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A intenção desta comunicação é tocar nos estudos canadenses para verificar aquilo
que eles podem ter de determinante e de contribuição à teoria literária atual. Além disso,
pretende-se verificar se há um elo desses pressupostos com o Brasil. Para isto,
decidimos apresentara obra de Sergio Kokis. Pretende-se comentar um pouco como foi
realizada e concomitantemente verificar os problemas apresentado na obra, tais como o
multiculturalismo, as mobilidades (trans)culturais, a pós-modernidade, o imaginário
coletivo, as identidades, a pós-modernidade, o americanismo, a americanidade e o
entrelugar. Outros conceitos poderão ser estudados também, haja vista que no Quebec
muitos estudos se preocupam com esses temas. Na verdade pretendemos observar
melhor o que ocorre nos estudos atuais sobre a arte, a literatura e a relação especial que
nos traz a obra desse brasileiro radicado no Canadá.
Como se quer estudar uma literatura em movimento, um texto que foge bastante dos
padrões costumeiros dos romances normalmente estudados, pelo menos pela condição
do autor como não nativo, vivendo numa terra de adoção, assimilando e adotando uma
nova cultura. O que nos obriga a uma postura distinta das análises comumente usada
nos romances tradicionais. O autor e o livro se encontram em uma posição de ruptura
bem singular com a historiografia literária.
Para realizar essa tarefa, não esquecemos tampouco de teóricos da modernidade.
Escolhemos Octavio Paz (1984) para quem a ruptura da modernidade atua como
mudança e como tradição, devido ao enaltecimento da negação e da continuidade e a
revolta contra os padrões tradicionais. Desde a sua origem a literatura conviveu com a
adesão ou com o rompimento; afinal, um movimento artístico nasce sempre de sua
rescisão com o anterior, cedendo espaço, mais tarde a um outro que virá para negá-lo ou
dar-lhe sequência. O autor em questão e cuja obra pretendemos estudar assume toda
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uma postura de adesão aos padrões e valores culturais do país que o acolheu. Mas
perguntamos, até que ponto?
Há muitos elemento que fogem aos padrões normais dos romances europeus e
brasileiros. Aliás, deve-se ressaltar que o Quebec tem uma cultura muito própria e muito
autocentrada, com processos estéticos e sociais marcadamente autoconscientes. E foi
justamente num meio severo desses que este autor com a sua escritura conseguiu obter
êxito. Por um lado, ele aderiu à cultura vigente e, por outro acrescentou elementos de
fora e inéditos que trazia consigo e dessa mistura nasceu sua obra dedicada à
comunidade que o leu. O autor escolheu a liberdade numa busca estética, ao mesmo
tempo, pelo novo e pelo tradicional, realizando um amálgama que ultrapassou a
novidade. Segundo Agnaldo José Gonçalves (1997, p.59):
É preciso lembrar que paralelamente à sua produção literária Sergio Kokis tem
também uma obra como pintor. Só a conhecemos através das capas de seus livros que
são sempre ilustrados pelo próprio autor. No entanto, sabe-se que ela está muito
relacionada com sua própria literatura.
No que se refere à pintura e à literatura, sabemos que na época que iniciou suas
atividades no Canadá, as experiências individuais de ruptura com a estética tradicional
já estariam consolidadas. A peculiaridade de cada linguagem, tanto pictórica, quanto
verbal, torna-se o campo de onde surgirão as novas experiências artísticas. A
transgressão, a ruptura e a negação são os elementos de base que irão marcar a produção
artística desde o final do século XIX até a atualidade. Com essa perspectiva, os artistas
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A conclusão da estudiosa é pertinente, uma vez que não é categórica, deixa uma
abertura para outras possíveis inferências. Ela age com equilíbrio e também não fecha a
questão. É preciso esclarecer que o seu texto foi publicado em 1997 e o livro que nos
interessa em 2004.
Há também um outro pesquisador dedicado ao autor, Renato Venâncio Henriques de
Souza, que na classificação que faz do conjunto da obra de Kokis, reconhece apenas três
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romances escritos por Kokis como parte da literatura migrante do Quebec, que ele
denomina trilogia brasileira. São eles: Le pavillon des miroirs (1994), Negão et
Doralice (1995) e Errances (1996). Como se vê, o crítico não menciona L´amour du
lointain (2004) em que pese o Brasil aí aparecer de forma bem marcante. (SOUZA, 2008
p. 93,)
A intenção do nosso trabalho é verificar se Sergio Kokis tem algo a oferecer ao leitor
brasileiro, para além da imagem do Brasil, mas sim nos assuntos expostos no seu
romance que são de atualidade e universalidade evidenciadas. O fato de ele ser
brasileiro ou canadense e de abordar temas desses dois países fica em segundo plano, as
fronteiras se diluem para dar lugar a uma escritura que extrapola formas e temáticas
regionais. No entanto, o leitor de sua obra acabará por estabelecer ligações entre o
Brasil, mesmo que sejam poucas as pessoas que conhecem sua criação literária no Brasil
e a realização de uma tradução acompanhada de uma produção crítica sobre a obra
constituiria uma contribuição importante para a compreensão entre nós desse autor de
um entrelugar tão singular como é o caso desse romance e do escritor Sergio Kokis.
A análise do livro, L`amour du lointain, objeto de estudo, levando em consideração
que o autor o classifica como “récit en marge des textes”(narrativa à margem dos
textos). O narrador inicia o seu texto da seguinte maneira:
Desde esse começo, já se tem uma pista facilitadora para a compreensão do livro. É
um romance, ou melhor, uma narrativa autobiográfica. Por isso, será preciso utilizar
uma metodologia e uma fundamentação teórica que dêem respaldo ao relato que, em
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seguida, é apresentado. Nesse sentido, vale colocar que o livro é composto de doze
capítulos sem título. No início de seu último capítulo o narrador escreve:
Pode-se notar que se trata de uma viagem ao interior de si mesmo e de seus textos,
quase de uma autoanálise. Isto não poderá ser esquecido durante toda a realização do
trabalho. Há uma preocupação bem subjetiva que envolve também uma reflexão, um
confronto entre a vida e a escrita. A vida explica a obra, mas a obra explica a vida? Eis
um grande tema ou desafio que este livro coloca. Até que ponto a obra tem relação com
a própria vida e vice-versa. Este livro é um convite para esta reflexão e se constitui
numa instigante proposta de exercício crítico, uma oportunidade única de realização de
uma tarefa complexa, porém altamente compensadora se levada a bom cabo.
Há informações de várias origens sobre Kokis, e escolhemos esta de um depoimento
em um colóquio realizado na Universidade de Montreal. Inteiramo-nos que Sergio
Kokis nasceu em 1944 no Rio de Janeiro:
Ocorre que Sérgio Kokis publicou no Quebec seu primeiro livro em 1994, Le
Pavillon des miroirs, portanto apesar de podermos classificar sua escrita migrante,
dentro da proposta classificatória de Pont-Humbert, ele estaria também em outro
estágio: “o capítulo aberto dos anos 1990”, do qual ela diz:
Podemos, assim, constatar que ele ganhou seis prêmios literários, isso revela sua
aceitação pela crítica quebequense. Nota-se, também, que nos primeiros livros a
presença do Brasil é mais forte, tanto que são chamados de a trilogia brasileira. Nos
outros seguintes, os temas são outros. Seria bom verificar quanto o Brasil está presente
em cada um deles. O certo é que no livro que nos propusemos a analisar a presença do
Brasil é muito forte.
Na obra objeto de estudo, o autor coloca três epígrafes: uma de Nietzsche: Mes
frères, c`est n´est pas l`amour du prochain que je vous conseille; je vous conseille
l´amour du lointain ( Meus irmãos, não é o amor pelo próximo que eu lhes aconselho;
eu lhes aconselho o amor pelo longínquo) ; outra de Miguel Torga: c`est à travers la
mémoire que notre passé joue son avenir ( é através da memória que nosso passado
representa seu futuro; outra de Blaise Cendrars: écrire n´est pas mon ambition, mais
vivre. J`ai vécu. Maintenant j`écris ( escrever não é minha ambição, mas viver. Eu vivi.
Agora escrevo). Essas epígrafes revelam suas leituras e suas admirações, mas também
compromissos, inquietações e intenções filosóficas que norteiam a própria escritura do
texto..
Albert T`Serstevens no seu livro, L´homme que fut Blaise Cendrars, dá a sua opinião
sobre o amor que Cendrars sentia pelo Brasil:
Embora ele tenha guardado desse país uma forte lembrança retomada
tantas vezes em seus livros, não parece que ele o tenha amado muit:
parece-me que tenha se decepcionado com este país. Como seu amigo
Paulo Prado, que ele nos diz ter morrido dessa desilusão, não encontrara
nada do ardor, da vitalidade que ele esperava do Brasil.
Frequentemente, ele falou-me dele com uma espécie de negligência
desdenhosa e na dedicatória que ele me escreveu num exemplar do
catálogo de Mônaco, acrescenta sob o título impresso: Para que você
não vá lá. No fundo, ele amou, sobretudo, os países que sonhou visitar
(T`SERSTEVENS, 1972, p.141 – tradução nossa).
Acreditamos ter até o momento ter material suficiente para estudar a questão e
pretendemos ampliá-lo para poder aprendermos mais sobre este assunto e para
atingirmos nosso objetivo de apreensão mais aprofundada da obra objeto de nosso
estudo. Nosso tema se adapta muito bem a este objeto de estudo: um escritor de origem
brasileira que, de algum modo, troca sua identidade e consegue um reconhecimento
num outro país, numa outra cultura, outra expressão artística, outra língua. Destaca-se
nesse nosso trabalho uma preocupação com o problema da identidade do autor, em
relação à heterogeneidade cultural do seu país por encontrar, por incrível que possa
parecer, ressonâncias em nossa própria nação e literatura. A análise do romance
permitirá realizarmos verificações sobre uma série de problemas tão importantes para o
nosso trabalho dentro da Universidade, assim como para deixarmos um legado de
análise, por pequeno que seja para futuras gerações brasileiras. A prática crítica
acadêmica deve permanecer cada vez mais próxima da realidade sociocultural, para
atingir seus objetivos científicos e educacionais. É o que este estudo poderá vir a
contribuir significativamente. Nossa tentativa visa a responder essas questões e é por
isso que propomos esta pesquisa, buscando preencher aquilo que poderíamos também a
nosso turno, nomear como um entrelugar teórico-literário a demandar compreensão.
Referências
tinham que atirar das escarpas. Mas o mar era manso e pródigo, e
todos os homens cabiam em sete botes 1.
Depois da meia-noite diminuíram os assovios do vento e o mar
caiu na sonolência da quarta-feira (p. 50).
1
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O afogado mais bonito do mundo. In: ______. A incrível e triste
história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Trad. Remy Gorga, Filho. Rio de Janeiro: Record,
2009. p. 48. Todas as citações deste trabalho referentes ao conto analisado serão retiradas desta edição.
Indicaremos, portanto, apenas a sua página.
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pedras, conforme foi descrito pelo narrador no segundo parágrafo do conto e aqui
ressaltado. O mundo que tivesse o afogado como homem do dia a dia, além das portas
largas, dos tetos altos, dos pisos firmes, das camas fortes, teria uma maneira mais fácil
de viver, vida com muita água minando da terra, muitas flores enfeitando a paisagem:
“Pensavam que tivera tanta autoridade que poderia tirar os peixes do mar só os
chamando por seus nomes, e pusera tanto empenho no trabalho que fizera brotar
mananciais entre as pedras mais áridas, e semear flores nas escarpas” (p. 50).
Em meio a tantas fantasias, surge a preocupação em dar nome ao afogado. Seria
Estevão? Trata-se de nome de santo que foi apedrejado em vida. Este nome é-lhe
atribuído pela senhora mais velha do grupo, imbuída, como salienta o narrador, de
“menos paixão” (p. 50) ou, até mesmo de algo próximo ao significado do idiota, no
interior da psicologia de Dostoiesvski, retratado em seu deslocado existir. Este último
significado presta-se à maneira como o grupo de mulheres imagina ter sido sua vida:
repleta de generosidade, benevolência e, dado tal fato, visto pelos outros como pouco
inteligente:
Viram-no condenado em vida a passar de lado pelas portas, a ferir-se
nos tetos, a permanecer de pé nas visitas, sem saber o que fazer com
suas ternas e rosadas mãos de boi marinho, enquanto a dona da casa
procurava a cadeira mais resistente e suplicava-lhe, morta de medo,
sente-se aqui Estêvão, faça-me o favor, e ele encostado nas paredes,
sorrindo, não se preocupe senhora, estou bem assim, com os
calcanhares em carne viva e as costas abrasadas de tanto repetir o
mesmo, em todas as visitas, não se preocupe senhora, estou bem
assim, só para não passar pela vergonha de destruir a cadeira, e talvez
sem ter sabido nunca que aqueles que lhe diziam não se vá, Estêvão,
espere pelo menos até que aqueça o café, eram os mesmos que,
depois, sussurravam já se foi o bobo grande, que bom, já se foi o bobo
bonito (p. 51).
Seria Lautaro? Poderia ser também esta a denominação a ser atribuída ao afogado,
dado o registro em seu corpo de força, determinação, paixão e carisma, segundo desejos
inconfessos das personagens caribenhas mais novas e apaixonadas presentes no conto
de Gabriel García Márquez. Ao denominarem o afogado desta forma, as jovens
mulheres revelam ver nele a beleza do herói presente no poema épico intitulado La
Araucara, do escritor espanhol Alonso de Ercilla (1533-1594). Lautaro pertencia à tribo
mapuche. Esta é a denominação de civilizações nativas da América Latina que
resistiram bravamente aos colonizadores espanhóis, travando contra eles uma batalha
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que teve duração de trezentos anos (1536 a 1818). A possibilidade de assim denominá-
lo é logo descartada, pois as jovens mulheres “compreenderam quanto devia ter sido
infeliz com aquele corpo descomunal” (p. 50-51), não poderia, pois, ter sido o referido
herói latino-americano, que viveu, seguramente, em conformidade com seu corpo.
Acabam por aceitar compreensivamente a primeira denominação, Estêvão, aquela de
um santo martirizado proposta pela senhora mais velha.
Também os homens o reconhecem como Estêvão. Vêem nele a fragilidade, a pureza
de intenções, a vergonha de seu tamanho descomunal. Logo depois que as mulheres
tiram do rosto do afogado o lenço que o protegia da luz, percebem que, se o
denominassem Sir Walter Raleigh, estariam atuando contra as características do morto,
pois longe de ser o conquistador, misto de astúcia e velocidade “com seu sotaque de
gringo, com sua arara no ombro, com seu arcabuz de matar canibais” (p. 53), era um
pobre infeliz, tão humilde quanto cada um dos moradores do povoado, conforme o
narrador nos faz saber:
Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estava
envergonhado, de que não tinha a culpa de ser tão grande, nem tão
pesado, nem tão bonito, e se soubesse que isso ia acontecer, teria
procurado um lugar mais discreto para afogar-se, de verdade, me
amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e teria
tropeçado como quem não quer nada nas escarpas, para não andar
agora estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês
chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de presunto
que nada tem a ver comigo (p. 53).
preocupe senhora, estou bem assim (p. 51, destaques nossos) ? , seja quando se
desculpa frente aos homens que pela primeira vez lhe vêem o rosto:
me amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e teria
tropeçado como quem não quer nada nas escarpas, para não andar
agora estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês
chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de presunto
que nada tem a ver comigo (p. 53, destaques nossos).
Este ser tão humilde só poderia chamar-se Estêvão, um misto de nativo, Laudaro, e
de colonizador, Sir Walter Raleigh. Talvez a humildade que o caracteriza seja a de uma
outra raça que em seu sangue se faz presente, a de um negro anônimo. Estêvão
apresenta-se, pois, como resultado de uma síntese a caracterizar o homem latino-
americano, sejam os de língua espanhola, sejam os de língua portuguesa, todos
humildes terceiro-mundistas a viverem a cotidianidade sem grandeza, sem orgulho, sem
competência para encantar o outro com “antigas fábulas de sereias” (p. 54).
Estêvão, que vem de fora, apresenta-se como o “duplo exterior” da comunidade de
pescadores. Através dele, cada um de seus membros, estranhando seu aspecto, passa a
olhar para si mesmo, até que, ao final, o que era estranho torna-se familiar, revelando
uma possibilidade de ser diferente daquela que lhes era conhecida. Assim sendo, o
“duplo exterior” transforma-se em “duplo interior”.
Freud, em 1919, publicou artigo intitulado “Das Unheimliche”, traduzido como “El
sinistro”, “L’inquiétante étrangeté”, “O estranhamente familiar”, “O estranho”, “O
inquietante”. Neste ensaio, o psicanalista toma como ponto de partida estudo semântico
do adjetivo alemão heimlich (familiar) e de seu antônimo unheimlich (secreto, íntimo,
escondido, inquietante, macabro, tenebroso, esquisito, misterioso, dissimulado). Toda a
primeira parte deste ensaio é dedicada às diferentes significações destes adjetivos,
recorrendo até mesmo a dicionários de outras línguas. O resultado é a coincidência final
dos dois adjetivos, conforme se lê no derradeiro parágrafo desta primeira parte do
ensaio, onde o psicanalista remete ao significado dado por Schelling: “ ‘Unheimlich’ é o
nome de tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz” (FREUD,
1976, p. 91).
Seguindo as colocações de Freud, Estêvão é o morto que veio de fora, o forasteiro, o
“duplo exterior” dos tranqüilos e acomodados pescadores. Ao chegar, desperta
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REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. O estranho. In: ________. Obra completa. v. VII. Edição standart
brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Trad. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1976.
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O afogado mais bonito do mundo. In: ______. A incrível e
triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Trad. Remy Gorga, Filho. Rio
de Janeiro: Record, 2009.
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Introdução
Um chefe de um grupo de foras da lei compra um discurso, para ser usado durante três
meses de campanha eleitoral, o qual consegue deixar toda a população de um país
convencida de que não poderiam existir palavras melhores e tão bem ditas.
Analisar os aspectos que possivelmente contribuíram para a criação desse discurso assim
como os que influenciaram para seu incrível sucesso frente à população é o principal
objetivo deste estudo já que, até para o leitor menos atento, não parece ser muito fácil
aceitar tais ocorrências nos moldes que Isabel Allende sugere. Um resumo do conto, assim
como algumas considerações a respeito de grupos de foras da lei possivelmente
semelhantes ao do Coronel (chefe do grupo), também será apresentado além de algumas
ponderações em relação a aspectos intertextuais e ao modo como a protagonista da
narrativa aprendeu a ler e escrever. Posto isso, é possível perceber que as páginas seguintes
apresentarão postulações relacionadas ao discurso, à ideologia e ao poder em alguns pontos
da sociedade que, direta ou indiretamente, fazem parte do mundo de Dos palabras.
1. Dos palabras
17) 1.
A primeira forma que ela encontrou de comerciar com as palavras foi vendendo jornais.
Mas, quando soube que las palabras podían también escribirse fuera de los periódicos,
[…] calculó las infinitas proyecciones de su negocio (DP, p. 17). Com vinte pesos pagou a
un cura para que le enseñara a leer y escribir (DP, p. 17) e com os três que restaram do
total que conseguira se compró un diccionario. Lo revisó desde la A hasta la Z y luego
lanzó al mar, porque no era su intención estafar a los clientes con palabras envasadas
(DP, p. 17) e logo começou a vender versos de memória, sonhos os quais ela melhorava a
qualidade, cartas de apaixonados, insultos para inimigos irreconciliáveis, argumentos de
justiça e también vendía cuentos, pero no eran cuentos de fantasía, sino largas historias
verdaderas que recitaba de corrido, sin saltarse nada. Así llevaba las nuevas de un pueblo
a otro (DP, p. 15).
Vários anos depois, de repente foi surpreendida pelos homens do Coronel que, assim
como este, viviam fora da lei. O chefe do grupo necessitava de seus serviços.
Levaram-na até o lugar onde ele estava. Ela não pode ver seu rosto, mas imaginó que
debía ser de expresión perdularia si su gigantesco ayudante se dirigía a él con tanta
humildad (DP, p. 19).
Após perguntar se era ela quem vendia palavras e obtendo reposta afirmativa, disse o
Coronel: – Quiero ser Presidente (DP, p. 19).
Estaba cansado de recorrer esa tierra maldita en guerras inútiles y
derrotas que ningún subterfugio podía transformar en victorias. Llevaba
muchos años durmiendo a la intemperie, picado de mosquitos,
alimentándose de iguanas y sopa de culebra, pero esos inconvenientes
menores no constituían razón suficiente para cambiar su destino. Lo que
en verdad le fastidiaba era el terror en los ojos ajenos. Deseaba entrar a
los pueblos bajo arco de triunfo, entre banderas de colores y flores […].
Estaba harto de comprobar cómo a su paso huían los hombres, abortaban
de susto las mujeres y temblaban las criaturas, por eso había decidido ser
Presidente. […] – Para eso necesito hablar como un candidato (DP, p. 19-
20). (grifos meus)
1
A partir daqui, referir-se-á ao conto Dos palabras pela sigla DP seguida do número da página.
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Ele necessitava de palavras para um discurso e ela podia vendê-las. Durante a noite e
parte do dia seguinte, Belisa buscou em seu repertório as palavras adequadas para um
discurso presidencial. Descartou as palavras ásperas e secas, as floridas, as que estavam
desgastadas pelo uso, as que ofereciam promessas improváveis, as carentes de verdade e as
confusas, para ficar só com aquellas capaces de tocar con certeza el pensamiento de los
hombres y la intuición de las mujeres (DP, p. 20).
Ao entregar o discurso ao Coronel, ele perguntou o quê diziam aquelas palavras. Não
sabia ler. Disse que sabia hacer es la guerra (DP, p. 21). Então Belisa Crepusculario leu o
discurso três vezes para que ele o gravasse na memória. Quando terminou viu que os
homens da tropa que se juntaram para escutá-la estavam emocionados e notou que os olhos
do Coronel estavam entusiasmados, certos de que com aquelas palavras a cadeira
presidencial seria sua. Si después de oírlo tres veces los muchachos siguen con la boca
abierta, es que esta vaina sirve, Coronel – aprobó el Mulato (DP, p. 21).
Um peso foi o preço do discurso. Belisa Crepusculario, no primeiro encontro, já havia
sentido el impulso de ayudarlo, porque percibió un palpitante calor en su piel, un deseo
poderoso de tocar a ese hombre, de recogerlo con sus manos, de estrecharlo entre sus
brazos (DP, p.20).
El los meses de septiembre, octubre y noviembre el Coronel pronunció su
discurso tantas veces, que de no haber sido hecho con palabras
refulgentes y durables el uso lo habría vuelto en ceniza. […] Nadie
prestaba atención a esos recursos de mercader, porque estaban
deslumbrados por la claridad de sus proposiciones y la lucidez poética de
sus argumentos, contagiados de su deseo tremendo de corregir los
errores de la historia y alegres por primera vez en sus vidas. […] Pronto
el Coronel se convirtió en el político más popular. Era un fenómeno
nunca visto… (DP, p. 22).
2. Os bandidos
O Coronel, que deseja ser presidente e reconhecido pela população como pessoa melhor,
é líder de um grupo de homens os quais se pode chamar de guerreiros, bandidos,
bandoleiros ou simplesmente foras da lei. Eric Hobsbawm, no livro Bandidos (2001), expõe
que para comprender el bandolerismo y su historia debemos verlo en el contexto de la
historia del poder, es decir, del control por parte de los gobiernos u otros centros de poder
(HOBSBAWM, 2001, p. 24). Nesta direção, tem-se que os grupos que pretendem
sobreviver fora da lei em situações as quais se podem considerar como estáveis nos vários
tipos de governo não conseguem bons resultados, já que las limitaciones, tanto técnicas
como ideológicas, son tales que los hacen inviables para algo que vaya más allá de unas
operaciones momentáneas (HOBSBAWM, 2001, p. 122).
Não é difícil perceber, em uma grande quantidade de textos, literários ou não, aspectos
de outros textos já escritos que, de uma maneira ou de outra, se repetem. A esse fenômeno
se dá o nome de intertextualidade. Um trecho do conto é paradigmático neste sentido:
Belisa Crepusculario había nacido en una familia tan mísera, que ni
siquiera poseía nombres para llamar a sus hijos. Vino al mundo y creció
en la región más inhóspita, donde algunos años las lluvias se convierten
en avalanchas de agua que se llevan todo, y en otros no cae ni una gota
del cielo, el sol se agranda hasta ocupar el horizonte entero y el mundo se
convierte en un desierto. Hasta cumplió doce años no tubo otra
ocupación ni virtud que sobrevivir al hambre y a la fatiga de siglos.
Durante una interminable sequía le tocó a enterrar a cuatro hermanos y
cuando comprendió que llegaba a su turno, decidió echar a andar por las
llanuras en dirección al mar, a ver si en el viaje lograba burlar la muerte.
La tierra estaba erosionada, partida en profundas grietas, sembrada de
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Esses aspectos referentes à seca, pobreza, sede, fome e fuga não são estranhos à
literatura brasileira, principalmente, no que se refere a muitos dos romances escritos na
primeira metade do século XX os quais tinham como característica problematizar situações
políticas, sociais, econômicas, religiosas, culturais, etc., inerentes ao nordeste do Brasil.
Considerando-se que “as formas de uma enunciação literária, de uma obra literária, só
podem ser apreendidas na unicidade da vida literária, em conexão permanente com outras
espécies de formas literárias” (BAKHTIN, 2006, p. 106), pode-se admitir que o caminho
que Belisa Crepusculario teve que seguir repleto de, entre outras coisas, fósseis
branqueados de animais, bem que poderia ser o mesmo que a família de Chico Bento (O
Quinze – 1930) ou a de Fabiano (Vidas secas – 1938) seguiram em direção a outra vida,
dias melhores ou coisa parecida. Tanto um como o outro estão sob as marcas da seca e do
meio social desfavorável. As “rachaduras da terra árida transplantam-se para o corpo de
Fabiano. Em seu pé encontram-se as mesmas gretas fundas que cobrem o sertão seco”
(DEMARCHI, 2006, p. 04). Chico Bento, esse que, como todos em situação tranquilamente
confundível com a sua, tem somente o nome de diferente, “sem legume, sem serviço, sem
meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca durasse”
(QUEIROZ, 1993, p. 26).
Sobre a dificuldade do trajeto feito por Belisa Crepusculario, pelas famílias de Chico
Bento e Fabiano, é possível apresentar algumas características capazes de indicar o
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fenômeno da intertextualidade nas obras. O narrador de Vidas secas escreve que, depois de
caminhar umas três léguas antes que aparecesse a barra do nascente, pararam, e Fabiano
olhou para o céu. “Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança.
Retardara-se e repreendera os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os a poupar forças”
(RAMOS, 1989, p. 117).
Belisa Crepusculario não se detinha ao passar por pessoas nas mesmas condições que as
suas, ela não podia gastar suas forças em exercícios de compaixão. Chico Bento (O Quinze)
ao se deparar com um grupo de pessoas que estava começando a preparar uma rês que já
estava em decomposição, mas que queriam aproveitar para não deixá-la para aos urubus,
não deixou que isso se passasse. “– E vosmecês têm a coragem de comer isso? Me ripuna
só de olhar... [...] Eu vou lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tendo um bocado
no meu surrão!” (QUEIROZ, 1993, p. 40).
Outro aspecto ao qual vale à pena pôr atenção se refere ao confrontamento de uma
certeza, em Dos palabras, com uma possibilidade, em Vidas secas. É importante recordar
que os dois aspectos estão caracterizados no mundo da ficção no qual a autora Isabel
Allende
empenha-se num contrato com o real de modo que subjetividade,
imaginário, cotidiano, presente e passado se articulam num fluxo
ininterrupto. Pela multiplicidade de discursos, o que se pretende é manter
uma fidelidade a cenários, a emoções e a um certo panorama do momento
– fidelidade que só se torna possível porque se dá no plano da ficção, um
terreno no qual tudo (ou quase tudo) cabe (VERUNSCHK, s.d., p. 38-9).
Nessa direção, não se pode deixar de ter em conta as palavras de Antonio Candido ao
afirmar que “a literatura é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte”
(CANDIDO, 2000, p. 162).
A certeza está relacionada com o sucesso que Belisa Crepusculario obteve depois de
chegar a seu destino. Já se sabe que ela aprendeu a ler, escrever e, com essas habilidades,
foi passando os anos de povoado a povoado vendendo suas palavras até o ano das eleições
em que seu trabalho foi requerido pelo Coronel. Já a situação literária dada em Vidas secas
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parece não contribuir para que a família de Fabiano tenha a mesma sorte que Belisa
Crepusculário. Às últimas linhas, o autor alagoano expõe que Fabiano e sua família
andavam para o sul, acompanhados por um sonho: uma cidade grande, cheia de pessoas
fortes. “Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois
velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia” (RAMOS,
1989, p. 126).
Ao mostrar os aspectos de um texto presente em outro, seria demais pretender que além
dos meios, parecidos nos trechos citados, também os fins fossem os mesmos. Dos palabras,
O Quinze e Vidas secas apresentam imagens comuns ao descrever as condições geográficas
e sociais de determinadas regiões assim como as dificuldades encontradas por aqueles que,
quase sempre por necessidade, enfrentam a dura viagem em busca de melhores condições
para viver.
4. Belisa e as palavras
5. O discurso perfeito
A sugestão feita pelo Mulato, fiel escudeiro do Coronel, de que eles fossem à capital e
entrassem galopando no palácio para se apoderar do governo, assim como tomaram tantas
outras coisas sem pedir permissão, como se sabe, foi recusada pelo líder bandoleiro.
Mesmo sendo rude, bandido e analfabeto, ele parece perceber que a única maneira de
chegar e permanecer na presidência é pelo meio considerado legal. De outra forma não
conseguiria se manter frente ao Estado que “é a preservação dos interesses particulares da
classe que domina a sociedade. Ele exprime na esfera da política as relações de exploração
que existem na esfera econômica” (CHAUI, 1994, p. 70).
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Sem alfabetização, esta que “não é apenas a simples habilidade de ler e escrever, mas
uma habilidade que recebe irrestrita aprovação social e institucionalmente incentivada, com
o status de virtude de caráter normativo e prescritivo” (MARCUSCHI, 1995, p. 39),
definitivamente ele necessitaria de alguém para que lhe fizesse um discurso. Resta saber se,
além do mundo da ficção, é possível a ocorrência do tão bem sucedido projeto do Coronel,
executado sob os conhecimentos da vendedora de palavras.
No curto tempo que Belisa teve para construir o discurso, algumas considerações, direta
ou indiretamente, certamente influenciaram para que ela o formulasse de uma e não de
outra forma. Os aspectos externos, além de sua estupenda capacidade linguística, pelo
menos é isso que o conto sugere, devem ter-se completado no momento criativo. Nessa
direção, pode-se ter em conta que, “qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação
considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é,
antes de tudo pela situação social mais imediata” (BAKHTIN, 2006, p. 114).
Não estando afastada dos acontecimentos no pais onde cresceu e teve a oportunidade de
conhecê-lo de forma privilegiada, durante muitos anos de profissão, percorrendo-o “desde
las regiones más altas y frias hasta las costas calientes, intalándose en las ferias y en los
mercados, donde montaba cuatro palos con un toldo de lienzo” (DP, p. 15), não parece ter
sido complicado a Belisa recorrer retrospectivamente às diferentes ou parecidas
características do povo a que o discurso dirigir-se-ia . Tais características são fundamentais
para o sucesso de suas palavras ao considerar que enunciação é o produto da interação de
dois indivíduos socialmente organizados, que mesmo sem interlocutor real, “este pode ser
substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor”
(BAKHTIN, 2006, p. 114).
Por já ser conhecido que o discurso proferido pelo Coronel teve grande aceitação por
parte da população, esta que estava deslumbrada por la claridad de sus proposiciones y la
lucidez poética (DP, p. 22), não é difícil aceitar que a maioria ou todo o povo do país vivia
sob condições sociais, econômicas, políticas, religiosas ou culturais muito parecidas, as
quais estão mais próximas de caracterizar pessoas em situações pouco favoráveis. Dessa
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forma, pode-se concluir que se trata de uma população pobre e sem perspectivas sob o
momento histórico em que se encontra.
A essa gente se torna menos complicado convencê-la devido sua fragilidade ante tudo
que a rodeia. Isso não quer dizer que o povo (a massa) não perceba, de certa forma, o que
acontece a sua volta. Michel Foucault, ao comentar sobre a função dos intelectuais, afirma
que as massas não necessitam deles para ter conhecimento das coisas. Ao contrário, elas
sabem muito melhor do que eles e o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que
“barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas
instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente
em toda a trama da sociedade” (FOUCAULT, 2000, p. 71).
As pessoas são levadas, influenciadas pelo que Foucault chama de “múltiplas coerções
que produzem efeitos regulamentados de poder” (2000, p. 12) a aceitar determinadas
verdades as quais, segundo o autor, não se refere ao “conjunto das coisas verdadeiras a
descobrir ou a fazer aceitar, mas o conjunto das regras segundo as quais se distingue o
verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (FOUCAULT,
2000, p. 13). Em relação a este último, em outro lugar se lê que ele deve ser analisado como
algo que circula ou como algo que só funciona em cadeia. Para o autor, ele nunca está
localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns ou é apropriado como uma riqueza ou
um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só
circulam, mas, “estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca
são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão”
(FOUCAULT, 2000, p. 183).
Já que o poder pode ser exercido, de certa forma, até pelos oprimidos, pode-se supor que
nas muitas vezes que o Coronel pronunciou seu discurso encomendado, os ouvintes deviam
reagir a ele de acordo com seus poderes. O que se torna difícil de aceitar é, agora fora da
verossimilhança ficcional, que um mesmo discurso pronunciado com as mesmas palavras
(o Coronel as decorou, já que não sabia ler) em várias ocasiões e para pessoas de todas as
partes do país, tenha conseguido resultados muito semelhantes, para não dizer idênticos.
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Por mais que se trate de um povo pouco acostumado com grandes intentos intelectuais, não
é fácil acreditar nos magníficos êxitos da campanha eleitoral do Coronel. O que pode
fundamentar esta hipótese é a proposição de que
toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de
que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela
constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda
palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra,
defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à
coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se
sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do
interlocutor (BAKHTIN 2006, p. 115).
Posto isso, o que se pode aceitar como ato a receber maior consideração é a provável
vida feliz que teriam Belisa e o Coronal assim que passassem as eleições. Vê-lo como
presidente do país já é uma realidade que dificilmente poderá existir fora do mundo de Dos
palabras ou outros possíveis de se inventar.
Conclusão
No que foi exposto neste estudo houve a pretensão de contribuir para mostrar que o que
se deseja, o que se propõe e do que se desiste, tudo há que passar, de um modo ou de outro,
de mãos dadas com as palavras. Como se sabe, quase toda pessoa, natural ou socialmente,
pode ouvir e falar, mas muitas vezes de maneira passiva. Quem não pode adquirir palavras
por meio de boas escolas ou pela forte decisão de aprender a ler e escrever como um
autodidata, de uma forma ou outra, necessariamente, terá que procurar uma Belisa
Crepusculario para que as venda. O sucesso do propósito da procura é o que não se garante.
Posto isso, entende-se que o objetivo de ter trazido à discussão relações de poder
envolvendo o mundo das palavras na especificidade do discurso político e nas condições
sociais, econômicas e culturais que o conto propõe, de alguma maneira, foi alcançado sob
as proposições propostas neste trabalho. Dessa forma, espera-se que o lido até aqui tenha
contribuído, mesmo que de maneira irrisória, para a compreensão de que o que se relaciona
na significação das palavras vai muito mais além das Dos palabras.
Referências
ALLENDE, Isabel. Dos palabras. In. Cuentos de Eva Luna. Barcelona: Plaza & Janés,
2000.
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Trad. RAMOS,
Joaquim José de Moura. Porto: Presença, 1974.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 2006.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.
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Preliminares
1. A compreensão do cenário
Para que se possa entender melhor o porquê da escolha desta região para a pesquisa,
primeiro é necessário entendê-la. Essa é uma região de antiga colonização, mas de
recente modernização e, até décadas anteriores, quase todo o comércio estava voltado
apenas para a pecuária extensiva.
Essa estrutura econômica, atrelada à distância de cidades maiores, influenciou muito
a realidade educacional e cultural da região. Após a criação do estado do Tocantins
(1988), a região começou a receber profissionais de diferentes áreas das mais diversas
localidades do país que vieram em busca de novas oportunidades diante da nova
situação política, social e territorial que se estabeleceu. A região de Campos Belos deixa
de fazer parte da região central do estado e passa a possuir uma nova divisa estadual,
pertencendo agora ao extremo norte goiano e recebendo maior atenção governamental.
Os profissionais de nível superior que atuavam nessa região eram poucos e todos
formados nas universidades de Goiânia e Brasília. Uma grande quantidade dos
profissionais da educação possuía apenas o ensino médio (magistério ou curso técnico),
o que pode ser comprovado ao se fazer o levantamento dos profissionais concursados há
mais de 6 anos e quantos se formaram na UEG de Campos Belos, cidade onde apenas
10% dos professores concursados e atuantes na área de Letras já eram formados quando
foram efetivados/concursados. Os demais já atuavam como professores sem ter o curso
superior, o qual concluíram em programas específicos de formação de professores em
exercício. Conforme constatado em nossa pesquisa, nas cidades próximas (no vizinho
estado do Tocantins) a situação difere-se apenas em relação à efetivação (concurso) dos
professores, visto que muitos dos profissionais (75%) são contratados. A escassez de
profissionais com nível superior na região ainda é grande.
Essa relativa prosperidade, no entanto, parece não se confirmar na mesma proporção
nos aspectos educacionais e culturais, porque Campos Belos, assim como boa parte das
outras cidades cujo comércio ela atende, também não possui bibliotecas públicas. Para o
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O letramento literário é tão importante para o indivíduo que deve estar presente
também na escola (COSSON, 2002, 2006). No entanto, o que a realidade brasileira nos
apresenta é que para a maioria da população o único contato é dado na escola, muitas
vezes encaminhado por professores com um letramento literário distante do ideal para
desenvolver tal papel, e acaba não sendo feito como deveria (SOARES, 2002).
A precarização do letramento literário, vivida tanto por estudantes como por
professores, não é realidade apenas do nordeste goiano. No entanto, as particularidades
da região – destaca-se aqui a distância de cidades maiores, as dificuldades de acesso a
diversos meios culturais e o próprio não-hábito da leitura literária – são mais
determinantes. É o que Paulino denomina como “impedimento geográfico-econômico
do letramento literário” (2001, p. 124). Distante de centros maiores e com poucas
opções de cursos universitários, a população regional tem na UEG - Campos Belos uma
das poucas opções de reverter este círculo vicioso de (má)formação do leitor literário.
2. Fundamentação
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3. Algumas considerações
em todo o estado há oito anos, os números do ensino básico no estado não refletem uma
presença decisiva no sentido da melhoria da qualidade da educação.
Em Campos Belos, por exemplo, os dados apontam para uma queda na média
observada em 2005 para os anos iniciais. As posições de Goiás (em 10º. lugar, com
39,30) e Tocantins (em penúltimo lugar, com 33,65) avalizam a inferência de que a
presença do ensino universitário na região ainda não foi decisiva nesses últimos anos.
Mais que isso, prova-se que a qualidade de ensino da educação no nordeste goiano está
longe da esperada e que há uma verdadeira crise na situação da leitura literária e do
ensino de literatura nessa região do país.
Isso revela que a formação de professores, ofertada pela UEG – Campos Belos há
cinco anos, ainda não contribui de forma efetiva para desfazer as distorções no contato
escolar com a literatura. Mostrou-se, também, que isso se deve a alguns fatores, dos
quais o principal é, sem dúvida, o fato de que os primeiros professores formados ali não
eram tão apreciadores da literatura como seria de se esperar desse tipo de profissional,
uma vez que, no dizer de Marisa Lajolo,
sempre exclui o livro literário e põe no centro canais culturais como o rádio e a
televisão. Assim, “a grande massa da população, sem condições para estudar, sempre
aderiu aos meios diretos de comunicação, que não exigem educação formal para sua
que sem tornar atraentes a leitura e o ensino de literatura não se conseguirá superar a
crise da leitura literária.
É nessa configuração que se apresenta uma sugestão de ensino e formação de
professores de literatura tendo como apoio a proposta do método recepcional, baseado
na estética da recepção criada por Hans-Robert Jauss, proposta essa desenvolvida no
livro Literatura: a formação do leitor, alternativas metodológicas (AGUIAR e
BORDINI, 1993). Acredita-se que a metodologia recepcional é a que se insere de forma
mais proveitosa num contexto como o do nordeste goiano, marcado pela apatia e
indiferença para com a leitura literária, em parte resultante de uma exclusão histórica
dos estratos literários letrados.
Aguiar e Bordini pressupõem a flexibilização dos programas e listas de leituras em
favor dos estudantes e suas necessidades específicas como aspecto de grande relevância
na expectativa da formação de novos leitores. Diante da ressalva que esse método possa
excluir estudantes inexperientes do contato com obras clássicas e que o tempo
consagrou como excelentes, as autoras demonstram que o método recepcional tem a
vantagem de ser um processo dialógico que consiste de dois momentos: no primeiro faz
concessões, mas no segundo conquista ganhos, pois o leitor se vê motivado e amplia
exigências, experiências e expectativas; aumentam, portanto, as possibilidades de que
ele venha a ler sempre mais e melhor.
As autoras reconhecem, ainda, que o método recepcional é estranho à escola
brasileira, acostumada a tratar a literatura numa perspectiva pragmatista e positivista,
por meio de propostas de leitura que valorizam a apropriação mecânica de aspectos
irrelevantes do texto literário. Tal apropriação dispensa os alunos e leitores de uma
leitura crítica, ativa e, portanto, verdadeira dos textos. Não obstante, os resultados
positivos são evidentes e as escolas e universidades só têm a ganhar com o método.
Pode-se ampliar a percepção das implicações desse método, vendo nele recursos para
qualquer abordagem no âmbito universitário da formação de professores de língua
portuguesa, fazendo-o dialogar com a linguística, a teoria literária e a literatura
comparada. Assim, considerou-se que a proposta de Aguiar e Bordini contempla um
momento local, sincrônico, familiar (aqui entram as concessões com as imagens, os
sons e os movimentos nos quais os estudantes/leitores possam se reconhecer), naif, e
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outro universal, diacrônico, universal e clássico, crítico etc. – nesse âmbito dialógico,
haveria um momento de conciliação e outro de ruptura.
No bojo dessa postura formadora e humanista, o aluno não é mais uma tábula rasa
nem figura passiva, mas co-autor de sua formação na medida em que participa dela,
fazendo suas escolhas e sendo reconhecido nos processos pedagógicos. Sob tal
percepção, o ensino e a apreciação da leitura é feita “com base nas vivências pessoais do
sujeito. A literatura, desse modo, se torna uma reserva de vida paralela, onde o leitor
encontra o que não pode ou não sabe experimentar na realidade” (AGUIAR; BORDINI,
1993, p. 15). Enfim, o método será plenamente eficaz na medida em que o professor
conseguir levar os alunos a ultrapassarem os próprios limites, atingindo a “mudança de
horizonte” pretendida por Jauss (1994, p. 31) e a “transfiguração do real” desejada por
Aguiar e Bordini (1993, p. 26).
Apontando caminhos
Referências
FILIPOUSKI, Ana Mariza Ribeiro. Atividades com textos em sala de aula. In:
ZILBERMAN, Regina. (Org). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
JAUSS, Hans Robert. A História da literatura como provocação à teoria da literatura.
São Paulo, Ática, 1994.
LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina. (org.). Leitura em
crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, pp.
107-131.
LLOSA, Mario Vargas. Um mundo sem romances. In: Seleções, maio de 2003. p. 98-
102.
LINS, Osman. Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo:
Summus editorial, 1977.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Oralidade e letramento. In: Da fala para a escrita:
atividades de retextualização. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
PAULINO, Maria das Graças Rodrigues. Algumas especificidades da leitura literária.
In: 28 Reunião Nacional da ANPED, Caxambu, 2005. Disponível em:
http://www.anped.org.br/reunioes/28/textos/gt10/gt10572int.rtf .Acesso em 25 de Abril de 2010.
_______. Letramento literário: por vielas e alamedas. Revista da Faced, n.º 5.,
Salvador, Faced/ UFBA, 2001.
SILVA, Ezequiel Teodoro. Leitura e realidade brasileira. 2 ed. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1997.
_____. O Ato de Ler. 4 ed. São Paulo:Cortez, 1987.
SOARES, Magda Becker. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In:
EVANGELISTA, Aracy, BRINA, Heliana, MACHADO, Maria Zélia (orgs.). A
escolarização da leitura literária: O jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
STEINER, George. Linguagem e silêncio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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Durante grande parte de sua vida, a escritora Rachel de Queiroz tornou público, por
meio de seus escritos, que a velhice era para ela uma situação praticamente inaceitável e
algo que a incomodava muito. Depois de quase dois anos sem publicar um novo
trabalho, a autora resolve apresentar um falso mundo aos seus leitores. Não para
desanimá-los, mas sim para alertá-los sobre algumas contrariedades nem sempre
pronunciadas.
Falso mar, falso mundo, livro lançado no ano de 2002, trata-se do último livro da
autora. Essa obra apresenta a reunião de oitenta e nove crônicas, produzidas entre o
período de 1983 até 2000, carregadas das impressões de uma mulher perplexa diante de
todas as transformações, diante do progresso e das degradações sofridas pelo mundo e
pela sociedade ao longo do século XX. Atenta observadora da realidade que a cerca,
nada lhe passa despercebido e, com sinceridade, retrata, nessa coletânea de crônicas, sua
visão sobre o cotidiano e sobre o atordoamento em que se encontra o homem,
especialmente o velho, personagem que vive totalmente à mercê das transformações do
mundo.
Para apresentar todo o seu espanto frente a esse novo mundo e a situação dos idosos
nesse contexto, Raquel utiliza-se da crônica, gênero literário, segundo Eduardo Portella,
totalmente matizado, “a ponto de se ter ajustado à trama existencial complexa da
sociedade de massa. Porque a crônica hoje se enriqueceu desta nova função: é elemento
de contato entre a ânsia quantitativa da massa e a necessidade de evitar-se o desnível
qualitativo da informação” (1986, p. 27). Sendo o cronista o prosador do cotidiano, seu
texto é motivado pelos próprios acontecimentos diários e acaba por invadir o dia a dia
do leitor, ainda mais na situação em que se encontra o sujeito, desprovido de qualquer
couraça e perdido no tumulto da vida contemporânea.
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Os sábios conselhos que eram dados semanalmente nos artigos da autora, publicados
na imprensa do país, chegam ao mercado editorial para possibilitar aos leitores de
Rachel o acompanhamento do cotidiano dessa cidadã que, na crônica “Não aconselho
envelhecer”, aos moços dá um conselho: “[...] não fiquem velhos. Verdade que as
opções são poucas – morrer ou lutar contra a velhice. E morrer não seria opção, mas
entrega; e a luta? Bem, a luta resulta sempre numa batalha perdida e inglória”
(QUEIROZ, 2002, p. 56). E, de acordo com Walter Benjamin, “de qualquer forma, o
narrador é uma espécie de conselheiro do seu ouvinte” (1975, p. 65), por isso, Rachel,
no papel de narradora da crônica em questão, sente-se na obrigação de transmitir um
pouco de sua experiência alertando seu público em relação àquilo que já vivenciou. Ou
ainda, por sustentar a sua ranzinzice diante da senescência, perceba nesse momento
mais uma possibilidade de questionar as razões (e também as incertezas) que cercam a
velhice.
“Não aconselho envelhecer” trata-se de uma crônica em que a escritora, ao falar
sobre as questões que norteiam a velhice e que se relacionam com todos aqueles que
atingem certa idade, centra-se numa perspectiva mais subjetiva e incorpora o que aborda
para si mesma, tentando expressar a sua opinião a respeito do tema sobre o qual discorre
durante a escrita. Assumindo um traço comum entre os cronistas modernos, Rachel
realiza uma crítica social diante da condição da terceira idade. Ao aprofundar atos e
sentimentos expressos por sua indignação, a autora consegue destacar a força maior da
crônica, que está na capacidade de traçar o perfil do mundo e dos homens.
Assim, no início da crônica em questão, Rachel já manifesta a sua intenção: informar
aos seus leitores, e a quem possa interessar, as suas impressões a respeito dessa
conturbada fase da vida:
Entre os processos cruéis da natureza, é a velhice o mais cruel.
Implacável, insidiosa, ataca por todos os lados, abre a porta a todas as
moléstias mortais. Pensando bem, é uma espécie de HIV a longo
prazo. Te ataca o coração, o pulmão, todas as demais vísceras – a
tripa, o fígado, o que nos abatedouros se chama o arrasto. E mais a
fiação arterial e venosa; e a coluna! E não falei na atividade cerebral.
E também esqueci os ossos, a infame osteoporose, que te rói os ossos
pelo tutano, deixando-os como frágeis cascas de ovos. E então te basta
um pequeno escorregão na banheira para deixar um fêmur fraturado
(QUEIROZ, 2002, p. 56).
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significativo para ela. E se a crônica, conforme afirmou Antonio Candido, “está sempre
ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas” (1992, p.
14), a cronista aproveita-se dessa condição para fazer valer a sua posição frente ao
assunto.
A autora, na excelência de suas faculdades mentais, desfrutando de toda a sua
sabedoria e desenvolvendo seus escritos, não consegue admitir que as perdas fiquem
mais próximas quando a terceira idade vai se aproximando. Para ela, o estar velho
caracteriza uma condição nada comedida, portanto, tem a capacidade de desestabilizar
todo o desenvolvimento daqueles que atingem essa etapa. Então, o fêmur fraturado
deixa de configurar-se apenas uma lesão que pode fazer parte da vida de qualquer
indivíduo, e passa e simbolizar um dos exemplos daquilo que a senescência pode
representar para os sujeitos que nela se enraízam.
Aí chegam as famosas bobagens da terceira idade. Conforme Rachel, clubes,
associações, academias, etc., todos se mobilizam em prol da velhice, buscando oferecer
atividades nada convencionais e nem tampouco totalmente apropriadas para a vida dos
idosos. E, mais uma vez, de acordo com essa afirmação, pode ser notado o
descontentamento da autora diante dessa situação, pois algumas instituições realmente
têm se preocupado com a saúde e com o bem estar dos senis, oferecendo atividades
como esportes, danças, ginástica etc., para propiciar aos mesmos momentos de prazer,
de diversão, de interação e de cuidados com a saúde mental e física. No entanto, a
autora, por apegar-se sempre a sua irritação diante dessa condição do ser humano, não
consegue vislumbrar os reais benefícios que essas bobagens podem proporcionar aos
senis.
Mas a realidade é mesmo um pouco dura e incômoda. Com o desenvolvimento da
senectude, algumas promessas de atenção especial, de oferecimento de atividades
compatíveis e de outras soluções milagrosas para a inclusão do velho na nova sociedade
vão surgindo sem a preocupação de se estabelecer um compromisso sério. Nem sempre
essas promessas cumprem com o anunciado, pois se configuram, em sua maioria, em
mais uma maneira de mascarar o que essa realidade reserva aos idosos. Além do mais,
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nem toda ginástica, dieta ou malhação conseguem esconder o que realmente a velhice
proporciona aos indivíduos.
Em “Não aconselho envelhecer”, essa questão da máscara utilizada para esconder a
realidade da senilidade é fortemente apresentada pela autora, que considera uma tolice
essa busca de se esconder algo que fará parte da vida de todos, quer queiram ou não. No
entanto, ela reconhece a dificuldade de aceitação dessa realidade, principalmente
quando a aparência insiste em mostrar que a pessoa está velha, mas esta não se sente
velha:
Diz-se que já se consegue muito na luta contra a velhice. Ginástica,
dieta, malhação, corrida etc. Cirurgia plástica. Ah, já pensaram no
tormento de uma bela mulher, atriz, dama da soçaite, cortesã, que viva
da e para a beleza, ao descobrir as primeiras rugas, a flacidez do
mento, daquela sutil rede de outras pequenas rugas que rodeiam os
lábios? O dr. Pitanguy opera e os seus colegas de mérito variável
também operam. Mas, por mais famosos, competentes e mágicos que
sejam os cirurgiões plásticos, só fazem mágicas, não fazem milagres.
Esticam a pele sobre os músculos flácidos, fazem peeling, que é uma
espécie de raladura na cútis, fica lindo a princípio, mas, como toda
mágica, não dura muito. E aí tem que começar tudo outra vez, as
cicatrizes já não se escondem tão bem atrás das orelhas ou no couro
cabeludo, que aparado, vai encurtando, deixando as pacientes com
testas enormes, quase uma calvície. E nem falei em calvície que,
mercê de Deus, ataca mais os homens que as mulheres (QUEIROZ,
2002, p. 57).
Mesmo diante de todas essas inovações oferecidas por uma sociedade também
repaginada, os milagres ainda não são possíveis. E, ao se deparar com o espelho, a
máscara acaba se desfazendo e traz à tona o que, muitas vezes, se quer esconder. Ainda
que o sujeito não se sinta velho, que sua cabeça e seus sentimentos insistam em
contrariar as evidências, nada disso confirma o que o espelho reproduz, ou seja, a
realidade. E, por pior que pareça, as demais pessoas não verão aquilo que se quer deixar
transparecer, mas, aquilo que o espelho vê, ainda mais diante de uma sociedade que
declara, dia após dia, a primazia dos jovens:
Hoje a juventude é mais prestigiosa do que nunca, como convém a
culturas que passaram pela desestabilização dos princípios
hierárquicos. A infância já não proporciona uma base adequada para
as ilusões de felicidade, suspensão tranqüilizadora da sexualidade ou
inocência. A categoria de ‘jovem’, por sua vez, garante um outro set
de ilusões [...] Assim, a juventude é um território onde todos querem
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Para essa juventude soberana, os senis correspondem aos maiores impostores, pois se
entregam aos subsídios modernos para tentar mascarar a irrefutável realidade da idade e,
em alguns casos, acabam ultrapassando os limites do possível para promover a sua
provável aceitação junto a essa mocidade.
Essa situação acaba se transformando em um pesadelo para as pessoas de mais idade
a partir do momento em que o ideal estético firma-se sobre o corpo jovem: o velho
representa o que é feio e desfigurado pelas marcas do tempo. Diante de sua fragilidade,
a autoimagem do senescente fica bastante comprometida. Muitos problemas surgem em
virtude dessa desfiguração: problemas psicológicos, principalmente a depressão, quando
acontecem nessa idade, estão intimamente ligados ao declínio das funções gerais do
organismo e às mudanças na beleza e na forma do corpo. Além disso, a vida sexual
acaba perdendo parte de seu vigor, tudo fundamentado nas inúmeras transformações que
o sujeito sofre nessa altura de sua vida.
Desse modo, fica mais fácil compreender a ironia da autora ao falar dessas
futilidades criadas para compensar tantas perdas e tantas regressões. Se a velhice é
degeneração, perda, diminuição progressiva, desorganização, redução e involução, o
que dizer aos que atingem essa faixa etária diante de um vocabulário tão desestimulante
e que impressiona por sua configuração negativa?
Para reforçar a sua teoria de que o envelhecimento não constitui o primor da vida e
que, apesar de parecer um privilégio chegar à velhice nessa realidade tumultuada da
vida cotidiana contemporânea, a escritora termina as ideias da crônica “Não aconselho
envelhecer” falando sobre o envelhecimento da cabeça, o momento em que o cansaço
das ideias, da inteligência e da alma torna-se real e, praticamente, irreversível:
O velho tenta se equiparar às audácias dos jovens, até mesmo excedê-
las – mas a si próprio não se convence. Sabe que as suas idéias são as
do seu tempo, fruto do que leu, viu e acumulou; e isso pode ser
camuflado, mas não pode ser modificado. Dizem que as células
cerebrais não se renovam, como as demais células do corpo – será
verdade? (QUEIROZ, 2002, p. 58).
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Não há como evitar as desilusões diante daquilo que não se consegue mais alcançar.
Por mais que se tente mascarar alguns dissabores diante das irrealizações que vão
acontecendo com a consolidação da senescência, mais cedo ou mais tarde o cansaço
toma conta do sujeito idoso que, diante das suas restrições, tem consciência de que o seu
mundo, a sua instrução, o seu vocabulário, as suas leituras e até mesmo a sua formação,
são coisas que pertencem a um passado e, como tal, perdem a sua importância.
Tudo que foi acumulado acaba sendo abafado com o tempo e, fatalmente, torna-se
parte de um legado que deixa de ser imprescindível à sociedade, mesmo que represente
toda a vida de um indivíduo. E, para que esse passado não se perca até mesmo para
quem o vive, é preciso que se tenha em mente a sua autoridade: “Meu passado é o em-si
que sou, enquanto ultrapassado: para tê-lo, é necessário que eu o mantenha existindo
através de um projeto; se esse projeto é conhecê-lo, é preciso que eu o torne presente,
rememorando-o para mim mesmo” (BEAUVOIR, 1990, p. 445).
Até mesmo as ideias dos grandes gênios envelhecem. Simone de Beauvoir (1990)
analisa as atividades artísticas intelectuais na velhice e confirma que escritores, artistas
e pesquisadores em geral deixam de vibrar com a sua criação, porque não se instalam
mais em batalha para fazer e recriar a vida. Seja qual for a sua criação cultural, perdem
o estímulo, pois acreditam que ela não mudará mais o mundo. Dessa forma, a
curiosidade natural pela pesquisa e pela aprendizagem perde, gradativamente, o seu
brilho e a sua alteridade. Até mesmo os escritores, segundo a estudiosa,
Apanhados por esse espírito geral, passam a repensar sua produção, É
comum que passem a preferir as memórias, o ensaio ou a poesia;
embora haja exceções, pois a ‘aventura humana não suscita mais
interesse’ e, por isso, não há como criar supostos heróis ou destinos
imaginários (apud GUIDIN, 2000, p. 80).
Albano com textos da autora. E o que dizer, então, de tantos outros escritores, pintores,
escultores etc., que produziram e que produzem até o fim de sua vida?!
Mas, independente de quem seja atingido pela senescência, gênios incontestáveis ou
pobres mortais, o pior de tudo na constatação de que a senilidade se concretizou,
conforme Rachel, concentra-se no fato de não se poder lamentar os estragos que a
velhice proporciona ao seu corpo e a sua mente. Quando isso acontece, geralmente há
alguém para protestar diante dessa tentativa: “Eu queria, quando chegar à sua idade, ter
essa lucidez!” (QUEIROZ, 2002, p. 58). E a autora encerra a crônica em questão
revoltada com as particularidades da terceira idade e condena, mais uma vez, o intuito
de mascarar essa realidade e as suas implicações, delegando um mínimo de dignidade
ao fato: “Lucidez? O que é que esse cara esperava? Que você estivesse caduco?”
(QUEIROZ, 2002, p. 58).
Referências
BARRETO, Maria Lecticia. Admirável mundo velho: velhice, fantasia e realidade
social. São Paulo: Ática, 1992.
BENJAMIN, Walter. O narrador: observações acerca da obra de Nicolau Lescov. In:
______. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 63-81.
BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Trad. Maria Helena Franco Monteiro. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. In: CANDIDO, Antonio. et. al. A
crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da
Unicamp, 1992. p. 13-22.
GUIDIN, Márcia Lígia. Armário de vidro: a velhice em Machado de Assis. São Paulo:
Nova Alexandria, 2000.
PORTELLA, Eduardo. “A cidade e a letra”. In: ______ Dimensões I. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1958.
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QUEIROZ, Rachel de. Falso mar, falso mundo. São Paulo: Editora Arx, 2002.
SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na
Argentina. Trad. Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 22-42.
Anexo
“Não Aconselho Envelhecer” (18-03-1995)
Aos moços dou um conselho: não fiquem velhos. Verdade que as opções são poucas
— morrer, ou lutar contra a velhice. E morrer não seria opção, mas entrega; e a luta?
Bem, a luta resulta sempre numa batalha perdida e inglória.
Entre os processos cruéis da natureza, é a velhice o mais cruel. Implacável, insidiosa,
ataca por todos os lados, abre a porta a todas as moléstias mortais. Pensando bem, é uma
espécie de HIV a longo prazo. Te ataca o coração, o pulmão, todas as demais vísceras
— a tripa, o fígado, o que nos abatedouros se chama o arrasto. E mais a fiação arterial e
venosa; e a coluna! E não falei na atividade cerebral. E também esqueci os ossos, a
infame osteoporose, que te rói os ossos pelo tutano, deixando-os como frágeis cascas de
ovos. E então basta um pequeno escorregão na banheira para deixar um fêmur fraturado.
Os moços compadecidos, os quarentões assustados e os próprios velhos, apelando
para tudo, inventaram ultimamente essas bobagens de “terceira idade”, clubes e
associações que trabalham contra o isolamento e as tristezas da velhice. Mas não se
iluda, velho, meu amigo e colega. Ninguém está acreditando naquilo. Você já viu na TV
um quadro de propaganda dessa falsa recuperação de terceira idade? Um velho e uma
velha, vestidos à moda dos anos 30, tentando dançar um tango argentino? É patético,
embora a maioria dos moços apenas o considere docemente ridículo.
Diz-se que já se consegue muito na luta contra a velhice. Ginástica, dieta, malhação,
corrida etc. Cirurgia plástica. Ah, já pensaram no tormento de uma bela mulher, atriz,
dama do soçaite, cortesã, que viva da e para a sua beleza, ao descobrir as primeiras
rugas, a flacidez do mento, daquela sutil rede de outras pequenas rugas que rodeiam os
lábios? O dr. Pitanguy opera e os seus colegas de mérito variável também operam. Mas,
por mais famosos, competentes e mágicos que sejam os cirurgiões plásticos, só fazem
mágicas, não fazem milagres. Esticam a pele sobre os músculos flácidos, fazem um
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peeling, que é uma espécie de raladura na cútis, fica lindo a princípio, mas, como toda
mágica, não dura muito. E aí tem que começar tudo outra vez, as cicatrizes já não se
escondem tão bem atrás das orelhas ou no couro cabeludo, que, aparado, vai
encurtando, deixando as pacientes com testas enormes, quase uma calvície. E nem falei
em calvície que, mercê de Deus, ataca mais os homens que as mulheres!
Você contempla no espelho, vê as rugas do seu rosto, do seu pescoço, como se
olhasse uma máscara que se desfaz. Vê bem, sabe como está velho, embora não sinta
que está velho. Sua alma, seus sentimentos, sua cabeça, nada disso confirma a palavra
ou a imagem do espelho. Mas os outros só vêem de você o que o espelho vê.
E a par disso as cãs, quer dizer, os cabelos brancos? Bem, os cabelos pintam-se. Mas
vocês já descobriram que, por mais excelentes que sejam os cabeleireiros e as tinturas, o
cabelo pintado fica sempre gritantemente diverso do natural? Pensei sobre isso e acabei
descobrindo: o cabelo nosso, a natureza lhe dá cor de fio em fio, cada fio na sua
tonalidade, uns mais claros, outros mais escuros: o conjunto toma esse colorido
inimitável, que profissional nenhum pode obter, já que lhe é impossível tingir fio por
fio. E, daí, essas senhoras de comas tão louras, tão ruivas, tão castanhas e negras, não
iludirem nunca, darem mesmo a impressão de que usam perucas.
E, no final de tudo, vem o envelhecimento da cabeça, da inteligência, das idéias, da
alma — da chamada psiquê. O velho tenta se equiparar às audácias dos jovens, até
mesmo excedê-las — mas a si próprio não se convence. Sabe que as suas idéias são as
do seu tempo, fruto do que leu, viu e acumulou; e isso pode ser camuflado, mas não
pode ser modificado. Dizem que as células cerebrais não se renovam, como as demais
células do corpo — será verdade? Até mesmo as idéias dos gênios mortos envelhecem;
e diante das idéias de um Nietzsche, de um Freud, tem que se dar o desconto do tempo e
das mudanças. Contudo, o pior mesmo é quando você, com honesta sinceridade,
lamenta diante de alguém os estragos que lhe traz a velhice, e esse alguém protesta com
veemência: “Eu queria, quando chegar à sua idade, ter essa sua lucidez!”
Lucidez? O que é que esse cara esperava? Que você já estivesse caduco?
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1
O sujeito cartesiano é o correspondente ao sujeito do Iluminismo “baseado numa concepção de
pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades da razão, de
consciência e de ação...” (HALL, 2005; p.10-11)
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escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções
potenciais, procura apoio, etc.”(BAKHTIN: 2006; p.128).
O romance de Luft virá nesta esteia respondendo, mais do que a outros textos ao seu
próprio tempo e aos discursos correntes, percebendo as relações de gênero e de opressão que
daí advém. A leitura que se pretende da obra O Quarto Fechado, perpassa as formas de
opressões que surgem na constituição dos gêneros em âmbitos sociais, alargando-as a uma
esfera política de maior abrangência. O que se pretende, portanto, é alcançar outros
questionamentos, percebendo o movimento elaborado na obra pela autora, que concentra e
expande significados, em que uma forma de opressão será simbólica no apontamento de
outra. Esse jogo constante nos ajudará a compreensão das metáforas que se encontram
disseminadas na obra em um plano não-aparente. Seguindo essa trilha, torna-se importante
esboçar uma aproximação em linhas gerais do enredo e dos personagens para, a posteriore,
nos determos à averiguação de maiores sentidos incutidos nesses.
O enredo principal de O quarto fechado, apesar do tom trágico, é simples: uma família
encontra-se velando o jovem Camilo que morreu ao cair de um cavalo na fazenda. Entretanto,
enquanto as horas do velório transcorrem, transcorrem também na mente dos personagens
inúmeros flashbacks que se vinculam à história presente daquele clã. Há, portanto, uma
condição temporal cronológica e uma psicológica. Enquanto a penumbra da noite e a neblina
reinam na sala do velório, outros ambientes soturnos nos são revelados como retratos do
espaço interior de cada um daqueles personagens.
Mamãe, a que criara Clara e Martim (pai do morto), está em seu quarto a espera que a
qualquer momento a campainha toque e tenha que atender a filha legítima Ella. Aprisionada à
condição da filha é por excelência a figura da maternidade – apontada desde seu nome. Em
alguns momentos sente como se a filha a estivesse punindo e no momento do velório chega a
desejar que essa estivesse morta no lugar de Camilo. Assume uma postura ambivalente em
que sua construção física opõe-se a imagem da boa samaritana. Sempre com sua peruca e
maquiada, Mamãe parece não perceber a passagem do tempo.
A filha legítima, Ella, está entrevada em uma cama, pois na adolescência sofreu uma
fatalidade ao cair da cerca no momento em que esperava por Martim às escondidas de
Mamãe, que proibia o relacionamento alegando incesto. Ela se tornou um ser amorfo em seu
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leito, criatura estranha e indefinida. Hostil a visitas, só recebe os cuidados de sua mãe e as
visitas escassas de Martim. Além disso, assim como a mãe não tem um nome próprio
corrente na língua, Ella vincula-se ao pronome pessoal em espanhol (terceira pessoa do
singular), apontando tanto a noção de a Outra, a do quarto, a distante, a estrangeira e
distanciada da casa, como para a figuração personificada da própria Morte que já reina em
seu quarto, nos seus membros inertes, no cheiro fétido e na atmosfera fechada.
Clara, irmã de Martim envolve-se com o padre que freqüenta a casa para ver Ella. Porém,
o envolvimento físico é frustrado com o pedido inusitado do padre de apenas ver o seu sexo.
Desde então, o padre é remanejado para outra diocese e Clara vive a espera que ele retorne,
por isso, às vezes de súbito, se arruma e desce as escadas na esperança de que ele apareça. No
momento do velório, Clara está nua em seu quarto, absorta em suas recordações.
Além desses temos: os pais de Camilo, Martim e Renata, que estando separados,
permanecem na sala e pouco se comunicam, imersos nas recordações daquele casamento
fracassado; Carolina, irmã gêmea do morto, encerrada em seu quarto e permanecendo tão
imóvel quanto o cadáver do irmão; e Rafael, o último filho do casal, o anjo provavelmente
vitimado pelos gêmeos, que aparece na narrativa pela recordação dos pais que o
consideravam a última tábua de salvação, a tábua que foi perdida.
Feito este mapeamento o título do livro pode ser compreendido de duas maneiras: tanto
pelo quarto central da casa que vive fechado, o de Ella, como pelo constante isolamento dos
indivíduos. Excetuando os pais do morto, no momento do velório todos os familiares estão
reclusos em seus quartos. Mas, para além dessa reclusão física o isolamento também é notório
no casal que permanece na sala, afastados. Renata e Martim estão prostrados em lados
opostos do caixão: simbolicamente o filho morto ainda delata as causas da separação.
Martim, figura ícone do patriarcado, possui códigos comportamentais que se vinculam aos
padrões sociais vigentes. Homem rude e do campo, faz o tipo heterossexual e viril. Desde
solteiros, Martim apresenta uma visão essencialista e estereotipada percebida em um de seus
diálogos no qual salienta que é apenas “um bruto que vai se casar com uma fada”(p.17)2.
2
Todas as citações serão feitas pela edição: LUFT, Lya. O Quarto Fechado. Rio de Janeiro:
Record, 2008. A partir de então, indicaremos apenas o número da página.
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Renata, por sua vez, ainda que possua fisicamente e em seu espírito os atributos de
sensibilidade e fragilidade esperados da mulher, esses se dão pelo dom da música, mas ela
não se constitui enquanto modelo de matriarca subalterna. “Pianista de sucesso, Renata
descera dos palcos para o mundo de Martim, um mundo terra-a-terra, forte e racional.”(p.15),
não servia para se casar e já havia renunciado a um companheiro que ao avesso de Martim era
mais cúmplice de sua arte. Mesmo assim, cedeu. A amargura é provocada pela não-
completude que a diversidade de interesses emerge, “por mais que a amasse, era preciso algo
além disso: capacidade de a compreender, participar” (p.16). Ela não fora feita para a vida
doméstica e vendo-se reduzida à esposa e mãe, não compreende sua existência.
A infelicidade de Renata se dá pelo fato de esta abdicar de seu desejo em um momento em
que a solidão a atormentava: “Eu me atirei nos braços dele para fugir da solidão e foi tudo
uma fraude”(p.26). Não demorou muito para que depois de casada a pulsão da música a
cobrasse sua parcela de vida que já não podia responder.
Marilena Chauí (2006) em seu texto Laços do desejo menciona que o desejo, desiderium,
aparentemente inclui em si uma parcela de alteridade, mas que o desejo é também parcela de
falta, possuindo um elo estreito com a condição temporal e, por sua vez, com mnemosyne.
Sendo o desejo, vontade do que não está presente, lança-nos ao mesmo tempo para o passado
em que porventura já possuímos o ser ou coisa desejada e/ou ao futuro, no qual esperamos ter
aquele objeto ausente, do qual ainda sentimos falta. Dessa forma, Renata trará sempre as
recordações do palco e de suas apresentações. As notas dissonantes virão no relacionamento
que não se harmoniza: “Fora uma estranha na casa, na mesa, na cama”(p.16).
O ponto desestabilizador do matrimônio é o crescimento dos filhos. Irmãos gêmeos,
Camilo e Carolina pareciam imitar-se constantemente e estavam sempre juntos. As tentativas
de Martim para separá-los não surtiam efeitos, abatiam-se, adoeciam e não interagiam
socialmente. Eram suficientes um ao outro: não havia elemento de falta, bastavam-se. Martim
intervinha tentando controlar seus hábitos, mas tanto conviviam e possuíam de semelhanças
que às vezes era impossível até mesmo distingui-los: eram andróginos.
O Mito da Androginia que surge no discurso de Aristófanes sobre o Amor, no livro O
Banquete de Platão, corrobora para o entrelaçamento do desejo à condição de falta. De acordo
com o mito, a humanidade possuía um gênero designado como andrógino por possuir em
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é o que mais sofre as pressões dessa equivalência. Ele não atende as expectativas geradas por
Martim que tenta exercer sobre ele um controle autoritário. Os atributos do masculino não são
preenchidos por Camilo, além de não se interessar pelas coisas do campo, o jovem possui
uma sensibilidade apurada, estereotipada como própria às mulheres:
Mas essa multiplicidade de aspectos assumidos por cada um dos irmãos funciona como
um duplo da personalidade de Renata que não consegue abdicar, de fato, de sua vida artística.
Ela abandona as apresentações, entretanto não assume o papel social que a sociedade
patriarcal espera de uma esposa: a total entrega ao lar. Poderíamos dizer que ao seu modo,
Renata já é um ser andrógino que acumula caracteres que não são os símbolos de
feminilidade corrente: “Durante a penosa gravidez Renata alimentara um único anseio: livrar-
se de tudo aquilo. Sabia que era errado, era condenável, mas não podia como as outras
mulheres, esperar com alegria o desenlace: tinha medo” (p.39).
Os filhos escolhem o caminho da desconstrução, do questionamento abandonado
socialmente pela mãe, porém presente em seu interior. Como espelhos desses
questionamentos anteriores “os filhos apenas prosseguiam numa busca que ela já não tinha
condições de realizar”(p.25). O jogo do duplo é configurado na obra não apenas pelos gêmeos
enquanto metade do outro, não apenas desses enquanto similar à desagregação psicológica de
Renata ou à deformidade (a)mórfica de Ella, mas também na própria figuração dos pais como
antagônicos. Outro ponto são os paralelos possíveis de Renata com outros personagens como:
Mamãe, que se oporá à Renata no exercício da maternidade, Clara em sua vaidade e a figura
de Ella, que encantou Martim em tempos remotos, com a força do aspecto de female fataly
que foi, aspecto não visto na estrutura franzina de sua esposa.
Apesar destes antagonismos as personagens femininas no romance possuem um elemento
unificador: nenhuma delas ratifica os padrões esperados. Fragmentam-se, são ambíguas e
complexas. E, por reconhecer-se como indivíduo complexo e (ex)cêntrico, Carolina não
mobiliza esforços para aderir outro mundo que não o do irmão, seu ideal símile. Já Camilo
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remando em direção a uma ilha sombria e misteriosa. Aqui, Camilo ainda não embarcou,
refere-se muito mais a sua forma de lidar com a mesma em vida, num modo contemplativo e
desejoso. A segunda parte é dedicada para As águas, referindo-se já ao trânsito, à
transposição do mar exercida pelo personagem. A terceira parte e última remete ao encontro
crucial ou o espetáculo inaugural com Tânatos, em que Camilo abraça-a antes de aportar,
uma referência também ao fim do velório e hora do enterro.
A forma como Camilo lida com a morte é singular, assim como será singular o meio que
escolhe para morrer. O suicídio intentado ao montar um cavalo bravio remonta à cena de sua
festa de seis anos, quando o pai comprou um pônei de presente o obrigando a montá-lo à
frente de todos, por mais que relutasse. A inadequação do filho pelas coisas do campo sempre
foi do conhecimento de Martim que se sentia ferido em seu orgulho. O cavalo na obra
engloba os símbolos de virilidade, militarismo como também o símbolo forte de sexualidade.
A própria morte é descrita envolta a uma sensualidade que enfatiza o desejo do personagem
por ela, como também o elo irrompível dos gêmeos, outrora vivenciado pelo intruso ao
possuí-los: “Agora, quem possuía Camilo era a fria Dama que começava a corrompê-lo com
seu toque obsceno, atingindo Carolina também. A vida: serpente voltando para dentro de si
mesma, começo e fim, masculino e feminino, prazer e destruição”(p.103).
Camilo no momento de sua morte denuncia seu pai rendendo-lhe um último tributo ao
fazer sua vontade. É assim que essa se torna uma resposta à opressão paterna que representa a
opressão social na obra. Entretanto, nessas opressões demarcadas em relação ao território do
gênero e da forma como esse se constrói socialmente há uma alavanca que nos impulsiona a
outro plano. Luft utiliza das teorias feministas vigentes, de forma metafórica, para a denúncia
de seu tempo sob as égides de um regime que se posicionava autoritário tal qual o
patriarcado. De acordo com Silviano Santiago em seu livro Nas malhas da letra, as narrativas
dos anos pós-64 se voltam para o ambiente doméstico como meio de a partir de uma
microestrutura denunciar a macroestrutura social: “o poder toma as mais inusitadas formas no
cotidiano do cidadão” (SANTIAGO, 2002, p. 16). E isto se dá como forma de livrar-se das
oposições da censura, marcadamente presente no período ditatorial pós-64. O princípio
enquanto meio criativo é continuar expressando-se incutindo no aparente toda uma
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construção mais ampla. Como diria Daniel Defoe em sua célebre frase3:“É tão válido
representar um modo de aprisionamento por outro, quanto representar qualquer coisa que de
fato existe por alguma coisa que não existe”. Esse recurso surge presente no romance da
escritora pela recorrência de elementos opressores de seus personagens. Para fugir ao veto,
denuncia-se um modo opressor por meio de outro. O livro publicado em 1984 encontra-se no
limiar do fim do regime ditatorial, ainda imerso e resultante dos sons ecoantes desse tempo:
3
A frase em questão foi traduzida para o Francês por Albert Camus, ao ser utilizada como epígrafe
de seu romance La Peste. Em português foi retirada da obra do autor sob a tradução de Valerie Rumjanek.
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silêncio costumeiro na casa e etc. Além disso, pululam os interditos. O ambiente doméstico
possui seu próprio pacto de censura do que deve ou não ser dito. Para Focault em A ordem do
discurso, “em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão.
O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição”(FOUCAULT: 2008; p. 9).
Assim, é que a história de Ella não deve ser mencionada, nem mesmo a de Clara. Renata
só irá descobri-las com o tempo. Na fala de Renata: “Havia estranhas coisas naquela casa,
coisas não ditas brotavam como cogumelos pelos cantos” (p.49). A restrição ao acesso se dá
tanto no plano discursivo como também no próprio ambiente, assuntos são velados como é
vedado o acesso ao quarto de Ella. Apenas sua mãe pode atendê-la ao soar da campainha, a
doente seleciona quem deixa vê-la e este ato mecanizado do toque e da retirada prontamente
de Mamãe, torna-se tão automatizado que não assusta a indiferença que daí advém: “Era
como se a doente não existisse, ou todos fossem surdos, cegos”(p.45)
Martim, cujo próprio nome nos remete a figura do opressor, do militar ao significar
guerreiro é o responsável em trazer para casa o olhar marginalizador e agressivo aos filhos. O
único capaz de romper com esta opressão será Camilo. O andrógino e o seu não-lugar social
são representados pelo jovem que se volta contra o sistema martirizando-se. Camilo seria o
típico herói romântico, se as causas pelas quais luta, não fossem justamente aquelas que o
constroem como indivíduo marginal. A androginia é essencial na categorização deste
(anti)herói de Luft. Ele sabia que só conseguiria libertar-se e libertar Carolina com sua morte.
Uma morte ao seu estilo passional e contemplativo ao mesmo tempo, como um amante que
se lança. Que se lança ao escatológico, ao suor do cavalo, ao cheiro da fazenda. Além disso, a
causa enquanto queda, também retira a áurea elevada desse ato de sacrifício.
A queda é recorrente na obra. Até mesmo Mamãe a salienta: “Todo mundo nesta casa tem
mania de cair, ocorreu-lhe então”(p.101). São três os vitimados pelo mesmo ato. Ella fica
moribunda por cair de uma cerca, Rafael é o “anjo caído” das escadas e Camilo se lança à
morte ao cair do lombo de um cavalo. Estas configurações dos indivíduos que alcançam o
estado de morte por um caminho tão banal poderiam ser compreendidas, continuando na
esteira de Silviano Santiago, como uma concentração simbólica de um ato político. Seguindo
a tese de que o livro possui dois planos significativos, um do mythos e outro metafórico do
período ditatorial e suas mazelas, compreenderíamos, então, essas quedas como alegorias das
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feminismo que, imbuído em validar as críticas ao patriarcalismo e ao lugar social até então
ocupado pela mulher, respalda-se na questão de que as relações privadas também são
politizadas, exercendo a partir de tais pressupostos outro processo de opressão, mesmo que
involuntário. Ao final, “Seria o caso, portanto, de se questionar até que ponto o feminismo,
com sua reivindicação de politização do privado, não estaria participando ativamente no
processo de disciplinamento da sexualidade”(SORJ:1992; p.21).
O ciclo é de certo modo mantido, substitui-se um estado de opressão por outro em
potencial. É desta forma que, O quarto fechado retrata um movimento cíclico em torno dos
indivíduos que se encerram neles mesmos, em suas angústias e experiências da mesma forma
que, socialmente abdicamos de interagir, quando nossas bandeiras já estão a meio mastro. Ao
fim do período ditatorial, o encerramento que antes era imposto pelo regime agora passa a ser
voluntário, em um profundo desencantamento político. O isolamento dos indivíduos se torna
a parcela de segurança pretendida contra as diversas formas de opressão.
REFERÊNCIAS
Introdução
2. Gênero e identidade
2.1 Gênero
O termo gênero começou a ser utilizado justamente para marcar que as diferenças
entre homens e mulheres não são apenas de ordem física, biológica, mas sim, referentes
a um dado cultural. Nas palavras de Teresa de Lauretis (1994, p. 211), “gênero não é
sexo, uma condição natural, e sim a representação de cada indivíduo em termos de uma
relação social preexistente ao próprio indivíduo e predicada sobre a oposição
‘conceitual’”. A noção de gênero, portanto, passou a apontar para a dimensão das
relações sociais do feminino e do masculino.
Nos anos 60 e 70, o conceito de gênero como diferença sexual encontrava-se no
centro das discussões dos escritos feministas e das práticas culturais. No entanto,
tornou-se limitado, passando a ser caracterizado como uma deficiência do movimento
feminista.
Enquanto diferença sexual revelava-se na relação masculina e feminina, todavia, a
opressão e exploração deste último pelo primeiro. Essa relação de opressão tem servido
de sustentáculo para as intervenções feministas no âmbito do conhecimento.
Atualmente, na perspectiva da análise feminista contemporânea, pode-se perceber
duas ordens operando juntas: a sexual e a econômica. Dentro dessa dupla perspectiva,
todavia, é possível perceber como opera a ideologia do gênero: o lugar da mulher, a
posição atribuída à mulher pelo sistema de sexo-gênero.
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2.2 Identidade
Desse modo, podemos observar que a identidade não é algo fixo e acabado, mas sim,
uma construção imaginária em permanente processo de significação e re-elaboração de
novas identificações e novas significações.
A personagem encontra-se no meio, no entre - lugar. Tanto por ser do sexo feminino,
quanto por estar dividida entre seus pensamentos e o discurso patriarcal. A
problemática do meio perpassa todo o romance, demonstrando a fragmentação do
sujeito, o desejo de mudança e o medo que o acompanha, demonstrando a possibilidade
de ocupar um lugar de onde se possa emitir um discurso diferente do já legitimado. O
medo, entretanto, prevalece durante todos os módulos da narrativa, limitando-a,
controlando suas atitudes e a impedindo, assim, de construir sua identidade: “As
meninas do lado de cá e os meninos do lado de lá. Entre lá e cá o meio cheio de medo”
(CUNHA, 1998, p. 14); “Você tem medo de se apresentar numa exposição. Você quer
entrar para a escola de belas artes. Seu novo emprego” (CUNHA, 1998, p. 33). Tais
trechos retirados do romance revelam, assim, uma personagem inconstante, ambígua.
Para Hall (2006, p. 13), “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. (...) A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia.” Sendo assim, ele desconsidera a identidade como única e imutável, mas sim
acredita que ela não seja fixa, essencial e permanente. Como é o caso da personagem
pintora que se encontra dividida entre aceitar a imposição da sociedade ou emancipar-
se, o que acarreta em uma identidade contraditória, nos termos de Hall.
Ademais, vale destacar que os pensamentos da sociedade encontram-se, muitas
vezes, na frente da própria vontade da mulher artista: “Você faz vinte anos e vai se
casar. (...) Seu noivo tem a promessa de uma situação melhor no emprego. (...) A
mulher é a rainha do lar. Você não vai mais entrar para a escola de belas artes. Você
prometeu a seu noivo que não vai mais pintar (CUNHA, 1998, p. 15). Nessa passagem é
possível perceber o aniquilamento do desejo que demonstra a determinação dos papéis
sexuais, o que coloca a mulher como um ser secundário, inferior perante o homem.
Sendo assim, torna-se evidente a fragmentação da personalidade da mulher artista, uma
vez que ela demonstra uma independência, porém lhe é exigido a assumir o papel social
determinado pelo sistema patriarcal.
O discurso hegemônico patriarcal está incutido na personagem protagonista a ponto
de aceitar tal imposição como se fosse seu próprio desejo embora não o seja, já que em
alguns momentos da narrativa é evidente o intuito de romper com as regras do meio
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social em que está inserida: “Você quer se casar virgem como a maioria das outras
moças. Você espera seu noivo todas as noites depois do jantar” (CUNHA, 1998, p. 15).
Nesse fragmento retirado do romance é importante perceber tal afirmação. Assim como
considera Bauman (2005, p. 19, grifos do autor) ao dizer que “as identidades flutuam no
ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em
nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras [as de nossa
própria escolha] em relação às últimas”. Dessa forma, o discurso hegemônico é
assimilado, muitas vezes, como natural e com o valor de verdade, o que termina por
reproduzir tais valores.
Embora a sociedade tenha estruturado uma identidade para a protagonista, ela
percebe-se com possibilidades de outras identidades. Vejamos o trecho elucidativo:
“Sempre vozes de um lado e vozes de outro lado. Bifurcação. No lado de cá o elo e o nó
e as cores certas. No lado de lá o repente e as migrações e o livre desdobramento dos
vermelhos. Entre lá e cá o meio cheio de sustos e desejos” (CUNHA, 1998, p. 81).
Sendo assim, podemos perceber que a pintora assume diferentes identidades em
diferentes momentos. É menina, mulher, esposa, amante, amiga e/ou profissional. Como
afirma Hall (2006, p.12), “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade
unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas”. A protagonista é,
assim, um ser em processo, constituída em diferença. Destacaremos, aqui, dois papéis
principais exercidos por essa mulher artista.
Para tanto, enquanto menina, a personagem assume-se como obediente, mas ao
mesmo tempo questionadora. Possui assim inúmeros conflitos, resultado dessas diversas
interrogações como o porquê de se casar virgem, o porquê de não poder brincar com os
meninos, já que a sociedade a conduzia à retaliação: “Vozes me mandavam calar a
boca” (CUNHA, 1998, p.26). Sendo assim, a conseqüência de assumir tal papel a
destinava a limitações, já que não poderia criar, mas sim reproduzir o que o meio social
ditava como o correto. Quando na cena em que ela pintou o céu de vermelho e foi
contestada. Outras conseqüências referem-se à dependência e ausência de direitos, pois
a ela era reservada somente a aceitação das normas ditas pela sociedade patriarcal. T
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Todavia, o modo como exerce o papel de esposa e de mãe demonstra novamente uma
obediência e submissão, agora em relação ao marido, uma vez que aprendeu durante a
infância que deveria agradar a todos os seus gostos. Ela se vê, assim, diante de uma
rotina, de limpar, cozinhar, cuidar dos filhos. Como conseqüência, verifica-se uma
exaustão, um cansaço em relação ao marido, ao próprio casamento.
Por estar inserida em um ambiente tradicional teve de abdicar do desejo de ser
pintora. Ela sonha em pintar, enquanto sua família a educa de acordo com o papel
social, com a identidade que lhe caberia, futuramente, dentro da sociedade. É somente,
na vida adulta que consegue retomar sua criação. É, através das cores que não
correspondem ao real, como a de um rosto sem boca, que a protagonista consegue se
expressar e se esquecer, pelo menos naquele momento, das amarras do patriarcalismo.
Eis exemplo elucidativo:
Ela terá muitos medos e muitas coragens. O lado de lá e o lado de cá.
Nos dois lados as cores transbordarão mais luminosas e mais
sombrias. (...) Vozes farão muito ruído dos lados. Ela continuará a
tentar conciliar sua pintura com os afazeres domésticos. Os quadros
dela mais as fichas dos clientes do marido. As formas informes e as
fôrmas conformes. O marido repetindo que ninguém pode entender
aqueles quadros de profusões e florações e doze badaladas da meia-
noite no meio-dia. (...) Mas ela buscará passagem no cerco circular.
Elos e nós em desatadas impregnações (CUNHA, 1998, p. 21).
Considerações finais
falocêntrico. Por fim, vale destacar que a busca pela identidade que caracteriza a
mulher artista não envolve o romper com a moral ou com os bons costumes, como
afirma Helena Parente Cunha em uma entrevista, mas sim, do desejo de ser sujeito ativo
na história e não permanecer à margem, emudecida no meio social.
Referências
Introdução
entendem os atributos biológicos da mulher como sendo superior e não inferior como
constata o discurso falocêntrico.
O enfoque lingüístico volta-se para discussões que buscam responder se homens e
mulheres utilizam a língua de forma distinta. Assim como observa Zolin (in BONNICI;
ZOLIN, 2009, p. 227), no caso de uma resposta afirmativa “tais diferenças (...) seriam
teorizadas em termos de biologia, de socialização ou de cultura”. Ademais, esse enfoque
privilegia também questões relacionadas à ideologia dominante.
Quanto ao campo psicanalítico, situado na diferença na psique do autor e na relação
do gênero com o processo de criação, tomaram-se como base os pressupostos de Lacan
e Freud propondo um estudo acerca da escrita feminina. E por último o enfoque
político-cultural que, apoiando-se nas tendências marxistas, estabelece a relação gênero
e classe social, sendo bastante evidente no romance em estudo.
Embora os estudos a respeito da mulher e sua representação na literatura constem a
partir de 1970 nos Estados Unidos e Europa, no Brasil essa discussão figura-se recente.
Contudo, é imperativo destacar que cada vez mais o tema tem sido objeto de inúmeras
pesquisas. O desenvolvimento desses estudos, assim, nos permite falar, como considera
Zolin (in BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 240), “na crítica literária feminista no Brasil
como algo consolidado.
restringia apenas às questões estéticas do texto literário, mas também a fatores sociais e
morais do universo da crítica. Para tanto, eram regulados por uma ideologia de exclusão
aos escritos das mulheres, das etnias não-brancas. Enfim, todos aqueles que eram
considerados minorias não pertenciam à lista.
Desse modo, a inauguração da crítica feminista, por volta de 1970, fez emergir uma
tradição literária de autoria feminina que promoveu a reavaliação e redescoberta desses
textos, assim como a releitura de obras do ponto de vista da mulher resultando em uma
subversão ao cânone.
Vale destacar que os primeiros textos literários escritos por mulheres no Brasil,
apontam para figuras femininas silenciadas pela sociedade patriarcal, presas à ideologia
dominante. Nesse contexto, há a reduplicação dos valores vigentes que conduzia a
mulher à alteridade.
Na metade do século XX, com a publicação de Perto do coração selvagem (1944),
Clarice Lispector inaugura uma nova fase da literatura brasileira de autoria feminina.
Há, nesse contexto, o desnudamento da ideologia dominante promovendo, assim,
discussões a respeito da dominação masculina e da opressão feminina. A literatura
passou, então, a representar a mulher sob uma ótica diferente daquela tradicional
patriarcal que permeava a literatura anterior. Se no passado a literatura produzida por
homens e mulheres reproduzia a ideologia patriarcal, que conduzia a mulher à
submissão e à marginalidade, a literatura de autoria feminina contemporânea propõe um
questionamento da condição feminina. Para tanto, traz em seu bojo questões como
representação, identidade e diferença. Destaca-se, portanto, que tais textos apresentam
temas que não dizem respeito apenas às mulheres, mas à humanidade em geral, isto é
universais. Nessa esteira contemporânea é que se encontra a obra de Helena Parente
Cunha.
A autora baiana possui livros publicados nos gêneros poesia, conto e romance.
Quando indagada, em uma entrevista concedida à revista Literária Plural II (2006) a
respeito da preferência a esses gêneros, Helena Parente Cunha afirma que
o ser humano é sempre muito complexo e se expressa de maneira
particular, de acordo com o momento. Em geral, quando mergulho em
questões de ordem metafísica ou de indagações introspectivas, prefiro
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Nessa declaração da autora, é importante perceber que sua prosa, objeto de nosso
estudo, remete-se à poética do cotidiano como pano de fundo, visto que temas como a
injustiça, a violência, a revolta são postos em discussão. Ganhadora de diversos prêmios
literários brasileiros, sua obra se debruça, além dos temas já citados, sobre a situação da
opressão e conflitos da mulher na sociedade patriarcal brasileira. No romance As doze
cores do vermelho podemos justificar tal afirmação. Eis um trecho elucidativo: “Eu não
devia ficar fazendo perguntas. Não devia ficar conversando com os meninos. Aprendia a
costurar a bordar a cozinhar eu aprendia a ser uma boa dona-de-casa” (CUNHA, 1998,
p. 18). A passagem refere-se ao ângulo 1 (um) do romance em que podemos observar a
ideologia patriarcal sendo transmitida à mulher desde sua infância, através das tarefas
diárias, condição de uma boa esposa. Outra questão levantada nessa passagem é o
silenciamento da mulher. À ela era proibida uma posição crítica de sua situação, sendo
permitida somente uma passividade perante a sociedade hegemônica masculina.
Foi devido à repercussão do romance Mulher no espelho (1985) que os artigos de
crítica sobre a obra de Helena Parente Cunha se ampliaram, principalmente fora do
Brasil. O romance As doze cores do vermelho (1988) recebeu alguma atenção da crítica
produzida em jornal. Porém, somente dez anos após seu lançamento, que a obra foi
retomada por Marcílio Erhms que fez uma leitura do romance, em que mostra “as
estratégias patriarcais de sobredeterminação da masculinidade, que desde sempre atuam
como fatores de desqualificação do feminino” (ERHMS, 1998), além de “desvendar o
procedimento patriarcal de constituição de gênero” (ERHMS, 1998). Atualmente, é
possível verificar artigos, dissertações, teses que propõem uma análise de sua obra, não
só da prosa, mas também de sua poesia.
poética, a narrativa aborda, entre outros temas, uma crítica às relações de gênero e ao
papel da mulher na sociedade contemporânea. Sendo assim é que o capítulo desnuda a
trajetória dessa personagem, a representação dos papéis desempenhados por ela diante
da sociedade vigente, seus questionamentos e transgressões.
Antes de iniciarmos a análise da personagem, é importante entender como a obra é
construída de modo a contribuir com sua caracterização. Em uma entrevista concedida à
revista Literária plural II em 2006, como citado no capítulo anterior, Helena Parente
Cunha revelou expressar-se melhor através da prosa para referir-se a questões tais como
indignação e revolta diante da desigualdade, da injustiça e da violência. Realiza-se,
aqui, uma referência à condição da mulher na sociedade. Para tanto, questionada quanto
aos seus personagens, nisso em outra entrevista ocorrida no ano seguinte à Léa
Madureira, ela destaca que eles são frutos de uma realidade fragmentada, vazia de
sentido, daí o sofrimento. Sendo assim, a autora vai além do próprio enredo para
representar essa instabilidade, e realiza um mergulho nos interstícios da própria
narrativa, ancorando em sua estrutura. Logo na disposição da folha é possível perceber
os primeiros sinais de ruptura com o tradicional, através do lugar certo da escrita na
folha. Por isso é que As doze cores do vermelho apresenta-se como um romance de
simultaneidades, visto que a narrativa se desenvolve a partir de três tempos (ou três
ângulos) e três vozes distintas. Sendo assim, há a presença de um eu que recorda o
passado, um você que dialoga no presente e por último um ela que antevê o futuro das
personagens. Portanto, é evidente a subversão das regras que compõem a narrativa
tradicional, tais como a unidade, linearidade e continuidade. Nesse quadro, é
importante destacar a articulação da narrativa em módulos, que se somam, ao final, em
quarenta e oito seqüências. O romance permite, dessa forma, que sua leitura aconteça
módulo a módulo ou “primeiro um dos ângulos e depois os outros dois” (ABREU,
1999, p.127).
Ao questionar, portanto, a quebra da linearidade na leitura de As doze cores do
vermelho, é que Marcilio Ehms de Abreu (1999) apóia-se no pensamento de Hutcheon
ao dizer que “o importante debate contemporâneo sobre as margens e as fronteiras das
convenções sociais e artísticas, (...) é também o resultado de uma transgressão
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tipicamente pós-moderna em relação aos limites (...) de determinadas artes, dos gêneros
ou da arte em si” (ABREU in CUNHA, 1999, p. 127). Assim, Abreu cita as estratégias
de inconformidade com a escrita usual, que, de acordo com o autor, reafirmam o
“caráter libertário e inovador da literatura” (ABREU in CUNHA, 1999, p. 127). É o
que podemos verificar durante a narrativa em que há a ruptura com a sintaxe tradicional,
figurando o predomínio da ausência de vírgulas no texto. Eis um exemplo: “Ela terá
sua casa e o marido e as duas filhas. E vai procurar organizar os horários para as
obrigações domésticas. Limpeza cozinha compras atenção e dedicação para a família”
(CUNHA, 1998, p. 3).
Com efeito, tal inexistência é tida como um fator positivo na obra, já que o uso da
vírgula, muitas vezes, conduz a uma narrativa fragmentada, propondo um recorte da
fala. Há, no entanto a presença dos pontos finais e do sinal de interrogação que, como
bem observa Silva (1999) “amarra o texto, torna-o mais independente, solto, livre para
ser retirado da seqüência, podendo até ser invertido, se for o caso”. Como nesse
fragmento retirado do romance: “Uma voz estreita furou o ar da manhã. Eu tive muito
medo. Por que eu não podia passar para o lado de lá?” (CUNHA, 1998, p. 14). Nota-se
nessa passagem, o uso de períodos curtos que contribui para o fluir do texto. A
apresentação de uma tessitura fragmentada, que rompe com a regra tradicional da
sintaxe, é reflexo de como se dá a própria construção da personagem principal.
A protagonista da narrativa representa o perfil de mulher submissa às normas sociais
que possui o desejo de se emancipar:
Desde que eu era muito pequena sempre dizia que quando eu
crescesse queria ser pintora. Vozes rangiam que a mulher tem que
colocar em primeiro lugar o lar. E pintar? Família marido filhos casa
eu tinha que me preparar. Eu dizia que também queria pintar. Vozes se
quebravam em suadas ruminações. A esposa deve se dedicar e servir.
Pintar só se meu marido consentisse? Por que consentir? (CUNHA,
1998, p. 60).
Casada, mãe de duas filhas, esta pintora inominada encontra-se, desde a infância,
dividida entre o lado de cá, das convenções e o lado de lá, da transgressão, querendo
romper com essas fronteiras. O ângulo 1 (um) do romance representa o passado dessa
mulher-artista, ou seja, sua infância. Nesse período ela recebe as primeiras instruções de
como uma menina deveria se comportar em uma sociedade masculina hegemônica.
Assim, à ela não era permitido o contato com o sexo masculino: “Nós brincávamos de
casinha comidinha de mãezinha das bonecas. Os meninos brincavam de soldado
espingarda revólver de espoleta. As meninas do lado de cá e os meninos do lado de lá”
(CUNHA, 1998, p. 14). Essa passagem representa a diferença imposta desde o início
pela sociedade patriarcal, como nas brincadeiras em que os meninos desempenham o
papel de dominantes, o soldado, enquanto às meninas, ao brincarem de casinha,
comidinha e mãezinha, reproduzem o pensamento dominante que destina a mulher aos
cuidados do lar e dos filhos, assumindo, assim, seu papel de ser passivo na sociedade.
Dessa forma, observa-se que a característica de passividade da mulher feminina é
desenvolvida nela desde os primeiros anos. Como considera Simone de Beauvoir:
É um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é
um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade. A
imensa possibilidade do menino está em que sua maneira de existir
para outrem encoraja-o a pôr-se para si. Ele faz o aprendizado de sua
existência como livre movimento para o mundo; rivaliza-se em rudeza
e em independência com os outros meninos, despreza as meninas.
Subindo nas árvores, brigando com colegas, enfrentando-os em jogos
violentos, ele apreende seu corpo com um meio de dominar a natureza
e um instrumento de luta; orgulha-se de seus músculos como de seu
sexo (BEAUVOIR, 1980, p. 21).
É importante destacar nessa passagem que, durante muito tempo, a diferença entre
homem e mulher foi considerada um fator biológico. A superioridade masculina diante
do ser feminino foi pensada como sendo natural, embora não seja. É na verdade,
imposta à mulher pelo meio social opressor.
É ainda na infância que lhe é dito que a mulher deve-se casar virgem: “Você quer se
casar virgem como a maioria das outras moças. Você espera seu noivo todas as noites
depois do jantar” (CUNHA, 1998, p. 15). Nesse trecho é importante perceber como o
discurso hegemônico patriarcal está incutido na personagem a ponto de aceitar tal
imposição como se fosse seu próprio desejo, embora não o seja já que, em alguns
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Tal fragmento evidencia, portanto, os preceitos que a sociedade ditava como sendo
de uma mãe exemplar. Com efeito, ela deveria se relacionar com outras mães,
organizar festas de aniversários para seus filhos. Trata-se, todavia, da mulher
doméstica, assim definida por Susana Pravaz (1981). Esse estilo de mulher, “provém de
uma longa tradição de mulheres do lar ou (...) surgem como uma resposta crítica à falta
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de uma mãe que tenha cumprido satisfatoriamente tal papel” (PRAVAZ, 1981, p. 67).
Nesse aspecto, é que se espera que a filha deva constituir uma nova família que satisfaça
a antiga.
É importante ressaltar que a sociedade patriarcal age como vozes que ecoam a todo o
momento na mente da personagem pintora ditando o que é correto e o que é errado para
a mulher. Eis alguns trechos elucidativos: “Vozes estreitas repetiam que nós não
devíamos falar nem devíamos brincar com a menina dos cabelos cor de fogo. A menina
não tinha pai e a mãe não prestava. Não prestava as vozes ecoavam” (CUNHA, 1998, p.
20); “No pátio antes de entrarmos para a sala de aula minha colega negra ocupava o
último lugar na fila. Por que se ela não é a maior? Vozes me mandavam calar a boca”
(CUNHA, 1998, p. 26); “Muitas vozes eram vozes e vezes na vigência dos nossos
ouvidos. Vozes dizendo. Cuidado. Juízo. Bom comportamento. Nada de saliência.
Rapaz direito só se casa com moça de recato” (CUNHA, 1998, p.36). Os exemplos
citados ilustram, desse modo, um meio social preconceituoso, que exclui todo aquele
que não se enquadra em seu molde. A menina dos cabelos cor de fogo foi posta à
margem por sua mãe ser prostituta. Logo, a ela caberia todas as implicações de sua mãe
ter assumido tal identidade. Em relação à menina negra, a exclusão ocorre pelo racismo
que prossegue até sua vida adulta, mesmo tendo se tornado uma médica conceituada.
Por fim, tem-se a afirmação da passividade feminina dada através de sua retaliação, de
seu pudor. O que justifica o não poder pintar, sufocado desde a infância, pois sua
pintura indicava transgressão às normas, já que ela criava e recriava através de sua arte.
Como quando pintava o céu de vermelho ao invés de azul ou a laranja de vermelho ao
invés de alaranjada e a professora ou os colegas diziam que estava errado.
Apesar de assumir os papéis sociais pré determinados como o de ser mãe e o de ser
esposa, a mulher-artista encontra-se dividida entre o lado de cá, das normas e o lado de
lá da transgressão. Todavia, ela se encontra no meio, no entre - lugar. Isso lhe causa
medo. Ele prevalece, todavia, durante todos os módulos da narrativa, limitando a
personagem, o que leva a entender que os preceitos sociais encontram-se, muitas vezes,
na frente da própria vontade: “Você faz vinte anos e vai se casar. (...) Seu noivo tem a
promessa de uma situação melhor no emprego. (...) A mulher é a rainha do lar. Você
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não vai mais entrar para a escola de belas artes. Você prometeu a seu noivo que não vai
mais pintar (CUNHA, 1998, p. 15). Nesse trecho é possível perceber o aniquilamento
do desejo que demonstra a determinação dos papéis sexuais, o que coloca a mulher
como um ser secundário, inferior perante o homem.
A vontade de conhecer o outro lado é liderada por questionamentos em relação ao
lado de cá, o que a conduz a não aceitação de todas as normas: “Eu escutava mas não
escutava o que as vozes diziam” (CUNHA, 1998, p. 24). O discurso opressor permeia a
narrativa com o intuito de impor padrões de comportamentos que concorrem para a
reprodução da diferença. Assim a protagonista depara-se na fronteira do que é dito e o
que gostaria de fazer: “No pátio antes de entrarmos para a sala de aula minha colega
negra ocupava o último lugar na fila. Por que se ela não é a maior? Vozes me
mandavam calar a boca. Por que eu não podia falar?” (CUNHA, 1998, p.26).
Sendo assim, a personagem protagonista apresenta marcas de transgressão. Como no
trecho a seguir, em que ela sente curiosidade de conhecer esse outro lado que lhe é
proibido, no caso, relacionado ao masculino: “Um dia eu subi até o alto do muro. No
alto do muro eu olhei o lado de lá. Um dos meninos me viu e correu devagarmente
depressa para perto de mim. (...) Eu pulei para o lado de lá. Eu tinha medo mas não
tinha” (CUNHA, 1998, p. 14). Embora dissessem que ela deveria permanecer longe do
masculino, a personagem rompe com as regras.
Outro desejo da transgressão da protagonista justifica-se pelo comportamento
sistemático do marido que, além de cansá-la de vê-lo “entrando e saindo com a pasta
preta pregada na mão e os dois relógios agarrados no pulso e a voz hibernada”
(CUNHA, 1998, p. 47), a faz perder a vontade, não só de “tomar conta da casa”
(CUNHA, 1998, p. 47), como também do desejo de ser aquela mulher, tanto existencial
como sexualmente:
Você ouve seu marido perguntar as horas e depois a dele voz dizendo
em demoradas sílabas que quer fazer amor. Você está deitada na cama
e abre as pernas sem nenhuma estrela acesa. Seu corpo está cansado
do corpo de seu marido em comedidas ordenações. A luz do abajur
apagada entre suas pernas apagadas. Cansada. Casada. Você está
cansada do lado de cá (CUNHA, 1998, p. 47).
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È interessante notar o jogo que se faz com as palavras “casada” e “cansada”, aqui
atuando como sinônimos.
Outro exemplo a citar está em suas pinturas assumidas como o ápice de seu processo
de subjetificação. Mesmo tendo de deixá-las em segundo plano, pois precisava cumprir
com os papéis de mãe, dona-de-casa e esposa, não ficaram esquecidas, pois recebe a
ajuda de suas amigas para voltar a pintar. Com efeito, sua pintura revelava traços
incomuns, incompreensíveis para algumas personagens, demonstrando, assim, a
dificuldade da sociedade em reconhecer a diferença e valorizá-la como tal. Assim,
enquanto a protagonista “coloria o céu de vermelhos” (CUNHA, 1998, p. 16), a
professora, como representação da ideologia hegemônica, “dizia que o céu era azul”
(CUNHA, 1998, p. 16).
Conclusão
Referências
ABREU, Marcilio Ehms de. Vozes femininas na pós-modernidade: mulher (es) em tons
de vermelho, leitura de As doze cores do vermelho, de Helena Parente Cunha.
In: CUNHA, Helena Parente (org.). Desafiando o cânone: aspectos da literatura de
autoria feminina na prosa e na poesia (anos 70/80). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1999.
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BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
BONNICI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências.
Maringá: Eduem, 2007.
CUNHA, Helena Parente. As doze cores do vermelho. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro: 2ª edição, 1998.
PRAVAZ, Susana. Três estilos de mulher: A doméstica, a sensual, a combativa. Rio de
janeiro: Paz e Terra, 1981.
SILVA, Antônio de Pádua Dias da. (À) Terceira Margem: Uma Leitura de As Doze
Cores Do Vermelho em Instantâneo Fotogramático: O Oráculo de uma Tragédia.
Maceió: 1999. Disponível em: http://www.helenaparente.com.br/criticastxt/criticas_
antonio.asp, acesso em 17, abr, 2010.
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, L. O. (org.).
Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3 ed. Ver. Ampl.
Maringá: EDUEM, 2009.
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Introdução
A ambiciosa idéia inicial do Livro das Tentações, primeiro título cogitado por
Saramago para o que depois viria a ser As Pequenas Memórias, seria mostrar que a
santidade do espírito humano é capaz de subverter a animalidade do homem,
perturbando e desorientando a sua natureza. Assim, o autor resgata de um desvão da
memória os momentos em que ainda era o menino Zezito e sofria perseguições de
monstros imaginários, estabelecendo um paralelo com os “monstros da imaginação” que
assaltavam Santo Antão, representados pelo pintor flamengo Hyeronimus Bosch (1450-
1516), e que teriam atormentado Saramago, ao tentar desencavar de si as recordações da
infância:
“Deixa-te levar pela criança que foste”, é com este conselho extraído do Livro
dos Conselhos que Saramago inicia suas memórias, que se constituirão a partir daquilo
que sua memória individual se recorda: a aldeia de Azinhaga, onde nasceu e onde
voltará para “acabar de nascer” (p.13) como afirma o próprio autor; o rio Tejo “lá mais
adiante, meio oculto por trás da muralha de choupos” (p.13) e o Almonda que “a seus
pés desliza”; a casa dos avós maternos, “mágico casulo” (p.15) onde geraram as
“metamorfoses decisivas da criança e do adolescente”; os avós paternos, pais, amigos e
vizinho; sua ida a Lisboa quando tinha apenas dois anos; o percurso escolar e as leituras
feitas em casa onde “não havia livros” (p.99) porque não havia dinheiro para os
comprar; as aulas particulares com o professor Varinho (p.106) e muitas outras
“recordações soltas” que apesar de o serem, não obstam ao conhecimento da pessoa que
foi e que deixou estagnada em algum lugar no tempo.
Quanto ao ser que foi, ou melhor, que começou a ser, cumpre ainda elucidar os
acontecimentos que facultam sobre o seu nome e o seu nascimento:
Foi o caso em que meu pai andava nessa altura a trabalhar fora da
terra, longe, e, além de não ter estado presente no nascimento do filho,
só pôde regressar a casa depois de 16 de Dezembro, o mais provável
no dia 17, que foi domingo. É que então, e suponho que ainda hoje, a
declaração de um nascimento deveria ser feita no prazo de trinta dias,
sob pena de multa em caso de infracção. Uma vez que naqueles
tempos patriarcais, tratando-se de um filho legítimo, não passaria pela
cabeça de ninguém que a participação fosse feita pela mãe ou por um
parente qualquer, e tendo em conta que o pai era considerado
oficialmente autor único do nascido (do meu boletim de matrícula no
Liceu Gil Vicente só conta o nome do meu pai, não o da minha mãe),
ficou-se à espera de que ele regressasse, e, para não ter de esportular a
multa (qualquer quantia mesmo pequena, seria excessiva para o bolso
da família), adiantaram-se dois dias à data real do nascimento, e o
caso ficou solucionado (SARAMAGO, 2006, P.46-47).
Ficou este caso pelo menos solucionado em meio a inúmeros outros que ficaram
“encalhados” no tempo do novelo emaranhado da memória, que quase nunca obedece
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também como capacidade inata ao homem a criação inventiva, que por vezes, incute a
revisitação do tempo-lugar.
Conclusão
Bibliografia
<http://www.uefs.br/nep/labirintos/edicoes/02_2008/04_artigo_odil_jose_de_oliveirafil
ho.pdf >. Acesso em: 27 fev 2010.
PEREC, Georges. W ou a memória da infância. Trad. NEVES, Paulo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
SARAMAGO, José.. Cadernos de Lanzarote. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
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Desde sempre o ser humano têm se deparado com situações para as quais não
consegue encontrar explicação. Situações que fogem das leis que o homem julga serem
naturais. Essas situações causam estranhamento ao homem, pois ele sente sua
aparentemente sólida representação do universo modificada e/ou ameaçada por alguma
coisa que desconhece.
Para aquilo que não se pode entender, e que intriga o ser humano, há sempre a
busca por alguma resposta, uma explicação, algo que sane ou minimize o mal-estar
frente àquilo que ameaça romper a lógica interna da sua representação do mundo. Assim
surgiram as ciências, na tentativa de explicar os fenômenos incompreendidos.
Nas artes, a incompreensão, a curiosidade, a fuga do real, ganharam outras
perspectivas. Os artistas, por muitas vezes, utilizam a fuga ao “real” interpretada como
liberdade para desenvolver suas ideias, seja sob a forma de simbolismos, seja de
arquétipos, seja de distorções propositais. Na literatura, diversos são os textos que
apresentam tais características, e, na tentativa de entender melhor essas características,
alguns críticos literários pesquisaram e escreveram suas ideias acerca do tema.
Desenvolveram então, teorias que se denominavam Fantástico, Maravilhoso e Estranho,
gêneros vizinhos. Sendo o foco deste trabalho o Fantástico na literatura, iremos
contemplar apenas a teoria proposta por Tzvetan Todorov acerca do gênero Fantástico,
que nas suas próprias palavras se trata de:
1. A Relíquia
E aquele homem não era Jesus, nem Cristo, nem Messias – mas
apenas um moço de Galiléia, que cheio dum grande sonho,
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equivocada, santificado pelo apelo popular de sua figura (muitos católicos referem-se ao
Menino Jesus como “o Santinho”), se define inteiramente humano,
E este filho que sou, para que o quiseste, Por gosto de variar,
não foi, escusado seria dizê-lo, Então Porquê, Porque estava
precisando de quem me ajudasse aqui na terra, Como Deus que
és, não devias precisar de ajudas, Essa é a segunda questão.”
(SARAMAGO, 2006, p.306)
Para finalizar seu romance, Eça deixa ao leitor essa frase, inferindo que as
religiões são fundadas em inverdades. Coloca tal afirmação na fala de Teodorico, que
desabafa suas reflexões acerca de suas experiencias vividas e sobre sua escolha de viver
com a verdade. Esta passagem ocorre depois do sonho, já no universo “real”, enquanto
Teodorico conversa com outra pessoa. A partir do momento que o personagem traz as
experiências oníricas para a sua realidade, a sociedade portuguesa do século XIX, há um
movimento duplo: primeiro, recupera e modifica os sentidos do sonho do protagonista,
que passa a significar uma revelação epifânica do poder da mentira fervorosa. Depois
disso, nota-se a súbita aproximação da focalização do personagem (devasso e cínico)
com a do autor implícito (que escolhe encerrar o livro com a frase de efeito).
Esse duplo movimento reinsere no texto a dúvida, o instante de hesitação: ou a fala é
de um personagem cínico e indigno de confiança (portanto, temos o estranho, explicável
pelo caráter de quem interpreta as instituições sociais) ou é a de um autor implícito (e
que teria, portanto, segundo o pacto de leitura oitocentista, um peso de “verdade” na
internalidade do texto, o que restabeleceria a versão blasfema da morte de Jesus como
plano de tomada de poder). Portanto, o romance encerra utilizando a brecha do
Fantástico para veicular sutilmente as idéias revolucionárias de Eça e sua crítica mordaz
ao catolicismo.
Referências
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Humildade
Ah! A aventura de viver humildemente
E, assim humildemente amar o mundo inteiro;
Querer bem a uma pedra, um ninho, uma semente,
A ver em cada amor o amor mais verdadeiro [...].
Weimar Torres. (Meus Versos, 1970, p.18).
1
Graduanda do curso de Letras e bolsista de Iniciação Científica desde julho de 2009.
2
Professora Adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados e orientadora da pesquisa.
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Coração de estudante – foi o nome com que batisei este livro, este
meu pobre livro – catecismo de meu coração e meu evangelho de
amor [...]
Coração de estudante – é um coração de adolescente a palpitar com a
maior pujança que a vida pode dar!
Desde então quando sofria alguma dor e se alguma tristeza me
apunhalava o coração eu transformava essa dor num verso... e sofria
menos [...] (Coração de Estudante, 1941, p.5)
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afirma que no Brasil colonial não havia leitores justamente por não haver um incentivo
como, bibliotecas, livrarias, instituições ligadas ao livro e à leitura, meios culturais e
outros que fornecessem a instituição de um significativo grupo de leitores. Antes da
transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro apenas 110 obras a cada ano
chegavam à cidade com cerca de 50 mil habitantes. Com a chegada da Família Real as
vivencias culturais se alteraram, pois, trouxeram para o Brasil a instalação de
bibliotecas, espaço literário, livreiros, criaram jornais ampliando assim o contato com a
leitura. Mas como aponta Abreu o acesso a obras ainda continuava restrito.
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Para que uma obra seja considerada Grande Literatura ela precisa ser
declarada literária pelas chamadas “instâncias de legitimação”. Essas
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O professor Lins tem por objetivo avaliar e motivar o interesse por certas obras
clássicas, fazendo referência e algumas explicações sobre as obras A Divina Comédia e
Os Lusíadas, valorizando o trabalho dos escritores e revelando sua grande preocupação
pela falta de leitura dos adolescentes:
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individualmente. No entanto, Abreu considera o ato de ler um valor social que deve ser
acessível para todos, não importa a classe e nem por meio de qual objeto o fará, o
importante é ser apreciado:
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Juventude, que parece ter sido um ensaio para uma futura publicação. Desses cadernos
nasce o livro Meus Versos, edição póstuma dos versos do escritor, organizada por sua
esposa em 1970. No prefácio do caderno de anotações Coração de Estudante, Weimar
revela o início de suas inspirações aos 17 anos, registrando sempre as decepções e
empolgações vividas por um adolescente romântico e patriótico. Ele compara sua obra
como um filho, em que o pai o entrega ao mundo. É importante observar que, na década
de 40, o Brasil estava passando por várias faces de mudanças e transtornos, declara
guerra aos países do eixo, e se inicia alguns movimentos literários como o segundo
período do modernismo em que muitos escritores regionalistas estavam preocupados em
expressar as vivências dos povos de sua região:
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vinte anos são as anotações que ele faz na última folha do caderno Coração de
Estudante, em que ele questiona a construção de um livro e seus “inocentes” poemas:
Percebe-se que Weimar menosprezou os poemas contidos nesse caderno por considerá-
los imaturos e serem suas primeiras construções de sentido na adolescência. Mas alguns
deles foram publicados no livro póstumo juntamente com os poemas do segundo
caderno de anotações Juventude. No caderno Juventude, os poemas estão distribuídos
em 85 páginas datilografados e com poucas correções, apresenta as mesmas
características do caderno anterior, capa dura marrom e uma foto de Weimar na terceira
página. O caderno parece estar pronto para uma futura publicação, sua conservação
física se encontra em bom estado. Na quarta página escreveu a caneta o poema
“Juventude”. A dedicatória é destinada a si mesmo: “Á mim mesmo, ao meu romantismo
incurável, à minha mocidade de ouro. Rio de Janeiro, 1944”. Tal dedicatória não foi
mencionada no livro póstumo. Ao passar as páginas, encontra-se uma marca de
positivo, ou seja, os poemas que foram escolhidos para a publicação.
Como apresenta seu amigo de infância, Elpídio Reis no prefácio de Meus
Versos, muitos dos poemas não foram publicados:
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E por outro lado revela uma admiração pelo regional, escrevendo vários temas sobre as
belezas e conquistas da cidade de Dourados e Ponta Porã:
O poeta também demonstra certo interesse por símbolos, seu poema “Magua” na
página 62 do caderno Juventude é todo construído por letras artísticas que não
conseguimos identificar, a intenção era justamente não ser compreendido, pois o poema
não foi publicado.
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Considerações finais:
Referências
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SOUZA, Eneida Maria. Crítica Cult. Belo Horizonte, ed. UFMG 2007.
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Introdução
A literatura fantástica foi muitas vezes deixada de lado, por causa dos cânones de
uma literatura clássica, mesmo sendo uma literatura, de autores de prestigio, o grande
desafio sempre foi entendê-la, como uma arte que também é capaz de revelar algo a
mais ao leitor. Assim, o que buscaremos apresentar aqui, é uma leitura de como é o
fantástico nos dias de hoje, destacaremos como é a relação dos seres fantásticos e para
alcançar esse objetivo pensaremos na relação do “eu e o outro”.
Basicamente usaremos duas fontes teóricas. Uma sobre o fantástico, tendo como base
as idéias do escritor Todorov no seu livro Introdução à Literatura Fantástica, e os
conceitos de relações estudado por Bakhtin, principalmente nos que constam no livro
Estética da Criação Verbal. Nesse trabalho não se tratara de nenhum enredo fantástico
especifico, já que o foco é verificar como é a relação, do fantástico e dos seres fantástico
nos dias de hoje.
O que dizer de vampiros, lobisomens, bruxos, fantasmas e zumbis. Podemos passar o
artigo inteiro, citando as criaturas fantásticas que povoam essas obras. O fato é que
esses mitos estão intrínsecos em cada sujeito. Você pode não gostar dessas histórias, ou
de um mito propriamente dito, mas, isso não apaga o mito como expressão social. São
mitos justamente porque ultrapassam o tempo, viajam pelas épocas, são inacabados. Ora
o mito torna-se algo corrente em determinada época, ora é esquecido. São enunciados
que sempre retornam com novas roupagens.
Pensando assim, os mitos figuram basicamente num coletivo, num contexto que
indica também a sociedade da época. Tudo tem uma base nas questões ideológicas, e
por consequência, como algo do social e de uma época, dialógico. Esses mitos são
regidos socialmente, estando sempre num circulo de relações, o sujeito em sua época
que dialoga com esses mitos e os mitos que dialogam com os próprios mitos, cria-se um
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contraponto daquilo que é o estético e esta diante do leitor, e o ético e real numa
compreensão social. O senso lúdico é que define aquilo como algo aceitável ou não a
cada sujeito.
O escritor, Todorov, afirma que é preciso uma aceitação ou não da obra. O leitor
aceitando essa literatura, com o estético posto ali, vai acreditar em vampiros,
lobisomens, fantasmas e qualquer outra criatura fantástica. Deste modo, não basta o
escritor criar sua obra, ele precisa tentar fazer que haja a aceitação do leitor. Para isso
ele segue o enunciado da época, faz uma leitura social, a fim de descobrir qual mito
fantástico cabe melhor naquele momento, desta forma, surge à literatura fantástica da
nossa época.
Ao tratar então desses enunciados faremos algumas reflexões a partir das idéias do
filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin. O que define aquilo que será vinculado, nos
enunciados de determinada época? Se for o sujeito, é ele que no alto de sua necessidade
de vir a ser, determina quais serão os diálogos na sociedade de tempos em tempos. Tal
postura deixa evidente a necessidade das relações, do eu mais um outro.
Tudo isso faz com que entendamos aquilo que vem sendo produzido na literatura e
no cinema. O sujeito de hoje, absorve e produz discursos, que servem de base para uma
construção fantástica, essa seria a razão pela qual um mito esteja aparecendo com maior
frequência, sendo fruto daquilo que o próprio leitor ou telespectador pensa, vê e sente
no seu mundo em determinada época.
Na literatura então teremos obras que reapresentam um mito, criando uma
segmentação desse mesmo mito. É isso que faz com que outros escritores escrevam
sobre o mesmo mito, ou faz o próprio leitor buscar livros com a mesma temática. E
nessa busca, ele recupera alguns escritores e obras, de outra época que não a sua. Cria-
se então circularidade, ou seja, dialogismo.
No cinema o que ocorre é a revitalização das obras literárias. Ou seja, o cinema se
preocupa com o enunciado vigente, revitalizando as obras com os mitos. Pensamos
nessa idéia revitalizadora porque acreditamos que o termo adaptação cria juízo de valor,
o que não cabe quando se trata de obras artísticas e expressões artísticas. Cada gênero é
importante, e tem sua função social. O cinema então revela por uma outra ótica esses
mesmos mitos que estão sendo apresentados na literatura. E, se o sujeito busca outras
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obras literárias com as mesmas temáticas, o mesmo faz no cinema, criando assim um
dialogo entre as obras e os sujeitos, deste modo, vemos a circularidade entre literatura,
cinema e sujeito. Relação continua entorno de uma mesma questão, o mito fantástico
que estiver corrente na época.
Essa segmentação cria, por determinado tempo, uma necessidade por essas obras
fantásticas caracterizadas principalmente pela literatura e o cinema, elas encontram um
lugar certo na sociedade e por sua vez no circulo das relações. Ao definir assim, a arte
no tempo, nos deparemos com a idéia principal que é o fantástico nos dias de hoje, e,
para chegar a isso precisamos entender como esse gênero funciona.
1 - Conceitos fantásticos
A partir disso Todorov apresenta duas idéias básicas, servindo para uma melhor
compreensão. Uma que dará conta dos sujeitos que não aceitam essas obras, e outra que
trata de quem aceita. São eles o estranho e o maravilhoso. O entendimento desses temas
é fundamental, para sabermos, como uma mesma obra pode ter uma ligação diferente
entre sujeitos distintos. Ligados socialmente por uma mesma época, mas, com ligações
ideológicas diferentes.
O estranho trata do sujeito que não aceita essas obras. Para eles as ordens do mundo
continuam iguais, nada muda, e ele não aceita essa obra por isso. Pois, ele consegue
explicar tais fenômenos sociais, como aceitar vampiros ou lobisomens, se seu senso
lúdico diz que isso não existe no mundo real. A obra não é mais nada do que algo
estranho, pois provoca o estranhamento nesse sujeito. “Se decidir que as leis da
realidade ficam intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a
obra pertence a outro gênero: o estranho.” (TODOROV, 1981, p. 24)
Outro elemento é o maravilhoso. Por consequência, esse dá conta dos sujeitos que
aceitam essas obras. O que acontece é uma comprovação, de que existem outras regras
que regem o mundo, e por consequência a sociedade. Regras que podem identificar
aquilo como algo real. O sujeito que aceita essa obra sempre a entende como algo
natural, e por isso esse maravilhoso causa o efeito esperado nele. “Se, pelo contrário,
decide que é necessário admitir novas leis da natureza mediante as quais o fenômeno
pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso.” (TODOROV, 1981, p. 24)
Essas idéias possuem outras divisões, mas, não trataremos aqui, já que o que importa
é entender principalmente esses sujeitos distintos. Um que lê toma contato com a obra,
mas, não provoca movimento social. E aquele que também toma contato, mas, responde
a arte com a vida e por sua vez, consegue criar tal movimento. Esse leitor circular, e por
assim dialógico, é capaz de ter uma visão de mundo aberta para novas leituras, não
somente das artes, senão para fazer novas leituras do mundo e da época que está
vivendo.
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São muitas as relações socialmente possíveis, somos vários “eu” e vários “outro”,
com idéias diferentes, ideologias diferentes, e que se relacionam. Os enunciados
também são diversos, compreender esses é muito importante. Porém, entender a ligação
desses nas obras artísticas, nos autores e nos leitores, aqui será mais importante. Pois,
não existe uma única visão sobre uma época, ou sobre um mito. O que interfere
realmente é o enunciado mais usado em determinadas épocas e as relações, por fim, do
“eu” e o “outro”.
2 - Eu e o outro
Como existir socialmente sem essa relação? Não é possível, existimos e nos
constituímos como seres, porque existe essa relação. É uma aliança, um circulo sem
fim, de relações e de troca de conhecimentos, assim tentamos nos constituirmos como
pessoas com ideologias, e, que não existe porque só pensa, existe porque dialoga com o
seu outro e, vive socialmente inserido. Seres inacabados num mundo inacabado, com
mitos inacabados, com artes inacabadas.
Sabemos que pessoas com formação social ideológica diferente, convivem nesse
mesmo circulo. Porém, as relações mais efetivas se dão, sem dúvida, entre pessoas com
idéias e ideologias iguais. Vejamos duas pessoas, uma que acredita num estranho, e
uma que acredita num maravilhoso, estas possuem uma visão de mundo diferenciada.
Um não deixara de existir por isso, pois fazem parte de um corpo social, o que segue é
somente um embate ideológico.
Na arte quem deve criar esse desafio, é o autor e artista. É ele que transporta o ético
para o estético, a fim de criar embates, por sua vez inevitáveis, pois já vimos que podem
existir dois tipos de leitores das obras fantásticas. Nessa criação ele deve imaginar quem
será o público e leitores alvos. Para determinar seu material de trabalho, existe então a
relação do autor com um “auditório virtual” (BAKHTIN, 1930, p.5). Nesse ele imagina
todas as situações possíveis.
Do outro lado, tem então o leitor. Esse deve compreender a arte com a vida, podendo
aceita-la ou não, isso move sua condição de inacabado. Para não deixar que a arte fique
inerte na sociedade é preciso que o sujeito compreenda isso. “Pelo que vivenciei e
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compreendi na arte, devo responder com minha vida para que o todo vivenciado e
compreendido nela não permaneçam inativos” (BAKHTIN, 2003, p. XXXIII; XXXIV).
Sabemos que deve existir o apoio mutuo entre autor e leitor. Para que haja aceitação e
por sua vez, compreensão a fim de criar discursos na sociedade, para que esses sirvam
de compreensão, de um momento distinto.
Robert Stam apresenta essa idéia de forma bem clara. Vejamos o que ele fala nesse
trecho sobre essa relação:
Assim, cada eu e cada outro, só se constituem por causa do seu ponto de contato. O
que torna tudo inacabado por sua vez. É tratar o outro, como coisa integrante de si
mesmo, pensar que sem esse contato, não existiria nenhum outro. Nossa relação é
definida para nós, e definimos o outro e os objetos. Quando isso é arbitrário modifica
nossa relação e as determinidades do mundo. Pensando no fantástico, por exemplo,
quando nossa ligação é aleatória, perdemos nossa relação principal, e não nos
constituímos na sociedade.
Os mitos que povoam o fantástico é o alimento para as obras, fazendo parte das
relações sociais. Devendo ser seguido pelos enunciados de determinada época. São
esses enunciados, como já dito, que determina o mito que estará sendo usado com mais
frequência, em determinadas épocas. Os discursos e enunciados hoje, privilegiam um
mito vampirico. Servindo de material para escritores, diretores e produtores de filmes.
Assim, o que essa relação gera é um dialogismo com outros mitos, e com o próprio mito
no decorrer dos tempos.
Temos então o mito corrente na nossa época, o vampirico. Esse mito não é o mesmo
desde sua criação, ele é inacabado e assim, sofre adequação no decorrer dos tempos. O
vampiro retratado por Bram Stocker publicado no romance Drácula (STOCKER,
1897), ou o retratado por E.T.A. Hoffimann, não é o mesmo de hoje. Esses vampiros
possuíam o desejo de sangue e o desejo de matar, que era a característica primordial
desses seres fantásticos. Assim, eles não poderiam ser heróis.
Essa idéia de vampiro herói, nos é dada na modernidade. O que mudou as
características desses seres, ou melhor, ocorreu na adequação do mito à nossa época.
Para isso foi preciso uma mudança, o vampiro precisou ser retratado não como, violento
e sanguinário, mas, como mocinho e bom. Sua forma é retratada como algo natural. O
fato é que esse vampiro que conhecemos, sofre de uma crise existencial, e por isso ele
tenta se adequar socialmente. Deixando de ser vilão, passando a se tornar mocinho.
Desse modo, autores como Charlaine Harris, L. J. Smith ou Stephenie Meyer, criam
seres vampirico, que representam essa mudança. Seres que não tem o interesse em suas
imortalidades, preferindo respeitar uma ordem social ao invés de respeitarem suas
próprias condições como seres diferenciados. Isso também pode ser visto no cinema
como em filmes como Anjos da Noite (WISEMAN, 2003) ou nas diversas revitalizações
que as obras desses mesmos autores sofreram, tanto no cinema, quanto em seriados de
televisão.
Essa adequação do mito traz consigo algo muito interessante que é a questão de
quando se trata isso, uma obra é capaz de mudar a interpretação, e no nosso caso, de um
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mito. O sentido anterior, não é apagado. Surgindo conforme o interesse pelo mito
retorna. Visto isso, temos o retrato do Drácula no filme Van Helsing (SOMMERS,
2004). Nesse o vampiro não é bonzinho, e é obvio, pois, o vilão é o próprio Drácula.
Podendo então ter variações desse tipo, vemos que os enunciados estão em todos os
momentos dialogando, com tudo que está no social. Essa enunciação pode ser vista na
obra do Todorov:
Certas ligações são necessárias para entendermos o movimento circular que os mitos
conservam. O mito decorrente é sem dúvida, na literatura fantástica e no cinema, o
vampiro. Isso já aconteceu em outras épocas, agora o fenômeno se repete. Assim
sabemos que num outro momento esses mitos estarão escondidos, até que tornem a
surgir novamente em outras circunstancias, com outras ideologias, com outras
caracterizações, e por sua vez, com outros discursos e construindo novos diálogos.
Enquanto os autores explorarem esses mitos, cabe ao leitor definir a hora que o discurso
precisa mudar, no nosso caso, na literatura fantástica.
Portanto, todas as relações entre eu e o outro que encontramos na literatura fantástica
nos dias de hoje, provêem dos mitos decorrentes, adequados para nossa época. O que
faz com que haja diferenciações entre um mito, e os outros que constam no social. Esse
movimentar entre sujeito, arte e mito é a expressão máxima de um vir a ser. Cabe ao
sujeito e leitor, decidir qual caminho escolher, para compreensão e aceitação dessas
obras, que já constam num repertorio social, como representação dos enunciados da
nossa época.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4.ed. Martins Fontes. São Paulo.
2003. Trad. de Paulo Bezerra.
_____.Estrutura do enunciado. 1930. [Trad. Ana Vaz], Para fins didáticos.
_____.Questões de Literatura e de Estética: a Teoria do Romance. [Trad. Aurora
Bernadini et al]. São Paulo: Hucitec, 1990.
STAM, Robert, Bakhtin, Da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.
TODOROV,Tzevtan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Pespectiva,2007.
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A revisão era uma prática de Graciliano, seus textos eram despidos de termos
complexos, em Angústia não seria diferente, principalmente por ter sido reescrito em
diversos momentos. Quando parava de escrever, lá vinham os estímulos do amigo para
que continuasse, pois se tratava de algo interessante. A revisão aconteceu na solidão de
uma pequena casa, como ele descreveu:
Podemos observar uma citação anterior que diz: “suprimir repetições inúteis”
(RAMOS, 2004, vol. 1, p. 41). Nada mais comum para um escritor que trabalha para
“limpar” seu texto, porém, ao submetermos na empreitada de leitura e releitura de
Angústia, evidenciamos que se houve condensamento das palavras e termos, algo
passou despercebido ou foi deixado por mera intenção pelo autor, pois é objeto deste
estudo o recorrente o uso de termos ligados aos olhos. Dessa forma observamos o uso
constante do substantivo olho (plural e singular) e do verbo olhar e suas diversas
conjugações, são repetições que impressionam, principalmente, vindas de uma obra em
que seu escritor é dado a contenções de palavras para objetivar seus textos e deixarem
afastados alguns preceitos mecânicos modernistas.
A pluralidade do olhar na obra mostra a funcionalidade e o sentido da
observação como recursos para rememorar fatos – o olhar substantivo, o olho adjetivo,
o verbo olhar e suas recorrências no infinitivo, no gerúndio e no passado formam uma
cadeia de registros que constroem um complexo de memória. O maior suporte para
memória de imagens são os olhos, lentes silenciosas que captam e registram tudo
(consciente e inconsciente) e depois remetem em fleches filtrados para que o sujeito
reviva num determinado momento da história algo de bom ou ruim. O reviver funciona
como uma fuga presente, como acontece com o protagonista da obra, Luís da Silva –
um sujeito condenado ao isolamento e a solidão; a estar entre o bem e o mal,
rememorando e vivendo num monólogo interior que recria fatos; e, cria situação de
convivência fugindo de si e dos outros.
O uso excessivo do substantivo olho e sua derivação verbal, mais conjugações
de tempo, serão apresentados em gráficos para que possamos ter a dimensão de seu uso
ao longo dos quarenta capítulos que formam romance.
Vejamos: no Primeiro quadro gráfico, os substantivos.
OLHINHOS; 13
1 OLHOS; 150
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OLHAVA-A; 1
OLHAM; 2
OLHEI-AS; 1
OLHEI-ME; 1
OLHEI-O; 1
OLHAVAM-LHE; 7
OLHAVA-ME; 1
OLHOU; 4
OLHAVA-O; 1
OLHOU-ME; 2
OLHÁ-LA; 1
OLHAVAM; 2
1
OLHE; 2
OLHO; 1
OLHARES; 1
OLHAM-ME; 1
OLHASSE; 1
OLHA-ME; 1
OLHARIA; 3
OLHEI; 15
OLHARAM; 1
OLHAR; 13
OLHAVA; 27
OLHANDO; 32
0 5 10 15 20 25 30 35
Se não era Sinhá Germana que o Velho Trajano possuía como dono absoluto,
eram as negras da fazenda, ele não era senhor de uma escrava só que se deitava com ele
sob as catingueiras. Todas as façanhas de velho avô davam a Luís a sensação de ser vil e
sem coragem. Essa coragem que ele pretendia ter para dar fim à vida do seu oponente,
que estava cada vez mais próximo de Marina, dando-lhe prazer. Em consequência de
um aborto, Marina é destratada por Luís, seu ódio por Julião aumenta. A morte do seu
opressor era inevitável, mas como fazer sem deixar suspeita. Veio o planejamento, na
mente a recordação de instrumentos que o maltratava na infância: a corda, o cinturão.
Esses elementos que serviram de inspiração macabra para efetivar o fim do seu rival.
Outra retomada no passado, a lembrança do poder do avô, que tinha amigo cangaceiro,
mandava matar e tudo ficava bem; o velho era forte e tinha sua própria lei, o poder da
riqueza. Parece esta em devaneio quando relata que “Julião Tavares flutuava para a
cidade, no ar denso e leitoso.” (RAMOS, 1975, p.178). Delírio! Era preciso distinguir
esse pensamento. Como? Cobras, cascavéis... Chegou a uma definição do instrumento
que usaria para o crime, uma corda. A corda que recebera de presente. A luta foi
intensa, muita força, a corda no pescoço, Julião estava morto. Essa ideia lhe causou
estarrecimento, pois “Não tinha pensado nisso” (RAMOS, 1975, p.186), ou seja, a
morte real de um indivíduo, de uma ideia, de uma ilusão (Será que a luta representa a
razão se sobrepondo a força da rudeza do sertão? Talvez a sensibilidade poética tenha
essa resposta...). Dessa forma, percebemos que as evoluções de Luis transcorrem a
partir das reminiscências que permeiam sua mente, são lembranças que o deixo
condicionado a não agir ou reagir para viver o seu presente.
Dessa forma, pudemos observar a recorrência do “olhar” na obra, algo
incomum para o autor por se tratar de termos que se repetem dinamizando o texto. Essa
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observação oportunizou ver no “olho” uma lente silenciosa engmática que capta
(consciente e inconsciente) a realidade que circunda os sujeitos; vimos à capacidade do
“olhar” se voltar para o interior da memória e capturar elementos que facilitem fugir de
si e dos outros em flashback. A reincidência do olhar demonstra uma denúncia social,
uma camuflagem do indivíduo perante as relações de grupos. Psicologicamente, Luis é
uma personagem marcada pelo processo redutor da sociedade, onde reminiscências de
um passado de poder e de um presente de declínio marcam sua convivência com o outro
e consigo mesmo.
REFERÊNCIAS
Introdução
Nesse trecho da obra, observa-se como a descrição da Grécia inteira pode ser
resumida em apenas uma imagem de criança seminua, instaurando assim, uma
linguagem metonímica também na produção em prosa. A partir disso, é notável a
habilidade com que o autor plasma uma fusão entre prosa e poesia. Pode-se dizer que
a técnica de escrita de Oswald representa de maneira efetiva alguns pressupostos da
lírica moderna, como por exemplo, a utilização dessa desarmonia dos fragmentos
(apesar de ser apenas aparente) para aliviar-nos do contato com uma beleza
tradicionalmente concebida e nos afastar da monotonia. Nota-se a preponderância da
vontade da forma sobre a vontade da simples expressão (FRIEDRICH, 1978, p.33-
40).
Ainda no que diz respeito às técnicas de construção da forma textual nas
memórias, pode-se notar um outro elemento que configura a poetologia de Oswald
de Andrade no todo de sua obra: a mescla ou a justaposição de gêneros. O crítico
Kenneth Jackson chama tal tendência de paródias estilísticas, como quando aponta
tal tipo de técnica no romance Serafim Ponte Grande: “Os quarenta e seis fragmentos
em que se contam aventuras de Serafim na Europa são únicos por sua justaposição de
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cartas, diálogos, poesia e teatro, numa colagem crítica” (JACKSON, 1978, p.71.). O
texto oswaldiano é entendido como uma construção capaz de incorporar em si
materiais literários bastante heterogêneos, como, por exemplo, colocar dentro de um
mesmo espaço textual paródias de convenções e normas, fusão de poesia e prosa,
termos chulos, imagens grotescas, o erro gramatical ao lado do pedantismo letrado,
discursos, cartas e outros mais (FARINACCIO, 2001, p.195-196.). Muitas vezes
associada ao estilo de James Joyce (claro, sempre com as devidas ressalvas), essa
trama babélica do texto pode ser observada de modo bem explícito também no
romance Memórias sentimentais de João Miramar. Um exemplo pode ser tomado
quando o narrador anuncia o casamento da sogra do protagonista por meio da
inserção direta de uma paródia estilística dos convites para a cerimônia: “O conde
José Chelinini Della Robia Grecca e D. Gabriela Miguela da Cunha participam a V.
Exa. O seu casamento. Nice” (ANDRADE, 1999, p.76.).
Esse hibridismo estilístico observável nos romances pode ser encontrado
também na poesia do autor, que através de efeitos parodísticos e satíricos, realiza o
pastiche de materiais retirados dos mais diferentes setores, como textos jornalísticos,
fragmentos de cartas, anúncios publicitários e vários outros (OLIVEIRA, 2002,
p.113.). No poema a seguir, contido na obra Pau-Brasil, nota-se uma paródia em
relação à linguagem das cartas do período do descobrimento do Brasil:
Vale ressaltar que tal personagem, além de exibir esse tipo de postura
melodramática, é o escritor de um romance chamado Recordações de um ósculo,
cujo título remete ao ideal estético combatido por Oswald.
Em Memórias Sentimentais de João Miramar, também podem ser encontrados
alguns exemplos de tal postura crítica em relação à literatura de salão. Os
personagens Machado Penumbra (que, aliás, é quem escreve o prefácio do livro em
estilo rebuscadíssimo) e Dr. Pilatos, são bons exemplos da postura do burguês
retórico, pedante e que acredita ser detentor do bom gosto em relação aos padrões
artísticos. Vide o trecho a seguir, no qual o narrador descreve uma cena
desempenhada por Dr. Pilatos:
O Dr, Pilatos com ohs e ahs emitira a Célia entre duas bananainhas
uma opinião a meu respeito.
- Seu marido, minha senhora, parece Telêmaco segundo o Fénelon na
tradução portuguesa em quem era de admirar tanta facúndia em tão
verdes anos.
Como lisonjeada matrimonialmente ela insistisse por outra bananinha
o sábio da Grécia entre um oh e um ah eruditou, ser todo homem
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Nessa parte do trabalho será analisada uma questão que está diretamente ligada ao
que foi discutido no tópico anterior, buscando uma linha de interpretação que
possibilite entender de que maneira as memórias, que seriam factuais, são estilizadas
no plano literário. Ou seja, como ocorre a transposição daquilo que, inicialmente,
está situado no plano concreto para o plano literário, estético.
Para compreendermos bem o que aqui se argumenta, basta observar que, ao
entendermos a produção literária de Oswald como uma estrutura organizada segundo
um mesmo método de composição, enquadramos também sua autobiografia dentro
de sua produção estética e artística, deixando um pouco de lado a perspectiva que
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Após essa colocação, reafirma-se o que já havia sido dito acima acerca do
método de constituição das memórias de Oswald: torna-se visível o caráter de
construção ficcional que predomina nas memórias. Assim como ocorre nos romances
do par Miramar-Serafim, a técnica narrativa se assemelha bastante ao que se entende
como a posição do narrador no romance contemporâneo, já que o subjetivismo
hipertrofiado de tais construções não tolera nenhuma matéria sem transformá-la,
jogando por terra o preceito da objetividade (ADORNO, 2003, p.55.).
A partir disso, torna-se interessante pensar como identificar um desempenho
mimético do narrador em uma obra autobiográfica cuja premissa é a transfiguração
do real. Antes de pensar em tal questão, é preciso deixar claro que abordo o conceito
de mimesis como Mimesthai e não como imitatio. A distinção reside no fato de que o
conceito de imitatio limita o significado de mimesis uma vez que o primeiro se refere
apenas à representação, enquanto o segundo diz respeito à representação e à
expressão. Dentro do sentido mais adequado, considerar que um narrador possui um
desempenho mimético é considerar que este não se empenha apenas em representar
algo, mas também – ou principalmente – em dramatiza algo e dramatizar a si mesmo,
assumindo uma postura de mutação constante (SOUZA, 2006, p.17). A prova disso
vem do fato de que Oswald de Andrade trabalha um processo de desidentificação de
si mesmo para narrar, assumindo outras identidades: em Um homem sem profissão,
ora o narrador-memorialista se apresenta como Miramar e ora como Serafim,
estabelecendo assim um tipo de paralelo entre as obras as quais tais narradores-
personagens aparecem.
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Conclusão
Referências
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo,
1999.
ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. São Paulo: Globo, 2003.
ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Globo, 1996.
ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão. São Paulo: Globo, 2002.
CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. In: Memórias Sentimentais de João Miramar.
São Paulo: Globo, 1999.
CAMPOS, Haroldo de. Serafim: Um grande não-livro. In: Serafim Ponte Grande. São
Paulo: Globo, 1996.
CANDIDO, Antonio. Brigada ligeira. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004.
CANDIDO, Antonio. Prefácio inútil. In: Um homem sem profissão. São Paulo: Globo,
2002.
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
FARINACCIO, Pascoal. Serafim Ponte Grande e as dificuldades da Crítica
Literária.São Paulo: Ateliê Editorial: FAPESP, 2001.
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Era, então, necessário que elas lançassem mãos da pena – mesmo sob o olhar
preconceituoso de potência do mal – para propor a sua própria ontologia. Não obstante, para a
decomposição de estereótipos sociais, fazia-se mister escamotear o mundo do silêncio
privado, das atividades domésticas, na busca de se fazerem ouvidas no âmbito público,
ocupando o ofício das letras que se constituía enquanto espaço inexoravelmente masculino.
Visto por este prisma, o discurso se configura enquanto local de desejo e poder para a
legitimação e, ao mesmo tempo, construção histórico-social de lugares.
No Brasil dos Oitocentos, algumas escritoras buscaram novos caminhos para uma
expressão que rompesse com estereótipos e silêncios impostos. Deste modo, as narrativas
escritas por mulheres – principalmente nos séculos XVIII e XIX – faz parte justamente da
tentativa de deslocar a língua dos mecanismos de poder coercitivo estabelecido ao se opor aos
estereótipos culturais, disseminados sob a rubrica máscula.
Deste modo, participar da construção de discursos emancipatórios, transgressores de
modelos construídos culturalmente, para propor novas perspectivas de representação do
mundo feminino, constituía-se enquanto assertiva fundamental para a quebra da estereotipia e,
sobretudo, para a luta de novas concepções do caráter nacional e das relações que se fizeram
presentes diante dessa idealização.
Com uma produção notável, que se envereda pela literatura infantil, por matérias
jornalísticas, crônicas, ensaios, contos, romances e peças teatrais, o trabalho literário de Julia
Lopes de Almeida 1 (1862-1934) ficou durante muito tempo submetido ao olvido da crítica
brasileira, embora os seus coetâneos, no entre-séculos, a considerassem, na expressão de
Guiomar Torresão 2, como “a primeira escritora do seu país”, ou ainda, como afirma Leonora
De Luca (1995), “a mais importante mulher-escritora do Brasil” (p. 277).
A crítica especializada, entretanto, tem-se dividido quanto ao “lugar transgressor”
ocupado por Júlia e frequentemente as discussões permanecem no campo ideológico. O
resgate da obra da autora segue caminhos antagônicos: enquanto a crítica feminista preocupa-
se em recuperar os seus textos por meio de um olhar transgressor, outros estudos, a exemplo
1
Peggy Sharpe, em face da grande quantidade de textos publicados por Júlia Lopes de Almeida, sugere
dividir a obra da autora em duas categorias: 1) obra de ficção e 2) obra didática. Entretanto, tal proposta de
divisão não nos parece adequada, uma vez que a própria ficção tecida pela autora possui um caráter didático que
advoga pela emancipação da mulher, por meio de exemplos que se forjam na trama de suas escrituras. Assim,
acreditamos que Julia Lopes de Almeida lança mão da ficção para propor, estrategicamente, discursos didáticos
contra-hegemônicos ao modelo subserviente de feminilidade. Por conseguinte, o caráter ficcional e didático da
obra não se excluem, pelo contrário, se completam para propor um novo discurso.
2
Tal comentário foi publicado em A Mensageira de 15 de junho de 1899. Ver nota de roda-pé em
SHARPE, Paggy. Julia Lopes de Almeida. In: MUZART, Zahidé Lupinacci (org.). Escritoras Brasileiras do
Século XX. V. 2. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. p. 188.
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de Nelly Novaes Coelho (2000), percebem nela um discurso que “confirma a ideologia
dominante e até mesmo reforça a dualidade contraditória com que a tradição estigmatizou a
mulher” (COELHO, 2000, p. 109).
Mesmo sob o efeito de tais controvérsias, não podemos furtar o nosso olhar para o fato
de que tornar-se “criadora” de um discurso, rompendo os limites privados do lar e alcançando
o espaço publico para sobreviver do ofício das letras 3, já se constitui como ato transgressor do
modelo de feminilidade nos Oitocentos. Ademais, se podemos vislumbrar avanços e
acomodações em seus textos, acreditamos que seja por conta das tensões históricas por quais
atravessam a vida da escritora: processos que se alicerçam no fim da escravidão, na
proclamação da República, na Belle Époque brasileira, no golpe de 1930, entre as transições
sociais, políticas e econômicas que se vai forjando o Brasil.
Por outro lado, através da análise do seu estilo literário, podemos perceber uma ironia,
tão característica do XIX, que se configura como discurso para, estrategicamente, alcançar as
suas publicações e fazer-se a escritora mais lida do final do século XIX e início do XX 4.
Assim, de acordo com os estudos desenvolvidos por Leonora De Lucca, sobre o “feminismo
possível de Julia Lopes de Almeida”, estamos persuadidos de que o alcance de sua
visibilidade, no ofício das letras, só foi possível por meio de estratégias e táticas
desenvolvidas no intuito de permanecer no universo público para, fazendo-se uso do poder do
discurso, redefinir o local da mulher na sociedade oitocentista.
3
Julia Lopes de Almeida “foi na prática a primeira escritora profissional das letras brasileiras que
conseguiu sustentar-se a se e à família com renda proveniente de seus livros” (SHARPE, 2004, p. 197), “ganhou
fama e talvez tenha sido a única escritora do período a conseguir dinheiro com sua pena” (TELLES, 2007, p.
441).
4
Num belíssimo estudo sobre leituras de mulheres no final do século XIX e início do XX, com base em
autobiografias, Lilian Lacerda cita alguns escritores lidos e, entre eles, encontra-se Julia Lopes de Almeida:
“Assim, entre os nomes mais apontados nas autobiografias eleitas poderia destacar: Miguel Zevacco, Victor
Hugo, Ponson du Terrail, Balzac, Eugène Sue, Alexandre Dumas, Perez Escrich, Condessa de Ségur, M. Delly,
Tostoi, Dostoievsky, Flaubert, Eça de Queiroz, Felipe de Oliveira, Castro Alves, Edmundo de Amicis,
Lamartine, Shakespeare, Dante, Joaquim Manoel de Macedo, Machado de Assis, José de Alencar, Julia Lopes de
Almeida” (LACERDA, 2003, p. 271).
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O título do romance, de início, já nos fornece dois dados essenciais para entendê-lo. O
primeiro diz respeito às memórias, subjetivas, que parecem constituir estratégias discursivas
para nos propor um efeito de real, justificador da verossimilhança tão comum ao século XIX,
uma vez que as memórias pressupõem o testemunhar de experiências vividas 5. Estas, no
entanto, privilegiam formas introspectivas que “domina o mundo ficcional e cada vez mais a
forma romanesca é solicitada a acompanhar esta aventura de um discurso interior”
(BRAYNER, 1979, apud SALOMONI, 2007, p. 08). O segundo dado nos permite perceber
que tais memórias não são de homens, mas sim de uma mulher: Marta. Ora, propiciar ao
público leitor uma ficção que contém como matéria principal as memórias de uma mulher,
confronta com a expectativa normativa dos Oitocentos, sobretudo por representar a
perspectiva de uma outra mulher. É a mulher se auto-representando, tecendo e desconstruindo
discursos de antanho. O apelo à memória, ainda, liga-se ao projeto de descrição da realidade
social e crítica já dentro de um realismo subjetivo, atomístico.
O texto de Almeida pode ser tido como diferenciado, na medida em que a urdidura da
sua narrativa estabelece relações nodais entre o ambiente ficcional e as experiências vividas
pela autora. São, nas palavras de Salomoni, “reminiscência do espaço real na recriação do
ficcional” (SALOMONI, 2007, p. 14), uma vez que o nome da personagem principal se
coaduna com o da Adjunta Marta, que trabalhava no Colégio de Humanidades pertencente ao
Dr. Valentim, pai de Julia Lopes de Almeida. Assim, por meio da nota manuscrita que lhe
pertencia – e veio afixada à edição de 2007 –, a autora afirma:
5
Não se trata, aqui, de uma autobiografia, segundo os conceitos teóricos de Philippe Lejeune (2008),
uma vez que não existe a relação direta de identidade do nome entre autor-narrador-personagem, ou seja, temos a
secessão de identidades entre autor (Julia Lopes de Almeida) e narrador-personagem (Marta), rompendo, assim,
o conceito de Pacto Autobiográfico, na medida em que o leitor é levado a levantar questões sobre a relação de
identidade. Por outro lado, se considerarmos apenas o discurso interno do texto, suprimindo a página do título –
como acontece em Memórias de Marta – poderemos notar diferenças consistentes entre autobiografia e romance
autobiográfico? Assim nos responde Lejeune: “Tenho de confessar que, se nos ativermos a análise interna do
texto, não há nenhuma diferença. Todos os procedimentos que a autobiografia utiliza para nos convencer da
autenticidade do relato podem ser – e muitas vezes o foram – imitadas pelo romance” (LEJEUNE, 2008, p. 26).
Não obstante, não podemos afirmar que Memórias de Marta se trata de um romance autobiográfico apenas pelo
fato de não haver coincidência de identidade entre autor-narrador-personagem, mas podemos afirmar, no
entanto, que as memórias da narradora-personagem Marta, faz parte de uma autobiografia. Ou seja, o romance
Memórias de Marta, tem como assunto interno a autobiografia da heroína Marta, na medida em que esta escreve
suas lembranças para a sua filha. Esta ultima, por sua vez, conseguirá estabelecer o Pacto Autobiográfico quando
identificar a relação entre autor-narrador-personagem (Marta escreve, narra e é a personagem).
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A adjunta Marta não será por ventura a mesma pobre D. Marta que
ajudou minha irmã Adelina a ensinar-me as primeiras letras? Creio
bem que sim. As cenas brutas do livro, o pequeno alcoólico, foram
pressentidas através do muro que dividia o meu colégio de um
movimentado cortiço de São Cristóvão. Aquele ambiente inspirou à
minha sensibilidade de menina muita melancolia...
Se tudo no livro é fantasia, toda essa fantasia saiu da verdade como o
cheiro da maresia saiu do mar.
A narrativa nos apresenta o relato de Marta, já adulta, sobre as lembranças de sua vida,
seguindo uma linha cronológica do tempo de sua existência que podem ser resumidas assim: a
morte do pai; o empobrecimento; a mudança para um cortiço no Rio de Janeiro Imperial; o
intermitente labor de sua mãe, engomadeira, para conseguir sobreviver; os estudos na escola
pública; sua formatura como professora e uma sensível melhoria de vida para saírem do
cortiço; a decepção do primeiro amor; o seu casamento desprovido de afeto; e, por fim, a
morte de sua mãe dias depois.
