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EXISTÊNCIA SEM PAPEL –

MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA


DO VAMPIRISMO PONOGRÁFICO
Tiago Cfer é escritor, pesquisador e tradutor. Seu ensaio
Desabrigo-mundo: narrativa século XXI será publicado neste ano.

VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO

Os livros com os códigos de lei do juiz de instrução sobre a mesa


de uma sala de audiência vazia estão repletos de imagens pornográficas, é
o que verifica Joseph K. em O processo. Kafka entrevê o paradigma da
pornografia tornada metonímia dos litígios do século em que escreveu.
Mais recentemente Paul B. Preciado demonstrou que no contexto
da Guerra Fria a forma-de-vida Playboy fez emergir uma sexualidade
multimídia1 a nível global. As guerras e guerrilhas topológicas da
segunda metade do século XX se dão sobre o pano de fundo da indústria
pornô e do tráfico de armas e drogas em âmbitos transcontinentais.
Viagens, exibições, comércios, consumição desenfreada de objetos e não-
objetos, entorpecentes de todas as espécies e lugares do planeta. Trocas
de papeis, complôs generalizados, disputas/slans culturais,
prestidigitações, publicidades, são alguns aspectos do socius que emerge
simultâneo à propagação da arquitetura playboy. Trata-se da edição
comportamental americana concomitante às crises e guerras
televisionadas do petróleo. Guerras sem sangue, destruição/reciclagem de
corpos e culturas apresentados e transmitidos como imagens – povos,
hibridações coletivas ganham matizes espectrais em telas e valas – para o
entretenimento audiovisual nas grandes ou pequenas mansões do império
televisivo.

1
PRECIADO, Paul B. Pornotopia – Playboy e a invenção da sexualidade multimídia.
Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: N-1 Edições, 2020.
The Addiction/O vício (1995), de Abel Ferrara

O que se chama, com todos os prefixos, neoliberalismo,


capitalismo, transfunde-se em políticas vampirescas distribuídas numa
incontida economia farmacopornográfica mundial. Uma produção fílmica
como a de Jean Rollin testemunha esse sintoma que permeia o cinema
pós-guerra: o das produções estéticas que extraem seu sustento do sangue
do mundo – tráficos de drogas, corpos, sexo, objetos, marcas e perfis. O
diretor de Lábios de sangue (1975) estreia um gênero nos anos 1960
lançador de luz sobre esse estranho-familiar modo de vida que se
configura na virada do século XX para o XXI, o vampirismo
pornográfico.

ERÓTICA eXistenZ

O que a ontologia da história aprende com o niilismo do século


passado é o aspecto mutante, irrestituível e infindável da existência. A
sequência infinita de cortes e rupturas entre apresentações e
representações de mundo ao longo do tempo só vem afirmar a natureza
transitória e irreparável da linguagem e da palavra, sua errância
generalizada. Agamben considera que todo “grande texto filosófico é a
gag que exibe a própria linguagem, o próprio ser-na-linguagem como um
gigantesco vazio da memória, como um incurável defeito de palavra”2.
Esquecimento e falha perseguem o sujeito que pensa, fala,
documenta. Ele faz de tudo para evitar essas propriedades da linguagem,
exilando e dissimulando-se na verdade da palavra dita, escrita, distribuída
em livros e mídias. Quer estar aí/lá apresentando-se em sua

2
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução Davi Pessoa
Cerneiro. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015, p. 61.
verossimilhança sem corpo. Seus papeis o abstêm da presença para que
ele possa fabricar, à distância, jogos de simultaneidades, encontros,
eventos cada vez mais editados e alinhados a uma ampla rede de controle
sobre a vida.
No filme eXistenZ (1999), de David Cronenberg, o jogo continua
somente quando as personagens deixam de medir suas palavras. É a
palavra desmedida que introduz a ação, dá sequência para um
acontecimento. Cada partida ganha consistência em planos
desmembrados da temporalidade cronológica sem, por isso, dissociar-se
da vida. Abre planos – superfícies para deslocamentos aleatórios,
singularidades e objetos aberrantes, biografias escritas em quarta pessoa
do singular.

