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JOÃO TOMAZ PARREIRA

VERGÍLIO FERREIRA: PERSONAGENS


PARA INTERPELAR DEUS
A RELIGIOSIDADE ENTRE APARIÇÃO E MANHÃ SUBMERSA

2009
VERGÍLIO FERREIRA: PERSONAGENS PARA INTERPELAR DEUS
A RELIGIOSIDADE ENTRE APARIÇÃO E MANHÃ SUBMERSA

Por João Tomaz Parreira*


No século XVII, Pierre Corneille foi censurado porque ajuizou em uma das
suas obras, a tragédia clássica Polieucto, que a religião tinha mistérios (o
Divino, a morte, o destino, os temores). Ela despertou alguns escrúpulos
religiosos também por se sustentar, nessa época, que o Cristianismo não
deveria ser tema de obras de teatro.
Anteriormente, no decurso da Idade Média, a Civilização greco-romanae
judaica subsistiu por causa do Cristianismo, e por esteser a religião do Livro
Sagrado como símbolo, até que a Renascença – que benificiou de ambos-
enveredou por privilegiar o conhecimento da Natureza e por incensar o
Homem.
Por fim, os próprios teólogos do século XX acharam normal interrogar a
literatura para nela encontrarem um testemunho sobre a fé e sobre a
descrença, sobre o significado da existência do Homem e de Deus, ou sobre a
alegada ausência divina, ou em alternativa, sobre a humanidade trazer o rasto
do divino. (Ferreira:1972:87)
A literatura, admite-se sem dúvida alguma hoje, interpela o homem, porque é
fruto de opções fundamentais do interior do espírito humano e de todas as
instâncias envolvidas no processo da comunicação literária. Alguém escreveu,
ainda num tempo que estava entre os romances existencialistas e o novo-
romance, nos princípios da década de 60, que «a verdadeira literatura é uma
obra criadora de beleza, mas também é testemunha das opções fundamentais
do homem face a Deus.» (Moeller:1966:175)
Modernamente, as personagens não são apenas criaturas ficcionais, algumas
vezes são o próprio narrador-autor-personagem (Palma-Ferreira: 1972:18), sendo
atravessadas na sua estrutura psicológica e espiritual pela História dos homens
e pela História de Deus. Existem, enquanto ficção da realidade. O herói, já o
disse Lukács, choca-se com o Mundo.
Designadamente no romance onde desde Dostoievski, Melville ou até Joseph
Conrad, em minha opinião, se assiste à proposta humana de Deus fazer parte
de um problema e não de uma solução, o que é, a meu ver, típico de uma certa
propensão já para um existencialismo, metafísico e aventureiro, do século
dezanove, que se converte depois no existencialismo da década 50. O
existencialismo que desce dos altares da fenomenologia e passa para o grande
público ledor do «noveau roman» ou do romance-problema, da chamada
«literatura de crise» que teve como profeta Kafka e seus oficiantes, Sartre e
Camus ou Malraux e outros acólitos, dos quais destacaria aqui Alain Robbe-
Grillet com o seu «romance do olhar».
De um modo ou de outro, passadas já algumas décadas sobre este tipo de
literatura, em busca do transcendente Vergílio Ferreira deu continuidade às
suas interpelações, que persistem hoje ainda a explorar mais os alegados
silêncios do que as vozes do divino, mais a alegada distância de Deus do que a
Sua proximidade real da Criatura humana.
Escrevia substantivamente um dos maiores especialistas da obra vergiliana,
Robert Bréchon, que «todos os seus persongens se sentem tão perdidos, tão
nus, tão insólitos como o primeiro homem se deve ter sentido» (Bréchon,
1992:350)
Parte da vastíssima bibliografia de Vergílio Ferreira continua, também por isso,
a ser impar, nessa observção, mas, também, na procura de uma luz e de uma
beleza poéticas, sendo fundamentadamente obra de epifanias sem obsessões
ideológicas (do ponto de vista das ideias políticas, anti-culturais ) como primeiro
neo-realista, e a seguir pelo rigor e originalidade com que na história da
literatura portuguesa da segunda metade do Século XX, inscreveu a metafísica.
