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A PERSONAGEM MACHADIANA MARCELA E A ESTÉTICA DO

FEIO: UMA LEITURA POSSÍVEL

Fernando Oliveira Santana Júnior


Universidade Católica de Pernambuco

Orientador: Prof. Ms. Robson Teles Gomes


Universidade Católica de Pernambuco

RESUMO:
Este trabalho analisou “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, buscando a
presença da fealdade, especificamente na personagem Marcela. Esse romance foi analisado,
comparativamente, com alguns poemas de Charles Baudelaire. As reflexões sobre a Estética do Feio
fundamentaram-se em Janilto Andrade (2006) e Charles Feitosa (2002).

PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis; Estética do Feio; Baudelaire; Simbolismo.

ABSTRACT:
This paper analyzed “The Posthumous Memoirs of Bras Cubas”, by Machado de Assis, searching the
ugliness, specifically in the character Marcela. This novel was analyzed with some poems of Charles
Baudelaire. The theoric reflections about the Aesthetics of Ugliness were based in Janilto Andrade
(2006) and Charles Feitosa (2002).

KEY-WORDS: Machado de Assis; Aesthetics of Ugliness; Baudelaire; Symbolism.

1. INTRODUÇÃO

A valorização do belo, sobretudo na cultura ocidental, diz respeito à idéia da


correspondência dele com a representação artística, o que leva certas pessoas a dizer que
a arte tem de ser, necessariamente, bela. Diante disso, a contrapartida dessa noção é
inevitável: o feio nega a arte (Cf. ANDRADE, 2006, p. 17), de forma que “a fealdade,
em Estética, pode soar paradoxal, inicialmente” (FEITOSA, 2002, p. 01. Tradução
nossa80). Além disso, um problema para compreender a fealdade, em termos estéticos,
decorre do tratamento dicotômico que damos a ela. Ou seja, já que costumeiramente se
vê o feio como algo ausente de tudo que é belo, para sinônimos deste há a harmonia, a
perfeição, a ordem e o equilíbrio, mas como antônimos daquele, ou sinônimos do feio, a
desarmonia, a imperfeição, o desequilíbrio e o caos (Cf. Idem, 2001, p. 02). Assim, por
causa da concepção clássica do belo, ele é identificado com o bem, mas o feio com o
mal (Cf. Idem, 2001, p. 02). Essa identificação faz que o feio, nessa concepção, seja
execrado como uma categoria estética capaz de ser um porta-voz da arte. É essa conduta
de recusa que leva certas pessoas a não aceitar, como esteticamente belos, estes versos
de Baudelaire, do poema “Uma carniça”:

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“Ugliness in aesthetics may sound paradoxal at first”.

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“Recorda-te do objeto que vimos, ó Graça [a amada do eu lírico], / Por
belo verão matinal, / Na curva do caminho uma pútrida carcaça / Num leito
que era carrascal. [...] // Moscas vinham zumbir sobre este ventre pútrido /
Donde saíam batalhões / Negros de larvas a escorrer um espesso líquido /
Ao largo dos vivos rasgões. / [...] // - E no entanto serás igual a esta
torpeza, / Igual a esta horrível infecção, / Tu, sol de meu olhar e minha
natureza, / Tu, meu anjo e minha paixão. / [...] // Minha beleza, então dirás
ao verme que arruína, / Que há de roer-te o coração, / Que guardei a forma
e a essência divina / Do amor em decomposição.” (2002a, p. 41-43).