eXistenZ (1999), de David Cronenberg

Uma copulação irrefreável de vidas paralelas em jogo vem irrigar


com suas fiações os canais ressequidos do desejo por meio de “bioportas”
instaladas na base da espinha dorsal humana. Derrubadas as
transcendências das designações, as profundidades e alturas patológicas
dos comandos morais, o sujeito em jogo, desajustado, revela-se na
superfície dos gestos que encenam, em sua hesitação desmedida, uma
atuação desdobrada em dimensões que extrapolam os eventos e as ordens
dos dias. O jogo como efetivação da ficção desobriga a linguagem
humana de sua tarefa mais imediata de classificar e inventariar a morte,
ou o que morre. Solta o ato de criação na liberação de formas de
existência inéditas que implicam a individuação do indivíduo criador,
garantindo assim sua vitalidade, modos de duplicação “no calor” dos
acontecimentos.
Talvez seja com a filosofia existencial de Kierkegaard que o
discurso filosófico tenha restituído seu direito de tomar os “princípios
como gritos, em torno dos quais os conceitos desenvolvem verdadeiros
cantos” (Mil platôs). Se para Hegel a filosofia sempre chega tarde
demais, com Kierkegaard ela inicia seu despertar para a noite. A coruja
de Minerva levanta voo ao cair do crepúsculo. Enquanto o pensador
humanista estanca melancólico em sua pátria, numa consciência
crepuscular refém de suas próprias especulações, o pensamento
existencial alça voo para uma filosofia noturna e visionária. Diferentes
animais biográficos compõem a cena primordial da filosofia moderna.
Mas o que é isso, a filosofia?
“No tocante aos conceitos existenciais, o desejo de evitar
definições é uma prova de tato”, anota Kierkegaard em seus Discursos
edificantes. O dado originário da filosofia deixa de associar-se à
admiração das formas e descrições intelectuais para ligar-se às
informidades da existência. Enquanto a filosofia especulativa fez da
necessidade sua norma de conduta, produzindo ideias e escolas baseadas
em obrigações, a filosofia existencial kierkegaardiana não toma a virtude
ética como antídoto para o pecado ou a insuficiência humana, mas a
liberdade – da fé, que para o filósofo é a luta pelas possibilidades. Nos
tremores do desespero e do terror, o pensamento se transforma e adquire
novas formas e forças.
É notável que imperativos éticos aparecem em momentos em que
o pensamento especulativo necessita declarar à humanidade o que ela
deve fazer, sobretudo quando as ordens colapsam, tal como nos mostra a
história da razão. A filosofia da existência de Kierkegaard se desprende
desse pathos lançando-se ao incognoscível. “Sacrifica Hegel, suspende a
ética, renuncia à razão e a todas as grandes conquistas que, graças à
razão, a Humanidade tem podido realizar ao longo de sua história
milenar. Frente a tudo o que até então haviam ensinado seus mestres,
responde, como em uma espécie de sonho, não por meio de palavras, mas
por meio de sons quase incompreensíveis para nossa inteligência. Para ser
mais exato: não responde, uiva”3.
O ataque às leis eternas da natureza por meio de alaridos e
maldições – vozes clamando no deserto – confere forma a uma filosofia
completamente despojada das regras e competências da ética racional,
estadista, ativando no discurso filosófico tonalidades eróticas capazes de
convertê-lo em destino (inventado) contra o destino (dado).
O “ódio indestrutível” de Kierkegaard – como observa Léon
Chestov, indestrutível justamente por não causar destruições, mas ativar
as forças da criação – contra “o ético”, que é seu modo também de
glorificar uma nova ética, não pautada na promessa e na esperança, mas
no desespero e no espanto (novamente a filosofia tem restituído o seu
3
CHESTOV, Léon. Kierkegaard y la filosofia existencial. Traducción de José Ferrater Mora.
Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1947, p. 64.
direito de tomar os “princípios como gritos...”), faz de sua filosofia e seus
livros uma espécie de mostruário das atrocidades justificadas pela razão.
Da crueldade do absurdo a loucura vem mostrar – e não dizer –
aos vícios racionais os mecanismos de seu desespero. Como o vampiro
recluso, abstêmio de sangue há quarenta anos, Peina (Christopher
Walken), do filme O vício/The Addiction, mostra à protagonista Kathleen
Conklin (Lili Taylor) depois de capturá-la num contragolpe que a leva
aos limites do delírio: “O vício tem uma natureza dupla: satisfaz o apetite
que gera o mal, mas também vaporiza nossa percepção para que
esqueçamos as doenças que temos. Bebemos para esquecer do fato de que
somos alcoólicos. A existência é a busca do alívio do nosso vício. E o
nosso vício é o único alívio que encontramos”.
Diante de monstros vampirescos, tornar-se o vampiro de si. O
doppelgänger, como a figura do sósia, faz do vampirismo a arte de ver a
si próprio4. Na luta empreendida por Kierkegaard pela liberdade, essa arte
adquire condições de “movimentos estranhos, com frequência
incoerentes, às vezes quase convulsivos” (Léon Chestov).
A ira, a coragem de romper radicalmente com o vigente para se
elaborar um novo estado de vida, é o lugar na filosofa onde Eros e
política se tocam. O momento em que a escrita devolve àquele que
escreve, duplicado, tudo o que ele então já tinha. É quando ocorre a
transfiguração filosófica: “A fortuna de minha existência, sua
singularidade talvez, está em sua fatalidade”, escreve Nietzsche em Ecce
homo. No limite, a vida escrita encontra a repetição. Jó repete-se em
Kierkegaard que repete-se em Nietzsche que repete... O desespero e a
paciência incerta do profeta, manifestos contra a neurose das explicações
necessárias que ratificam a filosofia especulativa, incidem como
disparadores de erotismo na palavra. Se bem sustentados esses
stimmungen, eles coroam a vida, fazendo convergir existência, arte e
política num jogo ilimitado de criação de signos.
Como escreve Friedrich Kittler a respeito de Nietzsche: “Não
existe negação ou oposição ao prazer trágico. Ele se encontra na própria
criação de signos”5. No gesto criador, a palavra irradia dos itinerários da
vida – nascer/morrer – com sua positividade trágica: “quando a verdade
sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções, um
espasmo de terremotos, um deslocamento de montes e vales como jamais
foi sonhado. A noção de política estará então completamente dissolvida
em uma guerra dos espíritos, todas as formações de poder da velha

4
Carvalho, Bruno Berlendis de (org.). Antologia do vampiro literário. São Paulo: Berlendis
& Vertecchia, 2010, p. 506.
5
Kiettler, Friedrich. A verdade do mundo técnico: ensaios sobre a genealogia da atualidade.
Organização Hans Ulrich Gumbrecht; tradução Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto,
2017, p. 54.
sociedade terão explodido pelos ares – todas se baseiam inteiramente na
mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre a Terra. Somente a
partir de mim haverá grande política na Terra”6.

(continua)

6
Nietzsche, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad., notas e posfácio
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 110.

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