Assim, é sempre com alguma frequência que se liga a palavra romance ao
termo problema, «romance de problema», disseram alguns críticos, quando se
trata de caracterizar a obra romanesca do nosso escritor. O próprio autor
chamava-lhe romance «problemático».
A natureza dos circunstancialismos em que se encaixam as suas personagens,
a natureza do conteúdo, do carácter, do temperamento, do comprometimento,
das necessidades e das grandes motivações das mesmas, leva-as a um
permanente questionar.
A verdade é que, quando se procura respostas exclusivamente humanas sem
Deus no plano para a vida diária, o acto de perguntar no ser humano começa
por uma escala de valores com grandes esperanças que desemboca na
frustração; uma das personagens-chave do romance vergiliano(Ferreira:2002:102)
afirma que Deus lhe interessou como ponto de partida e não como meta, no
entanto após ter tido de Deus uma visão utilitarista, afirmou «tenho um Deus
para me tomar conta da vida e da morte»(Ferreira:2002:38)
Vergílio Ferreira sabe colocar este dilema na vivência das suas personagens,
que existe uma « problemática que vai do problema da morte ao da angústia,
ao da náusea e do absurdo » até ao problema da transcendência divina. –
Como afirmou noutros lugares. Porque ele sabe que o transcendente é
inevitável e mesmo que se subsuma em humanidade traz ainda um rasto do
divino - segundo defendeu no prefácio à edição portuguesa da conferência-
ensaio «O Existencialismo é um Humanismo» de Jean-Paul Sartre.(Sartre e
Ferreira:1970)
Não obstante, o seu universo ficcional que propõe soluções existenciais é
composto de homens e mulheres que não deram uma oportunidade a Deus no
sentido de os salvar - como é manifesto desejo de Deus.
Vergílio Ferreira tal como Sartre, o teorizador da angústia como lhe chamou no
ensaio Da Fenomenologia a Sartre, faz passar nos seus romances a
preocupação metafísica e religiosa, mas como aquela mesma ideia que
Unamuno defendeu, em 1926, segundo a qual «el fondo de la tragedia
universal es: Dios se calla» (Moeller:1966:182)
Mas, supostamente, o silêncio de Deus – perguntamos- não advirá de o diálogo
do homem ter sido apenas terreno, com o próprio homem no materialismo, no
agnosticismo e, hoje, no pós-modernismo, transformado num diálogo que não é
estabelecido com Deus e através de Cristo?
Por estas razões, as personagens de Vergílio Ferreira, dotadas de inquietações
várias, confrontadas com a precaridade da sua situação, marcadas por
situações-limite, são profundamente humanas. São personagens que, como há
40 anos escrevia VF no «Diário de Notícias», põem um «problema de vida». E
isso implica uma interpelação espiritual, diversa obviamente da indagação do
filósofo porque este especula, pergunta e não responde - o que é, de resto, da
natureza da inquirição filosófica.
Ao contrário, o nosso romancista vai ao interior da vida humana para de lá
trazer uma centelha de luz, uma centelha do divino, porquanto no fundo reside
um apelo latente «a uma transcendência qualquer, divina ou outra», como
propõe a prof. Isabel Cristina Rodrigues, da Universidade de
Aveiro.(Rodrigues:2000:)
Embora como veremos adiante, a centelha de luz nas suas personagens, não
obstante a formulação poética, possa ser a sua aparição num mundo sem
respostas celestes, segundo o autor, a aparição do eu a si próprio como um
sinal de alarme. Tematização central no romance vergiliano, afirma-o Óscar
Lopes: «o alarme ou aparição de mim a mim próprio»(Lopes:1969:28)
Parece-me, no entanto, que não podemos prosseguir no questionamento do
romancista sem que percebamos, desde logo, este seu problema, que o
ensaista Eduardo Lourenço, um dia, bem definiu: «Vergílio Ferreira insiste em
procurar respostas para a questão humana sob um céu que considera vazio.»
Por isto, procura essas respostas através do protagonista que é o homem
iluminado, fulminado pela sua consciência do mundo, tal homem que o escritor
coloca em cena, em situação dramática que o escritor chama a si, para uma
«ideia-emoção».