A grande questão é que, lendo esse poema, somos confrontados com um objeto
que revela ausência de beleza: uma carniça animal. Com isso, será que o eu lírico, do
poema de Baudelaire, não quis despertar na amada, por meio de uma visão repugnante,
a consciência da transitoriedade da vaidade da vida, que as “patricinhas” pós-modernas
não têm? Além disso, os recursos lingüísticos, dos quais o poeta lança mão, embelezam
esteticamente esse objeto feio. Noutras palavras, “valores fonéticos e rítmicos, a
adjetivação inovadora, as imagens criadas, as associações que instauram, com esse
discurso expressivo, o clímax [...] dão [...] um perfeito equilíbrio formal” (ANDRADE,
2006, p. 20). Em suma, tem-se ainda a mesma fealdade recortada da realidade, mas
agora metamorfoseada numa bela produção poética. Com essa prática, Baudelaire
rejeitou a posição platônica de que o feio e o belo, na arte, são excludentes.
Vimos que, no pensamento clássico, o feio era identificado com a maldade, não
aceitando qualquer correspondência entre beleza e fealdade, mesmo na arte. Além de ser
possível que a recusa do feio, como elemento estético, se dê por causa da
correspondência, na cultura grega, entre belo e bom, é tradicional, também, a
identificação entre “feio e inútil e, às vezes, entre feio e falso; o belo, ao contrário, está
associado, comumente, ao verdadeiro, ao útil e ao bom” (Idem, 2006, p. 25). Assim,
ferramentas feias são ineficientes e teses construídas com argumentos falsos são
falaciosas, dito de outro modo, feias. Contudo, segundo Janilto Andrade:
Não é apropriado confundir, em sentido moral, o feio com o mal, nem o
belo com o bom, [pois,] tomados como paradigma os padrões clássicos de
beleza e feiúra, não é raro constatar que há, na realidade, muita gente
bonita fazendo maldade e muita gente feia praticando o bem. E na arte, não
é diferente: Quasímodo [, personagem de Victor Hugo] é feio – ou melhor,
grotesco –, mas nele o bem faz morada, e através dele se manifesta (2006,
p. 25-26).

Esse excerto, na condição de releitura crítica, revela uma desconstrução dessa


visão dicotômica absoluta entre belo e mal, levando-nos à conclusão de que nem sempre
beleza física revela uma essência de bondade e que nem sempre fealdade revela um
desvio de conduta. Destarte, será a práxis do caráter que definirá moralmente as pessoas
em feias e belas. Já Charles Feitosa entende “que a conexão entre fealdade e
sensibilidade é mais primordial e contagiosa que a conexão entre o feio e o
(moralmente) mal, e que essa é, precisamente, a razão pela qual a fealdade é tão
insuportável” (2002, p. 03. Tradução nossa81). Um exemplo dado por Feitosa,
considerando que essa sensibilidade se revela por meio de uma rejeição feroz contra a
passagem do tempo, é a relação entre a feiúra e a transitoriedade da existência. O tempo,

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“That the connection between ugliness and sensibility is even more originary and contagious than the
connection between the ugly and the morally bad, and that this is precisaly why ugliness is so
unbearable”.

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como elemento revelador dessa efemeridade, nos deixa marcas, ulteriormente tratadas
como estigmas. Com isso, a feiúra surge, aparentemente, como processo desencadeador
da decrepitude física e da conseqüente velhice. Tornando-se mais penetrante, essa feiúra
nos mostra, veementemente, a nossa finitude, machucando-nos profundamente, ao tocar
na nossa ferida essencial, trazendo a lume, violentamente, a nossa condição de mortais,
cujo exemplo se dá por meio da decomposição corporal. Tal decomposição “é
repugnante, pois ela nos faz lembrar do nosso futuro sem misericórdia. [Diante disso,]
nós nos opomos à fealdade como nos opomos à morte, [pois,] contrapondo-nos à
fealdade, lutamos contra a nossa própria mortalidade (2002, p. 04. Tradução nossa82).
Com base nessa reflexão, mais do que uma identificação com a maldade, mesmo em
termos morais, possivelmente a feiúra é mais recusada por ter uma estreita ligação com
a sensibilidade feroz diante da passagem voraz do tempo. Desse modo, o belo,
considerando o padrão clássico, é uma negação da morte, e as pessoas que quiserem
negar essa realidade procurarão uma forma de arte que sustente tal negação, deixando a
morte, como algo feio, fora da criação estética, ou como algo não passível de acontecer
com os heróis.
Conforme Janilto Andrade, os estudiosos da criação poética apontam três
maneiras distintas da relação da feiúra com a arte:
Há coisas, seres e comportamentos feios, que o artista aceita em sua feiúra
desagradável, redimindo-os através da representação artística; há obras
que enfeiam certos aspectos do mundo concreto, os quais, originariamente,
não são feios, a fim de problematizá-los; há, na realidade, uma feiúra que a
obra de arte, ao presentificá-lo, reduplica-a, com o objetivo, talvez, de
intensificar uma aflição, um protesto (2006, p. 22-23).

