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RELATO À BEIRA DO SONO

MAURICIO SALLES VASCONCELOS


Foi como eu puxasse meu pai para a viagem. (Foi como eu
puxasse “meu pai”, as coincidências entre nós, não só nos rostos e
nos nossos gostos, crescem com o passar de cada ano). Porque não
parava de manifestar meu desejo de descansar de um primeiro
semestre “puxado” de aulas. Mais outras atividades físicas e
mentais, que não deixam eu ficar sozinho (até porque assim eu sou,
filho único de pais separados, morando apenas com mãe num
pequeno apartamento, praticamente destinado somente para um).
Rumamos apenas nós dois para uma casa grande pertencente
a parente da primeira mulher de Moran (meu pai, eu o chamo assim,
direto vou no seu nome, sem mais cerimônia).
Moradia sólida, pedra cinza se mostra na base e na fachada,
quartos largos lá dentro, trazendo muitas pinturas emolduradas em
cada cômodo. Estamos no Brooklyn, Estados Unidos. Moran,
porém, gosta de dizer que são Estampas Urgentes. Foram coladas
pelo da casa foi colando desde os primeiros anos de existência
daquela casa – de modo que se tornem, de fato, estados unidos –
Paisagens de um país ao pouco transformado em cenário de
qualquer outro lugar quando a gente vai ver de perto aquelas quedas
d’água enormes e pradarias desertas. Como se assim ficasse
resumida a geografia de um país –
“Isso é meu pátio interno, passeio infinito, desde que me
entendo por gente. Pois passei férias em Nova York na infância.
Muito bom, agora conhecer o outro lado da cidade”.
Enquanto atravessamos os corredores até que nosso quarto
apareça, Moran vai relembrando a memória daquela morada
(através do que ele vê e pensa ser o lugar, nos Estados Unidos, de
degrau a degrau dos andares escuros até a gente chegar na suíte
com direito a terraço)

Tudo o que Moran não diz acaba sendo parte da nossa


conversa, de um jeito ou de outro:
“Só que dessa vez, filho, o passeio comigo quer dizer: fuga
de uma situação política de terror vivida em nosso país.
Por mais que tudo pareça normal, fluente, natural (“há um rio
que sangra em cada falsa notícia)”
Muito tempo depois, lerei os papeis (muitas
vezes postagens lançadas em Rede Social) de Moran, escritos em dias como
esse (uma segunda-feira de junho, começo de verão no Hemisfério Norte).
Papeis (ou páginas da Internet) correspondentes à conversa um tanto oculta
que ele mantém bem nesse momento comigo em viagem.

– Um dia, Pero, uma hora de repente, você vai entender na


medida de cada dia. No compasso do seu crescimento e
entendimento: o que está se passando. Justo agora.

Moran emenda sua fala com as linhas retiradas do livro


surgido à nossa frente – um álbum forrado com letras e desenhos.
Ele vai transmitindo o texto contido nesse volume disponível
na mesa de cabeceira da cama onde ele vai se deitar ao meu lado,
dentro do quarto reservado por seu antigo amigo durante nossa
estadia ali. Lendas da Manhã –
Extraídas do universo dos Karajás, contam para um público
atual a narrativa do Sol e da Noite. Nessa recriação, são eles (dois
seres em turnos/ciclos diferentes, diurnos/noturnos, mas
inseparáveis) prisioneiros um do outro. Até que sempre recomece
– como se fosse um único, dia inicial – o relato da Criação do
Universo, em harmonia com todos os seres vivos –

A leitura começa (pois não temos acesso a tv e a outro


dispositivo de imagens, sendo o ato de ler uma espécie de abrigo).
Chegamos por aqui no meio da noite e eu não consigo relaxar
da viagem de 10 horas. “Por meio de uma paisagem, tudo se
principia
Assusta a gente ver que mesmo sem sinais de existência
visível, é lançada para nós como convite, o mais íntimo. Bem
atraente se mostra quanto mais parece selvagem, arredia, a
paisagem tão simples. Um plano de terra. Algumas árvores ali
adiante, raras folhagens tremidas, silvos no ar.
(Este é um livro passado no Brasil. Moran
acrescenta, dando jeito no corpo de quem vai ficar deitado durante
a leitura)”

“Demora um tempo até que os visitantes vejam que as coisas


não se escondem. Só demoram um tempo até que elas/eles (os
chamados visitantes) vejam as coisas, leiam a paisagem. Como se
fosse um desenho aos poucos acompanhado de legendas”

– Por que toda viagem tem o sentido de contar histórias.