Assim, segundo um ponto de vista fixado no existencialismo de Vergílio
Ferreira, os seus romances mais formais nessa linha procuram num esforço
humano dar respostas à alegada não-resposta celeste, e os problemas que
colocam são bem realistas. De resto, o escritor quando escreveu Mudança em
1949, o seu primeiro romance maduro, potencial e intencionalmente
existencialista, embora já estivesse integrado pela força das circunstâncias
literárias no Neo-Realismo da década de 40, iniciou a mudança da consciência
social, colectiva, para a consciência crítica das contradições metafísicas do
mundo, fazendo a passagem do nós para o eu, do indíviduo no meio social
para o homem na vivência do Eu. Não raras vezes debatendo-se com o
problema crucial de justificar a existência: «O meu problema é justificar a vida
em face da morte» - era o problema de Alberto, protagonista de Aparição(A),
que nunca mais soube inventar outro, no fundo a chamada problemática
ontológica de Alberto Soares. Personagem-chave de A, é, como se sabe,
aquela que transporta para o dito romance toda a estruturação das questões
existencialistas, como a justificação da vida e da morte. Ou a adequação desta
à vida, o que era em Alberto Soares um problema metafísico a resolver, «o
problema de morte-vida».
«Muitos romances de VF começam por uma cena fúnebre onde se vê o herói a
velar o corpo de um ente querido»- perante a certeza da morte, sem dúvida
sistemática, esta é uma observação cartesiana algo discutida em colóquios
sobre o autor.(Colóquio/Letras: 1992:123)
Por isso mesmo, focaremos adiante o seu romance como um dos que mais
coincide não só com a designação apropriada de romance-problema, com a
busca de uma religiosidade problemática, chegando a fazer parte das
preocupações explícitas de diferentes personagens de outras obras de ficção,
como Rumor Branco, de Almeida Faria, em 1962, com prefácio polémico de VF.
Os jovens literatos do enredo daquele romance acusaram o peso e a
impressão que lhes terá causado a leitura de A, porquanto a dado passo um
desses protagonistas afirma: «Tenho de justificar não já a vida.. mas a morte ao
contrário de Alberto Soares ».
A religiosidade de Vergílio Ferreira em A está assim estabelecida entre estes
dois polos fundamentais do Ser, a vida e a morte, a eternidade e a mortalidade,
sendo também uma religiosidade de ausências, no que ao divino concerne.
Perante este apelo fundacioal do Ser, Alberto, o protagonista-narrador, não se
distancia da sua narração, como compete de resto a um narrador que
estabelece a trama, a intriga da sua própria história. Diria que Alberto Soares,
entre o pensar a vida e a morte, se criou a si próprio como personagem, a partir
das várias aparições que desde logo lhe conseguimos apontar, desde a
primeira página numa espécie de «corrente de consciência», ou monólogo
interior:
- A Aparição das coisas, a tomada de consciência dos objectos
- A Aparição do «nous», do pensamento, das ideias
- A Aparição ontológica do Ser
- A Aparição de sia si próprio, a epifania do Eu
“Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser
vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em
que – continua o autor – agora descobrira qualquer coisa mais que me excedia
e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no
desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa entidade
misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava”(Ferreira:1969:)

- A Aparição do humano contra o divino


- A Aparição do absurdo da morte. («A iluminação da vida perante a evidência
da morte»)
Começando pela relação criador/narrador, Vergílio Ferreira faz invocar ao
protagonista de A, o professor Alberto, que Deus está morto porque sim, no
entanto esta alegada constatação não radica em nenhum nihilismo
nietzcheano. O autor de Cartas a Sandra (1996, seu derradeiro romance), é
um autor sério na sua busca de religiosidade, e afirmou-o, «o invisível e
incognoscível é donde nasce o que vale a pena conhecer»( Ferreira:2001:17). Isto
é, o que se não conhece é definitivamente o oposto do nada.
O porque sim parece-nos falar de algo que se constituía como necessário, que
era uma inevitabilidade produzida de dentro, não de dentro da própria entidade
divina, mas do interior da própria personagem que, não obstante, se afirmar
como não sendo crente (Ferreira:2002:39), tocou no entanto em algumas
verdades – Deus, a imortalidade,o sagrado, a palavra religiosa, que se foram
gastando pelo mau uso.