Os desdobramentos dos eventos narrados por Marta nos permitem perceber a matéria
de que trata o seu discurso, na medida em que não se limita a verbalizar apenas suas
experiências, mas, sobretudo, se expressa por meio de juízos de valor sobre certas condutas
que transgridem os códigos de sua época. As suas memórias não descrevem somente ações
que se encaixam no horizonte da expectativa masculina. Os exames de seu passado nos parece
indicar, através de exemplos pedagógicos, alternativas para que as mulheres se libertem da
tutela masculina, apontando possibilidades de sobrevivência sem a intercessão do ser varonil,
embora os caminhos possam ser bastante tortuosos e difíceis.
O próprio conceito de memória, na narrativa, é construído a partir da tensão entre a
capacidade visual e a sugestão da imaginação. As primeiras imagens suscitadas corroboram a
presença da monotonia, da pobreza, da sombra, em choque com a única boa lembrança da
menina: a casuarina.
Após a morte do seu pai, por conta da febre amarela, sua mãe é obrigada a romper os
limites privados do lar para garantir meios de sobrevivência. O trabalho vai ser o pano de
fundo do palco de sua vida. Depois de se matricular em uma escola pública, Marta irá
perceber que apenas o trabalho poderá lhes garantir condições mais dignas de existência.
Todavia, não será o trabalho braçal e extenuante de sua mãe e sim o trabalho intelectual de
professora.
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A partir desta citação, todas as demais provenientes de Memórias de Marta virão assinaladas como
MM e discriminado o número da página.
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uma acomodação, uma delicada compreensão do papel exercido pela mulher, denunciado pela
narrativa sob diversos focos.
Pelo papel questionador, D. Julia nos convida a (re)pensar a condição feminina no
Oitocentos para além da expectativa modelar e normativa da época. Transgredindo o espaço
privado do lar e lançando mão do ofício das letras, o seu primeiro romance se constitui
enquanto peça fundamental para se entender toda a sua obra, uma vez que os seus silêncios e
vazios internos nos permitem conjecturar sobre algo mais, preenchendo interstícios no
exercício de desenhar sobre a própria tessitura desvelada, através de indícios e marcas que
pululam nas entrelinhas da literatura e que não fogem, de maneira alguma, das malhas da
história.
Referências
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Um Leque que Respira: a questão do objeto
em História. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o
passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 149-164.
ALMEIDA, Julia Lopes de. Memórias de Marta. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007.
ARAÚJO, Nara. Do vazio e do silêncio. In: MUZART, Zahidé Lupinacci (org.). Escritoras
Brasileiras do Século XIX. V. 1. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2000. p 13-16.
BURKE, Peter. Abertura: a Nova História, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter
(Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. Ed. UNESP, 1992, p. 07-37.
COELHO, N. N. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Petrópolis, 2000.
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Professora adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados. Membro do grupo de pesquisa
NÚCLEO DE ESTUDOS LITERÁRIOS E CULTURAIS.
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A Prática da Leitura, nas falas das senhoras que trago para análise representa a
possibilidade de se emocionar, de conhecer outras vidas e até de se sentir menos só.
Todavia, essa prática foi conquistada a partir da superação do rigor do pai e depois do
marido. As senhoras têm, respectivamente, 80 e 92 anos de idade e a trajetória de suas
vidas permite perceber o quanto o século XX foi marcado pelo olhar da autoridade
masculina, destinando às suas filhas e às suas esposas o lugar da submissão. Por outro
lado, assim como muitas mulheres romperam com o espaço destinado a elas e brilharam
no mundo da moda, da arte cênica, da música, da Literatura, etc; muitas, apesar de
permanecerem no ambiente doméstico, ressignificaram suas vidas a partir dos
conhecimentos proporcionados pela leitura, em especial, pela leitura do texto Literário.
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Permitiu ser identificada.
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seu pai não foram acompanhadas por sentimentos de rancor. Pelo contrário, a filha olha
para trás com a maturidade e sensibilidade de quem sabe considerar o lugar de
enunciação dos gestos paterno. Com a filmadora desligada, ela me narra a morte do pai
e desabafa: “eu ainda tenho muitas saudades dele”. Loiva Félix eplicita que “memória é
um dos suportes essenciais para o encontrar-se dos sujeitos coletivos, isto é, para a
definição dos laços de identidade” (1998, p. 35). Com a mesma pertinência Ecléa Bosi
define a função da memória:
3
Grifo meu.
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Referências
ABREU, Márcia (org.). Leitura, história e história da leitura. Campinas: Mercado das
Letras: Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 1999 (Coleção Histórias de
Leitura).
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das
Letras, 1994.
MATTELART, Armand & NEVEU, Érik. Introdução aos Estudo Culturais. Trad.
Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
VIANA, Maria José Motta. Do sótão à vitrine: memórias de mulheres. Belo Horizonte:
editora UFMG, 1993.
WALKER, Alice. A cor púrpura. 7ª. Ed. Trad.: Betúlia Machado e Maria José Silveira.
São Paulo: Editora Marco Zero,
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Introdução
crer, era previsto pelo autor, talvez mesmo programado por ele. Isso se torna ainda mais
instigante quando se sabe que esta citação quase direta da realidade material, pelo tema,
será contrastada, no âmbito da criação verbal, por uma escrita fragmentária, circular, a
tal ponto que o autor chega a ser acusado de solipsista por sua linguagem labiríntica,
hermética, repetitiva e cansativa, exagerada até o limite do aceitável.
Algumas questões que norteiam essa comunicação podem ser assim formuladas:
como articular essas duas perspectivas, em aparência mutuamente excludentes, a saber,
uma aproximação quase imediata com a matéria social na concepção de uma
provocação direta e implacável, combinada com uma mediação exacerbada pela
linguagem, que impede uma visada ‘realista’, no sentido de escola realista, exigindo a
distância do público pela artificialidade e esteticização da linguagem? Quais os
impactos e produtividade em termos formais? De que modo se constitui uma dialética
entre forma literária e processo social a partir dessa encenação? Qual o modo pelo qual
dialoga com a história das formas teatrais? São questões abrangentes e complexas que,
aqui, serão antes apresentadas do que desenvolvidas em todas as suas potencialidades,
com o intuito de colocar em debate esse teatro ainda pouco difundido no Brasil.
SS, que exigiam alistamento voluntário e perpetravam os crimes mais hediondos) não
impedia um político de ocupar uma das cadeiras mais importantes de seu sistema
político.
da montagem. No fim da cena, Frau Schuster cai morta, com a cara na sopa. Em cena,
as vozes que são a verdade da Áustria de 1938, agora audíveis e mais aterradoras nos
idos de 1988. Nos porões da democracia austríaca e da união pela autonomia política,
pouca coisa mudou; apenas na superfície, com a recriação de sua imagem como um
povo bonachão e alegre, incapaz de cometer as atrocidades nazistas, colocando-se como
as primeiras vítimas de Hitler. A remissão ao quadro político-social não poderia ser
mais evidente. Bernhard, deste modo, incita o debate que se queria abafar. Waldheim
em pessoa acusa a peça, dizendo: “Eu considero essa peça uma ofensa grosseira ao
povo austríaco”, ao que o autor responde: “Sim, minha peça é atroz. Mas a peça
encenada diariamente em todos os cantos deste país é igualmente atroz.”
(BERNHARD, 1995, contracapa)
A crítica teatral Sigrid Löffler consegue trechos da peça, vazados em meio aos
ensaios, e os publica na revista Profil – o que, segundo muitos, teria ocorrido com a
anuência implícita de Bernhard e Peyman – em agosto e setembro de 1988, dois meses
antes da estréia, o que instaura um escândalo pelas invectivas dos personagens contra a
Áustria e os austríacos, chamados ao longo da peça de débeis-mentais, nazistas e
católicos, todos os seis milhões de habitantes (MILLNER, 1995, p. 249 ss) Como se
verá, esse caráter hiperbólico faz parte de sua estética, constituindo o que ele chamará
de ‘arte do exagero’. Jornais como o Neuen Kronen Zeitung e políticos como o vice-
Kanzler Alois Mock, além do ex-Kanzler Bruno Kreisky, posicionam-se contra a
montagem da peça, enquanto a ministra da educação Hilde Hawlicek e autores do porte
de Elfriede Jelinek, Michael Scharang e Peter Turrini defendem a liberdade de
expressão. No dia 12 de outubro de 1988, Alois Mock e o famigerado Jörg Haider
exigem a demissão do diretor do Burgtheater, com as palavras: “Fora de Viena com a
escória” (DITTMAR, 1993, p. 183), com o que miravam o alemão Peyman e parte de
sua equipe. Surgem campanhas de difamação contra Peyman e Bernhard que, de certa
forma, fazem com que o texto da peça seja atualizado, por assim dizer, no palco real da
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opinião pública austríaca, antes mesmo da encenação, concordando com o crítico Hans
Höller. 1
Aqui já podemos perceber alguns traços que vão permear sua escrita, em todos os
seus romances e dramas, de uma maneira obstinada, e que funciona como uma espécie
de provocação também contra o leitor. Em termos formais, não se trata de um poema
dentro da peça, toda ela é escrita com frases curtas e, por vezes, por palavras isoladas, o
que pode até ser lido como uma indicação cênica, embora não marcada como tal. A
linguagem tenta apreender a realidade caracterizando-a como amedrontadora,
assustadora, pervertida, decadente, catastrófica e sem saída, o que é repetido
incansavelmente. No entanto, terrível mesmo é a impossibilidade de expressá-la pela
linguagem, como ela é. No caso em questão temos escrevem, descrevem, escrevem; que
tudo, que tudo, e que tudo, mas tudo; realidade, realidade, realmente, e por aí afora.
São vários os efeitos desta repetição; em primeiro lugar, a repetição excessiva
embaralha o sentido atribuído às palavras. A repetição sistemática nos leva também a
questionar se o falante está realmente certo daquilo que diz: a assertividade e a
objetividade costumam ser dadas apenas uma vez. Quem vacila, duvida, não se sente
1
“De uma hora para outra havia esforços para o boicote da apresentação e se exigia a expulsão do autor e
do diretor, como se o teatro tivesse conseguido provar a provocante asserção da peça, de que os anos de
1938 e 1988 seriam intercambiáveis.” (HÖLLER, 2001, p. 7; trad. livre AF)
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seguro repete, muda a entonação, a ordem sintática, dá voltas em torno do mesmo ponto
sem parar, cisma. O cismador é aquele que nunca se considera pronto, aquele que acha
que deve sempre voltar ao tema, buscar novas cores. O mais importante, porém, é a falta
de mobilidade que a repetição expressa. Se, no plano do conteúdo, 1938 e 1988 são
aproximados em sua infâmia, essa identidade e permanência ganham contornos, em
termos formais, pela repetição das mesmas ideias, vocábulos e estrutura sintática. Já se
viu que a peça não é marcada nem pela ação e nem pelo diálogo, embora seja o texto o
único recurso que resta aos personagens. Sua repetição dá contornos a esse falar
contínuo sem alteração: repisa o mesmo, como se esses fossem os únicos assuntos que
valessem a pena ser tratados. Deste modo, a linguagem não é, em Bernhard, desviante
em direção ao esteticismo. Primeiro porque impede, pela repetição e exagero, que seja
denotativa, mero instrumento de transmissão de mensagens. Segundo, mimetiza a
imobilidade psicológica e social. Terceiro, pelas invectivas contra a Áustria e sua
política sócio-cultural de encobrimento pela repressão de sua culpa e postura na guerra,
fugindo dum estilo realista e, ainda, contando com tom provocador, atiçando a opinião
pública. Sua incapacidade de descrever a realidade não recai em vale-tudo semântico,
mas na crítica à cultura: a linguagem é social, por natureza, e não pode ser usada sem
mais. Sendo assim, faz crítica da linguagem para torná-la produtiva e criativa para a
compreensão da realidade. Sendo assim, ela não se afasta da realidade, mas exige uma
remissão dialética a ela, reforçando o papel ético da estética. Vale a pena discutir um
pouco mais detidamente sua ‘arte do exagero’.
Aqui se abre o espaço para uma curta discussão sobre a forma da escrita artística,
sem perder de vista sua inserção na sociedade, pois Bernard, como já se viu, só por erro
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pode ser rotulado como um autor fechado em si mesmo, preocupado apenas em realizar
torneios lingüísticos auto-referentes. A “arte do exagero” (Übertreibungskunst) é um
dos pontos centrais de sua estética, levada em consideração por todos os seus
comentadores. Ela encontra sua formulação mais acabada no romance Extinção, de
1986, que tem um diálogo muito frutífero com a peça em questão, especialmente no que
tange à atualização do passado nazista na Áustria da década de 80, tanto pelo tema
como pela concepção de linguagem que se depreende dos textos. Neste romance, lê-se a
determinada altura:
Muitas vezes somos levados a tal ponto por um exagero [...] que
acabamos por considerar este exagero como o único fato lógico e não
percebemos mais o fato real, só o exagero levado desmedidamente ao
extremo. BERNHARD, 2000, p. 447)
A realidade passa a ser então este exagero, necessário para a expressão e criação de
todo e qualquer fato. Mas que não se incorra em erro: este exagero não pode ter suas
arestas aparadas para se chegar ao “fato” verdadeiro, em estado puro, intocado: este não
existe, pois depende da linguagem, de uma forma, de uma expressão e de uma posição,
tarefa da qual não podem fugir os artistas, em especial os escritores: “[...] tal como o
escritor que não exagera é um escritor ruim, pode ocorrer também que a verdadeira
arte do exagero consista em subentender tudo [...] (BERNHARD, 2000, p. 448)
social, também ela mediada. A Untertreibung pode ser lida como a insuficiência da arte
e do sujeito em estabelecer a ponte que conduza à realidade, de modo que resulte num
arrefecimento em relação à experiência social real; a ocultação disto consiste no maior
dos perigos. Daí a necessidade do exagero que, no caso em questão, provoca o leitor e
tenta, ao menos, estimulá-lo, retirá-lo da apatia típica do momento do consumo passivo
das informações segundo o padrão em nossa sociedade.
Como se viu, a obra de Thomas Bernhard nos anos 80 não é alheia ao quadro
histórico em que está inserida. A politização da estética contra esse contexto será uma
das linhas de força de sua obra. Por um lado, a altercação com a história recente
austríaca, que deve ser relida a contrapelo, buscando justamente na linguagem e na
memória o outro discurso, abafado, reprimido e esquecido: esta linha leva até a obra
considerada sua obra-prima Extinção. Por outro lado, uma provocação conseguida pela
entrada quase direta da matéria social para dentro da obra de arte, por meio da palavra
mediada: impureza na autonomia da obra de arte que está relacionada com a forma
social que engendra a modernidade.
Um escritor e diretor de teatro, que tem uma opinião inequívoca sobre esse
país e vê seus moradores, de modo geral, como idiotas e criminosos, utiliza
uma personagem [...] para transmitir essa mensagem ao público. Essa
personagem é, para fazer justiça com os diversos jubileus deste ano, um
judeu! O judeu, analítico e inteligente como (naturalmente) todos os judeus,
se ocupa, na condição de imigrante que retornou ao país, dia e noite com a
alma austríaca. [...] Aqui um diretor de teatro de Bochum, com a ajuda de
um escritor austríaco, deixa um judeu de Viena latir como um pastor alemão.
(BEIL, 1999, p. 98)
como parte de sua estratégia. “Hoje já se tornou difícil falar sobre a Áustria sem citar o
nome Bernhard.” (SCHMIDT-DENGLER: 1997, 177) Sua ativa participação como
figura pública contribui para a incursão da vida pulsante na obra. Uma montagem que
não leve em conta esse aspecto não faz jus à peça, o que dá conta de seu caráter formal.
2
Sigo de perto as reflexões de José Antonio Pasta Júnior, 1986, especialmente p. 56-71.
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por conta de sua linguagem elíptica e pouco instrumental, beirando o sem-sentido, por
vezes.
Considerações finais
Referências
Introdução
amorosas e profissionais, por meio do embate com a sociedade. Para adquirir segurança,
autonomia e decidir o seu destino, foi explorado pelo sistema capitalista e teve que
aprender a superar as dificuldades de timidez e insegurança.
Em meio ao relato dos confrontos dos problemas que Vitor teve que enfrentar, os
temas são abordados. O primeiro confronto de Vítor acontece com sua família. O pai
deseja que ele dê continuidade aos seus negócios, visto que é um empresário bem
sucedido, dono de uma indústria de carapaças de plástico. Quando Vítor se forma, como
presente de formatura, o pai o presenteia com uma viagem para ele conhecer o mar,
sonho que o acompanha desde a infância, e uma maleta, igual de sua avó, quem tanto
ele admirava. Vítor pensou que fosse a maleta da avó com as coisas que ele tanto
estimava: diário de viagem, fotos, anotações de trabalho... No entanto, era uma maleta
de trabalho com carapaça de plástico para que ele aproveitasse a viagem e visitasse os
clientes e vendesse as carapaças.
Nesse primeiro embate, os temas do capitalismo desenfreado, do consumismo, dos
produtos descartáveis são mencionados e de forma sutil e criticados. A atitude do pai,
querendo aproveitar da viagem de Vítor para vender mais seus produtos, fazer mais
clientes, revela o comportamento ganancioso do pai capitalista que só visa ao lucro. Ele
não tem a sensibilidade de perceber que o filho não deseja seguir a mesma profissão
dele, mesmo Vítor tentando dizer. O pai impõe o que ele planejou para o Vítor, o que
ele sonha para o filho. Na verdade, tenta impor o seu desejo, não o do filho: “Mas eu
estou criando essa indústria de carapaças de plástico pro Vítor: quando ele se formar já
tem um trabalho pronto esperando; é só continuar” (BOJUNGA, 2001, p.27).
Observa-se também a importância que o pai dá aos bens materiais e não ao
sentimento:
Ao chegar ao Rio de Janeiro, conhece Dalva, gata angorá, por qual se apaixona.
Dalva representa o ser mais alienado, escravo da sociedade consumista, vazio de
qualquer senso crítico. Ela foi premiada por ser a telespectadora mais assídua e ficar 12
horas por dia em frente da televisão. Ela não desgruda seu olho da televisão,
principalmente das propagandas. O que aparece na televisão, a gata considera o certo, o
correto, o que se deve ser feito, conforme se observa nos trechos a que ela se refere,
assistindo aos programas televisivos: “- Olha a casa dele que bacana. Nossa, quanto
empregado! Olha o carro dele, olha, olha. Ah, e o Vítor que não fuma! ele nunca vai ter
uma casa assim, nem um carro assim, nem...” (BOJUNGA, 2001, p.14). Para Dalva,
quem fuma tem condições de ter a casa e o carro de luxo. Na visão alienada dela, o
Vítor, por não fumar, nunca terá esses tipos de bens. Esses trechos demonstram o
quanto ela está influenciada pelas propagandas de cigarro que emitem mensagens de
que quem fuma consegue determinado status social. O trecho seguinte reforça também a
visão alienada da Dalva:
___ Olha aí, não te disse que a gente tem que morar no endereço
certo?
___ Tem que morar aonde?
___ Mas olha, Vítor, olha!
___ Pra onde?
___ Pra televisão!
___ Tô olhando, que que tem?
___ Agora já passou, ah! Eles estavam mostrando o endereço certo.
Pra ter status a gente tem que morar onde eles mostram. (BOJUNGA,
2001, p.18).
que não suportava mais ver o tatu, Dona Popô despediu-o. Não conseguiu mais emprego
em agência nenhuma, pois conforme o recado recebido: “Ele não interessa mais: a tevê
já espremeu tudo que ele podia dar”. (BOJUNGA, 2001, p.98). Vítor chegou a um
estado de degradação, vítima da exploração capitalista, completamente consumido pelo
marketing publicitário.
Não bastasse a decepção com a atitude de Dona Popô, Dalva rompeu também com
ele. Da mesma forma que os outros, Vítor recebeu um recado transmitido pela Dona-da-
casa. A gata angorá nem quis falar com ele. Nota-se a dificuldade de Vítor se
comunicar, interagir-se com as pessoas. No embate discursivo, “a voz do mais forte
tenta bloquear e impedir a expressão do outro” (SANT’ANNA, 2008, p.63). Não
consegue dialogar com seu pai, expondo o seu ponto de vista. Falar com Dalva torna-se
um suplício, pois ela tem um aliado forte: a televisão, que impede o diálogo.
Incoerentemente, embora seja um meio de comunicação, a televisão impede a interação
entre os telespectadores enquanto estiver ligada – é preciso que se faça silêncio, não se
converse para a pessoa receber a mensagem, sem muitos questionamentos. Dona Popô
não possibilita também o diálogo: impõe o seu ponto de vista e o explora o máximo, até
que não sobre nada para depois descartá-lo.
Essa falta de diálogo é também uma característica da modernidade. O homem não
tem tempo para conversar, pois está o tempo todo preocupado em trabalhar, ganhar mais
dinheiro, acumular riquezas e poder. A Dona Popô e o Ipo, outro hipopótamo símbolo
do empresário inescrupuloso, são produtos dessa sociedade capitalista que só pensa no
lucro, na exploração, em usar o outro. Da mesma forma que Ipo usou Dona Popô, ela
usou o Vítor para lucrar mais ainda e ter mais dinheiro, tornando-se uma pessoa egoísta,
cheia de mágoa e rancor, sem sentimento de solidariedade: de Pôzinha, ingênua,
romântica e cheia de ilusões, passa a D. Popô, ambiciosa e individualista.
Percebe-se na obra, de acordo com Löwy & Sayre, a “reificação” ou a “coisificação”
– isto é, “a desumanização do humano, a transformação das relações humanas em
relações entre coisas, objetos inertes” (1995, p.38). Verifica-se que as relações entre as
personagens Dona Popô, Ipo e Dalva são monetárias, coisificadas, fetichizadas:
qualquer gesto, pensamento, atitude ou projeto estão relacionados ao dinheiro, tudo
envolve pagamento, troca, moeda, sacrifício, submissão. Há um culto ao mammonismo
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Ao pensar na formação do leitor, uma prática de leitura que tem surtido resultado
positivo é a prática pedagógica em que se utiliza da teoria da Estética da Recepção, de
Hans Robert Jauss, a Teoria do Efeito, de Iser, a Sociologia da leitura, além do Método
Recepcional, desenvolvido por Bordini e Aguiar.
Utilizando-se do Método Recepcional, pode-se elaborar um projeto de leitura, para
que os alunos possam, paulatinamente, adquirir uma competência maior com leituras de
textos mais complexos. Parte-se do pressuposto que é por meio da leitura que ocorre a
ampliação do conhecimento, permitindo ao leitor compreender melhor o presente e seu
papel como sujeito histórico.
expectativas dos leitores devido à natureza também formadora da obra literária e não
apenas reprodutora das estruturas sociais.
Dessa forma, Bordini & Aguiar, utilizando-se dos pressupostos teóricos da Estética
da Recepção, elaboraram um método de ensino de leitura de obras literárias. Para as
estudiosas, a Estética da Recepção, enquanto método de ensino, pode contribuir para
uma maior sistematização dos estudos da literatura por parte dos professores através da
ampliação dos “horizontes de expectativas” dos alunos, além de permitir a
democratização da leitura e a formação do leitor crítico, visto que o método recepcional
de ensino funda-se na atitude participativa do aluno em contato com os diferentes
textos.
O professor parte do horizonte de expectativas da classe, verificando os interesses
literários da turma, determinados por suas vivências anteriores. Em seguida, o professor
provoca situações que propiciem o questionamento desse horizonte, levando a ruptura
do horizonte de expectativas e seu consequente alargamento.
De acordo com Bordini & Aguiar, o método recepcional de ensino de literatura
enfatiza a comparação entre o familiar e o novo, entre o próximo e o distante no tempo e
no espaço. Além disso, o processo de trabalho apóia-se no debate constante, em todas as
formas: oral e escrito, consigo mesmo, com os colegas, com o professor e com os
membros da comunidade. Portanto, o método é eminentemente social ao pensar o
sujeito em constante interação com os demais, através do debate, e ao atentar para a
atuação do aluno como sujeito da História.
Para aplicar o Método Recepcional, as autoras sugerem cinco etapas a serem
desenvolvidas. Assim, tendo como foco o livro O sofá estampado, ao analisar os temas
tratados na obra, com o intuito de determinar do horizonte de expectativas – momento
em que o professor verificará os interesses dos alunos a fim de prever estratégias de
ruptura e transformação do mesmo – pode-se sondar se os alunos têm interesse em
discutir questões relacionadas ao meio ambiente, por meio de um diálogo informal,
apresentando a eles uma tira ou uma charge que trate do tema.
Para atender o horizonte de expectativas – etapa que se proporcionará à classe
experiências com textos literários que satisfaçam suas necessidades quanto ao objeto
escolhido e às estratégias de ensino – poderia oferecer o texto “O homem pertence à
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Terra (Carta do Cacique Seattle)” que trata da resposta do Cacique Seattle ao presidente
dos Estados Unidos à oferta de compra de uma grande área de terra dos índios peles-
vermelhas. Na resposta do Cacique há uma profunda declaração de amor ao Meio
Ambiente, denunciando a ganância do homem branco, destruindo a natureza devido ao
consumismo desenfreado. Parece que na sociedade atual quem não consome não pode
ser considerado cidadão. Observa-se a ideia de que “Consumo, logo existo”, parodiando
Descartes. Na sociedade consumista, quem não consome não existe. Ser cidadão é ser
consumista.
Com o objetivo de romper o horizonte de expectativas – momento em que é
introduzido textos e atividades de leitura que abalem as certezas e costumes dos alunos,
seja em termos de literatura ou de vivência cultural – podem-se desenvolver atividades
com o poema “Eu, etiqueta”, de Carlos Drummond de Andrade. O poema trata de forma
sutil da alienação presente na sociedade, da reificação e de fetichismo, pois retrata, o
não reconhecimento de um indivíduo como indivíduo que produz com sua força de
trabalho o que consome.
Na fase do questionamento do horizonte de expectativas – fase em que serão
comparados os dois momentos anteriores, verificando que conhecimentos ou vivências
pessoais, em qualquer nível, proporcionaram a eles facilidade de entendimento do texto
– poderão ser comparados os dois textos anteriores, observando que o comportamento
do homem consumista leva, muitas vezes, à destruição do meio ambiente. O indivíduo
alienado, reificado, fetichizado, coisificado não controla suas atividades, perde sua
autonomia e se torna escravo da sociedade capitalista que visa apenas o lucro. Depois de
explorado é descartado. Dessa forma, perde sua humanidade, tornando-se objeto,
joguete nas mãos do capitalismo selvagem, inescrupuloso.
Conclusão
Referências
AGUIAR, Vera Teixeira de. O leitor competente à luz da teoria literária. Revista Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 124, p.23-34, jan. a mar., 1996.
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ISER, Wolfgang. O ato da leitura - uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34,
1996. v.1.
_____. O ato da leitura - uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34, 1999. v. 2.
JAUSS, Hans Robert et all. A literatura e o leitor - textos de estética da recepção. Rio
de Janerio: Paz e Terra, 1979.
NUNES, Lygia Bojunga. O sofá estampado. Ilustrações de Regina Yolanda. 28.ed. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2001.
FNLIJ, em 2007; Meu pai não mora mais aqui (Biruta, 2008), por sua vez, recebeu o
selo de Altamente Recomendável da FNLIJ, foi finalista do Prêmio Jabuti/2009, na
categoria juvenil e selecionado pelo PNBE – Programa Nacional de Bibliotecas
Escolares - neste mesmo ano.
As narrativas juvenis de Caio Riter tratam principalmente de conquistas (amores,
amizades, crescimento, reconhecimento da identidade) e perdas (mortes, separações,
situações violentas) das personagens jovens, que transitam em ambientes escolares e
familiares da classe média alta das cidades de médio e grande porte.
Debaixo de mau tempo trata de um assunto temido e, ao mesmo tempo, desejado
pelos adolescentes – a iniciação sexual. Renato, garoto de 15 anos, que mora com os
pais e uma irmã, Luiza, ressente-se da ausência do pai e vive uma fase de dúvidas que
se referem, principalmente, à descoberta da sexualidade. A narrativa, em terceira
pessoa, desenvolve-se a partir dos questionamentos de Renato, acima de tudo, sobre seu
comportamento tímido diante de Gabi Giacomini, a garota pela qual está apaixonado.
Durante um passeio pelo rio para praticar remo, desaba, inesperadamente, uma
tempestade, o garoto fica preso na ilha, recebe abrigo em uma casa pobre e conhece
Cecília, menina totalmente diferente das que conhecera até então. Acontece entre ambos
uma grande atração e Renato beija pela primeira vez, experimenta a “maravilha” tantas
vezes apregoada pelo amigo Pedro, iniciando sua vida sexual.
Em O rapaz que não era de Liverpool, Marcelo, o jovem de 15 anos, garoto que
amava os Beatles e a família acima de todas as coisas, narra emoções e sustos vividos
por ocasião da descoberta de sua adoção, quando sentimentos de raiva e frustração de
toda ordem tomam conta de seu íntimo. Durante uma aula de biologia, por causa de
ervilhas e da Lei de Mendel, entende a razão da diferença da cor de seus olhos, já que
não tem olhos azuis como todos em casa. O modo de narrar os fatos revela a
impossibilidade de evasão do narrador, a dificuldade de distanciamento e observação de
sentimentos alheios, especialmente as emoções experimentadas pelos pais, a seu ver,
responsáveis por todo seu drama interior.
Pedro, narrador protagonista de O tempo das surpresas, tem catorze anos e leucemia;
rememora, em longa noite de vigília que antecede o transplante da medula que recebe
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DO DIÁRIO DE LETÍCIA
A Juliana estava fazendo o trabalho de história. Eu sentei perto dela e
a gente começou a jogar conversa fora. De repente, nem sei como, eu
me vi falando do meu pai, da separação e da barra que é viver entre
duas famílias.
[...]
Mas não é fácil. Eu até tento, porém, quando vejo, estou envolvida e
cobrando atitudes que meu pai não pode e não quer tomar. Viro meio
criança, sabe? Meio birrenta. Chorona. Reclamona. Não queria ser
assim. (RITER, 2008, p. 100-101)
DO DIÁRIO DO TADEU
Hoje:
Beijei a Lari. Uau!
Passei uma tarde muito dez com o pessoal no colégio. A namorada de
Cau é muito legal, tem a voz superafinada. E curte as mesmas músicas
que eu. Acho que ficamos amigos.
Beijei a Lari. (RITER, 2008, p. 67)
DO DIÁRIO DE LETÍCIA
Quando penso que estou me acostumando com a idéia de separação,
me vem uma raiva da Vitória, e eu fico sofrendo de novo e desejando
que toda esta história acabe e meu pai seja só meu pai de novo.
(RITER, 2008, p. 113)
DO DIÁRIO DE LETÍCIA
Como se não bastasse.
Como se não.
Como se.
Como.
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DO DIÁRIO DE TADEU
Nossa cara. Tá louco. Escrever um diário. Nunca pensei nisso. E
agora? Escrever o quê? Sei lá. Acho que prefiro fala mais e escrever
menos. E a sora ainda disse que ele, o diário, tem que ter um nome.
Que a gente vai falando com ele e contando o que acontece com a
gente. Pode? Tá, ela disse que a intenção é a gente poder escrever
todos os dias, nem que seja uma linha. Mas por que um diário?
(RITER, 2008, p. 17)
DO CAPÍTULO DE LETÍCIA
Chorava mais por mim do que pelo Tadeu.
E, quando a gente estava saindo, ainda o ouvi perguntando, meio
perdido, para a mãe dele: O que vai ser da gente agora, mãe?
Não ouvi o que ela respondeu, porém, aquela pergunta ficou presa nos
meus ouvidos a tarde toda.
O que será da gente?
O que será?
Então, mandei um torpedo para o meu pai. Escrevi assim: Pai, eu te
amo muito (RITER, 2008, p. 132-133).
DO DIÁRIO DE TADEU
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Faz dez dias que meu pai se foi, Chuck. [...]. Maldito caminhão que
tirou meu pai de mim. Eu não quis ver o carro dele, mas ouvi minha
tia dizendo que ele ficou um amontoado de ferros. E meu pai estava
dentro. O que será que ele sentiu? Será que pensou em mim naquele
momento? Será que se deu conta de que nunca mais me veria, nem a
mim, nem a minha mãe, e que nunca mais a gente poderia jogar
futebol na praça como quando eu era criança? (RITER, 2008, p. 140)
colégio. O papai aqui não é mole com uma bola nos pés), mais dois de geografia”
(RITER, 2008, p. 24).
A escrita da narrativa – diário – concebida como exercício de construção dos
indivíduos, espaço de reconhecimento de suas dúvidas, amores e medos, mostra-se
síntese do processo de integração dos dois ambientes, uma vez que é tarefa escolar,
realizada no ambiente da casa.
DO DIÁRIO DA LETÍCIA
Diário, meu refúgio tem sido a cama. Gosto de ficar trancada aqui no
meu quarto. E aquilo que eu pensava que ia ser horrível, escrever em
você, tem sido minha melhor companhia. Às vezes tenho dúvida se
vou entregá-lo para a professora. Tenho escrito coisas tão minhas. Não
sei se gostaria de partilhar com alguém estranho. Tá, eu sei, ela é
minha professora, ela pediu que eu escrevesse você, mas não é uma
amiga. (RITER, 2008, p. 41)
DO DIÁRIO DE TADEU
Aí, ela disse que gostava de mim, blá-blá-blá, aqueles papos, sabe,
Chuck? Claro que você não deve saber. Tô até parecendo meio louco,
babaca, conversando com uma tela de computador que se faz de
diário. Pirei. (RITER, 2008, p. 83)
da produção para jovens como subsistema de obras literárias. O assunto merece estudos
aprofundados, capazes de examinar mais atentamente suas intrincadas relações, pois
acreditamos que, quando nos propomos tratar de literatura juvenil, além dos conceitos
sobre “juventude” e “cultura juvenil”, devemos considerar o campo literário em que se
move a produção, com todos os atores que atuam nesse universo – produtores, editores,
livreiros, leitores, mediadores, escola – sem desmerecer as especificidades literárias do
gênero, tanto temáticas quanto formais.
Os trabalhos acadêmicos têm reclamado estudos mais densos sobre caráter estético
dos textos, como pudemos observar no breve levantamento realizado, mas é possível
afirmarmos que o “estado da arte”, no que se refere à literatura juvenil, vem alcançando,
de modo bastante convincente, tanto sob o ponto de vista histórico como teórico, seu
estatuto estético, sem perder de vista as relações dessa produção com a indústria
cultural.
Ao lado de autores consagrados, novos nomes se lançam à produção juvenil,
utilizando-se de formas literárias próprias da literatura para adultos: narrativas em
primeira pessoa, que revelam o estágio de incompletude em que se encontram
narradores e personagens, sujeitos pós-modernos, e que se constroem, sobretudo, por
diferentes pontos de vista, pelo discurso fragmentado e pela busca da identidade dos
seres ficcionais.
Caio Riter, narrador contemporâneo abordado neste texto, tem revelado intenso
interesse pelas experiências e emoções vivenciadas cotidianamente por jovens, como a
primeira relação sexual, a adoção, a doença de personagens jovens, a morte e a
separação da família, em íntima conexão com as preocupações e sentimentos
experimentados por seus leitores, sempre a partir da perspectiva juvenil. Em vista de
tais aspectos, sua produção já merece estudo temático-formal mais apurado.
Enfim, em Meu pai não mora mais aqui, a linguagem peculiar, muito próxima da
oralidade, trata, de modo natural, as consequências da ausência paterna, em razão de um
novo relacionamento amoroso, na história de Letícia, e da morte, na de Tadeu. São
questões delicadas, notadamente na fase em que se encontram personagens e leitores,
mas tratadas de maneira delicada e sensível. Como os conflitos experimentados pelas
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Referências
AGUIAR, Vera Teixeira de. “Literatura juvenil existe? Questões de identidade”. In:
Anais do 53º Congresso Internacional de Americanistas. Cidade do México:
Universidade Iberoamericana, 2009.
GROPPO, Luís Antonio. Juventude. Ensaios sobre Sociologia e História das Juventudes
Modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.
PICARD, Hans Rudolf. “El diario como género entre lo íntimo y lo público”.
http://www.cervantesvirtual.com/FichaMateria.html?Ref=45801&idGrupo=estudiosCrit
icos (Acesso em 08/01/2010).
RITER, Caio. Meu pai não mora mais aqui. São Paulo: Biruta, 2008.
Introdução
Escrito em 1977, A Hora da Estrela, última obra lançada pela autora Clarice
Lispector em vida, é um marco na produção da escritora bem como de toda literatura
brasileira. O processo de escrita de Clarice é sempre original e com um estilo
incomparável. A linguagem da escritora, considerada introspectiva e intimista,
despertou o interesse da crítica, gerando uma imensa gama de interpretações e reflexões
acerca de seu estilo narrativo; de questões filosófico-existencialistas e da representação
do universo feminino em suas obras.
O narrador, normalmente, subentendido na narrativa, em A Hora da Estrela
apresenta-se. Trata-se do escritor Rodrigo S. M. que narra a história de Macabéa, uma
datilógrafa alagoana, que vive no Rio de Janeiro, dividindo um quarto com quatro
companheiras, na Rua do Acre. Criada por uma tia que a castigava que a castigava com
freqüência, Macabéa cresceu acreditando que as coisas aconteciam porque tinham que
acontecer, sem questionar nada, e sempre aceitava as provações que lhe sobrevinham,
só prestando atenção nas coisas insignificantes, sendo que, ela própria era um ser
insignificante que ninguém notava.
No decorrer da história ela se apaixona por Olímpico, um ambicioso nordestino que
a abandona para namorar Glória, companheira de trabalho de Macabéa, já que para ele é
mais vantajoso namorar uma carioca, filha de açougueiro, cuja casa não falta comida.
1
Trabalho orientado pela Profa. Dra. Marisa Martins Gama-Khalil, vinculado a resultados de estudos
desenvolvidos no Grupo de Pesquisa em Espacialidades Artísticas/CNPq.
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Aconselhada por Glória, Macabéa resolve visitar uma cartomante. Esta adivinha
todo seu passado, e faz com que a jovem perceba o quanto sua vida era miserável, e
enfim lhe revela um futuro grandioso, afirmando que Macabéa conheceria um rico
gringo chamado “Hans” com quem se casaria e seria feliz.
Macabéa sai do apartamento da madame feliz, “grávida do futuro”, mudada, já que
antes nunca ousara ter esperanças, mas então, quando tenta atravessar a rua, é atropelada
por um carro de luxo e morre e, paradoxalmente, tem assim a sua hora de estrela.
Transgredindo novamente todo e qualquer modelo de narrativa presente no cânone
literário, a autora intimista e psicológica desloca seus leitores para a mais profunda
investigação do abismo interior de seus personagens.
Essa personagem feminina em questão será o contrário de outras mulheres
representadas em outros textos de Clarice. Não é como Laura do conto A Imitação da
Rosa, uma mulher comum, qualquer, sempre em casa, retida em si mesma ou nas
malhas da memória; tão pouco como Ana, personagem do conto Amor, que não
consegue se libertar de sua condição de mulher, cujo papel limita-se a cuidar dos
afazeres da casa.
Em A Hora da Estrela, Lispector desvenda diferentes identidades emergentes na
literatura. A visão da presença de elementos sociais na produção literária de Clarice não
minimiza seu valor estético, antes amplia o entendimento da luta permanente da
escritora com o signo linguístico e com as estruturas narrativas na tradição literária
brasileira.
Neste artigo, tomaremos para análise dois fragmentos de A Hora da Estrela. Esses
fragmentos são os que a principal personagem desta obra (Macabéa) está dentro do
banheiro do seu local de trabalho. Para entender sobre o significado do espaço dessas
partes, discorremos um pouco sobre o espaço e sobre os símbolos que permeiam a
construção deles.
O filósofo Michel Foucault (2001) pontuou a importância do espaço para a
compreensão das sociedades e da literatura Para ele, as pessoas vivem em um conjunto
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Entre a utopia e a heterotopia existe ainda um lugar, e ainda que tenha um papel
mediano, não deixa de ter importância. Esse espaço é atópico, sendo nem real, nem
irreal, como se vê:
Assim, entre o olhar já codificado e o conhecimento reflexivo,
há uma região mediana que liberta a ordem no seu ser mesmo: é
aí que ela surge, segundo as culturas e segundo as épocas,
contínua e graduada, ou fragmentada e descontínua, ligada ao
espaço ou constituída em cada instante pelo impulso do tempo,
aparentada a um quadro de variáveis ou definida por sistemas
separados de coerências, composta de semelhança que se
sucedem gradualmente ou se respondem como espelhos.
(FOUCAUL, 1968, p. 09).
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De acordo com isso, pode-se dizer que as críticas à sociedade, feita pela autora da
obra, fazem nascer em Macabéa a identidade, pode-se dizer “vazia”, a que a
personagem demonstra em toda a história e é exatamente o espaço que faz com que a
personagem principal do livro encare essa identidade.
Como o narrador diz logo no início do texto, Macabéa vivia numa “cidade toda feita
contra ela” (LISPECTOR, 1998, p.15). É na cidade do Rio de Janeiro que a infância
sem os pais e em companhia de uma tia tirana floresce na identidade adulta dessa
personagem, uma vez que ela, apesar da vivência sofrida com a tia quando criança,
sempre lembra do interior do nordeste com saudade e carinho, tanto que quando
começara a namorar Olímpico, também do nordeste, tinham apenas os assuntos das
coisas boas a que este local fornecera a ambos.
Quando adulta Macabéa vai ao Rio de Janeiro, logo no primeiro momento, ela já
adquire uma identidade dentro dessa cidade, uma vez que não seria possível viver na
cidade carioca sem uma profissão, torna-se assim datilógrafa. Contudo, a posição social
dessa personagem nordestina em uma grande cidade capitalista, sem muitos estudos, faz
com que ela faça parte de um grupo social de baixa renda, marginalizado, ou seja,
dentro desse espaço heterotópico (real), Macabéa toma uma posição condizente com o
que ela representava para a sociedade, feia, vazia, pobre e alienada.
Não obstante, o lugar em que essa personagem morava evidencia aquilo que de
acordo com Bauman (2001) são os lugares vazios, isto é, espaços vazios de
significados, a que a sociedade ignora a existência. O cortiço em que a personagem
vivia dividindo um quarto com quatro pessoas, demonstra o quão vazio era aquele
espaço, o que reflete a identidade vazia de Macabéa, “antes ela tivesse ficado no sertão
de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia” (LISPECTOR, 1998,
P.15).
O espaço utópico e atópico da obra aparecem em situações relacionadas, algumas
vezes um após o outro.
Depois de levar uma bronca do patrão por “não saber escrever” e por tomar aviso de
despedida do trabalho, Macabéa resolvi ir ao banheiro. Esse espaço é apresentado
predominantemente de forma caracterizar a personagem psicologicamente, descrevendo
um lugar com uma “pia imunda e rachada, cheia de cabelos... espelho baço e
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escurecido” (LISPECTOR, 1998, p. 25), acrescentando que tal ambiente muito combina
com a vida da protagonista. Por sinal, é o lugar para onde vai quando está “atordoada”,
necessitando ficar sozinha. O espelho dessa cena, por sua vez, também possui um
significado.
De acordo com o dicionário dos símbolos, speculum deu origem à palavra espelho.
Originalmente, especular era observar o céu e os movimentos relativos das estrelas, com
o auxílio de um espelho, nesse sentido, enquanto superfície que reflete. Constituindo o
próprio símbolo do simbolismo, para os chineses ele reflete a verdade, a sinceridade, o
conteúdo do coração e da consciência. Na tradição nipônica o espelho é do mesmo
modo relacionado entre verdade e não menos do que pureza. Para o Dharma budista o
espelho será o instrumento de iluminação, símbolo de sabedoria e de conhecimento, eles
acreditavam que o espelho coberto de pó era aquele do espírito obscurecido pela
ignorância. Para os japoneses, o Kagami (espelho) é símbolo de pureza perfeita da alma,
de reflexão de si na consciência. Ainda considerado símbolo lunar e feminino, ele é
signo da harmonia, sendo o espelho quebrado a separação. O espelho ainda possui
característica da magicidade. O espelho mágico corresponde a uma das mais antigas
formas da adivinhação; segundo a lenda, Pitágoras tinha um espelho mágico que nele
representava a face da lua antes de ver o futuro, como faziam muitas feiticeiras.
Com o surgimento da psicanálise a partir de Freud, o significado do espelho torna-se
ainda mais profundo o significado do espelho, como instrumento da Psique, acentuando
o lado tenebroso da alma. Desses conceitos, surge o espelho como símbolo da
manifestação que reflete a inteligência criativa, bem como do intelecto divino de refletir
a manifestação como tal sua imagem. Não obstante, o espelho reflete a imagem
invertida da realidade.
Utilizamos o espelho como algo que nos melhore a visão sobre nós mesmos, que
nos mostre como somos de verdade, e nesse gênero, o espelho exerce as mesmas
funções dos óculos, ou do binóculo, por exemplo, permitindo que o estímulo visual
onde o olho não alcança. Assim, o espelho proporciona nossa visão não apenas como
somos, mas como nos vêem os outros, sendo um canal num sentido de permitir a
passagem da informação da representação do outro sobre o sujeito. O espelho torna-se
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Ao mesmo tempo em que o espelho traz a imagem real, projeta uma imagem virtual,
em um espaço em que o sujeito não está presente. Nesse sentido, o espelho é uma utopia
na medida em que eu me vejo num lugar onde não estou, mas ao mesmo tempo é uma
heteropia, na medida em que o espelho existe realmente, com uma espécie de efeito
retroativo, porque a partir dele me descubro no ausente lugar onde estou. Dessa forma, o
espelho é ponto de passagem entre o real e o irreal, para Foucault, o real é o certo, ou
melhor, o que os homens consideram como certo, linear, o espaço que acomoda,
nomeando como espaço utópico. A heterotopia é o lugar de inquietude, que incomoda,
são espaços justapostos ou superpostos uns aos outros. O espaço intermediário entre
utopia e heterotopia Foucault nomeia atopia, portanto, o espelho é atopia, ponto de
passagem entre o real e o irreal.
Por tudo isso o espelho, no banheiro em que Macabéa entra quando se sente
“atordoada” toda um sentido importante. Ela olha-se:
Considerações finais
Como vemos a descrição dos espaços da narrativa está carregada de uma série
de informações sobre o enredo, personagens, tempo etc. Através do espaço, pode-se
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Referências
Introdução
É notório que a sociedade brasileira não possuiu o hábito de ler e isto se deve a
vários fatores, como econômicos e culturais. Infelizmente, há ainda problemas de acesso
ao livro, visto por muitos como artigo de luxo, dificultando o direito à literatura que,
patrimônio da humanidade, deve estar presente na vida cotidiana de pobres e ricos como
manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas, expressando valores, culturas e
identidades.
Sendo o acesso ao livro ainda limitado, tira-se uma oportunidade de saber das mãos
do leitor e de sua autonomia, porque o livro, positivamente, pode ser fator de
perturbação, conflitos e mesmo de risco, pelo fato de libertar sua consciência de certos
preconceitos e atitudes, donde o caráter humanizador da literatura, mediante a junção de
três aspectos: construção de objetos autônomos como estrutura e significado; forma de
expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos;
forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente
(CANDIDO, 1995).
Além de haver pouco contato com esta ação humanizadora, quando há atividade
com a leitura literária, muitas vezes o leitor não consegue relacionar os textos com seus
sentidos e com a realidade, sem compreender a leitura, sem, portanto, estabelecer
relações com o texto que ultrapassam a mera decodificação, isto é, sem realizar práticas
sociais que medeiam e transformam as relações humanas, desde que o leitor faça
interações entre o que leu e a realidade.
Dada a dificuldade de compreensão de textos, a análise linguística pode servir como
um instrumento para auxiliar a compreensão. O problema situa-se no fato de que a
leitura literária está associada ao estudo de língua e os professores ainda possuem
dúvidas quanto ao lugar que a literatura deve ocupar nas aulas de Língua Portuguesa, e
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acabam por não explorá-la como algo lúdico e prazeroso, donde uma das problemáticas
que revestem o processo de ensino-aprendizagem de literatura e língua. A partir disso, o
texto literário continua a ser pretexto para uma abordagem taxiconômica, centrada no
estudo da nomenclatura gramatical e de outros aspectos conteudísticos da disciplina.
Dessa forma, o ensino de literatura passa a ser visto como um segundo plano, um
“instrumento” ou recurso para o ensino de língua (LAJOLO, 1992).
Com efeito, em grande parte das práticas de leitura literária escolarizadas, não há o
ato de ler por prazer, ou seja, o “ler por ler”. O texto sempre é usado tanto com fim
baseado no trabalho sobre as questões tradicionais da gramática quanto com questões
amplas a propósito do texto, entre as quais é importante citar: coesão e coerência;
adequação do texto aos objetivos pretendidos; análise dos recursos expressivos
utilizados; organização e inclusão de informações, entre outros, sem o objetivo,
entretanto, de alcançar a fruição estética.
Perante toda esta problemática, este trabalho faz uma análise crítica de alguns
elementos envolvidos com a leitura literária na escola: uso do livro didático, atividades
de produção de texto, ensino de poesia, métodos e técnicas de ensino no trabalho com a
leitura literária e a análise linguística nas aulas de Língua Portuguesa. O estudo faz parte
de Iniciação Científica em andamento, pautada em revisão bibliográfica e também em
pesquisa empírica realizada no Colégio Liane Marta da Costa, situado na periferia de
Guarapuava-PR.
O objetivo é analisar o porquê do ensino literário não despertar o interesse do aluno,
contribuindo para que o texto literário seja apreciado pelos alunos e considerado como
um objeto estético, sem contradição com outras atividades de leitura, produção de texto,
análise linguística e oralidade.
classe, gerando uma contradição, caracterizada pelo fato de que o texto literário em sala
de aula parece não ser mais competência do professor, pois já há alguns anos quem está
fazendo isso, em muitos casos, são as editoras, são livros didáticos e paradidáticos,
muitos dos quais se afirmaram como quase monopolizadores do mercado escolar,
tirando da alçada dos professores a tarefa de preparar as aulas (LAJOLO, 2002).
Além de o livro didático ser pouco criativo, normalmente repetitivo, o ensino,
especificamente no Ensino Médio, é baseado nas épocas literárias, biografias de autores,
enfim, um conteúdo historiográfico e teórico. Os textos nele presentes não têm nexo
com a realidade dos alunos e o professor não relaciona os seus múltiplos sentidos.
Como diz Lajolo:
Dessa maneira, o professor deve fazer um novo uso do livro didático, em outras
palavras, deve ser criativo. Precisa perceber o contraste entre o conteúdo do livro e a
vivência do estudante e, se for necessário, fazer mudanças e buscar material adequado e
inovador.
Ao fazer uma breve análise sobre o livro “Língua Portuguesa” de Heloísa Harue
Takazaki – Ensino Médio, destinado ao ensino de língua portuguesa e
consequentemente literatura, já que são conteúdos pertinentes ao mesmo professor, é
possível extrair uma visão desta maneira inapropriada de ensinar literatura e língua.
De acordo com o tema de cada capítulo, são trazidos textos para servir como
instrumento de trabalho. Para abordar diferentes formas de organização que um texto
pode ser construído, o texto O rio, capítulo 3, de Oswaldo França Júnior (TAKAZAKI,
2005, p. 37), serve como simples exemplo de narrativa, apresentando como exercícios
questões acerca das suas características, como identificar a situação inicial, a
compilação e o desfecho e citar exemplos de outros textos que utilizam diferentes
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linguagens (imagens, movimento, som, etc.) e são também narrativos, como se nota nas
seguintes questões referentes ao texto:
Também não existe incentivo para trabalhar uma poesia, não se valoriza a oralidade,
que é um modo de provocar a leitura. Claro que esta tarefa requer tempo, pois precisa
ler, reler, valorizar determinadas palavras, descobrir as pausas adequadas, acomodando
a leitura ao tom do poema, porém ler em voz alta é indispensável e precisa de preparo.
Do mesmo modo, os professores trazem poemas que não atendem o universo do aluno,
não solicitam e muito menos ouvem as suas sugestões, não buscam um ambiente
adequado para favorecer o gosto pela poesia (pátio da escola, distribuição das carteiras)
ou mesmo recorrem aos jogos envolvendo outras linguagens, como a música. Assim, é
necessário utilizar procedimentos didáticos diversificados para trabalhar o texto
literário, qualquer instrumento que colabore com a divulgação de poesia deve ser
incentivado (PINHEIRO, 2007).
O que se percebe é que nem mesmo os professores gostam e acreditam no poder que
a poesia possui, passando aos alunos todo o seu desgosto. Logo, o professor precisa
fazer da poesia algo prazeroso, abrindo a “apetite” do aluno, precisa, enfim, ser um
mediador, caso contrário, afastará as pessoas da poesia.
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13%
sempre
51% as vezes
36% nunca
Dessa maneira, fica claro que a realidade pesquisada, como a sociedade em geral,
realmente lê pouco. Para aprofundar a questão, interrogou-se os pais sobre a frequência
que eles têm visitado a biblioteca da escola de seus filhos para leitura, observando-se
que 69% deles não estiveram nenhuma vez na biblioteca e 31% foram 1 ou mais vezes
(Gráfico 2).
nenhuma
69%
1 ou mais
31%
Assim, foi possível associar o baixo gosto pela leitura dos pais, com a falta de hábito
de frequentar a biblioteca. Partindo desta relação, aplicou-se para os alunos a questão:
Gosta de ler? Com as alternativas de resposta de 0 a 10. Agrupou-se as respostas em
dois níveis, de 0 a 5, interpretadas como “não”, e de 6 a 10, interpretadas como “sim”
(Gráfico 3).
GOSTA DE LER
A análise mostra o atual desgosto pela leitura, pois 67% dos alunos deram nota de 0 a
5(não) e apenas 33% de 6 a 10(sim).
Ao mesmo tempo em que há um desgosto pela leitura, fica evidente que a leitura,
para os entrevistados, não traz prazer. Quando se analisa o que estes alunos consideram
como mais importante da leitura, verifica-se o prazer em 6º lugar (com 14%) no total de
7 alternativas (Gráfico 4).
12%
38% mais em outros suportes,mas
também no livro didático
47%
sempre em outros suportes
Visto isso, é possível afirmar que o ensino tem o livro didático ainda como uma base
forte, restringindo-se muito o papel do professor àquilo que prescreve esse suporte,
reduzindo as possibilidades do ensino de literatura e língua. Isto é observado quando os
alunos são questionados a respeito do interesse dos textos lidos em sala de aula (Gráfico
6).
6%
29%
sempre
as vezes
nunca
65%
Posteriormente, indaga-se a resposta dos alunos. Aqueles que responderam que “às
vezes ou nunca” são interessantes essas leituras realizadas na sala de aula devem
justificar o porquê (Gráfico 7).
23%
são chatas
não entendo
direito
77%
Esta questão torna patente a impossibilidade de os alunos realizarem uma fruição dos
textos lidos, afinal, 77% confessam não entender direito as leituras existentes nos livros
didáticos e 23% atestam que são chatas. Dessa maneira, mostra-se a importância do
professor em fazer uma análise, seleção e trabalho adequado com o livro didático, para
que o ato cognitivo permita que a leitura literária seja prazerosa.
Na coleta, os dados permitiram averiguar que existe por parte dos alunos atração para
com a poesia, porém, como já foi apontado, não há um trabalho adequado. Ao inquirir
os alunos com as alternativas: poesia, romance, conto e outros, a fim de apontar qual
forma literária mais gostam, é notável o apreço à poesia, que ficou em 2º lugar, com
28% das preferências (Gráfico 8).
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19%
28% POESIA 6 A 10
ROMANCE 6 A 10
23% CONTO 6 A 10
30% OUTROS 6 A 10
Conclusão
Diante desta discussão é possível afirmar que não há somente uma incógnita que
impede o ensino de língua e da leitura literária serem um exercício produtivo, mas é
necessário pensar e fazer uma revisão de todo um conjunto de recursos. O livro didático
precisa ser trabalhado de modo aberto, como instrumento de auxílio, excluindo o que
não é apropriado e buscando um material novo e coerente. A proposta de produção de
texto precisa permitir ao aluno escrever e ler de forma produtiva. A poesia deve estar
presente na sala de aula de maneira significativa, ou seja, valorizando tanto o aspecto
estético, quanto o indivíduo e sua cultura. Os métodos e as técnicas de ensino precisam
ser planejados e elaborados de maneira acessível, dentro do objetivo de promover a
leitura literária como prática social, para propiciar conhecimento e fruição. Para isso, o
professor é o agente chave no processo, pois é a ele que cabe valorizar as atividades
mais produtivas, descartar outras inapropriadas, reformular todas, balizando-as pelo que
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conhece de seus alunos e da leitura deles, pelo que conhece de língua, linguagem e
literatura, pelo que entende por ensino, por leitura e por escrita, e, particularmente pelo
que entende por ensinar Português no Brasil de hoje (LAJOLO, 2002), já que é ele que
deve orquestrar as ações em torno da leitura e do processo de ensino na escola, de forma
colaborativa com outros agentes, como a equipe pedagógica e os bibliotecários.
Desse modo, o professor possui uma função determinante na promoção da leitura,
sendo necessária vontade para realizar as mudanças pertinentes a fim de inserir-se nas
novas perspectivas do ensino de literatura, vista como algo humanizante e dotada de
ludicidade e fruição. Nesse contexto, a análise linguística possui papel importante,
porém, ela deve ser subordinada à realização da interação social do aluno com o texto,
de modo a que ele consiga perceber os valores nele contidos, e se aproprie deles, num
ato de fruição compreensiva.
REFERÊNCIAS
Introdução
O incesto tem sido um tema bastante visitado pela literatura, desde o amor existente
entre o rei Édipo e sua mãe Jocasta, perpassando pela literatura portuguesa em obras
como Os Maias, de Eça de Queiroz, na qual Maria Eduarda e Carlos, criados afastados
em função da separação dos pais, se apaixonam ao se encontrarem já adultos, e
chegando a Lavoura Arcaica de Raduan Nassar, obra da literatura brasileira
contemporânea, em que André, ao que tudo indica, via em sua irmã Ana a extensão do
amor da mãe.
No conto “Noções de Direito”, presente na obra Traição e outros desejos (2001), da
escritora contemporânea Sônia Peçanha, o pai (Valdir) descobre na própria filha
(Valdirene) uma linda mulher, tomando para si um sentimento de posse, misturado à
“instintos” masculinos, objetificando a menina que é tida como extensão de seu ser,
extensão está que visualizamos inclusive pelos nomes de ambos os personagens. Esse
relacionamento que irá surgir entre o pai e a filha extrapola todo e qualquer direito (ou
mesmo “noção de direito”) que um pai pode exercer sobre seus filhos, chegando a
níveis de agressão por meio da relação sexual forçada pelo pai. Já entre Édipo e Jocasta
não há uma imposição na relação amorosa-sexual existente, além de ambos os
personagens não terem consciência do incesto cometido (não inicialmente), sendo este
fruto do fado ou destino. Partindo dessas ponderações, pretendemos visualizar o
movimento pendular entre tradição (clássica) e modernidade, voltando o olhar à ruptura
e à continuidade existente entre esse tema em ambas as épocas.
Parece-nos que no trabalho com um mesmo tema (incesto) realizado por diferentes
autores em épocas distintas, há uma grande distância que pode ser vislumbrada também
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por influência do que Lukács (2000) define como cultura fechada e cultura aberta.
Apesar de Lukács (2000) em sua Teoria do romance utilizar os termos “cultura fechada
e aberta” para retratar os ambientes nos quais foram produzidos, respectivamente, a
epopéia e o romance, estamos aqui pensando nesses termos como representantes da
tragédia e do conto, afinal eles estão inseridos na mesma cultura dos gêneros acima
citados.
É interessante lembrar que foi a relação de Édipo e Jocasta que deu à psicanálise de
Freud, matéria para o estudo do Complexo de Édipo, uma espécie de incesto resultante
da paixão do filho pela mãe, ou da busca pela mãe através da mulher com quem ele se
relaciona. Com relação a esse assunto, o contributo de Freud é indiscutível, pois foi ele
um dos que se preocupou em buscar as raízes da formação social do homem para
melhor compreender o seu comportamento.
Em sua pesquisa sobre “O Horror ao incesto”, Freud analisa os povos aborígenes
australianos, pois estes impõem as mais rigorosas interdições às relações sexuais
incestuosas. Suas normas e regras se estabelecem através de um sistema totêmico que
divide a sociedade deles em clãs, onde cada clã tem seu totem. Esse totem pode ser um
animal, inofensivo ou perigoso, mais raramente uma planta ou ainda uma força natural.
O totem normalmente é um antepassado do clã ou um espírito protetor. Os grupos
dirigidos pelo mesmo totem devem seguir a “sagrada obrigação”, sendo que o não
cumprimento leva a punições e castigos. O totem, portanto, é a base das obrigações
sociais, sendo que para alguns estudiosos, ele faz parte de uma fase necessária ao
desenvolvimento humano.
Do ponto de vista psicanalítico, o totem é uma “Lei” que serve, entre outras coisas,
para estabelecer que os membros de um mesmo clã (mesmo totem), não podem manter
relações sexuais entre si. Esse assunto nos é interessante, pois nos permite visualizar
como os personagens que destacamos nesse artigo (Édipo e Valdir), mesmo em épocas
distintas, cometeram um crime há muito considerado bárbaro, e como esse “horror ao
incesto” foi sendo, ao longo do tempo, transmitido às gerações posteriores.
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Partindo da análise de como a proibição ao incesto se constitui na reprodução do
sistema totêmico, Freud (1996) considera que os povos “selvagens” são mais
escrupulosos que nós, pelo menos nessa questão. Talvez isso ocorra por que eles
estavam mais sujeitos a essa tentação, necessitando de uma proteção maior. Contudo,
não é o que vislumbramos no conto “Noções de direito”, por meio da relação existente
entre o pai e a filha em tempo muito distante do “primitivo”. Dentro da cultura aberta, o
homem também se encontra desprotegido, portanto, mais propenso a realização
consciente do incesto.
O homem, no seu desenvolvimento histórico-cultural, cria tabus para poder dar conta
das proibições, expressando por meio deles, o que é sagrado, inquietante, perigoso ou
proibido. O perigo, de acordo com o Freud, surge quando sentimos os desejos
inconscientes como impulsos conscientes, como ocorrem com o personagem Valdir que
externaliza os desejos incestuosos sobre sua própria filha. Já o personagem Édipo
realiza o incesto de forma inconsciente, imbuído do sentimento de estar fazendo o bem
para a cidade de Tebas, afinal a livrou da Esfinge (monstro que dominava a cidade) e
em conseqüência desse ato heróico tornou-se rei, tendo, assim, sua própria mãe como
esposa.
A universalidade da proibição do incesto constitui um fenômeno social que provém
do universo das regras (da cultura) e, portanto, tornou-se objeto de diversas áreas do
saber, como a Antropologia, a Psicologia e, como regra social, diz respeito à Sociologia.
Sendo assim, é interessante mostrar como outras áreas de conhecimento trabalham com
essa temática, como é o caso da visão antropológica de Lévi-Strauss.
Qual seria o limite do direito que um pai pode exercer sobre um (a) filho (a)? No
conto “Noções de Direito” retirado do livro Traição e outros desejos (2001), da
escritora brasileira contemporânea Sônia Peçanha, essa noção de direito exercida por
Valdir sobre sua filha Valdirene ultrapassa o limite da legalidade quando o sentimento
de amor e cuidado paterno é transmutado e confundido com o sentimento de posse e de
desejo que um homem pode sentir por uma mulher. A partir do momento que o pai
descobre na filha uma mulher, o instinto de atração se sobrepõe a todos os ensinamentos
culturais, éticos e morais, do qual também fazem parte o tabu e a proibição do incesto,
ensinamentos estes que devem ser internalizados no cotidiano familiar.
O conto se apresenta divido em três partes com os seguintes subtítulos: “Privado”,
“Público” e “Era uma vez”. Esse mosaico compõe um único texto, sendo o segundo
subtítulo uma espécie de boletim de ocorrência realizado na delegacia três anos após a
história familiar nos ter sido apresentada com o subtítulo “Privado”. Na parte intitulada
“Era uma vez” vislumbramos a realização do casamento de Valdir com Irene, ou seja,
como a história familiar começou em uma atmosfera de conto de fadas, terminando de
forma drástica com a acusação do pai. O que para Valdir era apenas a execução de um
direito paterno, quando passa da esfera privada para pública transforma-se em crime.
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Em meio à cultura aberta, que tem o personagem Valdir como uma das
representações possíveis de individualidades, a melancolia humana está ligada ao
sentimento de perda pelo “[...] paraíso eternamente perdido que foi buscado mas não
encontrado” (LUKÁCS, 2000, p.86). Há uma frustração, um vazio que faz o indivíduo
peregrinar rumo a si mesmo no cativeiro da realidade existente; realidade esta vazia e
heterogênea, onde o ser humano pretende chegar a um autoconhecimento (LUKÁCS;
2000) que no caso de Valdir é essa fragmentação entre o pai e o homem internalizada
nele.
Existe uma enorme discrepância entre o que o personagem Valdir é (Ser) e o que ele
deveria ser (dever-ser); entre o que ele sente por Valdirene (desejo incestuoso) e o que
ele deveria sentir (amor paterno); sendo ele o único responsável por sua formação,
escolhas e caráter.
Apesar do crime horrendo cometido pelo pai, algumas passagens do conto deixam
transparecer a culpabilidade feminina, pois esta exala corporeamente elementos de
sedução como o andar de cio, o jeito de olhar preguiçoso, as manhas de mulher (p.32)
capazes de alvoroçar os sentidos masculinos de qualquer homem. Ainda assim, a
mulher é vislumbrada como corpo-objeto disponível e a procura de um macho. Essa
postura a respeito da mulher pode ser parcialmente explicada pelo patriarcalismo
disseminado por diversas instituições sociais, que hierarquizam os sexos em termos de
superioridade (homem) e inferioridade (mulher), e nesse binarismo a culpa sempre recai
sobre o sexo dominado.
Na fragmentação identitária de Valdir, são muitos os elementos textuais que
demonstram, gradativamente, o crescente desejo do personagem pela filha, desejo este
muitas vezes camuflado pelo sentimento de zelo paterno. A partir do momento que
Valdir questiona sua esposa para saber se a filha já era “moça”, ele transforma-se em
um homem desassossegado, como mostra a seguinte passagem: “Nessa noite, Valdir
não dormiu. Revirou-se na cama, madrugada inteira, pensando só em Valdirene,
sozinha na sala, com os dois irmãos [...] E a insônia se repetiu nele, noite após noite”.
(grifos nossos, p.32-3). A partir desse momento, o desejo incestuoso inconsciente de
Valdir começa a se corporificar por meio de suas ações e pensamentos, é o que Freud
(1996) denomina de “perigo do incesto”.
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Interessante notar que o pai projeta nos filhos o que ele sente por Valdirene, temendo
pela segurança da filha, afinal sendo a casa pequena, todos os filhos dormiam juntos na
sala da casa, e como Valdir bem coloca ao constatar se os filhos realmente dormem,
“não era fácil um homem se controlar, nada fácil” (p.33). Com isso passa a levantar
várias vezes no meio da noite para observar a filha: “Chegava junto à filha, puxava o
lençol para cobrir uma coxa mais à mostra, a camisola transparente, deixando ver os
seios” (p.33). Outra vez, notamos elementos de sedução embutidos na personagem
feminina (a coxa à mostra, a camisola transparente e os seios). É como um incentivo a
concretização do incesto.
A construção de um quartinho nos fundos da casa para presentear Valdirene quando
completasse 12 anos revela a intenção de construir uma alcova amorosa; um lugar onde
pudesse se encontrar com a filha longe dos olhos dos demais familiares. A rosa
vermelha deixada na cabeceira da cama da menina é mais um indício da intenção
paterna. O ciúmes que sentia dos filhos e principalmente o fato de imaginar que a filha
estaria interessada em Rui, o novo colega de trabalho, desencadeiam um sentimento de
posse doentio, como podemos evidenciar no seguinte trecho:
Valdirene logo logo ia ser mulher. Logo ia abrir as pernas pra
qualquer um, pro primeiro que mandasse. [...] Com paciência, sem
pressa alguma, ia se convencendo de seus sentimentos. Afinal, o que é
de sangue ninguém tira, e aquela menina viera dele, não tinha como
aquele Rui ou um outro qualquer querer que fosse diferente. Era sua
filha. Sua. (grifos nossos, p.38)
Toda essa conexão de pensamentos realizados por Valdir tem a pretensão de justificar o
incesto, esse ato sexual ilícito que se realizaria pelo seu direito paterno, pelo “sangue”
em comum, pelo sentimento de posse embutido no pronome “sua”, resultando
fatalmente na seguinte fala “- Sou teu pai. Por isso, eu é que digo a hora de você ser
mulher” (grifo nosso, p.39).
A gradativa exposição de elementos como a percepção da puberdade da filha, o
medo de que os filhos também percebam na irmã uma mulher, a construção do
quartinho, a rosa vermelha na cabeceira, as constantes visitas noturnas a filha, o ciúmes
doentio resultam no incesto paterno. Todas essas características colocam Valdir como
um indivíduo problemático em meio a um mundo desarmonioso (reflexo da cultura
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aberta), onde todas as certezas, como a certeza do sentimento paterno, estão diluídas no
mundo a espera de serem encontradas.
Como um homem sem base ou parâmetros estáveis de comportamento morais e
éticos, Valdir chega a pensar em engravidar a filha, pois “com um filho nos braços
ninguém iria querer saber dela” (p.41). Este tipo de fala mostra que Valdir tenciona
romper com a relação de “troca de mulheres entre homens” que Lévi-Strauss coloca
como uma relação necessária à vida social dos grupos. Dentro desses grupos a proibição
do incesto seria um meio de estabelecer normas para determinar a forma pela qual será
feita a distribuição das mulheres, que estão imobilizadas nos seios dos grupos
familiares. Há uma negação dessa relação socialmente estabelecida; Valdir não aceita
entregar sua filha a outro homem como fez Joaquim, seu sogro, ao lhe conceder a mão
de Irene: “Joaquim apertou com força a mão de Valdir. Valdir olhou nos olhos daquele
homem que lhe dava a filha” (p.42). O aperto de mão que sela essa relação de troca de
mulheres entre homens é rompida por Valdir a partir do momento que ele decide não
“entregar” sua filha a alguém.
Quando a história do incesto se torna pública ao leitor por meio de um boletim de
ocorrência, é que constatamos que Valdirene sofreu com a violência sexual paterna por
três anos sem que os demais familiares acreditassem no que ela contava, inclusive a
mãe. A relação que inicialmente nos é apresentada como a de pai e filha, termina sendo
substituída pelo par binário acusado e informante, e a certeza de Valdir de que “ia ser
feliz” (p.42) ao casar-se com Irene é destruída pela realização do incesto, pelo emprego
que perdeu, por tornar-se alcoólatra, por violentar fisicamente a mulher e os filhos,
terminando, assim, foragido da polícia.
Mesmo depois de toda a violência sofrida, a culpabilidade perante os familiares recai
sobre Valdirene, como mostra o seguinte trecho: “A informante não tem notícias da mãe
e dos irmãos; que nenhum deles a procurou” (p.41). A partir do momento que a prática
incestuosa é relatada por Valdirene há uma quebra na simbolização das funções
familiares (pai, mãe e irmãos), o que torna o relato feito por Valdirene algo fantasioso e
irreal para os demais familiares, que rejeitam o deslocamento da figura paterna:
[...] a informante contou o ocorrido a sua mãe; que sua mãe não
acreditou, dizendo que ela estava vendo muita novela; [...] que a mãe
e os irmãos diziam que o acusado só queria o seu bem; que o irmão
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mais velho dizia que ela era a preferida do pai e por isso ganhara um
quarto só para ela (grifos nossos, p.40).
Talvez essa “atmosfera de segurança” e essa “profunda certeza de sua marcha”, tenham
levado Édipo a cometer todos os crimes previstos pelo oráculo, pois, lutando contra
esses dizeres, acaba por consumar o que lhe foi predito. Ou seja, o livre arbítrio
existente na cultura fechada se diferencia do existente na cultura aberta, pois mesmo
tentando traçar seu destino individual, fugindo da vontade dos deuses, Édipo concretiza
os crimes previstos. Já Valdir não tem seu destino traçado pelos deuses, pois na sua
cultura há um abismo entre o homem e as divindades (o ser humano se encontra
sozinho). Isso não quer dizer que não há regras a serem seguidas, mas apenas que o
homem é o único responsável pela transgressão dos parâmetros estabelecidos
socialmente, como é o caso do incesto cometido por Valdir.
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Com relação à punição pelo crime do incesto, podemos dizer que ela se realiza de
forma díspare nos dois textos. Édipo, mesmo tendo cometido o incesto culposo, por
força do destino, tem a hombridade de se castigar, furando os próprios olhos para que
não mais visse a desgraça que cometeu: “Foi Apolo, meus amigos, quem me infligiu
estas desgraças, todas estas desgraças; mas ninguém me feriu, a não ser eu. Que me
importava ver, se nada me era agradável à vista?” (SÓFOCLES, 1988, p.87). Já Valdir
que cometeu um incesto doloso, pois não possuía um destino traçado e o livre arbítrio
funciona plenamente em sua cultura, termina a história como foragido da polícia,
recusando-se a pagar por um crime no qual ele foi o único responsável.
Assim como Édipo, Valdir também passa “da boa para a má fortuna”, pois o
personagem possuía um bom relacionamento familiar, tinha um emprego, em suma,
uma vida tranqüila e termina sua história de forma catastrófica. Após a realização do
incesto, Valdir passa a beber e agredir “a informante e os familiares com socos,
pontapés” (PEÇANHA, 2001, p.41), quase matando a mulher com um espeto de
churrasco, além de perder o emprego. Contudo, ele não aceita pagar pelo crime
horrendo que cometeu; ao contrário, foge, deixando os filhos e esposa pagando pela
“má fortuna” da qual ele foi o único responsável.
Tomando Édipo como exemplo, parece que os seres humanos criados na atmosfera
da cultura fechada são imbuídos de sentimentos mais estáveis e mais nobres, seja por
sua religiosidade mais apurada, ou pela própria ética e moral que a cultura fechada
impõe. Diferente disso, na cultura aberta o homem se encontra mais desprotegido,
repleto de incertezas, portanto, mais propenso a realização consciente do incesto, como
foi o caso de Valdir.
Conclusão
Confrontando duas obras que são frutos de culturas diferentes, percebemos que
existe uma intertextualidade na temática “família”, com todos os seus problemas e
desajustes eternos. A literatura da Antigüidade Clássica e a Bíblia Sagrada confirmam
isso. Homicídios, traições, rivalidades, ódio entre irmãos, são alguns dos temas de
reflexão filosófica e literária mais antigos do mundo. Biblicamente, podemos pensar na
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atitude de Caim que mata o irmão (fatricídio), no incesto ocorrido com a destruição de
Sodoma e Gomorra, onde as filhas embebedam o pai para que tenham a sua
descendência, entre outros temas trabalhados.
Todos esses temas não são novos e têm se renovado na produção literária atual,
repetindo os conflitos e agravando-os, na medida em que os inserem no caos urbano do
nosso tempo. Dessa forma, o diálogo entre o presente e o passado nos faz resgatar
histórias bíblicas, clássicas e contemporâneas para mostrar que seus temas são tão
antigos, como atuais, eternos como a própria impossibilidade de harmonia terrena
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Européia
do Livro. 1970.
FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos (1913~1914). Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1996.
LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes. 1976.
LUKÁCS, G. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Marian de Macedo. São
Paulo: Duas Cidades, 2000.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
PEÇANHA, Sônia. Traição e outros desejos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
QUEIROZ, Eça. Os maias. São Paulo: Martin Claret, 2005.
SÓFOCLES. Édipo rei. Tradução de Agostinho da Silva. S.l: Ed. América do Sul, 1988.
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Haroldo Maranhão foi um escritor múltiplo que se destacou pela produção de contos,
mas que também atingiu singularidade ao produzir romances extraordinários, embora
tenha sido pouco reconhecido pela crítica e pouco tenha sido escrito a respeito de sua
obra. Mesmo assim, pode-se falar de alguns prêmios recebidos por sua vasta produção,
dentre eles destacam-se: o Prêmio da União Brasileira de Escritores, o Vértice de
Literatura, o Prêmio Instituto Nacional do Livro, o Prêmio José Lins do Rego e o
Prêmio Guimarães Rosa, entre outros. Esse último concedido em 1980 pelo romance O
Tetraneto Del-Rei antes mesmo de ser publicado.
O escritor paraense nasceu em 7 de agosto de 1927. Vivendo com sua família no
último andar do prédio do jornal Folha do Norte 1, o menino cresceu entre as
brincadeiras com o irmão Ivan e as impressões diárias das folhas a publicar, assim, logo
se habituou às letras. Sua trajetória na escrita foi iniciada ainda nos tempos de escola,
aos treze anos ele publicou crônicas no jornal escolar O Colegial. Com o tempo, se
tornou redator na Folha do Norte¸ ainda adolescente começou como revisor e repórter
policial, passando, em pouco tempo, a chefe de redação. No período de 1946 a 1950,
dirigiu o Suplemento literário, importante veículo de informação acerca de literatura e
arte em Belém. É nessa época também que funda a livraria Dom Quixote, importante
ponto de encontro de alguns intelectuais. Posteriormente, torna-se advogado e muda-se
para o Rio de Janeiro onde vive como procurador da Caixa Econômica Federal. Lá, ele
vive até o final de sua vida, em 17 de julho de 2004.
Quanto à sua produção, Sérgio Alves marca três importantes fatores para a formação
do escritor Haroldo Maranhão: a atividade jornalística, a leitura e a escrita diária. De
jornalista, sobraram traços da crônica, inclusive pela observação do cotidiano da vida do
1
A família de Haroldo vivia no último andar do prédio do jornal, propriedade do avô Paulo Maranhão,
buscando se proteger dos inimigos políticos do avô e do jornal.
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1. Confluências textuais
que se inscrevem e são claramente reescritas pelo contexto do romance, as quais ecoam
apenas pelas suas estruturas bem de longe reconhecidas.
Em O Tetraneto Del-Rei, há enxertos de passagens e versos que vão desde autores
portugueses aos nossos modernistas. O próprio autor, em nota no livro, diz ter utilizado
os textos de Fr. Amador Arrais, Pero Vaz de Caminha, Camões, Bocage, Gregório de
Matos, Fr. Francisco de Mont’Alverne, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Eça
de Queiroz, Machado de Assis, Francisco Otaviano, Olavo Bilac, Fernando Pessoa,
João Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de
Melo Neto, Mario Faustino e Lêdo Ivo.
Há também a incorporação de elementos paratextuais como títulos de obras e nomes
de autores inscritos na narrativa. Dos títulos são citados: Fogo morto, Pedra do sono,
Canaã, Ubirajara, Clã do jabuti, O cão sem plumas, Verde vago mundo, Chão dos lobos,
Passagem dos inocentes, dentre outros. Dos autores, são citados João “Cabral
amantíssimo amante de rios” e “Mário: que tão cedo te partiste! Mário fausto; Mário
Faustino” (MARANHÃO, 1982, p. 113).
É feita, assim, uma verdadeira justaposição de elementos e excertos que vão “além
de um mero percurso intertextual” 2. Os textos mostram tons diferentes ao serem
pronunciados por outra pessoa no contexto do romance. Na sexta carta de O Tetraneto
Del-Rei, os versos de Fernando Pessoa e seus heterônimos são pronunciados pelo
protagonista Jerônimo de Albuquerque num tom reflexivo e triste, o que segundo ele era
resultado do cansaço.
Senhora,
estou cansado, é claro, porque, a esta altura, a
àquele antigo erro / pelo qual sou proscrito. - São dias só de Álvaro de
febre na cabeça, / não faço mais que ir ver o navio ir, / levo o Campos
“Primeiro
Fausto –
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do mundo
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XIX”,
Fernando
sonho para a loucura a tenebrosa porta, / que a treva é menos “Poesias
Pessoa
inéditas”,
negra que esta luz. - Vejo passar os barcos pelo mar, / as Fernando
velas, como asas do que vejo/trazem-me um vago e íntimo Pessoa
desejo / de ser quem fui, sem eu saber que foi. / Por isso tudo
lembra o meu lar, / e, porque o lembra, quanto sou me dói. -
De quem são as velas onde me roço? / De quem as quilhas
que vejo e ouço? - Há saudades nas pernas e nos braços. / Há
saudades no cérebro por fora. / Há grandes raivas feitas de
“Barrow-
on-furness, cansaços. - Há quanto tempo, Portugal há quanto tempo /
Álvaro de
vivemos separados! Horror! - Não nos vemos mais!
Campos
Em toda a noite o sono não veio. Agora / raia do fundo
“Em toda
noite o / do horizonte, encoberta e fria, a manhã. / Com olhos tontos
sono não de febre vã, da vigília / vejo com horror / o novo dia trazer-
veio”,
Fernando me o mesmo dia do fim / do mundo e da dor / – um igual aos
Pessoa
outros, da eterna família / de serem assim. - Aqui na orla da
praia, mudo e contente do mar. / Sem nada já que me atraia,
sem nada que desejar, / farei um sonho, terei meu dia, “Ah, um
soneto”,
fecharei a vida, / e nunca terei agonia, pois dormirei de
seguida. / Só, no silêncio cercado pelo som branco do mar, / Álvaro de
Campos
quero dormir sossegado, sem nada que desejar, / quero
“Vaga no dormir na distância de um ser que nunca foi seu, / tocado do
azul amplo
solta, vai ar sem fragrância da brisa de qualquer céu. - Vaga, no azul
uma nuvem amplo solta, / vai uma nuvem errando. / O meu passado não
errando...”, “Passou
Fernando volta. / Não é o que estou chorando. - Passou a nuvem; o sol uma nuvem
Pessoa pelo sol”,
volta. / A alegria girassolou. / Pendão latente de revolta, /
Fernando
“É brando o que hora maligna te enrolou? - É brando o dia, é brando o Pessoa
dia, brando
o vento”, vento. / É brando o sol e brando o céu. / Assim fosse meu
Fernando “Tenho
pensamento! / Assim fosse eu, assim fosse eu! - Tenho esperança?
Pessoa “Poesias
Não tenho”,
esperança? Não tenho. / Tenho vontade de a ter? / Não sei. inéditas”,
Fernando
“Ode Fernando
Pessoa
Ignoro a que venho, / quero dormir e esquecer. - Deus tenha
marcial”, Pessoa
Álvaro de piedade de mim que não a tive de ninguém. - Quando a erva
“Mensa-
Campos
gem”, crescer em cima da minha sepultura, / seja esse o sinal para Alberto
“Ah, um
Caeiro
Fernando
soneto”,
Pessoa
Álvaro de
Campos
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Logo após o primeiro encontro com os índios, o protagonista Jerônimo passa a ser
atormentado por pesadelos com flechadas despejadas por “índios irosos”, o que lhe
fazia se sentir com a “ombridade pisada”, haja vista que ele “nisso muito gosto até
mostrava e à feição se punha, agachando-se e empinando a plataforma do assento”
(MARANHÃO, p. 32). Isso o deixa aflito e pela persistência dos sonhos, angustiado.
A razão de maior tormento do protagonista se dava, principalmente, pela aparição do
poeta Camões em seus sonhos, o qual conhecera em Goa, fato estranho a Jerônimo, já
que se dera conta de que nunca estivera por lá ou em qualquer outra parte das Índias.
Mas por que lhe parecia tão clara a figura do poeta caolho com os poemas embaixo do
braço? Ele jamais relataria tais fatos à senhora que tanto desejava impressionar nas
cartas anteriores, por isso, atribui a melancolia impressa nas letras escritas ao cansaço
produzido pela estada na terra a ser desbravada e para isso se serve das palavras de
Pessoa e seus heterônimos, fazendo, ao final da carta, um jogo interessante com o nome
do poeta.
2. Contestação
Os textos utilizados na obra haroldiana são reconstruídos num tom, sobretudo irônico
e crítico, revelando uma outra visão do processo de colonização. A história é
3
Para demonstrar os excertos de Fernando Pessoa e seus heterônimos, foram inseridos à carta dois
elementos: “-” , para separação de poemas e “/” , para separação de versos.
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reinventada e a obra faz questão de mostrar em seu corpo as tintas do colonizador, sem
deixar, contudo, de valorizar suas próprias cores. Reside aí a riqueza do romance do
autor paraense, pois ele contém em si
interpelando o gentio que considerara principal entre eles. “Esta ação meteu assombro
aos acuados, que acuados eram, não os índios, mas os portugueses. Os quais
atordoaram-se vivissimamente” (MARANHÃO, p. 14).
Em posição de arrogância, o protagonista retira seu chapéu e o lança em direção aos
índios, no entanto, ao ver seu tricórnio chapéu jazido em terra sem a esperada
retribuição amical, o Torto retoma-o. Após segunda tentativa, num gesto teatral
Jeronimo lança uma banana no braço de um dos índios, porém isso em nada
compromete a passividade indígena, até que se ouve o grito: “Nããããão! Bananas,
nãããão!”, o qual paralisa o grupo luso. Ouve-se novo grito provindo do grupo dos
ameríndios que os assombra ainda mais e os faz correr, “e até hoje haverá português
alhures em debandada. À frente do pugilo apavorado, corria justo o capitão, e em seu
couce vinha obra de oitenta ou mais portugueses” (MARANHÃO, p. 16). Cotejados os
episódios em que se nota evidente semelhança, ressalta-se no primeiro a coragem do
português Nicolau Coelho que sozinho consegue estabelecer comunicação com um
grupo inicialmente de sete a oito índios, posteriormente passando a vinte que o cerca,
sem manifestar qualquer alteração.
De forma irônica, o segundo episódio parodia o primeiro contestando-o. No encontro
com um moderadíssimo número de índios, em vez de um português apenas, tem-se um
grupo de mais de oitenta armados de mosquetes seguidos do seu comandante no
momento improvisado. Embora em maior número e melhor armados, eles demonstram
assombro ao se depararem com os donos da terra, os quais se mantinham calmos e
mesmo curiosos em aproximarem-se dos visitantes. Mas é depois de ouvir o enunciado
tão vivissimamente deflagrado: “Quem, tem cuuuuuuuu tem meeeeedo!”
(MARANHÃO, p. 15) que o grupo luso atinge o auge do despropósito fugindo
vergonhosamente, deixando seus rastros pelo caminho. Eles regressam ao galeão em
metade do tempo percorrido anteriormente tão assustados estavam.
Dessa forma, o comportamento português é ridicularizado pelo narrador que lança
por terra a visão de coragem e bravura portuguesa constituída nos textos canonizados,
sobretudo no épico camoniano. Os portugueses são caracterizados em seu aspecto mais
vil, são todos homens sem caráter e covardes. “Porcos. Selvagens. Que selvagens eram
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eles, eles si: selvagens. Calafurnas, sacotos, freixos, corvinos, bacalhaos, o capitão-mor
– o doido-mor” (MARANHÃO, p. 113). Note-se que mesmo o capitão da frota, figura
exaltada em Os Lusíadas, é colocado ao nível dos outros e qualificado de louco.
Ademais, o narrador insere comentários quanto à preocupação maior em usufruir e
saltear o melhor da terra a ser desbravada, o que evidencia a falta de caráter dos
embarcados. O narrador mostra que os portugueses estavam afogueados “nem tanto do
sol a pino, porém da cobiça, tão apoderada de sua alma, salteados da febre do ouro, da
prata e do âmbar que sabiam assoberbar-se ali a odres” (MARANHÃO, p . 14).
Eis o argumento que motivava a empresa portuguesa. Os embarcados estavam em
busca da fortuna a qual poderiam acumular, afinal, as notícias sobre as riquezas e a
conquista fácil delas chegavam em Portugal. No entanto, para se atingir esse objetivo
era necessário passar pelos habitantes da terra, tarefa difícil de ser realizada, tendo em
vista o medo que os assombrava. Apesar disso, o outro é tratado como inferior. Segundo
o capitão Duarte Coelho, “gentio é gentio, mais próximo às feras que aos seus
semelhantes” (MARANHÃO, p. 13).
É até risível a presunção lusa frente às derrotas sofridas, haja vista o narrador contar
como eles eram massacrados pelos aborígenes. Em apenas uma das batalhas travadas,
oitenta e sete portugueses foram derrubados em um curto espaço de tempo, então, como
qualificar de bárbaro aquele que tão habilmente derrota o seu inimigo? Talvez fosse
necessário repensar o comportamento e organização do outro, tal qual o rei Pìrro 4, antes
de qualificá-lo. Antes de se impor violentamente, melhor seria tentar conhecer. “Se
houvera esse Albuquerque usado a cabeça e não o chapéu, e invés do traste emplumado
houvesse dádivas arremessado aos naturais, pronta amizade ter-se-ia selado”
(MARANHÃO, p. 16).
Conclusão
4
Ao falar da imposição violenta cometida pelo colonizador aos povos latino-americanos, Silviano
Santiago em “O entre-lugar do discurso latino-americano” utiliza uma afirmação de Montaigne extraída
dos Ensaios, na qual Montaigne demonstra seu deslumbramento ao ver a organização do exército bárbaro,
que de forma nenhuma poderia ser considerada como tal.
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Referências
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1983. p. 13-24.
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Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade (UCS), professora do Centro Tecnológico
niversidade de Caxias do Sul e da Prefeitura de Caxias do Sul.
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históricos, exerce também uma função social, não representando o universo, mas
mostrando os valores de uma cultura, assim, “as obras literárias que melhor traduzem os
movimentos sociais e históricos não são as que retratam de forma escrupulosamente
exata os acontecimentos exteriores; são as que exprimem aquilo que falta a um grupo
social, e não aquilo que ele possui plenamente.” (FREITAS, 1984, p. 175).
Na Grécia antiga e na Idade Média, segundo Burke (1997, p. 112), a distinção entre
história e ficção era autoconsciente, isto é, derivava da consciência do ser humano. Com
a chegada do Renascimento e o retorno aos padrões clássicos, a diferenciação entre
história e ficção torna-se nítida, distinção que permanece durante o século XVIII, no
qual, segundo o autor, história e ficção tornavam-se cada dia mais distante, mesmo
ambas apresentando uma tendência a reverenciar os fatos grandiosos, esquecendo-se das
demais camadas sociais que não possuíam narrações heroicas para contar. A fronteira,
como dita por Burke (1997), entre literatura e história, abre-se apenas no final do século
XX, quando literatos e historiadores dão-se conta de que a voz dos demais setores da
sociedade acrescenta informações cruciais para o entendimento da história humana.
Dessa forma, as mulheres, assim como outros grupos descentralizados, tiveram a chance
de, tal como Isabel Monfort, narrarem a história por meio de uma face esquecida e
diluída na verdade apresentada até pouco tempo atrás.
Ferré escreve em seu romance sobre personagens que se inserem no contexto
histórico-político de Porto Rico a fim de mostrar que as construções genéricas não são
resultadas apenas da diferença sexual, mas também dos processos históricos,
econômicos e sociais que delimitam os espaços de cada gênero. A narrativa origina-se
da ideia de Isabel Monfort de escrever sua própria história e a da família do seu marido,
família esta que representa a história de Porto Rico desde a conquista espanhola até os
dias atuais. A narradora declara que “mi propósito original fue tejer, a los recuerdos de
Quintín, las memorias de mi propia familia, pero lo que escribí finalmente fue algo muy
distinto” (FERRÉ, 1996, p. 18), pois na medida em que o texto se expande, ele se
desdobra em outras implicações históricas e textuais, e, no momento em que Quintín o
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encontra, escondido na biblioteca, será neste instante que o leitor dar-se-á conta de que
o que está lendo configura-se nas páginas do romance de Isabel.
A narradora vai mesclando a sua vida juntamente com as histórias das duas famílias
em oito partes, separadas em quarenta e cinco capítulos, incluindo os relatos de Quintín
sobre a narração e o seu próprio diário sobre os acontecimentos do seu cotidiano. Isabel
retoma seu passado e narra que se graduou em literatura e decidiu ser escritora,
profissão que Abby, avó Valentina, lhe dá força, proferindo sobre a importância que há
no poder de transformação advinda da narração das experiências pessoais dolorosas por
meio da catarse fomentada pela literatura.
Isabel relata a história de Porto Rico desde 1917, com a chegada de Buenaventura,
pai de Quintín. Como havia chego sem direito algum, o único bem que possuía consistia
na árvore genealógica de sua família, a qual declarava que Buenaventura tinha um título
de nobreza herdado de seu tataravô Francisco Pizarro, o conquistador do Peru. Isabel
assevera que, naqueles tempos, a linhagem valia peso de ouro e por isso Buenaventura
consegue um bom casamento e, com o passar dos anos, torna-se um dos homens mais
poderosos de San Juan, construindo a casa da laguna a fim de mostrar o seu poder
econômico, tendo, a casa, na parte detrás, a “tour de force”, isto é, um terraço feito com
mosaicos de ouro que se sobressaía sobre a laguna. Quando Quintín lê sobre o cotidiano
de seus pais, repleto de traições, roubos e submissão de sua mãe, não entende o motivo
de Isabel escrever “aquella sarta de mentiras sobre su família” (FERRÉ, 1996, p. 87) e
declara que a pretensão de Isabel era manchar o nome dos Mendizábal narrando uma
história de ficção, justamente porque não pertencia a nobreza por nascimento, mas
apenas por meio do seu matrimônio com ele.
As mulheres, sob o domínio patriarcal, foram levadas a acreditar que dependiam da
proteção masculina sendo que não poderiam desempenhar os mesmo papéis sociais que
os homens, correndo o risco de se masculinizarem. Na oposição entre feminino e
masculino, é o homem quem detém a hegemonia e a corporidade feminina será utilizada
para justificar as desigualdades sociais uma vez que é vinculada a feminilidade ao corpo
e a masculinidade à mente, o que acaba por restringir as ações das mulheres, confinadas
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não precisa ser considerado negativo, pois o historiador utiliza fontes e dados precisos,
escolhendo um foco e deixando de contar muitos outros pontos de vista.
Ao narrar um acontecimento, uma personagem e/ou um tempo específico são
escolhidos para relatar tal fenômeno, porém, ao escolher alguém ou um período, uma
série de outras personagens que também viveram o episódio fica apagada, permitindo
que outro ponto de vista, inserido em uma realidade diferenciada, possa relatar este
mesmo fato com a sua visão, que será diferente, possibilitando refazer o percurso
proposto, ampliando o tema, problematizando fatos antes inviáveis ao questionamento,
mas que, ao apresentar outra possibilidade, fornece dados para uma nova pesquisa e
uma opinião diferenciada sobre determinado assunto. No romance, ao se narrar um
episódio, vê-se as diferenças de visão pois, sobre um único evento da vida do avô de
Quintín, Arístides Arrigoitia, Isabel conta que, no domingo de ramos de 1937,
aconteceu em Ponce o tiroteio dos cadetes nacionalistas, os quais desejavam a
independência total de Porto Rico dos Estados Unidos. Segundo a narração de Isabel, os
nacionalistas intensificaram seus ataques com bombas e tiros a fim de buscarem a
independência da ilha e Arrigoitia, chefe de polícia, ficou responsável por prender todos
contrários ao governo que encontrasse. No domingo de ramos desse ano, os
nacionalistas realizaram uma marcha pela cidade contra a prisão dos comandantes do
Partido Nacionalista, Arrigoitia avisou seu supervisor sobre a marcha que foi proibida,
porém, no domingo, muitos cadetes que “no tenían más de quince o diecieseis años”
(FERRÉ, 1996, p. 143) desafiaram Arrigoitia o qual autorizou que a força física fosse
utilizada para dissipar a multidão, assim, nesse dia, dezessete pessoas morreram, quase
todos adolescentes e muitos ficaram feridos devido a força bélica utilizada pelo
exército. Por meio de uma pesquisa histórica, sabe-se que esse fato realmente aconteceu
na história de Porto Rico, mas Quintín, ao lê-la, fica abismado com as inverdades que
Isabel conta porque, segundo ele, não se podia negar que o tiroteio havia acontecido
nesta data, porém Isabel havia alterado conscientemente o foco, culpando os inocentes,
no caso seu avô e todos aqueles que desejavam que Porto Rico continuasse pertencendo
aos Estados Unidos. Quintín narra que seu avô não foi a pessoa sem alma que Isabel
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havia dito e sim um chefe de polícia exigente, leal ao governador Winship e que utilizou
a força a fim de restabelecer a ordem, pois “el coronel Arrigoitia había sido un héroe en
la lucha por la estabilidad, y aquí estaba la truhana de su mujer, que no sabía una mierda
de política, dándole un baño de fango” (FERRÉ, 1996, p. 163).
O historiador, narrador do texto histórico, desaparece por trás do fato, tornando-o,
dessa forma, um fato coletivo. O texto literário, por sua vez, parte de um olhar
subjetivo, dessa forma, não é visto como algo puro e simplesmente fantasioso, mas
como
Por exemplo, ao ler os trechos da obra de Isabel, Quintín os percebe como uma
calúnia, descobrindo um lado que Isabel nunca lhe mostrara anteriormente. É a escrita
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que desnuda o mundo para Isabel, é por meio dela que ela liberta-se da versão única de
seu marido. Preocupado em manter seu status, Isabel refuta a visão unilateral de seu
esposo e percebe que a escrita recria um mundo diferente a ponto de dizer que Quintín,
ao ler a narrativa escrita por ela, “más que enojado com Isabel, (Quintín) se sentía
profundamente herido” (FERRÉ, 1996, p. 90), não revelando suas leituras noturnas a
Isabel, mas decidindo observá-la de perto, além de, em sua opinião, ajudá-la a escrever
a novela, fazendo anotações ao lado de cada página, com alterações no texto. Quintín
reflete que Isabel prefere personagens rebeldes, isto é, mulheres que não se dobram ao
poder masculino e se deixam levar pelo prazer e pela sedução da vida. Isso se torna
motivo de crítica de Quintín que, não conseguindo se conter em ler, modifica as ações,
relatando uma outra versão de muitos fatos narrados. O texto revela sua esposa a
Quintín, é nele que Isabel conta seu amor pelo professor de dança e Quintín sente medo
de sua mulher porque, por meio da escrita, ela detém o poder de, com as palavras,
modificar fatos históricos e transformar vítimas em culpados.
As visões do casal são distintas, para Quintín as mulheres não deveriam ser vistas
como vítimas, tal como Isabel pregava em seu texto. Isabel, mesmo percebendo a
intromissão do seu marido no texto, narrando uma versão masculina dos fatos, não
comenta nada, porém não deixa de escrever o romance a partir de sua visão, afirmando
que “y no sólo está leyendo, le está añadiendo sus comentarios a mano, garabateándolos
con furia en los márgenes. En algunos casos, hasta ha sumado su versión a la mía, por la
parte de atrás de las páginas” (FERRÉ, 1996, p. 209). A escrita de Quintín mostra que a
verdade viria da versão dele e que sua esposa estava procurando manchar o nome da
família Mendizábal para assim libertar-se do domínio social que ela, até esse ponto, não
tinha como fugir.
Percebe-se, nas últimas décadas, uma grande reviravolta nos assuntos abordados pela
história, já que os historiadores começaram a debruçar-se sobre temáticas e grupos
sociais até então excluídos do seu interesse. Fundamental, neste particular, é o “vulto
assumido pela história cultural, preocupada com as identidades coletivas de uma ampla
variedade de grupos sociais, pluralizam-se os objetos da investigação histórica, e, nesse
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288) afirma que esse procedimento traz uma contribuição essencial, pois é “através dos
discursos e das práticas da marginalidade e da exclusão, que se manifestam as
transformações mais fundamentais das estruturas econômicas, sociais e ideológicas”.
A leitura particular e inventiva de cada leitor vem repleta de uma série de
determinações, desde os efeitos de sentido postos no texto, até referências impostas
pelas formas transmitidas nesses textos e nas convenções de leitura particular de cada
comunidade, nas quais as representações coletivas estão incorporadas nos indivíduos,
permeando as divisões do mundo social e, por consequência, estruturando os esquemas
de percepção a partir dos quais determinado grupo julga e age. Chartier (1994, p. 108),
ao abordar as representações do poder ou da construção das identidades sociais ou
culturais, diz que se definiu uma história das modalidades do fazer-crer e das formas da
crença que é “uma história das relações de forças simbólicas, uma história de aceitação
ou de rejeição pelos dominados dos princípios inculcados, das identidades impostas que
visam a assegurar e perpetuar sua dominação”. A história das mulheres encaixa-se nesse
discurso, pois a identidade feminina tem se enraizado na interiorização, pelas mulheres,
das normas enunciadas pelos discursos masculinos. A história das mulheres é contada
pela visão masculina a qual a silencia e a coloca como parte imutável, não agindo como
autora, mas como espectadora das ações, assim,
Ao ler sobre sua família, como se fez a fortuna de seu pai e sobre os relacionamentos
deste com sua mãe, Quintín sente-se incomodado, pois considera o texto
demasiadamente ficcional e critica a sua mulher por ter deixado de fora o que realmente
acontecera. Embora Quintín apareça como um incentivador da escrita de sua esposa no
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início do casamento, ele não aceita que Isabel possa escrever com autonomia.
Diplomado em História pela Universidade de Columbia, eles haviam pensado, no
passado, na possibilidade de escreverem a história de suas famílias, mas ao ler o texto
de Isabel, desencadeiam-se em Quintín reações contraditórias que vão desde o
incômodo inicial, passando pelo assombro, a inveja e a ira. Ele sente-se traído pelas
palavras já que dividiu com ela o passado de sua família em conversas e agora
acreditava que ela apropriara-se deste, alterando conscientemente os fatos para dar
maior efetividade à narrativa. Quintín vê o mundo por meio da história oficial, cujo
propósito é manter as aparências e assegurar a continuidade do poder inalterado que
sempre exercera. Ele indigna-se quando o texto traz à luz roubos, assassinatos, traições,
abortos e narrações em que os homens, a partir de sua opinião, eram os vilões e as
mulheres suas vítimas.
Com o passar da narrativa, a esposa submissa ao marido acaba por apresentar um
olhar diferenciado em aspectos sociais, políticos e familiares. As diferenças ideológicas
entre o casal propiciam um confronto que se desenvolve paralelamente ao romance de
Isabel, em capítulos intercalados que mostram como a história é construída. A versão da
narradora mostra a possibilidade de reconstrução, pois, ao contrário de seu marido,
Isabel acredita que a história não está pronta, sempre podendo ser revista e
reinterpretada, sendo que essa mobilidade permite que o passado possa ser reconstruído
e que surja uma versão subversiva para contradizer o discurso patriarcal. Quando
conversam sobre a escrita, Quintín afirma que
Burke (1992) assevera que os acontecimentos tornam-se mais inteligíveis quando são
apresentados por meio de mais pontos de vista, assim, na obra em análise, ao subverter
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Como aponta Alfredo Bosi, não se deve considerar na obra de Machado de Assis um
fosso existente entre os romances ditos da fase romântica, chamados pelo crítico de
romances “de compromisso” ou “convencionais”, e aqueles de maturidade, marcados
pelo “realismo de sondagem moral” (1994, p.174). Essa observação se deve ao fato de
que já na primeira fase da ficção machadiana aparece um tema recorrente: “a ambição
de mudar de classe social e a procura de um novo status, mesmo à custa de sacrifícios
no plano afetivo” (1994, p.177), contrariando, assim, o ideário romântico.
A temática do desejo de ascensão social e dos movimentos previamente calculados,
visando à obtenção de um reconhecimento em sociedade, que já se delineiam na
estrutura de romances como A mão e a luva (1874) e Iaiá Garcia (1878), ganham maior
vulto nos romances da fase de maturidade. Nessa fase, iniciada com Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881), destaca-se o conto “O espelho”, que acreditamos ser a
epígrafe da ficção machadiana, uma vez que revela a teoria das duas almas que existem
no indivíduo e da importância dada ao “papel social na formação do ‘eu’, papel que
vem a ser aquela segunda natureza, considerada em Iaiá Garcia ‘tão legítima e
imperiosa como a outra’” (1997, p.37).
É também de Alfredo Bosi o comentário a respeito das máscaras sociais, presentes
nas personagens machadianas: “O roteiro de Machado após a experiência dos romances
juvenis desenvolveu essa linha de análise das máscaras que o homem afivela à
consciência tão firmemente que acaba por identificar-se com elas” (1994, p.178). Essa
observação serve tanto para o estudo do conto “O espelho”, como para a descrição de
muitas das personagens machadianas, como Bento Santiago de Dom Casmurro (1900).
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Queremos registrar nossos agradecimentos à FADESP (Fundação de Amparo e Desenvolvimento da
Pesquisa) pelo financiamento das passagens aéreas do docente-autor, viabilizando sua participação no 1º
CIELLI (Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários)
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Deste modo, a identidade do sujeito é construída nas relações com o Outro. Este
pode ser entendido em sentido amplo, relacionado a formulações de ordem social. Esses
elementos podem colaborar na construção identitária, tanto quando o indivíduo os
aceita, como quando este os recusa.
Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Essas questões ontológicas apontam
para o problema do eu inserido no mundo. Esse último pode ser entendido como um
real que se mostra a todo instante e permite-nos aceitá-lo ou recusá-lo. No segundo
caso, podemos ter atitudes extremas diante desse mundo, tais como o suicídio, a loucura
e a cegueira voluntária, estudados por Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo:
ensaio sobre a ilusão. Nessa obra, o filósofo classifica essas atitudes mencionadas como
radicais, pois implicam em não admitir o que é real.
Temos, por outro lado, um meio termo entre a aceitação do real e sua recusa. Trata-
se da ilusão, entendida como o desdobramento de uma determinada percepção. A
proposta do ensaio de Clément Rosset é relacionar a ilusão com o duplo, pois este
implica em ser, paradoxalmente, ao mesmo tempo, uma coisa e outra. Tem-se aqui um
novo enfoque para essa teoria que tem seu discurso fundador nos ensaios de Sigmund
Freud e Otto Rank.
Dessa forma, se algum elemento do mundo exterior teima em se mostrar, a tolerância
é suspensa e esse é colocado em outro lugar, criando um duplo. Isto é, a ilusão, tal como
a técnica do ilusionista que visa bipartir as percepções do real, faz com que o sujeito
enxergue duplicado, que acredite naquilo que é criado pela sua consciência.
Na classificação proposta por Rosset sobre os tipos de ilusão, destaca-se, neste
artigo, a ilusão psicológica, que consiste não mais em duplicar um acontecimento nem o
mundo, mas sim o próprio sujeito. Tem-se, assim, o desdobramento de personalidade,
que consiste na duplicação do sujeito em seus lados manifesto e imanente. Aquele é o
lado que é apresentado no convívio social e esse último se situa nas profundezas do
inconsciente, que se vale de mecanismos repressivos para evitar que esse lado se
manifeste (GEBRA, 2003, p.143).
O desdobramento de personalidade, tão caro aos psiquiatras que estudam casos
patológicos de neurastenia e esquizofrenia, ocorre em condições nas quais o sujeito opta
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por não ser eu. “Eu é um outro”, como dizia Rimbaud, resume bem esse mecanismo de
não aceitar ser o que se é, mas ser um outro, que teria uma realidade superior à do
próprio sujeito.
Esse duplo, ou esse Outro, em certos casos, pode ser todo um sistema social. Os
outros podem olhar e apreender um determinado sujeito, porém, esse sujeito jamais
poderá se olhar nem se compreender na sua totalidade. Mesmo quando esse indivíduo se
contempla no espelho, ainda assim, não se vê em sua totalidade, mas sim sua
representação virtual, figurativa e que é seu inverso, não o próprio ser. Isso se dá, pois,
segundo Rosset, o espelho “[...] oferece não a coisa, mas o seu outro, seu inverso, seu
contrário, sua projeção segundo tal eixo ou tal plano (1998, p.80).
O discurso filosófico de Rosset opõe-se à leitura psicanalítica feita por Otto Rank
acerca do tema do duplo. Para Rank, o duplo surge em resposta ao medo ancestral da
morte, isto é, o duplo traria para o sujeito o alívio de poder continuar a existir, agora já
não mais num plano terreno, mas num outro universo (1939, p.98). Para Rosset, “morrer
seria um mal menor, se ao menos se pudesse afirmar que se viveu” (1998, p.78), e,
sendo a nossa existência assegurada pela presença do outro, o duplo é a representação
desse papel. Ou seja, é no confronto com o duplo que o indivíduo constrói sua
identidade.
Machado de Assis, em sua obra, por vezes leva o leitor a uma inferência à teoria de
que o ser humano é alguém dividido em duas almas, ou duas naturezas, como ocorre em
“O espelho” (1882). Nesse conto, por meio da personagem Jacobina, é defendida a
existência de duas almas no ser humano “[...] _ Nada menos de duas almas. Cada
criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que
olha de fora para dentro...” (1957, p.259).
A narrativa se dá a partir de uma reunião de cinco cavalheiros, um deles, cujo nome é
Jacobina, toma a palavra e expõe sua teoria acerca da dualidade da alma humana. Para
comprovar o que expõe, conta um episódio que se passou quando tinha 25 anos de
idade, e acabava de ser nomeado Alferes da Guarda Nacional.
Jacobina passa um tempo em casa de sua tia Marcolina, e essa, além de lhe deixar em
seu quarto um enorme espelho, peça de luxo, destoante do mobiliário modesto da casa,
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trata-o e exige que os escravos o tratem por “Seu Alferes”. A situação se complica
quando, por ter que dar assistência a uma filha que se encontra adoentada distante dali,
dona Marcolina e seu cunhado deixam a casa e os escravos aos cuidados de Jacobina e,
aproveitando-se da situação de isolamento da casa, os escravos fogem, deixando o
alferes na mais completa solidão. Nessa ocasião, ao procurar contemplar-se no espelho,
vê sua imagem difusa. Entretanto, ao vestir a farda de alferes, encontra-se na sua
plenitude.
Jacobina vai além, quando afirma que o ser humano é “metafisicamente falando, uma
laranja” (1957, p.259), ou seja, se ele tem duas almas, não pode a alma interior
sobreviver sem uma proteção, ao mesmo tempo em que não é possível perceber-se
aquela sem primeiro visualizar e transpor essa proteção que é a alma exterior.
Sendo assim, compara-se ao que Clément Rosset defende ao afirmar que o ser
humano tem um duplo, e, quando a existência desse duplo não pode ser comprovada,
assim como num vampiro, ele não pode existir senão problematicamente (1998, p. 80).
Como vimos anteriormente, tanto a teoria de Jacobina como a de Rosset são
responsáveis pela construção identitária de personagens como Bento Santiago, de Dom
Casmurro (1900), pois como se poderá avaliar nesse romance, essa personagem se
encaixa no que se pode interpretar como perda de uma de suas almas e, por
consequencia, caracterizar-se como um sujeito falho.
Feita essa observação, nota-se como esse indivíduo não se reconhece como ser
existencial, e, considerando que esta afirmação é feita depois de toda uma amargura
vivida, é possível verificar essa ausência latente que o incomoda. Tal como Jacobina
que se vê “disperso, esgarçado, mutilado...” (1957, p. 270), sem sua farda simbólica,
Bento, no tempo da enunciação, reconhece sua falha como sujeito: “falto eu mesmo e
esta lacuna é tudo”.
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Em Dom Casmurro, observamos que Bento Santiago foi criado pela mãe, D. Glória,
numa casa que ele mesmo descreve como a “casa dos três viúvos”, pois ali moram
também seu tio Cosme, e uma prima, Justina. Além destes, há ainda um agregado à
família, José Dias, o qual é visto como alguém submisso. Segundo o narrador, esse
agregado “não abusava e sabia opinar obedecendo” (1997, p.19), ou seja, alguém que
não tinha autonomia e, por consequência, não pode ser visto como um exemplo de
conduta, algo que fundamentalmente faz falta na vida do garoto. Outra personagem
masculina é Tio Cosme, porém, ele já é velho demais para servir de modelo à
construção identitária de Bentinho.
A ausência de uma figura masculina propiciadora dessa construção se completa ao
avaliarmos também a falta física do pai, que morreu quando Bentinho era muito
pequeno. Em uma das muitas descrições de sua mãe, o narrador, por não ter um
referencial masculino que dissesse que ela, antes de tudo, era mulher, refere-se a ela da
seguinte maneira: “cândida como a primeira aurora, anterior ao primeiro pecado;”
(1997, p.69). Também na inscrição da lápide, o narrador resume a concepção que tem
de sua mãe: “[...] Procura no cemitério de São João Batista uma sepultura sem nome,
com esta única indicação: Uma santa. É aí. Fiz fazer essa inscrição com alguma
dificuldade” (1997, p.177).
Vemos que o narrador tem uma visão extremista das virtudes da mãe, chegando ao
ponto de lhe atribuir qualidades de santa e pura, tal como sua comparação com a aurora
primordial, e quer que isso se registre levando sua ideia para além das ponderações da
Igreja.
Para Carlos Byington, o complexo materno em Bentinho é muito forte, ao mesmo
tempo em que apresenta sinais da ausência do pai. Segundo o psicanalista, há quatro
pilares na formação da personalidade da criança: o complexo materno, o complexo
paterno, o vínculo entre eles e as vivências da criança (2008, p.5). Um desenvolvimento
psicológico considerado normal pressupõe que o menino se identifique com seus pares
do sexo masculino e se veja diferente da mãe; isso não ocorre apenas pela imposição
paterna no complexo de Édipo, mas sim pela necessidade de se separar da mãe, o que
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não ocorre com Bentinho, pois o flagramos, em vários momentos da narrativa, pedindo
a aceitação da mãe em suas decisões.
Pelo viés psicanalítico, a formação de uma personalidade saudável está ligada à
capacidade da mãe “de abrir mão daquilo que é um outro”, possibilitando a construção
de um ego masculino (2008, p.6). Para Byngton, D. Glória é a “grande mãe devoradora
e castradora”, pois impede a independência emocional de Bentinho. Há, pois, uma
vivência patológica no complexo materno. Byington ressalta que há um ardil
inconsciente que faz com que D. Glória encontre na promessa de tornar Bento padre
uma espécie de possibilidade de não se separar do filho (2008, p.3).
Ainda de acordo com Byington, D. Glória “preenche não só o lugar de mãe, como
também o vazio deixado pelo pai falecido” (2008, p.6). O complexo materno fortíssimo
atua como afirmação da ausência de um referencial masculino na vida da nossa
personagem analisada, pois a veneração ao modelo feminino da mãe faz com que Bento
se torne um sujeito incompleto, ou seja, sem uma masculinidade integral. Entenda-se,
aqui, o sentido de masculinidade incompleta, decorrente do “complexo materno
deformado” (BYINGTON, 2008, p.6), referente a todo homem que não consegue se
separar da mãe: “Fraco desde o início, ele é uma vergonha como homem. É o oposto da
masculinidade integrada, da hombridade, da virilidade, da criatividade” (BYINGTON,
2008, p.7). Ainda para o psicanalista, “Esse rapaz é um castrado, é uma pessoa anulada.
O dueto absolutamente harmônico entre o enaltecimento incessante de D. Glória e a
castração de Bentinho é um tema que atravessa todo o romance” (2008, p.8).
Isso também se evidencia quando, mesmo velho, o narrador é capaz de afirmar que
“Capitu era mais mulher do que eu era homem” (1997, p.52), ou seja, o próprio sujeito
não é capaz de afirmar sua masculinidade integral, como nunca fora. Ressalta-se, ainda,
que o mesmo faz questão de acentuar esse conceito: “Se ainda não o disse, aí fica. Se
disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de
repetição” (1997, p.52).
A afirmação acima leva ao ápice do presente discurso. Entenda-se aqui que Bentinho
demonstra a necessidade desse referencial masculino, que será encontrado em Ezequiel
de Souza Escobar, seu colega e amigo de seminário. Este chama sua atenção por ser
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alguém esbelto, mais velho e digno de confiança: “Eis aqui outro seminarista.
Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco
fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo [...]” (1997, p.86). Nota-
se que a aproximação de Bento e Escobar acontece por aquele encontrar neste uma
segurança em sua figura masculina que não lhe era possível antes.
Comparando-se esta passagem com a teoria do conto “O espelho”, a qual afirma que
a segunda alma de alguém pode ser qualquer coisa, inclusive outra pessoa, é possível
afirmar que o narrador a encontra no amigo, conforme o pressuposto filosófico de
Jacobina: “A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens,
um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é
a alma exterior de uma pessoa [...]” (1957, p.259).
Ressalta-se aqui o terceiro elemento apresentado: “um homem”, marcando a alma
exterior de Bento como sendo o próprio Escobar. Essa relação agora passa a ser de
dependência, pois a alma interior de Bentinho está ligada ao outro. O homem integral,
que ele não é, figura em outra pessoa e, a partir de então, aprofunda-se cada vez mais a
amizade de ambos.
A problemática abordada na narrativa é apresentada no capítulo “As mãos de
Sancha”, por um motivo: Ao ver a esposa de Escobar com outros olhos, que não os
fraternais, Bento admite um possível adultério, criando uma realidade inaceitável para
si, pois assumindo um desejo mútuo, ele estaria traindo duplamente seu amigo – por ser
este também sua alma exterior.
Bento perturba-se com a possibilidade de ter desejado a esposa de sua segunda alma
e, então, o desejo desloca-se do objeto desejado para a imagem refletida, para a alma
exterior de Bento. Dito de outra forma, ao apalpar os braços de Escobar, Bento duplica
o seu desejo, isto é, imagina as possíveis sensações que os braços de Sancha poderiam
causar nele.
No plano da autocensura de Bento, a mistura das sensações pode ser explicada se
levarmos em consideração duas descrições, uma referente aos braços de Escobar, e
outra relacionada às mãos de Sancha. No primeiro caso, o narrador assim se expressa:
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As sensações provocadas pelo contato físico com as mãos da esposa do amigo são
reiteradas ao longo de, pelo menos, dois capítulos. Em “As mãos de Sancha”,
encontramos as recorrências do enigma do olhar da esposa do amigo, para ficarmos com
uma expressão de Alfredo Bosi: “[…] Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a
expansões fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra coisa, e não tardou
que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo […]” (1997,
p.157).
Vale lembrar também a presença de um retrato de Escobar no gabinete de Bento,
que, segundo o narrador, lhe fala como a própria pessoa e reprime qualquer
manifestação de desejo pela esposa do amigo. Nota-se também que tal fotografia está
situada ao pé do retrato de D. Glória, figurando como a presença paternal: “O retrato de
Escobar, que eu tinha ali, ao pé do de minha mãe, falou-me como se fosse a própria
pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo; rejeitei a figura da
mulher do meu amigo” (1997, p.158).
Por mais que se afirme a censura (“Combati sinceramente os impulsos que trazia do
Flamengo”), o desejo irrompe: “Agarrei-me a esta hipótese que se conciliava com a
mão de Sancha, que eu sentia de memória dentro da minha mão, quente e demorada,
apertada e apertando” (1997, p.158). Medo e fascínio, atração pela mulher do amigo e
repulsa por tais desejos, sentimentos ambivalentes que encontram no retrato de Escobar
a figuração da criação do duplo.
Segundo Lisboa de Mello, “O retrato pode ser outro elemento que se presta à
representação do duplo” (2000, p.115). Essa afirmação valida nossa proposta acerca da
identidade de Bento ser obliterada pela figura de Escobar. Se o duplo é compreendido
por Clément Rosset “como tendo uma realidade ‘melhor’ do que o próprio sujeito”
(1998, p.77), Bento, por reconhecer em Escobar um ser completo, a própria
representação simbólica da masculinidade integral, acaba por meio de mecanismos
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inconscientes projetando no amigo a figura paterna ausente, como foi observado quando
tratávamos da disposição do retrato do amigo ao lado da fotografia de Dona Glória.
Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bela fotografia
tirada um ano antes. Estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão
esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida ao peito, o olhar ao
longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A
moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita
embaixo, não nas costas do cartão: “Ao meu querido Bentinho o seu
querido Escobar. 20-4-70”. Estas palavras fortaleceram-me os
pensamentos daquela manhã, e espantaram de todo as recordações da
véspera (1997, p.159).
e Escobar. Um dos dados levantados por Bento refere-se às imitações de Ezequiel dos
gestos e modos de falar de Escobar. No mecanismo de ilusão, Bento enxerga Ezequiel
Santiago, mas quer enxergar Ezequiel Escobar. Para Antonio Candido,
A partir de então, Bento se põe em dúvida a respeito das ações de sua esposa,
começando pelo enterro do amigo, onde ela, segundo o narrador, olha “[...] tão fixa, tão
apaixonadamente fixa que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas
(1997, p.161)”. Ressalta-se, ainda, seguindo o discurso de Antonio Candido, a
“cristalização negativa de um ciumento” como responsável pela imaginação de
semelhanças “inexistentes” ou “produtos do acaso”. Dessa forma, Bento passa a reparar
mais em seu filho, e achar-lhe novos aspectos, tal como é descrito no capítulo “O
debuxo e o colorido”, após a mulher chamar a atenção do esposo para os olhos do filho,
que, segundo ela, teriam a expressão dos olhos do amigo defunto; para o narrador
Referências
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ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 32 ed. São Paulo: Ática, 1997.
______. Iaiá Garcia. São Paulo: Globo, 1997.
______. Papéis avulsos. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1957.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 35 ed. São Paulo: Cultrix,
1994.
BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Dom Casmurro no divã: um estudo da
psicologia simbólica junguiana. Disponível em:
http://www.carlosbyington.com.br/downloads/artigos/pt/dom_casmurro_no_diva.pdf.
Acesso em: 26 abr 2010.
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In:______. Vários escritos. São
Paulo: Duas cidades, 1995. p.17-39.
MELLO, Ana Maria Lisboa de. As faces do duplo na Literatura. In: INDURSKY,
Freda; CAMPOS, Maria do Carmo. Discurso, memória, identidade. Porto alegre: Sagra
Luzzatto, 2000.
GEBRA, Fernando de Moraes. O ritual esotérico no Cancioneiro de Fernando Pessoa.
Londrina: UEL, 2003. (Dissertação de Mestrado).
RANK, Otto. O duplo. Rio de Janeiro: Coeditora Brasílica, 1939.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Apres. e Trad. José
Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 1998.
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relato da memória social presente nas narrativas. A partir destes aspectos e perspectivas
buscamos refletir sobre a ideologia difundida nos folhetos, nos contrapondo à
concepção de folheto de cordel enquanto mera narrativa lúdica que remete à estrutura
do conto tradicional, considerado como forma simples (JOLLES, 1976) .
Esta experiência de leitura procurou atender às diretrizes do componente curricular
Literatura das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) e dos Referenciais
Curriculares para o Ensino Médio na Paraíba (2006). Estes documentos compreendem
que uma das condições para que um texto seja tido como literário é o seu efeito estético,
ou seja, a sensação que ele produz no leitor.
A concepção norteadora do ensino de literatura aqui adotada abre espaço para a
leitura da obra literária sem que seja necessário defini-la enquanto popular ou erudita,
canônica ou não-canônica, pois procuramos evidenciar a universalidade da narrativa em
vez de salientar suas particularidades de forma pitoresca.
folhetos como “O Soldado Jogador” são citados e vendidos ainda hoje como obras
chave do gênero Folheto de Cordel produzido no Nordeste.
Seus temas são variados e atendem desde as histórias da vida de figuras míticas da
cultura nordestina, como Cancão de Fogo, até as histórias de amor e de temáticas
cômicas. Sua obra contém diversos folhetos que se tornaram ícones na literatura de
cordel, configurando-se como obras de leitura obrigatória para os que se iniciam nessa
arte, como leitores ou autores.
mãe, que já sabíamos que o detestava e por isso era um personagem do qual eles
gostavam de ver ser desprezado.
Algumas estrofes à frente, a aluna G. interrompe a leitura para questionar sobre
o valor roubado por Cancão do velho usurário, e nós voltamos ao trecho e verificamos
que ele havia roubado 5 mil réis, e F. afirma "foi pouco", visto que estávamos em um
trecho da narrativa em que Cancão consegue juntar 64 mil réis trabalhando de vendedor
de bolos, bem como para minimizar a atitude de Cancão ao se apropriar do dinheiro do
velho, já que F. já simpatizava com o personagem, se identificando com a sua esperteza
e o fato do personagem ter sempre "uma resposta" para todos os que lhe afrontavam.
A cada nova quengada os alunos se manifestavam rindo bastante, mas não
comentavam as ações de Cancão, e demonstravam certa impaciência quando
interrompíamos a leitura, dado o interesse em continuá-la a fim de conhecer o final da
narrativa.
Ao chegarmos ao final do primeiro volume, momento em que Cancão, junto
com seu amigo Alfredo, havia juntado muito dinheiro pedindo esmolas, as alunas G. e
Pe. dizem que Cancão deve mandar novamente o dinheiro para a mãe, e I. afirma que o
personagem vai mandar uma parte do dinheiro para a mãe, mas não tudo, pois ele não
pode mais voltar sob o risco de ser preso, ao que Pe. responde: “todo o dinheiro não,
mas ele vai ajudar" e a aluna E. discorda e diz que acha que Cancão é bem malandro e
"vai comprar coisas para ele e Alfredo". Os alunos F. e A. afirmam que o personagem
Cancão é "sem noção" e, junto com Alfredo, vai decidir ajudar sua mãe e o pai de seu
amigo, só para provarem que podem "se virar sozinhos".
As hipóteses levantadas se revelavam possíveis de se realizar, o que demonstra
que os alunos conseguiram refletir sobre a narrativa de forma a considerar as
informações já obtidas para imaginar os possíveis fatos que se sucederão, o que fica
claro quando a aluna I. afirma: "ele vai pegar o dinheiro e vai viajar, que era isso mesmo
que ele queria, pelo menos é o que demonstra aqui" e aponta para o folheto.
Continuamos a leitura para que eles descobrissem se alguma das hipóteses seria
confirmada. Ao lermos os versos "pra ele tudo era fácil / sem precisar ser ladrão"
perguntamos se todos concordavam com essa filosofia de Cancão. A aluna E. diz "não",
mas os demais alunos respondem "sim", então perguntamos: "ele era ladrão?" e alguns
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respondem com um sonoro "não" e I. esclarece: "ele era cafajeste" e a aluna Pe. ajuda:
"ele era muito esperto".
Entretanto, E. afirma que Cancão era ladrão porque roubava, então perguntamos
a ela: "ele roubava quem?" e E. diz: "ele roubava pra ele", sustentando que ele era
ladrão, e I. acrescenta: "mas ele roubava quem tinha muito dinheiro, ele não chegava pra
roubar um pobre" e para retrucar E. lembra: "ele roubava uma bengala!" e I. esclarece,
tentando amenizar o fato: "ele enganava!".
É perceptível que esses alunos já haviam desenvolvido o hábito de argumentar
utilizando-se de trechos da narrativa para fundamentar suas interpretações, e após as
alunas terminarem de expor seus argumentos, continuamos a leitura para observar se
teríamos mais aspectos a considerar para retornar a esta discussão.
Ao continuarmos a leitura os alunos constataram que Cancão e Alfredo
resolveram viajar, como I. havia observado que poderia acontecer. Ao ler o trecho no
qual Cancão arma um quengo para a negra, perguntamos se os alunos achavam que o
plano de Cancão iria dar certo. A aluna E. diz que não, mas os outros acham que dará
certo.
O posicionamento de E. se deve ao fato de que a turma espera que o personagem
seja castigado para que a narrativa tenha seu final moralizante e o folheto siga o modelo
popular de narrativas de forma simples, a que eles estão acostumados, como
percebemos pelos comentários da aluna G. que diz: "é , pode ser, tá começando a ficar
ruim, eles estão passando fome" e I. esclarece: "é, tá passando da metade, tá na hora já
de acontecer alguma coisa com ele".
Ao lermos o trecho em que Cancão justifica o roubo à negra, I. concorda com
ele: "é, ele ia morrer de fome! antes roubar do que a morte, né!", mas os outros alunos
ficam em silêncio, mais tarde a aluna G. diz, a respeito do comportamento do
personagem da negra: "é, a burra foi ela".
Quando chegamos ao trecho em que Cancão e Alfredo, já no Rio de Janeiro, são
pegos pela polícia, a aluna Pe. diz: "é, vai ser pego por eles, são as consequências do
que ele fez", reforçando a preferência pelo modelo de narrativa já referido.
Ao concluirmos a leitura, a aluna I. observa: "acho que é a vida que algumas
pessoas pediram. Não: que todo mundo pede a Deus, de liberdade... não sei o quê... que
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queria sair no mundo...é o que ele quis fazer e a gente não pode julgar, é a forma que ele
teve de sair e se divertir". I. reforça que é um desejo comum, mas que ninguém tem
coragem de realizar, saindo de casa para se aventurar sozinho.
Questionamos os outros alunos e G. afirma: "para ele foi bom porque ninguém
da família gostava dele, então ele não tinha o que fazer num lugar onde ninguém
gostava dele" e M. diz: "ele tinha uma certa revolta também" e E. observa; "mas ele
nunca estava livre, tinha sempre alguém atrás dele", insistindo em sua concepção de que
o personagem não se portava bem e deveria pagar pelos quengos aplicados.
Perguntamos a M. qual seria a revolta do personagem e ela esclarece: "de
ninguém gostar dele, da própria mãe chegar e dizer que nem a morte quis ele" e I. e G.
concordaram com esse argumento.
Ao retomarmos a discussão sobre o folheto lido, algumas alunas disseram se
tratar da história de "F. de fogo" e a sala passou a identificar o personagem com o aluno
F., por suas ações, e não mais com o aluno Pa. por sua aparência física. F. diz que
Cancão é a "imagem do cão" e G. acrescenta: "a imagem e a pessoa, porque era feio que
doía e aprontava igual ao Cão" e Pe. explica: "ele enganava tanta gente que acabava se
enganando” - observamos que essas são interpretações dos alunos a partir do que
haviam comentado sobre a narrativa lida.
REFERÊNCIAS
BARROS, Leandro Gomes. A vida de Cancão de Fogo. In: BARROS, Leandro G. Vida
e Testamento de Cancão de Fogo. São Paulo: Luzeiro, 2006. p. 03-21.
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Introdução
resgatar a identidade do homem negro que foi destruída durante esses anos. Pois
acredito que a nova geração (séc XXI) traz uma literatura mais engajada, que mostra o
negro de uma forma digna e não preconceituosa, diferente dos cordelistas dos séculos
XIX e XX.
Além dos folhetos, utilizarei para minha análise os conteúdos assimilados a partir da
leitura de Clovis Moura e Joel Rufino. O primeiro, em seu livro O preconceito de cor
na literatura de cordel, pontua as várias formas de preconceito que ele encontrou nos
livretos. A mais freqüente é a personificação do mal no negro, ou seja, colocar o diabo e
outros monstros como negros tanto no texto como nas xilogravuras. A zoomorfizaçao
do negro (atribuir características de animais ao homem) também esta bem presente.
Além dessas, Moura, apresenta outra característica, a inferiorização do negro presente
em quase todos os cordéis que possuem personagens negras. Se a história é sobre um
duelo, a personagem negra sempre perde; se é uma historia de amor, o negro é o marido
traído ou sempre está atrás de mulheres brancas, e a mulher negra é sempre apresentada
como objeto sexual; enfim, a maioria das personagens ruins como criminosos,
indefesos, ou crianças abandonadas são negras.
Joel Rufino dos Santos, em seu livro O que é racismo, apresenta uma reflexão sobre
as origens do racismo e sobre o “racismo á brasileira” marcado por uma falsa
democracia racial e por estereótipos zelosamente guardados dentro das pessoas e que se
manifestam no momento em que se sentem “ameaçadas”. Através desta análise,
poderemos perceber o preconceito principalmente quando não está explicito nos
livretos, mas mascarado através de figuras negras frágeis demais ou exageradamente
ruins, nunca humanas.
1
Senador norte-americano Bob Kennedy, declarou esta frase na PUC-Rio em 1967 após ser criticado
pelos estudantes que mencionaram o ódio racial existente nos EUA.
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Esses eram exibidos para a população para provar que havia uma democracia racial
no país, estabelecendo aos negros dois novos papéis na sociedade, o de sambista e o de
jogador de futebol. Atualmente também há para as mulheres o de dançarinas, cantoras, e
os papéis de empregadas ou “gostosas destruidoras de lares” nas novelas. Mas não de
intelectual. Tal afirmação é confirmada pelo desabafo da escritora afro-brasileira
Conceição Evaristo 2·:"Espera-se que a mulher negra seja capaz de desempenhar
determinadas funções, como cozinhar muito bem, dançar, cantar, mas não escrever. Às
vezes me perguntam: 'você canta? '. E eu digo: 'não canto nem danço”. (EVARISTO,
2006)
Não teria lugar para o negro brasileiro nas universidades, nas prefeituras, entre
outros, a não ser desempenhando papéis inferiores ao do branco. “O único lugar onde
negro é maioria é na favela ou na cana” (SANTOS, 1984, p.64). A prova disso é um
simples olhar para as periferias e para os centros brasileiros e observar a cor da pele
daqueles que estão no primeiro e daqueles que estão no segundo. É pesquisar a luta de
Lima Barreto e de outros escritores negros para viver daquilo que escrevem.
2
Conceição Evaristo é uma escritora afro-brasileira, doutora em literatura comparada. Fez este desabafo
em entrevista para a revista Raça Brasil em agosto de 2006 em relação a imagem da mulher negra na
sociedade brasileira atual.
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sistema de estratificação social no campo, esse preconceito não tem função para os
consumidores dessas histórias.” (MOURA, 1976, p.79).
Assim, espalham-se e fortificam-se os estereótipos atribuídos ao negro na
literatura de cordel, o inferiorizando e ridicularizando. Os mais comuns destacados em
Moura (1976) são: a mulher negra é mais ardente que a branca e por isso uma
lubricidade e uma capacidade de gozar e fazer gozar o macho branco de forma
inusitada; o homem negro esta sempre correndo atrás de mulheres brancas.
As formas mais comuns de inferiorização do negro também são apontadas no
livro de Moura: mulher negra colocada apenas como objeto sexual do homem branco,
homem negro é colocado como corno, marido traído; preconceito no casamento
interracial; criação de situações humilhantes para o negro, exaltando o branco;
identificação do negro com o diabo; idéia de que o inferno é habitado por negros.
Porém, assim como na Literatura canônica, no final do século XX e inicio do XXI,
pode-se encontrar livretos, que tem por objetivo, resgatar a dignidade do homem negro
e refletir sobre a sua condição no Brasil, como “Recordando Zumbi” de Luis Melo
(1994) e “Abolição sem libertação” de Hélvia Callou (2002), além de homenagens a
personalidades afro-brasileiras como o jogador de futebol Mané Garrincha e o músico
Pixinguinha.
3
Como as indicações bibliográficas são insuficientes, recomendo a pesquisa desses títulos na Biblioteca
Central da UEL, na sala de pesquisa em Literatura de Cordel.
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O autor descreve o negro como feio por suas características étnicas: lábios grandes
e pele negra, e finaliza a estrofe o identificando com o demônio. Além de ser
inferiorizado esteticamente, o negro é vencido pelo branco no final do cordel:
No entanto eu perdoava
A boca que me cuspia
Não porque eu possuísse
Humana sabedoria
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Além deste, há o “ABC do chifrudo” de Têo Azevedo, cuja capa aparece o rosto
alegre de um homem negro com chifres na cabeça, simbolizando um homem traído
conformado e feliz com a traição.
Agora passando para os exemplos de cordéis atuais e não preconceituosos, há o
exemplo “Recordando Zumbi” de Luis Melo (1994). Neste livreto, o poeta conta a
história do Quilombo dos Palmares e de seu fundador Zumbi dos Palmares, com o
objetivo de narrar aquilo que a História oficial não narrou e recordar aquilo que tentou-
se esconder, para assim manter viva a história de um dos heróis do povo negro. Segue
alguns exemplos que comprovam tais informações:
No Quilombo dos Palmares
Um povo pode encontrar
Aquilo que lhe roubaram
Do outro lado do mar:
O direito de ser livre
Sem ninguém para mandar.
....
Bem que tentaram esconder
Deixar ZUMBI esquecido.
Mas, hoje trezentos anos
Depois de ter sucumbido
ZUMBI se ergue do chão
Para ser reconhecido.
Considerações finais
dois fazem uma homenagem á personalidades negras e não apresentam nenhuma forma
explícita de preconceito. Porém diante das profissões das personalidades apresentadas,
jogador de futebol e músico, se faz necessário um questionamento: será que no fundo,
os folhetos acima não são a confirmação da tese de Joel Rufino sobre a burguesia negra,
ou os “negros de alma branca” já que apresentam os únicos papéis desempenhados por
negros respeitados no Brasil?
Apesar do exemplo acima, pudemos analisar exemplos de cordéis não
preconceituosos, prova de que o pensamento está mudando, principalmente o do poeta
popular, que tem um papel de extrema relevância no imaginário nordestino.
Referências
Considerações iniciais
É evidente que, ao contrário de décadas atrás, em que os textos eram levados para a
sala de aula como pretexto para ensinar gramática e portanto desconsideravam o
contexto social, essa perspectiva atua de modo decisivo no sentido de exercitar a
tolerância e a interação, levando-se em conta o discurso do Outro, de modo que esse
Outro possa se configurar como verdadeiramente um sujeito. Deste modo
compreendemos a relevância do ensino por meio dos gêneros textuais que socialmente
circulam entre nós, uma vez que esse ensino, além de ampliar a competência lingüística
e discursiva dos alunos, aponta-lhes inúmeras formas de participação social que eles,
como cidadãos, podem ter fazendo uso da linguagem.
1
É uma política pública que estabelece o diálogo entre os professores da Educação Superior e os da
Educação Básica, através de atividades teórico-práticas orientadas, tendo como resultado a produção de
conhecimento e mudanças qualitativas na prática escolar da escola pública paranaense.
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Buscando atingir esta meta, o presente projeto de pesquisa terá como objeto de
estudo os gêneros literários, visto que, além de serem a manifestação de um modo
discursivo entre vários (o jornalístico, o científico, o coloquial, etc. ), o discurso literário
é polifônico, dialógico, isto é, apresenta uma diversidade discursiva que vai além dos
limites da estrutura interna da obra, estendendo-se à leitura, e provocando no leitor
efeitos de sentido.
Tais efeitos possibilitam momentos de prazer, reflexão, identificação e catarse, pois,
como diz Aristóteles na Poética, a arte é natural do ser humano e fonte de prazer
(ARISTÓTELES, 1993, p.27). Além disso, é fonte de conhecimento, pois através da
interação do leitor com a obra, observa-se uma realidade antes não revelada pela
ideologia dominante, ampliando sobremaneira a sua visão de mundo, tornando-se um
leitor mais crítico e competente.
Portanto, a pesquisa que esta sendo desenvolvida no PDE e que será implementada
no Colégio Estadual “São Francisco de Assis” de Ivatuba, tem o propósito de
desenvolver práticas de leitura e escrita que ofereça aos alunos a apropriação dos
conceitos literários, visto que é na escola, que a grande maioria dos alunos terá
oportunidade de ter uma relação mais próxima com os gêneros literários.
Nesta perspectiva, as reflexões a ser desenvolvidas darão prioridade aos gêneros
narrativo (por meio do conto) e ao dramático, porque além de suas especificidades,
usufruem quase dos mesmos elementos, podendo desta forma estabelecer comparações,
adaptações, transposições, etc., para que o aluno se aproprie deste universo e
compreenda a natureza literária que nos faz reconhecer e ativar sentidos.
1.1. O conto
O ato de contar alguma coisa a alguém pode ser entendido como um processo
“primitivo” da vida em sociedade. As primeiras manifestações do “narrar”, segundo
Nadia Gotlib, em Teoria do Conto, estariam vinculadas à aquisição da linguagem pelo
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homem que, nas sociedades tribais, perto do fogo, reunia-se para transmissão de ritos e
mitos. Portanto, esta prática acontece desde os tempos mais remotos, os assuntos
variam tanto quanto o modo de narrar. Gotlib diz que, no início a criação e a
transmissão do conto era apenas oral, depois passou a ser registrado pela escrita, e
posteriormente, a criação por escrito de contos. A voz do contador de histórias tem o
poder de interferir na história narrada, pois ele utiliza todo um repertório no modo de
contar para conquistar o leitor, seja por meio da voz, dos gestos ou do olhar. Esses
mesmos recursos podem ser utilizados no texto escrito, mas para que se produza um
conto de caráter literário é necessário que se tenha “um resultado de ordem estética, ou
seja: quando consegue construir um conto que ressalte os seus próprios valores
enquanto conto, nesta que já é, a esta altura, a arte do conto, do conto literário”
(GOTLIB, 2006, p.13).
O conto, não se refere só ao acontecido, pois não tem compromisso com o real.
Nele, realidade e ficção não têm limites precisos. Narrativa breve, concisa, clara,
graciosa, mas ao mesmo tempo forte, que causa impacto. Utilizando o mínimo dos
meios narrativos, busca-se atingir o máximo dos efeitos, visto que centra-se geralmente
em um único conflito dramático, em que cada detalhe é significativo para atingir a
unidade de impressão, que é alcançada por meio de uma leitura sem interrupções. De
acordo com Julio Cortázar:
A temática do conto é praticamente ilimitada, quase tudo pode ser objeto para um
conto. Mas em princípio a idéia de conto estava ligada ao acontecimento, ao fato. As
formas modernas de narrativa, por sua vez, instituíram a investigação psicológica das
personagens e não apenas acontecimentos pontuais. Assim, o conto realiza-se nesta sua
capacidade de abertura para uma realidade que está além dele, para além da simples
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estória que conta. É o que afirma Julio Cortázar, em Alguns aspectos do conto: “O bom
contista é aquele cuja escolha possibilita essa fabulosa abertura do pequeno para o
grande, do individual e circunscrito para a essência mesma da condição humana”
(CORTÁZAR, 1993, p.155).
Aliar os recursos tradicionais com aqueles que vão surgindo é uma boa forma de
combinar tradição e modernidade. A narrativa pode ganhar mais qualidade quando
mistura os acontecimentos à investigação psicológica das personagens que as vivenciam
ou presenciam. Produzindo, por meio deste recurso, os mais diversos efeitos no leitor,
podendo encantar, aterrorizar, surpreender, emocionar, e isto é alcançado pela forma
de narrar, é o modo pelo qual a estória é narrada.
Mas, de acordo com Luiz Costa Lima (LIMA, 1983, p. 259), a obra se completa no
efeito que provoca no leitor, e para que ocorra tais efeitos é necessário que o leitor tenha
condições de entender a obra literária, por isso é imprescindível um contato mais
próximo com os gêneros literários, por meio de experiências individuais e coletivas de
leitura, lembrando que prazer estético, por sua vez, será resultado destas experiências.
Nas palavras das DCEs, (2008, p. 58) “Trata-se, de fato, da relação entre o leitor e a
obra, e nela a representação de mundo do autor que se confronta com a representação de
mundo do leitor, no ato ao mesmo tempo solitário e dialógico da leitura. Aquele que lê
amplia seu universo, mas amplia também o universo da obra a partir da sua experiência
cultural.”
De acordo com Sábato Magaldi, a palavra “teatro” pode referir-se tanto ao edifício
em que se realizam espetáculos, como também a uma arte específica que necessita do
intermédio do ator para ser transmitida ao público. Considerando o segundo significado,
o autor afirma que o teatro não existe sem a sua tríade, ou melhor, os seus elementos
essenciais: o ator, o texto e o público. Mas para que o teatro aconteça, é necessário o
trabalho do dramaturgo que produz os textos teatrais, isto é, a literatura dramática que
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fica a espera de um encenador, para dar vida a sua peça, para transformar a literatura em
espetáculo. Segundo Magaldi, “assim como o dramaturgo é o autor do texto, o
encenador é o autor do espetáculo.”
Magaldi (1997) afirma que o ator é o responsável por dar vida cênica à arte teatral, é
a sua presença que caracteriza o fenômeno do teatro. É aquele que materializa o texto
dramático por meio da sua voz, do seu gesto, da sua expressão. O ponto de partida,
portanto, é o texto do dramaturgo, no qual o ator encontra informações necessárias para
encarnar a sua personagem. Assim, tanto o ator quanto o dramaturgo são responsáveis
pela criação do teatro, este por produzir, criar o texto e os seus personagens, e aquele
por dar vida e personalidade às personagens descritas pelo dramaturgo.
Segundo Magaldi, a arte dramática será mais fecunda quando envolve todos os seus
elementos. O dramaturgo, ao criar a sua obra, deve preocupar-se com o público e com a
encenação, por isso o autor do texto dramático deve oferecer ferramentas por meio da
escrita (como por exemplo, as didascálias) para subsidiar o trabalho do
diretor/encenador, fazendo com que o espetáculo aconteça.
O texto dramático apresenta alguns elementos fundamentais, tais como os
destacados no texto “Operadores de leitura do texto dramático” de Sonia Pascolati
(PASCOLATI, 2009, p. 99-101). São eles:
• Ação
A ação é o elemento fundamental do texto dramático, tudo gira em torno deste
elemento. Uma peça é uma série de ações concatenadas, as quais são apresentadas
em uma sequência progressiva, decorrentes uma da outra, promovendo a progressão
da peça. Isto cria expectativas em relação ao que poderá acontecer após cada evento.
• Diálogo
O diálogo contribui para a dinâmica da ação. Por meio do discurso das personagens,
revelam-se intenções, informações importantes para a compreensão da história e
também apresentam-se dados importantes para a caracterização da própria
personagem. E além disso, é pelo diálogo que se efetiva a manipulação do outro,
situação semelhante ao que ocorre na vida real. Esta manipulação pode acontecer
não só pelas palavras, mas também por insinuações e silêncios, que são tão
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No caso do conto que é uma narrativa curta e geralmente contém um único conflito
dramático, as personagens envolvidas assumem papéis fundamentais, como é o caso de
Raquel, que apresenta transformações em sua aparência física e financeira no decorrer
da história, que é percebida por meio da fala de Ricardo “Pensei que viesse vestida
esportiva e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns
sapatões de sete léguas, lembra?”(TELLES, 1999, p.123), “__ Você está uma coisa de
linda... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse
perfume.”(TELLES, 1999, p.123), Esta transformação ocorre em função do atual
namorado, que é caracterizado por meio da sua condição financeira e sentimental. “Ele
é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos”(TELLES, 1999, p.125),
“Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente”(TELLES, 1999,
p.126). Esta lacuna na descrição física, da aparência do atual namorado, diz muito para
o conflito. As transformações de Raquel são percebidas até o final do texto, “ –A boa
vida te deixou preguiçosa? Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente”(TELLES,
1999, p.127), no desfecho do conto, quando Ricardo consegue concretizar a sua
vingança, Raquel encontra-se na condição de um animal enjaulado, “Durante algum
tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal
sendo estraçalhado. Depois os uivo foram ficando mais remotos...”(TELLES, 1999,
p.131). Ricardo, por sua vez, durante todo o texto, por meio da sua fala, enfatiza a sua
pobreza e que ela se agravou ainda mais, “Esguio e magro, metido num largo blusão
azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de
estudante”(TELLES, 1999, p.123), “ Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu
apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível”(TELLES, 1999,
p.124). Em relação a sua condição psicológica, o narrador nos deixa claro que ele não é
uma personagem equilibrada, “Ele riu entre malicioso e ingênuo”(TELLES, 1999,
p.123), “A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu,
envelhecida.”(TELLES, 1999, p.126), “Os leques de rugas se aprofundaram numa
expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a
rede de regas desapareceu sem deixar vestígio”(TELLES, 1999, p.125).
Entre os elementos que podem contribuir para a construção de sentidos do texto
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literário, estes são alguns de fundamental importância para que isto ocorra, mas o
professor deve estar atento para perceber quais são mais relevantes para determinadas
narrativas e dar prioridade a eles no momento da leitura.
Em relação ao gênero dramático, o texto selecionado foi Romeu e Julieta de William
Shakespeare e a sua escolha seguiu os mesmos critérios do conto.
As práticas de leitura a serem realizadas num primeiro momento com o gênero
dramático, buscarão proporcionar aos alunos uma maior compreensão da sua estrutura,
visto que o drama apresenta quase os mesmos elementos que o gênero narrativo, mas
que se distingue por ser “uma arte específica que necessita do intermédio do ator para
ser transmitida ao público”(MAGALDI, 1997, p.12), pois o dramaturgo, ao criar a sua
obra, preocupa-se com o público e com a encenação, por isso o autor do texto dramático
oferece ferramentas por meio da escrita para subsidiar o trabalho do diretor/encenador.
Num segundo momento, é importante mostrar aos alunos que o texto dramático
necessita de alguns elementos fundamentais, tais como: a ação, o diálogo e o conflito
dramático. Segundo Pascolati, a ação é o elemento fundamental do texto dramático,
tudo gira em torno deste elemento. Uma peça é uma série de ações concatenadas, as
quais são apresentadas em uma sequência progressiva, decorrentes uma da outra,
promovendo a progressão da peça e criando expectativas em relação ao que poderá
acontecer após cada evento. Por seu turno, o diálogo, contribui para a dinâmica da ação,
pois é por meio do discurso das personagens, que se revelam intenções e informações
importantes para a compreensão da história. Por sua vez, o conflito dramático surge das
divergências das personagens que criam obstáculos, os quais são removidos por meio do
discurso dessas personagens para realizar os seus objetivos.
É fundamental que o aluno compreenda a funcionalidade do gênero dramático, e
para que isto ocorra, é interessante, por exemplo, uma visita ao Teatro, para que os
alunos possam assistir a uma peça e posteriormente discutir em sala de aula a diferença
entre a literatura dramática e o espetáculo, comentar as estratégias utilizadas para
marcar os elementos do gênero dramático, dentre outras coisas.
Uma possibilidade que ainda se abre em termos de atividade junto aos alunos é a
transposição do conto “Venha ver o pôr do sol” de Lygia Fagundes Telles para o gênero
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dramático. Para que isto ocorra, aos alunos podem reler o texto, dessa vez já com vistas
às mudanças que imaginam ser necessárias para a adaptação ao gênero dramático,
listando as personagens e descrevendo os cenários para começar a organizar a
transposição, na qual poderão ser realizadas algumas atualizações em relação à época e
ao contexto dos alunos. Produzido o texto dramático, seria interessante realizar a
correção e reescrita dos textos, observando as especifidades linguísticas e artísticas do
gênero discursivo. Por fim, a organização da apresentação do texto dramático,
produzido pelo aluno, promovendo a interação entre os segmentos da escola, seria um
complemento especialmente interessante e dinâmico.
Considerações finais
Referências
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988. (Série
Princípios)
MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. 6. ed. São Paulo: Ática, 1997. (Série
Fundamentos)
TELLES, Lygia Fagundes Telles. Antes do Baile Verde. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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O FANTÁSTICO FANTASIOSO
Introdução
Este artigo tem como objetivo apresentar uma leitura do texto Alice no país das
maravilhas, de Lewis Carrol, à luz da teoria do fantástico, mais precisamente, a partir
das considerações de T. Todorov, em sua Introdução à literatura fantástica (1975).
“A toca do coelho dava direto numa espécie de túnel que de repente descia terra
adentro, tão de repente que Alice não teve nem um segundo para pensar em parar, antes
de despencar em algo que parecia ser um poço muito fundo” (CARROL, 2005, p.16).
No fundo deste poço, Alice encontra um fantástico país de maravilhas, isso não é
novidade. O que nos chama a reflexão é justamente o fato de não ter tido tempo para
pensar, para hesitar diante desta situação no mínimo inusitada.
Tzvetan Todorov em sua obra Introdução à Literatura Fantástica apresenta várias
questões acerca do gênero intitulado ‘fantástico’, dentre elas a posição de que o
fantástico seria o momento da hesitação do protagonista face a um acontecimento
aparentemente sobrenatural (TODOROV, 1975, p.31). A hesitação do protagonista
como condição para a instauração do fantástico, entre outras considerações de Todorov,
deu origem a esta reflexão cujo ponto central é verificar analiticamente se a Alice de
Lewis Carrol poderia ser considerado um texto fantástico. De início, colocamos as
seguintes questões: Como uma narrativa aparentemente fantástica – não natural - pode
não se inserir integralmente neste gênero? O que é e o que não é fantástico nesta obra de
acordo com a teoria de Todorov?
Este clássico da literatura escrito há mais de século é classificado, na maioria das
vezes como fantástico (em classificações de DVDs, edições contemporâneas, estudos
acadêmicos, etc.). A proposta deste trabalho é justamente delimitar o fantástico desta
obra e aplicar alguns pontos da teoria de Todorov, enquanto analisamos ainda outras
posições e estudos sobre o assunto.
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1. Considerações Fantásticas
Para Todorov, o fantástico puro estaria localizado no limite entre dois gêneros: o
estranho e o maravilhoso. O teórico dedica grande parte de sua reflexão a essa discussão
que faz com que a explicação ou a não explicação dos fenômenos sobrenaturais
exercerem uma carga essencial para a denominação do gênero fantástico.
O Sobrenatural é um tema estudado e presente há muito tempo na literatura. H.P.
Lovecraft dedica a sua obra O Horror Sobrenatural na Literatura (1987) para tratar
deste assunto. Diz que o verdadeiro conto de horror deve conter “uma certa atmosfera
de terror sufocante e inexplicável ante forças externas ignotas (...)”(LOVECRAFT,
1987, p. 4), esta tensão diante daquilo que não conseguimos explicar imediatamente
com leis naturais é o que chama de sobrenatural. A tensão que sentimos diante deste
sobrenatural é chamada de medo e o autor explica que “a emoção mais forte e mais
antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do
desconhecido (...)” (LOVECRAFT, 1987, p. 1). Todorov parte deste sobrenatural e do
natural para classificar a obra como maravilhosa ou estranha.
Resumidamente, a obra cujos acontecimentos aparentemente sobrenaturais são
explicados por leis naturais mesmo que tenham causado a hesitação fantástica , e/ou
medo, antes da explicação do fenômeno, faz parte do que o autor denomina como
fantástica-estranha. E a obra cujos acontecimentos aparentemente sobrenaturais não
podem ser explicados por leis naturais no decorrer da história é denominada fantástico-
maravilhosa. O estranho decide que as leis da realidade permaneçam intactas e
permitem explicar os fenômenos descritos, enquanto que o maravilhoso deve admitir
novas leis (TODOROV, 1975, p. 48).
O fantástico, como já dito, configura-se como o momento da hesitação da
personagem e do leitor e da decisão se o acontecimento depende ou não da “realidade”.
O puramente fantástico encontra-se na seguinte posição:
Quadro 1:
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mergulharmos nesta terra repleta de coisas e seres maravilhosos (criança que vira porco,
gato de desaparece, flores que falam, chapeleiro maluco) já nos convencemos,
automaticamente, do fantástico. Mas, como o gênero fantástico existe mesmo na
indecisão e na hesitação, Alice só nos revela o gênero da história que viveu quando a
história chega ao final:
“ – Acorde, Alice querida! – solicitou sua irmã. – Puxa, como você dormiu pesado!
- Nossa, tive um sonho tão esquisito! – contou Alice e relatou à sua irmã tudo o que
conseguia lembrar sobre essas aventuras que você acabou de ler.” (CARROL, 2005, p.
136). Assim, temos que concordar que se trata de um fantástico-estranho.
1.2 A Alegoria
1
Alguns sites em que encontramos algumas destas visões:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:FrE6yoQT8wUJ:jorge-
leberg.livejournal.com/4729.html+Alice+%2B+alegoria+da+inf%C3%A2ncia&cd=3&hl=pt-
BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-a
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:QTXqP3ULUkgJ:revistaepoca.globo.com/Edit
oraGlobo2/Materia/exibir.ssp%3FmateriaId%3D132370%26secaoId%3D15220+Alice+%2B+alegoria+da+
inf%C3%A2ncia&cd=9&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-a
http://www.bocc.uff.br/pag/bocc-publicidade-pimentel.pdf
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resolver problemas que existem fora dela e traduzi-los independentemente, afinal isso
seria, mais uma vez, diminuir a literatura. (TODOROV, 1985, p. 118).
