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RESUMO:
Este trabalho analisou “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, buscando a
presença da fealdade, especificamente na personagem Marcela. Esse romance foi analisado,
comparativamente, com alguns poemas de Charles Baudelaire. As reflexões sobre a Estética do Feio
fundamentaram-se em Janilto Andrade (2006) e Charles Feitosa (2002).
ABSTRACT:
This paper analyzed “The Posthumous Memoirs of Bras Cubas”, by Machado de Assis, searching the
ugliness, specifically in the character Marcela. This novel was analyzed with some poems of Charles
Baudelaire. The theoric reflections about the Aesthetics of Ugliness were based in Janilto Andrade
(2006) and Charles Feitosa (2002).
1. INTRODUÇÃO
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“Ugliness in aesthetics may sound paradoxal at first”.
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“Recorda-te do objeto que vimos, ó Graça [a amada do eu lírico], / Por
belo verão matinal, / Na curva do caminho uma pútrida carcaça / Num leito
que era carrascal. [...] // Moscas vinham zumbir sobre este ventre pútrido /
Donde saíam batalhões / Negros de larvas a escorrer um espesso líquido /
Ao largo dos vivos rasgões. / [...] // - E no entanto serás igual a esta
torpeza, / Igual a esta horrível infecção, / Tu, sol de meu olhar e minha
natureza, / Tu, meu anjo e minha paixão. / [...] // Minha beleza, então dirás
ao verme que arruína, / Que há de roer-te o coração, / Que guardei a forma
e a essência divina / Do amor em decomposição.” (2002a, p. 41-43).
A grande questão é que, lendo esse poema, somos confrontados com um objeto
que revela ausência de beleza: uma carniça animal. Com isso, será que o eu lírico, do
poema de Baudelaire, não quis despertar na amada, por meio de uma visão repugnante,
a consciência da transitoriedade da vaidade da vida, que as “patricinhas” pós-modernas
não têm? Além disso, os recursos lingüísticos, dos quais o poeta lança mão, embelezam
esteticamente esse objeto feio. Noutras palavras, “valores fonéticos e rítmicos, a
adjetivação inovadora, as imagens criadas, as associações que instauram, com esse
discurso expressivo, o clímax [...] dão [...] um perfeito equilíbrio formal” (ANDRADE,
2006, p. 20). Em suma, tem-se ainda a mesma fealdade recortada da realidade, mas
agora metamorfoseada numa bela produção poética. Com essa prática, Baudelaire
rejeitou a posição platônica de que o feio e o belo, na arte, são excludentes.
Vimos que, no pensamento clássico, o feio era identificado com a maldade, não
aceitando qualquer correspondência entre beleza e fealdade, mesmo na arte. Além de ser
possível que a recusa do feio, como elemento estético, se dê por causa da
correspondência, na cultura grega, entre belo e bom, é tradicional, também, a
identificação entre “feio e inútil e, às vezes, entre feio e falso; o belo, ao contrário, está
associado, comumente, ao verdadeiro, ao útil e ao bom” (Idem, 2006, p. 25). Assim,
ferramentas feias são ineficientes e teses construídas com argumentos falsos são
falaciosas, dito de outro modo, feias. Contudo, segundo Janilto Andrade:
Não é apropriado confundir, em sentido moral, o feio com o mal, nem o
belo com o bom, [pois,] tomados como paradigma os padrões clássicos de
beleza e feiúra, não é raro constatar que há, na realidade, muita gente
bonita fazendo maldade e muita gente feia praticando o bem. E na arte, não
é diferente: Quasímodo [, personagem de Victor Hugo] é feio – ou melhor,
grotesco –, mas nele o bem faz morada, e através dele se manifesta (2006,
p. 25-26).
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“That the connection between ugliness and sensibility is even more originary and contagious than the
connection between the ugly and the morally bad, and that this is precisaly why ugliness is so
unbearable”.