Assim, é outro o tipo de morte do divino que o autor tematiza, é a morte pelo
uso, uso religioso, uso reflexivo, proclama a mesma personagem do romance,
que Deus se lhe gastou. (Ferreira:2002:46)
«Deus gasto» ou a Sua ausência, é a religiosidade presente na obra A, a qual
vai no mesmo sentido de M S, sendo este romance, no entanto, mais uma
descrição de uma certa religiosidade institucional, do que uma manifestação de
religiosidade do próprio autor.
Em A, a busca da religiosidade é filosófica, diria que é um exercício de
analogia entis, um regresso ao mais profundo dos anseios do Ser, o anseio
espiritual, sobretudo. Já no romance M S, tal busca é meramente formal e, por
assim dizer, funcional e eclesiástica.
Em M S, a religião tradicional do nosso país tem aí uma responsabilidade moral
no conduzir à rejeição do divino por parte do herói, ou dadas as circunstâncias,
do anti-herói do livro. António Borralho, a personagem condutora do enredo, ou
da intriga do romance, é «forçado», diria que social e economicamente, a
aceitar uma vocação de sacerdócio que afinal não tem.
«-Cuidado com o que vais dizer. Reflecte um momento. Pede a Deus que te
ilumine.» - instava com o António a sua tutora, a beata D. Estefânia.
«-Eu não tenho vocação», disse o António com voz segura.(Ferreira:1983:94)
E tudo se desmoronou aí, a personagem que estava a ser construída para
servir a igreja foi destruída pela verdade interior, tratava-se de uma
personagem inventada para dar orgulho religioso a D. Estefânia.
A relação de VF com a religião, e depois com a divindade que a religião
supostamente deve identificar, terá sofrido este equívoco.
A personagem deste romance vergiliano autobiográfico sobre os contrastes
entre o acordar de uma criança para a vida e a repressão num seminário beirão
dos anos 40, é uma personagem que começa a duvidar.
Ao terminarmos a leitura de M S, compreende-se que o restante de uma
experiência dita religiosa, mais imposta de fora do que pelo próprio indíviduo a
si mesmo, acaba por ser uma experiência laica com um mergulho existêncial.
A personagem-narradora escreve no capítulo 21, o último do livro, o seguinte:
«Pouco tenho agora já para contar. Saí do Seminário, como esperava, não sei
se por ter ficado mutilado, se por enfim se reconhecer que eu não tinha
«vocação». E bruscamente vi-me diante da vastidão de uma vida inteira a
conquistar.»(Ferreira:1983:215)
À personagem António, de M S, descreve-se-lhe o mar enquanto ele se afoga
ou se debate nas ondas - isto é, estrutura-se-lhe a religião organizada em
Catolicismo Romano tradicional enquanto se debate com a vocação que não
possui e que o leva a afogar-se, a mutilar-se para lhe fugir.
Ao protagonista e narrador de A, gasta-se-lhe Deus.
A religiosidade de Vergílio Ferreira está presente, está encarcerada entre estes
essas duas experiências. Penso que a fuga acaba por se realizar, quando o
autor busca outro tipo de religiosidade, aquele que se manifesta através da
criação estética da Arte, a salvação pela Arte, que julgamos descortinar noutro
romance, o Cântico Final.
O escritor aprofundou o seu microcosmos pessoal de teor problematizante-
escrevia em 1972 o citado João Palma-Ferreira. E fê-lo após obras de realismo
imediato, de sentido social, como Onde Tudo Foi Morrendo ou Vagão J, através
de romances-problema, de meditação serena e profunda ainda sem resquícios
de nihilismo, como Alegria Breve ou Cântico Final, mas levando o tédio até às
consequências últimas da solidão da personagem atrás das grades da prisão.
Foi quando escreveu Nítido Nulo, no qual o nihilismo surge mais das
indagações do protagonista do que pelo desejo de nada.
O homem começava a confinar-se a si próprio, esta realidade encontramo-la no
acto do monólogo interior que caracteriza grande parte da estrutura ficcional do
autor, sobretudo em romances como o último citado e, de certo modo, no
princípio e no final de A.