Nesse sentido, o feio, ao ser apresentado artística ou esteticamente, permanece


feio, pois embelezá-lo constituiria uma inverossimilhança estética, vindo a ser uma
transgressão desses propósitos estético-artísticos da fealdade. Ademais, as realidades
apresentadas em sua feiúra pelo artista são redimidas por meio da e para a arte.
Os poemas de Charles Baudelaire, cujos fragmentos foram citados anteriormente,
revelam a presença da Estética do Feio no movimento simbolista, surgido na França, no
século XIX, quando o poeta francês publica “As flores do mal” (1857). Em um dos
prefácios desse livro, Baudelaire diz que foi aprazível, embora mais complexa, a tarefa
de extrair o belo do mal, confrontando o ideário clássico da poética de então (Cf. apud
GOMES, 1994, p. 06). Com o poema “Hino à beleza”, entre outros, Baudelaire aceita o
feio como condição estética. Nesse poema, o poeta simbolista, por meio de dualismo,
questiona o parâmetro clássico do belo, visto unilateralmente: “Vens do fundo do céu
ou sais do precipício, / Beleza? O teu olhar celestial e daninho / Verte confusamente o
crime e o benefício, / Pode-se pois dizer que és sempre igual ao vinho // Nos olhos pode
ser matutina e noturna; [...]” (2002a, p. 34, 35). No Brasil, é Cruz e Sousa quem
introduz o Simbolismo, por meio de “Broquéis” (1893), livro de poemas, e “Missal”
(1893), composto de poemas em prosa. Em Missal, há um longo poema em prosa
chamado “Psicologia do feio”, no qual podemos ver a aceitação da fealdade como
condição estética não só da produção poética de Cruz e Sousa, mas também do
Simbolismo. Este fragmento nos sugere essa aceitação: “Entretanto, eu gosto de ti, ó
Feio! Porque és a escalpelante ironia da formosura, a Sombra da aurora da carne, o luto

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“Is repulsive because it reminds us of our future without mercy. We oppose ugliness as we oppose
death; in opposing ugliness we are fighting against our own mortality”.

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da matéria doirada ao Sol...” (CRUZ E SOUSA, 1982, p. 66). Vê-se, pois, nesses
poetas, a proposta da “beleza particular do mal, do belo no horrível” (BAUDELAIRE,
2002b, p. 67).
Analisaremos, neste trabalho, a presença do feio em “Memórias póstumas de Brás
Cubas”, de Machado de Assis, em um conciso diálogo com alguns poemas de um autor
que expressou o feio através da poética simbolista, Charles Baudelaire. Diante dessa
proposta de leitura, a obra machadiana não pode ser conhecida e analisada, apenas, sob
o olhar da escola realista, mas como uma obra multifacetada. Com essa perspectiva,
devemos considerar que “novos Machados podem surgir pelo olhar da crítica”,
conforme Cláudia Nina (2007, p. 28). As multifaces de Machado de Assis podem surgir
por esse olhar porque ele transitou pelas escolas literárias de seu tempo (a romântica, a
naturalista, a parnasiana e a simbolista), “absorvendo o que de aproveitável cada uma
oferecia, sem se deixar levar pelos excessos”, consoante Afrânio Coutinho (In:
MACHADO DE ASSIS, 1994b, p. 29). Ademais, há poemas de Machado que
apresentam elementos simbolistas, até mesmo o feio. Eis alguns poemas que permitem
esse viés: “O verme”, “No alto”, “Suavi mari magno”.

