirado,
incapaz até de
levantar a
cabeça. Tinha
os olhos
vidrados, os
flancos
perlados de
suor. Um
estreito fio de
sangue
escorria-lhe da
boca. Clover
caiu de
joelhos a seu
lado.
“Boxer!”,
gritou, “como
te sentes?”
“São os
pulmões”,
disse Boxer,
numa voz
sumida. “Não
interessa.
Penso que
serás capaz de
acabar o
moinho sem
mim. Há uma
boa
quantidade de
pedra
acumulada.
Seja como for,
só me restava
um mês. Para
te ser sincero,
estava ansioso
por me
reformar. E,
quem sabe,
como
Benjamin
também está a
ficar velho,
talvez o
deixem
reformar-se ao
mesmo tempo
para me fazer
companhia”.
“Temos de
ir buscar
ajuda”, disse
Clover.
“Alguém vá a
correr contar
ao Squealer o
que
aconteceu”.
Todos os
outros animais
correram
imediatamente
para a quinta
para levar as
notícias a
Squealer. Só
Clover ficou,
e também
Benjamin, que
foi deitar-se
junto a Boxer
e, sem dizer
uma palavra,
afastou com a
sua longa
cauda as
moscas que
pairavam
sobre ele.
Cerca de um
quarto de hora
depois
apareceu
Squealer,
muito
solidário e
preocupado.
Disse que o
Camarada
Napoleão
tinha tomado
conhecimento,
com o mais
profundo
pesar, do
infortúnio que
atingira um
dos
trabalhadores
mais leais da
quinta, e
estava já a
fazer
preparativos
para enviar
Boxer para o
hospital de
Willingdon.
Isto deixou os
animais algo
inquietos.
Tirando
Mollie e
Snowball,
nunca nenhum
outro animal
saíra da
quinta, e não
lhes agradava
pensar no seu
camarada
doente
entregue aos
cuidados de
seres
humanos.
Contudo,
Squealer
convenceu-os
com facilidade
de que o
cirurgião
veterinário
poderia tratar
Boxer de
forma mais
eficaz em
Willingdon do
que seria
possível fazer
na quinta.
Cerca de meia
hora depois,
quando Boxer
se sentiu
ligeiramente
recuperado,
ajudaram-no a
pôr-se de pé e,
com alguma
dificuldade,
conseguiu ir a
coxear até à
sua baia no
estábulo, onde
Clover e
Benjamin lhe
prepararam
uma boa cama
de palha.
Boxer
permaneceu
no estábulo
nos dois dias
seguintes. Os
porcos tinham
mandado uma
garrafa grande
dum
medicamento
cor-de-rosa
que
encontraram
no armário da
casa de banho,
e Clover deu-
o a Boxer
duas vezes por
dia, depois das
refeições. Ao
início da
noite, deitava-
se na baia dele
e falava-lhe,
enquanto
Benjamin
afastava as
moscas. Boxer
dizia não
lamentar o
que lhe
acontecera. Se
recuperasse
bem, poderia
viver mais três
anos e ansiava
pelos dias de
paz que iria
passar no
canto do pasto
grande. Pela
primeira vez
teria tempo
para estudar e
aperfeiçoar o
espírito.
Pretendia,
segundo disse,
dedicar o resto
da vida a
aprender as
restantes vinte
e duas letras
do alfabeto.
Contudo,
Benjamin e
Clover só
podiam estar
com Boxer
depois do
trabalho e foi
a meio do dia
que a carroça
chegou para o
levar. Os
animais
estavam no
trabalho, a
arrancar
nabos,
supervisionad
os por um
porco, quando
foram
surpreendidos
pela chegada
de Benjamin a
galope. Vinha
dos edifícios
da quinta e
zurrava a
plenos
pulmões. Era
a primeira vez
que viam
Benjamin
agitado – na
verdade, era a
primeira vez
que alguém o
via galopar.
“Depressa,
depressa!”,
gritou.
“Venham
imediatamente
! Estão a levar
o Boxer!”
Sem
esperarem
pelas ordens
do porco, os
animais
interrompera
m o trabalho e
correram para
os edifícios da
herdade. Era
verdade,
estava parada
no pátio uma
carroça
fechada,
muito grande,
puxada por
dois cavalos.
Tinha
inscrições dos
lados e um
homem de ar
furtivo e
chapéu de
coco sentado
no lugar do
cocheiro. E a
baia de Boxer
estava vazia.
Os animais
juntaram-se
em volta da
carroça.
“Adeus,
Boxer!”,
gritaram em
coro, “adeus!”
“Idiotas!
Idiotas!”,
gritou
Benjamin,
saltando em
volta deles e
martelando a
terra com os
pequenos
cascos.
“Idiotas! Não
veem o que
está escrito na
carroça?”
Os gritos
deixaram os
animais em
suspenso e um
silêncio
abateu-se
sobre eles.
Muriel
começou a
soletrar as
palavras. Mas
Benjamin
empurrou-a
para o lado e,
no meio de
um silêncio
mortal, leu:
“’Alfred
Simmonds,
Abate de
Cavalos e
Fabrico de
Cola,
Willingdon.
Vendedor de
Peles e
Farinha de
osso.
Fornecedor de
canis’. Não
percebem o
que isso quer
dizer? Estão a
levar o Boxer
para o talho!”
Os animais
gritaram,
horrorizados.
Nessa altura, o
homem
sentado no
lugar do
cocheiro
chicoteou os
cavalos e a
carroça saiu
do pátio num
trote pesado.
Todos os
animais foram
atrás, soltando
gritos
lancinantes.
Clover forçou
a passagem
até chegar à
frente. A
carroça
começou a
ganhar
velocidade.
Clover tentou
lançar as suas
pernas grossas
a galope e
quase
conseguiu.
“Boxer!”,
gritou.
“Boxer!
Boxer!
Boxer!” E,
nesse preciso
instante, como
se tivesse
ouvido o
tumulto no
exterior, o
rosto de
Boxer, com a
faixa branca
ao longo do
focinho,
surgiu na
pequena
janela das
traseiras da
carroça.
“Boxer!”,
gritou Clover
numa voz
terrível.
“Boxer! Sai!
Sai, depressa!
Estão a levar-
te para a
morte!”
Todos os
animais
repetiram, em
coro, “sai,
Boxer, sai!”,
mas a carroça
já tinha
ganhado
velocidade e
afastava-se
deles cada vez
mais. Não era
certo se Boxer
teria ouvido o
que Clover
disse. Mas,
pouco depois,
a sua cabeça
desapareceu
da janela e
ouviu-se um
barulho
tremendo de
cascos a bater
dentro da
carroça.
Estava a tentar
abrir caminho
com coices.
Longe ia o
tempo em que
teriam bastado
uns coices de
Boxer para
fazer a carroça
em pedaços.
Mas,
lamentavelme
nte, a sua
força já não
era a mesma;
e pouco
depois o som
de coices
tornou-se mais
fraco e acabou
por cessar. Em
desespero, os
animais
começaram a
implorar aos
dois cavalos
que puxavam
a carroça para
pararem.
“Camaradas,
camaradas!”,
gritaram eles.
“Não levem o
vosso irmão
para a morte!”
Mas, as
estúpidas
criaturas,
demasiado
ignorantes
para
perceberem o
que se
passava,
limitaram-se a
voltar as
orelhas para
trás e a
estugar o
passo. O rosto
de Boxer não
apareceu outra
vez na janela.
Alguém se
lembrou de
correr mais
depressa para
fechar o
portão, mas
era demasiado
tarde, pois no
momento
seguinte já a
carroça o
atravessava e
desaparecia na
estrada a
grande
velocidade.
Boxer nunca
mais foi visto.
Foi
anunciado,
três dias
depois, que
tinha morrido
no hospital de
Willingdon,
apesar de ter
recebido todas
as atenções
que podiam
ser
dispensadas a
um cavalo.
Squealer veio
comunicar as
notícias aos
outros. Disse
que tinha
presenciado as
derradeiras
horas de
Boxer.
“Foi a coisa
mais
perturbadora
que já vi!”,
disse
Squealer,
levantando o
chispe para
limpar uma
lágrima.
“Fiquei à
cabeceira da
sua cama até
ao fim. Nos
últimos
momentos,
quase fraco
demais para
falar,
segredou-me
ao ouvido que
só lamentava
morrer antes
de o moinho
estar
concluído.
‘Avante,
camaradas!’,
sussurrou ele.
‘Avante em
nome da
Rebelião.
Viva a Quinta
dos Animais!
Viva o
Camarada
Napoleão!
Napoleão tem
sempre razão.’
Foram essas
as suas
derradeiras
palavras,
camaradas”.
Nesse
preciso
momento, a
atitude de
Squealer
mudou
subitamente.
Ficou calado
por instantes e
os seus olhos
pequeninos
lançaram
olhadelas de
suspeita a toda
a volta, antes
de continuar.
Chegou ao
seu
conhecimento,
disse ele, que
andou a
circular um
rumor
disparatado e
perverso na
altura da
remoção de
Boxer. Alguns
animais
repararam que
a carroça que
levou Boxer
estava
assinalada
com as
palavras
“Abate de
cavalos” e
concluíram,
de forma
precipitada,
que Boxer ia
ser levado
para o talho.
Custava a
acreditar,
disse
Squealer, que
um animal
pudesse ser
assim tão
estúpido. Por
certo, gritou
ele indignado,
sacudindo o
rabo e
saltitando de
um lado para
o outro, não
esperariam
uma coisa
dessas do
querido Líder,
Camarada
Napoleão? A
explicação era
realmente
muito simples.
A carroça
tinha
pertencido ao
talhante e
depois fora
comprada pelo
cirurgião
veterinário,
que ainda não
a tinha
pintado de
novo. Daí ter
surgido aquela
interpretação
errada.
Os animais
sentiram um
imenso alívio
ao ouvir
aquilo. E
quando
Squealer deu
mais
pormenores
chocantes
sobre o leito
de morte de
Boxer, sobre
os cuidados
admiráveis
que recebera e
os
medicamentos
dispendiosos
que Napoleão
pagara, sem
olhar a custos,
as últimas
dúvidas deles
desvaneceram
-se e a tristeza
que sentiam
pela morte do
camarada foi
suavizada pela
ideia de que,
pelo menos,
tinha morrido
feliz.