Este romance revela uma epifania, que se não dá a conhecer colectivamente,
mas individualmente. Alberto Soares, o protagonista, ao revelar-se a si próprio,
em todo o percurso ou itinerário do romance passado na cidade de Évora - a
delimitação do espaço exterior -, vai-se gastando em indagações, relações,
desenlaces, religiosidades, ao ponto de confundir-se com o que depois
classifica de Deus se lhe gastou. Afinal o que se gastou na personagem não
terá sido o vocábulo Deus?
Ascendendo a outro patamar da escada do discurso filosófico sobre Deus ou o
seu significante, o vocábulo que na nossa língua o nomeia, recordo-me de um
diálogo dos anos 60 entre o Pe. Cottier e Roger Garaudy, entre cristãos e
marxistas, no qual se inquiria « É o verdadeiro Deus que é rejeitado ou uma
sua falsa imagem?»(Cottier:1968:48)
Não terá sido um falso Deus que se gastou em Alberto Soares? Este não seria
mais um negador da religião sem que, no fundo da sua alma, fosse um ateu?
Em todo o caso, à epifania ou aparição de um ser aos seus próprios olhos
sucede o desaparecimento de outro, o alegado desaparecimento ou o desgaste
de Deus.
«Aquilo de que falo está dentro de mim, sou eu» diz o protagonista de A.
Apesar de carregar em si a temática existencialista é o oposto do Roquentin de
Sartre.
Fará sentido comparamos aqui a Náusea, do filósofo e escritor francês e
Aparição do nosso romancista e pensador?
Qualquer uma das personagens, Antoine Roquentin, ou Alberto, passam por
uma evidência bastante semelhante de epifânia reveladora do ser a si próprio,
a tal aparição, que no caso de Sartre conduz o protagonista à náusea e no de
Vergílio leva a personagem-central a revelar-se. Duas passagens quase
paralelas, em que a atenção de ambos se focaliza, um, numa árvore e o outro,
num busto de mármore branco de Vila Viçosa, árvore e busto que se revelam,
e que nos colocam, para além de outras abrangências, o problema da
comunicação com o outro. Mas que servem, em todo o caso, de epifania, de
aparição de alguma coisa, aos protagonistas na solidão de ambos.
«Ao fim das aulas divago pelo jardim público... Sento-me, reconciliado, nos
bancos de azulejos... vou visitar Florbela ( a poetisa Florbela Espanca), olho-a
de um banco de madeira que lhe fica em frente, medito com ela. É uma cabeça
calma, triste e majestosa.» (Ferreira:2002:243)
«A Náusea sou eu. Estava então há bocadinho no jardim. A raíz do castanheiro
mergulhava na terra, mesmo por baixo do meu banco. Não me lembrava,
porém, que era uma raíz. As palavras tinham-se evaporado, e, com elas, o
significado das coisas...Estava sentado... cabisbaixo, sozinho em frente
daquela massa negra e nodosa... E depois tive aquela iluminação...Nunca,
antes destes últimos dias, eu tinha pressentido o que queria dizer
«existir».(Sartre:1964:216)
Jean-Paul Sartre escreveu um romance absolutamente existencialista, teve
consciência da existência perante as coisas, o nome das coisas que dão a
dimensão de que existem. E estava assim popularizado o núcleo do
existencialismo: a existência que precede a essência.
A concepção dos romances de Vergílio Ferreira, após o romance A, segundo os
autores da clássica História da Literatura Portuguesa (Saraiva:Lopes:1989:1113/4),
avizinha-se do existencialismo pela ênfase posta nos instantes-limite da
descoberta do ser a si próprio, da meditação sobre o mistério da origem e da
morte.
Mas falar em romance existencialista, no que concerne a VF, condicionaria a
nossa interpelação à sua obra, porque se os contornos e o contéudo de alguns
dos seus romances se integram na escola existencialista, pelo aspecto formal e
pela temática, do ponto de vista da crítica literária, é porém o próprio autor que
o vem negar com uma afirmação explícita.
Na obra ensaística Espaço Invisível II afirma, com a sua proverbial humildade e
alguma saudável ironia: «Possivelmente gostaríeis ou teríeis curiosidade de me
ouvir falar de mim, já que vou sendo insensivelmente investido na qualidade de
uma espécie de delegado nacional ou regional do Existencialismo. Mas eu
jamais me disse «existencialista»». Embora jamais tenha negado que deve
muito à temática existêncial, porque é suposto que essa temática privilegia o
existente humano.