Por que tudo quanto é história dá início a uma viagem

(É uma pergunta, mas fico calado, talvez deixando para nossa


conversa amanhã essas indagações, até porque o sono vai
chegando)

(Não, nada de sono nem sonho. É que meus olhos precisam


descansar. Estou bem atento ao que lê meu pai. É na sua voz que
ganho conforto, repouso)

Assim vou seguindo


Na companhia de Gu e Géa, os irmãos em viagem com seus
pais. Acabam de chegar na grande metrópole nacional. São Paulo,
domingo, 16 horas. Inverno nunca provado antes em Juremar,
cidade nordestina onde nasceram.
Eles dois cochicham depois que a família deixou as malas no
salão enorme onde vive o antigo parente com quem vão passar os
próximos dias.
No parque situado em frente ao apartamento de Tenório – um
primo, bem idoso, de Abelardo, o pai –, as crianças paraibanas vão
aportar todos os dias da temporada paulistana.
Foi uma sorte ter um lugar ao alcance da mão – através da
simples travessia da Avenida. Especialmente, quando os pais
ficarão ocupados com uma série de compromissos (reuniões
familiares, encontros com advogados, saídas comerciais para
escritórios e empresas). “As crianças podem se distrair no Parque.
Afinal, terão com que brincar nesse centro de São Paulo”.

Elas estranham a ausência de bancos ali no chamado Parque


Latino. Alguns poucos brinquedos, punhados esparsos de verde,
cachorros de raças diversas acompanhados de seus donos povoam
aquele raro regaço na cidade enorme (sobre a qual Carina, a bela
mãe cor-de-mate e olhos verdes quase musgo, tanto falou quando
se aproximavam da reta final da viagem até aqui).

Moran faz por vezes uma recapitulação


do que lê, um resumo, bem falando do que se passa no livro.
Pegou o ritmo de recontar por conta
própria o que está ali escrito. Em alguns momentos, eu mesmo
quero ver as gravuras e testar as palavras do que vai acontecendo.
Ele me passa o volume encadernado e
volta às Lendas da Manhã – porque apenas na hora de dormir, Gu
e Géa conseguem, de fato, viver o sentido da viagem. Já que o
Parque ali à mão, bem à frente da casa do parente antigo, afastado,
nada lhes reserva de aventura. Os pais ainda não fizeram nenhum
passeio com eles. Estão ocupados por enquanto, é o que dizem.
Primo Tenório, muito idoso, pode
falecer a qualquer momento e ele mesmo propôs a Abelardo que
estivesse em São Paulo para tratar dos negócios familiares. De
modo a colocar em venda bens comuns, legados por seus pais aos
dois primos, fazendo partilha, distribuição igualitária de um
patrimônio situado em grande parte na maior capital brasileira.

“Essa vinda até aqui tem motivo sério,


de saúde, de finanças, divisão de coisas da família”, Abelardo gosta
de explicar toda hora quando um dos filhos comenta sobre o
tamanho da metrópole onde estão nessas férias de meio-de-ano e
do tanto que gostariam de passear mais. “São Paulo não é só um
parque mínimo, com decoração de natureza e pouco a se fazer, não
é mesmo?”

Géa se expõe e Gu complementa a irmã ao dizer que lá,


no Parque Latino, a maior diversão é observar as pessoas que
passam. “Nada mais que isso, meu pai, afinal estamos
acostumados com as praias de Juremar a hora que a gente
quiser. Andamos de pés descalços, as ondas chegam a todo
segundo, cada vez mais diferentes no modo de nos banhar”)

– Só que essa vinda até aqui tem motivo de separação dos


dois – Géa fala como nunca nas horas da noite, dentro do quarto
que divide com o irmão – A filha daquela amiga de mamãe, Ziza,
tá lembrado, Gu? A amiga da praia. Mãe tudo confessa pra ela. De
repente, escutei quando voltava do banho de mar.

Vamos tentar resolver na viagem nossa vida. Há muito,


deixamos de ter carinho. Aquela coisa mais física, entende?
Abelardo vai aproveitar a questão da herança familiar para
pôr tudo na ponta do lápis. Com essa base, vamos ver se vale a pena
a separação.

Na ponta do lápis, na ponta-da-língua. Guardei a conversa


bem viva. Você reparou que os dois praticamente não trocaram
palavra durante todo o trajeto?

Foi bem longo, Gus: Nordeste/Sudeste, estamos sozinhos o


dia inteiro, você não observa?
É como se a gente já começasse a se acostumar com o fim de
tudo, da família e da ideia de outra viagem em conjunto

Não queira chorar agora, menino.


Não, eu não quero me fazer de mãezinha.
A noite é poderosa para virar em dia seguinte.

Não adianta, eu fico preocupado, o medo me


antecipa.

Vamos concentrar no que mais queremos. Anda.


Quando os olhos se fecham, observe aquilo a se formar na
escuridão. Vem do que mais queremos e também do que não
sabemos. De repente, ficamos sossegados. É sono e não é.