Napoleão
apareceu em
pessoa na
reunião
matinal do
domingo
seguinte e
rezou uma
pequena
oração em
honra de
Boxer. Não
tinha sido
possível, disse
ele, trazer os
restos mortais
do camarada
lamentavelme
nte falecido
para sepultar
na quinta, mas
ele tinha
encomendado
uma grande
coroa de
flores, feita
dos loureiros
do jardim,
para colocar
na campa de
Boxer. E, daí a
alguns dias, os
porcos
realizariam
um banquete
em honra de
Boxer.
Napoleão
encerrou o
discurso,
lembrando as
duas máximas
preferidas de
Boxer: ‘Vou
trabalhar
ainda mais’ e
‘O Camarada
Napoleão tem
sempre razão’
– máximas,
disse ele, que
todos os
animais
deveriam
tornar suas.
No dia
marcado para
o banquete,
uma carroça
da mercearia
de Willingdon
foi entregar na
quinta uma
caixa de
madeira
enorme. Nessa
noite ouviram-
se sons muito
altos de vozes
a cantar,
seguidos do
que parecia
ser uma
querela
violenta e, por
fim, pelas
onze da
manhã, tudo
terminou com
um som
tremendo de
vidros
partidos.
Ninguém se
mexeu na
quinta até ao
início da tarde
do dia
seguinte. E
correu de boca
em boca a
notícia de que
os porcos, vá
lá saber-se
como, tinham
arranjado
dinheiro para
comprar outra
caixa de
whisky.
CAPÍTULO
DEZ
Os anos
passaram. As
estações
sucederam-se
e as curtas
vidas dos
animais
passaram a
voar. Chegou
uma altura em
que ninguém
se recordava
já dos tempos
antigos
anteriores à
Rebelião,
exceto Clover,
Benjamin, o
corvo Moisés
e uns quantos
porcos.
Muriel tinha
morrido, bem
como
Bluebell,
Jessie e
Pincher. Jones
também
morrera –
acabou os
seus dias num
lar para
alcoólicos
noutra parte
do país.
Snowball
tinha caído no
esquecimento.
Boxer também
já só era
lembrado
pelos poucos
que o tinham
conhecido.
Clover era
agora uma
velha égua
corpulenta,
com
reumatismo e
tendência para
lacrimejar dos
olhos. Havia
dois anos que
ultrapassara a
idade da
reforma mas,
na verdade,
nunca nenhum
animal se
reformava. A
promessa de
reservar um
canto do
prado grande
para os
animais
aposentados
tinha sido
esquecida há
muito.
Napoleão era
agora um
porco
reprodutor de
meia-idade,
com mais de
cento e
cinquenta
quilos.
Squealer
estava tão
gordo que só a
custo
conseguia ver
por entre os
refegos em
volta dos
olhos.
Somente o
velho
Benjamin
estava mais ou
menos igual,
tirando o facto
de estar mais
grisalho no
focinho e de
ter ficado
ainda mais
melancólico e
taciturno
desde a morte
de Boxer.
A quinta
tinha agora
muito mais
bichos,
embora o seu
número não
tenha
aumentado
tanto quanto
se esperava.
Muitos
animais
nasceram,
entretanto,
para os quais a
Rebelião não
passava de
uma tradição
esmaecida,
transmitida de
boca em boca,
e outros houve
que foram
comprados e
que nunca
tinham ouvido
falar de tal
coisa até ali
chegarem.
Havia agora
três cavalos na
quinta, além
de Clover.
Eram animais
bons e
respeitáveis,
trabalhadores
diligentes e
bons
camaradas,
mas muito
estúpidos.
Nenhum deles
se mostrou
capaz de
aprender o
alfabeto além
da letra B.
Aceitavam
tudo quanto
lhes era dito
sobre a
Rebelião e os
princípios do
Animalismo,
especialmente
quando as
palavras eram
de Clover, por
quem nutriam
um respeito
quase filial;
mas não era
certo que
entendessem
grande coisa.
A quinta era
agora mais
próspera e
mais bem
organizada;
tinha até sido
alargada pela
compra de
dois terrenos
ao Sr.
Pilkington. O
moinho tinha
sido
finalmente
concluído e a
quinta possuía
uma
debulhadora e
um elevador
para o feno,
tendo-lhe sido
ainda
acrescentados
vários
edifícios
novos.
Whymper
tinha
comprado
uma charrete
para uso
pessoal. O
moinho,
contudo, não
tinha sido
usado para
produzir
eletricidade
para a quinta.
Era usado
para a
moagem de
cereais e dava
bons lucros.
Os animais
trabalhavam
afincadamente
na construção
de outro
moinho: dizia-
se que, logo
que esse
estivesse
terminado,
seriam
instalados os
dínamos. Mas
os luxos com
os quais os
animais em
tempos tinham
aprendido a
sonhar, ao
escutar
Snowball, os
estábulos com
luz elétrica e
água quente e
fria e a
semana de três
dias, eram
coisa de que já
não se falava.
Napoleão
denunciara
tais ideias
como
contrárias ao
espírito do
Animalismo.
Dizia ele que
a verdadeira
felicidade
residia no
trabalho duro
e numa vida
frugal.
Parecia, de
certa forma,
que a quinta
tinha ficado
mais rica sem
que isso em
nada
enriquecesse
os animais –
excetuando,
claro está, os
porcos e os
cães. Talvez
isso se
devesse, em
parte, ao facto
de haver
tantos porcos
e tantos cães.
Não é que
essas criaturas
não
trabalhassem,
à sua maneira.
Afinal de
contas, como
Squealer não
se cansava de
explicar, havia
trabalho de
sobra na
supervisão e
organização
da quinta.
Muito desse
trabalho era
de um género
que os outros
animais eram
demasiado
ignorantes
para
compreender.
Squealer
disse-lhes, por
exemplo, que
os porcos
eram forçados
a fazer um
esforço diário
significativo
com coisas
chamadas
‘ficheiros’,
‘relatórios’,
‘minutas’ e
‘memorandos’
. Tratava-se de
grandes folhas
de papel que
era preciso
preencher com
escrita
miudinha e
que, assim que
ficavam
preenchidas,
eram
queimadas na
fornalha. Isto
era da maior
importância
para o bem-
estar da
quinta, disse
Squealer. Seja
como for, nem
porcos nem
cães faziam
trabalho que
produzisse
comida, e eles
eram
realmente
muitos e
tinham
apetites
insaciáveis.
Quanto aos
outros, a sua
vida, tanto
quanto
sabiam, era
como sempre
fora. Tinham
fome a maior
parte do
tempo,
dormiam na
palha, bebiam
do tanque,
trabalhavam
nos campos;
no inverno
sofriam com o
frio e no verão
com as
moscas. Por
vezes, os mais
velhos
rebuscavam
nas suas vagas
memórias para
tentar
determinar se
nos primeiros
tempos da
Rebelião,
quando a
expulsão de
Jones era
ainda coisa
recente, as
coisas eram
melhores ou
piores. Não se
conseguiam
lembrar. Não
havia nada
com que
pudessem
comparar as
suas vidas
atuais: não
tinham nada
em que se
basear além
das listas de
números de
Squealer, que
invariavelmen
te
demonstravam
que tudo
estava cada
vez melhor.
Os animais
consideravam
o problema
insolúvel; de
qualquer
forma, não
lhes sobrava
muito tempo
para especular
sobre estas
coisas.
Somente o
velho
Benjamin
garantia
recordar-se da
sua longa vida
em pormenor
e dizia saber
que as coisas
nunca tinham
sido, nem
nunca
poderiam ser,
muito
melhores nem
muito piores –
sendo a lei
inalterável da
vida, em sua
opinião, haver
fome,
dificuldades e
desapontamen
tos.
Apesar de
tudo isso, os
animais nunca
perderam a
esperança.
Mais ainda,
nunca
perderam,
nem por um
momento, o
seu sentido de
honra e de
privilégio por
pertencerem à
Quinta dos
Animais.
Continuavam
a ser a única
quinta do país
– a única de
toda a
Inglaterra! –
que pertencia
aos animais e
era explorada
por eles.
Nenhum deles
deixou de se
sentir
maravilhado
com isso, nem
mesmo os
mais novos,
ou até os
recém-
chegados
trazidos de
quintas a
quinze ou
trinta
quilómetros
de distância. E
quando
ouviam o troar
da espingarda
e viam a
bandeira verde
adejar no
mastro, os
corações
inchavam-lhes
no peito com
um orgulho
imperecível, e
as conversas
acabavam
sempre por ir
dar aos
tempos
heroicos da
expulsão de
Jones e da
composição
dos Sete
Mandamentos,
e às grandes
batalhas nas
quais os
invasores
humanos
tinham sido
derrotados.
Nenhum dos
antigos sonhos
fora
abandonado.
Continuavam
a acreditar na
República dos
Animais
profetizada
por Major, no
dia em que os
campos
verdejantes de
Inglaterra não
mais fossem
pisados por
pés humanos.
Esse dia
haveria de
chegar:
poderia
demorar,
poderia não
ser durante a
vida de
nenhum dos
animais
existentes,
mas acabaria
por chegar.
Talvez até a
música de
‘Animais de
Inglaterra’
fosse
cantarolada
secretamente
por aí: seja
como for,
todos os
animais da
quinta a
conheciam,
embora
nenhum deles
se atrevesse a
cantá-la em
voz alta. As
suas vidas
podiam ser
duras e as suas
esperanças
podiam não
ter sido
totalmente
concretizadas;
mas tinham
consciência de
não serem
iguais aos
outros
animais. Se
passavam
fome não era
por terem de
alimentar
seres humanos
tirânicos; se
trabalhavam
muito, pelo
menos era
para eles
mesmos.
Nenhuma
criatura entre
eles
caminhava em
duas pernas.
Nenhuma
criatura
tratava outra
por ‘Senhor’.
Todos os
animais eram
iguais.
Um dia, no
início do
verão,
Squealer
mandou as
ovelhas
seguirem-no e
levou-as para
um terreno
abandonado
no outro lado
da quinta,
invadido por
ervas e
rebentos de
bétula. As
ovelhas
passaram aí o
dia inteiro, a
pastar
calmamente,
vigiadas por
ele. Ao fim da
tarde
regressou à
quinta, mas,
como o tempo
estava quente,
disse às
ovelhas para
ficarem onde
estavam.