2 A PRESENÇA DO FEIO EM “MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS”

Há um aspecto relevante e oportuno do feio sugerido em “Memórias póstumas”,


aspecto que Charles Feitosa (Cf. 2002, p. 05, 06) sustenta: o vínculo entre o feio e a
sensibilidade humana diante da efemeridade ou da transitoriedade da existência
material. Isso envolve as marcas que o tempo deixa sobre as coisas e os corpos físicos,
indicando decrepitude, vindoura mortalidade-finitude desses elementos. Tais marcas
fazem o ser humano lidar com elas expressando uma sensibilidade fatal, passando a ver
as coisas e os corpos físicos, marcados pela decrepitude, como feios. Em “Memórias
póstumas” esse tratamento veemente com a feiúra é sugerido através de uma das
personagens desse romance machadiano, com quem Brás Cubas se envolveu,
denominando tal envolvimento de “meu primeiro cativeiro pessoal” (MACHADO DE
ASSIS, 1994a, p. 38). Essa persona é Marcela. Para compreendermos tal tratamento,
oportunamente, é imprescindível que tenhamos em mente duas fases da vida de
Marcela. A primeira, “a Marcela de 1822”, a “linda Marcela” (Idem, 1994a, p. 38/64),
segundo nossa leitura, corresponde ao ideal clássico da Vênus perfeita, personificação
do belo, revelando a ausência do feio. No entanto, a segunda Marcela, que,
diferentemente de Eugênia, não nasceu coxa, revela, aos olhos de Brás Cubas, uma
fealdade decrépita, repulsiva, até mesmo fantasmagórica. Essa segunda Marcela sugere
a desconstrução do ideário estético clássico do belo, impulsionada por Baudelaire, na
França. Assim, “Baudelaire [...] se insurge contra esse conceito de poesia e, por
conseqüência, de belo; daí sua [de Baudelaire] sua intenção de extrair beleza também do
que é sórdido, do que é feio, [...] [causando] um choque no leitor [...] acostumado com o
convencional” (GOMES, 1994, p. 06). Com essa perspectiva, dialogaremos com alguns
poemas desse autor que sugerem essa leitura, constantes de “As flores do mal” (1857),
mas antes importa considerar a primeira Marcela. A primeira Marcela consta dos
capítulos 14 ao 18. No capítulo 14, “O primeiro beijo”, Marcela era, segundo Brás
Cubas, “filha de um hortelão”, não de “um letrado de Madri” (MACHADO DE ASSIS,
1994a, p. 38), pois a notícia de que ela era filha de um intelectual espanhol era a que

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circulava, mas não era a real. Era uma cortesã em cuja casa funcionava um bordel, com
a presença de outras cortesãs. Obviamente, para ser uma cortesã de luxo, Marcela
deveria ter uma beleza afrodisíaca. Essa beleza, juntamente com a conduta, é descrita
por Brás Cubas, o qual foi atraído por Marcela, de modo que se envolveu com ela
apaixonadamente:
[...] “A linda Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do tempo. [...] Não
possuía a inocência rústica, e mal chegara a entender a moral do código.
[...] Sem escrúpulos, [...] luxuosa, [...] amiga do dinheiro e dos rapazes.
[...] Airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma
coisa que [eu] nunca achara nas mulheres puras. Deixei-me ir namorado,
[...] cheio das primeiras auroras. [...] Puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo.
[...] E se era jóia, dizia isso [...] a ensaiá-la em si, e a rir, e a beijar-me com
uma reincidência impetuosa e sincera. [...] Marcela não morria, vivia [de
amores]. [...] Era bem bonita, Marcela amou-me... [...] durante quinze
meses e oito contos de réis; nada menos (Idem, 1994a, p. 38-42)