Sou tomado por meu pensamento. Não adiantam


suas palavras...Ah, não são palavras, sim, sei...Olhos fechados. Assim, a
gente vê melhor. Combinado, Géa.

Uma lenda sem fantasma, nem fantasia. Feito o deserto vindo


dos olhos fechados: a manhã.
Algo além do pensado, escrito e imaginado, toma forma. Essa
aí é nossa vida. De repente, o dia chega (feito uma história noturna
em continuidade).
Nossa vida é o que não cessa de tomar forma. Nunca se
completa. Não sai dos limites do relato feito por uma Lenda Índia
– Ficamos à beira da noite, na borda do dia.
Houve segundo uma linda mulher Karajá a necessidade da
divisão entre noite e dia, para que fosse possível o sono, tão
necessário à vida humana. Para isso, a noite tinha de ser guardada
no oco de um coco. Um sortilégio. Uma cápsula para não ser jamais
rompida. Porém, um indígena por curiosidade quis partir o coco (o
oco da noite), de onde saíram espíritos trevosos, terríveis, que não
deixavam ninguém dormir.
Daí, a necessidade de ser feita a divisa entre claro e escuro,
numa ponta e outra de um dia virado em outro dia. Só que essa
fronteira não é tão forte, nada firme. Porque cada um (ser vivo ou
não) fica entre dia e noite. Sempre à beira do que vem e jamais
fecha uma barreira entre uma parte e outra dessa margem
escorregadia –
Onde as horas e os tempos se visitam sem parar.

Já está dormindo?

Vida...luz exterior e ao mesmo tempo, não...A vida precisa da


gente.
É nossa e é a vida a caminhar de modo próprio.
Num repente, dá para notar que se trata de uma coisa única,
numa só batida.
Por aí, vamos crescendo, com entendimento de uma só coisa:
é preciso dormir. Pois logo logo vem um dia, inteiramente novo.
Sem que seja preciso sair daqui.

A noite existe porque não cabe inteira em si


e já contém o dia. Isso?
É que nem um sonho? Cada um entra pelo
lugar que acaba por surgir e dali vai passando por entradas, estranhas às
vezes. Mas logo tudo vai dar no canal longo, uma espécie de furo. Ou tubo.
Caímos na terra. Onde todos nós estávamos antes.

Veja só esse brinquedo feito em forma de ondas (de cimento).


Um falso funil. Um cubo. Pode brincar nele se quiser, Gu.

Sei, você é mais velha e pode ficar sentada


nesse parque de velhos. Sim, eu chamo, assim, um parque sem crianças. Só
nós dois.
Quem mora aqui em São Paulo, sai de férias
nas montanhas ou em praias nordestinas ainda quentes no inverno, nesse
meio-de-ano. Nós, que somos da Paraíba, temos São Paulo em nossas mãos,
porém não saímos das linhas de vida vindas de nossos pais.
Eu também observo tudo, Géa. Já
experimentei o brinquedo. Dá alegria e medo ao mesmo tempo.
Pensei que ia ficar preso para sempre ali
dentro.
Aconteceu que meu corpo mesmo foi
buscando uma forma de respirar. Cada vez mais fora de mim.
E aqui estou também com você para
observar. Não quero mais brinquedos decorativos para memórias de pessoas
velhas sentadas nesse parque usado como forma de escapar da cidade cheia
de prédios. Escapar da vida, não é?

Da vida que segue. Nem sei mais dizer sobre a continuação


de tudo com os dois separados. Eu gosto tanto de ter ao nosso lado
eles dois como casal. É o nosso começo. Dá segurança. Contudo,
não se conhece o que vira o começo das coisas.

Nós dois não vamos nos separar por conta


disso, né? Irmãos não se separam.
Então, me diz?
Você fala que está observando tudo – ao
ocupar esse lugar de velha no parque – e nada sabe?
Nunca vai saber!

Fica esperto! Enquanto você estava falando...falando pra me


provocar, essa é a verdade...eu não tirei os olhos daquele casal com
o cachorro belga...Os dois são novos, mas tem ali um silêncio de
quem parece ter herdado coisas bem antigas. Coisas que não são
deles e vão se alojar no meio de um belo passeio em dia de inverno
ensolarado pelo Parque.

Vamos ficar o tempo todo nesse falso lugar ao ar livre?


Um pedaço de paisagem. Viagem sem base (como se fosse parte de
uma casa de onde se atravessa a rua para entrar numa pista aberta
de verde que não viceja e repete os mesmos visitantes)
Viagem em falso. Um percurso de carro para dar no fim
de nossa família, fim de nossa própria vida (daquele ponto em que
todos estavam na partida).