No geral não é sobre a sua experiência individual e dita existêncial que o
escritor escreve, é sobre o outro ou os outros. E tanto pode ser uma família-
protagonista como os Borralhos em Vagão J, como a personagem-narrador
individual que conhecemos em Nítido Nulo ou antes a personagem única de
Alegria Breve onde a narrativa cai para o domínio da introspecção e para a
posição discursiva-monologal.
Julgo crêr que só este aspecto já seria suficiente para retirar VF ao
regionalismo, à sua nacionalidade e cultura autóctones, e o colocariam ao nível
do escritor com preocupações universalistas, se escrevesse no estrangeiro, ao
nível dos grandes romancistas franceses e alguns norte-americanos, Camus,
Sartre, Duhamel, Jules Romains, Hemingway ou William Faulkner.
Por isto o Le Monde, a propósito do Prémio Europalia, que Vergílio Ferreira
recebeu em 1991, intentava circunscrever o escritor a uma história literária
ocidental influentíssima no destino metafísico e espiritual do homem: « As sua
fontes, VF encontra-as mais no romance russo e americano, e sobretudo
dentro do existencialismo francês, do que na literatura do seu país».
Mas como escritor de escala europeia que indaga filosófica e metafisicamente
sobre a essência da vida e o valor do ser humano, a essência e a natureza do
ser humano, Vergílio Ferreira, afinal como introdutor do romance dito
existencialista em Portugal, não deixa de colocar o Homem em situação, isto é,
o estar aqui a preceder o eu ser - que define a posição existente do Ser
Humano face ao mistério da existência, de Deus e da morte. Não deixando de
ser a situação do homem um dos grandes problemas tratados em quase todo o
itinerário da obra de Vergílio Ferreira, o problema de fundo na obra vergiliana é
o Absoluto de Deus.
É, de facto, no romance-problema que VF introduz esta dinâmica de
perturbação. Desde Carta ao Futuro, que pude ler na minha juventude como
primeiro contacto com a obra do romancista, que o universal vocábulo Deus é
uma dessas grandes ideias e uma presença constante na obra literária do
nosso autor.
Deus é o Absoluto, o primordial, o incondicionado. Mas tudo isto são categorias
que fora do contexto bíblico e teológico impossibilitam o ser humano de se
aproximar desse Deus, mesmo até de O encontrar. Temos essa consciência na
universalidade dos estudos existentes sobre o autor e na própria obra do
escritor. A relação de certos passos da obra vergiliana com esse Deus, é justo
que o digamos, parte de Ses honestos, se Deus não existisse, se o homem não
viesse a existir.
Admitamos, contudo, que existe aqui esta dificuldade que a obra de Vergílio
Ferreira também procura reflectir em alguns dos seus mais consagrados
romances, porque como autor, disse ele uma vez, procura «recriar um mundo
por sobre o que já foi recriado.»
Essa dificuldade, quase de palimpsesto –recriar sobre o recriado – aprofunda-
se, vai ao patamar de se dizer que Deus afinal não é o absoluto, mas, sim, o
homem, sendo certo que esta viagem da queda, este contrário da ascenção,
deixa marcas nostálgicas.
Entre outras manifestações de nostalgia do divino, estará aquela em que o ser
humano se descobre sozinho no silêncio da noite e se assusta ao falar em voz
alta - experiência que Vergilio Ferreira faz confessar ao protagonista de A:
-«Por que é que no silêncio da noite, nos assusta falar em voz
alta?»(Ferreira:2002:67)
Exactamente porque confrontado com a parede envolvente do escuro, o
homem do universo vergiliano sente-se não existir, no silêncio nocturno, porque
lhe falta o que considera o absoluto do mundo e das coisas, com os quais
pretendeu substituir Deus.
Mas saberá o homem que recusa Deus, o milagre que destrói na sua vida?