Continuo a análise parafraseando, mais uma vez, o teórico em estudo: nem toda
ficção e sentido literal está relacionada ao fantástico, mas a recíproca é verdadeira (
TODOROV, 1985, p.84). Isto é, o sobrenatural que provoca o fantástico surge com
freqüência de tomarmos o sentido figurado ao pé da letra. Assim o maravilhoso realiza a
união entre o crer e o não crer no que se diz, ou seja, propõe a nós leitores que
acreditemos sem acreditar realmente e resolve o dilema provocado pelo fantástico.
Vale afirmar ainda, conforme visto, que “não há um fantástico fechado, porque o que
dele conseguimos conhecer é sempre uma parte e por isso o julgamos fantástico.”
(CORTÁZAR, 1993, p. 178), assim não deixamos de chamar uma obra de fantástica por
decidirmos que ela pertence ao gênero “estranho”, quando terminamos de ler. Em Alice
ocorre o que chamamos, e já discutimos, de fantástico-estranho, que nos deixa apenas
no estranhamento que é, ao fim, explicado por razões naturais, ou seja, Alice estava
sonhando. Mas isso não invalida todo o discurso utilizado até chegar ao estranho.
O narrador mais propenso, segundo Todorov, ao fantástico, sem desmerecer nenhum
outro, é aquele que é também personagem, um “homem médio” em que todo leitor pode
se reconhecer, pois assim submeteríamos a sua narrativa, diante do sobrenatural, à
verdade 2, afinal como narrador não duvidaríamos das suas palavras, mas enquanto
personagem ele pode estar mentindo. Como o fantástico exige a dúvida este narrador-
personagem esta configuração narrativa estaria muito propícia ao fantástico, pois se o
narrador é apenas observador 3 nos atira direto para o fantástico sem espaço para a
hesitação.
Mas o narrador do clássico em foco constrói algo inusitado. Parece ser aquele tipo de
narrador observador que nos faz transportar diretamente para o maravilhoso: “Alice
2
Verdade aqui usada dentro da obra, pois “toda literatura escapa à categoria do verdadeiro e do falso”
(TODOROV, 1985, p. 91)
3
Aquele que conta a história em terceira pessoa fazer parte do elenco de personagens.
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estava começando a se cansar de ficar sentada ao lado de sua irmã, sem nada pra fazer, à
beira do riacho”(CARROL, 2005, p. 15).
O narrador conhece muito da história e até dos pensamentos da personagem, como
um bom narrador observador que tudo sabe e tudo vê, soberano:
Alice abriu a porta e viu que ela dava para uma pequena
passagem, não muito maior que um buraco de rato. Ela se
ajoelhou, deu uma espiada lá dentro, e viu um jardim. Era o
jardim mais gracioso que já se viu! Ah, como ela gostaria de sair
daquele salão escuro e passear naquele jardim, por entre os
canteiros de flores e fontes de água fresca... Mas como é que ela
iria atravessar aquela porta tão pequena, que mal dava para
passar a cabeça? (CARROL, 2005, p. 19)
Porém, esse narrador que se espera que nos jogue diretamente para o maravilhoso, ao
final surpreende por revelar o estranho a partir do processo já comentado anteriormente.
O discurso fantástico presente na obra é composto - ademais do narrador, do sentido
literal e da construção do estranho - de elementos, isto é, temas fantásticos, cujos temas
está ligado principalmente ao domínio do olhar. Ou seja, entendemos o que se passa no
país das maravilhas a partir do que Alice vê, os elementos sobrenaturais são
acompanhados pela introdução de algo que ela está vendo.
Stephen King, em Dança Macabra (2003), comenta sobre a visão na narrativa de
horror: “O horror também gera uma reação física, para nos mostrar que algo está
fisicamente errado” (2003, p.30). Nesse sentido é que afirmamos que Alice traz muito
de anormalidades e monstros como é o caso da criança que se transforma em porco:
E olhou novamente para os olhos dele para ver se havia
lágrimas. Mas não havia.
Se por acaso você estiver se transformando num porco,
queridinho – disse a menina, seriamente - não vou querer mais
nada com você. Tome cuidado!
A pobre criaturinha soluçou novamente (ou grunhiu, porque era
impossível distinguir), e depois ficaram em silencio por um
tempo. [...] Desta vez não havia mais dúvida nenhuma: a
criatura era mesmo um porco (CARROL, 2005, p.72).
Alice estava sonhando, somos conduzidos junto com ela para a segurança da “realidade
conhecida”, no entanto o país das maravilhas continua ecoando em nossa sensibilidade e
hesitamos, ainda, entre acreditar ou não que aquele sonho acabou. Talvez a recorrência
das leituras e releituras da Alice na cultura contemporânea esteja nos dizendo sempre
que o aquele sonho das maravilhas de Alice, na verdade, não acabou.
Conclusão
Assim, depreendemos dessa análise que a arte literária é versátil e nos oferece inúmeros
caminhos para percorrer, surpresas, descobertas e maravilhas, da mesma forma
vivenciada por Alice naquele estranho país que percorreu.
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Referências
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? Trad. Nilson Moulin. São Paulo, Companhia
de Bolso, 2007.
CARROL, Lewis. Alice no país das maravilhas: Trad. MEIRA, Márcia Feriotti. São
Paulo, Martin Claret, 2005
CORTAZAR, Júlio. Valise de Cronópio. Trad. JR, Davi Arrigucci; BARBOSA, João
Alexandre. São Paulo: Perspectiva, 1993.
DEORSOLA, Lívia. Alice, nossa heroína e inspiradora. Disponível em: <
http://editora.cosacnaify.com.br/ObraEntrevista/10169/20/Alice-no-Pa%C3%ADs-das-
Maravilhas.aspx>, acesso em: 29, out, 2010.
FLETCHER, A. Allegory. Ithaca, Cornel University Press, 1964.
KING, Stephen. Dança Macabra, Trad. IBAÑEZ, Louisa. Rio de Janeiro, Objetiva,
2003
LOVECRAFT, Howard Phillips. O Horror Sobrenatural na Literatura: Trad. LINKE,
João Guilherme. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1987.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica: Trad.CASTELLO, Mario
Clara. São Paulo, Perspectiva, 1985.
VAX, L. L’art et al Littérature fantastiques. Paris, P.U.F., 1960
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1
Trabalho orientado pelo professor Doutor Sérgio Paulo Adolfo.
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viva, de acordo com Halbwachs (2004), a partir de suas lembranças ligadas às narrativas
das lendas e mitos contados por sua avó materna. Nas palavras de Lu:
E falou de Lueji, porque a foi buscar ao fundo dos tempos para firmar
raízes e a amparar e como pensava dançar a rainha do seu coração e
como as versões se transformavam por influência da música de
marimbas e do lago que criara em sonhos acordados. (PEPETELA,
1989, p. 311)
finalidade de melhor olhar para o romance que ora analisamos, e não pretendemos
aprofundar, em tão curta comunicação, as consequências da presença portuguesa em
Angola, que apresentaremos em linhas gerais, apenas para situar a questão da diáspora
no romance, não se constituindo nosso objetivo nesse trabalho.
O conceito de tradução, exposto acima pelo teórico, abarca as identidades que devem
ser constituídas pelas populações que sofreram com o deslocamento de seu território,
principalmente, as que foram arrancadas de seu país. Mas, ao observar as condições de
Luanda, uma cidade constituída pela diversidade cultural, não podemos deixar de
imaginar que lá ocorre a mesma necessidade de se negociar o tempo inteiro com as
culturas e deste fazer resultar uma nova identidade.
Devido aos deslocamentos de populações do interior do país, somados a todos os
tipos de migrantes, descendentes destes, enfim, consideramos que a proposta de
construção de identidade complexa, permeada por todas as contradições que
pressupomos existir em Luanda.
Estamos apenas imaginando uma parte da questão ao pensarmos as condições da
capital, mas segundo Luansi (2010), a separação arbitrária dos povos, pelo
estabelecimento de fronteiras, primeiro pelo colonizador, depois por acordos
internacionais, que não respeitaram os “Estados precoloniais (nações étnicas) que foram
constituídos ao longo de vários séculos de movimentos migratórios bantu”, torna a
questão da unidade de Angola um problema de difícil solução.
Mas voltemos novamente a atenção para a questão da diáspora no romance. Na
primeira aparição de Lu, na página 26, a moça caminha apressada e já a encontramos
envolta no mistério da Lunda, e no projeto indefinido que a persegue, a criação do
bailado:
Lu as tinha de outra ordem. Raramente pensava no próximo ano 2000.
Ouvia música indefinida de marimbas, procurava algo desconhecido em
livros sobre a Lunda, só porque a avó viera de lá para Benguela e
encheu a infância dela de lendas e estórias de feitiços, cuidado menina,
teu pai não acredita porque é branco, mas eu vi muita coisa, vivi muito,
sabedoria antiga, não despreza só. (PEPETELA, 1989, p. 27)
construção dos dicionários da língua Umbundu, foi importante para a separação, a partir
de bases linguísticas, da língua em diferentes dialetos, o que fomentou ainda mais
divisões entre as etnias.
A questão da língua nos interessa apenas para apontar mais essa dificuldade na
construção da identidade, na condição de diáspora da personagem Lu, que fala
português, mora em uma cidade em que as diferentes línguas e dialetos convivem nas
ruas. Esses elementos nos ajudam a perceber que, apesar do deslocamento espacial não
significar deslocamento no sentido de mudança de país, Lu está relativamente longe de
seu local de pertencimento ancestral.
Essa atualização do mito, em que se tem a repetição do fazer, o rito como ato criador,
é apresentada a partir da construção do bailado, mas não fica apenas nessa condição. Há
o desdobramento dessa atualização no plano do conteúdo da história narrada e na forma
da narrativa.
No plano na narrativa, esse enredar, que atribuímos ao narrador, vai acontecendo
gradativamente, pois se no início do romance há a demarcação exata do tempo,
separando a história de Lueji e de Lu, que são contadas em paralelo, como indica os
títulos dos primeiros dois capítulos: “quase quatro séculos atrás (pelo menos)...” na
página 9, no qual encontramos Lueji, e na página 26: “Quatro séculos depois
(amanhã)...” que marca o início da história de Lu.
No decorrer da narrativa essas marcas vão se esgarçando, conforme a personagem se
apropria da história da ancestral, tornando nítida a construção do bailado, a narrativa
perde as marcas de separação dos tempos, que gradativamente vai se amalgamando,
pois o que no início era separado por capítulos, passa a ser por parágrafos, e depois não
há nem essas divisões, o narrador na mesma frase une os tempos. Podemos perceber um
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Dessa forma, no plano estético o narrador rompe com as marcas que separavam as
histórias narradas. Esse fragmento acima é rico, pois no mesmo momento em que Lu é
chamada a viajar a Benguela, para a casa do pai, pois a avó se encontra doente e a
própria Lu encontra-se passando por atribulações também. Essa passagem não apenas
ilustra o rompimento da narrativa no plano estético, conforme apontado acima, mas há
mudança no plano de conteúdo, como veremos.
No plano do conteúdo, Lu avança na construção do mito e o atualiza, e assim,
também gradativamente vai se misturando a ele. O tempo ganha outra configuração,
com a demarcação esgarçada apontada acima, e assim como a história passa a não ter
marcas de separação narrativa, a vida de Lu aproxima-se da de Lueji.
No fragmento abaixo encontramos o exemplo do início desse procedimento, quando
Lu não tinha claro ainda como seria o bailado, e todas as coisas começavam a dar
errado, até sua amizade foi comprometida com Uli e Marina, e a apresentação do
bailado que estavam ensaiando fora cancelada, ela começa a considerar, ainda não de
forma totalmente séria:
Espíritos? Quem sabe os seus males não vinham daí. Disparate, agora
vou virar feiticista? Havia no entanto coisas estranhas. Estórias que a
avó contava e que nada podia explicar. (PEPETELA, 1989, p. 165)
Mas quando Lu, mais adiante, compunha uma passagem do bailado, imaginando a
cena a ser dançada, na qual Lueji está envolta pelos espíritos, em angústia, e a emoção
necessária para a criação e interpretação da rainha a esgota, Lu reflete:
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Esta cena ainda me mata. Mas é essencial, não dá para fugir. Sou eu ou
Lueji? Se a vou dançar, ela sou eu, pois é minha criação. Não é peso
demais criar uma Lueji? Eu? Tão fraca e sem espíritos protectores?
Inútil tentar escapar, só na minha fraqueza posso encontrar a força. E
nela. (1989, p. 169)
Por esse fragmento, após o qual ocorre não apenas a melhora física da avó, uma vez
que seus males provinham do espírito que perturbava a neta, mas a disposição de Lu
também muda, percebemos a tradição começando a ditar os caminhos da personagem.
Lueji surge assim mais forte, conforme avança a narrativa, e as decisões que esta precisa
tomar na construção da estória, que Lu está contando.
Ora, apesar do Lueji ser um bailado moderno a partir da dança
tradicional, precisava da base clássica para a dança de pares. Aí estava o
mambo e já a Directora se arrependia da sua ideia. E Lu apertava o
amuleto e invocava a centavó, ajuda-me que isto é o mais difícil de
tudo. (PEPETELA, 1989, p. 429)
narrativa de Lu funda outra vez a história de Lueji, e esta ao ser representada ganha
força, passa a ser a verdade do bailado,
O mito é pois a história do que se passou in illo tempore, a narração
daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do
Tempo. “Dizer” um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma
vez “dito”, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica:
funda a verdade absoluta. (ELIADE, 2008, p. 84)
Referências
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. BENOIR, Laís Teles. São Paulo:
Centauro, 2004.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. SILVA, Tomaz Tadeu
da; LOURO, Guaracira Lopes. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
LUANSI, Lukonde. Angola: movimentos migratórios e estados precoloniais –
identidade nacional e autonomia regional, disponível em:
<http://www.zmo.de/angola/Papers/Luansi_(29-03-04).pdf>, acesso em: 20, mar, 2010.
MACEDO, Tania. Luanda, cidade e literatura. São Paulo: Editora Unesp; Luanda
(Angola): Nzila, 2008.
MOORE, Carlos. A África que incomoda: sobre a problematização do legado africano
no quotidiano brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
PEPETELA. Lueji, o nascimento de um império. Porto – Portugal: União dos Escritores
Angolanos. 1989.
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Introdução
É inegável que exista uma grande diversidade de temas na obra de William
Shakespeare. Diante dessa variedade, muitas adaptações de suas obras foram realizadas,
tanto no que se refere à forma literária convencional, ou seja, o texto escrito, quanto às
outras formas semióticas de apresentação de uma obra literária, como os filmes. Nesse
sentido, pode-se considerar a obra shakespeariana como uma das fontes canônicas mais
adaptadas atualmente. Além disso, sua obra é, muitas vezes, base para o estudo de
língua e literatura estrangeira. Nesse contexto, o governo do Estado do Paraná,
concernente à Língua Estrangeira Moderna, adotou, na rede pública de ensino, um livro
didático contendo uma unidade completa tratando da comédia The Taming of the Shrew
(A Megera Domada), de William Shakespeare e uma das suas adaptações para o cinema
Ten Things I Hate About You (10 Coisas que eu Odeio em Você) (1999), do diretor
estadunidense Gil Junger.
Assim, este trabalho tem por objetivos: a) verificar se a unidade didática está em
consonância com o ensino de línguas norteado pelo letramento crítico; b) observar como
a peça shakespeariana se relaciona com sua adaptação fílmica; c) averiguar a circulação
da literatura de língua estrangeira em contextos escolares brasileiros, especialmente em
suas formas multimodais, já que a literatura aqui circula também no meio
cinematográfico.
1. Revisão Teórica
Adaptações de obras canônicas é algo comum em nossa sociedade, no entanto, por
muito tempo tomaram-se adaptações por obras de segundo plano, como algo de menor
valor, uma vez que poderiam “deturpar” a obra dita original. Todavia, o próprio
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Shakespeare, de certa forma, adaptou muitas de suas peças, partindo de um enredo pré-
existente e desenvolvendo suas próprias estórias. Assim, para base teórica sobre
adaptação/tradução e multimodalidades tem-se Clüver (1997), Diniz (2003), Amorim
(2005), além de (2006), Kleiman (1995), Cervetti, Pardales & Damico (2001), Jordão
(2003), para dar suporte aos estudos de leitura e letramento crítico.
Os termos adaptação e tradução por vezes se confundem. Muitos autores consideram
a adaptação como um texto que carrega em si uma mudança do texto original e a
tradução como um texto em que busca reproduzir em outra língua o conteúdo e a forma
do texto original (AMORIM, 2005). Contudo, tais conceitos variam de acordo com um
autor ou outro.
Nesse artigo, o processo tradutório é entendido como aquele que não deve ser
concebido apenas como um processo em que um texto original é transformado em outro
em outra língua, e que o resultado da tradução tem de ser fiel ao original, mas deve ser
entendido como aquele em que o texto de origem e o texto alvo são signos um do outro.
Nesse viés, a tradução também é tida como um processo de transformação do texto
fonte e ainda, mais importante, estabelece-se uma referência entre ambos os textos em
que suas relações evidentes ou não expressem um tipo de reconhecimento de um texto
como signo do outro (DINIZ, 2003; p.13). Desse modo, o teor semântico de tradução
assemelha-se com o de adaptação ─ mais comumente usado como aquele que transmuta
um texto; não importa que mudanças sejam feitas, contanto que possam se estabelecer
relações entre o texto original e o adaptado/traduzido.
Levando em conta tradução como textos pertencentes ou não à linguagem verbal ou
como transposições de um texto literário pode-se dizer que os filmes também são uma
forma de tradução. Clüver (1997) e Diniz (2003) trazem o conceito de tradução ou
transposição intersemiótica, que é aqui entendido por multimodalidade, uma vez que
consideram-se outros modos de representação de um texto, mudam-se os códigos e os
meios de significação do texto original, em outras palavras, passa-se da linguagem
verbal, escrita no papel, para a imagem, o áudio-visual. Então, entendem-se as
adaptações fílmicas como uma das formas multimodais de se apresentar um texto
literário.
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o clichê que se prega é que os alunos não lêem? Mas qual é o sentido real de leitura
atualmente? Como e quais os tipos de literatura que circulam entre os jovens e de que
forma isso contribui para a sua formação enquanto leitor? Jordão (2003) comenta:
muitos considerem que os alunos não lêem, pois tais livros não fazem parte do conteúdo
dado em sala de aula. Eles de fato lêem, só não lêem o que é dito leitura de verdade.
Entretanto, cabe ao professor aproveitar essas deixas para que, se de fato importa, o
cânone seja trabalhado, uma vez que obras das séries Harry Potter e Twilight trazem em
suas sagas muitas vezes referências a obras consagradas, como, por exemplo, várias
referências à mitologia grega e latina, em Harry Potter, e a Shakespeare (Romeu e
Julieta) e Emily Brontë (Wuthering Heights - O Morro dos Ventos Uivantes) em
Twilight. A intertextualidade se faz, mas os alunos estão hábeis para percebê-las e
entendê-las?
Sem contar que o contato com os livros supracitados começou a partir do momento
em que os filmes foram lançados no Brasil. O conhecimento de tal literatura era mínimo
até o momento em que a febre dos filmes Harry Potter e Twilight estourou no país. E é
nesse contexto que o trabalho com as multimodalidades se encaixa. Muitas pessoas
conhecem e já assistiram a adaptação cinematográfica Ten Things I Hate About You, e,
ainda mais, conhecem também a telenovela O Cravo e a Rosa, transmitida pela Rede
Globo, mas a maioria não sabe que tais textos são adaptações da peça shakespeariana. A
identidade leitora, mesmo que seja fundamentada em adaptações de obras canônicas ou
na literatura considerada não canônica, já vem sendo construída nesses alunos, pois há o
contato com essa “outra” forma de leitura, mesmo que a curiosidade deles possa ter
partido de um filme ou um livro sobre um bruxo, um vampiro ou uma garota feminista
sendo conquistada por um bad boy.
Em uma análise simples, o enredo da peça e do filme são os mesmos, apenas sua
forma de apresentação é modificada. Os elementos que se modificam mais visivelmente
são a linguagem, a construção do espaço, tempo e personagens, mas não é foco desse
trabalho analisá-los, uma vez que a mudança desses elementos se faz necessária já que a
adaptação cinematográfica “moderniza” a obra de Shakespeare. Caso diferente ocorre
na adaptação de The Taming of the Shrew feita por Franco Zeffirelli, em 1967. Esta traz
excertos completos da peça como parte dos diálogos dos personagens e é considerada
uma adaptação mais “fiel”, tentando reproduzir as mesmas falas, cenário e personagens.
Ler e escrever em língua materna são habilidades que vêm sendo construídas na
criança desde seus quatro ou cinco anos de idade, mas ler “de verdade” e não apenas
decodificar as palavras ensinadas pelos professores é realmente desenvolvido nesses
alunos desde o começo da alfabetização? Os alunos são levados a ler criticamente? O
letramento crítico postula que o sentido (s) do texto deve ser visto como um processo de
construção, não apenas decodificação, mais que isso, o sentido (s) de um texto é
entendido em um contexto social, histórico e não somente um produto da intenção de
um autor. Ler, para o letramento crítico é um ato de conhecimento do mundo e meio de
transformação social (CERVETTI et al, 2001; p.5).
Na concepção de letramento exposta por Kleiman (1995), esse fenômeno extrapola o
mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas agências que são legitimadas a incluir os
sujeitos no mundo da escrita. Pode-se dizer, então que
a escola, a mais importante das agências de letramento,
preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas como
apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o
processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico),
processo geralmente concebido em termos de uma competência
individual necessária para o sucesso e promoção na escola. Já
outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua
como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento
muito diferentes (KLEIMAN, 1995; p.20).
Dentro desse foco, traz-se a idéia de que a literatura em sala de aula não deva ser
trabalhada apenas como meio para aquisição da língua, no caso do ensino de língua
inglesa, mas, como aquela que traz em si aspectos socioculturais da língua aprendida.
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2
“Do you want to learn the real English? We are talking about the language spoken by young people
with slang, idioms and short forms. Do you know how the daily routine of a North American high school
is? Are you curious to compare their schools with ours here in Brazil? What does William Shakespeare,
th
an English playwright of the 16 century, have to do with those issues? And do you know why “10
Things I Hate About You” is part of this purpose?” (LD, p.13).
3
The film “10 things I hate about you” is a 1999 American production, staring Julia Stiles and Heath
Ledger, in the lead roles. The film is a romantic comedy which focuses on teenage lifestyle. It is inspired
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by a famous Shakespeare’s play called “The Taming of the Shrew”. Let’s talk a little about William
Shakespeare first!
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Nessa atividade, fica claro que a falta de contextualização sobre os temas da peça
shakespeariana prejudica o trabalho. Sem saber o que se passa na comédia, o aluno não
será capaz de argumentar ou refletir sobre a peça e o filme e as relações existentes entre
os dois. Nesta parte, seria muito interessante discutir a cena do filme em que Kat tem
uma certa “discussão” com o professor de literatura, em que ela pergunta porque não
são estudadas autoras (de abordagem feminista) como Simone de Beauvoir, Sylvia Plath
ao invés de Hemingway que é um autor misógino, segundo a personagem Kat. Daria
para se trabalhar, nesse sentido, o tema principal da peça – a subjugação da mulher –
concomitantemente à citação da unidade didática e a cena do filme. Assim, trabalhar-se-
ia a comunicação oral dos alunos com as suas argumentações sobre o assunto como
parte do letramento.
Porém, as atividade que se seguem não têm relação com a citação, tratam das
diferenças e similaridades entre os contextos escolares do Brasil e dos EUA, entre as
diferenças de comportamento dos adolescentes daqui e de lá. São, no entanto, atividades
que mostram o objetivo inicial da unidade, que era o de comparar os contextos
brasileiros e norte americano, mas não se relacionam com a citação acima exposta.
É apenas na última questão da atividade que o assunto do poder patriarcal é
colocado:
A peça ‘A Megera Domada’ mostra aspectos do chauvinismo masculino que
era comum na época de Shakespeare. Às mulheres não era permitido ter
opiniões. Katherina é uma personagem revolucionária, porque ela se recusa
a obedecer. Você pode ver esse tipo de preconceito contra as mulheres no
filme, também? E na sociedade moderna? Isso ainda acontece? Por quê? 4
(LD, p.166; minha tradução).
4
“The play “The Taming of the Shrew” shows aspects of male chauvinism that were common in
Shakespeare’s time. Women were not allowed to have opinions. Katherina is a revolutionary character,
because she refused to obey. Can we see this kind of prejudice against women in the film, too? How
about in modern society? Does it still happen? Why?”(LD, p.166).
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caso) em sala de aula e os temas poderiam ser trazidos para a realidade dos
adolescentes, uma vez que a questão de “popularidade” não existe só nos colégios norte
americanos.
Nesse sentido, o aluno estaria ciente do gênero estético e dos gêneros textuais que
estão sendo estudados (drama, filme, música, e assim por diante), e, também, da própria
literatura, uma vez que, para ele se apropriar efetivamente da “experiência estética” ele
deve conhecer aquilo que está sendo estudado, por meio da mediação do professor. Mas
o que percebemos é que o LD não dá margem para que isso aconteça, boicotando as
chances de a literatura (e dos gêneros citados) circular efetivamente, usando-a como
mero pretexto do ensino de língua estrangeira.
Conclusão
Como aluna que um dia fui, o trabalho com filmes em sala de aula era visto como o
mesmo que “enrolar” ou “matar aula” e isso não se modificou muito com o passar dos
tempos. Essa visão pode ter sido formada pelo fato de que muitas vezes os filmes são
trabalhados apenas como mero entretenimento. De fato, esse é o objetivo do cinema. No
entanto, quando se fala de adaptações cinematográficas de obras literárias, o exercício
delas em sala de aula pode ser um forte aliado, principalmente nas aulas de língua
estrangeira.
Muitas vezes a literatura canônica é de difícil acesso aos alunos, pois a linguagem é
mais elaborada e os assuntos são distantes da realidade deles, por esses motivos, muito
se fala que os alunos não lêem. Contudo, grande parte dos alunos está familiarizada com
obras canônicas, por meio de adaptações, muitas vezes, sem saber.
Como visto, a unidade didática analisada preconiza o filme. Isso é um ponto muito
positivo, uma vez que não enfatiza que a leitura do cânone é mais importante. Todavia,
não discute os vários temas que poderiam ser discutidos em sala de aula, como a
subjugação da mulher, a busca pela popularidade, as diferenças de “tribos” – como é
nos EUA e como é aqui -, entre outros assuntos. Nesse sentido, entende-se que a
adaptação foi apenas usada como uma das formas de multimodalidades, mas não foi
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Referências
1
Sobre o estudo da recepção crítica de O amanuense Belmiro em 1937, ver livro publicado em 2006, pela
Editora AnnaBlume, A recepção crítica de O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos (1937).
2
Segundo artigo publicado no jornal Minas Gerais, o romance de Cyro dos Anjos foi dado à publicidade
em 14 de outubro de 1937: “Será posto hoje nas livrarias O amanuense Belmiro. Editado pela sociedade
“Os amigos do livro”, que o intelectual Cyro dos Anjos vem dar à publicidade, será posto hoje à venda
nas livrarias” (PUBLICAÇÕES. Minas Gerais. Belo Horizonte, 14 out. 1937).
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de uma crítica que toma como padrão de referência uma tradição da prosa brasileira de
ficção, que é de se ligar, explicitamente, à realidade nacional. Um outro fator que
contribuiu para que Cyro dos Anjos fosse enquadrado como intimista foi a relação
estabelecida entre sua prosa e a tradição mineira. Fundado numa peculiar visão do fato
humano, o “mineirismo” seria, antes de mais nada, um mundo construído sobre a
introspecção, daí raramente se valer do realismo objetivo, da descrição minuciosa de
ambientes, das sugestões da natureza. Um último fator vai de encontro à nota dominante
da recepção crítica de O amanuense Belmiro em 1937, que é a vinculação com
Machado de Assis.
Se por um lado a recuperação da fortuna crítica de O amanuense Belmiro nos dá a
conhecer a origem de “certas” leituras que, não raro, se proliferam ao longo dos anos,
por outro, ela simultânea e contraditoriamente ajuda a romper com esse estado de
coisas, abrindo assim espaço para uma revisão daquilo que se perpetuou como lugar-
comum.
Flagrante de uma “outra” maneira de ler O amanuense Belmiro porque distante da
polarização que reduziu a ficção de 30 a dois blocos estanques, o dos que faziam
romance social e o dos que escreviam o romance psicológico, está Antonio Motta do
Valle que, em janeiro de 1938, já apontava para exploração do especificamente
brasileiro, revelando “a mesma raiz de tragédia brasileira” dos romances cíclicos de
José Lins do Rego: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933) e, sobretudo, Bangüê
(1934). Para Motta do Valle, a afinidade “entre essas duas expressões do romance
nacional está no personagem central, nesse tipo de raça, de rural decaído”, pois neles se
esconde o drama “da industrialização, da emigração urbana e da decadência do
patriarcalismo rural” 3. Também João Etienne Filho, em artigo publicado em 21 de
outubro de 1945, põe em xeque essa discussão, alertando que “passa por ridículo”
aquele que ainda acusar Cyro dos Anjos de escritor “puramente literário”, de “escritor
3
Sobre essa releitura de O amanuense Belmiro, ver ensaio publicado no livro Dispersa Memória: escritos
sobre representação e memória na literatura brasileira, de 2009, p.167-180.
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gratuito”, porque para ele o romancista mineiro “a seu modo, participa também da
realidade, do movimento, do espaço, e vai dando o seu testemunho, lá a seu jeito”:
O fato de Cyro dos Anjos ter inscrito as pautas da realidade nacional na sua forma
literária, a partir da qual interiorizou e dramatizou a estrutura e as relações sociais do
país, ou por ter fixado a situação histórica brasileira por “processos sutis de arte” e,
portanto, “com a intenção de (não) servir para a arte social”, é que a tensão histórica que
permeia O amanuense Belmiro passou despercebida pela crítica literária ou realizada
apenas de forma parcial, por conta da “preponderância da preocupação com o problema
sobre a preocupação com a literatura”, segundo afirma Antonio Candido, em revelador
ensaio intitulado A Revolução de 30 e a cultura (1987, p.196).
A partir de 1983 começaram, entretanto, a pipocar trabalhos acadêmicos que
privilegiaram o estudo de O amanuense Belmiro sob a perspectiva social, com o
objetivo óbvio de descristalizar um dos lugares-comuns instituídos pela crítica literária
desde o seu lançamento: caráter puramente intimista do romance. Vale dizer que a
minha tese de doutorado que investigou a recepção crítica de O amanuense junto à
imprensa e ao meio acadêmico, no período de 1938 a 2001, a relação entre a estrutura
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romanesca e o meio social foi a abordagem ‘preferida’ para analisar o romance – das 17
pesquisas seis escolheram este enfoque 4.
O primeiro trabalho que tratou dessa relação entre texto e contexto foi o de Dulce
Maria Viana Póvoa, em dissertação de mestrado realizada na PUC/Rio de Janeiro, em
1983. A autora propôs-se a analisar três personagens da ficção brasileira do século XX,
com o objetivo de caracterizar os impasses e a problemática do intelectual na sociedade.
São eles: Policarpo Quaresma, do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto; Belmiro Borba, de O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, e Eduardo
Marciano, de Encontro Marcado, de Fernando Sabino. Segundo a autora, a crise de
valores que Policarpo, Belmiro e Eduardo vivenciam, metonimiza, subrepticiamente, os
problemas históricos reais do intelectual brasileiro.
Outro trabalho que associa a estrutura de O amanuense Belmiro à sociedade
brasileira é a dissertação de mestrado de Vera Márcia P. S. Vidigal Milanesi 5, Para uma
interpretação de Cyro dos Anjos, concluído em 1988. O objetivo da autora foi
contribuir para uma visão mais abrangente da obra romanesca de Cyro dos Anjos, que
até então estava restrita aos seus dois primeiros romances, O amanuense Belmiro e
Abdias, com menosprezo ou esquecimento do terceiro, Montanha. Para autora, o
universo romanesco cyriano delineia conflitos de forças histórico-sociais.
Diferente dessa modalidade mais comum de estudo que estabelece e descreve as
relações entre a sociedade e as obras literárias, outros três pesquisadores entenderam o
fator social não como uma tensão que atua de fora para dentro, mas é dado
composicional do próprio texto, que o estrutura e internaliza. Isto é, tomaram o traço
social como elemento que fundamentalmente atua na organização interna do romance,
de maneira a compor o seu significado. O que antes era dissociado, de um lado fator
externo, de outro estrutura, funde-se num bloco indissolúvel.
Exemplar no sentido de prezar pela integridade de O amanuense Belmiro enquanto
fusão de fator externo e interno é a tese de doutorado de Marlene Bilenky, intitulada A
4
Tese de doutorado concluída em 2005, sob o título As leituras de O amanuense Belmiro: da crítica
jornalística à crítica universitária, pela Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis, a ser publicada
pela Editora AnnaBlume, ainda neste semestre.
5
Trabalho posteriormente publicado pela Editora Arte & Ciência.
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6
Também sob o título de Romance da Urbanização, esta pesquisada foi posteriormente transformada em
livro, publicado em 1999, pela EDIPUCRS.
7
Com o mesmo título, o autor publicou o trabalho pela Edusp, em 2006.
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Referências
ADONIAS FILHO. O romance brasileiro de 30. Rio de Janeiro: José Olympio: 1972.
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1978.
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___. Estratégia. In: Brigada ligeira. São Paulo: Unesp, 1992. p. 79-85
CASTELLO, J. A. A Literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). São Paulo:
Edusp, 1999. v. 2.
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
MONTENEGRO, Olívio. O romance brasileiro. 2a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1951.
sua família, que esperava um dia ver nele as virtudes de herói épico dos seus
antepassados.
Sabe-se, pelo relato, que o narrador se trata de um médico retornado da Guerra
Colonial, que foi casado, tem duas filhas e vive solitário em seu apartamento. O
personagem, em vez de glória, mostra seu fracasso, enquanto ser humano, e de Portugal,
como país que se prende a um projeto imperial anacrônico. Com o término da guerra, a
grande quantidade de ex-combatentes, quando retornada, foi marginalizada na
sociedade portuguesa. Para o personagem, a vivência dos horrores da guerra
impossibilita-o de efetivar o retorno à pátria, retomando suas relações sociais. Nessa
situação marginal em relação à sociedade, a pátria torna-se irreal para o narrador, sendo
substituída pela memória da África: “O certo é que, à medida que Lisboa se afastava de
mim, o meu país, percebe?, se me tornava irreal, o meu país, a minha casa, a minha filha
de olhos claros no seu berço, irreais como estas árvores (...), moramos numa terra que
não existe. (...) Luanda, enevoada, subiu ao meu encontro (...).”(ANTUNES, 984,p. 80).
Depois de passar pela “aprendizagem da agonia”, na guerra, não há possibilidade de
interação com a realidade no retorno a Lisboa: “(...) Descíamos para as Terras do Fim
do Mundo (...) janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia,
sentado na cabina da caminhoneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de
um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia.” (ANTUNES,
1984,p.32). A participação na guerra como médico proporciona ao narrador o contato
próximo com a experiência da morte. A memória da morte e o sofrimento, no entanto,
não desaparecem quando do retorno à pátria, por isso aos retornados será necessária
“uma penosa reaprendizagem da vida”. (ANTUNES, 1984, p.45). A vida solitária do
narrador mostra essa impossibilidade das relações sociais após a vivência da “agonia”
na África . O espaço do bar, a noite e o álcool é a única situação que permite ao
narrador entrar em contato com o outro, ainda que num diálogo em que a voz deste
outro apareça apenas na fala do próprio narrador. Isso porque nesse espaço a realidade
se desprende do espírito, portanto, tornando o espaço de alguma maneira também irreal:
O encanto dos bares, não é?, consiste em, a partir das duas da manhã,
não ser a alma a libertar-se do seu invólucro terrestre e a seguir
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País também precisa falar e ouvir sobre a Guerra Colonial, para que se conheça o avesso
do sonho de um império. Segundo Lourenço
A noção de nobreza garantida pelos objetos e pela imagem dos heróis das fotografias
de batalhas contribui para o sentido épico das conquistas portuguesas nas lembranças da
infância do narrador. Contudo, essas lembranças são ironizadas, pois o relato delas é
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Segundo Halbwachs, citado por Burke (2000, p. 70): “São os indivíduos que
lembram, no sentido literal, físico, mas são os grupos sociais que determinam o que é
‘memorável’, e também como será lembrado.” O fato de o desenho da guilhotina
constar no relato do narrador já é significativo do fracasso do grupo familiar em
selecionar seu esquecimento. A noção de história como produto de grupos sociais é
marcada também nesta citação:
(...) a idéia de uma África portuguesa, de que os livros de História do
liceu, as arengas dos políticos e o capelão de Mafra me falavam em
imagens majestosas, não passava afinal de uma espécie de cenário de
província a apodrecer na desmedida vastidão do espaço (...)
(ANTUNES, 1984, p. 104).
A memória coletiva que se presta como referência para a construção das imagens das
lembranças tanto quanto a história citada enquanto disciplina são histórias de grupos
sociais, impregnadas da religiosidade e do imperialismo do colonizador. Dessa maneira,
a história não é artifício de verossimilhança, não serve apenas como referência do real
no plano literário, mas é tratada como um discurso. O romance ironiza a história oficial
da Guerra Colonial, com a associação dos combatentes aos heróis dos Descobrimentos,
“Cabrais” e “Gamas”, e mostra como os discursos oficiais minimizaram os horrores da
luta:
(...) calcule o senhor presidente o que será desaparecer de súbito um
bocado de si, os legítimos descendentes dos Cabrais e dos Gamas a
sumirem-se por frações um tornozelo um braço (...), faleceu em
combate explica o jornal, mas é isto falecer seus filhos da puta (...),
cobriam-se as bombas de napalm com oleado e o governo afirmou
solenemente Em caso nenhum recorreríamos a tão cruel meio de
extermínio, eu vi cobrir as bombas em Gago Coutinho (...)
(ANTUNES, 198, p. 91).
Ainda que neste trecho o narrador afirme que testemunhou o fato, não se deve perder
de vista que se trata de uma obra literária, portanto, sem compromisso com a
veracidade. Burke (2000, p.74) ressalta o caráter de representação ao comentar os meios
de transmissão das memórias: “Precisamos nos lembrar de que esses relatos não são
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Introdução
1
Disponível em www.ccpm.pt/paulina.htm. Acesso em 15 de Agosto de 2008.
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alcança uma densidade significativa, o que nos impede de ignorar sua presença
enquanto categoria de análise. O corpo das mulheres no romance entrecruza-se com o
próprio corpo da nação moçambicana, cujas histórias vão se misturando em um
processo de releitura crítica da construção de ambos.
Neste artigo, nos propomos a analisar como se deu a construção do corpo das
personagens Delfina e Maria das Dores dentro do romance, numa tentativa de
compreender os aspectos relacionais implícitos na edificação desta categoria. Uma vez
que o romance tem como pano de fundo os cenários colonial e pós-colonial em
Moçambique, investigamos também a hipótese de a categoria corpo atuar como
elemento de mediação da narrativa de uma nação gendrada. Essa proposta se justifica
nas palavras de Tânia Swain, quando esta chama a atenção para a força da materialidade
física do corpo feminino na construção da identidade de gênero:
Que faço eu de mim? No pronome oblíquo, o desdobramento do
sujeito em objeto. Na ação, o assujeitamento a práticas regulatórias ou
à reflexão crítica que faz de mim uma “forasteira de dentro” ancorada
em minha identidade de gênero, experiência de um corpo sexuado,
cuja pesada materialidade pede um questionamento (SWAIN, 2007, p.
231).
1. O (en)canto do corpo
A partir do corpo de Maria das Dores, nu às margens de um rio, cena com a qual
inicia-se a narrativa, a autora traça a genealogia da personagem, e, ao desvelar sua
história descreve, em um processo simultâneo, os mitos de origem da Zambézia
(província matriarcal situada ao Norte de Moçambique) e da própria África. Desse
modo, constrói uma rede discursiva que costura relatos míticos com fatos históricos,
dentro da própria trama narrativa.
Delfina, mãe de Maria das Dores é uma das personagens centrais do romance. Trata-
se de uma mulher que não sucumbe às normas estabelecidas para a população feminina
de seu país e transgride muitas regras morais de seu tempo, na busca por melhores
condições de vida. Através dessa manifestação de rebeldia, lança mão do poder de sua
corporeidade e impõe-se como sujeito da (sua) história (moçambicana) buscando, a todo
custo, o branqueamento de seus filhos, de forma a garantir para si um status
privilegiado dentro do sistema colonial.
2
Doravante as citações a O Alegre Canto da Perdiz serão feitas utilizando-se apenas o número da página
consultada.
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Por sua vida, passam os personagens José dos Montes, o negro com quem tem dois
filhos: Maria das Dores e Zezinho; Soares, o português branco, pai de Luisinho e da
mulata Jacinta (cujo nascimento promove a elevação social de Delfina e a derrocada de
José dos Montes); além deles, há o amante negro, o feiticeiro Simba, a quem Delfina
vende sua filha negra – Maria das Dores. O corpo da menina é utilizado como moeda de
troca pela própria mãe, quando esta é abandonada pelo segundo marido, o português
Soares, que a deixa para voltar para a metrópole com sua esposa branca.
Na obra em questão, o corpo feminino, representado pelo corpo de Maria das Dores -
a filha negra de Delfina – emerge da narrativa e exige do leitor um olhar atento que
perceba os novos contornos que se insinuam através de sua reescritura. A escrita de
Chiziane vai, aos poucos, descortinando detalhadamente as particularidades desse corpo
africano, moçambicano de Maria das Dores:
A multidão vê a mulher nua sentada num trono de barro, beira do rio.
Na posição de lótus, colocando a sua intimidade na frescura do rio.
Vê-lhe o interior desabrochado, como um antúrio vermelho com
rebordos de barro. Vê-lhe as tatuagens no seu ventre de mulher
madura. Vê-lhe o corpo esguio, pequeno, recheado à frente, recheado
atrás, esculpido por inspiração divina. Vê-lhe a pele macia, de café
torrado. Os lábios gordos como um tutano, cheios de sangue, cheios
de carne. Olhos de gata. Vê-lhe o cabelo e sobrancelhas macias e
fartas como novelos de seda, com gotas de água escorrendo sobre as
costas, como contas de lágrimas, na grinalda de uma noiva. (p. 12-13)
Alheio aos preceitos ocidentais que inferiorizavam a mulher por suas conformações
biológicas, o romance de Chiziane inicia-se justamente com ênfase naquilo que
supostamente fragiliza a mulher, ou seja, seu corpo:
Um grito colectivo. Um refrão.
Há uma mulher nua nas margens do rio Licungo. Do lado dos homens.
- Ah?
Há uma mulher na solidão das águas do rio. Parece que escuta o
silêncio dos peixes. Uma mulher jovem. Bela e reluzente como uma
escultura maconde. De olhos pregados no céu, parece até que guarda
algum mistério.
- Quem é ela?
Uma mulher negra, tão negra como as esculturas de pau-preto. Negra
pura, tatuada no ventre, nas coxas, nos ombros. Nua assim completa.
Ancas. Cintura. Umbigo. Ventre. Mamilos. Ombros. Tudo à mostra.
(p.11).
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A nudez torna o corpo feminino novamente visível e o reabilita no cenário das relações
de gênero. O corpo à mostra torna-se para as outras mulheres um espelho maldito, no
qual projetam sua própria imagem corporal, negada e reprimida por séculos. O poder do
corpo, transformado em discurso por Chiziane, e que fala às mulheres sobre sua própria
condição aceita como natural, emerge repentinamente da malha narrativa e projeta-se
como ameaça à ordem estabelecida: “Aquela presença era o prenúncio do
desaparecimento da espécie dos galináceos. Nas curvas da mulher nua, mensagens de
desespero” (p. 12). Desse modo, o reaparecimento do corpo e, por conseguinte, do sexo,
incomoda a turba, principalmente o grupo indignado das mulheres. Como consequência,
a multidão vai aumentando e se fortalecendo, buscando desesperadamente uma maneira
de vestir a mulher nua a qualquer custo, para que o caos não se instaure e possa se
restabelecer a tranquilidade.
- Usa a tua roupa, desconhecida. [...]
- Vá, veste-te já, mulher! [...]
- Mulher, não tens vergonha na cara? Onde vendeste a tua vergonha?
Não tens pena das nossas crianças que vão cegar com a tua nudez?
Não tens medo dos homens que te podem usar e abusar? Oh mulher,
veste lá a tua roupa que a tua nudez mata e cega.. [...]
- Ouve, mulher: se não te vestes a bem, vais vestir-te a mal (p. 14-15).
mulheres abrigaram em seus ventres as sementes dessa relação paradoxal, dando origem
a uma nova nação.
O processo de gestação da nação moçambicana passa, inevitavelmente, pelo corpo
feminino, pelo seu sexo. A nação é representada pelo corpo doloroso de Maria das
Dores, onde ficou tatuada a genealogia das variadas gestas advindas de diferentes
ventres e lugares e as marcas dos conflitos entre esses povos diversos, assim como os
sinais das lutas culturais travadas no interior das batalhas étnicas - a construção de
nova(s) língua(s), raça(s) e crença(s). Como fênix renascida, a cultura nacional ressurge
da destruição operada na cultura de origem.
Somente o desnudamento permite que esse corpo fale, revelando na pele a própria
história de sua construção. “O ser humano despe-se das suas roupas, mas nunca dos
seus actos. As imagens amargas estão gravadas nas córneas como tatuagens” (p. 189).
Uma nação que nasce, literalmente, pelo corpo da mulher.
A nudez de Maria das Dores, possibilita um processo de auto(descobrimento) do
corpo. A suposta fragilidade se reveste de um poder inesperado, descortinado pela
revel(ação) desse corpo. No texto de Chiziane, o corpo feminino emerge do rio – e da
narrativa -, exigindo do leitor um olhar atento, que perceba os novos contornos que se
insinuam através de sua reescritura. Chiziane abre-se a um discurso particular sobre o
corpo que aqui funciona como um novo significante:
As tatuagens belas, geométricas, pareciam uma teia, malha, cinto de
renda bordada à mão, cobrindo apenas o ventre. [...] Reconhece as
origens de Maria. São tatuagens lómwè. Ela é oriunda das montanhas,
e naquelas veias corre o sangue sagrado das pedras. Era a filha da
terra, regressando da grande viagem, chamada pelos espíritos. Para
curar-se nas águas do Licungo ou para escalar o monte do repouso
eterno. [...] As tatuagens remontam ao tempo do esclavagismo, a velha
sabe. Os povos africanos tiveram de carimbar seus corpos com marcas
de identidade. Cada tatuagem é única. É marca de nascença. No corpo,
desenhando-se o mapa da terra. Da aldeia. Da linhagem. Em cada
traço uma mensagem. Árvore genealógica (p. 31).
própria África. As tatuagens são as marcas deixadas pela memória de uma história de
violência e opressão. Uma história que envolve não apenas o colonizador, mas o próprio
homem africano, num contexto de relações sociais polêmicas entre homens e mulheres.
O corpo nu chama a atenção, choca, perturba, justamente pelo fato de (des)velar um
quotidiano naturalizado que faz passar despercebida sua construção cultural. Nele estão
inscritas as marcas da opressão feminina na África. A investigação dessa escrita cultural
do corpo nos permite ler, sob uma outra ótica - perpassada pelo viés das construções de
gênero – a própria história da ocupação do território africano.
A referência ao povo lómwè confere a Maria uma ancestralidade pré-colonial. Essa
origem possui um berço territorial específico: os montes Namuli, situados na cidade de
Gurué, conhecidos como sendo o berço da grande família lómwè-Macua, de onde
irradiaram os vários ramos para diferentes regiões. O lómwè é um dos maiores grupos
étnicos de Moçambique. A cidade de Gurué e a província da Zambézia são as
referências topográficas de conotação metonímica representantes da nação. Percebemos
aqui as bases comuns de formação de uma identidade nacional: uma origem étnica
comum, vinculada a um território determinado. Os montes Namuli, sempre
reverenciados como localidade sagrada, possuem uma existência geográfica real, assim
como a cidade do Gurué, cujo nome remete ao título da obra. Gurué é uma referência ao
canto da perdiz, de cujo ovo teria saído toda a humanidade. Esse mito de origem, assim
como outros presentes na narrativa, vêm legitimar essa construção, pois neles também
estão presentes, explícita ou implicitamente, os símbolos que se referem às localidades
relacionadas anteriormente.
Tais marcas podem trazer à tona antigas divisões tribais e relembrar velhos conflitos.
Atualizados pelas inscrições na pele nua de uma mulher negra de origem rural humilde,
tais conflitos entre tribos se desdobram em divisões outras como as de classe, gênero e
etnia. Assim, a Zambézia dá corpo a uma nação primordial, que une todos sob um
mesmo objetivo comum: “No princípio éramos apenas um. Um povo. Uma família, um
exército de resistência. De repente ficamos diferentes” (p. 128). Esse povo é evocado
como os m’zambezi, que se ramificam em nharinga, Nama ya roi, cuja relação com a
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terra é descrita por um viés de afetividade interfamiliar, em que sobressai o amor entre
pai e mãe ou deles com seus filhos:
A voz dos m’zambezi se ouvia mais alto. Lutando desesperados pela
Zambézia amada, pátria de palmeiras altas, semeadas pelas mãos dos
escravos como testemunhos da história. Defendem o Zambeze, seu
rio, onde os peixes saborosos brincam como nenúfares florindo nas
ondas. Apesar do sofrimento – dizem no canto – é bom nascer na
Zambézia. O chão é de mármore, ouro e madrepérola, é bom viver na
Zambézia. A relva é de verde-vivo e os montes cobertos de antúrios.
A terra inteira é uma laje florida, que convida ao repouso eterno. É
bom morrer na Zambézia (p. 129).
Pode-se observar, pelo excerto acima, que mulher e terra confundem-se no romance.
Ambas são corpos geradores de vida: “Pisa com firmeza a terra vermelha. Menstruada.
Terra parturiente. Sente que dentro de si o cordão umbilical se rompe e a sua imagem se
ergue infinitamente para o sol escondido na noite” (p. 129). No processo de construção
narrativa, ao situar a mulher ao lado do homem e evidenciar sua importância na
construção da história nacional, a autora promove uma inversão da lógica patriarcal
colonial. Em um diálogo entre José dos Montes, o marido negro de Delfina e Moyo,
uma espécie de sábio feiticeiro a quem José recorre na tentativa desesperada de resolver
sua situação conjugal, percebe-se que na opinião dos homens, Delfina não se deixa
manipular, mas que, ao contrário, tem consciência da força de sua corporeidade:
- A Delfina! Ela sabe com quantas linhas se cose o amor, e com
quantos suspiros se enlouquece o mais forte dos homens. Estão a
assediá-la? Tens a certeza?
- Vão prostituí-la outra vez.
- Ela é o palco e a artista. O teatro inteiro. Sempre foi (p. 167).
José dos Montes atribui a Delfina, ou ao corpo da mulher todo o poder sobre a
procriação: “Pertence a Delfina todo o bordado e toda a trama. Que faça o que lhe der
na gana. O filho é dela, o ventre é sua pertença” (p. 143). A própria Delfina coloca seu
corpo como instrumento fundamental de ascensão social:
O que querem eles de mim? Que me levante ao cantar do galo para ir
semear arroz? [...] Não! Prefiro oferecer as doçuras do meu corpo aos
marinheiros e ganhar moedas para alimentar a ilusão de cada dia. A
natureza deu-me um celeiro no fundo do meu corpo. Uma mina de
ouro (p. 81).
É por meio de seu corpo que a mulher negocia seu espaço social e, por conseguinte,
o destino da nação, uma vez que a procriação é a estratégia da qual se utiliza para
sobreviver em universo masculino de negros e brancos, cuja mestiçagem facilitará o
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Conclusão
3
Uso aqui o termo “hibridismo” no sentido de mestiçagem, conforme teoriza Maria Lugones, no texto
Pureza, impureza y separación (1999). A autora compreende a mestiçagem como um elemento
intermediário que se interpõe entre os conceitos de puro e impuro, definidos por uma tentativa de controle
que busca uma pureza absoluta.
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projeto de construção da nação que privilegia o hibridismo. Para alcançar seu intento,
Delfina manipula as instituições e os homens, tanto o negro quanto o branco. Descarta
José dos Montes – o negro com quem já havia tido um casal de filhos negros – quando
lhe é conveniente, para enredar o branco Soares que lhe possibilitará gerar filhos
mulatos, além de manter em sua rede de relações o amante Simba, o que lhe garantirá a
satisfação sexual. Na mistura de raças da família percebe-se a própria hibridização da
nação moçambicana e a polêmica contribuição do nativo para o projeto colonial.
A autora subverte o conceito de mulher e de nação representados como vítimas
incondicionais e objetos passivos da colonização, colocando-os em uma posição de
sujeitos que protagonizaram papéis fundamentais no processo de construção da nação
moçambicana.
Referências
INTRODUÇÃO
1
Este texto compõe parte das minhas pesquisas da dissertação: Lendo Baudelaire, do autor ao
leitor: textos, textura e testamento / Anderson Francisco Ribeiro. Mestrado em Estudos
Literários – Londrina, 2010. (no prelo) Orientador: Dr. André Luiz Joanilho.
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As Flores do Mal 2, livro célebre de Baudelaire, que aos nossos olhos vemos
como uma obra prima da literatura francesa, passa pela mesma ilusão do retrato acima.
A obra pronta e acabada não é de forma alguma a pensada por Baudelaire. Muitos
procedimentos foram necessários para que se chegasse à obra que temos hoje em mãos.
Processos judiciais, títulos, escritos, poemas, falta de dinheiro, viagens marítimas,
revoluções em Paris, tudo está de certa forma vinculado ao livro que conhecemos. Junto
ao título deste trabalho e as páginas seguintes podemos perceber a preocupação de
Baudelaire em arrumar sua obra, seja através de correções mínimas (como as imagens
das páginas iniciais deste trabalho), como a própria arte de escrever seus poemas:
Nós, como leitores que somos, esquecemos tudo isso, quando lemos o livro. Mas
a história não esquece. O processo da obra não esquece. A literatura não esquece.
2
A edição de As Flores do Mal, que utilizaremos aqui, como as demais obras são partes
integrantes de uma coletânea de textos traduzidos no Brasil das obras completas de
Baudelaire e organizada por Ivo Barroso. Charles Baudelaire: Prosa e Poesia: volume único; edição
organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguiar, 1995 (Biblioteca Universal)
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Existe então uma operação de leitura plural, de diferentes tipos onde o papel do
leitor vai ser parte da tensão central desse tipo de estudo, já que a leitura ela não é
passiva, e sim uma prática criativa.
Roger Chartier (1992, p.215) aponta algumas possibilidades já sendo executadas
tanto pela crítica literária, quanto pela fenomenologia do ato de ler, da “estética de
recepção”, como nas tentativas filosóficas, como a obra de Paul Ricoeur, em Temps et
3
CHARTIER, Roger. (Org.) Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. – 2. Ed. –
São Paulo-SP: Estação Liberdade, 2001. Este trabalho reúne estudiosos de diferentes áreas
que compareceram a um encontro sobre o tema de leitura, promovendo o confronto entre
diferentes trabalhos de modo a obter o campo dos estudos referentes às práticas de leituras.
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récit: “Ler é entendido como uma “apropriação” do texto, tanto por concretizar o
potencial semântico do mesmo quanto por criar uma mediação para o conhecimento do
eu através da compreensão do texto”.
Para compreender essa forma de apropriação e reutilização do texto, levantamos
algumas indagações: Por quais protocolos as obras de Baudelaire tiveram de passar?
Qual o tipo de leitor tanto Baudelaire procura? Como se dá o processo judicial que irá
impor novas formas para a obra? E a sua construção? Como são essas leituras?
Com essas perguntas emergindo, observamos aqui neste trabalho como de
herético “satânico” processado por imoralidade, ele passa a um ideal de cânone
literário. 4
4
Em junho de 2007, a obra poética de Charles Baudelaire completou 150 anos. Foram na
França organizadas comemorações, destacam-se leituras de poemas, mesas redondas
promovida pela Société des gens de lettres, intitulada “Du procès des Fleurs du Mal aux
nouvelles formes de censure” e um leilão organizado pela Sotheby’s contendo raridades tais
como um exemplar de Les Fleurs du mal dedicado ao pintor Eugène Delacroix, de quem o
poeta era fervoroso admirador (SOUZA, 2010, s/p.)
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Esse consentir que nos é “proposto” como forma de dizer que tal obra é
importante, e outras não o são. A partir dessa ideia poderíamos sugerir as ideias de
“gostos” burgueses que iriam influenciar não só a literatura, mas sua produção e sua
crítica, assim o “gosto” fala mais alto e deve demonstrar como devemos seguir certas
regras, comportamentos dentro de espaços público ou privados, da nossa importância de
distinguir o que é bom e o que não é.
Como veremos o gosto hoje pelo herético, por aquilo que era considerado
imoral, e hoje nos parece como natural, consideramos Baudelaire como um dos grandes
nomes da literatura mundial, sendo nossa pesquisa de sua vida como sua obra, explicada
por Ivan Junqueira em A arte de Baudelaire (BAUDELAIRE, 1995, p.61):
Parece como tortuoso seu papel como poeta em seu tempo, final do século XIX,
considerado imoral, herético, satânico, conforme o processo instaurado por causa de seu
livro de poesias, As flores do mal 5. Seria considerado apenas um autor medíocre, onde
em tão poucas páginas traziam muitos seios, ou melhor, “tantos seios mastigados”,
5
Processo que aconteceu em 27 de agosto de 1857, na 6ª vara Correcional, sendo condenado
à multa de 300 fr. por imoralidade da obra. Baudelaire em carta a princesa pediu que
intercedesse por ele na condição de poeta e que teria uma revisão do julgamento apenas em
31 de maio de 1949. Para o processo da obra de Baudelaire, e as cartas e artigos que foram
anexadas em seu processo, temos o livro GAUTIER, T. Baudelaire. (2001). O processo
encontram se disponíveis nas Oeuvres Complètes de Baudelaire (1976) e Documents sur le
procès des Fleurs du mal no site Wikisource (BAUDELAIRE, 2009).
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como definiriam Gustave Bourdin, crítico literário que lança um breve artigo
condenando As Flores do Mal.
Situados nesse contexto a preocupação de como deveria ter sido lido o livro de
poemas, seja no aspecto jurídico, seja no aspecto cultural/social, esclareceremos alguns
pontos interessantes com a relação às possibilidades de estudos dentro das áreas da
História e da Literatura, mais precisamente do campo hoje conhecido como História da
Leitura, conforme veremos no primeiro capítulo da dissertação que será defendida (no
prelo). E poderemos entender parte dos mecanismos da cultura escrita, que fazem desde
o texto formulado ao livro consumido pelo leitor. Poderíamos por assim dizer, refazer o
caminho da produção do livro, e a relação dela com a leitura:
Considerações Finais
Referências
BAUDELAIRE, Charles. In: Documents sur le procès des Fleurs du mal. Wikisource.
Desenvolvido pela comunidade do Wikisource. Apresenta material proveniente de
diversas formas de fontes primárias. Disponível em:
<http://fr.wikisource.org/wiki/Documents_sur_le_proc%C3%A8s_des_Fleurs_du_mal.
>. Acesso em: 2 Abril 2009.
BENJAMIM, Walter. Passagens. Org. Willi Bolle. Trad. do alemão: Irene Aron.
Tradução do francês: Cleonice Paes Barreto Mourão. . Belo Horizonte: Editora UFMG;
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
GAUTHIER, Theóphile. Baudelaire. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo, Boitempo editorial,
2001
OEHLER, Dolf. O Velho Mundo Desce aos Infernos: auto-análise da modernidade após
o trauma de junho de 1848 em Paris. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
REFERÊNCIAS
CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
_________________. Cultura Escrita, Literatura e História. Conversas de Roger
Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio
Saborit. – Porto Alegre: ARTMED Editora, 2001.
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CHARTIER, Roger. “Textos, impressões e leituras”, in: HUNT, Lynn (org.). A Nova
História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LUCA, Tânia Regina de. A Revista do Brasil (1916-1944): notas de pesquisa. In:
FERREIRA; Antônio Celso (Org.); BEZERRA, Holien Gonçalves (Org.); LUCA, Tânia
Regina de(Org.). O historiador e seu tempo: encontros com a história. – São Paulo:
Editora UNEPS: ANPUH, 2008.
SOUZA, Germana H. Pereira de. Os 150 anos das Flores do Mal e o papel dos
primeiros baudelairianos no Brasil. Disponível em:
<http://www.revista.criterio.nom.br/i150flores_germana.htm>, Acesso em 02 Março
2010.
“Todo aquele que manipular a violência será finalmente manipulado por ela.”
René Girard
Partindo disso, como na maioria de seus contos, situações ambíguas também levam a
refletir sobre a ambigüidade do próprio ser humano, pois a maioria de seus personagens
possui crises existenciais onde questões de identidade são freqüentes. Nesse conto, a
narrativa parece ter sido criada pela própria personagem e somente para si mesma, como
se ela fosse engodada por uma necessidade intrínseca de preencher o seu cotidiano
vazio.
A cada conto Sérgio Sant’Anna procura uma nova linguagem, e no “O embrulho da
carne” predomina um diálogo entre Teresa, a protagonista, e o seu médico psicanalista,
chamado Elias. Este procura, a cada consulta, resolver os problemas da paciente que
são, quase sempre, de ordem sexual e psicológica. O papel do narrador é o de apenas
situar o leitor quanto aos movimentos e estado de espírito das personagens durante a
consulta, e muitas vezes, ele faz isso somente através de rubricas, como num texto
dramático.
Teresa é separada, depressiva, fumante impulsiva, vive à base de remédios, e quando
é acometida de crises, procura imediatamente uma forma de desabafo. Em um desses
casos, após ter sido vítima de um acidente de carro, resolve ir ao psicanalista para contar
o que se passara no dia anterior, ou seja, a sua saída para a rua em desespero, o acidente
causado pelo efeito inebriante do antidepressivo e, logo em seguida, relata o encontro
com Ivan, o homem que na ocasião a socorrera, levando-a para casa. Meio embaraçada
Teresa o agradeceu e fez um convite para jantarem juntos no dia seguinte no
apartamento dela. O convite foi aceito e ela, prevendo já um possível relacionamento
amoroso, se animou. Eis como conta a Elias:
E ele aceitou na hora o convite para vir jantar no dia seguinte; quer
dizer, hoje, e agora estou desse jeito e não sei o que fazer. Ele falou
que ia trazer o vinho e me perguntou se a gente ia comer carne ou
peixe; então eu perguntei o que ele preferia e ele disse carne,
prontamente, de um modo que me pareceu malicioso e me incomodou
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O que atormenta a personagem não é simplesmente esse fato, porém, outro que
desencadeara desse: resolveu ela mesma ir, no lugar de Neuza, a empregada, comprar e
preparar a carne para o jantar combinado. Entretanto, o susto foi grande ao desfazer o
embrulho, pois o plástico, que envolvia a carne, fora embrulhado com um jornal que
trazia uma notícia de um assassinato, junto com a fotografia de uma jovem mulher. E
Teresa continua a falar:
Parece que aquela mulher tinha mesmo de entrar na minha vida, para
detonar tudo. Como se tivesse um encontro marcado comigo. Entenda
bem que eu embolei o jornal que embrulhava o plástico com a carne e
atirei-o na lata de lixo, só que ele caiu fora da lata. E, não sei por quê,
num determinado instante, talvez porque o jornal se mexesse enquanto
eu cortava a carne pensando naquelas coisas todas, olhei para lá e não
pude deixar de ver. A mulher enforcada com a própria saia.
Amarraram a saia no pescoço dela e puxaram pelas pernas. Não tenho
certeza, mas acho que o jornal fez um barulhinho se mexendo, que me
assustou. Essas coisas acontecem, um papel embolado se mexer. Aí eu
me fixei na foto da mulher e não consegui mais me desligar. Foi como
se ela me atraísse, me obrigasse a olhá-la (SANT’ANNA, 2003, p.60).
A partir desse fato, o jornal que a incomoda se torna o liame narrativo e Elias procura
conduzir o diálogo de forma a relembrar outro episódio violento que a perturbara
anteriormente a esse, também impresso em jornal, ao que “ela ri, nervosamente, e
parece sentir um prazer compulsivo ao recontar a história” (SANT’ANNA, 2003, p. 60).
Com isso, Teresa passa a assumir a identidade da moça assassinada, revelando que a sua
é frágil, ou seja, não possui uma identidade própria, fixa, mas está sempre em busca de
identidades provisórias.
Teresa não conseguiu mais prosseguir com a preparação do jantar e tentou a qualquer
custo se desfazer da notícia, principalmente da imagem que a deixou em aflição, porém,
como um ímã, pelo que conta a Elias, não conseguia se desfazer do jornal. Quis jogá-lo
pela janela, mas inventou uma desculpa para ficar mais um tempo se “dilacerando” com
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o fato. E, pelo que diz, ela chegou a ponto de “incorporar” até mesmo a identidade física
da moça assassinada:
Eu posso ser uma burguesinha fresca que faz análise, mas, de repente,
aquela moça enforcada era eu, entende? E muito mais do que você
imagina. Porque eu era ela até fisicamente, pois minha mão estava
suja da tinta do jornal e engordurada da carne. Na pressa de sair da
cozinha, nem lavei as mãos e, para mim, eu estava engordurada era da
carne da moça. Ao mesmo tempo, era eu quem balançava, enforcada,
na escuridão da noite, num vagão de trem abandonado. E não havia
ninguém para vir em meu socorro; não havia ninguém comigo
(SANT’ANNA, 2003, p.64).
Para se desfazer do jornal de uma forma purificadora para que aquela imagem não
viesse mais à sua mente, ela ateou fogo nele com o isqueiro, isso, segundo ela, “porque
o fogo consome e purifica tudo” (SANT’ANNA, 2003, p.64). Se não fosse a
empregada, esse “ato de purificação” teria causado um incêndio muito maior além da
queima da roupa de cama e do colchão. Após esse acontecimento, Teresa precisava de
um amparo, por isso, antes de ir fazer análise, ligou até mesmo para o ex-marido,
Rodrigo, mas teve a infelicidade de ser atendida pela nova mulher dele que já esperava
um filho, o que deixou Teresa ainda mais chateada, pois nunca conseguira realizar o
sonho do ex-marido de ter uma família. Ela não teve filhos simplesmente por medo e
dizia a Elias que não suportaria “aquele negócio de ter uma criatura dentro do meu
corpo, que depois vai rasgar as minhas carnes para nascer num mundo desses”
(SANT’ANNA, 2003, p. 66).
Além do jantar marcado com o novo amigo ainda desconhecido, Teresa possui mais
dois encontros, e Elias também chega a essa conclusão já no final das sessões de
análise, quando do encontro com a moça do trem. É provável que, inconscientemente,
ela teria colocado fogo no colchão para ter uma ocasião de se encontrar com o próprio
analista, demonstrando a carência afetiva e a sua necessidade de amparo. Além disso,
ela mesma se considera meio louca; a tudo complica e impõe obstáculos, tem medo de
tudo e de todos, até mesmo de se libertar da própria loucura que a acompanha, pois o
fim de tudo isso poderia trazer um vazio ainda muito maior.
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Entre outras possibilidades de leitura desse conto, podemos perceber que Teresa é
um personagem que reflete bem o sujeito da pós-modernidade. Ela vive em constantes
conflitos, não tem capacidade para resolver os seus problemas, por menores que sejam
eles, e além de tudo, tem a necessidade de assumir novas identidades, ou pelo menos
fingir que elas existem, convergindo-as para a sua vida. Nesse caso, cabe aqui uma
citação de Baudrillard, ao estudar alguns aspectos contemporâneos sobre simulacros e
simulação. No texto intitulado “A precessão dos simulacros” ele indaga:
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Ora que pode fazer a medicina com o que paira aquém e além da
doença, aquém e além da saúde, com a reiteração da doença num
discurso que não é nem verdadeiro nem falso? Que pode fazer o
psicanalista com a reiteração do inconsciente num discurso de
simulação que nunca mais pode ser desmascarado, já que também
não é falso (BAUDRILLARD, 1991, p. 10).
Ou seja, Teresa finge pela necessidade de fingir, ela existe como pessoa física, mas
também é um ser formado a partir de tudo o que a ela circunda. As influências do social,
como por exemplo, o da mídia, com o seu discurso e imagens convincentes, ajudam a
levá-la a um novo posicionamento diante dos fatos violentos divulgados, onde uma
espécie de humor e de sadismo se confunde. No diálogo que a protagonista tem com
Elias, ao contar esses fatos, em alguns pontos predominam as marcas do discurso
jornalístico, como se no seu subconsciente, ela também incorporasse esse caráter
profissional.
O conto também pode ser visto como uma espécie de texto “metafictício”, visto que
é produzido com base numa notícia de jornal e, além do mais, todo o enredo vai sendo
desenrolado pelo narrar da própria protagonista a partir de um texto imagético.
Confirmando o que Ítalo Calvino, ao estudar aspectos do conto, no capítulo
“Visibilidade”, chama de “caminho livre para uma fantasia do tipo onírico”
(CALVINO, 1990, p. 105), ou seja, imagens que poderiam ser consideradas até mesmo
inúteis são como uma avalanche que atinge as pessoas, e muitas vezes passam a ser
significativas para elas.
Dessa mesma forma acontece com a influência da violência urbana na vida de
Teresa, ela é um bom exemplo do que Stuart Hall chama de sujeito descentrado. Nesse
caso, o desespero diante de fatos corriqueiros que a princípio não tem nada a ver com
ela acaba por se tornar o seu problema central. A violência de sua vida é ligada
diretamente à violência brutal dos fatos externos a ela. Outro exemplo violento
lembrado por Elias, onde alguns sujeitos cortam a cabeça e esquartejam o corpo de uma
pessoa deixando uma parte em cada lugar para “ironizar” a polícia, deixa evidente que a
violência não existe simplesmente por instinto, mas funcionando como forma de
oposição ao poder instituído, que também usam, muitas vezes, de violência contra eles.
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Esses exemplos confirmam o que é considerado por Ronaldo Lima Lins, como o
surgimento de um novo homem: o homem violento. Ele mesmo acrescenta:
Pode-se dizer, sem exagero, que o novo homem cedeu lugar ao homem
violento, um tipo que “luta contra todos os habitantes da cidade” e
que se destaca de seu antecessor pelo caráter cotidiano e onipresente
de seu organismo. A humanidade tem sido, ao longo dos tempos, uma
velha amiga da violência. O que a particulariza agora, entretanto, é o
deslocamento que esta última sofreu dos movimentos da história para
o espaço diário do cenário urbano (LINS, 1990, p. 51).
No caso de Teresa, a culpada de tudo parece ser a própria vida, e no diálogo com
Elias, em alguns momentos, até questiona a realidade e filosofa sobre Deus, porém, em
nenhum momento o conto deixa transparecer que tipo de religiosidade é a dela.
Esse sujeito descentrado de que fala Stuart Hall é o que tem a sua identidade
fragmentada, ou seja, não é mais um sujeito unificado e unificador.Ele é também
desprovido de qualquer maniqueísmo. A sua complexidade vem da interação social de
várias instituições, sejam elas formais/funcionais ou não, já que muitas delas também já
entraram em contradição e decadência. Quanto à sua própria identidade, é algo que se
torna fantasioso, mas que nunca se deixa de buscar. As constantes mudanças levam o
indivíduo à não assimilação dos fatos e à sua incompreensão. Os choques e as crises
internas são alimentados pelo que é externo, como no caso de Teresa que “vive” a
violência da outra moça. É o que Stuart Hall afirma: “essa ‘internalização’ do exterior
no sujeito, e essa ‘externalização’ do interior, através da ação no mundo social, (como
discutida antes), constituem a descrição sociológica primária do sujeito moderno e estão
compreendidas na teoria da socialização (HALL, 1999, p. 39).
O diálogo e a cena representada por Teresa e o psicanalista também são uma
representação do vazio social de que ambos fazem parte, ou seja, aqui podemos fazer
uma leitura em duas instâncias, uma que parte do analisado e a outra que parte do
analisador, onde sujeito passivo e sujeito ativo se confundem numa mesma
problemática. Assim, toda essa conturbação social evidencia e prevê o aumento do
dilaceramento da identidade e do corpo.
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REFERÊNCIAS
Introdução
1. Revisão teórica
1
Andiara Maximiano de Moura, mestranda, Universidade Estadual de Maringá – UEM –
andiara_max19@hotmail.com
* Lucia Osana Zolin, orientadora, Universidade Estadual de Maringá – UEM –
luciazolin@yahoo.com.br
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Durante muitos séculos, a mulher foi vista como um ser inferior ao homem, em
todos os meios (estético, social, histórico e político). O silenciamento feminino causou
uma exclusão social da mulher ao longo da história. Isso aconteceu devido aos valores
patriarcais existentes que via a mulher com o propósito único de procriação –
reprodutora da espécie – não dando credibilidade à sua capacidade intelectual. A
experiência feminina, no espaço cultural e literário, sempre foi visto como algo sem
importância. Com esse pensamento constrói-se a literatura androcêntrica.
Em meados do século XX, toda esta discriminação feminina chamou a atenção de
muitos estudiosos e intelectuais em geral, que passaram a atuar como agentes de um
discurso crítico, voltado para a conscientização e desconstrução da opressão e
marginalização da mulher.
A partir de 1960/70, começam a aparecer debates nos meios acadêmicos e políticos,
com relação à posição feminina no mundo. No que diz respeito à posição social da
mulher na literatura, sua aparição e percepção se devem ao feminismo, pois ele
justificou sua exclusão literária na situação sócio-histórica feminina.
Assim, os estudos feministas tiveram como objetivo investigar e transformar a vida
da mulher até então marginalizada e desvalorizada pelo homem. Ocorre uma quebra de
paradigmas existentes, ou seja, eles rompem com os discursos cristalizados pela
tradição e dão espaço à descoberta de uma nova visão, novos horizontes, novas
expectativas no campo intelectual feminino. A Crítica Feminista facilitou a
visibilidade da literatura feminina. A mulher passou a ser vista não apenas como uma
personagem que compunha a literatura masculina, mas também como participante na
produção crítica e literária.
No Brasil, a literatura de autoria feminina também era inexistente, como no
exterior. O cânone brasileiro era composto apenas por homens, dando a impressão de
que a mulher não participava da nossa história. A aparição feminina ocorreu
isoladamente nos anos de 1920 e 1940, com publicações de Raquel Queiroz e Cecília
Meireles, dentre outras, que acarretaram uma explosão de publicações femininas nos
anos 1970 e 1980. Mas, é Clarice Lispector que fez com que a literatura feminina
brasileira alcançasse seu devido valor e fosse reconhecida mundialmente.
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patriarcalistas, mesmo que possua uma profissão e trabalhe fora. Esse comportamento
está relacionado com a visão conservadora de suas práticas políticas ou sociais.
Na coletânea de contos Vozes num divertimento, Luci Collin trabalha com as
diversas posições da mulher do século XXI, mostrando em suas personagens a
multiplicidade de identidades femininas que compõe a sociedade contemporânea.
Para melhor compreensão e análise dos contos, dividir-se-á a coletânea de contos
em três categorias: 1) divagações sobre a escrita contemporânea, estrutura e nova
forma de se escrever; 2) representação de personagens presas à visão patriarcal; 3)
representação de personagens contemporâneas.
A primeira categoria é composta por contos, muitas vezes metalingüísticos, que
trazem a complexidade da escrita contemporânea, juntamente com personagens
complexos e descentralizados. Os contos que fazem parte desta primeira categoria são:
A última moda em Aquis (à guizo de prefácio); Nome: Omen; É; Qwando; Noir;
Sinopse.
O primeiro conto da coletânea, A última moda em Aquis (à guizo de prefácio),
consiste em divagações do narrador a cerca de diversos assuntos. Em primeira
instância, o conto chama a atenção por não possuir pontuação, nem ponto final. É
separado por blocos, porém, esses blocos estão ligados por letras, cujo final da palavra
de um bloco esta interligado com o início da palavra do bloco seguinte. Essa nova
estrutura de conto, logo no início da coletânea, é para apresentar ao leitor o que será
encontrado na obra – como o próprio título do conto já diz: prefácio – chamando a
atenção do leitor à observar e apreciar o diferente.
O conto Nome: Omen fala sobre um(a) autor(a) criando um homem. Nesta criação,
é imaginado um mundo paralelo para este, juntamente com sua aparência física,
profissão, família, relações sociais, etc. No final do conto, percebe-se que na realidade,
não é um homem perfeito que se está tentando criar, e sim uma nova forma de
escrever. O(a) narrador(a) inventa um homem para inventar uma nova forma de se
escrever, com significações próprias, usando palavras desejadas e formas específicas
para o emprego das normas gramaticais. Assim, pode-se afirmar que não é apenas uma
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história que o(a) autor(a) deseja criar, mas sim um conjunto de características
peculiares para sua escrita.
Como não há marcação de gênero no(a) narrador(a), pode-se dizer que poderia se
tratar de uma mulher. Se o narrador for uma mulher, percebe-se que esta personagem
é ousada, criativa, crítica, intelectual, com personalidade, entre tantas outras
qualidades, pois ela tem a audácia de criar um homem, ou uma nova escrita, não se
importando com o que a crítica dirá desta criação. Ao terminar o conto, observa-se no
excerto “O homem que inventei não é nem de longe um homem daqueles com agá.
Que assim seja: “Omen” (p. 27). Percebe-se que o(a) narrador(a) inventa um homem
sem agá para criar um homem diferente daquele erigido pelo pensamento patriarcal e,
ao fazer o trocadilho no final do conto com a palavra Omen = Amém, usando a
mesma estrutura final da oração modelo ensinada por Deus, que tem como significado
“que assim seja”, o narrador também deseja que a sua criação seja assim.
O terceiro conto, É, discute a importância da escrita. O narrador – acredita-se que
seja um narrador, porque a parceira é uma mulher, mas também pode ser um casal de
lésbicas – tem relações com uma mulher, e desse caso, é feito um romance. Esse
romance também é representado como uma equação e estratégias matemáticas para o
futuro, daí a aparência de várias equações matemáticas no corpo do texto (1 + 1 = 1 =
2 = 1 + 1 = 0 < 2 = 1 < 0 = 1 - 1). Quando a relação supersatura, a mulher deseja um
novo parceiro, um novo “parágrafo”, deixando o narrador somente com as frases
construídas, equações não realizadas ou permanecidas no infinito, que ficarão na
lembrança.
Após a relação ter se desfeito, o narrador tenta escrever, mas a sua tentativa é em
vão, pois a mulher é tida como sua inspiração e, sem ela, nada pode ser feito, trazendo
para si constrangimento e dúvida, como pode ser visto neste trecho: Pelo que sei,
surpresas. Pelo que jamais eu posso ver, entendimento. O acúmulo de frases é
também um muro, quero dizer, fortaleza, é também abrir um daqueles portões de
castelo como pode isso?(p. 32). Assim, finaliza o conto divagando sobre o ato de
escrever, dizendo que folhas são lembranças apenas de imensos passados por isso me
foi dito: esteja aqui (p. 33). É no papel que o narrador coloca tudo o que realmente
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deseja e sente, pois, só nele cabe tanto silêncio e tanta profundidade de tanta
imobilidade que surge de tanta interrogação (p. 33 e 34). Aqui tem-se uma
semelhança entre os fatos ocorridos no conto Visionário, quando o protagonista, ao
perder a sua companheira, se vê incapaz de continuar a sua vida e seus escritos
poéticos, pois a mulher é vista como inspiração e rima para as suas poesias.
O conto Qwando inicia a narrativa com a seguinte indagação e resposta: “quando
pergunta Por quê? O quê? Por que não? eu nem respondo. eu nem preciso responder
(você sabe ler meus pensamentos). A partir desse pressuposto, o narrador faz uma
introspecção do personagem, sobre uma relação que o mesmo tem com seu parceiro
(a). A estrutura do conto é intrincada, porque o sentimento é abstruso, retratando a
relação complexa dos personagens, ou seja, a complexidade da estrutura do conto é o
reflexo da complexidade dos pensamentos do personagem. O protagonista deseja que
o seu parceiro (a) o (a) compreenda, consiga decifrar esta amálgama, para que possam
ficar juntos, mesmo sendo tão diferentes. Assim, pode-se concluir que a escrita
contemporânea está completamente ligada ao sujeito fragmentado, pois os
pensamentos são transpostos ao papel através da escrita.
Em seguida, tem-se o conto Noir, que é dividido em duas partes. A primeira parte
fala sobre o ato da escrita, como as palavras não existem no escuro, permitindo que o
escritor viaje na sua imaginação, brincando com as palavras sem preocupação. Esse
escuro remete a palavra sem propósito, ou até mesmo o escrito antes de ser lido. É o
que se percebe neste excerto: é uma certeza de noite é uma certeza de múltiplos é uma
certeza de insanidade infinita e cálculos que recuperam o princípio do círculo das
perdas das paixões das frases que se reconsideram (p. 73).
Já a segunda parte está relacionada ao momento de leitura, em que as palavras que
foram escritas passam a ter um sentido, uma interpretação. O narrador vê este
processo de forma árdua, pois, segundo ele tudo o que eu disser será usado contra
mim num tribunal (p. 74). Dessa forma, percebe-se a responsabilidade do autor ao
escrever. Vai me render flores e rimas. E depois vai converter em vaias (p. 75). Com
esse pensamento pessimista, o conto termina enfatizando a importância da escrita
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A tia Dinalva é a típica esposa do início do século XX, que pensa que para manter o
casamento é necessário ser uma ótima dona de casa, proporcionando boas
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acomodações para o esposo. Porém, Ângela possui outra visão sobre esse assunto. No
final do conto, Ângela se encontra desapontada, pois, a força dos padrões e papeis de
gênero é mais forte que o seu desejo de liberdade. Toda sua experiência de vida
promove um desnudamento da dominação masculina, quando ela expõe seus
sentimentos e pensamentos interiores.
Este conto, através de uma visão feminina, presente na personagem Ângela, ilustra
a luta da mulher para se ver livre dos padrões patriarcalistas que regiam a sociedade,
mas a mulher não conseguia se desvincular disso, tendo que se calar perante muitas
situações. Toda a história está relacionada com o título Memórias do ontem que não
sei, mostrando o asujeitamento da mulher desta época.
O conto Ruídos tem como personagem principal uma mulher, que se encontra presa
dentro de um cômodo e a única coisa que vê é um muro grande e verde que a separa de
seu parceiro. Esta mulher pode ser vista como a representação da mulher patriarcal,
que durante muito tempo se viu presa dentro da ideologia masculina dominante. Logo
no início da narração, a personagem diz: eu acreditava muito em você – me fornecia
razões para as coisas (o muro, a janela); queria acreditar: você, as coisas, o muro, a
janela (p. 107). Mesmo sem entender o motivo de estar ali, a mulher acredita, ou se
força a acreditar, nas explicações do homem em mantê-la presa naquele cômodo. No
desenrolar da história, a mulher desfaz a parede, pouco a pouco e, quando se vê livre,
sente uma fome nostálgica como se tivesse tido asas e inventei histórias, cenas de
filmes onde vi desfilar o aço do alicate, cristal de vaso e a reticência dos tapetes. Por
último, você (p.109 e 110). Mas, por melhor que tenha sido esta fuga, o muro volta a
crescer, se transformando em uma floresta. Aqui, percebe-se a força que os padrões
patriarcais possuem, porque, por mais que a mulher tente se libertar deste muro, ele
sempre terá mais força que ela.
Outro conto que comenta sobre a inocência da mulher perante as ações do homem é
Minhas férias (refluxo da consciência). O que diferencia este conto dos anteriores é
que este é contado pela perspectiva de um homem. O protagonista comenta que seu pai
é ateu e um bêbado safado. Sua mãe, em contraposição, é uma santa, devota a vários
santos, como a Santa Julieta de Cortona, São Volfango, Santa Eustóquia; costureira;
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mulher prendada; com boa reputação; e religiosa. O pai ateu e bêbado traia a esposa
com várias mulheres da cidade. A mulher, com tanta bondade e qualidade, não
conseguiu ser feliz no casamento e deixar de ser submissa ao marido, tendo que
suportar a traição do esposo em silêncio.
Existe outro grupo de mulheres presentes neste conto, que são as pobres e
prostitutas. O protagonista perde a sua virgindade com uma “vagabunda” velha,
porque esse era o costume dos homens, naquela época, para aprender tudo sobre sexo.
No entanto, as vagabundas e as pobres também sofriam e eram submissas aos homens.
O conto é construído em um ambiente tradicionalmente patriarcal, pois, por mais que
não seja marcada a época em que se passa a história, percebe-se marcas dos padrões
que regiam este período.
Outra narrativa a partir da perspectiva masculina é a do conto Navífrago, onde
temos um protagonista tentando conversar com a parceira, para se justificar do
fracasso da relação. Segundo o personagem, a culpa da declinação do relacionamento
é totalmente da mulher, pois ela resolveu falar outra língua, diferente da que falava no
início da relação, fazendo com que suas idéias se divergissem. Assim, o homem que
durante a narrativa tenta se justificar, na realidade está impondo seu pensamento, pois,
no final do conto ele deixa claro que não dará oportunidade para respostas porque não
trouxe seu dicionário. O narrador expõe sua justificativa de forma calma, parecendo
que sente piedade da parceira, mas ao final, pode-se dizer que este sentimento não é
verdadeiro.
Parece que Collin, ao engendrar uma narrativa a partir da perspectiva masculina,
chama a atenção para o modo como a ideologia patriarcal sempre equaciona as
relações de gênero: homem/ dominação/ capacidade de reação; mulher/ dominada/
incapaz de reagir; como se essa equação fosse uma imposição da natureza das coisas,
e por ser natural, impossível de ser mudada. Nesse sentido, a piedade por vezes
demonstrada em relação as vicissitudes femininas soa irônica.
Por fim, o conto “Vai ser avó, dona Cleide!?” é um relato a importância do olhar
do outro, como uma sansão social. A história se passa no portão da casa de D. Cleide e
D. Izália. Ambas conversam sobre a vida da vizinhança, e os acontecimentos dos
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últimos dias. Na cama se encontra Rosinéia, filha de D. Cleide, com enjôo, por causa
da gravidez que mantém escondida. D. Cleide e D. Izália são duas mulheres de idade,
donas de casa, que vivem para o bem do marido e dos filhos. Nesse caso, vemos duas
gerações de mulheres, com conceitos diferentes. A D. Cleide e D. Izália são as típicas
mulheres do período patriarcalista, que são submissas aos seus esposos, donas de casa
e responsáveis pela educação dos filhos. Essas personagens cumprem o papel
tradicional imposto à mulher dos tempos patriarcalistas.
Este conto mostra de forma irônica os papéis tradicionais imposto às mulheres. Elas
acreditam nessas concepções e tentam manter o que lhes foi imposto na juventude. No
entanto, seus filhos pertencem a uma nova geração, a geração em que a mulher tem a
liberdade de escolha. A crítica se encontra na contradição entre as duas gerações, o
modo como um vê o outro.
Nesta categoria, pode-se concluir que as mulheres, independente se fossem bonitas,
ricas, de boa reputação, religiosas, prendadas, recatadas, ou, prostitutas, pobres e feias,
todas sofriam e dependiam dos homens completamente.
A terceira e última categoria abarcam os contos das representações de personagens
contemporâneas. Os contos que fazem parte desta categoria são: Modernas estratégias
de expressividade contemporânea – três observações tecno-científicas; Um ponto
sobre o outro; Cinco atos (mentiraria); Não era gato nem era preto; e Vozes num
divertimento.
O conto Modernas estratégias de expressividade contemporânea – três observações
tecno-científicas, tem-se um narrador que cria um conto em forma de artigo, possuindo
todas as características deste gênero. Poucas personagens femininas aparecem no
conto, apenas três, mas estas possuem uma posição de mulher ativa e intelectual na
sociedade, como o caso de Geórgia e Kátia, duas universitárias, ou também, de
mulheres conhecedoras dos pensamentos masculinos, como é o caso de T.T.. A
personagem T. T. namora R. I. B. e o namorado a surpreende com um pedido de
casamento. No exato momento do pedido, segue o pensamento de ambos, tanto do
noivo quanto da noiva.
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Não era gato nem era preto, é um conto que conta a história de um homem viril,
que usa todas as “armaduras” deste grupo, mas, por isso, morreu em combate. Durante
a sua vida, se apaixonou por duas mulheres, a primeira Tereza, mulher maravilhosa,
deliciosa, imperiosa, nome de rosa, rigorosa, etc., que o rejeitou. A segunda, Benedita,
mulher dona de si, possuía uma venda na segunda gaveta do lado esquerdo do
armário do quarto. Uma cinta-liga na cômoda (p. 116), e usou todos esses utensílios
com o protagonista. Um dia, passa na casa de Benedita, e ao pedir um pão, tem a
resposta: coma bala. Aqui, vê-se a subversão dos papéis de dominação, no qual o
homem se encontra sujeito aos desejos feminino.
Por último, temos o conto que dá título à coletânea de contos, Vozes num
divertimento. Neste conto, a própria autora, Luci Collin, se coloca como personagem
principal, e prevê várias críticas sobre a publicação de seu livro Vozes num
divertimento. Nessas críticas, observa-se visões diversas sobre a personagens. Ora ela
é vista como inteligente, autônoma, contemporânea, atrevida, etc, outras como velha,
desavergonhada, “mulher”. Estes comentários deixam bem claro que as personagens
que compõem esta coletânea são representações múltiplas das identidades femininas
presentes na atualidade, algumas presas aos padrões patriarcais e outras que já estão
conseguindo se desvincular destes.
Todos esses contos são situações verossímeis da nossa realidade, que, ao se ler, nos
faz viajar neste mundo diverso e lúdico da literatura. A escrita e a representação das
personagens mostram-nos a importância da escrita feminina paranaense. A partir
destes elementos, há maior reconhecimento e mais credibilidade a estas obras que
estão se destacando em nosso meio.
Conclusão
Após nos atentarmos um pouco mais nestes contos analisados acima, conclui-se que
a coletânea Vozes num divertimento de Luci Collin possui uma diversidade de
personagens femininas. Cada personagem possui um tipo. Essa representação de vários
tipos aponta para a multiplicidade identidades femininas que compõem a sociedade
contemporânea. Observa-se também que ocorre o questionamento e a ironia nos papéis
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tradicionais de gênero, presentes no início do século XXI. Toda essa nova forma de se
ver o mundo feminino mostra-nos a conquista da mulher em todos estes anos,
comprovando que, aos poucos ela está ocupando o espaço que sempre lhe pertenceu.
A mulher, a partir da sua escrita, cria uma nova visão para a sociedade
contemporânea, uma visão em que ela tem a liberdade de expressar os seus
pensamentos, desconstruindo concepções patriarcalistas cristalizadas e construindo
uma nova literatura, em que a mulher participa como um ser social e intelectual.
Referências
Introdução
A canção popular de um país pode ser pensada como um “idioma cultural” único
e plural de um povo. Deste modo, podemos afirmar que a nossa Música Popular
Brasileira traz em si uma memória coletiva enraizada em anos da mistura de muitos
povos que aqui se encontram desde o século XVI à nossa atual “Idade Mídia”. Mais do
que um mero reflexo da sociedade, a canção brasileira do século XX pode ser vista
como um projeto inacabado de país, uma nação à espera de novas escutas que percebam
os processos de educação sentimental, estética e ideológica contidos em nossa cultura
(NAPOLITANO, 2007). Ao fomentarmos uma pedagogia poética e musical no contexto
escolar, através da prática da canção popular como um instrumento literário para o
aprendizado de temas transdisciplinares - históricos, sociológicos e mitopoéticos –,
estaremos construindo uma eficiente e prazerosa prática lúdica de ensino.
1
Orfeu da Conceição, “tragédia carioca” de Vinícius de Moraes, ambientada nos morros dos anos 50,
estreiou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 25 de setembro de 1956, com cenografia de Oscar
Niemeyer e música de Tom Jobim (a trilha sonora seria lançada no mesmo ano pela gravadora Odeon).
Em 1959, a peça foi adaptada ao cinema por Marcel Camus sob o nome Orfeu Negro, recebendo diversos
prêmios internacionais e projetando as primeiras parcerias de Tom e Vinícius em nível mundial.
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Diz a lenda que tudo começou na boate Arpége, no Leme, Zona Sul do
Rio. O poeta Vinícius de Moraes foi a esta conhecida casa noturna dos
tempos da saudosa boemia bem vestida das noites cariocas do tempo
da Bossa Nova prestigiar o velho amigo, Antônio Carlos Jobim,
quando descobriu, pálido de espanto, o talento jovem e ligeiramente
desconhecido de um exímio violonista de Varre-e-Sai, que atendia
pelo curioso nome de Baden Powell de Aquino, e que fazia algum
sucesso pela voz de Lúcio Alves, com o seu “Samba Triste”, em
parceria com Billy Blanco.
(...) Mas e os Afro-sambas? Pouco antes de travar conhecimento do
Baden, o “poetinha” ganhou um disco, intitulado Sambas de Roda e
Candomblés da Bahia. Em pouco tempo, aquele despretensioso
bolachão transformaria o criador da “Balada das Arquivistas” e do
“Orfeu da Conceição” no “branco mais preto do Brasil, na linha direta
de Xangô”. Aqueles temas baianos o impressionaram, ao mesmo
tempo em que o próprio Baden rumava à este mesmo caminho,
quando fora apresentado ao capoeirista Canjiquinha que conduziria
Badeco a terreiros, rodas de capoeira ao mesmo tempo em que lhe
apresenta os sagrados cânticos do candomblé. O poeta se assomara
pelo místico; Baden, pelas novas harmonias. (XAVIER, 2006, s.p.)
Se a arte do encontro entre Baden e Vinícius 2 foi pautada pelo samba de roda, pela
capoeira e pelo candomblé, é porque ambos estavam em busca de um “elogio da negritude”
através de autênticas fontes culturais baianas. Segundo José Castello, “Baden não apenas
africanizou Vinícius, ele o transportou para um mundo mais quente, mais contaminado por
tradições e sentimentos atávicos, mais – bem mais – incontrolável” (CASTELLO, 1991,
p.58). Ou seja, o “Poetinha” seria iniciado ao mundo mitopoético dos orixás através do
contato com o candomblé via Baden Powell, sendo capaz de “entrelaçar o cotidiano com o
cósmico, de lançar uma ponte inesperada entre a tradição negra e as interrogações
metafísicas da zona sul” (CASTELLO, Op. cit., idem), conforme ainda veremos.
2. Iemanjá
2
Em 1963, as primeiras parcerias musicais de Baden Powell e Vinícius de Moraes, as canções: O
astronauta, Berimbau, Só por amor, Deixa, Seja feliz, Mulher carioca, Samba em prelúdio, Labareda, É
hoje só, Deve ser amor, Além do amor e Samba da bênção, foram registradas no LP Vinícius & Odette
Lara, pelo selo Elenco. Em 1964, Baden gravaria o LP À vontade, e passaria seis meses na Bahia,
pesquisando música de candomblé e os cantos dos terreiros. Em 1965, voltaria a compor com Vinícius
uma série de músicas registradas novamente pelo selo Elenco, no LP De Vinícius e Baden especialmente
para Cyro Monteiro, contendo as parcerias Samba do café, Linda baiana, Formosa e Tempo feliz, entre
outras. Em 1966, gravaram os afro-sambas Canto de Ossanha, Canto de Xangô, Bocochê, Canto de
Iemanjá, Tempo de amor, Canto de Pedra Preta, Tristeza e solidão e Lamento de Exu; respectivamente
registrados no LP Os afro-sambas (selo Forma), com arranjos de Guerra Peixe e participação do conjunto
vocal feminino, Quarteto em Cy.
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Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é dona Janaína que vem
Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é muita tristeza que vem
Cultuada como “a senhora do mar, dona das águas, mãe dos orixás”, Iemanjá é
talvez o orixá mais conhecido no Brasil, associada sincreticamente ao culto à Nossa
Senhora. Afinal, “é uma das mães primordiais e está presente em muitos dos mitos que
falam da criação do mundo” (PRANDI, 2001, p.22) ela é a representação da ancestralidade
feminina da humanidade, assim como as nereidas e as divindades greco-latinas Hera e
Vênus. A ambigüidade de seu valor é que ela é uma força de sedução perigosa, pois transita
entre a vitalidade de sua beleza sedutora e a tristeza destrutiva daqueles que ela seduz, como
afirmam os versos: (...) De Iemanjá a cantar o amor / E a se mirar / Na lua triste no céu,
meu bem / Triste no mar... Como se ela também sofresse com a sina de sua condição
predadora, pois “é muito tristeza que vem” na maré do mar.
Esta canção exemplifica bem o apego do poeta pela paisagem baiana como um
locus amoenus de encantamento místico, como nos versos: (...) Se você quiser amar / Se
você quiser amor / Vem comigo a Salvador / Pra ouvir Iemanjá... Ao levarmos o Canto
de Iemanjá para a sala de aula, devemos contextualizá-lo em sua criação poética e musical
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(como já o tentamos) e, principalmente, em sua cosmogonia iorubá. Sua lenda de origem é
bastante oportuna para entendermos melhor a canção:
Como notamos, o poder feminino que Iemanjá representa está associada ao mar
como uma força maternal, a fonte ancestral de alimento e de vida. Ao ouvirmos o Canto
de Iemanjá é notável como essa força está impregnada na melodia e no ritmo da canção.
O vocal feminino tece a melodia em um acentuado movimento ondulatório: Iemanjá,
Iemanjá, gerando uma explícita isomorfia entre significantes e significados. Afinal, a
canção inteira nos embala no balanço das ondas do mar, nos seduzindo de início ao fim,
e nos conduzindo “bem mais além do que o fim do mar”.
Canto de Xangô
Eu vim de bem longe
Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim
Sou filho de Rei
Muito lutei pra ser o que eu sou
Xangô era rei de Oyó, terra de seu pai; já sua mãe era da cidade de
Empê, no território de Tapa. Por isso, ele não era considerado filho
legítimo da cidade. A cada comentário maldoso Xangô cuspia fogo e
soltava faíscas pelo nariz. Andava pelas ruas da cidade com seu Oxé,
um machado de duas pontas, que o tornava cada vez mais forte e
astuto onde havia um roubo, o rei era chamado e, com seu olhar
certeiro, encontrava o ladrão onde quer que estivesse. Para continuar
reinando, Xangô defendia com bravura sua cidade; chegou até a
destronar o próprio irmão, Dadá, de uma cidade vizinha para ampliar
seu reino. Com o prestigio conquistado, Xangô ergueu um palácio
com cem colunas de bronze, no alto da cidade de Kossô, para viver
com suas três esposas: Iansã amiga e guerreira; Oxum, coquete e
faceira e Obá, amorosa e prestativa. Para prosseguir com suas
conquistas, Xangô pediu ao babalaô de Oyó uma fórmula para
aumentar seus poderes; este entregou-lhe uma caixinha de bronze,
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recomendando que só fosse aberta em caso de extrema necessidade de
defesa. Curioso, Xangô contou a Iansã o ocorrido e ambos, não se
contendo, abriram à caixa antes do tempo. Imediatamente começou a
relampejar e trovejar; os raios destruíram o palácio e a cidade,
matando toda a população. Não suportando tanta tristeza, Xangô
afundou terra adentro, retornando ao Orun. (TEEG, 2010, s.p.)
Outra fonte literária informa que a causa do incêndio da cidade de Xangô foi mais
complexa:
Xangô convocou os maiores feiticeiros de Oyó e lhes pediu que
inventassem fórmulas para aumentar seu poder, mas não satisfeito
com o trabalho dos feiticeiros, pediu ajuda a Exu. Exu aceitou a tarefa,
pediu uma cabra como sacrifício e ordenou que dentro de sete dias
Iansã fosse buscar o preparado. Quando chegou o dia combinado, lá
foi ela à casa de Exu. Lá chegando, saudou Exu e disse que o
sacrifício estava a caminho. O preparado estava embrulhado numa
folha. Ela pegou o pacote e partiu. No caminho, Iansã parou para
descansar. Não contendo a crescente curiosidade, desembrulhou o
pacote para ver o que tinha dentro. Não havia nada além de um pó
vermelho e ela pôs um pouquinho na boca para experimentar.
(...) Quando ela começou a falar, saiu fogo de sua boca. Xangô
entendeu que ela tinha provado o remédio. Ficou irado e tentou bater
em Iansã, mas ela fugiu de casa... (...) Mas ele ainda não sabia usar o
preparado. Quando anoiteceu, ele pegou o pacote de Exu e foi a um
lugar bem alto, de onde podia ver toda a cidade. Colocou um pouco do
pó vermelho na língua e, quando expirou o ar dos pulmões, uma
enorme labareda jorrou de sua boca, depois outra e mais outra, sem
parar. As chamas se estenderam por sobre toda a cidade... (PRANDI,
Op. cit. p.265-266)
Essa última versão talvez possa nos ajudar a entender o verso: Sete dias para gente
amar, pois esse foi o tempo necessário para que Exu preparasse a poção para Xangô, antes
de acontecer a tragédia do fogo. Uma alegoria da efemeridade do amor que foi também
representado liricamente por Camões como uma “chama que arde sem se ver”. Como um
ser vaidoso, sedutor e casado com três divindades femininas (Obá, Iansã e Oxum), Xangô
estaria situado no panteão dos orixás em plena simetria ao erotismo de Iemanjá. Só que
diferentemente da deusa marinha, que aparenta sofrer da sina de seu próprio fado, Xangô
aparenta “gostar de morrer de amar”, como anuncia eroticamente o final de seu canto: Mas
amar é sofrer / Mas amar é morrer de dor / Xangô meu Senhor, saravá! / Me faça sofrer /
Ah, me faça morrer / Ah, me faça morrer de amar...3
3
Há um outro afro-samba de Baden e Vinícius neste disco, Labareda, cuja letra é bem pertinente neste
sentido: Oh, labareda te encostou / Lá vai, lá vai, labareda // Oh, labareda te queimou / Lá vai, lá vai,
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Canto de Ossanha
Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou
Eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou
Vai, vai, vai, vai, amar / Vai, vai, vai, vai, sofrer
Vai, vai, vai, vai, chorar / Vai, vai, vai, vai, dizer
labareda (...) Labareda / Fogo que parece amor / Tua dança / É a chama de uma flor / Labareda / Quem
te vê assim dançar / Em teus braços / Logo quer queimar.
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Esta canção inaugura o álbum Os afro-sambas como que abrindo os caminhos das
demais faixas do disco. Afinal, Ossanha, também chamado Ossaim, é o orixá conhecedor
das ervas e o curandeiro do candomblé, onde sua presença é fundamental na celebração de
todas as cerimônias. Para entendermos o Canto de Ossanha, precisamos recorrer novamente
aos mitos de origem iorubá:
CASTELLO, José. Livro de letras. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música
popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
SANTOS, Jocélio Teles. Menininha do Gantois: a sacralização do poder. In: SILVA,
Vagner Gonçalves da. Caminhos da Alma: memória afro-brasileira, São Paulo: Summus,
2002.
TEEG. Conhecendo os orixás. São Paulo: Templo Espírita Estrela Guia, 2010.
XAVIER, Marcelo. Os afro-sambas. In: Revista Rabisco. n.84. 2006. Disponível em:
< http://www.rabisco.com.br/84/afro_sambas.htm> acesso em 20, abr., 2010.
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Introdução
prestígio. Surgem, na Europa, várias obras buscando traçar a história das literaturas
nacionais __ as chamadas histórias literárias. Maria Elizabeth Chaves de Mello explica
que, ao longo dos Oitocentos, “o conceito de identidade nacional servirá de base para a
elaboração das diferentes histórias nacionais e histórias de literaturas, de cunho
positivista e cientificista” (MELLO, s.d., p.2). A redação de uma história literária chega
a representar, como observa Paulo Franchetti (2002, p.1), o coroamento da carreira de
um homem de letras. Na França oitocentista, vários intelectuais abraçaram a tarefa de
escrever histórias literárias, mas o nome mais representativo é o de Gustave Lanson, que
lança sua Histoire de la littérature française em 1894, baseando-se no método
cientificista. Chaves de Mello (s.d.) lembra que, naquele país, a História Literária passa
a compor, ainda no início do século XIX, o quadro das disciplinas das recém-criadas
faculdades de Letras, instituídas pelo decreto de Napoleão, assinado em 1808, pelo qual
se fundava a chamada Université Impériale.
No Brasil, surgem, ao longo do século XIX, trabalhos que procuram dar conta da
história da jovem literatura do país. Ferdinand Denis, francês que viveu por alguns anos
no Brasil, publica em 1826 o Resumo da História Literária do Brasil, que inclui desde
referências à obra de poetas dos séculos XVII e XVIII até considerações sobre a
geografia local. O cônego Fernandes Pinheiro talvez seja um dos nomes mais
representativos entre os iniciadores da História Literária em nosso país. Seu Curso
Elementar de Literatura Nacional (1862) foi redigido para ser utilizado pela cadeira de
“Literatura Nacional”, disciplina que o religioso lecionava no prestigiado Colégio Pedro
II, no Rio de Janeiro. Para Paulo Franchetti (2002, p.3), o apogeu da História Literária
no Brasil é mais tardio do que na Europa, estendendo-se do final do século XIX até o
último quartel do XX e tendo como primeiro grande expoente a obra de Sílvio Romero
e como último a de Alfredo Bosi.
O século XX assiste à crescente perda de prestígio da História Literária, que sofre
críticas oriundas de várias das correntes da Teoria Literária do período. O Formalismo
russo, o New Criticism e o Estruturalismo opõem-se ao modelo historicista no estudo da
literatura. Nos anos 1960, Hans Robert Jauss constata, em seu hoje clássico ensaio A
História da Literatura como provocação à Teoria Literária (1967), a decadência da
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Para um exemplo concreto do quão anacrônico pode soar o cânone eleito pela
História Literária, basta observar os romances mais anunciados e comentados na
imprensa brasileira de meados do século XIX; a maior parte dos títulos não coincide
com as obras hoje reverenciadas como as mais importantes do período. Nos anos de
1857 e 1858, nos três maiores jornais diários do Rio de Janeiro, sede da corte do Brasil
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Também Taunay confessa em suas Memórias ter lido Walter Scott e Eugène Sue (O
judeu errante): “Assim da biblioteca do tio Beaupaire tirei o Judeu Errante, oito
grossos volumezinhos, edição de Bruxelas, que devorei sem parar. Também em extremo
apreciei uma contrafação de Valter [sic] Scott __ Aymé Verd [...]” (TAUNAY, 1960
apud SILVA, 2009, p.25).
Com exceção de Balzac, Alexandre Dumas e talvez Walter Scott, é bastante provável
que os demais romancistas mencionados, a maioria franceses, sejam completos
1
Dados obtidos por meio de pesquisa em fontes primárias, que incluem jornais e revistas brasileiros do
século XIX conservados em microfilme no Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade Estadual de
Campinas.
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desconhecidos para o público de hoje. No entanto, estavam entre os autores mais lidos
no século XIX, não apenas no Brasil, mas em praticamente todo o mundo ocidental.
Jean-Yves Mollier (2003, p.601) ressalta o imenso sucesso que esses escritores
populares atingiram na época em que viveram, e observa que suas tiragens
ultrapassaram as melhores vendas dos escritores oitocentistas mais lidos e aclamados
hoje, como, por exemplo, Émile Zola.
Esses autores de folhetins, embora não fossem unanimidade entre os críticos, eram os
romancistas mais apreciados pelo público e conseguiam conquistar leitores de todas as
classes sociais. Não entraram para o cânone; seus nomes, quando aparecem nas histórias
literárias, são mencionados como escritores menores. Talvez esses folhetinistas
populares não possuíssem qualidades literárias suficientes para fazer perpetuar seus
nomes, mas ignorá-los é ignorar também as preferências e modos de ler de toda uma
época, é desconsiderar o funcionamento do campo literário em todo um significativo
período.
Também no Brasil oitocentista havia escritores de sucesso que hoje são totalmente
desconhecidos. A produção romanesca especialmente, embora ainda em seus inícios,
era bem maior do que fazem crer as histórias literárias e antologias, e incluía autores
que, conquanto sejam hoje completamente anônimos, gozaram de prestígio e mereceram
elogios da crítica de sua época.
Um exemplo disso é Antonio José Fernandes dos Reis, tradutor e escritor cujo
romance A filha da vizinha recebeu elogiosos comentários em importantes periódicos do
início da segunda metade do século XIX, como a Revista Popular, editada pela
respeitada livraria Garnier. Em 1863, cerca de três anos após o lançamento do referido
romance, a Revista Mensal da Sociedade Ensaios Literários noticiava uma segunda
edição, o que atesta o êxito do livro de Fernandes dos Reis também junto ao público
leitor.
Vários outros escritores brasileiros hoje ignorados obtiveram grande aceitação por
parte da crítica oitocentista; é o caso de Bruno Seabra, autor de Flores e frutos e de João
Antonio de Barros Júnior, autor de Emílo. Não se pode deixar de citar, ainda, o nome de
Teixeira e Sousa, um dos romancistas nacionais mais admirados até meados do século
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XIX, elogiado por críticos e escritores, bem aceito pelo público, considerado por muitos
o autor do primeiro romance brasileiro __ O filho do pescador (1843) __, mas referido
nas histórias literárias e antologias produzidas no século XX como um escritor menor,
cujo valor literário seria inferior ao de seus contemporâneos hoje consagrados, como
Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar. Hebe Cristina da Silva (2009) destaca
que essa imagem de autor menor que Teixeira e Sousa adquire nas histórias literárias do
século XX contrasta com a maneira pela qual era avaliado no século XIX, quando seu
nome era mencionado ao lado do de Alencar e Macedo, os três tidos como grandes
expoentes da prosa romanesca nacional.
As obras dos escritores que mereceram destaque em sua época mas não foram
coroados pela História Literária agradaram aos críticos e ao público de seu tempo
porque correspondiam perfeitamente ao que se considerava um bom texto no século
XIX; estavam adequados aos critérios segundo os quais se avaliava uma obra literária
naquele período. Com a chegada do século XX, esses critérios foram se modificando, e
muitos daqueles que eram considerados excelentes escritores no século anterior
passaram a ser vistos como autores menores.
Obviamente, não se espera nem se recomenda que esses autores tenham, nas histórias
literárias e antologias, o mesmo lugar dos que ficaram consagrados. Porém, ignorar sua
existência e a posição por eles ocupada no universo literário de seu tempo é ignorar
público e crítica oitocentistas, ou seja, desconsiderar a leitura no período. E por
desconsiderar a leitura, a História Literária leva a anacronismos. Quando se afirma, por
exemplo, que o marco inicial do Realismo é a publicação de Madame Bovary, de
Gustave Flaubert, em 1857 (e é assim que, geralmente, aprendemos na escola),
transmite-se a falsa ideia de que a partir dessa data não houve mais produções
românticas. Ora, não apenas continua-se a escrever textos românticos, como o romance
de Flaubert só terá verdadeiro impacto e influência vários anos mais tarde. O que se
conhecia por Realismo, naquele momento, é bastante diferente do que se designa pelo
termo hoje.
Esses breves exemplos evidenciam os equívocos decorrentes de uma abordagem do
fenômeno literário restrita à perspectiva da História Literária e apontam para uma
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possível contribuição da História da Leitura para uma visão mais precisa da literatura do
passado.
o que se deve buscar é reconstituir o “espaço literário de uma época”, que se compõe
também por textos, autores e gêneros considerados menores.
O estudo da literatura seria, sem dúvida alguma, enriquecido por essa ótica cultural.
É importante buscar uma abordagem interdisciplinar, que permitiria construir um
conhecimento mais abrangente e, ao mesmo tempo, mais fundamentado do fenômeno
literário. A Teoria Literária não precisa e não deve ser excluída desse diálogo entre
áreas: um estudo abrangente e interdisciplinar da literatura não pode deixar de
contemplar também os elementos internos dos textos, ou seja, não pode prescindir da
análise do texto. O estudo da literatura, e consequentemente o seu ensino, ganhariam em
aliar História Literária, História da Leitura e Cultural, Teoria e Crítica. Os olhares de
várias disciplinas para um mesmo objeto literário podem propiciar, como sugere Regina
Zilberman (2004, p.16), uma “superação dos limites” dessas discilinas, sem suprimi-las.
O diálogo entre áreas levaria a uma visão mais esclarecedora da literatura, uma vez que
os conhecimentos e instrumentos de uma área ajudariam a suprir as lacunas de outra, o
que Darnton propõe para os estudo da história dos livros:
Considerações finais
inadequado, pois incorre no risco de tomar o texto literário como um objeto a-histórico.
Analisar o funcionamento interno da obra é absolutamente necessário, porém, é
fundamental levar em conta a dimensão histórica de tal obra, o que não pode se limitar
ao prisma da História Literária tradicional, mas implica necessariamente estudar as
condições sociais e culturais que envolvem o surgimento, a difusão, a circulação e a
recepção da obra. Considerar a literatura pelo viés da História da Leitura e da História
Cultural significa ampliar o enfoque e buscar um entendimento mais amplo do
fenômeno literário. Uma abordagem que envolva tais disciplinas relacionando-as à
História Literária, à Teoria e à Crítica não seria nenhuma “invenção da roda”, mas
certamente proporcionaria mais sentido e profundidade ao ensino de Literatura.
Referências
ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Porto alegre: Mercado Aberto,
1998.
MELLO, Maria Elizabeth Chaves de. História da literatura: um projeto romântico com
respaldo cientificista, disponível em:< www.pucrs.br/fale/pos/historiadaliteratura>,
acesso em: 23 mar.2010.
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Considerações Iniciais
2. Considerações teóricas
Discutiremos, nesse tópico, alguns dos aportes teóricos que orientarão a análise
proposta nesse trabalho.
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O passado, que é retomado pelo ato de rememorar, pode não ser um elemento de
fuga da velhice, mas um momento para repensar os rumos da vida e refletir a respeito
do futuro. Simone de Beauvoir (1990) afirma que “há na lembrança uma espécie de
magia à qual somos sensíveis em qualquer idade” (BEAUVOIR, 1990, p. 445), mas que
na velhice esse resgate da lembrança se torna mais significativo e freqüente, tendo em
vista que o passado faz com que o idoso não perca a sua identidade e a sua construção
individual e social. E todas essas problemáticas podem ser tratadas pelos textos
literários.
A poesia é uma das sete artes tradicionais e a sua história, na Língua Portuguesa,
teve início, segundo Lígia Cademartori (2003), com as composições poéticas reunidas
em cancioneiros escritos do século XII ao XIV. As denominadas “Cantigas” eram
produzidas para serem cantadas ao público ouvinte e eram classificadas como: cantigas
d´amor, cantigas d´amigo e cantigas de escárnio.
Entretanto, essa ligação da poesia com a música se deu antes desse período.
Fernando Paixão (1991) afirma que a linguagem poética é empregada desde os
primórdios da civilização, quando os homens, tentando explicar a ocorrência dos
fenômenos da natureza, criaram os mitos, originando assim, a mitologia grega. Além
desse contato com a religião, a linguagem poética mantinha, na Grécia, uma estreita
relação com a cultura do povo. (PAIXÄO, 1991, p. 09).
Angélica Soares (1989) observa que durante a Antigüidade surgiu a poesia lírica,
que era executada tendo a flauta ou a lira como acompanhamento e consiste em uma
forma poética de expressões de sentimentos mais individualizados. Essas produções
poéticas, segundo a autora, “já em suas origens, vinham marcados pela emoção, pela
musicalidade e pela eliminação do distanciamento entre o eu poético e o objeto
cantado” (SOARES, 1989, p. 24). Como aponta Rogel Samuel (2005), o gênero lírico é
mais subjetivo, musical e introspectivo que os demais gêneros literários.
Com o passar do tempo, a poesia lírica passou da forma cantada para a forma
escrita. Mesmo com essa migração, ela conservou alguns elementos que mantiveram
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relação de proximidade entre música e poesia. Dentre esses elementos, Angélica Soares
(1989) cita: “a repetição de estrofes, de ritmos, de versos (refrão), de palavras, de
sílabas, de fonemas responsáveis não só pela criação das rimas, mas de todas as
imagens que põem em tensão o som e o sentido das palavras”. (SOARES, 1989, p. 24).
Domício Proença Filho (1987) comenta que as manifestações em versos podem
ter alguns elementos interdependentes: a metrificação, o ritmo, a rima e as formas fixas.
A metrificação é técnica de contagem dos sons dos versos. Na Língua Portuguesa, essa
medida é realizada a partir da tonicidade das palavras; o ritmo é uma alternação
uniforme de sílabas tônicas e não-tônicas em cada verso de uma composição poética; a
rima é um dos elementos do verso, mas não é essencial ou obrigatório, pois o poeta só
lança mão desse recurso se quiser dar ritmo a um verso; no âmbito das formas fixas, o
autor cita a estrofe que é “a sucessão de dois ou mais versos” e que, a partir da
combinação dessas estrofes, se originam as formas fixas, como o soneto. (FILHO, 1987,
p. 40).
Visto que a canção e a poesia são manifestações em versos, os elementos citados
acima são comuns aos dois gêneros em questão, mantendo-os, assim, bastante
próximos. Além dessa aproximação estrutural, a poesia e a canção também se
aproximam quanto à “literariedade”.
“Literariedade”, termo utilizados pelos formalistas, diz respeito à capacidade que
a obra de arte tem de dizer, sugerindo; de através da subjetividade, expressar o que não
pode ser dito facilmente; de dizer, mesmo que não esteja dito objetivamente. Noutras
palavras, é o que faz com que o texto seja considerado arte literária.
A literatura possui esse poder de literariedade, pois sempre nos oferece uma
apreensão subjetiva da realidade, transmitida através do uso de uma linguagem poética
que expressa a visão de mundo do eu - lírico. Assim, o trabalho do poeta consiste em
“armar símbolos, oferecer caminhos imaginários sobre a página” e mais do que isso,
propiciar ao leitor a sensação de “intimidade das palavras, o enredamento caloroso
dentro delas”. (PAIXÃO, 1991, p. 33)
Esse trabalho tão cuidadoso e especial com a linguagem é o que diferencia a
linguagem poética da jornalística, na qual todo o conteúdo é tão objetivo e temporal; na
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Sei do incômodo
2 e ela tem razão
quando vem dizer que eu preciso sim
de todo o cuidado.
Deixo tudo
5 assim,não me acanho em ver
vaidade em mim. Eu digo o que condiz.
Eu gosto é do estrago.
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Ah,ora,8 se não sou eu quem mais vai decidir o que é bom pra mim?
Dispenso a previsão!
A partir da exposição que o eu - lírico faz sobre si (e, possivelmente, para si),
surge um instante de questionamento que é exposto na terceira estrofe. O
questionamento do “velho” se fundamenta na possibilidade de “agora” ser outro
alguém, caso fosse capaz de “voltar / pra mudar” o que fez. Há um “se” condicional, no
primeiro verso, acompanhado de um verbo no pretérito imperfeito do modo subjuntivo
que, juntos, dão ênfase ao tom reflexivo da terceira estrofe.
Ecléa Bosi ressalta a importância de valorizar esse olhar para o passado - olhar
que observa que tudo o que se passou é parte importante na formação do hoje - que
motiva o questionamento feito pelo eu - lírico na terceira estrofe: “o que foi não é uma
coisa revista por nosso olhar, nem é uma idéia inspecionada por nosso espírito – é
alargamento das fronteiras do presente, lembranças de promessas não cumpridas”
(BOSI, 2006, p.18).
Apesar da memória do eu - lírico possuir um caráter individual, visto que refere-
se a experiências por ele vivenciadas, há nesse gesto de lembrar um caráter social. Isso é
observado por Myrian Santos (2003), quando, esclarecendo a teoria da memória,
proposta por Halbwacs, a autora afirma que “quaisquer que sejam as lembranças do
passado que possamos ter – por mais que pareçam resultado de sentimentos,
pensamentos e experiências exclusivamente pessoais- elas só podem existir a partir dos
quadros sociais da memória (SANTOS, 2003, p. 70), pois o convívio e a construção das
experiências estão num plano coletivo, portanto, social.
Ao questionamento que “o velho” se faz, ele mesmo responde, no primeiro verso
da quarta estrofe: “Tanto faz que o que não foi não é”. A impressão de que haveria um
arrependimento em relação ao passado não se confirma, mas o que se percebe é uma
preocupação com quem ele se tornará no futuro: “mas eu quem será?”. Essa
preocupação, possivelmente, está relacionada às escolhas, que feitas hoje, refletirão no
futuro. O eu - lírico afirma: “eu sei que ainda vou voltar” e, voltando ao que hoje é o
presente, ele verá as escolhas que o levaram a se tornar naquilo que o futuro o “será”.
Esse questionamento finda a quarta estrofe e a estadia na estação do presente.
Ao contrário do percurso habitual, que nos transportaria do presente para o
futuro e nos levaria a encontrar um “velho” ainda mais velho, a viagem nos leva à
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Considerações finais
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Referências
AGUIAR, Joaquim. A poesia da canção. 2ª ed. São Paulo: Editora Scipione, 2001.
(Coleção Margens do Texto).
BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Tradução de Maria Helena Franco Monteiro. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. 13ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
CADEMARTORI, Lígia. Períodos Literários. 9ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2003.
COSTA, Nelson Barros da. As letras e a letra: o gênero canção na mídia literária. In:
DIONISIO, Angela P.; MACHADO, Ana Rachel; BEZERRA, Auxiliadora (org.).
Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p 107-121.
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COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
FILHO, Domício Proença. A linguagem literária. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1987.
(Série Princípios).
MAIOR, Mário Souto. Solidão, Velhice & Folclore. In: Boletim da Comissão
Catarinense de Folclore. v. 33, n. 49, Florianópolis, dez. 1997.
PAIXÃO, Fernando. O que é poesia. 6ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
(Coleção Primeiros Passos).
SAMUEL, Rogel. Novo manual de teoria literária. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória Coletiva & Teoria Social. São Paulo:
Annablume, 2003.
SOARES, Angélica. Gêneros Literários. São Paulo: Editora Ática, 1989. (Série
Princípios).
WISNISK, José Miguel. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.
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Introdução
Senhora mostra uma situação na qual não é mais a decisão do patriarca o motivo pelo
qual o matrimônio efetiva-se, sendo que, neste contexto, as relações afetivas também,
ainda que não somente, determinam a escolha do par, apesar da presença sempre latente
do dinheiro.
No romance, pode ser notada a presença de uma dualidade entre o amor e o dinheiro,
considerando que questões financeiras influenciaram diretamente no casamento entre
Aurélia e Seixas. Apesar da existência do amor entre os dois, foi o dinheiro o fator
determinante para a ocorrência do casamento entre eles. Esta dualidade entre o amor e o
dinheiro é entremeada, ainda, pelas questões de honra, visto que uma das razões que
levara Aurélia a “comprar” o marido, fora a vingança por ele ter deixado-a, enquanto
pobre, em troca de um dote, o que ela não poderia oferecer.
Assim, Alencar retrata a sociedade da época, mostrando essa dualidade, juntamente
com as questões de honra, fato recorrente em romances urbanos:
Dessa forma, Senhora apresenta-se como uma crítica à sociedade patriarcal da época,
a qual valorizava os relacionamentos de conveniência e arranjados, valorizando a
possibilidade de opção aos jovens na escolha de seus pares, considerando, assim, não
somente os interesses familiares, mas também os sentimentos.
O romance Senhora foi publicado no ano de 1975, podendo ser considerado uma das
obras-primas de Alencar, sendo que este escritor pode ser considerado, segundo Moisés
(1989, p. 89), “o nosso mais importante ficcionista do Romantismo, pelo volume da
obra produzida, pela variedade dos temas versados e o estilo grandiloquentemente
brasileiro e espontâneo”.
O enredo do romance mostra o casamento baseado no interesse financeiro e a
sociedade burguesa corrompida pelo dinheiro. Conforme Bosi, Alencar mostra-se
satisfeito ao descrever o passado, como em seus romances indianistas, no entanto:
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Apesar desse desprezo voltado à sociedade burguesa, Alencar apresenta uma opção
para esta sociedade, ao trazer o amor como redenção de um homem corrompido pelo
poder do dinheiro.
1 Perfil de mulher
Quando o sistema patriarcal brasileiro veio dos engenhos para o sobrado, foi ainda
mais difícil para a mulher, ser frágil e delicado, o livre acesso à rua, ao espaço externo à
casa, sendo que o pater familia conservava-a, o máximo possível, trancada no interior
do sobrado, sob seu jugo “protetor” (FREYRE, 2000, p. 65). Para Freyre (2000, p. 130),
“o homem patriarcal se roça pela mulher macia, frágil, fingindo adorá-la, mas na
verdade para sentir-se mais sexo forte, sexo nobre, mais sexo dominador”.
O espaço da rua só era permitido aos homens e às prostitutas, assim era possível aos
homens o revezamento entre a proteção de seu lar e a aventura da rua, incluindo-se aí as
traições, sendo essa uma das razões pela qual interessava ao homem manter a mulher
trancada. Freyre ainda afirma que
Nesse mesmo sentido, para preservar essas aparências necessárias à época, mesmo
compreendendo suas finanças, foi preciso que Aurélia se apoiasse em seu tutor, Sr.
Lemos, e ainda que fazendo o trabalho de seu irmão, não pôde sair para trabalhar,
guardando-se por essas “aparências” que a sociedade exigia da mulher burguesa.
A protagonista agia em relação ao dinheiro com desprezo e acreditava que seus
pretendentes aproximavam-se dela apenas por seu poder financeiro, ao que ela devolvia
na mesma moeda, cotando cada pretendente de acordo com seu poder monetário.
Quando Aurélia dirige-se ao tio e tutor, Sr. Lemos, comunicando-o que desejava
casar-se, o mesmo diz que uma moça órfã e jovem como ela, sem o pai para escolher
um bom noivo, deveria esperar a maioridade, imaginando que Aurélia quisesse uma
indicação. Ao afirmar que já escolheu seu noivo, o tio imagina que a mesma esperava
sua aprovação, descrevendo claramente os costumes da época, em que uma mulher não
tinha o direito de escolher seu esposo.
No entanto, a jovem quer casar por amor, com seu escolhido, mesmo que tenha que
abrir mão de todo seu dinheiro. O amor e o dinheiro não podem estar juntos nessa
união, visto que Aurélia, após o casamento, explica seu desprezo pelo marido que se
havia vendido e, só torna a amá-lo, quando o mesmo devolve o dinheiro de seu dote.
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2 O mercado matrimonial
Seixas, moço de família sem posses, apaixonara-se por Aurélia quando ela ainda era
pobre, abandonando-a por medo da estagnação social, visto que ele não poderia manter
a ele e a Aurélia no alto círculo social. Assim, além do dinheiro, o amor era “sufocado
por interesses sociais e raciais” (FREYRE, 1984, p.216).
Ao contrário de Aurélia, Seixas deixa-se conduzir pelos interesses sociais da época.
Funcionário públ ico, o mesmo entrevê no círculo da alta sociedade uma oportunidade
de subir de nível social, através do casamento. Tanto que Seixas, mesmo apaixonado
por Aurélia, a deixa por um dote de 30 mil réis, trocando esse dote por um mais alto,
sem mesmo conhecer a noiva.
Alencar reproduz claramente o mercado matrimonial, comum à sociedade da época,
mostrando, ainda, que a mulher, mesmo como Aurélia, senhora de si, necessitava de um
marido perante a sociedade:
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Vendido, sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou
milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres
honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem
contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo,
tôda a minha riqueza por êste momento. (ALENCAR, 1971, p.74).
Nas famílias sem posses, apesar do casamento ser visto como necessidade social
principalmente para a mulher (as solteironas eram consideradas um aleijão social), eram
os próprios noivos quem decidiam se casar, cabendo às famílias apenas o
consentimento.
D´Incao (2004, p. 234) afirma que a literatura mostra que as mulheres de classes
baixas tiveram maior liberdade em escolher seus pares entre os de sua condição social,
sendo que se esse amor se tornasse uma união matrimonial, “não comprometeria as
pressões de interesses políticos e econômicos”.
No entanto, os valores patriarcais permaneciam, mesmo que o dinheiro não estivesse
diretamente envolvido na negociação, como quando a mãe de Seixas vem informar-lhe
e pedir consentimento para o casamento da filha mais nova, considerando que o noivo
“já é dono de uma lojinha” (ALENCAR, 1971, p. 51-52).
O Romantismo vem mostrar para a sociedade burguesa que duas pessoas somente
podem ser felizes numa união matrimonial quando podem escolher seu par. Segundo
D´Incao (2004, p. 234), a escolha do par, no entanto, “é feita dentro do quadro de
proibições da época, à distância e sem os beliscões”.
Alencar mostra, através do romance, que não é possível que duas pessoas sejam
felizes numa união baseada somente no interesse financeiro. Da mesma maneira que
Aurélia fora deixada por Seixas, em uma troca por um dote no valor de 30 mil réis,
Adelaide também fora abandonada por ele, numa barganha por um dote maior, mesmo
sem que o noivo tivesse conhecimento de quem seria sua futura esposa, pensando,
novamente, apenas em seu bem estar e preocupando-se, uma vez definido o dote a ser
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recebido, unicamente, com os dotes físicos da noiva, por medo de que esta apresentasse
algum problema físico.
No momento em que Seixas conheceu sua noiva, ficou feliz por esta ser Aurélia, pois
apesar de estar corrompido pelo dinheiro e costumes burgueses, nutria sentimentos por
ela. Imaginou que poderia unir o interesse financeiro e social ao amor que sentia por
Aurélia.
No entanto, Aurélia prova a ele o quanto o dinheiro poderia transformar as pessoas
em objetos, fazendo questão de dizer todo o tempo a Seixas que ele era apenas um
objeto passível de compra e venda.
Na noite de núpcias, quando Aurélia revela a Seixas seus reais objetivos, ele esmaga
o sentimento que sentia por ela e sentindo-se humilhado, resolve deixar de lado todos os
benefícios materiais que o casamento lhe proporcionaria.
O amor entre eles só torna-se possível quando Seixas se reeduca, supostamente
reavaliando seus conceitos e redefinindo seus objetivos. A partir disso, ele decide
comprar sua liberdade e honra, devolvendo o valor do dote à Aurélia. Ela, ao ver o
moço com sua honra restituída e com novos conceitos em relação ao dinheiro, coloca-se
aos pés de Seixas, oferecendo seu amor.
D´Incao confirma o papel dos romances que trazem o amor como função redentora
de uma sociedade dominada pelo poder monetário:
patriarcal, ao trazer a mulher novamente sob o jugo do homem, por amor, ainda que por
vontade própria, ao colocar-se a seus pés.
REFERÊNCIAS
LITERATURA VISUAL
01. Introdução
Dessa forma, fica evidente que o vídeo necessita de novas formas de abordagens
tanto da literatura quanto da escrita como um todo, além de trazer consigo uma nova
relação interpretativa e um novo horizonte de recepção.
Partindo desses pressupostos, levanta-se o seguinte questionamento: Como se
dão as relações entre a literatura e os meios de comunicação eletrônicos?
O exame de Nome mostra como a poesia e a literatura podem dialogar de forma
fecunda com as diversas formas digitais que estão à disposição do poeta e/ou escritor
contemporâneo, sem que isso proporcione uma perda ou um nivelamento da prática
artística ao consumo, como sugerem alguns, muitas vezes sem sequer observar em
profundidade um videopoema.
Videopoemas são em sua essência ferramentas literárias, partindo dessa
premissa, procura-se observar o processo de tradução intersemiótica, ou seja, meio este
em que se ligam outras linguagens, outros códigos e outros recursos. É importante
compreender que a poesia talvez como nunca antes, converge intensamente como o
cinema, a música, as artes plásticas, o teatro e em alguns casos com todas essas
linguagens juntas.
É necessário, para qualquer abordagem séria das práticas culturais, observar os
meios em suas multiplicidades de usos e funções, deixando de lado toda e qualquer
preconceito, pois é preciso não confundir potencial do meio com seu uso. O vídeo
serve, e Nome como vem sendo apresentado neste ensaio, de paradigma crítico contra o
uso consumista e superficial da TV.
Entendendo que a escrita veiculada em um suporte eletrônico é uma
característica da arte contemporânea, recorre-se às teorias de Plaza (1987), mais
precisamente em sua obra intitulada Tradução Intersemiótica, na qual abordada a
hibridação das tecnologias. Sobre a relação entre meios eletrônicos e artes Plaza afirma
que o “caráter tátil-sensorial, inclusivo e abrangente das formas eletrônicas permite
dialogar em ritmo intervisual, intertextual e intersensorial com vários códigos da
informação” (idem, p. 97).
Nome, dessa forma, consegue exprimir sua forma poética utilizando o processo
de imbricação dos meios, ou seja, som, imagem e palavra. Para compreender como se
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3- VÍDEO E VIDEOARTE
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Ricardo. Poesia visual e vídeo poesia. São Paulo: Perspectiva, 1999.
BOSI. Alfredo. O ser e o tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. 2. ed.
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DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.
_____. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. Coleção Arte Mais.
NOME. Dvd realizado por Arnaldo Antunes, Célia Catunda, Kiko Mistrorigo e Zaba
Moreau. Contém 30 videopoemas (49min59s). Produzido e distribuído no pólo
Industrial de Manaus por Sonopress Rimo da Amazônia Indústria e Comércio
Fonográfico Ltda. Sob licença da Sony BMG Music Enterteininment (Brasil).
SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. 3. ed. São Paulo: Experimento, 1996.
_____. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus,
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2005.
site: www.arnaldoantunes.com.br
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Introdução
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juvenil comprada pelo governo e distribuída às escolas públicas de todo o Brasil no ano
de 2009.
Com o resultado desta pesquisa, é esperado que se tenha claro a presença da
representação de leituras e leitores nas obras de literatura infanto-juvenil selecionadas
para a compra do acervo de 2009 do PNBE, a fim de contribuir no processo de
formação de leitores.
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Leituras! Leituras!
Como quem diz: Navios... sair pelo mundo
voando na capa vermelha de Júlio Verne.
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Entendemos que o trabalho com a leitura precisa ser ativo e contínuo nas escolas,
possibilitando uma interação entre o aluno e a literatura. Segundo Lajolo (2005), para a
leitura poder exercer seu papel na vida dos alunos, a escola não pode ter como padrão
uma leitura mecânica e desestimulante. Ao contrário, a escola pode e precisa tornar seus
alunos capazes de uma leitura abrangente, crítica e inventiva. Somente assim, os livros
farão sentido na vida deles e, dessa forma, a escola estará ensinando seus alunos a
usarem leitura e livros para viverem melhores.
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Nascido com a finalidade de semear livros, o PNBE tem desempenhado sua função
anualmente, no entanto, a dúvida que segue é até que ponto tem mandado o “povo
pensar”. Como nos mostra os dados estatísticos do PNBE no período de 1998 a 2009, o
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Fonte: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/pnbe.pdf
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Embora esta atitude seja louvável, é preciso ir além. De modo evidente é necessário
investir e capacitar os professores, visto que são esses os que intervêm no processo de
aquisição da leitura e da escrita, e que pode contribuir de forma ímpar na formação de
leitores críticos e inventivos.
Com relação a composição do acervo do PNBE no ano de 2009, o edital apresenta
uma diversidade de gêneros, entre eles: poema; conto, crônica, teatro; texto de tradição
popular; romance; memória; diário; biografia; ensaio; obras clássicas e histórias em
quadrinho. O que propicia uma instigação maior nos alunos, contemplado diversos
gostos e permitindo que o professor esteja amparado de materiais de boa qualidade para
enriquecer suas aulas.
Neste ano (2009), um dos requisitos para a formação do acervo, foi excluir obras
selecionadas e adquiridas nas edições de 2006 e 2008 do PNBE. E para cumprir os
critérios de atendimento, ficou determinado que as escolas com até 250 alunos
recebessem 100 títulos; com 251 a 500 estudantes, 200 obras; acima de 501 estudantes,
300 títulos.
Tendo em vista que esta pesquisa se encontra dando os primeiros passos, ainda tem
um longo percurso a ser trilhado. De tal modo, almeja-se abarcar um corpus que permita
um diálogo entre o social e o ficcional, a fim de ratificar quais processos tem
contribuído ou deixado a desejar no processo de formar leitores e quais representações
de leitura são apresentadas. Acreditando veemente que o Brasil possa ser tornar um país
de leitores, não questionando se é sonho ou loucura essa busca, pois como Monteiro
Lobato(1956, p.178) um dia escreveu “Loucura? Sonho? Tudo é loucura ou sonho no
começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira, mas tantos
sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum”.
Referências
ALVES, Antônio Frederico de Castro. Espumas flutuantes. São Paulo: Klikc, s/d.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Menino antigo. Rio de Janeiro: José Olympio,
1973.
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COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
MACIEL, Francisca Isabel Pereira. O PNBE e o Ceale: de como semear leituras. In:
PAIVA, Aparecida; SOARES, Magda (Orgs.). Literatura infantil: políticas e
concepções. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 7-20.
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Leitura em curso: trilogia pedagógica. Campinas, SP:
Autores Associados, 2005. (Coleção Linguagens e Sociedade).
SOARES, Magda. A leitura e democracia cultural. In: PAIVA, Aparecida et al. (Org.).
Democratizando a leitura: pesquisas e práticas. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica, 2004,
p.17-32.
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Apesar de parecer, a partir de uma engenhosa descrição feita por Jorge Luís Borges, que ocorre
justamente o contrário, quando se trata da função autoral somos comparáveis aos habitantes de Tlön,
um lugar descoberto pela imaginação do escritor argentino, em que: “Nos hábitos literários é também
todo-poderosa a idéia de um sujeito único. É raro que os livros estejam assinados. Não existe o conceito
de plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra de um só autor, que é intemporal e é anônimo. A
crítica costuma inventar autores: escolhe duas obras dissímiles – o “Tao Te King” e as “1001 Noites”,
digamos – confere-as a um mesmo escritor e logo determina com probidade a psicologia desse
interessante homme de lettres” (BORGES, 2001, p. 12-13). A criação borgeana diz do modo como
procedemos, com as diferenças de que não assumimos que estamos inventando um “autor” e de que
ainda não superamos de todo o conceito de plágio, valorizando, contrariamente, a assinatura dos
textos. Assemelhamo-nos a eles, contudo, no que toca à “invenção” de autores (BORGES, 2001, p. 31).
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nome de autor? Como funciona? A sua proposta não é pela indiferenciação, é antes pelo
encaminhamento no sentido de uma possível teoria da obra, inexistente, e, de modo mais
amplo, conforme já propusera em outras ocasiões, de uma história dos discursos.
Algo mais é preciso deixar claro: desde o momento histórico em que o autor passou a
poder ser penalizado é que os textos começaram efetivamente a ter autores. A partir disso,
deve-se ter em mente que a assunção da função autoral denota poder e que o poder nunca se
retira deixando simplesmente um vácuo atrás de si. Antes, a retirada de um vetor de força
abre espaço para a intromissão imediata de um outro. Portanto, se por não os assinar, José
Costa, o ghost-writer de Budapeste, está livre de responder pelos seus textos e pelas idéias
que veiculam, por outro lado persegue-o a ameaça da denúncia por falsidade ideológica que
cerca o seu trabalho e devido à qual pode ser, inclusive, criminalizado e punido, como sói
acontecer a colegas seus de profissão: “Prestavam-se homenagens a companheiros ausentes,
falecidos no abandono ou internados em asilos para esquizofrênicos, ou ainda delatados,
identificados publicamente, alguns até perseguidos e condenados em seus países por delito de
opinião, profissionais que por princípio opinião não têm” (BUARQUE, 2003, p. 25).
Mudando-se do Brasil para a Hungria e aprendendo o idioma magiar com perfeição, o
ghost writer reinicia lá o trabalho de que vivia no Brasil. E com a mesma competência. A
diferença será que em português José Costa era um bom prosador, enquanto em magiar Zsoze
Kósta é um grande poeta. Na verdade, essa voz desdobrável se revela uma “função especial” a
descobrir para si os melhores modos de expressão em cada um dos idiomas, o que ressalta a
condição de “pesquisador” do escritor em geral e enfatiza a dedicação necessária ao trabalho
da escrita, afastando a idéia de um dom originário, costumeiramente ligado à pessoa do
autor 2.
Todas as reflexões acerca da função autoral suscitadas pela leitura de Budapeste fazem
crer que, de vários modos, e diferentemente do que ocorre na sociedade imaginada por
Foucault, ainda importa quem fala. A idéia de autoria, como vimos pensando, passa por
injunções complexas, e mesmo paradoxais. O caso (de) Chico Buarque, entre tantos outros,
2
Enquanto diversas religiões professam ainda hoje o “dom de línguas”, fenômeno em que, como por
milagre ou dom divino, um membro da igreja principia a falar idioma que nunca estudou (Conferir
FERREIRA, 1999, p. 992, verbete glossolalia), José Costa, reconhecendo embora a curiosidade e a
facilidade que desde a infância o encaminharam para o aprendizado de outras línguas, investe trabalho
e pesquisa para a apreensão, ao final irrepreensível, do difícil magiar.
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hábito trocar de nome quando bem lhes conviesse? E para onde sinaliza o mal-estar que
sentimos quando, em ocasião corriqueira, nos trocam o nome? Será o incômodo proveniente
de sabermos, de modo intuitivo, que “quando um nome vem, rapidamente diz mais que o
nome...” (DERRIDA, 1995a, p. 9)? Similarmente ao que ocorre com o criador, que nada tem,
porque é ele quem cria, “o dom do nome dá aquilo que ele não tem, aquilo em que consiste
talvez, antes de mais nada, a essência, isto é, para além do ser, a inessência do dom”
(DERRIDA, 1995b, p. 76). Dar o que não (se) tem e o que o outro também não possuirá. E como
afirma o próprio Chico Buarque em Benjamim: “as pessoas têm um nome que lhes antecede,
depois ganham a cara do nome que têm” (BUARQUE, 2004, p. 116).
Nesse mesmo sentido vale a pena observar que, dos trabalhos críticos mais
representativos escritos acerca da produção musical e literária de Chico Buarque, a maior
parte leva como título o nome do próprio compositor-escritor – às vezes somente seu nome
próprio, como se fosse índice suficiente para o conteúdo do livro (e na maior parte das vezes o
é, já que se trata, de um modo geral, da retomada de fatos biográficos, recontados ao sabor e
ao estilo do novo biógrafo). Em grande parte desses ensaios há um obscurecimento do
trabalho crítico de atrito com os textos, minguado pelo magnetismo exercido pelo “senhor”
autor e, quase que completamente, pela sua inevitável griffe, reforçada ao longo de décadas
de trabalho como compositor e intérprete. Apesar da importância reconhecida, ainda que por
vezes altamente polemizada, do conjunto de sua produção musical, não raro a discussão da
obra foi lamentavelmente apagada pelo carisma do criador, ou ao menos com ele dividiu as
atenções – o que não é incomum quando se trata de ídolos da MPB, mas que nesse caso
específico sobressai 3.
3
Gilberto de Carvalho foi um que dos que declararam dedicar seu trabalho à obra, e não ao compositor,
desviando-se da chicolatria que outros estudiosos alimentaram, o que afirma fazer na contramão do
hábito e sabendo contudo que os vários depoimentos e dados sobre a vida do compositor de que dispõe
“seriam imensos atrativos para aumentar as vendas deste livro” (CARVALHO, 1982, p. 13). Carvalho
anuncia sua “decepção” com a pessoa ou artista Chico Buarque, declarando, a partir de então, a
exclusividade do seu interesse pela obra – sem interrogar, no entanto, o que de mitológico há na
relação autor-obra, nem o provável gérmen mitificador que o guiou a anotar as declarações de Chico
Buarque e a pesquisar sobre sua vida pessoal, impulso sem cuja existência não se justificaria sua
“decepção”. Buscando direcionar-se na contramão da crítica mitômana, Carvalho segue o mesmo
caminho daquela, a partir do momento em que aponta a sua desistência de desenvolver as questões
biográficas como resultado do desapontamento com o artista. Talvez o jornalista acreditasse que, ao
acrescentar pontos que pensa serem desabonadores da personalidade de Chico Buarque, estivesse de
fato se afastando da atitude idólatra, comportamento que, ao contrário, reafirma a força do mito, já que
mostra a busca por um ser previamente idealizado, procura a que se acrescentam, depois de uma certa
aproximação, a desilusão e o ressentimento, passando a parecer que, ao contrário do que afirma na
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introdução do livro, a obra é que é uma justificativa para falar – ainda que de modo negativo – do
artista: “As perplexidades boas eram progressivas à medida que pesquisava exclusivamente a obra; no
estudo do artista, deparei com algumas surpresas não tão boas. Optei por fazer deste livro uma análise
quase que exclusivamente de sua obra musical, e não de Chico Buarque, a pessoa ou o artista”
(CARVALHO, 1982, p. 13). Sua tentativa de desfazer a criticada mistura entre artista e obra se frustra
devido a sua própria confusão artista-obra.
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Num exemplo da força do nome, no limite contraditório da obstinação por aceitação e da auto-
rejeição identitária, o personagem judeu Alex Portnoy, de Philip Roth, lembra que, certa vez, em sua
juventude, ao tentar se aproximar normalmente de uma shikse (garota gentia, não judia) na pista de
gelo em que ela patinava, sendo traído contudo por sua aparência, especialmente pelo “nariz judeu”, a
primeira coisa que faz é inventar um nome americano para si, numa submissão identitária irônica e sem
auto-complacência: “Então, quando já a perdi seguramente de vista, começo a patinar loucamente atrás
dela. ‘Desculpe-me’, direi, ‘mas será que me permite acompanhá-la até em casa?’ ‘Acompanhá-la’ ou
‘que eu a acompanhasse’? – como seria mais correto? Pois a minha linguagem tem de ser
absolutamente perfeita, sem nenhuma mistura de judeu. ‘Aceitaria talvez um chocolate quente? Pode
me dar o seu número, para que eu lhe telefone uma noite dessas? O meu nome? Chamo-me Alton
Peterson’ – um nome que eu pegara para mim do distrito de Montclair, do catálogo de telefones de
Essex County – inteiramente goy, tinha a certeza, e ainda de quebra soando como Hans Christian
Andersen. Que golpe! Treinara para escrever ‘Alton Peterson’ durante todo o inverno, em folhas de
papel que pesteriormente arrancava do meu caderno de pontos, depois da escola, e queimava, para não
ter de dar explicações a ninguém em casa. Sou Alton Peterson, sou Alton Peterson – Alton Christian
Peterson? Ou será que é ir um pouco longe demais? Alton C. Peterson? E fico tão preocupado em não
esquecer quem gostaria de ser agora, tão ansioso em chegar à garagem de barcos, enquanto ela ainda
estivesse tirando os patins – imaginando também o que direi quando ela indagar sobre o que aconteceu
com o meio da minha cara (antigo ferimento de hóquei? Queda do cavalo, enquanto jogava pólo numa
manhã de domingo – salsichas demais no desjejum, ah ah ah!) –, que atinjo a margem do lago com a
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A assunção de um nome artístico alivia o peso da carga que nos foi imputada
independentemente da nossa vontade, dando início a um novo processo de imantação e
recolha de novos significados. A idéia que fazemos do que sejamos, nossa identidade, passa,
obviamente, pelo nome. A partir do nome é que sabemos ou julgamos saber quem somos,
criamos e reforçamos a nossa identidade. A partir dele, o outro nos identifica. Não é por outra
razão que, em qualquer formulário que tenhamos de preencher, o primeiro item é o nosso
nome, e a palavra que o solicita é identificação.
Consideremos a afirmação de Derrida, já bastante referida, sobre a intraduzibilidade do
nome próprio, o que não permitiria que se considerasse o seu pertencimento, como o das
outras palavras, ao sistema da língua (DERRIDA, 2002b, p. 21). Lembremos depois que, quando
José Costa chega a Budapeste, parece ter seu nome “traduzido” para o magiar. Na verdade o
que se dá é não uma tradução, mas uma transcrição fonética, por parte do próprio Costa, da
forma como ouve seu nome ser pronunciado. Como nome próprio e como nome de autor, ele
está além – até certo ponto a salvo da corredeira comum das palavras de uma língua – ou de
qualquer língua. Algo acontece ali, porque a partir de agora, e notando-se depois com que
rapidez e mestria ele aprende a falar e escrever em magiar, vê-se (o que se dá sempre a
posteriori) que o ghost writer brasileiro é, ele próprio, apenas adentrado em território
estrangeiro, transformado em Zsose Kósta, uma “versão” daquele outro, num jogo de
tradução recíproca em que o traduzido se torna, a posteriori, um original, novamente
traduzível. É desse modo que José Costa e Zsoze Kósta, suas vidas e seus livros se retraduzem
constantemente entre o Brasil e a Hungria, por detrás de nomes “intraduzíveis” e de escritos
não assumidos.
Nesse sentido, a própria assinatura, dada como promessa e garantia no contrato, parece
uma brincadeira ou armadilha em que os envolvidos procuram se ludibriar mutuamente, ao
solicitarem, do nome grafado, “plena singularidade”. Como, perguntamos, se a sua marca
principal é justamente poder ser repetida infinitamente pelo assinante? É o seu paradoxo. Por
outro lado, o fator que geraria autenticidade (a saber, a imitabilidade, a repetição pelo
signatário) constitui, ele próprio, a possibilidade de imitação por um outro (ou mesmo por uma
ponta de um patim um pouco antes do que pretendera e precipito-me sobre o solo queimado pelo frio,
lascando um dente da frente e despedaçando a protuberância óssea da parte superior da tíbia” (ROTH,
1982, p. 132).
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Assim como, ao receberem de José Costa os livros encomendados, os clientes não fazem
menção de lê-los, como vimos, do mesmo modo, curiosamente, nenhum deles lhe assina um
cheque, sendo o pagamento feito sempre em moeda, ou seja, não desponta a leitura como
contra-assinatura, do mesmo modo que, sintomaticamente, a falsa assinatura que Costa lhes
permite pôr no livro não aceita a ironia de uma devolução, uma outra espécie de contra ou
falsa assinatura.
Em comum, a assinatura e o autógrafo trazem a ilusão da presença do assinante
(ignorando, entre outras, a questão do retardo temporal, o espaçamento que afasta aquela
possibilidade), no entanto não se solicita um autógrafo num documento (a não ser por gosto
da anedota), nem se pede, de modo algum, a um artista encontrado ao acaso, uma assinatura.
Forte relatividade de origem afetiva atua de modo paradoxal nessa distinção: embora não
baste ao admirador o abraço ou o aperto de mão do ídolo (o que torna o gesto dispensável), a
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semelhança entre a grafia do nome traçada para ele naquele instante e as outras já conhecidas
também não é de suma relevância, porque a suposta plenitude do momento, singular e
efêmero, vale como garantia de autenticidade, já que se considera que a presença,
posteriormente relatável (tanto quanto pode ser mostrado o autógrafo conseguido, do qual,
mais uma vez de um modo paradoxal, raramente se cobra o valor de autenticidade), é o mais
importante. A não ser que o autógrafo do ídolo em questão seja plenamente divulgado e
conhecido, tendo alcançado já o valor de griffe sobreposta a produtos: a griffe dispensa assim
o autógrafo, a assinatura e a presença.
A questão do direito (escritura e direito historicamente atados) também retorna:
contraditoriamente, a grafia do autógrafo parece interessar menos que a da assinatura, mas é
de fundamental importância que ela exista, não bastando ao fã, como se disse, o gesto ou a
presença memorável do ídolo. Diria mesmo que o afã do autógrafo ofusca ou elimina a
presença do artista. Porém, assim que se transforma em griffe, o que pode ocorrer num
momento posterior a sua aquisição como “mera” assinatura, o que um dia teria sido um
autógrafo passa a ter valor de mercado e, a depender das situações em que se envolva a
celebridade em questão, pode chegar inclusive à condição de instrumento legal de reporte ao
passado.
Há portanto uma hierarquia móvel, de estágios reversíveis, que situaria numa escala
ilusória ou fantasmática, apenas aprioristicamente aplicável, o nome próprio, a assinatura, o
autógrafo e a griffe. Não se trata de afirmar uma indiferença, mas de perceber a aura nebulosa
que cerca essa hierarquização e a óbvia liquidez dos valores que a sustentam. Como afirma
Bennington, “Assim como a assinatura só é constituída como promessa de contra-assinatura, o
momento presente da voz, ou de qualquer experiência que seja, só existe como função de
uma ‘promessa’ de memória, logo de repetição” (BENNINGTON, 1996, p.115).
Caso seja transformado em griffe e remeta, nesses casos, a objetos, antes que a
determinada pessoa, o nome próprio estará comprometido com o devir comum de todo e
qualquer nome, pervertendo a hierarquia que se iniciaria com o nome comum, passando pela
assinatura, depois pelo autógrafo, e chegando até a griffe. Nesse ponto de chegada, a griffe
retorna à nomeação dos objetos ou produtos (a exemplo do livro), ou seja, ela se transforma
em nome comum.
O jogo presente em Budapeste passa por aí: é ao final dos desdobramentos em diferentes
nomes de personagens autores que surge, como um último, o nome de autor “Chico Buarque”,
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que se assina fora da instância propriamente narrativa, mas ainda dentro do livro considerado
como objeto: em sua capa 5. Portanto, a um tempo ainda no livro e já fora, mas sempre dentro
e fora dele, forçando as questões internas à narrativa para além do ficcional.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. Tradução António
Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 49-53.
BENNINGTON, Geoffrey. Jacques Derrida. Tradução Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1996.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 2001.
BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
DERRIDA, Jacques. Khôra. Tradução Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1995a.
DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Tradução Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1995b.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução António F. Cascais e Edmundo Cordeiro.
Lisboa: Vega, 1992.
ROTH, Philip. Complexo de Portnoy. Tradução Cezar Tozzi. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque: análise poético-musical. Rio de Janeiro: Codecri, 1982.
5
A capa é um território de fronteira? Uma passagem entre o ficcional e o seu exterior? E o que seria o
exterior da ficção? Onde estariam os seus limites? Pode a existência da ficção estabelecer o que seja o
exterior? A capa é esse sim e não à questão da fronteira ficcional. É onde figura o nome do autor, nome
também de um cidadão que, espera-se isso dele, escape às malhas da ficção; para isso ele dispõe de
seus personagens, de sua criação, através da qual pode se expor, no limite, omitindo-se contudo. É
também onde comparece, primeiramente, o nome do texto, que já é uma entrada (ou saída) para a
ficção. É ali, nesse lugar de passagem, que o nome Chico Buarque se inscreve, dividindo a instância
autoral com aquele outro, provindo mais diretamente do universo ficcional, que é José Costa, com seu
duplo Zsoze Kósta. Resta ao leitor decidir sobre as quotas (na verdade indecidíveis) de ficção e de
“autoridade” que infestam esse nome – Chico Buarque. As flutuações que o envolvem se lançam
primeiramente em torno de uma série de possibilidades de escrita e de não-assunção da autoria, nos
meandros do romance.
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Introdução
Nos últimos tempos, com a demanda da produção editorial voltada para o público
infanto-juvenil, diversas pesquisas sobre a produção literária para crianças e jovens têm
demonstrado dentro do cenário nacional resultados valiosos seja para a compreensão do
gênero como arte, seja para o preparo de futuros professores que deverão atuar na
formação de leitores. Entretanto, diante da produção editorial sempre crescente, é
preciso que novos projetos sejam desenvolvidos tanto para o simples cadastramento por
gênero como para a crítica qualitativa das obras que esse mercado tem produzido.
O mercado editorial brasileiro, no que se refere à literatura para crianças e jovens,
tem publicado cada vez mais obras que refletem aspectos da cultura nacional, buscando
em fontes histórico-culturais diversas, motivos e temas para a renovação de sua
produção. Não tem sido diferente o tratamento dispensado por esse mercado aos autores
canônicos, normalmente considerados “autores para adultos” como Machado de Assis,
Lima Barreto, José de Alencar, Aluísio de Azevedo, entre outros. Naturalmente, um dos
fatores que pesam na decisão de publicar as obras desses escritores é a questão de
domínio público. Não há necessidade de pagamento de direitos autorais a esses autores.