Será que um dia nós 2 vamos lembrar dessas


férias passadas num parque

(Em falso)? Férias (em tese). Fora de qualquer programa de


turismo – Parece ser isso o que você quer dizer, meu irmão.

Tá bom, pode traduzir o que estou pensando.


Na real, estou cheio de interrogações.
Agora mesmo estou observando também o
casal do cachorro belga. É o bicho bonito que está conduzindo eles. Porque
aquele casal jovem com as pernas fortes à mostra estão morrendo por dentro.
Quem sabe tudo não se acaba de repente e amanhã nem depois do muito
depois jamais voltarão aqui.
(Aquele casal: imagem vista de repente,
logo desaparecida. O cão sempre adiante, tocado por sua própria
desaparição)

Assim como nós mesmos. Da mesma forma que acontece


com Abelardo e Carina. Quando voltaremos a São Paulo?

Quero dizer:
Quando voltaremos ao parque deserto?

Onde nada tem a ver com férias. Nem


viagem parece. Você quer dizer isso! Eu também vejo. Leio o seu
pensamento.
Sinto que estamos trancados na casa
erguida por mamãe e pai. Ou melhor, o tal primo Tenório é quem nos
aprisiona numa história de herança, dívidas em pauta, conta da vida inteira.
Então, penamos. Entre brinquedos
parados no cimento e passeantes silenciosos, levados por sombras de
animais, restos de sentimento.
Eu falo também o que penso. Abelardo
(como gostamos às vezes de chamar nosso próprio pai) me disse que não vai
demorar e um dia acordo feito um adolescente.
Um rapaz, ele quis me confessar. Um
homem (eu guardei essa mensagem bem dentro do meu pensamento, à espera
da passagem dia após dia)

O pior é que nunca esqueceremos essa viagem.

O melhor: é que nunca vamos sair


dela, viagem, na roda de uma história ou de herança. Mãe. Pai. Carro em alta
velocidade para chegar na outra ponta do País. Onde?
Nós dois vamos dar aqui, parados em
cima de um banco de velhos. Um Parque.

Um ponto fixo. Sim, agradeço você dizer o que está pensando


– Até onde alcanço, nós dois nunca ficamos tão juntos antes.

Estamos inventando uma forma de


brinquedo?

O LIVRO LENDAS DA MANHÃ É FECHADO –

Quando desperto, vejo Moran com o volume em cima do seu


peito na altura da gola rolê da camisa que ele não tirou para vestir a roupa de
dormir.

Nova York. Encho a boca e os pulmões, curioso para ver o


que se desenrola ao redor da casa de Jay, nosso anfitrião.
O amigo de Moran é um pintor, cercado sempre pelas
próprias telas produzidas ao longo dos anos. Em cada cômodo, há
uma história. Enquanto visitantes da Grande Metrópole temos de
cuidar para que Jay não nos paralise dentro daquela casa, que vem
a ser um relato longo, continuado em cada quadro, sempre uma
paisagem ali pintada à nossa frente
Por cima de qualquer horizonte, como a nos impedir da
viagem.
– Na verdade, estou aqui pra dar um respiro. – Moran explica
o motivo de ter viajado. Jay, o pintor, escuta atentamente o que
dizemos em meu primeiro café-da-manhã na América do Norte.
– Nosso país anda sufocante. Meio de vida, meio-ambiente,
tudo se contamina. O que é vivo está sofrendo. Parece andar pra
trás. Mais uma vez, temos de nos queixar do imenso atraso do
Brasil. O que é uma loucura, nós somos tudo que há de novo!

(Jay nos oferece syrup – um melado típico dos EUA – para


cada fatia de pão)

Tudo isso não tem lógica, quando vemos a força, a


inteligência, a riqueza de nosso País. Haverá sempre alguém a dizer
isso – de uma forma e mais outra. Como seu eu fosse um repetidor,
um homem mecânico, o ventríloquo de um discurso de fundo,
ameaçado, infindável.
Muitos anos já se passaram, como se eu estivesse falando pela
boca de um outro (sobre o incansável Problema-País). No meio da
frase alheia, arquiconhecida, exausta de tanto ser dita.
Até que um dia – sempre um anunciado dia parecido com a
noite mais profunda –, cada um de nós esteja para começar o dia
que a vida merece, feita de muito sol, muita gente. Muita muita,
movida pelo embalo noturno que eletriza e celebra, enfim, o
sentido de existir.

A vida entendida como uma viagem (Jay complementa,


passando-nos batatas cozidas com ovos e suco de toranja) é algo
que se renova. A cada dia. Não é preciso esperar. Está ao alcance
da nossa mão. Como se –
A gente fizesse um gesto e desse numa pintura. A mais viva.
Um espaço aberto. Paisagem acolhedora de toda gente. Gente que
não para de surgir.
Jay nos acompanha no nosso primeiro passeio de férias.

