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RESUMO: Este trabalho tem por objetivo analisar o poema dramático Morte e vida
severina (2007), de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), de acordo com o conceito
de epopeia negativa, do filósofo Theodor Adorno (2003), incluindo reflexões de Georg
Lukács (2000), Arturo Gouveia (In: GOUVEIA; MELO, 2004), entre outros autores.
Ademais, a escolha de Morte e vida severina para este trabalho também é justificada
pela tese de que a produção literária brasileira Pós-Geração 45 é contemporânea (Cf.
MERQUIOR, 1979, In: PORTELLA, 1979; MERQUIOR, 1980).
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Mestrando em Teoria da Literatura [o autor escreve em 2009, época de seu mestrado] pelo
PPGL-UFPE (Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de
Pernambuco).
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Merquior põe Guimarães Rosa entre “alguns dos pós-modernistas mais representativos” (In:
PORTELLA, 1979, p. 89).
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Desse modo, na era épica, vida e essência são uma coisa só, sem
sombra de cisões fragmentadoras, pois esse mundo-era é “um sistema
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A obra homérica, com seus heróis, contribuiu para a legitimação dos aristocratas gregos, pois
estes, nessa obra, eram considerados descendentes desses heróis, os quais, por sua vez,
descendiam dos deuses gregos, “completando-se assim um ciclo de legitimação da aristocracia
à base de um direito divino” (KOTHE, 1987, p. 18).
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Nesse tocante, “o herói épico é um herói potencialmente trágico, mas é um herói cuja história
deu certo” (KOTHE, 1987, p. 23, 24). À vista disso, instaura-se uma epopeia positiva.
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2 A EPOPEIA NEGATIVA
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Como lembra Arturo Gouveia, “em Os trabalhos e os dias, [...] os heróis pertencem à quarta
raça, antecedida da raça de bronze, de prata e de ouro. [...] Os guerreiros épicos, [...] inscritos
numa ordem cósmica incomensurável, carregam em sua própria essência o que Lukács chama
de totalidade extensiva e espontânea. Em outras palavras: o símbolo (enquanto representação
de uma coletividade e exemplo positivo para o futuro) que emana dos personagens épicos
deriva diretamente de sua ação [...]” (In: GOUVEIA; MELO, 2004, p. 60).
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Hegel ensinou que a poesia épica cedeu “definitivamente o seu lugar ao romance” (1997, p.
494), instaurando-se como a “epopeia burguesa moderna”, na qual a fissura entre “a poesia do
coração” (a essência heróica épica) e a “prosa das circunstâncias” (a realidade prosaica,
fragmentada do mundo moderno) é tônica de desequilíbrio (Cf. HEGEL, 1997, p. 492).
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Por exemplo, em Prismas: crítica cultural e sociedade, diz Adorno: “a insuficiência do sujeito
que pretende, em sua contingência e limitação, julgar a violência do existente (...) torna-se
insuportável quando o próprio sujeito é mediado até a sua composição mais íntima pelo
conceito ao qual se contrapõe como se fosse independente e soberano” (apud GOUVEIA, In:
GOUVEIA; MELO, 2004, p. 26).
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“A aparência como algo rigorosamente verdadeiro” (ADORNO, 2003, p. 61).
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Adorno lança uma definição de sujeito literário que coaduna com o conceito de
epopeia negativa: “o sujeito literário, quando se declara livre das convenções
da representação do objeto, reconhece ao mesmo tempo a própria impotência,
a supremacia do mundo das coisas, que reaparece em meio ao monólogo”
(2003, p. 62). Com isso é preparada uma linguagem deteriorada, “uma
segunda linguagem [épica negativa], destilada de várias maneiras do refugo da
primeira [épica, realista], uma linguagem de coisa, [...] como a que entremeia o
monólogo”, composta pela massa alienada da linguagem primeira (ADORNO,
2003, p. 62).