É fato também que toda manifestação cultural produz mercadorias (o livro infantil é
uma das mais valiosas e rentáveis do momento), encaminhando tais produtos para as
gerações mais novas. E isso começa a ocorrer de modo mais sistemático com as
manifestações da cultura canônica, que têm migrado para a produção dirigida à
literatura para infância e juventude, gênero bastante permeável a esse material por sua
ligação mais estreita com aspectos do projeto gráfico-editorial.
Para que esse material publicado possa chegar ao leitor almejado - a criança e o
adolescente - as editoras procuram alcançar os mediadores mais qualificados, no caso,
os professores, que são, ao lado de pais e bibliotecários, os grandes responsáveis pela
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aquisição dos textos para leitura. Para tanto se valem de “sites” na web, muito atraentes
e facilitadores tanto para aquisição das obras como para a proposição de atividades de
leitura na escola, bem como dos catálogos, verdadeiras vitrines com produtos bem
apresentados para o mercado. Assim como professores e pais usam esses instrumentos
para atuarem como promotores de leitura entre crianças e jovens, também pensando na
mediação entre texto e leitor, este artigo trabalha com corpus selecionado, no caso, o
conto Missa do galo (Escala Educacional, 2008), de Machado de Assis, adaptado em
2008, com o objetivo de analisar o projeto gráfico-editorial bem como os elementos da
narrativa (narrador, focalizador e personagens) e ressaltar o modo como a literatura
infanto-juvenil se apropria de temas e imagens presentes na produção de Machado de
Assis.
daí, não pararam mais. E é incrível que durante a maior parte do século XIX, as obras
adaptadas pelos irmãos Lamb eram consideradas leitura obrigatória nas escolas do
Império Britânico (MONTEIRO, 2006).
Já no Brasil, o processo de tradução e adaptação para o público infanto-juvenil está
relacionado ao desenvolvimento da literatura escolar. Segundo Carvalho (2006),
Assim, é importante frisar que as noções levantadas por Chatier (1990) são pautadas,
por sua vez, nos estudos feitos por Jauss (1994) a respeito da posição que o leitor toma
em relação ao texto. Ou seja,
Neste sentido, a obra literária não é apenas um objeto que existe por si só, mas sim,
oferece a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um
monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes, como uma
“partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, liberando o texto da
matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual” (JAUSS, 1994, p. 25). Para o
teórico, portanto, o leitor é o responsável pela atualização dos textos, que garante a
historicidade das obras literárias que permite a ampliação de uma nova perspectiva da
realidade e, consequentemente, do campo de percepção.
Na década de 1960, a editora Tecnoprint, hoje conhecida como Ediouro, lançou uma
coleção de clássicos estrangeiros adaptados. Foram convidados, entre outros, Carlos
Heitor Cony, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, entre outros
para fazer parte da equipe de escritores que trabalhariam com obras adaptadas. Como a
iniciativa deu certo, muitas outras editoras passaram a investir no mesmo ramo. Logo
depois, houve aprovação, dessas obras, por parte de pais, alunos e professores.
Monteiro nos mostra como ocorreu a inovação no campo das adaptações no final da
década de 1990,
A partir daí, as adaptações, e não apenas de caráter literário, não pararam mais. Hoje,
muitas obras de nosso acervo brasileiro são adaptadas para diferentes suportes,
conquistando o seu espaço no cenário da literatura nacional.
leitores, mas sim, de tudo que possa auxiliar durante o processo de formação e educação
do olhar.
Nos últimos anos, o mercado editorial colocou em campo toda sua competência no
projeto gráfico-editorial, muitas vezes ousado, criativo e diferenciado, para homenagear
o escritor Machado de Assis. Ainda que sem um levantamento exaustivo dos modos
como o mercado prestigiou a efeméride, procuramos apontar através de uma análise,
peculiaridades do projeto gráfico-editorial da obra Missa do galo, de Machado de Assis,
publicada em 2008 pela Escala Educacional, voltada aos jovens leitores.
O público não possui, normalmente, percepção da influência de aspectos que
configuram o projeto gráfico-editorial de um livro - como qualidade do papel, tamanho
e formato da letra, encadernação, quantidade de texto e de ilustração em cada página,
bem como do conteúdo e realização de paratextos - no processo de leitura de cada leitor.
Em razão disso, pretendemos enfatizar neste texto, a partir da apresentação da obra, a
importância desse olhar para as escolhas que definem o corpo e a alma do livro, como
resume Odilon Moraes:
[...] o projeto gráfico nos indica uma idéia de ler, isto é, uma idéia de
um tempo para se olhar cada página, de um ritmo de leitura por meio
do conjunto de páginas, de um balanço entre texto escrito e a imagem,
para que, juntos, componham e conduzam a narrativa (In: OLIVEIRA,
2008, p. 49-50).
Vilela relata também como desenvolveu o projeto gráfico em estreita ligação com a
época de publicação da obra de Machado de Assis, de modo que o livro ficasse com
aparência de antigo, inclusive, com o papel com aparência de infestação de fungos:
Para Oliveira (2008), o que se espera de um livro para crianças é que as imagens
contenham arte, isto é, que sejam feitas por um verdadeiro artista. O poder simbólico de
uma ilustração em um livro voltado ao público juvenil e sua capacidade de se perpetuar
na memória estão muito além de uma simples nomeação, ou seja, como nos outros
gêneros literários entre eles a poesia e a prosa, as palavras vão muito além de seus
significados. Neste sentido, a “sonoridade que as palavras provocam, o mesmo ocorre
com a ilustração, que, apesar de seu aspecto figurativo concreto, também possui um
som, um gênero de ressonância visual” (OLIVEIRA, 2008, p. 41). Assim, ao analisar a
obra adaptada Missa do galo verificamos que, no miolo, as ilustrações valorizam os
espaços vazios já mencionados e ocupam totalmente as páginas e até duas inteiras. O
texto é distribuído, predominantemente, em metade das páginas ocupadas pela
ilustração, o que favorece e estimula a leitura dos leitores mais jovens.
Outro aspecto relevante na obra de arte ilustrada é a sua significativa relação com as
artes visuais e também, com a construção do projeto editorial. Este trabalho em
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conjunto possibilita que a criança e o jovem ao se verem diante de uma obra ilustrada e
com um projeto acessível a eles consigam despertar as suas experiências visuais ocultas
que não foram ainda conscientemente vividas. Logo, o Glossário, o projeto editorial e
as ilustrações do conto adaptado Missa do galo, de Machado de Assis são paratextos
que contribuem para a adequação da obra à faixa etária pretendida, uma vez que
fornecem informações a respeito de termos e expressões distantes dos leitores bem
como sobre o autor e detalhes das fotografias que motivaram o trabalho do ilustrador,
aspectos importantes para despertar o senso estético dos leitores.
Considerações finais
Referências
CONY, Carlos Heitor. As adaptações dos clássicos e a voz do Senhor. São Paulo:
Scipione, 2002. Disponível em < http: / / www.scipione.com.br/scipioneeducação >
Acesso em 11 de janeiro de 2009.
OLIVEIRA, Rui. Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para
crianças. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
Anexos
Introdução
O autor de que este artigo se ocupa se dedicou a uma criação literária surpreendente e
exemplar do aspecto vetorial das artes visuais na escrita literária. A escolha de Valêncio
Xavier (1933-2008) para o encaminhamento do tema se deve ao fato de Xavier ter
criado uma obra que lhe confere as marcas de originalidade inconfundíveis. Além desse
mérito indiscutível, o romance “Minha mãe morrendo e o menino mentido” torna
evidente que a literatura pode mobilizar em seu proveito a permeabilidade de assimilar
outras formas de expressão e de comunicação, atuando como eixo relacional aberto a
interações com as artes visuais como a pintura, a fotografia, o cinema, a arte gráfica.
Em “Minha mãe morrendo e o menino mentido”, as imagens provenientes de vários
contextos atuam como princípio formal e são responsáveis tanto pela coerência
estrutural como pela originalidade da obra. Daí resulta a força singular deste álbum
memorialista, de natureza autobiográfica, uma espécie de romance de formação, gênero
clássico no qual são narradas as experiências fundadoras do personagem central.
Responsável pelo arranjo geral e pelo projeto gráfico do livro, Xavier apostou na
estética da colagem e da fragmentação, submetendo esse gênero literário a uma
configuração de texto e imagem. Artesanato cuidadoso e original, o álbum-bricoleur
resulta da mescla texto, desenhos, antigos reclames do século passado, fotografias,
fotogramas, mapas, ilustrações, enfim, todos esses materiais polissêmicos foram
retirados, principalmente dos produtos e emblemas da cultura de massa, e foram ali
reunidos e ordenados de modo a expressar as experiências afetivas do personagem-
narrador, o Menino mentido.
Há outro aspecto da maior relevância a destacar: em Xavier, a memória possui um
estatuto fundador. O movimento oscilante entre experiência, memória e ficção fica
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não sei por que/ me fizeram olhar/ pelo vidro redondo/ da sala de
operações/ eu era pequeno/ tive que me erguer/ para ver o que vi/que
não queria ver/ costelas cortadas/ de sangue cobertas/ dobradas para
fora/ do campo cirúrgico/ quadrado de carne/ no pano branco/corpo
envolvente (XAVIER, 2001, p. 25-28).
3
Interessa observar que, no livro, este trecho do poema forma um caligrama, semelhante a uma flor.
Graças ao persistente ludismo, este é mais um componente da narrativa relacionado à memória sensitiva
que também participa do jogo de correspondências.
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Impressas nas páginas ímpares do livro, a cada uma das fotografias corresponde uma
seqüência narrativa que nos aproxima de sua significação, porque a fotografia nada nos
diria sem a presença da palavra do autor. Sua significação continuaria enigmática para
nós, a não ser que sejamos “participantes da situação de enunciação de onde a imagem
provém.” (DUBOIS, 1993, p. 52).
Recolhida do álbum de família, a fotografia atualiza um instante singular do tempo
da vida do personagem-narrador que a câmera captou. O menino, com a babá e o irmão
mais velho, é revelado após a designação do autor – “o da esquerda sou eu”. Ele
identifica-se, entretanto, assumindo os nomes de Aladim, Sinbad, o ladrão de Bagdad,
personagens lendários dos contos e lendas das “Mil e uma noites”, lidos nos livros ou
vistos nas telas do cinema. Em algumas passagens como essa, a fotografia propicia a
construção de paisagens imaginárias. Entrelaçada com a fotografia, a narrativa é
envolvida no arco de correspondências com os mistérios do Oriente, e, por esse
caminho, abre-se espaço para a emergência do imaginário, para o mundo dos sonhos. A
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fotografia como imagem-memória ajusta-se bem a esse papel, pois é uma imagem
assombrada pelos jogos de desejo e de morte.
Dessa impressão luminosa é sempre realçada uma presença íntima de algo, dos seres,
das coisas e lugares, daí a sua transformação em objetos de culto, verdadeiros relicários.
Walter Benjamin chega a se referir à fotografia como um objeto aurático, especialmente
o rosto humano das antigas fotos, como o “refúgio derradeiro do valor de culto que foi o
culto da saudade consagrado aos amores ausentes ou mortos.” (BENJAMIN, 1985, p.
201).. Suas análises lúcidas permanecem como guias incomparáveis porque Benjamin
percebeu, antecipadamente, que a fotografia pode ser colocada na ordem explícita da
subjetividade quando diz que “a natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao
olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente
pelo homem,um espaço que ele percorre inconscientemente.” (BENJAMIN, 1985, p.
94).
Para Dubois, entretanto, a questão pragmática se impõe: a fotografia como índice
“designa com força o objeto real, único e singular, ao qual sua gênese a vincula
fisicamente, e atesta a existência desse objeto num momento e num lugar
determinados.” (DUBOIS, 2005, p. 83). Ambos, Benjamin e Dubois, são unânimes em
afirmar que a fotografia participa da memória como um objeto de crença, graças ao
estatuto de índice do signo fotográfico.
Não é outro o pensamento de Roland Barthes a esse respeito. Apesar de partir de
uma interpretação muito pessoal no seu ensaio dedicado à fotografia, Barthes
compartilha de idéias semelhantes às de Benjamin e Dubois. Ao fim de uma longa
digressão mobilizada por uma fotografia especial de sua mãe quando criança, A
Fotografia do Jardim de Inverno, ele enfim, “compreendera que doravante seria preciso
interrogar a evidência da Fotografia, não do ponto de vista do prazer, mas em relação ao
que chamaríamos romanticamente de amor e morte.” (BARTHES, 1984. p. 110).
Os sentidos atribuídos à fotografia, portanto, são da ordem do culto e as fotos da
galeria familiar são marcadas com o selo do desejo e do luto. O trecho seguinte expressa
essa postura enunciadora peculiar à qual imagem fotográfica está ligada. Nele, não há
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Conclusão
literária com outras artes, sendo a literatura assumida como um ponto de mediação, um
entre-lugar dos sentidos quando o livre jogo das formas resulta na criação de novos
estilos.
Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara. Traduzido por: Júlio Castañon Guimarães. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Obras escolhidas, v.1: magia
e técnica, arte e política. In: Obras escolhidas, v.1: magia e técnica, arte e política.
Traduzido por: Sérgio Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985.
DIAS, Ângela Maria. Valêncio Xavier e o aprendizado do olhar como perda. Revista da
ANPOLL, Campinas, SP, n.19, p.11-31, jul./dez., 2005.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Traduzido por: Paulo
Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998.
JOYCE, James. Ulisses. Traduzido por: Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Record, 1982.
_______. Formalismo & tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. Rio
de Janeiro: Forense Universitária; São Paulo: EDUSP, 1974.
XAVIER, Valêncio. Minha mãe morrendo e o menino mentido. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
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É por meio da literatura que temos a possibilidade de recriar o real ou até mesmo de
modificá-lo de acordo com aquilo que melhor nos satisfaça. E um tipo determinado de
literatura que vem abrindo espaço cada vez mais em nossa sociedade e que nos conduz
de maneira ainda mais intensa, quer através de sua sensibilidade mais aguçada, quer
através de seus numerosos silêncios compostos de relações especiais entre as palavras, é
a literatura feita por mulheres.
Falar de uma literatura especificamente feminina é falar de uma literatura mais
sensorial, mais metafórica, repleta de subentendidos que vão se revelando à medida que
os significados se multiplicam no texto. As infinitas possibilidades de leitura de uma
obra literária não se limitam somente ao campo da literatura feita por mulheres, é claro,
mas não há como negar que a percepção de um “olhar” feminino, sobretudo quando os
temas tratados dizem respeito a este universo em particular, deixa transparecer como
que uma compreensão a mais em relação àquilo sobre o que se está falando.
A escrita feminina é marcada pelo viés da subjetividade, pelo profundo desejo de se
revelar sem, no entanto, se expor em demasia, e tudo isso acaba por desaguar na
maneira como as escritoras femininas compõem os seus textos.
Este artigo tem como objetivo realizar uma leitura da temática do incesto tomando
como pano de fundo três obras de três autoras brasileiras; Cartas de um Sedutor, de
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Hilda Hilst, O Quarto Fechado, de Lya Luft, e Caim, Sagrados Laços Frouxos, de
Márcia Denser.
Mauro Rosso (2006) diz que
apesar das (para alguns incontornáveis) dificuldades para definição
precisa do que seja uma escrita feminina, eu particularmente entendo
existir uma ‘literatura feminina’ com elementos, valores e vetores
próprios – que só fazem acrescentar e enriquecer a literatura (e a
Cultura em geral). Fácil identificar entre escritoras brasileiras e
estrangeiras contemporâneas uma escrita nitidamente feminina com
suas obras carregadas de suas características específicas. (ROSSO,
2006, P. 12).
Sem dúvida, a abordagem dada acima pela analista literária aplica-se mais
especificamente à crítica feminista, contudo, ao relacioná-la aos estudos feitos no Brasil
sobre a escrita feminina feita por mulheres, considerando a contemporaneidade,
perceberemos que há ainda um hiato no âmbito dos estudos literários quando o assunto
é a especificidade da linguagem feminina nos textos modernos.
Citando Brandão (2004)
A personagem feminina, construída e produzida no registro do
masculino, não coincide com a mulher. Não é sua réplica fiel, como
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Tanto Hilda, quanto Luft e Denser apresentam textos em que alternâncias entre a
leveza e o peso da linguagem se fazem perceber. Ora elas suavizam certos
acontecimentos – procedimento mais comum à Luft, ora “carregam” mais tanto na
temática quanto na linguagem – mais comum em Hilst e Denser.
Para facilitar o acompanhamento da análise que faremos, faz-se pertinente elaborar
um rápido resumo das obras.
O romance “Cartas de um Sedutor”, 1992, de Hilda Hilst faz parte de sua trilogia
obscena 1 e nos coloca diante de uma inusitada estrutura narrativa: num primeiro
momento, conhecemos o narrador/personagem Stamatius, um escritor fracassado que
renuncia a uma vida de relativo conforto, com emprego, família, amigos, para se dedicar
exclusivamente a arte da escrita. Dentro da narrativa de Stamatius surge Karl, o
1
Fazem parte da “trilogia obscena” de Hilst as obras O Caderno Rosa de Lori Lamby,1990, Contos
D’escárnio – textos grotescos,1992, e Cartas de um Sedutor,1991.
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Lya Luft afirma ser uma constatação precária dizer que ela escreve sobre mulheres.
Mulheres não são seus personagens exclusivos. “Escrevo sobre o que me assombra”,
observa. E nisso está a infância. O importante é o compromisso com a dignidade. Toda
a sua obra poderia ser resumida — como afirma — num livro de indagações.
(www.releituras.com.br)
Aqui, nos deteremos apenas à análise da relação incestuosa entre Martim e Ella a fim
de perceber como a questão do desejo pelo outro rompe as barreiras do tabu familiar e
também como todo o núcleo parental vem a ser penalizado com a “proibição” do
envolvimento entre os dois personagens por Mamãe, personagem da obra, mãe de Ella.
Márcia Denser é o que se convenciona chamar de escritora contemporânea marginal.
Muito embora ela tenha tido vários de seus livros traduzidos e publicados em diversos
países, o Brasil ainda não a reconhece como uma autora de destaque no cenário da
literatura feminina nacional. Denser publicou seu primeiro livro de contos, Tango
Fantasma, na década de 70 aos 23 anos, e já nessa obra percebe-se a marca original de
sua escrita que é precisa, forte, direta e marcadamente inovadora. A autora prefere
ambientar seus contos e romances no subúrbio paulista, cidade onde nasceu e onde vive
até hoje. Grande parte de seus textos são atravessados por um viés erótico, que instiga a
imaginação do leitor sem, contudo, perder a grande qualidade literária que possui. Caim
– sagrados laços frouxos, é um romance em terceira pessoa que tem como tema central
a família, seus conflitos e imperfeições. Estamos diante de duas irmãs, Júlia e Amanda
Hehl, que às vésperas do parto desta, resolvem desvendar a história da família a fim de
que o filho de Amanda não carregue consigo a maldição que atinge os Hehl.
Denser faz uso de uma forma completamente surrealista de escrita: em sua narrativa,
os personagens entram e saem, as suas falas se sobrepõem e ela se utiliza de um recurso
literário que consiste em não “revelar” totalmente os fatos do enredo: o leitor infere a
partir do desenrolar da trama, como se muito mais existisse para ser dito e a autora
optasse por não narrar, por deixar por conta do leitor que sua imaginação conclua. Ela
“brinca” com o leitor na medida em que o confunde. De certo modo, se utiliza dos
mesmos procedimentos de Hilst: faz do leitor seu cúmplice. Mais: cúmplice dotado de
conhecimentos intralingüísticos e intertextuais que, para as autoras, são perfeitamente
capazes de recuperar todo o discurso que compõem.
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Caim traz à tona antigos segredos de uma família que durante muito tempo preferiu
esconder-se de si mesma. Julia e Amanda são descendentes de um avô que, para resistir
ao desejo que sentia pela própria irmã, foge de sua terra natal, a Alemanha, e vem para o
Brasil, como se o deslocamento físico também pudesse aplacar a fúria de seu sangue.
Chegando ao Brasil, casa-se com Ana Duarte de Sá, que depois da morte do marido,
resolve apagar os rastros deste da face da terra em virtude do “interdito” que ele
cometera desejando a própria irmã. Meses depois, Ana Duarte morre e seus filhos, que
são oito, ficam sob custódia dos tios maternos, que para manter o controle sobre a
fortuna dos moços Hehl, os casam com as primas-irmãs.
No romance de Denser fica evidente que o incesto é “aceito” em decorrência de um
arranjo familiar. Diferentemente dos outros dois romances aqui analisados, a ligação
incestuosa em Caim é vista com bons olhos pelas famílias e até por quem a pratica.
Entretanto, o caráter punitivo se repete, revelando assim, ponto de contato entre as três
obras:
Fora-lhes interdita na condição de sobrinha da Virago. De forma que
estas saíram piores do que os pais, e uma vez que também não tinham
coração para dar um paradeiro ou direção às ações ou detê-las após a
geração do primeiro da série de aleijões com olhos de coelho nos
quais reincidiam, parindo indiferentes como rãs. Que ao menos
tivessem gerado um bastardos sãos, nem que fosse pelo prazer ou pelo
triunfo de enfim gerarem um herdeiro, que os palermas dos maridos
nem teriam notado, fosse negra ou amarela ou vermelha a cor do
pirralho. (CSLF, p. 42)
Embora não sendo irmãos de “sangue” Ella e Martim foram criados juntos e, para a
sua família esta união se caracteriza como um incesto.
Para Razon (2007) a questão do incesto abala nossas referências, já que ele faz passar
do outro lado do interdito, no avesso das palavras. A palavra “incesto” ressoa de
diferentes maneiras, tanto para quem o pratica como para quem o observa. No entanto,
da mesma forma que a morte, ela faz parte de um léxico que remete cada um de nós ao
registro do inominável e do impensável. Se a própria palavra é tabu, é por conter em seu
sentido mais profundo a noção de impureza. Como se pronunciá-la de certo modo
significasse realizá-la.
Mesmo não sendo irmãos de fato, apenas Ella é filha legítima de Mamãe, os laços
afetivos que ligam Martim e Ella, reforçados pelo estigma imposto por Mamãe, acabam
por minar a relação entre ambos. E eles próprios, ao se confrontarem com a palavra
“incesto”, recuam em seu propósito: o de viverem juntos a sua história de amor.
Entretanto, no romance de Luft há um predomínio do desejo que se faz mais intenso e
Martim e Ella, durante anos, se encontram às escondidas, até que, surpreendidos por
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Mamãe, resolvem fugir. No dia marcado para a fuga, Ella sofre um pequeno acidente,
mas que marcará sua vida para sempre, tornando-a inválida e inconsciente.
Ella esperara, sentada na cerca. Talvez, acossada pelo amor, tivesse
chegado cedo demais; talvez Martim se houvesse atrasado. De
qualquer modo o destino chegara em tempo: derrubara a moça da
cerca, uma queda pequena mas fatal. Martim só voltara a vê-la dias
depois, paralisada numa cama, mal o reconhecendo: Ella iniciara uma
viagem sem retorno para longe dele, que só a podia contemplar do
lado de cá. (QF. p. 47).
Conclusão
Referências
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BISCARO, Regina Álvares. Incesto: um fenômeno arquetípico. São Paulo: Zouk, 2003.
BRANCO, Lucia Castello. BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de
Janeiro: Lamparina Editora, 2004.
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Introdução
dos Milagres (1969) e as relações identitárias que deles decorrem a partir de duas
vertentes: a cultura e a resistência.
Entendemos que a identidade se dá por critérios outros que não os raciais, se vistos
isoladamente. Sua base é muito mais da ordem do cultural, dos processos de
socialização a priori do indivíduo, dentro de um determinado grupo mais ou menos
homogêneo e restrito no qual ele é criado, e de interação com o seu entorno complexo e
heterogêneo – a sociedade de forma ampla e global na qual ele se inscreve. Nesta
mesma linha, a identidade mantém um diálogo íntímo com a sociedade e, quando
afirmada em oposição aos conflitos subjacentes à própria dinâmica social, traz em seu
bojo uma atitude política 1, geralmente de contestação do status quo. Assim, nos é
permitido afirmar que a identidade possui um caráter de resistência e luta diante de um
contexto que lhe é desfavorável.
Compreendendo, pois, a mestiçagem como um processo histórico que, para o bem ou
para o mal – se é que podemos ser tão maniqueístas assim – faz parte da realidade
brasileira e da qual não podemos fingir sua inexistência e a identidade como um
constructo cultural e político de afirmação de uma resistência, analisamos, neste
trabalho, o personagem Pedro Archanjo, do romance amadiano Tenda dos Milagres,
buscando evidenciar que em sua mestiçagem não há branqueamento posto que sua
identidade é, acima de tudo, negra.
O que se coloca em jogo quando a discussão gira em torno de questões raciais não é
o genótipo de quem sofre o preconceito, mas o olhar de quem o comete. Pouco importa
a origem do sangue que corre entre as veias, se africano, europeu ou mestiço; a cor da
pele é distintivo mais loquaz. Assim, se é verdade que o brasileiro, em seu sentido
histórico, se formou através de um intenso processo de miscigenação, embora nem
1
Por atitude política entenda-se um processo de auto-afirmação social, de contestação, de resistência
ideológica, mas não necessariamente partidária
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sempre pacífica, é igualmente verdade que este fato, por si, não conseguiu amainar a
mentalidade racista sobre a qual a estrutura do estado brasileiro se ergueu.
O mito da democracia racial “acolheu” a todos sob si. Construiu uma ideologia em
torno do mestiço como aquele que integraria as raças no país; prova material, pulsante
da ausência de racismo. Entretanto, o mestiço que se destaca no interior deste mito não
contempla a porção negra em que nele há, mas tão somente uma aproximação forçada
ao máximo do padrão europeu, seja na pele clara ou na cor da cultura. Em outras
palavras, a idéia de uma plena e já instaurada democracia racial no Brasil apresentou-se
politicamente como uma estratégia de apagamento do negro.
Nesse sentido, emblemático que Pedro Archanjo, personagem central de Tenda dos
Milagres, defina a si mesmo como mestiço. O que poderia propor uma continuidade dos
processos de produção de não-existência social do negro, em Jorge Amado, no entanto,
cumpre o papel oposto e lhe representa. Acaso mestiço no dizer sobre si, Archanjo é
identitariamente negro.
Ao chegar a esta afirmação, aparentemente contraditória, é importante que se situe de
forma exata o que esta noção de ser mestiço significa na obra em análise e, por
extensão, neste trabalho já que muitos dos que criticam a obra amadiana por conta de
sua visão racial não percebem o contexto a partir do qual a mestiçagem aparece em seus
textos, deixando-se levar apenas pela noção de branqueamento que lhe seria
invariavelmente subjacente. Seixas (2006, p. 3) vai ao ponto quando escreve
Nos anos setenta, esta obra [de Jorge Amado] conheceu verdadeiro
massacre, tanto do ponto de vista político quanto cultural. No Brasil, a
exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos, setores envolvidos com
questões raciais apontaram a valorização da mestiçagem no universo
de Jorge Amado como mistura impura, ou como apagamento da
pureza racial negra. [...] De um lado e do outro, o mito da pureza
étnica gera segregações. Não é exagero afirmar que a obra de Jorge
Amado chegou a ser rejeitada por duas razões contrárias: de um lado,
os feitores da pureza africana desconfiavam da construção romanesca
de uma civilização negro-mestiça (vendo na mestiçagem o
embranquecimento); do outro lado, arianos e quase-brancos não
toleravam a elevação do negro e do mestiço à categoria mítica de
herói incondicional (vendo na exaltação da mestiçagem a apologia de
raças até então ocupantes de espaços exclusivamente periféricos).
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2
Sendo o candomblé uma recriação do modo de ser no e compreender o mundo tipicamente africano de
base jeje-nagô, pode-se inferir que a mesma relação que o africano tem em relação à sua prática religiosa,
manteve-se no Brasil no adepto ao candomblé.
3
Mundo material
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povo, Ojuobá não foge ao seu destino e se faz presente em todas as instâncias de luta
por uma resistência física e cultural negra. É nesse sentido a sua afirmação
- Estamos numa luta, cruel e dura. Veja com que violência querem
destruir tudo que nós, negros e mulatos, possuímos, nossos bens,
nossa fisionomia. Ainda há pouco tempo, com o delegado Pedrito, ir a
um candomblé era o maior perigo, o cidadão arriscava a liberdade e
até a vida. O senhor sabe disso, já conversamos a respeito. Mas, sabe
quantos morreram? Sabe por acaso por que essa violência diminuiu?
Não acabou, diminuiu. (AMADO, 1971, p. 317).
4
Referência a Pedro Gordilho, delegado auxiliar que entre os anos de 1920 a 1926 promoveu uma intensa
perseguição aos candomblés soteropolitanos.
5
Pai – de – santo real e de extrema importância na vida de Jorge Amado, sendo o primeiro a lhe dar um
título, ogã. “O citado babalorixá destacou-se na resistência contra a perseguição aos terreiros de
Candomblé da Bahia e, no romance Tenda dos Milagres, recebeu justa homenagem” (LEITE, 2008, p.
21).
6
Usado aqui como sinônimo para terreiro, em uma adaptação do termo Ilê Axé.
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[...] é em Tenda dos milagres que Jorge Amado retoma, com novo
vigor, o tema da perseguição policial aos candomblés da Bahia e nele
realiza um feito surpreendente de catarse literária: o escritor vinga o
insulto do opressor e através de seus personagens [Archanjo em
destaque] promove um ato de justiça com força sobrenatural, em favor
do povo oprimido dos candomblés, ao sentenciar publicamente o seu
algoz, Pedrito Gordo, com as palavras mágicas com forte poder de
transformação [...].
Temos dois pontos a marcar na cena descrita acima. O primeiro diz respeito ao
sortilégio de ofó (SANTANA, 2009, p. 30), através do qual Archanjo faz com que Zé
Alma Grande vire no santo. Fragmento de um oriki ao orixá Ogun (SANTANA, 2009,
p. 40) ele representa uma sutileza fundamental na tessitura do contexto em que se dá a
vitória da cultura negromestiça sobre Pedrito Gordo. Ele, por si só, já é prova da força
7
Lühning (1995-1996, p. 197) em sua pesquisa sobre Pedro Gordilho escreve: “Jorge Amado, que aborda
o ‘reinado’ de Pedrito no seu romance Tenda dos Milagres, descreve uma cena (pp. 308-11) em que um
dos acompanhantes de Pedrito, na ocasião da batida, teria “dado santo” na casa de Procópio, e até
atentado contra o próprio delegado, o que teria levado ao já mencionado pedido de demissão. Outras
informações pessoais já contam que o próprio delegado teria “dado santo”, ou na casa de Procópio ou de
uma mãe-de-santo de nome ignorado”.
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Não é o caso aqui de citarmos os estudiosos acima para, em seguida, lhes negar
verdade naquilo que dizem, até mesmo porque concordamos com ambos. Sem dúvida,
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“O passing as white é um fenômeno unicamente norte-americano. A pessoa tem que fingir que é branca.
E o faz às escondidas. Se descobrirem um ponto preto em sua genealogia, é desmascarada. Retorna ao
outro lado da linha de cor. Por isso, quem faz o passing é muitas vezes obrigado a desaparecer da vida de
sua família. A se afastar das pessoas e do lugar onde nasceu”. (RISÉRIO, 2007b, p. 108)
9
“Essa é uma parte da história. No entanto, é possível mostrar que o ideário do branqueamento já estava
socialmente bastante consolidado na formação social do país, ou seja, bem antes do momento em que os
governantes resolveram investir em programas de imigração européia. As raízes dessa concepção
ideológica remontam, no fundo, a um discurso religioso medieval” (HOFBAUER, 2007, p. 157)
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tanto André quanto Munanga estariam voltados para o objeto “verídico”, a realidade
inconteste do cotidiano brasileiro. Entretanto, este seria um artifício de deslocamento da
discussão para um outro campo com o objetivo de questionar a própria possibilidade da
literatura como um fator de entendimento da realidade social do país em todos os seus
meandros e em todas as suas reentrâncias. A literatura, porém, assim como documentos
históricos ou discursos políticos – ou até mais que estes – é representação, mesmo que
ficcional ou metafórica, de um tempo, de uma sociedade e, como tal, pode servir, sim,
como chave para compreendê-los. Neste sentido, acreditamos possível contruibuirmos
de algum modo para a discussão racial no Brasil, principalmente no tocante à questão da
mestiçagem, a partir da literatura amadiana; neste caso, em especial, Tenda dos
Milagres.
Conclusão
Hofbauer (2007, p. 184) diz que “não há consenso entre os especialistas sobre
constituir a democracia racial como um valor a ser preservado ou uma mentira a ser
denunciada”. Acreditamos que ambas, a preservação e a denúncia, devem se constituir
como fator do pensamento racial brasileiro. Há a necessidade sempre presente e
indiscutível de se questionar toda a produção de discurso que se baseie no mito como
uma realidade táctil, contribuindo assim para a consciência da opressão racial ainda
vigente, tanto no oprimido quanto no opressor. Problematizar o racismo ainda é uma
urgência nossa. Entretanto, é importante também guardarmos, não o mito, mas a
democracia racial como um sonho e um projeto de futuro, desta vez sem
branqueamentos ou opressões, como forma de construção de uma sociedade sem
barreiras raciais de quaisquer espécies. No nosso entender, se assim não o fizermos
estaremos concorrendo para uma sociedade sempre em conflito, segmentada.
Nesse sentido, Pedro Archanjo é a própria tradução do modo como pensamos esta
questão. Sua cultura, seus valores, sua religião, seu povo... enfim, sua identidade está
preservada, não obstante mestiço. Para Bacelar (2001, p. 120)
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Referências
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em: 20.jan.2010
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Para o poeta Octavio Paz, a poesia é a Memória feito imagem e convertida em outra
voz. A poesia é sempre a “outra voz”, porque “é a voz das paixões e das visões; é de outro
mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade sem datas” (1993, p.
140). No dizer de Paz, os poetas têm sido a memória de seus povos, pois “cada poeta é uma
pulsão no rio da tradição, um momento da linguagem. Às vezes os poetas negam sua
tradição mas só para inventar outra” (1993, p. 108-109). A invenção lírica se projeta do
presente para o futuro. O poeta é ciente de sua tarefa: ser elo da corrente, uma ponte entre
o ontem e o amanhã. Entretanto, no findar do século XX, ele “descobre que essa ponte está
suspensa entre dois abismos: o do passado que se afasta e o do futuro que se arrebenta. O
poeta se sente perdido no tempo” (PAZ, 1982. p. 69). Nesse sentido, ao recriar sua
experiência, leva avante um passado que é um futuro. O tempo possui uma direção, um
sentido, ou seja, “ele deixa de ser medida abstrata e retorna ao que é: concretude e dotado
de direção. O tempo é um constante transcender” (PAZ, 1982. p. 69).
A função essencial do tempo na estruturação da imagem do mundo reside, conforme
Octavio Paz, no fato de que o homem, dotado de uma direção e apontando para um fim, faz
parte de um processo intencional (1991, p. 97). Os atos e as palavras dos homens são feitos
de tempo. Assim, a cronologia está fundamentada na própria crítica. Já a poesia é tempo
revelado, isto é, o enigma do mundo que se transforma em “enigmática transparência”. O
poeta diz o que diz o tempo, até quando o contradiz, pois ele é capaz de nomear o
transcorrer, e ainda, “torna palavra a sucessão” (PAZ, 1991, p. 98).
A poesia é potência capaz de dar sentido à vida. Ao buscar a essência da linguagem,
o artista realiza o poder mágico através das palavras enquanto mediação, comunicação e
exercício de construção de sentidos.
Para o filósofo Gaston Bachelard, o homem sonha através de uma personalidade de
uma memória muito antiga. Ele mira-se em seu passado, pois toda imagem para ele é
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Essa afirmativa de Durand pode ser verificada nos textos de Virgínia Vendramini,
quando aborda a temática da infância enquanto fator não só de (re)memorização nostálgica
do passado, mas também como desdobramento de imagens que convergem para esse
período da vida, pois os elementos catalisadores – infância e memória – dão formas
estéticas à relação e confluências com e na própria obra de arte literária.
Frente às “faces do tempo” e à cristalização da “memória”, o homem se vê isolado,
ilhado, mesmo estando rodeado por uma multidão. Mergulhado em um mundo de imagens e
realidades que dão uma configuração à própria vida, ele é sabedor da sua condição
existencial: a solidão habita a sua vida. Ou seja, ela é experiência viva que se concretiza não
só enquanto recolhimento, mas, acima da tudo, como sentimento intrínseco frente à
sensação de isolamento e vazio vivenciado pelo sujeito humano.
Em Amor, poesia, sabedoria, o filósofo Edgar Morin define a poesia como amor,
estética, gozo, prazer, participação e, principalmente, vida (1998, p. 59). Ela é, igualmente,
a manifestação de possibilidades infinitas da indeterminação humana. Já a criação poética
tem o poder de reativar os conceitos analógicos e mágicos do mundo e, também, despertar
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que pertence a uma estratégia de comunicação: dispositivo que tem a capacidade, por
exemplo, de regular o tempo e as modalidades de recepção da imagem em seu conjunto ou
a emergência da significação” (DAVALLON. In: PAPEL da memória, 1999, p. 30. Grifo
do autor). Constata-se, que as afirmações do autor vão ao encontro das correspondências
imagéticas que aparecem no texto de Vendramini. As imagens, presentes no texto, têm o
poder de (re)configurar os acontecimentos a partir de uma observação atenta do sujeito
poético, que registra o seu “estar no mundo” ao “rememorar o passado”. Daí a força da
imagem enquanto “um operador de memória no seio de nossa cultura” (1999, p. 30), como
afirma Davallon.
Na criação literária a poeta Virgínia Vendrami (re)inventa mundos e dá sentido à
vida através das palavras. Assim, a palavra-memória é uma força que impulsiona a poeta a
atingir seus sonhos, objetivos e realizações.
Palavra poética e memória são elementos basilares na poesia de Virgínia
Vendramini. Ao elaborar uma poiesis alicerçada em um mundo de (re)significações, a poeta
realiza um fazer poético direcionado à condição humana e ao sentido de transitoriedade.
Os textos de Virgínia Vendramini – lapidados no cinzel da memória – instauram um
procedimento poético em que a palavra poética tem o poder de despertar no leitor uma
atenção voltada para as coisas mais simples, sensíveis, pois a linguagem é sinal de vida e
permanência.
Referências
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Achard... [et al.]; tradução e introdução de José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999.
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PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982
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ROSA, António Ramos. O conceito de criação na poesia moderna. COLÓQUIO/LETRAS,
Lisboa, n. 56, julho, 1980.
VENDRAMINI, Virgínia. Matizes. Maricá, RJ: Blocos, 1999.
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familiares. Tais coisas têm pouco valor para Adonias, pois ele vaga “numa terra de
ninguém, um espaço mal definido entre campo e cidade” (BRITO, 2008a, p. 160), ou
seja, sente-se estrangeiro no sertão ou na cidade.
Como “estrangeiro na própria terra”, Adonias experimenta a idéia de entre-lugar,
que é a busca de uma terceira margem, um caminho do meio, consistindo no
procedimento do deslocamento, do nomadismo, em que o projeto identitário possa
nascer da tensão entre o apelo pelo enraizamento e a tentação da errância (HANCIAU,
2005). “Sou instável”, afirma o personagem-narrador, “vario ao sabor do Aracati, o
vento que muda do lugar tudo o que existe. Não teria coragem de viver como o tio,
cavando a terra seca, semeando na pedra e esperando a colheita” (BRITO, 2008a,
p.171).
Paradoxalmente, há certa condescendência do personagem-narrador para com o tio
Salomão, de reconhecer sua erudição solitária e seu esforço em busca do que é
permanente ante ao furor das mudanças, de admirá-lo por tentar estabelecer no presente
um caminho para ele e para o seu mundo sertanejo. Entretanto, a personagem se afirma
como “intelectual pós-modernista desconfiado da cartilha do tio, temeroso de que ele
me [o] transformasse em mais um talibã sertanejo, desses que escrevem genealogias
familiares e contam causos engraçados” (BRITO, 2008a, p. 162-163).
Contudo, ao assumir uma postura pós-modernista, Adonias também não quer voltar
ao Recife, prefere o espaço neutro, “um caminho que me leve a lugar nenhum”
(BRITO, 2008a, p. 228). É nessa condição pós-moderna que o romance termina, quando
o personagem, ao viver a Festa de São Gonçalo, em Russas, no Ceará, entre bebedeira e
motos, encontra-se sozinho na praça e o mundo perde o significado por completo.
Sintomaticamente, Adonias recorre sempre ao seu celular para falar com sua família
em Recife, mas durante sua permanência em Galiléia ele não funciona. Sua desconexão
com o mundo urbano, num primeiro momento, torna-o ansioso e o leva a tomar
tranquilizantes, mas, depois, parece que se adapta às questões familiares, ainda que de
modo crítico e, às vezes, mordaz.
Como aponta Homi Bhabha (2003, p. 68), o Terceiro Espaço, “que embora em si
irrepresentável, constitui as condições discursivas de enunciação que garantem que o
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significado e os símbolos da cultura não tenham unidade ou fixidez primordial e que até
os mesmos signos possam ser apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro
modo”. Pensamos que Ronaldo Correia de Brito explicita essa postura, quando afirma
que, em sua narrativa, o “sertão é o espaço de memória confundido com o urbano. É o
melhor lugar para acessar a internet, porque as lan houses cobram apenas cinquenta
centavos por hora”. A partir de impressões visuais, o escritor tematiza o mundo
suburbano chamado sertão, tão real ou abstrato como o tempo (BRITO, 2008b, p. 10).
A escrita labiríntica de Brito busca, assim, superar a dicotomia campo-cidade tão
marcante na tradição literária sobre o sertão, aproximando-se da proposta de
“desconstrução” efetuada por Jacques Derrida, no sentido de questionar os dualismos
hierárquicos, numa atitude de crítica permanente (PERRONE-MOISÉS, 2001).
Não seria aqui uma crítica ao trabalho intelectual dos movimentos regionalistas e
armoriais, com sua proposta essencialista de fetichização dos traços culturais
nordestinos? Certamente. A representação quase medieval e feudal da sociedade e da
cultura nordestinas tem tido um forte poder de permanência, atravessando desde a
historiografia, a obra literária e teatral de Ariano Suassuna, a cultura popular, com a
literatura de cordel, até chegar à cultura de massa, através da história em quadrinhos de
Jô Oliveira e da música do Cordel do Fogo Encantado, inspirada nos poetas populares.
Essa associação do nordeste ao passado medieval da Península Ibérica se faz presente
no romance, quando tio Salomão formula as lendas da família Rego Castro, que
remetem ao passado ibérico e holandês, do criptojudaísmo português. A postura crítica
de Adonias diante da imagem do sertão medieval o coloca contra a sobrevivência
simbólica das oligarquias nordestinas postas em xeque desde os anos 1930 (ZAIDAN
FILHO, 2001, p. 11-24).
Contudo, paradoxalmente, o romance não deixa de retomar a valorização do passado
do sertão, entendido como tradição, na busca de uma identidade que nos una, a partir da
autenticidade dos valores culturais sertanejos, como podemos ver nesse trecho:
Essas críticas de Adonias ao tio Salomão parecem ceder, noutro momento, ao peso
histórico da cultura sertaneja, como registrado neste trecho do romance:
percepção do narrador pós-moderno sobre os novos tempos pode ser percebida pela
emergência da mulher no cenário sertanejo, como é o caso de “Duas mulheres [que]
tangem o gado numa motocicleta. (...) O poder masculino cede lugar ao feminino”
(BRITO, 2008a, p. 127). Os tempos são outros e a antiga ordem patriarcal é
questionada, quando homens e mulheres se ocupam dos mesmos afazeres.
Ao mesmo tempo, o personagem Davi assume frente a Adonias sua condição de
homossexual, numa carta em que descreve suas aventuras em Nova Iorque e Paris. O
modo de vida cosmopolita se choca com os antigos valores sertanejos. Isto é perceptível
na aversão de Adonias ante os trechos sobre Guilherme, estudante de jornalismo com
quem Davi manteve uma “relação amorosa que por sorte não terminou em assassinato”
(BRITO, 2008a, p. 185).
A superação do silêncio sobre a homossexualidade no sertão por parte da literatura
de Brito pode ser considerada um sintoma da reelaboração discursiva do nordestino,
definido como o macho por excelência, homem viril, forte, destemido e violento. Davi é
a antítese dessa representação; frágil, ele representa a crise da masculinidade tradicional
no seio da família patriarcal dos sertões do Inhamuns (ALBUQUERQUE JR., 2008).
Segundo o narrador, a nova geração de contadores de histórias, ao invés da épica
sertaneja, se pauta agora na pornografia, como nas cartas de Davi. Talvez a resistência
do avô Raimundo Caetano em morrer fosse motivada pela não aceitação às
transformações do modo de vida sertanejo.
O sertão como espaço do “reino do fantástico e do mítico” (CRISTÓVÃO, 1993-
1994, p. 43) aparece no diálogo entre Adonias e Donana, esposa assassinada do seu tio
Domísio. A presença das almas penadas compõe o conjunto de crenças sertanejas que se
manifestam mesmo no personagem criado numa cultura cosmopolita, como é o caso do
médico Adonias.
A mitologia presente na história da família Rego Castro é moldada pela tradição oral,
contrapondo-se à perspectiva iconoclasta da historiografia: “não somos historiadores, e
sim fabuladores” (BRITO, 2008a, p. 27). Aqui vemos a importância da dimensão das
“memórias partilhadas” para a produção de narrativas faladas ou escritas sobre o
passado, em que a tradição oral é tomada como patrimônio cultural, pois é pela palavra
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BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Trad. ÁVILA, M., REIS, E. L. de L. &
GONÇALVES, G. R. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
BRITO, Ronaldo Correia de. Galileia. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2008a.
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Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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INTRODUÇÃO
Literatura de Cordel e do site de José Medeiros Lacerda, poeta cuja produção inicia-se
na década de 80 do século passado.
Fundamentamo-nos nas reflexões teóricas de Abreu (1999), no que se refere à
história da Literatura de Cordel no Nordeste brasileiro, assim como suas adequações
estéticas e em Galvão (2001), que investigou a recepção dos folhetos por parte dos
leitores/ouvintes nos primeiros 50 anos do século passado.
Para o desenvolvimento deste artigo utilizamos parte da pesquisa realizada para
o projeto Literatura de Cordel: novos temas, novos leitores vinculada ao PIBIC/CNPq -
UFCG e que ainda encontra-se em andamento.
tempo, foi criado com uma finalidade de propagar a cultura popular do Nordeste, em
especial a Literatura de Cordel.
No site, o poeta utiliza alguns mecanismos de comunicação que viabilizam a
aproximação de seus leitores com a sua obra, como os álbuns de fotografias que
documentam a produção de cordel e também do grupo de teatro do qual o próprio autor
participa, a exemplo, temos a exposição de fotos de seus folhetos, fotos dos seus
revendedores, do grupo de teatro ao qual está inserido e até de certificados que
comprovam a participação do autor em eventos. Além disso, o site dispõe de outros
elementos de navegação, tais como: capa, no qual o autor apresenta uma mensagem
convidando os usuários a visitar o site; existe também um diário, no qual o autor exibe
fotos com reportagens históricas sobre tipos de danças populares descrevendo a origem
e as principais características dessas manifestações, cujo caráter é informativo-
pedagógico, entre outros elementos.
Nesta pesquisa podemos comprovar que o site do cordelista José Lacerda é
visitado por pessoas de idades distintas, também observamos que o grau de instrução
não é motivo de barreira para a interação entre o autor e o leitor, uma vez que o portal
de apresenta com depoimentos de pessoas com formação do ensino básico até o ensino
acadêmico universitário.
Olá meu caro Zé, grande expoente da literatura de cordel. O cordel precisa
muitíssimo de você, ao saber de sua total dedicação a arte de escrever e
divulgar aos estudantes e o povo em geral, histórias encantadoras de um
mundo real. Prossiga continuamente em sua escalada literária, até que possa
enchesse por completo, o manuseio dessa arte popular tão fácil e
compreensível de entender que é a literatura de cordel. Parabéns. (ANISIO,
Geraldo. Caicó, RN – 10/01/2009 – 21h43m)
Adorei, mas se trocar ‘estuprada’ por ‘violada’ ficará melhor... (sem autor –
01/02/2010 – 22h35m)
no site do poeta José Medeiros, ou seja, o público leitor tece opiniões sabendo do que se
trata, uma vez que mesmo direcionados com a intencionalidade de elogiar, muitos
comentários apresentam-se bem rimados e até com certa simetria.
Obrigado Varneci
Por toda a divulgação
Que você faz dessa arte,
Lhe tenho como um irmão
Você tem caráter e rima
E boa imaginação.
(VIANA, Klévisson – 31/01/2009 – 13h: 41m)
Como podemos observar, o espaço virtual não exclui ninguém e todos podem,
inclusive outros cordelistas, ter conhecimento de qualquer obra lançada através dos
diversos meios midiáticos. A Literatura de Cordel conseguiu através do suporte da
internet atrair novos leitores e abranger seu espaço perante a sociedade adaptando-se as
várias concorrências midiáticas.
Hoje, tanto novos autores, quanto os tradicionais expõem na internet suas
produções, e as mesmas são acompanhadas, lidas e discutidas por leitores de diferentes
segmentos sociais, econômicos e culturais facilitando, assim, o processo de vendas
através da interatividade disponibilizada por este suporte.
Diversos fatores fazem com que estudiosos afirmem que o cordel apenas
sobrevive pelos esforços dos estudiosos, e de poetas, e não mais dos apreciadores
comuns; fatores como “a influência da televisão, a censura, a falta de interesse das
autoridades pela cultura popular e as transformações na sociedade em geral, cada vez
mais urbana e industrializada” (GALVÃO, 2001, p. 35) compõem este complexo
quadro. Para Ayala,
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como pôde ser observado, o espaço midiático adotado pelos poetas como
suporte para a Literatura de Cordel, na maioria das vezes, se torna além de uma vitrine
(durante 24 horas por dia), um canal de comunicação direta e interação com o usuário
ou visitante. São essas particularidades, que tornam os sites e os blogs diferentes das
demais mídias, como o rádio, a televisão e o próprio jornal impresso.
Vimos que o cordel, com os anos, foi lançando novos modos de apresentação
perante o seu público comprador. Primeiramente, em sua forma oral, nas feiras e
mercados públicos, no qual os vendedores além de cantar, muitas vezes dramatizavam
as histórias dos folhetos no intuito de melhor cativar o interesse do leitor pretendido.
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Referências
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AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura Popular no Brasil. São Paulo:
Ática, 1987.
"homem" porque é feita de húmus, que significa "terra fértil". Há ainda o mito bíblico
da criação do homem. A gênese bíblica mostra que o homem foi feito de barro ou terra
fértil é um aproveitamento da fábula de Higino em que o húmus é convocado para
compor a criatura humana: "Então Jeová Deus modelou o homem com a argila do solo,
insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente”
(GÊNESIS 2: 06). Em Platão e Higino não só a terra tem função preponderante para a
formação do homem, mas todos os elementos. Sobre a origem da Terra, que dá e tira o
alimento dos seres humanos, há muitos; entre eles o mito grego. No mito grego, Terra é
chamada de Gaia. Seu surgimento se dá através da escuridão do nada (Caos), na qual
vai surgindo à imagem da divindade Gaia (Terra), que coberta por alvos mantos vai
dançando e rodopiando. Com os rodopios seu corpo vai se solidificando e se
transformando em montanhas e vales; seu suor transforma-se em mares e rios; seus
braços alongam-se e a envolvem em proteção, formando o firmamento à sua volta. A
união da Terra e do firmamento gerou condições para o surgimento e manutenção da
vida vegetal e animal. Sabe-se que a terra é dotada de seres animais e vegetais, como,
por exemplo, as árvores, os animais, o homem, as moradias entre outros. Nas obras
poéticas, esses elementos que compõem a terra podem ter vários significados, ou seja,
os “indivíduos” que comportam a terra podem ser representados por símbolos, cada qual
com sua particularidade.
Em relação ao elemento água, há várias divindades, como por exemplo, a deusa
Tétis, que vem do grego “ama, nutriz” ou “a que nutre”, ou seja, as águas têm o poder
de nutrir os seres. Sobre o mito grego, o oceano é representado por um velho sentado
sobre as ondas, empunhando uma lança numa das mãos e, na outra, segurando uma urna
da qual despeja água. A Hídros/água passa a fazer parte dos deuses do Olimpo e é
representada por Poseidon, o deus dos rios e mares. Ele faz tremer e oscilar a terra e as
marés, como também faz nascer sobre a terra plantas nutritivas para todas as espécies
(CHEVALIER, 2009).
Na antiguidade, a água servia para a purificação, depois de guerras, lutas e
mortes. Os gregos se banhavam em rios para se purificar de algum ato desprezível que
cometessem. Para a cultura grega, a água sempre foi muito importante, um elemento
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quer dizer luto. Assim, pode-se inferir que ao estar sentado em um cavalo branco, Joca
Ramiro estava pré-dizendo que iria morrer: “Montado no cavalo branco, Joca Ramiro
deu uma despedida” (Rosa, 1974, p. 191).
Outro símbolo do cavalo que pode se associar a Joca Ramiro sentado no cavalo
branco é a representação de líder. Segundo Gheerbrant (2009, p. 211) o cavalo é
também símbolo de majestade. Na maioria das vezes, ele é montado por aquele a quem
a Bíblia se refere como fiel e verdadeiro. Joca Ramiro é visto como o líder
incomparável no bando dos jagunços. Riobaldo, em vários momentos da narrativa, não
aceita a condição de chefe por receio de não conseguir chegar ao mesmo patamar que
Joca Ramiro chegou: a de melhor chefe, pois só um verdadeiro e fiel chefe poderia estar
montado em um cavalo branco. Além disso, depois da morte de Joca Ramiro, Diadorim
quer vingar-se a todo o custo do causador da morte de seu pai, não apenas pela condição
paterna, mas também pelo chefe exemplar que era.
Em Pedro Páramo o cavalo de Miguel Páramo está em contato com o mundo
natural-terra e o sobrenatural-além-túmulo, ou seja, permanece atormentado pela não-
existência do seu dono na superfície da Terra e, ao atravessar os limites dela, o cavalo
pode reencontrá-lo. O cavalo de Miguel Páramo está atormentado pelo fato do seu dono
não estar presente: “ele e o cavalo se gostavam e estou quase achando que o animal está
sofrendo mais que Dom Pedro. Não comeu nem dormiu e não faz outra coisa senão
andar pra cima e pra baixo. Como se sentisse despedaçado e carcomido por dentro”
(RULFO, s.d, p. 23). Andar de um lado para o outro buscando seu dono é uma forma de
tentar achar o caminho do sobrenatural, para onde Miguel Páramo foi levado. De acordo
com Gheerbrant (2009, p. 213), “o cavalo também representa a face humanizada”, isto é
sente as dores dos que se foram, no caso o cavalo sente a dor da perda de Miguel
Páramo.
Outro símbolo presente nas duas obras é em relação às águas. O rio é o grande
referente que se liga à água. Em Grande sertão: veredas, o rio vai desencadear a
narrativa. O Rio São Francisco é uma via natural de entrada para o sertão. Na obra, é
por meio desse rio que Reinaldo/Diadorim e Riobaldo se conhecem. Conhecer
Reinaldo/Diadorim e ter atravessado com ele o Rio São Francisco muda para sempre o
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Para Riobaldo o que aconteceu de melhor em sua vida foi conhecer Reinaldo e
com ele atravessar o rio. Atravessar o rio é seguir para outro estágio, ou seja, Riobaldo
nunca mais foi o mesmo depois dessa ação. Os banhos são comuns em Grande sertão:
veredas. Os jagunços aproveitam os rios para se banhar. Simbolicamente banhos nos
rios são atos de purificação e regeneração. Pode-se dizer que o banho é o primeiro dos
ritos que sancionam grandes etapas da vida, como, por exemplo, o nascimento (batismo)
e a morte (lavar o corpo para ser enterrado), isto é, o banho, em especial no rio,
converge para diferentes períodos da vida e o homem purifica-se para passar de um
plano a outro. Riobaldo ao não banhar-se com Reinaldo no Rio das Velhas estava
negando sua possível homossexualidade, ou seja, a etapa de mudar seus outros
interesses sexuais não aconteceria. Por mais dúvidas, medos e desejos que Riobaldo
pudesse ter em relação aos seus sentimentos para com Diadorim, a sua
heterossexualidade permaneceria, conforme segue a narrativa de Grande sertão:
veredas:
A personagem ao dizer que “mal deixando uns restos de espuma nos meus pés com o
subir da maré” pode estar fazendo referência à sexualidade, visto que a deusa Afrodite,
deusa da fecundidade, nasceu da espuma do mar. Além disso, o deus dos mares,
Poseidon, teve muitas relações amorosas com mulheres e, por isso, pode-se entender
que, ao se referir ao mar, a personagem faz alusão aos desejos carnais.
Observa-se também, que a personagem diz que, ao se ao entregar ao mar, este a
purificaria. A simbologia diz que uma das características do mar é a purificação. Ao
mesmo tempo em que faz ligações com os prazeres, também purifica, “o mar se situa
entre Deus e nós” (GHEERBRANT, 2009, p. 593). Ao querer banhar-se no mar a
personagem tem a intenção de purificar-se, conforme a simbologia da palavra "mar".
Além disso, tal interpretação pode ter duas facetas. A palavra ‘purificar’ pode
conter ironias, em relação ao seu sentido de santificar, ou seja, se o mar se situa entre
Deus e os humanos, de acordo com a simbologia, ele faz referências ao pecado dos
homens, porque este comete pecados. Nota-se que as palavras da personagem estão
repletas de sensações carnais próprias dos seres humanos, o que se pode inferir como
pecado segundo a tradição cristã. Sobre “se situar em Deus”, ou seja, santificar-se, a
personagem diz que vai até o mar para se purificar, ou seja, para limpar-se dos possíveis
pecados cometidos.
Diante do exposto, interpretar os símbolos é uma forma de entender as obras
poéticas, pois há conteúdos que estão implícitos e ao investigar o conteúdo simbólico a
narrativa amplia seu poder de comunicação. A obra poética é uma espécie de diálogo
entre texto-leitor. Bakhtin diz que o “diálogo não é apenas a comunicação em voz alta,
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mas toda a comunicação verbal, inclusive o livro impresso, que é feito para ser
estudado, comentado e criticado de maneira ativa pelo leitor” (BAKHTIN apud
COSTA, 1998, p. 25). Assim, levantar e interpretar os símbolos nas obras: Grande
sertão: veredas e Pedro Páramo é uma maneira de recuperar as formas de pensamento
primitivas para entendimento das mesmas.
O estudo dos símbolos permite que se entenda o que há de conteúdo para além
daquilo que se vê. Estudar seus sentidos é tomar contato com outros significados para
além do significado imediato. Coutinho (2001) explica que Guimarães Rosa, nas suas
obras, envolve o estado das personagens, ambientes, episódios, situações e a ação
simbólica, nos temas, idéias, ideário, ideologia- contexto mágico de arte e religião, e o
mundo dos símbolos (...); assim, se serviu não como quem explora uma paisagem,
porém como quem manipula um ingrediente simbólico (COUTINHO, 2001, p. 518).
Em Pedro Páramo “o símbolo e o mito aparecem enfaticamente, reforçando -
portanto - os anseios humanos de eternidade (...) a obra está repleta de significado que
só por meio da totalidade dos componentes míticos será possível sua interpretação”
(EUZÉBIO, 2009, p. 10 e 66). Assim, as duas obras contêm elementos simbólicos que
precisam de interpretação para que o leitor possa fazer suas próprias leituras. Conforme
afirma Benoist (1975, p. 10) “na ordem das idéias um símbolo é igualmente um
elemento de ligação plena de intervenção e une o que é contraditório, pois não podemos
compreender nada, nem comunicar nada, sem a sua participação”. Assim, colocar a
análise dos símbolos nas obras poéticas é deixar a significação dos símbolos
participarem da interpretação das mesmas. Dessa forma, neste estudo, buscou-se
conhecer os símbolos: “cavalo” e “rio” nas obras Grande sertão: veredas de Guimarães
Rosa e Pedro Páramo de Juan Rulfo, dois escritores de diferentes nações, mas que
buscaram algo em comum: fazer literatura regional com peso universal.
Referências
BENOIST, Luc. Signos, símbolos e mitos. Lisboa: LDA, 1975.
COSTA, Lígia Militz da. Representação e Teoria da Literatura: dos gregos ao pós
moderno. Cruz alta: UNICRUZ, 1998.
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COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6ª edição. Rev. atual. São Paulo: Global,
2001.
GÊNESIS: In: A Bíblia: de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo:
Paulus, 2002.
EUZÉBIO, Vilmar Machado. A morte e as mortes na obra de Juan Rulfo. Florianópolis:
UFSC, 2008. Disponível em:
<http://www.tede.ufsc.br/tedesimplificado/tde_arquivos/48/TDE-2008-06-0T121019Z-
273/Publico/VILMARTRAB04.pdf > Acesso em: 07/04/2010.
FERREIRA, Beatriz Pazini; TOFALINI, Luzia Aparecida Berloffa. Simbologia em
Grande sertão: veredas. Cascavel: Unioeste, 2009.
GHEERBRANT, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 13. ed. Trad.
Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
RULFO, Juan. Pedro Páramo. São Paulo: Círculo do livro, s.d.
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O autor toma a definição clássica para a metonímia como figura produzida por uma
relação de contiguidade existente entre palavras. Neste sentido, difere-se da metáfora,
cuja essência consiste na substituição de um termo ou expressão por outro, havendo,
contudo, traços semânticos comuns entre eles, possibilitando, desse modo, uma
aproximação de sentidos.
Outro autor que buscou refletir sobre o emprego da figura de linguagem da
metonímia é Humberto Eco, ao manifestar-se da seguinte forma:
Além desta espécie de ocorrência da metonímia existem outras projeções pelas quais
ela pode se realizar, pela substituição da causa pelo efeito, do efeito pela causa, do
produtor pelo produto, do produto pelo produtor, do signo pela coisa significada, do
abstrato pelo concreto, do concreto pelo abstrato, entre outras, segundo Othon M.
Garcia (1992).
Em Vigilia del Almirante (1992), de Augusto Roa Bastos, pode-se observar a
ocorrência de uma metonímia na “parte V” da obra. Tal capítulo tem como título “Los
pájaros profetas”, cujo sentido, a princípio, pode parecer como sendo o uso de uma
metáfora, mas que, em realidade, trata-se de uma metonímia. Tal leitura é possível para
aqueles que compreendem algo do mundo marítimo, principalmente daquele mais
antigo quando ainda não existiam as avançadas tecnologias que permitem hoje viajar
com segurança, uma vez que o pássaro, que em “alto mar” é visto trazendo ramas em
seu bico ou em suas garras, serve como um sinal de que já se está próximo da “terra
firme”. Desta forma, tais sinais de vegetação que são levados pelas aves são
considerados como um símbolo de esperança pelos navegantes, conforme se pode
perceber nas palavras do narrador no romance de Roa Bastos:
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1
“O mar, o mar, sempre recomeçando, disse um grande poeta da antiguidade. [...] vê-lo pela manhã
coberto por um trecho de pombas que façam honras ao meu nome. Porem eu busco outros trechos
cobertos com telhas de ouro. Salvo se as pombas pousadas nas torres também sejam de ouro puro.”
(Tradução livre)
2
“O vôo dos pássaros os predispõe, é claro, a servir de símbolos às relações entre o céu e a terra. Em
grego, a própria palavra foi sinônimo de presságio e de mensagem do céu. [...] Os documentos mais
antigos entre os textos védicos mostram que o pássaro ou ave (em geral, sem especificações
particulares) era tido como um símbolo da amizade dos deuses para com os homens”. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2001, p. 687).
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Além desses exemplos acima trazidos, o autor prossegue em seu raciocínio ao citar
uma série de exemplos a fim de continuar com a pontuação realizada acerca das formas
como a metáfora se pode materializar.
3
“Sussurro de uma vasta batalha nas imensidões do Mar de Trevas.” (Tradução livre).
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Especificamente no trecho “El mar de hojas color de oro verde cantárida se espesa
en torno a tres cascarones desvelados” pode-se relacionar ao sentido metafórico de
encalhar/estagnar, ficar impossibilitado de prosseguir viagem. Tem-se ai, a imagem de
uma situação na qual a tripulação, amedrontada e acuada fica estagnada, imóvel, presa
ao mar de algas como ficariam, mais tarde, os povos autóctones impotentes diante do
poderio bélico e do temor incutido pelas novas tecnologias trazidas pelo conquistador.
A imagem das algas no contexto da narrativa assume uma conotação de um poder
ameaçador. Tal relação é similar a dos espanhóis que se apresentaram para os povos
autóctones, quando de sua triunfal chegada, com as mesmas características que são
observáveis nas algas que se fixam nos cascos das embarcações.
Ainda em relação à citação acima se tem “[...] y los empuja hacia atrás, a
contracorriente”, esse retrocesso é o mesmo que sofreram os três grandes impérios que
aqui se encontravam quando do “descobrimento” (Incas, Maias e Astecas), sendo
forçados a estagnar seu desenvolvimento cultural, apenas limitando-se a recuarem e a
defenderem-se, conforme estudos de Fuente (1996). Aqui se pode substituir “o mar de
algas” pelos espanhóis e as “três naus européias” que são empurradas para trás como os
três grandes impérios pré-colombianos (Incas, Maias e Astecas) que acabam em um
retrocesso civilizatório.
O segundo trecho que se traz da obra Vigilia del Almirante e que ainda contempla a
mesma cena que remete à metáfora do “encalhar” é o seguinte:
4
“Toda a tarde se ouviu passar pássaros. Os ouvia ressonar entre os amontoados de névoas. Contra a
marcha vermelha do poente era possível de vê-los desordenados no escuro redemoinho voando até atrás
para enganar o vento. Cruzam nuvens baixas carregadas de água sentindo o odor podre do mal tempo. O
mar de folhas cor de ouro verde brilhante se espessa ao longo de três cascos imóveis e os empurra para
trás, a contracorrente.” (Tradução livre).
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5
“O mar se move apenas abaixo do pesado mar de ervas. Nem uma brisa de vento e as naves sem
governo já a três dias, estagnadas no meio do escuro colchão de vegetais em putrefação. O mar em sua
calma mortal se converteu em um depósito de esterco de plantas aquáticas. Ninguém pode calcular a
extensão, a densidade, a profundidade desta imensa capa fóssil de matéria vivente. A fatalidade levantou
este segundo mar sobre o outro para dobrar nossa viagem.” (Tradução livre).
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fósil de materia viviente” 6. Neste caso o narrador substitui novamente o “mar de algas”
por “imensa capa fóssil de matéria vivente”, intensifica, assim, o sentido metafórico da
ação de encalhar observada no texto, inclusive pela expressão antitética de “capa fóssil”
e “matéria vivente”, referindo-se sempre ao Oceano Atlântico. Nesse sentido pode-se
propor uma leitura simbólica da passagem. A “capa fóssil” poderia ser relacionada, por
similaridade, com a cultura dos europeus que encobriu as manifestações culturais dos
Impérios pré-colombianos que, por estarem em seu próprio universo, eram muito mais
vivas e significantes nesse contexto que aquelas trazidas do outro lado do Atlântico,
mas que foram aqui impostas.
Na passagem narrativa que trata do “encalhar” das naus espanholas são apresentadas
as características da tripulação e a forma como os marinheiros são vistos pelo narrador,
cuja focalização encontra-se fixada em Cristóvão Colombo:
6
“Ninguém pode calcular a extensão, a densidade, a profundidade desta imensa capa fóssil de matéria
vivente.” (Tradução livre).
7
“Não é gente do mar. Em sua maior parte é carne de presídio, frutos de forca caídos fora do lugar, fora
da estação. Choram como crianças quando se sentem afastados do conhecido. Tem-se que os enganar
para seu bem, com o leite do bom juízo.” (Tradução livre).
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co-relacionava com o tempo que ainda demorariam para chegar até o destino esperado.
Essas falsas medidas apaziguavam ânimos e controlavam possíveis motins. Tais
metáforas são formas de expressar, por substituição vocabular, o caráter e a origem dos
primeiros europeus que pisariam o solo americano, revelando o contexto marginal do
qual eles procediam.
Por fim, encerra-se a reflexão desta passagem narrativa de Vigilia del Almirante com
a averiguação das metáforas contidas no trecho que segue:
Conclusões
Referências
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Janeiro: Ediouro, s/d.
CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 16 ed. rev. e atual. São Paulo: Ática, 2006.
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GARCIA M. , Othon. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Fundação
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SACKS, Sheldon (Org.). Da metáfora. Trad. Francisco W. A. M. van de Wiel e outros.
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VIGÍLIA DA SUBMISSÃO
Nesta mesma linha manifestam-se Jules Isaac e André Alba (1967, p. 153) ao
afirmarem “Sabemos que ainda existia na Espanha um pequeno Estado muçulmano, o
reino de Granada. Foi ocupado em 1492 e incorporado a Castela”.
Outro fato que marcou profundamente a história européia foi o casamento de Isabel e
Fernando, unindo os dois maiores e mais poderosos reinos existentes no atual território
espanhol (Aragão e Castela), não vendo outra alternativa os demais reinos da região
acabaram por se unir (submeter) ao poder dos novos reis, isto marcou o inicio da união
política e territorial da Espanha. Com a expulsão do último “reino mouro” em território
Espanhol, os “reis católicos” tiveram toda liberdade para obrigar todos os que não eram
católicos a converterem-se ou a expulsá-los do território (ISAAC; ALBA, 1967, p. 153).
A Espanha nessa época ainda padecia de outro grave problema, a população fugia do
campo e dirigia-se para a beira das estradas e para as cidades, buscando escapar da
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miséria e das doenças, procurando uma nova e melhor vida, uma oportunidade, isto
acaba por causar uma crise agrária, e a população sofre ainda mais devido a escassez de
alimentos (HEERS, 1981:204).
Devido ao ambiente hostil que existia no mediterrâneo provocado pelo conflito com
os mouros, a Espanha se obriga a buscar novas rotas para chegar até as índias e a demais
mercados de especiarias, isso leva a realizarem-se novas incursões pelo Oceano
Atlântico (HEERS, 1981, p. 334).
Assim, pode-se perceber que o contexto social de onde partiam os navegantes é um
ambiente radical e totalitário, dominado pela Igreja Católica, isto posto percebe-se que
muitos tripulantes de frotas que se aventuravam em busca de fama e riquezas eram
judeus e mouros (muitas vezes exilados, e que viam uma chance de mudar de vida), ou,
no mais das vezes, população cristianizada, sem educação e miserável, que mal
poderiam subsistir no seio da sociedade em que estavam inseridos.
O contato inesperado de Colombo com a ilha de Guanahaní, no Caribe, na
madrugada de 12 de outubro de 1492, com sua natureza exuberante em espécies de
fauna e flora e seus habitantes vivendo em estado natural, quando imaginava haver
atingido seu grande objetivo de chegar a Cipango ou Cathay, foi, seguramente, marcado
pelo signo dos equívocos. Equívocos que se multiplicaram em uma escala binária, uma
vez que os nativos, da mesma forma como os europeus, passaram a ver os estranhos
seres vindos do mar sob configurações distanciadas da realidade, confundindo-os com
divindades presentes em suas tradições culturais milenares. Esses equívocos chegaram
ao ponto de nomear estas terras, anexadas à coroa espanhola pelos atos de tomada de
posse executados por Colombo, de América. Homenagem a outro navegante italiano,
Américo Vespúcio, que, supostamente, teria sido o primeiro a dar-se conta de que as
terras encontradas por Colombo, em 1492, constituíam um continente.
Estas impressões equivocadas de um e outro acabaram se perpetrando sob diferentes
formas e gerando novas incoerências na percepção do outro: Colombo registra as suas
em seu Diário de bordo – escrito durante todo o trajeto de travessia e retorno, bem como
em uma extensa carta redigida logo de sua chegada à Europa, endereçada aos Reis
Católicos. Esta carta foi impressa em 1493 e se espalhou pelos reinos europeus. Assim,
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Colombo torna-se o primeiro Cronista das Índias. Foi ele, deste modo, o responsável
pela configuração primordial – no imaginário do povo europeu do final do século XV –
das terras e gentes com as quais ele e sua tripulação contataram em sua primeira
travessia ao Atlântico, ou seja, futuro continente americano.
O descobrimento da América constitui um tema recorrente nas literaturas hispânicas.
Já se havia manifestado o crítico Lasso de la Vega (1890), ao lamentar que a grande
façanha do Almirante Cristóvão Colombo, não tenha tido na literatura espanhola dos
séculos XV e XVI um poeta como Camões para celebrar quadros tão dramáticos que,
certamente, sua aventura poderia inspirar. Menéndez Pelayo faz, entretanto, algumas
conjecturas sobre as possíveis causas que possam ter limitado o alcance poético do tema
que envolve as realizações do Almirante, a quem chama de “el gran poeta”: “[...] el
conflicto fue con la naturaleza y no con los hombres y ese género de luchas no sirven
para el teatro. Pueden reflejarse de algún modo en los raptos y visiones de la poesía
lírica” (MENÉNDEZ PELAYO, 1949, p. 311).
Os romancistas espanhóis, ao abordarem a poética do descobrimento, buscam, na
maioria das vezes, resgatar imagens que enaltecem o lado heróico da empresa, da
importância da participação do Estado Espanhol neste projeto ou a reconstituição de
aspectos sócio-históricos e culturais da vida na Espanha do início do Renascimento,
período no qual este evento está inserido.
Todorov (1993) reforça a idéia de estranheza ocorrida devido ao descobrimento e ao
contato entre autóctones americanos e exploradores europeus, traçando um paralelo com
os outros continentes, Ásia e África poderiam ter costumes totalmente diferentes, mas
sua existência sempre foi certa, o que ocorrera no novo mundo foi o contato com algo
que até o momento para os europeus era totalmente novo, inexistente:
O discurso empregado busca revelar uma nova faceta do encontro entre os dois
mundos, ou seja, a percepção do “outro”. Se Cristóvão Colombo, conforme registra
Todorov (1983, p. 47), em toda sua experiência de descoberta não chegou a dar-se conta
da existência do “outro”, já que “Colombo descobriu a América, mas não os
americanos”.
Como exemplo de viajante que inspirou a aventura de Colombo podemos mencionar
Marco Polo. Este se aventurou a conhecer outras culturas, a sair de um determinado
lugar – de sua cidade – e, andando em princípio sem roteiro prévio, permitiu se
defrontar com o desconhecido. Nesse percurso, o que encontrou, mais do que a
diferença, foi a si mesmo, até então não estranhado e, portanto, desconhecido. Isto posto
poderíamos pensar então nos outros lugares como não somente circunscritos a espaços
geográficos, mas também a tudo que nos cerca e do qual nos diferenciamos,
caracterizando-se assim como referência para o próprio reconhecimento. (ZANELLA,
2005).
Isto posto percebe-se a íntima relação desenvolvida com o posicionamento,
levantado por Ítalo Calvino (apud. ZANELLA, 2005), de que “os outros lugares são
espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que
não teve e o que não terá”.
A partir daí podemos observar claramente a presença da alteridade, do se ver no
outro, se conhecer a partir do estranhamento, do sou o que sou porque não sou, mas em
última análise um igual. Conceito que fora melhor desenvolvido entre 1918 e 1924,
Bakhtin escreve diversos ensaios cujo tema central é a relação entre o eu e os outros. O
eu só existe em diálogo com os outros, sem os quais não se poderá definir. O processo
de auto-compreensão só se pode realizar através da alteridade, isto é, pela aceitação e
percepção dos valores do Outro (CEIA, 1997).
Compreensão esta que não se manifestou quando da chegada dos europeus às terras
americanas. Ainda que de maneira um tanto primitiva, é possível que se observe alguns
germens da teoria de Durkheim, quando refere-se a necessidade de agrupar sociedades
em tipos sociais, partindo de suas semelhanças, sendo que em se tratando de sociedades
caracterizadas como de solidariedade orgânica acaba-se por exigir que ocorra uma
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divisão do trabalho social. Tal divisão pode ser vista no seio da própria sociedade
européia em que a hierarquia das classes até a Revolução Francesa estavam muito bem
marcadas e que foram transportadas para as novas terras logo de sua descoberta. Os
autóctones logo foram relegados a um status de sub-raça, sendo vistos apenas como
meio através do qual fosse possível alcançar interesses outros da classe dominante
(européia).
E foi sobre a perspectiva de uma sociedade retrograda moralmente e perpetuada pelo
signo da dominação bélica que os colonizadores espanhóis vilipendiaram uma série de
civilizações e culturas, em nome de um Deus intolerante e de uma pretensa ordem social
e moral imposta pela monarquia.
Como foi mencionado anteriormente a historiografia oficial enaltece a importância e
a nobreza de Colombo quando da chegada ao novo continente, sendo que as literaturas,
principalmente as européias, até meados da década de 90 do século XX cantam as
proezas e as maravilhas da empresa realizada por Colombo e seus homens.
A reação a esta espécie de tradição literária se deu através da literatura hispano-
americana com o Novo Romance Histórico Latino Americano que possibilitou a
exploração de outras perspectivas em relação a fatos históricos postos pela
historiografia oficial. Desta forma possibilita-se que a história seja contada pelo
perdedor, oprimido ou pelas minorias, e que mediante o pacto realizado com o leitor,
que é embasado na confiança, este possa desenvolver uma consciência crítica acerca das
possibilidades que o fato histórico possui e não somente a perspectiva defendida pelo
historiador, ainda que este se baseie em registros e faça de sua profissão uma “ciência”.
É sobre a égide do Novo Romance Histórico Latino Americano que surge a obra
Vigilia del Almirante (1992) de Augusto Roa Bastos, que mediante o uso de estratégias
narrativas próprias desta espécie de produção literária como a paródia, o dialogismo, a
carnavalização e a polifonia, trabalha de forma distinta a chegada de Colombo à
América, bem como toda a sua figura de herói histórico.
Mediante sua obra Roa Bastos se torna um dos porta-vozes da população da América
Latina, que realiza uma tentativa de recuperação de valores e repúdio a princípios
enaltecidos pela sociedade européia, questionando fatos postos pela história tradicional,
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dando voz ao explorado, reforçando a idéia defendida pela Nova História, que tem
como principal defensor Jacques Le Goff.
O uso da estilística para trabalhar uma nova perspectiva do fato histórico pode ser
observada pela constante utilização de quebras de raciocínio existentes na obra, restando
claro que assim como os fatos que são narrados acerca dos europeus são confusos senão
desconexos, assim também se manifestavam seus pensamentos, princípios e ações à
época do descobrimento.
Uma das principais características que a população nativa possuía era a tradição oral,
que foi quase que totalmente suprimida pela tradição escrita imposta pela sociedade
“cientifica” européia. Mas mesmo com toda a pressão, tanto sócio política quanto
econômica, imposta pela cultura ocidental, a tradição oral manteve-se e pode muito bem
ser observada quando da apropriação de alguns termos e da utilização da linguagem oral
na escrita. Esta sobrevivência pode ser vista durante parte da obra Vigilia del Almirante
(1992), como é o caso da referência a tradição medieval seguinte: “La cantaban por los
pueblos los trovadores” (BASTOS, 1992, p. 38), ou em momentos como nos títulos de
várias partes do livro como o VIII (“Cuentan los cronistas”, em que existe um referência
muito presente em relação às lendas da tradição autóctone), X (“Cuenta el narrador”),
XXIII (“Cuenta el narrador”), XXVII (“Cuenta el Almirante”), XLV (Cuenta el
Narrador”). Há o enaltecimento da tradição oral e a comprovação de sua supremacia
quando um dos narradores trata das lendas: “La leyenda pasó por fin al dominio común.
Lo que confirma el natural y simple hecho de que la tradición oral es la única
comunicación que no se puede saquear, robar ni borrar” (BASTOS, 1992, p. 65),
comentário que pode ser estendido por analogia a tantas outras características da cultura
nativa que foram destruídas, roubadas, maculadas e apagadas pela sociedade alienígena.
Outra referência a este assunto pode ser visto a seguir: “El habla y la escritura son
siempre, inevitablemente, tomadas en préstamo de la palabra oral, a un hablante en
trance de convertir su pensamiento en sonidos articulados. No nos podemos comunicar
sino sobre este suelo arcaico” (BASTOS, 1992, p. 123). Mantendo o foco sobre a
importância da tradição oral e abordando em conjunto relações de perspectiva e verdade
em contradição a palavra escrita temos: “La palabra viva dice siempre la verdad aunque
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no la diga; la dice con una manera de decir que dice por la manera. Vuela libre. La letra
se ha hecho para mentir. Cristaliza en la tinta la parte oscura de la verdad […]”
(BASTOS, 1992, p. 168). Isto posto, a tradição escrita que visa materializar e garantir a
perpetuação de valores não tem em sua natureza as características da imortalidade, mas
tão somente a legitimação de interesses de indivíduos ou classes, estando, em verdade,
fadada à destruição, ou na melhor das hipóteses à caducidade.
Na obra em análise a dialogia, que se manifesta principalmente devido a
intertextualidade que pode ser inferida por um bom leitor, pode ser observada em
diversos pontos, as principais obras que mantêm um dialogo com a Vigilia del
Almirante são El arpa y la sombra, El ultimo crímen de Colón, Viaje a la semilla, todos
Novos Romances Históricos Latino Americanos que buscam trabalhar com uma
perspectiva referente ao descobrimento da América diversa da constante na
historiografia oficial.
E nesta idéia de trabalhar as questões que envolvem Literatura e História, a obra
também se manifesta, sendo isto possível pelas características existentes no Novo
Romance Histórico, sendo a que mais possibilita este tipo de raciocínio a metaficção.
Em relação à questão que fora mencionada pode-se observar:
raciocínio crítico sobre qualquer uma destas produções. E sobre essa concepção ainda é
possível observar a seguinte passagem da obra de Roa Bastos (1992, p. 84):
Referências
BURKE, P. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São
Paulo: Editora da UNESP, 1992.
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ISAAC, Jules; ALBA, André. História universal: Idade Média. 1° ed. São Paulo:
EDITORA MESTRE JOU, 1967.
MARX, Karl; ENGELS, Frederich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin
Claret, 2002.
VARELA, C. Cristóbal Colón: Los cuatro viajes. Testamento. Madrid: Alianza, 1986.
Há bastante tempo é possível observar que o ensino de literatura na escola não é algo
estimulante, pelo contrário, é frustrante. Frustrante para o aluno que, ao entrar no ensino
médio, é massacrado com uma tonelada de informações superficiais sobre
características de escolas literárias. E mais frustrante ainda para o professor que, por ter
que cumprir a grade de conteúdos da série e tendo que se ajustar às cobranças
pedagógicas da escola, principalmente com foco no vestibular, acaba por fracassar na
tentativa de formar novos leitores ávidos e apaixonados pela literatura.
O desinteresse pela leitura de literatura por esses jovens alunos não é um ato de
rebeldia ou de puro desprezo, mas é fruto de uma série de fatores que propiciaram a
fertilização dessa obstinada apatia pelo estudo de textos literários.
Ainda que possamos elencar muitos desses fatores, é incerto dizer que a mera
identificação das falhas pode acarretar numa mudança positiva e significativa no atual
processo de ensino-aprendizagem de literatura. É necessário voar mais alto. É preciso ir
além do reconhecimento da necessidade de mudanças e das conjecturas. É
imprescindível agir.
As aulas de literatura com o propósito de memorização das características de estilos
de época e nomes de autores com suas respectivas obras, ou ainda como pretexto para
exercícios de análise gramatical dos textos literários, não atendem mais as necessidades
educativas dos jovens. E a simples imposição de leituras, sem um critério muito bem
definido e plausível com uma nova proposta de prática educacional, via de regra, traz
resultados danosos ao desenvolvimento desse novo leitor, que entende literatura como
sinônimo de trabalho inútil. Conforme nos aponta Luzia de Maria, em seu livro O clube
do livro: ser leitor – que diferença faz? a escola hoje, muitas vezes, deixa de lado a
leitura da literatura em si para trabalhar aspectos pontuais do texto:
Assim, o leitor é visto como agente ativo que participa na construção do sentido. Da
mesma forma, para Jauss (1994), a leitura é produto de um diálogo de interação entre
obra e leitor e, em Iser (1996) é fácil perceber que “a estrutura do texto e o papel do
leitor estão intimamente unidos”.
A literatura tem um importante papel na sociedade, conforme nos aponta Rildo
Cosson:
Portanto, não se pode imaginar a leitura da literatura no ensino médio como cartas
marcadas, como apenas o cumprimento, página após página, do conteúdo programático
apresentado pelo livro didático. Ao contrário, o estímulo à leitura deve ser uma
constante, e sempre de forma a possibilitar que não seja um exercício de análise da
mensagem subentendida, mas sim um passaporte para a viagem metafísica que o leitor
tem direito a fazer (escolhendo o meio de transporte, a classe, a duração e sem destino
predefinido).
A aventura da leitura não deve se fixar apenas numa tentativa de adivinhação do
sentido que o autor imaginou e a pura aceitação deste, conforme nos aponta Marisa
Lajolo:
REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7. ed.
São Paulo: Ed. Nacional, 1985. P. 74.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2007. P.
17.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: 34, 1996.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São
Paulo: Ática, 1994.
JOBIM, José Luís. A literatura no ensino médio: um modo de ver e usar. In:
ZILBERMAN, Regina; ROSING, Tania M. K. (Orgs.). Escola e leitura: velha crise,
novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. p. 117.
LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. Será que não é mesmo? In: ZILBERMAN,
Regina; ROSING, Tania M. K. (Orgs.). Escola e leitura: velha crise, novas
alternativas. São Paulo: Global, 2009.p. 101.
MARIA, Luzia de. O clube do livro: ser leitor – que diferença faz? São Paulo: Globo,
2009, p. 46.
Não penso que Sagarana seja um bloco unido, nem que o Sr.
Guimarães Rosa tenha sabido, sempre, escapar a certo pendor
verboso, a certa difusão de escrita e composição. Sei, porém, que,
construindo em termos brasileiros certas experiências de uma altura
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Desde então, tal coletânea de contos vem sendo estudada pela crítica brasileira, sob
diversas perspectivas: cultural, filosófica, linguística, entre outras. Estudiosos como
Oswaldino Marques, Cavalcanti Proença, Paulo Rónai, Wilson Martin, Antonio
Candido e muitos outros, reconheceram a singularidade da arte do autor de Grande
sertão: veredas e se dedicaram a desvendar os sertões rosianos.
Pode-se afirmar que os contos de Sagarana, de um modo geral, apresentam temas
recorrentes, é o caso, por exemplo, de questões de ordem política e social, delineadas,
seja explícita ou implicitamente, em todas as narrativas dessa coletânea de contos. Nildo
Benedetti, em sua tese (2008, p. 4), defende a ideia de que o tema central da obra seria o
de uma representação do Brasil da Primeira República. Ademais, as próprias epígrafes
possibilitam leituras no sentido de que o livro seria uma observação, uma constatação
do cenário que se desenhava no Brasil do século passado.
A primeira delas, “Lá em cima daquela serra, passa boi, passa boiada, passa gente
ruim e bôa, passa a minha namorada” (ROSA, 1946, p. 7), nos faz pensar em alguém
apontando, direcionando o olhar de outra pessoa, isso pode ser verificado por meio dos
vocábulos “lá” e “daquela”, não se trata de qualquer serra, mas sim “lá [...] em cima
daquela serra”, portanto, o interlocutor é conduzido a contemplar um cenário, é
chamado a atentar a algo. Na segunda epígrafe “‘For a walk and back again’, said the
fox. ‘Will you come with me? I’ll take you on my back. For a walk and back again.’” 1
(ROSA, 1946, p. 7), a raposa convida a um passeio, que pode ser figurativamente
encarado como um convite a um passeio pelo próprio texto, onde nos serão mostrados
paisagens, lugares, pessoas, animais e relações conflituosas, cabendo ao leitor desvendar
1
“‘Para um passeio’, Disse a Raposa. ‘Você vem comigo? Eu o levo nas minhas costas. Para um
passeio’” (Tradução nossa).
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época em que Sezão foi escrito se realizavam acaloradas discussões sobre essa temática
e muitos autores se preocuparam em traçar diagnósticos do Brasil, atribuindo a cada
uma das raças que configuram a população brasileira pesos e qualidades variáveis na
nossa formação social. Oliveira Vianna, em seu livro Populações meridionais do Brasil,
representa o pensamento do Brasil no início do século XX:
O nosso protagonista não burla esses estereótipos, pelo contrário, confirma-os. Suas
atitudes ratificam as características apresentadas por Oliveira Vianna. Lembre-se que na
época esse pensamento era apresentado como verdade científica. Lalino, portanto, não
destoa, surpreende ou desmente essa visão e isso ocorre porque, de acordo com Luiz
Roncari, o personagem principal é “tipo” (RONCARI, 2004, p. 32), isso significa dizer
que seus traços, ao invés de o particularizarem, generalizam-no, transformando-o em
um representante de um grupo. Deste modo, Eulálio Salãthiel é um mestiço, típico
representante de uma esfera carente e marginalizada da sociedade brasileira; ele é
descrito como um mulato preguiçoso, astuto, sem caráter, imaginativo, que conversa
muito e faz pouco ou nada, levando muitas vezes os outros a trabalharem por ele, é
mestre em tirar proveito das situações, reconhecendo as forças e as fraquezas alheias e
lançando mão da cordialidade e amabilidade em sua fala, características importantes no
traçado malandro do protagonista e que serão investigados mais detalhadamente a
posteriori.
Sabe-se, pelo trecho supracitado de Oliveira Vianna, que o mulato era considerado
inferior ao branco, entretanto, ao contrário de O cortiço, em que a baiana Rita pretere o
mulato Firmo em função do português, no conto rosiano Maria Rita, mulher de Lalino,
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Luiz Roncari (2004, p. 33), nessa linha de pensamento, busca a acepção etimológica
do termo, que viria do latim cor, cordis, significando coração, homens movidos pelo
coração, como o nosso protagonista, que age muito mais movido pelas particularidades,
ou seja, pelas emoções e desejos, do que pela universalidade, racionalidade, que lhe
permitiria levar em consideração princípios morais, por isso, representa um ser raso em
reflexões.
O protagonista, portanto, na condição de mulato e sendo classificado como um
personagem tipo, conforme dito anteriormente, é avaliado pela pesquisadora Ivone
Minaes como um malandro nos moldes definido por Candido em A dialética da
malandragem e, ao encarnar a malandragem, Lalino apresenta amabilidade,
cordialidade, “— Olá, Batista! Bastião, bom dia! Essa fôrça como vai?!/ — Ei, Túlio,
cada vez mais, bem?/ — Bom dia, seu Marrinha! Como passou de ontem?” (ROSA,
1946, p. 69); riso fácil, “Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente [...] E logo
comenta, risonho e burlão” (ROSA, 1946, p. 69-70); possui, ainda, aderência aos fatos,
que podem ser observados, sobretudo pela capacidade de nosso herói de se adequar aos
momentos. Ele não reflete, age impulsivamente, guiado pelos desejos mais imediatos,
sem ponderar as consequências, simplesmente ajustando-se aos resultados produzidos
por suas atitudes, vivendo, desse modo, “ao sabor da sorte”, utilizando uma quarta
característica, a astúcia, para reverter uma situação adversa a seu favor.
Notadamente, a linguagem é o elemento principal da Malandragem presente no
comportamento do personagem principal, e não somente a verbal, mas também a
gestual. Essa hipótese já vem indicada no nome do protagonista, tendo em vista que,
Eulálio constitui-se em um nome composto que indica dois radicais de origem grega:
eu=, advérbio cujo significado é “bem”, e lalein de “falar”. Eulálio significa, pois,
aquele que fala bem, que é bom orador. A linguagem gestual, assim como a verbal,
tende a assumir relativa importância no traçado malandro de Lalino. Diversas passagens
no livro contribuem a fim de indicar um destaque desse tipo de comunicação
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Nesse sentido, nosso herói persuade pessoas à sua volta por meio da comunicação
adequada a cada interlocutor; a quarta característica já anteriormente mencionada da
malandragem de Lalino, a astúcia, pode ser inclusive evidenciada pela utilização da
linguagem que opera o convencimento e faz dominar a situação; a cordialidade e a
simpatia de que vem carregada a comunicação do personagem faz com que ele se saia
bem dos mais adversos momentos em que se encontra, levando todos, como se diz
popularmente, “no bico”. Portanto, ao contrário da fábula citada na epígrafe, a tagarelice
de Lalino não lhe põe em más situações, mas sim lhe tira delas.
Kathrin Rosenfield afirma que o relato conversacional trata-se de um costume
poderoso e o hábito de “puxar conversa”, no meio do trabalho ou no caminho, é
tipicamente brasileiro. É importante levar em consideração que a autora dessa afirmação
é uma pesquisadora alemã, já vivendo no Brasil há, aproximadamente, oito anos.
Vale ressaltar, ainda, o interesse de nosso protagonista pelo teatro, lembre-se, por
exemplo, que ele estava responsável pela organização da peça do Visconde sedutor, no
qual se estabelece uma relação indissociável entre gesto e palavra. É ratificado, deste
modo, o fato de que pela associação da linguagem verbal à mímica é caracterizada a
sedução malandra do personagem principal.
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retrato estático e perfeitamente definido de uma época pela qual o Brasil passou, isso
significaria negar a própria poeticidade da obra e as ilimitadas possibilidades de leitura
e interpretação do texto literário enquanto objeto estético.
Referências
BENEDETTI, Nildo Maximo. Sagarana: o Brasil de Guimarães Rosa São Paulo, 2008.
291 p. Tese de Doutorado em Letras (Literatura Brasileira), Universidade de São Paulo.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.
400 p.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. 2. ed. Rio de Janeiro: Universal, 1946. 336 p.
ROSA, João Guimarães. Carta de João Guimarães Rosa a João Condé revelando
segredos de Sagarana. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 23-28.
Introdução
1. Metodologia
2. Fundamentação teórica
Sánches (1991, apud ALMEIDA s/d, p. 26) destaca a importância da língua escrita
no estabelecimento de um intercâmbio entre a comunidade dos surdos e a dos ouvintes,
pois ela se constitui no instrumento que possibilitará ao surdo ser efetivamente bilíngüe.
Segundo Ramos (2004),
comunicação com os pais por meio da língua de sinais também faz com que surdos
filhos de pais surdos se tornem mais abertos ao aprendizado de uma segunda língua.
(p.106).
Existe, ainda, a questão da coerência e coesão do texto. A língua de sinais não
utiliza artigos, preposições, conjunções, porque estão implícitos no próprio sinal, e os
modos e tempos verbais, os sufixos e os prefixos são produzidos por movimentos das
mãos no espaço, em várias palavras.
A professora de Português de uma das surdas que participou da pesquisa
também se referiu ao fato da aluna surda não conseguir participar das discussões em
grupo. Sánchez (2005, p. 135), em estudo sobre uma educação inclusiva, vem mostrar a
importância dos pares no processo de aprendizagem. A aprendizagem com os pares,
bem conduzida, revela-se uma estratégia quase indispensável numa escola que se quer
de todos e para todos, onde todos possam aprender com os instrumentos que se têm,
onde todos devem poder ir o mais longe possível, utilizando o seu perfil de
aprendizagem, que pode ser igual ou diferente do seu colega e mesmo do professor.
Isto posto, a inclusão da problemática específica dos alunos com necessidades
especiais em todos os níveis da educação é um desafio que requer reflexão crítica sobre
o papel do interlocutor na utilização de estratégias e práticas pedagógicas eficazes
aliadas ao uso adequado de recursos, a importância de uma intervenção curricular
adequada e de ações imediatas.
O desenvolvimento de práticas que possibilitem ao aluno surdo vivenciar
experiências significativas com a leitura e a escrita urge frente a concepções de
linguagem subjacentes às práticas de letramento escolares que reproduzem estratégias
metodológicas voltadas a falantes nativos da língua portuguesa.
Ellsworth (2001) aplica o termo endereçamento usado em cinema à educação e
pergunta:
Com a mudança cada vez mais crescente do modo escrito para o imagético e de
livros para telas, tende-se a favorecer o letramento crítico dos surdos. Quadros e Stumpf
(2008) também enfatizam a importância do uso de tecnologias avançadas na Pedagogia
Surda.
Assim sendo, quais modos de ler e que tipos de texto podem ser usados com os
alunos surdos no ensino de literaturas de língua inglesa? Apresenta-se, a seguir, um dos
materiais analisados na Pesquisa de Iniciação Científica. Trata-se do conto de fadas
Goldilocks & The Three Bears.
ela vai para a escola, aprende a ler, mas não consegue entender o
que as palavras representam, ela não consegue reconhecer o
retrato porque antes não ouviu a palavra associada à ação ou ao
objeto. Por isso, o surdo parece que sabe ler mas não entende o
significado. Nós, surdos, precisamos de uma escrita que
represente os sinais visuais-espaciais com os quais nos
comunicamos, não podemos aprender bem uma escrita que
reproduz os sons que não conseguimos ouvir.
Conclusão
Referências
(...) À sua volta Eça de Queirós só via escombros. Foi então que das
suas largas permanências em meios estranhos, da muita leitura e do
aproximar-se dos cinqüenta anos que lhe veio o desejo de afirmar e
construir, depois de tanto negar e demolir. (FIGUEIREDO, 1960,p.
430)
Nesse momento, há uma ampliação da projeção dada por Eça em suas obras; o autor
deixa de ter seu foco em solo português e no século XIX e passa a popor um projeto
mais universalista, desenraizado e preocupado com a condição não apenas da sociedade,
mas do indivíduo:
Referências
FIGUEIREDO, Fidelino de. História Literária de Portugal. 2 ed. Rio de Janeiro: Fundo
de Cultura, 1960.
GUIMARÃES, Fernando. A poética do saudosismo. Lisboa: Presença, 1988.
JOLLES, Andre. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
LINS, Álvaro de B. História literária de Eça de Queirós. 2 ed. Lisboa: Livraria
Bertrand, 1959.
LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
______________________. Mitologia da saudade (seguido de Portugal como destino).
São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
LUCAS, Maria Clara de Almeida. Hagiografia medieval portuguesa. Lisboa: ICALP,
1984.(Coleção Biblioteca Breve)
MACHADO, Álvaro Manuel. A Geração de 70 ( uma revolução cultural e literária ).
Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.
MARTINS, Mário. Estudos de Cultura medieval. Lisboa: Verbo, 1969.
_______________. Alegorias, símbolos e exemplos morais da literatura medieval
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MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
MATOS, A. Campos (dir). Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa: Caminho, 1988.
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QUEIROZ, Eça de. Últimas Páginas. São Paulo: Brasiliense, 1961.
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REIS, Carlos. Literatura portuguesa moderna e contemporânea. Lisboa: Universidade
Aberta, 1990.
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Introdução
∗
Bruna Otani Ribeiro- Acadêmica do Terceiro ano da Graduação do curso de Letras
Português/Espanhol da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE/Cascavel). Participante
do curso de extensão “O Narrador – visão e voz na narrativa”, ação do Projeto “Estudos das teorias
contemporâneas de análise literária”, vinculado ao programa de extensão PELCA: Programa de Ensino de
Literatura e Cultura.
∗ ∗
Gilmei Francisco Fleck - Professor Adjunto da UNIOESTE/Cascavel nas áreas de Literatura e
Cultura Hispânicas. Doutor em Letras pela UNESP/Assis. Vice-líder do grupo de pesquisa “Confluências
da Ficção, História e Memória na Literatura”. Coordenador do PELCA: Programa de Ensino de Literatura
e Cultura. E-mails: bruna_otani@hotmail.com;chicofleck@yahoo.com.br
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2) Inés del alma mía (2006): uma mulher no universo colonial hispanoamericano
A obra escolhida como objeto de estudo divide-se em seis partes: 1- Europa, 1500-
1537 (trata basicamente da vida de Inés Suárez antes de partir ao Novo Mundo.) 2-
América, 1537-1540 (narra os primeiros anos dos espanhois no continente americano.)
3- Viaje a Chile, 1540-1541 (relata a dificuldade de atravessar o deserto para chegar ao
sul.) 4- Santiago de la Nueva Extremadura, 1541-1543 (versa sobre a fundação da
cidade de Santiago.) 5- Los años trágicos, 1543-1549 (conta como sobreviveram à
escassez generalizada de alimentos.) 6- La guerra de Chile (refere-se o período de
maior conflito entre os espanhois e os índios do sul.)
Inés del alma mía, estrutura-se como sendo o relato das memórias da personagem
Inés Suárez, configurando-se numa narrativa autodiegética, associando-se, pois, às
narrativas de extração histórica. Com relação às escritas autobiográficas, no âmbito da
história, Alberti (1991, p. 75-78), ao apoiar-se nos pressupostos teóricos de Philippe
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para modificá-los, porta-se como um sujeito ativo que transforma a realidade, o que
não era comum às mulheres da época, pois estas eram em sua grande maioria
submissas e resignadas aos homens. Dessa forma, a construção discursiva de Inés faz
com que ela se destaque como sendo uma figura de relevo em sua história por agir e
não simplesmente aceitar os fatos como eles deveriam ser. Segundo a análise de
Canello (2009, p. 109), pode-se depreender da leitura que Inés Suaréz representa a luta
de “muitas mulheres na conquista de um espaço para sobreviver e libertar-se de muitos
tabus e preconceitos que marcaram toda uma história, regida por verdades estabelecidas
em poderes instituídos e tradicionalmente firmados em uma sociedade patriarcal”.
Tal afirmação vem ao encontro de nosso raciocínio, contudo, há que se atentar para
o fato de que os supostos preconceitos sofridos por Inés de Suárez, figura histórica,
eram atitudes comuns e naturais para a civilização da época, uma vez que se vivia,
então, sob os moldes de uma sociedade patriarcalista. Estranho seria se o preconceito
não tivesse existido. Inés, como personagem histórica, foi uma figura importante
encontrada pelas pesquisas feitas por Allende pelo fato de que, já no século XV, não
aceitou com resignação uma vida de mulher obediente e isso serviu, obviamente, como
motivo de assombro, já que não era comum existirem, no período colonial, mulheres de
fortes personalidades, determinadas a lutarem por seus objetivos. Diante de uma
existência minimamente documentada de uma mulher com tais traços, a pena
imaginativa de Allende consegue desenvolver os mais relevantes traços de ideal
feminino e de luta igualitária dessa mulher ao lado dos grandes homens da época da
conquista da América, dando-lhe o devido destaque que a história nunca lhe atribuiria.
No romance de Allende, a personagem Inés Suárez ganha voz para contar sua
versão dos fatos acontecidos na conquista do Chile, pois não deseja que seja esquecida
a importância das mulheres neste processo. Deste modo, a personagem declara:
“Puedo apuntar mis recuerdos y pensamientos con tinta y papel gracias al clérigo
González de Marmolejo, quien se dio tiempo, entre su trabajo de evangelizar salvajes
y consolar cristianos, para enseñarme a leer.” (ALLENDE, 2008, p. 17). O aprender a
ler e escrever já caracteriza a não passividade de Inés, pois a detenção da escrita e da
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culpa fue mía: yo tenté al inocente muchacho, lo seduje, lo saqué de quicio y lo llevé a
la muerte. Yo, la impúdica concubina.” (ALLENDE, 2008, p. 169).
No entanto, ao se questionar se seria ela a verdadeira culpada pelos ataques dos
soldados, a protagonista reflete: “No encuentro falta en mi, salvo ser mujer, pero eso
parece ser crimen suficiente. A nosotras nos culpan de la lujuria de los hombres,
[…].” (ALLENDE, 2008, p. 160). O discurso da narrativa revela, pois, que o simples
fato de Inés ser uma bela mulher faz com ela seja, injustamente, vista como uma figura
demoníaca, por seduzir, tentar e induzir os homens a pecarem. Diante das diversas
tentativas dos soldados de possuírem a Inés, ela passa a ser considerada, até mesmo por
Valdivia um objeto sexual, como se pode observar na passagem abaixo:
156). Nas tintas de Allende, Inés desfaz o estereótipo de que a mulher não teve
participação na administração política no período colonial, pois mesmo manifestando
sua opinião de forma velada, Inés mantinha poder político sobre a cidade de Santiago.
O romance faz questão de mostrar o embate entre o posicionamento dos homens e o
papel desempenhado pelas mulheres para que estes obtivessem o sucesso pelo qual
foram imortalizados na história. Um dos exemplos disso na narrativa ocorre quando
Valdivia, ao querer conquistar e fundar muitas cidades, é alertado por Inés sobre a falta
de condições para defender e proteger tanto as antigas como as possíveis novas
cidades. Ante tais comentários o conquistador menciona: “Las mujeres no pueden
pensar en grande, no imaginan el futuro, carecen del sentido de la Historia, sólo se
ocupan de lo doméstico y lo inmediato” (ALLENDE, 2008, p. 214). Tais palavras
revelam não o pensamento do amante acerca da mulher amada, mas da própria história
com relação aos feitos realizados pelas mulheres. Na ficção contanto, cujo objetivo é
justamente revelar o oposto, o conquistador retrata-se diante de Inés, após ela relatar
todas as ações que fizera para tornar Santiago uma cidade digna de se viver:
Revelar, no universo ficcional, essas ações de Inés e das mulheres em geral no que
tange ao êxito no processo de colonização – ações jamais mencionadas nos
compêndios da história –, é reivindicar pela arte literária que as mulheres conhecem
sim o sentido da História, que lutam pela sobrevivência de todo um povo, não se
restringindo às preocupações imediatas. Diferentemente dos homens, que se
preocupam com a guerra, o que não raras vezes é sinônimo de silenciamento, de morte,
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Ao refletir sobre o papel da mulher na sociedade, vemos que por muito tempo
coube-lhe apenas o papel de educadora e reprodutora. Tal sistema, portanto, afastava a
mulher do acesso ao mundo exterior. Assim, ela foi instalada em uma condição de
isolamento e reclusão que vedou-lhe o acesso a qualquer esfera do poder, das
possibilidades de reflexão e atuação na história. De acordo com Lucía Guerra, “dentro
de una estructura patriarcal que la limita al único papel de madre y esposa, la mujer,
sin alternativas en el mundo de afuera, depende económicamente del hombre,
dependencia que se extiende a la esfera de lo legal y lo emocional. (GUERRA, 2007,
p. 15). Uma situação bem diferenciada daquela dos homens que ocupavam o espaço
público e nele construíam sua imagem de dominação.
Em um período de poucas décadas, os debates envolvendo questões sobre sujeito,
alteridade e construção de identidade começam a ganhar considerável visibilidade
devido à manifestação de novas forças políticas emergentes. Tais forças são
constituídas pelos grupos historicamente excluídos e marginalizados da sociedade
sendo alguns deles, mulheres, negros e índios.
Ao longo da história, o discurso do sujeito feminino foi silenciado e segundo Borges
Teixeira,
o papel da mulher ao produzir uma literatura sobre a mulher e como resposta a crítica
considera o papel da mulher seria o de uma revolucionária, devido ao fato de romper
com as características convencionais e opressivas do pensamento masculino
materializado na linguagem literária anterior às produções femininas.
A literatura produzida pelo sujeito feminino constitui-se, hoje, como sendo um
“processo de reconstrução da categoria “mulher” enquanto questão de sentido e lugar
privilegiado para a reconstrução do feminino e para a recuperação de experiências
emudecidas pela tradição cultural dominante.” (BORGES-TEIXEIRA, 2008, p. 46).
Percebe-se, então, que tanto a personagem do romance, Inés Suárez, quanto a sua
criadora, Isabel Allende, ou seja, tanto a obra literária como a sua produtora contribuem
para o reconhecimento da mulher na sociedade. O fazer literário feminino promove uma
reflexão sobre a condição humana e sobre o conceito de identidade da mulher.
Referências
Introdução
A identidade está intimamente ligada àquilo que o indivíduo pensa sobre ele e àquilo
que ele acha que os outros pensam sobre ele. Esse é um processo, na maioria das vezes,
inconsciente. Ainda segundo Erikson (1976), as mudanças sociais profundas são
grandes influenciadoras da modificação da identidade humana.
Nesse contexto, a literatura pode se apresentar como elemento fundamental durante
um processo de grandes mudanças, pois jovens leitores podem, a partir da leitura,
desvelar o sentido da realidade que os cerca. Os textos literários, dessa forma,
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O livro que deu origem a esse trabalho narra a história de Marcelo, um jovem de
quinze anos que descobre durante a aula de biologia não ser filho de seus pais. Além
dessa revelação, a vida do jovem também é abalada pela separação dos pais, sua vida
sofre uma grande reviravolta. Tantas novidades geram no rapaz um sentimento de
desajuste no mundo, começam, então, seus questionamentos a respeito das “verdades”
que até pouco tempo lhe traziam tanta segurança. Agora Marcelo precisa enfrentar esse
momento difícil e redescobrir sua identidade. Para tanto, conta com o apoio da
namorada DJ, o respeito a sua dor e carinho dos pais (Inês e Pedro Paulo) e seu irmão
(Ramiro). Não deixando de lado a irmã, Maria, que mesmo não concordando com a
postura de Marcelo o ama.
A leitura do livro remete considerações a fatos muito presentes na vida de
adolescentes, pais e até professores, que precisam lidar com uma nova realidade de
estrutura familiar e com outros eventos que estão intimamente ligados a formação da
identidade dos jovens.
Ao tratar de temas tão delicados como amor, adoção, família, separação de pais; Caio
Riter o faz de forma sensível, respeitando possíveis sentimentos e emoções que venham
gerar em seus leitores, visto que dá ao seu personagem central o tempo necessário para
refletir e um grande espaço para expor suas angústias.
O texto narrado em primeira pessoa, pelo protagonista, transmite com maior
intensidade esse processo de redescoberta de si mesmo, permitindo que o leitor tenha a
sensação de estar em contato direto com o Marcelo, já que é dele a maior parte do ponto
de vista da história:
Essa busca por compreensão de sua história de vida e o conflito interno pelo qual
Marcelo passa, podem ser vistos já nas primeiras páginas do livro, pois ao mesmo
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tempo em que está profundamente magoado com tudo o que lhe vem acontecendo, o
rapaz não deixa de nutrir pela mãe o sentimento de amor e reconhecimento da dor
alheia, o que dá um caráter maior de humanidade ao personagem:
Já a namorada aparece na narrativa como porto seguro para o jovem, alguém para
quem ele pode chorar, mostrar seus sentimentos de maneira mais aberta, o consolo para
seus problemas:
- Não chore.
A voz rouca pede. Pede mas não consegue fazer. Chora ela também, lá
longe, num bairro bem distante do meu. Chora, minha linda. Choramos
juntos, por muito tempo. Longo tempo. (RITER, 2005, p. 25)
Dessa forma, o confronto de ideias com a irmã, o conforto por parte da namorada e o
respeito por parte dos pais não permitem que a narrativa tenha um ponto de vista
unilateral, mas oportuniza a fala de todos aqueles que estão envolvidos no assunto, o
que dá seriedade ao tema abordado tratando com dignidade o leitor, já que evita a voz
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autoritária e permite maior espaço para interpretação do público por meio de outras
perspectivas.
A organização da narrativa também se vale de recursos que chamam a atenção do
jovem leitor e até colaboram no momento da leitura. Logo na primeira página há uma
explicação, em nota de rodapé, de como são dados os títulos dos capítulos: “versos das
canções dos Beatles, títulos das canções ou título dos CDs”; facilitando a compreensão
das partes do livro.
Todos os capítulos, assim, são iniciados por versos em inglês e que estão
intimamente ligados ao conteúdo / sentimento do personagem principal. A exemplo
disso o primeiro “Just look into my eyes...” (Apenas olho nos meus olhos), trata-se do
capítulo em que os pais contam para Marcelo a verdade sobre sua adoção: “- Não
Marcelo, você não nasceu de mim”. (RITER, 2005, p. 09)
Essa relação estabelecida com as músicas dos Beatles, paixão do adolescente, oferece
abertura para a intertextualidade. Tal jogo também é dado por meio de diversas citações
de trechos de livros (Os Lusíadas: Quem sabe não embarcar nele e permitir que me leve
por “mares nunca dantes navegados?”) ou por fazer alusão a outras obras “Dom
Quixote” (pg 28), “Sherlock Holmes”, “Maigret – personagem do Georges Simenon”
(pg 126), “Robinson Crusoé” (pg 53), “Affonso Romano de Sant’ Anna” (pg 21), a
personagem “Ana Terra” de Érico Veríssimo (pg. 66) e tantas outras. Todas essas
referências abrem margem para futuras leituras, instigam o leitor a buscar novos
horizontes.
Outro recurso narrativo interessante é o uso do flashback. A narrativa no presente é
interrompida por cenas da memória de Marcelo que recupera fatos já acontecidos e dá
uma visão mais ampla dos eventos para o leitor. Constitui a oportunidade de o público
participar do texto fazendo movimentos entre o presente e o passado. Exige um leitor
que seja capaz de acompanhar esses saltos no tempo e no espaço já que ele não é
avisado quando um flashback termina ou começa.
Essas idas e vindas frequentes da narrativa também podem ser simbólicas e
representar a própria confusão sentimental e de identidade por qual passa o narrador-
protagonista, já que suas lembranças que estão sendo relatadas.
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Podemos notar parte desse caos sentimental quando após um longo flashback,
relembrando o período em que esteve doente com catapora, Marcelo é traído pelo
carinho:
O dia passou, sei que Inês ligou para saber como eu estava, se tinha chegado
bem. Sei que, certamente, ela se deu conta de que o que a dinda tinha dito
era uma desculpa qualquer, perdida por mim, que não estava disposto a falar
com ela. (...) Minha mãe, quer dizer, Inês, soube da mentira, tanto que não
pediu que eu lhe ligasse ao voltar. Sabia. E respeitava. (RITER, 2005, p.
103)
Assim, a recepção literária está pautada no diálogo entre o texto e o leitor, na troca,
em trazer sua bagagem de mundo, suas vivências e as compartilhar com o material que
está sendo lido. Afinal, a qualidade da leitura da obra literária não reside apenas em
descrever qual o tipo de rima de um poema, em que período literário se encaixa e quais
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características desse período ela pode apresentar, mas envolve também os efeitos que a
sua recepção suscita.
O livro de Caio Riter provoca essa troca entre público e texto, o preenchimento de
lacunas, principalmente quando se trata dos temas polêmicos como a adoção, separação
de pais e o conflito em casa. São temas atuais e carregados de força ideológica. No
primeiro capítulo o leitor é colocado diante de tais situações, os filhos recebendo a
notícia da separação, dialogando com os pais a respeito disso:
– Olha – era eu de novo, na obrigação de falar, afinal era o filho mais velho.
– Não sei direito o que vocês esperam da gente. Compreensão? Aprovação?
A gente nunca percebeu nada de errado. Vocês perceberam? – A pergunta
era para meus irmãos, que me olharam e nada responderam. Minha mãe
buscou refúgio nos olhos do meu pai. Ele permaneceu com os dele fixos em
mim. Prossegui. – Vocês, como o pai bem disse no início desta conversa, já
decidiram. Portanto, este encontro é só para comunicar. O que eu, a Maria ou
o Ramiro pensamos desta separação não fará a mínima diferença (RITER,
2005, p. 15 - 16).
não faz parte do grupo original e traça a seguinte comparação: “toda banda terá sua
Yoko” (pg 30). Esses elementos ao serem retomados e compreendidos que fazem os
leitores perceberem a origem do título do livro: O rapaz que não era de Liverpool.
O percurso de Marcelo pela busca de suas respostas e pelo encontro consigo mesmo
não se encerra facilmente. A superação desse momento de crise só se dá na solidão
parcial, na reflexão acerca de sua própria vida, nas palavras sábias da tia que o acolhe,
no retornar para dentro de si mesmo. E o garoto sai dessa fase mais forte, já que:
Não me importa mais que eles tenham olhos azuis. Nem que a namorada do
meu pai fique sem ele mais um fim de semana. Ou que as ervilhas amarelas
só produzam ervilhas amarelas.
Mendel que se exploda com suas leis.
Somos cinco. (RITER, 2005, pg. 127)
O jovem em crise reconhece seu lugar junto à família e percebe que ter o mesmo
sangue não significa muita coisa quando a família é unida pelo sentimento do respeito,
apoio e amor.
Conclusão
Tendo em vista alguns elementos relativos à leitura de O rapaz que não era de
Liverpool podemos afirmar que o livro oferece contribuições fundamentais na formação
de jovens leitores, já que traz elementos que dialogam com seu público e o faz refletir.
Candido (1995) concebe a literatura como um bem inegável, cujo caráter humanizador
satisfaz a necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade, ajudando o sujeito a
tomar posição face aos acontecimentos da vida. Nessa perspectiva, a temática abordada
no livro, os elementos simbólicos, a linguagem, dentre outros, fazem com que a
narrativa tenha uma alta qualidade estética.
Tudo isso leva ao desenvolvimento da parcela de humanidade, uma vez que abre
caminhos e pretende colocar o sujeito como cidadão no mundo em que está inserido.
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Isso sem negar que os efeitos do texto literário podem atuar tanto para o bem quanto
para o mal, reforçando ou destruindo crenças, uma vez que ensina como a vida.
Além disso, se a formação da identidade está ligada tanto a fatores internos quanto a
fatores externos, como apontados por Erikson 1976, podemos afirmar que a literatura
proporciona um desses momentos de encontro com a reflexão sobre assuntos difíceis e
que na adolescência parecem ter um caráter maior devido a essa fase de transição nem
sempre fácil entre juventude e vida adulta.
Com isso não pretendemos uma discussão que se encerre aqui, mas que seja apenas
mais uma contribuição no trabalho com o texto infanto juvenil, o qual durante tanto
tempo esteve ligado a objetivos pedagógicos, mas que hoje parece ter ultrapassado essas
barreiras e se tornado uma literatura questionadora, realista e com qualidade estética.
Referências
______. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
ERIKSON, Erik H. Identidade, juventude e crise. Trad. Álvaro Cabral. 2. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1976.
RITER, Caio. O rapaz que não era de Liverpool. São Paulo: Edições SM, 2005.
(Coleção Barco a vapor).
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Introdução
A literatura, tida como expressão artística por meio da palavra, se ocupa das questões
significativas relacionadas à condição humana. Grandes obras da literatura universal
versam sobre os conflitos humanos, igualmente universais. Consideram-se conflitos
humanos universais aqueles que independem de localização geográfica, época, condição
econômica ou social. Ou seja, que concernem às implicações da condição de ser
humano.
Considera-se o tema da finitude como uma das grandes questões à qual a
humanidade está submetida. Por finitude humana, entende-se o estatuto de “ser” mortal
atribuído aos homens. O homem se sabe mortal, e tal saber é acompanhado pela
angústia e pelo questionamento de tal condição – decorrem daí as questões sobre o que
é a vida e o que é a morte.
Ao localizar a questão da finitude humana como significativa no que se refere aos
conflitos humanos, espera-se que a mesma esteja presente nas obras literárias, o que
efetivamente sucedeu ao longo da história universal da literatura. Para fins de recorte,
este trabalho se deterá na análise de uma obra pertencente ao século XX, “A hora da
Estrela” (1977), de Clarice Lispector.
Nesta obra, a autora aborda, à sua maneira e com características ficcionais próprias,
a problemática da morte. O intuito deste trabalho é justamente tecer uma análise sobre a
abordagem particular da obra sobre o tema.
Inicialmente, o trabalho se deterá na tentativa de situar a problemática da morte a
partir de algumas correntes de pensamento do século XX, quais sejam, psicanálise e
sociologia.
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1. A morte:
instinto de morte seria uma tendência de retorno ao estado inanimado. Ou seja, seguindo
os princípios da natureza, a meta de toda vida seria a morte.
A oposição entre instinto de vida e de morte na vida psíquica seria, para Freud, a
origem de sua teoria das neuroses. No mesmo texto, Freud ainda observa que a crença
da morte natural não estava presente entre os povos primitivos, que atribuíam a morte à
influência de inimigos ou espíritos maus; assim, pondera que a nossa crença na
regularidade da morte talvez seja uma ilusão criada para suportamos o sacrifício de
viver.
Outro teórico que traz importantes contribuições para a problemática ora abordada, é
o sociólogo de origem polonesa Zymunt Bauman. Em sua obra “O mal-estar da pós-
modernidade”, cujo texto original é de 1977, Bauman faz referência direta a um texto
escrito em 1929, “O mal-estar na civilização”, pelo já citado Sigmund Freud. Cabe
salientar que ambos refletem, cada um à sua maneira e sob o seu ponto de vista (o
primeiro sob o ponto de vista da sociologia, e o segundo sob o ponto de vista da
psicanálise), questões significativas que concernem ao homem em sociedade.
BAUMAN (1998), ao problematizar, no texto mencionado, sobre a imortalidade e a
mortalidade, chega a uma discussão sobre as conseqüências deste dilema para a vida do
homem. Citando um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges, “O imortal”, o
autor chega à conclusão de que a vida humana apenas tem sentido porque o homem tem
consciência de que é mortal. No conto, o personagem Joseph, após longa jornada a fim
de escapar à própria e temida morte, chega à Cidade dos Imortais, e o que lá encontra é
completamente sem sentido. Após o desencanto inicial, Joseph compreende:
O autor segue concluindo que tudo o que os homens se empenham em fazer, o fazem
para dar sentido às suas vidas absurdamente breves. Toda a cultura humana (artes,
política, relações humanas, ciência, tecnologia) fora concebida no ponto trágico do
encontro entre o período finito da existência física humana e a infinitude da vida
espiritual humana (BAUMAN, 1998).
Bauman aponta ainda que a implacável realidade da morte torna a imortalidade um
sonho para os humanos, que tentam alcançá-la a partir de duas estratégias principais:
uma coletiva, por meio das totalidades humanas das quais fazem parte (Igreja, Nação,
Partido, Causa), que viverão muito mais do que qualquer um de seus membros, e isto
graças ao esforço de cada um deles, que lhes asseguram a vida eterna à custa da própria
vida individual; e a outra estratégia individual, pois considerando que todos os
indivíduos devem morrer, alguns, por sua importância, devem permanecer na memória
de seus sucessores. Esta espécie de imortalidade se refere aos governantes e líderes dos
homens, por suas realizações, e aos autores (filósofos, poetas, artistas), por seus
empreendimentos (BAUMAN, 1998).
2. A obra:
Num mês de maio, mês das noivas, Macabéa encontra o homem que seria seu
namorado: Olímpico de Jesus, também nordestino, operário que se autodenominava
metalúrgico, ganancioso, briguento, oportunista. As conversas entre os dois giravam em
torno das lembranças do nordeste, e do incômodo de Olímpico com as bobagens de
Macabéa. Os dois mais pareciam irmãos, não havia o calor da paixão.
Macabéa sonhava se casar com Olímpico, mas ele a trocou por Glória, sua colega de
trabalho, pois viu nesta um melhor partido.
Um dia, seguindo um conselho de Glória, Macabéa procura uma cartomante, e
quando esta lhe põe as cartas, vislumbra pela primeira vez que tem um destino, um
futuro. A cartomante lhe diz que ao sair de sua casa, terá uma mudança total de vida,
que tudo dará certo e que haverá alegria.
A moça, também pela primeira vez, sente esperança, se apaixona, treme de medo, de
alegria e anseia pela vida nova. Ao sair da casa da cartomante, Macabéa é atropelada e
morre, sendo este o momento de sua hora de estrela.
nada, desejar saber algo sobre o que estava para lhe acontecer era ousar. Neste momento
já se percebe um vislumbramento tímido pela persoangem de que há um futuro, e a
emergência estrondosa deste futuro se dá no transcorrer do encontro com a cartomante.
No início do encontro, Macabéa ainda se mantém em sua postura inicial, apenas
ouvindo as peripécias vividas pela cartomante, que as contava com entusiasmo. Eram
experiências de vida que não faziam parte do contexto de Macabéa, eram palavras que
inclusive assustavam a moça, pois estavam cheias de vida em excesso, tudo era demais
e incompreensível para a infeliz.
Em determinado momento, a cartomante finalmente pede a Macabéa que corte as
cartas, e isto a aterroriza, pois é o que lhe indica que ela tem um futuro. Este é o ponto
máximo da vida de Macabéa, é o ponto a partir do qual tudo se transforma, uma vez que
é depois disto que começa a mudança em sua vida.
A partir deste momento, a cartomante começa a desfilar para a moça uma seqüência
de infelicidades, de infortúnios, com os quais Macabéa se identifica, pois afinal, nunca
havia tido uma felicidade genuína, ainda que nunca tivesse pensado sobre isto. Até
então Macabéa até acreditava que tinha alguma alegriazinha.
Então chega o momento da revelação: a cartomante diz à moça que algo maravilhoso
está para acontecer e que sua vida mudará completamente. Provando o poder das
palavras, Macabéa toma as palavras da cartomante como verdade, e a iminência do
futuro passa a ser real para ela. Agora Macabéa tem futuro.
Macabéa se sente viva e deseja ardentemente o futuro. Ela se posiciona no tempo e
deixa de viver como um cachorro. Tomando para si as palavras da cartomante, Macabéa
se insere no mundo da linguagem, o mundo propriamente humano. Assim há uma
quebra na construção que Rodrigo vinha desenvolvendo para Macabéa, mantendo-a
afastada da dor de existir. Nesta hora, ao invés de Rodrigo aproximar-se do mundo de
Macabéa, desejando não pensar e apenas agir, é ela quem se aproxima do mundo dele,
tomando consciência de si e do tempo, e consequentemente da morte.
A moça passa a temer a felicidade, que era algo que nunca lhe ocorrera até então: a
felicidade, a grande felicidade, era para os outros, este “luxo” não cabia em sua vida.
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Considerações finais:
Referências
Introdução
Este artigo está ligado a um projeto de PIC, que estuda a montagem da peça “O
círculo de giz caucasiano”, pela Companhia do Latão em 2006, incluindo um estudo
sobre a história do grupo e sua estética. No presente trabalho o foco será a peça “Ensaio
sobre o Latão” como ponto de articulação entre a formação do grupo, o contexto
histórico e a estrutura da própria peça. Apesar do caráter de formação do grupo, a peça
escolhida não foi “Ensaio para Danton”, de Büchner, primeira encenação, mas a
segunda montagem da Companhia, “Ensaio sobre o Latão”, para manter o enfoque na
recepção produtiva da obra de Brecht. A experiência do pensamento artístico do
dramaturgo alemão, vivenciada através do processo de criação, montagem e encenação
de “Ensaio sobre o Latão”, foi decisiva a ponto de se materializar no nome do grupo, tal
a força desse exercício de processo teatral, que envolveu a leitura de textos teóricos da
“Compra do Latão” e a tentativa de levar ao palco esse processo de busca. Mesmo a
denominação de ensaio não se refere unicamente ao ensaio teatral, mas ao ensaio como
forma, que preconiza a busca e o processo de conhecimento, num dos inúmeros
procedimentos pelos quais essa montagem procura quebrar a ilusão cênica.
Ao falar de formação do grupo, não é possível deixar de comentar o momento
histórico pelo qual o país então passava. No final dos 80 e início dos 90 se viu uma nova
investida em procura formal, inclusive na formação de um novo público. Para tal
iniciativa, que tateia um novo plano formal e temático, contribui diretamente a crise que
surge após a queda do muro de Berlim, e que se instala no lugar da orgia do capital e do
liberalismo que, supostamente, haviam vencido a batalha (KURZ, 1993). A crise aponta
para o aumento da exclusão social e da desigualdade que, conseqüentemente, ganham
expressão nas manifestações artísticas anticapitalistas dos anos 90. Num Brasil que
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continuamente repõe sua modernização conservadora, esse quadro se torna ainda mais
incisivo. Depois de 68, um movimento social, político e artístico, que ganhava corpo e
penetração, foi interrompido como projeto amplo. A partir dos anos 90 o teatro volta a
ser espaço para novos desenvolvimentos estéticos e sociais interessantes, à margem das
montagens meramente comerciais ou de um experimentalismo autocentrado. (COSTA,
1996)
Esse é o contexto no qual surge um grupo como o Latão, voltado para a discussão
teórica e prática, concebendo a forma artística como mediação entre literatura e
sociedade, na qual querem intervir. A retomada da discussão sobre o teatro épico-
dialético de Brecht, bem como de outros autores como Büchner, aliado à valorização do
grupo, do processo de trabalho e da participação/ativação do público, profundamente
ancorado no Brasil de hoje e suas questões, é o ponto de partida da Cia do Latão.
Importa notar que eles se tornam representativos de uma nova visada que não se esgota
neles, mas ganha força em todo o Brasil, o que vale a pena estudar. Julgamos que a
escolha do texto dramático de Ensaio sobre o Latão para análise consegue jogar luzes
em todas as direções apontadas: 1) uma preocupação com o Brasil, com nossos
espectros socialmente descartáveis no centro da cidade; 2) com a formação de um novo
público, que é instado a participar e a refletir ao longo da apresentação e depois dela, e a
agir; 3) a discussão sobre a atualidade e a apropriação do teatro brechtiano, o que
também remonta à história do teatro brasileiro e de palcos como o Arena, projeto esse
retomado no Brasil. Devido às limitações de uma comunicação, iremos nos ater à
discussão sobre alguns elementos dessa montagem, sem o objetivo de esgotar qualquer
possibilidade analítica, mas de apontar caminhos pertinentes para a investigação sobre a
relação entre literatura e sociedade.
recursos fornecidos teoricamente pelo teatro épico, mas fazer com que todas estas
técnicas adquiram uma forma diante da realidade situacional que expressam. É através
de uma perspectiva anti-ideológica e da crítica dialética e política das formas que se
encontra o desmascaramento ideológico, do discurso e do conceito de forma.
envolvidos com a função social da arte, dos próprios artistas, na discussão sobre a
instituição teatro e qual o seu papel na sociedade, no que é o clássico Hamlet
contraposto à realidade social brasileira de então.
Essa contraposição, inclusive, merece destaque quando, em determinado
momento da peça, o exercício que estava ocorrendo a partir da peça clássica é
interrompido por um exercício de observação. O Dramaturgista passa a relatar um
experimento de observação feito no centro da cidade de São Paulo em que, de uma
escada, observa no canto escuro de uma praça um catador de latas que mais ninguém
via. O Dramaturgista começa a interpretar o próprio catador de latas, agora convertido
em espectro e questionando por Hamlet:
“os atores que compunham o exército assumem feições menos idealizadas”. O Ator-
Hamlet se dirige então ao Iluminador como se ele agora fosse o próprio Hamlet e
afirma:
Ator-Hamlet: Ei, Hamlet veja ali o exército de Fortimbrás, ele está
indo para a Polônia, são vinte mil homens que vão lutar por um
pedaço da casca do ovo da Polônia e você Hamlet, que nasceu para
mais do que comer e dormir, você que teve a sorte de sair deste país
atrasado para estudar filosofia em Wittemberg, veja ali: são vinte mil
homens que vão morrer por um pedaço da casca do ovo da Polônia,
Hamlet.(CARVALHO, 2009, p.299)
Nesse momento, alcança-se enfim uma nova arte de representar, uma arte que se
propunha como útil à transformação de uma época sombria e melancólica como a atual.
(MARCIANO, 1997) O Diretor, ao mostrar-se satisfeito com o alcance dessa nova arte
e a apreensão dela pelos artistas, conclui: “Eu proponho que nós nos levantemos para
melhor fixar essa descoberta na nossa memória. [Todos ficam de pé]. E agora que
estamos de pé, eu proponho que aproveitemos a ocasião para dar uma boa mijada.”
(CARVALHO, 2009, p.300)
A figura do iluminador merece uma consideração à parte nesta altura da análise.
Assim como todos os outros elementos aparentemente externos ao palco, ele contribui
para a quebra da expectativa nos momentos mais próprios para o efeito catártico,
mostrando claramente seus mecanismos de encobrimento. Daí a importância do
iluminador como um dos pontos centrais da peça uma vez que, durante todo o decorrer
dela, o Diretor sempre interrompe a cena com luz de penumbra e rompe, assim, com a
ilusão. É através também da interferência da luz sob o palco que se alcança este ou
aquele objetivo, seja por uma arte ilusionista ou por um teatro materialista. Noutro
momento ainda o Iluminador se torna Hamlet.
A música é um dos elementos-chave para o teatro dialético. “Ensaio sobre o
Latão” é um grande exemplo disso quando, durante o decorrer da peça, há interrupções
de determinadas encenações clássicas em que fica nítido o papel da música enquanto
quebra da expectativa. Essa quebra é decisiva, devido à carga emocional e à entrega
subjetiva que a música pode produzir. O cinema comercial evidencia esse processo, e a
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música já nos predispõe e nos carrega a uma determinada recepção prevista pela obra,
esteja em primeiro plano o amor, a farsa, o suspense, a ironia, a euforia, o heroísmo, a
pátria. Trabalha, por assim dizer, por trás de nosso juízo consciente. Daí ser um prato
cheio para o teatro dialético. Quando o Ator-Hamlet, por exemplo, se posiciona a fim de
recitar um monólogo clássico, comicamente ele começa a cantar a música “Xô, xô
barata”. É importante perceber que, aqui, a música exerce a função atribuída a ela no
teatro épico, fraturando o fluxo da cena, rompendo com a continuidade da ação, o que
impede a identificação do público com a cena e, conseqüentemente, da ilusão cênica.
Além de lembrar ao público que o personagem não é uma imitação do real, mas uma
simulação, um objeto fictício. Quando a arte caminha por esse viés, nas palavras de
Sérgio de Carvalho, existe a busca por andar na contramão da lógica mercantil,
desconstruir a própria instituição teatral e contrariar o ambiente burguês com o qual
dialoga.
Não custa lembrar que outros elementos aparentemente secundários como
sonoplastia, figurinos e palco, são também formais no teatro, e dizem sem dizer. Mas
ainda assim, e justamente por isso, são discursos potentes. Mesmo a divisão entre palco
iluminado e platéia no escuro, assim isoladas mesmo fisicamente, já é forma e diz muito
sobre a autonomia forjada da obra de arte. Esses elementos formais são traiçoeiros
porque trabalham por trás e, por isso, não se pensa sobre eles. Mas, são imprescindíveis
para o entendimento da peça. Por isso dizer que o teatro épico-dialético, ao escancarar
em cena até o inteligível cultural da obra de arte, desmonta e explicita, através dessas
experiências formais, cada uma de suas engrenagens.
discutir seu objeto, de modo fragmentário e inconcluso, numa busca marcada estética e
eticamente.
A peça estudada, que recebe a denominação de peça teórica, é ensaística nas duas
acepções, prática teatral e teoria crítica, almejando uma práxis muito afeita A forma
teatral, que tem sempre em vista uma encenação pública. O final da peça é um claro
exemplo disso, pois ela poderia seguir adiante, pois não há um final que resolva algum
conflito previamente apresentado e desenvolvido Não importa como será o Hamlet na
estréia, mas o processo formativo dos ensaios e dos bastidores. A pretensão de se fazer
um ensaio e denominar assim muitas das peças encenadas já conferem um caráter não
terminado e, por isso, ainda sob a luz de novas idéias e possíveis mudanças. Adorno
(2003) diferencia o ensaio da arte a medida que aquele se propõe à uma autonomia em
relação à arte ao pretender a verdade desprovida de aparência estética; e afirma, ainda,
que os dois únicos critérios desse procedimento são a compatibilidade com o texto e
com a própria interpretação, e a capacidade de dar voz ao conjunto de elementos do
objeto. O ensaio interrompe o conceito tradicional de método, que reduz o objeto a uma
outra coisa, antepondo-se a ele com critérios pré-definidos de análise e julgamento.
Considerações finais
Aqui se procurou, tendo por base os conceitos de teatro épico, e sua atualização
para o Brasil de hoje, analisar a formação teórica e prática da Cia do Latão, a partir de
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um estudo sobre a montagem de Ensaio sobre o latão. Fundamentais para esse percurso
são o personagem enquanto narrador, o recurso metateatral, o papel do espectador ativo
e reflexivo na obra de arte, a discussão da função da arte na sociedade e o ensaio como
forma.
A peça termina com uma frase que sintetiza tudo, de modo magistral: “Diretor:
Iluminador, um pouco mais de luz sobre o palco. Nós precisamos de espectadores
despertos. Faça-os sonhar em pleno dia.” (CARVALHO, 2009, p. 300) Noutras
palavras, acordar do sono profundo do mito da ilusão capitalista, que se diz
iluminadora, mas é ideologia pura. Espectadores despertos, que sonham em pleno dia,
ou seja, sonham acordados, lembra a divisa benjaminiana de querer, pela crítica da obra
de arte, acordar as pessoas dos sonhos em que a mitologia da modernidade capitalista se
apoia. Sonhar com algo melhor não pela penumbra que inebria e cria um mundo
próprio, à parte do existente, mas, pelo contrário, pela crítica materialista e vida da
realidade em que vivemos. Essa uma mensagem urgente e importante para os dias de
hoje, em especial no Brasil.
Referências
MARCIANO, Márcio. Sobre a Compra do Latão. In: Revista Vintém. nº 0. São Paulo:
HUCITEC, 1997, p. 39.
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vingança que tece ao redor de todos. Desejada por todos os membros da ciranda, com
exceção talvez de Otávia, sempre blasé, a personagem utiliza todo o poder de sedução
que agora possui para destruir um a um os integrantes do grupo. Apenas Conrado fica a
salvo da vingança, pois ela ainda o ama. A vingança que a personagem lança sobre
todos os personagens do enredo desestrutura a aparente harmonia da vida dos
integrantes da ciranda de personagens. Mas Virgínia também está ferida: “- Então
pensei que pudesse arrasá-los. E só me arrasei a mim mesma” (TELLES, 1996, p. 178).
Ela anuncia a Natércio que irá fazer uma longa viagem, sem destino definido e sem data
de retorno.
Para René Girard, o sacrifício seria um ato de violência destinado a desviar a
agressividade inicialmente dirigida a um semelhante que se quer proteger, idéia à qual o
autor nomeia de hipótese de substituição (GIRAED, 1990, p. 14). O ritual do sacrifício
teria, além disso, a função de manter a sociedade funcionando em perfeita ordem,
inclusive no plano material, pois ele direciona a violência para si, evitando que a
comunidade seja afetada pelos efeitos das desavenças entre os homens: “os grandes
textos chineses atribuem ao sacrifício a função aqui proposta. Graças a ele, as
populações permanecem serenas e não se agitam. Ele reforça a unidade da nação”
(GIRARD, 1990, p. 20). Girard não faz distinção entre vítimas sacrificiais animais e
humanas, já que o princípio da substituição se aplicaria a uma vítima semelhante, que
tanto pode ser animal como humana. Ele nos traz como exemplo a história de Medéia,
que ao sacrificar seus filhos, direciona a eles o ódio que sente de Jasão, praticando a
substituição em vítimas humanas. “O sacrifício procura controlar e canalizar para a
‘boa’ direção os deslocamentos e substituições espontâneos que ocorrem nesse
momento” (GIRARD, 1990, p. 22). Quando o sacrifício não consegue mais conter a
violência em seu interior, ocorre a chamada crise sacrificial. Girard define no trecho
seguinte em quê ela consiste:
O autor afirma que a crise do sacrifício pode ocorrer tanto em decorrência do excesso
como da insuficiência do sacrifício. Qualquer desequilíbrio, por menor que seja,
provoca a quebra do delicado mecanismo que cerceia a violência e a mantém restrita ao
ato sacrificial. Quando isso ocorre, a violência, não mais circunscrita no terreno do
sacrifício, expande-se sem controle:
exaltação da vingança divina frente aos que ousam desafiar seus seguidores: “Alegrar-
se-á o justo quando vir a vingança; banhará os pés no sangue do ímpio. Então se dirá:
Na verdade, há recompensa para o justo; há um Deus, com efeito, que julga na terra”
(Sl, 58, p. 10-11). E ainda, de forma mais explícita: “Ó senhor Deus das vinganças, ó
Deus das vinganças, resplandece. Exalta-te, ó juiz da terra; dá pago aos soberbos” (Sl,
94, p. 01-02, grifo em itálico nosso).
Para René Girard, em A violência e o sagrado, a vingança é estritamente proibida na
maioria das culturas por constituir um processo interminável:
personagens cumprem a seu modo suas missões, ainda que à custa do caos em que são
transformados os lugares e pessoas envolvidas no processo.
A figura do anjo vingador é citada inúmeras vezes na Bíblia. Algumas vezes,
confunde-se com o próprio Deus, mas na maioria das vezes é bastante destacado das
demais entidades do universo bíblico. Sua primeira aparição dá-se no quarto capítulo
do Gênesis, quando expulsa Adão e Eva do paraíso. No Êxodo, ele surge de forma mais
explícita e visceral, quando é narrada a saga da saída de Moisés do Egito. O anjo
vingador, denominado então de Destruidor, cumpre a determinação divina e mata todos
os primogênitos em cuja casa não ostentasse na porta o sangue de um cordeiro morto
em sacrifício: “Porque o Senhor passará para ferir os egípcios; quando vir, porém, o
sangue na verga da porta e em ambas as ombreiras, passará o Senhor aquela porta e não
permitirá que o Destruidor entre e, vossas casas, para vos ferir” (Ex, 12, p. 23, grifo em
itálico nosso).
O livro, porém, em que a figura do anjo vingador mais aparece em todo seu
esplendor e fúria é o Apocalipse. Representantes da cólera divina, sete anjos vingadores
lançam sobre a humanidade as sete pragas apocalípticas, causando grande destruição.
Apesar da enorme violência derramada sobre os homens, as ações do anjo vingador não
são questionadas, visto que são executadas a mando da justiça divina, e em decorrência
da própria iniqüidade dos homens, segundo as leis bíblicas. A vingança é infligida com
o aval de Deus, que no universo bíblico representa a justiça suprema, e, portanto,
inquestionável.
Se na figura do anjo vingador encontramos a violência justificada pelo cumprimento
das ordens divinas, na mulher fatal a vingança e o poder estão a serviço de seus próprios
interesses. Poderosas e sedutoras, estas mulheres dificilmente passam pelo universo
literário sem alterar todo o ambiente ao seu redor.
Em A carne, a morte e o diabo na literatura romântica, Mario Praz traça um
panorama bastante completo da mulher fatal na literatura européia dos séculos XVIII e
XIX, e como se formou, a partir destas aparições, um tipo, ou clichê, desta figura tão
singular. O autor diz ainda que as mulheres incendiárias e altamente erotizadas, como é
o caso da Carmen de Mérimée, não constituem, por si sós, o tipo da mulher fatal. É
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necessária também uma carga do que ele chama de estetismo e exotismo para que se
perceba a recorrência do clichê. Praz aponta Théophile Gautier como o “fundador do
estetismo erótico” (PRAZ, 1996, P. 190), com sua Cleópatra ardente e cruel, que manda
assassinar os amantes com os quais passou a noite. A personagem traz em si uma aura
de exotismo e perversidade, bastante em voga no período romântico na Europa, segundo
o autor. Gautier continua sua busca pela mulher fatal, agora na imagem de Clarimonde,
a bela vampira por quem um jovem padre se apaixona, e cujo fim é a desgraça e a
loucura. A imagem da mulher-vampira, por sinal, parece ser a que melhor abrange os
ideais da mulher fatal, segundo a perspectiva dos românticos. Praz afirma ainda que foi
na Inglaterra que este tipo de mulher fatal encontra “sua fórmula mais acabada” (PRAZ,
1996, p. 199) na obra de Charles Swinburne: “O homem, na obra do poeta, aspira ser ‘a
vítima impotente da raiva furiosa de uma linda mulher’”( PRAZ, 1996, p. 202).
Recuando no tempo, podemos também vislumbrar a mulher fatal, embora com
figurações bastante diferentes das do romantismo, nas tragédias gregas e até mesmo nos
textos bíblicos. Em Maneiras trágicas de matar uma mulher, Nicole Loraux fala sobre o
silêncio imposto às mulheres respeitáveis da Grécia: “Morto o marido, resta às mulheres
não dar aos homens assunto para falarem dela, que no tom de censura quer no de elogio.
A glória das mulheres é não terem glória” (LORAUX, 1988, p. 23 grifo em itálico
nosso). Em uma sociedade onde as mulheres devem ser invisíveis, a mulher fatal surge
como uma espécie de aberração, uma figura demoníaca que subverte os conceitos de
boa conduta, e contra a qual os homens têm poucas defesas. Sua vingança é justamente
a de, mesmo por meio de sua morte, não passar despercebida na história, e saber que
seus feitos serão lembrados muito tempo depois que ela se for.
As figuras de Helena de Tróia, Circe e até mesmo a horripilante Medusa perfazem o
séquito de mulheres fatais da tragédia. A personagem, porém, que melhor personifique
o arquétipo da mulher fatal deste período seja mesmo Medéia, eternizada na obra de
Eurípides. Estrangeira, casa-se com Jasão, indispondo-se com a própria família, e vai
com ele para terras distantes, exilando-se. Abandonada pelo marido, que se casa com a
filha do rei Creonte, Medéia vinga-se premeditando a morte da noiva de Jasão e
matando os próprios filhos. Apesar da imensa dor causada pela idéia de matar a própria
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No livro de Reis, vemos também uma das figura que mais nos remetem ao tipo
romântico da mulher fatal por seu poder e violência: Jezabel. Filha do rei Etbaal, ela se
casa com Acabe, rei de Israel. Praticante do culto a Baal, desperta a ira do profeta
cristão Elias, que trava uma luta ferrenha contra a rainha. Jezabel mostra-se nos textos
bíblicos como personagem de grande poder e influência sobre o marido. Corajosa,
desafia o poder masculino, ordena mortes e escaramuças contra os aliados de Elias, e
demonstra ousadia até mesmo no momento de sua morte. Morto o rei Acabe em batalha,
é substituído por Jeú. Ao saber de sua chegada à cidade, Jezabel pinta os olhos e o
desafia de uma janela, chamando-o assassino, em uma atitude temerária, bem
característica do modelo da mulher fatal. Insultado, Jeú ordena sua morte, e que seu
corpo seja lançado aos cães. Embora a rígida moral cristã tenha imputado a Jezabel a
alcunha de ardilosa e desonesta, usando-a como exemplo do triste fim destinado às
mulheres que ousavam fugir ao padrão submisso exigido, ainda assim a Bíblia teve que
lhe dedicar um importante espaço em suas páginas, tamanha a relevância desta mulher
fatal no universo judaico-cristão.
Tomando-se então como base as idéias expostas acerca do sacrifício, da violência e
da vingança, pode-se vislumbrar na segunda parte de Ciranda de Pedra como estes
elementos marcam o enredo do romance. Ao retornar do internato, a personagem parece
ainda não ter intenções de vingança contra os membros da ciranda, ao contrário, ainda
sente a insegurança dos seus dias de infância triste. Mas as atenções que todos lhe
dispensam fazem com que Virgínia perceba o poder adquirido durante os anos de
ausência, e parece crescer naturalmente em seu íntimo a ardilosa vingança em que vai
envolvendo Bruna, Otávia, Afonso e Letícia. O primeiro indício da mudança ocorrida
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na personagem diz respeito à sua aparência física. Ela agora percebe a própria beleza:
“O tempo incumbira-se de suavizar-lhe os traços e agora ali estava refletida no espelho
a delicada imagem de uma moça sorrindo de si mesma na tentativa de reconstituir a
antiga expressão da meninice (TELLES, 1996, p. 106). Os membros da casa de Natércio
também percebem a transformação da menina em uma bela mulher. O primeiro a se
manifestar é Afonso: “A voz ficou mais estridente: - E que bonita você está! Meu Deus,
parece até um milagre!” (TELLES, 1996, p. 112). Todos ficam seduzidos por Virgínia,
e tentam se aproximar e mostrar suas qualidades: “Virgínia, Virgínia, a verdade é que
no fundo, todos nós estamos posando para impressioná-la” (TELLES, 1996, p. 115). E
ela se aproveita do poder recentemente adquirido para envolvê-los e desnudá-los
cruelmente.
Conforme a teoria de Girard acerca da função do sacrifício, podemos inferir que, em
sua infância, Virgínia poderia ser enxergada como a vítima sacrificial, imolada para que
o restante da tribo pudesse permanecer em harmonia. Ela funciona neste contexto como
o cordeiro sacrificial, fruto do adultério, separada dos demais membros da família para
que o restante do grupo pudesse continuar desempenhando as funções sociais esperadas
de uma família respeitável. A personagem principal seria então a vítima “sacrificável”,
apaziguando a sede de violência desta sociedade, que a direciona toda a Virgínia, a
Laura e a Daniel.
Já na segunda parte do romance, o que se vê então é uma configuração totalmente
diferente. Percebe-se claramente que existem duas faces distintas do sacrifício
envolvidas nas relações entre Virgínia e os membros da ciranda. Em um primeiro
momento vemos Virgínia se oferecer em sacrifício, entregando-se a Letícia, a Rogério,
amante de Bruna, e deixando-se seduzir por Afonso: “Virgínia deixou-se beijar no
rosto. Lúcida, gelada, sentiu agora os lábios gulosos deslizarem pelas suas mãos”
(TELLES, 1996, p. 138). A personagem, entretanto, usa a persona da mulher fatal para
deixar todos os personagens a seus pés. Ela agora é a deusa sacrificial, a quem os
suplicantes deixam oferendas. Simulando ser uma vítima dócil, ela parece estar
dominada pela luxúria de cada personagem que tenta seduzí-la. A verdade, porém é que
ela os manipula, enredando-os em sua teia. Cada integrante da ciranda oferece o que
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Virgínia desfere seu golpe fatal durante a ceia de natal. Flertando abertamente com
Rogério, amante de Bruna, ela ataca todos de uma só vez: a irmã, que com sua Bíblia
marcada de trechos em vermelho condenou a mãe ao inferno, e agora comete o mesmo
pecado; Letícia, por sentir-se traída após Virgínia trocá-la por Rogério, e Conrado por
nada poder fazer para tomar Virgínia para si. Afonso também está enfurecido por não
ter sido ele a conquistá-la. A única que parece imune à vingança da irmã é Otávia,
sempre distante. Impotentes, todos a observam sem nada poder fazer, enquanto ela
saboreia sua vingança:
permanecer impune depois de alterar de forma tão extrema as regras de boa conduta
determinadas ao seu sexo.
REFERÊNCIAS
Introdução
Popular desde seus primeiros romances, Jane Austen, escritora inglesa do período da
Regência, aparece como uma das autoras canônicas mais conhecidas pelo público atual.
Esta popularidade deve-se, principalmente, à proliferação, ocorrida a partir dos anos 70,
de adaptações de seus romances para o cinema e televisão. Greenfield (TROOST e
GREENFIELD, 2001, p. 2) propõe que a tecnologia global e o trabalho de marketing
dessas leituras para outras mídias muito têm contribuído para a popularização da obra
da autora.
Defensores da democratização dos textos ficcionais de Austen argumentam que sua
obra, hoje, se encontra acessível a um maior número de leitores/espectadores, o que
concorre para uma educação para a leitura, principalmente de textos fundamentais da
literatura ocidental. Discutem ainda que a interação entre artes torna-se elemento
fundamental nesse processo.
Neste artigo, propomos que, a constante revisitação do trabalho ficcional e sua
aceitação pela maioria do público atual de Jane Austen devem-se também, em grande
escala, a uma leitura de superfície e, por vezes, equivocada dos romances da autora, na
qual os elementos ‘amor’ e ‘casamento’ são entendidos de modo descontextualizados,
desconexos do projeto literário de Jane Austen, sendo, a partir de sua relativização,
supervalorizados. Na transposição de seus romances para a grande ou pequena tela e
para outros romances, a questão de gênero como categoria historicamente construída,
que esta no cerne do debate intelectual de Austen, tem sido omitida, modificada e
desvalorizada. De fato, essas leituras da obra de Austen têm levado esse novo público
leitor/espectador a ver seus romances somente como “histórias de amor e casamento”;
nas palavras de Kaplan (TROOST e GREENFIELD, 2001) ao fenômeno de
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A categoria de gênero foi, de fato, umas das mais trabalhadas na produção escrita do
período, pois se via a mulher como a responsável pela manutenção de sua classe,
concentrada na família. Eram consideradas seres domésticos, reprodutores e maternais,
responsáveis pelo avanço da civilização e perpetuação de sua classe. Mesmo as que
trabalhassem, mais no final do século, deveriam desempenhar funções maternais tais
como professora, enfermeira e governanta. Tentar agir de modo diverso levaria à
anarquia e à destruição de sua classe. Disseminou-se, então, a ideologia da ‘Rainha do
Lar’ (The Angel in the House) para circunscrever o ser mulher, rotulando de monstros e
loucas aquelas que se desviavam do estabelecido. Seriam seres doentes e pervertidos
como as mulheres da classe trabalhadora, que não viviam essa posição dual.
Na literatura, “arautos da ideologia do amor romântico, os romances passaram a
exercer um papel fundamental na educação das jovens, inculcando princípios,
reforçando atitudes desejáveis e realçando a virtude como a principal qualidade a que
elas deviam aspirar.” (VASCONCELOS, 1995, p.89)
O romance, assim como nosso modo atual de pensá-lo, foi legado de um corpo de
idéias que remontam ao Iluminismo. Naquele momento, as categorias de gênero e raça
(não podemos ainda falar de classe, pois apareceria no século XIX com a emergência da
burguesia na Europa) podiam ser claramente detectadas. Por meio de um discurso de
liberdade, individualismo, civilização e igualdade, os filósofos do movimento definiram
a mulher assim como o não-europeu e as crianças como seres não intelectuais.
Argumentava-se que eram guiados pela natureza e deveriam, portanto, receber cuidados
de seu contrário: homens, adultos e brancos. Ao fazer uma grande parcela da sociedade
parecer invisível, esses homens definiam a si mesmos como aqueles que detinham o
poder intelectual, na ideologia que estavam produzindo.
O século seguinte ao período do Iluminismo apresentou algumas mudanças sociais.
Um novo conjunto de valores e conceitos morais foi necessário a essas modificações.
Uma nova concepção de casamento foi difundida – o casamento por amor. Esse
sentimento aliado à fidelidade foi muito importante para a nova postura na relação
conjugal, diferente da propagada pela aristocracia. O casamento passou a se configurar a
instituição basilar à classe burguesa emergente. Deste modo, o papel da esposa tornou-
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ela bem conheceu, Jane Austen apresentou visões alternativas para suas heroínas e
dramatizou a situação da mulher em seus romances. Apresentou os conflitos de uma
comunidade de mulheres que viviam nesse contexto histórico de transição da
aristocracia decadente para burguesia em ascensão.
Na esfera do doméstico, Austen apresenta uma comunidade de mulheres ligadas pelo
laço do feminino e seus conflitos numa sociedade em tempos de mudança. É bem
verdade, que esses aspectos locais de sua ficção atingem a esfera do universal,
principalmente no que se refere aos temas dos romances. Contudo, é na vida familiar,
nos lares de seu tempo que as relações sociais aconteciam e podiam ser visualizadas e
investigadas pelo leitor. Esta característica de sua obra, se considerada, pode refutar
argumentos de que sua ficção fica, de certo modo, desqualificada por não conter
engajamento ou “preocupações históricas e sociais” importantes. De fato, não é essa
idéia de literatura como reflexo e produção da realidade, que vem do pressuposto de
uma arte engajada, a aqui aceita e necessária a compreensão do trabalho ficcional de
Jane Austen. Terry Eagleton nos ensina que o engajamento não é condição necessária na
produção de grandes obras de arte. (EAGLETON, 1997, p.57)
Assim, além do prazer estético que seus romances proporcionam ao leitor,
principalmente pelo domínio do uso da ironia, sua ficção oferece ao leitor a
oportunidade de reflexão crítica sobre o contexto no qual surgem. No subtexto de sua
obra - uma aparente história de amor, sofrimento, rebelião e humor - está a questão da
construção da categoria de gênero naquela sociedade patriarcal.
É, ainda, num contexto de dificuldades e preconceitos para com a autoria feminina
em que "para uma artista o processo essencial de auto-definição é complicado por todas
aquelas definições patriarcais que aparecem entre elas e elas mesmas" (GUBAR e
GILBERT, 1979, p.17) que Austen escreveu. É bem verdade que teve antecessoras tais
como Aphra Behn e Mary Wollstonecraft. Contudo, teve também toda uma tradição
masculina antes dela e um discurso naturalizador para a categoria de gênero e do papel
da mulher na sociedade.