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como elemento revelador dessa efemeridade, nos deixa marcas, ulteriormente tratadas
como estigmas. Com isso, a feiúra surge, aparentemente, como processo desencadeador
da decrepitude física e da conseqüente velhice. Tornando-se mais penetrante, essa feiúra
nos mostra, veementemente, a nossa finitude, machucando-nos profundamente, ao tocar
na nossa ferida essencial, trazendo a lume, violentamente, a nossa condição de mortais,
cujo exemplo se dá por meio da decomposição corporal. Tal decomposição “é
repugnante, pois ela nos faz lembrar do nosso futuro sem misericórdia. [Diante disso,]
nós nos opomos à fealdade como nos opomos à morte, [pois,] contrapondo-nos à
fealdade, lutamos contra a nossa própria mortalidade (2002, p. 04. Tradução nossa82).
Com base nessa reflexão, mais do que uma identificação com a maldade, mesmo em
termos morais, possivelmente a feiúra é mais recusada por ter uma estreita ligação com
a sensibilidade feroz diante da passagem voraz do tempo. Desse modo, o belo,
considerando o padrão clássico, é uma negação da morte, e as pessoas que quiserem
negar essa realidade procurarão uma forma de arte que sustente tal negação, deixando a
morte, como algo feio, fora da criação estética, ou como algo não passível de acontecer
com os heróis.
Conforme Janilto Andrade, os estudiosos da criação poética apontam três
maneiras distintas da relação da feiúra com a arte:
Há coisas, seres e comportamentos feios, que o artista aceita em sua feiúra
desagradável, redimindo-os através da representação artística; há obras
que enfeiam certos aspectos do mundo concreto, os quais, originariamente,
não são feios, a fim de problematizá-los; há, na realidade, uma feiúra que a
obra de arte, ao presentificá-lo, reduplica-a, com o objetivo, talvez, de
intensificar uma aflição, um protesto (2006, p. 22-23).
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“Is repulsive because it reminds us of our future without mercy. We oppose ugliness as we oppose
death; in opposing ugliness we are fighting against our own mortality”.
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da matéria doirada ao Sol...” (CRUZ E SOUSA, 1982, p. 66). Vê-se, pois, nesses
poetas, a proposta da “beleza particular do mal, do belo no horrível” (BAUDELAIRE,
2002b, p. 67).
Analisaremos, neste trabalho, a presença do feio em “Memórias póstumas de Brás
Cubas”, de Machado de Assis, em um conciso diálogo com alguns poemas de um autor
que expressou o feio através da poética simbolista, Charles Baudelaire. Diante dessa
proposta de leitura, a obra machadiana não pode ser conhecida e analisada, apenas, sob
o olhar da escola realista, mas como uma obra multifacetada. Com essa perspectiva,
devemos considerar que “novos Machados podem surgir pelo olhar da crítica”,
conforme Cláudia Nina (2007, p. 28). As multifaces de Machado de Assis podem surgir
por esse olhar porque ele transitou pelas escolas literárias de seu tempo (a romântica, a
naturalista, a parnasiana e a simbolista), “absorvendo o que de aproveitável cada uma
oferecia, sem se deixar levar pelos excessos”, consoante Afrânio Coutinho (In:
MACHADO DE ASSIS, 1994b, p. 29). Ademais, há poemas de Machado que
apresentam elementos simbolistas, até mesmo o feio. Eis alguns poemas que permitem
esse viés: “O verme”, “No alto”, “Suavi mari magno”.
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circulava, mas não era a real. Era uma cortesã em cuja casa funcionava um bordel, com
a presença de outras cortesãs. Obviamente, para ser uma cortesã de luxo, Marcela
deveria ter uma beleza afrodisíaca. Essa beleza, juntamente com a conduta, é descrita
por Brás Cubas, o qual foi atraído por Marcela, de modo que se envolveu com ela
apaixonadamente:
[...] “A linda Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do tempo. [...] Não
possuía a inocência rústica, e mal chegara a entender a moral do código.
[...] Sem escrúpulos, [...] luxuosa, [...] amiga do dinheiro e dos rapazes.
[...] Airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma
coisa que [eu] nunca achara nas mulheres puras. Deixei-me ir namorado,
[...] cheio das primeiras auroras. [...] Puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo.