“Se eu te disser, Moran, que nosso Império Americano está


sendo demolido dia após dia, você vai pensar que quero ser
alarmista, paranoico, que nome seja.
As referências da grande Cidade-Mundo já não são as
mesmas. Tudo de acolhedor se recolheu. Predomina o mesmo tipo
de comércio. Só comércio. Esse é o horror da hora. Parece até não
haver outra hora.
(Não fique assustado, ok Pero?)
Estou assim desde o terror de 11 de Setembro de 2001(ah,
ataque ao World Trade Center, comércio que nunca para, projeta
novas torres).
Depois de um tempo, tudo ganha um significado terrível:
invasão ao Capitólio impelida por pura tirania, demência anti-
democrática de um Presidente que não aceita o resultado de uma
eleição, a realidade da sucessão. Ameaça constante de guerra
contra qualquer cidadão merecedor de direito à vida. Agora o
inimigo é o próprio norte-americano contra si mesmo. O Desastre
não vem mais de fora”.

Muito amigo de brasileiros, mas não só, Jay faz


de sua vasta morada um ponto para pessoas de toda parte. Às
vezes, cobra a estadia dos viajantes, na maioria das vezes, não, o
que é o nosso caso. Desde que os hóspedes deixem ele à vontade
para receber visitas, causando imenso ruído, principalmente à
noite, principalmente mulheres entram aqui dentro. Elas se tornam
depois pinturas que avistamos ao longo da casa. Paisagens

“Para mim, soa bem forte o sentido de uma última hora. Um


golpe inesperado surge de um ponto ou outro contra a vida que
segue no embalo de muitas outras. Uma vida só pode ser muitas
outras”.

Por isso mesmo, Jay faz questão de nos mostrar o Jardim


Botânico, acessível a poucos metros de sua residência. Porque se
trata de um espaço aberto a muitos e sempre renovado.
Tudo ali dentro parece brotar em atenção às pequeninas
coisas – folhas perfeitas do tamanho de um dedo, gravetos de
árvores pertencentes a nomes antigos e enredamentos eternos
tocam nossas cabeças, juntamente com universos nascidos justo
agora, enquanto por ali passeamos. Na última hora dos mundos em
enlace com a matéria da terra ali incrustada.
Emendamos o programa botânico com um almoço grego –
um self-service especial, inseparável da aula de História e também
de Geografia contida numa sequência de quadros e tabuletas
espalhados pelo restaurante.
“Há uma apresentação – performance – aqui perto, na
Biblioteca. Será feita por crianças e idosos da região. Vamos até
lá?”
Logo o trio sai pelas ruas largas do Brooklyn, sem sensação
do tempo transcorrido e do espaço enganosamente breve na linha
reta que tomamos, sempre infindável para mim. São muitos blocos
a percorrer, porém há uma grande alegria ao longo do trajeto. Pois
Jay aponta para tudo que vê e dá nome. Fica no ar que estamos por
aí, pelo ar, despreocupados de solo e sola de sapato.

À medida que a noite chega, começa a dar uma espécie de


aperto na cabeça e no coração –
Tudo vivido durante o dia vai desaguar no quarto jeitoso,
forrado de pinturas sempre a nos distrair, porém pequeno. Muito
pequenas, as coisas se mostram ao redor, no compasso da noite a
cada segundo, até ser instalada enfim.
Fico pensando – nada digo, contudo, a Moran – se não tenho
o mesmo modo de sentir tudo apequenado por conta do
apartamento dividido com mamãe. Embora o quarto da casa de Jay
seja espaçoso, percebo tudo pequeno. Olho, então, para a capa dura
do livro brasileiro escrito com o nome de Dadi Dias –
Ilustrações de Jay Zabriskie –
Lendas da Manhã –
Começo a ficar mais perto de pai (quer dizer, Moran)

Sua voz é boa, tem ressonância. Tem algo ali profundo e


contínuo, parecido com o abrigo de uma caverna ou, então, de uma
cápsula pelo espaço –
Um mapa grego, talvez, uma escadaria estrelada por onde
criancinhas e pessoas muito velhas nunca saem do tempo alongado
de uma performance.
Sim, tem essa denominação o que vimos à tarde na
Biblioteca. Crianças e velhinhos contam a história do bairro, por
vezes se utilizando de roupas históricas, barbas postiças, pinturas
pelos rostos. Tudo o que foi vivido tem uma forma de retornar. Foi
esse o sentido da tal performance?
Nada sai do lugar (por isso, a apresentação dentro de uma
Biblioteca). Embora varie sem nunca cessar.
Quem sabe, o contrário: tudo vive de variar, justamente
porque não cessa de correr atrás de seu lugar.
O que chamamos de lugar não se vê mais. No entanto,
perdura, pertence a algo misturado com memória e corpo. De tal
jeito, que tão logo fechamos nossos olhos, mesmo sem dormir, tudo
ganha uma cor vivaz.
Toma a cena inteira da vida a escorrer em outro minuto, na
realidade de um outro local.