2. Relendo Austen
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Uma leitura séria e comprometida dos romances de Austen demanda de seu leitor um
avanço além do conteúdo manifesto de seus textos ficcionais, e a consideração de seus
contextos de produção e a periodização do casamento e do amor.
A maioria das adaptações desses textos têm se concentrado, contudo, tão somente no
romance entre os protagonistas, acrescentando, como no caso da adaptação de 2005 de
Orgulho e Preconceito, dirigida por Joe Wright, por exemplo, o elemento da paixão e
do desejo nessa relação e a humanização das personagens masculinas. De fato, esses
temas aparecerão aproximadamente um século adiante na literatura inglesa em obras
como O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Brontë.
Em vez de uma intensificação dos sentimentos e da celebração do amor, Austen
estava interessada nas mudanças pessoais e de conduta (refletidas em suas relações
sociais) pela qual seus protagonistas deveriam passar, na tentativa de mostrar que
homens e mulheres poderiam ser moralmente semelhantes. Na proposta por esse novo
tipo de homem estava a busca pela igualdade, pelo respeito mútuo entre homens e
mulheres e por uma nova organização social. Raymond Williams (1970, p.21) escreve
que Austen não pretendeu enfatizar o romance em seus livros, mas o comportamento
pessoal em contextos reais que apresentavam pessoas tentando se conformar a regras
sociais numa sociedade em mutação. Subjacente a uma história de amor, envolta em
dor, rebelião e humor, havia um discurso de construção de gênero.
Apresentar essas questões pode, na maioria dos casos, não ser tão agradável como
gostariam os leitores e como desejamos quando vamos ao cinema buscar nesse passado
nostálgico alívio para nossas insatisfações presentes. Queremos mesmo ver os
protagonistas Elizabeth e Darcy, por exemplo, depois de tantas desavenças, felizes no
final. Desejamos mais, que haja entre eles um beijo apaixonado que na versão de Joe
Wright não acontece no desfecho do romance, embora fique sugerido. Em Becoming
Jane, filme sobre a biografia da autora, esperamos encontrar na vida de Jane Austen
identificação com os romances vivido por suas heroínas, principalmente por Elizabeth
Bennet. Embora no filme isso não aconteça, temos uma ficcionalização de sua vida e a
sugestão de que Austen escreveu do modo que escreveu por ter um romance frustrado.
Ver e entender a realidade apresentada nos romances e até mesmo nos filmes não parece
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ser o caminho mais adequado para, num primeiro momento, sentir prazer. Não porque
como feito por Jane Austen isso não ocorra, mas exatamente porque a concepção atual
de prazer deva ser, como propõe Joshua Miller, “recalibrada”.
Embora a versão mais atual, por exemplo, de Orgulho e Preconceito para o cinema
apresente um cenário revelador das diferenças sociais e a necessidade que as mulheres
tinham de fazerem bons casamentos para sua segurança financeira e também a de sua
família, a incursão do desejo e a valorização do romance do casal protagonista em
detrimento de outros aspectos da composição do romance colocam em risco essa
discussão sobre as relações sociais e de gênero. Debora Kaplan (TROOST e
GREENFIELD, 2001, p.178) argumenta que algumas alterações mudam o valor dos
romances, afetam o nível de conscientização social que os romances suscitam. Essas
personagens são, no romance, a proposta de Austen de um novo homem e uma nova
mulher. A maneira que Darcy e Elizabeth veem um ao outro e lidam com suas
diferenças foi o modo encontrado para retratar aquela sociedade e propor alternativas
para o que Austen via.
A crítica sobre adaptações dos romances de Jane Austen (TROOST e
GREENFIELD, 2001, p.7) concorda que “os filmes elevam e celebram o romance” num
nível muito superior ao apresentado nos livros da autora. Em Orgulho e Preconceito
(2005), essa postura é intensificada no diálogo final entre Darcy e Elizabeth. Há para o
final da versão norte-americana do filme um colóquio apaixonado entre eles, num
momento de intimidade, sugerido pelas roupas de Darcy, seus pés descalços e o cabelo
solto de Lizzie, no qual é omitida a declaração de Darcy de que se apaixonara por ela
pela vivacidade de sua inteligência. Essa proclamação a contrapelo encerra o resultado
de toda a transformação pela qual Darcy precisou passar para se tornar um novo
homem: de aristocrata, preconceituoso e retrato do homem de sua época àquele que
respeitava em nível de igualdade o outro, a mulher.
A omissão dessa declaração e sua suplantação por uma cena romântica
comprometem o entendimento desse processo de reforma e relativiza os tópicos postos
pelo diálogo entre os protagonistas, que no livro, se apresenta como o resumo da
proposta de superação de um conjunto de conceitos e idéias validadas desde o
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Iluminismo. Essa declaração menos atraente do que a do filme não é uma simples fala de um
homem apaixonado; ela encerra o conflito daquele que teve que deixar de lado um conjunto de
juízos que ditavam o que deveria ser um homem da aristocracia e, uma deles era encontrar uma
companheira de seu nível social, que tocasse piano, pintasse, dançasse e acima de tudo tivesse
decoro, a discrição e a subserviência ao marido como principais virtudes. O desempenho
intelectual caberia aos homens, pois para ser uma boa esposa esse atributo era desnecessário.
Darcy, contudo, diz-se apaixonar exatamente por essa “qualidade” em Elizabeth, uma mulher
fora dos padrões de sua época e imprópria para o casamento com ele. Por atitudes semelhantes
às dela, muitas mulheres no século XIX foram trancadas em manicômios com diagnóstico de
loucura.
A escolha de Darcy por um novo caminho e o processo de transformação por que tem que
passar para trilhá-lo estão contidos nessa sentença, improvável para um homem de sua época,
mas possível num texto literário que propõe novos papéis sociais para ambos os sexos, mesmo
tendo o casamento como certo no final. A opção por não apresentar a afirmação de Darcy
funciona como o apagamento dessa proposta ousada e camuflada no romance. Optar por não
apresentá-la é negar o que vinha sendo desenvolvido nas cenas anteriores.
De fato, o desfecho escolhido pode agradar mais ao espectador desavisado ou que entra em
contato com o texto de Austen pela primeira vez. Mas, a descontextualizarão da questão pode
ter conseqüências sérias para a reflexão sobre a obra de Jane Austen. Ademais, mesmo sabendo
da existência desse tipo de união em nossos dias, o tema poderia ser adequado, principalmente
no que diz respeito à diferença. Desse modo não há espaço para a reflexão, mas o reforço de que
Austen escreve “histórias de amor e casamento” com final feliz. No conflito real sobre a
possibilidade de amor e paixão caminharem juntos, herdado por um lado “da ortodoxia
religiosa” e por outro da heresia cortês (ROUGEMONT, 2003, p.372) leituras desse tipo
parecem resolver essa tensão. A sedução do público atual vem por meio da possibilidade de
felicidade individual, da sensação de comando desse sentimento. Esse entendimento da obra de
Austen parece refutar a idéia de que a “felicidade é uma Eurídice: nós a perdemos a partir do
momento em que pretendemos alcançá-la” (ROUGEMONT, 2003, p. 376). Saímos das salas do
cinema, por exemplo, com essa solução para conflitos de nosso tempo.
A caracterização das personagens masculinas como homens mais sensíveis e humanos é
outro desdobramento da leitura que não percebe a importância da questão de gênero para Jane
Austen. A apresentação de um Darcy atormentado por seus sentimentos, mais sensível e
emocional (processo iniciado com na versão da BBC de 1995 e reforçado pelo filme de 2005),
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Conclusão
1
Termo criado por Salzman, Malathia e O’Reilly, autores do livro The Future of Men (O Futuro dos
Homens) para descreve o homem do século XXI, que se apresenta mais atratente, masculino, decidido,
atencioso para com o mundo a seu redor e que reconhece que precisa da mulher em sua caminhada.
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Referências
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DICKSON, Rebecca. Misrepresenting Jane Austen’s Ladies. Revising Texts (and
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GILBERT, Sandra M. and GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic: The woman
Writer and the Nineteenth-Century Literary Imagination. New Haven, Yale University
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ROUGEMONT, Denis de. História do Amor Ocidental. Trad. BRANDI, Paulo e
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VASCONCELOS, Sandra G. T. “Construções do feminino no romance inglês do século
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WRIGHT, Andrew H. Jane Austen’s novels. UK, Penguin Books,1962.
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Mesmo com sua proibição a capoeira não acabou. Ela continuou acontecendo de forma
clandestina e marginalizada principalmente nas cidades de Salvador, Recife e Rio de
Janeiro. Era grandemente perseguida pela polícia, e, era comum a deportação de
capoeiristas para ilhas-presídios.
Os capoeiristas então inventaram alguns meios de burlar a repressão policial, como a
criação do toque do berimbau chamado de cavalaria, que funcionava como um sinal de
alerta indicando a vinda dos policiais. Quando o toque de cavalaria era tocado, os
capoeiristas saiam em disparada para não serem detidos. Outro mecanismo de defesa contra
o poder policial adotado pelos capoeiristas foi a criação de codinomes de capoeira, pois
assim ficaria mais difícil para a polícia identificar quem fazia parte da “vadiagem”.
Ao mesmo tempo em que a perseguição e a proibição eram constantes, a capoeira foi
ganhando espaços dentro da sociedade, principalmente nos meios militares e intelectuais,
que na voz de Letícia Reis “estavam preocupados com a própria viabilidade da nação
brasileira e informados pelos princípios da medicina higienista, que propugnava a ginástica
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como meio profilático para a regeneração da raça.” A partir disso, a capoeira começou a ser
vista com certa aceitação, pois era um “esporte” que poderia ser considerado genuinamente
brasileiro, porque, como defendem alguns estudiosos, foi criada em solo brasileiro pelos
negros vindos da África.
É apenas no ano de 1930 que a capoeira vai ser legalizada. Por mais que as tentativas de
legalização tenham sido mais marcantes no Rio de Janeiro, é na Bahia que o fato se sucede
primeiro, talvez pela imagem que a capoeira carioca tinha ligada a malandragem, ao ócio e
à violência promovida pelas maltas. O caráter esportivo da capoeira possibilitou sua
descriminalização, e, por conseguinte seu embranquecimento. É nesse momento que surge a
importante figura do mestre Bimba, Manoel dos Reis Machado (1899-1974), que realizou
grandes mudanças na Capoeira.
Basicamente a Capoeira Angola é uma luta brasileira de origem africana que se
caracteriza principalmente por sua teatralidade, por sua mandinga, por sua oralidade
(cânticos, mitos e ensinamentos) e por sua aparência lúdica, que camufla na dança e na
acrobacia diversos movimentos que podem ser mortais, se executados. A Capoeira Angola
resiste em suas raízes culturais e em seus fundamentos tradicionais, por isso é considerada
muito mais do que uma mera modalidade esportiva, e como o próprio Mestre Pastinha
falava, “pratico a verdadeira capoeira de angola e aqui os homens aprendem a ser leais e
justos. A lei de Angola, que herdei de meus avós, é a lei da liberdade” (Escola de Capoeira
“Os Angoleiros do Sertão”)
A Capoeira Angola que chegou a ser considerada quase extinta na década de 1970,
mediante a grande difusão da Capoeira Regional, foi resgatada e grandemente difundida
depois da morte de Mestre Pastinha na década de 1980. A partir de 1982, o Mestre Moraes
(Pedro Moraes Trindade, 1950) criou o grupo de Capoeira Angola Pelourinho – GCAP
revigorando e fortalecendo o estilo em uma missão árdua e gratificante e, assim como o
Mestre Cobra Mansa (Cinésio Feliciano Peçanha, 1960), viajou a diversos lugares do
mundo, percorreu grandes rodas mostrando o valor e a eficiência da Capoeira Angola.
Mestre Moraes teve por objetivo resgatar a ancestralidade da Capoeira e manter seus
fundamentos já estabelecidos, ou seja, de raiz. Não é por menos que adotou as listras da
zebra como símbolo do seu grupo, símbolo que faz referência ao N’golo.
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A Capoeira Angola hoje se disseminou por todo o país, já estando totalmente fundida e
enraizada na cultura nacional, ela mantém as suas raízes culturais e seus fundamentos
tradicionais, como a poesia, a musicalidade, a mandinga, a teatralidade, o ritmo, a memória,
a ginga, o respeito mútuo entre os homens e as mulheres tanto no ritual da roda como na
roda da vida.
Neste trabalho faremos uma breve leitura de um conto africano e compará-lo-emos a um
cântico de Capoeira Angola, uma ladainha de domínio público cantada pelo mestre
Waldemar Rodrigues da Paixão (1916-1990), conhecido como mestre Waldemar do Pero
Vaz. Segue abaixo o conto que foi recolhido da obra Literatura oral no Brasil de Câmara
Cascudo:
1
Sovina: avaro.
2
Mofino: desgraçado; covarde; enfermiço.
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Eu te dava conselho
Pensava ser ruim
E eu sempre te dizendo
Inveja matou Caim
Camaradinho
Aquinderreis
Iê aquinderreis, camará
Assim como o conto africano, a ladainha de Capoeira Angola cantada pelo mestre
Waldemar da Paixão trata do tema da língua – do falar demais humano – como algo
perigoso e traiçoeiro, em que o próprio falante cai numa armadilha ou emboscada criada
por ele mesmo. Desta maneira, deparamo-nos com um diálogo intertextual que se
estabelece entre a cantiga de Capoeira e o conto africano. Mais do que ressaltar o poder
da palavra, a ladainha transita por diversos outros temas que acabam por desencadear
um grande tema: os extremos da vida, o nunca estar bom quando em abundância. Talvez
possamos interpretar que o cantador sugira um equilíbrio pleno, algo difícil e quase
impossível. Porém não podemos descartar a possibilidade de uma revolta diante do
mundo: o nunca estar bom. Além disso, o capoeirista fala do trabalho em vão, do muito
trabalhar e por fim perder tudo, fala do homem efêmero através da metáfora do
marimbondo até chegar à parte de uma estória de um conto de origem africana e oral e é
exatamente neste ponto em que vamos nos deter.
A principio consta-nos destacar o poder locomotivo da Literatura Oral, ela viaja no
tempo e no espaço, cria diversas variantes e mantém a tradição. Podemos imaginar
como um conto popular da África Negra veio parar nas vozes dos cantadores de
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Capoeira Angola no Brasil, Resistindo ao tempo e à distância espacial? Talvez uma das
respostas seja: por meio da tradição oral.
Poderíamos tratar aqui neste trabalho somente a questão do diálogo interartístico que
se estabelece entre Literatura Oral e Capoeira Angola, porém vamos nos limitar a
explanar apenas as questões intervocálicas que ocorrem entre esses dois textos.
Começando pelas dessemelhanças, pode-se notar que o primeiro texto, a princípio,
não conta com instrumentos musicais para acompanhá-lo. Já o segundo é um texto
essencialmente musical, geralmente acompanhado por uma bateria de oito instrumentos
musicais (três berimbaus, dois pandeiros, um reco-reco, um agogô e um tambor) e é
cantado e não contado como ocorre com o texto de origem africana. Além dessa
diferença fundamental não podemos esquecer que a ladainha cantada pelo mestre de
Capoeira já apresenta alguns traços da influência portuguesa, como, por exemplo, a
menção à passagem bíblica dos irmãos Abel e Caim.
Se no conto o narrador–contador se apóia na gesticulação e na entoação da voz, na
ladainha o narrador-cantador se apóia na cadência de seus sons e no auxilio musical.
Não podemos perder de vista que ambos os textos apresentam um ritmo bastante
marcado pela oralidade, ou seja, depende também de seus ouvintes e se constrói
segundo suas necessidades. Quando um texto oral é transmitido, diferentemente de um
texto escrito, ele pode ser moldado e ecoado segundo fisionomia de seus interlocutores,
assim, a essencial necessidade de se atentar para o caráter primário dos textos.
O ambiente onde o conto geralmente era contado é aquele da noite, ao pé da
fogueira, depois de um dia cheio de trabalhos, já o ambiente em que a ladainha é ecoada
é o da rua, geralmente ao domingo, onde os capoeiras se juntavam para “vadiar”.
As semelhanças observadas entre os dois textos propostos para leitura são inúmeras.
Podemos começar por observar que ambos tratam em determinado momento de um
mesmo tema: o perigo em falar demais. Além da intertextualidade temática, podemos
assemelhá-los pela origem oral, ambos foram produzidos para serem ditos pela voz, um
através do contar e o outro através do cantar. Mais do que essa origem oral, ambos são
textos de origem popular, o primeiro sem paradeiro preciso, conto popularizado em
grande parte da África Negra segundo Câmara Cascudo (1978, p. 178-179), a ladainha
já é considerada de domínio público nas rodas de Capoeira, é cantada por muitos, o que
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só comprova seu caráter popular. E para completar esse ciclo de semelhanças não
poderíamos deixar de destacar a forte presença da tradição que aflora nos dois textos.
Essa tradição pode ser confirmada através da resistência dos textos e da manutenção dos
mesmos, mesmo que em contextos distintos dos de sua origem.
Com essa breve e sucinta leitura desembocamos na reflexão do poder da Literatura
de Tradição Oral e Popular, no que se refere à resistência temporal, espacial e histórica
(desprestigio mediante o surgimento da imprensa e das novas tecnologias), e ao
caminhar contínuo, às vezes oscilante no decorrer de sua existência. São inúmeros os
textos da chamada “Alta Literatura” que podem ser comparados às cantigas e texto de
origem oral afro-brasileiros, sem contar com o decorrente e claro diálogo que se
estabelece entre essas cantigas e inúmeros textos de origem africana, popular (literatura
de cordel) e da tradição oral.
Neste trabalho ficou apenas um pequeno pedaço da proposta de pesquisa elaborada a
partir dos cânticos de Capoeira Angola, acredita-se que essas cantigas (ladainhas,
quadras, corridos, louvações) podem ser um farto corpus para o estudo da Literatura
Oral Afro-brasileira, e para outras diversas vertentes dos estudos acadêmicos.
Referências
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2ª edição, Rio de Janeiro: Olympio;
Brasília: INL, 1978.
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Dicionário básico da língua portuguesa. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
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A Capoeira Angola é uma manifestação cultural que foi trazida da África para o
Brasil por meio dos negros vindos principalmente de Angola. Por mais que boa parte da
tradição oral desses negros ficava em sua terra mãe, pois os homens e mulheres mais
velhos, os contadores das histórias de seus avós, que eram passadas de geração à
geração por meio da oralidade, se mantinham em sua terra pelo fato do comércio
negreiro privilegiar apenas o tráfico de homens e mulheres relativamente jovens.
Mesmo deixando boa parte de sua ancestralidade, de suas origens e costumes na terra
natal, os negros conseguiram manter parte de tudo o que ficou do outro lado do atlântico
aqui no Brasil. Isso pode ser constatado quando analisamos as cantigas de Capoeira
Angola, que são expressas oralmente e tratam de temas diversos.
Enquanto a roda está acontecendo o cantador narra diversos fatos ou lendas dos
mais variados assuntos. Ele faz crítica social, fala de política, da situação do negro no
Brasil, de amor, de lendas como Besouro, Riachão, Pedro Cem, Zumbi. As cantigas de
Capoeira Angola é um verdadeiro manancial para estudiosos das mais diversas
disciplinas da atualidade, e, como acrescenta Lopes:
Aqui, olhar-se-á essas cantigas com um foco mais literário, pois como é sabido,
a Capoeira Angola não se resume em Literatura, ela possui toda uma característica
performática, que inclui o gesto, a voz e sua entonação, os corpos dos jogadores e seus
movimentos teatralizados, a bateria (conjunto de músicos), o espaço e o tempo onde se
desenrola o ritual da roda, como Carybé tenta demonstrar em seu desenho:
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Seu caráter performático é fundamental mas nesse texto será tratado de maneira
mais superficial. Ter-se-á por base neste texto a Oratura (Literatura Oral) para poder-se
enfocar o caráter literário da cantiga de Capoeira, e, no caso desse texto, da ladainha,
um dos subgêneros dos cânticos de Capoeira Angola. Procurar-se-á relacioná-la com
um poema contemporâneo afro-brasileiro para demonstrar seu caráter literário e
estético.
O Banzo, ou, de maneira simplista, a saudade da terra será o tema escolhido para
iniciar-se a leitura de uma cantiga de Capoeira Angola relacionando-a com um poema
afro-brasileiro da atualidade, isso pelo fato desse tema ter sido tão comum entre os
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negros trazidos como escravos ao Brasil, e repercutir até hoje entre muitos de seus
descendentes. A caráter comparativo segue abaixo uma ladainha (um subgênero do
gênero cantigas de Capoeira Angola) cantada pelo mestre Marrom no Rio de Janeiro em
maio de 2007, e em seguida um poema afro-brasileiro:
Iê...
****
Banzo
Os dois textos citados acima apresentam como tema o banzo, que é uma espécie
de sentimento, um sentimento de dor que se pode traduzir como saudade da terra, das
origens, da ancestralidade do negro que fora trazido da África como escravo às terras
brasileiras. Os textos tentam transmitir o sofrimento dos que se viram obrigados a
deixar toda sua tradição para recomeçar uma nova história, um novo modo de vida. As
imagens “chora meu cativeiro” ou “lágrima negra” revelam o quanto esses homens e
mulheres derramaram seus prantos. Os poemas ainda mostram o quanto a
ancestralidade, a tradição oral e o apego pela terra natal se fazem presente: “o meu pai
falava muito/não esquecerei jamais” ou, como aparece na segunda poesia: “tudo que
mais amo/tudo o que mais prezo/continua distante, inconquistável, inacessível...” esses
versos revelam como o eu-poético dos dois textos valorizam aquilo tudo que herdaram,
e que por ordem do ingrato destino tiveram a infelicidade de não vivenciar por mais
tempo.
Os textos ainda fazem uma crítica social, o primeiro quando trata da princesa
Isabel e o segundo quando se refere ao preconceito social: “No dia treze de maio,
apareceu uma mulher/não libertou todos os escravos, princesa Isabel” e “Até mesmo
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invisível consigo ser/neste país que eu julgava tão negro quanto eu”. Nessas passagens
fica bem clara a crítica ao que é estudado nas escolas, e que muitos ainda acreditam ser
verdade: a questão da libertação dos escravos pela princesa Isabel, uma grande mentira;
e a denúncia ao preconceito num país que foi construído em grande parte por mãos
negras.
A partir de uma análise mais estilística e literária pode-se destacar que no
primeiro poema, na ladainha apresentada acima, depara-se com um texto de forma fixa
e com esquema de rima elaborado na forma: a/b, c/c, d/d, e/e, f/g, h/h, i/i, j/j. o que
contribui grandemente para o bom andamento do canto, temos nesse poema de
decassílabos uma cadência ritmada por estrofes divididas em dois versos cada.
O segundo poema proposto possui forma livre e guarda mais em suas imagens
do que em sua sonoridade sua riqueza estética. É repleto de metáforas e ambigüidades,
como “sofrimento escuro”, por exemplo. Apresenta palavras de origem africana como
forma de resistência cultural e para demonstrar a influência lingüística dos africanos:
“acarajé”, “cubata” e “dendê”.
Mesmo com temática condizente, os textos revelam em si estilos diferentes. O
primeiro que foi elaborado para ser cantado, revela sua cadência no ritmo que se
estabelece numa junção de corpos, vozes, sons e ouvidos. Já o segundo, apresenta,
mesmo com grande efeito de sonoridade, seu caráter de texto que foi produzido para ser
lido, sem esquema rímico sistematizado, com versos e estrofes livres, desprendida de
qualquer forma fixa de poema, com inúmeros pontos finais, pausas internas e
reticências que sugerem uma maior reflexão do seu leitor, momentos de silêncio, que no
primeiro texto são preenchidos pelos sons dos instrumentos musicais. Não se pode
perder de vista essas dessemelhanças essenciais desses textos, por mais que em relação
a temática que ambos apresentam nota-se um claro diálogo estabelecido. Em relação à
ladainha é importante frisar-se que esta que foi apresentada acima possui certa
elaboração estética que revela que o seu compositor teve um trabalho anterior à voz de
criação, essa observação é válida no sentido em que muitas das cantigas de Capoeira
Angola são improvisadas de acordo com o contexto da roda, mas também se podem
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encontrar produções elaboradas e pensadas de forma não espontânea. Mas mesmo com
essa observação não se pode esquecer que, segundo o suíço Paul Zumthor:
O que comprava a diferença essencial dos textos propostos nesse trabalho, mas levando
em consideração o evidente dialogo temático que se dá entre eles.
Conclusão
Referências
“Eu acho que qualquer escritor, qualquer poeta, o que vai na alma de um poeta é o respirar de um
país. Não digo que as obras, na sua maioria seriam auto-biográficas, não! Mas a vivência do
autor, o ambiente que o circunda, o seu dia a dia, tudo aquilo que é preocupação daquelas
pessoas que não têm voz vai ser a voz do poeta, vai ser a voz do escritor.” Odete Semedo
“Como eu disse, o meu país foi primeiro um lugar na literatura, para depois ser uma realidade na
geopolítica. O meu país foi inventado por poetas como Alda Lara, com Antônio Jacinto, como
Antônio Cardoso. O meu país existiu em forma de verso antes da proclamação da independência
no dia 11 de novembro de 1975”. Ana Paula Tavares
Esse artigo teve uma origem pouco comum dentro do ambiente de pesquisa pautado
por metodologias características das ciências sociais. Isso se deve muito ao fato de a
minha inserção profissional ser, ela mesma, pouco comum entre os meus colegas de
formação, sejam eles antropólogos, sociólogos ou cientistas políticos. Eu trabalho num
programa de televisão, o Salto para o Futuro, da TV Escola, canal do Ministério da
Educação. A minha atuação está ligada diretamente ao que diz respeito aos conteúdos
que são veiculados em cada série de programas. No final de 2007, decidimos aproveitar
um evento de literatura que acontecia na Faculdade de Letras da UFRJ para entrevistar
três escritoras africanas.
A nossa intenção foi reunir depoimentos para utilizá-los mais tarde. O problema é
que não tínhamos um programa previsto, cujos temas já estivessem definidos. Isso nos
levou a elaborar uma pauta com perguntas mais gerais, sem deixar de pontuar certos
assuntos considerados relevantes para uma discussão sobre História da África, a partir
de um recorte de gênero.
Ressalto, no entanto, que a dinâmica da entrevista obedeceu aos critérios e urgências
ditados por um fazer televisivo comprometido sobremaneira com a realização técnica do
vídeo. Isso pode acarretar, muitas vezes, uma sobrevalorização de toda a composição da
imagem com os seus detalhes de luz e som em detrimento da entrevista propriamente
dita. Então, muito embora as perguntas fossem geradoras de respostas e reflexões mais
demoradas, o “tempo” definido como o “tempo da televisão” foi um fator limitador no
1
Mestre em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ). Analista Educacional do Programa Salto para o
Futuro/TV Escola, canal do Ministério da Educação (MEC).
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2
Optei por trabalhar neste artigo somente com as entrevistas de Ana Paula Tavares e Odete Semedo,
visando me deter mais especificamente em dois contextos sócio-históricos. A entrevista com a escritora
Conceição Lima foi igualmente inspiradora.
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3
(…) A literatura oral ou oratura, acervo transmitido apenas pela voz e pela memória, constituído pelas
histórias tradicionais, provérbios, adivinhas, cantigas, manancial de saber e de criatividade populares, de
filosofia e sabedoria (Augel, 2007, p. 30).
4
Vai ser constante a referência a Benedict Anderson e sua obra: Comunidades Imaginadas (2008).
5
(...) No entanto, depois de criados, esses produtos se tornaram “modulares”, capazes de serem
transplantados com diversos graus de autoconsciência para uma grande variedade de terrenos sociais, para
incorporarem e serem incorporados a uma variedade igualmente grande de constelações políticas e
ideológicas (Anderson, 2008, p. 30).
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Por último, mas não menos importante, faço um esforço de compreensão da proposta
teórica e metodológica de investigação baseada na noção de “histórias conectadas”,
desenvolvida na obra do historiador Sanjay Subrahmanyam. Quem me chamou a
atenção para essa perspectiva foi o antropólogo Fernando Rosa Ribeiro, em seu artigo:
“Histórias Conectadas: Uma Proposta Teórica e Metodológica a Partir da Índia”. Nesse
artigo, ele apresenta, de maneira resumida, as bases teóricas e metodológicas de um
trabalho, cuja contribuição tem sido a de ampliar os horizontes da pesquisa buscando os
fluxos de “ideias e práticas culturais”; ultrapassando uma historiografia desde os
Estados-nacionais, conectando e perpassando diferentes dimensões do mundo social.
Tendo visto isso, ainda havia um aspecto metodológico bastante inspirador: a
oportunidade de observar os contextos conectados e não compará-los, como
costumeiramente é feito. Então, em lugar de partir do pressuposto da diferença,
portanto, da comparação, busca-se o itinerário das conexões entre as histórias.
6
Continuar defendendo o isolamento da África era um dos meios encontrados para legitimar não somente
a colonização com seus corolários, mas também justificar a sua não contribuição na civilização universal.
7
A lei foi modificada para a introdução da questão indígena. Agora, na Lei n. 11.645, lê-se: “nos
estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o
estudo da história e da cultura afro-brasileira e indígena.”
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(…) todos estes autores que levaram a voz da terra, como eu costumo
dizer, para outros campos do universo, eles deram a conhecer a
situação política do país através dos seus versos, através dos seus
escritos. (SEMEDO)
8
(...) Apesar da pequena extensão do território, ali vivem dezenas de grupos e subgrupos étnicos muito
heterogêneos, com suas culturas próprias, suas línguas, em grande parte muito diferentes umas das outras.
Luigi Scantamburlo refere-se a 27 grupos étnicos, mas os autores não são unânimes nessa quantificação, e
isso porque há grupos, subgrupos, e os critérios variam bastante (AUGEL, 2007, p. 76).
9
Guiné-Bissau (1973), São Tomé e Príncipe (1975), Angola (1975), Moçambique (1975) e Cabo Verde
(1975).
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pela libertação nacional. Ou seja, mais uma vez Anderson coloca pistas importantes
acerca da influência da literatura e o seu papel na formação de um imaginário
comunitário que desemboca no esboço da condição nacional. Há uma profunda
coincidência ligando a produção literária à busca de certa identidade nacional apta a
disputar, com o poder colonial, um território independente e soberano.
Quando o tema passa a ser a condição da mulher como partícipe nesse concerto
histórico e político, a maneira como ela percebe esse lugar dá indícios de como certas
dimensões da vida social têm sido delineadas no Estado-nação guineense e angolano. O
cimentamento da condição nacional não deixa de expor a presença de questões tão
globais quanto as desigualdades de gênero. Um efeito direto desse estado de coisas é a
precarização da vida das mulheres guineenses; nas palavras de Odete Semedo:
Embora tenha esse status subalternizado por razões que perpassam os costumes e a
tradição e encontram um terreno fértil para a reprodução das desigualdades nos
interstícios do capitalismo tardio, as mulheres da Guiné-Bissau e de Angola foram
sujeitos basilares, aparecendo em diferentes frentes de atuação e combate pela
independência dos territórios ocupados por Portugal. Partindo da reflexão de Ana Paula
Tavares, podemos constatar esse papel da mulher:
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Mas o fato de terem à sua frente inúmeras barreiras que as impedem de chegar “às
letras”, como apontou Odete Semedo, não foram silenciadas, muito pelo contrário 10.
Nessas circunstâncias, o espaço de fala da mulher (africana) ocorre, sobretudo, no
âmbito das tradições orais onde também se passam as ações espetaculares, tais como o
canto e a dança. Na verdade, é um espaço largo de representação, criação e fruição
estética. Simultaneamente a isso, aconteceu a dimensão institucionalizada da língua
impressa, campo fortemente controlado que, não à toa, faz parte do elenco de elementos
relevantes na constituição da “condição nacional”, como foi proposto nas investigações
de Anderson (2008).
A tradição oral guineense eu costumo dizer que é uma das matrizes da
moderna poesia guineense e das canções guineenses. Nós vamos
encontrar mulheres que não sabem ler nem escrever, mas que criam
cantigas da coletividade feminina que são maravilhosas. Portanto, são
mulheres que não sabiam e não sabem escrever nem ler, mas que
declamam nos seus encontros, nas suas danças, portanto, esta mulher
está presente nas letras guineenses e no meu trabalho a mulher está
presente, a vida social está presente, a política, como não podia deixar
de ser, está presente, porque é ela que gera a vida da população, quer
queiramos, quer não. (SEMEDO).
A ideia de nação pós-colonial, tal como está em destaque, não traz garantias de
supressão da dissonância existente entre uma proposta de liberdade e comunhão,
normalmente ancorada a normas constitucionais desses novos Estados nacionais, o que
está atrelado a um conjunto de circunstâncias de reprodução de desigualdade de
diferentes tipos. Stuart Hall defende o argumento de que muito mais do que um “ponto
10
Boubacar Barry (2000) nos faz atentar para formas de “expressividades” que são imprescindíveis no
contexto africano.
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(...) É curioso porque eu vou dizer mais uma vez: foi em português que
eu falei dessas mesmas línguas, mas há todo um patrimônio da
tradição oral e mesmo fixado em português que foi importante para eu
chegar ao conhecimento dos locais, das regiões, do meu país em suma.
Eu penso que toda a gente é de um lugar, como é de uma infância,
como é de uma determinada região, e aí, essas mesmas línguas
silenciadas durante todo o processo colonial, elas foram só
aparentemente silenciadas, porque elas estavam lá, o meu trabalho
nem sequer foi muito grande, foi apenas ouvir, ficar atenta.
(TAVARES).
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Referências
11
(…) Os linguistas definem o crioulo como um sistema linguístico em que o léxico é tomado na sua
maioria de empréstimos da língua base, a língua do dominador, e as estruturas são resultantes dos
substratos das línguas africanas (AUGEL, 2007, p. 84).
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KALY, Alain Pascal . "O Islã e os poderes políticos. Das administrações francesas ao
Senegal pós-colonial". In: MACAGNO, Lorenzo; RIBEIRO, Fernando Rosa;
SCHERMANN, Patrícia. (Orgs.). Histórias conecatadas e dinâmicas pós-coloniais.
Curitiba: Fundação Araucária, 2008, p. 265-305.
WESSELING, L. Dividir para dominar: a partilha da África (1880-1914). Rio de
Janeiro: Editora UFRJ; Editora Revan, 1998.
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1
* Em meados do século V a. C. já se elaborava, entre os gregos e os romanos, os traços principais do
ceticismo. Mas é no período helenístico Pirro de Elis faz do pensamento cético uma escola filosófica. O
radicalismo de Pirro rejeitava qualquer possibilidade do conhecimento alcançar conclusões inalteráveis.
Já nos séculos II e III, o pirronismo reaparece na Grécia com Enesidemo e Sexto Empírico. A obra deste
último, publicada no século XVI, em muito influenciou o pensamento renascentista e moderno –
destacando-se Montaigne e Pascal – escritores a partir dos quais “Machado de Assis travou contato com o
ceticismo (...)” (MAIA NETO, 2007, p. 20).
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Tudo o que o leitor sabe sobre o ocorrido é contado a partir de um único ponto de
vista: o do narrador que, num diálogo informal dado ao acaso numa esquina com um
amigo, resolve contar-lhe “uma coisa interessante” – um evento acontecido há mais de
uma década, recordado naquele momento pela passagem de Marocas. A narrativa é uma
rememoração de um fato já refletido. O foco restritivo do narrador, em primeira pessoa,
inserido num diálogo, enredado na estória que relembra, é o suficiente para condicionar
a versão do caso, apresentando uma perspectiva parcial e limitada, implicando
inevitavelmente “(...) uma relação problemática com a verdade.” (MAIA NETO, 2007,
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O contato que o leitor tem com Marocas é extremamente precário, filtrado pela visão
do narrador que traça o perfil da moça. É interessante observar o rodeio de palavras
usado para apontar uma determinada condição que, uma vez considerada interdita pelo
narrador, assim como por toda a sociedade, necessita por isso mesmo de algum
circunlóquio: “Deve chamar-se hoje D. Maria de tal. Em 1860 florescia com o nome
familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá
excluindo as profissões e lá chegará.” (ASSIS, 2007, p. 204). Ele evita chamá-la de
prostituta. Usa de uma delicadeza um tanto irônica para se referir ao apelido que
normalmente as prostitutas adotam no trabalho; e ainda supõe o nome atual, que não
chega a ser um nome, mas antes a falta dele, próprio de uma mulher ordinária, de
família desconhecida.
O status social de Andrade é radicalmente distinto do de Marocas. Nascido em
Alagoas, de família abastada, chegou já casado ao Rio de Janeiro, em 1859. O narrador
conta que certo dia Andrade estava parado em frente a uma loja e, ao ver uma bela
mulher, se alvoroçou “(...) porque ele tinha em alto grau a paixão das mulheres.”
(ASSIS, 2007, p. 205). Essa moça era Marocas; ela se aproximou de Andrade e, sendo
analfabeta, “(...) envergonhada e a medo (...)” (ASSIS, 2007, p. 205) pediu a este que
lhe indicasse o local informado no papel que trazia consigo. Ele a orientou, ela
agradeceu e se foi. Na mesma noite, estavam no mesmo Ginásio para ver a Dama das
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Camélias: “Não lhe digo nada; no fim de quinze dias amavam-se loucamente.” (ASSIS,
2007, p. 205). Marocas passou a viver exclusivamente para o Andrade; abandonou os
clientes, só se interessava pelo amante e por mais nada. Este a ensinou a ler. Ao juízo do
narrador, ela aprendeu rápido, dentre outros motivos pelo “(...) gosto de obedecer a um
desejo dele, de lhe ser agradável...” (ASSIS, 2007, p. 206). Esta passagem, enfatizando
o prazer na submissão, além de deixar claro “(...) o próprio discurso estruturado nas
entranhas da classe social (...)” (RONCARI, 2000, p. 145), faz recordar as Memórias
Póstumas de Brás Cubas, mais precisamente o capítulo “Orgulho da Servilidade”, no
qual Quincas Borba explica, conforme sua filosofia humanitista, que os criados se
glorificam em servir ao senhor.
No dia de São João, Andrade se retira durante dois dias à Gávea para comemorar a
festa com sua família. Marocas ficará sozinha, como ela mesma disse, jantando com um
retrato de Andrade, relembrando a situação de Dama das Camélias. A esta imagem
especialmente deprimente traçada pela moça, segue-se outra muito significativa. Após
falar do comentário desolado de Marocas sobre o jantar com um retrato, o narrador
continua:
– Este dito ia-lhe rendendo um beijo; o Andrade chegou a inclinar-se;
ela, porém, vendo que eu estava ali, afastou-o delicadamente com a
mão./ – Gosto desse gesto./ – Ele não gostou menos. Pegou-lhe na
cabeça com ambas as mãos, e, paternalmente, pingou-lhe o beijo na
testa. Seguimos para a Gávea. (ASSIS, 2007, p. 206)
A admiração e o deleite sentidos pelos homens diante do pudor e do recato feminino
envolvem relações tradicionais de poder. O interlocutor afirma seu gosto pelo gesto
pudico da mulher antes mesmo que o narrador comente que Andrade também gostou. O
beijo paternal que se segue reforça a posição de domínio; e a saída imediata para a
Gávea, seguida pela conversa entusiasmada de Andrade com o narrador, deixa ver a
disparidade entre as situações dos amantes; ela, solitária, submissa e pobre, vendo o
homem por quem se apaixonou relegando-a para um plano inferior e saindo para
festejar e se fartar sossegadamente com a família oficial, gozando de seu status, de sua
esposa, filha e amigos. Decerto, o que Andrade esperava de Marocas era nada menos do
que resignação.
Dão-se os festejos; Andrade retorna e já no escritório, aparece Leandro, um homem
definido como “(...) reles e vadio. Vivia a explorar os amigos do antigo patrão.”
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Andrade perde a razão, ficando completamente desnorteado “(...) não soube o que
fez nem o que disse durante os primeiros minutos, nem o que pensou nem o que sentiu.”
(ASSIS, 2007, p. 208). Até que consegue perguntar se Leandro dizia a verdade, “(...)
mas o outro advertiu que não tinha nenhuma necessidade de inventar semelhante coisa;
vendo, porém, o alvoroço do Andrade, pediu-lhe segredo, dizendo que ele, pela sua
parte, era discreto.” (ASSIS, 2007, p. 208). Será mesmo que Leandro “não tinha
necessidade de inventar”, essa “anedota erótica”? Não se poderia imaginar que o relato
não passou de algumas fantasias de um “pobre diabo”? O amante propõe então vinte
mil-réis a Leandro, para que este o acompanhe até a casa da moça e confesse diante dela
o que acabara de contar. Este aceita a proposta; ambos vão até a casa de Marocas;
Andrade percebe que ela empalidece ao ver o outro. “– ‘É esta senhora?’ perguntou ele.
– ‘Sim, senhor’, murmurou o Leandro (...)” (ASSIS, 2007, p. 208). O amante paga
imediatamente o “pobre diabo” e o manda sair.
A cena que se seguiu, foi breve, mas dramática. Não a soube
inteiramente, porque o próprio Andrade é que me contou tudo, e,
naturalmente, estava tão atordoado, que muita coisa lhe escapou. Ela
não confessou nada; mas estava fora de si (...). (ASSIS, 2007, p. 208)
Após esta “(...) verdade comprada por ‘vinte mil-réis’” (RONCARI, 2000, p. 150);
ao leitor é impossível saber o que realmente se passou. O narrador mesmo afirma não
saber, admite seu ponto de vista restrito, uma vez que nem o próprio Andrade soube,
“tão atordoado” que estava, “muita coisa lhe escapou”; e de Marocas, tão “fora de si”
quanto o amante, o leitor sabe apenas que “não confessou nada”. Este momento remete
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que pensava naquele momento? O que sentia? Quem sabe a verdade sobre a atitude de
Marocas? Andrade, que até perdeu o rumo e não chegou a nenhuma conclusão? Leandro
que foi pago para confirmar? O narrador que cogitava na aventura? O interlocutor que
acreditava na “nostalgia da lama”? Trata-se da intricada discussão, também levantada
pelos céticos, sobre a impossibilidade de se ultrapassar as aparências, de se arrancar as
máscaras e alcançar a face, a essência. Estes problemas que buscam descobrir a verdade
sobre o que aconteceu, a essência do ato de Marocas, se acham cercados pelos limites
do conhecimento.
Podemos talvez conjeturar que, em Singular Ocorrência, o estranhamento dos
personagens diante do ato de Marocas decorre antes de uma moral patriarcal que
percebe seus costumes desestabilizados – esperava-se naturalmente a resignação da
moça; mas ela não se resignou – aparece assim uma fenda, uma quebra no que até então
era considerado natural (resignação). De súbito percebe-se que o natural, ou mais
precisamente, o que é concebido como natural, não passa de um costume, sujeito a
transgressões, desvios e variações. Esse conto parece mostrar que, uma vez rompido um
dogma – a moral patriarcal estabelecida – o que se suscita é uma gestação, um esboço
de uma reflexão cética, pois é justamente com a variação dos dogmas que o ceticismo se
preocupa. O problema da natureza enquanto costume remete ao pensamento anti-
dogmático de Pascal: “Temo que tal natureza não seja ela própria nada além de um
primeiro hábito (...)” (PASCAL, 1999, p. 57). Se a natureza é um hábito, se o que se
acreditava permanente se mostra incerto e volúvel, percebemos, assim como Montaigne,
a instabilidade, a incerteza, a falta de fundamento fixo ou o vazio próprio da existência:
“(...) nada de certo se pode estabelecer entre nós mesmos e o que se situa fora de nós,
estando tanto o juiz como o julgado em perpétua transformação e movimento.” (grifo
nosso), o que mais uma vez afirma os limites do conhecimento: “Nossa razão é sempre
iludida pela inconstância das aparências (...)”. O ato de Marocas não se deixa alcançar
para qualquer explicação, do mesmo modo que toda a existência, em sua instabilidade,
nos escapa e não se deixa fixar para qualquer apreensão.
2.3 Uma possibilidade
O conto nos mostra uma perspectiva dogmática que, vendo suas verdades
estilhaçadas, fica perplexa, não consegue explicar e estranha a situação. Poderíamos
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aparências. Deste modo, deixa-se de buscar uma face atrás da máscara, ou melhor, as
noções de máscara/face se perdem, já que se admite que o que temos é somente a
aparência:
(...) uma das grandes novidades do Machado de Assis é a ausência de
uma cara atrás da máscara. (...) as aparências satisfazem. Isso conta na
questão da referência aos moralistas dos séculos XVII e XVIII. (...)
No limite, a máscara poderia desaparecer, e apareceria a verdade. Em
Machado de Assis, não. Existem relações mais sofridas ou mais
felizes com as aparências, mas estas não se suprimem. Em lugar do
desmascaramento, uma contabilidade imparcial dos prazeres e
desprazeres das diferentes relações com as aparências, o que era e é
moderníssimo.” (SCHWARZ, 1982, p. 334-5).
Desta perspectiva, um pensamento cético certamente não se preocuparia em
desmascarar Marocas, porque não presume nenhuma verdade encoberta passível de
revelação. Talvez apenas admitisse o aparente: um corpo entregue às vãs possibilidades
de si mesmo. É possível que o ceticismo seja percebido nesse conto enquanto uma
reflexão anti-dogmática, uma demonstração da falência e da insuficiência das
pretensões dos dogmas de uma moral, além de uma representação dos limites do
conhecimento e da vanidade da nossa condição.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural,
1978.
______. Singular Ocorrência. In:______50 contos de Machado de Assis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In:______Vários escritos. São
Paulo: duas cidades, 1970.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
MAIA NETO, José Raimundo. O Ceticismo na Obra de Machado de Assis. São Paulo:
Annablume, 2007.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Abril Cultural, 1999.
RONCARI, Luiz. Ficção e história: o espelho transparente de Machado de Assis. In:
Teresa: revista de Literatura Brasileira, [1/1]; São Paulo, p.139-154, 2000.
SCHWARZ, Roberto. Mesa-redonda. In: BOSI, Alfredo (Org.). Machado de Assis. São
Paulo: Ática, 1982. (Coleção Escritores Brasileiros: Antologia e Estudos, 1).
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Introdução
1. Memória anunciada
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Não somente suas obras de caráter policial, algumas peças de teatro, mas
também outra obra não menos importante, tomou tempo e dedicação desta famosa
romancista: sua autobiografia. Foram aproximadamente quinze anos (1950 –
1975) de dedicação às suas memórias, que incluem desde momentos importantes
de sua infância, sua relação com seus pais, detalhes sobre o comportamento das
empregadas que trabalhavam na casa em que vivia até a separação do seu
primeiro marido. Demorou todos esses anos, razão que ela mesma explica:
“parece o momento certo de terminar. Porque, no que diz respeito à vida, não
existe nada mais a dizer” (CHRISTIE, 1979, p.9).
Sobre a escolha de suas memórias, Agatha diz que “são apenas momentos
que nos chegam do passado – e entre eles imensos espaços vazios, de meses ou
até de anos” (CHRISTIE, 1979, p. 13).
Agatha May Clarissa Miller, nome de solteira. conhecida mundialmente
como Agatha Christie, nasceu em 15 de setembro de 1890, em Torquay, no sul da
Inglaterra. Por muitos anos suas lembranças decorrem do tempo em que viveu em
Ashfield. Lá foi onde sua vida começou, como a própria autora comenta ao final
da obra:
Sempre, na minha memória , volto a Ashfield.
“Ó ma chére maison, mon vid, mon gîte
Le passé l’abite… Ó, ma chère maison...” 1
Quanto Ashfield significa para mim! Quase nunca sonho com
Greenway nem com Winterbrook. É sempre com Ashfield, o velho
cenário familiar, onde nossa vida primeiro decorreu, mesmo que
nos sonhos as pessoas sejam do presente (CHRISTIE, 1979,
p.557).
1
Minha querida casa, meu ninho, meu abrigo
O passado a habita... minha querida casa! (Em francês no texto).
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2. Condição autobiográfica
Conclusão
Agatha Christie é um incrível fenômeno, sem dúvidas, dona de uma das
mentes femininas mais incríveis que já existiram. Muito dela foi criticado,
rebaixado. Porém, mesmo depois de sua morte, com todos esses anos após o
lançamento de seu primeiro livro, ela ainda é digna de pesquisa e investigação,
pois ainda surpreende e encanta os leitores há várias décadas.
A escritora Margery Allingham observa:
que escolhesse. O que fez foi divertir mais pessoas durante mais
horas e ao mesmo tempo, do que qualquer outro escritor de sua
geração. De uma forma geral, hoje, nessa época é difícil pensar em
outra obra que possa ter sido mais útil (FEINMAN, 1975, p.128).
Com essa obra ela completa o ciclo de suas criações. Pode-se dizer que ela
cumpriu tudo o que uma autora do seu nível poderia cumprir.
Lendo sua autobiografia, fica-se com a sensação de uma autora completa. O
leitor penetra na atmosfera do seu mundo, compreende a personalidade da autora.
É um pacto de aproximação. Cumpre com êxito a exposição de suas memórias,
que mesmo fugindo totalmente daquilo pela qual ficou famosa, o crime, consegue
envolver quem a lê.
Fica claro que ela não tentou, nesta obra, ficcionalizar a experiência vivida.
Exercitou muito bem sua autoconsciência, realizando o desejo de construir sua
história de vida a partir das suas experiências vividas.
Outro elemento que confere maior veracidade na narrativa de suas memórias
é o uso de imagens. Conforme a autora relata suas vivências e vai descrevendo as
personagens que compuseram sua história de vida, aparecem ao longo da obra
retratos destas, desde o cachorro de seu irmão Monty, até o retrato de seus pais, de
seus irmãos, de sua casa em Bagdá, entre outras. Essas imagens garantem ao leitor
uma proximidade muito maior com as histórias contadas. É de fato uma exposição
intensa da autora, pois milhares de leitores podem dessa forma conferir parte de
sua existência.
A análise permite afirmar que a obra tem sim caráter autobiográfico,
apresentando várias marcas que a definem como tal.
A obra termina com um tom de despedida, uma afirmação de consciência
sobre o curso da vida.
Referências
“Vamos à História dos subúrbios.” (Dom Casmurro, Machado de Assis, Capítulo CXLVIII)
Esta frase, proferida quando Bento Santiago termina o seu relato em Dom Casmurro
(1899), de Machado de Assis, aponta para um embate entre duas vertentes da ficção brasileira
daquele período. Ora uma narração voltada para o Realismo, tal qual a praticada com maestria
por Machado de Assis; ora para o Naturalismo, a tal história dos subúrbios apontada como outro
caminho por Bento Santiago. Apesar de alguns críticos insistirem erroneamente em apontar que
tal divisão (Realismo/ Naturalismo) não existe dentro de nossa prosa de ficção, o que nos cabe
aqui notar é que enquanto esteve vigente na literatura brasileira, o Naturalismo não foi a única
escola a reinar soberana dentro do inóspito terreno de nossa prosa ficcional.
Nosso Naturalismo 1 vai, grosso modo, de 1881, com a publicação de O Mulato, de
Aluísio Azevedo, até aproximadamente 1902, com a publicação de Canaan, de Graça Aranha 2.
De todos os romancistas do período, poucos sobrevivem até os nossos dias. Nomes como os de
Antônio de Oliveira, Farias Neves Sobrinho, Rodolfo Teófilo, Marques de Carvalho, Horácio de
Carvalho, Pardal Mallet e Valentim Magalhães passam despercebidos para o leitor atual, e
muitas vezes nem são mencionados nas histórias da literatura 3. Permanecem em nossas letras:
1
Neste artigo, o termo Naturalismo refere-se unicamente a escola vigente em nossas letras no final do século XIX.
Não serão aqui considerados os seus “eternos retornos”, tal e qual proposto por Flora Sussekind em Tal Brasil, qual
romance? (1984).
2
É claro que essas datas são apenas demonstrativas. Uso aqui as datas propostas por Lúcia Miguel-Pereira, em seu
Prosa de Ficção. A própria crítica chega a apontar outras datas, como por exemplo, o surgimento da escola em
1879, com O Coronel Sangrado, de Inglês de Sousa, e o surgimento de um livro tipicamente naturalista em 1911, A
Luta, de Carmen Dolores.
3
Apenas como dado demonstrativo, em História concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, apenas o nome
de quatro destes autores citados são mencionados: Horácio de Carvalho, Rodolfo Teófilo, Valentim Magalhães e
Pardal Mallet. Horácio de Carvalho aparece em uma nota de rodapé, Valentim Magalhães tem seu nome
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Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha e Júlio Ribeiro. Este último, inclusive, por apenas um
romance naturalista, A Carne (1888).
É difícil precisar o porquê desse apagamento de nossas páginas de história literária desses
autores e obras, porém em alguns casos isto se deve em partes a serem eles naturalistas puros.
Basta lembrarmo-nos de Rodolfo Teófilo, e seu A Fome (1890), no qual, segundo Lúcia Miguel-
Pereira, seus “excessos delirantes” e “a preocupação científica ou pseudo-científica representou
um pesado fator anti-artístico.” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, 133). Ou seja, falhou, pois seguiu
muito a risca a receita naturalista, o que em certo sentido gerou um excesso prejudicial para sua
obra. Outros, é claro, tem seus nomes apagados, possivelmente por não apresentarem romance de
fôlego. Pardal Mallet, por exemplo, falha sensivelmente em seu O Hóspede (1887). Como já
apontou Massaud Moisés:
Apenas por esse excerto da crítica feita por Massaud Moisés podemos perceber o quanto
os romances naturalistas, e principalmente os de menor fôlego, permanecem até hoje relegados a
um segundo plano dentro de nossa literatura. O que talvez boa parte da crítica não percebeu
durante todo esse tempo é o fato de que em nosso país o Naturalismo teria que se modificar caso
quisesse frutificar. E foi este justamente o seu erro: tentando inovar, trazendo para nossas letras
as ideias de Emile Zola e de seu discípulo português Eça de Queiroz, viram-se os romancistas
brasileiros aferrados a muitos dos ideais da escola anterior, e só aí encontravam uma base para
sua produção naturalista. Por outra chave, segundo Lúcia Miguel-Pereira: “No fundo, eram
mencionado de relance e devido a sua carreira como poeta e crítico literário, e Pardal Mallet é mencionado, por ser
um dos personagens ficcionalizados em A Conquista (1898), de Coelho Netto.
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românticos que se ignoravam, mas que nem por isso deformavam menos a realidade. Uns
românticos mais pedantes, sem a ingenuidade dos outros.” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, 126).
Neste artigo pretendo, ainda que preliminarmente, analisar como se deu a presença de
muitas das características típicas do romance romântico, e principalmente o de caráter
folhetinesco, dentro dos romances naturalistas publicados no Brasil no século XIX. Será dada
maior atenção ao romance O Mulato (1881), de Aluísio Azevedo, devido à importância do autor
para o nosso romance naturalista e por ser esse o romance que inaugura a escola em nossas
letras. Servirá este estudo preliminar como base para um estudo de maior fôlego, ainda em fase
de produção.
1. “É uma escrava que chora a teus pés”: o romântico folhetinesco em O Mulato, de Aluísio
Azevedo.
4
No capítulo 18 de O Filho do pescador (1843), de Teixeira e Sousa, é quebrado o mistério das origens de
Emiliano: “- Teu filho, que ainda vive, cujo primeiro nome fora Hilano, e mudado no crisma para Emiliano, aqui o
tens...
Isto mostrando-lhe o jovem caçador.
- Meu filho!
- Minha mãe! ...” (SOUSA, 1997, 124).
5
Todos os dois capítulos iniciais de Inocência (1872), de Visconde de Taunay são emblemáticos neste sentido.
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A cena em que surge a figura cadavérica de Domingas faz-nos lembrar de muitas das
passagens de Vicentina (1853), romance de Joaquim Manoel de Macedo. Neste, uma figura
semelhante habita uma ermida abandonada no Rio de Janeiro. O narrador assim descreve a
personagem:
Augusto ia respirar um instante, quando pela segunda vez lhe pareceu ouvir ruído na
porta da gruta.
- Alguém nos escuta, disse ele, como da outra vez.
- É talvez uma nova ilusão... respondeu a digna hóspeda.
- Não, minha senhora; eu ouvi distintamente a bulha de uma pessoa que corre, tornou
Augusto, dirigindo-se à entrada da gruta e observando ao derredor dela.” (MACEDO,
1987, 65-66).
Fica claro para o leitor que é Carolina quem escuta a conversa de Augusto e Ana, porém,
isso só será revelado pelo narrador próximo ao desfecho do romance.
As cenas excessivamente românticas também estão presentes em O Mulato. Uma das
mais notáveis acontece quando Raimundo vai se despedir de Ana Rosa pela última vez, e ela
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convida-o para que entre em seu quarto. Vamos retomar a cena, para depois fazermos algumas
considerações:
Acredito que apenas a leitura desta cena serviria para apontar o quanto de romântico
existe em O Mulato. Cabe colocar aqui a afirmação de Araripe Júnior, importante crítico do
século XIX e que acompanhou de perto o surgimento do Naturalismo no Brasil, a respeito do
romance O Mulato: “Ali há páginas tão suaves, tão doces, tão cheias de claridade rosicler,
alencariana, que sou levado a crer que o mergulho dado pelo poeta nas águas encapeladas do
Estige da nova escola foi apenas à superfície.” (ARARIPE JÚNIOR, 1958, 120).
A caracterização das personagens também é bastante romântica, e Raimundo é o melhor
exemplo disso. Lúcia Miguel-Pereira afirma ironicamente que “Joaquim Manoel de Macedo não
pôs maiores requintes na descrição dos seus ternos mancebos.” (MIGUEL-PEREIRA, 1950,
142). Na descrição da personagem presente no capítulo III do romance, podemos ver as fortes
tintas românticas utilizadas por Aluísio Azevedo para compô-lo:
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Raymundo tinha vinte e seis annos, e seria um typo acabado de brasileiro, se não foram
os grandes olhos azues, que puxara do pae. Cabellos muito pretos, lustrosos e crespos; tez
morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode;
estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais
caracteristica da sua physionomia eram os olhos – grandes, ramalhudos, cheios de
sombras azues; pestanas ericadas e negras, palpebras de um roxo vaporoso e humido; as
sombrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nankim, faziam sobresahir a frescura
da epiderme, que, no logar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de
uma aquarella sobre papel de arroz. (AZEVEDO, 1909, 48).
2. “A melodia duma harpa eólia tangida por mãos de serafins” 6: o romântico romance
naturalista brasileiro
6
CAMINHA, 1952, 45.
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Maria do Carmo logo se encanta pelo jovem estudante e encena na mente sua vida de
casada. Desenha-se o ideal da vida romântica:
Imaginava-se ao lado do Zuza, numa casinha muito bem mobiliada, com cortinas de
cretone e sala de jantar e um viveiro de pássaros. – Êle, de chambre e gorro sentado na
escrivaninha a fazer versos, feliz, despreocupado; ela com um robe-de-chambre todo
branco, fitinhas na frente de alto a baixo, cabelo solto, a ler o último romance da moda,
recostada na espreguiçadeira, sem filhos... Que vida! (CAMINHA, 1952, 46).
Porém, o romantismo aparente e a paixão que Zuza sente por Maria do Carmo quebram-
se repentinamente em um único capítulo da narrativa. Passa assim o herói a ser quase um vilão,
mais interessado em seu bem-estar pessoal e em sua posição frente à sociedade, do que em casar-
se com a normalista:
Seus ideais sobre o casamento são outros, bastante diversos dos de Maria do Carmo. Para
ele, casamento está intimamente relacionado com uma convenção social, que fornece um status,
uma figuração perante a sociedade:
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Quanto às mulheres de vida alegre, detestava-as; tinha gasto muito dinheiro, precisava
casar, mas casar com uma menina ingênua e pobre, porque é nas classes pobres que se
encontra mais vergonha e menos bandalheira. Ora, Maria do Carmo parecia-lhe uma
criatura simples, sem essa tendência fatal das mulheres modernas para o adultério, uma
menina que até chorava na aula simplesmente por não ter respondido a uma pergunta do
professor! Uma rapariga assim era um caso esporádico, uma verdadeira exceção no meio
de uma sociedade roída por quanto vício há no mundo. Ia concluir o curso, e, quando
voltasse ao Ceará, pensaria seriamente no caso. A Maria do Carmo estava mesmo a
calhar: pobrezinha, mas inocente... (CAMINHA, 1952, 96).
Maria do Carmo é na realidade para Zuza um tipo de mulher com a qual deseja se casar,
não uma mulher pela qual está perdidamente apaixonado. Quando seu possível caso com a
normalista ganha as páginas da imprensa local, e passa a ser assunto central das discussões e
fofocas feitas pela sociedade cearense, Zuza decide ir embora. E conclui:
É verdade que o seu amor não era lá para que se fizesse um amor extraordinário, uma
dessas paixões incendiárias que decidem do futuro de um cristão, mas, tinha a sua
simpatia por âqueles olhinhos ternos como os de uma santa, lá isso tinha... (...) Com que
facilidade a Maria do Carmo, aliás, uma das mais comportadas, entregava-lhe a face para
beijar e escrevia-lhe cartinhas perfumadas, cheias de juras e protestos de amor! Se fôsse
outro, até já podia ter feito uma asneira... Arrependia-se agora de não ter aproveitado os
melhores momentos... Grandíssimo calouro! podia ter desfrutado a valer. (CAMINHA,
1952, 182).
Conclusão
Carece o Naturalismo, sem dúvida alguma, de uma avaliação mais abrangente dentro de
nossa literatura. Quase sempre é avaliado tendo em vista a ideia da importação de ideias e fica
assim perdido entre duas ideias contrárias: ou é louvado pelo que tem de semelhante aos
romances de Zola e de Eça de Queirós, ou combatido pelo que tem de diferente. Como afirmado
no início deste artigo, não percebe boa parte da crítica que entre nós o Naturalismo teria que se
modificar caso quisesse sobreviver. Um crítico de excelente visão, como Araripe Júnior, já havia
percebido isso em 1888. Apontava o quanto teria que se modificar o Naturalismo, opondo um
naturalismo quente (o brasileiro), a um naturalismo decadente (francês). E ironiza: “Emigrando
para o Brasil, o naturalismo não podia deixar de passar por uma modificação profunda. Zola,
neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para adaptar-se ao
sentimento do real, aqui.” (ARARIPE JÚNIOR, 1978, 126).
Mesmo nosso maior crítico literário, Antonio Candido, não consegue avaliar
positivamente essa mudança pela qual o Naturalismo teve que passar em nossas letras:
Daí a dupla fidelidade dos nossos romancistas – atentos por um lado à realidade local, por
outro à moda francesa e portuguesa. Fidelidade dilacerada, por isso mesmo difícil, que
poderia ter prejudicado a constituição de uma verdadeira continuidade literária entre nós,
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já que cada escritor e cada geração tendiam a recomeçar a experiência por conta
própria, sob o influxo da última novidade ultramarina, como se viu principalmente no
caso do Naturalismo.
Significativa, com efeito, é a circunstância do romance post-romântico haver renegado o
trabalho admirável de Alencar, não falando nas duas excelentes realizações isoladas que
foram as Memórias de um Sargento de Milícias e Inocência, para inspirar-se em Zola e
Eça de Queirós. A conseqüência foi que os nossos naturalistas, com a exceção de Raul
Pompéia e Adolfo Caminha, caíram nos mesmos erros dos românticos (sobretudo Aluísio
Azevedo) sem aproveitar a sua lição. (CANDIDO, 1981, 117). (Grifos meus).
Antonio Candido ao afirmar que cada geração tende a recomeçar por conta própria uma
escola, parece isolar o Naturalismo de nosso Romantismo, afirmação confirmada ao colocar que
nossos naturalistas renegaram o trabalho de José de Alencar. Como vimos ao longo deste artigo,
nosso Naturalismo foi sim devedor da escola anterior. Como aponta Nelson Werneck Sodré:
É interessante reler qualquer dos poucos livros que o naturalismo nos deixou e verificar,
quase página a página, como o licor romântico escorre de quase tôdas, como está presente
na forma e no conteúdo, como se apresenta congraçado ao naturalismo, como lhe disfarça
as arestas, como ameniza os seus contôrnos. (SODRÉ, 1965, 230).
Mesmo que Nelson Werneck Sodré, no mesmo parágrafo, avalie como um atraso de
nossa literatura esta dependência romântica do Naturalismo, e como sendo o Romantismo a
escola que “atendia às parcas exigências artísticas de nossa gente” (SODRÉ, 1965, 230), parece
interessante apontar o excerto anterior como um primeiro passo na percepção de como se deu o
Naturalismo entre nós. Mesmo que brevemente, foi esta a tentativa ao longo deste artigo.
Pensando a tradição de nosso romance naturalista a partir de nomes menores e maiores, podemos
avaliar com mais clareza a importância desta escola no Brasil. Escola que permanece como algo
recorrente em nossas letras, chegando até a ficção dos anos 30 e os romances dos anos 70. Que
esse artigo tenha sido uma primeira e frutificante tentativa de se pensar de outra maneira o
Naturalismo dentro da literatura brasileira.
Referências
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1977.
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ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Obra crítica de Araripe Júnior. Volume 1: 1868-1887.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Casa de Rui Barbosa, 1958.
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Araripe Júnior: teoria, crítica e história literária. Rio de
Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978.
AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro Editor, 1909.
AZEVEDO, Aluísio. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.
AZEVEDO, Sânzio de. Dois livros raros de Adolfo Caminha. Introdução. In. CAMINHA,
Adolfo. Tentação. No país dos ianques. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza: Academia
Cearense de Letras, 1979.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2003.
CAMINHA, Adolfo. A Normalista. São Paulo: Jornal dos Livros, 1952.
CAMINHA, Adolfo. Tentação. No país dos ianques. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza:
Academia Cearense de Letras, 1979.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. Volume 2. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1981.
MACEDO, Joaquim Manoel de. A Moreninha. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
MACEDO, Joaquim Manoel de. Vicentina. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1944.
MALLET, Pardal. Hóspede. São Paulo: Editora Três, 1974.
MIGUEL- PEREIRA, Lúcia. História da Literatura Brasileira- Volume XII, Prosa de Ficção (de
1870 a 1920). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1950.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira – Realismo. São Paulo: Cultrix, 1983.
PACHECO, João. O Realismo. A Literatura Brasileira. Volume III. São Paulo: Cultrix, 1971.
RIBEIRO, Júlio. A Carne. São Paulo: Editora Três, 1972.
SODRÉ, Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1965.
SOUSA, Antônio Gonçalves Teixeira e. O filho do pescador. Rio de Janeiro: Artium, 1997.
SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual Romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
TAUNAY, Visconde de. Innocencia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1915.
TEÓFILO, Rodolfo. A fome. Violação. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza: Academia
Cearense de Letras, 1979.
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Além da narrativa em si, outros elementos nos apontam para uma leitura
diferenciada dessa (auto) biografia. O próprio título nos remete ao duplo: Vida-vida. A
vida de Maria Helena e de Lúcio? A vida de Maria Helena e a vida dela com o irmão
doente? São duas vidas juntas.
O prefácio também já anuncia a forte presença que Lúcio Cardoso vai ter na
narrativa. O texto é de Clarice Lispector, grande amiga do escritor mineiro e foi
publicado inicialmente no jornal do Brasil em 1969. Clarice fala das duas saudades
tristes que teve do amigo para no fim dirigir-se à Maria Helena:
Helena Cardoso, você que é uma escritora fina e que sabe pegar numa
asa de borboleta sem quebrá-la, você que é irmã de Lúcio para todo o
sempre, porque não escreve um livro sobre Lúcio? Você contaria de
seus anseios e alegrias, de suas angústias profundas, de sua luta com
Deus, de suas fugas para o humano, para os caminhos do Bem e do
Mal. Você, Helena, sofreu com Lúcio e por isso mesmo mais o amou
(CARDOSO, 1973, p.ix).
Vimos que o pacto proposto por Lejeune não resolve toda questão
autobiográfica. A quase junção desses dois gêneros poderia ser explicada devido à
característica marcante que é a alteridade. Há o outro que é o próprio biografado – em
relação ao biógrafo (autor). Aquele de quem se fala que, mesmo se tratando da mesma
pessoa, é diferente de quem fala. Há os outros dentro da história – e neste caso o outro
que mais se evidencia é o irmão. Há, por último, o leitor. Este a quem a fala de um eu se
dirige, mas um eu que tem o controle do que expor e do que silenciar.
Diante disso, percebemos nas memórias de Maria Helena Cardoso parte da vida
de Lúcio. Em certo momento da narrativa ela diz: “É bom reagir, dizer comigo mesma
que devo viver a minha vida, mas como? As nossas se acham de tal modo entrelaçadas
que não consigo separar a minha para vivê-la sozinha” (CARDOSO, 1973, p.102-103).
É importante salientar que não se trata aqui de autobiografia e biografia, mas
sim desta última dento da primeira. Maria Helena Cardoso não para a narrativa de sua
própria história para contar a do irmão. Parte da vida deste é que está inserida nas
memórias dela. Esse entrelaçamento de biografia e autobiografia poderia ser afirmado a
partir da importância que esse irmão ocupa na vida e na narrativa de Lelena que conta
suas memórias. A fronteira entre os gêneros neste caso torna-se, portanto, ainda mais
tênue na medida que um outro se insere significativamente no espaço de um eu.
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Referências
BAKHTIN, Mikhail. O todo significante do herói. In: Estética da criação verbal. São
Paulo, Martin Fontes, 1992, p. 153-200.
CARDOSO, Maria Helena. Vida-vida: memórias. Prefácio de Clarice Lispector. Rio de
Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1973.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI: o minidicionário de
língua portuguesa. 5ª ed. rev. ampliada – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita M.
G. Noronha. Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
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Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo dos
de lança em cabido, adarga antiga e galgo corredor.
Cervantes
― Ché! ― exclamou Emília. ― Se o livro inteiroé nessa perfeição de língua, até logo! Vou
brincar de esconder com o Quindim. “Lança em cabido, adarga antiga, galgo corredor”… Não
entendo essas viscondadas, não…
― Pois eu entendo ― disse Pedrinho. ― Lan ça em cabido quer dizer lança pendurada em
cabido; galgo corredor é cachorro magro que corre e adarga antiga é... é...
Monteiro Lobato
A validade da leitura dos clássicos nas escolas, no Brasil, tem suscitado discussão há
muito, mas ainda não se esgotou.
Tradicionalmente associados à alta cultura, os clássicos são aqueles que servem de
modelo, que são paradigmas para escritores e críticos, mas também “são livros que
exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também
quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo
ou individual” (CALVINO, 2007, p.10). Ou seja, a leitura dos clássicos contribui para a
formação do indivíduo. É a partir dessa certeza que se discute a leitura dessas obras por
crianças e a pertinência das adaptações que são feitas, com a intenção de facilitar a
leitura.
Neste artigo pretende-se apresentar algumas das releituras dos clássicos feitas por
dois escritores brasileiros- Monteiro Lobato e Pedro Bandeira-, procurando discutir a
validade da leitura dessas obras em sala de aula.
O texto se constrói a partir dos pressupostos da Estética da Recepção, envolvendo
principalmente os conceitos de horizonte de expectativa e de repertório, como suporte
para as discussões sobre a validade das adaptações.
Serão discutidas as obras Dom Quixote das crianças e A marca de uma lágrima e
Agora estou sozinha, a primeira uma adaptação da obra de Cervantes, feita por
Monteiro Lobato, a segunda, uma releitura de Cyrano de Bergerac, de Edmond
Rostand, e a terceira, uma releitura de Hamlet, ambas feitas por Pedro Bandeira.
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Por volta de 1880, Carl Jensen, jornalista e professor, um alemão que se mudou para
o Brasil ainda jovem, traduziu obras como Robson Crusoé, As Aventuras de Gulliver,
As aventuras do celebérrimo barão de Münchhausen e Dom Quixote, destinando-as aos
jovens leitores. Naquela época, a facilitação da vida do leitor não era o foco principal
dos autores, como indicam os textos escritos por Olavo Bilac, Coelho Neto ou Júlia
Lopes de Almeida, alguns dos nomes pioneiros na produção de livros infantis no Brasil.
Isso provavelmente se deve ao fato de que o conceito de leitor, assim como o de criança,
no início do século XX, eram vistos de forma completamente diferente da como são
vistos hoje.
Cerca de cinqüenta anos depois das traduções de Jensen, em 1936, Monteiro Lobato
lançou uma adaptação da obra de Cervantes: Dom Quixote das crianças. O projeto era
antigo, pois em carta a seu amigo Rangel, em 1925, Lobato já falava em uma possível
tradução da obra.
Para Lobato, a tradução não devia ser ao pé da letra, antes, o tradutor deveria ter a
“liberdade de melhorar o original” (ALMEIDA PRADO, in LAJOLO &
CECCANTINI, 2008, p. 328), por isso, Dom Quixote das crianças se constrói numa
linguagem abrasileirada, facilitada para a compreensão infantil. Na história, o livro
antigo é encontrado por Emília, que solicita a leitura. Mas, quando Dona Benta começa
a ler, a reação da boneca ao estilo da tradução feita em Portugal, há muitos anos, pelos
Viscondes de Castilho e de Azevedo, leva a senhora a optar pela adaptação:
- Meus filhos- disse Dona Benta- esta obra está escrita em alto estilo,
rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se
tornou clássica. Mas como vocês não tem a necessária cultura para
compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a
história com palavras minhas. (LOBATO, 1968, p.12)
Desse modo, Dona Benta passa ser a narradora das histórias de Dom Quixote, que
causa reações nos ouvintes. Recepção e obra se alternam com os acontecimentos
vividos no Sítio e, durante a leitura, Dona Benta, procurando facilitar a compreensão
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das crianças, associa ao texto informações sobre o momento em que a obra foi escrita,
referências a outros escritores, tudo isso em linguagem bem acessível.
A obra de Cervantes está contida no texto lobateano, com o qual se mistura. Os
episódios são selecionados, dando-se preferência aos aspectos cômicos da obra, que
além de estar em linguagem simples, é resumida e, portanto, mais adequada ao leitor
infantil que aqueles dois grossos volumes citados por Emília. Trata-se, pois, de uma
obra que pretende seduzir o leitor e que pode ser vista como parte do projeto lobateano
de formação de leitores.
Durante a contação, quando uma das crianças não entende alguma palavra, dirige-se
a Dona Benta, que a explica:
Nota-se que Dona Benta para por instantes a história para explicar à neta o
significado da palavra, mas logo depois a continua, emendando o enredo de Cervantes
com as curiosidades infantis. Nesse sentido é que a obra se torna antropofágica, como
afirma Almeida Prado, no texto contido no livro Monteiro lobato livro a livro,
organizado por Marisa Lajolo e João Ceccantini, pois os textos se misturaram, não é um
Dom Quixote de Cervantes nem de Lobato, tornar-se um outro, o das crianças, que
participam da construção, com perguntas, comentários, reflexões.
Ao permitir que as crianças façam perguntas e tenham as respostas, Lobato valoriza a
criação de um repertório que permita ao leitor a compreensão do texto. Narizinho,
Pedrinho e Emília são os leitores que necessitam de um mediador para que
compreendam o texto.
O repertório de um leitor é composto por suas experiências anteriores, incluindo seus
conhecimentos variados, como o literário e o de mundo. É ele que permite às pessoas
leituras diferentes de um mesmo texto, pois cada um, na hora de ler, irá buscar em seu
repertório as informações de que dispõe e que o ajudarão a dar sentido ao que leu.
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Como cada sujeito tem experiências diferentes, os espaços em branco do texto darão a
possibilidade de que cada um o complete de uma forma.
Ao introduzir na narrativa as informações fornecidas aos netos de Dona Benta,
Lobato as estende também aos leitores mirins de seu tempo, que, assim como os
personagens do Sítio, não teriam condições de entender a obra de Cervantes sem a
mediação de um adulto. Não se pode esquecer que Dom Quixote, já naquela época, fora
escrito há séculos e, como sabemos, a leitura de uma obra num tempo muito distante de
sua produção pode levar o leitor a fazer uma leitura muito diferente daquela feita à
época em que o texto foi escrito. Além disso, o leitor modelo do texto de Cervantes não
era, certamente, a criança, para a qual o Lobato e Jansen endereçavam seus textos. Sem
as explicações dadas por Dona Benta o texto seria apenas parcialmente compreendido
pelos leitores, tanto os do Sítio quanto os leitores de Lobato.
Apesar de, a princípio, escrever para a Escola, Lobato tinha uma concepção de escola
que passava pelo prazer e foi por causa dessa concepção que ele procurou dar a seus
livros um formato mais acessível ao leitor de seu tempo, mesmo contrariando as
tendências vigentes.
Ao assumir essa atitude, Lobato interferiu no horizonte de expectativas de sua época.
O horizonte de expectativas é responsável pela primeira reação do leitor à obra, pois se
encontra na consciência individual como um saber construído socialmente e de acordo
com o código de normas estéticas e ideológicas de uma época. Naquela época, as obras
escritas para crianças eram muito diferentes das que ele escreveu, por isso seus livros
causaram reações diversas, que foram da aceitação e adoção em escolas de alguns
estados até a proposta da queima de livros, como ocorreu em São Paulo, com a edição
de Peter Pan, outra adaptação feita pelo escritor.
A proposta de Lobato, a despeito das reações negativas, solidificou-se e transformou-
se num novo paradigma. Segundo as teses desenvolvidas por Jauss em sua conferência
de 1969, que são consideradas o marco inicial da Estética da Recepção, as grandes obras
serão aquelas que conseguirem provocar o leitor de todas as épocas, permitindo novas
leituras em cada momento histórico. Foi exatamente o que fez Lobato, ao aproximar o
texto clássico do público infantil, pois sua obra, ainda hoje, pode ser lida, compreendida
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e admirada pela criança brasileira, que também se beneficiará das informações dadas
por Dona Benta. Além disso, as adaptações de obras clássicas para crianças, no Brasil,
tornaram-se uma opção das editoras, que investem, cada vez mais, em releituras e
adaptações livres dos clássicos, tanto para crianças quanto para jovens. Nesse contexto
dialógico entre o texto clássico e o juvenil é que se destaca o nome de Pedro Bandeira, o
outro autor cuja obra serve de reflexão sobre a validade ou não da leitura das adaptações
em sala de aula.
2- Os clássicos no final do século XX
A leitura dos clássicos, a cada dia, perde espaço entre jovens e crianças. Embora se
reconheça a importância do contato com esses textos, a Escola de hoje, preocupada com
a criação do gosto pela leitura, cai na armadilha editorial de, cotidianamente, apresentar
textos mais fáceis, que pouco exigem do leitor, para que se crie um tal “hábito de
leitura”.
Além de concordar com estudiosos da leitura de que os hábitos são atitudes
mecânicas e que ler não pode ser visto assim, acredito que essa ditadura da facilidade
está interferindo muito no processo de formação de nossos alunos, cujo repertório de
leitura se limita, quase que totalmente, a coleções pertinentes à literatura de
entretenimento. Nada contra a literatura de entretenimento, desde que ela seja parte do
processo e não a finalidade dele, como vem acontecendo em nossas escolas.
Em 1971, quando a Lei de Diretrizes e Bases 5692 decretou a leitura obrigatória, nas
escolas, de autores brasileiros, ocorreu aquilo que costumamos chamar de o “boom” da
literatura infantil no Brasil. Surgiram muitos autores que viram na Escola um meio de
ganhar dinheiro com a literatura e, nesse total, várias foram as tendências que surgiram,
umas voltadas para o estético, outras marcadas por textos utilitários, umas mais
pedagógicas que outras; em quase todas , a proposta da facilitação da leitura.
No rastro da Escola e de suas necessidades, as editoras passaram a publicar séries,
que pudessem ser “adotadas” na Escola. Então, em 1973 a Ática criou a Série
Vagalume, composta, a princípio, pelos textos já consagrados pela crítica, como A ilha
perdida, de Maria José Dupré, O escaravelho do diabo, de Lúcia Machado de Almeida,
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Cem noites tapuias, de Ofélia e Narbal Fontes , e vários outros que, na primeira década
de existência da série, foram resgatados e lançados para os leitores juvenis.Somente na
década de 80 seriam criados textos especificamente para a coleção.
Seguindo a tendência de livros para jovens, em 1984, a Scipione criou a série de
paradidáticos denominada Reencontro,que, como afirma a própria editora, é “formada
pelos maiores clássicos da literatura universal recontados por escritores de talento, numa
linguagem acessível e agradável”
(http://www.scipione.com.br/conhecendoascipione.asp?bt=1Acesso em 1 de abril de
2010) .
Hoje, a série tem mais de setenta títulos, adaptações feitas por autores renomados,
como Ana Maria Machado, Carlos Heitor Cony e outros tantos. As obras originais são
lidas e adaptadas para uma linguagem acessível aos jovens brasileiros do século XX,
sempre em prosa. Dessa maneira, Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare, ganha
versão em prosa, como acontece também com Otelo, tragédia do mesmo autor inglês.
São mantidos, além do título, personagens e enredo, trazendo ao jovem leitor a
impressão de que ele está, realmente, lendo a obra dos grandes escritores, quando na
verdade o texto lido não é mais que uma paráfrase do original, onde as idéias principais
do texto são mantidas, embora se modifique a linguagem, embora as palavras sejam
outras. Um cotejo cuidadoso, entre o original e o novo texto revela que a facilitação tão
explícita na linguagem deixa também de lado elementos culturais, marcas da época em
que o texto foi escrito, e que o tornaram “clássico”, já que os temas se repetem na
literatura das várias épocas, sem que seja garantia de permanência. Isso acontece porque
a proposta inicial da série não é traduzir o original, mas parafraseá-lo, de modo a torná-
lo acessível ao leitor jovem.
Essa coleção foi estendida também para o público infantil e hoje já existe a
Reencontro Infantil, em que a ilustração acompanha o texto adaptado para o público a
que se destina, ou seja, crianças a partir dos 9 anos, como nos indica a contracapa.
Depois da Scipione, outras editoras lançaram adaptações dos clássicos para jovens,
como a Ática, que criou a coleção Descobrindo os clássicos. Nessa coleção, os autores
não fazem apenas uma releitura da obra clássica; antes, criam uma história que serve de
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Observe-se que a proposta da autora parece ser semelhante à de Lobato e das editoras
aqui relacionadas: a intenção final é a leitura do texto original, não a substituição pela
adaptação. Seria necessário que essa idéia fosse difundida entre os professores e que o
estigma de texto clássico como texto “chato” fosse deixada de lado. Infelizmente,
muitos são os professores que concordam com o senso comum, embora devessem
desempenhar o papel de mediadores de leitura.
Há ainda propostas de adaptações do texto clássico para os quadrinhos, como faz a
Jorge Zahar Editor, em cujo catálogo se podem encontrar obras como Em busca do
tempo perdido, de Marcel Proust, adaptadas por Stéphanr Heut, encarregada do texto e
das ilustrações.
Uma outra possibilidade de contato do leitor juvenil com os clássicos é aquela que
tem sido desenvolvida por Pedro Bandeira. Ao publicar, em 1985, o livro A marca de
uma lágrima, Bandeira traz a proposta da releitura de um clássico, em que o diálogo
entre as obras só é desvendado pelo paratexto, em forma de posfácio, intitulado Autor e
Obra, em que se lê:
(...) Decidi então que esta história de amor seria a adaptação moderna
e brasileira de Cyrano de Bergerac. E o meu Cyrano transformou-se
em Isabel, uma menina de 14 anos, criativa, inteligente, maravilhosa,
mas cheia de problemas. (BANDEIRA, 1986, p.95)
Considerações Finais
A discussão sobre a validade da adaptação dos clássicos para crianças está longe de
acabar. Em escolas, cursos, palestras basta tocar no assunto para que a discussão se
inflame entre os grupos dos prós e dos contra.
O fato é que o tema deve ser tratado com atenção. Se a intenção é, como quer Ana
Maria Machado, fazer da leitura das adaptações uma ponte para a leitura dos clássicos, a
figura do professor como mediador de leitura torna-se indispensável.
Parece claro que, sozinhos, poucos serão os alunos que buscarão o texto original para
o cotejo, na época em que estão fazendo a leitura da adaptação. Esta terá, então, a
finalidade de “plantar” o texto na memória de leitura da criança que, quando adulto, já
mais preparado para o contato com o original, poderá realizar-se enquanto leitor crítico,
capaz de entrar nos bosques clássicos.
Também ficou claro, no percurso deste artigo, que há grandes diferenças entre as
obras que se propõem a adaptar os clássicos. Cabe, portanto, mais uma vez, ao
professor, a escolha da abordagem que fará, do trabalho que desenvolverá com os
alunos, a partir do texto escolhido.
Nesse sentido, a coleção Descobrindo os Clássicos, hoje, parece ser a que mais
propicia o cotejo entre o original e a adaptação, garantindo que o leitor tenha acesso ao
texto original.
Percebe-se que a proposta de Lobato como ponto de partida e a introdução do texto
original como a perspectiva de uma leitura escolarizada, que terá jovens como leitores,
não mais crianças.
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Referências
ALMEIDA PRADO, Amaya O. Dom Quixote das crianças e de Lobato. In: Lajolo,
Marisa & Ceccantini, João. Monteiro Lobato livro a livro: Obra infantil. São Paulo: Ed
UNESP, 2008.p. 325- 338.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Molin. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
LOBATO, Monteiro. Dom Quixote das crianças. São Paulo: Ed Brasiliense, 1968.
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos desde cedo. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2002.
Introdução
Simulacro e real
1
Todas as citações referem-se a esta edição: PIÑON, Nélida. A doce canção de Caetana. Rio de
Janeiro: Record, 1997, sendo indicadas apenas pelo número da página entre parênteses.
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povoam o porão do hotel provocam delírios, tornando mais intenso o desejo de Polidoro
de reconstruir, aos sessenta anos, uma paixão que dominara seus anos dourados.
A busca pelo colchão que estava na suíte do quinto andar, há vinte anos, torna-se o
símbolo mais expressivo do processo de mistificação que recobre o retorno de Caetana.
Há que reconhecer, numa pilha enorme, o colchão autêntico que estava sobre a cama da
suíte. As reminiscências evocadas por Virgílio desencadeiam o desalento, e Polidoro
recobra a consciência da passagem do tempo: “Aos poucos desvanecia-se sua exaltação.
Nenhuma voz interior ditava-lhe sentimentos capazes de substituir os antigos, quando
tinha quarenta anos”. (p.79).
A memória privilegiada de historiador confere a Virgílio um papel central na
reconstituição da suíte, recompondo detalhes como o jarro com flores amarelas e o
baralho de cartas. O denodo do professor eleva-o ao primeiro plano da encenação,
transformando-o em figura principal no cenário que está sendo construído, ofuscando a
presença de Polidoro, derrotado pela inclemente passagem dos anos.
A mistificação também envolve a preparação para a chegada do trem a Trindade,
revestida de toda a discrição, sem apitos e muito rapidamente, a fim de que os possíveis
curiosos se acreditassem vítimas de uma ilusão. Rosset (1998), ao discutir a ilusão
oracular, chama a atenção para essa modalidade de engano, enquanto a atenção é
desviada para um lado, a ação ocorre exatamente no oposto. Ou ainda, essa ilusão
refere-se a um artifício através do qual é burlada a consciência do enganado. Resultado
de uma ilusão, o afastamento do real não domina apenas Polidoro e Caetana, mas as
demais personagens que circundam o casal – as prostitutas da Casa da Estação e os
amigos de Polidoro – todos engajados na reconstrução de uma réplica que elida a
passagem dos anos.
Rosset considera essa ilusão como produto de uma percepção inútil, ainda que a
realidade esteja posta, o iludido insiste em não vê-la, ou, se a vê, percebe-a de maneira
deformada, uma vez que reconhece apenas os elementos que se identificam com o seu
desejo. O ocultamento de propriedades da realidade produz no sujeito a negação das
consequências dessa realidade ou, ainda, como considera o autor, a percepção se
subdivide em dois aspectos, um teórico, que consiste naquilo que é visto, e um prático,
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aquilo que é feito. Dessa maneira, não há relação entre a situação e as ações dela
derivadas.
Depois de grande expectativa, a chegada de Caetana Toledo impõe o fim de vinte
anos de ilusões. Aparece na boléia de um caminhão, frustrando a comitiva que fora
recebê-la na estação ferroviária. Essa foi a primeira de uma série de desilusões,
constituindo, também, o desmantelamento de um mundo inventado no qual a artista
reinava soberana. A idealização presente no imaginário de cada um não suporta a
realidade que se instaura a partir dos projetos de Caetana, por isso o pequeno universo
reunido no Hotel Palace recorre à fantasia. A simulação envolve os amigos do
latifundiário, os funcionários do hotel, a dona da Casa da Estação e as Três Graças os
quais, conduzidos por Virgílio e Gioconda, inventam um enredo envolvendo Polidoro e
Caetana, a fim de satisfazer a necessidade de que a ilusão, acalentada por tanto tempo,
seja mantida. Polidoro, que a tudo assiste, sai sem revelar detalhes de seu encontro com
Caetana, o que, certamente, decepcionaria a todos, dimensionando a grande distância
existente entre devaneio e realidade. Novamente a questão do duplo se faz presente,
através da cisão entre realidade e fantasia: de um lado, o projeto de Caetana, de outro, a
permanência da ilusão dos amigos de Polidoro.
O sonho de Caetana tipifica um duplo de personagem, de acordo com suas palavras:
“Quero ser a Callas ao menos uma vez na vida. [...] maldita grega que há anos não me
deixa dormir. Por ela me consumo de inveja”. (p. 190). Essa revelação, verdadeiro
motivo de seu retorno a Trindade, consegue destruir os vinte anos de ilusão cultivados
por Polidoro. A recusa do pudim feito com duas dúzias de gemas evidencia sua
desesperança: “O que faremos de nossas vidas depois do pudim? disse ele, desolado,
sabendo de antemão que nenhuma resposta o ajudaria a manter vivo o sonho que se
alimentara com vinte anos de espera.” (p. 191).
Ainda que a realidade se mostre evidente, o iludido insiste em ver outra coisa em seu
lugar. É o caso de Polidoro que, não obstante a revelação de Caetana sobre o seu desejo
de interpretar uma ópera de Verdi, como se fosse a Callas, e precisasse dele apenas para
financiar o seu projeto, insiste em se ver como o macho ideal para ela: “Caetana veio do
Recife exclusivamente para me fazer uma declaração de amor. Ela quer ter certeza de
que não escolheu o homem errado para viver o grande amor de sua vida. O desafio que
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me lança agora é para macho só como eu”. (p. 205). Esse fragmento ilustra a tese de
Rosset (1998, p. 11), quando afirma “nada mais frágil do que a faculdade humana de
admitir a realidade, de aceitar sem reservas a imperiosa prerrogativa do real”. Embora
Polidoro não tivesse obtido do encontro na suíte do quinto andar do Palace Hotel mais
do que ficar com os cabelos desgrenhados e ter sido arranhado pelo gato de Caetana,
não hesita em colocar seu dinheiro e sua influência para cumprir os desígnios da diva,
sob a égide de uma cosmogonia mitológica eivada de equívocos e lugares comuns, que
possibilita a superposição da história do Brasil com da Rússia, identificadas no episódio
da cidade fantasma construída por Potenkin para ser vista e admirada pela rainha
Catarina.
O duplo de acontecimento é preparado com a pintura de painéis gigantescos os quais
devem ocultar o decadente cinema Íris, transformando-o em um opulento teatro grego
onde se apresentará Caetana Toledo, única e verdadeira artista de Trindade, naquele
que, talvez, “fosse o único local da terra que guardava dela a memória de um estrelato
alimentado a cada pôr-do-sol pelo amor de Polidoro”. (p. 209). A idéia de simulacro
materializa-se em um teatro de mentira, que ilude, especialmente, Polidoro, enquanto os
demais, em busca de uma última quimera, mergulham numa fantasia coletiva, sem
prevenir-se dos ardis do destino que se produzirá não obstante os esforços para frustrá-
lo.
Muito embora Caetana seja a mentora dessa farsa, também é sua maior vítima. Ao
mesmo tempo, a artista é aquela que ela é (Caetana, artista de um circo mambembe) e
aquela outra a quem ela busca (a Callas, cantora lírica), configurando um duplo
predestinado à derrota. A frustração por não ter sido ensinada a cantar e por ter
fracassado ao apresentar-se em um programa de calouros na Rádio Nacional, quando
ainda era criança, marcaram sua vida, por isso ela, no crepúsculo de seus dias, decide,
numa cartada decisiva (as cartas de baralho têm grande valor alegórico tanto para ela
quanto para Polidoro), montar um espetáculo lírico. Ainda que mentirosa, a
representação consistiria na materialização de um sonho acalentado desde menina pelas
fantasia de tio Vespasiano que a criara e lhe ensinara as artes do circo.
O simulacro então montado em Trindade tem a possibilidade de evidenciar o
trabalho artístico de Caetana que transforma em arte o espaço vulgar da cidadezinha,
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Conclusão
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REFERÊNCIAS
CAMPELLO, Eliane T. A. O Künstlerroman de autoria feminina: a poética da artista
em Atwood, Tyler, Piñon e Valenzuela. Rio Grande, RS: Ed. da Furg, 2003.
PIÑON, Nélida. A doce canção de Caetana.. Rio de Janeiro: Record, 1997.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Apres. e trad. BRUM,
José Thomaz. Porto Alegre: L&PM, 1998.
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Introdução
a conclusão de que o homem negro era biologicamente inferior passou a ser natural”. A
descoberta do pertencimento do homem ao universo biológico foi subvertida, levando a
dedução errônea de que a inferioridade do homem negro era de natureza biológica. Essa
visão de mundo através de lentes raciais se impregnou de tal forma no imaginário
popular que chegamos a pensar que todas as sociedades de todos os tempos também o
fizeram. Contudo, as diferenças detectadas entre as variedades de tipos humanos nem
sempre foi fator de exclusão. As diferentes concepções do mundo ao longo da história
atribuíram valores diversos as variadas características fenotípicas humanas. Os gregos,
por exemplo, apesar de reconhecerem a óbvia variedade de peculiaridades físicas entre
as populações, não as viam como diferenças raciais. A distinção preponderante na
sociedade grega era entre ‘civilizados’ e ‘bárbaros’, e sua concepção acerca de política e
civilidade baseava-se no pertencimento a sociedade grega e no domínio da língua grega.
A Idade Média, período pautado pelos dogmas religiosos cristãos que dividiam a
realidade no binarismo ‘bem’ e ‘mal’, via no pertencimento ou não a religião cristã fator
de inclusão ou exclusão dos homens, sendo que a cor dérmica não tinha nenhuma carga
depreciativa.
As conquistas territoriais empreendidas nos séculos XV e XVI e o contato com os
habitantes do continente africano constituem-se em marcos da percepção da cor da pele
como fator de distinção entre europeus e africanos. A época das grandes viagens,
portanto, “inaugura um momento específico na história ocidental, quando a percepção
da diferença entre os homens torna-se tema constante de debate e reflexão”
(SCHWARCZ, 1993, p. 44). As narrativas de viagem aliavam fantasia e realidade, haja
vista as descrições dos ‘nativos’ como possuidores de costume e natureza diversos,
sendo o centro europeu o parâmetro de comparação. As transformações políticas e
econômicas ao longo do tempo aproximaram o critério de cor dérmica com a categoria
de raça, culminando com a valorização das características biológicas que ocorreria no
decorrer do século XIX.
descendentes de uma única ‘matriz’, diferenciada ao longo das gerações por influência
climática e por diferentes respostas ao que seu ambiente lhe impunha ou, ao contrário,
seriam as diferenças explicadas pela origem a partir de várias ‘matrizes’? A grande
questão a ser respondida era como poderiam todos os seres humanos possuir uma
natureza comum, se eram tão diversos nos aspectos físicos, sociais, culturais e
intelectuais.
do domínio europeu, deram início ao questionamento do poder das teorias raciais. Para
os antropólogos do século XX, costumes, rituais e hábitos das diferentes populações
humanas passam a adquirir importância em sua diferenciação dos demais. Apesar da
perda de crédito das teorias raciais, o pensamento racista ainda se mantinha arraigado,
haja vista a permanência da ‘diferença’ como parâmetro de divisão de indivíduos, como
se parâmetros culturais tivessem substituído os parâmetros biológicos. Para os
chamados antropólogos culturais,
Nos anos 1970 e 1980 a noção de etnicidade ganhou força no debate acadêmico
sobre as diferenças, embora essa mudança de foco pareça não ter se refletido no
pensamento popular, ou seja, o conceito biológico de raça continuou arraigado no
pensamento das pessoas. Enquanto a noção de etnicidade está fundada em elementos
culturais, historicamente determinados como religião e a língua, o conceito de ‘raça’,
por ser geneticamente determinado, parece ser uma idéia mais facilmente identificável,
daí sua permanência tão fortemente arraigada no imaginário popular, através do
discurso racista.
Portanto, mesmo que se digam inclusivas, a suposta convivência pacífica, bem como a
igualdade de direitos entre negros e brancos nas sociedades ditas multiculturais, como a
sociedade inglesa, contexto em que a obra de Levy é ambientada, é ilusória e a suposta
igualdade só funciona no mundo ideal, pois no mundo dos homens a cor dérmica continua
sendo fator de discriminação.
Fruit of the Lemon, o terceiro livro de Andrea Levy, publicado em 1999, aborda a
dificuldade enfrentada pelos negros britânicos, descendentes das ex-colônias em terem
sua identidade inglesa reconhecida numa sociedade racista que ainda tem dificuldade
em reconhecer, como parte de sua mítica identidade, seus filhos que fogem do
estereótipo do europeu branco.
Ambientado em Londres e na Jamaica, na década de 1980, o romance é narrado pela
voz da protagonista Faith, jovem negra, cujos pais, Mildred e Wade, deixaram a
Jamaica em busca de melhores perspectivas de vida na Inglaterra. Faith e o irmão Carl
foram educados em Londres sem que os pais lhes informassem a respeito das
motivações que os levaram a migrar para a pátria-mãe, nem sobre o que destino do
restante da família que permanecera na Jamaica, com os quais o único fio de ligação era
uma caixa de presentes que chegava à casa todo Natal.
Contrariando as expectativas dos pais que sonharam para a filha um casamento com
um noivo jamaicano, Faith deixa a casa da família para morar com os amigos Marion,
Mick e Simon, todos eles de pele clara, como pondera o pai na primeira visita a filha em
sua nova casa. No relacionamento com os colegas e seus familiares, temos indícios do
racismo velado que permeia as relações sociais naquele contexto, através de
comentários racistas, logo corrigidos, toda vez que se dão conta da presença de Faith.
Um dos indícios de racismo velado é retratado no episódio da ida de Faith, Mick,
Marion e seu pai a uma apresentação de Simon, seu colega de apartamento, em um pub
em Londres. Após uma série de performances, a última apresentação da noite fica por
conta de um poeta negro, de sotaque jamaicano que, ao subir ao palco, faz Faith
perceber que ambos são os únicos negros presentes no local. Ao anunciar o último
poema, o jovem é insultado pelo pai de Marion que se pronuncia em voz alta,
mostrando o quanto o fato de o artista ser negro o incomodava, deixando todos
constrangidos.
‘This is me last one’, the poet said and Marion’s dad said, ‘Good’, loud
enough for people around to look over our table. He was sitting back
with his arms folded and a smirk on his face that I recognized from
teachers at school when they were waiting for the cheeky kids to be
quiet (LEVY, 1999, p. 92).
Eu disse a ele, ‘como acha que Faith se sente?‘ – ele é tão insensível.
Ele simplesmente disse, como sempre, ‘Oh, Faith é diferente’. E eu
disse, ‘Não, ela não é. Faith é minha melhor amiga e ela é negra’. Mas
sabe, isso é cultural … eles gostam de você Faith. É uma questão de
educá-los […] eu estou sempre lutando com eles. Mas eles cresceram
assim.
Mesmo que poucos admitam abertamente sua rejeição aos negros e mesmo que
ataques ostensivos contra afro-descendentes e outras minorias sejam rechaçados e
expostos pela mídia, esse episódio representa o quanto essa prática continua permeando
as relações sociais através de humilhações sutis, através da negação aos mesmos direitos
dos cidadãos brancos, através de uma série de atitudes racistas que Shohat (1994, p. 49)
chama de “multiformes, fragmentadas e esquizofrênicas”.
Shohat (1994) utiliza a seguinte terminologia para distinguir os variados ‘tipos’ de
racismo: racismos exclusivos, ou de extermínio e inclusivos de exploração; entre
racismo explícito, expresso em atitudes hostis, e encoberto, no qual a hostilidade não é
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óbvia e direta; racismo inferencial, quando eventos que envolvem proposições racistas
são percebidos como inquestionavelmente naturais; e por fim a clássica divisão entre
racismo individual e institucionalizado, divisão problemática na opinião da autora, visto
o racismo não poder ser reduzido a
[...] uma simples questão de atitude, mas de um aparelho institucional e
discursivo construído historicamente através da desigualdade drástica
de distribuição de recursos e oportunidades, da divisão injusta da
justiça, da riqueza, do prazer e da dor. É mais um abuso de poder do
que um erro de lógica, mais uma destruição de esperanças e de vidas do
que de ‘atitudes’ incorretas (SHOHAT, 1994, p. 52).
Ao dizer que o pai ‘às vezes é um pouco racista’, atribuindo seu comportamento à
educação que recebera, Marion expõe além da questão de seu ‘racismo encoberto’ o
quão institucionalizado tais comportamentos individuais são, sua atitude não representa
um ato racista isolado, mas um comportamento tão arraigado no imaginário popular que
para pessoas que dividem seu modo de pensar passa a ser natural.
A viagem de Faith e Simon para um fim de semana na casa dos pais do rapaz é um
episódio que, além de demonstrar o racismo encoberto, também traz à tona ligações
entre Inglaterra contemporânea e o passado de exploração do Império. A imponência da
mansão da família é reflexo de sua descendência aristocrática: “Havia muitos cômodos
na casa dos pais de Simon. A casa era decorada com antiguidades [...] porta-retratos
pintados [...] Eles costumavam usar marfim para confecção desses porta-retratos, mas
hoje é proibido”. “There were lots of rooms in Simon’s parents’ house [...] The house
was also furnished with antiques […] painted portraits […] They used to use ivory for
these sort of portraits but you can’t nowadays” (LEVY, 1999, 121). A observação do
amigo acerca da proibição do uso de marfim na confecção de artefatos decorativos é
seguida por um intervalo de silêncio, consequência da lembrança da ligação entre o
passado colonial de exploração de terras de África, ou seja, dos ancestrais de Simon e os
de Faith. Naquele momento, a “presença de Faith é o elo entre o Império e a sociedade
inglesa, ainda ‘racializada’, da contemporaneidade” (BONNICI, 2009).
O encontro da protagonista, Simon e sua mãe com Andrew Bunyan, advogado amigo
da família, em um pub do vilarejo, naquele mesmo final de semana, é emblemático do
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‘Whereabouts are you from, Faith?’ ‘London, I said’. The man laughed
a little. ‘I meant more what country are you from?’ I didn’t bother to
say I was born in England, that I was English, because I knew that was
not what he wanted to hear. ‘My parents are from Jamaica.’ ‘Well, you
see, I thought that’, he began. ‘As soon as you walked in I thought I bet
she’s from Jamaica.’ (LEVY, 1999, p. 130)
‘Eu estava na Jamaica e encontrei esse cara […] cabelo rastafári [...] e
negro ... negro! […] mais negro que você […] seu nome era Winston
Bunyan, acredita nisso?’ Eu disse , ‘Bem, [...] Sua família
provavelmente tinha posse sobre esse homem e a família dele’ [...]
‘Não! Minha família nunca teve conexões como essa na Jamaica.
Minha família não tinha esse tipo de negócio.’
‘I was in Jamaica and there is this chap [...] dreadlocks […] And black
… black!’[…] ‘Darker than you […] His name was Winston Bunyan
Can you believe it? […] I said, ‘Well, […] Your family probably owned
his family once.’[…] ‘No! My family never had connections like that in
Jamaica. My family were not in that sort of business.’ (LEVY, 1999,
p.130-131)
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Essa dificuldade em aceitar a identidade britânica de uma pessoa negra não poderia
ser explicada pela lógica, pois se sabe que a relação entre caribenhos e ingleses não
começou com os imigrantes que navegaram no SS Empire Windrush, mas muito antes,
com o tráfico de escravos que enriqueceu muitas famílias aristocráticas inglesas e que
financiou a construção de cidades como Bristol e Liverpool. Essa ligação da história da
Inglaterra com o tráfico de escravos, certamente revelaria, em qualquer pesquisa da
genealogia familiar, ancestrais brancos em famílias negras e vice-versa, o que torna a
questão de identidade bastante complicada.
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Referências
ASHCROFT, B. et al. Key concepts in Post-Colonial Studies. London: Routledge, 1998.
BONNICI, T. Levy’s Fruit of the Lemon (1999) and the construction of identity.
Línguas e Letras, Cascavel, v. 10, n.18, 2009.
FANON, F. Pele Negra Máscaras Brancas. Trad. SILVEIRA, Renato da. Salvador:
EDUFBA, 2008.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2006.
HOFBAUER, A. Raça, cultura e identidade e o “racismo à brasileira”. In: BARBOSA,
L.M.(Org.). De preto a afro descendente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura
negra e relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos: EdUFSCAR, 2003.
LEVY, A. Fruit of the Lemon. New York: Picador, 1999.
MALIK, K. Strange Fruit: Why both sides are wrong in the race debate. Oxford:
Oneworld, 2008.
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O tema central deste texto compõe-se a partir dos paradigmas de construção de uma
técnica corporal que dialoga com a arte do século XXI. O ponto de partida é o trabalho
de ator, entendendo-o como objeto de conhecimento e enquanto processo de
comunicação. Uma dinâmica sustentada pela vivência e reflexão sobre a questão do
corpo do ator como seu instrumento fundamental de trabalho e esse corpo como
elemento expressivo. Aqui se pretende ampliar o conhecimento sobre a obra deste que
foi um divisor de águas para o trabalho de percepção e expressão corporal no teatro
brasileiro: Klauss Vianna. Tomar esse corpo consciente, de forma a sistematizar e
aprofundar os estudos em teatro embasados por esse trabalho corporal, sob a perspectiva
da metodologia do trabalho do ator contemporâneo, principalmente no que concerne ao
treinamento.
Klauss Vianna (1928-1992) foi bailarino, criador de uma técnica de princípios e
domínio do movimento. Apesar de seguir sistemas de regras e códigos da dança, sua
técnica transcende a arte para ser entendida como um caminho de autoconhecimento
para a expressão do homem no mundo. Nascido em Belo Horizonte, estudou dança e
desde pequeno se interessou pelo teatro. Dedicou quarenta anos de sua vida para a
pesquisa e o ensino do movimento corporal, contribuindo para a evolução da dança e do
teatro no Brasil. Estudou e trabalhou em São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, Rio de
Janeiro e por onde passou revolucionou a técnica e a linguagem da dança. Coreografou,
entre outros, espetáculos como Roda Viva, Hoje é dia de Rock, Mão na Luva, Clara
Crocodilo, Dadá Corpo, Bolero e foi preparador corporal de grandes nomes do teatro
brasileiro tais como Marília Pêra e Marco Nanini. Dirigiu a Escola Oficial de Teatro
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Martins Penna, no Rio de Janeiro, o Instituto Estadual das Escolas de Arte (INEARTE)
e a Escola de Bailados do Teatro Municipal de São Paulo. Recebeu vários prêmios,
dentre eles o Molière como melhor coreógrafo de teatro, na peça O Arquiteto e o
imperador da Assíria.
Klauss Vianna utilizou seus preceitos técnicos, criando uma vertente que se
disseminou na dança e no teatro brasileiro. Sua influência é resultado de seus estudos
que, por sua vez, direcionaram a sua metodologia como preparador corporal, ator,
diretor, coreógrafo e diretor de técnica corporal, impulsionando o advento da profissão
de preparador corporal no teatro brasileiro. Sempre se preocupou em mostrar que a
dança sai da sala de aula para a vida e talvez tenha sido o único a sistematizar uma
técnica de dança que se preocupasse com a anatomia do brasileiro e valorizasse suas
formas próprias de expressão. É fundamental ressaltar a importância de seu sistema de
idéias, consideradas radicais naquela época, mas que mostram sintonia com a
contemporaneidade. A análise de sua obra à luz de novas propostas teóricas nos ajuda
na compreensão e contextualização de sua prática.
Esse processo evolutivo proposto por Klauss é individual, mas o entendimento
alcançado por ele vai muito além da técnica, em direção aos processos de comunicação
do corpo. Estende-se por uma visão de mundo, paradigmas, conceitos, procedimentos,
exercícios, objetivos, estruturas, entre outros elementos, alcançando o nível de sistema,
aberto e dinâmico, generoso o suficiente para que outros sigam perseguindo a
criatividade e a expressividade compreendidas em sua pesquisa. É nesse sentido que a
dança se desenvolve no trabalho de Klauss: como expressão total de um corpo, num
dado momento, em relação com o ambiente, por meio de suas mudanças de estado
(NEVES, 2008: p.126). Sua experiência nos incita a ampliar as questões para além do
nível técnico, ampliando novas possibilidades criativas de movimento, sem perder de
vista as necessidades de cada novo ser que se propõe a perceber e compreender os
processos evolutivos da “dança que está em cada um de nós”, segundo fala do próprio
Klauss. A individualidade contida nos conceitos da técnica faz com que cada intérprete
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possa registrá-la em seu corpo na forma de movimento expressivo, sendo essa dança, o
próprio ser que a executa.
Pensar uma obra teatral a partir deste olhar permite-me trazer à tona os estudos e a
vivência sobre a consciência do movimento, desenvolvidos junto aos Vianna, de forma
a associá-los a novas descobertas que virão compor este novo trabalho, a fim de traçar
mapas corporais para uma nova e mais complexa estrutura cênica. “Se trabalho
enriquecendo minhas possibilidades musculares, eu sou o movimento e não apenas me
movo” (VIANNA, 1990: p. 87).O eterno espiral desenhado com o corpo em aulas de
descoberta reaparece agora, abrindo canais de percepção e de troca, escultura viva em
movimento, que, graças à coerência das partes do sistema, pode dar ao ator autonomia
para a amplificação do corpo cênico.
Assim, o olhar da pesquisa se dirige aos processos teatrais já desenvolvidos sob as
bases da técnica, resgatando sua história e lançando-os em forma de diálogo para novos
trabalhos que busquem um corpo expressivo, que seja intérprete de sua própria história.
Entendendo que as bases teóricas propostas por Klauss influenciaram largamente a
dança e o teatro no Brasil, ampliar a visão dos conceitos desta técnica, lançando-os ao
patamar de sistema aberto, tal como o corpo do ator, ora confundindo-se com ele, ora
codificando o trabalho de criação cênica é significativo principalmente no que tange ao
próprio trabalho de ator.
1 - O Trabalho de Ator
2 - Análise Reflexiva
pesquisa desenvolvida ao longo de quarenta anos, muito bem embasada e que traz
consigo conceitos da cinesiologia, anatomia, física, psicologia, entre outras. Na tentativa
de entender o mecanismo de funcionamento e movimentação dos corpos, Klauss se
utilizou da literatura, música, artes plásticas e pensou a dança através de linhas, volumes
e pontos de fuga, da mesma forma que os artistas que o influenciaram.
Seu trabalho é engendrado a partir da percepção das individualidades, com o
posterior enfrentamento de limites pessoais que, ao invés de se transformarem em
impedimentos, passam a construir subsídios importantes para a construção de uma
imagem corporal real. A localização exata destes limites e as possíveis formas de
trabalhar determinado músculo ou osso são propostas para este autoconhecimento, e não
desvincula, em nenhum momento, o psíquico do físico. Ao contrário, quando se fala na
percepção de individualidades e no enfrentamento de limites, isso se refere
profundamente a um ser global que se espelha em seu corpo para conhecer-se e
trabalhar com sua auto-imagem e auto-estima na busca do desenvolvimento dos
processos cognitivos no corpo. Essa proposição define um corpo liberto e, ao mesmo
tempo, consciente de suas capacidades significativas.
Conhecer as razões do funcionamento do corpo é imprescindível para se descobrir as
intenções deste e distribuir equilibradamente seu tônus. Para a construção de um corpo
que busque a significação pessoal e expressividade é imprescindível a disciplina e a
auto-organização. Para tornar orgânica a fluência do gesto é necessário alcançar o
domínio das articulações e possibilidades de movimento. Domínio esse, fundamental
para a expressão da liberdade do impulso criativo. Um bom entendimento deste
funcionamento pode resultar em um sistema de treinamento corporal, pode colaborar
para um processo psicoterapêutico, pode servir na investigação de novos elementos
artísticos, arquitetônicos e estéticos, tanto quanto pode simplesmente orientar uma
pessoa na sua recolocação postural. Esse processo evolutivo é individual e, portanto,
permite que seja utilizado nas mais vastas intenções do ser humano, possibilitando que
aquele que utiliza a técnica projete em seu corpo o seu desejo, como ele é concebido.
Em teatro podemos conceber a dramaturgia corporal a partir de seus preceitos e
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perceber que o “como” fazer proposto por Klauss pode subsidiar distintas ações e
intenções contidas em diferentes processos cênicos. No trabalho de ator vai permitir que
aquele que utiliza a técnica projete seu desejo exatamente como ele é concebido. No
caso do trabalho cênico vai possibilitar ao ator e a atriz a precisa expressão de suas
intenções e a caracterização exclusiva. Neste momento é fundamental que o intérprete
se veja e perceba que seu movimento não terá vida se não vier embasado por uma
técnica que alavanque o sentido, a motivação de partes do corpo. A criação nasce do
entendimento no corpo, de uma imagem corporal plena de significados. Essa harmonia
gera uma força ativa, receptiva, compreendida tanto por quem executa como por quem
assiste. Cúmplices, ambos os lados são atingidos por um signo que mobiliza tanto
intérprete quanto platéia, em um único processo criativo.
A “Técnica Klauss Vianna” é um instrumento para a expressividade, não um fim.
Está conectada com o indivíduo e com o tempo em que se insere. Num primeiro
momento, observar-se sem crítica é o início do domínio da técnica. Isso se dá quando se
abdica do controle do corpo, passando apenas à escuta do mesmo, do parar sem se
ausentar. Não é sair de si, mas entrar em contato consigo mesmo. Somente após o
contato com essa referência interna, pode-se aprender a reconhecer o movimento e
organizar melhor o discurso sobre as relações corpóreas envolvidas, em sua plenitude.
Este, talvez, seja o momento mais difícil da técnica. Romper uma barreira de alienação
e parar para se observar: parte por parte, apoio por apoio, até verificar exatamente que
corpo é esse que se vem carregando anos a fio, sem tempo para ele, apesar do mesmo
ser o executor de todos nossos desejos e pensamentos. Sem ele, não existimos. Mas é
sem ele que vamos vivendo.
Esta didática se propõe a perceber e compreender o processo evolutivo do corpo. O
homem consciente ocupa espaços conscientes. Você projeta o que você é. Uma pessoa
alienada projeta alienação, por isso é necessária uma imagem real do nosso corpo. Esse
processo do conhecimento das intenções e desenvolvimento da memória muscular se
traduz em tônus, o qual, frequentemente, é esquecido e/ou compensado erradamente em
forma de tensões. Klauss propõe um método de trabalho a partir das percepções dos
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espaços internos do corpo, construindo uma imagem interna. Sua dança surge das
oposições entre esses espaços. Do conflito surge uma nova imagem, uma nova forma de
expressão, um novo movimento. Essa imagem tende a se tornar real em todos os
sentidos, enquanto se amplia e se define a partir do corpo e nele gera um espaço de vida,
de significação.
Sabidamente a pele é um dos elementos mais importantes do nosso corpo e Klauss
sempre solicitava, em aula, que se espreguiçasse como que “alargando uma roupa
apertada”, a fim de que a pele captasse nossos sinais internos e os projetasse para fora,
distendendo os entraves musculares, respirando. Essa liberação dava a noção de nossos
limites, delineando uma imagem corporal real. Se a imagem que se projeta é
equivocada, o que se pretende comunicar também tomará outro sentido. Se um signo
tenta representar o corpo, ou parte ao menos, ele assim o fará mesmo que falsamente. A
transformação que pode ocorrer na imagem corporal se reflete, ou, só ocorre, quando há
transformação na imagem total que o indivíduo projeta de si mesmo.
“Todo resultado de uma ação provém do espaço existente entre a oposição de dois
conceitos. Seu gerador é sempre par, ainda que essa ligação se faça através de um
aparente distanciamento. É a lei da harmônica incoerência da vida: todo trabalho
corporal, se analisado sob um só ângulo, é incoerente. Mas unido ao todo surge a
harmonia.” (VIANNA,1990: p.78). O início do trabalho no chão é primordial. Nele
pode-se perceber mais facilmente os pontos de apoio do corpo e o peso de cada parte
que toca e também aquelas que não tocam o chão. O apoio do chão permite a
observação das alavancas que acionam o movimento, a partir da troca de apoios. “Só
quando descubro a gravidade, o chão, abre-se espaço para que o movimento crie raízes,
seja mais profundo...” (VIANNA, 1990: p.78). Assim, o chão que me acolhe é também
o que me impele, gerando oposições que criam conseqüências e movimentos cada vez
mais ampliados em sua complexidade. A consciência destes espaços permite a
percepção da musculatura e a conseqüente reação que provoca tanto em quem atua
como em quem assiste. Essa provocação parece fundamental a esses estudos desde a
evolução em complexidade solicitada ao ator, em seu trabalho, até os questionamentos
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que pode trazer à platéia, tanto quanto a interface que se estabelece na relação entre
ambos.
O método resultante se baseia nas oposições de vetores. O uso dos apoios como
alavancas permite que o desenho do trajeto dos movimentos seja cada vez mais claro.
Buscando-se os planos do corpo no espaço, a partir do chão, constrói-se pelas oposições
dos ossos, um indivíduo real, um corpo com espaços. A cada vez que se vivencia o
apoio do chão na forma de um suporte ativo capaz de gerar movimentos, esses tendem a
se ampliar como um caminho que se percorre e do qual se lembra, bastando acionar os
apoios de forma ativa. O uso das articulações permite a execução dos movimentos de
forma consciente, ampliando-se as possibilidades individuais e conseqüentemente,
melhorando a auto-imagem, quando esse processo descrito é resultado de um trabalho
consciente. É um processo muito amplo, como sempre foi o trabalho de Klauss. E tem
que sair da sala de ensaio para a vida, como sempre postulou o criador deste sistema de
consciência de movimento, e que embasa este trabalho.
A partir deste sistema denominado corpo humano, que está inserido em um contexto
e com ele conectado, (IMPARATO, 1999: p.186), estabelecendo relações de vínculo e
compartilhando propriedades entre seus elementos, é possível elaborar uma imagem
futura, que tem seus pés no passado e no presente. O corpo inteiro animado pela
memória muscular torna-se um instrumento sensitivo que responde com sabedoria,
“excedendo ao raciocínio do homem ou ao controle consciente” (VIANNA, 1990: p.91).
Conectar a memória do corpo a informações que levarão a uma autonomia criativa.
Vários sistemas trabalhando em uníssono, onde o verbo precedeu o substantivo, o fazer
foi experimentado antes da coisa feita (VIANNA, 1990: p.91). Um espiral evolutivo no
tempo e no espaço, tendo o corpo consciente como sistema complexo, aberto, capaz de
gerar um produto artístico necessário, fruto de uma relação dinâmica e orgânica.
Tal entendimento faz com que as oposições necessárias utilizadas para encontrar
tensões sejam geradoras de novos elementos cênicos cada vez mais complexos e
resultem em um estudo cênico também mais orgânico e coerente. A realidade
manifestando-se em níveis crescentes de complexidade. A partir de suas observações e
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estudos sobre o corpo, Klauss desenvolveu o que se assume aqui como um sistema que
busca aprofundar a consciência do corpo e do movimento em função de ampliar as
possibilidades de movimento e expressão. A transformação sígnica que pode ocorrer na
imagem corporal se amplia e se define a partir do corpo e em direção à investigação de
novos elementos artísticos e estéticos. Sobretudo, destaca-se por salientar uma
dramaturgia no corpo do intérprete que se mostra como dramaturgia de cena.
Conclusão
bibliografia para teatro e que esta pesquisa pretende lançar luzes. A “Técnica Klauss
Vianna” é resultado de um dos mais importantes estudos sobre o corpo e a dança no
Brasil, no entanto é ainda carente de mais registros sobre sua evolução e sistematização
aplicadas ao teatro especificamente e, ainda mais, se levarmos em conta a amplitude
dessa aplicabilidade e a relevância de seus conceitos junto às Artes Cênicas no país.
E, finalizando essa reflexão com argumentos que justifiquem esse intuito é
imprescindível que a Técnica Klauss Vianna seja vista a partir de suas bases e não só
como uma série de exercícios. Estudada em seus elementos únicos, seu
desenvolvimento histórico e sua possibilidade de generalização. A justificada
necessidade de sistematizar os princípios da técnica Klauss Vianna não pretende em
nenhum momento engessá-la dentro de padrões fixos e imutáveis, mesmo porque os
paradigmas da técnica a impedem de ser aprisionada. Ao contrário, de acordo com as
necessidades de cada novo ser que se propõe a perceber e compreender os processos
evolutivos do corpo que dança, a pesquisa pretende ser uma pequena troca de apoios,
fragmento do grande Movimento Klauss Vianna.
Referências
Introdução
Aos nos depararmos com os textos escritos por mulheres no final do século XX,
percebemos a presença da sexualidade e do erotismo de forma mais marcante, o que
pode ser explicado, pelo menos parcialmente, pelo momento histórico vivido. A década
de 70 se presta como marco da liberação sexual, o que mudará a forma como o feminino
lida com questões relativas à sexualidade e o ato sexual propriamente dito. Esse novo
posicionamento pode ser percebido na representação, na literatura, das relações das
personagens com seu corpo e o uso que fazem deste: os contos de autoras que publicam
nos anos 80 revelam mulheres que se arriscam mais, seduzem e se permitem viver a
sexualidade de forma mais liberta.
Os contos sobre os quais tecerei algumas considerações – Flor de cerrado, de Maria
Amélia Mello, e Hell’s angels, de Márcia Denser – são representantes dessa prosa
marcada pelo sexual, possibilitando uma leitura das relações entre sexualidade e
feminilidade. Narrando o ato sexual em si, caracterizam este como meras relações
efêmeras, e estas nada acrescentam aos serem incompletos que demonstram ser. Assim,
o sexo como resposta ao desamparo e solidão vem apenas corroborar a falta, a sede,
pois se apresenta como um acontecimento instantâneo que sequer gera o prazer
esperado.
1. Os corpos na literatura
2. Feminilidade e Sexualidade
em face de seu corpo e de seu mundo. Por meio do desejo, o indivíduo busca a
completude inexistente em si, tentando atingi-la através do ato sexual. Porém, o
momento do orgasmo se revela como fugaz e logo a falta se faz presente, o que
demanda uma nova busca.
É preciso me remeter à mitologia, uma vez que o livro Diana caçadora (1986), de
Márcia Denser, é composto por narrativas individuais que trazem como mesma
protagonista uma mulher chamada Diana Marini. Contudo, em que medida esta Diana,
jornalista de trinta anos, se presta a uma comparação com a filha de Júpiter é algo que
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Robi é inferiorizado não apenas por ser um adolescente mas em suas características
físicas. A narradora tece comentários a respeito de sua imaturidade, claramente
percebida no discurso que faz acerca da diferença entre o bem e mal, quando, então,
Diana passa a se referir a ele como neném, em um tom que se assemelha a
condescendência da mãe para com o filho, aqui acrescido de um valor irônico.
Como não há uma pretensão de realização amorosa, as diferenças são relevadas e
diluídas na hora do ato, quando os corpos nus estão lado a lado na cama e podem ser
vistos pelo espelho do teto. Ali, há apenas um homem e uma mulher, ilusão que é
quebrada assim que o despreparo sexual de Robi se faz evidente.
O que Diana busca é a sensação de completude que o ato sexual fornece por meros
segundos, a volta ao estado de quietude inicial que caracteriza o orgasmo como uma
pequena morte e dá vazão à correlativa pulsão presente em cada indivíduo. Todavia, a
relação sexual se demonstra tipicamente mecânica, polarizada que é pelo poder
instituído do falo, concretizado na fala da protagonista, na qual Robi é o “caçador nato”
que a possui para, depois de conseguir a ejaculação, adormecer ao seu lado. Resta a
Diana ir embora, se valendo, por último, do ato debochado de deixar a boneca na
portaria, para que lhe seja entregue ao acordar.
A narrativa se inicia com Diana indo ao analista e termina com outra referência
também a este, como aquele que responderia seus questionamentos, provendo soluções
para as armadilhas de sua mente. Essa visão apenas corrobora a caracterização de uma
mulher que não consegue viver plenamente sua sexualidade porque não se entende
enquanto indivíduo.
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equação que pretende igualar morte a salvação: “A primeira coisa que ele fez foi olhar
para o meu sapato. Ele podia ter me matado, eu sei. Ele bem que podia ter me salvado.”
(MELLO, 2001, p. 470).
Conclusão
No curto percurso dos anos 70 até hoje, podemos verificar uma exposição cada vez
maior do sexo – boca, mamilos, coxas, bundas, suspiros e ruídos – na mídia, como a
propagar uma imagem deste ligada à saúde mental e física, o que vem gerando uma
crescente submissão dos corpos aos imperativos da sexualidade. Esta se constituiu,
assim, como “um imperativo identitário e uma necessidade, tão urgente quanto comer
ou beber, fonte de um prazer considerado inefável” (SWAIN, ano, p. 296).
A liberação sexual feminina permitiu às mulheres uma maior liberdade na escolha de
seus parceiros e dos tipos de relacionamento que desejavam ter, contudo isso não
garantiu que a lógica fálica fosse, nem de longe, ultrapassada totalmente. Pelo contrário,
nas narrativas escritas por mulheres e publicadas nos anos 80, o imperativo sexual se
apresenta como a salvação, como se os problemas de toda uma vida pudessem ser
resolvidos e/ou explicados por meio da entrega ao sexo.. Com isso, a confusão
identitária é apresentada por meio da presença constante de personagens mulheres que
continuadamente se envolvem em relacionamentos casuais, que expõem seus
questionamentos, deixando clara a situação de desamparo e solidão que vivenciam.
É crucial entender que estas mulheres ainda se encontram em processo, e portanto
ainda não conseguem aceitar a feminilidade enquanto condição essencial de qualquer
ser humano. Elas não se entregam à paixão de forma positiva, mas seus relacionamentos
acontecem em um universo degradado, promovendo uma maior sujeição da mulher a
lógica dual dominante, na qual o homem é o sujeito e a mulher, apenas o outro. Nas
narrativas em questão, percebemos um desejo de emancipação , uma tentativa de
destruir as normas impostas, contudo isto só será efetivado em representações literárias
mais contemporâneas.
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Referências
Introdução
1 Pesquisa de Mestrado desenvolvida com financiamento da CAPES e sob orientação da Profa. Dra.
Sonia Aparecida Vido Pascolati.
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Em 1922 nasce José Saramago. Não foi fácil para o escritor adentrar no mundo
literário. Escreve o primeiro romance em 1947, não obtém êxito. Dedica-se à poesia, à
crônica, contos, traduções, crítica literária. O primeiro romance de sucesso é publicado
em 1980, ano em que Que farei com este livro? também vem a público. Desta data em
diante, Saramago não é mais um desconhecido: Portugal e o mundo se abre para sua
literatura inconformada e lúcida. Inconformada porque não teme discutir assuntos
“intocáveis”, atacar o “sagrado” através do manejo magnífico das palavras; lúcido
sempre, pois sua literatura não é um desvario. É a reflexão que não se exaure diante do
que não está explicado. Assim, cria-se um mundo,
Camões retorna a Lisboa após dezessete anos, e a primeira imagem que seus
olhos encontram corresponde à “cidade fechada, atribulada de doença e em tão grande
mortandade...” (SARAMAGO, 1999, p.32). Tal fato é o primeiro a entristecer o poeta,
pois tal reencontro, que parecia glorioso, se torna lutuoso. Em mãos, nada mais que
papéis e a esperança de publicá-los, mas não somente para seu sustento. Se assim fosse,
Camões não seria poeta, tantos trabalhos deviam haver, se ele quisesse apenas comer e
vestir-se bem, poderia desempenhar qualquer outra função. O impulso pela literatura e a
dedicação exclusiva vão além de uma escolha aleatória, e os séculos seguintes
reconheceriam o poeta como um mártir, que tudo sofreu pela literatura. Toda sua vida a
ela foi dedicada, e em troca penúrias e misérias, tristeza e desesperança.
Não é somente a peste enquanto doença corpórea que desola Portugal, a pátria
morre de tristeza porque “falta a Portugal espírito livre, sobeja espírito derrubado. Falta
a Portugal alegria, sobejam lágrimas. Falta a Portugal tolerância, sobeja prepotência
(SARAMAGO, 1998, p.51). Lembremos que, no século XVI, período que foi palco dos
acontecimentos retomados pela peça, Portugal oscilou do Auge ao declínio, da riqueza à
miséria, da grande expansão marítima à derrocada fatal (perda de independência)
quando D. Sebastião é derrotado na batalha de Alcácer-Quibir e o reino fica sem
herdeiro legítimo e passa aos domínios de Castela.
Poucos anos antes de toda esta fatalidade, Camões luta para publicar Os
Lusíadas: Inquisição e censura fortemente instauradas, desolação e morte pela peste,
mais a peste moral que derrota o espírito lusitano não poderiam ser um bom momento
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2 Na peça, Góis representa um elo entre o pensamento português e o da Europa culta do século XVI,
pois foi um dos homens mais críticos de sua época, uma das maiores inteligências do Portugal do
século XVI. Não obstante, perseguido pela inquisição, teve um trágico fim, que a peça não deixa de
ressaltar para demonstrar o quanto Portugal, tendo se favorecido imensamente com o saber propiciado
pelo Renascimento, passa a perseguir o pensamento livre retrocedendo exatamente no momento em
que havia alcançado o apogeu.
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Damião de Góis explica que a obra de Camões só seria publicada quando uma
dessas posições fosse privilegiada. Percebe que a obra seria usada segundo as
conveniências da época; embora Camões afirme “eu sei o que escrevi” (SARAMAGO,
1998, p.55), a obra reflete sobre a noção de que o sentido que o público tomará para si
não poderá ser determinado somente pelo que o escritor quis dizer, entrando em jogo
outras questões que envolvem a recepção da arte na sociedade. A obra, nessa
perspectiva, será lida de diferentes maneiras, embora em sua materialidade, não se
altere. “A diferença estará nos olhos que o lerem. E a parte que ficar vencedora dará que
seja o livro lido com os olhos que mais lhe convierem.” (SARAMAGO, 1998, p.55),
enquanto a parte vencida esperará o momento em que poderá “ler e fazer ler doutra
maneira” (SARAMAGO, 1998, p.55).
Neste contexto de censura, é muito mais descomplicado perceber a maneira
como os vencedores conseguirão fazer com que o público leia de determinada maneira.
Embora saibamos que o público não é passivo, e interage com a leitura de formas
particulares, o sentido que o leitor atribui ao texto literário é apenas parcialmente
construído por ele. A igreja, associada à censura tenta impor uma verdade universal, e
embora, claramente existam pessoas que pensam de maneiras diferentes, as leis não são
coniventes com elas: livros fogueiras, prisões e mortes impedem que, efetivamente, se
possa ler e publicar de forma autônoma. Há um veto à liberdade de expressão.
Mas a censura inquisitorial agia de modo ambíguo, buscando o apoio da
população. Por isso, nem sempre é perceptível ao público a manipulação imposta por
algum tipo de poder. Outro exemplo é a ditadura brasileira, que apóia as manifestações
populares favoráveis, enquanto proíbe certas manifestações artísticas. Contudo, a
produção cultural do Brasil aumenta nesse período, e por isso, para a população, pode
ser difícil perceber esse veto em um primeiro momento.
Na contemporaneidade, atribui-se principalmente à mídia o papel de uma das
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3. Profissão: escritor
O valor comercial do livro está ligado, na maioria das vezes, à sua condição
material. Ele é visto como uma mercadoria comum, sujeita às leis socioeconômicas,
como o trecho seguinte evidencia:
existência. Separar o joio do trigo, nessas condições, não é tarefa simples, mas
polêmica.
No presente contexto, o escritor encontra dificuldades para conseguir com que a
sua obra chegue a público. Ele não passa por um censor como passou Camões, mas tem
de lidar com a censura meticulosa de nossos tempos. Ele não precisa de um documento
que o autorize a publicar, mas nem por isso um escritor competente consegue publicar
com facilidade. Trata-de de até mesmo buscar repensar quais podem ser considerados os
“competentes”, já que para o mercado a única competência é a alta vendagem.
Enfim, mesmo que o escritor contemporâneo não sofra exatamente as mesmas
restrições que sofreu Camões – o que seria de fato, inusitado por já termos avançado
cerca de cinco séculos daquela longinqua data –, ele sofre outras e diversas dificuldades
para viver da arte, e são poucos os que exercem apenas essa profissão; a peça de
Saramago vem nos trazer esse impasse e questionar a nossa certeza na “evolução” da
sociedade. Se muitos avanços são incontestáveis, por que eles ainda não curaram feridas
antigas? Embora tanto tenha sido criado, muitas mudanças significativas necessárias
para que fossemos, realmente, uma sociedade justa, não foram nem parcialmente
solucionados.
ele tem para dar, já que outros bens ele não possuía. A peça deixa claro, principalmente
no trecho que será exposto a seguir, a constituição do artista enquanto homem que
efetivamente admira as letras e por elas vive, mas que precisa de dinheiro para viver, ou
seja, precisa ser recompensado financeiramente pelo trabalho que exerce:
Considerações finais
A peça de Saramago Que farei com este livro? retorna ao século XVI, para
denunciar as mazelas da época. Camões se encontra em meio a uma complexa rede de
intrigas e conluios que une os poderes políticos, religiosos e os interesses da nobreza.
Claro está que Saramago não retornou àquele período para denunciá-lo, ou
considerá-lo um modelo para a civilização atual. Trata-se de uma leitura dos fatos
passados, à luz do presente, que visa atingir ao próprio presente.
A primeira questão que buscamos responder: O mercado é capaz de transformar
significantemente a constituição da literatura?, é respondida pela peça. Não tendo o
dinheiro necessário para imprimir sua obra, e não sendo reconhecido por seus
conterrâneos, Camões se vê impedido de imprimir a obra. Os leitores de hoje só podem
contar com a maior epopeia portuguesa porque Camões driblou esse obstáculo,
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Referências
Tal material é de grande relevância sob dois aspectos. Em primeiro plano, podemos
notar através desses recortes costurados por Lima fragmentos de sua vida íntima e o
exercício de sua escrita. Por outro lado, mesmo altamente contaminados pelo
subjetivismo próprio dos registros pessoais, através desses retalhos podemos notar a
presença do homem engajado, que testemunhou ao seu tempo, as dificuldades de seu
cotidiano. Esses primeiros lampejos militantes de Lima trabalhados no Diário Íntimo
são a prova de como a sua vida pessoal irá interferir fortemente em grande parte de sua
produção literária, tanto nos romances, como nas crônicas, nas críticas, nos escritos
políticos, nos contos.
Lima Barreto nasceu livre em 1881, todavia ainda sob o peso de uma nação que há
pouco deixava de ser escravocrata: “Nasci sem dinheiro, mulato e livre” (BARRETO,
1956b, p.139).
Mulato e órfão de mãe aos sete anos, o escritor viu o pai enlouquecer ainda quando
jovem. Como filho mais velho entre outros três irmãos, tratou de tornar-se o chefe da
família. O sonho de João Henriques, pai de Lima, de o ver formado e com canudo de
doutor, virou poeira quando o escritor abandona no último ano o curso de engenharia na
Politécnica, ao ser inúmeras vezes reprovado na cadeira de Mecânica. O estigma da cor
começa a pesar-lhe sobre os ombros:
1
O título Diário Íntimo foi dado por Francisco de Assis Barbosa, principal biógrafo de Lima Barreto.
FAB recolheu essas anotações, dispersas em cadernos e folhas soltas deixadas pelo escritor. Publicou,
parcialmente, esses recortes deixados por Lima Barreto juntamente com os outros 16 volumes que
formam as Obras Completas de Lima Barreto publicadas pela Editora Brasiliense em 1956. Os escritos
originais permanecem atualmente na Seção de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
A sociedade brasileira do início do século, porém, racista e
preconceituosa, em um país que somente aboliu a escravidão quando
nosso autor já tinha sete anos, não estava disposta a permitir que
aquele mulato, neto de escravos, tivesse acesso à elite intelectual,
formando-se engenheiro em uma das mais prestigiadas escolas do país
(RESENDE, 2004, p.10).
Seria descaso não atentar para o fato de que é evidente como a história pessoal e
familiar de Lima Barreto influenciou sua escrita. A questão da cor, da falta de um
sobrenome tradicional e, futuramente, os problemas causados pelo excesso do álcool
irão transparecer constantemente em sua produção e afetá-lo pessoalmente.
Ao abandonar definitivamente a universidade e tendo que ingressar, por concurso em
1903, no serviço público, como amanuense da Secretária de Guerra, Lima faz disso
mote constante de suas crônicas. A repulsa pelos “doutores”, aqueles que através do
diploma conquistavam status, poder e prestígio social, torna-se tema muito próprio do
seu cotidiano:
Nesses excertos percebemos não só a escrita combativa de Lima frente ao que ele
denomina “donos da vida”, ou seja, aqueles que pelo estudo tradicional, ou pelo
dinheiro ou mesmo pela tradição familiar constroem reputação intelectual sem
realmente merecê-la. Contudo, notamos também a dor de alguém que não conquistou o
diploma por perseguição pessoal e preconceituosa. A caça aos “doutores”, à
intelectualidade forjada da época, será um dos alvos barretianos.
Outra questão pessoal que se mistura e influencia a escrita corrosiva de Lima é o
tema dos apadrinhamentos políticos. Por ser amigo de seu pai, o senador Afonso Celso
de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, apadrinha Lima ao nascer e, em
homenagem ao protetor aristocrata, Lima recebe o mesmo prenome. Porém, o contato
com o padrinho nunca se estendeu além de uma breve visita de cerimônia na infância.
Deste modo, a figura de protetor passa a repugná-lo, como podemos notar em mais um
desabafo no seu Diário Íntimo: “Os protetores são os piores tiranos” (BARRETO,
1956a, p. 34).
E, repetidas vezes, ao comentar seu ingresso no serviço público, frisava que este se
deu exclusivamente por concurso, sem a influência de padrinhos, protetores, ou melhor,
de “donos da vida”, como a eles preferia se referir.
É até irônico, mas representativo, lembrarmos a data de nascimento do escritor: 13 de
maio. Lima, acuado por seus contemporâneos por ser mulato em uma sociedade que
desejava uma população branca aos moldes europeus, em crônica comemorativa do
aniversário da abolição nos revela toda a sua crítica e mágoa pessoal:
Notamos neste fragmento o claro uso da escrita da memória, Lima lança mão de sua
história de vida para lembrar um aspecto importante da sociedade não só carioca como
brasileira. Entretanto, a crônica de 4 de maio de 1911, publicada originalmente na
Gazeta da Tarde do Rio de Janeiro, não fica restrita as reminiscências do autor:
A escrita autobiográfica foi recurso retórico eficiente para Lima Barreto. Nesta
última passagem já percebemos que a crônica deixa de ser mero exercício de lembrança
infantil do autor e passa a ser uma crítica clara aos horrores da escravidão há tão pouco
tempo extinta. Notamos um movimento crescente na fala barretiana, seu discurso passa
da simples rememoração para o julgamento severo do episódio. E a crônica vai além:
Quando fui para o colégio [...], a alegria entre a criançada era grande.
Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria do ambiente nos
tinha tomado (BARRETO, 2004, vol. 1, p.77).
A professora [...], uma senhora muito inteligente [...], creio que nos
explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de
criança, só uma coisa me ficou: livre! Livre!
Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos...
[...]
Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos
enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis! (BARRETO,
2004, vol. 1, p.77).
Para concluir o assunto, Lima junto à lembrança infantil combina crítica social contra
a falsa liberdade aos negros, que após a Abolição deixaram de ser escravos e, entretanto,
encorparam o grupo de desempregados do país, que crescia vertiginosamente no
período, e denuncia, ainda que sutilmente, as redes burocráticas e sociais que
amarravam e amordaçavam a sociedade menos favorecida da época.
Este texto é um registro representativo da literatura barretiana, que por meio de sua
ideologia, de sua escrita militante, de sua voz de denúncia e por meio do recurso que lhe
torna marco de uma época - a sua linguagem simples, porém inovadora -, Lima Barreto
trabalhou em prol dos necessitados, usando sua imagem pública, ofendido pelo desprezo
dispensado a ele pelos seus pares, aliou escrita, mágoa, revolta e engajamento para
tentar dar voz aos excluídos, tais como ele próprio. A sua história pessoal, assinalada
pela exclusão social, pela inadaptação aos padrões literários, econômicos, políticos e
sociais da época e por sua cor, serão armas potentes de combate.
Lima Barreto reverteu a sua amargura, por meio da linguagem, em denúncia contra a
arbitrariedade de um sistema político, social e principalmente literário que
marginalizava e excluía aqueles que não condiziam com o modelo burguês que
dominava o fim da Belle Époque nacional. A linguagem, instrumento de denúncia e de
revelação, foi a principal ferramenta de combate empunhada por Lima. De denúncia,
enquanto sua produção desnuda e acusa os desmandos daqueles que detêm o poder. De
revelação, enquanto se propõe a mostrar para os que não sabem, embora sintam os
mecanismos de que se servem os “donos do poder” para nele se manter. (CURY, 1981,
p.193)
Lima usou problemas pessoais, histórias íntimas e o jornalismo para lutar ao lado
daqueles que não tinham voz. Com plena consciência do fazer literário, partícipe
militante, engajado e preocupado em tornar público, por meio da sua literatura, as
questões políticas e sociais que assolavam o país e principalmente o Rio de Janeiro,
Lima Barreto se pôs inteiramente a disposição de uma literatura de inconformismo.
Ainda que Lima Barreto não tenha tido grande repercussão entre as
camadas populares de sua época, uma vez que a essas era vetado o
acesso à literatura, foi um escritor importante para a sua expressão
(CURY, 1981, p.21).
A crônica era o seu canal de comunicação direta com os leitores. Os jornais, aqueles
que lhe deram mais espaço como o A.B.C. e a revista Careta, eram o palco privilegiado
para divulgar não somente sua mágoa pessoal contra os “donos do poder”, mas também
como observatório para acompanhar o que ocorria nas ruas centrais e suburbanas
cariocas. Pela imprensa, sua literatura de enfrentamento social, de contestação ao
sistema intelectual dominante, de denúncia das arbitrariedades cometidas contra negros,
e carentes poderia ser mais facilmente ouvida.
Entretanto, outros detentores do poder na cidade das letras serão não somente alvo da
crítica direta de Lima Barreto como também objeto e motivo constantes de suas mágoas
pessoais, como a ABL e Coelho Neto, representantes máximos da literatura estetizante e
ultrapassada. Em outra crônica, Lima mostra seu temperamento contraditório. É fato
notório a permanência de Lima à margem dos grupos literários que constituíam a ABL.
Os mandarins literários eram alvos certeiros e constantes das publicações barretianas,
nunca o aceitariam entre seus pares. A linguagem prolixa e vazia dos membros da
Academia tornava-se piada nas crônicas de Lima, no entanto, o escritor não deixou de
tentar por três vezes se eleger membro imortal da casa:
Contudo, na mesma crônica, Lima não deixaria de destilar sua ironia e censura para
aqueles que, lançando mão do prestígio dos grandes jornais e da afamada reputação de
homens de letras, tinham vantagens no pleito para imortal:
Por críticas indiretas, mas certeiras como esta representada pela crônica acima e,
consequentemente, banido dos principais esquemas de articulação de poder,
representados principalmente pela elite literária e pela grande imprensa, o autor
mantém-se livre das amarras opressoras das instâncias consagradoras do poder e à
vontade para interpretar e traduzir, por meio de seus textos, as questões literárias e
sociais brasileiras que o frustravam.
Se, por um lado, os grandes periódicos o exilaram pela sua irônica e direta crítica ao
poder, por outro, a postura outsider possibilitou-lhe a liberdade de expressão pouco
notada em outro autor contemporâneo. E, a partir do momento em que se aposenta do
serviço público em 1918, as últimas amarras que o prendiam são desfeitas. Ao não ter
mais vínculo com o funcionalismo, Lima aceita inteiramente a arte participante, não
plástica e meramente contemplativa. Os anos entre 1920 e 1922 representam o momento
de aposentadoria e liberdade, e também período mais fértil e ferino de sua escrita.
Já que a Lima não coube participar do discurso legitimador da literatura oficial à sua
época, coube-lhe tarefa um tanto mais árdua: a arte da denúncia e da crítica ao status
quo vigente. Nas palavras de Jean-Paul Sartre, a função do escritor é “fazer com que
ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (1989, p. 21), e
Lima Barreto, intelectual questionador, oprimido e estigmatizado por uma biografia que
sempre o influenciaria, antecipou, pelas suas crônicas, o pensamento crítico e engajado
que seria proposto durante o século XX.
Entretanto, a postura engajada de Lima trouxe-lhe dificuldades muito perceptíveis. A
crítica literária oficial agiu duramente sobre a obra barretiana, não lhe poupando certo
ostracismo e esquecimento; tampouco estereótipos marcantes. Em vida, as produções
barretianas receberam poucos aplausos. Se as Recordações do escrivão Isaías Caminha
mereceu a “crítica do silêncio” pelos jornais e críticos do início do século XX, não
muito diferente se manteve o julgamento estético de sua obra durante o resto de sua
carreira literária.
REFERÊNCIAS
Introdução
1. Romance de formação
Ao comentar a definição de François Jost sobre este gênero, Cristina Ferreira Pinto
(1990, p. 10) destaca que o
não só por seus aspectos temáticos mas também por sua função
didática, pela intenção pedagógica da obra de contribuir para a
educação e formação da pessoa que lê. Embora não mencione
explicitamente a função didática que o “Bildungsroman” pode exercer
sobre o público leitor, Jost relaciona seu surgimento na Europa às
preocupações pedagógicas da época. (PINTO, 1990, p. 11).
2. A trajetória de Vítor
Na obra O sofá estampado 1 conta-se a história de Vítor, um jovem tatu que, como
presente de formatura, ganha uma viagem para conhecer o mar. A caminho da Bahia,
depara-se, no Rio de Janeiro, com a gata Dalva e resolve ficar por ali mesmo. “Quando
o Vítor chegou no Rio, perguntou daqui e dali onde é que era o mar. Explicaram. Ele foi
indo. Só que não conseguiu chegar na praia: no caminho ele viu a Dalva, e ali mesmo,
na hora, se apaixonou.” (SE, p. 59). Apaixonado, faz tudo para chamar a atenção de
Dalva, uma voraz consumidora de programas de televisão: como Dalva não desgruda do
sofá estampado, chegando a se confundir com o objeto, Vítor passa a fazer propagandas
na televisão e assim consegue fazer-se notar pela gata. Mas Dalva, que recebera
inclusive medalha de maior espectadora porque ficava infindáveis horas diante da
televisão, nunca repara de fato em Vítor, não lê as cartas em que o jovem tatu declara
seu amor e a pede em casamento e ignora solenemente que o faz sofrer. Um dia, ao
descobrir que Dalva sequer abrira muitas das cartas que enviara a ela, Vítor “Cavou até
gastar toda a força e muita mágoa, nem sabia quanto tempo. Cavou tão fundo que foi
dar no tempo que ele era tatu-criança. Vítor voltou pro passado numa terça-feira de
manhã. Ele estava na segunda série, e as férias tinham recém-acabado.” (SE, p. 20-21).
1
As citações das obras ficcionais serão referenciadas pelas iniciais do título e páginas correspondentes.
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informação que justifica o ato da personagem: Vítor, desde criança, sofre de um mal:
quando angustiado/nervoso, engasga-se e cava desesperadamente: “Não foi doença,
nem atropelamento, nem batida em árvore; o Vítor já nasceu assim mesmo: com um
talento danado pra se engasgar.” (SE, p. 25-26). O engasgar-se constante de Vítor pode
ser relacionado à expressão popular “engolir sapo”: em sua trajetória existencial, Vítor
terá que aprender a lidar com suas frustrações, ansiedades, confrontos com o pai e com
o meio para superar sua submissão ao desejo alheio, à voz da autoridade paterna, à
exploração econômica.
Quanto ao primeiro aspecto, ao sair para a viagem de seus sonhos, o pai obriga Vítor
a levar consigo uma carapaça (produzida na fábrica do pai) para vender/fazer
propaganda nos lugares por onde passar. A despedida é marcada por profunda tensão,
na medida em que o jovem tenta convencer o pai de que vender carapaças não faz parte
de suas expectativas em relação à profissão que deseja abraçar. A mãe, mesmo
compreendendo o filho, não consegue fazer com que sua voz – seu ponto de vista – seja
reconhecida pelo marido. O embate entre pai e filho resulta na submissão deste à voz
paterna:
– Mas, papai... escuta... eu... eu já tinha dito que eu não queria ser
vendedor de carapaça... (...) – Não tem que gostar, tem que vender. –
Eu queria fazer uma coisa que eu gosto! – Mas o “que eu gosto” já
não conseguiu mais sair, deu marcha á ré, começou o tal
engarrafamento na garganta do Vítor e tudo que ele queria dizer
acabou ficando pela metade. (SE, p. 55-56).
propagandas na televisão, também sofre com a exploração a que é submetido por Dona
Popô, a dona de agência para a qual Vítor faz anúncio de xarope, cigarro, queijo, vodka,
cerveja, pasta de dente, aparelho de barba, desodorante, toalha, sabão, sabonete, mala...
Dona Popô “alugou o Vítor pra anunciar em Porto Alegre e Belo Horizonte. Vendeu o
Vítor 15 dias pra Curitiba. Fechou contrato com o Vítor pra Portugal. Emprestou o
Vítor pro governo anunciar que o agricultor brasileiro devia cavar e plantar mais.” (SE,
p. 97). Como resultado dessa pressão, “Vítor foi ficando num tal estado de nervos de ser
tão alugado-vendido-emprestado que já não parava mais de se engasgar.” (SE, p. 97).
Por fim, quando sua imagem saturou por força de tamanha exposição, ele é dispensado
através de um recado: “Quando o Vítor voltou na Z, a Dona Popô mandou um recado:
‘Não tenho mais tempo pra falar com ele. Nem vou ter.’ O Vítor procurou outras
agências: em vez de mandarem ele entrar, mandavam recado: ‘Ele não interessa mais: a
tevê já espremeu tudo que ele podia dar.’” (SE, p. 98).
É interessante observar que Vítor faz propaganda de vários objetos, menos da
carapaça produzida na fábrica paterna. Sequer lembra que levara consigo, a contragosto,
uma amostra. De certa forma, aquilo que tentara, de forma relutante, negar ao pai
(divulgar o produto), transforma-se, pelo evidente exagero a que é submetido, em
tomada de consciência e posicionamento sobre o que deseja em termos profissionais.
Tais circunstâncias revelam outra faceta do romance de formação: a trajetória de Vítor é
marcada por perdas, dúvidas, confrontos e, sem dúvida, crescimento, aprendizagem
acerca do próprio eu. Sobre este aspecto, Cristina Ferreira Pinto (1990, p. 148) afirma
que, no romance de formação, “o herói busca uma filosofia de vida e uma vocação”, e é
o que se depreende do percurso cumprido pelo protagonista da obra em análise. Vítor é
marcado pelos acontecimentos e aprende com eles.
No que diz respeito ao relacionamento amoroso, o evidente desinteresse de Dalva e
a decepção provocada pelo rompimento do namoro fazem com que Vítor resolva voltar
para a floresta. Há, nessa etapa da vida do protagonista, uma conjunção de perdas: do
emprego, da namorada, da saúde física. Tudo aponta para a necessidade de mudança, de
superação e de novas vivências. “Lá pelas tantas o Vítor pensou: quem sabe voltando
pra casa ele esquecia da Dalva? (...) É... quem sabe tinha chegado a hora de voltar? E
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sem saber muito bem se tinha ou não tinha, o Vítor foi indo embora, atravessando rua,
dobrando esquina, deixando a cidade pra trás.” (SE, p.99). Diferentemente do herói que
volta para casa tendo vencido suas batalhas e sendo reconhecido e valorizado em função
disso, Vítor volta para casa sentindo-se derrotado e, a certa altura do caminho, cansado,
deita-se na estrada, adormece e sonha com o pai, que quer obrigá-lo a vender carapaças
de plástico. Vítor se engasga e tosse cinzento, acorda apavorado e, mais do que lembrar
o que sonhou, lembra da rua misteriosa que, em outras ocasiões, encontrara ao cavar. “A
vontade de encontrar de novo a rua foi tão forte que ele saiu correndo. Só querendo
lembrar direito onde é que ia cavar pra achar logo a escada, parou: quem sabe era
melhor já começar a cavar? E cavou.” (SE, p. 100).
Vítor encontrara essa rua, a primeira vez, quando, numa situação em que se vira
angustiado na escola, cavara e chegara a uma escada que levava a essa rua estreita,
deserta, sem árvores, sem carros, com limo nos telhados e, junto às portas de casas
quietas, alguns jasmins. Não havia ninguém, mas havia a impressão de que alguém iria
aparecer. Depois dessa experiência, Vítor tentara, várias vezes, reencontrar o local, mas
não conseguira e acabara esquecendo-se dele. Contudo, ainda criança, ao ser, de forma
abrupta, informado que a avó fora assassinada, desanda a cavar e surpreende-se ao
reparar que chegara àquela mesma rua. Desta vez, além da rua, ele encontra uma
Mulher segurando um “lenço de seda tão fino que mesmo quando o vento parava ele
ficava brincando no ar. Amarelo bem clarinho, todo salpicado de flor: ora era violeta,
ora era margarida, e lá uma vez que outra também tinha um monsenhor” (SE, p.47).
Apesar de assustado, Vítor quer seguir a Mulher: agarra-se ao lenço, mas a Mulher não
quer levá-lo consigo e olha-o de um jeito estranho, “parecendo achar esquisito encontrar
ele ali”: “Ela sacudiu a cabeça com força; puxou o lenço. O Vítor não quis largar. Ela
então tirou a mão do bolso e empurrou o Vítor de um jeito que ele teve que largar o
lenço, e largou também a vontade de seguir com a Mulher. ” (SE, p.47-9).
Mais uma vez, o que traz Vítor de volta – o que possibilita sua saída do túnel – é a
lembrança da avó – suscitada por sua mala que estava de posse do Inventor – , por quem
nutria grande admiração. Para Nelly Novaes Coelho (1995, p. 667) “Dentro da trama, a
maleta surge como símbolo de uma vida criadora, engajada na aventura de viver
descobrindo o mundo. Para Vítor, encontrar a maleta foi como se a própria avó tivesse
voltado.” Ao ler o diário da avó, uma mulher empenhada na luta pela preservação da
vida e da natureza, o jovem é contagiado por sua vontade de lutar pela manutenção da
vida:
A avó e o que ela representa – ideais, determinação e coragem – fazem com que
Vítor se liberte do desejo de morrer e empurram-no de volta à vida. Sair do buraco – e
da atmosfera fechada e sombria que simboliza a morte – e voltar ao espaço aberto da
floresta, com cheiro de terra e de folha, significa redescobrir o valor da vida.
quais vai passando. Nesse sentido, a unha que se aquietou reflete o estado interior de
Vítor: sem a angústia de cavar e sumir, sem tosse e sem engasgo, ele sai do buraco
apaziguado, sem medo de enfrentar o pai e de negar-se a vender carapaças de plástico.