Da onisciência da objetividade, o narrador, no romance moderno, se
desagrega na impotência da subjetividade, diluindo-se no espaço narrativo e
nas personagens, desprendendo-se da aparente inalcançabilidade posicional
desde os tempos homéricos até o realismo/naturalismo. Diante disso, “a
epopeia negativa [...] configura os romances de vanguarda pela impotência e
pela precariedade dos personagens” (GOUVEIA, In: GOUVEIA; MELO, 2004,
p. 25). Assim, conforme Arturo Gouveia, “a epopeia negativa ganha terreno
exatamente no excesso de introspecção dos personagens” (In: Idem, 2004, p.
26), pois esses personagens não são mais os invencíveis heróis épicos
clássicos, mas frágeis diante do sistema opressor. Nos romances marcados
pela epopeia negativa, os personagens “não têm condições concretas de
estabelecer rupturas, ainda que breves, contra a opressão do mundo externo”,
conforme Arturo Gouveia (In: Idem, 2004, p. 37). Portanto, os obstáculos não
são vencidos, como na epopeia homérica, as personagens da epopeia negativa
são vencidas pela realidade da opressão: o mundo é fissurado, e a
desintegração do herói épico negativo com esse mundo é tônica constante.
como um mundo que não tem paz, que não está em harmonia com o universo
exterior, derrotado pela seca e pela opressão tirânica.
Ulisses cruzou mares fartos de águas, para retornar à pátria, na
condição de sobrevivente de Tróia, debelando ciclopes, sereias. No entanto,
Severino se depara com uma travessia de um rio Capibaribe que seca, sem
terminar o trajeto das águas, porque esse rio estava tão pobre que não pôde
cumprir essa sina das águas fartas, em um verão que petrifica, cortando as
rachaduras da seca da vida e da alma (Cf. MELO NETO, 2007, p. 152). Não há
sereias, não há ciclopes, há o humano fragmentado.
Chegando ao Recife, Severino ouve coveiros conversando sobre a
morte “da gente retirante que vem do Sertão de longe”, “gente dos enterros
gratuitos e dos defuntos ininterruptos” (Idem, 2007, p. 166). Isso é um extremo
contraste com a morte da gente rica urbana ou citadina. O agravante da
conversa consiste na iminente possibilidade de essa gente retirante não ter
onde se enterrar, por viver na lama, sem perspectiva de uma vida melhor (Cf.
MELO NETO, 2007, p. 167). O ápice e final da conversa entre os coveiros é o
fato de o rio, debaixo da ponte, servir de mortalha para esses retirantes
sertanejos, pois mesmo que venham ao Recife morrer de velhice, “aqui
chegando, [há] cemitérios esperando” (Idem, 2007, p. 167). Com isso, Severino
não vê diferença entre o mundo exterior sertanejo, de onde veio, e esse novo
mundo exterior citadino, aonde chegou: “e chegando, aprendo que, nessa
viagem, que eu fazia, sem saber desde o Sertão, meu próprio enterro eu
seguia” (MELO NETO, 2007, p. 168). Trata-se, pois, de uma epopeia negativa,
na qual se vê “a inadequação de um personagem ao seu destino e à sua
situação” (BAKHTIN, 2003, p. 425). Diante disso, “o descompasso entre a
interioridade [nesse caso, a de Severino] e mundo [exterior – Sertão e Recife]
torna-se, assim, ainda mais forte (LUKÁCS, 2000, p. 118). Logo, o espaço
interior de Severino – durante seu monólogo, ao buscar uma estabilidade
interior – é mais verdadeiro que o simulacro da realidade opressora
circundante, “mundo estranho”, no qual se manifesta a impotência da conquista
externa épica do herói clássico, seguindo o pensamento de Adorno. Por isso,
há uma entrega passiva do herói negativo Severino à problemática que o
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“A epopeia negativa ganha terreno exatamente no excesso de introspecção dos personagens”
(GOUVEIA, In: GOUVEIA; MELO, 2004, p. 26).
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CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina: auto de natal
pernambucano. In: MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa e prosa:
volume único. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.