Acabaram por
ficar lá uma
semana
inteira,
durante a qual
os outros
animais nada
souberam
delas.
Squealer
passava
grande parte
do dia com
elas. Dizia
estar a
ensinar-lhes
uma nova
canção e para
isso
precisavam de
privacidade.
Foi pouco
depois de as
ovelhas terem
regressado,
num agradável
fim de tarde,
quando os
animais
voltavam do
trabalho para
a zona
edificada da
herdade, que
se ouviu o
aterrorizado
relinchar de
um cavalo no
pátio. Os
animais
pararam,
alarmados.
Era a voz de
Clover.
Relinchou de
novo e todos
os animais se
precipitaram a
galope para o
pátio.
Perceberam
então o que
Clover tinha
visto.
Era um
porco a andar
nas patas de
trás.
Sim, era
Squealer. De
forma algo
desajeitada,
como quem
não está
habituado a
suster o seu
considerável
vulto nessa
posição, mas
com perfeito
equilíbrio,
caminhava
pelo pátio. E
saiu pouco
depois, pela
porta da casa
da quinta, uma
longa fila de
porcos, todos
a caminhar
nas patas
traseiras. Uns
faziam-no
melhor do que
outros, um ou
dois pareciam
mesmo algo
instáveis e
teriam
agradecido o
apoio de uma
bengala, mas
todos
conseguiram
dar a volta ao
pátio. Ouviu-
se então um
tremendo uivo
dos cães e um
cantar
estridente do
galo negro e
eis que sai
Napoleão,
majestosamen
te direito,
lançando
olhares altivos
em redor, com
os cães a
saltitar à sua
volta.
Na pata,
trazia um
chicote.
Houve um
silêncio de
morte.
Espantados,
aterrorizados,
procurando o
aconchego uns
dos outros, os
animais
olharam para
a longa fila de
porcos a
desfilar
lentamente em
volta do pátio.
Era como se o
mundo se
tivesse virado
de pernas par
ao ar. Chegou
então um
breve
momento,
depois do
choque inicial
e apesar de
tudo o que
tinham
passado –
apesar do
medo dos cães
e do hábito,
enraizado ao
longo dos
anos, de nunca
se queixarem,
de nunca
criticarem,
acontecesse o
que
acontecesse –,
chegou um
momento em
que podiam
ter proferido
uma qualquer
palavra de
protesto. Mas
foi
precisamente
nesse instante
que todas as
ovelhas, como
que
obedecendo a
um sinal,
desataram
num tremendo
balido de:
“Quatro
pernas bom,
duas pernas
melhor!
Quatro pernas
bom, duas
pernas
melhor!
Quatro pernas
bom, duas
pernas
melhor!”
Continuara
m durante
cinco minutos
sem parar. E,
quando as
ovelhas se
acalmaram,
passara já a
oportunidade
de protestar,
pois os porcos
tinham
voltado para
dentro de
casa.
Benjamin
sentiu um
focinho
encostado no
ombro. Olhou
e viu Clover.
Os seus
velhos olhos
pareciam mais
apagados do
que nunca.
Sem uma
palavra,
puxou-o
suavemente
pelas crinas e
conduziu-o até
ao fundo do
celeiro
grande, onde
estavam
inscritos os
Sete
Mandamentos.
Ficaram
alguns
minutos a
olhar para a
parede
enegrecida
com alcatrão e
para as letras
brancas.
“A minha
vista está
fraca”, disse
ela, por fim.
“Mesmo
quando era
nova não
conseguia ler
isso. Mas essa
parede parece-
me diferente.
Os Sete
Mandamentos
estão iguais ao
que eram,
Benjamin?”
Por uma
vez, Benjamin
aceitou
quebrar a sua
regra e leu-lhe
o que estava
escrito na
parede. Nada
mais estava
escrito agora
além de um
único
Mandamento.
Dizia o
seguinte:
TODOS OS
ANIMAIS SÃO
IGUAIS
MAS ALGUNS
ANIMAIS SÃO
MAIS IGUAIS
DO QUE
OUTROS.
Depois
disso, não
estranharam
quando, no dia
seguinte, os
porcos que
supervisionav
am o trabalho
da quinta
apareceram
todos com
chicotes nas
patas. E não
estranharam
saber que os
porcos tinham
comprado um
rádio, estavam
a instalar um
telefone, e
tinham
assinado as
revistas John
Bull, Tit-Bits e
também o
Daily Mirror.
E não pareceu
estranho ver
Napoleão
passear no
jardim de
cachimbo na
boca – nem
mesmo
pareceu
estranho
quando os
porcos tiraram
as roupas do
Sr. Jones do
roupeiro e as
vestiram, com
Napoleão a
envergar um
fato preto,
calças de caça
e polainas de
couro,
enquanto a
sua porca
favorita
apareceu com
o vestido de
seda ondulada
que a Sr.ª
Jones
costumava
vestir aos
domingos.
Uma
semana
depois, de
tarde,
chegaram à
quinta várias
charretes.
Uma
delegação de
agricultores
das
redondezas
tinha sido
convidada
para uma
visita. Foi-
lhes mostrada
toda a
propriedade e
expressaram
grande
admiração por
tudo,
especialmente
pelo moinho.
Os animais
estavam a
mondar a
plantação de
tubérculos.
Trabalhavam
com
diligência,
mal erguendo
a cabeça e
sem saber se
deveriam ter
mais medo
dos porcos ou
dos visitantes
humanos.
Nessa noite
ouviram-se
gargalhadas e
cantorias na
casa da quinta.
E o som das
vozes
misturadas
despertou a
curiosidade
dos animais.
O que estaria
a acontecer
ali, agora que,
pela primeira
vez, animais e
seres humanos
se
encontravam
em plano de
igualdade?
Começaram,
muito juntos,
a aproximar-
se do jardim
da casa o mais
silenciosamen
te que podiam.
Pararam no
portão,
receando
entrar, mas
Clover passou
à frente e
entrou.
Aproximaram
-se da casa em
bicos de patas
e os animais
mais altos
espreitaram
pela janela da
sala. Ali
estavam,
sentados em
volta da longa
mesa de
jantar, meia-
dúzia de
proprietários
rurais e meia-
dúzia dos
porcos mais
eminentes,
ocupando
Napoleão o
lugar de honra
à cabeceira da
mesa. Os
porcos
pareciam
completament
e à vontade
nas cadeiras.
O grupo
divertia-se a
jogar às
cartas, mas
parou por uns
momentos
para fazer um
brinde e beber.
Um grande
jarro circulava
entre os
convidados,
que enchiam
as canecas de
cerveja
repetidamente.
Ninguém
reparou nas
caras de
espanto dos
animais que
espreitavam
pela janela.
O Sr.
Pilkington, de
Foxwood,
tinha-se
levantado, de
caneca na
mão. Ia de
seguida pedir
aos presentes
para fazerem
um brinde,
mas antes
disso sentia-se
na obrigação
de dizer
algumas
palavras.
Era para ele
uma grande
satisfação,
disse – e
estava certo
de que todos
os presentes a
partilhavam –,
sentir que um
longo período
de
desconfiança e
de mal-
entendidos
chegava agora
ao fim. Em
tempos
passados –
não que ele,
ou qualquer
dos presentes,
partilhassem
desses
sentimentos –,
mas em
tempos já
passados, os
respeitados
proprietários
da Quinta dos
Animais
tinham sido
encarados
pelos vizinhos
humanos, ele
não diria com
hostilidade,
mas talvez
com uma certa
desconfiança.
Tinham
acontecido
incidentes
lamentáveis e
era frequente
haver pessoas
com ideias
erradas.
Sentiu-se que
a existência de
uma quinta
possuída e
administrada
por porcos
era, de certa
forma,
anormal e
poderia ter um
efeito
perturbador na
vizinhança.
Demasiados
agricultores
concluíram,
sem se
informarem
devidamente,
que nessa
quinta reinava
um espírito de
libertinagem e
de
indisciplina.
Viviam em
tensão
permanente ao
pensar nos
efeitos que
isso teria nos
seus próprios
animais ou até
nos seus
empregados
humanos. Mas
todas essas
dúvidas se
tinham agora
dissipado. Ele
e os seus
amigos tinham
hoje visitado a
Quinta dos
Animais e
inspecionado
cada
centímetro
com os seus
próprios
olhos. E o que
viram? Não
somente os
métodos mais
modernos,
como também
uma disciplina
e um
funcionament
o ordenados,
que deveriam
servir de
exemplo a
todos os
agricultores
em todas as
partes do
mundo.
Estava seguro
de poder
afirmar que os
animais de
mais baixa
estirpe da
Quinta dos
Animais
trabalhavam
mais horas e
recebiam
menos comida
do que
quaisquer
outros animais
do país. Na
verdade, ele e
os seus caros
convidados
tinham nesse
dia observado
muitos aspetos
que
pretendiam,
de imediato,
implantar nas
suas próprias
quintas.
Para
encerrar a sua
intervenção,
disse ele,
queria
sublinhar
novamente os
sentimentos
amigáveis que
existiam, e
deveriam
continuar a
existir, entre a
Quinta dos
Animais e os
seus vizinhos.
Entre porcos e
seres humanos
não havia,
nem deveria
haver,
qualquer
conflito de
interesses.
Partilhavam
os mesmos
esforços e as
mesmas
dificuldades.
Não seria a
questão
laboral igual
em todo o
lado? Nesse
momento
percebeu-se
que o Sr.
Pilkington
queria divertir
os presentes
com uma
piada
estudada, mas
foi dominado
pelo riso e não
conseguiu
contá-la.
Depois de
muitos
engasgos que
lhe
enrubesceram
as múltiplas
papadas, lá
conseguiu
falar: “Se
vocês têm
problemas
com os
animais
baixos”, disse
ele, “nós
temo-los com
as classes
baixas!” Este
trocadilho
desencadeou
risadas e
comentários
divertidos; e o
Sr. Pilkington
deu
novamente os
parabéns aos
porcos pelas
rações
reduzidas,
pelas longas
horas de
trabalho e pela
ausência
generalizada
de conforto
que vira na
Quinta dos
Animais.
E disse, por
fim, que pedia
aos presentes
para se
levantarem,
assegurando-
se de que
tinham os
copos bem
cheios. “Meus
senhores”,
concluiu o Sr.