[...] E se era jóia, dizia isso [...] a ensaiá-la em si, e a rir, e a beijar-me com
uma reincidência impetuosa e sincera. [...] Marcela não morria, vivia [de
amores]. [...] Era bem bonita, Marcela amou-me... [...] durante quinze
meses e oito contos de réis; nada menos (Idem, 1994a, p. 38-42)
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Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto
amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que
se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao
contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma
velhice precoce destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido
terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives
e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa, enormemente grossa. Eram
os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e
repugnante, que mudou, entretanto, logo que comecei a falar. Quanto ao
cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. [...]. Essa
mulher era Marcela (Idem, 1994a, p. 64
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“The relationship between ugliness and the transitory or ephmeral [...] time leaves marks on the surface
of things and bodies. [...] Ugliness comes as an unavoidable process of becoming older [...] our own
mortality”.
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concebia o tempo como voraz. À vista disso, Marcela, com efeito, sentiu na pele a ação
voraz desse krónos, o qual lhe devorou a beleza afrodisíaca e cortesã que antes usava
para explorar os homens. Marcela mesma disse a Brás Cubas que o tempo ajudou a
moléstia que ela contraiu (sífilis?), dando a ela, em vida, o adiantamento da decadência
da conduta cortesã de que ela abusava nos bordéis da vida. Talvez a espanhola houvesse
tratado com desdém o aviso em sua língua, constante do poema baudelairiano, “esto
memor”, pois o Tempo lida universalmente com todos os humanos. O tempo não deu
jeitinhos para Marcela, não foi brasileiro no jogo da vida, no qual ele só ganha a
medalha de ouro; deixou para antiga cortesã “a clepsidra vazia”, instaurando o fim de
uma existência, de modo que a boca abismal da morte fica sedenta por uma vida
decrepitamente crepuscular, após uma vida de vícios. Finalizando essa parte analítica
em relação à voragem do tempo na vida desregrada de Marcela, algo até mesmo
compreendido por ela, citamos os últimos versos do poema “O inimigo”, de Baudelaire,
que dizem respeito a essa compreensão: “/ [...] Devora o tempo a Vida, ó suprema
agonia! / Se rói o coração o inimigo traidor, / Cresce por se nutrir dessa nossa anemia! /
[...]”. A propósito, Brás Cubas entendeu bem essa filosofia existencial do tempo, nesta
máxima: “matamos o tempo; o tempo nos enterra”. Orgias, bacantes banquetes, formas
de “matar o tempo” que a insigne cortesã usou. Mas foi o tempo que começou a jogar
nela as terras sepulcrais, por meio da moléstia que ela contraiu, que possivelmente teve
a contribuição de um dos amantes: o tísico Xavier (Cf. MACHADO DE ASSIS, 1994a,
p. 38-39). Essa segunda Marcela não é mais a Vênus de Botticelli, de Velásquez e de
Bouguereau, mas uma Vênus “Musa doente”, decadente, tal como descrita por
Baudelaire neste poema, cuja primeira estrofe destacamos: “/ Ah, minha pobre musa, o
que tens esta vez? / Teus olhos ocos são todos visões noturnas / E alternativamente
refletes na tez / Loucura e horror, as sombras taciturnas” (2002a, p. 23). As varíolas
“que [...] escalavraram o rosto”, a tez de Marcela, apresentando um “rosto amarelo e
bexiguento” refletiam o horror de uma alma decrépita, e o “vulto”, cujos “olhos eram a
melhor parte” (MACHADO DE ASSIS, 1994a, p. 64) era tal qual uma “sombra
taciturna”, com “olhos ocos”, janelas da alma em “visões noturnas”. Eis, portanto, a
Vênus doente de Brás Cubas, a qual perdia para a “Vênus Manca”, Eugênia, que,
mesmo coxa, ainda ostentava beleza.