Desafio. Desfiladeiro – Até que a gente entre no sono demora.

– Pense naquilo ocorrido no parque. Ou melhor, nem pense.


Deixe que as coisas cheguem. Igual a um desfile.
Não adianta ter controle, preocupação nada resolve. Pouco
serve acrescentar qualquer palavra onde se agita nosso pensamento.
É coisa de manter os olhos fechados, Gu.
Posso falar alto o que me vem (não na cabeça). Aquilo em
transformação quando nossos olhos descansam do tanto visto.

Só assim há o sabor de uma viagem.


Você me disse. Estou tentando. Não digo
dormir, simplesmente. Já que aquilo vindo no sono nem sempre significa
sonho. Tem já a ver com o próximo dia. Quando não é um tempo perdido,
muito nosso. A nossa vida mesmo, não é, Géa? A vida que continua e quer a
gente aqui mesmo.

Primeiramente, a criança vai se formando aos nossos olhos.


Boba. A criança boba (assim nós a chamamos, sentados feito
pedras no parque, pedras formadas por um banco-de-parque)
Chega até nós (A Criança), sem conseguir completar a menor
(Boba) palavra existente nesse mundo.
Nesse nosso mundo mesmo – tão próximo quanto distante,
caso alguém consiga ou não falar uma palavra.
Para que adianta tanta coisa pensada (quero dizer, desejada)
se a gente não fala: antes e depois da coisa acontecer. De algo ter
sido nosso porque acontecido.

A Criança Boba pode perder um dia inteiro, nada sofrendo


por isso (padecimento de quê? ela não se chama de Criança Boba,
está livre de qualquer expressão). Tem chance de ficar ali atolada,
apaziguada no meio da terra com alguma água a amolecer o solo
deserto do parque. É o que seu acompanhante diz. Uma babá no
masculino.
Um babá? Que nome dar?
Be-a-bá. Toda criatura, por mais antiga que seja, cai nessa de
voltar ao bê a bá.
O tal babá chama-se Roderico. Apesar de sua cara meio
contrariada, ele é fácil de conversar. Diferentemente da Criança
Boba, dá impressão de transmitir tudo que vem à sua mente.
“Quando vocês dois passarem por aquilo que chamamos de
Amor vão me entender.
Estou aqui por conta dos desvios. Descaminhos – ele destaca
o termo – causados pelo tal do Amor.
Não tenho onde morar, então me submeto. Não, não, eu adoro
Bubi. Minha vida melhorou com ele. A gente tem amor de tudo que
é forma.
Talvez por considerar que somos
crianças, ele conta sem dificuldade tudo o que é e soa como sua vida a afogá-
lo, pronta para escapar em qualquer paradeiro. Não cessa de falar (como se
tivesse aprendido de cor o monólogo de um outro, sem intervalo, entre os
pontos de uma frase e sua voz)

Eu falo assim porque um dia tive casa. Morei com alguém


durante anos. Mas Amor desanda e de repente não se chama mais
com esse nome aquela pessoa já lançada para outra parte da vida.
Não será para outra parte do Amor?
Sem sair Daí

(Onde)?”

Começa a escurecer, com ameaça de chuva grossa. Roderico


retira Bubi da terra rabiscada por um rastro mínimo de água.
Na franqueza, devo dizer que a Criança está mais para Bubi
do que Boba: existe algo no pequeno pântano de terra e água a
enraíza-la por lá; um motivo só pertencente a ela mesma, talvez um
segredo impossível de caber nela, capaz, no entanto, de paralisar as
pessoas à volta.

Os dois dão um sorriso para nós, entretanto têm muita pressa,


desfazendo a conversa. Justamente, quem disse tanto de si agora
parte. Roderico – ou Beabá ou ainda Babá – se abriu tanto. E o
tanto que foi dito não parece nesse momento ser coisa dele mais.
Uma confissão passada para quem esteve à escuta e agora se
tornou realidade só nossa –
Uma confissão repentina e a cena de uma criança parada,
abobada no meio de terra e um fio d’água –
Uma vida que não se completa, apenas enquanto encontra um
confidente, repentinamente, sem oportunidade de resposta, de
retorno. História revelada no extremo de um segundo.
Palavra séria, contudo bem breve, se lança no ar. Não cessa,
apesar da voz de quem falou não estar mais aqui.
Na real, não veremos nunca mais os 2.