A plenitude “das primeiras auroras” afrodisíacas do crepúsculo da adolescência


cegaram Brás Cubas, inicialmente, para o real caráter da bela cortesã. Com isso, o
insigne Cubas reduziu-se apenas à atração passional e sexual, à beleza de Vênus que
Marcela ostentava bacante, para ser “amiga” não só dos “rapazes”, mas também do
“dinheiro” deles, inclusive do dele. Só depois é que ele descobre que a sedução
envolvente da dama foi para explorá-lo financeiramente, mas mesmo ao embarcar a
Coimbra, ele ainda estava medusado pela luxuriosa cortesã. Na narração do Além,
obviamente ele reatualiza esse fato, com “rabugens de pessimismo”, “a pena da
galhofa” e “a tinta da melancolia”.
Saindo dessa descrição factual, própria à narrativa, podemos ver, nessa descrição
da primeira Marcela, a personificação do ideário clássico do belo. Nesse sentido, vale
lembrar que os gregos, influenciados pela concepção platônica do mundo ideal,
idealizaram modelos de beleza. Exemplificadamente, essa influência pode ser vista
mediante Afrodite ou Vênus, a qual, embora não haja existido in praesentia, representa
a idealização grega ou clássica da mulher perfeitamente bela. Tal concepção platônica
fincou sólidas raízes na formação da cultura do belo no mundo ocidental até hoje. No
século XV, Sandro Botticelli esculpiu magistralmente o quadro "Nascimento de Vênus"
(1486), uma representação da idealização grega ou clássica da perfeição feminina.
Continuando o legado, Diego Velásquez (1599-1660) pintou "Vênus ao espelho", de
1648. Posteriormente, Adolphe William Bouguereau (1825-1905) fez um outro quadro,
de 1879, com o mesmo título do de Botticelli. O reflexo desse ideário pictórico de
representação clássica da natureza feminina se fez sentir plenamente no século XX,
quando a atriz Audrey Hepburn (1929-1993) foi, por meio de uma pesquisa realizada
por especialistas, considerada a mulher mais naturalmente bela. Entretanto, como disse
Brás Cubas, “cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será
corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”
(MACHADO DE ASSIS, 1994a, p. 56). Aplicando-se a Marcela esse dito, podemos ver
que quando Brás Cubas se reencontra com ela, a descrição que ele dá para o leitor, não é
a de uma cortesã afrodisíaca, “a da primeira edição”, mas a de uma dona de loja com
uma decrepitude decomponente, a “da quarta edição” (Idem, 1994a, p. 63-65). Assim, é
possível ver a desconstrução do ideário clássico do belo através dessa Marcela em
processo de “edição definitiva”, larvária. Essa Marcela é feia, mas redimida pela arte da
pena machadiana, para ser uma bela construção de linguagem:

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Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto
amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que
se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao
contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma
velhice precoce destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido
terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives
e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa, enormemente grossa. Eram
os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e
repugnante, que mudou, entretanto, logo que comecei a falar. Quanto ao
cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. [...]. Essa
mulher era Marcela (Idem, 1994a, p. 64

De fato, como mesmo disse o narrador-personagem, “não era esta certamente a


Marcela de 1822”, com “a beleza de outro tempo” (Idem, 1994a, p. 64). Tendo se
reencontrado com Marcela, aparentemente por acaso, Brás Cubas faz uma descrição
decrépita, repulsiva e espectral da cortesã afrodisíaca do passado, de modo que ele
oscila, nesse reencontro, entre “o assombro do presente” e “a memória do passado”. O
narrador de “Memórias póstumas” além de crer na decrepitude não só do corpo, mas
também da alma de Marcela, nota algo dito por ela na longa conversa com ele: “falou-
me longamente [...] do tempo, que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a decadência”
(Idem, 1994a, p. 64).
Nada é fortuito na prosa machadiana. Antes de Brás Cubas entrar na loja de
Marcela, ele consulta o relógio e, de repente, a tampa de vidro desse objeto cai na
calçada. Esse episódio o faz ir ao encontro da antiga cortesã. A queda desse vidro do
relógio sugere o que, em seguida, Brás Cubas veria em Marcela: a ação voraz do tempo,
“que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a decadência”. Com isso, podemos entender “a
relação entre a feiúra e o transitório ou efêmero”, porque “o tempo deixa marcas sobre a
superfície das coisas e dos corpos”, aparentando que “a feiúra vem como um processo
inevitável do tornar-se mais velho”, revelando “nossa finitude” (FEITOSA, 2002, p. 04.
Tradução nossa83). Em suma, estamos diante da ação voraz do tempo, tal como
entendida por vários poetas. Assim o fez, por exemplo, Baudelaire em dois poemas de
“As flores do mal”, “O relógio” e “o inimigo”, dos quais serão extraídos alguns versos.
De “O relógio” (BAUDELAIRE, 2002a, p. 94-95):

Relógio! deus sinistro, assustador, indiferente, / E cujo dedo ameaça a nos


dizer: Recorda! / A vibradora Dor, que, no medo transborda, / Em teu
coração irá se encravar brevemente; [...] // Remember! Lembra então! Esto
memor! em coro / (Não ignora um idioma a goela de metal) / O minuto é
uma ganga, ó frívolo mortal, / De que não deixarás extrair todo o ouro! //
Lembra então que este Tempo é um jogador atento / Numa lei de ganhar,
perene e sem trapaça. / Lembra então como a noite aumenta e o dia passa, /
A clepsidra é vazia; o abismo está sedento. [...].