Há um outro símbolo envolvido no estado terrificante e repulsivo de Marcela,
descrito por Brás Cubas, instaurando um quadro de uma existência em vias vitais de
putrefação, recorrente em “Memórias póstumas”, a saber: o verme. Segundo Chevalier e
Gheerbrant, o verme “marca a etapa primordial da dissolução, da decomposição” (1997,
p. 944). Por outro lado, “Jung defini-o como figura da libido que mata em lugar de
vivificar” (CIRLOT, 1984, p. 596). Antes de tecermos considerações sobre esse
simbolismo, aplicando-o à narrativa machadiana, é oportuno que entendamos a ligação
entre o verme e a podridão, pelo viés lingüístico. Na língua hebraica, a palavra para
“verme” e “larva” é rimáh, oriunda da raiz verbal raman, que literalmente significa
“apodrecer”84, instaurando uma ligação existencial, além de etimológica, entre o
substantivo e o verbo, sendo que este gera aquele (Cf. KIRST et al., 2002, p. 229). Essa
ligação existencial tornou-se um ensinamento ético no Judaísmo: “Rabi Levitas, de
Yavneh, diz: ‘Sê muitíssimo humilde de espírito, pois o destino do homem é servir de
alimento aos vermes’” (apud BUNIM, 2001, p. 213). Em suas “Memórias”, Brás Cubas
faz uma dedicatória ao “verme que primeiro roeu as frias carnes” dele (MACHADO DE
ASSIS, 1994a, p. 17). Isso simboliza a desagregação da matéria humana, um estado
84
No poema “O vampiro”, Baudelaire sustenta o paralelismo entre vermes e podridão (Cf. 2002a, p. 44).
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feio, como também a desconstrução do Romantismo, cujos autores dedicavam,
geralmente, suas obras a pessoas. Quanto a Marcela, “[ela] negociava com o fim único
de acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência [...]” (Idem,
1994a, p. 65). Tirando o termo “ciúme”, trocando-o por “cobiça”, “paixão do lucro”,
pode-se aplicar a Marcela este poema de Machado de Assis, “O verme”, de Falenas
(1870):
Assim sendo, suponhamos que Brás Cubas tenha assumido o eu lírico desse
poema, para expressar tal repulsa, considerando a decrepitude da “bela tenebrosa”
Marcela, cujo estado beira o sono da morte, declive existencial que levará à tumba
sepulcral, sendo esta uma derradeira lição moralizante para a “cortesã incorreta”.
Ademais, há a sugestão do remorso como uma nova espécie de verme a roê-la, além do
“verme roedor” da “paixão do lucro” (MACHADO DE ASSIS, 1994a, p. 65). Essa
sugestão é possibilitada pelas lágrimas que Brás Cubas fez Marcela verter durante a
ausência dele, quando viajou a Coimbra (Idem, 1994a, p. 65). Assim, as lágrimas dela
originaram-se no amargo remorso.
Há um poema de “As flores do mal” que pode resumir simultaneamente as duas
Marcelas, com ênfase para a segunda. Lendo o poema, sem título, seria oportunamente
verossímil e possível que Brás Cubas, tendo refletido sobre o reencontro com Marcela,
assumisse este eu lírico, falando sobre ela o seguinte:
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surda e de um cruel fecundo! / Instrumento a beber todo o sangue do
mundo, / Já perdeste o pudor e ao espelho não viste / Tua beleza cada vez
mais murcha e triste? / A grandeza de um mal que crês saber tanto / Nunca
pôde fazer-te retroceder de espanto, / Na hora em que a natureza em
desígnios velados, / De ti se serve, mulher, ó deusa dos pecados, / - A ti, vil
animal – para um gênio formar? // Ó grandeza de lama! Ó ignomínia
exemplar! (2002a, p. 38)
3. CONCLUSÃO
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ANDRADE, Janilto. A Arte e o Feio Combinam? Recife: FASA, 2006. 148 p.
_____ . Sobre a Modernidade. [La Modernité] Trad. e Org. de Teixeira Coelho. 3 ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2002b. 70 p. (Coleção Leitura).
BUNIM, Irving. A Ética do Sinai: ensinamentos dos sábios do Talmud. [Ethics from
Sinai] Trad. de Dagoberto Mensch. 2 ed. São Paulo: Sêfer, 2002. 523 p.
NINA, Cláudia. O Escritor de Sete Faces. Revista Entre Livros. São Paulo, ano 03, n.
30, p. 23-28, dez. 2006. ISSN: 1679-656X.
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