Pilkington,
“meus
senhores,
façamos um
brinde: à
prosperidade
da Quinta dos
Animais!”
Houve vivas
entusiásticos e
uma ruidosa
pateada.
Napoleão
ficou tão
satisfeito que
saiu do lugar e
deu a volta à
mesa para
bater a sua
caneca contra
a do Sr.
Pilkington
antes de a
esvaziar.
Quando os
vivas e os
aplausos
esmoreceram,
Napoleão, que
permanecera
de pé,
anunciou que
queria
também dizer
umas quantas
palavras.
Como todos
os discursos
de Napoleão,
aquele foi
breve e
incisivo. Disse
que também
ele se sentia
feliz por ter
chegado ao
fim o período
de
desentendime
ntos. Durante
muito tempo
tinham
circulado
rumores –
postos a
circular, ao
que sabia, por
um inimigo
maldoso – de
que havia algo
de subversivo
e até de
revolucionário
na visão
partilhada por
ele e pelos
seus colegas.
Tinha-lhes
sido atribuída
a intenção de
desencadear
uma rebelião
entre os
animais das
quintas
vizinhas.
Nada poderia
estar mais
longe da
verdade! O
seu único
desejo, tanto
agora como
antes, era
viver em paz e
manter
relações
comerciais
normais com
os vizinhos.
Esta quinta,
que tinha a
honra de
controlar,
acrescentou
ele, era um
empreendime
nto
cooperativo.
Os títulos de
propriedade,
que estavam
em sua posse,
pertenciam a
todos os
porcos.
Não
acreditava,
disse, que
qualquer das
antigas
suspeitas
persistisse,
mas tinham
sido feitas
recentemente
algumas
mudanças nas
rotinas da
quinta que
deveriam
promover
ainda mais
essa
confiança. Até
à data, os
animais da
quinta tinham
o hábito,
bastante
idiota, de se
tratarem uns
aos outros por
‘camaradas’.
Isso ia acabar.
Existia
igualmente o
estranho
costume, cuja
origem se
desconhecia,
de marchar
todos os
domingos de
manhã diante
da caveira de
um porco
pregada a um
poste no
jardim.
Também isso
seria
suprimido,
tendo a
caveira sido já
enterrada. Os
visitantes
poderiam ter
igualmente
reparado na
bandeira verde
que pendia no
mastro. Nesse
caso, teriam
possivelmente
notado
também que
tinham dela
sido
removidos o
casco e o
corno pintados
a branco. Dali
em diante,
seria uma
simples
bandeira
verde.
Queria
somente fazer
uma crítica,
disse ele, ao
excelente e
apaziguador
discurso do Sr.
Pilkington.
Este tinha-se
referido
repetidamente
à ‘Quinta dos
Animais’.
Claro que não
tinha a
obrigação de
saber ainda –
pois ele,
Napoleão, só
agora o ia
anunciar pela
primeira vez –
que o nome
‘Quinta dos
Animais’
tinha sido
abolido. Dali
em diante, a
quinta seria
conhecida
como ‘Quinta
Manor’ –
nome que,
estava em
crer, era o
correto e
original.
“Meus
senhores”,
concluiu
Napoleão,
“repito o
mesmo brinde
de há pouco,
mas de forma
algo diferente.
Encham os
copos até
cima. Meus
senhores, eis o
brinde: à
prosperidade
da Quinta
Manor!”
Repetiram-
se os vivas e
os aplausos
calorosos, e as
canecas foram
esvaziadas até
à última gota.
Mas, enquanto
os animais
observavam a
cena pela
janela,
pareceu-lhes
notar algo de
estranho. O
que teria
mudado na
expressão dos
porcos? Os
velhos olhos
fracos de
Clover
passavam de
um rosto para
outro. Alguns
tinham
papadas de
cinco queixos,
outros de
quatro e
outros de três.
Mas o que
seria aquilo
que parecia
estar a fundir-
se e a mudar?
Terminados os
aplausos, os
convivas
pegaram nas
cartas e
continuaram o
jogo
interrompido,
enquanto os
animais se
afastavam em
silêncio.
Não tinham
ainda andado
vinte metros
quando
estacaram.
Um alvoroço
de vozes
alteradas
chegava da
casa.
Correram a
ver o que era.
Sim, era uma
querela
violenta.
Davam gritos
e murros na
mesa,
trocando
olhares
agressivos de
suspeita e
desmentidos
furiosos. Tudo
parecia ter
começado
quando
Napoleão e o
Sr. Pilkington
jogaram
ambos um ás
de espadas.
Doze vozes
enfurecidas
gritavam e
todas
pareciam
iguais. Agora
não restavam
dúvidas sobre
o que tinha
acontecido aos
rostos dos
porcos. As
criaturas
olhavam da
janela,
passando de
porcos para
homens e de
homens para
porcos, e
olhavam de
novo para
porcos e para
homens: mas
já não
conseguiam
distinguir uns
dos outros.
Novembro de
1943 –
fevereiro de
1944
DOIS
PREFÁCI
OS
INÉDITOS
DE
GEORGE
ORWELL
PREFÁCI
OI
Prefácio
proposto por
Orwell para O
Triunfo dos
Porcos
Foi
reservado
espaço na
primeira
edição de O
Triunfo dos
Porcos para
um prefácio
escrito por
Orwell, como
revela a
paginação das
provas
revistas pelo
autor. Esse
prefácio não
foi incluído e
uma versão
datilografada
só anos mais
tarde foi
descoberta
por Ian
Angus. Foi
publicada,
com uma
introdução do
Prof. Bernard
Crick
intitulada
‘How the
essay came to
be written’, no
The Times
Literary
Supplement,
de 15 de
setembro de
1972.
A Liberdade
de Imprensa
Este livro
foi pensado,
na sua ideia
central, em
1937, mas só
foi escrito
perto do final
de 1943. Na
altura em que
acabou por ser
escrito era já
óbvio que
seria difícil
conseguir
publicá-lo
(apesar da
escassez de
livros da
altura ser
garantia de
que qualquer
coisa parecida
com um livro
‘venderia
bem’), e foi
realmente
recusado por
quatro
editoras.
Somente uma
delas o fez por
motivos
ideológicos.
Duas delas
publicavam
livros contra a
Rússia há
anos e a outra
não tinha cor
política
definida. Na
verdade, um
editor
começou por
aceitar o livro
mas, depois de
fazer as
diligências
iniciais,
decidiu
consultar o
Ministério das
Informações,
que
aparentemente
o terá alertado
ou, de uma
forma ou
outra, o terá
aconselhado a
não publicar.
Eis um
excerto da
carta que
recebi:
Referi a
reação que
tive de um
importante
responsável
do Ministério
das
Informações
em relação a
‘O Triunfo dos
Porcos’.
Tenho de
confessar que
essa opinião
me deu muito
que pensar...
Vejo agora
que poderia
ser encarado
como algo que
não seria
muito sensato
publicar nos
dias que
correm. Se a
fábula fosse
dirigida aos
ditadores de
uma forma
geral e às
ditaduras no
seu todo,
nesse caso a
publicação
seria
adequada,
mas a fábula
segue de tal
maneira e de
forma tão
completa,
como agora se
me afigura
claro, o
progresso dos
Sovietes
Russos e dos
seus dois
ditadores, que
só pode
aplicar-se à
Rússia,
deixando de
fora todas as
outras
ditaduras.
Outra coisa:
seria menos
ofensivo se a
casta
dominante na
fábula não
fosse os
3
porcos.
Penso que a
escolha dos
porcos como
casta
dirigente
ofenderá, por
certo, muitas
pessoas,
particularmen
te as mais
suscetíveis,
caso em que
indubitavelme
nte se incluem
os russos.
Este género
de coisa não é
um bom
sintoma.
Obviamente
não é
desejável que
um
departamento
do governo
tenha qualquer
poder de
censura
(exceto
censura por
motivos de
segurança,
algo que
ninguém
questiona em
tempos de
guerra) sobre
livros sem
patrocínio
oficial. Mas o
maior perigo
para a
liberdade de
pensamento e
de expressão
não é
atualmente a
interferência
direta do
4
MOI ou de
qualquer
organismo
oficial. Se
editoras e
editores se
esforçam por
não publicar
certos temas
não é por
medo de
processos
legais, mas
sim porque
receiam a
opinião
pública. A
cobardia
intelectual é o
pior inimigo
que enfrenta
um escritor ou
um jornalista
neste país, e
esse facto não
me parece ter
sido debatido
como merece.
Qualquer
pessoa
imparcial e
honesta com
experiência
jornalística
terá de admitir
que durante
esta guerra a
censura oficial
não tem sido
particularment
e importuna.
Não temos
sido
submetidos a
esse tipo de
‘coordenação’
totalitária que
seria razoável
esperar. A
Imprensa tem
umas quantas
razões de
queixa
justificadas,
mas, de uma
forma geral, o
governo tem-
se comportado
bem e tem
tolerado de
forma
surpreendente
as opiniões
minoritárias.
O facto
sinistro
relativamente
à censura
literária em
Inglaterra é
que esta tem
sido, em
grande parte,
voluntária.
Ideias
impopulares
podem ser
silenciadas e
factos
inconveniente
s podem ser
mantidos na
sombra, sem
necessidade
de qualquer
interdição
oficial.
Qualquer
pessoa que
tenha vivido
algum tempo
no estrangeiro
conhecerá
exemplos de
temas
noticiosos
sensacionais –
coisas que
chegariam às
manchetes dos
jornais por
mérito próprio
– que foram
ignorados pela
imprensa
britânica, não
por causa de
uma
intervenção do
governo, mas
devido a um
acordo tácito
generalizado
segundo o
qual ‘não seria
conveniente’
mencionar
determinado
facto. No que
diz respeito
aos jornais
isto é fácil de
compreender.
A imprensa
britânica é
extremamente
centralizada e
boa parte dela
é propriedade
de homens
ricos com
todos os
motivos
possíveis para
serem
desonestos em
relação a
determinados
temas
importantes.
Mas esse
mesmo género
de censura
disfarçada
funciona
igualmente em
livros e
revistas, bem
assim como
em peças de
teatro, filmes
e programas
de rádio.