A travessia desse túnel funciona, portanto, como um rito de passagem. Segundo
Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 915-6), transpor o túnel enfatiza a transição entre dois
estágios da vida, pois o túnel, “símbolo de angústia, de espera inquieta, de medo das
dificuldades, de impaciência em satisfazer um desejo (...) é o símbolo de todas as
travessias obscuras, inquietas, dolorosas que podem desembocar em outra vida.”
No caso de Vítor, o rito de passagem marca uma radical mudança no seu jeito de ser
e de se relacionar, inaugurando uma nova fase de vida. Além de vencer o medo,
conquista algo mais importante: torna-se consciente da realidade da morte. “Quem sabe
tudo não passava de um sonho? e ele ia acordar. Esperou. Continuou tudo igualzinho.
(...) Mas então, se também não era imaginação, tudo era verdade. Não era, não?” (SE, p.
105).
“Bildungsroman” feminino pois, de acordo com Cristina Ferreira Pinto (1990, p. 148),
“Enquanto no “romance de aprendizagem” masculino o conflito da personagem é
normalmente com o pai, o conflito da protagonista feminina envolve a figura materna,
em geral física e/ou emocionalmente ausente, distante da filha.”
Aos 15 anos, Carolina viaja com os pais para a Europa e apaixona-se por Londres e
por um vestido que vê numa vitrine na noite anterior ao regresso ao Brasil. Impedida de
comprar o objeto da paixão (a loja fechara), Carolina vive nova frustração: “– Perdido.
Perdido pra sempre. Pra nunca mais. – Foi se distanciando devagar da loja. Agora eram
duas perdas pra sofrer: Londres e o vestido. (RC, p. 61). Mal sabe ela que reencontraria o
vestido da forma mais inesperada.
Num novo retrato – aos vinte anos – Carolina está cursando faculdade de arquitetura
e, através da amiga Bianca, conhece o Homem Certo e reencontra o vestido pelo qual se
apaixonara aos 15 anos no guarda-roupa de Eduarda, a ex-mulher do Homem Certo. O
capítulo encerra com Bianca, insegura, dando um “chega pra lá” na amiga. E, para
surpresa do leitor, o retrato seguinte inicia desta forma: “Até o dia de se casar com o
Homem Certo, Carolina viveu numa casa antiga, de um pavimento só, numa das
ladeiras de Santa Teresa, no Rio.” (p. 81). Ao longo desse capítulo, o narrador mostra
Carolina e sua paixão descontrolada pelo Homem Certo. Em uma conversa com o pai,
Carolina revela que está cega de paixão: “eu me sinto arrastada por ele, confundida por
ele, cegada por ele, ah, pai: paixão”. (RC, p. 89).
Para desconsolo do Pai – que a aconselha a viver a paixão até que esta desapareça,
se consuma – Carolina se casa com o Homem Certo e logo vê sua liberdade cerceada:
no retrato dos vinte e dois anos, o leitor encontra Carolina passando por uma fase de
crise no casamento e numa conversa com o Pai, revela que abandonara os estudos. Por
fim, depois de algum tempo, Carolina se dá conta de que, para o Homem Certo, ela não
passa de um instrumento para ele evocar a memória/lembrança da Eduarda. Violentada
pelo marido, opta por abortar o feto. O pai compreende sua atitude, mas a mãe e o
marido a acusam de assassina. Tomado pelo câncer, o pai morre e Carolina se separa.
Antes de morrer, o Pai conversa com a filha e de certa forma tranquiliza-se por sentir
que Carolina estava retomando as rédeas da própria vida. “Ah! que bom que o Pai tinha
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visto no olho dela a certeza, nascida naquele justo momento; a certeza que varria longe
o medo, varria a culpa, varria a dúvida; a certeza de que eram mesmo poucos dias que
separavam ela... dela mesma.” (RC, p. 136-37).
Observa-se, portanto, como a trajetória da personagem e marcada por perdas,
dúvidas, confrontos e, sem dúvida, crescimento, aprendizagem acerca do próprio eu.
Estabelecendo distinção entre o romance de formação masculino e o romance de
aprendizagem feminino, Cristina Ferreira Pinto (1990, p. 148) afirma que “Enquanto o
herói busca uma filosofia de vida e uma vocação, a mulher procura uma identidade, a
realização a afirmação do EU em seus próprios termos.”
O último retrato mostra Carolina aos 25 anos, num pequeno apartamento, tentando
refazer sua vida. A saudade do pai, o medo e a solidão a levam à “velha imagem do
túnel que a gente tem que atravessar...” (RC, p.153). Carolina dorme e a imagem do
túnel vira sonho: “de dentro do túnel vem um canto de pássaro. Carolina se surpreende.
Avança pra escuridão” (RC, p.155). O canto de um pássaro faz com que se lembre do
pássaro que ganhara na festa de Priscilla e da decepção com a amiga que trapaceara.
Tateando no escuro, depara com o vestido que tanto desejara aos 15 anos; encontra,
também, o sapato que o pai usava em casa. Tanto o pássaro quanto o vestido e o sapato
são elementos importantes na vida de Carolina: os três estão relacionados a
acontecimentos que marcaram a vida da personagem, desde a infância. Uma luz feérica
ilumina o sonho de Carolina e deixa entrever um pedaço de céu. A importância desta
luz, para a personagem, reside no fato de que ela ilumina o passado e, desta forma,
permite que Carolina veja a gaiola do pássaro que ganhara na festa de aniversário da
Priscilla e, sobretudo, que sua mão abrira a gaiola para libertar a ave: “Mas a mão tinha
feito a coisa certa: tinha aberto a porta da gaiola pro Pet ir s´embora, voar, ser livre”
(RC, p.157). Dar-se conta de que libertara o pássaro desperta, em Carolina, um
sentimento renovado de energia e vontade de ser livre: “- Ser dona da minha vida...
Com essa minha mão aqui... eu vou fazer.” (RC, p.158-9). O que Carolina encontra, no
final do túnel, é a consciência de que a mão fora capaz de libertar o pássaro. Esse
processo de tomada de consciência é essencial uma vez que, depois de ter iluminado
esse episódio do seu passado, Carolina é capaz de tomar em suas mãos as rédeas da
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própria vida.
Considerações finais
Dentre as características que convencionalmente definem o “Bildungsroman”,
Cristina Ferreira Pinto destaca a focalização na infância da personagem, o conflito de
gerações, provincianismo ou limitação do meio de origem, a auto-educação, alienação,
problemas amorosos e a “busca de uma vocação e uma filosofia de trabalho que podem
levar a personagem a abandonar seu ambiente de origem e tentar uma vida
independente” (1990, p. 14). Acompanhando os diferentes momentos da trajetória de
Vítor e Carolina, o leitor toma conhecimento do desenvolvimento emocional e
intelectual e do processo de formação de suas personalidades. Desta forma, é possível
relacionar essas obras a toda uma tradição de romances de formação, bem como a outras
narrativas voltadas para o público juvenil em que se põe em questão o processo de
formação das personagens.
Referências
Introdução
Em nossa caminhada pelo magistério do Ensino Básico, a leitura literária tem sido
alvo constante de críticas. Especialistas e pesquisadores são pródigos tanto na denúncia
como na condenação de procedimentos pedagógicos inadequados, como também nas
propostas de práticas desejáveis. Contudo, limitam-se a isso e não se arriscam a dar
sugestões práticas para o trabalho pedagógico com a leitura do texto literário,
temerosos, talvez, tanto do caráter reducionista de qualquer receita pronta, quanto do
mau uso que se possa fazer dela.
Os professores de língua portuguesa são culpabilizados por "leituras ingênuas e
superficiais", "leitura de decodificação", "práticas reducionista", “por ficarem presos
somente à linha do tempo da historiografia” enfim, responsabilizados pelo desinteresse
e desmotivação do aluno em relação à leitura literária.
A verdade é que os professores têm consciência da importância de uma educação
literária na vida do aluno como “arte que transforma e humaniza” (CANDIDO, 1972).
Assim, como reconhecem a sua responsabilidade por despertar o gosto pela leitura e
pela formação do leitor proficiente.
Entretanto, quando decidem por mãos à obra e tentar reverter a tão conhecida "lei-
dura", como se refere Silva (1993, p.23) ao falar da situação de crise em que se encontra
a leitura no Brasil, ficam perplexos diante das condições tão avessas ao seu trabalho.
Entre as interferências no processo de ensino de leitura literária, o desinteresse pelo ato
de ler é um grande empecilho provocado muitas vezes pelas desfavoráveis condições de
produção da leitura (livros caros, falta de estímulos, falta de identificação com os textos
que a escola propõe para ler, etc.) que, evidentemente, prejudicam a efetivação desse
aprendizado.
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O poder de sedução do livro ou do texto escolar ainda continua baixo para o aluno,
sobretudo porque ainda se mantém o abismo que separa o texto da experiência histórica
em que está inserido o aprendiz. As leituras escolares pouco acrescentam. Em outras
palavras, o ensino de leitura ficaria facilitado se o texto ou o livro a ser lido se
encaixasse no seu universo de interesse, expressando os temas e os valores que dizem
respeito a ele.
Na verdade, para instaurar no aluno o prazer da leitura literária, não seria preciso
promover uma substituição dos textos lidos, mas uma mudança de olhar. Operando com
textos literários (clássicos) ou não literários (literatura de mercado) professor pode atuar
no sentido de promover alterações no olhar do leitor, cabe-lhe um importante papel de
substituir a prática de leitura monológica pela da compreensão ativa de bases dialógicas.
A leitura de qualquer texto entendida enquanto ato de compreensão ativa, leva o
leitor a perceber as vozes que falam no seu interior, a que formação ideológica elas se
vinculam e a que tipos de interesses elas servem. Nessa perspectiva, qualquer discurso -
dada a sua natureza essencialmente dialógica - não é nunca a manifestação de uma só
voz, mas um conceito polifônico que revela a pluralidade de formações discursivas
presentes no texto, inclusive a do próprio leitor.
Todavia, para isso o professor deve estar preparado, pois apenas por meio da
instrumentalização do aprendiz que a mudança de ponto de vista ocorrerá, o que nos
remete a algo imprescindível nesse processo: o professor ter um aparato teórico
orientado para o aprendizado da leitura.
Na prática pedagógica concreta com o texto literário, não é raro o aluno, maravilhado
diante de tantos significados que o professor levou-o a perceber no texto, revelar-se,
todavia, incapaz de, por si só, chegar aos mesmos resultados. E a sua indagação é quase
sempre a mesma: o que é que eu devo saber para conseguir uma leitura similar.
Esse tipo de questão tem recebido diferentes respostas: é preciso ler incansavelmente
o texto, grifar as partes principais, levar em conta todos os dados pertinentes que estão
presentes no texto, etc. Mas quantas vezes o aluno não se sente desencorajado diante de
um texto que, do ponto de vista da estrutura linguística interna, não traz nenhuma
dificuldade e, apesar disso, revela-se indecifrável.
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Não se quer dizer com isso que o saber necessário para a elaboração de uma leitura
proficiente não dependa também de fatores determinantes que extrapolam os limites da
escola e que, portanto, fogem ao controle do professor de Língua Portuguesa.
Imaginemos, por exemplo, o repertório que se impõe como necessário para que o
aluno depreenda as relações intertextuais ou interdisciplinares implicadas num processo
de leitura. O professor de língua portuguesa pode alegar que a aquisição desse saber
foge completamente ao seu controle e que a curto prazo, ele pouco pode fazer para
alterar esse estado.
Entretanto, faz parte de seu papel esclarecer o aluno sobre a necessidade da aquisição
desse saber para que ele progrida na sua escalada de aprendizado de leitura. Se não é
possível ao professor de imediato suprir tal dificuldade, está ao seu alcance revelar ao
aluno a causa desse inconveniente e apontar-lhe as pistas para superá-lo a médio e longo
prazo.
O aluno irá, com isso, familiarizando-se com a idéia de que não é apenas ao léxico
dos dicionários que ele deve recorrer para descobrir significados que lhe escapam, mas a
todo o acervo cultural assentado nas enciclopédias, nos livros, enfim, nas publicações
todas que guardam o saber coletivo.
Na literatura especializada sobre o ensino da leitura, tem sido citada com frequência
uma obra de Bakhtin, em que o autor dirige severas críticas contra um certo modo de
ensinar a ler, valorizando o papel relevante de uma leitura baseada na "compreensão
ativa do texto". Para ele, só a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a
evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo evolutivo
(BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1979, p. 117)
Soares (2001, p.1) declarando explicitamente sua filiação a Bakhtin, também assume
posição contra uma concepção de leitura que coloca o leitor passivamente frente ao
texto como se este fosse uma peça isolada, um monólogo sem relação com qualquer
contexto. A autora afirma que a leitura não é um ato solitário que afasta o mundo e do
mundo, tendo só o leitor e o texto.
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Segundo Geraldi (1996, p. 80), "o texto somente se completa com o ato de leitura ao
ser utilizado, operado linguística e tematicamente pelo leitor". Assim, de acordo com o
autor, uma leitura ativa supõe uma atitude produtiva, ou seja, pela mobilização dos
"fios" com que o texto foi tecido mais os "fios" que o leitor traz de sua história, um
"novo bordado” surge.
Dessa experiência de leitura, o leitor sairá modificado ou porque adere ou porque
modifica os pontos de vista em face do diálogo mantido. Em síntese, o leitor é levado a
fazer - refletir sobre o texto para que ele possa assim fazer - agir através dele.
A leitura passiva opõe-se à leitura ativa, que pode ser caracterizada como a negação
da leitura monológica e a afirmação do "caráter dialógico constitutivo da linguagem".
(BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1979, p. 149).
Quanto à afirmação do dialogismo, seu fundamento está no pressuposto de que todo
texto emerge como o pronunciamento de um enunciador dentro de um processo de
interação verbal. O enunciador constrói seu texto como um dos interlocutores desse
diálogo. Nesse processo, o leitor não é passivo, mas é agente que busca significações,
ou seja, tem uma “atitude responsiva ativa” em relação ao enunciado (BAKHTIN, 1992,
P.353).
Nesse quadro, fica evidente que, ao definir-se por uma determinada prática
pedagógica em detrimento da outra, a escola e o professor de língua portuguesa não
podem se deixar levar pela ingenuidade de acreditar que se trata de uma opção
indiferente. O processo de leitura ativa pressupõe certas posições ideológicas; o de
leitura passiva, outras. Um pretende formar o aluno para atuar como agente
transformador da história; outro almeja uma forma de atuação oposta.
A escola decidida a comprometer-se com as mudanças da organização social e com a
afetiva formação do aluno como agente dessas mudanças, não pode sujeitar-se a práticas
pedagógicas em que o aluno exercita a leitura literária como decodificação, seguindo as
questões sobre o texto com as respostas em sequência, o que Kleiman (1995, p. 20)
classifica como sendo "uma tarefa de mapeamento entre a informação gráfica da
pergunta e sua forma repetida no texto, e que no livro didático é chamado de
interpretação”.
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imaginário simbólico das novas gerações, fazer parte inalienável dos saberes a serem
transmitidos/adquiridos pelas crianças e jovens em formação escolar, por isso temos que
desenvolver atividades de ensino/aprendizagem com os gêneros discursivos dessa esfera
que sejam significativas e levem nossos alunos a uma prática ativa de leitura.
1
O Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Básica (SEB), criou a Rede
Nacional de Formação Continuada de Professores. O objetivo é institucionalizar a formação continuada
de profissionais da Educação. No Paraná, surgiu um consórcio de IES - formado pela UEL, UEPG, UFPR
e UNIOSTE que passaram a integrar a Rede Nacional, constituindo um dos 5 Centros de Alfabetização e
Linguagem espalhados pelo Brasil.
2
Em nosso trabalho na Rede, como uma das autoras de materiais didáticos – fascículos, vídeos e
Cd Rom, que constituem o curso de Gêneros Textuais – uma abordagem para o ensino de LP, temos
sentido que é preciso auxiliar o professor na sua intervenção didática com os gêneros textuais midiáticos
fornecendo aos professores, em formação ou em serviço, instrumentos teóricos e metodológicos que
possam ser utilizados quando se fizerem pertinentes e eficazes, sempre adaptados aos objetivos nos
diferentes contextos de ensino.
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Conclusão
Em nossos contatos com professores do ensino fundamental temos observado que, tal
como no ensino médio, a ênfase no ensino/ aprendizagem de leitura literária continua a
recair sobre a organização interna do texto, numa abordagem de cunho formal de
decodificação, à procura de informações objetivas.
REFERÊNCIAS
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Paulo: Hucitec, 1979.
__________. Gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martim
Fontes, 1992.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um
interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São
Paulo: EDUC, 2003.
CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. Ciência & Cultura, v.24, n.9,
1972.
COSSON, R. Letramento Literário – teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2007.
CRISTOVÃO, V. L. L. Modelos didáticos de gênero: uma abordagem para o ensino de
língua de língua estrangeira. Londrina: UEL, 2007.
DOLZ, J; NOVERRAZ. M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e
escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. e
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Sales Cordeiro. Campinas, SP:Mercado de Letras, 2004.
ÉRNICA, M.. O vivido e o possível catártico: para uma abordagem vigostkiana do
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Graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem. Pontifícia Universidade
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GERALDI, J.W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas:
Mercado das Letras, 1996.
______________O texto em sala de aula. Ática: 1995.
______________Portos de passagem. São Paulo: Fontes, 1993.
GONÇALVES, A. V. Ferramentas didáticas e ensino: da teoria à prática de sala de
aula. In: Nascimento (Org.). Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos de
ensino. São Carlos: Claraluz, 2009.
GRILLO, S.V. Esfera e Campo. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-
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1
Trata-se de um projeto de estágio intitulado Formação de alunos leitores de poesia: duas
perspectivas de recepção, que foi realizado para fins avaliativos do curso de Licenciatura em Língua
Portuguesa da Universidade Federal de Goiás em 2008.
2
Pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Goiás.
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Para a elaboração das estratégias de formação de leitores a partir dos dados obtidos
sobre a ação dos mediadores de leitura, tomaremos a voz de Antonio Candido (1972,
1995), Ana Maria Lisboa de Mello (1995) e Ligia Chiappini (2005) para reforçar a
importância da literatura na formação do homem, de Melo Neto (1998) para justificar a
necessidade de formar leitores da lírica brasileira moderna, de Nunes (1996) para
endossar o auto-conhecimento promovido pela leitura de poesia, de Umberto Eco
(2004) para compreender o espaço do leitor-modelo dentro do texto e de Johan
Huizinga (2000) para elaborar as estratégias de leitura de poesia enquanto jogo com a
linguagem. Vejamos quais são os pontos de referência para a elaboração do mapa de
nosso caminho.
A estética da recepção, assim como a sociologia da leitura, tem como foco de suas
investigações o leitor no que condiz ao fenômeno da leitura. No entanto, os estudos de
Jauss embasam a investigação sobre a relação direta entre o leitor e o texto, já os de
Escarpit estão relacionados às problemáticas extrínsecas do ato de ler, aos mediadores
sociais e sua interferência nesse diálogo.
Deste modo, buscamos perceber como a escola interfere na interação entre os dois
últimos componentes dessa tríade, a recepção da obra e a comunicação entre ela e o
aluno da segunda fase do Ensino Fundamental. A natureza desse diálogo entre literatura
e leitor é um dos focos de nossa investigação.
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A sociologia da leitura analisa o literário de acordo com três etapas, que são a
produção, a circulação e o consumo. A produção envolve os fatores que interferem na
elaboração do livro, tais como as influências sofridas pelo autor. A circulação diz
respeito à publicação e à distribuição da obra literária, como, por exemplo, o trabalho de
editores e críticos literários, assim como o de bibliotecas e bancas de revistas. O
consumo, parte que mais nos interessa, condiz com a análise dos diferentes tipos de
público leitor e ainda na formação desses públicos. Essa formação é investigada a partir
do contexto social em que está inserido o indivíduo observado, sendo assim, possível
analisar as interferências que esse processo sofre, sejam elas positivas ou negativas
(ESCARPIT, 1970, p.32).
cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não
saberíamos penetrar” e ainda que ela “nos desperta para a vida pessoal do espírito”
(1989, p. 35).
Entretanto, mesmo com essa perspectiva negativa, o texto poético está entre os
gêneros preferidos de leitores de 11 a 17 anos segundo a pesquisa já citada, Retratos da
leitura no Brasil. Diante de dados como esses, observamos na escola como é a interação
para que possamos propor estratégias de (trans)formação desses alunos em “leitores
modelos”, ou seja, que mostrem a eles como seu trabalho de leitura é importante para a
realização do texto e como esse elemento é “um mecanismo preguiçoso (ou econômico)
que vive da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu” (ECO, 2004, p.37).
Cabe ressaltar que não buscamos formular um receituário de leitura de poesia, mas sim,
realizar práticas adequadas de leitura da palavra poética e refletir sobre elas.
poético para que o aluno se envolva em seus inúmeros sentidos e imagens e se perceba
dentro dele ou compreenda seus reflexos.
Alguns de nossos desafios serão encontrar e praticar novos meios de trabalhar com a
poesia na sala de aula, de modo que isso seja significativo para os alunos e tenha um
sentido concreto para suas experiências de vida. Acreditamos, assim como Barker e
Escarpit (1975, p.143), que “o ensino da literatura deve ser uma espécie de viagem de
exploração que levará a criança a descobrir por si mesma o que, na literatura antiga ou
moderna, corresponde melhor aos anseios adormecidos nela, e cuja realização, uma vez
conscientizados esses desejos, ela buscará pelo resto de sua vida através da leitura”.
Para isso, as estratégias serão criadas com base em Huizinga (2000), que aponta a
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origem da poesia no jogo e, por isso, envolvida com elementos lúdicos: “o que a
linguagem poética faz é essencialmente jogar com as palavras. Ordena-as de maneira
harmoniosa, e injeta mistério em cada uma delas, de modo que cada imagem passa a
encerrar a solução de um enigma” (p. 149). Ainda segundo o autor, “as escolas líricas
modernas (...) que gostam de envolver o sentido numa palavra enigmática permanecem
fiéis à essência de sua arte” (Ibidem, p. 150).
Tendo iniciado o estudo dos referenciais para traçar o mapa do caminho, resta-nos
agora perfazer o caminho propriamente dito, analisando e resolvendo seus obstáculos
em busca de um tesouro que foi perdido pelo aluno na escola: o contato com a palavra
poética. Nossa missão é construir pontes, abrir passagens e iluminar caminhos, enfim,
restituir o direito à palavra poética ao aluno.
REFERÊNCIAS
Introdução
O romance proposto para análise é O Olho Mais Azul (The Bluest Eye) da escritora
norte-americana Toni Morrison, publicado em 1970. A autora retrata o cotidiano de uma
família negra muito pobre nos Estados Unidos na década de 40, época ainda marcada por
forte racismo naquele país. No entanto, ela não usa diretamente o racismo como tema
central do seu enredo. O centro está na subjetividade, as personagens são negras e
predominantemente mulheres. Portanto, temos a visão do indivíduo negro daquela época
pela ótica feminina, como ele se via, se valorizava, se sentia, e como era influenciado
pelo meio em que vivia.
O foco desse estudo se concentra na questão da identidade das personagens principais
e de como o contexto social no qual elas estão inseridas influencia na constituição de
suas identidades. Contudo, nos deteremos com mais atenção a uma personagem: a
pequena e frágil Pecola, personagem central do enredo.
O objetivo da análise desse romance é investigar a forma como se processa a
constituição da identidade da personagem principal - Pecola. Se somos seres sociais e
históricos, logo somos produto de tal meio. No entanto, a identidade de Pecola ao invés
de ser construída, passa por um processo inverso. A pobre menina negra é levada pelas
circunstâncias e pelo meio à reduzida condição de um não-ser. Sua identidade é anulada,
quando deveria ser construída.
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A sociedade como um todo, sempre buscou desde os tempos mais remotos a divisão
de classes. A classificação dos grupos era determinada basicamente pelas noções de
homogeneidade e heterogeneidade. O agrupamento em classe se dá pela proximidade
daqueles que são semelhantes. Aqueles que destoavam dessa classe eram classificados
em outra.
Na verdade, essa classificação não buscava apenas formar grupos sociais diferentes.
Seu intuito maior era e continua sendo criar uma ordem hierárquica na qual uma classe
se sobreponha à outra. Entra em questão o jogo de poder que define quem é diferente
como inferior. Dessa forma, o diferente pode ser subjugado ao domínio da classe dita
superior.
As divisões em classes se baseiam predominantemente nas diferenças físicas, o que
envolve mais precisamente o gênero (masculino/feminino) e a raça. Seguido pelas
divisões religiosas e econômicas. O enfoque desse trabalho se deterá à questão do
gênero e da raça.
A estratificação da humanidade em raças é um constructo fundamentalmente social.
De acordo com Magnoli (2009),
A biologia reconhece espécies monotípicas, nas quais todos os
indivíduos fazem parte da mesma raça, e espécies politípicas, nas
quais é possível identificar raças distintas. A espécie humana é
monotípica daí a impossibilidade, experimentada historicamente, de se
alcançar uma classificação racial consensual. (Magnoli, 2009, p.21)
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Em outras palavras não existem raças humanas diferentes, há apenas uma única raça. Seria
impossível dimensionar o impacto social e psicológico que a discriminação teve sobre
os grupos sociais marginalizados. Que identidade foi construída no meio hostil em que
eles viviam? Que visão eles tinham deles mesmos? Até que ponto foi possível suportar
a pressão do grupo dominante e tentar escapar dela? Enfim, muitas são as perguntas.
Quando falamos em identidade de um grupo, parece que se está falando de algo
uniforme e único para todos. Mas sabemos que cada sujeito é único. Por outro lado esse
sujeito não se realiza por si mesmo. “Toda subjetividade configura-se, portanto, a partir
do, com o e no universo do grupo e/ou classe. E esse universo se plasma no existir do
outro, em confronto ou complementação.” (BACCEGA, 2007, p.24)
Não podemos esquecer que estes grupos fazem parte de um grande grupo que é a
nação. Todos os grupos coabitam em um mesmo meio no qual circula uma cultura
nacional. Para Hall (2006, p.51), “As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre ‘a
nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades.”
Por outro lado o mesmo autor argumenta, “... não importa quão diferentes seus
membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca
unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à
mesma e grande família nacional” (HALL, 2006, p.59). Isso dá também uma falsa idéia
de igualdade, coisa que na prática nem sempre funciona dessa forma.
Pela cultura nacional perpassa um fortíssimo discurso ideológico proveniente do
grupo que possui o poder. De acordo com a definição do Penguin Dictionary of
Sociology, “uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que
influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmo.”
(HALL, 2006, p.50).
Como os integrantes dos grupos marginalizados se viam se a visão da cultura
nacional não privilegiava a diferença? Ter uma nacionalidade não corresponde a ter uma
identidade nacional. Hall (2006) argumenta que as identidades nacionais não são coisas
com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da
representação.
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1
“A explosão de teorias recentes sobre raça, gênero, e sexualidade no campo dos estudos literários deve
muito ao fato da literatura fornecer materiais ricos para complicadas descrições políticas e sociológicas do
papel de tais fatores na construção da identidade.” (Tradução minha)
2
“Nos escritos teóricos, os argumentos sobre a identidade social tendem a focar, ainda nas identidades de
grupo: o que é ser mulher? Ser negro?” (Tradução minha)
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século XX. Antes disso, ela foi tratada com indiferença. O cânone literário era
masculino, produzido e selecionado por homens. A representação da mulher a partir do
ponto de vista do romancista era sempre de uma posição marginal ao homem, o homem
era o centro.
A literatura da mulher era vista como literatura menor ou marginal, não por ter uma
qualidade literária inferior, mas por ser pouco conhecida da história e da crítica literária
e por parte do grande público leitor. O acesso à educação foi determinante para que as
mulheres começassem a produzir literatura. A construção da imagem da mulher em um
romance a partir do olhar de uma mulher muda completamente o foco e a valorização
dessa imagem. Diferente do homem que por mais que tente se distanciar de seu gênero,
ele sempre falará da mulher a partir da sua posição de homem.
Toni Morrison falou a partir da sua posição de mulher e de negra. Ela possui a
experiência real da identidade desse grupo. Sua obra de ficção se apóia em um contexto
histórico presenciado por ela. Tanto que sua inspiração vem de um fato marcante
vivenciado na sua infância. A história de O Olho Mais Azul surgiu de um desejo de uma
menina que a autora Toni Morrison ouviu quando criança. A menina, negra, disse que
queria ter olhos azuis. Esse desejo ecoou em sua mente por mais de vinte anos. A autora
se questionava de onde vinha aquela aversão a si mesma, de origem racial, que a menina
sentia.
Toni Morrison queria saber onde se aprende isso, quem disse isso a menina, que
olhares a fizeram desejar ser diferente. Quando ela decide escrever esse romance, é uma
busca dos relances dos olhares que condenou a menina. A autora tenta dramatizar a
devastação que o desprezo racial, mesmo casual, pode causar. Para isso, ela escolhe o
membro mais vulnerável e delicado da sociedade: uma mulher, uma criança.
artistas por uma imagem definida da personagem é, em um grau considerável, uma luta
dele consigo mesmo.”
Toni Morrison submete Pecola, sua personagem principal, a um processo de
destruição de identidade, alimentado pelos olhares das outras personagens. No entanto,
ela faz isso sem desumanizar as personagens que a destruíram. A autora se mostrou
cuidadosamente preocupada com os objetivos que ela pretendia alcançar através da
criação de suas personagens. Elas não deviam ser vistas como boas ou más, e sim como
pessoas que trazem no seu histórico fortes marcas de uma realidade dura e cruel.
O mundo criado pelo autor com base no princípio da verossimilhança nos dá a
conhecer um todo que o mundo real só nos permite conhecer parcialmente. A obra de
arte traz em si uma unicidade e completude que dispensa explicações adicionais.
Bakhtin explica essa questão da seguinte forma:
O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em
particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem, como
enxerga e conhece mais que elas, e nesse excedente de visão e
conhecimento do autor , sempre determinado e estável em relação a
cada personagem, é que se encontram todos os elementos do
acabamento do todo, quer das personagens, quer do acontecimento
conjunto de suas vidas, isto é, do todo da obra. (BAKHTIN, 2003,
p.11).
Em O Olho Mais Azul, a autora denuncia o impacto que o desprezo racial tem na
vida das pessoas. Mas em nenhum momento ela fala sobre isso ou dá explicações.
Conhecemos e compreendemos do que se trata através das ações e das falas de suas
personagens. Ela não fala sobre a demonização do negro, ela cria um contexto social no
qual ele é demonizado. Sabemos disso pelo todo da obra.
Temos consciência daquilo que nem mesmo as personagens enxergam através do
excedente de visão dado pelo autor. A consciência da personagem é dominada pela
consciência do autor. Contudo, o autor precisa manter certa distância da personagem
para que ele possa enxergá-la exteriormente.
Toni Morrison esclarece no posfácio do seu romance que seu objetivo era levar o
leitor a se fazer perguntas sobre o esmagamento social de Pecola e não levá-lo a sentir
pena dela. Ela pretendia que o leitor dialogasse com a obra, que ele fosse instigado e
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não simplesmente tocado. O modo como ela criou suas personagens foi uma tentativa
de evitar que isso acontecesse.
Suas personagens tiveram suas identidades construídas a partir da visão do outro,
pois a imagem externa apenas o outro tem de nós, o corpo interior não vivencia a
imagem externa. Para Bakhtin (2003), o eu interior (essência) não existe, ele é
construído a partir do diálogo com o outro, ou seja, é o outro que me diz.
O mesmo autor acrescenta que se pode dizer que o homem tem uma necessidade
estética absoluta do outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o
único capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada; tal
personalidade não existe se o outro não a cria.
A partir de uma comparação entre Pecola a personagem principal de O Olho Mais
Azul e Claudia a narradora-personagem do romance, analisaremos como cada uma delas
responde aos olhares exteriores para formar seu eu interior, exemplificando através de
algumas passagens do romance.
Começaremos por Claudia, uma garota negra de 9 anos de idade que participa e narra
a triste história de Pecola. Ao narrar a história ela já não é mais uma criança, mas nos
diálogos diretos a autora usa a linguagem infantil para dar mais autenticidade à fala das
personagens infantis. Claudia é uma figura emblemática que mistura inocência e revolta
diante de situações de discriminação racial. Ela demonstra um aguçado senso de
orgulho e consciência do seu valor. Esta personagem é tida como o alter-ego da autora
Toni Morrison.
Claudia vive em uma casa velha com sua irmã Frieda (10 anos), seu pai e sua mãe.
Naquela época as crianças não deveriam dirigir a palavra aos adultos a não ser que
fossem questionadas. As meninas recebem um tratamento frio e distante de seus pais.
Não existia diálogo e interação entre a família.
Claudia relata o episódio em que ela ficou doente, dando detalhes de como era a
relação familiar. Sua mãe, a sra. MacTeer a trata com impaciência e frieza, como se
estivesse com raiva. Sua mãe diz, Por que foi que você vomitou na roupa de cama? Não
podia ter tido o bom senso de esticar a cabeça para fora da cama? Olhe o que você fez.
Acha que eu tenho tempo sobrando para lavar o seu vômito? (MORRISON, 2003, p.15)
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Embora as palavras da mãe sejam duras e não demonstrem carinho, Claudia percebe
que os cuidados dela mostram que ela se importa com a filha. Claudia guarda isso na
lembrança, Assim quando penso em outono, penso em alguém que tem mãos e que não
quer que eu morra. (MORRISON, 2003, p.16)
Fora do círculo familiar, veremos como Claudia enxerga e reage ao convívio social.
Ela é contundente quando fala da sua repulsa por garotas brancas, a quem ela diz odiar.
No entanto, sua raiva não está diretamente ligada às meninas, mas ao que faz com que
as pessoas tratem enternecidamente essas meninas e não a ela. Quando ela conta da
boneca que ganhou de presente de Natal, uma boneca grande de olhos azuis, seu único
desejo era desmembrá-la para descobrir o que havia de tão encantador nela.
Claudia não conseguia entender o segredo das garotinhas brancas e se questionava:
O que é que fazia as pessoas olhar para elas e dizer “Aaaaahhhhhh”, mas não para
mim? (MORRISON, 2003, p.26). Apesar de tudo Claudia e Frieda sentiam orgulho do
que eram. Claudia diz, Sentiámo-nos bem em nossa pele, saboreávamos as notícias que
nossos sentidos nos transmitiam, admirávamos nossa sujeira, cultivávamos nossas
cicatrizes, e não conseguíamos compreender essa falta de valor. (MORRISON, 2003,
p.78)
Outra coisa que irritava Claudia era a falta de reação de Pecola diante das
humilhações que ela sofria, ela não compreendia a inércia de Pecola Claudia: O
sofrimento dela me contrariou. Tive vontade de abri-la toda, afiar-lhe as garras, enfiar
um pau naquela espinha arqueada e murcha, forçá-la a se pôr ereta e a cuspir o
sofrimento na rua. (MORRISON, 2003, p.77)
Enfim, Claudia trava batalhas constantes contra as forças externas do preconceito
racial que tentam aniquilá-la. Mas por confrontar com essas forças, ela consegue vencer
a pressão do meio. Dentro do romance ela é a voz que clama por respeito e
reconhecimento.
Trataremos agora de Pecola, personagem central do romance, uma garota de 11 anos
que anseia por ser amada. Ao contrário de Claudia, Pecola jamais questiona ou se
defende diante das humilhações sofridas.
Pecola tem uma história bem mais trágica do que Claudia, pois além da violência
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simbólica ela sofre também violência sexual do próprio pai. Seu ardente desejo por ter
olhos azuis mostra a profunda aversão que sente por ela mesma. Mas de onde vem isso?
Quem a fez acreditar que tendo olhos azuis, ela seria amada? Ela jamais reclama,
questiona ou briga. A única pergunta que ela busca ingenuamente por resposta é o que
fazer para ser amada.
Uma identidade em formação como a de Pecola requer a presença de amor. Segundo
Bakhtin (2003, p.47),
Esse amor de mãe e das outras pessoas, que desde a infância forma o
homem de fora ao longo de toda a sua vida, dá consistência ao seu
corpo interior. É verdade que não lhe proporciona uma imagem
intuitivamente evidente do seu valor externo, mas lhe faculta um valor
potencial desse corpo, valor que só pode ser realizado por outra
pessoa.
Pecola ao longo de sua existência não recebe nem o amor de mãe ou de qualquer
outra pessoa. Assim, seu corpo interior não adquire o que Bakhtin chamou de
consistência e seu corpo não tem valor algum em si mesmo. Vejamos alguns exemplos
de situações que contribuíram para levar Pecola a essa condição de não-ser.
No capítulo Outono em que ocorre a primeira menstruação de Pecola, Frieda diz a
ela que agora ela já pode ter um bebê. Pecola na sua ingenuidade pergunta como. Frieda
responde que alguém tem que amá-la. Pecola pensa um pouco e ainda sem entender faz
outra pergunta, Como é que se faz isso? Quero dizer, como é que a gente faz alguém
amar a gente? (MORRISON, 2003, p.36). Para essa pergunta, ela nunca encontrou
resposta.
Pecola morava com sua mãe, a quem chamava de sra Breedlove o que mostra o
distanciamento que existe entre mãe e filha, seu pai Cholly e seu irmão Sammy. Essa
família não construiu nenhum laço afetivo, não formaram um lar apesar de dividir a
mesma casa. A descrição física da casa reflete como são as pessoas que lá habitam. O
narrador onisciente sintetiza a casa dos Breedloves da seguinte forma: A única coisa
viva na casa dos Breedloves era o fogareiro a carvão, que tinha vida independente de
tudo e de todos. (MORRISON, 2003, p.41)
De acordo com a descrição física, os Breedloves eram donos de um feiúra exclusiva.
No entanto, mais do que fisicamente sua feiúra era alimentada por sua própria crença
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Para a sua mãe, a pessoa que mais deveria amá-la, Pecola era ninguém. Isso deve ter
sido determinante para a desconstrução de sua identidade. Muitas e ainda mais
aterrorizantes são as outras situações pelas quais Pecola passou. Mas os exemplos dados
já servem para perceber o impacto que o outro externo tem na formação do seu corpo
interior.
Conclusão
O que podemos concluir é que ainda que entre a história de Claudia e Pecola haja
muitas diferenças, o que é determinante na construção de suas identidades é o
dialogismo. Claudia dialoga com os estímulos externos, seja para refutá-los, questioná-
los ou negá-los. Seu corpo interior é construído através do debate com o outro exterior.
Pecola por sua vez não dialoga, não responde nunca aos estímulos recebidos. Ela não
expressa raiva, indignação ou revolta. Recebe e aceita tudo sem nenhum
questionamento sequer. Todas as impressões negativas do mundo exterior são
internalizadas. E por ela não existir para o outro, ela acaba por não existir para ela
mesma. Isso a leva a um profundo estado de alienação psicológica, no qual ela cria um
outro eu, um eu imaginário. Ela perde sua identidade, ela realmente se torna ninguém.
Curiosamente, no posfácio escrito pela autora ela compara a história do seu romance
com a vida de Pecola. Toni Morrison diz que a primeira publicação de sua obra foi
desprezada, trivializada e mal interpretada assim como Pecola. E foram necessários
vinte e cinco anos para que a obra recebesse o respeito que ela merecia. A própria
autora também foi vítima do preconceito racial e da intolerância social.
Referências
Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.21-85b.
CULLER, Jonathan. Literary Theory: a very short introduction. Great Britain: Oxford,
1997.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da
Silva, Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue: história do pensamento racial. São Paulo:
Contexto, 2009.
MORRISON, Toni. O Olho Mais Azul. Trad. Manuel Paulo Ferreira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
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Introdução
Se considerarmos que a ficção reflete a realidade, por que a felicidade nunca ocorre
plenamente no discurso literário da autora?
Para tentar responder à problemática da felicidade em Clarice Lispector,
consideraremos as hipóteses: a felicidade está associada ao processo da escritura, sendo
o paradoxo uma das chaves desse processo; a constante busca da construção da
felicidade reflete a união das alegrias e agonias do ser humano e a metáfora da
felicidade revela o processo para se chegar à epifania.
A fim de aprofundarmos nossos estudos sobre a construção da felicidade em
Lispector, escolhemos o conto “Felicidade clandestina”, no qual a personagem central
possui um desejo difícil de ser alcançado e quando a felicidade surge, não é plena.
Para investigar o método utilizado por Lispector na tessitura de seu texto,
fundamentamos nossos estudos para a análise de seu conto, no tocante, principalmente,
à epifania, nos estudos de Benedito Nunes, Affonso Romano de Sant’Anna e Olga de
Sá. No que diz respeito à gênese dos estudos sobre a felicidade, recorremos a Aristóteles
e Epicuro. Com relação à felicidade, a bibliografia é diversificada e relaciona-se à
filosofia, à psicologia, dentre outras.
A dialética da felicidade busca averiguar nossa hipótese de que o paradoxo,
encontrado nos textos clariceanos, mimetiza as contradições do ser e da linguagem.
Apresenta, ainda, considerações acerca da epifania, a fim de extrair o conceito de
felicidade para a autora.
1. A estrutura do conto
Essa estrutura, de acordo com Nádia Gotlib (1995, pp. 269/270), é uma aparente
estrutura clássica, organizada segundo princípios de obediência à ordem de início, meio
e fim. Entretanto, não é suficiente para explicitar a sua construção, já que junto a esta
aparente coexiste outra, mais subterrânea, que praticamente questiona e desmonta a
primeira, sob o disfarce de outros elementos de composição, que instauram a desordem,
o desequilíbrio, o caos.
Há, portanto, uma narrativa oculta, escrita nas entrelinhas, que só o leitor atento é
capaz de encontrá-la e decifrá-la. A esse respeito, Ricardo Piglia (2004, p. 105) defende
a ideia de que o conto é construído para revelar artificialmente algo que está oculto. Há
um sentido cifrado e, no fundo, “a trama de um relato esconde sempre a esperança de
uma epifania. Espera-se algo inesperado, e isso vale também para quem escreve a
história”. O que, aparentemente, é uma narrativa simples e despretensiosa, quando
desvendada, adquire peso material, pois remete o leitor a uma reflexão sobre verdades
universais.
O conto “Felicidade clandestina” é classificado por Nádia Gotlib (1995) como parte
dos contos de memória, que contam as histórias da infância de Clarice Lispector, na
cidade de Recife. A respeito desse conto, Marina Colasanti (1998, pág?//) afirma que
“sua irmã Tânia ainda se lembra da menina, filha do livreiro, que encontramos em
‘Felicidade clandestina’, atormentando Clarice por conta do empréstimo de um livro”.
Ligia Chiappini, em O Foco Narrativo, utiliza o conceito de Wayne Booth, em A
retórica da ficção, para explicitar a existência de um autor implícito numa narrativa:
lo” (FC, 1998, p. 10) e, em algumas passagens, sentimos a presença do autor implícito,
que nos fala afetuosamente: “Como contar o que se seguiu?” (FC, 1998, p. 11).
O autor implícito pensa a partir do efeito que deseja causar. Sendo assim, na oração:
“O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico” (FC, 1998, p.
10), o paradoxo “tranquilo e diabólico” evidencia a “tortura chinesa”, sugerida
anteriormente. É o que podemos confirmar nas palavras de Edgar Allan Poe:
2. A dialética da felicidade
Dor e prazer estão, portanto, intimamente ligados, de acordo com esse pensamento.
O prazer passa a delimitar o início e o fim de uma vida feliz. Às vezes, é necessário
passar por um período de sofrimento para se alcançar um prazer maior, ao passo que se
não passarmos por momentos de sofrimento, não sentiremos necessidade de prazer ou
não nos sentiremos plenamente satisfeitos com o prazer alcançado.
Embora, aparentemente, todo tipo de prazer constitua um bem por natureza, é
necessário medir prazer e dor, de acordo com os critérios dos benefícios e dos danos.
O prazer, como bem principal inato, não é algo que deva ser buscado
a todo custo e indiscriminadamente, já que às vezes pode resultar em
dor. Do mesmo modo, uma dor nem sempre deve ser evitada, já que
pode resultar em prazer (EPICURO, 1997, p.16).
felicidade é construída por meio de um exercício diário para a atualização das potências
da alma; não pode ser conseguida de uma só vez, nem em um só dia, mas consiste em
uma ação que se prolonga pela vida inteira.
O bem material representado pela posse do livro poderia ser a materialização de todo
o imaginário que o objeto representa. O livro a conduziria a reinos encantados e
permitiria um questionamento sobre as verdades existenciais.
As sensações da personagem, representadas no discurso por meio de uma sequência
de paradoxos, revelam como a felicidade é construída. As angústias e pequenas alegrias
que a narradora sente, ao longo do texto, evidenciam o próprio fazer literário. Cortázar,
em Valise de cronópio (2004, p. 122), diz que, em um conto, o ambiente, o espaço, o
tempo e a narração se unem para formar o acontecimento único. Em “Felicidade
clandestina”, o acontecimento único é a própria linguagem do texto que materializa o
prazer da leitura.
O tempo parece nos mostrar que a felicidade é sempre adiada para o “dia seguinte”,
expressão esta que aparece pelo menos nove vezes durante a narrativa. Enquanto a
personagem está sendo “torturada”, o ritmo da narrativa é mais lento, a fim de nos
mostrar o quanto essa situação era angustiante e parecia interminável. “Quanto tempo?
Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo do seu
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corpo grosso” (FC, 1998, p. 10). A personagem sempre se perguntava até quando tudo
aquilo duraria, mas a resposta sempre era adiada para o dia seguinte, em insistente
repetição.
Tem-se, então, uma troca: agora, é a protagonista quem possui o objeto de desejo que
representa a felicidade que tanto procurava: o contato com a literatura. A posse do livro,
no 13º parágrafo, é retratada por meio da gradação: “recebi o livro”, “peguei o livro” ,
“segurava o livro”. O livro passa a ser o objeto que representa a relação de um ser
humano com a literatura: a alegria no instante em que se abre um livro e que se
perpetua em cada página, com novas descobertas e revelações. Há, portanto, uma
metalinguagem presente no conto: é uma literatura falando de literatura, ou ainda, que
serve simultaneamente de espelho temático e formal do texto.
escondia o livro e “fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter” (FC, 1998,
p. 12).
A felicidade plena, portanto, não existe nesse contexto. Ela é obtida a custo de muito
sofrimento e quando alcançada é passageira. Assim como o livro poderia ficar com a
narradora por tempo indefinido, a materialidade dessa felicidade é questionável, pois o
fato de o objeto de desejo não pertencer à narradora, esse pode ser devolvido ao seu
legítimo dono a qualquer momento. Não é por acaso que o conto termina com a frase:
“Não era uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”. A imagem do
amante personificando o objeto-livro promove a clandestinidade e nos remete a
analogias que materializam o prazer da leitura, com encontros furtivos, misteriosos, com
momentos de buscas e de encontros. Promove também o prolongamento desse prazer,
que é sempre adiado, para “o dia seguinte”, para que não se chegue ao fim do encontro,
ao final do livro.
No começo do conto, ela “não vivia”, agora, ela “vivia no ar”. Descobrimos,
portanto, a revelação que esta experiência trouxe à narradora-personagem, pois “no
fundo, a trama de um relato esconde sempre a esperança de uma epifania. Espera-se
algo inesperado, e isso vale também para quem escreve a história” (PIGLIA, 2004, p.
105).
A epifania que emerge da tensão conflitiva, de acordo com Benedito Nunes (1999,
p.87), aguça a percepção visual de forma penetrante, trazendo a nu toda uma existência
contida e revelada de maneira impulsiva e caótica. “Momento privilegiado sob o
aspecto de descortínio da existência, maldição e fatalidade sob o aspecto da ruptura,
esse instante assinala o clímax do desenvolvimento da narrativa”.
Conclusão
Concluímos, portanto, que as narrativas clariceanas ocorrem sem happy end, pois
epifanicamente revelam o ser humano, com suas indagações e sua constante tentativa de
comunhão com o cosmos.
Referências
[...] não importa quão diferentes [os membros de uma nação] possam
ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca
unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como
pertencendo à mesma e grande família nacional.
1
Mineira radicada no Rio de Janeiro desde 1973, Conceição Evaristo é graduada em Letras pela UFRJ, é
Mestre em Literatura Brasileira pela PUC/RJ e doutoranda em Letras (Literatura Comparada) pela UFF.
Autora dos romances Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006), também publicou Poemas de
recordação e outros movimentos (2008), além de contos e poemas na série Cadernos Negros.
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2
A ideia do termo sequestrados da sociedade está presente no romance Senhora, de José de Alencar, e
faz referência ao diálogo entre os personagens Fernando e Aurélia: “Então entende que depois de privar-
se um homem de sua liberdade, de o rebaixar ante a própria consciência, de o haver transformado em um
instrumento, é lícito, a pretexto de alforria, abandonar essa criatura a quem sequestraram da sociedade?”
(ALENCAR apud SUSSEKIND, 1982, p. 28)
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Quando Ponciá desceu do colo da mãe e andou pela primeira vez, era como ver Vô
Vicêncio caminhando: “Andava com um dos braços escondido às costas e tinha a
mãozinha fechada como se fosse cotó.” (EVARISTO, 2003, p. 16). E quando aprendeu
a trabalhar com a argila fez um “homem-barro” igual ao avô: “A boca ensaia sorrisos,
mas no rosto, a expressão era de dor.” (EVARISTO, 2003, p. 22). Ela parecia com ele
em tudo, até na maneira de olhar o vazio, inclusive, o próprio vazio. E, assim, ela
passava dias e noites olhando o para vazio da vida e de si mesma: “Nas primeiras vezes
que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si, ficou atordoada. O
que havia acontecido? Quanto tempo tinha ficado naquele estado?” (EVARISTO, 2003,
p. 45). No início ela sentia medo, mas depois começou a gostar das ausências, cada vez
mais frequentes. Ela parou de trabalhar e passava o dia inteiro sentada num banco
olhando a rua, ora perdida dentro de si, ora lembrando-se do passado. Enquanto isso,
seu companheiro trabalhava na construção ou demolição de algum lugar, efetuando um
trabalho braçal e pesado. Em muitos momentos, parecia que a identidade de Ponciá
estava “flutuando”, ela precisava da mãe, Maria Vicêncio, e do irmão, Luandi José
Vicêncio, para recuperá-la, senão corria o risco de perdê-la de vez. De acordo com
Zygmunt Bauman (2005, p. 19):
Luandi José Vicêncio trabalhava “nas terras dos brancos” com pai, como já foi
mencionado anteriormente. Enquanto o pai estava vivo, os dois passavam quase todo
tempo lá, pode-se afirmar que continuavam na condição de escravos. Certo dia, em
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busca da irmã e de uma vida melhor, assim como ela, ele também migrou da roça para a
cidade. Entretanto, o que uma sociedade constituída por classes poderia reservar para
eles? Ponciá, empregada doméstica; Luandi, auxiliar de limpeza. Nasceram na pobreza,
cresceram na pobreza e agora? Este dormia de favor na delegacia onde trabalhava,
aquela trabalhou durante anos para conseguir comprar um barraco na favela:
Porém, Luandi pensava ao contrário da irmã, ele queria ser soldado e com a ajuda
do Soldado Nestor, também negro e vindo da roça, ele aprendeu a ler, porque para
trabalhar nessa profissão tinha de saber ler e assinar o próprio nome. Mas, na verdade,
ele queria mesmo era mandar, bater e assumir a máscara branca que lhe foi imposta: “É
na obediência e na reprodução do olhar e da fala do senhor que o negro vai construindo
seu autoconceito. Construção que se transforma em travestimento, em aquisição de uma
máscara branca que se cola ao rosto, ao corpo e à fala do negro.” (SUSSEKIND, 1982,
p. 17).
Assim como Ponciá, Luandi também voltou ao povoado, sabia que seria soldado e
queria reencontrar a mãe, levá-la para morar com ele. Contudo, a casa estava vazia, a
mãe estava peregrinando, se preparando para partir de vez rumo à cidade – ela relutou
muito, mas sabia que tinha de encarar a cidade em nome dos filhos, principalmente da
filha, pois a lei estava se cumprindo, o Vô Vicêncio da menina. Luandi voltou para a
cidade, mas deixou um bilhete com o endereço da delegacia onde trabalhava com
Nêngua Kainda, a velha que guiava, como uma orientadora da vida, todos os moradores
do povoado.
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Então, quando Maria Vicêncio voltou às “terras dos negros” antes de ir ao encontro
dos filhos, pegou o endereço com a velha e percebeu que a hora certa de partir havia
chegado. Ao descer do trem, ela encontrou o Soldado Nestor, que trabalhava na estação,
e “emocionada e desamparada caminhou em direção a ele. A vida inteira, na roça, ela só
tinha visto negros trabalhando para brancos, sempre sob as ordens de um senhor que
estivesse perto ou não.” (EVARISTO, 2003, p. 116). Ele a levou ao encontro do filho e
a alegria de rever a mãe somou-se a chegada dos documentos que fariam dele soldado,
realizariam seu desejo de “ter voz de mando”. Porém, a narradora ressalta a importância
de identidade negra ao questionar: “[...] mas de que valeria mandar tanto, se sozinho? Se
a voz de Luandi não fosse o eco encompridado de outras vozes-irmãs sofridas, a fala
dele nem no deserto cairia.” (EVARISTO, 2003, p. 94).
Apesar disso, o mais importante naquela hora era encontrar Ponciá, mas o momento
não tardou. Ela “estava muito perturbada naqueles dias. [...] Falava muito sozinha, ora
chorava, ora ria. Pedia barro, queria voltar ao rio.” (EVARISTO, 2003, p. 120). Depois
de muitos anos vivendo como “uma morta-viva dentro de casa”, Ponciá decidiu ir à
estação de trem e voltar ao povoado, ir ao encontro das raízes, no rio. Nesse dia, o
Soldado Luandi José Vicêncio iria trabalhar pela primeira vez fora da delegacia, na
estação. O local estava vazio, foi então que ele viu “a imagem de uma mulher que ia e
vinha, num caminhar sem nexo, quase em círculo, no lado oposto em que ele se
encontrava.” (EVARISTO, 2003, p. 123). Ponciá Vicêncio voltara para a família,
poderia cumprir sem medo a herança que o avô lhe deixou:
Conclusão
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Portanto, visto que a sociedade contemporânea é formada por várias etnias, mas
forjada pela ideologia da identidade nacional, a autora dessa narrativa mnemônica
buscou na tradição cultural africana a matéria-prima para construir sua prosa poética e
reafirmar a identidade negra. Tal aspecto, problematizado neste artigo, está evidente ao
longo do romance e, principalmente, no seguinte trecho, quando a narradora destaca a
importância da oralidade:
[Luandi] cantou alto uma cantiga que aprendera com o pai, quando
eles trabalhavam na terra dos brancos. Era uma canção que os negros
mais velhos ensinavam aos mais novos. Eles diziam ser uma cantiga
de voltar que os homens, lá na África, entoavam sempre quando
estavam regressando da pesca, da caça ou de algum lugar. [...] Luandi
não entendia as palavras do canto, sabia, porém, que era uma língua
que alguns negros falavam ainda, principalmente os velhos.
(EVARISTO, 2003, p. 87)
Referências
ALGUNS PRESSUPOSTOS
Para tanto, focalizamos aqui algumas indagações pertinentes que irão permear a
nossa evolução ensaística ao longo desse trabalho: por que agimos diferentemente
estabelecendo privilégios no trato com estrangeiros que visitam nosso país? Por que
acreditamos que somos incapazes de melhorar o cenário do Brasil no exterior? Até
quando iremos manter a práxis de uma postura alienada aos centros capitalistas e
ponderarmos tais situações? Por qual motivo outorgamos tal raciocínio e esse tipo de
comportamento? Quais foram às razões ideológicas e filosóficas que fizeram tantos
escritores da nossa literatura abordar tal tema? Como nossa matriz histórica-sociológica
tem se modificado ao longo do tempo? Como se formula o escopo do conto “Miss Edith
1
Gostaria de agradecer as devidas leituras e sugestões de minha orientadora Dra Patrícia Pertele - UFSC
2
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Record, 1990. p. 308
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e seu Tio” 3e o que sua leitura possui de emblemática a esses fatores já questionados? O
argumento abaixo enfatiza ainda mais o questionamento proposto nesse trabalho.
Antonio Candido apresenta assim:
3
Durante as citações do conto “Miss Edith e seu Tio” que serão extraídas ao longo do nosso ensaio.
Enfatizamos que iremos adotar preferencialmente o respectivo número da página citada.
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Ao optar pela junção entre ficção e história, o escritor carioca, recupera idéias
sobre a História do Brasil, especificamente do caso dos grandes empréstimos que nosso
célebre Barão de Mauá 4 contraiu nos fins do século XIX. Os banqueiros ingleses
Rothschilds 5 emprestaram uma quantidade significativa de dinheiro para financiar boa
parte das obras nacionais. Justifica o estudioso Marins: “A habilidade de Lima Barreto
em trabalhar com dados históricos é admirável. Em poucas linhas ele situa o leitor em
uma realidade histórica rica que se esconde por trás de toda a atmosfera de mistificação
que envolve o conto.” (MARINS, 2004, p. 226). Todavia, o escritor carioca conseguiu
empreender tal mescla, utilizando o pano de fundo histórico como cenário persuasivo
realístico para aclimatar sua tessitura romanesca.
4
Para um maior aprofundamento sobre tal questão, recomendamos a leitura da obra Mauá, Empresário
do Império, Jorge Caldeira, Cia das Letras. São Paulo, 1995.
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Ressalvamos que, no dialogar com tais correntes teóricas e ideológicas, não será
intenção e objetivo de legitimar nenhum discurso e sim refletirmos e levantarmos
hipóteses necessárias, postulando consequentemente à compreensão de tais questões. A
leitura do conto “Miss Edith e seu tio”, no entanto, não pode ser feita de forma ingênua,
é necessário desmembrar os processos de denúncia social, sem outorgarmos um caráter
negativo. Para isso esboçaremos as diferentes perspectivas teóricas de alguns estudiosos
sobre o assunto. Movimento que tentaremos investigar a seguir.
6
BARRETO, Lima. Conto: “O número da sepultura.” In: Histórias e sonhos. Rio de Janeiro,
7
Filme: “Turistas”, Paris Filmes, 2006.
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Ora, o divisor das águas, representado pela alfândega brasileira, acaba cedendo
notável tratamento diferenciado ofertado em caráter de respeito e uma nítida submissão
para com os estrangeiros. Cabem aqui três indagações que completam a problemática no
final da citação acima: qual seria o tipo de controle e grau de acuidade realizado pela
nossa imigração? Até quando se pode tolerar esse tipo de situação discrepante em nossa
nação? Será que nos países europeus o tratamento também funciona dessa maneira?
Possivelmente a resposta perde-se nos montantes de papéis burocráticos e no sistema
fálico do direito internacional. Volvemos agora o nosso olhar para examinar os aspectos
preponderantes no conto “Miss Edith e seu Tio”, nos parágrafos que seguem.
Recapitulando: é a partir dessa etapa que a nossa epígrafe inicial do artigo volta a fazer
efeito.
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O conto “Miss Edith e seu Tio” publicado no ano de 1914 representa os variados
aspectos e os distintos significados para os amantes da literatura barretiana. É notável
dizer que Lima evoca nesse conto a nostalgia dos efeitos da nossa colonização e da
celebração ao tratamento especial ofertado aos ingleses. O conto posteriormente fora
selecionado e republicado por Francisco de Assis Barbosa na edição denominada Feiras
e Mafuás no ano de 1953. Possivelmente, o leitor mais atento a esse conto irá verificar o
desabafo militante do escritor Lima Barreto em relação ao grau de submissão e respeito
dos brasileiros em relação aos ingleses.
O cenário do conto “Miss Edith e seu Tio” é representado por uma edificação
antiga e forte, construída no ano de 1855. Suponhamos esta data, pois o conto fora
publicado no ano de 1914, e a narrativa insinua nossa postulação, vejamos os detalhes:
“A construção devia datar de cerca de sessenta anos atrás [...]” (p. 01) Em detalhes: A
construção era por sinal bem ampla em vários aspectos. Uma casa que subdivide em
quartos. O terreno foi fracionado para a ocupação de prédios novos e distintos
(modernos). A casa (pensão Boa Vista) encontra-se no centro de uma chácara robusta e
ampla. Isso de certa forma caracterizava o processo de transformação e modernização
da cidade do Rio de Janeiro. (praia do flamengo). A era forte e resistente, construída
com materiais de longa duração. O escritor Lima Barreto também utiliza alegorias para
compor o seu vocabulário e ilustrar diversas passagens que remeterão aos
desencadeamentos narrativos do próprio enredo. Alguns detalhes desse cenário:
A pensão familiar "Boa Vista" ocupava uma grande casa da
praia do Flamengo, muito feia de fachada, com dous
pavimentos, possuindo bons quartos, uns nascidos com o
prédio e outros que a adaptação ao seu novo destino fizera
surgir com a divisão de antigas salas e a amputação de outros
aposentos. ( p. 01)
O estilo narrado abaixo não poderia ser mais ao rés-do-chão, prosa básica à
moda barreteana, diria-se, e, no entanto, ampla de sugestões nas entrelinhas e nos
discursos intertextuais. Tais caracteres textuais detalham a arquitetura externa e interna
do prédio e irá representar toda uma estrutura regada de tradição e vulnerabilidade da
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Estava na mentalidade de todos que fora também eles, que investiram milhões na feitura
de grandes empreendimentos na cidade do Rio de Janeiro, ou seja, daí ficava
subentendido que no trato com os ingleses era de tamanha importância uma dose de
amabilidade. Aliás, o crédito era valioso para valorizar os hóspedes abastados e fazia
crer que mereciam total dignidade. Daí o sorriso grande e amável da dona da pensão
Madame Barbosa. Já com os outros hóspedes não realizava o mesmo tratamento.
Vejamos alguns detalhes:
de distanciamento para com os ingleses. A seguir, diante de outro momento sua patroa
Madame Barbosa irá aguardar a decisão, quase que unânime do regresso dos hóspedes
que:
tomarem café, já que dali poderia ter a melhor vista da cidade maravilhosa, junto à
geografia dos morros e as variadas paisagens que comportam a orla do Flamengo. O
empregado Pedro já calculava que precisava redobrar a atenção para os ilustres
hóspedes, por isso, nem pensou duas vezes, já fora imediatamente arrumando o local do
café, assim como desejando para o outro dia uma agradável manha de sol e brisa fresca
para que os estrangeiros pudessem deslumbrar as paisagens. Vejamos nos trechos:
superioridade era visível para com os outros que estavam condicionados a ficarem na
mesma pensão. Talvez o homem britânico estivesse fazendo isso na inocência e
ingenuidade, porém na cabeça dos outros o pensamento acaba não sendo o mesmo. Será
algum tipo de problemática cultural?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Referências
BARRETO, Lima. “Miss Edith e seu Tio” In: Feiras e Mafuás, São Paulo: Mérito, 1953.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.
JUNIOR, Prado Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2004.
MARINS, Álvaro. Machado de Assis e Lima Barreto: da ironia à sátira. Rio de Janeiro:
Utópos, 2004.
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Introdução
1. O prólogo
1
Vale ressaltar que as referências críticas deste artigo são reiteradas, já que um número pequeno de
estudiosos se manifestou sobre os textos teatrais em questão.
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Anatol Rosenfeld, em tom de reverência e profecia, declarou, por mais de uma vez,
certo acolhimento que as peças de Hilda Hilst ainda receberia das companhias teatrais,
destacando e antecipando seu valor para a dramaturgia do Brasil. Em artigo publicado
em 1969, sob o título O teatro brasileiro atual, o autor faz um breve comentário sobre
as temáticas e os estilos abordados nos dramas hilstianos, destacando a qualidade
literária de seus textos, bem como apostando nas montagens que viriam a ocorrer a
partir da década de mil novecentos e setenta:
Embora peças suas já tenham sido encenadas com êxito por grupos
amadores (O rato no muro, O visitante, O novo sistema), uma delas na
Colômbia, por ocasião de um festival, sua obra ainda não encontrou o
acolhimento das companhias profissionais. Estas certamente se
interessarão mais pela sua dramaturgia depois de ela ter sido
distinguida com o Prêmio Anchieta de 1969, pela sua peça O
Verdugo, focalização dramática de problemas religiosos, morais e
políticos do nosso e de todos os tempos. (ROSENFELD, 2000, p. 168)
De fato, os anos que se seguiram foram presenteados por estréias das peças nas
regiões do sudeste e do sul do país. De 1968 até a década de 80, Claudio Willer,
Macksen Luiz ou mesmo Rosenfeld assinam as críticas publicadas nos jornais da época,
conforme as montagens que ora estreavam. A última montagem data de 1991, com a
peça A morte do Patriarca 2. Entretanto, ao contrário do que esperava Rosenfeld, a
quantidade de montagens não atingiu a expectativa de tantas apostas precedentes. Os
registros contam meras oito apresentações.
2
A informação é de Renata Pallotini (2008), já que a cronologia de Hilda (2008) registra a apresentação
da peça O rato no muro, como a última a ser encenada, ainda 1984.
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2. A peripécia
A partir da década de 90, a obra lírica e narrativa de Hilda começou a encontrar com
os palcos, em quantidade que superou a adaptação dramática. Concomitantemente, a
produção crítica desses dois gêneros também era bastante intensa nos espaços
acadêmicos, com inúmeras dissertações e teses. Basta ver a seleção de títulos dispostos
na série de obras de Hilda Hilst, publicadas pela editora Globo. Com as várias
traduções para outras línguas, a literatura de Hilda também conquistou campos de
estudo em várias instâncias de pesquisa pelo mundo.
A comparação entre as versões cênicas de Hilst não está ligada a qualquer defesa de
supremacia do texto em estrutura de drama. O palco não impõe nenhuma exclusividade
ao texto dramático, tanto quanto a criação dramática não obriga sua circulação apenas
pela montagem cênica. Conforme atesta Staiger,
O dramático não tem que ser compreendido a partir de sua adaptação
ao palco e sim que a instituição histórica do palco decorre da essência
do estilo dramático? Um enfoque fenomenológico só permite esta
interpretação. O palco foi, realmente, criado segundo o espírito da
obra dramática, como único instrumento que se adaptava ao novo
gênero poético. Mas uma vez existente esse mesmo instrumento pode
servir a outras formas de criação e tem sido utilizado das maneiras
mais diversas através dos tempos. (STAIGER, 1997, p 119)
Portanto, o tablado mantém sua liberdade de ferramentas e estilos, fato que culmina
em uma infinidade de possibilidades de criação da linguagem cênica.
As recentes adaptações da obra lírica e narrativa da autora em questão e a intensa
produção crítica sobre essas espécies literárias, em detrimento dos estudos dos dramas
levam à clássica discussão da relação entre produção literária, crítica especializada e
público. Haveria relações entre as adaptações para o palco, o interesse de estudo por
parte de pesquisadores acadêmicos e apreciação do público?
A escassez de bibliografia sobre a obra dramática hilstiana foi reconhecida
primeiramente por Elza Vincenzo e justificada por dois fatores: a estranheza dos
encenadores diante de uma forma desconhecida nacionalmente e a ausência de imediata
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referência ao contexto político, efervescente nos teatros da época. A autora repara ainda
a discrepância entre quantidade de estudos já existentes e pesquisas posteriores da lírica
e da narrativa de Hilda. Mais tarde, Renata Pallottini, em posfácio ao Teatro Completo,
observa que
São muito poucos os textos que tratam do teatro de Hilda. Sabe-se de
alguns artigos e ensaios de Anatol Rosenfeld, algumas entrevistas e
críticas e, acima de tudo, o capítulo em que Elza Cunha se debruça
sobre estes textos e, amorosamente, procura desvendá-los.
(PALLOTINI, 2008, p. 500).
3
Há uma comunicação de Eder Rodrigues da Silva, cujo texto fora publicado nos anais do V Congresso
da Abrace, para quem o teatro de Hilda é estudado sob os pressupostos teóricos da performance: “A
literatura dramática de Hilst investe num terreno movediço que encontra melhor diálogo e interpretações
junto às concepções performáticas.” (RODRIGUES, 2008, p. 2 )
4
Clark, em 2002, publica um artigo sobre O Rato no Muro, na Revista Hispânica de Cultura y Literatura,
na University of Northern Colorado.
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5
Em reportagem ao Correio da Manhã, em Dezembro de 1969, após ter recebido o Prêmio Anchieta,
Hilda declara que só poesia não era suficiente para nutrir a necessidade urgente e terrível de comunicação
e por isso teria procurado o teatro. Tal necessidade de comunicação pelo teatro fora reiterada por Moura
Fuentes em entrevista
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texto literário, seja de que natureza for, não é plausível apenas por uma mostragem ou
exposição. A atividade de análise crítica exige releituras incontáveis, que a encenação
reiterada ou a reprodução audiovisual não são capazes de oferecer, dado caráter único e
exclusivo de cada apresentação.
Para que esses textos sejam introduzidos em universos de estudo, faz-se, portanto,
imprescindível a circulação que independa da montagem cênica. A dificuldade de
leitura e aprofundamento teórico de textos dramáticos se dá pela pouca circulação de
peças em livro 6, especialmente os da produção contemporânea. Tal impasse não é tão
observável em publicações de romances e poemas que, com a ascensão burguesa desde
o século XVIII, atinge proporções massificadoras 7.
É mister, com efeito, arranjar a fábula de maneira tal que, mesmo sem
assistir, quem ouvir contar as ocorrências sinta arrepios e compaixão
em conseqüência dos fatos; é o que experimentaria quem ouvisse a
estória de Édipo. Obter esse efeito por meio do espetáculo é menos
artístico e requer apenas recursos cênicos. (ARISTÓTELES, 1997, p.
33)
6
Conforme já notificado por Elza Cunha (1992)
7
A preocupação com a pesquisa literária no campo da dramaturgia é digna de investigação. Caso
ainda não haja, faz-se necessário um estudo comparativo e percentual de gêneros literários publicados,
para fundamentarmos este problema. A difusão literária, seja pelo mercado impresso, seja pelas
agilidades da internet, ou ainda por mecanismos independentes encontra-se em atual efervescência, apesar
dos restritos índices de seu acesso e leitura.
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Considerações finais
exemplo, apresenta-se como fruto direto da recepção que a dramaturga Hilda Hilst
começa a reunir.
Referências
Introdução
1
Interpretação é vista aqui como o último nível alcançado pelo leitor de um texto, após passar
pela leitura superficial, a associação com a sua realidade e a análise (FRANCO JUNIOR, 1996). Esse
nível requer um posicionamento crítico do leitor sobre o texto lido.
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de mediador entre o texto literário e os alunos, estabelecendo uma ponte entre eles. As
observações de aula, período de regência e dados coletados ocorreram no ano de 2009,
em uma turma de primeiro ano do Ensino Médio de Campo Mourão. As atividades de
interpretação ocorreram duram dez aulas, com trinta e dois alunos.
As aulas de Língua Portuguesa nas escolas têm focado o ensino gramatical, a leitura
e produção de textos, quando existe tal prática, e outros pontos da língua considerados
significativos, e renegado a literatura a simples periodização presente no livro didático,
a fim de que os alunos conheçam características das escolas literárias, seus principais
escritores e o título ou fragmentos de suas principais obras. Tal posicionamento faz com
que os textos literários sejam desvalorizados e considerados sem importância para a
formação dos alunos. Diante das situações descritas, Cosson (2006, p. 23) afirma que
estamos adiante da falência do ensino da literatura, pois “a literatura não está sendo
ensinada para garantir a função essencial de construir e reconstruir a palavra que nos
humaniza”.
As observações de aula realizadas em um primeiro ano do Ensino Médio de uma
escola pública nos permitiram constatar que não há o trabalho com textos literários,
apesar de os alunos terem contato com eles. Ocorre que são direcionados a observar
características dos textos ou localizar informações precisas, sem que o todo do texto seja
abordado. O trabalho do professor segue o livro didático, que oferece, muitas vezes,
apenas fragmentos das obras. A leitura literária é vista como tarefa de casa, ou seja,
momento de entretenimento que deve ocorrer fora da sala de aula.
Uma prática com contos observada em sala nos instigou a tomá-los como foco de
nossa pesquisa. Os contos, ricos em conteúdo por aproximarem-se muito de nossa
realidade cotidiana, foram lidos como pretexto para apontar características desse gênero
textual, contrapondo-o com a crônica, e ocasionar a produção de novos contos. A falta
de uma preocupação com a literariedade do texto, o não questionamento do que estava
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A literatura não tem seu lugar na escola, é parte da disciplina de Língua Portuguesa,
sendo trabalhada pouco ou muito de acordo com o livro didático ou a vontade do
professor. Cosson (2006), ao tratar da literatura na escola, afirma que é considerada por
muitos um saber desnecessário. Os fatores que ocasionam tal posicionamento das
pessoas decorreriam do fato de no ensino fundamental a literatura ser relegada a simples
leitura e no ensino médio ser transformada em historicidade. Além disso, aparece pouco
nas aulas e a biblioteca é, muitas vezes, considerada um depósito de livros.
Para Cosson (2006), as pessoas que não percebem o valor do texto literário,
acreditam que ler é apenas uma atividade de prazer que possibilita apenas o reforço das
habilidades linguísticas. No entanto, o texto literário reserva ao leitor mais do que um
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período, sem questionamentos. Por essa razão, Schwartz (1988) afirma que o texto
fantástico rubiano mascara a mais realista das literaturas. O mundo presente nos contos,
no entanto, não é considerado absurdo pela intersecção de realidades incompatíveis ou
inverossímeis, mas é absurdo pela própria condição humana. Os contos rubianos
abordam as dúvidas existenciais do homem contemporâneo que são, na verdade, muito
reais, apesar dos fatos estranhos que ocorrem.
2
Para que fique clara a opinião do aluno em relação ao texto, procuramos manter a forma como a
resposta foi escrita, sem alterações ou correções.
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Diante disso, percebemos que há o interesse dos alunos por textos literários, no
entanto, como não conseguem interpretá-los, os consideram distantes do mundo real. O
conto A Cidade, por exemplo, traz a prisão de Cariba por fazer perguntas como forma
de chamar a atenção do leitor para a opressão ainda existente na sociedade. Para que os
alunos consigam estabelecer uma ligação entre o texto e a sua vida real, o professor
deve ser o mediador, ajudando o aluno a estabelecer a relação entre o texto literário e a
realidade.
Este conto foi lido novamente e discutido com os alunos que, então, puderam
perceber ou confirmar que a intenção do conto é fazer uma crítica.
O conto Teleco, o coelhinho foi lido e discutido com os alunos, considerando o que
entenderam na primeira leitura, a relação com o cotidiano dos alunos, os elementos da
narrativa e, por fim, pedindo o posicionamento crítico dos alunos. Neste conto, o coelho
Teleco, personagem principal, pode ser comparados aos alunos, pois na fase da
adolescência há uma grande preocupação com a aparência, como ocorre com o coelho.
A fim de percebermos se o trabalho com esses dois contos havia modificado de
alguma maneira a visão de leitura e interpretação de textos literários dos alunos,
realizamos a leitura do conto Os Dragões com a turma e requisitamos que os alunos
fizessem sua interpretação a partir de uma atividade direcionada com perguntas sobre a
leitura superficial, a relação com a realidade, a análise da estrutura narrativa e a
interpretação profunda o texto.
Nessa fase do trabalho, a recepção dos contos fantásticos já havia mudado e não
havia o estranhamento por parte dos leitores. Os alunos também já haviam
compreendido que não existe um modelo de leitor, que um texto pode ter diversos
sentidos e que suas experiências de vida são importantes na leitura, pois os textos são
“enunciados com vazios, que exigem do leitor o seu preenchimento” (LIMA, 1979).
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Conclusões
A literatura é composta por obras complexas, que propõem reflexões acerca da vida,
do mundo, de questões sociais. A literatura fantástica, por sua vez, por meio do
emprego do sobrenatural, chama a atenção do leitor para fatos reais, como ocorre nos
contos do escritor Murilo Rubião.
A pesquisa apresentada nos mostra que o trabalho com o texto literário é importante
para que os alunos aprendam a explorar o texto, a interpretá-lo. Assim, este trabalhou
apresentou uma proposta de como é possível explorar a literatura em sala de aula e
apontou que resultados positivos foram conseguidos, visto que houve a participação dos
alunos e suas tentativas de interpretar os contos.
Os dados coletados, os quais não foram todos inseridos neste trabalho, além de
contribuírem para nos mostrar que é possível suscitar nos alunos o interesse por textos
literários, nos mostrou também a visão que têm de literatura. O primeiro questionário
aplicado demonstrou que, em geral, para os alunos a importância da literatura na escola
decorre do fato de estar ligada ao aprender a ler e aprender a escrever “corretamente”.
Provavelmente ao dizerem isso se lembram da literatura clássica, considerada modelo
para os falantes da Língua Portuguesa. Diante disso, os textos literários servem como
modelo para dizer ao aluno o que é certo ou errado. Outros alunos afirmaram que a
leitura de contos é importante para que consigam diferenciar os textos, como contos e
crônicas. Isso porque haviam estudado, com a professora regente da turma, a diferença
entre contos e crônicas, sem explorar os textos em si, apenas o gênero. A impressão que
ficou nos alunos é de que o conto serve para saber a diferença entre esse e a crônica.
A mesma pesquisa ainda possibilitou que percebêssemos a dificuldade dos alunos em
estabelecer uma relação entre o texto e sua realidade, como se o texto fosse isolado da
sociedade, não tivesse relação. No entanto, relacionar a literatura com a vida do aluno e
da sociedade é fundamental para que ele perceba qual é a função da literatura e porque
estudá-la.
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Ainda há muito a ser estudado e pesquisado para mudar a visão que a sociedade
possui sobre a literatura, por isso acreditamos que a pesquisa apresentada possa trazer
alguma contribuição nesta caminhada. A maior luta, pelo que percebemos, é fazer com
que os alunos e, por fim, a sociedade entendam as contribuições que o texto literário
pode trazer para as pessoas em diversos aspectos: psicológico, social, cultural,
contribuições para a formação do ser humano.
REFERÊNCIAS
Manoel Bomfim (1868-1932), ainda nos primeiros anos do século XX, reúne e
divulga seus estudos sobre a formação dos países latino-americanos e suas relações com
a Europa, antigo centro promotor e divulgador do conhecimento humano, bem como
frente aos Estados Unidos, mais novo espaço ativador de êxitos econômicos na esfera
ocidental. Em sua primeira obra de investigação social, A América Latina: males de
origem (1905), muitos assuntos são abordados: exploração social em termos
metafóricos de “parasitismo social”; raça e miscigenação; estado e democracia;
educação; entre outros. Diante desse amplo leque de reflexões, muitos foram os críticos
e comentadores da obra de Bomfim. O presente texto busca mapear algumas das leituras
mais significativas visando, em última análise, a uma organização geral de sua recepção
crítica.
O primeiro grande leitor dos primeiros estudos de Manoel Bomfim foi seu
conterrâneo Silvio Romero (1851-1914). Este escreve um conjunto de 25 artigos,
publicando-os no semanário Os Annaes, de Domingos Olímpio, sob o título geral de
Uma suposta teoria nova da história latino-americana, com o objetivo de refutar os
posicionamentos críticos de Bomfim. No ano seguinte, Romero reúne todos esses
escritos em um só volume e está pronta sua A América Latina (Analyse do livro de igual
titulo do Dr. M. BOMFIM) (1906), uma obra resposta, mais volumosa que a de
Bomfim, criticando em vários aspectos a perspectiva analítica adotada pelo jovem e
promissor intelectual.
Ao longo da leitura da obra de Romero, tem-se a impressão de se estar em uma arena
de gladiadores, em meio a um combate sangrento, em que o grande vitorioso será o
possuidor da coroa disputada dentro do campo de poder intelectual. No decorrer de suas
argumentações, Romero procura, a cada momento, demonstrar seu alto nível de
erudição, sua capacidade de organizar e correlacionar informações enquanto expõe seu
vasto conhecimento teórico, permeado por citações de pensadores europeus e norte-
americanos. Deseja, em muitos instantes, por meio de construções textuais que chamam
diretamente a pessoa de Bomfim para a luta, questionar o médico sergipano no que
concerne à autenticidade de suas teorias. Provoca o adversário chamando-o de
‘professorzinho’, de ‘mestiço ibero-americano’, de ‘trapalhão’, de membro de um
‘bando de malfeitores do bom senso e bom gosto’, de ‘manoelzinho que nos surge com
essas novidades de leituras mal digeridas’, entre outras formas de destrato.
Sua crítica é pautada pela emoção, pelo Silvio ‘turbilhão’ tão bem percebido por
Antonio Candido, quando pensando no movimento crítico característico de sua
escritura, que, ora assumia um caráter duro de ataque dilacerante, ora recuava
arrependido e desfazendo toda a antiga posição. Essa habitual oscilação imprimiu um
ritmo forte e, ao mesmo tempo, inconstante nos posicionamentos de Romero, capaz de
fazê-lo arrastar consigo um conjunto de ideias e paixões sem ponderá-las devidamente.
Candido, observando essa agitação turbilhonar, entende a razão do não espanto, entre os
homens de letras contemporâneos a Silvio, frente a um crítico contraditório, que bem
cedo se revelou: “impaciente, injusto, mais apto para a generalização do que para a
análise” (CANDIDO, 1978, p IX).
No entanto, após essa polêmica, mas sem dúvida importante recepção realizada por
Romero, a obra de Bomfim se oculta no cipoal da produção crítica de uma
intelectualidade nacional em expansão. O fato de o autor ter permanecido por mais de
duas décadas sem produzir um trabalho de peso no campo do ensaísmo e da
historiografia, uma vez que a trilogia: O Brasil na América (1929), O Brasil na História
(1930) e O Brasil Nação (1931) só virá a público no findar da década de 20, início de
30, pode ser um fator a mais que explique o possível arrefecimento das leituras deste
pensador social em meio à produção intelectual das primeiras décadas do século.
Porém, o ano de 1935, marca uma retomada no interesse pelas obras de Bomfim. Seu
maior divulgador dessa vez será o jornalista Carlos Maul, que organizará uma coletânea
intitulada O Brasil, contendo os excertos mais nacionalistas resultantes da pena de
Bomfim. Para essa organização, Maul lança mão de fragmentos presentes na trilogia
mencionada acima, organizando-os de maneira tão comprometedora que chega a levar
alguns analistas dessa antologia, como Alfredo Bosi, em sua História concisa da
literatura brasileira, a considerarem Bomfim um pensador fascista, situando-o ao lado
de um Oliveira Vianna e de um Alberto Torres 1.
A nosso ver, na medida em que Maul não seleciona nenhum texto pertencente à
primeira obra de Bomfim, A América Latina, para compor sua coletânea, esta deixa de
fornecer maior repercussão à obra que ora analisamos, servindo apenas para divulgação
do posicionamento crítico do autor em sua última fase, quando já se concentra mais em
um estudo focado na perspectiva brasileira, se afastando de um olhar mais amplo, capaz
de abranger toda a América Latina.
Em 1938, é preparada uma segunda edição de A América Latina, prefaciada por
Azevedo Amaral, que acredita viver um momento histórico muito apropriado para o
entendimento das discussões levantadas por Bomfim no início do século. No que se
refere ao público leitor e ao ato de ler, objeto de nossas preocupações neste estudo,
Amaral dirá:
Ao nosso público inteligente e culto, aos que entre nós sabem ler
livros deste calibre, não preciso recomendar a obra de Manoel
Bomfim. Os que já a conhecem de outras edições vão relê-la, certos de
que há livros em que cada nova leitura nos traz mais alguns
ensinamentos. Aos mais moços, a que porventura A América Latina
seja apenas conhecida pela sua fama, esta reedição é uma dádiva que
saberão devidamente apreciar. (AMARAL, 2005, p. 33).
1
Oliveira Viana (1883-1951) foi jurista, professor, etnólogo, historiador e sociólogo. Seu pensamento
sociológico serviu de referencial teórico para Getúlio Vargas na elaboração de uma proposta
modernizadora do Estado e da sociedade brasileira, ao longo da década de 30 do século XX.
Alberto Torres (1865-1917) foi político, jornalista e bacharel em direito. Refutou as teses socialistas
como incompatíveis à realidade nacional. Procurou conhecer e entender objetivamente a sociedade
brasileira com o intuito de propor mudanças pragmáticas. Acreditava que o país mudaria de sorte se
apresentasse uma unidade nacional dominada por um Estado forte.
razões que explicassem a parca divulgação da obra do sergipano, até seu presente
momento, Moreira Leite as encontrará acreditando no fato de Bomfim “estar adiantado
com relação aos intelectuais de seu tempo, ou no fato de ser capaz de propor uma
perspectiva para a qual estes intelectuais não estavam preparados”. (LEITE, 1976, p.
251).
Antonio Candido, por meio de estudo redigido no ano de 1956, mas somente
publicado em 59, na Enciclopédia Delta-Larousse 2, elabora sua primeira contribuição à
obra de Manoel Bomfim, ajudando a dissipar, ainda que levemente, as brumas ao redor
do incompreendido autor. Em seu texto, Candido revela um ponto de vista ainda em
processo, visto que será repensado anos depois. Por essa razão, ao longo das décadas de
70 a 90, Antonio Candido se volta, ao menos por três vezes, às obras de Manoel
3
Bomfim. Primeiramente em “Literatura e Subdesenvolvimento” onde situa Bomfim
em um período de ‘Consciência Amena de Atraso’, na medida em que este professava
uma ‘ideologia ilustrada’, na qual a instrução traria automaticamente todas as melhorias
capazes de elevar o homem e dinamizar o progresso da sociedade.
Em “Os brasileiros e nossa América”, ensaio em que Candido procura traçar um
painel de intelectuais brasileiros no período que se estende do final do Império ao
amadurecimento da República (1880-1920), Bomfim é recebido como um contraponto
em relação aos demais pensadores nacionais:
2
Enciclopédia Delta-Larousse (Rio de Janeiro, Delta, p. 2216-2232; 2. ed. 1964, tomo IV, p. 2107-2123.
Esse texto recebeu nova publicação em sua forma integral passado meio século de sua produção na
Revista de Sociologia da USP: Tempo Social, v.18, n.1, 2006. Em nota ao artigo publicado, Candido
afirma ter cometido grave erro ao fazer uma avaliação deficiente da obra de Manoel Bomfim, “cuja
importância e verdadeiro significado só mais tarde compreendi” (CANDIDO, 2006, p. 272).
3
Publicado primeiramente no primeiro número da Revista Argumento, no ano de 1973, e somente em
1987, este ensaio histórico passa a compor o livro A educação pela noite. São Paulo: Ática, p.140-162.
No entanto, a contribuição de Candido mais destacada a Manoel Bomfim está no
artigo “Radicalismos” 4, onde investiga sucessivamente as ideias de Joaquim Nabuco,
Manoel Bomfim e Sérgio Buarque de Holanda. No que se refere a Bomfim, acredita que
este foi um radical permanente, analisando com dureza as bases da sociedade brasileira.
Quando preocupado em investigar a insuficiente recepção de sua obra pelos leitores
brasileiros dirá:
4
Texto inicialmente para uma palestra de 1988, publicado em 1990 na revista Estudos Avançados, v. 4, n.
8, e recolhido em livro intitulado Vários Escritos, cuja 4ª ed., pela Editora Ouro sobre Azul, Rio de
Janeiro, é de 2004.
mimeografada intitulado “Uma teoria biológica da mais-valia?” que, posteriormente, em
1984, mais especificamente, assumirá maior visibilidade quando lançado como ensaio
de abertura para uma antologia de textos de Manoel Bomfim.
Esta nova antologia, com alguns excertos de Bomfim, é ideologicamente distinta da
publicada por Carlos Maul. O objetivo dos autores não é em momento algum alimentar
um Bomfim nacionalista, pelo contrário, procuram aproximá-lo mais à idéia do rebelde
e inconformado que ficou muito bem registrado no tom de seu discurso em A América
Latina, porém é bom lembrarmos que a antologia privilegia toda a obra, contudo realça
sempre o Bomfim mais contestador e inconformado.
Na medida em que os autores elaboram um estudo mais voltado para o discurso
metafórico presente nos textos de Bomfim, a análise da recepção de sua obra não
poderia escapar das questões postas pela linguagem, como podemos observar na citação
a seguir:
5
Este ensaio intitulado “Manoel Bomfim antropólogo” foi primeiramente publicado na Revista do Brasil,
N.2, seguido de uma pequena seleção de trechos do autor. Somente em 1993, ele passa a ser um prefácio
da 3.ed. de A América Latina, publicada pela editora Topbook.
dos brasileiros” (RIBEIRO, 2005, p.20). Aproveita ainda a oportunidade de analisar a
obra de Bomfim para criticar a recepção inicial feita por Silvio Romero:
Do final dos anos 80 aos dias atuais, a obra de Bomfim tem passado por uma fase de
extrema difusão nos meios acadêmicos, haja vista o número de pesquisas realizadas nas
mais diferentes áreas do conhecimento, tornando-se objeto de estudo em geografia, com
a tese de doutorado de Terezinha Alves de Oliva (1999) “Pensamento Geográfico em
Manoel Bomfim”, em sociologia com “O Batismo da instrução: atraso, educação e
modernidade em Manoel Bomfim”, dissertação de mestrado de André Pereira Botelho
(1997), e em história “Manoel Bomfim (1868-1932) e O Brasil na história”, dissertação
de mestrado de Rebeca Gontijo (2001).
Estes são só alguns dos muitos trabalhos que o pensamento de Bomfim vem
inspirando. Além destes novos leitores de Bomfim, outros mais antigos, privilegiados
em nossa análise, continuaram, e continuam, por muito tempo a escrever e pensar sobre
as contribuições de Manoel Bomfim, como foi o caso do ilustre Roberto Ventura, como
é o caso de Flora Süssekind e Aluízio Alves Filho. Acreditamos que o não abandono
destes críticos em relação às discussões do sergipano seja um índice revelador do
quanto sua obra é perene e profunda.
Outro termômetro que nos ajuda a perceber que, contemporaneamente, passamos por
um período de intensas releituras e reflexões sobre os pensamentos de Bomfim, está nas
sucessivas reedições de suas obras. Em 1993, sua A América Latina recebeu uma
terceira edição pela Topbooks, e em 2005 foi impressa, pela mesma editora, uma edição
comemorativa do centenário da obra. Historicamente estas duas últimas edições foram
as que ocorreram mais próximas uma da outra, apenas 12 anos de diferença, o que é
uma grande mudança se pensarmos nos 55 anos que separam a 2ª (1938) da 3ª edição
(1993).
Nosso objetivo ao traçarmos essa linha do tempo tendo como objeto central a
recepção da obra A América Latina de Manoel Bomfim foi demonstrar de forma sucinta
como oscilaram as relações entre leitor e obra ao longo do tempo. É claro que não
pretendemos dar por encerrada as observações das repercussões aqui esboçadas, até
mesmo porque como o título desta monografia já revela, procuramos apenas nos pautar
em alguns pontos altos da recepção desta obra tão importante. Estamos cientes que
outros grandes intérpretes de Bomfim ficaram de fora, como, por exemplo, Renato Ortiz
com sua análise da identidade nacional e miscigenação social, Ronaldo Conde Aguiar e
sua monumental biografia sobre Manoel Bomfim, José Carlos Reis que vê Bomfim
como um pensador que “escova a história do Brasil a contrapelo”, além de muitos
outros que produziram ou estão produzindo, mas ainda não temos a leitura de seus
trabalhos.
Para concluirmos, trazemos novamente à baila a tão reiterada pergunta formulada por
Vamireh Chacon nos anos 60: “Por que não se fala neste Manoel Bomfim?”. No entanto
agora, percorrido todo esse percurso de recepção crítica de sua obra, parece meio
ilógico continuarmos propagando esta indagação, pois, o pensamento de Bomfim, tem
sido muito estudado e nos parece que contemporaneamente, tem recebido seu justo
valor. A pergunta agora, talvez, se transforme em “Como se tem falado deste Manoel
Bomfim?” ou “De qual Manoel Bomfim falamos?”, haja vista que tem ficado mais
nítida uma transformação de seu pensamento ao longo de sua vida. Esperamos que as
futuras gerações de receptores deste singular autor mantenham o alto nível de leitura e
interpretação que os críticos bomfinianos ao longo do século XX demonstraram ter.
Referências
NOMEAÇÃO EM BIOGRAFIAS
Introdução
Como sabido, a biografia não é criação única da literatura. Foi diante de uma
releitura da seção "Quem Foi", encontrada na revista Super Interessante, que nos
pusemos a questionar a elaboração de textos biográficos em mídias de circulação
nacional e a possibilidade de análises dessas mídias.
1
Os textos analisados neste artigo se encontram em: RODRIGUES, Otávio. Hailé Selassié. Revista Super
Interessante. edição 193. outubro de 2003. São Paulo, Editora Abril. p. 30. também disponível em:
1
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publicado na edição nº193, em outubro de 2003; e o texto "O guerreiro do pop", escrito
por João Paulo Gomes, publicado na edição nº 203, em agosto de 2004.
Para tanto, trabalharemos com autores que nos possibilitem traçar posições a
cerca da nomeação (FEDATTO, 2009); (WITTGENSTEIN, 1989); (BOURDIEU,
1998); (FOUCAULT, 2007); e que nos auxiliem no entendimento sobre a construção
biográfica (BAKHTIN, 1992); (BOURDIEU, 1998); (VILAS BOAS, 2008). Vemos
também a necessidade de fazer as devidas apresentações dos biografados que terão suas
biografias analisadas:
Tafari Makonnen nasceu em 1892 na Eiópia, sendo de família nobre, aos 12 anos
torna-se governador de uma província. Casa-se com a filha do rei e não muito depois
troca sua esposa pela cunhada para, então, ser nomeado regente. Parte de sua vida gira
em torno de seu nome, pois, após se tornar regente, Tafari Makonnen muda seu nome
para Hailé Selassié I. Enquanto imperador, Selassié traça planos de modernização para a
Etiópia e participa da Segunda Guerra Mundial, sendo responsável por resistir às tropas
de Mussolini. Diante de alguns títulos recebidos em seu país (Rei dos Reis, Leão da
Tribo de Judá...), a fama de Selassié chega até a Jamaica, onde o povo passa acreditar
que ele era o messias que os judeus esperavam. Tafari Makonnen muda seu nome;
torna-se imperador; e, a partir de títulos e da interpretação bíblica feita pelos
jamaicanos, torna-se, também, Deus.
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os homens e estupram as mulheres. Assim, Fela Kuti é exilado em Gana voltando anos
depois para Nigéria, onde é preso algumas vezes e morre de AIDS em 1997.
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Entendemos que uma biografia, ainda que possa ser escrita ipsis litteris (como
transcrição exata dos acontecimentos de uma vida), não é substituta da vida. O mesmo
podemos empregar ao nome, pois, sendo o nome uma palavra que representa, neste
caso, o biografado, ele apenas é uma parcela representativa e não o todo. Concebemos o
nome como um paralelo ao biografado, suas existências, com certa frequência, se
confundem, mas um não é o outro. De outra forma, entendemos que “o mundo empírico
não significa por si só, a linguagem é fundamental na demarcação das fronteiras do
sentido” (FEDATTO, 2009, p. 30) e, por isso, o nome é necessário para que uma pessoa
possa ter referência e significação no mundo.
O nome nas biografias surge como possuidor de uma existência própria, que vai
além do biografado, o ser-no-mundo2. Desta forma, o processo de nomeação, nomear,
não é uma ação aleatória que ocorre do nada. É possível analisar o nome e a elaboração
da biografia como construções paralelas, que se completam e elucidam.
Segundo Wittgenstein 3, “um nome designa uma coisa, e é dado um nome a uma
coisa. - ser-nos-á frequentemente útil se dissermos quando filosofamos: denominar algo
2
Expressão traduzida do alemão "Dasein", cujo conceito original é encontrado na Filosofia existencialista
do filósofo alemão Martin Heidegger.
3
Nascido na Áustria, Wittgenstein foi um filósofo com contribuições relevantes para a Filosofia analítica,
Filosofia da Linguagem, Lógica e Filosofia da Mente.
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é semelhante a colocar uma etiqueta numa coisa” (1989, p.14). O processo de nomear é
complexo se entendermos que, para “colocar uma etiqueta” como se referiu
Wittgenstein, passamos por um processo, também, de classificação daquilo que nos
colocamos a etiquetar. Além disso, segundo o que pode ser interpretado, ao denominar
alguém, nos colocamos, por consequência, a por rótulo àquele que recebe a
denominação.
Seria possível observar certa consciência do biografado para com seu nome e
para o que ele designa? Sem que nos coloquemos a indagar o complexo conceito de
consciência, observamos a construção da biografia de "Hailé Selassié" e de como surge
a problemática em torno de seu(s) nome(s):
5
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Pelo que podemos observar na expressão "a bordo de um novo nome", Hailé, como fora
escrito em sua biografia, constrói um novo significado para a sua vida, entendendo vida,
ainda segundo Bourdieu, como “um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e
deve ser apreendido como expressão unitária de uma "intenção" subjetiva e objetiva, de
um projeto” (1998, p. 184). É necessária a observação da constituição existencialista
disso que Bourdieu, ao remontar ao que Sartre chama de "projeto original" 4 como uma
forma de escrita feita pelo biógrafo que dá ao biografado o controle de grande parte de
suas ações, nesse caso, projetadas (nas quais se projetam).
4
O "projeto original" é trabalhado por Sartre em seu texto "O existencialismo é um humanismo". Nas
biografias, a noção de projeto, segundo aponta Bourdieu a partir de Sartre, poderia ser encontrada nas
biografias que abordam o biografado como aquele que "desde pequeno", "sempre", etc. tinha um projeto a
ser realizado. O que pode remeter, de certa forma, a consciência do biografado ou ao fatalismo.
6
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Vilas Boas argumenta que “um biógrafo capacitado sabe que a lógica dos
desejos individuais possuem deformações e perversidades” (2008, p. 163) e, se assim
for, realçamos essa “lógica dos desejos individuais” como uma forma consciente que faz
um sujeito tomar atitudes que venham a romper com parte do foi sua vida. Trata-se,
contudo, de uma discussão, sabemos, longa e complexa na qual o plano das crenças
ideológicas revela-se, ainda que diante da correta descrição dos Aparelhos Ideológicos
de Estado feita por Althusser, não determinista, o que, de certa forma, ampara as
discussões acerca dos fatalismos e descendências nas biografias: um biografado não
seria, ou não seria apenas, o resultado dos acontecimentos que o antecederam e nem do
que fora sua família.
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Postulamos, por isso, que nomear é dar existência, criar, dar vida a uma partícula
(nome) que existe paralelamente ao biografado e/ou pessoas secundárias abordadas pela
biografia. Entendemos, assim, que o biografado e seu nome existem paralelamente um
ao outro, que se justificam e se evidenciam, se explicam. Não é usado um nome sem, ao
menos, ser evidenciado por algum tipo de explicação: como recebeu esse nome ou,
ainda, a imagem que evoca a partir do nome. Wittgenstein pergunta qual a relação entre
nome e denominado, em suas palavras:
5
"Pensemos numa linguagem para a qual a descrição dada por Santo Agostinho seja correta: A linguagem
deve servir para o entendimento de um construtor A com um ajudante B. A executa a construção de um
edifício com pedras apropriadas; estão à mão cubos, colunas, lajotas e vigas. B passa-lhes as pedras, e na
sequência em que A precisa delas. Para esta finalidade, servem-se de uma linguagem constituída das
palavras 'cubo', 'colunas, 'lajotas', 'vigas'. A grita essas palavras; - B traz as pedras que aprendeu a trazer
ao ouvir esse chamado. - Conceba isso como linguagem totalmente primitiva" (WITTGENSTEIN, 1989,
p. 10).
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O texto "O Guerreiro Pop", ainda que não tenha tanta materialidade para
examinar quanto "Hailé Selassié", nos apresenta um material considerável a ser
analisado. Além disso, uma vez estabelecida nossa proposta, pesquisar o processo de
nomeação na biografia e a biografia no processo de nomeação, não seria adequado
deixar de fazer as análises pelo material não apresentar determinada constância. É claro
que "Hailé Selassié" seria a proposta ideal de texto biográfico para ser analisado a partir
da nomeação, pois muito dele se constitui em torno da discussão do(s) nome(s) daquele
biografado. Contudo, examinar o "O Guerreiro Pop", dentro de suas limitações, nos
permite assegurar nossa proposta de pesquisa das biografias a partir da nomeação dos
biografados e, em alguns casos, dos extrabiografados.
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forma, à mudança funcional apontada, para com o adjetivo. Qualificar por meio de
adjetivos ou pelo nome, enquanto acidente, faz inserir o biografado em uma
circunscrição na qual ele se situará por algum traço que toca a história de sua existência.
Se entendermos que o denominar seja algo “análogo a pregar uma etiqueta numa
coisa” (WITTGENSTEIN, 1989, p. 20) entenderemos o paralelo estabelecido entre o
qualificar e o nomear. Nesse caso, nomes como Bob Dylan e Mick Jagger se tornam
"lugar" circunscrito, no qual outras personalidades podem se situar diante de determinas
práticas e, por isso, serem qualificadas, por consequência, pelos adjetivos que são
conferidos a essas pessoas (Bob Dylan e Mick Jagger).
De igual forma, é instituído seu valor como "herói" situado em um lugar, a partir
do adjetivo nacional tratando de dar o efeito de representatividade daquele país diante
das palavras: Fela Kuti "herói nacional" (herói da Nigéria, ou dos nigerianos). Já em "o
guerreiro pop", vemos o emprego de guerreiro (aqui enquanto substantivo) qualificado
pelo adjetivo "pop", por isso trata de qualificar e dar outros sentidos para a vida de Fela,
uma vez que a concepção do pop dissocia-se da concepção daquilo que podemos
entender como guerreiro. É dado para Fela, na forma como é escrita sua biografia, uma
nova forma de se inserir como pop (cantor) e guerreiro (ativista), constituindo
reconstruções de significados.
Quanto a sua biografia, Fela Kuti tem sua vida marcada pelo comprometimento
político a partir de sua posição como músico. Encontram-se, entre suas músicas, títulos
como "Vagabundos no Poder". Além disso, a criação de uma república (esboçado no
chapéu da coluna como "A saga de Fela Kuti, músico que fundou sua própria república
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e virou herói nacional") remonta um agir maior. Na realidade, um agir que parte do
biógrafo para o biografado, afinal, é do autor a descrição que se fará daquele de quem a
biografia irá falar, como irá falar e/ou o que irá ressaltar, é, em grande parte, se não de
todo, uma escolha feita pelo biógrafo. Vemos isso na percepção de Bakhtin:
Considerações finais
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possível de ser analisado pela linguagem e, de outra forma, fazer parte das questões
relativas à escrita biográfica.
Referências
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1. Monumento
Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari (2007) nos ensinam sobre as potências
do pensamento. Discutiremos brevemente duas delas: a filosofia e a arte. A filosofia,
aqui, é a ação de criar conceitos. Para esta criação o filósofo faz uso daquilo que os
autores chamam de plano de imanência (estabelecimento de zonas de vizinhança, de
coordenadas intensivas, um recorte no caos potência do pensamento) para criar um
personagem conceitual e um conceito, o conceito filosófico. Por exemplo, para criar o
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2. Fabulação
O professor Ronald Bogue (2010) publicou recentemente um livro em que discute o
conceito de fabulação como um instrumento prático para a análise da narrativa literária.
Apesar de Deleuze e de Guattari não terem se dedicado à sua elaboração em si, em
vários momentos de sua obra há pistas de como esse conceito pode ser relacionado ao
conceito de literatura menor, este amplamente desenvolvido, principalmente no livro
Kafka, por uma literatura menor (DELEUZE & GUATTARI, 1977). Pretende-se aqui,
estender a fabulação não apenas à literatura, mas também à análise fílmica, a partir da
afirmação do próprio Deleuze em seu livro A imagem-tempo:
O que Kafka (...) sugere para a literatura vale ainda mais para o
cinema, na medida em que este reúne, enquanto tal, condições
coletivas. (...) O diretor de cinema se vê perante um povo duplamente
colonizado, do ponto de vista da cultura: colonizado por histórias
vindas de outros lugares, mas também por seus próprios mitos, que se
tornaram entidades impessoais a serviço do colonizador. O autor não
deve portanto fazer-se de etnólogo do povo, tampouco inventar ele
próprio uma ficção que ainda seria história privada: pois qualquer
ficção pessoal, como qualquer mito impessoal, está do lado dos
“senhores”. (...) Resta (...) a possibilidade de se dar “intercessores”,
isto é, de tomar personagens reais e não ficcionais, mas colocando-as
em condição de “ficcionar” por si próprias, de “criar lendas”,
“fabular”. O autor dá um passo no rumo de suas personagens, mas as
personagens dão um passo rumo ao autor: duplo devir. A fabulação
não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma
palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca pára de
atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e
produz, ela própria, enunciados coletivos. (DELEUZE, 2007, p.264)
O filósofo discute, em seguida a esse trecho, entre outras coisas, a obra de Glauber
Rocha, Deus e o diabo na terra do sol, lembrando-nos que a fabulação coloca a terra
em transe, movimenta-nos entre passagens.
Mas o que seria a fabulação?
Segundo Bogue (2010), cinco elementos fazem parte da fabulação: o devir, a
experimentação no real, o mito, a invenção de um povo por vir, a desterritorialização da
linguagem. Devir é este estar entre categorias, estar em passagem ou modos de
existência. O devir não leva a uma conclusão, a um encerramento, mas tem relação com
o movimento que nunca chega a ser, está sempre em via de se tornar. O devir tem a ver
com elementos estáveis em desequilíbrio, em metamorfose. A fabulação funciona como
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uma máquina plugada no ambiente social, político, institucional, material, por isso se
diz que se trata de uma experimentação no real. De certa forma, a experimentação no
real se dá através da crítica de forças, de acontecimentos, de memórias, de documentos
e em articulação com o não dito, com aquilo que de alguma forma se apagou ou se
esqueceu. O elemento mito diz respeito ao tratamento de personagens e de suas ações.
As personagens em fabulação se organizam de forma sociopolítica e levam-nos à
construção de um povo por vir. Este povo por vir funciona como um coletivo que,
inexistente, é criado como integrante de uma sociedade que não existe e que, no entanto,
vibra, está lá. Trata-se de uma espécie de enunciado coletivo de expressão.
Reconhecemo-nos ali, mas aquilo não é representação da realidade. Isto se ajusta muito
bem com o último elemento, a desterritorialização da língua. Na linguagem que é fruto
de desterritorialização “não há linha reta”, lembram Deleuze e Guattari, a língua tem
que alcançar desvios para “revelar a vida nas coisas” (DELEUZE & GUATTARI,
1997, p.12). A língua torna-se então:
uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem
um dialeto regional descoberto, mas um devir-outro da língua, uma
minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de
feitiçaria que foge ao sistema dominante. (...) opera uma
decomposição ou uma destruição da língua materna, mas também (...)
opera a invenção de uma nova língua. (DELEUZE & GUATTARI,
1997, p.15)
Além disso, há um elemento temporal na fabulação, que não remete apenas ao tempo
cronológico, de Cronos, mas ao tempo aiônico, de Aion, o tempo flutuante do infinito,
destacado pelos estóicos. Por isso podemos afirmar que a fabulação está em outro
espaço, diferente da narrativa, que é marcada pelo fluxo de um tempo para outro. Bogue
(2010), citando Jay Lampert, lembra que o desafio de uma narrativa significativa é
reconciliar a sucessão e a simultaneidade do tempo.
Bogue (2010) ainda destaca as três sínteses do tempo em Deleuze. A primeira síntese
do tempo parte do presente do tempo cronológico, do senso comum, mas um presente
que carrega dentro dele a contração de momentos que poderíamos chamar de
politemporais (cone invertido de Bérgson). Cada presente é síntese porque carrega em si
uma contração contínua de tempos passados-presentes-futuros. Deleuze afirma que os
presentes são múltiplos, coexistentes. A segunda síntese do tempo é o passado virtual,
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aquele que nunca foi presente. Mais do que uma reminiscência, o passado virtual é
envolvimento e está relacionado à ideia de unidades múltiplas em desenvolvimento, que
nunca chegaram a ser. É uma espécie de espaço-memória no qual as histórias se
organizam em blocos de sucessão. A terceira síntese é a do futuro, a forma vazia do
tempo, espaço de possível cesura, de um possível antes e depois. A fabulação
deleuziana, segundo Bogue, é o ato narrativo que envolve todas as formas de sucessão e
simultaneidade temporais, a fim de inaugurar um processo de devir, de experimentação
no real, de mito, de invenção de um povo por vir, de desterritorialização da linguagem.
De certa maneira, a fabulação se relaciona a histórias que não sucumbem ao fluxo
temporal, mas que articulam um contínuo de Cronos a Aion capaz de fazer funcionarem
forças sociopolíticas a partir do mundo material.
De que maneira essas ideias nos ajudam a pensar a literatura em relação ao cinema?
É o que veremos a seguir.
3. No entremeio
A literatura de João Guimarães Rosa é marcada por um processo cuidadoso com a
linguagem. Quando Deleuze e Guattari (1977) analisaram a obra de Kafka, em Kafka,
por uma literatura menor, eles destacaram o deslocamento lingüístico do alemão
kafkaniano, um alemão que caracterizaram como desterritorializado. O alemão era a
língua oficial em Praga, a língua de uma minoria opressiva, distante dos personagens de
Kafka. O alemão kafkaniano é, portanto, “uma língua dissecada, misturada com tcheco
e iídiche” (DELEUZE & GUATTARI, 1977, p.32). Em sua escrita, Kafka carrega a
linguagem de tensores, perverte a sintaxe, cria uma “língua intensiva ou o uso intensivo
do alemão”, uma língua em experimentação. Como Rosa, que também cria uma língua
que parece se afastar do português. É como se aquele português não fosse o nosso,
sendo, ao mesmo tempo, tão próximo e familiar. Entre os inúmeros estudiosos que se
dedicaram à escrita rosiana, citaremos Bolle (2004). Em estudo sobre Grande sertão:
veredas, a partir de declarações do próprio Rosa em entrevista a Günter W. Lorenz, o
estudioso enfatiza a ativação das energias de formação da língua, a fusão de elementos
lingüísticos multiculturais e heteroculturais, e o mergulho tanto no material coletado nas
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1
Sandra Kogut critica o equívoco de algumas adaptações da obra de Rosa, em que se tenta colocar na fala
dos atores uma linguagem literária, que é forte, mas é de outro espaço artístico em sua opinião (veja na
audioentrevista com a diretora, no DVD do filme Mutum).
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2
Miguilim, por sua vez, se parece com a Mãe: “— Dito, eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que
eu não sei o que é, nem de donde, me afrontando...” “— Deve de não, Miguilim, descarece. Fica todo
olhando para a tristeza não, você parece Mãe.” (ROSA, 1984, p.61).
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presente muitas outras coisas agindo. Esse movimento do tempo, Rosa o explora com
maestria.
Miguilim estava pensando, sentindo essas coisas quando o irmão lhe avisou que os
pais estavam brigando. Ele, repentinamente, decidiu impedir que Pai batesse em Mãe.
Acabou apanhando também e foi colocado de castigo. Distanciava-se do Pai.
Aproximava-se da Mãe. Ele era mais parecido com a Mãe. Juntos ficariam mais felizes,
como Pingo-de-Ouro e seu filhote. Os animais estariam felizes em um passado virtual,
ou em um futuro ainda por vir. Seria assim com ele e sua mãe?
Rosa explora essa intensividade do tempo aiônico, não cronológico. Os
acontecimentos vêm em camadas, em imanência, simultâneos.
O cinema vai precisar explorar isso de outra maneira, com imagens. A diretora sabe
que os apaixonados por Guimarães Rosa vão se aproximar das adaptações para o
cinema divididos entre o desejo de “ver” aquilo que os movimenta na arte literária e o
temor de que qualquer desses projetos possa fracassar. Porém, se nos ativermos ao
conceito de monumento, será possível perceber as duas obras de maneira distinta, e
ainda estabelecer relações entre as duas, a partir das forças que articulam, a partir das
potências de cada uma.
Que afectos e perceptos ressoam em nós? Como cada uma trabalha seu plano de
composição?
Da cena literária descrita anteriormente, Sandra Kogut poderia ter optado por um
registro bastante próximo, já que Rosa constrói quase que um roteiro em sua obra. Seria
possível, com o recurso do flashback, contar todas essas histórias do passado de
Miguilim, enquanto se construía a narrativa fílmica. Mas não foi assim que a diretora
decidiu construir sua obra. Ela faz outras escolhas, e vamos comentar algumas delas.
Primeiro, registremos que o filme tem poucos atores profissionais 3. As crianças
foram escolhidas no interior do estado de Minas Gerais 4. São crianças mineiras que
3
“No elenco, apenas o pai, a mãe, o tio, seu Deográcias e o doutor da cidade são atores profissionais”
(MARTINS COSTA, 2010, p.04).
4
Para conhecer o olhar da diretora, outras duas possibilidades de fácil acesso: ler uma entrevista no site
oficial o filme, www.mutumofilme.com.br, ou a entrevista online, feita por Aristeu Araújo e João Paulo
Gondim, da Revista Moviola, no endereço http://www.revistamoviola.com/2007/12/20/sandra-kogut/.
Arquivos visitados em 13 de março de 2009.
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vivem em condições físicas parecidas com aquelas em que vive a personagem rosiana,
Miguilim. Kogut, em audioentrevista no próprio DVD do filme, conta que decidiu
manter o nome verdadeiro das pessoas, também para evitar artificialidade no filme.
Depois de escolhidas as personagens e os locais de filmagens, eles conviveram por
cerca de dois meses antes de começarem a filmar. O papel da personagem principal
rosiana foi assumido por um jovem sem experiência de atuação e muito menos
experiência com cinema chamado Thiago, um menino de olhos grandes e profundos,
que nos encantam e que nos arrastam por sua expressividade, por sua intensividade. Não
é fácil ficarmos indiferentes a seu olhar nas telas. Ele nos envolve com sensibilidade,
com forças que fazem com que nos identifiquemos com a criança que ali se encontra e
que remete a tantas outras em tantos outros lugares.
A cena que escolhemos trabalhar na relação com a obra literária dura cerca de oito
minutos e começa com Thiago, tentando preparar uma arapuca para pegar passarinhos.
Ele está sozinho. De repente chega seu irmão, Felipe (Dito, no livro), e avisa que Pai
está batendo em Mãe. Thiago corre e grita que o pai precisa parar. Uma porta se fecha
atrás do menino. Felipe chega e vê a porta fechada. Ouvem-se os gritos do pai, da mãe e
do menino Thiago, mas o close está no rosto de Felipe, do lado de fora, de olhos baixos.
Corta-se a cena. Duas mulheres, a avó e uma ajudante da família conversam na cozinha.
Novo corte. A avó olha pela janela da cozinha e vê Thiago de castigo. Ela critica a
maneira como estão tratando o menino. Felipe traz água para o irmão e comenta que é
melhor não contarem para o tio – motivo da briga – o que tinha acontecido. Ele sai
correndo e deixa Thiago sozinho. Thiago sentadinho em um banco, só. Ele cutuca a
madeira da parede. O nosso olhar é dirigido para os seus dedos. Um novo corte ainda
sobre ele: de cima, a câmera destaca os seus cílios, que parecem úmidos de lágrimas.
Novo corte. A mão surge agora perseguindo uma saúva que sobe pelo mesmo caminho
da madeira que ele antes cutucava. Surge uma nova personagem, o seu tio querido, que
brinca com o menino e fala para ele sair do castigo. Thiago nada diz nem se move. O
homem entra e sai. Pergunta a Thiago sobre sua mãe. O menino permanece em silêncio.
É a avó que vem e despacha o garoto. Novo close em Thiago: por detrás da parede,
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ouve a avó pedindo que tio Terêz, o seu próprio filho, vá embora. Havia risco de morte.
Ele devia partir imediatamente, sem se despedir. Ouve-se o início de um temporal. Uma
tempestade de vento começa a levantar poeira em volta da casa. Thiago entra e vai se
encolher à porta do quarto da mãe, que continua fechada. Novo corte. Thiago faz
perguntas a Rosa, a ajudante de cozinha, sobre a mãe e o seu irmão. Ela não responde
nada. Volta o temporal, agora com chuva. Todos correm tentando apanhar a roupa,
fechando janelas. O tio aparece partindo, puxando um cavalo, levando pouca coisa.
Nova cena de Thiago vendo o tio querido ir embora, debaixo de chuva. Thiago aparece
novamente à porta do quarto da mãe, onde agora se deita. Depois de novo corte, ele
aparece em seu colo. Ela está ainda desconsolada. Anoitece. Ainda chove. Eles
deveriam rezar, mas Felipe diz para Thiago que Deus estava com raiva deles por causa
de Pai, Mãe e Tio Terêz.
Kogut faz cinema. Explora o menino em closes. Como Rosa, busca contar a história
acompanhando o olhar da criança. Thiago olha para cima com seriedade, tenta
compreender as pessoas que o cercam. Em silêncio, transita pelo mundo dos adultos,
senta-se e olha para cima, como se pedindo ajuda. Faz perguntas, mas pouco lhe dizem.
As cenas parecem fotografia. Há um jogo de luz e de sombra que a fotografia
captura. Esse jogo faz parte daquele território onde vive a família. Há submissão no
olhar desse menino, submissão às regras da família, à autoridade do pai, aos castigos, às
portas que se trancam a sua frente. Ao mesmo tempo, o universo infantil é de entrega. A
criança se entrega a seus pais, às regras dos mais velhos, mas precisa aprender a
sobreviver, a lidar com as arbitrariedades. Thiago olha na direção da luz, mas carrega
consigo uma sombra.
A alegria, que destacamos como elemento refrão na literatura, não parece ser o que
se repete no filme. Neste caso, a captura de certas imagens que a diretora soube fazer é
que podemos ver funcionar como refrão, aquilo que se repete de maneira sempre nova:
a cena da porta do quarto dos pais. No trecho que descrevemos, surge a porta fechada,
guardando a mãe, atravessada pela violência do pai, mostrando a angústia de Thiago;
surge a porta fechada diante de Felipe, isolando-o da cena mais violenta do filme. Aliás,
há uma intensificação da violência não exposta, não revelada, escondida atrás da porta,
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que surge apenas em sons de gritos e choro, da surra que o pai dá no menino que se
coloca entre ele e sua esposa.
A imagem do menino diante da porta, encolhido primeiro, depois deitado ali,
mobiliza em nós a sensação de desamparo. Conhecemos o drama de Miguilim, de
Thiago. Gostaríamos de poder ajudá-lo. Sabemos que a vida nos envolve com
dificuldades. Gostaríamos de poupar as crianças que conhecemos. Quanta gente, em
quantos lugares, não estará enfrentando algo parecido com isso neste momento? Kogut
joga com estas e muitas outras sensações nas escolhas que faz. A porta que, por
princípio, indica saída, abertura, pode estar fechada, impedindo-nos de agir, de sair, de
entrar.
No jogo de luz e sombra, essa imagem fica registrada em nossa mente e se remete ao
drama que aquele grupo de indivíduos sofre e suporta, com dores, alegrias e fé.
Destacamos novamente a fotografia do filme: detalhes da casa, da fazenda, o cutucar
da madeira... A cadência do cotidiano. O filme não é acompanhado por trilha sonora,
não há músicas de fundo, mas foi feita uma trilha que a roteirista Ana Luíza Martins
Costa e a diretora chamam de acústica, com apenas sons do lugar. É um filme para se
ouvir também.
Assim, mais do que a uma região geográfica, as imagens de Mutum parecem nos
remeter a um bloco de sensações, a uma condição de infância, de memória, de realidade,
existe aqui a invenção de um povo por vir. Aqui as duas obras se encontram. Mutum
conta a história de Miguilim, de “Campo Geral”, e esses dois monumentos, o filme e o
texto, contam a história de muitos outros meninos, brasileiros ou não, vivendo nas
mesmas condições sociais e, acima de tudo, experimentando as mesmas dores e alegrias
das brincadeiras, dos afetos, das incertezas. Aquilo que é local, que é forte presença na
vida do homem, e que salta, é o plano de composição de João Guimarães Rosa e o plano
de composição de Sandra Kogut, e é neste aspecto que os dois se aproximam. Se o
sertão de Rosa é o mundo, as chapadas de Minas onde Kogut filmou são também o
mundo. Um mundo onde há tristezas, mas que é bonito, definitivamente bonito. O um
Miguilim-Thiago torna-se um um multidão conectado a cada um de nós, um
agenciamento maquínico, construído artisticamente, via fabulação, em cada uma das
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obras.
Referências
BOGUE, Ronald. Deleuzian Fabulation and the Scars on History. Edinburgh University
Press: Edimburgo, 2010.
BOLLE, Willi. Grandesertao.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas
Cidades; Ed.34, 2004.
DELEUZE, Gilles. “Signos e Acontecimento”. In ESCOBAR, Carlos Enririque de
(Org). Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991.
_____. Crítica e Clínica. Trad. PELBART, Peter Pál. São Paulo: Ed.34, 3ª reimpressão
– 2008.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad.
GUIMARÃES, Julio Castañon. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
_____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 4. Trad. ROLNIK, Sueli. São
Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002.
_____. O que é a Filosofia? Trad. PRADO JR., Bento; MUNÕZ, Alberto Alonso. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 3ª reimpressão – 2007.
KOGUT, Sandra. Mutum. Brasil, 2007. 95 min.
MARTINS COSTA, Ana Luiza Borralho. “Miguilim no cinema: da novela Campo
Geral ao filme Mutum”. In: CHIAPPINI, Lígia; VEJMELKA, Marcel. (orgs.). Espaços
e caminhos de João Guimarães Rosa: dimensões regionais e universalidade. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 11ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984.
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representava uma vantagem ao garoto, que além de supervalorizar a terra de onde viera,
desdenhava a terra de suas primas e considerava-se superior.
Alguns fragmentos do romance ajudam a caracterizar a garota Janet e a
compreendê-la: “Janet era cheia de carinho [...] era magricela e sardenta [...] e havia
nela uma imensa sede de beleza” (MALOUF, 2000, p. 76). “...ela era uma criança de
espírito prático, e cética com relação a meros sentimentos” (MALOUF, 2000, p. 79).
Opondo-se ao garoto Lachlan, que era sempre muito vaidoso e queria receber
todos os olhares e toda a atenção que pudesse capturar para mostrar que possuía poder,
Janet não se manifestava. Assim explica o narrador: “O poder da menina era
inteiramente dela. Não precisava de testemunhas para o seu poder” (MALOUF, 2000,
p. 50).
A condição das mulheres na colônia era assinalada por algumas situações
negativas, tais como a submissão, a repressão e até mesmo a imposição concreta e
subjetiva do papel a ser cumprido: esposas, mães, donas de casa, com todas as
implicações que tais funções reclamam. As mulheres na colônia precisavam trabalhar
tanto quanto os homens, mas sabiam que não haveria muitas oportunidades para elas.
Em dado momento, Janet contrai amizade com uma vizinha, chamada Sra.
Hutchence, e aprende com ela o ofício de cuidar de abelhas. O que num primeiro
momento não ganha tanta relevância, passa depois a ser o fato mais importante na vida
da garota. São as abelhas e o exemplo de organização delas que permitem que ela
conheça a si mesma e as pessoas à sua volta. São ainda as abelhas que trazem a
ocupação futura de Janet.
A personagem focalizada no romance, que evidencia a condição das mulheres na
colônia, é também digna de nota pois a narrativa, no que se refere a essa personagem,
permite uma rica observação dos sentimentos, pensamentos e ações da jovem. Janet
McIvor tem seus pensamentos e sentimentos expressos através da narrativa e o leitor
pode perceber o quão oprimida ela se sente, especialmente quando comparada a seu
primo Lachlan, tal como é observado no excerto a seguir:
Janet era apenas dois anos mais velha que o primo e no período que é
apresentado na narrativa, ainda tinha a inútil vantagem de ser um pouco mais alta do
que ele, mesmo sabendo que logo seria ultrapassada. Janet percebe que a vida do garoto,
por contar com a certeza de crescer e se tornar um homem, já estava traçada.
“Ressentia-se amargamente da vantagem que Lachlan desfrutava por ser menino, no que
se refere a poder se mostrar e agir.” (MALOUF, 2000, p. 77). Por mais difícil que fosse
a vida na colônia, muitas ações já eram permitidas a ele e muitas outras viriam com o
passar do tempo. Enquanto isso a garota
não tinha nenhuma visão desse tipo quanto ao seu futuro. Tudo o que
via preparado para ela era o que sua mãe apresentava, um orgulho
rude da sua capacidade de trabalho, da perseverança e de não criar
caso por bobagens. Janet admirava a mãe, mas a estreiteza desse
futuro era aterradora para ela. (MALOUF, 2000, p. 78).
O momento final do romance mostra o encontro da irmã Mônica com seu primo
Lachlan, que agora é ministro da coroa britânica na Austrália. Ambos têm suas
identidades e papéis bem definidos, ambos passam por conflitos e acabam sendo unidos
por esses conflitos, mas percebe-se acima de tudo a conciliação de ambos, superada a
condição da infância e da adolescência que tanto os afastou. Os dois estão maduros e a
segurança de Janet, em sua função e papel, é muito evidente, de forma que, mesmo sem
contar com um final otimista no romance, é possível salientar o caráter positivo da
condição da personagem feminina na colônia.
Conclui-se que a mulher ainda vive situações de opressão em uma sociedade
patriarcal e que tal submissão remonta a uma trajetória ampla e antiga, na qual à mulher
era relegado um papel inferior.
A condição de colônia reforça o papel de submissão aplicado às mulheres e o
reproduz de maneira enfática, de forma que os resquícios de tal comportamento ainda
estão presentes nas sociedades que formavam colônias no passado.
Ter clareza sobre tais estratégias de dominação é um primeiro passo para romper
com as atitudes, pensamentos e discursos carregados de preconceito. O conhecimento
sobre a condição leva ao passo seguinte, que é superar tudo que colabora para a
opressão. Deve-se levar em conta que a colonização, tanto dos indivíduos em geral, e
das mulheres em especial, não existe apenas na condição visível e material, mas existe
nas mentes. Por tal razão é extremamente importante realizar uma descolonização das
mentes.
O mais importante é reconhecer, valorizar e propiciar algo que vem se tornando
uma realidade: os estudos de crítica literária pós-colonial e feminista têm avançado em
reflexões e propostas de superação do preconceito e da condição de subalternidade
relegada às mulheres.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 4 ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
as idéias de Niemeyer. O desejo por uma nova imagem nacional requeria, além de uma
nova capital, um novo brasileiro. JK queria por fim ao brasileiro à La Macunaíma,
herdeiro direto do processo histórico brasileiro, e inaugurar um novo homem, mais
próximo do modelo americano, com base no pioneirismo. Aliás, o presidente fazia
questão de frisar a diferença entre pioneiro e bandeirante: ambos desbravadores, o
bandeirante descobre a terra e vai adiante, já o pioneiro descobre e finca raízes,
procurando melhorar a todo custo a sua terra. O caráter implantado dessa nova imagem
do Brasil percebível e dessa forma, é possível perceber que: “A capital do país do
futebol não tem campo nem time de futebol. (Os estádios onde jogam o Brasiliense e o
Gama ficam fora do Plano Piloto). E a capital do país do carnaval não tem carnaval de
rua. (As aparições anuais de alguns blocos apenas realçam a inexistência de escolas de
samba), (NUNES, 2009, p.182). As ruas da capital não têm nome, o domínio da cidade
é o das siglas e dos números. Além disso, Brasília foi proibida de envelhecer. A cidade-
projeto do modernismo brasileiro foi tombada em 1990, embora ações que visavam a
“conservação” estivessem presentes desde o Plano Piloto de Lúcio Costa. A capital
parece imprimir as marcas do tempo nas cidades periféricas, que funcionam como uma
espécie de duplo distorcido. Brasília fez nascerem outras cidades, a chamada cidade
livre (Núcleo Bandeirante) é mais velha e agregou os brasileiros vindos de todas as
regiões para a construção da capital federal. Lá havia improviso, comércio livre (sem
impostos) e diversão para os trabalhadores (especialmente a prostituição, atividade
importante no processo de construção de Brasília). Assim que a capital do país foi
inaugurada quiseram destruir a cidade livre, não conseguiram. Mais tarde surgiram as
cidades-satélites, para onde o povo (também sem nome) volta depois de terminada a
jornada de trabalho no Plano Piloto. “Lá se tem ruas com nomes comuns e carências
comuns” (NUNES, 2009, p.182). O certo é que se deve às cidades periféricas a
manutenção da “ordem” no Plano Piloto; as cidades se complementam, mas nem
sempre de forma pacífica. Em uma crônica, a escritora Clarice Lispector1 percebe e
sintetiza o Espírito de Brasília ao nos dizer que:
1
. A crônica de Clarice Lispector chama-se: Nos primeiros começos de Brasília e sua referência completa
encontra-se no final deste texto.
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Plano Piloto manter a civitas em ordem, embora na urbs essa ordem não prevaleça.
Neste ponto vale esclarecer um pouco mais sobre a noção de ordem:
No caso de Brasília o Ser Supremo responsável por viciar os dados é ser híbrido
composto por camadas legais, que visa barrar a ação transformadora do tempo-
movimento, elemento que age de forma mais livre em outras cidades.
O terceiro conflito vem da relação entre permanência e transformação:
Então o que ocorre quando esse movimento intenso e característico das cidades é
controlado e restringido? Neste caso, uma das formas de se garantir a permanência da
civitas é usar a tutela do Estado, em detrimento da urbs. Brasília sempre foi protegida
por camadas legais e de forma extremada, em 1990, a cidade foi tombada. A busca é
pela cristalização das imagens visíveis de Brasília, que tal como uma obra de arte ficará
exposta em um museu a céu aberto. Porém, uma obra de arte também possui o peso da
imagem invisível. Por outro lado, as transformações nas cidades periféricas - sem a
tutela rígida do estado, corre seu curso normal - o movimento estonteante a que se
referiu Haesbaert. Aqui vale ressaltar que esse movimento parece se colocar como uma
ameaça à ordem de permanência perseguida pela civitas e de forma simplificada, é
possível dizer que a civitas busca, a todo custo, manter-se inalterada, ao passo que a
urbs (aqui direcionada para as cidades periféricas) se transforma como um organismo
vivo (nasce, cresce e envelhece). A relação entre Brasília e a cidade periférica pode ser
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Ainda sobre o homem de Brasília, Augusto Nunes (NUNES, 2009, p. 184) nos
lembra que: “Dez anos depois os cearenses continuavam cearenses, os gaúchos
continuavam gaúchos, todas as peças escancaravam na estampa e no sotaque o local de
fabricação”. Mesmo depois de muito tempo o homem de Brasília pode ainda não existir,
ou se existe, ainda não realizou nenhuma mediação efetiva, que possa tentar outro
relacionamento entre civitas e urbs. Aqui vale ressaltar que, tanto o mediador quanto a
mediação, não seriam do mesmo tipo para as duas cidades, já que tempo e contexto são
outros. Tal como Metrópolis, o futuro de Brasília (e é claro, não só dela) também parece
se abrir em dois eixos. As imagens, mesmo que sejam uma projeção, parecem estar
sempre diante da inelutável cisão do ver. Assim, tanto Brasília quanto Metrópolis são
cidades que vemos e que nos olham.
Referências
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro,
Zahar, 1998.
Não são poucos os autores literários que falaram sobre poesia ou sobre o trabalho de
fazer poesia – para citar apenas alguns nomes, poderíamos dizer Pablo Neruda,
Archibald MacLeish, T. S. Eliot, Alexander Pope, Ezra Pound, Marianne Moore, Sylvia
Plath, Affonso Romano de Sant’Anna, Mario de Andrade, Vinícius de Moraes, Mario
de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto. Esse fator
sozinho pode nos levar a pensar como criar poesia e pensar poesia são instâncias
diferentes, mas interligadas, principalmente na escrita poética. Os próprios poetas
escolhidos neste trabalho, Edgar Allan Poe e Fernando Pessoa, escreveram outros
poemas e ensaios sobre a criação literária e, principalmente, a poética. O que
apresentamos aqui, portanto, é um recorte de um campo vasto e não tem a intenção de
ser definitivo em relação à poesia de nenhum dos autores nem, muito menos, à poesia
em geral. A teorização da arte poética também é um assunto bastante abordado e, para
que este trabalho, foram selecionados alguns autores específicos para guiar nossos
estudos.
O critério para a escolha de quais poetas analisar foi simples e, a partir das premissas
determinadas, poderia ter significado outras obras e, até mesmo, outros autores. Os
poetas, ambos muito influentes na Literatura que lhes sucedeu, não apenas escrevam
poesia, mas escreveram sobre poesia e composição poética. Portanto, suas criações e
suas escolhas eram conscientes. O ensaio “The Philosophy of Composition” e o poema
“Autopsicografia” foram escolhidos para este estudo por serem amplamente conhecidos
e por apresentarem fortes características do trabalho de ambos os autores como um todo
– sendo destes dois, propõe-se a contribuir com o crescimento da ciência que investiga
os processos poéticos e a percepção desse processo e de seu resultado.
1
Trabalho vinculado ao projeto de iniciação científica voluntário “A imagem ‘melangótica’ da morte em
alguns poemas de Edgar Allan Poe e de Augusto dos Anjos”
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exigência, mas esta exigência é apêlo e não pressão, define uma vocação e não uma
opressão” (idem, p. 9). Para o autor,
Não existe poesia, portanto, sem que haja sensibilidade e, mesmo que, como dito, o
poético “imponha-se”, ao mesmo tempo o fenômeno poético se dá a todo aquele que
quiser lhe ser sensível.
Isso concorda com as arfimações de Cohen (1987) quando este declara que a leitura
de um poema é uma experiência, não a aquisição de um conhecimento. Para o teórico, é
isso que faz com que, cada vez que leiamos um poema, este possa nos parecer diferente,
refletindo as nossas próprias mudanças. Assim, o fenômeno poético nos toca através do
poema, sendo parte do trabalho do poeta provocar em seu leitor essa experiência – “a
poesia é presença e toda presença não dura mais do que o presente” (1987, p. 256).
E como o poema é experiência, daí justifica-se o fenômeno poético estar relacionado
mais ao mundo percebido do que ao factual, o “real” – ainda que tal conceito seja
filosoficamente discutível.
2. Linguagem poética
Anchyses Jobim Lopes (1995) relaciona a poesia ao início da linguagem e afirma que
a linguagem é “uma dimensão essencial da existência humana” (idem, p. 69) e que a
linguagem poética está “mais próxima da essência da linguagem que a prosa” (idem, p.
81) – isso, talvez, porque a linguagem poética reflita mais a experiência do que o
conhecimento.
Para Lopes (1995), a poesia invoca imagens de forma mais intensa que a prosa e,
para ele, quanto maior o número de imagens formadas pelo poema, maior a intensidade
deste. Para Cohen, “o traço pertinente da poeticidade é a intensidade” (1987, p. 256).
Essa busca por intensidade (ou característica de intensidade) é compreensível uma vez
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que o efeito poético atua de forma próxima à subjetividade humana, enquanto que a
prosa tem um caráter mais referencial – ainda que, obviamente, possa haver trechos
poéticos em um romance e partes referenciais em poemas. Ele nos chama a atenção para
o fato de que, em diversas línguas indo-européias, poesia também significa
“cavalgamento”, “condensação”, ou seja, palavras que refletem o caráter imagístico da
poesia (1995, p. 41).
Pode-se entender essa vontade de representar imagens diferentes a partir do
pressuposto de que o poeta intenciona criar no leitor uma experiência, como já dito, e
não repassar um conhecimento específico. Cohen, a respeito disso, afirma que a poesia
pode nos levar a experimentar algum sentimento ou sensação, mas não ensina a sentir:
temos que saber o que é o “amor” para senti-lo reproduzido na obra (1987). Mesmo que
a produção do objeto estético seja fruto de um labor e que o poeta crie uma realidade
própria, Cohen nos lembra que “a linguagem poética não cria a sua própria poeticidade,
mas a retira de um mundo que descreve” (1987, p. 31).
E, isso tudo, nos leva à questão central desta pesquisa: o fazer poético. Aqui,
entenderemos o “fazer poético” como todo o processo de construção daquilo que
chamamos de poesia, ou seja, a ação do poeta em transformar o lírico, presente no seu
mundo experimentado, em um objeto estético voltado à transmissão dessa percepção
sua a outrem. Como define Dufrenne, poeta é a pessoa que, colocando em ação
“propriedades específicas” da linguagem, recria o estado poético nos outros (1969, p.
101), criando, assim, o efeito poético. Efeito poético, portanto, se diferencia de
fenômeno poético uma vez que o último é o efeito, a sensação, a experiência causada no
leitor da poesia – ou seja, uma consequência do construto humano – e o primeiro é a
origem do poema, a essência latente no mundo que o poeta transporta para o poema que
produz. Também para Cohen (1987) o poeta tem essa característica de criador, uma vez
que, para ele, aqueles sensíveis ao fenômeno poético que não possuam essa capacidade
de recriar (ou perpetuar) tal efeito são apreciadores de poesia, não poetas.
Enquanto criadores de um efeito poético, Dufrenne distingue dois grupos nos quais
os poetas podem se encaixar: o poeta artesão ou o poeta inspirado. O primeiro é o
“artesão da linguagem” (1969, p. 124), que constrói o poema de forma deliberada e
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calculada. O segundo “é menos cioso de seu ato do que propriamente de seu estado”
(idem, p. 219), ou seja, ocupa-se do “estado poético” mais do que da construção do
poema.
Como anteriormente dito, muitos autores, quase inúmeros, falaram, em algum
momento e de alguma forma, sobre o fazer poético. A seguir, analisamos uma pequena
parcela desses trabalhos: “The Philosophy of Composition”, do escritor americano
Edgar Allan Poe; “Autopsicografia”, do português Fernando Pessoa; e, em um segundo
momento, “Liberdade”, também de Pessoa.
3. Poe’s Philosophy
Edgar Allan Poe, escritor americano que viveu entre 1809 e 1849, é há séculos
conhecido por seus contos e poesias. Contudo, Poe viveu de e para as Letras, tendo
afirmado, até mesmo, que este era o único ofício apropriado a um homem: “[…]
Literature is the most noble of professions. In fact, it is about the only one fit for a man.
For my own part, there is no seducing me from the path.” (POE, 1949)
O estilo de Poe, “gênio fantasmagórico”, segundo Carolina Nabuco (1967), carrega
algo de sombrio em si. Vários estudiosos de sua obra atribuem essa característica à sua
biografia, cheia de tragédias pessoas (como a morte dos pais, a separação dos irmãos, a
morte de sua mãe adotiva, a morte de sua esposa, entre outros). Quanto a isso, Aissa
define:
Assim como fez em sua prosa ficcional, Poe se valeu em seus poemas
no mais das vezes de temas góticos e melancólicos: a morte da amada
e a consequente relação necrofílica (quer psíquica quer física),
ambientações bizarras, sufocantes e angustiadoras, animais e objetos
de aspecto sinistro numa nefasta função simbólica de prenúncio de um
destino fatídico. (2006, p. 63)
Deve-se considerar que a obra de Poe é, como ele mesmo definiu, “the results of
matured purpose and very careful elaboration” (POE, 1839, p. 6), portanto, nada deve ser
considerado acidental – “if I have sinned, I have deliberately sinned” (idem). Certamente
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que isso não descredibiliza as análises psicológicas da produção do autor, mas nos
fornecem diferentes ângulos sob os quais analisar o seu trabalho.
Como o próprio Poe, em vários momentos, reitera que suas obras são construções
estéticas meticulosamente planejadas, é importante que também seja estudada pela
crítica e análise literária dessa forma. Tratar seus poemas como simples obras de evasão
e expressão emocionais é simplificar algo complexo.
No ensaio “The Philosophy of Composition”, publicado em abril de 1846 na
“Graham’s Magazine”, revista para a qual Poe escrevia regularmente, o autor volta a
afirmar o caráter laborioso de sua literatura. Neste seu famoso ensaio, Poe descorre
sobre seu também famoso poema “The Raven”. Aissa (2006) aponta como “The Raven”
é um poema que se encaixa no conjunto da obra de Poe:
A razão da curiosidade despertada por este ensaio foi o fato de que, na época, como a
visão predominante em relação à poesia era a do poeta inspirado, devemos considerar,
portanto, que a amosfera mística (tão ligada à poesia desde seus primórdios – de que
falam Dufrenne, Cohen, Lopes, entre vários outros) ainda pairava sobre a poesia e a
própria produção poética. Até então, falar sobre a produção poética era falar sobre um
estado sobrenatural no qual o poeta era um instrumento do próprio estado poético, como
já discutido.
Poe, logo no início de seu texto, critica diretamente essa visão romântica de poesia,
colocando-se em uma categoria à parte pelo simples fato de negar-se a reproduzir essa
“não-verdade”.
Why such a paper has never been given to the world, I am much at a
loss to say — but, perhaps, the autorial vanity has had more to do
with the omission than any one other cause. Most writers — poets in
especial — prefer having it understood that they compose by a species
of fine frenzy — an ecstatic intuition — and would positively shudder
at letting the public take a peep behind the scenes, at the elaborate and
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Além disso, mostra-se orgulhoso de sua “capacidade” de “detail, step by step, the
processes by which any one of his compositions attained its ultimate point of
completion” (1846, p. 163), demonstrando novamente o caráter de ofício a que o poeta
artesão se dedida, e complementa seu “autoelogio” dizendo:
Poe, certamente, tinha razão ao dizer que trabalhos como este são “desideratum”, ou
seja, algo que estava faltando e era preciso, afinal, é um processo de reconstrução do
processo criador de um poema terminado. Tais trabalhos não são comuns – não eram e
continuam não sendo. Ele nos revela, aos poucos, até mesmo o fato de ter calculado o
número de versos do “Raven” antes mesmo de tê-lo iniciado, quebrando ainda mais a
imagem de poesia natural e fruto de inspiração mágica. Esta informação, quase que por
si só, já serviria para classificarmos Poe como um “poeta artesão”.
É por isso que sua produção, principalmente sua produção poética, não pode ser vista
como simlesmente confissão emocional. A própria escolha temática é justificada pelo
autor, para o caso do “Raven”, mas cuja justificativa poderia ser extendida à recorrência
desta em sua obra.
Poe explicita que antes de iniciar o poema, até mesmo antes de escolher o número de
versos, o poeta decide o assunto de que tratará – aqui, vemos um privilégio do conteúdo
sobre a forma que continuará durante todo o ensaio. Para Poe, qualquer estratégia
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utilizada será feita em função do conteúdo. Com isso, a visão de Poe vem ao encontro
da de Lopes, que afirma que “a intencionalidade da obra de arte deve participar
integralmente de todas as suas partes” (LOPES, 1995, p. 97). Para essa escolha de
assunto, o autor relata uma série de critérios, sendo que o primeiro é a escolha de um
efeito: “we commence [...] with this intention” (idem, p. 164), “with the consideration
of an effect” (idem, p. 163). Poe deixa claro que a escolha de seu tema intenciona a
produção de um determinado “vivid effect”, “an impression” em seu leitor.
Outro quesito para a escolha dessa impressão foi que o efeito desejado deveria ser
“universally appreciable” (idem, p. 164). Para o autor, “the sole legitimate province of
the poem” seria a Beleza. Sobre esta Beleza, diz Poe:
That pleasure which is at once the most intense, the most elevating,
and the most pure, is, I believe, found in the contemplation of the
beautiful. When, indeed, men speak of Beauty, they mean, precisely,
not a quality, as is supposed, but an effect — they refer, in short, just
to that intense and pure elevation of soul — not of intellect, or of heart
— upon which I have commented, and which is experienced in
consequence of contemplating "the beautiful." (idem, p. 164) (Grifos
nossos)
de 1836, e continua através de sua carreira. É importante não deixar de notar que vários
dos pontos aqui discutivos são também encontrados sendo discutidos pelo autor em The
Poetic Principle, o que mostra que a opinião de Poe permaneceu basicamente a mesma
em relação a esses assuntos.
Com a preocupação de ser universal, Poe escolhe o tema da melancolia. Tendo
escolhido o “tone” de seu poema, ele então analisa quais os sons e estratégias escolherá
para levar seu leitor à impressão melancólica que ele intenciona. Quanto aos sons,
escolhe o que de mais “sombrio” lhe parece e, assim, a partir de elaboração cuidadosa,
surge o famoso “nevermore”. A repetição também é uma estratégia deliberada de Poe,
assim como o efeito de intensificação na seriedade das perguntas que o seu eu-lírico faz
ao corvo que lhe visita. Cada palavra, cada verso é tecido singularmente. Notemos, por
fim, que para criar as imagens “universais”, Poe se utiliza do “retorno elementar” de que
fala Dufrenne (1969, p. 237), quando afirma que, desde a escolha do tema, olhou “rather
within” (POE, 1846, p. 163) para buscar o poético.
dedica-se a uma tradução mais melódica do que semântica e o nome da amada perdida
nem chega a aparecer. Provavelmente isso seja proveniente, entre outras razões, de sua
crença de que a música era essencial na poesia, concepção esta bastante presente em
seus ensaios acerca de poesia – “musicar um poema é acentuar-lhe a emoção,
reforçando-lhe o ritmo” (PESSOA, s.n., p. 73). Essa é, note-se, uma característica que
Dufrenne aponta para o poeta artesão (1969). Ele também, em assonância com Poe,
critica diretamente o poeta inspirado:
Tal crítica vai de encontro à opinião expressa por Cohen, quando diz que “só uma
minoria de criações aleatórias é poeticamente interessante” (1987, p. 214)
“Autopsicografia”, poema publicado em 1934, tornou-se um dos poemas mais
conhecidos em língua portuguesa. De autoria de Pessoa, trata exatamente da temática do
fazer poético e do “viver” poesia. No poema, o poeta aparece como um “prisioneiro” de
sua condição de “ser poeta”, um fardo que este carrega em benefício dos outros.
O fazer poético aqui se torna um emaranhado no qual não se pode confiar, uma vez
que o próprio eu-lírico inicia suas declarações descredenciado a si mesmo como fonte
segura de informações.
No poema, o poeta artesão parece existir em função do poeta inspirado, estando toda
a arte poética subordinada ao estado poético do poeta – e este estado poético existir
pelo efeito poético que sua obra deve provocar. Os leitores, neste poema, aparecem
como seres que se aproveitam da existência do poeta. Em um ensaio, Pessoa afirma que
“a sensibilidade é pessoal e instransmissível” (s.n., p. 70), o que pode mostrar um
sentimento de superioridade do poeta em relação aos não-poetas, uma vez que, no caso
do “Autopsicografia”, sua dor verdadeira jamais poderá ser sentida pelos outros.
Afirma, também, que “toda a arte se baseia na sensibilidade” (idem) e que a transmissão
“do que sentimos” – ou seja, a transformação do estado poético em efeito poético – deve
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Pessoa. Poderíamos concluir, portanto, que, para o poeta, o efeito poético não se
equipara ao fenômeno poético, presente na vida em si.
Análises mais aprofundadas acerca do ponto que ele levanta, em contraste à sua
concepção de poesia apresentada em seus poemas e ensaios, é um campo profícuo para
estudos posteriores.
Conclusão
Neste estudo, percebemos que várias das concepções de poesia e efeito poético são
compartilhadas por Poe e Pessoa. Como aspecto de maior destaque, podemos apontar a
vontade de transmitir um “efeito” ao leitor através da poesia, o que concluímos
corresponder ao “efeito poético”, assim denominado por teóricos posteriores.
Interessantemente, eles são, por vezes, erroneamente classificados como poetas
“inspirados”, ainda que, a partir de uma leitura mais abrangente de seus escritos e,
então, uma análise aprofundada de seus poemas, mostrem-se claramente poetas artesãos
e, em seus ensaios, valorizem o poeta artesão em detrimento do inspirado. O importante
papel da musicalidade no poema também aproxima esses dois poetas e não pode deixar
de ser considerado. Ambos relatam encontrar sua inspiração em “si mesmos”, ou, em
suas memórias, e distanciam o “estado poético” do momento de construção do objeto
estético – como vimos, o estado pouco influencia suas criações. Eles se mostram,
contudo, sensíveis ao fenômeno e têm a produção do efeito poético em seus leitores
como objetivo primordial de sua poesia. Os dois poetas também diferenciam a prosa e a
poesia como tendo finalidades distintas: uma para transmitir ideias e, a outra,
“sentimentos”.
Referências
Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista - São José do Rio
Preto, 2006.
COHEN, Jean. A plenitude da linguagem: teoria da poeticidade. Trad. PEREIRA, José
Carlos Seabra. Coimbra: Livraria Almeida, 1987.
DUFRENNE, Mikel. O poético. Trad. NUNES, Luiz Artur; SOUZA, Reasylvia Kroeff
de. Porto Alegre: Editora Globo, 1969.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. DUTRA, Waltensir.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LOPES, Anchyses Jobim. Estética e poesia: imagem, metamorfose e tempo trágico. Rio
de Janeiro: Sette Letras, 1995.
NABUCO, Carolina. Retrato dos Estados Unidos à luz da sua literatura. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1967.
PESSOA, Fernando. Cancioneiro. 1934. Disponível em: <
http://www.insite.com.br/art/pessoa/cancioneiro/index.html> Acesso em: 17/Mar/2010.
PESSOA, Fernando. Páginas de estética e de teoria e crítica literárias. 2ª Ed. Lisboa:
Editora Ática, s.n.
POE, Edgar Allan. A Letter to B——, Boston, Southern Literary Messenger, Jul. 1836,
p. 501-503.
POE, Edgar Allan. Carta a Frederick W. Thomas. 14/Fev/1849. Disponível em:
<http://www.eapoe.org/works/> Acesso em: 14/Mar/2010.
POE, Edgar Allan. Tales of the Grotesque and Arabesque. In: E. A. Poe Society of
Baltimore. Disponível em: <http://www.eapoe.org/works/editions/tgavolI.htm/> Acesso
em: 17/Mar/2010.
POE, Edgar Allan. The Philosophy of Composition. Graham's Magazine, Boston, vol.
XXVIII, no. 4, Abril 1846, p.163-167. Disponível em:
<http://www.eapoe.org/works/essays/philcomp.htm> Acesso em: 17/Mar/2010.
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Introdução
1
Um outro autor somali, Abdourahman A. Waberi, publicou em francês o romance Les pays sans ombre
(1994), com o qual ganhou o Grande Prêmio para novos falantes de francês da Academia Real de Língua
e Literatura Francesa. Duas mulheres somalis escreveram suas biografias recentemente em inglês: Waris
Dirie, com Desert flower (1997), e Ayaan Hirsi Ali, com Infidel (2007).
2
Antes disso, Farah já havia sofrido uma experiência com a censura. Em 1972, a língua somali recebeu
uma ortografia do governo de Barre, transformando-se, junto com o árabe, na língua oficial do país.
Farah, que já havia publicado seu primeiro romance em inglês, sofreu, então, pressões dos grupos mais
nacionalistas para escrever suas obras em somali, às quais logo cedeu, publicando um romance nessa
língua em folhetins num jornal local. Porém, um dos capítulos desagradou os censores e a publicação foi
interrompida. Logo em seguida, veio o exílio, e ele nunca mais se aventurou a escrever em somali,
preferindo traduzir as realidades de sua cultura para um inglês impecável e sofisticado.
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que se opõe ao presidente durante os anos de maior força de seu governo. Mas nada é
mais chocante do que a ineficácia das formas de resistência encontradas. Os heróis
resistentes de todos esses romances não passam de figuras forçadas à imobilização,
neutralizadas de alguma forma pelo aparato repressivo do regime.
Uma segunda trilogia, dessa vez intitulada Blood in the sun, seria escrita, ainda
retratando diversas fases da ditadura. Maps (1986), o primeiro volume dessa série, se
passa no final da década de 1970, no momento da investida bélica de Barre no Ogaden, 3
e termina em meados dos anos oitenta. O livro seguinte, Gifts (1992), se concentra
aproximadamente na segunda metade da década de 1980, com o enfraquecimento
sistemático do poder do General, agravado por sérias dificuldades econômicas e pela
falta de energia elétrica e de combustíveis que assolava o país. Finamente, Secrets
(1998) examina o último ano do governo Barre, no início da década de 1990, quando
grupos milicianos travavam uma guerra contra o presidente e as tropas leais a ele. Mas
dessa vez a situação política serve apenas como pano de fundo em todas essas
narrativas. Uma vez que qualquer ação política parece inútil, Farah se volta agora para a
exploração mais efetiva das vidas psíquicas de seus personagens. Seus protagonistas
continuam, em grande parte, paralisados no plano externo, mas internamente passam
por grandes transformações. Se não podem mudar a realidade de seu país, eles pelo
menos tentam se tornar sujeitos mais plenos.
Os dois últimos romances de Farah, Links (2004) e Knots (2007), se passam num
período mais recente, depois da queda de Barre, com a total desarticulação do governo
federal. Em Links, dois senhores da guerra, chefes de milícias armadas, controlam,
respectivamente, o norte e o sul de Mogadíscio. Em Knots, até mesmo o poderio desses
dois senhores ruiu, deixando a cidade à mercê dos conflitos entre inúmeros grupos
armados chefiados por senhores menos importantes. Nesse momento, os protagonistas
de cada romance, respectivamente um homem e uma mulher, retornam do exterior para
encontrar uma Somália devastada pela luta armada entre clãs rivais. Ambos tentam
3
Região de maioria somali encravada no leste da Etiópia e subordinada politicamente a ela. O Ogaden
serviu de palco para uma disputa entre a Somália, liderada por Barre, e a Etiópia, dando origem a uma
guerra entre 1977 e 1978. Depois de um breve período de triunfo dos somalis, os etíopes retomaram o
domínio da região.
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1. Ebla, a pioneira
Ao examinar a vida no seio da sociedade tradicional somali em From a crooked rib,
Farah preferiu concentrar o enredo nas ações de um personagem feminino, mostrando
uma posição solidária em relação às mulheres e um questionamento à opressão que elas
enfrentam nesse contexto. Ebla, que vive inicialmente no Ogaden, resolve fugir de sua
aldeia para evitar o casamento que seu avô arranjara para ela com um homem rico, mas
idoso. Na primeira parte de sua jornada, ela busca abrigo na casa de um primo na cidade
de Belet Wene, onde ajuda a esposa dele a dar à luz uma criança. Em seguida, seu primo
vende sua mão em casamento para um agente para poder pagar uma dívida com o
governo. Ebla foge novamente, dessa vez para Mogadíscio, na companhia de Awill, o
sobrinho de uma vizinha. Lá, eles se casam e, depois de uma sofrida noite de núpcias,
em que Ebla é surrada pelo marido (como é o costume tradicional somali) e tem que
enfrentar as intensas dores causadas por ter sido circuncidada aos oito anos de idade,
parece que finalmente as coisas vão mudar para ela, que começa a se sentir feliz no
papel de esposa. Awill recebe, então, uma bolsa do governo para fazer uma viagem de
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estudos à Itália, deixando Ebla em Mogadíscio, sem lhe enviar dinheiro para as
despesas. Sem ter como pagar o aluguel, Ebla aceita a sugestão da senhoria de se casar
com um outro homem em segredo.4 Ao descobrir que está grávida, ela não sabe quem é
o pai de seu filho. Awill retorna para Mogadíscio, e o enredo termina sem que Ebla
tenha decidido se vai contar a ele sobre seu outro marido ou não.
Ebla parece iniciar uma tradição de heroínas negras que fogem da opressão rumo a
um destino melhor e a um lugar onde possam viver com liberdade. Em sua esteira,
enfileiram-se protagonistas como a Sethe de Beloved (1987), da afro-americana Toni
Morrison, e Mazvita de Without a name (1994), da zimbabuense Yvonne Vera. Sethe
foge, na segunda metade do século XIX, da escravidão e violência do sul rural dos
Estados Unidos para Cincinnati, no norte do país, onde esperava viver livre com seus
filhos. Mazvita é uma outra fugitiva, escapando de sua aldeia no Zimbábue depois de
sofrer um estupro em plena guerra civil em 1977 para a capital Harare. Ela ainda passa
por um estágio intermediário em Kadoma, onde conhece o pai de seu filho. Porém, para
essas mulheres a cidade grande não traz a tão sonhada liberdade. Para Ebla, a situação
também não é diferente. Ela sai do deserto para a capital, fazendo, como Mazvita, uma
parada temporária numa cidade menor. Mas em todos esses contextos a repressão
masculina que enfrenta é praticamente a mesma. Na cidade grande, os homens não são
menos opressores, e Ebla é tratada como mercadoria em todos os seus relacionamentos.