A sorte é que não demora 5 minutos e uma Senhora passa a


ser observada. Tem a aparência de morar há anos dentro daquele
parque e nós não havíamos antes percebido

Senhora

Só agora ela entra em nosso campo-de-visão.

Não demora a conversar. Somos atraídos com muita


facilidade para aquela área – uma orla muito chamativa (suas
roupas têm muitas cores e ela se pinta). Apesar de solitária, não
parece ser alguém estranha, arredia.

“Fiquem sossegados, não sou uma pedinte.


Nada tenho a ver com uma mendiga”

Foi sua primeira palavra. Nem sei a razão. Ah, sim, com
meus olhos bem cerrados, entendo. Bem de perto, as roupas de Senhora estão
esfarrapadas. O rosto lustroso na cor e no cheiro passa imediatamente o
contato com rachaduras. Não são necessariamente rugas. Sulcos. Este é o
nome certo. Senhora parece um monumento.
Fica mais forte quanto mais parece ruir. Então,
Senhora fala. Como se transmitisse uma reportagem. Sobre o que estamos
vendo em conjunto naquela hora vazia, como que feita de nada.
Diná Medina Fava

Apertem minhas mãos, por favor.

Nada de medo, hein?

Não sejam tão educados, enredados nalgum tipo de temor. Eu


lá sou um brinquedo?
Por acaso estou morta?
Toquem as pontas de meus dedos. Mãos dentro das outras.
Boa Tarde.

Sempre serei uma espécie de mestre-de-cerimônias.


Uma apresentadora de programas diários.
Assim tive o meu próprio espaço de notícias na TV paulista.
No cair da tarde, em certo tempo, eu aparecia aos olhos de
todo-mundo e dava uma estonteante audiência para aquela
emissora, Canal 7

Diná Medina Fava apresenta


E Anuncia –
Todo tipo de história – fato, arte, comércio e crime – aparecia
na minha sala-de-visita.
Eu fui depois Repórter Internacional, mas perdi meu rumo
quando acompanhei as guerras na Albânia.
Desde lá, ali, então, não fui a mesma (Isso eu só conto a
vocês, meus dois amores).

Na verdade, fui atingida por algum destroço de guerra. Do


próprio tempo (para ser bem precisa). Do tempo surgido de tudo
quanto é lugar.

Perdi o contato com a TV durante anos.


Perdi o contrato. Fui andarilha pelas bandas do leste da
Europa. Até dar no Oeste do resto dos mundos, sem nenhuma
geografia certa.
Tive chance de retornar ao Brasil com um nome clandestino.
Mas não se esqueçam de

Diná Medina Fava

Eu nasci com esse toque de noticiar o que acontece. Mesmo


quando nada acontece. É bem aí que eu entro

Sim (não sei porque gosto tanto de vocês 2 e tudo confesso).


Isso mesmo, eu passo os dias no parque.

À noite, deparei com um alojamento onde só faço dormir e


comer; mal amanheço: um gole de café mais um ovo cozido. Ah,
antes vem uma banda de laranja descascada. Uma empregada de lá
me arruma tudo, assim por pura simpatia. É que nasci na terra da
mãe dela. Deve ser por isso.
O ovo me segura por todo um dia.

Ah
Ah, pois não –
Isso sim, o motivo de estar contando tudo. Assim de graça,
para esses irmãos tão queridos. Nada tem a ver com uma razão de
fundo. Ou seja, o ganho de alguns cobres (palavra tão antiga, porém
necessária a cada hora que passa).

Uns cobres, por seus préstimos. Não, não, eu jamais disse


isso.
Nunca me esqueço da dignidade que deve ter uma
Anunciadora de Notícias. Apresentadora da mais simples sala-de-
visitas.
“Você aí, minha Senhora, não pense que sua vida é mais
difícil do que a de outras.

Olhe bem ao redor sua toalha de plástico xadrez em cima da


mesa um dia sim outro não repleta ou refeita do mesmo arroz e
fruta caída da árvore de todo dia
Minha senhora, a mais distante e pequenina,
Sua vida tem beleza pelo simples, pelo simples fato de ser
inteiramente sua. De mais nenhum outro alguém em qualquer local
desse nosso mesmo mundo.
Pense nisso, Senhora. Assista à sua história como uma
aventura, um programa que se desenrola de um jeito nunca igual a
outro mais”.

Eu sempre fui uma prestadora de serviços, minhas crianças.