Existe a cada
momento uma
ortodoxia, um
conjunto de
ideias que se
presume
serem aceites
de forma
inquestionável
por todas as
pessoas
sensatas. Não
é
propriamente
proibido dizer
isto ou aquilo,
mas ‘é
inconveniente
’ dizê-lo,
assim como
na época
vitoriana ‘era
inconveniente
’ falar de
calças na
presença de
uma senhora.
Qualquer
pessoa que
desafia a
ortodoxia
dominante dá
consigo
silenciada
com uma
eficiência
surpreendente.
Uma opinião
genuinamente
à margem da
corrente quase
nunca é alvo
de uma
avaliação
justa, seja na
imprensa
popular, seja
nas revistas
mais
pretensiosas.
O que a
ortodoxia
dominante
exige neste
momento é
uma
admiração
acrítica da
Rússia
soviética.
Toda a gente
sabe disto e
quase todos
agem em
consonância.
Qualquer
crítica séria ao
regime
soviético,
qualquer
revelação de
factos que o
governo
soviético
preferiria
manter
escondidos,
arrisca tornar-
se
impublicável.
E esta
conspiração
de âmbito
nacional para
lisonjear o
nosso aliado
tem lugar,
curiosamente,
num cenário
de genuína
tolerância
intelectual.
Pois, embora
não nos seja
permitido
criticar o
governo
soviético, pelo
menos temos
uma razoável
liberdade para
criticar o
nosso próprio
governo.
Dificilmente
alguém
publicará um
ataque a
Estaline, mas
é bastante
seguro atacar
Churchill,
pelo menos
em livros e
revistas. E ao
longo de cinco
anos de
guerra, dois
ou três dos
quais foram
de combate
pela
sobrevivência
nacional,
foram
publicados
sem
interferência
um sem-
número de
livros,
panfletos e
artigos
advogando
uma paz de
compromisso.
Mais ainda,
foram
publicados
sem suscitar
grande
desaprovação.
Desde que o
prestígio da
União
Soviética não
esteja em
causa, o
princípio da
liberdade de
expressão tem
sido
razoavelmente
respeitado. Há
outros temas
proibidos e
vou de
seguida
mencionar
alguns deles,
mas a atitude
dominante em
relação à
União
Soviética é de
longe o mais
sério sintoma.
É espontâneo,
por assim
dizer, não
resultando da
atividade de
qualquer
grupo de
pressão.
O
servilismo
com o qual a
maior parte da
intelligentsia
tem engolido
e repetido a
propaganda
russa desde
1941 seria
espantoso não
fosse o facto
de a mesma
ter já
anteriormente
mantido um
comportament
o semelhante
em várias
ocasiões. Em
questões
controversas,
uma a seguir a
outra, o ponto
de vista russo
foi aceite sem
análise prévia,
sendo depois
publicitado
com total
indiferença
pela verdade
histórica e
pela
honestidade
intelectual.
Para dar
somente um
exemplo, a
BBC celebrou
o vigésimo
quinto
aniversário do
Exército
Vermelho sem
mencionar
Trotsky. Isto
foi mais ou
menos tão
rigoroso como
comemorar a
batalha de
Trafalgar sem
mencionar
Nelson, mas
isso não
suscitou
quaisquer
protestos por
parte da
intelligentsia
inglesa. Nos
conflitos
internos nos
vários países
ocupados, a
imprensa
britânica tem
alinhado, em
praticamente
todos os
casos, com a
fação apoiada
pelos russos e
tem caluniado
a fação que se
lhe opõe,
suprimindo
por vezes
provas
materiais para
o poder fazer.
Um caso
particularment
e flagrante foi
o do coronel
Mihailovich, o
líder chetnik
jugoslavo. Os
russos, que
tinham no
marechal Tito
o seu próprio
protegido
jugoslavo,
acusaram
Mihailovich
de colaborar
com os
alemães. Essa
acusação foi
prontamente
retomada pela
imprensa
britânica: não
foi dada aos
apoiantes de
Mihailovich
qualquer
oportunidade
de resposta, e
os factos que a
punham em
causa foram
simplesmente
suprimidos.
Em julho de
1943, os
alemães
ofereceram
uma
recompensa
de 100 mil
coroas de ouro
pela captura
de Tito e
fizeram uma
oferta
semelhante
pela captura
de
Mihailovich.
A imprensa
britânica
‘escarrapacho
u’ com grande
destaque a
recompensa
por Tito, mas
somente um
jornal referiu
(em letras
pequeninas) a
recompensa
por
Mihailovich: e
as acusações
de
colaboração
com a
Alemanha
continuaram a
ser repetidas.
Coisas muito
semelhantes
aconteceram
durante a
Guerra Civil
Espanhola.
Também nessa
altura as
fações do lado
republicano,
que os russos
estavam
empenhados
em esmagar,
foram
caluniadas de
forma
irresponsável
na imprensa
inglesa de
esquerda [sic],
e foi recusada
a publicação
de qualquer
declaração em
sua defesa,
mesmo sob a
forma de
cartas
públicas. Nos
dias que
correm, não só
uma crítica
séria à União
Soviética é
considerada
repreensível,
como até o
simples facto
de uma tal
crítica existir
é, nalguns
casos,
mantido em
segredo. Por
exemplo,
pouco antes
de morrer,
Trotsky tinha
escrito uma
biografia de
Estaline. Pode
pressupor-se
que tal livro
não seria
inteiramente
imparcial, mas
era
obviamente
vendável.
Uma editora
americana
preparou a
publicação e
tinha o livro já
impresso –
estou em crer
que os
exemplares de
promoção já
tinham sido
enviados –
quando a
União
Soviética
entrou na
guerra. A
publicação foi
imediatamente
suspensa.
Nem uma
palavra sobre
isto surgiu
alguma vez na
imprensa
britânica,
embora a
existência de
um tal livro, e
a sua
supressão,
fosse um tema
noticioso
digno de uns
quantos
parágrafos.
É
importante
distinguir
entre o tipo de
censura que a
intelligentsia
literária
inglesa impõe
voluntariamen
te a si própria
e a censura
que por vezes
pode ser posta
em prática por
grupos de
pressão. É
sabido que
certos tópicos
não podem ser
discutidos por
causa de
‘interesses
instalados’. O
caso mais
conhecido é o
dos esquemas
de proteção
das patentes
médicas. A
Igreja Católica
tem
igualmente
uma
influência
considerável
sobre a
Imprensa e
pode, até certo
ponto,
silenciar
críticas que
lhe sejam
feitas. Um
escândalo
envolvendo
um sacerdote
católico quase
nunca é
publicitado,
enquanto um
padre
anglicano
envolvido em
problemas
(por exemplo
o reitor de
Stiffkey5) é
notícia de
primeira
página. É
muito raro que
alguma coisa
de tendência
anticatólica
surja numa
peça de teatro
ou num filme.
Qualquer ator
poderá
confirmar que
uma peça de
teatro ou um
filme que faça
troça da Igreja
Católica corre
o risco de ser
boicotado pela
Imprensa e
será,
possivelmente
, um fracasso.
Mas este
género de
coisa é
inofensivo ou
é, pelo menos,
compreensível
. Qualquer
organização
de grandes
dimensões
cuida dos seus
interesses o
melhor que
pode, e a
propaganda
aberta e
declarada não
é algo a que
nos possamos
opor. Assim
como não
esperaríamos
ver o Daily
Worker a
publicar factos
desfavoráveis
sobre a União
Soviética
também não
esperaríamos
que o Catholic
Herald
denunciasse o
Papa. Mas
neste caso
qualquer
pessoa
minimamente
informada
sabe o que
representam o
Daily Worker
e o Catholic
Herald. O
inquietante é
verificar que,
no que toca à
União
Soviética e às
suas políticas,
não podemos
contar com
uma crítica
inteligente ou
sequer, em
muitos casos,
com simples
honestidade
da parte de
autores e
jornalistas
liberais [sic –
surge assim
no texto
datilografado]
que não estão
sujeitos a
qualquer tipo
de pressão
direta para
falsificarem as
suas opiniões.
Estaline é
sacrossanto e
determinados
aspetos das
suas políticas
não devem ser
discutidos
com
seriedade.
Esta regra tem
sido seguida
de forma
quase
universal
desde 1941,
mas
funcionava já,
de forma mais
alargada do
que muitas
vezes se
pensa, dez
anos antes
dessa data.
Durante todo
esse tempo, as
críticas ao
regime
soviético por
parte da
esquerda só
muito
dificilmente
eram ouvidas.
Havia uma
grande
produção de
literatura anti-
russa, mas
quase toda ela
produzida de
um ponto de
vista
conservador e
era
manifestament
e desonesta,
desatualizada
e instigada por
motivos
sórdidos. Do
lado contrário
existia um
fluxo
igualmente
grande, e
quase
igualmente
desonesto, de
propaganda
pró-russa e
havia também
algo
equivalente a
um boicote a
qualquer
pessoa que
tentasse
debater
questões
importantes de
uma forma
adulta. Na
verdade, podia
publicar-se
livros anti-
russos, mas
fazê-lo era
garantia de se
ser ignorado
ou deturpado
pela quase
totalidade da
Imprensa
erudita e mais
pretensiosa.
Tanto em
público como
em privado,
éramos
alertados de
que aquilo era
‘inconvenient
e’. O que se
dizia podia ser
verdade, mas
era
‘inoportuno’ e
‘servia os
interesses’
destes ou
daqueles
reacionários.
Esta atitude
era
habitualmente
defendida com
base na ideia
de que a
situação
internacional,
e a
necessidade
urgente de
uma aliança
anglo-russa,
assim o
exigia; mas
isto era
claramente
uma
racionalização
. A
intelligentsia
inglesa, ou
grande parte
dela, tinha
desenvolvido
uma lealdade
nacionalista
em relação à
União
Soviética e
sentiam, no
íntimo, que
pôr de alguma
forma em
causa a
sabedoria de
Estaline era
uma espécie
de blasfémia.
Os
acontecimento
s na Rússia e
noutros
lugares
deviam ser
julgados de
acordo com
padrões
diferentes. As
execuções
incessantes e
as purgas de
1936-1938
foram
aplaudidas por
oponentes de
longa data da
pena capital, e
foi
considerado
igualmente
adequado
divulgar as
fomes quando
aconteciam na
Índia e
encobri-las
quando
aconteciam na
Ucrânia. E se
isto era
verdade antes
da guerra, a
atmosfera
intelectual por
certo não é
melhor agora.