De acordo com Florence Stratton (2002 [1985]), a estrutura da sociedade tradicional
somali, no que diz respeito aos costumes relativos ao casamento, faz de todas as
mulheres prostitutas. Isso porque elas são vendidas e compradas, trocadas por cabeças
de gado e camelos. A própria Ebla reconhece que as mulheres são “coisas materiais,
4
Na Somália, como em outros países islâmicos, é comum o costume dos casamentos temporários, em que
um homem, normalmente já casado, firma um contrato de casamento com outra mulher para
determinados fins durante um certo período de tempo. Esse costume é normalmente condenado pelos
líderes religiosos e proibido pelas esferas religiosas oficiais, mas continua a ser realizado pelas pessoas
comuns. Muitas vezes esses casamentos são realizados em segredo, para não incorrer na ira dos
sacerdotes. Como é sabido, nessas sociedades, um homem pode desposar mais de uma mulher. No
entanto, nos casamentos temporários, as obrigações do marido para com a esposa tendem a ser mais
flexíveis e delimitadas a um curto espaço de tempo. Os críticos desse tipo de união afirmam que se trata
apenas de uma forma de prostituição disfarçada.
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exatamente como objetos ou itens na prateleira de uma loja” (FARAH, 2006 [1970], p.
75, tradução minha). São os patriarcas que decidem entre si os preços que serão pagos
por uma noiva. Justamente por isso as mulheres são uma importante fonte de riqueza
nas famílias somalis, mas essa contribuição dificilmente é reconhecida. Apesar de sua
rebeldia inicial, Ebla não consegue escapar dessa realidade, e é obrigada a contrair um
segundo casamento, com um homem já casado, para sobreviver depois que seu primeiro
marido Awill parte para a Europa. Ironicamente, ela parece satisfeita no papel de esposa
– “Eu amo a vida, e amo ser uma esposa, não importa de quem” (FARAH, 2006 [1970],
p. 112, tradução minha). Tal satisfação não parece estranha porque não há realmente
outra alternativa para as mulheres nesse contexto. Fugindo de ser tratada como uma
coisa, Ebla consegue apenas realizar esse destino. Dessa forma, Farah critica, através da
história de Ebla, a menos valia que as mulheres somalis enfrentam em sua sociedade,
desde a organização social tradicional até a atualidade.
Paralelamente a isso, Farah mostra como as mulheres estariam mais próximas de
uma outra percepção da realidade. Ebla também inaugura uma longa linhagem de
sonhadores nos romances de Farah, um autor que insere sonhos em quase todas as suas
narrativas ficcionais. A princípio, são apenas as mulheres que sonham, mas, em Maps,
Secrets e depois Links, são os homens que ocupam a posição de principais sonhadores.
Nesse momento inicial de sua obra, os sonhos parecem se ligar indissoluvelmente aos
mistérios do elemento feminino, algo dificilmente explicado pelo pensamento racional e
distante da experiência dos homens. Os sonhos de Ebla também correspondem a sua
situação na vida de vigília:
She was sitting in the dwelling, just like any other day. (...) Early in
the morning, her grandfather had told her to rise up and clean the milk
vessels. It was the day that her grandfather had given her hand to the
old man. Ebla had refused to go. She said that she was sick and
suffering from stomach-ache. (...)
‘Then may you die,’ he said. (...)
The camels went round and round at first and then ran towards the
huts. Ebla was still lying on the floor, where her grandfather had left
her when she refused to go and clean the milk-vessels. One of the
camels ran into the hut, and walked all over her. (...)
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She was on the brink of death, when two of the camel-herds came into
the hut. Her grandfather was called in to give a final blessing, since
everybody thought she would die, but he refused to.
Thank the Lord, all this was only a dream (FARAH, 2006 [1970], p.
122).
O fato de Ebla sonhar que está sendo pisoteada por um camelo funciona como um
símbolo, por um lado, da comparação entre as mulheres e esses animais na sociedade
somali. Como dissemos, as mulheres são importantes índices de riqueza numa família.
Os camelos, animais indispensáveis para a economia da região, também têm a mesma
função. E é o costume trocar mulheres por camelos, e vice-versa. Contudo, por outro
lado, no sonho de Ebla também se desenha uma perversa hierarquia. Na verdade, as
mulheres parecem valer menos do que os camelos, e essa parece ser a razão de ela se
visualizar sendo esmagada por eles. Numa espécie de relação metonímica, um camelo
também simboliza toda a riqueza de um homem. São os cascos dessa riqueza, do
dinheiro do mundo masculino, que Ebla sente sobre si. Mesmo ela estando à beira da
morte no sonho, seu avô se recusa a lhe dar a benção final, o que indica que também na
vida de vigília qualquer possibilidade de reconciliação é inviável. Sua afronta por não
ter aceitado o marido que ele escolhera para ela é algo imperdoável, até mesmo in
extremis. Acima da felicidade e do bem-estar das mulheres, vem a conveniência dos
homens.
Os sonhos de Ebla a ligam a um personagem feminino posterior, Beydan de Sweet
and sour milk. Nesse livro, que tem como foco principal a história da morte de um
homem, Soyaan, e a busca de seu irmão gêmeo, Layaan, para elucidar esse crime, é
Beydan, mais uma vez uma mulher, a única sonhadora do romance. Casada
anteriormente com um homem que morrera enquanto estava sendo torturado pelo pai
dos gêmeos, Keynaan, na época um inspetor de polícia, ela tem que aceitar o assassino
de seu primeiro marido como esposo, numa espécie de reparação oferecida pelo
governo. Estando no último mês de gravidez, ela sonha que dá à luz um menino que
recebe o nome do irmão morto. Porém, ela estranhamente não aparece em seu próprio
sonho, não estando presente quando seu filho é nomeado. Numa incrível mostra de
sabedoria, Beydan interpreta isso como uma prova de que morrerá no parto, o que de
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fato se efetiva. Farah demonstra, dessa forma, que é justamente o personagem mais
oprimido do romance aquele que tem o maior conhecimento de uma outra realidade.
Além disso, o fato de não figurar em seus sonhos também pode ser interpretado como
um símbolo de que as mulheres somalis não são vistas como sujeitos plenos em sua
sociedade, e até mesmo em suas imagens oníricas parecem ter a sua agência negada.
No. It’s your behaviour that puzzles me. Samater and I have a solid
friendship, and a single night’s flirtation with you, Atta or any other
woman wouldn’t upset me. You know better than that. What puzzles
me is why you have to bring the news (FARAH, 1992 [1981], p. 228).
Dessa forma, Medina, que exteriormente está incapacitada de qualquer ação, defende
sua vida doméstica contra a menor ameaça. Ao final, ela é recompensada, com a
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restituição de seu casamento, mas quanto pode durar uma felicidade particular num
cenário em que tudo mais está a ruir?
Duniya, a protagonista de Gifts, é outra heroína do amor. Nesse romance, a Somália
real, em plena ditadura Barre, com seus cortes de energia elétrica e de serviços
essenciais, funciona apenas como pano de fundo para a história do amadurecimento de
uma mulher e do seu despertar para o amor e a vida, numa sociedade de valores bastante
repressores no que tange à independência feminina. Nesse sentido, muito mais
importante do que o espaço público da nação é o espaço interno da personagem,
representado sobretudo por seus sonhos, através dos quais ela vai conquistando aos
poucos os recursos necessários para torná-la um sujeito mais completo. O primeiro
sonho de Duniya é bastante simbólico:
3. Cambara e a reconstrução
Em Knots, a protagonista Cambara está de volta a Mogadíscio depois de ter vivido
um longo período no Canadá. A guerra entre os senhores do sul e do norte da cidade já
terminou, mas Mogadíscio está tomada por um verdadeiro caos, com uma infinidade de
líderes menores guerreando entre si. O motivo inicial de seu retorno é o desejo de
recuperar uma propriedade de família, em mãos de um desses senhores (Gudcur) desde
a sua partida do país. Na verdade, parece ser apenas um pretexto, pois Cambara deseja
realmente encontrar um caminho para sua vida depois da morte do filho, que se afogou
na piscina da casa da amante de seu marido. Apesar dessa tragédia pessoal, Cambara
age normalmente apenas com amor e energia, conseguindo, assim, empreender grandes
transformações nas vidas das pessoas que encontra. Ela se alia a um grupo de mulheres
que se intitula Women for Peace e que está tentando reconstruir a cidade e instaurar
finalmente a paz. No final, Cambara consegue reaver a casa e dirige nela os ensaios de
uma peça infantil na qual atuam alguns meninos-soldado de Mogadíscio. A principal
idéia expressa nesse romance parece ser a de que a Somália precisa agora da força,
perseverança e talento das mulheres para se recuperar. Basta de meios violentos, é
chegada a hora da transformação pelo amor, um amor voltado dessa vez não apenas
para a esfera pessoal e doméstica, mas principalmente para a coletividade.
Cambara, assim como a Beydan de Sweet and sour milk, interpreta seu próprio
sonho:
With Gudcur gone, his fighters no longer posing a threat to her plans,
and Jiijo out the way and having her baby in hospital (...) Cambara is
convinced she will make headway fast. She interprets her dream at
dawn, in which she saw several hawks overpowering the hyenas
whom they are battling, as meaning that she will outsmart her
opponents, whoever they are and achieve her aim, whatever that turns
out to be (FARAH, 2007, p. 216).
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Mais uma vez como Beydan, sua interpretação se mostra verdadeira. Ela realmente
consegue superar seus oponentes na base da inteligência, sem empregar meios violentos
na maior parte das vezes. É claro que conta com a ajuda de um verdadeiro exército de
amigos, alguns dos quais inclusive portam armas e fazem a segurança enquanto ela está
preocupada em atingir seus objetivos. Mas mesmo assim seu foco principal é na defesa
e não no ataque.
As mudanças que Cambara propõe parecem simples – e, de fato, são. Ela age através
da solidariedade, realizando, por exemplo, a limpeza de alguns ambientes degradados da
cidade e ajudando outras mulheres. Seu maior feito é, contudo, produzir uma peça
infantil, o que, num primeiro momento, poderia parecer algo pueril e ineficaz do ponto
de vista de promover mudanças sociais. Porém, num cenário em que praticamente todos
os horrores já aconteceram, em que o governo central está totalmente desarticulado e os
cidadãos só sabem guerrear entre si, a única saída parece ser mesmo a da simplicidade.
Soluções pequenas efetuadas localmente se tornam muito mais efetivas do que uma
revolução política (aliás, de golpes políticos a Somália parece já ter experimentado o
suficiente). A arte, sobretudo aquela que envolve as crianças, símbolos de um novo
começo, se configura como o principal meio através do qual é possível alguma
reconstrução. Os sonhos da personagem funcionam também como confirmações de que
ela está no caminho certo, suficientemente forte para vencer quaisquer obstáculos e
opositores.
Conclusão
Mesmo tendo deixado de lado em nossa análise personagens femininos importantes
como Misra de Maps e Sholoongo de Secrets, acreditamos que foi possível demonstrar
como Farah vai aos poucos empoderando suas mulheres ficcionais. No início de sua
produção ficcional, ele parecia preocupado apenas em denunciar a situação realmente
desfavorável em que viviam (e vivem) as mulheres somalis, tanto nas aldeias quanto na
capital do país. Ainda não conseguia vislumbrar para elas uma alternativa em meio a
tanta opressão. Com a longa ditadura de Barre, que esteve no poder de 1969 até o início
da década de 1990, essa ausência de alternativas parecia perdurar quase que
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Referências
FARAH, Nuruddin. From a crooked rib. Londres: Penguin Books, 2006 [1970].
__________ A naked needle. Londres: Heinemann, 1976.
__________ Sweet and sour milk. Saint Paul, Minnesota: Graywolf Press, 1992 [1979].
__________ Sardines. Saint Paul, Minnesota: Graywolf Press, 1992 [1981].
__________ Close sesame. Saint Paul, Minnesota: Graywolf Press, 1992 [1983].
__________ Maps. Londres: Penguin Books, 1999 [1986].
__________ Gifts. Londres: Penguin Books, 1999 [1993].
__________ Secrets. Londres: Penguin Books, 1999 [1998].
__________ Links. Londres: Penguin Books, 2005 [2003].
__________ Knots. Nova Iorque: Riverhead Books, 2007.
MORRISON, Toni. Beloved. Nova Iorque: Plume Books, 1988 [1988].
STRATTON, Florence. The novels of Nuruddin Farah. In: WRIGHT, Derek (ed.).
Emerging perspectives on Nuruddin Farah. Trenton, Asmara: Africa World Press, 2002
[1985].
VERA, Yvonne. Without a name and Under the tongue. Londres: Farrar, Straus and
Giroux, 2002 [1994].
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discursivo do qual faz parte, acontecimento que envolve relações subjetivas, sociais e
cognitivas. A heterogeneidade (c.f. Authier-Revuz, 1982) emerge justamente destas
relações na atividade enunciativa e se revela, às vezes, explicitamente, no enunciado,
às vezes encontra-se implícita no dizer.
É sob essa perspectiva que se desenvolve este trabalho 1: analisar três textos biográficos
na sua discursividade, partindo do postulado de que todo dizer encontra-se inevitavelmente
inscrito em uma rede social de representações e valores culturalmente determinados. Os
textos foram publicados no jornal Folha de São Paulo, e são os seguintes:
Texto 1 :
Ananias era um homem moreno, 1950 para trabalhar como pedreiro em luta para buscar sua verdadeira
baixinho e sem pescoço – o que ajudava São Paulo. identidade. Entrou com um processo na
a encurtar mais o seu 1,65 metro. Em Um burburinho na família dava conta Justiça e fez dois exames de DNA – que ,
meio a características físicas tão de que ele podia ser filho de Lampião de acordo com a filha Deuza, tiveram
peculiares, os filhos achavam estranho o com Maria Bonita, de quem, até então, resultados inconclusivos.
fato de ele ter um irmão gêmeo tão ele achava que fosse irmão. Ananias teria Passou a dizer que queria morrer
diferente: Arlindo era bem mais branco e sido entregue à mãe dela para que o antes de chegar aos 80, pois já tinha
tinha pescoço. casal pudesse continuar no cangaço – “cumprido sua missão”. Queria perguntar
Causava ainda mais estranheza a hipótese também estudada por a Lampião se era realmente seu filho. Na
história que ele costumavam contar: historiadores. terça teve um infarto e morreu, aos 79
Ananias havia nascido três dias depois. Desde então, o pedreiro, que se anos, sem saber o resultado do processo.
O mistério ganhou ainda mais força orgulhava de ter construído grande parte
Deixou quatro filhos, 13 netos e oito
em 2005, quando ele foi à Bahia, de onde dos prédios de Moema (região nobre da
saíra em um pau-de-arara na década de zona sul da capital paulista), travou uma bisnetos.
coluna.obituario@uol.com.br
27 setembro 2009
1
Este trabalho faz parte do projeto integrado de pesquisa, extensão e ensino intitulado “ESCRITAS
(AUTO)BIOGRÁFICAS: ASPECTOS DISCURSIVOS, CULTURAIS E LITERÁRIOS” desenvolvido em conjunto com
os professores Alberto Ferreira da Rocha Júnior e Suely da Fonseca Quintana, da Universidade Federal de São Del-Rei,
Minas Gerais.
Texto 2:
Todas as quartas-feiras, a carioca As compras ela costumava fazer aos uma cultura enciclopédica e aproveitou
Zuleika Mary May Zaidan, que viveu 61 sábados, quando o motorista, seu muito as viagens internacionais que fez.
anos em SP sem perder o sotaque, Arnaldo, passava para levá-la no Monza Muito elegante e sempre arrumada,
jantava com os netos e com um dos 88 que ela tinha. Como a qualidade e o ia semanalmente ao cabeleireiro. Sua
filhos. Para cada um dos dois outros preço dos produtos nunca agradavam, preocupação recente era escolher o
filhos, ela reservava o sábado e o ela acrescentou os donos de vestido que usaria no casamento do neto,
domingo. supermercados numa lista sua de em dezembro, do qual seria madrinha.
Dona de casa, cozinhava muito bem, pessoas indesejadas, junto dos políticos Viúva desde 1990, morreu segunda,
conta Eduardo, o filho das quartas. e do pessoal do governo. aos 88, de problemas cardíacos. Deixou
Ultimamente reclamava do cardápio que Além da cozinha, gostava de se três filhos (eram quatro, mas perdera a
oferecia, desejando expandi-lo, pois uma entregar à leitura. Falava três línguas e filha) e sete netos. A missa de sétimo dia
neta não comia peixe, outro era diabético “não havia tragédia grega que não será amanhã, às 9 h, na igreja São José,
e uma outra se convertera ao conhecesse”. Segundo o filho, ela tinha em São Paulo.
vegetarianismo.
coluna.obituario@uol.com.br
04 outubro 2009
Texto 3:
Pairava a dúvida: ir ou ficar? Sarah empresa de ar-condicionado. Antes, a Fumante inveterada, só abandonou o
Hornblas, filha de imigrantes poloneses moça que perdera a mãe de complicações cigarro há cerca de dois meses. Começou
nascida em São Paulo, chegou a fazer de parto, duas semanas após ter nascido, com o hábito aos 12 anos e consumia um
com o marido um curso preparatório para havia trabalhado numa creche, cuidando maço por dia.
judeus que pretendiam viver e trabalhar de crianças, e depois como vendedora de Há cerca de um ano, quebrou o fêmur
em Israel. No final, decidiram continuar por chocolates da Kopenhagem. e disse que todo que se acidentava
aqui. Como conta a filha Deborah, Sarah era daquele jeito, naquela idade, morria em
O marido, rapaz nascido na Alemanha brava, estilo “sargentona”, mas, no fundo, pouco tempo.
que chegou ao Brasil aos seis anos, tinha o “coração mole”. Ela morreu na sexta, aos 75, mas em
chamava-se Wolfgang Hornblas. Para Muitos anos depois de ter trabalhado
decorrência de um enfisema pulmonar.
facilitar, abrasileirou-se como Alberto, na creche da Unibes (União Brasileiro-
nome que acabou adotando oficialmente. Israelita do Bem-Estar Social), voltou a ser Teve três filhos e cinco netos
Ao casar, Sarah foi cuidar da casa e voluntária de lá, no bazar da instituição.
dos filhos, enquanto o marido tocava a
coluna.obituario@uol.com.br
26 dezembro 2009
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Como se pode notar, os textos acima são relatos curtos que reconstroem de maneira
sintética a vida de alguém que morreu recentemente. Esta nota de falecimento constitui-se
como um perfil biográfico, que registra a vida de cidadãos anônimos, o que tem sido uma
tendência do biografismo atual. Tal tendência direciona-se para o reconhecimento da
participação das pessoas comuns na vida em sociedade, ou seja, “em um momento marcado
pelo culto a celebridades e pelo desejo de fama, retomar a trajetória de vida de um anônimo
aponta para uma outra direção: a valorização de gente simples como parte integrante da
memória de uma coletividade” (Lysardo-Dias, 2010). Sai de cena a exposição pública da
vida íntima, a midiatização das relações humanas e a espetacularização da rotina, tão
comuns nos relatos biográficos de celebridades e pessoas públicas, em favor da
simplicidade da vida nossa de cada dia, do ser humano comum e dos modos e hábitos
rotineiros.
Estes perfis biográficos correspondem a uma forma de escrita de uma vida, como indica
o próprio termo bio-grafia, pois trajetórias individuais são reveladas em termos de
cotidianidade de uma existência, existência cujo interesse advém de alguma peculiaridade
ou pela exemplaridade de um percurso em particular. O jornalista biógrafo Estevão Bertoni
não intenta recuperar todos os momentos e todos os detalhes conferindo ao seu texto um
valor documental e estritamente histórico, mas se atém às significações mais prosaicas e
poéticas de uma vida. Detalhes curiosos e fatos inusitados ganham maior destaque do que a
linearidade informativa do quando e como nasceu, viveu e morreu, como sinaliza o título
destes perfis. No texto 1, o perfil gira em torno do fato de o biografado, um pedreiro que
saiu da Bahia para trabalhar em São Paulo, morrer desconhecendo quem foram seus pais
biológicos, conforme o título Morreu sem saber se era filho de Lampião e Maria Bonita . Há uma grande
probabilidade de que esses pais sejam Lampião e Maria Bonita, figuras lendárias na história
do Brasil devido à forte atuação no cangaço, o que é, de fato, pouco comum. No texto 2, a
biografada é uma dona de casa cuja trajetória é reconstruída a partir dos jantares em família
que oferecia aos filhos; anuncia o título: “Os jantares em família de uma dona de casa
elegante” . O conhecimento intelectual de Zuleika Mary May Zaidan - “falava três línguas”,
“tinha uma cultura enciclopédica” e fez várias viagens internacionais - é lembrado,
completando o perfil de uma dona de casa cuidadosa e de uma mulher elegante. No texto 3,
a biografada é uma filha de poloneses que optou ficar no Brasil, mesmo após fazer “um
curso preparatório para judeus que pretendiam viver e trabalhar em Israel”. O título “A
filha de poloneses preferiu o Brasil” chama a atenção para uma quebra de expectativas em
relação à biografada: tinha outras origens mas optou em permanecer aqui.
Nos três perfis, o título sintetiza o que cada existência aponta de inusitado e/ou
interessante, justificando assim o motivo o que levou aqueles biografados a estarem ali.
Não se trata de artistas, políticos ou intelectuais cuja morte causa um forte impacto na
sociedade, mas de pessoas representativas do que é a vida da maioria da população. Nem
grandes feitos, nem conquistas memoráveis, nem uma descoberta fenomenal, apenas a
cotidianidade daqueles que nunca conheceram a fama e o reconhecimento público e cujo
desaparecimento afeta emocionalmente um núcleo familiar e um círculo de amigos.
Os perfis biográficos em questão inscrevem-se em uma situação de comunicação da
imprensa escrita, mais precisamente de um jornal diário de circulação nacional. Dentro do
mosaico de temas que ele privilegia no seu objetivo primeiro de levar informação ao
público leitor e dentro da pluralidade de gêneros textuais que o compõem devido à
diversidade das realizações discursivas que contempla, o jornal, ao abrir espaço para uma
variante do tradicional obituário, presta um serviço de utilidade pública, ao mesmo tempo
que oferece aos seus leitores um novo gênero. Consideramos estes perfis biográficos como
uma atualização/reformatação dos obituários comuns, já que informam quem morreu, mas
de uma maneira mais criativa, quase poética, privilegiando certos detalhes da vida do
biografado.
Assim como as crônicas publicadas no jornal se contrapõem ao realismo do noticiário
factual, os perfis biográficos representam uma outra textualidade em torno da morte, tema
já banalizado nos textos informativos. O fato de os falecidos serem pessoas mais velhas – O
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Ananias Gomes de Oliveira, texto 1, morreu aos 79 anos, a Zuleika Mary May Zaidan,
texto 2, aos 88 e a Sarah Hornablas, texto 3, aos 75 – diminui o impacto do
desaparecimento definitivo que é a morte. A morte vem ao final do relato: inevitável e
previsível após uma trajetória habilmente reconstruída pelo jornalista biógrafo.O
comunicado da morte tem menos destaque que o obituário convencional, pois o foco maior
é a apresentação de uma individualidade humana.
Em termos de materialidade linguístico-discursiva, os procedimentos descritivos
mobilizam saberes partilhados que favorecem a intercompreensão entre os interlocutores e
articulam várias vozes que ecoam dentro do texto. Longe de ser um mecanismo neutro e
objetivo, ao descrever o biógrafo procede a uma reconfiguração de seres e objetos, fazendo
apelo a diferentes instâncias enunciativas.
No texto 2, o jornalista biógrafo revela a insatisfação da biografada Zuleika Mary May
Zaidan com o cardápio dos seus jantares: ela estaria
As ações atribuídas à Zuleika Mary May Zaidan oferecem uma imagem de uma pessoa
que desempenha diferentes papeis: é a dona de casa, mãe/avó dedicada, é uma mulher que
cuida da sua aparência (o senso comum tende a não associar elegância à figura da dona de
casa) e ainda tem um elevado nível cultural.
Em termos enunciativos, tem-se no trecho acima o depoimento do filho: ao ser
transcrito, ele confere credibilidade e veracidade ao relato do jornalista (como se verá
igualmente no trecho transcrito abaixo do texto 3) e insere literalmente um outro dizer
naquele do jornalista biógrafo.A superfície textual é, assim, heterogênea e comporta a
articulação de diferentes fontes enunciativas.
No texto 3, Estevão Bertoni dá a voz a Deborah, filha de Sarah Hornblas, que descreve a
mãe com dois qualificativos: “sargentona” e “coração mole”. Na sua função de enunciador,
o jornalista biógrafo incorpora dialogicamente esses dizeres:
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Cumprir a missão é ter finalizado uma tarefa, é realizar aquilo atribuído como obrigação.
Para se referir à vida, é comum a imagem que cada um tem uma “missão a ser cumprida
neste mundo”, pressupondo um sentido para cada existência e a morte como o final
previsível após a consumação de uma dada tarefa.
Considerações finais
Referências
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escritores. Roberta torna-se Robert, depois Bob; Augustín, Magu depois Gus. A partir
de então, as personagens começam a atuar dentro de um grande palco teatral que se
chama Nova Iorque, até descobrirem qual é seu verdadeiro papel dentro dessa
gigantesca montagem cênica. O filósofo Guy Debord (2003, p. 13), em sua concepção
da sociedade moderna, aborda a questão de transformação de tudo em espetáculo:
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições
de produção se apresenta como uma imensa acumulação de
espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma
representação.
Seguindo esse pensamento, podemos dizer que existe uma tentativa de ruptura com a
identidade nacional dessas personagens. Porém, estar nos Estados Unidos não significa,
tanto para Roberta quanto para Augustín, necessariamente, estar longe dos problemas de
seu país de origem. Afirma Woodwart (2003, p. 9): “a identidade é marcada por
símbolos”. Assim, as personagens “lêem” Nova Iorque através de símbolos que possam
remeter a suas origens. A todo o momento, as lembranças da história argentina são
ativadas através de pequenos signos presentes em Nova Iorque, como os sacos de lixo
preto, o prostíbulo onde há tortura, o exército de salvação e tantos outros. Essa procura
por se reencontrar, corrobora a ideia de Stuart Hall (2005, p. 50) ao argumentar que as
identidades nacionais são socialmente construídas:
As culturas nacionais são compostas não por apenas instituições
culturais, mas também por símbolos e representações. Uma cultura
nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que
influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que
temos de nós mesmos.
Pensando-se assim, podemos dizer que a culpa por se evadirem de seu lar e não
poderem voltar – uma óbvia alusão ao exílio -, que essas personagens carregam,
perpassa os limites territoriais, uma vez que a cultura de um povo, mesmo quando
abandonada, continua presente em atitudes e na personalidade humana, afinal “uma
nação é uma comunidade simbólica” (HALL, 2005, p. 49), que continua mantendo sua
influência e poder coesivo e discursivo, mesmo estando longe de sua localização
geográfica ou em outro momento histórico. Nessa linha, podemos dizer que
as identidades em conflito estão localizadas no interior de mudanças
sociais, políticas e econômicas, mudanças para as quais elas
contribuem. As identidades que são construídas pela cultura são
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Dessa maneira, as personagens tentam quebrar as barreiras que lhes foram impostas
por suas origens étnicas. Pretendem reconstruir sua vida depois do assassinato cometido
por Augustín, ato de “violência gratuita” – menção direta à ditadura argentina –, que
modificou a vida das personagens. É como se existisse uma linha metafórica que
dividisse a história dessas personagens, mas, que ao mesmo tempo, divide toda a
história da Argentina enquanto nação. É a presença do conflito entre uma história
“negra” (um romance negro) que existiu e manchou toda uma pátria – a ditadura – e
essa disputa que existe entre esse passado obscuro, oculto, proibido, doloroso para essas
personagens e o presente histórico que já enterrou seus mortos “na realidade”, mas que
continua ecoando silenciosamente nos ouvidos desses indivíduos. Roberta e Augustín
são, dessa forma, a representação de uma nação inteira que se digladia com o presente
histórico e o passado de explicações vagas que foi a ditadura e, simultaneamente, com a
hegemonia e dominação de uma cultura fortemente influente na América Latina, que é a
nação norte-americana.
A questão da identidade, dentro da obra, é discutida de várias formas. Não apenas a
identidade cultural e étnica, mas também a de gênero. A forma como Augustín
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relaciona-se com Roberta comprova isso. A presença do medo que Roberta provoca em
Augustín manifesta-se a todo instante. Para ele, Roberta representa “a bruxa”, a “vagina
dentada”, que controla e possui segredos que ele – homem – desconhece, deixando
transparecer a pergunta: “o que é a mulher?”. Assim, podemos pensar acerca disso,
diz Freud, diz Jung, dizem antropólogos, não-psicólogos, que parece –
parece – que o problema entre o homem e mulher veio do medo.
Atualmente fala-se vaidade, mas, em seguida, de medo também. Esse
medo de que as forças da vida evidentes na mulher seriam
incontroláveis pelo homem. Lendo Malinowski vemos que, até
recentemente, em ilhas do Pacífico, o homem não sabia que era pai.
Com todos esses dados juntos é provável que o medo, como fruto da
ignorância do varão da reprodução, tenha sido, realmente, a causa de
um sentimento de inferioridade do homem em relação à mulher, e em
seguida o móvel do esforço de dominá-la. (PINTO, 1994, 204)
O medo que Augustin vivencia diante da figura feminina influencia diretamente sua
relação com Roberta. Ela representa implicitamente para essa personagem a forma da
imagem dominadora e castradora. Assim, assume diretamente para Augustín a face da
dualidade, uma vez que é inimiga e amante. Para ele, a mulher representa não apenas a
figura castradora, mas também as identifica como torturadoras, fazendo uma relação
entre os torturadores da ditadura com os torturadores atuais. A partir disso, podemos
acrescentar que,
O terror vivido tanto pelo homem primitivo quanto pelo moderno em
relação à mulher não seria fruto de uma projeção da fantasia
masculina sobre a feminilidade, hipótese a qual Freud poderia
perfeitamente ter recorrido, mas, antes de mais nada, uma reação a
capacidade destrutiva da mulher que, apesar de castrada – e por isso
mesmo -, deseja se tornar agente de castração masculina, privando-o
do pênis desejado. (NUNES, 2000, 162)
Dessa forma, Augustín representa o homem que tem medo de ser castrado. Ava
Taurel, personagem norte-americana que representa a imagem da dominação em todos
os sentidos – cultural e sexual –, mantém em Nova Iorque um local que tem como
princípio dominar homens que exercem altos cargos de confiança. Portanto, a obra
demonstra claramente, nessa espécie de símbolo metafórico de dominação, que é o
prostíbulo de Ava, a configuração da mulher enquanto indivíduo que exerce autoridade
sobre o homem no silêncio e no ocultamento. Nesse sentido, temos o embate entre o
orgulho do pênis provindo de Augustín e o medo da castração/dominação provocado
pelas personagens femininas. Podemos destacar a inversão de papéis que ocorre dentro
da obra, inversão essa que pode ser relacionada aos conceitos de fragmentação da
identidade pós-moderna (HALL, 2003), que rompem com os discursos de ordem da
modernidade, como uma característica desse período da chamada modernidade tardia ou
pós-modernidade.
O domínio das relações de poder é simbolizado pelas figuras femininas que se
relacionam com os homens de forma superior, opondo-se assim à concepção típica da
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ideologia patriarcal onde mulher sempre é dominada pelo sexo masculino por ser
inferior. Simone de Beauvoir (1967, p. 485) ao falar sobre isso considera que:
A mulher, dizem, inveja o pênis do homem e deseja castrá-lo; mas o
desejo infantil do pênis só assume importância na vida da mulher
adulta se ela sente sua feminilidade como uma mutilação; e é então,
por encarnar todos os privilégios da virilidade, que ela almeja
apropriar-se do órgão masculino. Admite-se de bom grado que seu
sonho de castração tem uma significação simbólica: ela quer, pensam,
privar o homem de sua transcendência. Vimos que sua aspiração é
muito mais ambígua: ela quer, de uma maneira contraditória, ter essa
transcendência, o que leva a supor que ela a respeita e a nega ao
mesmo tempo, que entende lançar-se nela e retê-la ao mesmo tempo
em si. (p. 485)
Assim, Romance negro com argentinos subverte a ordem dos papéis. As personagens
femininas, por não “sentirem sua feminilidade como uma mutilação”, exercem o poder
de domínio dentro da narrativa. Ava Taurel impõe aos homens a submissão masoquista:
Entre a multidão de pessoas com copos na mão conversando de grupo
em grupo, vestidos ou não totalmente, com pregos ou anéis genitais e
coleiras de cachorro, alguns estavam concentrados em suas situações
íntimas. Alguma dominadora amarrara um rapaz a cadeira, com o
pinto de fora enrolado que nem um pedaço de carne, o rapaz por sua
vez amarrado com um joelho no chão, em impossível posição de tiro,
espancado, humilhado. Mudo. São prazeres que não se expressam, que
não se deixam ouvir, nem sequer se percebem.
claramente nas relações sexuais onde os homens são torturados por mulheres, e, muitas
vezes, chamados de escravos.
A psicanálise, ao tratar o tema do masoquismo, afirma que todo aquele que se coloca
na posição de submisso exerce o papel do feminino:
Para Freud, a relação estaria no fato de que o masoquista sempre se
coloca numa situação característica da feminilidade, isto é, numa
situação que implica ser castrado ou possuído sexualmente; daí
portanto o nome de masoquismo feminino. A castração ou o
sentimento de culpa também expressam seus traços no conteúdo
manifesto das fantasias, já que os genitais devem permanecer intactos
e o sujeito deve ser dolorosamente castigado por ter infringido algo.
(PEIXOTO, 2003, p. 99)
Portanto, temos a representação da mulher, na obra, com uma nova concepção, dessa
vez, a relação de domínio configura-se mulher-homem. Sendo verdade que aquele que
se coloca numa posição de dominado é considerado como castrado, então é possível
afirmar que a figura de poder dentro da narrativa desmasculiniza a ideia do falo como
figura de autoridade, uma vez que todas as personagens masculinas que ali aparecem,
são criaturas dominadas, ou seja, castradas, portanto, ausentes da concepção ideológica
de falo como poder postulada por Freud em sua obra. Nesse sentido, a relação de poder
entre os sexos procura construir uma imagem pós-moderna de relação entre os
indivíduos. Foucault(1997) pondera que poder, diferente de dominação, nem sempre
significa opressão. Dessa forma, o poder seria algo implícito em todas as relações,
sejam elas de quaisquer natureza. Assim, Foucault (1992, p. 183) destaca:
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali,
nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza
ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nu suas malhas os
indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer
esse poder e de sofrer sua ação, nunca são o alvo inerte ou consentido
do poder, são sempre centros de transmissão.
através de sua “energia” e de sua “escrita com o corpo”, consegue produzir arte; o
bloqueio criativo e a incapacidade de escrever fazem parte de Augustín. A literatura
que, na maioria das vezes representou o contrário, na narrativa da autora argentina
apresenta uma nova forma de retratar as relações humanas. As mulheres que, por
séculos, devido às concepções aristotélicas e iluministas, foram descritas como figuras
frágeis, sem força e inteligência, estão expostas aqui como sujeitos capazes de dominar,
pensar e criar.
A relação entre Roberta e Augustín, enquanto relação de gênero homem e mulher,
acaba por fazer com Augustín se afaste de Roberta, devido ao medo e ao poder que essa
exerce sobre ele. Dessa maneira, acaba por encontrar tranqüilidade apenas ao lado de
Hector Bravo, médico uruguaio que, como ele, está radicado em Nova Iorque.
Entretanto, a narrativa demonstra que as relações de gênero seriam apenas possíveis e
livres de dominação para aqueles que conseguem equilibrar tanto o lado masculino
quanto o feminino dentro de sua identidade. É o caso de Bill, norte-americano negro, e
Roberta. Ambas as personagens são descritas dentro de qualidades femininas e
masculinas. Bill por diversas vezes, aparece vestido de mulher, enquanto Roberta corta
os cabelos e apresenta uma imagem andrógena. Assim, o equilíbrio estaria dentro da
fronteira dos signos masculinos e femininos que as personagens conseguem interiorizar
e transvestir para si. A questão da dualidade mostra-se presente o tempo todo, da vítima
assassinada, Edwina, que se torna homem e passa a ser chamado de Vic (the victim),
Nova Iorque que, para os habitantes latino-americanos da narrativa, tem muito da
Argentina, Hector Bravo, médico que salva vidas, mas que tem a descrição dos
torturadores do período da ditadura argentina.
Romance Negro com Argentinos (2001) transgride a forma habitual de narrar e
representar as personagens. Dessa vez, a mulher é o sujeito da história que, mesmo
perdendo a vida nas mãos dos homens, continua impondo à força sua presença, muitas
vezes, causando medo. O passado é a presença maior dentro do enredo, mais importante
do que o tempo presente narrado.
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REFERÊNCIAS
diretamente na compreensão das relações humanas que compõem o meio social, isto é,
o caldo de cultura no qual, ao fim e ao cabo, operam o Direito. A Literatura pode servir
como um importante instrumento mediante o qual ocorre o registro – histórico e
temporal, evidentemente – dos valores de um determinado lugar ou época – dentre os
quais se inscreve a representação do sistema jurídico, do poder, da justiça, das leis, das
funções jurisdicionais, etc. – no interior do imaginário coletivo e social. Cabe lembrar,
contudo, que não compete à Literatura a tarefa de explicar propriamente o Direito, ou
quaisquer outros campos da atuação humana. Sua contribuição – embora ligada mais
nitidamente a uma dimensão sociológica e antropológica – se dá no sentido de auxiliar
na compreensão do Direito e seus fenômenos.
Estudos com o propósito de alcançar o Direito na Literatura foram desenvolvidos
originariamente, nos Estados Unidos, por John Henry Wigmore 1 e Benjamim Nathan
Cardoso 2. Outros estudos sobre o tema surgiram tanto no cenário jurídico americano
quanto no europeu durante o quadriênio de décadas seguintes. No entanto, o movimento
ganhou um grande impulso nos anos 70, a partir daí ocorre o enraizamento
epistemológico do estudo Direito e Literatura no interior dos departamentos
universitários e dos centros de pesquisas. Esse progressivo e renovado sucesso dos
estudos e pesquisas passa a ser desenvolvido com base na exigência de uma
reaproximação, através da análise das obras literárias, dos valores humanísticos, fato
que resultou, nos anos 80, a concretização definitiva do Law and Literature Movement.
(TRINDADE; GUBERT; NETO, 2008, p. 13-19).
O movimento Law and Literature, iniciado nos anos 70, nos Estados Unidos, e que
toma corpo durante os anos 80 naquele país, deu impulso aos estudos da Literatura no
Direito, sistematizando e organizando este método de estudo. O movimento surge a
partir da publicação de The Legal Imagination, obra em que James Boyd-White discute
o Direito com base em algumas peças literárias de autores tais como Henry Adams,
1
Especialista em assuntos relacionados às provas judiciais, que lançou em 1908 o ensaio A List of Legal
Novels.
2
Célebre juiz da corte americana que, em 1925, lançou Law and Literature, ensaio voltado para a leitura
e interpretação das sentenças judiciais como exemplos de literatura.
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Ésquilo, Jane Austen, William Blke, Geofrey Chaucer, Marlowe, Helman Meville,
Shakespeare, Shaw, Tolstoy, Mark Twain, entre outros. (SCHWARTZ, 2006, p. 51).
Com o crescimento do interesse pelo Law and Movement, ocorre o surgimento de
inúmeros cursos sobre o tema; a inserção da disciplina Direito e Literatura nos
programas universitários; a inauguração de centros e institutos de pesquisa; e ainda uma
grande difusão em outras áreas do conhecimento, com a criação de novos
departamentos acadêmicos, tendo em vista que objeto de estudo em questão se move em
um campo de investigação interdisciplinar, que transcende os limites do próprio Direito.
(TRINDADE; GUBERT; NETO, 2008, p. 33).
Aqui no Brasil, esse campo de estudo descortina-se gradativamente e vem se
expandindo, através de pesquisas e discussões, à semelhança do que está acontecendo
em Portugal e em outros países da Europa. São considerados precursores da iniciativa
desse estudo no Brasil Eliane Botelho Junqueira 3 e Arnaldo Sampaio de Moraes
Godoy4. Germano Schwartz 5, autor aqui também adotado como um dos referenciais
teóricos, tem trazido grandes reflexões sobre o tema. Outros autores referenciados neste
trabalho, como André Karam Trindade, Roberta Magalhães Gubert e Alfredo Copetti
Neto 6, vêm desenvolvendo estudos, pesquisas e eventos nessas duas áreas. Alguns
congressos promovidos pelos cursos de Direito já definiram espaço para propagar as
produções científicas correlatas a esse campo interdisciplinar 7.
3
Com a publicação de Literatura & Direito: Uma outra leitura do mundo das leis, de 1998.
4
Com a obra intitulada Direito & Literatura - Anatomia de um desencanto: desilusão jurídica em
Monteiro Lobato, publicação de 2003.
5
Autor do livro A Constituição, a Literatura e o Direito, publicação de 2006.
6
Organizadores de Direito & Literatura: reflexões Teóricas, lançado em 2008, primeira obra coletiva,
dedicada ao tema. Lançaram, no mesmo ano, Direito & literatura: ensaios críticos. São membros do
IHJ - Instituto da Hermenêutica Jurídica - associação civil, fundada, em Porto alegre, 2001, por
acadêmicos, juristas e professores de Direito, que promove há três anos os Seminários Direito &
Literatura: Do fato à Ficção, cujo objetivo é instigar as pesquisas entre estudiosos de Letras e de
Direito, resvalando as interfaces entre o Direito e a Literatura.
7
O CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito) está promovendo o XIX
encontro de pesquisadores e estudantes e adotou há quatro anos o eixo temático Direito e Literatura
para apresentação e produção de trabalhos. A Faculdade de Direito Milton Campos - MG- promoveu
recentemente o II Congresso Nacional de Psicanálise Direito & Literatura.
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Jorge Amado, através da obra Capitães da Areia, exprime o modo de consciência das
personagens e os modos de imersão destes no mundo particular de cada um, artifício
literário importante para a formação de uma consciência coletiva. É essa relação
dialética, defendida por Ost, referenciado anteriormente, que constitui um dos elos
compatíveis ao salutar diálogo entre Direito e Literatura.
Nesta obra amadiana, alguns personagens – atores sociais – ao mesmo tempo em que
representam suas próprias angústias e inquietações surgem, na narrativa, como
representantes de uma classe social, criam suas próprias leis: “Antes de tudo estava a lei
do grupo. Os que a traiam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo...”
(AMADO, 2008, p. 130). “Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o
bem com o bem.” (AMADO, 2008, p. 131). E com um discurso politizado, são porta-
vozes da insatisfação e do inconformismo:
[...] Os pobres não tinham nada. O padre José Pedro dizia que os
pobres um dia iriam para o reino dos céus, onde Deus seria igual para
todos. Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo.
No reino do céu seriam iguais. Mas já tinham sido desiguais na terra, a
balança pendia sempre para um lado. (AMADO, 2008, p. 97).
A narrativa surge como uma nova forma de divulgar os maus tratos da sociedade e a
negligência do poder público em relação ao problema do menor abandonado no Brasil e
propaga também a consequência desse descaso: a configuração da delinquência infanto-
juvenil. A obra foi lançada dois anos após o autor tornar-se bacharel em Direito, pela
Universidade do Rio de Janeiro. Dotado de consciência crítica e conhecedor dos
problemas sociais do seu tempo, Amado, intencionalmente, transformou Capitães da
Areia em um grande documento sócio-literário. Sete anos após o lançamento, o escritor
retoma o tema na elaboração do último capítulo da obra Bahia de Todos os Santos,
fazendo uma ponte intertextual. Assim ele se posiciona:
Não são um bando surgido ao acaso, coisa passageira na vida da
cidade. É um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate
sobre as classes pobres. Aumenta diariamente o número de crianças
abandonadas. (AMADO, 1996, p. 389).
É este autor de múltiplos universos, de múltiplas linguagens, considerado neo-
realista, o criador dos Capitães da Areia, obra lançada na terceira década do século XX,
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Referências
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios. 40. ed. Rio de
Janeiro: Record, 1996.
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. Posfácio de Milton Hatoum. 6. ed. reim. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
______. Vade Mecum. Acadêmico de direito. 4. ed. São Paulo: Rideel, 2007. 1741p.
CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. 4. ed. São Paulo: Duas
Cidades, 2004.
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: leitura e cidadania. In: Amado, 2004.
GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. O Brasil best seller de Jorge Amado. São Paulo: SENAC,
2003.
OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário Jurídico: Trad. NEVES, Paulo.
São Leopoldo: Unisinos, 2005.
Este artigo tem por objetivo apresentar algumas particularidades que envolveram a
circulação dos romances-folhetins na Belém do século XIX. Além disso, mostrar em
que momento histórico Belém estava passando, a então chamada Belle Époque, a qual
trouxe para cidade grandes transformações culturais, intelectual, política, social e
arquitetônica.
Com base nisso, o presente artigo foi estruturado em torno de duas seções. Na
primeira, buscou-se mostrar um rápido panorama do surgimento dos romances-folhetins
e os romancistas que fizeram parte desse momento literário. Na segunda, buscou-se
discutir a influência do gênero – romance-folhetim – na formação da Literatura
Brasileira. Além disso, passou-se a discutir a presença dos romances-folhetins de
autores franceses em Belém do Pará no período oitocentista.
O romance-folhetim na França
1
Graduada e especialista em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestranda em Estudos
Literários pela mesma Instituição. Pesquisadora bolsista junto ao projeto “História da Leitura no Pará
(século XIX)” desenvolvido nesta Instituição, sob coordenação da profa Dra. Germana Maria Araújo
Sales.
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teatrais ou dicas de beleza, entre outros. Era um verdadeiro vale tudo, como adverte
Meyer:
Esse espaço vale-tudo, com o decorrer do tempo, ganhou uma nova importância e um
novo direcionamento com relação à seleção dos textos que freqüentavam as páginas dos
jornais. Os textos selecionados possuíam um caráter mais específico, mais delimitado e
os seus conteúdos, aos poucos, foram inseridos semanalmente nesse ambiente,
chegando a ter novas classificações: feuilleton dramatique (crítica de teatro), littéraire
(resenha de livros); variétés (variedades) e cosi via (coisa da vida). Isso ocorreu por
conta do barateamento das ilustrações, ocasionado pelas inovações técnicas das
tipografias, expandindo, nesse sentido, a vocação recreativa do folhetim. (MEYER,
1996, p 58).
Diante dessas mudanças e desse novo rumo que o folhetim vinha sofrendo, em 1836,
o jornalista e homem político da França, Émile Gerardin, e seu ex-sócio Ducaqt, ao
perceber o quanto era rentável esse modelo de jornal e, principalmente, esse espaço,
lançaram dois jornais, os quais se chamaram La Presse e Le Siécle. Tais periódicos
foram um verdadeiro sucesso na França e, mais ainda, proporcionaram para o ambiente
do folhetim maior desenvolvimento. Então, percebendo esse sucesso e o lucro que eles
poderiam obter das folhas impressas, trataram, logo, de dar um lugar de destaque ao
feulleton, ampliando o sentido dessa palavra.
Passou-se, desse modo, a serem lançadas e publicadas diariamente nesse espaço do
jornal as tão famosas – ficções em fatias, as quais foram um fenômeno francês que
circularam por todo mundo no período do século XIX. O primeiro romance publicado
nessa nova modalidade de escrita foi o romance espanhol Lazarilho de Torme, o qual
marcou a inauguração das narrativas folhetinescas. Com isso, surgiu uma nova receita–
os romances-folhetins. E, segundo Meyer (1996), essa receita foi aos poucos sendo
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incorporada nos jornais e, por volta do final de 1836, com a fórmula “continua
amanhã”, ela já estava inserida nos hábitos dos franceses, superando qualquer
expectativa.
A idéia repercutiu por toda França e, logo, ganhou lugar de destaque nos jornais
parisienses, “de início, ou seja, começos do século XIX, le feuilleton designa um lugar
preciso do jornal: o rez-de-chaussée – rés-do-chão, rodapé –, geralmente o da primeira
página” (MEYER, 1996, p. 57) . De fato, esse sucesso gerou uma maneira peculiar de
publicação – o de publicar em “fatias seriadas”, recebendo, dessa forma, simpatizantes e
antisimpatizantes desse novo modo de conduzir a escrita literária francesa.
Diante disso, no começo da década de 1840 a “receita está no ponto”, atraindo e
segurando os indispensáveis assinantes de jornais, assim afirma Marlyse Meyer:
A publicação desse gênero ganhou tamanha proporção que logo começou a fornecer
aos periódicos os infindáveis lucros e, consequentemente, o desenvolvimento da
imprensa, proporcionando acesso maior às páginas impressas por conta do barateamento
dos seus custos de produção e venda. A respeito disso, Yasmim Nadaf comenta:
Eram histórias que sempre envolviam um drama, seja amoroso, seja familiar.
Possuíam certa tensão nos seus capítulos, provocando, conseqüentemente, certo ar de
suspense, instigando a curiosidade do leitor, para que o mesmo pudesse comprar o
exemplar do dia seguinte. Com isso, o romance-folhetim atraiu milhares de leitores com
suas chamadas para o próximo dia e com as suas histórias melodramáticas.
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Assim, passamos para o momento em que esse gênero atravessou oceano e chegou
até o Brasil, atraindo e encantando o público-leitor brasileiro.
O romance-folhetim no Brasil
Com o advento da vinda da família Real para Brasil, a imprensa abre as portas.
Tipografias são abertas e outras são equipadas com as melhores máquinas trazidas da
Europa. Esse acontecimento traz para o Brasil várias vantagens, inclusive à
independência. Mas é para a imprensa que iremos dar o devido destaque.
Com a ajuda do jornalista Hipólito da Costa, circulou no Brasil o primeiro jornal –
chamado Correio Braziliense. Segundo LUSTOSA (2004), o primeiro jornal a circular
no Brasil tinha esse nome por causa dos portugueses que eram nascidos ou
estabelecidos em terras brasileiras e sentiam-se vinculados ao Brasil como à sua
primeira pátria. Sabendo disso, Hipólito da Costa dá ao seu jornal o nome de braziliense
com o intuito de mandar mensagem aos leitores do Brasil.
Além dessa história, o curioso está no formato desse jornal, o qual se assemelhava ao
formato de livro. Visto que, nesse momento o próprio papel da impressa tinha além do
caráter de informar o de educar. Até porque, os jornalistas cumpriram a atitude de
educador, pois nesse contexto era precária a presença de escolas, no entanto, a presença
dos livros já se fazia em grande proporção no país (LUSTOSA, 2004; ABREU, 2008).
Com a transferência da Sede da Coroa para o Rio de Janeiro, funda o primeiro jornal
a ser impresso no Brasil – Gazeta do Rio de Janeiro. Lançada em 10 de setembro de
1808 ao moldes do jornal que circulava em Lisboa, a chamada Gazeta de Lisboa.
Entretanto, o segundo jornal a ser publicado no Brasil foi só em 1813. Assim,
começaram a ser fundados diversos jornais no Brasil, sendo alguns com o intuito de
informar os fatos relacionados à família real; outros de cunho liberal, como é o caso do
Jornal Revérbero Constitucional Fluminense (1821), o primeiro a percorrer pelo Brasil
sem o crivo do censor.
Diante disso, a imprensa passa a dar o seu ar de liberdade, com jornais que
questionavam à Coroa; com a independência do Brasil; e com a outorga da Constituição
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de 1824. Mas essa liberdade não era de total absoluta, uma vez que a atuação dos
jornalistas ainda era limitada. Havia uma preocupação em preservar o Império,
criminalizando as condutas dos jornalistas que viriam a ofender o Imperador e a
propagar idéias contrárias à ordem do Estado.
Entretanto, a imprensa brasileira transgrediu essas regras legais e inúmeros jornais
são fundados no Brasil, abordando, principalmente, temas do cotidiano nacional. Diante
disso, é marcada a presença da influência francesa nos periódicos brasileiros, e o
folhetim, surge com força total, com suas variedades de espécie de textos.
É nesse universo histórico que em 1838 circulou o primeiro romance-folhetim em
um jornal brasileiro, O Capitão Paulo (Capitaine Paul), do aclamado Alexandre Dumas
pai, o qual foi publicado no jornal chamado Jornal do Comércio. “Entre 1839 e 1842
os folhetins-romances são praticamente cotidianos no Jornal do Comércio, embora os
autores ainda não sejam os mais modernos”. (MEYER, 1996, p. 283). A partir de então,
começaram circular os romances-folhetins de outros autores franceses nos periódicos
brasileiros como O Judeu de Errante, de Eugéne Seu; O conde de Monte Cristo
(iniciado em 1845), de Dumas; O Rocambole, de Ponson du Terrail e as obras de Xavier
de Montepin.
As narrativas folhetinescas são bem sucedidas nos jornais nacionais e, logo, os
periódicos brasileiros começaram a ganhar os infindáveis lucros. Até porque, esse
gênero chegou ao Brasil com o mesmo modelo e o mesmo intuito de como se deu na
França – dar aberturas aos jornais e aumentar o público leitor, como adverte Tinhorão:
E foi assim, em decorrência dessa abertura dos jornais e dessa conquista de novos
públicos, que os autores brasileiros encontraram uma maneira de divulgar as suas obras
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e de inserir ao universo do Cânone Literário Brasileiro. Isso se deu, por exemplo, com o
escritor de O Guarani, José de Alencar, que publicou seu romance em formato folhetim
em 1856, o qual teve uma repercussão por todo o Brasil. Além desse autor, outras
escritas de outros escritores irão aparecer nos periódicos nacionais, como Manuel
Antonio de Almeida, publicou o folhetim Memórias de um Sargento de Milícias, em
1852, entre outros.
O gênero romance-folhetim, também, apareceu nos periódicos brasileiros com
algumas particularidades. Dentre essas particularidades destacamos a maneira como ele
era divulgado e como ele era apresentado nos jornais. Assim como ocorreu na França,
as narrativas fatiadas eram publicadas nas notas de rodapés dos periódicos brasileiros
em uma coluna denominada Folhetim, a qual era no Oitocento o carro-chefe de muitos
jornais, seguido da data, do titulo e do autor, como foram publicados no Folhetim do
Jornal do Comercio, Folhetim do Correio Mercantil, do Diário de Pernambuco, do
Correio Paulistano e, também, nos jornais paraenses como no Folhetim do O Liberal do
Pará, do Diário de Belém, do Província do Pará, entre outros.
As narrativas em fatias publicadas nessa coluna eram algumas longas e outras mais
curtas, conforme o gosto do leitor. Eram os leitores que conduziam a direção dessas
ficções recortadas. Quando não tinham boa aceitabilidade por parte do público-leitor,
elas ficavam logo ausentes das páginas dos periódicos brasileiros.
O gênero folhetinesco influenciou nos estilos e nas técnicas do próprio romance
brasileiro, haja vista que vários historiadores da literatura não demonstraram a devida
importância a esses dados. Como confirma Tinhorão:
Essa maneira peculiar de conduzir as fatias cotidianas nos jornais brasileiros, de fato,
influenciou a ficção brasileira. Mas, nem sempre os autores nacionais viam essa maneira
de conduzir a escrita literária com bons olhos. Acreditavam que o gênero romance-
folhetim dava um tom popularesco à Literatura Brasileira e, também, consideravam esse
gênero como uma subliteratura, negando à influência do mesmo a formação da
Literatura do Brasil.
Diante disso, é interessante notar que Antônio Candido (1964) ao escrever sobre o
percurso e as características das narrativas do autor Teixeira e Sousa, mostrou o quanto
esse escritor ficou esquecido pelos críticos literários, justamente, por conta de sua
particularidade em escrever no estilo dos chamados folhetinesco. “Ele o representa, com
efeito, todos os traços de forma e conteúdo, em todos os processos e convicções, nos
cacoetes, ridículos, virtude” (CANDIDO, 1964, p. 126-127)2.
Entretanto, estudos e trabalhos recentes vêm cada vez mais apontando que esse novo
gênero contribui para a formação da Literatura Brasileira. De fato, o romance-folhetim
foi, realmente, um grande sucesso nos periódicos brasileiros e, também, nos periódicos
do restante do mundo. No entanto, o que fez sucesso em terra nacional foram as fatias
recortadas dos autores franceses, chegando a permanecer vários meses e até anos nos
jornais brasileiros. Um dos responsáveis pela tradução de vários romances-folhetins de
autores franceses foi o jornalista conservador Justiniano José da Rocha, o qual, também,
foi responsável pela inclusão do novo gênero ao Brasil.
Em decorrência disso, no dia 1º de setembro de 1844, “vem à luz”, no rodapé do
Jornal do Commércio, o tão esperado Mistério de Paris, de Eugéne Sue. Sua tradução
deveu-se ao jornalista Joaquim José da Rocha. Esse romance permaneceu quase um ano
no jornal e todos os dias lá estava Mistério de Paris, ocupando praticamente o
suplemento dominical inteiro. Seu fim chega em 20 de janeiro de 1845.
2
Todas as obras de Teixeira foram publicadas em formato folhetim. Em destaque: O Filho do pescador
(1843), Tardes de um Pintor ou As Intrigas de um Jesuíta (1847), Gonzaga ou A Conjuração de
Tiradentes (1848-1851), Maria ou A Menina Roubada (1852-53), A Providência (1854), e por fim, As
Fatalidades de Dois Jovens (1856).
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Outro francês lido e aclamado pelos leitores brasileiros foi Alexandre Dumas pai.
Em 30 de dezembro de 1858 inicia-se no mesmo jornal – Jornal do Commércio – o
folhetim O horóscopo, o qual irá permanecer até março de 1859. A partir de 1859,
aparece nas notas de rodapés do mesmo jornal o tão famoso, não só na Corte como nas
províncias, O Rocambole, durando até 1880, ano em que as narrativas de Xavier de
Montépin começam a dar o seu “ar da graça” nos jornais brasileiros.
No entanto, as obras desses autores franceses não circularam, somente, nos jornais da
Capital do Brasil no período Oitocentista – Rio de Janeiro. Eles chegaram às províncias
brasileiras. Como foi o caso do Estado do Pará, do Mato-grosso e da Paraíba, em que a
presença dos romances-folhetins desses homens de Letras franceses foi marcante.
No caso do Estado do Pará, à presença desses autores e, também, de outros autores
franceses fora de tamanha proporção nos periódicos paraenses. Tendo, particularmente,
o jornal como suporte de divulgação, a publicação de prosa de ficção dos franceses
apareceram, no período do século XIX, nos jornais paraenses com força total. Até
porque, nesse momento a cidade de Belém do Pará passou por um período de grandes
transformações intelectual, cultural, política e social, a chamada Bellé Époque.
Um dos periódicos a publicar os romances em fatias, sempre na coluna Folhetim, foi
o Liberal do Pará. Um jornal de cunho conservador e noticiosos, o qual passou a
divulgar, no início de 1871, o gênero francês nas suas notas de rodapés. Nesse mesmo
ano, o jornal publicou A Blanche de Beauliou, cujo seu criador é o famoso folhetinesco
Alexandre Dumas pai, tendo como tradutor B. S. Pinto Marques 3. Essa narrativa
permaneceu até 20 de agosto do mesmo ano. Outro romance a circular nesse periódico
foi A fada de D’auteil, do visconde Pierre Alexis Ponson du Terrail, iniciando em 29 de
novembro de 1872 e permanece até 21 de fevereiro de 1873. Por fim, nos dias 23 de
agosto de 1874 a 21 de fevereiro de 1875, surge O Médico dos Pobres, de Xavier de
Montépin, o qual foi considerado o maior romance-folhetim publicado nesse jornal,
cerca de 100 páginas de circulação:
Tabela 01
3
Esse tipo de assinatura era bastante comum nos jornais oitocentistas. Tanto tradutores quanto escritores,
às vezes, assinalavam apenas com as inicias.
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alta, seja em silêncio, das narrativas folhetinescas. Além disso, como adverte Chartier
(1999), “um texto só existe se houver um leitor para lhe dar significado”.
Assim, a História dos romances-folhetins tanto na França como no Brasil, só se
concretizou de fato, pela existência de uma comunidade de leitores, ou melhor, por
várias comunidades de leitores, que liam essas histórias nas notas de rodapés dos jornais
e, consequentemente, faziam circular idéias não só nas terras francesas como nas terras
brasileiras, construindo, dessa forma, o contexto de uma cultura letrada.
Referências
MEYER, Marlyse. Folhetim: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das miscelâneas – o folhetim nos jornais de Mato
Grosso (século XIX e XX). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002.
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Introdução
Na realidade, a sua obra não deixa de ser obra de médico. Percebe-se o médico
em cada página, na sua experiência de apreciação do ser humano, na sua
capacidade de fixar os traços fisionômicos, as linhas e as formas do corpo dos
personagens retratados. Acrescido a isso, Nava possuía uma fina sensibilidade
para apreender as características psicológicas das pessoas e associá-las ao seu
aspecto físico. A relação do autor com o mundo exterior era intensamente
permeada por seu conhecimento de arte e sua especialidade médica que
direcionavam a sua escrita. O autor tornou-se médico reumatologista grandemente
motivado por sua admiração pela anatomia do corpo humano. Daí o interesse em
fazer certas mediações entre os seus personagens e personagens de telas e
esculturas de artistas renomados. Desse modo, poder-se-ia reforçar que o grande
interesse demonstrado quando ainda estudante, pelo estudo da anatomia e
morfologia humanas aguçou, em Pedro Nava, o senso de observação e de
percepção do corpo – e com isso torna-se um construtor de linguagens. A escolha
da Reumatologia onde se lida com a forma humana, como especialidade médica,
talvez tenha sido pela idéia estética que o autor fazia do corpo, da perfeição, da
melhoria, da influência direta do desenhista.
Pedro Nava procura extrair de sua matéria verbal tudo quanto esta lhe possa
oferecer de plasticidade, ritmo, harmonia e efeito evocativo. Ao comparar Lenora
com a figura de roupas florais se franjando em galhos folhagens ramagens, omite
a pontuação para alcançar valores expressivos e rítmicos. A supressão das
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1
Disponível em http://www.casthalia.com.br/a_mansao/obras/botticelli_primavera.htm (Acesso em 30
mar. de 2010)1
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Figura 2. Vênus Cirenaica Figura 3. Afrodite com Eros e Pã Figura 4. Madalena Strozi
Percebe-se, ainda, uma preocupação estilística do autor quando diz: [...] mas
para compor porinteiro a linha divina de Leopoldina [...] em que a aglutinação
das palavras demonstra o desejo de busca do autor por elementos nobres para
eternizar a amada em sua completude. A coincidência de terminação, ou seja, a
repetição do som nasal, transforma prosa em poesia, que era o que convinha
naquele momento descritivo. A mulher amada é então transformada numa estátua
perfeita, com pedaços retirados dos mais renomados artistas, o quem vem
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3. O pensamento criativo
vaselíneo
preferi criar anforilíneo
Para comunicar com precisão as suas idéias, o artista precisa conhecer a fundo
os seus meios de criação. O fazer artístico se desdobra numa constante
exteriorização e interiorização de experiências vividas, condensando a nova
descoberta em termos de linguagem.
Também figuras desprovidas de beleza fornecem modelos para a figuração dos
personagens retratados pelo autor, como se pode observar quando este aproxima o
Esopo, de Velásquez, a Dona Francisca de Oliveira, a Chichica:
Outra dona de cadeira cativa, na platéia, era a Chichica.
Chamava-se com essa familiaridade à grande dama D.
Francisca de Oliveira, irmã do ministro Cândido (Luís Maria)
de Oliveira, um dos exilados de 1889. [...] Sempre de veludo
preto, azul ou cobrindo bem a face. Não se maquilava, antes
caiava-se como um pierrô e empapava os cabelos de negrita. De
traços lembrava, e já o referi, o Esopo de Velásquez, que está
no Museu do Prado. (Nava, 1985, p. 50)
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Figura 5. Reprodução do quadro Esopo, de Velásquez, utilizado pelo autor como recurso de memória.
Conclusão
Quanto maior o conjunto de registros produzidos, maior será o apoio na
organização e na variedade de seleção das formas que serão levadas à composição
do texto escrito. O primeiro passo importante é ser receptivo e apressar-se a
registrar uma idéia ou imagem, quando estas parecem viáveis ou possíveis de
serem usadas, para que não se percam. Sem essa atitude de observador, muitas
idéias que no momento em que apareceram não apresentavam grande potencial de
emprego, num momento posterior se mostram como material extremamente
oportuno. Ao arquivar as reproduções artísticas, Nava pôde utilizá-las, pois “[...]
la percepción visual no es um registro pasivo del material estimulante, sino um
interés activo de la mente” ( Arnheim, 1976, p. 35).
O uso de fontes artísticas na escritura de Pedro Nava demonstra a grande
perspicácia analítica de um escritor tão permeável às influências de toda ordem e,
ao mesmo tempo, de uma originalidade tão marcada, que infundia a seus
personagens um caráter próprio e singular. A escritura é um ato complexo. É
através dos rastros deixados pelo autor, desde a mais breve anotação até as provas
tipográficas revistas ao término de cada obra, que se busca desvendar o processo
de escritura e o percurso criativo seguido pelo autor. Cabe ao geneticista buscar
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Referências
1
Doutor em Sociologia. Professor da Faculdade de Itápolis-SP (FACITA).
2
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) nasceu no Rio de Janeiro e foi romancista, contista,
dramaturgo, crítico e poeta. Entre suas obras de contos estão: Contos Fluminenses, 1870), Histórias da
meia-noite (1873), Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias histórias (1896), Páginas
recolhidas (1899) e Relíquias da casa velha (1906).
3
Oscar Fingal O'Flahertie Wilde (1854-1900) nasceu em Dublin e foi romancista, poeta, crítico literário e
autor teatral. Entre suas obras estão: O Príncipe Feliz e outras histórias (1888), O retrato de Dorian Gray
(1891), A balada do cárcere de Reading (1898), De profundis (1985) e Salomé (1894).
4
O conto foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1884. Posteriormente,
foi incluído no livro Várias histórias (1896).
dela por sua crendice, entretanto, um dia, recebe uma carta de Vilela chamando-o
urgentemente a sua casa, o que o faz desconfiar de que o amigo tenha descoberto tudo.
Amedrontado, ele consulta a cartomante, que o acalma, dizendo que o romance
continuaria e o traído de nada sabia. Quando, porém, ele chega à casa de Vilela, vê o
corpo de Rita estendido no chão já sem vida e é agarrado pelo marido enraivecido, que
o mata a tiros.
Já no conto “O crime de Lord Arthur Savile”, 5 Oscar Wilde, também por meio de um
narrador onisciente e em terceira pessoa, narra a saga de Lord Arthur, um jovem rico e
nobre (inclusive de caráter) que – numa festa da alta sociedade inglesa do fim do século
XIX, organizada pela irreverente Lady Windermere – conhece um quiromante (Mr.
Septimus R. Podgers) que lhe prediz o destino, anunciando que Lord Arthur será o autor
de um assassinato. A partir de então, o jovem aristocrata vê-se impelido a realizar sua
sina antes de casar-se com sua amada Sybil Merton, bela e jovem dama da alta
sociedade. Após criteriosamente escolher as vítimas (sua tia Lady Clementina e, depois,
seu tio deão de Chichester) e de ver frustradas suas tentativas de eliminá-las, o rapaz,
vagando à noite atordoado, depara-se com o quiromante que lhe apresentou sua sorte e,
de pronto, atira-o no rio, cumprindo assim seu fado e ficando livre para se casar com
Sybil.
No conto machadiano, a cartomante é uma senhora imigrante, pobre e anônima, que
habita uma casa mal conservada para a qual vão os amantes para conhecer sua sorte,
entretanto, como integrantes da ‘classe média’ (de empregados públicos e profissionais
liberais) da sociedade carioca da Corte, não queriam ser vistos em casa de gente pobre e
marginalizada socialmente, como a cartomante. As previsões dessa não são mais que
engodos, pois se aproveita das circunstâncias e da ingenuidade dos clientes para afirmar
o óbvio; quando finalmente se arrisca a uma previsão, erra tragicamente.
Os personagens centrais, Camilo e Rita, são adúlteros, mentirosos e dissimulados. A
seu modo, pensam que o amor justifica moralmente seus atos. Rita trai o marido e
mostra uma fragilidade moral que, não obstante o adultério, guia-se pela idéia de que o
interesse e egoísmo são os motivos essenciais das ações dos indivíduos. Frente ao
trabalho e à insistência (em enviar cartas anônimas) do denunciante do adultério,
interpreta “que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum
5
Publicado originalmente na The Court and Society Review, em 1887. Posteriormente, foi incluído no
livro O crime de Lord Arthur Savile e outras histórias (1891).
pretendente”, já que “a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o
interesse é ativo e pródigo” (ASSIS, 1982, p. 77). Camilo cobiça e envolve-se com a
esposa do amigo, aproveitando-se da proximidade com o casal, que o apóia quando da
morte de sua mãe; despe-se dos escrúpulos, aproveita-se da intimidade, mente e engana
o amigo. “Candura gerou astúcia” (p. 77). Apesar de ser descrente de tudo e ver a
atitude de Rita ao consultar a cartomante como crendice e ingenuidade, Camilo,
oportunista e premido pelas circunstâncias, crê na advinha quando se vê em apuros.
Dissimulado e desconfiado, ao final, “era um ingênuo na vida moral e prática” (p. 76).
Já no conto de Oscar Wilde, o quiromante é um senhor socialmente respeitado, de
aparência confiável (segundo o narrador parecia um médico de família ou um advogado
do interior), que frequenta os salões da alta sociedade inglesa, consultando, divertindo e
impressionando os aristocratas. Mr. Podgers não só dispunha da confiança de todos
como conduzia o seu trabalho de modo exemplar: era profissional, sensível, ético e
competente – em todo o conto ele não erra sequer uma das suas previsões. 6
Crente sinceramente no quiromante, o personagem central, Lord Arthur, é um rapaz
nobre e com um profundo senso de dever, informado de sua sina, prepara
cuidadosamente a realização imediata do fato para que não o desvie de seus projetos
pessoais e encargos sociais, o maior, o casamento com Sybil. Para tanto, era imperativo
que se desvencilhasse de seu “dever” de cometer o assassinato, pois a procrastinação –
segundo ele indício de covardia – poderia prejudicar seriamente sua amada e perturbar a
instituição do casamento. 7 Estava consciente de que “não tinha o direito de casar-se
antes de ter cometido o assassinato” (WILDE, 1945, p. 72). Rapaz de “bom senso”,
segundo o narrador, “não sentiu a menor hesitação em cumprir seu dever”, pois: “Tinha
que escolher entre viver para si mesmo e viver para os outros, e, embora fosse
indubitavelmente terrível a tarefa que sobre ele recaíra, sabia que não devia permitir que
o egoísmo triunfasse sobre o amor” (p. 73).
6
Mr. Podgers apresenta-se com seu cartão, evita divulgar informações constrangedoras na frente de
outras pessoas e as omite quando podem causar danos severos à vida dos consultados. Suas previsões para
os ouvintes são todas confirmadas pelos presentes e, quanto a Lord Arthur, anuncia que é um rapaz
encantador, que fará uma viagem e perderá um parente, bem como será um assassino. Todas se realizam.
7
A noção de dever de Lord Arthur é por demais semelhante à definição de Kant (1986, 2008), visto que
se concretiza como manifestação da vontade como força moral, prova da autonomia humana frente ao
mundo e, ainda, o dever apresenta-se como algo distinto do prazer e da conveniência, sobretudo como
emanação da obrigação moral para consigo e com outrem, imposição da razão sobre as circunstâncias.
De espírito “prático”, o jovem prontamente atendeu às ordens do destino. Meticuloso
ao escolher as vítimas, preocupou-se em não dar vazão a sentimentos mesquinhos e
locupletar-se com a realização do dever, uma vez que “o tempo era inadequado para a
gratificação de qualquer antipatia pessoal, pois era grave e solene a missão a que se
dedicara” (WILDE, 1945, p. 73-4). Do mesmo modo, não queria causar escândalo ou
capitalizar publicidade, não era certo se destacar nos salões pelo fato de cumprir uma
obrigação (p. 74). Também não queria travestir seu dever de idealizações políticas, pois
que era algo “inteiramente particular” (p. 85). Escolheu um modo primeiramente
“seguro” e “discreto”, depois, porém, um tanto transtornado com o fracasso da primeira
investida, tentou ser mais incisivo (e usou de uma bomba) sem deixar de ser meticuloso
(o explosivo estava conectado a um relógio). 8
Finalmente, ao atirar o quiromante no rio, sente-se realizado, mesmo a presença do
guarda que o questiona não o incomoda, uma vez que efetivado o assassinato, sente-se
desincumbido da tarefa e livre para casar, assim, a “consciência de que havia cumprido
o seu dever deu-lhe paz e conforto” (p. 80).
Em ambos os contos os adivinhos dão ensejo a uma série ações que terminam em
mortes. Os personagens, em função das previsões, são levados a situações trágicas – daí
nos dois contos a menção a Hamlet, de Shakespeare. 9 Entretanto, curiosamente, a
despeito dos efeitos de seus atos, o assassino em Wilde é moralmente mais elevado que
as vítimas em Machado: Lord Arthur é movido pela consciência do dever a cumprir e o
desapego ao egoísmo; já Camilo e Rita são basicamente egoístas, tendo total desprezo
pela condição do outro, enganado e ridicularizado (Vilela).
Na visão machadiana, a moralidade difusa e privada da sociedade carioca (da corte)
do séc. XIX é expressa nas ações dos personagens. Esses não se incomodam com a
imoralidade de seus atos desde que não sejam expostos e punidos, ademais, o que os
aflige não é se sentirem moralmente inferiores na falta de escrúpulos que demonstram,
mas o temor da difusão pública e, consequentemente, da vingança, ação privada do
8
O fracasso das duas primeiras tentativas aborrece profundamente o jovem Arthur, “parecia que o próprio
Destino o atraiçoava” (p. 89), todavia, não perde a fé nos desígnios da providência, pois “sentia que o
Destino não podia ser assim tão injusto” (p. 91).
9
A citação de Hamlet por parte de Machado de Assis aborda a questão do inexplicável, do que existe
entre o céu e a terra para além da compreensão. Já Oscar Wilde menciona o sonhador personagem
shakespeariano para contrapô-lo (e elogiar, com ironia) a praticidade de Lord Arthur Savile. Todavia, o
enredo dos contos refere-se tacitamente à tragédia shakespeariana, uma vez que nessa há um anúncio a
respeito do futuro e de um assassinato, bem como nos contos dos autores.
ofendido. Na moralidade difusa dos brasileiros, público e privado se misturam
(FAORO, 1988) numa moralidade flexível e externa, condicionada pelo consenso tácito
de que o que não é visto e sabido não é imoral, imoral sim é ser descoberto.
Na sociedade brasileira, provinciana e pouco racionalizada, Machado de Assis
mostra o misticismo como comédia. No final, porém, dá ensejo à tragédia. A
cartomante, em seu charlatanismo, nesse contexto, serve indireta e não deliberadamente
aos propósitos de punir os adúlteros, pelas mãos vingativas do marido traído; o engodo
da advinha, inadvertidamente, propicia o castigo dos dissimulados amantes. A tragédia
se consuma a despeito dos desejos e previsões, da desfaçatez e esperteza dos amantes,
uma vez que não se engana a sorte; por maior a malícia e a astúcia, não se escapa ao
destino, pois esse é imune e distante às diferenças e privilégios morais e sociais. Não à
toa, a casa da cartomante é descrita como “a morada do indiferente Destino” (ASSIS,
1982, p. 78, grifos nossos).
Por outro lado, para Wilde, a Inglaterra vitoriana, a despeito das preocupações com o
sentido pedagógico da arte (MORAIS, 2010), tinha na sociedade londrina – moralista,
fútil, caprichosa e permeada pela etiqueta – uma moralidade reguladora da vida dos
indivíduos basicamente privada e separada do que é público. Nas concepções de Lord
Arthur, correto e de bom senso, a consciência da obrigação é algo profundo e íntimo,
independente do julgamento e exposição públicos. A moralidade – a consciência do
dever pessoal, privado, inadiável e intransferível – é introjetada pelo personagem, pois
mesmo que ninguém saiba de seu possível futuro como assassino, ele é profundamente
abalado pela situação e fica obcecado pelo cumprimento do dever.
Entretanto, a altivez moral do personagem (Lord Arthur) e seus férreos valores
aristocráticos (dever, voluntarismo, iniciativa, honra, cumprimento da palavra,
compromisso) são já anacrônicos e ridículos na sociedade burguesa, suas atitudes
nobres causam (ou eventualmente causariam, não fosse a ineficácia de suas ações) tanto
mal aos outros que, ao final, o dever, a entrega e a devoção parecem profundamente
egoístas. 10 Wilde percebe na soberba da alta sociedade vitoriana o fundamento
hipócrita, moralista e insensível das atitudes para com os outros, principalmente os de
10
Um indício da transformação burguesa da aristocracia está no seguinte diálogo: “___Economia é uma
coisa muito boa – observou a duquesa [de Paisley]. ___Quando me casei com Paisley ele tinha onze
castelos e nenhuma casa em que se pudesse morar. ___ E agora ele tem doze casas e nem um só castelo –
exclamou Lady Windermere.” (WILDE, 1945, p. 61). A nobreza proprietária se transformava em
especuladora imobiliária.
classe subalterna, como o quiromante, que servia tão fielmente. O misticismo, numa
sociedade altamente regrada e racionalizada, quando tomado seriamente por alguém que
ainda partilha de valores e princípios férreos e não como diversão burguesa, torna-se
tragédia, que vitima o próprio adivinho, porém, frente à implacável seriedade com que a
adivinhação é assumida como dever e destino social, torna-se comédia. Comédia na
qual o destino, no mundo moderno, aparece como sujeito à iniciativa dos homens,
aberto ao voluntarismo dos indivíduos que, apesar disso, no limite, não controlam as
consequências de seus atos. Por mais desencantado que seja o mundo moderno, por
mais que os homens tentem tomar o destino em suas mãos, ironicamente, o destino
social de suas ações sempre lhes escapa por entre os dedos. O dever e a sólida vontade
tentam modelar a vida, mas o imponderável aflui pelas frestas e escapa ao controle da
intencionalidade. Não à toa, Wilde deu ao conto o subtítulo de “um estudo do dever”
(WILDE, 1945, p. 78).
Na visão dos autores, sociedade e moralidade se imbricam de modo a propiciar, por
meio da ironia e humor, uma interpretação crítica da vida social e de seus personagens à
época. No Rio de Janeiro, na corte de Pedro II (1840-1889), a ‘classe média’ carioca
pratica uma moralidade difusa e flexível na qual público e privado se misturam,
emanação espiritual de uma modernização pouco racionalizada ainda um tanto
patrimonialista, na qual a classe dominante dita os padrões culturais e morais e a classe
média, em boa medida, tenta imitá-la. Nessa sociedade, a adivinhação aparece como
crendice e o narrador a apresenta como farsa, todavia, torna-se tragédia, assim como a
modernização capitalista brasileira que, a despeito das características pouco sérias dos
modernizadores, concretiza-se em uma espiral implacável de desigualdade e
imoralidade.
Em Londres, na Inglaterra da corte de Vitória I (1837-1901), a moralidade dessa
fração da classe dominante, aristocrática e aburguesada, mantém traços racionalizantes e
sentimentos de honra e dever que, a despeito de sua nobreza inicial, já parecem ridículos
num mundo no qual a modernidade tornou voláteis e espúr ios valores rígidos e altivos.
Nessa sociedade capitalista (e imperialista) inglesa, a classe dominante, profundamente
orientada para o interesse e o lucro, percebe a adivinhação como um negócio e a
moralidade como cimento social para a ordenação das condutas individuais e
materialistas numa sociedade preocupada com a integração. Entretanto, por meio da
pena de Wilde, a hipocrisia, derivada da incongruência entre as ações e recomendações
dessa classe dominante, exibe como farsa a tragédia da moral num mundo sem valores
autênticos.
Ainda que consideradas as homologias narrativas dos contos, os desfechos e a
percepção moral dos escritos são singularmente condicionados, apropriados e
interpretados com base nas sociedades em questão e seus códigos de conduta moldados
pelas classes dominantes. Isso traz um desafio à teoria, à história e à crítica literárias:
como é possível pensá-las (e as suas asserções) de modo amplo e universal na
atualidade se ainda estamos presos às circunstâncias culturais particulares como
contexto de interpretação?
Existe um ponto arquimediano da interpretação que tornaria passível o deslocamento
dos vários contextos?
Se há tal ponto, a sociologia da literatura deve reelaborar seus conceitos e métodos
ou dar lugar a uma sociologia universal ou a uma verdadeira antropologia (no sentido
geral) da cultura humana, criando novas mediações e superando em novas sínteses as
construções anteriores, o que demandaria uma completa crítica de seus pressupostos
teóricos.
Se não há tal ponto, as pretensões de uma ‘teoria geral’ da interpretação, de
globalidade cultural, de multiculturalismo, assim como a moral kantiana (universal,
racional e obrigatória), devem ceder espaço e ficar em segundo plano para que a
sociologia da literatura reconstrua os contextos de criação e busque nos particulares
pontos de contato/distanciamento entre as sociedades, moralidades e culturas em suas
diversas manifestações.
Ademais, um justo meio, se existe, seria uma reconsideração da história da cultura e
da literatura, na qual o século XX aparecesse como divisor de águas entre um período
no qual a vida social e a criação artística dela derivada se apresentava como algo
contextual e localizado, tendo como fundamento as sociedades nacionais e suas
manifestações, e, por seu turno, outro período no qual a cultura humana atingiu um
patamar verdadeiramente mundial, global, no qual os contextos já não conferem sentido
(ou todo o sentido) à produção e interpretação cultural e literária.
De todo modo, o fenômeno literário é ainda um platô privilegiado para se avistar a
existência social, local ou cosmopolita, mas sempre humana, demasiado humana.
Referências
ASSIS, Machado de. A cartomante. In: ___. Contos. 9ª ed. São Paulo: Ática, 1982. p.
75-80.
___. Crítica da razão prática. Trad. SCHAEFER, Rodolfo. 2ª ed. São Paulo: Martin
Claret, 2008.
WILDE, Oscar. O crime de Lord Arthur Savile. In: ___. O fantasma de Canterville e
outros contos. Trad. SCHNEIDER, Otto. São Paulo: Círculo do Livro, 1945. p. 55-94.
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Introdução
ambas serão comparadas: quais pontos têm em comum? Como o fato social da opressão
se relaciona com os licantropos? Essas questões serão discutidas nos tópicos seguintes.
1. Zoomorfização e Licantropia
2. Romantismo e Licantropia
comunismo marxista que, durante esse período, enfatizava de forma inefável a questão
do opressor e do oprimido, do burguês e do proletariado. Tal ênfase teve proporções tão
grandes que acabou por reconstruir o mito escatológico do “Justo redentor”, conhecido
hoje como o proletariado. ELIADE (2007) define esse fato da seguinte forma:
narratológica
Uma concretização ainda maior dessa alegoria é feita quando se faz presente a
conexão disto com a própria Sutherland Menzies. Seu nome original era Elizabeth
Stone, porém utilizava o pseudônimo devido ao preconceito com a autoria literária
feminina no contexto norte-americano do século XIX. A situação financeira de sua
família não era das melhores e, aliada ao preconceito anteriormente mencionado, torna-
se evidente a presença dos vocábulos miséria, preconceito, solidão e melancolia na vida
da autora.
A transformação da ambientação, a partir de agora, se torna indispensável para a
dinâmica da formação da alegoria. Do estado de melancolia profunda e de desilusão,
Hugues passa à loucura inóspita e violenta no momento em que encontra a fantasia de
lobismem de seu avô, fato que corresponde ao nó da diegese:
Perante a sequência analisada neste breve estudo, que partiu desde contextos
históricos da origem da zoomorfização, da licantropia, do Romantismo e do oprimido
social, foi possível estabelecer uma forte alegoria entre estes termos, concretizada
através da análise do conto de Sutherland Menzies.
Considerações Finais
Tudo isso pode ser facilmente aplicado em diversas obras românticas que envolvam
o tema licantropia, o que a torna de fato quintessente. Seria também muito apropriado a
continuação desta pesquisa com a análise, por exemplo, do soneto “Melizeu, o menor
entre os nascidos” ou o Senhor dos Lobos, de Alexandre Dumas.
Referências
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Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2009.
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Introdução
Referências
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Este texto tem por objetivo apresentar uma possibilidade de leitura da obra juvenil
Charadas Macabras, de Angela Lago, na qual se considera o papel do leitor e da
linguagem híbrida, composta pela junção dos discursos: literário e da tradição popular.
Para a consecução do objetivo, pretende-se apresentar uma reflexão fundamentada pela
estética da recepção acerca do que propicia o prazer na leitura e quais elementos
determinam o papel do leitor implícito.
Em relação à linguagem, parte-se do pressuposto de que a literatura, na atualidade,
conforme Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schollhammer (2002, p.16), “[...] não
preserva a ilusão clássica da pureza dos gêneros, nem a romântica da autonomia
criadora do espírito, mas encontra-se sempre hidridamente articulada em contato com
gêneros não-literários e com meios de comunicação e expressão não-discursivos.”
Assim, para os autores, o hibridismo é o fundamento e a regra para o escritor
contemporâneo, e não a exceção. O desafio para os estudos da literatura consiste em
sinalizar as confluências que a obra literária estabelece com outras formas de
manifestação cultural ou outros meios. Um exemplo dessas confluências pode ser
observado em Charadas Macabras, por se tratar de uma obra literária cujo texto se
constitui pelos discursos verbal e não-verbal, literário e oral.
Constrói-se, neste texto, a hipótese de que a estratégia da escritora em resgatar a
cultura popular, pela apresentação de enigmas, tanto permite ao leitor contato com um
texto atraente e lúdico, quanto lhe faculta a ampliação de conhecimentos, por meio do
resgate da memória cultural. Na obra, a apropriação da cultura popular, proveniente da
1
Professora Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela UNESP, campus de Assis – SP. Ministra
aulas de Língua Portuguesa nos cursos de Publicidade e Propaganda, Jornalismo e Direito do Instituto
Municipal de Ensino Superior de Assis – IMESA/FEMA.
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e, de repente, a narradora avisa que o leitor está sozinho – “[...] no enorme corredor da
folha em branco” (p.11) – e segura nas mãos os sapatos e a meia do vigia. Segundo a
narradora, o demônio aponta outra porta para o leitor, “[...] ou melhor, página, e você
sabe que tem que entrar por ela” (p.13). Assim, a narradora motiva o leitor a prosseguir,
contudo, antes lhe apresenta mais um enigma: “– Corta aquilo dele, passarinho. Duas e
uma” [pica-pau] (p.13). Nota-se a reflexão metaficcional da narradora que conduz o
leitor pelas páginas, como se estas fossem portas de um intrincado labirinto do qual ele
somente pode sair se encontrar as resoluções para as charadas.
A narradora busca não só antever as reações do leitor, como induzi-lo a certos
comportamentos: “Agora você hesita. Tenta compreender. Mas está com medo. Sim,
medo! Muito medo!” (p.13). No ápice da tensão, ocorre o processo de contensão pela
resposta à charada: pica-pau que remete, de forma humorística, àquilo que deve ser
cortado. Quando se imagina que a tensão foi eliminada, a narradora alerta o leitor para o
fato de haver barulhos de correntes e de uma voz horripilante na escuridão do corredor
em que ele se encontra. Novamente, motivado por ela a fugir desse espaço, o leitor se
depara com charadas que sinalizam para a presença de caveiras, almas penadas,
assombrações e cadáveres em putrefação.
A intromissão da narradora manifesta-se por meio de um processo antitético. Neste,
nota-se a motivação ao leitor para as resoluções de enigmas e a simulação de uma
urgência em prosseguir adiante, pela presença do macabro, seguida pela contensão.
Justamente, esta ocorre quando a narradora, ridicularizando nomes que, para ela,
remetem à decomposição – como Caio que conota “cair aos pedaços” e Rui que “remete
a ruir” –, alerta o leitor para o fato de que, nesse instante, está no “[...] coração do
cemitério” (p.23). Mas há um esqueleto, de uma mulher cruel, que se aproxima e o
leitor precisa fugir: “– Ordinária e perversa. Sou mulher! Uma e uma” (p.24). Essa
mulher, Vilma, foi assassinada cruelmente pelo marido. Novamente, há o alívio da
tensão pela descrição da narradora do comportamento ridículo desse marido que
enlouquecera depois do homicídio. Por esse motivo, ele imagina que a falecida esposa
está viva, então, dirige-se até a Câmara e grita: “– Entregue a prostituta por piedade, ó
parlamentar! Uma, duas e uma” [deputado] (p.29).
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Nessa cena, a narradora indaga o leitor acerca do porquê de lhe contar tudo isso,
afirmando que é isso que um escritor faz. A essa reflexão, alinha outro enigma sobre o
tecer de uma trama que, semelhante a um tecido cheio de furos (filó), requer um ato
solitário (só) de costura (fia), resultando no vocábulo filosofia. A narradora indica para
o leitor, então, um epitáfio disposto em um dos túmulos, apresentando-lhe o enigma que
o compõe: “Dorme eternamente o filho de Minas coberto de flores. Uma e três” (p.31).
Ela afirma que a “[...] tumba está debaixo de um jaz-mineiro, um jasmineiro! Pura
poesia” (p.31). Assim, por meio do humor e da poeticidade, Angela Lago projeta no
discurso da narradora sua apreciação pela terra natal: Minas Gerais. Isso não impede,
entretanto, que o leitor, mesmo desconhecendo as origens da escritora, aprecie o jogo
das palavras.
O leitor é motivado pela narradora, ainda, no cemitério a desvendar outros enigmas
que conduzem para o campo do humor, chegando às últimas páginas do livro. Nesse
momento, a narradora dá-se conta de que a história está terminando e o leitor, com o
qual ela dialoga, pode até ter achado tudo muito tedioso, mas chegou ao final do relato
que está no seu sofá, no livro, no seu colo, na sua mão. Ocorre, então, a epifania para a
narradora que supunha no controle da situação, manipulando o que ela julgava ser o
leitor, levando-o a correr e a sentir medo: “Virgem! Que horror!! Estou nas suas
mãos!!!! É mesmo o fim” (p.35). Indignada, ao constatar que é ela quem está sendo
manipulada e observada pelo leitor, anuncia-lhe de forma irreverente que termine
sozinho o relato. Para tanto, apresenta-lhe o último enigma, instaurando, assim, a
indagação e o humor, pois este não vem, como os outros, após algumas peripécias,
seguido da resolução: “Enfim... acabe você este artigo com as graças de Nosso Senhor.
Até outra! Uma e uma [adeus]” (p.37). Desse modo, a obra se firma sob a forma de um
jogo aberto em que o leitor real pode, ainda, interagir, mesmo após o término da leitura.
Justifica-se, então, que as persianas estejam representadas semi-abertas na quarta capa,
sem nada por trás, pois a história acabou e a narradora foi embora. Ficou, apenas, o
leitor com o enigma.
A abordagem do tema é dinâmica, pois se configura tanto no texto verbal quanto no
visual como repleta de lacunas, provocadas pelos enigmas, que solicitam a interação
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com o leitor e o prendem até o final da leitura. Essa abordagem é, também, consistente,
pois escapa de simplificações nas representações, demonstrando com humor a
capacidade de sedução da obra que pressupõe um leitor curioso e, justamente por isso,
motivado a desvendar todos os enigmas. A preocupação estética na obra centra-se na
manutenção da coerência entre linguagem verbal e oral, ainda, na dialogia entre texto
verbal e não-verbal. Dessa forma, o livro propicia uma experiência significativa quanto
aos usos literários da língua e da ilustração.
Charadas Macabras dialoga com contextos culturais do jovem leitor, pode-se notar
esse diálogo na afirmação da narradora de que o demônio escapa de dentro do sapato do
vigia: “[...] tal qual o gênio de Aladim [...]” (p.11). Por meio de seu intertexto, a obra
retoma charadas populares, mobilizando e instigando o leitor a estabelecer relações com
outros textos na leitura. Pelo emprego da temática do mistério e pelo jogo imagético
instaurado logo no início da narrativa, no interior de um necrotério, a obra contribui para
o desenvolvimento da percepção de mundo do leitor e para a reflexão sobre narrativas
tradicionais que apresentam narradores, geralmente, como personagens masculinos,
observadores que, de forma distanciada, não interagem com o leitor. Assim, o livro
favorece a ampliação das referências estéticas e culturais do jovem leitor, permitindo-lhe
uma revisão de valores e de conceitos prévios acerca da narrativa ficcional.
A obra de Angela Lago faculta ao leitor o reconhecimento, pela leitura, de uma rede
dialógica que, por meio de sua memória, permite-lhe identificar um lastro de narrativas
que interagem entre si. Justamente por isso, são instauradoras de um tempo que, apesar
de dinâmico, pode ser retomado e recontextualizado tantas vezes quantas forem as
leituras da narrativa. Esse reconhecimento, por sua vez, confere prazer na leitura para o
jovem leitor, pois ele percebe que “[...] os livros se falam entre si” (ECO, 1985, p.66),
estabelecendo um dialogismo.
Entende-se por dialogismo, neste texto, conforme Diana Luz Pessoa de Barros (1999,
p.2), a característica essencial da linguagem e princípio constitutivo, muitas vezes
mascarado, de todo discurso. Na obra de Angela Lago é esse dialogismo que produz
encantamento no leitor. O encantamento provém do equilíbrio que o jovem encontra na
leitura entre elementos conhecidos e desconhecidos. Conduzido pelo narrador, o leitor
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entra em contato com um universo ficcional novo, mas nem tanto, porque moldado à luz
dos contos folclóricos, das adivinhas, dos romances de terror e detetivescos, por isso
mesmo, seguro e acolhedor. Ao mesmo tempo, depara-se com desafios propostos pelas
indicações de leitura. Dessa forma, essa combinação entre elementos conhecidos e
desconhecidos assegura entre os jovens uma atitude leitora dinâmica.
O equilíbrio entre elementos conhecidos e desconhecidos presente na obra deve-se à
harmonia do antigo com o atual. Pode-se observar na obra que a escritora resgata a
cultura popular de inspiração folclórica, mantendo suas raízes coletivas, contudo,
também expressa uma ideia moderna de folclore (SILVA, 2004, p.14). Na obra, o
elemento antigo apresenta uma releitura. Assim, enquanto a escritora mantém um
imaginário popular nas representações verbais e imagéticas da narrativa, apresentando
uma narrativa sintética, próxima à forma primordial e oral da adivinha, bem como a
circularidade no relato, assegurada pelo emprego de enigmas que são retomados a cada
resolução, subverte o emprego do lúdico, pois não o apresenta como na tradição oral
com finalidade moralizante, antes como fator de contensão do drama e elemento que
conduz ao riso, ao humor. Ao se apropriar das charadas tiburcianas, Angela Lago, por
meio do recurso dialógico da apropriação e da inovação, produz um texto individual, rico
e poético, mantendo no texto o perfil de criação autoral. Para Silva, na obra da escritora,
uma vez atualizada, a charada multiplica-se, não o molde, mas a sua substância. Desse
modo, na sua forma simples transparece a forma artística. Na narrativa da autora, a
linguagem fluida, aberta e móvel, própria das charadas, permite uma renovação
constante (2004, p.66).
O prazer obtido na leitura decorre também da estrutura do texto, da presença de
lacunas que solicitam do leitor um papel na composição literária: o de organizador e
revitalizador da narrativa. Esse papel, preenchido por meio da imaginação, implica em
reapropriação de criações do passado segundo a perspectiva do presente. A obra de
Angela Lago propicia uma interação na qual o leitor “recebe” o sentido do texto ao
constituí-lo. Desse modo, a atualização da leitura se faz presente como um processo
comunicativo. Conforme Iser (1999, p.107), esse processo ocorre quando existem
lacunas presentes no texto que indicam os locais de entrada do leitor no universo
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ficcional. A obra de Angela Lago possui, então, uma estrutura de apelo que invoca a
participação de um indivíduo na feitura e acabamento: é seu leitor implícito. A
comunicação ocorre quando esse leitor, na busca do sentido, da concretude, procura
resgatar a coerência do texto que os vazios interromperam.
Esse resgate realizado pelo leitor é decorrente da utilização de sua atividade
imaginativa. Para Regina Zilberman (1984, p.79), obras que consideram o leitor,
concebem que, somente por meio de sua atividade, a criação poética alcança seu fim: a
transmissão de um saber. No caso de Charadas Macabras, este saber é emancipatório,
pois oferece novos padrões ou possibilidades de suplantar a norma vigente. Pela leitura,
o jovem revê seus conceitos acerca do fazer ficcional, de finais fechados, de narradores
observadores masculinos, de personagens que existem para serem vistas e analisadas e
não para espiarem o leitor e o observarem, do emprego de charadas de forma poética que
permitem a constituição de uma narrativa atraente e inteligente.
A leitura da obra de Angela Lago concede ao processo de leitura uma legitimação de
ordem existencial, pois revela ao leitor sua capacidade intelectual, valoriza-o. Essa
valorização ocorre quando o texto o convoca ao desvendamento da charada,
submetendo-o a um rito de passagem, por meio do qual, outros heróis mitológicos já
passaram diante de uma esfinge. O sucesso no deciframento prova que aquele que é
arguido tem a mesma competência de seu arguidor, sendo aceito pelo grupo a que
pertence (JOLLES, 1976, p.116). Como a charada é composta pela linguagem popular,
figurada e, às vezes, ritmada – “Até ovo podre, pra cachorro que não ladra, é doce. Duas
e duas [chocolate]” (p.31) –, conhecê-la é deter um saber acerca de um discurso
plurívoco que tanto desautomatiza o uso da linguagem, quanto faculta a percepção de
suas inúmeras realizações.
Em síntese, Charadas Macabras confere prazer ao leitor implícito porque solicita a
sua produtividade, ou seja, oferece-lhe a possibilidade de exercer a sua capacidade. Pelo
exposto, pode-se, então, perceber que é válida a hipótese de que, pela leitura da obra de
Angela Lago, o leitor entra contato com um texto atraente e lúdico que lhe faculta a
ampliação de conhecimentos diversos, sobretudo, por meio do resgate do seu patrimônio
cultural.
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JOLLES, André. Formas simples. Tradução da própria editora. São Paulo: Cultrix,
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OLINTO, Heidrun Krieger; SCHOLLHAMMER, Karl Erik (orgs.). Literatura & Mídia.
Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002.
SILVA, Celso Sisto. Vestígios da Cultura Popular em Angela Lago: Conto Recontado
É Segredo Revelado. Florianópolis, 2004. 209p. Dissertação (Mestrado em Letras) –
Universidade Federal de Santa Catarina.
Introdução
1. Literariedade do Livro de Jó
2. Intertextualidade subversiva
3. Epígrafe do conto
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4. Milagre e Fantástico
como reaparece mais rico que antes. A redenção do homem experimentado pelo
sofrimento e temente a Deus configura milagre divino de misericórdia e inexplicável.
Pois como entender a cura da chaga de Jó, ou a visita de homens do mundo todo a
trazer presentes para a recomposição de sua fortuna, senão como milagre?
O acontecimento da vida misantropa de Zacarias após sua morte é impossível de ser
explicado realisticamente, assim como o milagre divino. Porém, apesar de ambos
serem inexplicáveis racionalmente, cada um representa idéias humanas
extremamente opostas quanto à existência, independência e compromisso do
humano.
A indagação quanto à aproximação entre o milagre e o fantástico está fundamentada
na seguinte reflexão de José Paulo Paes:
limite da própria existência de nova configuração humana. O silêncio que faz fugir,
não o que contempla quieto, e quando não, as sombras camuflam essa nova
configuração da existência humana: “Caminhava pela estrada. Estrada do Acaba
Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que silencio” (RUBIÃO, 1976, p.
15).
5. Existencialismo no pirotécnico
Ao constatar que a vida do pirotécnico permanece, e melhor, após sua morte temos
que a existência do homem está sobreposta a sua essência, porque a mudança do
posicionamento de Zacarias quanto à humanidade, de instalado a misantropo, não
significa não continuar existindo. Sendo assim, a maneira como vive a existência
correspondente a essência do homem, porque constitui concepção, ideologia. Esse
argumento é existencialista, e expresso por Sartre: “A existência precede e governa a
essência”. Outra afirmação de Sartre, “O inferno são os outros”, também extratifica a
ideia de vida misantropa de Zacarias como uma melhor existência.
Paralelamente à reflexão sartriana sobre existência e essência, em O mundo como
vontade e representação, Schopenhauer postula que o mundo é uma representação, o
homem e o objeto, e então a essência do mundo não está nele, pois é representação,
mas sim no que condiciona seu aspecto exterior, a vontade (equivalente à escolha do
posicionamento quanto à humanidade, se adaptado ou misantropo).
O mundo é a materialização dessa vontade. Certamente toda a vontade não chega a
ser realidade representada, a dor causada por essa irrealização ou pela distância entre
homem e objeto devido à ideia platônica dele, quando a realidade chega a ser
representada, mas não suficientemente, essa dor é imensa. Como insatisfeito, o
homem cava sempre mais funda sua ideia platônica, e o sofrimento cresce. Essa
vontade pode ser, por exemplo, um sentimento de encaixe e acolhimento dentre os
outros que o pirotécnico não provava: o próprio descaso sentido é uma morte
(assassinato).
Para Schopenhauer, somente a contemplação da realidade a sua volta e a
contemplação estética podem interromper a dor. No momento de contemplação o
objeto preenche completamente a consciência do indivíduo que, agora sem
possibilidade de fantasiar a ideia platônica, vê o conhecimento objetivo do objeto.
Sem atentar em como, de algum modo, a contemplação do redor (re-dor) é sentir-se
bem comparativamente a quem está pior (outra ilusão) ou em como a contemplação
estética é fuga alienante academicamente aceita; a síntese em sistema
schopenhaueriana do que seja o mundo coincide exatamente com a vida distanciada -
pois a contemplação só é possível com distanciamento - de um misantropo.
Conclusão
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PAES, J.P. Um seqüestro do divino. In: A aventura literária – ensaios sobre ficção e
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Petrópolis: Vozes, 1971, p. 28-36.
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Introdução
Tal situação exacerbou a segregação racial de tal forma que, em 1948, foi
oficializada a política do apartheid, que criava leis que invalidavam os direitos dos
negros. O apartheid foi, na verdade, uma extensão das leis segregacionistas impostas
por governos anteriores.
Na década de 50 já se iniciavam lutas contra o apartheid. O CNA (Congresso
Nacional Africano), liderado por Nelson Mandela foi o maior grupo oposicionista. Mas,
com a prisão de Mandela em 1962, o grupo perde força e só se recuperaria em 1990,
com a saída de seu líder da prisão. Um plebiscito em 1992 acaba com o apartheid e, em
1994, Mandela é eleito presidente da África do Sul. Até hoje o país luta com as
diferenças sociais impostas pela segregação racial.
É dentro desse contexto turbulento que se insere a literatura de J.M.Coetzee (1940-).
J.M.Coetzee (1940-) é escritor de mais de uma dezena de romances que versam sobre
os problemas de uma África do Sul afetada pela colonização e ganhador do Nobel de
literatura em 2003. The Narrative of Jacobus Coetzee é a segunda novela de Dusklands
(1974), a primeira obra de ficção de J.M.Coetzee (BIOGRAPHY, on-line, 2005). A
novela trata da exploração e conquista da África do Sul por holandeses, no século
XVIII. The Narrative of Jacobus Coetzee é narrada em primeira pessoa, por Jacobus
Coetzee, fazendeiro, caçador e explorador holandês, morador da África do Sul, que,
autorizado pelo governador, realiza uma expedição a territórios ainda desconhecidos
pelo homem branco para, supostamente, caçar elefantes.
A novela divide-se em três partes:
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3. A outremização
binária, por isso ele critica a cultura nativa, ironizando-lhes os costumes, pois, a seu ver,
só a cultura européia teria valor.
Ao afirmar que os namaqua não possuem leis, governo, religião ou arte, Jacobus quer
dizer, na verdade, que eles não possuíam leis, religião, governo e artes europeus. A
negação de tudo o que não corresponde à ideologia européia é típica do pensamento
binário. Assim, nota-se a semelhança entre este tipo de outremização e a outremização
imputada pelo regime do apartheid. No apartheid foram criadas leis que relegavam os
sujeitos negros à inferioridade, pois para a maioria branca um sistema criado pelos
negros não poderia ter validade. São leis racistas que criam a separação binária entre
branco e não-branco. Os brancos podiam circular livremente, já os negros necessitavam
de cartões de identificação e tinham acesso restrito às áreas “brancas”. (ASHCROFT ET
AL, 1998).
O binarismo também se evidencia em diversos outros estereótipos criados para
caracterizar o sujeito colonial. Um dos mais recorrentes estereótipos imputados aos
colonizados foi o de selvagem. Obviamente todos os estereótipos escondiam intenções
muito menos nobres que a educação dos colonizados. O que as invasões coloniais
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porém, pois ele mesmo havia agido com crueldade com garotos da vila que resolveram
roubar suas roupas enquanto ele se banhava no rio.
Jacobus não aceita ser alvo das brincadeiras dos meninos, não aceita ser desafiado e,
por isso, desfigura o rosto de um deles. E quando os meninos revidam, Jacobus acusa-os
de serem violentos. A mesma violência ele praticara contra os meninos namaqua, mas
parece não se dar conta disso, pois a ele, colonizador, branco, europeu, superior, tudo é
permitido e os colonizados, negros, inferiores, deviam-lhe obediência. A violência foi
um fator marcante na política do apartheid. Qualquer tentativa de expressão por parte
dos negros era reprimida com extrema violência. Um exemplo marcante foi o Massacre
de Sharpeville, em 1960, em que 5.000 manifestantes negros protestavam contra a Lei
da Licença, que os obrigava a portarem uma identidade oficial que os classificava de
acordo com sua cor. 69 manifestantes foram mortos a tiros, a maioria nas costas.
(FIUZA NETO, 2010).
Conclusão
A outremização dos sujeitos coloniais foi reforçada pela criação de mitos e
estereótipos sobre eles, o que reforçava a ideologia binária do colonizador, que só via
sua própria cultura como legítima e correta. Percebemos que a dicotomia sujeito/objeto
estabelecida, respectivamente, para colonizador e colonizado, realizou-se pelo desejo de
explorar as colônias e obter lucro com isso, o que acabava encontrando uma justificativa
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Referências
Introdução
A palavra teatro traz em si uma duplicidade: pode se referir ao espaço onde ocorrem
espetáculos e também a própria representação. Etimologicamente, o termo (teatron)
possui o significado de miradouro, local de onde se vê. Pode-se dizer que não há espaço
mais adequado para visualizar a história humana, pois ele é uma das artes que fala do
homem com mais propriedade, já que o faz por meio do próprio homem. A palavra, no
teatro, tem um alcance maior que a simples expressão da voz, é o próprio texto em
princípio, sendo assim, por meio da linguagem é que inicialmente penetra-se na face da
“visceral ambigüidade” dessa arte, como bem disse Moisés (1997). Corvin sustenta que
a decifração semiológica de uma obra dramática conceba-se em função da representação
e que uma simples leitura, estática, poderia truncar o teatro em sua definição específica.
Por outro lado, “[...] o texto escrito tem a vantagem de propor traços menos fugitivos e
menos subjetivos do que os registrados pelos olhos e ouvidos, ele permite melhor (...)
discernir classes de signos típicos e depreender (...) traços pertinentes [...](CORVIN,
1998, p.277)”. Nesse sentido, o intuito aqui é de destacar a obra escrita, que ostenta
elevada taxa de literariedade, pois o texto dramático alimenta-se dessa linguagem
polissêmica para as construir como espetáculo (MOISÉS, 1997, p.261).
Umberto Eco (apud RYNGAERT, 1996, p.03) conceitua o texto como “uma
máquina preguiçosa que exige do leitor um duro trabalho de cooperação para preencher
os espaços do não-dito ou do já-dito que ficou em branco (...), o texto não é outra coisa
senão uma máquina pressuposicional”. Seu conceito pode ser tranquilamente estendido
ao texto dramático, geralmente estruturado de forma enigmática por sua contextura
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Não há como tracejar o cenário dramatúrgico de Mato Grosso do Sul sem apontar o
nome de Cristina Mato Grosso, visto ter sido ela um baluarte nesse campo artístico.
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Maria Cristina Moreira Oliveira, de nome artístico Cristina Mato Grosso, é atriz,
dramaturga e diretora teatral do GUTAC/ INECON em Mato Grosso do Sul; graduada
em letras, ministrou aulas em algumas universidades, trabalhou com projetos teatrais
voltados para a educação pública e, atualmente é doutoranda em teatro na ECA- USP.
No momento de 1971, ano de surgimento do GUTAC, Cristina Mato Grosso e
Américo Calheiros (atualmente secretário de cultura do estado) foram os sustentáculos
do movimento teatral em Mato Grosso do Sul. O GUTAC é um dos grupos brasileiros
(nascidos nos anos setenta) que se distingue pelo teatro de resistência, em luta à falta de
liberdade de expressão nos anos da ditadura militar; suas atividades fomentam-se com
os festivais estudantis mato-grossenses de teatro, dessa forma, o grupo conquista seu
espaço na comunidade e, o reconhecimento reflete-se nos vários prêmios alcançados.
Teve importante papel na inauguração dos teatros Glauce Rocha (1971) e Aracy
Balabanian (1989), nos quais ele foi o primeiro grupo teatral a se apresentar. O grupo se
fortalece e o trabalho com o teatro se efetiva no âmbito das escolas públicas, pois
grande parte dos componentes do GUTAC era profissional em educação.
A partir daí seguiram-se trabalhos significativos e importa relembrar alguns
espetáculos do grupo, produções indispensáveis à leitura de seu projeto dramatúrgico.
Um dos pontos claros da autora é evidenciar questões do cotidiano em suas peças,
prova disso é que no período da ditadura, muitas delas sofreram interferências dos
órgãos de censura porque retratavam a realidade da repressão e da obstrução cultural
que o país viveu nesse período. Em 1973 e 1975, respectivamente, com as peças
Contramão (texto de Cristina Mato Grosso) e Os Profanos (Américo Calheiros),
sofreram cortes comprometedores e interdições, o grupo conviveu com a censura federal
durante quatorze anos, marcando expressivamente sua produção textual e cênica.
O espetáculo Foi no Belo Sul Mato Grosso (1979), texto de Cristina Mato Grosso,
sofreu censura na faixa etária (18 anos) e foi considerado o divisor de águas na história
do teatro da região, manifestando uma linguagem própria, irreverente, e especialmente a
preocupação pela defesa das condições subumanas que o povo estava submetido.
Segundo Mato Grosso, as “condições estão cada vez mais agravantes, à medida que o
modelo econômico deste governo arbitrário, de mãos dadas com a burguesia dominante,
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permite que esta, controle, abocanhe e devore nossa terra, nossa produção” (2007, p.59).
De encontro a essa realidade, a arte do grupo se compromete cada vez mais com o
oprimido.
A produção assume caráter crescente e se nota, a cada texto, aspectos idiossincráticos
regionais sendo valorizados. As apresentações se intensificam nas principais capitais
brasileiras; os encontros com profissionais de teatro, sobretudo do eixo Rio-São Paulo
são cada vez mais frequentes e significativos e, resultam na redefinição de caminhos
estéticos.
Outro texto significativo de Mato Grosso foi Vila Paraíso, Bom dia, 1980, (censura
18 anos), que sintetizava a problemática social do momento: a prostituição, exploração
do menor, moradia e saneamento básico da população.
Em Pedro Palito e o Monstro Devorador (1984), texto de Mato Grosso, censura 14
anos, texto de forte discurso político e que expressa as manifestações de organização
coletiva, garantiu ao grupo a existência de uma identidade. Nessa nova etapa cênica e
dramatúrgica fica evidenciada a preocupação de um conteúdo em resposta aos anos
antecedentes de exceção, própria de um teatro de resistência, sucessor das lutas dos
jovens artistas dos anos de 50 e 60, do ARENA ao CPCs (MATO GROSSO, 2007).
Com a peça Tia Eva, de Cristina Mato Grosso (1986) o grupo conquistou o Prêmio
Pesquisa de Linguagem Cênica no Festival Nacional de Teatro Infantil, de São José do
Rio Preto-SP. Em 1989, O Sonho de Ceição, retratando a vida de uma artista que se
tornou ícone da cultura popular de nosso estado,venceu a Concorrência FIAT- Prêmio
Centro-Oeste. Pelo segundo ano consecutivo, uma peça de Cristina Mato Grosso
arremata o prêmio FIAT na categoria Teatro, Anhanduí- Anhanduizinho, meu amor que
faz referência ao elemento indígena. Valendo-se de subsídios verídicos para a escritura
de suas peças, Cristina Mato Grosso realiza suas investigações históricas, geográficas,
das raízes religiosas, culturais e folclóricas de forma bastante expressiva.
Foram inúmeras as críticas sobre a produção da teatróloga sendo veiculadas em
jornais de âmbito nacional, obtendo reconhecimento por sua produção em todas as
esferas, pelo pronunciamento de jornalistas, sociólogos, artistas, professores e diretores
teatrais ou pela voz do povo leigo, porém tão sensível à sua arte. Não se pode negar a
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pronta identificação com a cultura regional, por meio de temas, linguagem, cenários,
música, personagens, entre outros elementos. É intrínseca a preocupação exegética da
autora em toda sua trajetória artística. Sua obra deixa reverberar muito de suas lutas
sociais e de seu comprometimento além-arte. Percebe-se em todas as peças citadas neste
artigo um traço fundamental, recorrente no início de sua carreira e sustenta-se
contemporaneamente: o engajamento, o ativismo social- independentemente de seus
enredos, dos espaços retratados e da tipologia de personagem ou sua densidade ôntica-
discursiva, a “magia” teatral se envolve com as discussões concernentes à realidade
humana, indissolúveis no ato criador da autora.
Suas peças transitam na tênue linha do fantástico verossímil e o mundo empírico,
especialmente se tratando de Balada de amor no sertão, sua mais recente obra, em que a
liberdade inventiva é bastante exacerbada.
2- Da tradição à transculturação
grosso modo, é entendido como a assimilação de traços de outras culturas, entende que
a transculturação expressa melhor as diferentes fases do processo transitivo de uma
cultura a outra, pois representa a síntese de dois processos: a perda de uma cultura
(desculturación) e o acréscimo de outra cultura (aculturación). Dito de outro modo, o
termo transculturação pode ser genericamente compreendido como “a mescla de
culturas e o estabelecimento de uma terceira, motivada, principalmente, pela velocidade
com que tal processo teria ocorrido na história de Cuba e da América” (CUNHA, 2007,
p.127). Ángel Rama dá amplitude ao conceito de Ortiz, buscando dinamismo maior nas
possibilidades de respostas ao impacto cultural. Revê o conceito de Fernando Ortiz em
suas três etapas (perda parcial da própria cultura, incorporações da externa e
recomposição de ambas) complementando-o pelo processo de perdas, seleções,
redescobrimentos e incorporações. O crítico, segundo os estudos de Roseli Cunha, ao
apresentar as formas de resposta ao impacto cultural, sintetiza-as em três: a
vulnerabilidade cultural que se entende pelo aceite passivo à cultura do outro; rigidez
cultural, ao se fechar unicamente nos valores da comunidade que recebe o impacto; e, a
plasticidade cultural, neste, ao incorporar elementos exteriores, com o elemento
inventividade, a estrutura cultural é dinamizada.
Rama recriou o conceito de Ortiz no que tange à cultura latino-americana
estendendo-o à literatura, especialmente a regionalista. Cunha (2007, p. 146- 147)
observa que esse posicionamento se dá pelo intuito de destacar o momento da literatura
do subcontinente latino-americano que se voltava para suas peculiaridades. O desejo de
uma independência literária se basearia na originalidade, sendo a ruptura com
influências do passado, o que levaria a uma representatividade regional, de modo a
enfatizar as diferenças em relação às culturas colonizadoras. Rama repensou a tradição a
partir do contato com a influência externa e a relevância que o elemento tradicional e o
modernizador teriam ao formarem um terceiro. Para ele, a obra de arte seria o produto
que transita entre o universal e o regional.
As ideias aqui expostas, Rama designa de transculturação, de sentido amplo, já um
outro sentido de transculturação pode ser nomeado de transculturação narrativa, que se
direciona mais especificamente à literatura. Pode-se dizer que a última dimensiona as
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MÃE
Pedro Palito!.
(O menino ignora o chamado, e prossegue recitando, ora lendo, ora recita textos memorizados com
gestos e intenções maliciosas: )
PALITO
“Veloz borboleta
(...)
MÃE
(interrompendo-o)
Moleque sem-vergonha!
PALITO
Não, mãinha!
É de Camonge1 a revistinha!
heróis Pedro Palito e Jesuíno Brilhante 1. Nas palavras de Rosenfeld (1996, p. 23), o
herói “não é um ser real e sim um mito”, e este último é uma forma de se organizar
as emoções mais veementes, projeção de angústias e temores; esse “herói mítico é a
personificação de desejos coletivos (1996, p. 36).
Os heróis, na peça, são cangaceiros e sabe-se que o cangaço foi uma forma de
melhorar a situação social, uma estratégia de sobrevivência, “[...] uma tentativa de
transformação social de dentro para fora” (VASSALO, 1993, p.61). De acordo com o
entendimento de LAGAZZI (1988, p. 43, grifo nosso) “[..]a luta do sujeito se faz
necessária. A lei, por sua univocidade, tenta reprimir o desejo. É, portanto, contra o
mecanismo da lei que a luta do sujeito se impõe, para que ele possa contar a sua história
e mostrar as suas singularidades. Através da contextualização, a falta pode ocupar o seu
espaço e o desejo do sujeito se colocar”. Diante do exposto, o herói representa o desejo
de luta pelo amor, de luta contra o tirano, contra as dores e mazelas de um povo que
vive no “sertão”2.
Presenciam-se, nas situações postas, discursos de cunho político, a preocupação com
a identidade regional, a valorização da cultura universal. A dramaturga dialoga, muitas
vezes, com a modernidade, porém, evidencia-se, no decorrer de seu texto, a
identificação com aspectos da tradição popular.
Cristina Mato Grosso é considerada uma artista que realiza um teatro popular, no
sentido de que dá voz à cultura popular, às idiossincrasias de um povo; têm como
marcas a improvisação, a presença marcante de personagens alegóricos, utiliza-se
também de máscaras, do teatro de bonecos, de sombras, e foi reconhecida também fora
do país por seu trabalho com os mamulengos 3.
1
Nessa peça, o cangaceiro referenciado é Jesuíno Brilhante (1844-1879), considerado por Matoso
Câmara o Robin-Hood do sertão. Antecessor de Lampião.
2
O sertão aqui é entendido como “um lugar identitário, relacional e histórico. Ele simboliza a relação de
cada um de seus ocupantes consigo mesmo, com os outros e com uma história em comum” (SANTOS
apud CASTILHO, 2009, p.69).
3
Importa lembrar que a direção do GUTAC foi agraciada com a Bolsa de Teatro Virtuose- MINC-, pelo
qual realizou estudos teatrais no D.E.A, Institut D’études théâtrales, Universidade Sorbonne Nouvelle,
Paris III, no ano letivo 2002/2003. Os componentes participaram de alguns eventos em Paris onde
demonstraram, especialmente, as técnicas do mamulengo brasileiro, uma das formas animadas de teatro
em que o grupo destaca-se pela especialidade.
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Nesse sentido, atenta-se também para a poética de Cristina Mato Grosso que guarda
tendências humanistas do teatro de Gil Vicente. Há um casamento literário: as alianças
da linguagem poética e dos personagens alegóricos escolhidos se diluem no ato criador.
Mato Grosso retoma na peça Balada de amor no sertão a linguagem clássica de Camões
e as cantigas vicentinas por meio da intertextualidade ou mesmo recortes dessas obras,
que se transculturam na voz das personagens do sertão. As líricas ibéricas mesclam-se à
literatura de cordel dando lume a essa obra popular, podendo ser lida como uma forma
de entender a identidade não só do espaço sertão, mas nacional; pois a literatura possui a
característica de não delimitar fronteiras: é o universal dentro do local, haja vista que
“[...] a literatura é concebida em suas relações com a nação e com sua história. A
literatura, ou melhor, as literaturas são, antes de tudo, nacionais”. (COMPAGNON,
2001, p.32-33).
Considerações finais
A análise proposta da obra por ora encerra-se aqui, mas está longe de ser
finalizada. Há muito a ser discutido, compreendido e revisitado no texto. Com esses
poucos apontamentos, acreditamos ter contribuído um pouco para a disseminação da
literatura dramática sul-mato-grossense, em específico, a da dramaturga contemporânea
Cristina Mato Grosso. Como se pôde verificar, a ficção da autora não só se evidencia
pela ideologia política de que está impregnada, porém deixa patente a função ideológica
dos símbolos utilizados, e o uso recorrente da multiplicidade de temas e personagens a
serem investigados.
Levando em conta a produção literária de Cristina Mato Grosso, bem como sua
formação profissional e seu constante trabalho de cunho social e educacional, torna-se
necessário lançar estudos sistemáticos acerca sua poética, afinal, “um grande
dramaturgo é patrimônio tanto do teatro quanto da literatura”(MAGALDI, 1998, p.13).
REFERÊNCIAS
Pretendo com esse ensaio, lançar um olhar sobre o último escrito de Nicola
Gonçalves as Lembranças Esparsas. Esse é o décimo livro do agora octogenário “Seu
Nicola”, carpinteiro, nascido na cidade de Colina –SP em 1929. Mora em São Carlos
desde 1943.
Nicola nos conta no prefácio de suas Lembranças Esparsas que se mudou pra São
Carlos para trabalhar com a carpintaria nas indústrias de camas e cadeiras que eram
abundantes na cidade nessa época, e nos conta com a devida ênfase que a carpintaria é a
atividade que desenvolve até hoje, de 8 a 12 horas diárias. Ele nos narra também, que
em Pitangueiras onde trabalhou nos anos de 1952 e 1953 aprendeu o ofício de técnico
de rádio e operador de cinema numa máquina de 16 milímetros, e já trabalhou no
Cinema Santa Helena, localizado em Colina. Ainda no prefácio, diz que em 1959
montou sua oficina de carpintaria e desde então exerce esse ofício. É carpinteiro e
escritor.
No decorrer do livro se pode notar a importância do trabalho para esse senhor, que
faz questão de descrever as atividades laborais que desenvolveu durante toda a vida.
Ecléa Bosi, no texto Memória e Sociedade: Lembranças dos Velhos afirma que o
trabalho manual, mecânico ou intelectual, ocupou a maior parte do tempo vivido pelas
pessoas que entrevistou. Para eles o trabalho possui uma significação dupla:
Nicola diz: “trabalhei em Pitangueiras nos anos de 1952 e 1953, com meu primo
Zéca, com quem aprendi o ofício de técnico de rádio e cinema, num aparelho de 16
milímetros, que às vezes manejava desajeitadamente provocando assobios da platéia”.
O trabalho ao nível corpóreo, no período do adestramento, pode ser percebido pela parte
destacada do fragmento. Durante as narrativas, temos uma série de exemplos que
remetem a essa significação do trabalho. Em Mesinha de Televisão temos um exemplo
ainda mais claro:
Tratei de arranjar madeira bem seca, um tampo de prancha bem
polida, fiz o que pude para deixa-la ao gosto do freguês, sem antes
aplicar duas ou três camadas de verniz tipo gomalaca e lá fui fazer a
entrega da tal mesinha [...] (GONÇALVES, 2009, p.51).
Quando fui lá receber o dinheiro, o moço saiu para fora aos gritos
exigindo que eu retirasse imediatamente aquela mesa de sua sala,
enfurecido ao extremo alegando que não ia fica com uma porcaria
daquela em sua casa( GONÇALVES, 2009, p.51).
Certa vez fui numa fazenda tratar um serviço e o fazendeiro era desse
tipo de gente (pessimista, orgulhosa, arrogante). Após apresentar o
orçamento do trabalho que seria executado, por ter achado cara a
minha mão de obra, o tal fazendeiro virou uma fera pro meu lado,
vociferando descontrolado contra a minha pessoa. Precisei dar o fora
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No prefácio, Nicola revela que anda cansado e desanimado, nos diz que está
passando por uma fase ruim da vida e nos explica qual é a causa do seu mal estar.
Mas como tudo na vida cansa, hoje estou entrando numa fase um
pouco pessimista, mas acho que isso vai passar e voltarei
normalmente ao meu estado natural. Essa fase um tanto
desconfortável deve-se a falta de motivação e inspiração ara produzir
textos literários que sejam de interesse (grifo meu) para pessoas mais
exigentes em se tratando de leitura de livros em geral (GONÇALVES,
2009, p.2).
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Nicola percebe o desinteresse do público com relação que aquilo que acredita ser
mais precioso, a sua memória, as experiências que compõe sua vida. Ecléa Bosi teoriza
a relação do velho com a memória.
Na seqüência, Ecléa Bosi explica que o velho possui uma espécie singular de
obrigação: a de lembrar. E lembrar significa relacionar o corpo presente com o corpo
passado, significa evocar, dar vida a coisas que já não existem mais, significa não deixar
se perder o que foi a sua própria vida. Porém a sociedade industrial não valoriza a
lembrança, e consequentemente os contadores das lembranças.
Walter Benjamin discorre sobre o fenômeno no artigo O narrador: Considerações
sobre a obra de Nicolai Lescov. Temos nesse artigo algumas reflexões sobre os rumos
da narrativa oral, a instituição do romance burguês, como forma de narrativa da
sociedade industrial e a relação dessa forma com os meios de produção. Na carta-
resposta de Nicola, ele nos fala de um contador de histórias tradicional assim como
exemplifica Benjamin no seu texto.
Meu finado pai foi um grande contador de histórias. Costumava
freqüentar bares da cidade, e lá ficava horas e horas bebericando um
conhaque e contando histórias aos companheiros. Nos meus livros eu
conto alguns casos narrados por ele, motivo pelo qual muito aprendi
com ele. Geralmente meu pai contava as experiências assimiladas ao
correr de sua vida, quase todas passadas em fazendas, onde trabalhou
como carpinteiro. Conhecia como ninguém histórias de assombração,
de bandidos e facínoras, de folclore e uma infinidade muito grande de
narrativas (GONÇALVES, 2009.p.1)
vendeu nenhum dos 30 mil exemplares que já distribuiu para os moradores de São
Carlos e região. Não há nenhuma espécie de subsídio público, e se os livros fossem
vendidos, muito provavelmente seriam pouco consumidos. Nicola diz: “Na verdade
gasto mais dinheiro com meus livros do que com o resto das minhas despesas”
(GONÇALVES, 2009, p.63).
As Lembranças Esparsas são um apanhado de relatos das mais variadas fontes
que vão desde acontecimentos vividos ao longo dos anos, passando por lembranças de
antepassados e amigos, figuras lendárias que habitaram a região de São Carlos e Colina,
e por fim a descrição de espaços e costumes enraizados nos habitantes da região.
Os relatos são relativamente curtos, o que é recorrente nos 10 livros de Nicola, e
não possuem ordem cronológica, vão brotando naturalmente através das palavras. Não
possui um estilo literário muito desenvolvido, as narrativas se aproximam muito da
oralidade, os relatos são construídos com detalhes tão minuciosos que os torna
documentos de inestimável valor histórico. O autor faz detalhadas descrições de como
os espaços da cidade foram há 50, 60 anos.. Nicola deixa transparecer a sua sinceridade
com relação aos escritos, sua intenção é narrar, transmitir de alguma forma aquilo que é
lembrado, e já não existe mais.
Ao encerrar essas três crônicas, devo salientar que as e as mesmas
representam procedimentos insólitos de minha vida particular e que de
bom senso não deveriam ser publicadas, mas carrego comigo o
costume de não esconder nada do que acontece de bom ou de mal nos
meus procedimentos cotidianos, não faço nenhuma simulação desses
acontecimentos, tudo o que relatei acima realmente aconteceu em
minha vida Já passei por muitas situações embaraçosas, umas quase
trágicas, outras hilariantes, as quais ao longo dessas narrativas serão
levadas ao conhecimento dos leitores para que sirvam de bom ou mau
exemplo para todos (GONÇALVES, 2009. p.7).
Enquanto idealizava esse artigo, escrevi uma carta a Nicola, e nessa carta fiz
alguma perguntas. Uma das perguntas foi se suas narrativas possuíam alguma grande
mensagem, e uma parte da resposta transcrevo a seguir. “(...) Pretendo ensinar coisas
como as vitórias alcançadas ao decorrer dos anos, a vivência com a natureza, com
animais silvestres, as aves, os bichinhos do mato as pessoas, os maus e os bons
elementos humanos, causos e costumes do campo (...)”.
A resposta é carregada de elementos de um tempo mítico, quase primitivo, essa
atmosfera está presente em todos os escritos de Nicola. De certa forma as coisas de que
Nicola trata nas narrativas, apesar de passadas, possuem algo de vivo, algo que se
percebe no cotidiano das pessoas que habitam aquela região. Ecléa Bosi explica a
origem desse espírito contido nas lembranças:
Há dimensões na aculturação que sem os velhos, a educação dos
adultos não alcança plenamente: o reviver do que se perdeu de
histórias, tradições, o reviver dos que já partiram e participam então
de nossas conversas e esperanças; enfim o poder que os velhos tem de
tornar presentes na família os que se ausentaram, pois deles ficou
alguma coisa no nosso habito de sorrir, de andar. Não se deixam para
trás essas coisas como desnecessárias. Essa força, essa vontade de
revivescêscia, arranca do que passou seu caráter transitório, faz com
que entre de modo constitutivo no presente (BOSI, 1995, p. 74).
Não podemos deixar pra trás algo que está intrínseco na nossa natureza. Não
existe cultura sem memória, perdemos todos os dias elementos preciosos de nós
mesmos, quando deixamos morrer os velhos sem ouvirmos o que eles têm a nos dizer.
Com essa desvalorização das experiências e falta de interesse dos jovens, aos poucos os
velhos perderam qualquer espaço na sociedade, só são necessários enquanto produzem,
sua vida sua experiência não possui nenhum valor. Quando descreve seus medos Nicola
deixa transparecer que um deles é o medo de ser improdutivo, o outro, o maior deles é a
morte.
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Todos os dias enquanto essas pessoas vão se morrendo o que passa despercebido
pelos que ficam, é que aos poucos vamos perdendo algo essencial da nossa cultura,
vamos nos tornando seres esvaziados, seres artificiais, somos cada vez mais
semelhantes aos produtos descartáveis vinculados a cultura do consumo imposta pelos
meios de comunicação. Não existe povo sem cultura. Não existe cultura sem memória.
Referências
Introdução
A corrida para a expansão colonialista dos séculos XVIII e XIX coincidiu com o
surgimento do feminismo na Europa, sendo que aquela pregava a superioridade branca,
cristã e patriarcal, negando aos povos conquistados os direitos civis (e sendo as
mulheres nativas as mais afetadas). A superioridade masculina em detrimento da
feminina, causando as mulheres opressão, já era uma prática comum na sociedade
europeia, dada a natureza patriarcal da mesma, assim, ela só se estendeu com maior
violência às mulheres das sociedades conquistadas.
Dentro desse quadro patriarcal há de considerarmos a dificuldade da mulher em
reagir contra os pressupostos sexistas e assumir sua posição na sociedade, não como
homem ou mulher, mas como sujeito agente. A mulher branca, europeia, já nasce
cercada pela ideologia da opressão e dessa forma o construto de seu pensamento é
essencialista: a elas cabem os castigos, a prostituição, o trabalho escravo, tudo sem
questionamento aparente. Este costume também deveria ser adotado pelas mulheres
colonizadas, que, ao recusarem o aceite dos critérios ocidentais patriarcais como únicos,
sofriam maiores barbáries que aquelas sofridas pelas mulheres brancas, e muitas delas
causadas por estas. Tais atitudes geraram um fato comum no processo colonial, a dupla
colonização: a mulher é oprimida pelo sistema patriarcal colonial, sendo subjugada pelo
poder imperial geral (homens e mulheres), bem como sofre os mesmos abusos no
ambiente doméstico familiar. A historiadora Emilia Viotti da Costa reafirma essa
prática comum num estudo da real revolta de Demerara: “Como trabalhadoras, sofriam
os mesmo abusos que os homens. Mas tinham de enfrentar problemas adicionais:
1
Obra sem tradução para o português. Os trechos aqui utilizados foram traduzidos por mim.
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estupro era um deles, separação dos filhos em fase de aleitamento era outro” (COSTA,
1998, p. 92).
Apesar do silêncio do nativo ser, muitas vezes, tão forte a ponto de apagar o
indivíduo colonizado da sociedade imperial (e isso se estender com mais violência em
relação à mulher), a voz do nativo pode ser recuperada por meio de questionamentos às
práticas opressoras do colonizador. Esta resistência é discutida por Bhabha que entende
que esta prática, com maior dificuldade, também pode ser trabalhada pela mulher
colonizada, que assim reverte a dupla colonização e recupera sua identidade. O presente
trabalho busca verificar como a personagem Auntie Lou do romance The Hangman’s
Game (2007) revida as imposições da dominação branca principalmente por meio da
dissimulação, negando assim o suposto caráter inferior da mulher colonizada e
inserindo-a no processo de libertação como sujeito agente.
1. Karen King-Aribisala
àquelas desempenhadas por eles. Nomeada Three Blind Mice e dividida em três partes,
os acontecimentos da hiponarrativa dependem da ocorrência dos acontecimentos da
narração da autora fictícia, bem como dos eventos que ocorrem na suposta atual
Nigéria. Como aparato de identificação, as narrativas foram impressas com fontes
distintas (normal e negrito), sendo as mesmas ligadas pelo inofensivo jogo da forca,
com a palavra-chave controle, e guiadas pela narradora.
Mesmo considerando que em The Hangman’s Game o apelo à força do poder
ideológico imperial e colonial em pleno século 21 parece ser o ponto primordial da
narrativa, a dada investigação voltar-se-á particularmente a análise da personagem
Auntie Lou e suas relações de subjetividade que a habilita a revidar os domínios
coloniais em Demerara sem fazer uso de agressão física. Ao revidar o poder do
colonizador poderemos reconhecê-la como metonímia da ascensão negra em uma
sociedade duramente colonizada.
A resistência ao poder colonial pode ser observada desde os aspectos mais primitivos
– pela luta armada – até os sociais e culturais – pelo discurso, e análises diversas vêem
comprovando que esta opera de forma mais efetiva que aquela, muito embora o termo
resistência conote luta física a priori.
Nos primórdios do processo colonizador, a luta armada foi o primeiro tipo de
resistência utilizada pelos nativos. A eficácia desta logo se provou baixa dado que no
período que esta operou milhões de sujeitos coloniais foram exterminados na tentativa
de reaver o espaço tomado pelo colonizador que impunha uma realidade brutal aos
nativos. Sem a organização do branco europeu (pois as tribos viviam em guerra mesmo
entre si) os povos colonizados protelaram em pouco a total dominação europeia e em
parte contribuíram para um embate mais violento e uma rápida dizimação dos seus. Na
conquista do território que hoje chamamos de México temos, talvez, o relato da maior
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barbárie cometida em nome das missões civilizadoras européias, relato este descrito por
Todorov (1991).
Poucos são os estudiosos que defendem a luta armada em favor da libertação,
destacando o entilhano Frantz Fanon em, principalmente, Os condenados da terra
(2005). O ensaísta e médico psiquiatra, que abraçou a causa argelina, estudou a
psicopatologia do sujeito negro colonizado e era a favor da via armada em detrimento
da aceitação da imposição colonial. Porém, a resistência operada no discurso provou-se
muito mais eficaz e comum, conforme Ashcroft (2001) observa:
Se pensarmos na resistência como qualquer forma de defesa pela qual
um invasor é ‘mantido do lado de fora’, as formas sutis e, às vezes, até
mesmo as formas não ditas de resistência social e cultural foram muito
mais comuns. Estas formas mais sutis e mais difundidas de resistência,
formas de dizer ‘não’, são as mais interessantes porque são as mais
difíceis de serem combatidas pelos poderes imperiais (p.20).
seus limites coloniais, capaz de firmar sua independência e liberdade sem uso de forças
armadas.
certeza de que a cor nada mais é que um mero subterfúgio para a objetificação dos
escravos - “É tudo como se [...] encontrassem um prazer intrínseco [...] no fato de
exercer poder sobre os outros, na demonstração de sua capacidade de dar a morte”
(TODOROV, 1991, p. 139) - para provar uma superioridade inventada, que não condiz
com a realidade, o que fortalece sua subjetividade e a conduz ao revide.
Questionamentos à religião cristã também são ferramentas que ajudam a fortalecer
suas bases para a resistência colonial. Ashcroft (2001, p. 21) discute que o maior
aspecto do poder colonial está na capacidade em construir o colonizado dentro de mitos
binários, e a fé eurocêntrica cristã tem sido uma das mais relevantes estratégias
coloniais para submeter à condição maligna do negro, em contraste com a pureza
religiosa do europeu, homem fiel a Deus. A imposição da religião cristã como única e
verdadeira, apontando os rituais religiosos dos nativos como maus, conseguiu
convencer muitos negros a se converteram ao cristianismo e, consequentemente, à
ideologia europeia, mas também serviu para mostrar a muitos negros a alienação que
essa ideologia representava. Auntie Lou se enquadra nesta última categoria. A escrava
revolta-se com os atos divinos em relação à colônia, comparando-os com a passagem
bíblica na qual a serpente chega ao paraíso para destruí-lo: “Deus [...] estou brava com
você [...] Você construiu um jardim para nós. Nós tínhamos flores e coisas bonitas [...]
então você trouxe a serpente [...] Por quê?” (KING-ARIBISALA, 2007, p.63). Lou
humaniza Deus quando fala com ele de forma tão íntima, desconsiderando o papel de
Deus, senhor supremo, que o homem branco conferiu a ele e que deveria ser observado
pelos negros. Sua subjetividade ganha espaço diante da certeza que o poder branco não
é algo divino, mas uma criação tão humana quanto os costumes negros, que o mito
binário branco/negro, homem/mulher não tem fundamento e que todos são iguais,
independente do Deus evocado:
Se, efetivamente, minha vida tem o mesmo peso que a do colono, seu
olhar não me fulmina mais, não me mobiliza mais, sua voz não me
petrifica mais [...] Não só a sua presença não mais me constrange, mas
já estou lhe preparando tais emboscadas que logo ele não terá outra
saída senão a fuga. (FANON, 2005, p. 62)
Fazendo uso do inglês crioulo Lou ponta que o aprendeu, não como os ingleses o
falam, mas o embutido aos seus costumes, adaptando-o às suas necessidades para
denunciar sua própria outremização e a de seu povo, e essa forma de usar a língua do
colonizador mostra que na imitação a recusa à superioridade europeia acorre à medida
que o colonizado modifica o objeto imitado. E é com esse discurso modificado que a
escrava entra no tribunal, recobrando sua voz como negra e também como mulher:
“‘Você é Auntie Lou de...’ / ‘Eu sou Louise,’ anunciou Auntie Lou, cruzando os braços.
Ela nunca tinha visto tantos homens brancos num só lugar” KING-ARIBISALA, 2007,
p.150). Ela ridiculariza o Governador Murrain quando este pede que ela jure verdade
com a mão na bíblia, questionando se ela deveria jurar para Deus ou para ele, relegando
o poder dos dois ao mesmo patamar, numa clara crítica à postura superior do
Governador em relação aos negros, e retirando a bandana que protege seus cabelos,
deixando óbvio seu físico negro, ela encara os juízes ingleses, na defesa do Reverendo
Smithers, criticando o pré-julgamento deste, a compra de testemunhas, e também a
tortura aos negros:
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Conclusão
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Referências
Minha mãe nunca foi em Belo Horizonte e a vida dela foi um microcosmo.
(PRADO, Adélia, 1999, p. 12)
A redacção do Valério teve honras de ser lida em voz alta. Era assim:
Na minha casa a minha mãe faz tudo: cozinha, lava, limpa, trata de nós quando
estamos doentes e atura o meu pai.
A MÃE É MUITO ÚTIL.
(TAVARES, Paula, 1998, p. 61)
Não tardou muito, pois, para que o trio mineiro se reunisse e Drummond se ocupasse
de fazer chegar os originais de Bagagem à editora que o publicava. Desde então, Adélia
Prado caiu, também, nas graças de Sena Madureira, o editor, não levando mais que um
ano para que sua obra de estréia fosse lançada e para que o seu nome se tornasse
conhecido. Em 1976, quando a poeta esteve no Rio de Janeiro para o lançamento de
Bagagem, ficou hospedada em casa de Affonso Romano de Sant’Anna e Marina
Colasanti e conheceu vários escritores durante “uma rodada de amizades” organizada
por Rubem Braga em sua cobertura. Na noite de autógrafos, até Juscelino Kubitschek
compareceu. Em São Paulo, o lançamento aconteceu no Museu de Arte Moderna, tendo,
o evento, sido patrocinado por José Mindlin (SANT’ANNA, 2000, p. 18).
De Bagagem, seu livro de estréia, lançado em 1976, até o presente, Adélia Prado
participou de várias antologias, escreveu algumas peças teatrais e publicou mais treze
livros: O Coração Disparado (poesia, em 1978), Solte os Cachorros (prosa, em 1979),
Cacos Para Um Vitral (prosa, em 1980), Terra de Santa Cruz (poesia, em 1981), Os
Componentes da Banda (prosa, em 1984), O Pelicano (poesia, em 1987), A Faca no
Peito (poesia, em 1988), Poesia Reunida (reunião das obras poéticas publicadas até
então, em 1991), O Homem da Mão Seca (prosa, em 1994), Oráculos de Maio (poesia,
em 1999), Manuscritos de Felipa (prosa, em 1999), Prosa Reunida (reunião das obras
em prosa, em 1999), Filandras (prosa, em 2001), Quero Minha Mãe (prosa, em 2005) e
Vida Doida (reunião de parte de sua poesia, em 2006).
Paula Tavares – Ana Paula Ribeiro Tavares –, por sua vez, nasceu no dia 30 de
outubro de 1952, no Lubango, Huíla, província localizada ao sudoeste de Angola. É
filha de Maria Emília, de descendência portuguesa, e de Geraldo Agostinho, de origem
kwanyama. Desde os nove meses de idade, como era costume no contexto da situação
colonial, foi criada pela madrinha, parenta mais abastada, e da casa desta só saiu para
casar. A infância e a adolescência de Paula foram passadas, segundo ela própria narra
em e-mail (2004),
à solta pelas ruas. Com trabalhos que tinha a obrigação de efectuar,
rodeada de animais e plantas e dos cheiros das cozinhas e da roupa
lavada a corar ao sol. A adolescência, com as perturbações normais
entre a religião e a atenção à injustiça: um aprendizado.
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Contudo, mesmo tendo crescido em Angola, a educação que recebeu esteve toda
pautada nos hábitos e costumes portugueses, de modo que o seu contato com a cultura
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da terra natal se deu com um certo distanciamento.
Mais tarde, já adulta, ela conseguiu preencher tal hiato depois de realizar, segundo
relata Secco (2003, p. 177), “leituras e projetos de investigação histórica e
arqueológica”, “tanto na capital angolana, como em várias cidades do interior de
Angola”, isso tudo enquanto cursava História na Faculdade de Letras do Lubango,
atualmente denominada ISCED-Lubango. A graduação, porém, só foi terminada em
Lisboa, para onde se mudou com o intuito de aprimorar seus estudos. Em 1996, também
concluiu, pela mesma Universidade de Lisboa, o Mestrado em Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa.
Atualmente, tendo concluído o Doutoramento em História e Antropologia sobre
Angola na Universidade Católica de Lisboa, onde também leciona Literaturas Africanas
de Língua Portuguesa, continua a morar em Lisboa. Paula exerce a profissão de
professora desde os dezenove anos de idade, tendo passado por cadeiras como História
(no Ensino Secundário), Língua Portuguesa e Português a Estrangeiros.
Mesmo distante de seu país, a poeta
sempre trabalhou ligada à área cultural, tendo actuado como
profissional em diferentes áreas da cultura como a Museologia,
Arqueologia e Etnologia, Património, Animação Cultural e Ensino.
Participou em simpósios, congressos, comissões de estudo e
elaboração de inúmeros projectos da área cultural. Foi Delegada da
Cultura no Kwanza Norte, técnica do Centro Nacional de
Documentação e Investigação Histórica (hoje Arquivo Histórico
Nacional), do Instituto do Património Cultural. (Site da União dos
Escritores Angolanos).
Por isso, embora a mãe cozinhasse “exatamente”, observa-se, neste seu ato, um zelo
extremado: o feijão era “roxinho” e o molho feito com “batatinhas”. Essa idéia é
reforçada pela conjunção adversativa “mas” empregada no terceiro e último verso, “Mas
cantava”, pois torna certa a alegria de vida da mãe, a sua satisfação quando da execução
das tarefas domésticas, sobretudo ao preparar os alimentos.
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Este poema parece comprovar o pensamento de Barros (1981, p. 12) quanto ao
espaço feminino, ao afirmar que “é no âmbito da refeição que a mãe exerce sua
autoridade e controle, determinando, dentro das possibilidades geradas pelo trabalho do
pai, o que irá compor a refeição e como esta será distribuída entre os membros da
família”. Com base nesta idéia, não há motivo para que a mãe, no caso do poema em
apreço, sinta-se, por um só instante, diminuída pelo fato de laborar somente em casa.
Ela parece ter ciência disso e, portanto, cantarola e se esmera no preparo dos pratos,
ainda que sejam triviais.
Finalmente, note-se que o título, “Solar”, sinônimo de mansão ou morada nobre,
parece bem apropriado, pois demonstra que, a despeito da simplicidade, do bucolismo e
do desprovimento de luxo, ali vive uma família feliz, e, por isso, tão grandiosa quanto
um solar.
A cozinha, no poema “As gentes de Mpinda e Mbanza Kongo”, de Paula Tavares, do
mesmo modo que no poema adeliano, surge representando o ambiente feminino, pois,
nela, “as mulheres tratam da gordura”, cuidam do preparo dos alimentos para a família.
Aqui, porém, os limites se estendem para além da cozinha, envolvendo a casa como um
todo e o trabalho que, para a manutenção desta, é necessário: “apanhar os frutos
maduros da palmeira”, colher a lenha, buscar a água, cuidar das crianças e dos velhos.
Vejamos:
As gentes de Mpinda e Mbanza Kongo
Colocaram nos braços as pulseiras
Beberam o vinho de palma
Andaram em círculo
Deixaram para as mulheres o trabalho
De apanhar os frutos maduros da palmeira.
Coro:
Se não consegues descansar, és escrava
Mandam-te à lenha
Mandam-te à água
Mandam-te aos frutos
Coro:
Se não consegues descansar, és escrava
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Mandam-te à lenha
Mandam-te à água
Mandam-te aos frutos (TAVARES, 2003, p. 20-21).
A divisão sexual do trabalho, entendida por Bruhns (1995, p. 85) como uma relação
direta “com o papel da mulher no processo reprodutivo”, é bastante intensa neste
poema. Essa bilateralidade laborativa se torna evidente logo na primeira estrofe, quando
às mulheres é reservado “o trabalho/ De apanhar os frutos maduros da palmeira”, ao
passo que, aos homens, cabe, apenas, beber “o vinho de palma”. Disso se pode inferir
que, se é próprio da natureza feminina gerar filhos, também o é a ocupação acerca das
atividades necessárias para a criação deles, caso das atividades domésticas.
Muito importante, ainda, em “As gentes de Mpinda e Mbanza Kongo” é a presença
do “Coro”, na segunda e na quarta estrofes, para revelar, por meio de versos que
oscilam entre a oração e o grito de revolta, as proporções do trabalho feminino: “Se não
consegues descansar, és escrava/ Mandam-te à lenha/ Mandam-te à água/ Mandam-te
aos frutos”. Desta feita, afirma-se pela existência de uma voz externa que denuncia a
submissão da mulher, já que a mesma é obrigada a cumprir toda uma ordem de tarefas
domésticas e, aparentemente, não tem voz para contestar.
Algo bem diverso acontece no poema “Ensinamento”, de Adélia Prado, que, embora
também apresente a cozinha como espaço exclusivamente feminino, nem por isso o
papel da mulher é visto como inferior ao do homem. Tanto é assim que o eu lírico
invoca a figura da mãe para mostrar que são os pequenos gestos os norteadores de um
bom relacionamento afetivo e a descreve em meio aos afazeres domésticos, arrumando
“pão e café” e deixando “tacho no fogo com água quente” para quando o marido
chegasse do trabalho. Vejamos:
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo. (PRADO, 1991, p. 116)
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Muito mais que valorizar a faina caseira da mulher, o eu lírico, neste poema, parece
caminhar para uma inversão de idéias, sublimando a posição feminina, que
normalmente, é vista como de menor importância. Em outras palavras, no momento em
que a mãe expressa a compaixão que sente pelo marido – “Coitado, até essa hora no
serviço pesado” –, torna certo que não se sente, nem por um momento, inferior ao sexo
oposto. Trata-se de uma mulher muito bem resolvida, absolutamente feliz com seus
afazeres, capaz de perceber a importância do trabalho do marido, sim, mas também do
seu, e, por meio dele, edificar a relação, demonstrar carinho pelos que ama.
É preciso notar, ainda, que o eu lírico, ao lembrar desse fato, afirma que, embora a
mãe achasse “estudo/ a coisa mais fina do mundo”, sabe que “Não é”, porque “A coisa
mais fina do mundo é o sentimento”, demonstrado, este, nos pequenos gestos maternos,
no simples ato de arrumar “pão e café”, de deixar o “tacho no fogo com água quente”
para que o marido, depois de um dia inteiro de trabalho, sinta-se acarinhado,
reconhecido. Só isso é suficiente, segundo o eu lírico, para provar que o amor, mesmo
jamais tendo sido mencionado pela mãe porque “palavra de luxo”, era vivido diuturna e
reiteradamente, caracterizando, assim, o maior “Ensinamento” que lhe poderia ser
legado.
No poema “EXACTO LIMITE”, de Paula Tavares, observa-se que o espaço
feminino está afeito ao “exacto limite” do “Eumbo”. Este, de acordo com Abranches
(1985, p. 275), compreende o local de convivência “sob o mesmo tecto”, mas também,
no sentido antropológico, muito mais do que uma família extensa, um grande grupo de
parentesco, que, funcionando ao mesmo tempo como célula produtora e célula de consumo,
controla os aspectos principais da distribuição do produto e agrega indivíduos com estatutos
servis, engajados no processo produtivo e por afeição no processo de consanguinidade.
Assim, além de um território circunscrito, pode-se imaginar, com Bezerra (1999, p.
53), que, “nesse poema, a voz poética volta-se para a rapariga traçando seus limites,
numa leitura que se reporta à cerimônia da efundula, quando a menina torna-se mulher”.
Traços como a demarcação dos limites, a mudança das vestes, o novo penteado e o uso
do cinto, bem amparam a idéia de que se trata, efetivamente, de um rito de passagem.
Vejamos:
A cerca do Eumbo estava aberta
Okatwandolo,
“a que solta gritos de alegria”
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colocou o exacto limite:
árvore
cabana
a menina da frente
sairam todos para procurar o mel
enquanto, o leite
(de crescido)
se semeava, azedo
pelo chão
comi o boi
provei o sangue
fizeram-me a cabeleira
fecharam o cinto:
Madrugada
Porta
EXACTO LIMITE (PRADO, 1985, p. 28).
Referências
Introdução
Every Light in the House Burnin’ (1994), Never Far From Nowhere (1996), Fruit of the
Lemon (1999) todos sem tradução na língua portuguesa, e Small Island (2004), no
Brasil A Pequena Ilha, publicado pela editora Nova Fronteira em 2008.
Em Small Island vislumbramos a maneira como se relacionam negros e britânicos ao
terem que dividir o espaço que antes era apenas habitado por brancos. A partir dos
relatos dos quatro personagens centrais da trama, os jamaicanos Hortense e seu marido
Gilbert e os britânicos Queenie e Bernard, o leitor delineia o cenário da época em
relação a presença dos negros no Reino Unido. O objetivo desse artigo é verificar de
que maneira o personagem jamaicano Gilbert consegue fugir à discriminação racial por
qual é exposto demonstrando sua identidade diaspórica e mantendo sua cultura em meio
a uma sociedade fechada aos valores oriundos das culturas não europeias.
- Hortense, o que é que você tem dentro desse baú? Sua mãe?
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[...]
- Nesse baú eu tenho tudo de que vou precisar, obrigada Gilbert.
- Então você trouxe mesmo a sua mãe – Disse Gilbert. Deu aquela sua
risada, da qual eu me lembrava. Um estranho som de fungada saído da
parte de trás de seu nariz, que fazia reluzir seu dente de ouro. Eu ainda
estava sorrindo quando ele começou a esfregar as mãos e dizer:
- Bom, espero que tenha trazido goiaba, manga, rum e... (LEVY,
2008, p. 24-25).
como um bloco igual, sem características peculiares que os discerniam uns dos outros.
Para eles, todos os negros eram ignorantes, desprovidos de cultura e degenerados
sexualmente. Quase nenhum deles demonstrava interesse pelo ‘outro’, por sua origem e
cultura. De acordo com Figueiredo (1998, p. 65), o branco reage negativamente à
presença do negro desestabilizando sua subjetividade e, “enaltece as suas (do branco)
qualidades, os méritos eminentes da civilização que representa e insiste sobre os
defeitos, os deméritos do povo conquistado, seu atraso, sua pobreza, enfim, sua
inferioridade”. Gilbert se ressentia porque nenhum branco sabia localizar seu país no
mapa. Nenhum branco inteligente e educado nas melhores escolas era capaz de dizer
que havia ouvido falar de uma ilha chamada Jamaica. Enquanto a educação que Gilbert
recebera era direcionada a fazê-lo aprender tudo sobre a ‘pátria-mãe’, a educação do
branco mal mencionava a existência das colônias britânicas. Tudo isso fazia com que o
encantamento de Gilbert pelo Reino Unido se dissipasse ao poucos, pois o rapaz
constatava que a ‘pátria-mãe’, que tanto necessitava dos negros das Índias Ocidentais
para ajudar na guerra, não se importava com a Jamaica e seus soldados negros. A
consciência do jamaicano, um indivíduo diaspórico colonizado, acusa a ignorância do
branco em relação às suas próprias colônias, ou seja, o descaso e o desinteresse por algo
que lhes pertencia e que lhes gerava frutos:
Era inconcebível que nós, jamaicanos, nós, das Índias Ocidentais, nós,
membros do Império Britânico, não nos precipitássemos para defender
a Pátria Mãe quando essa fosse ameaçada. Mas diga-me: se a Jamaica
estivesse ameaçada, será que algum major, algum general, algum
sargento seria capaz de encontrar essa amada ilha? (LEVY, 2008, p.
142).
A crítica de Gilbert em relação ao descaso do Reino Unido para com suas colônias o
faz refletir sobre o modo de vida britânico e todas as fábulas contadas pelos britânicos
que viviam nas colônias. Em nenhum momento Gilbert inveja os costumes e cultura
britânicos, ao contrário, o jamaicano se ressente por não poder ser um jamaicano em um
país que ele amava a ponto de arriscar a própria vida em uma guerra para ajudá-lo. Vê-
se que Gilbert encarna aquele imigrante que tenta participar da sociedade majoritária,
mas que, devido ao preconceito dos membros dessa sociedade, acaba sendo segregado,
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contra sua própria vontade. Esse tipo de comportamento gerou um senso muito forte de
união entre os sujeitos diaspóricos, corroborando para o estabelecimento do chamado
‘community building’ entre os sujeitos minoritários presentes no ceio das comunidades
ditas hegemônicas e fechadas. Brah (2002) comenta que, nessas comunidades fechadas,
o sujeito dominante é responsável pela fabricação do ‘outro’, ou seja, responsável pela
fabricação e manutenção do mito de que o imigrante representa uma ameaça constante a
sua hegemonia e poder, dessa forma, cria mecanismos de defesa e de exclusão que
afastam os imigrantes do centro, até se tornarem objetos, ao invés de sujeitos.