Além de cobrir os fatos, os problemas incessantes em toda
parte do planeta, tinha a missão de me ocupar do que está a zero, o
menor do menor e logo aumenta o zero (não importando se pra
frente ou mais pra trás), círculo contínuo

Do mais miúdo sempre fiz toda uma vida (as conversas com
as Senhoras da Tarde em meu Programa de Variedades, de tudo se
falava, desde corte-e-costura até transtornos de almas, tendo a
presença de psicólogos afamados, juízes de família e até videntes
sem religião)
Até o mais dramático campo da política do Globo, lá estava

E aqui estou – Diná Medina Fava –

Jamais esqueçam do meu nome

“Não reparem, eu falo assim, porque eu mesmo posso a


qualquer momento me esquecer”

Dizer meu nome dá fibra


Árvore que não entorta
Povo guerreiro perdido logo reunido no corpo daquele lá mais
anônimo, alheado de tudo
Senão

Pólen –
Diná Medina Fava fica de repente calada. Transmite
para nós dois ali perto dela um senso de que está petrificada. “Virou
o ovo”, como se diz.

“Virou o disco”, vai ver que é isso, porque nenhum som


mais ali se executa.
Chegamos a ter medo. Será uma espécie de doença? Ou
uma crença crônica nela mesma? A um ponto que não tem onde se
firmar e nem mesmo através de um nome repetido, anunciado,
apresentado, alguém consegue sair de onde se meteu

Pólen –
É o que passamos a observar.
A matéria desprendida pelas árvores.

Só isso faz acontecer nossa estada no parque. A observação


de que no ar há algo que risca o plano liso, duro, das coisas. Até
dança. Fios estrelados tão frágeis criam uma coreografia enquanto
vão se dissolvendo. Parecem projetar a ilusão de nossos olhos, não
quando estão fechados, mas bem abertos: para tudo aproveitar
dessas férias. Talvez as últimas ao lado de pai-e-mãe.

Pólen –
Diná Medina Fava vai ficando lá no fundo do parque.
Uma paisagem tremida, estremecida. Vai ficando borrada, embora
seja firme feito pedra sua presença. Muito viva, por vezes
entrecortada por sua própria fala (ágil em tudo contar).
Ágil de modo a tudo interromper.

Eu e você – quem sabe, juntos, certamente,


separados com o rolar dos anos – poderemos viajar. Com toda clareza, vamos
crescer e tomar rumo. Só que do mesmo modo, nunca mais.
Nunca teremos férias como essas.
Solitárias, tecidas no vazio, que sejam.
Nunca iguais.
Lendas da Manhã –

O livro está terminando.


Depois de três dias na viagem com meu pai, não haverá
propriamente um volume de onde ele possa retirar uma história
quando a noite avança de novo. Quarto-de-hóspedes onde tudo dói
porque se mostra transitório – bem sei do meu retorno ao
apartamento mínimo ao lado de mãe. Só que aqui tudo também
causa aflição. Melhor seria dizer antecipação.
Por estar em viagem num país estrangeiro e já compreender
muita coisa sobre o que estou vivendo e vou viver, saio fácil da
linha relativa à minha idade.
Linha corrida. Linha percorrida com a sensação frequente de
estar sempre num quarto-de-hóspede.
À espera da voz que seja uma forma de abrigo. E de lá venha
uma história. Uma espécie de viagem.
Não existe nenhum outro livro infantil espalhado pela casa de
Jay. Esse, recém-lido, se deve ao fato de nosso hospedeiro ter
criado as ilustrações.
Agora é meu pai que vem conversar sobre as coisas ocorridas
durante o dia.

Falamos seriamente sobre o futuro – em torno do que ele mais


teme e, também, daquilo imaginado para mim. Às vezes, queremos
avistar o que está à frente, rindo com isso: de nunca se mostrar de
todo.
Riso solto diante daquilo nunca se mostrar (nem mesmo o
compreendido como já passado segundo nosso presente, na ânsia
primeira de todo futuro).
Assim, nos entretemos durante a noite.
Ainda temos mais uma semana de férias. Com alegria, vejo
que todas as noites conversamos como se fossem histórias
inventadas sobre nós mesmos.
Um jogo e trajeto pelo já acontecido. Também se dá em torno
do nunca sabido lançado logo para a frente. Continuam (jogo e
trajeto) a ser uma sequência de

LENDAS DA MANHÃ –

Não há temor, terror nenhum quando um livro se acaba,


desprovendo o leitor de seu anteparo. Não deixamos de estar numa
forma de livro (assim como todo livro é escrito e lido, ilustrado e
vivido, ali posto à procura de alguém)

De repente, no meio da nossa conversa, percebo que eu e meu


pai relatamos, numa nítida sequência, algo vindo de um para o
outro.
Não tem mais nenhum narrador, nem uma linha fixa de fim
ou começo. De um ao outro, sem predomínio de um sobre o outro.
Escuto, emito. Percebo:
Contamos o que está acontecendo agora e enquanto isso
ocorre temos os nossos olhos fechados

RELATO À BEIRA DO SONO

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