Mas
voltando
agora a este
meu livro. A
reação dos
intelectuais
ingleses em
relação a ele
será muito
simples: ‘Não
deveria ter
sido
publicado’. É
claro que os
críticos
entendidos na
arte da
difamação não
o vão atacar
com base em
motivos
políticos, mas
sim literários.
Dirão que é
um livro
aborrecido e
disparatado e
um lamentável
desperdício de
papel. Pode
muito bem ser
verdade, mas
obviamente
que isso não é
a história toda.
Não se diz que
um livro ‘não
deveria ter
sido
publicado’
somente por
ser um mau
livro. Afinal
de contas,
todos os dias
são impressos
hectares de
lixo sem que
alguém se
incomode. A
intelligentsia
inglesa, ou a
maior parte
dela, irá
levantar
objeções a
este livro
porque calunia
o seu Líder e
(no seu ponto
de vista)
prejudica a
causa do
progresso. Se
fizesse o
oposto, nada
teriam a dizer
contra ele,
ainda que as
suas falhas
literárias
fossem dez
vezes mais
flagrantes do
que são. O
sucesso, por
exemplo, do
Left Book
6
Club num
período de
quatro ou
cinco anos
mostra até que
ponto estão
dispostos a
tolerar tanto a
linguagem
difamatória,
quanto a
escrita
descuidada,
desde que lhes
diga o que
querem ouvir.
O problema
coloca-se de
forma muito
simples: Terá
qualquer
opinião direito
a ser ouvida,
ainda que seja
impopular ou
até
disparatada?
Coloquem a
questão dessa
forma e
praticamente
qualquer
intelectual
inglês sentirá
que deve
responder
‘Sim’. Mas
dêem-lhe uma
forma
concreta e
perguntem: ‘E
se for um
ataque a
Estaline? Terá
isso direito a
ser ouvido?’
Nesse caso, a
resposta será
quase sempre
um ‘Não’.
Acontece que,
nesse caso, a
ortodoxia
reinante é
posta em
causa e por
isso o
princípio de
livre
expressão
desvanece-se.
Ora bem,
quando se
exige
liberdade de
expressão e de
imprensa, não
se está a pedir
liberdade
absoluta. Terá
sempre de
existir ou,
pelo menos,
sempre
existirá algum
grau de
censura
enquanto
houver
sociedades
organizadas.
Mas a
liberdade,
como disse
Rosa
Luxembourg
[sic], é
“liberdade
para os
outros”. As
famosas
palavras de
Voltaire
encerram o
mesmo
princípio:
“Detesto o
que dizes;
defenderei até
à morte o teu
direito a dizê-
lo”. Se a
liberdade
intelectual,
que tem sido,
sem dúvida,
um dos sinais
distintivos da
civilização
ocidental,
significa
alguma coisa
é que todos
devem ter o
direito de
dizer e de
imprimir o
que
considerarem
ser a verdade,
contanto que
não
prejudique o
resto da
comunidade
de uma forma
inequívoca.
Até há bem
pouco tempo,
tanto as
democracias
capitalistas
como as
versões
ocidentais do
socialismo
tomaram esse
princípio
como um
dado
adquirido.
Como já
referi, o nosso
governo
continua a
fazer alarde de
o respeitar. As
pessoas
comuns – em
parte, talvez,
por não
estarem
suficientement
e interessadas
em ideias para
serem
intolerantes
relativamente
a elas – ainda
defendem
vagamente
isto: ‘Penso
que toda a
gente tem
direito a ter a
sua opinião’.
São apenas,
ou
principalment
e, as pessoas
da
intelligentsia
literária e
científica, as
mesmas que
deveriam ser
guardiães da
liberdade, que
começam a
desprezá-la,
tanto em
teoria como
na prática.
Um dos
fenómenos
peculiares da
nossa época é
o do liberal
renegado.
Para além da
conhecida
alegação
marxista de
que a
‘liberdade
burguesa’ é
uma ilusão,
existe agora
uma tendência
generalizada
para afirmar
que só é
possível
defender a
democracia
com métodos
totalitários.
Segundo esse
argumento, se
gostamos da
democracia,
devemos
esmagar os
seus inimigos
seja por que
meios for. E
quem são os
seus inimigos?
Parece sempre
que não são
apenas os que
a atacam
aberta e
conscienteme
nte, mas
também os
que
‘objetivament
e’ a põem em
risco ao
propagar
doutrinas
erradas. Por
outras
palavras,
defender a
democracia
implica
destruir toda a
independência
de
pensamento.
Este
argumento foi
usado, por
exemplo, para
defender as
purgas russas.
O mais
ardente
russófilo
dificilmente
terá acreditado
que todas as
vítimas
fossem
culpadas de
todas as coisas
de que foram
acusadas:
mas, ao
defenderem
opiniões
heréticas, elas
prejudicaram
‘objetivament
e’ o regime,
pelo que foi
correto, não
somente
massacrá-las,
como
desacreditá-
las com falsas
acusações. O
mesmo
argumento foi
utilizado para
justificar as
mentiras bem
conscientes
divulgadas
pela imprensa
de esquerda
sobre os
trotskistas e
outras
minorias
republicanas
da Guerra
Civil
Espanhola. E
foi usado de
novo como
razão para
bramir contra
o habeas
corpus quando
Mosley foi
libertado em
1943.7
Estas
pessoas são
incapazes de
ver que,
quando se
incentivam
métodos
totalitários,
pode chegar
uma altura em
que serão
usados contra
nós em vez de
a nosso favor.
Se tornarmos
habitual a
detenção de
fascistas sem
julgamento,
pode dar-se o
caso de esse
procedimento
não se ficar
pelos
fascistas.
Pouco depois
de o
suprimido
Daily Worker
ter sido
reposto,
estava eu a dar
aulas numa
escola para
adultos no sul
de Londres. A
audiência era
composta por
intelectuais de
classe operária
e de classe-
média baixa –
o mesmo tipo
de audiência
que se
costumava
encontrar nas
delegações do
Left Book
Club. A aula
abordou a
liberdade de
imprensa e no
final, para
minha grande
surpresa,
várias pessoas
levantaram-se
e
perguntaram-
me: Não
considerava
eu que o
levantar da
proibição ao
Daily Worker
tinha sido um
grande erro?
Quando lhes
perguntei
porquê,
disseram que
se tratava de
um jornal de
lealdade
duvidosa e
não deveria
ser tolerado
em tempos de
guerra. Dei
por mim a
defender o
Daily Worker,
jornal que, por
mais de uma
vez, tanto se
esforçou por
me caluniar.
Mas, onde
teriam aquelas
pessoas
aprendido essa
visão das
coisas
essencialment
e totalitária?
Muito
provavelment
e tinham-na
aprendido
com os
próprios
comunistas! A
tolerância e as
boas maneiras
estão
profundament
e enraizadas
em Inglaterra,
mas não são
indestrutíveis,
e têm de ser
mantidas
vivas em boa
parte graças a
um esforço
consciente. A
consequência
de pregar
doutrinas
totalitárias é
enfraquecer o
instinto
mediante o
qual os povos
livres
conseguem
distinguir o
que é
perigoso. O
caso de
Mosley ilustra
bem isso. Em
1940 era
perfeitamente
correto
encarcerar
Mosley,
tivesse ele
cometido ou
não um crime
em sentido
técnico.
Lutávamos
pela
sobrevivência
e não
podíamos
permitir que
um possível
colaboracionis
ta
permanecesse
em liberdade.
Mantê-lo
detido em
1943, sem
julgamento,
era um ultraje.
A
incapacidade
geral de ver
isto foi um
mau sintoma,
embora seja
verdade que a
agitação
contra a
libertação de
Mosley foi em
parte factícia e
em parte uma
racionalização
de outros
descontentam
entos. Mas até
que ponto o
corrente
deslizar para
formas de
pensamento
fascistas está
relacionado
com o
‘antifascismo’
dos últimos
dez anos e
com a falta de
escrúpulos
que implicou?
É
importante
perceber que a
atual
‘russomania’ é
apenas um
sintoma do
enfraquecime
nto
generalizado
da tradição
liberal
ocidental.
Tivesse o
MOI
intervindo e
vetado
definitivament
e a publicação
deste livro e a
esmagadora
maioria da
intelligentsia
inglesa nada
teria visto de
preocupante
nesse facto.
Acontece que
a lealdade
acrítica em
relação à
União
Soviética é a
ortodoxia do
momento e,
sempre que os
supostos
interesses
soviéticos
estão em
causa, eles
estão
dispostos a
tolerar não
somente a
censura, como
também a
falsificação
deliberada da
História. Dou
um exemplo.
Aquando da
morte de John
Reed, o autor
de Dez Dias
Que Abalaram
o Mundo – um
relato na
primeira
pessoa dos
primeiros dias
da Revolução
Russa –, os
direitos de
autor do livro
passaram para
as mãos do
Partido
Comunista
britânico, ao
qual terão sido
legados por
Reed. Anos
depois, os
comunistas
britânicos,
tendo
destruído a
edição
original do
livro tão
completament
e quanto lhes
foi possível,
publicaram
uma edição
distorcida, da
qual
eliminaram
referências a
Trotsky e
omitiram,
igualmente, a
introdução
escrita por
Lenine. Se
existisse ainda
uma
intelligentsia
radical na
Grã-Bretanha,
esse ato de
falsificação
teria sido
exposto e
denunciado
em todos os
jornais
literários do
país. Mas,
sendo as
coisas como
eram,
praticamente
não houve
protestos. Para
muitos
intelectuais
britânicos
pareceu algo
natural. E essa
tolerância ou
[sic = da?]
pura
desonestidade
significa
muito mais do
que o facto
simples de a
admiração
pela Rússia
estar na moda
nesse
momento. É
muito possível
que essa moda
não dure.
Pode bem dar-
se o caso de a
minha
perspetiva
sobre o
regime
soviético ser
já a mais
aceite quando
este livro for
publicado.
Mas de que
serviria isso
por si mesmo?
A substituição
de uma
ortodoxia por
outra não é
necessariamen
te um
progresso. O
inimigo é o
espírito
gramofone,
quer
concordemos
ou não com o
disco que
estiver a ser
tocado no
momento.