Eis o relógio, cujo tic-tac o reforça como símbolo da voragem inexorável da


temporalidade. A designação “deus sinistro”, “assustador”, atribuída ao tempo pelo eu
poético, nos remete ao quadro de Goya (1746-1828), com a imagem de Saturno,
também identificado com Crono, devorando os filhos, pois a mitologia clássica

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“The relationship between ugliness and the transitory or ephmeral [...] time leaves marks on the surface
of things and bodies. [...] Ugliness comes as an unavoidable process of becoming older [...] our own
mortality”.

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concebia o tempo como voraz. À vista disso, Marcela, com efeito, sentiu na pele a ação
voraz desse krónos, o qual lhe devorou a beleza afrodisíaca e cortesã que antes usava
para explorar os homens. Marcela mesma disse a Brás Cubas que o tempo ajudou a
moléstia que ela contraiu (sífilis?), dando a ela, em vida, o adiantamento da decadência
da conduta cortesã de que ela abusava nos bordéis da vida. Talvez a espanhola houvesse
tratado com desdém o aviso em sua língua, constante do poema baudelairiano, “esto
memor”, pois o Tempo lida universalmente com todos os humanos. O tempo não deu
jeitinhos para Marcela, não foi brasileiro no jogo da vida, no qual ele só ganha a
medalha de ouro; deixou para antiga cortesã “a clepsidra vazia”, instaurando o fim de
uma existência, de modo que a boca abismal da morte fica sedenta por uma vida
decrepitamente crepuscular, após uma vida de vícios. Finalizando essa parte analítica
em relação à voragem do tempo na vida desregrada de Marcela, algo até mesmo
compreendido por ela, citamos os últimos versos do poema “O inimigo”, de Baudelaire,
que dizem respeito a essa compreensão: “/ [...] Devora o tempo a Vida, ó suprema
agonia! / Se rói o coração o inimigo traidor, / Cresce por se nutrir dessa nossa anemia! /
[...]”. A propósito, Brás Cubas entendeu bem essa filosofia existencial do tempo, nesta
máxima: “matamos o tempo; o tempo nos enterra”. Orgias, bacantes banquetes, formas
de “matar o tempo” que a insigne cortesã usou. Mas foi o tempo que começou a jogar
nela as terras sepulcrais, por meio da moléstia que ela contraiu, que possivelmente teve
a contribuição de um dos amantes: o tísico Xavier (Cf. MACHADO DE ASSIS, 1994a,
p. 38-39). Essa segunda Marcela não é mais a Vênus de Botticelli, de Velásquez e de
Bouguereau, mas uma Vênus “Musa doente”, decadente, tal como descrita por
Baudelaire neste poema, cuja primeira estrofe destacamos: “/ Ah, minha pobre musa, o
que tens esta vez? / Teus olhos ocos são todos visões noturnas / E alternativamente
refletes na tez / Loucura e horror, as sombras taciturnas” (2002a, p. 23). As varíolas
“que [...] escalavraram o rosto”, a tez de Marcela, apresentando um “rosto amarelo e
bexiguento” refletiam o horror de uma alma decrépita, e o “vulto”, cujos “olhos eram a
melhor parte” (MACHADO DE ASSIS, 1994a, p. 64) era tal qual uma “sombra
taciturna”, com “olhos ocos”, janelas da alma em “visões noturnas”. Eis, portanto, a
Vênus doente de Brás Cubas, a qual perdia para a “Vênus Manca”, Eugênia, que,
mesmo coxa, ainda ostentava beleza.
Há um outro símbolo envolvido no estado terrificante e repulsivo de Marcela,
descrito por Brás Cubas, instaurando um quadro de uma existência em vias vitais de
putrefação, recorrente em “Memórias póstumas”, a saber: o verme. Segundo Chevalier e
Gheerbrant, o verme “marca a etapa primordial da dissolução, da decomposição” (1997,
p. 944). Por outro lado, “Jung defini-o como figura da libido que mata em lugar de
vivificar” (CIRLOT, 1984, p. 596). Antes de tecermos considerações sobre esse
simbolismo, aplicando-o à narrativa machadiana, é oportuno que entendamos a ligação
entre o verme e a podridão, pelo viés lingüístico. Na língua hebraica, a palavra para
“verme” e “larva” é rimáh, oriunda da raiz verbal raman, que literalmente significa
“apodrecer”84, instaurando uma ligação existencial, além de etimológica, entre o
substantivo e o verbo, sendo que este gera aquele (Cf. KIRST et al., 2002, p. 229). Essa
ligação existencial tornou-se um ensinamento ético no Judaísmo: “Rabi Levitas, de
Yavneh, diz: ‘Sê muitíssimo humilde de espírito, pois o destino do homem é servir de
alimento aos vermes’” (apud BUNIM, 2001, p. 213). Em suas “Memórias”, Brás Cubas
faz uma dedicatória ao “verme que primeiro roeu as frias carnes” dele (MACHADO DE
ASSIS, 1994a, p. 17). Isso simboliza a desagregação da matéria humana, um estado
84
No poema “O vampiro”, Baudelaire sustenta o paralelismo entre vermes e podridão (Cf. 2002a, p. 44).