O romancista francês George Duhamel compreendeu bem, afinal, esta
nostalgia pela recusa de Deus, a qual acaba por estar na raíz essencial do ser
humano. Com efeito, escreveu que «ao transeunte que vos faz parar e vos
pede lume, deixai-o falar; ao fim de 10 minutos, pedir-vos-á
Deus.»(Moeller:1966:180)
A partir do romance Cântico Final, e mais expresssivamente em A, é com
assiduidade que esta ideia da nostalgia de Deus se convoca, isto é, «o homem
ocupa os aposentos divinos». Alegadamente pretende ocupá-los porque ao
substituir Deus, terá encontrado as salas vazias desde certas filosofias da
existência até algumas teologias ( e estou a recordar-me de R. Bultmann e
John T.Robinson, entre os anos 50 e 60) que procuraram humanizar o divino,
naturalizar o sobrenatural e racionalizar a fé.
A própria personagem principal de A, com toda a probabilidade uma epifania do
escritor Vergílio Ferreira («há cerca de quarenta anos aconteceu-me a
experiência e tentei dá-la em «Aparição»») (Ferreira:2001:275), quando se
manifesta a seus olhos tomando consciência de si próprio, chega a proclamar
no preâmbulo do livro esta frase denunciadora da pretensa substituição do
divino: «Esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência, me
sinto como um absoluto divino.»(Ferreira:2002:10)
Contrariamente ao que André Malraux afirmou: «Deus morreu, logo o homem
nasceu», há até, por hipótese académica, quem tire outra conclusão e afirme
que «se Deus morreu» o homem não existe. Ou dito pela insuspeita boca de
Sartre de uma forma que pode parecer banal, mas que teve ressonâncias para
-segundo o filósofo - justificar a fatalidade da criação: «Deus morreu, portanto o
homem também morreu.»
Não sendo uma, nem outra coisa verdadeiras, existe pelo menos um sentido de
desesperança e de desapontamento que nos deve fazer parar para pensar,
nessa afirmação tão mal entendida de Nietzche; dizia o filósofo: «A morte de
DEUS! Este enorme acontecimento está ainda a processar-se...» Claro que o
filósofo alemão substituiu a palavra morta «Deus» pelas palavras mágicas da
sua filosofia: o Super Homem.
Quiçá por esta razão e por esta experiência, Vergílio Ferreira, apesar de fazer
alguns dos seus protagonistas afirmarem essa suposta «morte» do divino,
continua a procurar a sua visão.
Eduardo Lourenço afirmou um dia que o autor de Aparição e Manhã
Submersa, como outros escritores modernos, inscreve a sua visão num «céu
metafísica e religiosamente deserto». A ideia é simples, mas é preciso que algo
celeste exista e que a grandeza inefável dessa existência seja Deus. Pois é a
frase «Deus está morto» que, no contexto da história, esmaga o homem.

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Referências bibliográficas
Ferreira 1972:87- Vergílio Ferreira, de JP-Ferreira, Arcádia, 1972
Moeller 1966:175- A Igreja e o Mundo, Aspectos do Ateísmo na Literatura Moderna,
Moraes Editores, 1966
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Ferreira 2002:102- Aparição, 63ªEdição, Bertrand Editora, 2002
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Sartre e Ferreira 1970: - O Existencialismo é um Humanismo, 1970
Moeller 1966:182- op.cit
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Lopes 1969:28- Ler e Depois, Editorial Inova, Porto, 1969
Colóquio/Letras 1992:123- op.cit
Ferreira 1969: - Mudança, Portugália Editora, 1969
Ferreira 2001:17 - Escrever, Bertrand Editora, 2001
Ferreira 2002:39 – op.cit.
Ferreira 2002:46 – op.cit.
.Ferreira 1983:94 – Manhã Submersa, Livraria Bertrand, 11ª Edição, 1983
Ferreira 1983:215 – op.cit.
Cottier 1968:48 – Cristãos e Marxistas, Brasilia Editora, Porto, 1968
Ferreira 2002:243 – op.cit.
Sartre 1964:216 – A Náusea, Europa América, 1964
Saraiva, Lopes 1989:1113/4 – Hitória da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 1989
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Moeller 1966:180 – op. Cit.
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Ferreira 2002:10 – op.cit.
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João Tomaz Parreira é poeta, colaborador da imprensa religiosa evangélica. Nasceu em Lisboa e é
especializado nas áreas da Literatura, Artes Plásticas e Teologia. Tem seis livros publicados e, como
conferencista, discutiu as obras de Vergílio Ferreira, José Saramago, Fernando Pessoa e Albert Camus.

E-mail: jtparreira@hotmail.com

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