Estou bem
familiarizado
com todos os
argumentos
contra a
liberdade de
pensamento e
de expressão –
os argumentos
segundo os
quais ela não
pode existir e
os que
reivindicam
que não deve
existir de
todo.
Respondo
simplesmente
que não me
convencem e
que a nossa
civilização foi
fundada, ao
longo dos
últimos
quatrocentos
anos, na
constatação
contrária. Há
quase uma
década que
acredito ser o
existente
regime russo
uma coisa
essencialment
e má e
reivindico o
direito de o
dizer, não
obstante o
facto de
sermos aliados
da União
Soviética
numa guerra
que quero que
ganhemos. Se
tivesse de
escolher um
texto para me
justificar,
escolheria
uma frase de
Milton:
Pelas
conhecidas
regras da
antiga
liberdade.8
A palavra
antiga
sublinha o
facto de a
liberdade
intelectual ser
uma tradição
profundament
e enraizada,
sem a qual,
possivelmente
, a nossa
caraterística
cultura
ocidental não
existiria.
Muitos dos
nossos
intelectuais
estão
visivelmente a
afastar-se
dessa tradição.
Aceitaram o
princípio de
que um livro
deve ser
publicado ou
suprimido,
elogiado ou
amaldiçoado
não pelos seus
méritos, mas
segundo a
conveniência
política. E
outros que, na
verdade, não
apoiam esta
perspetiva,
pactuam com
ela por pura
cobardia.
Exemplo disto
são os
numerosos e
muito críticos
pacifistas
ingleses não
conseguirem
erguer as suas
vozes contra a
prevalecente
adoração do
militarismo
russo. De
acordo com
esses
pacifistas,
toda a
violência é um
mal, e têm-nos
instado, em
todas as fases
da guerra, a
ceder ou a
aceitarmos,
pelo menos,
uma paz
negociada.
Mas, quantos
deles alguma
vez deram a
entender que a
guerra é
igualmente
um mal
quando levada
a cabo pelo
Exército
Vermelho? Ao
que parece, os
russos têm
direito a
defender-se,
enquanto, no
nosso caso,
fazer outro
tanto é um
pecado
mortal. Só
podemos
explicar esta
contradição de
uma maneira:
isto é, por um
desejo
cobarde de se
manter
alinhado com
o grosso da
intelligentsia,
cujo
patriotismo
está dirigido
para a União
Soviética em
vez de para a
Grã-Bretanha.
Sei que a
intelligentsia
inglesa tem
muitas razões
para justificar
a sua timidez
e
desonestidade;
de facto,
conheço de
cor os
argumentos
com os quais
se justificam.
Mas, pelo
menos
deixemo-nos
de disparates
ao falar de
defesa da
liberdade
contra o
fascismo. Se a
liberdade tem
algum
significado é o
de representar
o direito de
dizer às
pessoas o que
elas não
querem ouvir.
As pessoas
comuns ainda
subscrevem
vagamente
essa doutrina
e agem de
acordo com
ela. No nosso
país – não é
igual em todos
os países; não
era assim na
França
republicana e
não é assim
nos EUA dos
nossos dias –
são os liberais
que receiam a
liberdade e os
intelectuais
que querem
atirar lama ao
intelecto: foi
para alertar
para esse facto
que escrevi
este prefácio.
3 Não é claro
se a sugestão
para esta
mudança
partiu do Sr.…
ou se teve
origem no
Ministério das
Informações;
mas parece
haver nela um
toque oficial.
[Nota de
Orwell]
4 Acrónimo
de Ministry of
Information,
Ministério das
Informações,
organismo que
existiu durante
a Grande
Guerra e foi
reativado na
Segunda
Guerra
Mundial. [N.
do T.]
5 Alusão a
Harold
Francis
Davidson,
padre
anglicano
excomungado
em 1932 por
alegado
envolvimento
com
prostitutas.
[N. do T.]
6 Grupo
editorial e
clube do livro.
Criado em
1936, teve
grande
influência na
esquerda
britânica até
1948.
Publicava
livros e
panfletos e
organizava
sessões de
debate pelo
país. [N. do
T.]
7 Oswald
Ernald
Mosley, líder
da União
Britânica de
Fascistas
(BUF). Foi
detido em
1940 e o seu
partido
banido, mas
em 1943 foi
posto em
liberdade por
decisão do
governo
aprovada pelo
Parlamento.
Permaneceu
em prisão
domiciliária
até ao final da
guerra. [N. do
T.]
8 Segundo
verso do
Soneto 12 de
John Milton:
“By the
known rules
of ancient
liberty”. [N.
do T.]
PREFÁCI
O II
Prefácio de
Orwell à
edição
ucraniana
de O
Triunfo dos
Porcos
A tradução
ucraniana de
O Triunfo dos
Porcos foi
escrita para
os ucranianos
que viviam,
depois da
Segunda
Guerra
Mundial, nos
campos de
deslocados na
Alemanha sob
administração
britânica e
americana.
Como refere
uma carta do
homem que
organizou a
tradução e
distribuição,
Ihor
Szewczenko,
essas eram
pessoas que
apoiavam a
Revolução de
Outubro e que
estavam
determinadas
a defender o
que tinha sido
conquistado,
mas que se
tinham
voltado contra
o
“bonapartism
o contra-
revolucionário
de Estaline”’
e contra “a
exploração
nacionalista
russa do povo
ucraniano”.
Eram pessoas
simples,
camponeses e
trabalhadores,
alguns com
pouco
estudos, mas
todos liam
avidamente.
Para essas
pessoas, pediu
ele a Orwell
que escrevesse
uma
introdução
especial. O
original em
inglês perdeu-
se e a versão
aqui
reproduzida é
uma
retradução
para inglês da
versão
ucraniana.
Orwell insistiu
em não
receber
direitos de
autor por essa
edição, nem
por outras
traduções
destinadas aos
que eram
demasiado
pobres para
as poderem
adquirir (por
ex., edições
em persa e
telugu). O
próprio
Orwell pagou
os custos de
produção de
uma edição
em russo,
impressa em
papel fino,
destinada a
soldados e a
outros que
viviam do
lado de lá da
Cortina de
Ferro.
Foi-me
pedido que
escrevesse um
prefácio para
a tradução
ucraniana de
O Triunfo dos
Porcos. Estou
consciente de
que escrevo
para leitores
sobre os quais
nada sei, mas
tenho
igualmente
consciência
que também
eles, muito
provavelment
e, nunca
tiveram a
mínima
oportunidade
de ouvir falar
de mim.
Neste
prefácio talvez
estejam à
espera de que
explique como
surgiu a ideia
de O Triunfo
dos Porcos,
mas, antes
disso, gostava
de falar um
pouco de mim
e das
experiências
que me
levaram à
minha posição
política.
Nasci na
Índia em
1903. O meu
pai era um
funcionário da
administração
inglesa aí
instalada, e a
minha família
era uma
dessas
famílias
vulgares da
classe média
composta por
soldados,
homens do
clero,
responsáveis
do governo,
professores,
advogados,
médicos, etc.
Fui educado
em Eton, a
mais cara e
mais snobe
das ‘escolas
públicas’
inglesas9. Mas
só consegui
ali entrar
graças a uma
bolsa de
estudo; de
outra maneira
o meu pai não
teria
conseguido
pagar uma
escola daquele
tipo.
Pouco
depois de
deixar a
escola (ainda
não tinha
vinte anos) fui
para a
Birmânia e
alistei-me na
Polícia
Imperial
Indiana. Era
uma polícia
armada, uma
espécie de
gendarmerie
muito
semelhante à
Guardia Civil
espanhola ou
à Garde
Mobile em
França.
Prestei serviço
durante cinco
anos. Não me
agradou e fez-
me odiar o
imperialismo,
apesar de
nessa altura os
sentimentos
nacionalistas
na Birmânia
não serem
muito
marcados, e
de as relações
entre ingleses
e birmaneses
não serem
particularment
e hostis.
Durante uma
licença em
Inglaterra, em
1927, demiti-
me e decidi
tornar-me
escritor: de
início sem
grande
sucesso. Vivi
em Paris entre
1928 e 1929 e
escrevi contos
e novelas que
ninguém
queria
publicar
(destruí-as
todas). Nos
anos seguintes
sobrevivi com
dificuldades e
passei fome
muitas vezes.
Foi somente a
partir de 1934
que passei a
viver da
minha escrita.
Até isso
acontecer, vivi
por vezes
meses
seguidos entre
os elementos
mais pobres e
quase
criminosos
que povoavam
as zonas mais
degradadas
dos bairros
mais pobres
ou que iam
para as ruas
pedir e roubar.
Nessa altura
juntei-me a
eles por não
ter dinheiro,
mas mais
tarde o seu
modo de vida
passou a
interessar-me.
Passei muitos
meses (então
de forma mais
sistemática) a
estudar as
condições de
vida dos
mineiros no
norte de
Inglaterra. Até
1930 não me
considerava,
de uma forma
geral, um
socialista. Na
verdade, não
tinha posições
políticas
claramente
definidas.
Tornei-me
pró-socialista
mais por
aversão à
forma como
os mais
pobres dos
trabalhadores
industriais
eram
oprimidos e
negligenciado
s do que por
uma
admiração
teórica por
uma sociedade
planificada.
Casei-me
em 1936. A
guerra civil
rebentou em
Espanha
praticamente
na mesma
semana. Tanto
eu como a
minha mulher
queríamos ir
para Espanha
e combater
pelo governo
espanhol.
Passados seis
meses, assim
que terminei o
livro que
estava a
escrever,
estávamos
prontos. Em
Espanha
passei quase
seis meses na
frente de
Aragão, até
que, em
Huesca, o
disparo de um
franco-
atirador
fascista me
atingiu na
garganta.
Nas fases
iniciais da
guerra, a
maioria dos
estrangeiros
não estava
consciente das
lutas internas
entre os vários
partidos que
apoiavam o
governo. Por
uma série de
acasos, juntei-
me não à
Brigada
Internacional,
como a maior
parte dos
estrangeiros,
mas à milícia
POUM – ou
seja, aos
trotskistas
espanhóis.
Por isso, em
meados de
1937, quando
os comunistas
conquistaram
o controlo (ou
o controlo
parcial) do
governo
espanhol e
começaram a
perseguir os
trotskistas,
demos
connosco
entre as
vítimas.