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feio, como também a desconstrução do Romantismo, cujos autores dedicavam,
geralmente, suas obras a pessoas. Quanto a Marcela, “[ela] negociava com o fim único
de acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência [...]” (Idem,
1994a, p. 65). Tirando o termo “ciúme”, trocando-o por “cobiça”, “paixão do lucro”,
pode-se aplicar a Marcela este poema de Machado de Assis, “O verme”, de Falenas
(1870):

/ Existe uma flor que encerra / Celeste orvalho e perfume. / Plantou-a em


fecunda terra / Mão benéfica de um nume. // Um verme asqueroso e feio, /
Gerado em lodo mortal, / Busca esta flor virginal / E vai dormir-lhe no seio.
// Morde, sangra, rasga e mina, / Suga-lhe a vida e o alento; / A flor o cálix
inclina / As folhas, leva-as o vento. // Depois, nem resta o perfume / Nos
ares da solidão... / Esta flor é o coração, Aquele verme o ciúme. / (Idem,
1994b, p. 52)

A ninfa Marcela de outrora, envolvendo-se com a promiscuidade cortesã,


deixou os vermes da cobiça, da paixão do lucro roerem-lhe a flor da pureza original. Por
conseguinte, a decomposição da matéria, em Marcela, começa em vida, não
necessariamente no túmulo, revelando uma decomposição existencial. Nessa
personagem, o verme é, em termos junguianos, símbolo da libido mortificante, à qual
Marcela cedeu, de modo que, ao fim da vida, não era mais a bela de 1882. Na atitude
repulsiva de Brás Cubas para Marcela, é possível que ele, dali em diante, a visse como
um remorso póstumo, com esta atitude do eu lírico deste poema de Baudelaire,
“Remorso póstumo” (2002a, p. 46, 47).

Quando fores dormir, ó bela tenebrosa, / Em fundo de uma cripta em


mármore lavrada, / Quando tiveres só por alcova e morada / O vazio
abismal de uma cova chuvosa; // [...] A tumba, confidente do sonho
infinito / [...] // Te dirá: “De que te valeu, cortesã incorreta, / Não teres
conhecido o que choram os mortos?” / E os vermes te roerão assim como
os remorsos. /

Assim sendo, suponhamos que Brás Cubas tenha assumido o eu lírico desse
poema, para expressar tal repulsa, considerando a decrepitude da “bela tenebrosa”
Marcela, cujo estado beira o sono da morte, declive existencial que levará à tumba
sepulcral, sendo esta uma derradeira lição moralizante para a “cortesã incorreta”.
Ademais, há a sugestão do remorso como uma nova espécie de verme a roê-la, além do
“verme roedor” da “paixão do lucro” (MACHADO DE ASSIS, 1994a, p. 65). Essa
sugestão é possibilitada pelas lágrimas que Brás Cubas fez Marcela verter durante a
ausência dele, quando viajou a Coimbra (Idem, 1994a, p. 65). Assim, as lágrimas dela
originaram-se no amargo remorso.
Há um poema de “As flores do mal” que pode resumir simultaneamente as duas
Marcelas, com ênfase para a segunda. Lendo o poema, sem título, seria oportunamente
verossímil e possível que Brás Cubas, tendo refletido sobre o reencontro com Marcela,
assumisse este eu lírico, falando sobre ela o seguinte:

Porias o universo inteiro em teu bordel, / Mulher impura! O tédio é que te


faz cruel. / Para treinares os dentes nesse jogo singular, / Terás a cada dia
um coração a devorar, / Teus olhos a girar assim como farândolas, / De
festas de fulgor a imitar as girândolas, / Exibem com insolência uma vã
nobreza, / Sem conhecer jamais a lei de sua beleza! // Máquina cega e

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surda e de um cruel fecundo! / Instrumento a beber todo o sangue do
mundo, / Já perdeste o pudor e ao espelho não viste / Tua beleza cada vez
mais murcha e triste? / A grandeza de um mal que crês saber tanto / Nunca
pôde fazer-te retroceder de espanto, / Na hora em que a natureza em
desígnios velados, / De ti se serve, mulher, ó deusa dos pecados, / - A ti, vil
animal – para um gênio formar? // Ó grandeza de lama! Ó ignomínia
exemplar! (2002a, p. 38)

Baudelaire, em seu fazer poético, utilizava paradoxos, para mostrar o encanto


agressivo como algo que pode revestir o belo (Cf. FRIEDRICH, 1974, p. 58). Esse
poema mostra paradoxos na definição de um tipo específico de mulher, que pode ser
aplicada a Marcela: “deusa dos pecados”, “vil animal”, “grandeza de lama” e
“ignomínia exemplar”. Marcela era, inicialmente, a bela Vênus de Brás Cubas, mas
depois se tornou uma Vênus doente, decrépita, devido ao envolvimento dela com
homens e rapazes tísicos ou tubérculos, como Xavier. Com isso, ela desejava
languidamente por um universo inteiro de homens e rapazes em seu bordel, perdendo
cada vez mais o pudor original, sem refleti-lo na vida crescentemente promíscua, até
porque “mal chegava a entender a moral do código” (MACHADO DE ASSIS, 1994a, p.
38). Marcela não conhecia “a lei da sua beleza (efêmera)”, depois transgredida pela
moléstia que contraiu, desencadeando uma “beleza cada vez mais murcha e triste”,
tendo o tédio como revelador de uma vida amargamente cruel, como Brás Cubas
constatou ao revê-la. Segundo entendemos, ela fez vista grossa à sífilis, enorme mal
que podia conhecer tanto, agindo cegamente como “máquina cega e surda e de um cruel
fecundo”, com o desejo voluptuoso de querer beber o “sangue” (simbolizando a vida
pública e financeira) das vítimas sexuais. Por conseguinte, não adiantou querer fazer
dentições exploradoras dos homens no jogo da vida. A grandeza do mal da sífilis não a
fez retroceder de espanto nas “festas girândolas” ou nos banquetes noturnos do bordel,
mesmo presidido por um tísico (Cf Idem, 1994a, p. 39). A cortesã queria devorar os
corações dos homens; no entanto, já era devorada pela “paixão do lucro”, seu verme
roedor (Cf Idem, 1994a, p. 65). Não tendo atentado para os velados e admoestadores
desígnios da natureza, usando e abusando dela, resta à dama cortesã a vereda
crepuscular para “a grandeza da lama” e para a “ignomínia exemplar” dos vermes.

3. CONCLUSÃO

A desconstrução da beleza afrodisíaca que Machado de Assis faz com Marcela,


segundo entendemos, é uma aceitação do feio como categoria estética, indo de encontro
ao paradigma clássico do belo, que logicamente deixaria Marcela bela, mesmo como
cortesã, a exemplo das prostitutas cultuais de Diana. O autor de Memorial de Aires
possivelmente sabia que “há coisas, seres e comportamentos feios, que o artista aceita
em sua feiúra desagradável, redimindo-os através da representação artística”
(ANDRADE, 2006, p. 22-23). A fealdade de Marcela foi transfigurada em arte literária
através da pena machadiana. Portanto, o que é repulsivo pode ser embelezado
artisticamente, como meio de conscientização da transitoriedade de uma vida marcada
pelo excesso de luxúria, pela exploração da existência alheia, pelo pathos da cobiça,
sendo uma bela conscientização que pode ocorrer através do feio (Cf. VÁZQUEZ, apud
ANDRADE, 2006, p. 35).
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