Tivemos
muita sorte
em sair de
Espanha com
vida, sem
sequer termos
sido detidos
uma única
vez. Muitos
dos nossos
amigos foram
feridos e
outros
passaram
muito tempo
detidos ou,
pura e
simplesmente,
desaparecera
m.
Essas
perseguições
em Espanha
aconteceram
na mesma
altura das
purgas na
União
Soviética e
foram uma
espécie de
complemento
das mesmas.
Em Espanha,
tal como na
Rússia, a
natureza das
acusações
(nomeadamen
te a de
conspiração
com os
fascistas) era
semelhante e,
no que diz
respeito a
Espanha, eu
tinha todas as
razões para
crer que as
acusações
eram falsas.
Ter passado
por tudo isto
foi uma
preciosa lição
de vida:
ensinou-me
com que
facilidade a
propaganda
totalitária
pode controlar
a opinião de
pessoas
esclarecidas
em países
democráticos.
A minha
mulher e eu
vimos pessoas
inocentes
serem atiradas
para a prisão
somente por
serem
suspeitas de
não
respeitarem a
ortodoxia.
Apesar disso,
no regresso a
Inglaterra
deparámos
com muitos
observadores
sensatos e
bem
informados
que
acreditavam
nas mais
fantásticas
narrativas de
conspiração,
deslealdade e
sabotagem
que a
Imprensa
noticiava
sobre os
julgamentos
de Moscovo.
Dessa forma
compreendi,
com mais
clareza do que
nunca, a
influência
negativa do
mito soviético
sobre o
movimento
socialista
ocidental.
E tenho de
fazer aqui
uma pausa
para descrever
a minha
atitude em
relação ao
regime
soviético.
Nunca
visitei a
Rússia e o
meu
conhecimento
desse país
consiste
somente
naquilo que se
pode saber
através dos
livros e
jornais. Ainda
que pudesse,
não gostava
de interferir
nos assuntos
internos
soviéticos:
não era capaz
de condenar
Estaline e os
seus
colaboradores
meramente
pelos seus
métodos
bárbaros e
antidemocráti
cos. É muito
possível que,
mesmo com
as melhores
intenções, não
lhes tenha
sido possível
agir de outra
forma nas
circunstâncias
vigentes na
altura.
Mas, por
outro lado, era
para mim da
maior
importância
que as pessoas
da Europa
ocidental
vissem o
regime
soviético
como
realmente era.
Desde 1930,
praticamente
não via sinais
de que a
União
Soviética
estivesse a
progredir para
alguma coisa
que pudesse
chamar-se
verdadeirame
nte de
socialismo.
Pelo contrário,
fiquei
impressionado
com os sinais
claros da sua
transformação
numa
sociedade
hierárquica,
na qual os
governantes
não têm mais
razões para
abandonar o
poder do que
qualquer outra
classe
dominante.
Acresce que
os
trabalhadores
e a
intelligentsia
de um país
como a
Inglaterra não
conseguem
entender que a
União
Soviética de
hoje é
completament
e diferente da
de 1917. Isso
acontece, em
parte, porque
não querem
entender (ou
seja, querem
acreditar que
existe,
algures, um
país realmente
socialista), e
em parte
porque
estando
acostumados a
uma
comparativam
ente grande
liberdade e
moderação na
vida pública, o
totalitarismo
é-lhes
completament
e
incompreensív
el.
Apesar
disso temos de
nos lembrar
que a
Inglaterra não
é
completament
e democrática.
É também um
país capitalista
com classes
privilegiadas e
(até mesmo
agora, depois
de uma guerra
que tendeu a
tornar todos
mais iguais)
com grandes
diferenças de
riqueza. Mas
é, ainda assim,
um país no
qual as
pessoas têm
vivido juntas
ao longo de
muitos séculos
sem grandes
conflitos, no
qual as leis
são
relativamente
justas e no
qual se pode
geralmente
acreditar nas
notícias e nas
estatísticas
oficiais e, por
fim, mas não
menos
importante, no
qual defender
e manifestar
pontos de
vista
minoritários
não implica
correr risco de
vida. Numa tal
atmosfera, a
pessoa comum
não possui
uma real
compreensão
de coisas
como campos
de
concentração,
deportações
em massa,
detenções sem
julgamento,
censura de
imprensa, etc.
Tudo quanto
lê sobre um
país como a
União
Soviética é
automaticame
nte transposto
para as
condições
inglesas, e por
isso aceita de
forma bastante
inocente as
mentiras da
propaganda
totalitária. Até
1939, e
mesmo depois
disso, os
ingleses, na
sua maioria,
eram
incapazes de
aferir a
verdadeira
natureza do
regime nazi
alemão, e
agora, com o
regime
soviético,
continuam em
grande medida
sob o mesmo
tipo de ilusão.
Isto
prejudicou
muito o
movimento
socialista em
Inglaterra e
teve sérias
consequências
para a política
externa
inglesa. Na
verdade, em
minha
opinião, nada
contribuiu
tanto para a
corrupção da
ideia original
do socialismo
como a crença
de que a
Rússia é um
país socialista
e que cada ato
dos seus
governantes
deve ser
perdoado ou
mesmo
imitado.
Convenci-
me, por isso,
nos últimos
dez anos, de
que a
destruição do
mito soviético
é essencial se
quisermos
reavivar o
movimento
socialista.
Depois de
regressar de
Espanha
pensei
desvelar o
mito soviético
numa história
que pudesse
ser facilmente
compreendida
por quase
todos e que
pudesse ser
facilmente
traduzida para
outras línguas.
Contudo, os
pormenores
efetivos da
história não
me ocorreram
durante algum
tempo até que
um dia (vivia
então numa
pequena
localidade) vi
um rapazinho,
talvez com
uns dez anos,
a conduzir
uma grande
carroça por
um caminho
estreito,
chicoteando o
cavalo sempre
que tentava
mudar de
rumo.
Ocorreu-me
que, se
aqueles
animais
ganhassem
consciência da
sua força, não
teríamos
poder sobre
eles e que os
seres humanos
exploram os
animais de
forma muito
semelhante
àquela como
os ricos
exploram o
proletariado.
Avancei daí
para a análise
da teoria de
Marx do
ponto de vista
dos animais.
Para eles era
evidente que o
conceito de
uma luta de
classes entre
humanos era
pura ilusão,
uma vez que,
quando era
necessário
explorar
animais, todos
os humanos se
uniam contra
eles: a
verdadeira
luta é entre
animais e
humanos.
Tendo este
ponto de
partida, não
era difícil
elaborar a
história. Não a
escrevi até
1943, pois
estive sempre
envolvido
noutros
trabalhos que
me ocupavam
o tempo; e
acabei por
incluir
acontecimento
s, como por
exemplo a
Conferência
de Teerão, que
tiveram lugar
enquanto
escrevia. Por
conseguinte,
os contornos
principais da
história
andaram no
meu espírito
durante seis
anos antes de
finalmente a
escrever.
Não quero
comentar a
história; se
não falar por
si mesma terá
falhado. Mas
gostaria de
enfatizar dois
aspetos:
primeiro que,
embora os
vários
episódios
sejam
retirados da
história
factual da
Revolução
Russa, são
tratados de
forma
esquemática e
a sua ordem
cronológica
foi alterada;
isto foi
necessário por
causa da
simetria da
história. O
segundo
aspeto não foi
notado pela
maioria dos
críticos,
possivelmente
porque não o
destaquei o
suficiente.
Muitos
leitores
poderão
chegar ao fim
do livro com a
impressão de
que termina
com a
reconciliação
total entre
porcos e seres
humanos. Não
foi essa a
minha
intenção; quis,
pelo contrário,
que o livro
terminasse
numa intensa
nota de
discórdia, pois
foi escrito
imediatamente
depois da
Conferência
de Teerão, que
todos
pensavam ter
estabelecido
as melhores
relações
possíveis entre
a União
Soviética e o
Ocidente. Eu
não acreditava
que essas boas
relações
fossem
duradouras; e,
como os
acontecimento
s vieram a
revelar, não
me enganei
muito.
Não sei o
que mais será
preciso
acrescentar.
Se alguém
estiver
interessado
em
pormenores
pessoais, devo
acrescentar
que sou viúvo
e tenho um
filho de três
anos, que sou
escritor de
profissão e
que, desde o
início da
guerra, tenho
trabalhado
sobretudo
como
jornalista.
O periódico
com o qual
colaboro com
maior
regularidade é
o Tribune, um
semanário
sociopolítico
que
representa, de
forma geral, a
esquerda do
Partido
Trabalhista.
Os livros que
a seguir refiro
são aqueles,
de entre os
que escrevi,
que mais
poderão
interessar ao
leitor comum
(caso algum
leitor desta
tradução
consiga
encontrar
exemplares):
Dias
Birmaneses
(uma história
sobre a
Birmânia),
Homenagem à
Catalunha
(resultante das
minhas
experiências
na Guerra
Civil
Espanhola), e
Critical
Essays
(ensaios
versando,
essencialment
e, sobre
literatura
popular
contemporâne
a e mais
instrutivos do
ponto de vista
sociológico do
que literário).
9 Não se trata
de ‘escolas
públicas
nacionais’,
mas do exato
contrário: são
escolas
secundárias
dispendiosas e
de acesso
restrito, que
funcionam em
regime de
internato e
existem em
pequeno
número
dispersas pelo
país. Até há
bem pouco
tempo não
aceitavam
quase
ninguém além
dos filhos de
famílias
aristocráticas
ricas. O sonho
dos
banqueiros
nouveau riche
do século
dezanove era
conseguir que
os filhos
entrassem nas
‘Escolas
Públicas’.
Nessas escolas
é dada grande
ênfase ao
desporto, que
serve para
formar, por
assim dizer,
uma visão das
coisas altiva,
dura e
cavalheiresca.
Eton é
particularment
e famosa entre
essas escolas.
Consta que
Wellington
terá dito que a
vitória em
Waterloo foi
decidida nos
campos de
jogo de Eton.
Até há bem
pouco tempo,
a esmagadora
maioria das
pessoas que,
de uma forma
ou de outra,
governavam
Inglaterra,
provinha das
‘Escolas
Públicas’.
[Nota de
Orwell]

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