Gilbert consegue um posto como aviador na guerra, porém, por ser negro, ele não
desenvolve tal função, sendo relegado a um cargo mais baixo: motorista. Mesmo a
contragosto o jamaicano se sujeita ao trabalho, passando por diversas humilhações
dirigidas a ele por seus superiores, soldados brancos e civis. Segundo Bhabha (1994),
através da civilidade dissimulada (sly civility), o colonizado resiste ao colonizador,
buscando conquistar o poder colonial sem conflito direto ou violência. Tal estratégia,
muitas vezes, não é consciente, mas está arraigada na consciência do sujeito colonizado
de uma forma que nem ele mesmo percebe que está resistindo. No caso de Gilbert, ele a
utiliza conscientemente, para supostamente aceitar o que o branco lhe diz, porém, essa
ação apenas o impede de entrar em conflito diretamente com o mesmo e preservar sua
identidade cultural e ainda solapar a autoridade colonial e toda a sua soberba.
Após alguns anos, com o fim da guerra, o rapaz embarca de volta para a Jamaica,
cuja grandeza e sofisticação já não mais o encantavam quanto antes. Do status de ilha
maior do Caribe, moderna e alegre, a Jamaica se torna para Gilbert, uma ‘pequena ilha’
apenas, emblema que remete ao título do romance:
Eu era um gigante vivendo numa terra do tamanho das solas dos meus
sapatos. Para onde me virasse, eu via o mar. As palmeiras que os
turistas achavam tão bonitas em todas as praias eram as grades da
minha prisão. O horizonte eram as fronteiras que me atormentavam
(LEVY, 2008, p. 206).
homem, mas de negro. E o que é o negro senão um constructo, ou seja, uma construção
cultural do branco?” (FIGUEIREDO, 1998, p. 68, grifos do autor) Apesar da escravidão
já ter sido abolida há muito tempo o negro é reconhecido como um ser inferior, um
servo. A partir disso, o negro passa a ter uma visão negativa de si próprio, processo
extremamente neurotizante, que atinge a psique do indivíduo.
Em sua procura por emprego na cidade de Londres, a única vaga que o jamaicano
encontra é a de motorista dos correios. Ao invés de se entristecer por estar
desempenhando uma função subalterna e não digna de suas qualidades, Gilbert fica
satisfeito, pois antes de conseguir o emprego, já havia recebido vários ‘nãos’ de outras
empresas.
As estratégias utilizadas pelo império britânico durante a conquista de muitos
territórios continuam a vigorar no Reino Unido: o supervisor de Gilbert ordena que ele
faça seu trabalho sem questionar, mesmo que o questionamento tenha fundamento.
Submisso, pois sabia que poderia perder seu precioso emprego por causa de uma
discussão infundada, Gilbert segue seu caminho, sem questionar mais o preconceito que
se instaurara em seu ambiente de trabalho. Porém, aquele dia estava longe de estar
terminado e Gilbert ainda teria que enfrentar aviltamento ainda maior por parte dos
britânicos. Ao chegar a seu destino, o jamaicano pede ajuda para localizar os malotes
que deveria transportar, mas, um grupo de funcionários que trabalhava na estação
começa a zombar dele, chamando-o de ‘ladrão’, ‘negrinho’ e ‘crioulo’. Gilbert responde
rispidamente ao homem que o agride verbalmente, sendo agarrado em seguida. O
homem insulta Gilbert e pede para ele repetir a ofensa que havia feito ao homem
branco. Covardemente, Gilbert se retrai e, não querendo agir de forma violenta, como o
branco o estava fazendo ele age de forma submissa.
- Este seu trabalho deveria estar sendo feito por ingleses decentes –
Mantive os olhos cravados nos pés dele enquanto ele meneava o
queixo: Ali, naquele carrinho. Agora pega as suas coisas e dá o fora
daqui (LEVY, 2008, p. 314, grifos meus).
[...]
- Será que eu devo ser o seu criado e você o senhor para sempre? Não.
Pare com isso, cara. Pare com isso agora. Nós podemos trabalhar
juntos, sr. Bligh. Não está vendo? (LEVY, 2008, p. 518).
Gilbert, que a princípio se mostra um sujeito que aceita a objetificação, por ter receio
de desencadear uma série de consequências negativas para si próprio caso revidasse aos
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maus tratos que recebe por parte dos brancos, acaba revelando sua soberania de caráter
em relação aos mesmos, que se julgavam superiores. O futuro do casal e da criança é
incógnito, mas infere-se que sua predisposição em aceitar as diferenças que os rodeiam,
os tornam mais fortes e mais seguros em sua agência. Sabe-se que as condições sociais
não foram favoráveis à permanência do negro no Reino Unido, logo após o fim da
guerra. De acordo com Hall (2006),
Gilbert e Hortense são uma metonímia de todos os negros que lutam por condições
melhores, que respeitam a alteridade e rechaçam a outremização. Sua reação ao
preconceito solapa a hegemonia branca e seus pressupostos ideológicos baseados em
conceitos hierarquizantes de ‘raça’ e ‘soberania’. Ilustrando a situação dos primeiros
sujeitos diaspóricos que adentram o Reino Unido em busca de oportunidade e
reconhecimento, o casal jamaicano demonstra que o negro foi fundamental para a
construção atual da verdadeira identidade multicultural britânica.
A hegemonia e o monolitismo do branco representados por Queenie e Bernard no
romance Small Island são solapados pela agência das personagens híbridas Gilbert e
Hortense. Cohen (1998, p. 134) afirma que a migração e a criação de diásporas foram
responsáveis pelo movimento da margem para o centro, além disso,
Conclusões
Referências
Introdução
1
Bons exemplos desse tipo de experiência estão relatados nos trabalhos de: SANTOS, Kléber
José Clemente dos. O balé dos canibais: leitura de contos de Moacyr Scliar e vivências de aula.
Dissertação/Mestrado. POSLE – UFCG, 2007; MOURA, Fernanda Chaves Bezerra. Brincando com a
bicharada: a leitura de sextilhas e folhetos no ensino fundamental I. Dissertação/Mestrado. POSLE –
UFCG, 2009; SOARES, Kalina Lígia Pereira. Da leitura do espaço ao espaço da leitura: um estudo de A
cama, de Lygia Bujunga Nunes. Dissertação/Mestrado. POSLE – UFCG, 2008
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2. As obras
Hoje tem espetáculo: no país dos Prequetés, de 1978, é o título que lança Ana Maria
Machado no mercado editorial. Trata-se de uma versão, em teatro, de Bento-que-bento-
é-o-frade, publicada em 1979. As duas obras têm, portanto, o mesmo enredo, e mesmos
personagens. O que difere, basicamente, é a presença do narrador, na segunda obra, e
ausência deste na primeira. Contudo, Bento-que-Bento... trazia um número significativo
de discurso direto, o que favorecia a leitura em grupo, como a participação de vários
alunos na condição de personagens.
Autora que conta atualmente com mais de cem títulos publicados e alguns prêmios
ao longo de sua carreira, Ana Maria Machado, já nesta primeira obra, inova no campo
da literatura infantil brasileira quando nos oferece um modo de representação da
infância que não se sujeita passivamente aos mandos e convenções dos adultos. Aqui
fica clara a influência lobatiana, sobretudo de personagens como a boneca Emília.
Após esse primeiro contato, apresentamos a obra que iria ser trabalhada, através de
um pequeno resumo: “Bento-que-bento-é-o-frade narra a história de Nita, uma garota
que, no intuito de encontrar respostas para seus questionamentos sobre as relações
impostas entre as pessoas, sai em viagem, e acaba conhecendo vários lugares e
“pessoas”. No final da história, Nita volta para seus amigos para contar-lhes o que havia
aprendido com a viagem que fizera”.
2
Bento-que-Bento-é-o-frade é o nome da brincadeira atribuído no Estado de São Paulo ao que,
em algumas regiões do país, é conhecida por Boca de forno.
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1. Bento-que-bento-é-o-frade!
2. Frade!
3. Na boca do forno!
4. Forno!
5. Cozinhando um bolo!
6. Bolo!
7. Fareis tudo o que seu mestre mandar?
8. Faremos todos!
9. E quem não fizer?
10. Levará um bolo...
(MACHADO, 1990 p. 09)
Um aluno, inclusive, disse que já havia lido o livro, e sabia onde tinha outros iguais
àquele. Então, ele foi até uma das estantes da sala e trouxe para a turma dez exemplares
de Hoje tem espetáculo: no país dos Prequetés.
Após a leitura, foi suscitada a discussão a partir de algumas questões que estavam
postas no capítulo lido, tais como: se eles tinham ou não conhecimento acerca da
brincadeira que dá título à obra – bento-que-bento-é-o-frade; se, na hora de brincar,
havia desentendimentos como aquele colocado no livro. Não foi surpresa para mim
quando eles disseram não conhecer a brincadeira. Esse fato pode ser explicado pela
seguinte razão: bento-que-bento-é-o-frade é o nome dado à brincadeira no estado de São
Paulo. Entretanto, quando falei que ela tinha uma versão nordestina, e que levava o
nome de “boca de forno”, alguns alunos disseram que conheciam, e que inclusive já
haviam brincado com os amigos, na rua da casa onde moravam. A turma só foi unânime
em dizer que conheciam a brincadeira quando um aluno se manifestou e falou que a
brincadeira também começava com:
11. Abacaxi?
12. Xi!
13. Maracujá?
14. Já!
15. Se eu mandar?
16. Vou!
17. E se não for?
18. Apanha!
Esta é uma das versões da brincadeira em Campina Grande, cidade que fica
localizada na região da Serra da Borborema, no Estado da Paraíba. Nesse momento as
crianças sentiram-se motivadas e quiseram brincar. Partimos, então, para a brincadeira.
brincadeira a ser escolhida, mas que esse impasse não demorava muito e que era
resolvido com a escolha de várias brincadeiras, de forma a satisfazer a vontade de todos
os participantes.
Nesse encontro, ainda discutimos as ilustrações que fazem parte do primeiro capítulo
dos livros, a partir de uma comparação entre Bento-que-bento-é-o-frade e Hoje tem
espetáculo: no país dos Prequetés. De acordo com as falas dos alunos, percebi que eles
simpatizaram mais com as ilustrações do primeiro título, vejamos alguns depoimentos:
Embora em preto e branco, a simpatia dos alunos pelas ilustrações de Eva Furnari,
em Bento-que-bento-é-o-frade, foi praticamente unânime. Isso deve-se ao fato de que,
como eles mesmos afirmaram, os personagens estão desenhados de forma mais realista,
o que proporcionou uma certa identificação. Finalizadas as discussões sobre as
ilustrações, encerramos o primeiro encontro.
brincando. Então, estimulados pelo livro, brincamos de Boca de forno. Passada essa
etapa, partimos para o segundo capítulo. Nesse momento da obra, de acordo com a
narrativa, a protagonista sai em viagem para tentar resolver os dilemas pelos quais
estava passando, e chega até à terra dos Prequetés. Ao se depararem com esses
personagens, sucedeu-se um grande tumulto na sala, pelo fato de todos os alunos
quererem ler as falas que correspondiam às dos bonecos. Como o número de
personagens não correspondia ao número de alunos, propomos, para que resolvêssemos
a situação, que fosse feita uma espécie de rodízio de leitura, de forma que cada aluno
lesse uma fala. Dessa forma, todos participaram.
Nesse encontro, nenhuma questão da obra foi levada à discussão devido ao tempo
que havia terminado.
No quarto e último encontro, lemos o quarto episódio do livro. Nesse momento, Nita
volta para casa e socializa a experiência da viagem com seus amigos. As discussões
giraram em torno do amadurecimento ocasionado pela viagem de Nita, seu encontro
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Grande foi o entusiasmo dos alunos por esse momento, sobretudo no que diz respeito
à percepção do trabalho em grupo, do mutirão, pelos alunos. Nesse momento, alguns
relembraram suas experiências, dizendo que: “na minha casa, a gente sempre divide as
tarefas”; “aqui na sala, a professora ‘bota’ todo mundo para trabalhar”... “é mesmo, todo
mundo trabalha: limpa a sala, arruma as carteiras, apaga o quadro”.
Considerações finais
3
RODRIGUES, Etiene Mendes. Bem do seu tamanho e Bento-que-bento-é-o-frade: da
análise à sala de aula. Programa de Pós-Graduação em Letras: João Pessoa, 2006, Dissertação
de Mestrado.
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Referências
BORDINI, Maria da Glória & AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do
leitor – alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Trad. SANDRONI,
Laura. São Paulo: Global, 2007.
MACHADO, Ana Maria. Bento-que-Bento-é-o-frade. Ilustrações de Eva Furnari. 4.ed.
Rio de Janeiro: Salamandra, 1990.
______. Hoje tem espetáculo: no país nos Prequetés. Ilustrações de Gerson Conforti.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
RESENDE, Vânia Maria. Literatura infantil e juvenil: vivências de leitura e expressão
criadora. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
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Considerações iniciais
Um dos temas que mais atraem o pesquisador em literatura é, sem dúvida, o que
toca na importância da literatura para a formação do leitor e, sobretudo, como já disse
Antonio Candido na década de 70, para a formação do homem. Enquanto professores,
sabemos do papel fundamental que a literatura exerce no processo de humanização dos
indivíduos. No entanto, quando nos aproximamos da realidade escolar, sobretudo no
nível médio, percebemos um significativo distanciamento dos jovens com relação à
literatura.
Em pesquisa realizada num cursinho mantido pela Universidade Estadual da Paraíba,
em Campina Grande, nos anos de 2007 a 2009, pudemos constatar que muitos alunos,
egressos do ensino médio, não atribuíam valor à leitura literária 5.
Partindo deste contexto, planejamos um trabalho de leitura literária envolvendo
diferentes gêneros (contos, poemas, crônicas, literatura dramática) buscando sensibilizar
os alunos para a leitura literária. Relataremos nesta comunicação como se deu a
abordagem especificamente do livro Terra de Santa Cruz, de Adélia Prado.
O estudo do livro em sala pautou-se pela leitura oral dos poemas e discussão de
aspectos temáticos que chamava a atenção dos alunos. A metodologia adotada está
próxima do que Colomer (2007) denomina como “Leitura compartilhada”. Desse modo
foi possível realizar um estudo analisando como a poesia é recepcionada pelos alunos
vestibulandos, bem como entender de que maneira a obrigatoriedade, dependendo do
4
Orientador: Dr. José Hélder Pinheiro Alves – helderpin@uol.com.br.
5
Chegamos a essa conclusão através de perguntas aos alunos sobre a influência da literatura
em suas vida até aquele momento, como também a partir da observação das interpretações destes de
alguns textos literário utilizados em sala de aula.
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nem tabelas para decorar. Pode-se dizer que “O discurso literário decorre,
diferentemente dos outros, de um modo de construção que vai além das elaborações
lingüísticas usuais, porque de todos os modos discursivos é o menos pragmáticos, o que
menos visa aplicações práticas” (BRASIL, 2006, p. 49).
Devemos observar que “as técnicas de abordagem ao texto literário não são
diversificadas, contribuindo para que o educando desenvolva uma compreensão
mitificada e homogênea do fenômeno literário” (MARTINS, 2006, p. 84). É necessário
encontrar formas simples de trabalhar o texto literário de modo que o aluno perceba que
se trata de um trabalho artístico. Atingindo esse objetivo o professor desmitificaria o
fenômeno literário enquanto ciência e traria para o aluno uma literatura para ser
apreciada.
Estando clara a concepção de uma literatura desvinculada do ideário científico, o
professor pode voltar-se para o trabalho com a leitura. Partindo da idéia de que esta
leitura é um instrumento para o aluno desenvolver a criatividade e a imaginação, a
interação com o texto literário pode ser introduzida em sala de aula de maneira que o
professor, juntamente com o aluno, construa possíveis interpretações do texto.
Outro ponto a ser pensado é: sendo a literatura uma arte complexa como passar para
o aluno a importância de ser estudada? A literatura é desafiadora, específica,
identificada por sua plurissignificação, pelo trabalho com a conotação, pela liberdade de
criação e, sobretudo, pela ênfase no significante. Esses pontos a tornam peculiar e ao
mesmo tempo a colocam em uma posição que, ao trabalhar desafiadoramente com a
linguagem, fazem-na ultrapassar os limites da simples reprodução da realidade humana.
Assim, o professor deve observar que um dos pontos fundamentais de apreciação da
literatura é sua relação direta com a humanidade, com o homem.
Cândido (2008) diz que pensar na literatura e sua ligação com o homem é solidificar
as conexões que se pode fazer entre literatura e realidade, mas não tratá-la
absolutamente como um documento positivo de reflexo do comportamento da
sociedade. Isso significa que enquanto educadores não devemos desprezar a relação
entre homem, literatura e realidade, pelo contrário, um dos objetivos de nossas aulas é
ressaltar a importância da conexão entre esses elementos para a concretização da arte. A
respeito disso:
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6
Segundo Andrade (2003), por sugestão de Henrique Murachco, professor de grego da USP, a
FUVEST lança, em 1889, a primeira lista de indicações de leitura para ser aplicada em 1990 com o
objetivo de melhorar o desempenho do aluno na prova de redação.
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3. Recepção da poesia
hora. Como o freguês tem sempre razão, eles não desmentem e oferecem o melhor
ensino da última hora que o dinheiro pode comprar” (CASTRO apud ANDRADE,
2003, p. 28).
Durante os anos de 2007 a 2009 nos colocamos diante dessa problemática ao
perceber que os alunos procuravam no cursinho uma espécie de reforço. No cursinho
em que ocorreram as aulas, as turmas se dividiam em: Humanas, Exatas e Saúde.
Procuramos trabalhar nas turmas de Exatas e Saúde, consideradas problemáticas quanto
à recepção da literatura, sobretudo da poesia. A eleição destas se deu pela hipótese –
posteriormente comprovada – de que por não optarem pela área de humanas tais alunos
teriam algum tipo de relação não afetuosa com a literatura.
Dentre obras analisadas em sala de aula como: O bom crioulo, O ateneu, O vôo da
guará vermelha, Morte e vida Severina, Terra de Santa Cruz, elegemos a última para, a
partir de um recorte, relatar como se deu o trabalho com o texto literário, em especial
com a poesia, com um público de horizonte de expectativa tão distinto daqueles que já
apreciam a literatura.
Além de rememorar as aulas e reler algumas seqüências didáticas da época, para
legitimar nosso relato pedimos a alguns ex-alunos, hoje universitários, que depusessem
livremente, numa página de relacionamentos, sobre que perspectiva de literatura ficou
depois das nossas aulas e, preferencialmente, depois da leitura da poesia do livro Terra
de Santa Cruz (1981), de Adélia Prado. Preferimos construir nossa análise a partir das
informações colhidas junto aos alunos, visto que suas impressões demonstraram que a
relação entre a obrigatoriedade e o prazer da leitura é mais direta do que pensávamos.
Apesar de enfatizar no questionário virtual que queríamos preferencialmente uma
ponte com o livro referido, os ex-alunos foram mais incisivos no tocante ao que ficou
das aulas de literatura em geral, exemplificando o trabalho também com outros textos.
Isso nos mostrou que os depoimentos que seguem têm um alcance maior, uma vez que
revelam que o utilitarismo imediato dos cursinhos foi ultrapassado. Como é o caso da
aluna Amanda quando fala sobre a recepção do conto “Uma vela para Dario”, de Dalton
Trevisan: “depois desse texto, me interessei mais pela literatura e tento sempre ter uma
interpretação mais aprofundada do texto” (Ver anexo I).
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O primeiro passo de nossas aulas foi trabalhar o texto literário de forma diferente do
que o ensino de literatura historiográfica propõe. Levamos diferentes gêneros literários e
partimos do texto para o contexto. Dessa forma colhemos as seguintes opiniões de então
alunas da turma de exatas: “comecei a perceber que tudo o que eu tinha em mente sobre
a literatura era totalmente o contrário, vi que a literatura é poder viajar sem sair do
lugar” (Ver anexo II) e “não gostava muito da disciplina mesmo sabendo que ela é
essencial para nossa vida. Comecei a ler mais, ter paciência comigo mesma e analisar
melhor os poemas” (Ver anexo III).
Em se tratando da abordagem em sala do livro Terra de Santa Cruz, indicado nos
anos de 2007 e 2009, utilizamos como estratégia aquilo que Colomer (2007) chama de
Leitura compartilhada. Ela esclarece que
Nossa proposta de trabalho com o livro era mostrar que apesar de imposto pelo
vestibular a leitura poderia ser prazerosa, afinal “a poesia pode ser um elemento
fundamental de educação da sensibilidade” (ALVES, 2008, p. 25). E foi a partir de
algumas lições de Martins (2006) que ajudamos os alunos a elaborar ou até rever suas
interpretações iniciais dos poemas de Adélia Prado, obviamente sem descartar suas
primeiras leituras. Segundo a autora “O professor deveria colaborar com os alunos,
visando à construção/reconstrução de interpretações e não simplesmente apresentando
leituras já prontas” (p. 85). Assim relata Julliana, ex-aluna da área de saúde e hoje
graduanda do curso de Letras: “e foi durante essas aulas que fui aprendendo a gostar
ainda mais de ler e querer conhecer mais sobre a literatura (...). As aulas ocorriam
tranquilamente, com debates em sala, conversar informais, e com isso fui aprendendo
que a literatura não era algo distante de nós” (Ver anexo V).
A partir da idéia de que era necessário confrontar o aluno com a diversidade de
leituras do texto literário, para que ele reconhecesse que o sentido não está apenas no
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texto, mas é construído pelos leitores na interação com textos, escolhemos trabalhar
com alguns poemas como “Casamento” e “O homem humano”.
A título de exemplificação, o poema “Casamento”, em especial, gerou grande
inquietação nos alunos. Muitos acusavam o eu lírico de submissão, mas aqueles que
releram com mais atenção sentiram uma verdadeira epifania ao descobrir a simplicidade
e o carinho com que foi tratada a instituição matrimonial neste poema de Adélia Prado.
Percebemos, portanto, o efetivo interesse dos alunos pela poesia. Como relata Bruno,
ex-aluno da turma de exatas: “Passei a me interessar mais pela literatura, pesquisei
sobre alguns autores na época das aulas” (Ver anexo IV).
Vimos, portanto, que a recepção da poesia não foi catastrófica, mas marcante para os
alunos. Estes até o presente momento lembram daquilo que lhes marcou nas aulas,
mostrando-nos que com a estratégia adequada e direcionamento correto a
obrigatoriedade ultrapassará a imposição, sendo um norte para o trabalho com o texto
literário.
Conclusões
Ministrar aulas de literatura não é uma tarefa fácil, sobretudo quando o objeto da aula
é a poesia. Durante o período em que trabalhamos com um público voltado ao vestibular
percebemos que trabalhar com poemas em sala de aula não era nosso maior desafio,
mas sim deixar claro para os alunos que à obrigatoriedade desse trabalho não deveria ser
atribuída a negatividade.
Foi trabalhando com a obra de arte em sala que empiricamente comprovamos que o
ensino historiográfico de literatura sem articulação com a análise está totalmente
ultrapassado e, ao invés de contribuir para o gosto por textos literários, afasta os alunos
da vivência afetiva com obras de suma importância.
Obtivemos sucesso com boa parte das turmas e pudemos observar que muitos alunos
viram na obrigatoriedade a oportunidade de conhecer um universo revelador de sentidos
e sensibilidade, o literário.
Através do trabalho com os mais variados gêneros preparamos um terreno fecundo à
poesia. Desse modo, quando levamos Adélia Prado e seu livro Terra de Santa Cruz para
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1. Referências
5. Anexos
II
III
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IV
V
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Introdução
tecnologia e suas ferramentas, ou seja, ela permite um largo avanço tanto na crítica
Nesse sentido, a proposta deste trabalho se foca em observar a relação entre literatura
e meio digital no sentido a entender como se ocorre esse contato entre a literatura e seus
leitores, a fim se buscar seu público identitário diante do corpus de estudo, que inclui os
blogs e os grupos de discussão do orkut, tomando por base a ideia de que este universo
ainda não foi explorado. Portanto, o eixo e atividades de pesquisa pretendem abordar o
crítica literária e para os estudos de textos literários dentro e fora o universo escolar.
observáveis nas comunidades do orkut e nos blogs em que o assunto seja a produção e a
Social (BNDES), verificou-se que o livro no Brasil tem elevado custo quando
livros didáticos. Ainda, nas livrarias e por venda de porta em porta, “os livros mais
manuais práticos e de cuidados” (EARP & KORNIS, 2005, p. 8). Quem mais lê são
“os que têm educação superior, sendo que a ocupação também serve de elemento
diferenciador: são os estudantes e empregados que dizem ler mais, enquanto os inativos
e as donas de casa ocupam o pólo oposto do espectro” (EARP & KORNIS, 2005, p. 9).
Contudo, é importante considerar que o sistema cultural está pautado na relação entre
porta em porta, as bibliotecas, que representam o setor mais atrasado na cadeia livresca
Essas dificuldades são, portanto, resultado direto da equação que envolve o custo de
fomento da leitura.
fatos mais relevantes como a Lei do Livro 1, por exemplo, são apresentadas em
viéses da pesquisa realizada com editores do país, observa-se que estes preocupam-se
mais com políticas que envolvem as questões financeiro lucrativas do livro, leitura e
bibliotecas, do que com a criação de um Fundo Pró-Leitura, por exemplo, que garantiria
investimentos efetivos na área e acesso ao bem cultural para uma parcela maior da
população, sobretudo aos da classe de baixa renda, para o caso das bibliotecas públicas.
lado a lado. As maiores compras de livros per capita em volume, por exemplo, são as
1
http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2007/11/lei-10753-de-2003.pdf
2
http://www.cbl.org.br/download.php?recid=367
japonesas, com 11 livros anuais, seguidas pelos Estados Unidos e França. Os brasileiros
compram em média 2 exemplares por ano (EARP & KORNIS, 2005, p. 18), número
pouco expressivo.
que todas as ações de indução de incremento da leitura no Brasil receberam outro viés
por meio da ampliação do acesso à internete. A inclusão digital, muito em razão de seu
bem cultural, porém, não resolvem as questões das práticas de leitura à luz das questões
culturais, afinal, pesa sobre o brasileiro o rótulo de “não leitor” e é pouco significativo
discutir disseminação de leitura e acesso ao livro sem que isso seja realizado de forma
institucionais responsáveis.
Embora controlados pelo Estado e, antes, pela Igreja, os livros tornaram-se objeto de
grande parte da elite cultural, mantiveram o livro impresso como único e válido
expositor de ideias. A técnica digital ainda é vista reticentemente ou até com desprezo
internete sob o prisma das práticas de leitura, não podemos dizer que há apenas textos,
mas sim que “há hipertextos, [...] uma rede multidimensional onde cada ponto ou nó
Considerando que o hipertexto, desse modo, configura o ciberespaço, uma vez que
linear e não hierarquizada e que lhe permite o acesso ilimitado a outros textos de forma
instantânea.
recepção com relação ao livro, ficam em segundo plano, uma vez que se coloca em
pauta o meio (ciberespaço) ou técnica (“digitalização”) em que este está inserido, meio
pelo qual perpassam vozes dignificadoras do livro como legado sagrado que norteia seu
4
isto destruirá aquilo.
respeito à propriedade intelectual, a volatilidade da autoria (CORRÊA, 2004, p. 95) e ao
que Walter Benjamin (1936), em seu texto sobre a reprodutibilidade técnica, aponta
para a historicidade tanto dos valores estéticos como da percepção humana, indicando
que novos meios significam transformações nos corpos, consciência e ações humanas, e
próprio cânone, coloca-se em xeque também seu valor artístico enquanto objeto de
Santaella (2007, p. 32) nos apresenta diferentes tipos de leitores entre contemplativo,
movente e imersivo, aquele que navega em uma tela de computador. Esse leitor se
depara com uma infinidade de ‘nós’ dispostos em uma coleção de informações, cada um
deles levando a outro e a mais outro como em uma grande rede em uma nova dimensão
Se por um lado, a configuração do novo modus legendi representada por leitores que
impresso sempre será mais convidativa que a leitura em tela, afinal, há uma interação
física intensa e direta com o livro (CAVALLO & CHARTIER, 1999, p. 222). Por outro,
roteiro labiríntico que ele próprio ajuda a construir quando navega, esboçando, assim,
“um leitor implodido cuja subjetividade se mescla na hipersubjetividade de infinitos
textos num grande caleidoscópio tridimensional onde cada novo nó e nexo pode conter
uma outra grande rede numa outra dimensão” (SANTAELLA, 2007, p. 33).
O sistema de comunidades ou grupos do orkut nos chama atenção por atingir grande
parte dos milhões de usuários da internete não só no Brasil, mas no mundo todo. Criado
A literatura, por sua vez, marca presença no orkut em diversas comunidades criadas
por seus usuários. Na busca realizada no sítio com o tema literatura, o contador nos
revela mais de mil comunidades que abordam o tema das mais variadas maneiras. Em
comunidades de temas mais comuns como futebol, amor ou música, o que nos revela
que a literatura faz parte do cotidiano de leitura de muitos dos usuários interessados em
debates sobre obras e autores, além da produção de textos (contos, poesias, romances)
5
Dados acessados em 19 de abril de 2010.
Com efeito, através dos protocolos de memória de leitura observados nos tópicos
tópicos abertos e suas respostas equiparadas ao que podemos considerar como sendo um
esboço de uma crítica do leitor. Há, por exemplo, um tópico com mais de 1.700
Goethe, Clarice Lispector, Jorge Amado, José Saramago, Jane Austen, entre outros.
leitura dos usuários, ao mesmo tempo em que percebemos uma abertura àqueles
sempre ligada a um escritor consagrado e não poderia ser diferente, uma vez que são
mais lidos. Percebe-se ainda certa proximidade com o que a crítica tradicional faria ao
abordar a linguagem, coerência e espaço, por exemplo, bem menos complexa, mas não
p. 57).
produções de seus próprios autores em busca de comentários críticos sobre seus textos e
6
http://www.orkut.com/Main#Community.aspx?cmm=72880
as questões da crítica e recomendação aparecem como no orkut. Alguns apenas
eu” (AZEVEDO, 2007, p. 1), mas também, pelo ávido interesse do ‘outro’ e pela
ficção sem qualquer espécie de censura ou meias palavras, realidade esta, propiciada
pelo ciberespaço que se caracteriza por ser de natureza aberta, autônoma e pública.
proporcionada pelo meio digital que interfere direta e significativamente nas práticas
culturais da sociedade.
Orkut, Second Life, o mais recente microblog twitter, comunidades virtuais, avatares,
realidade virtual, blogs, são frequentemente tópicos de reflexões e discussões, seja com
ferramentas.
verificou-se que há uma tentativa do que chamamos de esboço da crítica do leitor diante
leituras se dá pela indicação não só de livros, mas também de blogs que, de uma forma
por exemplo, e que envolve várias pessoas em vários estados. Há também o Programa
Livro Aberto, que prevê a instalação de bibliotecas em cidades onde não há, e o PNLL
que também foca seus objetivos em implantar bibliotecas públicas em municípios onde
não as possuem.
7
http://www.avbl.com.br/website/
Quanto à inclusão digital, o Governo Federal mantém um portal8 com todos os
programas e órgãos envolvidos. Esses programas, em sua maioria, são voltados para a
população de baixa renda, focados, sobretudo, no estado de São Paulo, que tem o maior
poderia ser dada de forma proporcional e igualitária, atingindo assim, os estados menos
favorecidos, em que a acessibilidade ao meio digital é mais dificultosa, tanto pela falta
baixa renda, há de se perceber que não há estatísticas que envolvam o perfil de leitura
das camadas de menor renda quando ainda tinham de ir às bibliotecas, quanto mais
mudança nos hábitos de leitura, por exemplo, digitalizar toda a obra de Machado de
Assis, como foi feito em 2008 9, se ela não chegar ao seu público leitor de forma efetiva?
explorar.
efetivo de se propagar a literatura não só entre a grande massa, mas entre os acadêmicos
também, e não só pelo barateamento dos meios de produção ou pela sua fácil
acessibilidade, mas pela liberdade que o ciberespaço proporciona aos seus navegadores,
sejam eles do orkut ou dos blogs. É possível se debater ainda, fenômenos a envolver
produção, técnicas de criação, autoria de textos na rede, enfim, há uma gama de outros
aspectos que devem ser explorados pelos pesquisadores da literatura, a fim de que se
8
http://www.inclusaodigital.gov.br/inclusao/outros-programas
9
http://www.machadodeassis.ufsc.br/
possa compreender, paulatinamente, os passos pelos quais a literatura vem tomando,
Referências
Reza a tradição anedótica de nossa história literária que, ao saber da morte de José de
Alencar em 1877, D. Pedro II teria declarado: “era um homenzinho teimoso”
(FARACO, 1997, 22). Está por detrás dessa imagem de Alencar, atribuída pelo
Imperador, a fama de polemista do escritor cearense. E com efeito, em todas as
encrencas entre os homens de letras do Segundo Reinado, estava Alencar metido no
meio: brigou com Gonçalves de Magalhães e D. Pedro II, em 1856, por conta do poema
A confederação dos tamoios; com Franklin Távora e José Feliciano de Castilho, não
respondeu diretamente, mas levou muita pancada nas Cartas a Cincinnato, em 1871-72;
com Joaquim Nabuco, em 1875, tudo começou por causa da crítica que este fez a peça
O jesuíta (1875); sem falar nas brigas com um sem-número de outras personalidades
menores, da literatura e da política 1. Reinava na corte do Imperador ilustrado, portanto,
um clima de escreveu, leu e o pau comeu.
De modo geral, o ponto central de todas as polêmicas do século XIX, em especial
destas três acima citadas, foi a legitimidade das representações que se oferecia do Brasil
em nossa produção literária no período formativo inicial 2. Tratava-se de um modo de
questionar as formas pelas quais os romances, peças de teatro e poemas pintavam a
imagem do país. Joaquim Nabuco, para aduzirmos um exemplo paradigmático,
reclamou da presença do negro no teatro de Alencar: “(...) há certas máculas sociais que
não se deve trazer ao teatro (...) O homem do século XIX não pode deixar de sentir um
profundo pesar, vendo que o teatro (...) acha-se por uma linha negra, e nacionalizado
pela escravidão.” (COUTINHO, 1965, 106) (grifos meus). Nota-se, por esta citação a
1
Para maiores informações, remeto o leitor à recente biografia de José de Alencar, O inimigo do rei, de
Lira Neto.
2
O período formativo inicial deve ser entendido, aqui, como a fase romântica da ficção em prosa no
Brasil que vai, grosso modo, de 1843 a 1880.
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3
O estudo desenvolvido por Flora Sussekind, em Tal Brasil, qual romance? (1984), baseado na idéia de
repetições do naturalismo, desenvolve exemplarmente esta hipótese da dependência ficcional ao espaço
geográfico brasileiro. O presente estudo tenta mostrar que podemos fazer um pequeno deslocamento em
relação a origem dessa obsessão pelo apego ao “real” em nossa série literária.
4
Chamo de barbarismo certos valores da dinâmica da vida social brasileira que negam, em uma escala
variável, os valores dos países que nos serviam de modelo e dos quais recebíamos influxos ideológicos.
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persistência em nossa história literária, e que possui papel importante dentro da relação
observação e nacionalismo literário. A observação objetiva de corte nacionalista
tenderia cada vez mais ao complexo de inferioridade e menos a euforia do “ser
brasileiro” na mesma proporção em que esse barbarismo se acentuava na prosa de
ficção do 19. Releia-se, para exemplo, a passagem de Nabuco sobre a presença do negro
no teatro de Alencar.
Visto de longe, esse desconcerto entre matéria local e expressão literária possibilita
perceber que houve um problema comum para todos os escritores, imposto pelo
acentuado realismo do romance oitocentista, e que irmana autores tão díspares, numa
certa escala de valor, como Bernardo Guimarães e Manuel Antonio de Almeida;
Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar. Como notou Antonio Candido, esse
problema gera uma resposta que imprime um padrão peculiar em nossa prosa de ficção:
5
Trata-se, em partes, daquilo que Antonio Candido chamou de dupla fidelidade dilacerada: ao mesmo
tempo em que nossos romancistas eram fiéis a nossa realidade local, única maneira de guardar o timbre
de nacionalidade, eram também fiéis a certas maneiras de representar ditadas pela forma importada, o
romance (CANDIDO, 1975, 117).
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Até aqui, as linhas de força que compõe a formação de um teto simbólico em nosso
Oitocentos ficaram somente sugeridas: nacionalismo, observação objetiva e idealização
do objeto observado. Essas três linhas parecem que se impõe como questões
fundamentais para o início da prática romanesca no Brasil. Todos os escritores, desde os
precursores Joaquim Norberto, Teixeira e Sousa e J. M. de Macedo até Franklin Távora,
Machado de Assis e Taunay, tiveram que dar lidar com essas linhas de força. Antes de
mostrar o principal efeito dessas linhas na fatura das obras, gostaria de aprofundar a
discussão, ainda que rapidamente, com base em algumas reflexões de Franklin Távora
sobre a obra de José de Alencar.
A leitura que Franklin Távora empreende dos romances de José de Alencar, nas suas
Cartas a Cincinnato (1872), está inserida nestas coordenadas que ficaram sugeridas
acima: clama por observação, critica a idealização “senial” e busca o fator nacional na
representação da matéria local – e a polêmica que a leitura de Távora provoca está
localizada justamente em como se representa essa matéria local. As Cartas, portanto,
enunciam em si os problemas do processo de representação ficcional no romance
oitocentista.
Quando Franklin Távora (1872) analisa o romance O gaúcho (1870) de José de
Alencar, anuncia desde o início que se trata de uma “fábula rachitica” (p. 4), que como
romance de costumes da campanha sul rio-grandense, “é desnaturado, falsissimo,
apocrypho” (p. 7). E completa: “Tal qual foi concebido e executado, importa a mais
pungente palinodia contra a gentileza, a masculinidade, a fama das illustres façanhas e
legendarias tradições do campeão das savanas austraes.” (p. 7). Em suma, o romance é
6
As cartas foram originalmente publicadas no periódico carioca Questões do Dia, dirigido por José
Feliciano de Castilho. Elas surgiram justamente no momento em que o diretor do jornal empreendia uma
demolição da carreira política de José de Alencar. Por muito tempo, essa polêmica literária de Távora foi
classificada como ataque meramente político e pessoal a figura de Alencar, como atestam algumas
afirmações, por exemplo, de Lúcia-Miguel Pereira. Recentemente a posição das Cartas, no que diz
respeito à literatura, vem sendo reavaliada por Eduardo Martins Vieira, professor da Universidade de São
Paulo.
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uma triste concepção que em nada contribui para a fixação de nosso “ser brasileiro”: “o
que fica fora de duvida (...) é que o Gaúcho não passa de uma produção cachetica, de
que a litteratura brazileira pouco se deverá lisonjear.” (p. 94) 7.
O que estaria por trás dessa recusa clara, por parte de Franklin Távora, da
permanência de O gaúcho no teto simbólico de nossa literatura? Vejamos.
De início, a recusa de Távora em aceitar o gaúcho como um tipo nacional
fundamenta-se no fato de José de Alencar não ter saído do Rio de Janeiro para escrever
o livro, isto é, de praticar uma literatura de gabinete – um argumento que arma toda a
leitura de Távora:
7
Mantive a ortografia da primeira edição em livro (1872). Daqui pra diante, cito com base nessa edição.
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Senio não se contenta sómente com dizer que o poldro babuja; e sem
se importar com o simile pouco lisongeiro a que dá logar seu vaidoso
capricho, faz também a civilisação babujar (como o cavallo) a
virgindade primitiva das regiões. Aqui não temos simplesmente o
rebaixamento do homem ao nivel de irracional, idea fixa e capital de
Senio em sua obra: temos mais isto: o phenomeno supremo e
providencial da humanidade, a civilisação, exerce a funcção do bruto
– babuja. (p. 44).
O clamor de Távora pela observação, mérito atribuído pela crítica às Cartas, está sob
uma chave singular, pois vai para além de uma exasperação do sentimento de fidelidade
ao real de nossos escritores. Quando Távora propõe o conceito de objetividade, há por
de trás de sua intenção outro aspecto importante: recusar a concepção de realidade de
Alencar. Ao contestar Alencar por fazer a imaginação prevalecer sobre a observação,
Távora incide não numa maneira de proceder na relação com o objeto a ser
representado, mas nos mecanismo ideológicos que devem ser agenciados para que se
efetive a representação (“o belo ideal”). Ao vetar a imaginação alencariana, Távora
veta, na verdade, os valores que ele não reconhecia como dignos de figurar na ficção.
Está em jogo nas críticas de Távora, portanto, as projeções ideológicas que a
representação literária carrega em si, provando que o princípio realista que move o
romance oitocentista brasileiro é uma maneira ideológica de se ler uma realidade – ou
de mascara-la.
moralizante toda a vez que o conteúdo cria alguma frincha na forma. E a moralização
transforma-se em mais uma lei para o campo poético brasileiro...
Referências
BOECHAT, Maria Cecília. “Pela tradição interna do romance brasileiro”. In: Vários
autores. Estudos de literatura brasileira. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
FARACO, Carlos. “Todos cantam sua terra/ também vou cantar a minha”. In:
ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1997.
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SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
Introdução
Nesse sentido, observamos que a mulher fica restrita a um papel secundário dentro
da sociedade em que está inserida, o que fortalece ainda mais a vigência das regras
patriarcais que norteavam seu comportamento no século passado.
Existe uma relação entre o trágico e a tragédia, e a resposta para definir esses dois
conceitos é bem mais complexa do que parece.
Quando nos referimos ao trágico, estamos enfatizando aspectos que remetem a tudo
que traz a morte, fatos que causam a desgraça ou situação de desastre. Na verdade o
trágico tem por finalidade descrever certos tipos de experiências humanas que, na
maioria das vezes, resultam em catástrofe.
O trágico pode estar bem próximo de nós, enquanto seres humanos, e para conhecê-
lo profundamente é fundamental que “designamos por possibilidade de relação com o
nosso próprio mundo. O caso deve interessar-nos, afetar-nos, comover-nos” (LESKY,
1996, p.33), ainda na perspectiva de Lesky só será possível experimentar o trágico, quando
formos atingidos no mais profundo do nosso ser.
Sem sombra de dúvida, podemos afirmar que os gregos foram os responsáveis pela
criação da Arte trágica, e com isso conseguiram realizar uma das maiores proezas, mas
“não desenvolveram nenhuma teoria do trágico que tentasse ir além da plasmação deste
no drama e chegasse a envolver a concepção do mundo como um todo”. (LESKY, 1996,
p. 27).
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O termo trágico tem por finalidade qualificar as produções artísticas, nas quais a
presença de características essenciais da tragédia grega faz-se conhecida por todos, sem
a preocupação de ter sido escrita para ser encenada. O trágico se torna
um rito solene não por qualquer formalismo superficial, mas por ser o
desfile da consciência diante do espelho desnudo da existência. É
como se, nesse momento, o social mais imediato fosse abolido, como
se a distância entre o alto e o baixo fosse a catapulta necessária para,
com o impulso da queda, arremessar e mergulhar um homem lúcido,
com toda a força, no coração da matéria. (KOTHE, 1985, p. 29)
Para que ocorra o nascimento do trágico é necessário que aconteça um conflito entre
“ethos (caráter)” e “dáimon (a força, gênio mau)”. De acordo com Costa e Remédios é
necessário que exista dois planos, divino e humano, assim a personagem trágica vive o
conflito de duas ordens diferentes “a do passado mítico, cheio de um poder religioso, e a
do presente, onde é um cidadão como qualquer outro, sujeito ao veredicto de um
tribunal” (p. 52).
A tragédia deve ser vista como o gênero dramático de literatura que atingiu destaque
especial na Grécia. Ao observar esses dois termos nota-se que é difícil existir tragédia
sem a presença do trágico. Ao mencionar a tragédia, rapidamente vem a nossa
lembrança Aristóteles. Esse renomado filósofo grego foi um dos maiores de todos os
tempos deixando produções intelectuais que nos auxiliam até a atualidade.
Em sua obra Poética, produzida a mais de dois mil anos, Aristóteles oferece uma
leitura fundamental para todas as pessoas que se dedicam a estudos clássicos. Nessa
obra, Aristóteles procura definir a tragédia e os elementos básicos para que ela aconteça.
Segundo esse autor
É pois a Tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa
e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias
espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama],
[imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e
que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação
dessas emoções. (1992, p. 37)
Para que uma tragédia seja considerada de qualidade, é necessário que esta possua
seis partes constitutivas são elas: Mito, Caráter, Elocução, Pensamento, Espetáculo e
Melopeia. Porém, o elemento de maior destaque fica com o Mito, pois a “tragédia não é
imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas
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felicidade] ou infelicidade reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não
uma qualidade”. (1992, p. 41)
Na condição de imitação das ações da vida humana o Mito para Aristóteles é como
se fosse à alma da tragédia. Esta deve conter princípio, meio e fim oportunizando a
narrativa, a possibilidade de começar e terminar em momentos oportunos.
Em segundo lugar Aristóteles faz menção as personagens e em seguida os outros
elementos acima citados. No capítulo XV da Poética, Aristóteles traça o perfil ideal de
como deve ser representado o caráter dos personagens em uma tragédia.
Inicialmente esse herói deveria apresentar como principal virtude ser bom, mas não
exclusivamente bom:
Isto porque de um lado seria chocante a queda de alguém
extremamente virtuoso, e de outro, imprópria a queda de um homem
perverso, por se apresentar como um resultado merecido.
(CARVALHO, 1998, p. 148)
A qualidade que ocupa o segundo lugar é a conveniência que, por sua vez, enfoca um
caráter de virilidade. Essa qualidade acaba por excluir a mulher, pois se alega que as
características de “viril ou terrível” não convêm à mulher.
A terceira qualidade, segundo Aristóteles, é a semelhança. Porém, não fica
estabelecido o ponto de referência a que devemos ter como objeto de comparação para
essa semelhança mencionada. Alguns estudiosos supõem que exista uma semelhança
entre o mito e a história, outros pensam que os caracteres devam ser “semelhantes à
realidade”.
Aristóteles finaliza com a quarta qualidade, a coerência. As personagens devem ser
concisas dentro do drama, ou seja, suas ações devem culminar para que ocorra uma
coerência dentro do enredo.
Em síntese, para que os caracteres atinjam um patamar de excelência eles “devem ser
normalmente bons (ou participantes de um grau de excelência), adequados, semelhantes
à vida (ou ao mito), e, finalmente, coerentes” (CARVALHO, 1998, p. 163).
experiente, foi o único que enxergou a farsa em toda a sua extensão. Mas...já era tarde!
O noivo estava muito íntimo...” (SANTOS, 1985, p. 22)
Quando mencionamos o reconhecimento, devemos ter em mente que o herói trágico
tomará consciência de algum fato que até então era desconhecido. No caso de Letícia,
esse fato é o desencadeador de uma série de conflitos, que na verdade vinham sendo
mostrados a ela, mas que por medo e ingenuidade não a deixavam acreditar. O trecho a
seguir demonstra o tom de anúncio da irregularidade
Altino jamais lhe falara em nenhuma espécie de emprego. Andava
sempre endinheirado, mas, nunca trabalhava. Notou que, de vez em
quando, seu marido era procurado por um indivíduo bem vestido e
mal encarado, que o esperava na portaria do hotel e de lá, mesmo, se
retirava (SANTOS, 1985, p. 24)
Mesmo com tantas evidências, Letícia se recusava a aceitar que algo errado estivesse
ameaçando seu casamento e outra situação de constrangimento assola sobre a
personagem: “com passos incertos acompanhou o homem que devia ser polícia secreta.
Nessa mesma noite, sem interrogatório, foi detida com ordem de ficar incomunicável”.
(SANTOS, 1985, p. 29)
Esses são alguns precursores que desencadeariam uma série de conflitos internos e
externos. Quanto ao primeiro fica evidente um desgaste moral “Letícia estava passando
bem de saúde, mas, seu abatimento moral era extremo” (SANTOS, 1985, p. 30), e para
complementar os fatos que pouco a pouco ganhavam visibilidade “alguns meses mais
tarde, Letícia foi notificada de que seu marido fora condenado a dois anos de prisão
celular, em conseqüência de haver falsificado firmas”. (SANTOS, 1985, p. 31)
Esses são os primeiros elementos que causariam fator determinante para a mudança
de fortuna. A sofrida preparação que Letícia enfrentou foi apenas o começo da série de
episódios trágicos que estavam por vir. A cena de sofrimento, a qual Aristóteles se
refere, é a presença de situações tais como: a morte ou alguma desgraça que
consequentemente será fundamental na ordem e no rumo dos acontecimentos. O
sofrimento é visto como uma punição, porém pode ser interpretado como uma forma de
autoconhecimento.
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digno de seu amor e capaz de fazê-la perfeitamente feliz. Você merece o melhor
possível. Celso”. (SANTOS, 1985, p. 66).
Esses fatos resultam na invalidez da mulher que até agora buscava apenas algo que
nunca realmente conhecera: a felicidade. “Letícia quedou-se imóvel. Alheia, indiferente
a tudo. E, no dia seguinte, não reconheceu a aluna que foi procurá-la. Esqueceu, até, a
própria identidade! Letícia! Letícia!... (SANTOS, 1985, p. 66-67)
O fim trágico de nossa personagem culmina com o sofrimento físico e mental que
resulta com a sua morte “reconhecera-o, num lampejo de lucidez. Depois, sucumbiu.
Sua cabeça tombou para a frente. Seus cabelos se espalharam sobre o marfim...e tudo
terminou” (SANTOS, 1985, p. 70-71)
Dentro das qualidades essenciais para as personagens de uma tragédia, conforme
Aristóteles, apontaremos dentro da narrativa essas comprovações. O primeiro é que a
personagem deve ser bom. Letícia “tinha olhos sonhadores, distantes, capazes de afastar
qualquer pensamento mau, daqueles que dela se aproximassem. Amava a música e
desde pequena estudou piano”. (SANTOS, 1985, p. 13). Para ela fica fácil elencar
qualidades e atributos que a qualifiquem positivamente “bondosa, como era, emprestava
suas virtudes ao noivo e o julgava perfeito” (SANTOS, 1985, p. 22), o que reafirma e
intensifica o caráter do herói como símbolo da bondade.
A conveniência proposta por Aristóteles, como já citado anteriormente, não se atribui
à mulher, porém podemos repensar essa qualidade de caráter ao considerarmos que
Letícia, a sua maneira, lutou contra as armadilhas impostas pelo seu destino trágico até
que a situação toma rumos incontroláveis. A situação foge de seu controle quando passa
para um âmbito de doença física, ou seja, já não dependia unicamente dela para se
reestabelecer. Mesmo assistida por profissionais médicos especialistas, estes, porém,
não conseguiram mudar o quadro clínico a que ela se encontrava.
Quanto ao caráter de semelhança, considerado como “semelhantes a nós”, temos que
a heroína se enquadra dentro desses padrões de proximidade entre o herói e as demais
pessoas. Letícia integrava uma família comum bem estruturada e que possuía padrões
éticos e morais. Ela por sua vez, também se ocupava de atividades que condiziam com
suas aptidões fator que reafirma ainda mais a semelhança com as pessoas comuns
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“interpretava música clássica, trechos de ópera. [...] Compunha música e tocava com
sentimento, as sonatas e os noturnos que nasciam de sua inspiração. (SANTOS, 1985, p.
17)
Finalizando com a coerência, última qualidade reservada à personagem. Durante toda
a narrativa ela se apresenta com princípios morais éticos, apesar dos conflitos que
emergiam a todo momento em sua vida. Ela segue um padrão de coerência linear.
Alteram-se os fatos, mas a conduta da personagem mantém-se estável “Letícia parecia
invulnerável, continuava pura ao lado do vício, alva no meio do lodo. [...] Uma auréola
impenetrável a cercava e irradiava a beleza sonhada para enfeitar a feia realidade”.
(SANTOS, 1985, p. 37). Nessa passagem da boa para a má fortuna, a personagem sofre
várias provações e acaba sendo punida com a morte, fato que determina o fim da
heroína e da narrativa.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1992.
CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Interpretação da “Poética” de Aristóteles. São
José do Rio Preto, SP: Rio-Pretense, 1998.
CORRÊA, Carlos Pinto. O trágico e a tragédia, vinculação e escolha. Disponível em:
<http://scielo.bvs-psi.org.br/scielo.php?pid=S1519-4792006000100007&script=sci_artt
ext&tlng=pt. Acesso em: 20 de fev. 2010.
COSTA, Lígia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia: estrutura e
história. São Paulo: Ática, 1988.
GIMENES, Thais Regina Pinheiro. O trágico em Édipo Rei e Lavoura Arcaica: leitura
contrastiva. Maringá : [s.n. ], 2009. 126 f.
KOTHE, Flávio R. O herói. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1985.
LESKY, Albin. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva S.A, 1996.
SANTOS, Pompília Lopes dos. Abismo. Curitiba: Repro-set – Indústria Gráfica Ltda,
1985.
SHOWALTER, E. A literature of their own: British women novelists from Bronte to
Lessing. New Jersey: Princeton UP, 1985.
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Desde sempre o ser humano têm se deparado com situações para as quais não
consegue encontrar explicação. Situações que fogem das leis que o homem julga serem
naturais. Essas situações causam estranhamento ao homem, pois ele sente sua
aparentemente sólida representação do universo modificada e/ou ameaçada por alguma
coisa que desconhece.
Para aquilo que não se pode entender, e que intriga o ser humano, há sempre a
busca por alguma resposta, uma explicação, algo que sane ou minimize o mal-estar
frente àquilo que ameaça romper a lógica interna da sua representação do mundo. Assim
surgiram as ciências, na tentativa de explicar os fenômenos incompreendidos.
Nas artes, a incompreensão, a curiosidade, a fuga do real, ganharam outras
perspectivas. Os artistas, por muitas vezes, utilizam a fuga ao “real” interpretada como
liberdade para desenvolver suas ideias, seja sob a forma de simbolismos, seja de
arquétipos, seja de distorções propositais. Na literatura, diversos são os textos que
apresentam tais características, e, na tentativa de entender melhor essas características,
alguns críticos literários pesquisaram e escreveram suas ideias acerca do tema.
Desenvolveram então, teorias que se denominavam Fantástico, Maravilhoso e Estranho,
gêneros vizinhos. Sendo o foco deste trabalho o Fantástico na literatura, iremos
contemplar apenas a teoria proposta por Tzvetan Todorov acerca do gênero Fantástico,
que nas suas próprias palavras se trata de:
1. A Relíquia
E aquele homem não era Jesus, nem Cristo, nem Messias – mas
apenas um moço de Galiléia, que cheio dum grande sonho,
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equivocada, santificado pelo apelo popular de sua figura (muitos católicos referem-se ao
Menino Jesus como “o Santinho”), se define inteiramente humano,
E este filho que sou, para que o quiseste, Por gosto de variar,
não foi, escusado seria dizê-lo, Então Porquê, Porque estava
precisando de quem me ajudasse aqui na terra, Como Deus que
és, não devias precisar de ajudas, Essa é a segunda questão.”
(SARAMAGO, 2006, p.306)
Para finalizar seu romance, Eça deixa ao leitor essa frase, inferindo que as
religiões são fundadas em inverdades. Coloca tal afirmação na fala de Teodorico, que
desabafa suas reflexões acerca de suas experiencias vividas e sobre sua escolha de viver
com a verdade. Esta passagem ocorre depois do sonho, já no universo “real”, enquanto
Teodorico conversa com outra pessoa. A partir do momento que o personagem traz as
experiências oníricas para a sua realidade, a sociedade portuguesa do século XIX, há um
movimento duplo: primeiro, recupera e modifica os sentidos do sonho do protagonista,
que passa a significar uma revelação epifânica do poder da mentira fervorosa. Depois
disso, nota-se a súbita aproximação da focalização do personagem (devasso e cínico)
com a do autor implícito (que escolhe encerrar o livro com a frase de efeito).
Esse duplo movimento reinsere no texto a dúvida, o instante de hesitação: ou a fala é
de um personagem cínico e indigno de confiança (portanto, temos o estranho, explicável
pelo caráter de quem interpreta as instituições sociais) ou é a de um autor implícito (e
que teria, portanto, segundo o pacto de leitura oitocentista, um peso de “verdade” na
internalidade do texto, o que restabeleceria a versão blasfema da morte de Jesus como
plano de tomada de poder). Portanto, o romance encerra utilizando a brecha do
Fantástico para veicular sutilmente as idéias revolucionárias de Eça e sua crítica mordaz
ao catolicismo.
Referências
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A Internet é uma facilitadora no que diz respeito aos novos processos de criação,
principalmente quando um novo gênero é bem aproveitado na prática. As pessoas estão
profundamente familiarizadas com a chamada cultura eletrônica: todos entram em
contato com diversas formas de gêneros digitais, nas mais diversas formas de texto e
múltiplas formas semióticas, como sons e imagens.
Um exemplo disso é o blog, uma alternativa para publicação de textos que se
tornou verdadeiramente popular por conta da facilidade de atualização, já que não exige
muitos conhecimentos prévios de webdesign; são mais práticos para manutenção que os
websites comuns e possuem hospedagem gratuita em muitos provedores, como os
conhecidos Blogspot, Livejournal e o novato Wordpress 2. No mundo todo, estima-se
que há mais de dois milhão de “blogueiros”, e sua popularidade se justifica, segundo
Komesu (2005), pelo fato de permitir a hospedagem de vídeos, imagens, animações e
música, além de facilitar a publicação do texto escrito e ter um serviço gratuito. Não se
pode esquecer também que essa parcela da população mantenedora de blogs faz uso do
mesmo como forma de expressão de sentimentos 3. A autora justifica que não é um
exibicionismo como se fosse a vida particular de uma celebridade, “mas do cotidiano e
das histórias de pessoas consideradas comuns porque não exercem quaisquer atividades
que lhes dêem destaque social, a não ser o fato de possuírem um blog na rede”
(KOMESU, 2005, p.112).
1
Trabalho orientado pela Profa. Dra. Lilia Silvestre Chaves (UFPA)
2
Cujos portais estão disponíveis em: <http://www.blogspot.com/>,< http://www.livejournal.com/> e
<http://wordpress.com/>.
3
Há ainda o caso de empresas, faculdades e mesmo jornalistas que preferem fazer uso da ferramenta para
fins profissionais, como é o caso dos blogs divulgados na Folha Ilustrada da Folha de São Paulo
(disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/blogs/> ) ou o blog da faculdade de Engenharia da
Computação da Universidade Federal do Pará (disponível em: <http://engcomp-blog.blogspot.com/>).
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Os fanfictions, as “ficções criadas por fãs”, são histórias sem caráter comercial
ou lucrativo, escritas por fãs, utilizando personagens e universos ficcionais que não
foram criados por eles. Assim, por exemplo, um/uma fã poder escrever um conto que
acontece no universo ficcional da série Harry Potter. Apesar da legislação sobre direitos
autorais variar de país para país, de modo geral, escrever uma fanfiction não constitui
uma violação da propriedade intelectual, desde que a obra não seja comercializada e
nem se obtenha lucro financeiro advindo dela. Da mesma forma, juristas recomendam
que o/a escritor/a de fanfictions acrescente no início do texto uma pequena nota legal
(chamada pelos americanos de "disclaimer") declarando quem realmente é o detentor
dos direitos autorais e esclarecendo que não se está obtendo qualquer forma de ganho
financeiro, nem se está praticando comércio. Cada fã tem um carro-chefe, um ponto de
apoio, alguma série que o influencia a escrever.
O que pode motivar tantos jovens, na condição de fãs internautas, a passar horas
navegando, concentrados na produção de histórias de ficção como atividade extra-classe
completamente voluntária?
Uma das respostas mais aceitas para isso é a “oportunidade de interagir com
textos de seu interesse, a saber, na maior parte dos casos, textos bem-sucedidos
comercialmente [...], cuja presença, no dia-a-dia do jovem, o motive a prolongar o
contato com eles” (VARGAS, 2005, p. 14). E, assim como os blogs, existe a facilidade
de publicação das histórias em diversos sites gratuitos, e a “deixa” na história original
para uma possível continuação da mesma, permitindo ao leitor livre expressão dos
sentimentos.
Xavier (1999) afirma que o uso intensivo da rede tornou possível o contato
desses jovens com gêneros textuais variados a partir de uma autonomia de
aprendizagem. Isso permite aos jovens, pelo uso intensivo e pela prática, usar de modo
diferenciado os mais recentes gêneros. Eles sabem identificar cada um deles, sem um
professor por perto. “Eles aprendem fazendo, praticando, experimentando; escrevem e
lêem, lêem e escrevem muitas mensagens nesses gêneros” (XAVIER, 1999, p. 106).
5
Disponível em: <http://www.fanfiction.net>.
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6
Termo inglês que designa os escritores de fanfictions.
7
Termo inglês que designa os nomes de autores de fanfictions e pelo qual eles são conhecidos dentro do
website.
8
Disponível em: http://www.fictionratings.com/guide.php/
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Mediaminer.Org 9 (fig. 4): o segundo maior site, criado em 2000 por um grupo
de amigos no Canadá. Diferentemente do FF.Net, o Mediaminer não possui
restrições quanto a publicação de histórias para maiores de 18 anos e oferece
poucos recursos para hospedagem, como línguas estrangeiras, por exemplo.
Atualmente é permitido publicação de histórias em inglês, espanhol, francês,
alemão, japonês e chinês.
Restricted Section 11 (fig. 7): conhecido site que hospeda fanfictions de conteúdo
adulto da série Harry Potter.
FFSol (fig. 10): site que hospeda tanto desenhos quanto histórias, criado em
2004 por um grupo de fãs de anime (desenhos japoneses) participantes ativos
de um conhecido fórum.
Nyah! Fanfiction 15 (fig. 11): criado em 2005, hoje é um site que contém um
vasto acervo de fanfictions.
No universo dos fanfictions, construir uma história exige mais que ter uma série,
um livro ou um filme favorito. Fazer parte de uma comunidade, de um fandom, é um
fator que impulsiona a criação, mas não é o principal. Segundo Henry Jenkins (1992),
os fandoms são responsáveis pelo surgimento de grande parte dos gêneros digitais como
forma de o leitor manter contato mais próximo com o que aprecia, uma interação que a
virtualidade permite ao fã exercer, muito mais do que se fosse na vida real. Vale
ressaltar, conforme Vargas (2005), que os fandoms surgiram muito antes da chegada e
expansão da Internet, porém a mesma permitiu que as comunidades passassem a agregar
maior número de pessoas, facilitando o contato entre todos – tanto pessoas quanto o
próprio produto:
Escrever uma história tem relação com a forma mais fácil ou criativa que o
ficwriter busca para si. O que mantém o próprio cânone zela pelo respeito à história
original e também pela reputação das personagens, o que tenta manter o mesmo ritmo
da história original com as mesmas personagens, sem descaracterizá-las e muitas vezes
sem introduzir alguém novo para acompanhar as aventuras. Muitas vezes essas histórias
15
Disponível em: http://fanfiction.nyah.com.br/.
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são uma continuação de um livro acabado ou uma aventura totalmente inédita, como um
capítulo intermediário.
Ao contrário destas, os fanfictions de universo alternativo costumam fazer uso
das mesmas personagens e alterar o ambiente da história original. Em lugar de Alice de
Alice no País das Maravilhas ser uma menina perdida num lugar desconhecido e que
foge de uma rainha má, ela pode muito bem ser uma jovem de vinte e poucos anos à
procura de um namorado em pleno século XXI.
Isto é apenas para se ter uma ideia do que os ficwriters podem escolher para ser
o cenário das histórias. Vargas (2005) apresenta as duas classes “a favor” e “contra” os
universos alternativos como questões polêmicas, pois há quem defenda o cânone, o
universo das histórias originais, e mesmo websites que não permitam a publicação de
uma história que se passa em um universo alternativo. O Fiction Alley 16, por exemplo,
mantém um glossário que define os principais termos da atividade. Na definição, consta
que cânone são “fatos que nos foram contados nos livros. [...]. Henry não pode ter olhos
verdes e azuis e seu pai não pode ser um artilheiro e apanhador. A contrapartida do
cânone é o ‘fanon’” (apud VARGAS, 2005, p. 38-39).
16
Disponível em: <http://www.fictionalley.org/>
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Uma releitura que existe da história de Carroll é a escrita por Frank Beddor,
autor da chamada Trilogia Através do Espelho 17. Nela, no primeiro capítulo que o que
Alice vivenciou em Alice no País das Maravilhas 18 é uma ilusão, e que aquela aventura
é a real. Nela, Alyss é forcada a fugir para o mundo real depois que a tia dela, a rainha
Redd (a rainha de Copas e rainha Vermelha da história original), conquista o País das
Maravilhas e destrói todos que se opõem a ela. Para ajudá-la, o assassino Gato de
Cherishe persegue Alice – e esta é protegida por Hatter Madigan, guarda-costas da
Rainha e que sabe das intenções malignas dela em querer matar Alice e ficar com mais
poder. Refugiada no mundo real, Alice é obrigada a viver num lugar desconhecido e é
protegida por Hatter Madigan e por Dodge Anders, o filho do reverendo Charles
Dodgson, assassinado a mando da rainha má. A trilogia iniciada em 2005 já tem três
livros publicados. O primeiro The Looking Glass Wars foi publicado em 2006, a
segunda Seeing Redd (2008) e a terceira Archenemy, lançado em outubro de 2009.
O trabalho de Frank Beddor nada mais é, no final das contas, que um fanfiction
bem vendido - cuja história é um universo alternativo da história original. Enquanto que
Alice de Alice no País das Maravilhas (1980) desperta do sono e vê-se “então deitada
no barranco com a cabeça no colo da sua irmã, que delicadamente afastava do seu rosto
algumas folhas mortas que haviam tombado da árvore” (p. 130), conta a história de seus
“sonhos” para a irmã mais velha, e esta, depois que Alice volta para casa, põe-se a
sonhar as mesmas aventuras que a mais nova teve, “embora soubesse que bastava abrir
os olhos outra vez e tudo se transformaria na enfadonha realidade de volta”. Nas
aventuras reescritas por Frank Beddor, Alice Liddell, também conhecida por Alyss
Heart, está a conversar com o reverendo Charles Dodgson, nome real de Lewis Carroll,
que acabara de dar de presente a ela o livro escrito e ilustrado por ele mesmo. Ela, que
também contara a ele a respeito do sonho cheio de aventuras no País das Maravilhas,
estranha, porém, o título dado à obra:
17
The Looking Glass Trilogy, no original.
18
CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Trad. LEITE, Sebastião Uchoa. 3.ed. São Paulo:
Summus, 1980, 282 p.
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O sonho de Alice é recontado no livro do reverendo de tal forma que ela mesma,
claramente a protagonista, não entende e a considera uma aventura nonsense de algo
que foi a ela bastante pessoal, e Charles Dodgson esclarece que a contou de forma
diferente em trechos que ele julgava necessário:
4. Considerações finais
19
“Oh!” Alice’s Adventures Underground? What sort of title was that? And why was her name
misspelled? She had told Dodgson how to correctly spell her name, had even written it out for him. “By
Lewis Carroll?” she read with growing concern (BEDDOR, 2006, p. 2) – tradução minha.
20
I admit that I took a few liberties with your story,” Dodgson explained, “to make it ours, as I said I
would. Do you recognize the tutor fellow you once described to me? He’s the White Rabbit character. I
got the idea for him upon discovering that the letters of the tutor’s name could be made to spell ‘white
rabbit’ […]” (BEDDOR, 2006, p. 3) – tradução minha.
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Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003. P. 261-306.
BEDDOR, Frank. The Looking Glass Wars. New York: Penguin Group, 2006, 368 p.
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CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas e Através do espelho e o que Alice
encontrou lá. 3.ed. São Paulo: Summus, 1980, 282 p.
JENKINS, Henry. Cultura de convergência. 2.ed. São Paulo: Aleph Editora, 2009, 432
p.
XAVIER, Antonio Carlos. Reflexões em torno da escrita nos novos gêneros digitais na
Internet. Investigações (Recife), v. 18, p. 104-116, 2006.
___. Letramento Digital e Ensino. In: Carmi Ferraz Santos e Márcia Mendonça. (Org.).
Alfabetização e Letramento: conceitos e relações. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2005, v. 1, p. 133-148.
ANEXOS
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No presente texto, faremos um breve estudo sobre dois personagens que, a nosso ver,
possuem entre si muitas afinidades, inclusive no que diz respeito às discussões sobre
grupos minorizados da sociedade. Trata-se de Aliócha, personagem do romance Os
irmãos Karamázov 1 (2008) de Dostoiévski e o Stalker do filme Stalker 2 (1979) de
Tarkovski. Acreditamos que esse filme é uma tradução indireta do romance de
Dostoiévski, trazendo uma série de referências aos seus personagens e outros elementos.
O próprio Tarkovski era um admirador desse escritor o que pode ter motivado algumas
de suas obras, como atesta o seguinte trecho:
Apesar das obras de Dostoiévski serem conhecidas e, de certa forma, pertencer a uma
alta literatura, o estudo em questão trará uma abordagem sobre minorias, tema ainda
pouco discutido nessa literatura, atribuindo a obra um novo caráter e provando que
∗
Este trabalho foi orientado pelo Professor Doutor Luciano Barbosa Justino, coordenador do Mestrado
em Literatura e Interculturalidade (MLI) da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
1
Os irmãos Karamázov foi publicado em 1879. A edição que estamos utilizando no presente texto trata-
se da lançada em 2008, pela Editora 34, traduzida por Paulo Bezerra.
2
Esse filme russo tem o seu roteiro baseado na novela Piquenique à beira da estrada, dos irmãos Boris e
Arkadi Strugatisky.
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ainda não se esgotaram as possibilidades de leitura dela, inclusive aquelas que refletem
os grupos excluídos.
Os Estudos culturais vêm nos trazendo significativas mudanças no campo da
literatura, sobretudo, no que diz respeito ao rompimento de cânone literário. Esse novo
olhar sobre a sociedade atualiza a literatura trazendo para ela temas, personagens e
discussões, até então tidas como não relevantes, acrescentando um pensamento que leva
em conta a cultura, a economia, a política de uma dada sociedade. Em outras palavras:
Não se trata de abandonar o cânone literário, mas rediscutir as obras que o compõe
sob novos enfoques e trazer outros títulos e outores para também fazer parte desses
debates. Sabemos que na prática ainda é muito forte o preconceito contra a literatura de
autores, temas e personagens fora do lugar apreciado pela alta literatura.
Embora muitas ainda sejam as entraves, a literatura e outras artes têm contribuído
para a emergência de vozes silenciadas, ajudando-nos a refletir sobre as preocupações
do outro – e suas diferenças políticas, religiosas, filosóficas, linguísticas, bem como,
sobre nossos próprios valores. A liberdade, o reconhecimento dos indivíduos e outros
temas populares têm sido vistos através da literatura, fato que contribui para a tentativa
de fazer ecoar a voz de pessoas marginalizadas pela sociedade e para democratizar a
arte (DALCASTAGNÉ, 2005).
Aviso, antes de tudo, que esse rapaz, Aliócha, não era absolutamente
um fanático e, a meu ver, nem chegava a ter nada de místico. Antecipo
minha opinião completa: era somente imbuído de um precoce amor ao
ser humano, e se lançou no caminho do mosteiro, foi apenas porque,
na ocasião, só ele lhe calou fundo e lhe ofereceu, por assim dizer, o
ideal para a saída de sua alma, que tentava arrancar-se das trevas da
maldade mundana para a luz do amor. E esse caminho só lhe calou
fundo por que ai ele encontrou naquele momento um ser que achava
extraordinário – o nosso famoso Zossima, stárietz do mosteiro (...)
(DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 32)
Cada personagem – Fiódor, Dmitri, Ivan, Aliócha, Smierdiákov etc. – representa uma
convicção, um ponto de vista diferente sobre o mundo e as situações vividas no livro
(DOSTOIÉVSKI, 1981, p. 27). Essa multiplicidade de vozes traz consigo, além de
concepções valorizadas pela sociedade, também àquelas que não têm muito espaço, que
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ainda lutam para serem ouvidas. Em meio à sociedade burguesa que o rodeia, Aliócha
responde silenciosamente, através de gestos sutis, contra apego ao dinheiro, à mentira, à
desigualdade social, ao preconceito etc., representando, veladamente, vozes minorizadas
que também acreditam nesses ideais. Apesar de Aliócha ter uma origem rica, este se
sente deslocado de sua família; seus valores não condizem com o modo de vida
observado nos outros Karamázov. O desconforto o leva a buscar uma nova forma de
vida encontrada no mosteiro através da figura do Stárietz Zossima. Vejamos o seguinte
trecho sobre o posicionamento de Aliócha:
Talvez digam que Aliócha era obtuso, atrasado, que não concluira seu
curso, etc. Que não concluíra seu curso era verdade, mas dizer era
obtuso ou tolo era uma grande injustiça. Vou simplesmente repetir o
que já disse: ele só se enveredou por esse caminho porque foi o único
que o fascinou naquele momento e ao mesmo tempo lhe ofereceu todo
o ideal para a saída de sua alma, que tentava arrancar-se das trevas
para a luz. Acrescenta-se que ele já era, em parte, um jovem do nosso
tempo, ou seja, honesto por natureza, que reclamava a verdade, que a
procurava e acreditava nela e, uma vez tendo acreditado, exigia
participar imediatamente dela com toda a força de sua alma,
reivindicava um feito urgente, movido pelo premente desejo de doar
tudo de si, até mesmo a própria vida, para realizar esse feito. (...)
Aliócha apenas escolheu um caminho oposto ao de todos outros, mas
com a mesma sede de um feito imediato. (DOSTOIÉVSKI, 2008, p.
44-46)
3
Personagem do romance O idiota (1869), de Dostoiévski.
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em meio a tudo isso – plantas, sons de animais, água - entranhando-se pelos escombros,
misturando-se às máquinas (imagem 1, anexos).
Segundo Guattari (2000), a ideia de meio ambiente vai além da presença da natureza
e abarca a noção de um ambiente construído e não simplesmente herdado pelo homem;
os restos de máquinas e a natureza compõem um espaço vivencial, que transmite a
história de quem lá viveu. Portanto, o meio ambiente é algo composto pelos elementos
que rodeiam o homem e que interagem com ele. Tomando por base essa ideia, notamos
que o filme se divide em dois ambientes que destoam entre si por representarem
sentimentos diferentes no Stalker: no primeiro, como aparece no começo e no fim do
filme, com imagens em tons escuros, é onde as pessoas residem, inclusive o nosso guia,
e onde ele se sente incompreendido e reprimido, enclausurado na sua condição de nativo
da zona; inadaptado (imagem 2, anexos); o segundo, de tons coloridos, é a Zona. Para o
Stalker, a Zona é um espaço de liberdade, de diálogo, onde enfim ele pode estar em
casa, muito embora seja proibido. Ele mantém com esse lugar uma relação de afeto, de
completude, de cumplicidade. Mais importante do que as imposições da sociedade é
estar em comunhão com a Zona, ou seja, com ele mesmo (imagem 3, anexos).
Ser um Stalker significa ter uma vocação, assim como Aliócha ao entrar no mosteiro.
Responsável por uma difícil tarefa, ele guia as pessoas dentro do universo da Zona, ele
transita entre o permitido e o impedido. As imagens iniciais do filme mostram a casa do
Stalker (imagem 2) e refletem a opressão vivida por esse personagem – paredes com
aspecto lodoso, sons de goteiras, uma filha com deformidades físicas, conseqüência da
Zona. Tudo isso levam o Stalker a enfrentar o perigo e transpor os limites que lhe foram
impostos para buscar a liberdade.
Conhecemos os personagens do filme através dos seus ofícios, pois seus nomes são
omitidos na narrativa. Essa omissão confere ao filme, além do tom de mistério, a
sugestão poética de arquétipos de diferentes construções humanas. O filme deixa em
suspenso várias informações e desafia o expectador a buscar soluções para preencher
esses vazios, como reflete o cinema de poesia, proposto por Buñuel 4.
4
BUÑUEL, Luis. Cinema: instrumento de poesia. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
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Referências
5
No filme, o Stalker também tinha um mestre. Este não aparece no filme, mas é mencionado pelo Stalker
como o porco-espinho; ele lhe transmitia conhecimentos sobre a Zona.
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ANEXOS:
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praticamente impossível pensarmos numa arte fechada, que não receba influxos de
outras artes. Quando tratamos de assuntos sobre pintura e poesia, não podemos esquecer
de citar o poeta e crítico Charles Baudelaire, defensor dessas inter-relações, para quem
“a melhor análise de um quadro poderá ser um soneto ou uma elegia”(BAUDELAIRE,
2002, p, 673).
O próprio Alphonsus, no poema “A cabeça de corvo”, do livro Kiriale, nos dá a
idéia que seus versos são pintados: “E a minha mão, que treme toda, pinta / Versos
próprios de um louco”(GUIMARAENS, 2001, p.126).
Apesar da distância de tempo e espaço entre Alphonsus e Goya, ambos se
aproximam, no tocante ao universo lúgubre, à preferência do sonho em detrimento à
realidade, à noite em oposição ao dia, por ser ela a mais propícia para a eclosão dos
sonhos e pesadelos.
Pretendemos demonstrar como a imagem possui o poder sugestivo de suscitar
outros mundos, tanto aquela criada por Goya, em “O sonho da razão produz monstros”,
como as criadas por Alphonsus de Guimaraens, nos poemas “Succubus”, “Initium” e
“Sonhos idos”. Amparados pelo conceito de “grotesco fantástico”, de Wolfang Kayser
(1986), buscaremos aproximá-los pela temática, ressaltando a criação de imagens que só
a arte pode nos oferecer e o seu poder para criar universos fantásticos e irreais.
é que o pintor nunca mais seria o mesmo. Algo havia modificado o seu pensamento e a
sua forma de ver o mundo.
De acordo com Jean-Francois Chabrun, no livro Goya, o artista “sofrerá uma
interminável sucessão de delírios atrozes, auditivos e visuais” (CHABRUN, 1974,
p.88). O pintor foi conduzido a um outro universo, muito mais lúgubre, onde
permaneceu envolto por fantasmas e monstros. “Os delírios tornar-se-ão em pesadelos,
antes de se transformarem em desenhos, gravuras e pinturas”. Surdo para sempre, Goya
não teve outra alternativa para se comunicar, para se expressar, senão pela arte.
Muitos poderão contestar se esse fato biográfico teve ou não influência em sua
arte, pois a palavra “biográfico” tornou-se maldita nos meios acadêmicos,
principalmente no século XX. No entanto, neste trabalho tornam-se imprescindíveis
esses apontamentos, pois consideramos que a obra de arte é fruto de uma expressão
humana e única e, por isso mesmo, susceptível às suas idiossincrasias. Quando se trata
de uma arte marcada pelo subjetivismo, como é o caso da arte romântica, temos que
analisar não apenas a obra, mas também o ser humano por detrás dela. É dessa forma
que estamos de acordo com Rene Huyghe, no livro O poder da imagem (s.d. 1), quando
escreve:
Cada obra, sob o revestimento elaborado que se lhe acrescentou,
continua a ser o testemunho brutal e íntegro de uma vida e de seu
drama; seja quais forem as intenções que julgaram orientá-la, continua
essencialmente a ser uma marca do artista e permite abordá-lo de
forma reveladora (HUYGHE, s.d., p.120).
Neste sentido, podemos considerar certas imagens de Goya como uma confissão,
do mesmo modo que a confissão está presente em Alphonsus de Guimaraens. Mas é
claro que não podemos nos deter tão somente a esse aspecto, visto que uma obra de arte
deve existir por si mesma. Essas relações serão apenas uma ferramenta a mais, útil para
melhor compreender o universo da arte e do artista.
O momento histórico em que viveu Goya também foi determinante para sua
expressão. Sabemos que o pintor via com bons olhos os ideais iluministas, daí que a
frase “O sonho da razão produz monstros”, num primeiro momento, aparece como uma
1
Livro sem data.
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p.144)”. A outra corrente, por sua vez, aproxima o grotesco e o cômico, por meio da
ironia e o riso. Goya participa das duas correntes, ora uma, ora outra. É por meio dessas
“imagens oníricas” que Goya apresentará grande semelhança com Alphonsus de
Guimaraens.
Após a doença, Goya tornou-se um pintor mais misterioso e passou a pintar
imagens lúgubres e tenebrosas. Vejamos o que escreveu Chabrun acerca deste período:
Sim. É um sonho. Mas ocorre que, muitas vezes, esse sonho transforma-se em
pesadelo. Esse aspecto particular de Goya levou Baudelaire a denominá-lo como um
pintor “assustador”2. De fato, a sua obra, sobretudo as gravuras e as pinturas negras, nos
dá a mostra do que é capaz uma mente livre de qualquer preconceito e voltada ao
universo onírico.
Feito isso, agora poderemos nos deter tão somente à gravura, que tornou-se
símbolo do artista atormentado, inclinado para evasão. Nela, identifica-se claramente
um homem debruçado sobre a mesa, os cabelos desarrumados, papéis e lápis em cima
da mesa. É um artista que dorme e podemos ver o que está ocorrendo em seu sonho, ou
melhor, em seu pesadelo. A hora do sono é propícia para eclosão dos seres que habitam
as trevas do homem, visto que esses animais emergem das profundezas do sonho, com
o qual o inconsciente está indissoluvelmente ligado. Os animais que esvoaçam em torno
do artista parecem atormentá-lo, exceto a imagem do gato, que parece alheio aos
“gritos” dos outros animais. Aliás, há dois gatos, um facilmente identificável à direita e
embaixo, e o outro atrás do artista, que apenas podemos ver os olhos. Corujas e
morcegos, seres noturnos que logo sugerem um aspecto sombrio, pairam acima do
artista, e parecem desvairados, numa atitude aterrorizadora.
De acordo com o Dicionário de Símbolos (2005), de Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, se buscarmos a simbologia do morcego, veremos que este é um animal
2
Do artigo “Alguns caricaturistas estrangeiros”. In: Obra Completa.
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impuro, que simboliza o pavor, o medo, o irracionalismo. A coruja, por sua vez, é o
animal guardião das moradas escuras, das trevas, que também pode representar o
racionalismo que, de alguma forma, tenta impor a sua vontade ao artista. Kayser
também afirma que “há animais preteridos pelo grotesco”, que entre eles estão a coruja
e o morcego. Este, segundo o autor, é o mais sinistro de todos. Vejamos o que ele
escreve acerca do morcego:
A simbologia do gato oscila entre positiva e negativa, pois que sua atitude é a um
só tempo terna e dissimulada. O gato é um animal com inteligência apurada, não é
selvagem, mas também não é servil. Ao contrário das atitudes dos outros animais, o
gato está tranqüilo, apenas observando. A impressão que nos fica é que, nos
sonhos/pesadelos de Goya, há uma briga constante entre aquilo que é racional e
irracional, uma dualidade, de certo modo, inata ao ser humano e que artistas e poetas
conseguem exprimi-la. Além disso, essa briga irá se estender por toda a modernidade. É
uma busca pelo controle da própria mente, tanto daquilo que é consciente como o que é
inconsciente.
Como poucos, Goya foi capaz de transpor o limite do real com o irreal. Ao passar
para o outro lado, o lado escuro da mente, o pintor descobriu um mundo fantástico e
pôde dar livre curso à imaginação. “O sonho da razão produz monstros” nos conduz às
profundezas da alma e do inconsciente, muito tempo antes do próprio Freud. Com os
prelúdios do Romantismo, já é possível notarmos alguns “sintomas” da modernidade,
como acentuou Hugo Friedrich, daí a importância de Goya para a arte moderna.
Alphonsus teve uma noiva ainda muito jovem, chamada Constança, que morreu
de tuberculose, um mal ainda sem cura na época, deixando o seu noivo desolado e, por
certo, interferindo na sua vida pessoal e literária. Da mesma forma que Goya não seria
mais o mesmo após a doença, Alphonsus não seria mais o mesmo após a morte de sua
amada, ainda mais por ser ele ainda tão jovem. Como Alphonsus é um poeta de extremo
subjetivismo, não poderíamos deixar de citar esse fato determinante. Para uma melhor
compreensão da obra e do artista, levaremos em consideração tais acontecimentos e,
para completar, utilizamos as palavras de Tácito Pace, no seu estudo acerca de
Alphonsus, intitulado “O simbolismo na poesia de Alphonsus de Guimaraens”:
Se o indivíduo deve ser estudado no meio em que produziu a sua obra,
no sentido de captar-lhe as vibrações exógenas e fixar as influências
ambientes, próximas ou remotas, que incidiram nessa obra e fundiram
as características que a projetaram no tempo e no espaço, é totalmente
significativo, sob todos os aspectos, que o mundo interior do poeta
seja descoberto, através de incursões analíticas ao mundo físico em
que ele viveu e se debateu, amou e trabalhou, pecou e creu, errou e
sofreu, caiu e triunfou, magoou e foi magoado, castigou e foi
castigado, julgou e foi julgado, para que conheçamos os ‘caminhos da
vida’ que o levaram à glória pelos ‘caminhos da mente’ (PACE, 1984,
p.37).
Imagens como “a alma em sangue”, “cabelos hirtos” e “torvo olhar” nos sugerem
não mais um sonho, mas antes um pesadelo. É essa condensação de imagens que é
capaz de evocar a atmosfera pesadelar, muito parecida com àquela de Goya, na gravura
“O sonho da razão produz monstros”. A realidade exterior fica aniquilada. É aquilo que
Kayser chama de “vivências oníricas”, o qual já não podemos afirmar se o que acontece
é um sonho, uma ilusão, uma visão ou até uma alucinação, mas que podemos ter a
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certeza de que, quando o sonhador acordar, “ao levantar-se da cama, pisa em outro
plano” (KAYSER, 1986, p.70).
Se é a noite é propícia à eclosão dos sonhos, como podemos perceber no decorrer
das manifestações literárias, então a noite na poesia de Alphonsus toma uma forma
sombria e desolada, como acentuou Tácito Pace. Vejamos o que o crítico escreveu
acerca da noturnidade de Alphonsus:
Como quase em toda a sua obra, a noite irá prevalecer em oposição ao dia. É no
silêncio da noite e na solidão, aquela “solidão sonhadora” de que nos fala Gaston
Bachelard (2001), onde o cenário domina o drama e as imagens se estabelecem como
quadros. Aqui, Alphonsus terá um ambiente propício aos seus sonhos.
Neste sentido, há um local especial para Alphonsus, um espaço favorável a
devaneios, um ambiente silencioso e pesadelar, ou seja, o quarto. É por meio das “noites
passadas de olhos abertos” que o poeta irá criar esse universo do “grotesco fantástico”,
onde a imaginação atingirá patamares até então só atingido pelo sonho. Nessas horas
soturnas, alto da noite, virá “um batalhão de pesadelos” tentar o poeta. Observamos os
versos a seguir, do poema “Initium”, do livro Kiriale:
Tudo se dá na forma de sugestão, pois não temos a imagem total e clara. São
impressões que nos ficam, são “passos incertos” e “alguém que chega”, mas logo
“foge”, como imagens do sonho que perpassam nossa mente enquanto dormimos e que
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Na “geena” do quarto, ou seja, no seu próprio inferno, com rezas e com luxúria,
“sombras mortas”, “espectros negros”, “múmias” e “esqueletos” vêm atormentar o
poeta nas suas horas de solidão. Ora, essas imagens não podem suscitar felicidade. São,
antes, imagens grotescas, aterrorizadoras e que sugerem pesadelo. Apesar de Alphonsus
mais tarde ter escritos versos de misticidade católica, foi, quando moço, um poeta
voltado para temáticas sombrias, um verdadeiro baudelairiano.
Agora, prestemos atenção ao poema “Sonhos Idos”, o qual está no livro Pulvis,
último livro de Alphonsus e, segundo Henriqueta Lisboa, o livro “mais triste” do poeta
mineiro. O poema tem uma atmosfera toda particular. É noite, o eu poético quer
descansar o “corpo morto”. No entanto, os sonhos vêm perturbá-lo e, como se fosse
uma aparição, surge a presença da alma, personificada no abutre:
Da mesma forma que em Goya aquelas aparições, aquelas imagens dos animais
que esvoaçam em torno do artista, perturbavam-no, a alma do poeta, que encontra uma
forma de se comunicar com ele através do sonho, vem perturbá-lo também, na
personificação do abutre. Se buscarmos na simbologia do abutre, veremos que ele é um
animal devorador de entranhas e, por isso mesmo, pode simbolizar a morte como
também a renovação, ou a morte do corpo e o renascimento da alma em outra dimensão.
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À medida que se sente isolado e perdido nas trevas da mente, o artista faz uma viagem
ao interior dele mesmo, no qual encontrará a alma, que antes era esquecida em proveito
da realidade.
Considerações Finais
Referências
Introdução
No prólogo do El libro de los seres imaginarios (1982, p. 3), Jorge Luis Borges
argumenta que o título de seu livro permitiria a inclusão como seres imaginários, do
ponto, da linha, da superfície, bem como de Hamlet, das palavras genéricas, das pessoas
1 Agradeço a leitura atenta da Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino, que me orienta no
Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, na dissertação: Um
manuscrito de Joyce: a identidade narrativa e o artista.
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1 “A famosa fórmula para o princípio de identidade esconde o que o princípio deseja dizer: A é A, isto é,
cada A é ele mesmo o mesmo” [tradução minha].
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Foram necessários quase dois mil anos para que a mediação no princípio de
identidade, desde então sempre presente (na visão de Heidegger), surgisse com o
pensamento dos filósofos alemães idealistas – antecipados por Leibniz e Kant os quais
introduziram a questão - Fichte, Schelling e Hegel.
O pensamento hegeliano abrirá ao pensamento ocidental outras possibilidades,
pois na síntese encontram-se suprassumidas (aufheben) as diferenças entre a tese e a
antítese. O conhecimento é dado no movimento que perpassa os momentos nos quais o
não-ser – ou a alienação do ser em outro – constitui-se como condição para o
desenvolvimento do pensamento filosófico. O princípio de identidade, de unidade, passa
a ser questionado na sua uniformidade.
A identidade presumida no iluminismo é, para Hall, a que concebe o sujeito
como sujeito racional. Sendo a razão – através do princípio de identidade e do princípio
de não-contradição – unitária, o sujeito seria uma entidade única. Apesar do outro, que
ao sujeito aliena, já aparecer na Fenomenologia do Espírito de Hegel, o projeto
iluminista, ao que parece continuou conceitualizando, em sua ideologia, a identidade 3
enquanto uma unidade, portanto.
A sociologia, em sua querela epistemológica com a psicologia, na discussão
sobre “indivíduo” e “sociedade” é que apresenta, para Stuart Hall, o avanço da unidade
2 “Na mesmidade jaz a relação do “com”, uma mediação, uma relação, uma síntese: a união de uma
unidade. Por isso que, o princípio de identidade aparece ao longo da história do pensamento ocidental
através do caráter de uma unidade” [tradução minha].
3 A identidade na filosofia, evidentemente, não corresponde a um sujeito empírico, mas, antes, ao sujeito
do conhecimento. Entretanto, a concepção ideológica da identidade iluminista parece, de acordo com
Hall, ter determinado uma visão de mundo a respeito das identidades dos sujeitos empíricos.
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do sujeito iluminista para a mediação entre sujeitos. Autores como G.H. Mead e C.H
Cooley e os interacionistas simbólicos defendem esta nova concepção identitária, na
qual a alteridade é contemplada. Na concepção sociológica, “A identidade é formada na
‘interação’ entre o eu e a sociedade” (HALL, 2001, p.11).
Além da identidade iluminista e sociológica, para Hall, na pós-modernidade “o
sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se
tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas
vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2001, p.12). Há, portanto o surgimento
de “identidades abertas, contraditórias, inacabadas” (HALL, 2001, p.46).
O exemplo (HALL, 2001, p. 19) dado pelo autor da identidade pós-moderna é o
da indicação pelo presidente americano Bush, em 1991, de Clarence Thomas para juiz
da Suprema Corte. Na pluralização identitária, o jogo político da identidade acontece
em função deste sujeito ser negro, conservador e ter sofrido um processo de assédio
sexual por parte de uma mulher negra. De modo que a identidade do juiz é perpassada
por esses elementos, os eleitores dividiram-se em função de suas próprias identificações
e votaram a partir delas.
O sociólogo Zygmunt Bauman, outro autor da contemporaneidade que
conceitualiza a identidade, discorda de Stuart Hall com relação à segunda forma de
identidade. Segundo Bauman, autores clássicos da sociologia, como Durkheim, Weber
ou Simmel, não se preocupavam com a temática da identidade, em virtude do contexto
em que elaboraram suas teorias ser diferente do contexto atual. Em seu livro Identidade
(2005), que consiste em entrevista a Benedetto Vecchi, diz ele: “Há apenas algumas
décadas, a 'identidade' não estava nem perto do centro do nosso debate, permanecendo
unicamente um objeto de meditação filosófica” (BAUMAN, 2005, p. 22-23).
Bauman – apesar de enfatizar que a identidade é um “conceito altamente
contestado” – descreve-a na atualidade como sendo “uma luta simultânea contra a
dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa
resoluta de ser devorado” (BAUMAN, 2005, p. 84). Nesse sentido, aproxima-se de Hall
com relação ao entendimento de que a identidade na pós-modernidade é cambiante,
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aberta e fragmentada.
A identidade, constituindo-se em um conceito ou idéia, “não foi 'naturalmente'
gestada e incubada na experiência humana, não emergiu dessa experiência como um
'fato da vida' auto-evidente. Essa ideia foi forçada a entrar na Lebenswelt de homens e
mulheres modernos – e chegou como uma ficção” (BAUMAN, 2005, p. 26).
O nascimento da própria ideia sobre a identidade, individual ou coletiva, tal qual
aparece no senso comum ou em sentidos dicionarizados, deveu-se à própria criação do
Estado moderno. Seguindo o pensamento de Bauman,
Deste modo, para Bauman, a identidade “só nos é revelada como algo a ser
inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, 'um objetivo'; como uma coisa
que se precisa construir a partir do zero” (BAUMAN, 2005, p. 21).
No percurso feito por Stuart Hall do iluminismo à pós-modernidade e na
entrevista de Bauman a Vecchi, notamos as diferentes acepções que o termo identidade
pode adquirir. Pela sua raiz etimológica idem e pelo princípio filosófico, a identidade
enquanto idéia nasce como o que é semelhante a si, como o mesmo. É esta concepção
que contamina o olhar iluminista a respeito do sujeito em sua identidade una.
A identidade sociológica pode ser resumida como aquela na qual a alteridade
faz-se indissociável, embora Bauman argumente que a questão da identidade não tenha
sido a principal preocupação dos sociólogos do início do século XX.
Na pós-modernidade as definições sobre a identidade – apesar do uso de
significantes diversos – parecem ser unívocas: a identidade precisa ser inventada,
reconstruída, ela é aberta, cambiante, fragmentária. Ela está em constante e interminável
processo.
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2. Identidade e imortalidade
quisesse aprender para que não tivesse que trabalhar. Além destas possíveis explicações,
ele continua:
Pensei em um mundo sem memória, sem tempo; considerei a
possibilidade de uma linguagem que ignorasse os substantivos, uma
linguagem de verbos impessoais ou de indeclináveis epítetos. Assim
foram morrendo os dias e com os dias os anos, mas algo parecido com
a felicidade ocorreu uma manhã. Choveu, com lentidão poderosa
(BORGES, 1999, p. 10).
É nesta manhã, com o balbucio de duas frases gregas, que o mistério a respeito
da verdadeira identidade de Argos se esclarece, quando este diz: "Argos, cão de
Ulisses" (...) "Este cão atirado no esterco" (Borges, 1999, p. 10). Rufo lhe pergunta o
que ele sabia da língua grega: "Muito pouco, disse. Menos que o rapsodo mais pobre. Já
terão passado mil e cem anos desde que a inventei (BORGES, 1999, p. 10)”.
Argos é o criador da língua da Odisséia e deste poema que narra as aventuras de
Ulisses. Argos é Homero. Entretanto, parece não se lembrar e não se importar com o
fato de ter sido o autor desta obra. A imortalidade, em contraponto à mortalidade, é o
que explica a falta de orgulho e de vaidade.
Os homens, que possuem um exíguo tempo entre o nascimento e a morte, para o
narrador em primeira pessoa são como fantasmas. São preciosos e patéticos: “cada ato
que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por dissolver-se como o
rosto de um sonho” (BORGES, 1999, p.12). Para os imortais, a quem o tempo
assemelha-se à eternidade, “não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a
Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o
impossível seria não compor, sequer uma vez, a Odisséia” (BORGES, 1999, p.11).
Este valor advinha da compreensão da tendência ao equilíbrio das ações. “Por
suas passadas ou futuras virtudes, todo homem é credor de toda bondade, mas também
de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro” (BORGES, 1999, p.11).
Com a ideia do universo como um sistema de compensações, juntamente com a
extensão temporal da imortalidade, encontramos uma definição de identidade plausível
de um sujeito, como Homero, imortal. “Ningué m é alguém, um só homem imortal é
todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou
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demônio e sou mundo, o que é uma fatigante maneira de dizer que não sou”.(BORGES,
1999, p.11).
Após a descoberta da “real” identidade de Argos, Rufo, ao lado dos trogloditas
ou imortais, permanece no mundo da pura especulação. Para o corpo havia apenas a
necessidade de rações limitadas de carne de serpente, de água algumas vezes no mês e
poucas horas de sono.
Passam-se os séculos, e por volta do ano 1000 d. C., surge um pensamento que
revoluciona a atitude dos imortais perante a vida. Logicamente, ele é estruturado da
seguinte forma: se há um rio que livra os homens da morte, há um rio que a devolve.
Em virtude da novidade deste pensamento, eles dispersam-se sobre a face da terra, em
busca agora não da imortalidade, mas da mortalidade.
Rufo descreve suas aventuras a partir deste momento, em poucos pontos: Em
1066, participa da guerra em Stamford. Depois, “no sétimo século da Hégira, no
arrabalde de Bulaq, transcrevi com pausada caligrafia, em um idioma que esqueci, em
um alfabeto que ignoro, as sete viagens de Simbad e a história da Cidade de Bronze”
(BORGES, 1999, p.12). Em Samarcanda, ele joga xadrez, em Bikanir e na Boemia,
ensina astrologia. No ano de 1638, viaja a Kolozsvar, Leipzig. Já no século XVIII,
escreve a Ilíada de Pope e, em 1729, discute-a com Giambatista Vico.
Em 1921, em um porto da costa da eritréia, no Mar Vermelho – como quando
era tribuno militar romano – ele bebe de um caudal de água que lhe devolve a
mortalidade. “De novo sou mortal, repeti a mim mesmo, de novo me pareço com todos
os homens” (BORGES, 1999, p.12-13).
Um ano após ter concluído o manuscrito, Rufo revisa o que tinha escrito e
percebe algumas incoerências em seu relato. Além do excesso de elementos
circunstanciais, que aprendera com os poetas, ele descobre a razão da irrealidade da
narrativa (que, evidentemente, não é a existência dos imortais): “A história que narrei
parece irreal porque nela se mesclam os sucessos de dois homens diferentes”
(BORGES, 1999, p.13).
Quando se aproxima o fim, já não restam imagens da lembrança; só
restam palavras. Não é estranho que o tempo tenha confundido as que
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Considerações finais
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.
BORGES, Jorge Luis. Autobiografia: 1899-1970. Trad. Marcial Souto y Norman
Thomas di Giovanni. Buenos Aires: El Ateneo, 1999.
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Introdução
Anna Maria de Jesus Ribeiro (1821?-1849) entra para a história com o codinome de
mulher guerreira, com o epíteto de “heroína dos dois mundos” e com o nome e o
sobrenome que seu companheiro, o revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi (1807-
1882), atribuiu a ela: Anita Garibaldi.
Até os dias de hoje não foi possível precisar a data e o local de seu nascimento, mas
o biógrafo brasileiro Wolfgang L. Rau (1975, p. 45), após uma pesquisa intensa,
assinala o ano de 1821 como o mais provável e a “região dos lagos da cidade de
Laguna, no sul catarinense” como a sua terra natal. Baseado na tradição oral, Rau
descreve alguns acontecimentos da infância, da adolescência e do relacionamento de
Anita com o primeiro marido, o sapateiro Manuel Duarte de Aguiar. Nesses episódios,
revela-se uma jovem de caráter independente, resoluta, cujas atitudes demonstram
“certo cunho viril”, conforme o relato de Walter Piazza (apud RAU, 1975, p. 52). Rau
também aponta que o casamento com o sapateiro, ocorrido em 1835, se faz por vontade
da mãe de Anita, possivelmente para aliviar a pobreza da família após a morte do pai
Bento Ribeiro.
Em 1839, quando os farroupilhas conquistam a cidade de Laguna, Manuel parte com
o exército imperial, deixando Anita em casa de amigos na Barra. É nesse local que
Garibaldi a vê desde seu barco e vai à sua procura, iniciando a relação com aquela que
será a sua companheira por dez anos, até a morte dela.
Garibaldi e Anita enfrentam diversos perigos durante a Revolução Farroupilha
(1835-1845) em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, migrando de cidade em cidade e
lutando juntos em inúmeras batalhas. Em setembro de 1840 nasce Menotti, o primeiro
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lutando com intrepidez ao seu lado pelas mesmas causas. Assim, a imagem da brasileira
é de uma mulher guerreira, corajosa e fiel ao seu amado. Assim, Garibaldi constrói a
heroicidade de Anita, elevando-a ao pedestal dos deuses mitológicos:
Na missão de transportar as armas até a orla e no seu retorno à
embarcação, ela talvez tenha realizado vinte vezes o trajeto, cruzando
invariavelmente sob o fogo inimigo dentro de uma pequena barca com
dois remadores [...]. Ela, porém, de pé sobre a popa, no encruzamento
dos tiros, surgia, ereta, calma e altaneira como uma estátua de Palas,
recoberta pela sombra da mão que Deus naquelas horas pousava sobre
mim (DUMAS, 2006, p. 99).
Sabe-se que Atena é a deusa grega da guerra e que o arquétipo de Palas Atena se
refere à mulher que “cria e combate. Está pronta para lutar por suas próprias
necessidades e direitos, para defender conquistas culturais e a dignidade e causas
humanas” (RAPUCCI, 1997, p.70). Ou seja, ela é a deusa da sabedoria e a patrona dos
homens heroicos. Ao comparar Anita à deusa grega, Garibaldi afirma que sua
companheira é uma pessoa que maneja a arte da guerra, sendo conduzida por Deus,
como ele mesmo afirma em seu relato. Desse modo, ao validar a heroicidade de Anita, o
italiano comprova o seu próprio mito de herói.
O que se percebe em vários episódios de Anita descritos nas Memórias é que
Garibaldi edifica a imagem de uma mulher que em pleno século XIX transgride as
regras da sociedade patriarcal e irrompe no espaço público como vencedora. Ou seja,
Garibaldi descreve Anita como uma guerreira, uma mulher familiarizada com o
universo masculino, ambientada no espaço da guerra.
É dessa imagem de Anita construída por Garibaldi que partem os demais
historiadores, especialmente os brasileiros, destacando também a vivência de Anita no
espaço privado, cuidando da casa e da família. Muitos deles asseveram que ela deve ser
louvada como modelo de mulher resignada, pois permanece no ambiente fechado da
casa a espera do marido. Assim, a imagem histórica de Anita Garibaldi é de uma figura
ambígua, uma mulher que transita entre o espaço público e privado.
A questão dessa transitoriedade é retratada nos romances históricos sobre Anita
Garibaldi, sendo que alguns deles corroboram com a criação da figura da heroína
elaborada pelo revolucionário, como ocorre com o romance brasileiro A guerrilheira
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(1979), do mineiro João Felício dos Santos, e outros romances refutam tal construção
mítica, como acontece com Anita cubierta de arena (2003), da argentina Alicia
Dujovne Ortiz.
2. Uma guerrilheira convicta
se supunha que a mulher não tivesse entendimento e, com isso, era proibida de
expressar qualquer comentário, principalmente com desconhecidos. Todavia, Anita
demonstra que a mulher tem capacidade de entender e argumentar tais assuntos,
manifestando uma opinião própria, interpretando a realidade diferentemente dos
homens:
[...] com sua licença, dom Rafael, digo que sou analfabeta mas não
sou burra! Escuto as coisas, tchê! Avalio, peso, raciocino... Se dizem
que sou violenta, não tenho culpa. Nasci assim, ora! [...] se me tenho
metido em entreveros é porque, isso, não tolero. Não posso nem ver.
Não aceito, por exemplo, a escravatura. Não me passa um homem ser
dono de outro homem. Vomito! Infelizmente nós também ainda somos
escravos de um rei... Que coisa é um rei? Um idiota feito ainda mais
idiota pelos ladrões que o rodeiam... (SANTOS, 1987, p. 41).
Nessa fala, a personagem demonstra a sua visão sobre o mundo, a escravidão dos
negros e a tirania do rei como coibição da liberdade do ser humano. Ao tomar a palavra,
Anita também se apropria do universo masculino, pois as mulheres eram proibidas de
falar publicamente e de questionar os homens.
Na luta entre imperiais e farroupilhas, a protagonista faz do campo de batalhas um
espaço familiar e sua atuação é semelhante a de qualquer soldado intrépido. São várias
as cenas que mostram a protagonista combatendo com intrepidez, como no exemplo a
seguir:
Somente no repiquete dos primeiros tiros foi que Garibaldi deu com
Anita, a seu lado, já disparando sua arma nova, e aos gritos de grande
entusiasmo:
- Mirem que não creio em fantasmas, corja de covardes, cascudos de
merda! Venham, sem medo, velhacos governistas! – e atirava... e
matava... Logo, enchia Garibaldi de ânimo – Não te preocupes
comigo, Papin de minha alma! Vá em frente, chico, que esses
porcalhões não são de subir ladeira... – e fuzilava... e derrubava...
(SANTOS, 1987, p. 243).
Assim, João Felício dos Santos ambienta a personagem feminina no espaço público e
masculino, irrompendo nele como vitoriosa, como fosse um espaço familiar à mulher.
Ao corroborar com o mito heroico de Anita, situando-a no universo masculino, o autor
acaba acentuando as características de sua heroicidade, criando uma mulher-
guerrilheira, que se apropria do ambiente público, pois a sociedade o considera como
espaço central e positivo, em detrimento ao espaço privado, que é marginalizado.
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O romance Anita cubierta de arena (2003), da argentina Alicia Dujovne Ortiz, relata
a trajetória de Anita Garibaldi de 1839, quando ela conhece Garibaldi em Laguna, até
1849, quando falece em Madriole. A narrativa inicia-se com o encontro de Garibaldi e
Manuelita Sáenz, a amante de Simón Bolívar, no Peru, durante o segundo exílio do
italiano. No primeiro capítulo do romance é relatado esse encontro, no qual Manuelita
pede ao revolucionário que lhe conte a história de Anita. Entretanto, a vida de heroína
brasileira é narrada a partir da perspectiva feminina, ou seja, não é o relato de Garibaldi
que o texto apresenta, mas sim a “visão” de Manuela, ou melhor, a interpretação que ela
faz da narração do italiano.
Nesse sentido, a ênfase não será os atos públicos de Anita, mas os conflitos interiores
de uma mulher inserida na sociedade patriarcal do século XIX. A narradora1 não
recupera os feitos heroicos de Anita que Garibaldi perpetuou em suas Memórias. Ela
apresenta uma personagem em conflito, transitando entre os espaços público e privado e
apresenta argumentos contrários aos do italiano em suas Memórias ao relatar a
“heroicidade” de Anita.
Por exemplo, na luta naval entre imperiais e farroupilhas, Anita transporta as armas
das embarcações para a praia. Garibaldi em suas Memórias afirma que ela fez o trajeto
em pé na barca “ereta, calma e altaneira como uma estátua de Palas” (DUMAS, 2006, p.
99), elevando-a ao patamar dos deuses guerreiros e sublinhando que ela é guerreira nata
e que luta pelos mesmos ideais que os seus.
Contudo, a narradora de Anita cubierta de arena, ao se referir ao mesmo fato,
oferece uma leitura distinta para a atitude destemida de Anita: “Anita en el bote no va
remando ni sentada [...] ella va parada en la proa. Así muestra que puede, así convence a
José de que es capaz” (DUJOVNE ORTIZ, 2003, p. 49). Ou seja, a personagem não
enfrenta a guerra porque é uma mulher destemida, que luta pelas causas nobres, mas
para provar ao seu companheiro que pode segui-lo sem ser uma carga para ele levar. A
1
Por o foco narrativo e a perspectiva serem femininas, acredita-se que a narração seja proferida
por uma mulher.
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personagem não adentra o espaço público para fazer dele o seu lugar e sim só para estar
ao lado do homem que ama. Assim, o romance desconstrói o discurso de Garibaldi e a
imagem de Anita que ele elaborou nas Memórias.
O romance Anita cubierta de arena tira Anita do pedestal de heroína no qual ela é
ovacionada, e dá-lhe dimensões humanas ao mostrar uma mulher interessada com sua
vida amorosa:
Garibaldi ya ha conocido en Sudamérica a más de una. Todas han
hecho lo contrario. Mujercitas finas. […] El que Anita invierta las
cosas lo toma de sorpresa. Rato después, la criolla y el gringo se
pierden tras las cabañas de pescadores.
Si de algo sabe Anita es de necesidades. La de él la imagina, la suya la
conoce. Así que ha elegido un lugar amistoso para hacer lo que deben:
una playita redonda y protegida por unas piedras romas del color de la
carne (DUJOVNE ORTIZ, 2003, p. 21).
A personagem tem uma sexualidade próxima da mulher do século XX, do que a de
sua época, pois ela não vê tabu na sexualidade feminina. Segundo Bataille (2004, p. 46),
o erotismo “está na consciência do homem, o que faz com que ele seja um ser em
questão”. Em outro momento do livro, Bataille afirma que, por causa do erotismo, o
sujeito “se perde” para se identificar com o objeto de desejo.
Na busca de sua identidade, são vários os papéis desempenhados pela personagem
Anita no romance de Dujovne Ortiz, cada qual modificando sua imagem: “Para Rio
Grande do Sul había sido una famosa guerrillera. Para Montevideo, nadie. Para Itália
era la mujer del héroe del que los diarios se hacían lenguas desde que él peleaba junto a
ella en Rio Grande do Sul” (DUJOVNE ORTIZ, 2003, p. 151). Todavia nenhuma
dessas funções a completam. Elas são apenas representações exteriores.
No Uruguai, Anita é proibida, veladamente, de acompanhar Garibaldi na guerra.
Enquanto espera a volta do marido, a personagem passa o tempo cuidando da casa e dos
filhos, questionando sua própria identidade. Na vida que leva em Montevidéu, ela
encena algo que não se conforma com sua personalidade:
[…] los trajes inventados por su marido eran como aquellas calzas
marrones y aquel sombrero calabrés por los que ella aún suspiraba.
Nunca había sido tan Anita como disfrazada de soldado […] ¿Pero
ahora quién era Anita? No requería grandes búsquedas la imagen que
se le había pegado encima. Nada más fácil de hallar que el atavío de
mujer cualquiera, apagada, modesta, pobre (DUJOVNE ORTIZ, 2003,
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p. 128).
A protagonista também não encontra sua identidade no espaço privado, no papel de
dona de casa que a sociedade lhe impunha. O que mais se aproxima a ela é o “disfarce
de soldado”, isto é, aquilo que deveria ser apenas uma máscara, uma encenação, é na
realidade algo que se associa à sua identidade.
Ao final de sua vida, ao acompanhar Garibaldi e os legionários na fuga em Roma, ela
corta o cabelo e se veste como homem, encontrando a sua identidade em Garibaldi:
No es la primera vez que Anita está junto a José, frente a los otros,
pero sí la primera que aparece como una versión de José, con su
mismo sombrero de alas blandas y de penacho negro. Un José hombre
y una José mujer. Un José de dos cabezas. No por doblez como
Canabarro: por amor (DUJOVNE ORTIZ, 2003, p. 205).
Depois de procurar sua identidade no papel de guerreira, de dona de casa, de soldado
valente ou de mãe e esposa, a protagonista logra o seu intento ao se tornar uma versão
feminina de Garibaldi, uma espécie de duplo ou de andrógino.
Conforme os estudos feministas (Cf. CASTELLO BRANCO & BRANDÃO, 1989,
p. 125-126), no movimento em busca de identidade fora de si mesma, na maior parte
das vezes, a mulher identifica-se com o objeto amado, ou seja, o homem. Ela se
conforma com tal situação como algo natural e sem buscar outras opções. É justamente
o que ocorre com a protagonista de Anita cubierta de arena: ao buscar identidade fora
de si, ela acredita que é a complementação de Garibaldi e se realiza por ser uma versão
feminina de seu amado.
A Anita de Dujovne Ortiz é uma personagem que transita entre os âmbitos aberto e
fechado, mas não consegue se fixar em nenhum deles. O romance nega a imagem
histórica de Anita elaborada por Garibaldi ao apresentar uma mulher mais carnal,
preocupada com assuntos femininos e que não se molda ao protótipo de guerrilheira.
Contudo, a protagonista não consegue se desligar do herói italiano, ao contrário, ela se
anula para ser uma versão de Garibaldi, diluindo sua identidade na imagem de seu
amado.
Considerações finais
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Referências
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. FARES, Cláudia. São Paulo: Arx, 2004.
BORBA, Francisco S. (Org.) Dicionário UNESP do português contemporâneo. São
Paulo: UNESP, 2004.
CASTELLO BRANCO, Lúcia; BRANDÃO, Ruth S. A mulher escrita. Rio de Janeiro:
Casa-Maria Editorial: LTC-Livros Técnicos e Científicos, 1989.
DUMAS, Alexandre. Memórias de Garibaldi. Trad. CARUCCIO-CAPORALE,
Antonio Caruccio-Caporale. Porto Alegre, L&PM, 2006.
DUJOVNE ORTIZ, Alicia. Anita cubierta de arena. Buenos Aires: Alfaguara, 2003.
RAU, Wolfgang L. Anita Garibaldi. O perfil de uma heroína brasileira. Porto Alegre:
Edeme, 1975.
RAPUCCI, Cleide A. “Exposta ao vento e ao sol”: a construção da personagem
feminina na ficção de Angela Carter. Tese. 380 f. (Área de Teoria Literária e Literatura
Comparada) – UNESP-Assis, 1997.
SANTOS, João F. A guerrilheira: o romance da vida de Anita Garibaldi. São Paulo:
Círculo do Livro, 1987.
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Introdução
Fernando Aínsa (1991, p. 83), em seu artigo “La nueva novela histórica
latinoamericana” aponta como característica do romance histórico, entre outras, a
releitura da história para “dar un sentido y una coherencia a la actualidad desde una
visión crítica de la convivencia”. Neste trabalho, destacam-se os romances A
guerrilheira (1979), do brasileiro João Felício dos Santos, e Anita Garibaldi (2003), do
argentino Julio A. Sierra, como releituras das Memórias de Garibaldi (1860), a base da
construção da identidade da heroína brasileira Anita Garibaldi.
1. Anita Garibaldi
“Virgem criatura, tu serás minha!” (DUMAS, 2006, p. 91), iniciando, assim, a relação
com aquela que será sua companheira pelos próximos dez anos, até a morte dela.
São inúmeros os episódios vividos por Garibaldi e Anita durante a campanha dos
farrapos. Em 1841, já com um filho, o casal se muda para Montevidéu, onde Garibaldi é
convocado a auxiliar o exército uruguaio na luta contra o ditador da Argentina, Juan
Manoel Rosas, e Anita é obrigada a ficar na casa, cuidando dos filhos – Garibaldi e
Anita têm mais três filhos no Uruguai, sendo que uma falece de difteria.
Em 1848, a família Garibaldi vai para a Itália. O revolucionário se engaja na luta pela
unificação do país e Anita vai ao seu encontro em algumas ocasiões. A última vez
ocorre em junho de 1849, quando o exército francês impõe um cerca à cidade de Roma,
obrigando os legionários a fugirem em direção ao mar Adriático. Anita falece em
Madriole em 04 de agosto de 1849. Garibaldi consegue se exilar na América pela
segunda vez, mas retorna ao seu país, consagrando-se herói por conseguir a unificação
italiana.
2. As “memórias” do herói italiano
descrita como uma heroína corajosa como qualquer soldado intrépido e que se destaca
nos combates por suas iniciativas e ousadia. Contudo, elementos que poderiam denegrir
a imagem de Anita, e assim a sua própria, Garibaldi os omite nas Memórias como o fato
de sua companheira ter sido casada com outro homem antes de se conhecerem, entre
outros. Esses dados são revelados posteriormente pelos historiadores, especialmente
brasileiros, quando buscam obter mais informações sobre a “heroína dos dois mundos”,
embora em todos os livros permaneça o caráter heróico construído por Garibaldi para
sua companheira.
Quando é publicada a versão de Alexandre Dumas em 1860, Garibaldi já é
considerado o herói da unificação da Itália. Nessas Memórias, Anita é descrita como
uma mulher valente e digna de lutar ao lado de seu companheiro, bem como de ser uma
esposa leal. Assim, Garibaldi é o responsável pela edificação da personagem histórica
Anita, cuja imagem será reproduzida pela história.
Por isso, nas suas Memórias, ele toma o cuidado de omitir todo detalhe ou episódio
que possa denegrir a imagem dela e, consequentemente, a sua também. Anita é
construída como uma autêntica heroína romântica que acompanha Garibaldi pelas lutas
republicanas, combatendo ela também pelas causas dele, não demonstrando medo frente
ao perigo, sendo uma mulher fiel no amor e nas armas.
Nos trechos das Memórias sobre os atos de Anita, pode-se dizer que o objetivo de
Garibaldi seja demonstrar que ela era uma mulher intrépida e combativa, que luta como
qualquer soldado, que tem iniciativa e encoraja os próprios soldados para a luta: “[...]
minha corajosa Anita já começara a canhonada. Ela mesma apontava e disparava a arma
que se encarregara de dirigir e exortava com palavras os nossos homens algo
temerosos” (DUMAS, 2006, p. 97).
Garibaldi não apenas se contenta em dizer que Anita é corajosa e guerreira,
descrevendo seus feitos na guerra. Ele lança mão da comparação, elevando sua imagem
ao patamar dos deuses, a quem os perigos dos combates não causam dano algum:
Nesse momento, Anita não é um ser humano, mas sim um ser mitológico, que passa
incólume sob o tiroteio, na função de auxiliar a tropa farroupilha em sua retirada. Se a
ocasião da saída dos farrapos da cidade de Laguna é de desonra para eles, essa fuga é
dignificada no relato de Garibaldi pela ousadia de sua companheira.
Mesmo quando Anita é capturada pelos imperiais na batalha de Curitibanos,
Garibaldi encontra uma maneira de defendê-la, utilizando argumentos que a descrevem
como uma heroína que não abandona seus companheiros de luta para salvar-se somente
a si mesma:
Excelente amazona e montada num admirável ginete, Anita poderia
ter disparado e escapado àqueles cavalarianos; porém, o seu peito de
mulher encerrava um coração de heroína. Em lugar de fugir, ela tratou
de exortar os nossos soldados a defenderem-se, achando-se de súbito
rodeada pelos imperiais. (DUMAS, 2006, p. 120)
Garibaldi garante, assim, que não é um descuido ou fraqueza de Anita que a leva a
ser capturada, mas é algo honroso que ela faz em não fugir, incentivando os soldados
para a defesa, o que resulta em seu aprisionamento.
Em todas as cenas das Memórias em que Anita aparece, o que se percebe é a
elevação de sua pessoa como uma heroína corajosa, comparada inclusive a uma deusa
grega, e também fiel ao seu companheiro e aos seus ideais. Em seu relato, Garibaldi
instaura o mito do heroísmo de Anita que será repetido e ampliado por outros autores e
historiadores.
3. A donzela-guerrilheira
passando por vários acontecimentos que ela vive ao lado de Garibaldi durante a Guerra
dos Farrapos até a sua partida para o Uruguai.
A narrativa é dividida em duas partes. A primeira, intitulada “A terra”, trata da vida
da personagem em Morrinhos, Santa Catarina, no período anterior ao surgimento de
Garibaldi em sua vida: são apresentados os fatos de sua juventude, o casamento com
Manuel Duarte e a posterior separação. A função dessa parte é enfatizar o caráter
guerreiro, contestador e dominador de Anita, que não se deixa levar pelo senso comum
e impõe os seus desejos. Destaca, também, episódios de sua infância através da
lembrança de outras personagens, nos quais se evidencia o seu lado combativo –
denominado “rebelde” pelas pessoas que a rodeiam.
Já a segunda parte do romance, “A Guerra”, narra a trajetória de Anita desde o
momento da chegada de Garibaldi a Laguna até a partida do casal para o Uruguai. Se a
primeira parte tem como objetivo a construção do caráter da personagem, a segunda
parte abarca os episódios que fazem dela a heroína que a história exalta. A sua bravura
se manifesta plenamente com a sua entrada nas tropas farroupilhas, lutando por seus
ideais ao lado de seu ídolo.
Em La nueva novela histórica de la América Latina (1993), Seymour Menton aponta
várias características dos romances históricos contemporâneos. Entre elas pode-se citar
a impossibilidade de conhecer a realidade histórica, pois o que ficou do passado são
vestígios – relatos, memórias, fotos, textos, entre outros – que são interpretados
conforme a ideologia da época ou das pessoas que investigam tal assunto. A visão que
se tem da personagem histórica Anita Garibaldi não foi a mesma desde sempre. No
século XIX, especialmente na região em que morava em Santa Catarina, ela era vista
como uma mulher adúltera, rebelde, que lutava contra o regime de seu país. A imagem
dela como heroína surge no Brasil após a Proclamação da República, quando os
historiadores da época passaram a buscar na história aqueles que lutaram por essa forma
de governo.
Walnice N. Galvão (1998, p. 83), ao tratar das mulheres brasileiras que se engajam
nas guerras como soldados, afirma que elas “mostram o desejo bastante compreensível
de invadir uma área vedada à experiência feminina, área que, em momentos de grandes
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Somente no repiquete dos primeiros tiros foi que Garibaldi deu com
Anita, a seu lado, já disparando sua arma nova, e aos gritos de grande
entusiasmo:
- Mirem que não creio em fantasmas, corja de covardes, cascudos de
merda! Venham, sem medo, velhacos governistas! – e atirava... e
matava... Logo, enchia Garibaldi de ânimo – Não te preocupes
comigo, Papin de minha alma! Vá em frente, chico, que esses
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4. Anita Garibaldi
Essa afirmação comprova o que o narrador de Anita Garibaldi relata: que o italiano
se opôs primeiramente que Anita deixasse a cidade para segui-lo nas lutas, mas que no
final ele cede e fica feliz com a decisão dela.
No romance, Garibaldi titubeia em levar Anita no barco, mas ela não vacila nem um
segundo em firmar a sua decisão e ser irredutível, porque não tem a mesma opinião da
sociedade de que guerra é lugar e assunto somente para homens. Na ocasião da partida
dos barcos de Laguna, ela aparece como dona de suas vontades e capaz de ir em busca
de seus ideais, mesmo sem o marinheiro farroupilha, como ela mesmo lhe diz:
assunto e lugar de homens. Essa é uma barreira que Anita tem que derrubar para se
fazer merecedora de ficar ao lado de Garibaldi.
Anita não só tem potencial para aprender as artimanhas de luta, como é dotada de
iniciativa, uma habilidade importante em todas as tarefas, especialmente nas guerras
quando se é surpreendido pelo inimigo. Aliás, a personagem já havia sido descrita como
uma pessoa resoluta, quando resolve denunciar o homem que tentou violentá-la. Outra
aptidão necessária é incentivar os soldados para o combate, pois homens cheios de
temor é um passo para o fracasso da luta. A protagonista de Anita Garibaldi possui
todos esses talentos, como se percebe no trecho abaixo, quando o narrador relata que o
barco de Garibaldi foi surpreendido pelos imperiais nos arredores do porto de
Paranaguá:
Fue Anita la que dirigió el ataque con los fusiles. Ella misma dio la
orden de disparar, aun cuando el capitán todavía no había dado las
señales necesarias. El instinto de ella le indicó cuándo era el momento
preciso.
- ¡Disparen! ¡Disparen! – alentaba ella a sus hombres –. Debemos
sostener la posición. (SIERRA, 2003, p. 118)
-
Anita é uma mulher que tem instinto para saber o momento de atacar, mesmo que o
comandante não tenha dado a ordem precisa. Como um soldado competente, ela auxilia
a tropa no combate, o que acentua a sua imagem de guerreira, aquela que incita à
guerra. A narração desse fato é congruente com aquilo que Garibaldi relata a Alexandre
Dumas: “a minha corajosa Anita já começara a canhonada. Ela mesma apontava e
disparava a arma que se encarregara de dirigir e exortava com palavras os nossos
homens algo temerosos” (Dumas, 2006, p. 97). Percebe-se que o italiano cria, em suas
Memórias, a imagem de Anita como uma heroína corajosa e destemida; imagem essa
que será transposta para o romance de Julio Sierra. Os mesmos fatos relatados por
Garibaldi a Dumas serão narrados em Anita Garibaldi, sem grandes mudanças no
conteúdo.
Conclusão
fiel ao seu marido e às causas pelas quais ele luta. Nesse sentido, as obras corroboram
com o mito heroico de Anita, reafirmando o relato do revolucionário italiano.
Referências
RAU, Wolfgang L. Anita Garibaldi. O perfil de uma heroína brasileira. Porto Alegre:
Edeme, 1975.
SIERRA, Julio A. Anita Garibaldi. Guerrillera en América del Sur, heroína de la unidad
italiana. Buenos Aires: Sudamericana, 2003.
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Fernanda Burgath
fergath19@yahoo.com.br
Introdução
1. Inspiração e Técnica
Eis aqui um grande paradoxo surgido desde os conceitos de arte propostos por Platão
e Aristóteles. Enquanto para este a arte resulta de uma intenção racional e se realiza por
meio da técnica, prezando a organização, os detalhes da escrita e da perfeição,
considerando, portanto, essa criação como trabalho artesanal; para aquele, a arte
acontecia como resultado da inspiração, representada pela noção de que o poeta, no
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momento da sua criação artística, era tomado por um estado divino, arrebatado por um
verdadeiro delírio provocado por uma Musa, e de onde lhe vinha a inspiração criadora.
Em Íon (PLATÃO, 2007), Sócrates dialoga com o próprio Íon, um rapsodo, sobre
essa inspiração. No caso de Íon, a Musa seria representada por Homero, “o melhor e
mais divino dos poetas” (p. 22). Sócrates fala que os poetas inspirados são os
verdadeiros poetas, diferentes dos outros, os poetas que se utilizam dos jambos e dos
ditirambos, representando aqui a técnica. E declara a Íon que “de acordo com isso,
recebe, a nosso ver, o melhor para ti, Íon: ser divino mas não habilidoso no se mostrar
sobre Homero”. (p. 53).
É conhecida esta passagem inequívoca de Íon, em que Platão afirma, pela boca de
Sócrates:
“[...] o poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar até que
se torne inspirado e fora de si, e a razão não esteja mais presente nele.
Até conquistar tal coisa, todo homem é incapaz de poetar e proferir
oráculos. [...] poetam e falam muitas e belas coisas [...] não por arte,
mas por uma porção divina [...] aquilo para o que a Musa o lançou
[...]. (p. 33-34)
O interesse pela técnica, por sua vez, produziu, ao longo da história da arte, um
conjunto de regras úteis ao projeto e à execução da obra. Essa tradição normativa surgiu
das aplicações da geometria e das regras de percepção e proporção nas artes plásticas e
na arquitetura. Na música, a arte também pode ser codificada em números, pelo tempo
de suas notas, da divisão dos compassos, do ritmo. Na arte literária, estudos sobre a
técnica surgiram a partir da retórica, já nos tempos de Aristóteles.
Quanto às concepções de Aristóteles, é bastante esclarecedora a apresentação de
Lubomir Dolezel que, em seu livro A poética ocidental: tradição e inovação
(DOLEZEL, 1990), assim resume esse aspecto do pensamento aristotélico:
[...]
Augusto dos Anjos mostra o sujeito lírico tomado pela inspiração, fenômeno que
tenta representar não como uma força abstrata e divina, mas como um processo
biopsíquico, cerebral, e para tanto o poeta traz a ciência para dentro dos seus versos.
Carlos Drummond de Andrade também faz parte do grupo de poetas que buscam
explicar através da própria poesia o fazer poético, essa procura pela “fórmula” para se
escrever uma boa poesia - por mais que se saiba que esta dificilmente será encontrada.
Em poemas como Consideração do poema e Procura da poesia, ambos do livro A Rosa
do Povo, (In: ANDRADE, 1992), Drummond desenvolve uma reflexão sobre o fazer
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poético, descrevendo, como que numa “receita”, a maneira de trabalhar a linguagem na
criação dos poemas, dizendo que um belo poema não precisa necessariamente obedecer
às imposições das rimas e de forma predeterminada. Para ele, os poemas não devem ser
escritos num ímpeto inconsciente da emoção e, sim, após a escolha e combinação
artisticamente adequada das palavras.
Segundo uma análise feita por Francisco Achcar, sobre o poeta mineiro, o que
constitui a sua poesia não são os acontecimentos, nem os sentimentos e os sonhos, mas
sim, “o profundo trabalho com a linguagem” (ACHCAR, 1993, p. 23). O segredo de
Drummond é o tempo em que o poema é construído. Eis o fragmento de Procura da
Poesia, que confirma tal observação:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
Há calma e frescura na superfície inata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
Com seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o.
Como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
No espaço.
(ANDRADE, 1992, p. 96-97)
É interessante observar que, fora dos poemas, Drummond também discutia questões
estéticas e técnicas do fazer poético, como se pode conferir na longa e preciosa
correspondência trocada com Mário de Andrade – a quem reconhecia como seu mestre.
Certa vez, ao escrever um texto para a Revista Acadêmica, intitulado Autobiografia
para uma revista (In: ANDRADE, 1992), Drummond fez estas afirmações, que podem
servir de feixe conclusivo das várias abordagens teóricas e metapoéticas aqui
brevemente apresentadas:
Conclusões
Inspiração e técnica estão ligadas entre si, quando falamos de poetas e poesia. E a
boa arte, o poema digno de louvor, no dizer de Horácio, só se realiza na conjugação das
duas. Tanto será objetiva a poesia na proporção em que a mensagem do poeta consiga
ser transmitida àquele que o lê. E como disse Flaubert, “quanto mais uma ideia é bela
tanto mais a frase é harmoniosa. A exatidão do pensamento faz a exatidão da palavra”.
(Apud ABBAGNANO, 1998, p. 771). Isso significa que de nada serve a ideia inspirada
do poeta se não há beleza em sua escrita, se não há forma em seus versos, ou mais: se
não há arte. Por sua vez, a técnica, sem ser animada por viva emoção estética, é vazia,
vira mero tecnicismo, e não se realiza como uma obra artisticamente bela.
Podemos afirmar que não se deve levar em consideração somente a beleza estética do
poema, mas sim, a comunicabilidade expressa, na proporção que, enquanto é belo é bem
interpretado pelo seu leitor, que o acolhe e o transforma como sendo seu, como
expressão de suas próprias experiências. Tem de ser carregada de significação no seu
máximo grau possível.
Além da beleza da forma e a comunicabilidade, um poema deve ser expresso de
maneira original. Cada poeta tem a sua marca de acordo com o seu estilo. Vários poetas
expressaram-se sobre tal ponto, desde a antiguidade, pode-se afirmar que já desde
Homero, e de Horácio, ao próprio Maiakóvski, João Cabral, e estudiosos como Jung e
Dufrenne, para citar alguns dentre tantos outros que aqui não foram estudados.
E como já dito anteriormente, sabemos que o tempo é algo indiscutível para se obter
a perfeição da obra. Guardar o texto, o rascunho, o poema na gaveta, retê-lo até que se
tenha a certeza de que está em sua forma perfeita e definida, pronto para o seu devido
consumo. Em Dufrenne, vemos que “fazer é sempre desfazer e refazer, e antes de tudo
julgar: na medida em que compõe, o poeta é seu primeiro leitor e abre caminho a
outros” (1969, p. 129).
Sobre a análise das obras e dos poetas, trabalho destinado à crítica literária e à crítica
genética, podemos dizer que a única coisa de possível descoberta é o caminho que o
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poeta seguiu na escrita de sua obra. Ninguém melhor que um poeta para afirmar que “o
poeta goza desse incomparável privilégio de poder, à sua vontade, ser ele mesmo e
outro”, palavras ditas pelo poeta Baudelaire (Apud Bosi, 1983, p. 144).
Assim, podemos concluir que toda obra de arte, bem como todo artista, ligado à sua
intenção, são total e unicamente subjetivos. E a partir dos dois pressupostos, técnica e
inspiração, o poeta contemporâneo deve ligar o seu conhecimento e a sua
expressividade, construindo o seu estilo, buscando unicidade e compondo de maneira
original e cuidadosa a sua obra poética.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Volume único. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1992.
ANJOS, Augusto dos. Eu, outras poesias. 30ª edição. Rio de Janeiro: São José, 1965.
BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Volume único. Rio de Janeiro: José
Aguilar, 1974.
BILAC, Olavo. Poesias. 29. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poética: como fazer versos. 2ª edição. São Paulo: Global,
1977.
MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Volume único. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994.
SALLES, Cecília Almeida. Crítica Genética: uma (nova) introdução. 2ª edição. São
Paulo: EDUC, 2002.
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Introdução
Não é por acaso que Clarice se debruça sobre uma prosa abstrata para o
desenvolvimento de seu livro. Ela, Pollock e muitos outros artistas do século XX,
entenderam que o discurso pautado pelo abstrato seria o mais apropriado para responder
às necessidades do homem nesse momento de sua história. Muito mais do que negar
uma forma concreta de representação, os meios dispostos nas telas e no texto em
questão, revelam-se importantes em si mesmos, com significados independentes de
identificação, senão aquela que sua mera presença insinua. A subjetividade do autor
dilui-se na subjetividade do próprio objeto artístico, ao mesmo tempo em que a
abstração, nas tendências entrelaçadas ao figurativismo 1. Evidencia-se assim o diálogo
entre os autores, através da (re)criação que objetiva capturar o movimento da ação, o
instante, que independe da noção convencional de tempo para ambicionar a
permanência de um estado presente.
A fase áurea de produção de Pollock abriga as telas realizadas entre 1947 e
1951, período de experimentações, responsável pela criação do termo que nominaria a
vanguarda do “Expressionismo Abstrato” por parte de Harold Rosenberg, entre 1951-
52, assim como da expressão Action Painting (pintura em ação), atribuída a Pollock
pela maneira como ele pintava suas telas (destaque para a utilização do Dripping). A
Action Painting está tão fortemente vinculada ao ‘fazendo’ da tela que se torna difícil
compreendê-la sem ter em mente o momento criativo do pintor, o instante de vida em
que ele se debruçou e registrou na matéria da tela a ação de seu corpo, o envolvimento
de si próprio com a criação, a um ponto em que se tornam indissociáveis. Isso, porque a
obra representante do Expressionismo Abstrato acumula valor não só de objeto
finalizado, mas de acontecimento em andamento, como se na visualização da imagem
1
Picasso foi um dos primeiros a negar a condição de perda da figuração na arte abstrata, pois a imagem,
por mais fugidia que seja, não pode fugir da superfície de uma tela. Sobre o assunto ver o artigo de
Robert Kudielka: Abstração como Antítese (1998).
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estivesse disposta não somente uma representação do, e, pelo autor, mas, ele, nela se
apresentasse.
Buscando ultrapassar os limites contextuais do que Rosenberg e outros teóricos
exploraram no trabalho de Pollock na época mesma de sua criação e em meio às
exposições e divulgação dos quadros, encontramos em T. J. Clark, o ensaio Em Defesa
do Expressionismo Abstrato (1994), lugar em que o legado de Pollock e dos demais
artistas daquela vanguarda é analisado com o devido e mínimo distanciamento histórico
e precisão crítica. O historiador da arte, preocupado em avaliar os ideais da vanguarda
sob o primado hegeliano da ‘arte como passado’, consegue revitalizar a discussão que o
Expressionismo Abstrato motivou durante décadas, sob a nova e necessária ótica de
uma aceitação do objeto de arte como um elemento de passado, desencantado. São
inúmeras as problemáticas de Clark para provocar o pensamento sobre a arte nesse
texto, mas queremos nos deter, por questões práticas, apenas à sua conclusão, àquilo
que realmente parece motivar o autor há tantos anos passados ainda suscitar um debate
que urge ser levantado pelo pensamento contemporâneo das artes.
Suas palavras finais (CLARK, 2007, p. 37-38) concluem que o Modernismo,
mesmo nas experimentações e desconstruções voltadas para um adensamento formal da
arte, não abandona a identificação entre a Arte e o lírico. Tal afirmação exige uma
postura que observe a Modernidade sob o primado da subjetividade, do ponto de vista
pessoal, ininterrupto e absoluto que o indivíduo criador se permite imprimir em sua obra
(características que se encontram na definição de Clark para o conceito de ‘lírico’). Essa
reflexão não poderia ser tão facilmente aplicada se estivéssemos lidando com objetos
mais próximos dos dias atuais, pois como ele bem observa, “no mundo de hoje, o lírico
é profundamente ridículo. E o profundo ridículo do lírico é precisamente o tema do
expressionismo abstrato, ao qual ele retorna como uma língua a um dente amolecido.”
O século XX, com suas transformações e fragilidades, constitui-se num cenário
perfeito para o que autores como Pollock e Clarice problematizam através de suas obras
e da maneira como se dá a criação das mesmas, pois é na plenitude da expressão que
cada um deles subjetivará sua vivência interior. A crise do homem moderno, seja com
sua individualidade ou com o mundo, vem encontrar na arte o lugar de liberação do
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O mesmo autor, em O Estado do Espetáculo (2005) aponta o ‘desencantamento do mundo’ como um
aspecto síntese da Modernidade. A expressão originalmente utilizada por Max Weber, que por sua vez
se valeu de Schiller, sustenta uma promessa pessimista e exultante de um mundo sem falsas crenças.
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Pollock sob o aspecto da particularidade sensível nos parece o ponto de partida ideal
para que características mais profundas sejam apontadas na relação entre esses autores.
Para um melhor esclarecimento do que iremos abordar a partir daqui, convém
exemplificarmos uma parte de cada obra. Assim, dispomos um dos quadros de Pollock
mais representativos de sua fase expressionista abstrata áurea (1947-1951), um dos
primeiros desse período e, na verdade, selecionado quase aleatoriamente dentro do
grupo, pois qualquer exemplo seria útil à nossa problematização; conjuntamente, alguns
fragmentos extraídos de Água Viva (1973), em notável coerência com o estilo do pintor,
pela descrição direta da narradora em ‘coincidentes’ achados visuais:
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor
em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o
instante. É também com o corpo todo
que pinto os meus quadros e na tela fixo
o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo
mesma. (p. 11)
3
Óleo sobre tela, pregos, tachas, botões, chaves, moedas, cigarros, fósforos, etc., 129,2 x 76,5 cm.
New York, The Museum of Modern Art, doação de Peggy Guggenheim. Disponível em
<http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/pollock/fathom-five/pollock.fathom-five.jpg> Acesso em 25
ago 2009.
4
Sobre a sensibilidade que Clarice Lispector teve para com as artes plásticas é interessante observar a
obra que a própria autora deixou como pintora. Entre 1975-1976 (pouco depois do lançamento de Água
Viva) Clarice pintou uma série de 16 quadros que oscilam justamente entre o expressionismo e a
abstração. Não tomamos a produção pictórica de Clarice Lispector como objeto deste artigo por
acreditarmos que na ‘intencionalidade’ da relação com Pollock, dentro da proposta intersemiótica como
a fizemos, o universo de Água Viva possa ser melhor analisado.
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2. Nominação
encontra-se na ação de criar que cada autor desenvolve, no processo, pois o embate
entre corpo e obra (palavra/imagem) já se configura como uma certeza irreversível no
tocante ao universo estilístico de cada exemplo; o segundo, mais atraente para nós,
situa-se na devida apreensão de cada obra, ou seja, no objeto final resultante da primeira
ação criativa mencionada. As palavras de Clarice nas páginas 30, 47 e 79, como
transcritas, funcionam quase como uma descrição da tela ao lado, sendo importante
repetir: aí apontamos apenas alguns dos trechos que Água Viva se permite a essa relação
e, segundo, essa é apenas uma das inúmeras telas de Pollock que poderiam ser aqui
utilizadas para visualização. A convicção intersemiótica daí derivada é o que facilitará o
vislumbre do ‘real’, do mundo que não fugiu à abstração dessas obras, mas antes,
penetrou-lhes mais fundo para se transfigurar.
A relação entre as palavras de Clarice e as tintas de Pollock comprova que
ambos os autores trabalharam o objetivo de capturar o movimento através de uma
intensificação do nível da linguagem e da valorização que cada suporte pode oferecer
para externar suas subjetividades. Com isso, percebemos que as referências externas
utilizadas para a criação de uma obra não devem simplesmente conduzir o ideal estético
ao mundo e ao que há fora da obra, mas sim levar ainda mais fundo ao interior do objeto
de arte em questão. O valor de reflexão moderno vem romper a pura imanência da
forma (ADORNO, 2003), atribuindo ao caráter negativo, pois subjetivo, da estética
recente, ecos positivos que parecem discordar da temida e infundada possibilidade do
fim das artes.
Ao explorar os reflexos da fusão autor/obra e a conseqüente negatividade
surgida pela ênfase ao subjetivo do autor, Hans-Georg Gadamer ressalta como resultado
positivo o trabalho de elaboração ativa, outorgado aos que contemplam um objeto de
arte moderno. Quando questiona a poesia hermética, característica do último século, é
verdade, ele a identifica como num “limite do compreensivo”, caracterizada pelo
“trágico emudecimento no indizível” (GADAMER, 1985, p. 19); mas conclui
semelhantemente ao paradoxo da consciência benjaminiano, restabelecendo ao ato da
reflexão intensificada um novo valor estético à obra moderna. Debruçando-se sobre o
pensamento estético da maneira como ele se formou a partir das teorias de Hegel,
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Conclusão
É com o corpo que Clarice lida em sua obra, numa espontaneidade sensual que
provoca, evoca e invoca todos os sentidos a um diálogo com as artes e a vida. O
‘crescendo’ da narrativa atinge o ponto da indistinção entre a autora e a obra,
exatamente como as telas de Pollock estabelecem uma continuidade ao homem, numa
espécie de extensão física e emocional, que marca na imagem sua ausência,
presentificando-a. O detalhe subjetivo, ecoando e concordando sempre com o primado
da particularidade sensível multiplica-se, nestes artistas, acariciando a sensualidade da
linguagem e dotando-a com uma sutil capacidade de dar a ver naquilo que não é visível
a olho nu. Após a observação da equivalência escritural entre o livro e a Action
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Fernando de Moraes Gebra (UFPA)
1
Queremos registrar nossos agradecimentos à FADESP (Fundação de Amparo e Desenvolvimento da
Pesquisa) pelo financiamento das passagens aéreas do docente-autor, viabilizando sua participação no 1º
CIELLI (Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários)
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o conjunto de elementos transmitidos, formando esses padrões presentes em um sistema
social (2007, p.26).
A epistemologia historiográfica de Antonio Candido recebeu notações críticas de
Afrânio Coutinho, sobretudo no que diz respeito à configuração do sistema literário.
Este último discorda que o processo formativo da literatura brasileira esteja ligado aos
últimos árcades e às academias do século XVIII, propondo, em seu turno, que a nossa
literatura começa a se formar a partir do momento em que o primeiro português chegou
ao Brasil e encontrou por aqui outro espaço, outra situação climática, desenvolvendo
outras necessidades, novos cantares e novas maneiras de expressão, diferentes dos
portugueses que ficaram em Portugal (2008, p.15). Coutinho argumenta que o instinto
de nacionalidade, que definiria o escritor, na expressão de Machado de Assis, como
homem do seu tempo e de seu país, já estaria presente no barroco crioulo de Gregório
de Matos Guerra (2008, p.55-6). Dessa forma, Coutinho acusa Candido de confundir o
período de formação da literatura brasileira com a autonomia que começa a ser
esboçada com os últimos árcades (2008, p.57).
Embora Coutinho forneça contribuições importantes para o estudo do fenômeno
literário, como o conceito de periodização estilística, no lugar das velhas periodizações
centradas em elementos cronológicos e políticos, ou ainda, questões de nacionalismo
literário, sobretudo em uma perspectiva histórica que discute os projetos do românticos
e dos modernistas, discordamos da idéia de barroco crioulo presente na poesia de
Gregório de Matos. No século XVII, é muito mais válido utilizar a expressão “literatura
comum”, proposta por Candido (2007, p.30), do que verificar elementos de
nacionalidade brasileira quando não éramos um país independente. Há apenas alguns
talentos literários isolados como Gregório de Matos e Padre Antônio Vieira, com
experiências tanto em Portugal como no Brasil, além de uma escassez na divulgação das
obras e um público restrito em uma organização social ainda rudimentar, nos primórdios
do processo de colonização portuguesa na América. Falta, como propõe Candido, a
articulação entre autores, obras e público, elementos externos necessários à formação da
já referida tradição literária.
Os primeiros escritos na colônia portuguesa foram responsáveis pela formação de
uma tradição literária, mas não houve uma continuidade ininterrupta de obras. Viana
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Moog chega a mencionar o conceito de arquipélago cultural, isto é, “a dispersão do país
em subsistemas regionais até hoje relevantes para a história literária” (BOSI, 1994,
p.12). Essa continuidade ininterrupta proposta por Candido se dá, principalmente no
período arcádico-romântico, sobretudo com os árcades mineiros, as últimas academias e
os intelectuais ilustrados, quando “surgem homens de letras formando conjuntos
orgânicos e manifestando em graus variáveis a vontade de fazer literatura brasileira”
(2007, p.26). Dito de outra forma, quando se estabelece entre esses homens e os que os
sucederam “uma tradição contínua de estilos, temas, formas ou preocupações” (2007,
p.27).
Considerando o conceito de arquipélago cultural e a noção de subsistema regional,
verificamos regiões do Brasil em que a configuração desse subsistema se deu
tardiamente em relação ao sistema nacional, que foi sendo consolidado no período
arcádico-romântico e se encontra consolidado no período realista. É o caso da literatura
amazônica, que passou a configurar um sistema de obras interligadas por
denominadores comuns a partir da década de 1940, em torno do grupo de Benedito
Nunes. O distanciamento da Amazônia em relação à inteligência artística nacional,
concentrada no sudeste brasileiro, particularmente nas cidades do Rio de Janeiro e de
São Paulo, devido ao processo de imigração, urbanização e industrialização que estava
se dando nessa região, dificultou a chegada a Belém dos experimentalismos estéticos
praticados pelos simbolistas franceses, pelos vanguardistas europeus e pelos
modernistas de São Paulo.
Assinala Benedito Nunes que pouco se soube da estada de Mário de Andrade em
Belém, em 1927 (2001, p.19), quando o renomado escritor concebeu as crônicas de
viagem enfeixadas posteriormente no livro O turista aprendiz. Ressalta o crítico
paraense que a literatura produzida na Amazônia possuía ainda, em plena metade do
século XX, características parnasianas (2001, p.19). É o caso, por exemplo, de Ferreira
Gullar, que embora não sendo amazônico e sim maranhense, publica em 1949, Um
pouco acima do chão, livro de poemas renegado posteriormente, pois, a partir de 1954,
em plena efervescência cultural do movimento concretista em São Paulo, liderado por
Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, com a publicação em 1954
de A luta corporal, tem início seu projeto de demolição de formas e de incorporação de
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várias experiências poéticas.
Diferente da iconoclastia do Modernismo paulista, no Pará houve um Modernismo
moderado, pois não se liquidaram totalmente os velhos padrões acadêmicos,
parnasianos e simbolistas, nem houve verdadeira poesia futurista. Para o modernista
pernambucano Inácio Inojosa, a leitura de Bailado lunar (1924), de Bruno de Menezes,
permite afirmar que “não se encontram em suas páginas as veemências de uma
Paulicéia desvairada” (1994, p.121). Segundo Inojosa, o Modernismo chegou ao Pará
via Pernambuco (1994, p.121). Para o referido crítico, os ecos da Semana de Arte
Moderna chegaram primeiramente a Recife, posteriormente ao Rio de Janeiro, para só
então chegar a Belém.
A gênese do movimento modernista no Pará encontra-se na revista Belém Nova que,
embora não fosse uma revista modernista no seu início, como a Klaxon de São Paulo, a
Mauricéia de Recife e A Revista, de Belo Horizonte, passou, com o tempo, a ampliar e
vincular o Modernismo no norte do Brasil. Segundo Marinilce Oliveira Coelho, essa
geração de escritores pretendia trazer aos poemas as “imagens de um Brasil meio
esquecido pelos parnasianos e simbolistas” (2005, p.84), além de enfatizar a vida
simples e cotidiana da “gente humilde dos bairros do Umarizal, Pedreira, Jurunas”
(2005, p.85).
O verso livre, uma das características modernistas, soma-se à mistura de estilos, em
que o sagrado passa a figurar o mesmo espaço poético do profano, como ocorre em
“Oração da cabra preta”. Nesse poema, como em outros de Batuque, o mais conhecido
livro de Bruno de Menezes, os rituais religiosos apresentam uma configuração
sincrética, de que fazem parte o hibridismo cultural e a presença de elementos
populares, esses últimos entendidos por Eduardo Jardim de Moraes como agente de
nacionalização: “Os traços populares das composições musicais são o atestado de seu
grau de brasilidade” (1990, p.80).
Dessa forma, a cultura popular e as religiões afro-brasileiras são incorporadas na
estrutura interna dos poemas de Batuque, permitindo que afirmemos a entrada de Bruno
de Menezes e do grupo do primeiro momento modernista do Pará, conhecidos como o
“grupo de renovadores do Pará” (INOJOSA, 1994, p.121), em torno da revista Belém
Nova, na modernidade artística brasileira. Estabelece-se, assim, um momento decisivo
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na configuração de um subsistema literário no Pará, em torno de nomes também
importantes como os de Edgar Souza Franco, De Campos Ribeiro, Eneida de Moraes,
Abguar Bastos, além do desenvolvimento da recepção crítica das obras desse primeiro
momento do modernismo paraense, tanto em Belém, no discurso crítico de De Campos
Ribeiro, como no Recife, em torno de Inojosa, este último responsável por emitir a
notação crítica de que o Pará vinha consolidando um ambiente de modernidade artística.
A Amazônia, sobretudo pela obra de Mário de Andrade, passa a ser vista como
participante da unidade nacional. O escritor paulista chega a afirmar, em muitas de suas
cartas, já ter perdido a noção das fronteiras regionais. Trata-se, nesse momento, não
mais da Amazônia pitoresca da literatura dos viajantes, dos sermões do Padre Antônio
Vieira e dos contos de Inglês de Sousa, mas da Amazônia pertencente ao mesmo
sistema cultural que o eixo sul-sudeste. O conceito de desgeografização, proposto por
Mário de Andrade, pode ser definido, de acordo com Eduardo Jardim de Moraes, como
o “processo pelo qual se descobre para além das diferenças regionais (ou outras) que
comporta a nação, uma unidade subjacente relativa a sua identidade” (1990, p.69).
Assim, ocorre a busca da parte nacional em meio às diversidades culturais e regionais.
Na formulação proposta por Lafetá sobre os projetos estético e ideológico do
Modernismo, verifica-se que os anos de 1920 problematizam uma revolução na
linguagem, procurando se opor ao discurso bacharelesco e parnasiano que vigoravam na
inteligência artística nacional, incorporando elementos populares, folclóricos,
linguagem coloquial e eliminando as distâncias entre as modalidades escrita e oral da
linguagem. Já nos anos de 1930, a ênfase se dá no projeto ideológico, entendido como
consciência de classe, discutindo-se a função da literatura, o papel social do escritor e as
relações entre arte e ideologia (1974, p.17). Segundo o crítico, a necessidade de
atualização das estruturas sociais transborda a burguesia, indo na direção das ideologias
de esquerda, como também na reação conservadora e de direita (1974, p.18).
É desse contexto histórico-social a proliferação do conhecido romance de 30,
caracterizado, nas palavras de Antonio Candido, como a “pré-consciência do
subdesenvolvimento” (2003, p.160). Em seu conhecido ensaio intitulado “Literatura e
subdesenvolvimento”, Candido equipara o regionalismo ao subdesenvolvimento,
destacando duas posições históricas em face da ficção regionalista: a consciência de país
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novo e a de país subdesenvolvido. A primeira, encontrada nos romances sertanistas dos
períodos romântico e naturalista, explora na literatura o pitoresco decorativo, típica do
otimismo burguês, em que mesmo sem se dar conta, o nativismo acaba por “tornar-se
manifestação ideológica do mesmo colonialismo cultural que o seu praticante rejeitaria
no plano da razão clara, e que manifesta uma situação de subdesenvolvimento e
consequente dependência” (2003. p.157). Já a segunda, relativa à fase de consciência
(ou pré-consciência) do subdesenvolvimento, “funciona como presciência e depois
consciência da crise, motivando o documentário e, com o sentimento de urgência, o
empenho político” (2003, p.158).
Para Candido, em ambas as etapas, selecionam-se áreas temáticas e grupos social e
etnicamente menos favorecidos, situados na periferia do sistema capitalista. No entanto,
na fase de consciência do país novo, os escritores pouco percebem que seu regionalismo
está sendo posto a serviço de uma ideologia dominante, fornecendo a “um leitor urbano
europeu, ou europeizado artificialmente, a realidade quase turística que lhe agradaria
ver na América” (2003, p.157). É o caso de boa parte da produção literária amazônica
dos anos que antecede a década de 1930.
Podem-se citar como exemplos dessa produção que ressalta a diversidade da
natureza, os aspectos míticos e exóticos entrelaçados com a fauna e a flora exuberantes,
as obras de Inglês de Sousa e José Veríssimo, destacadas por Antonio Candido como
representativas da região amazônica do século XIX, entendida pelo crítico como um das
“áreas problemáticas” onde vivem “grupos marcados pelo subdesenvolvimento” (2003,
p.158).
Por outro lado, na fase de consciência do subdesenvolvimento, a perspectiva otimista
engendrada pela burguesia, de valorização da exuberância da natureza tropical brasileira
como forma de escamoteamento dos problemas sociais, cede lugar a uma perspectiva
pessimista, diferente daquela percebida no discurso naturalista, segundo o qual, o
homem pobre era focalizado como “elemento refratário ao progresso” (2003, p.160).
Essa nova perspectiva pessimista volta-se contra a ideologia das classes dominantes,
“vendo na degradação do homem uma consequência da espoliação econômica, não do
seu destino individual” (2003. p.160).
Pode-se citar, nessa perspectiva, o romance Terra Imatura, do paraense Alfredo
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Ladislau, publicado em 1923, em que, por mais que haja a ênfase na diversidade da
natureza amazônica e a posição mítica e nacionalista no que se refere a essa área
territorial, há inquietações das personagens do romance, Aiúna e Arianda, na busca de
um caminho de desenvolvimento para a região, tornando-se, no entender de Marinilce
Coelho, “uma palavra de ordem no grupo de Cléo Bernardo que seguiu o estilo de
pensar e adotou o espírito de luta na realidade econômica, social, política e cultural que
se estruturava no país nos anos 30” (2005, p.94).
O grupo dos anos de 1930 começava a se organizar na Amazônia paraense em torno
dos nomes de Cléo Bernardo e Sylvio Braga, diretores da revista Terra Imatura, cujo
título foi uma homenagem ao romance homônimo de Alfredo Ladislau. Essa geração
contou com nomes como José Maria Mendes Pereira, Ruy Barata, Bruno de Menezes e
Dalcídio Jurandir, este último estudado na UFPA, principalmente pelos seus romances
Chove nos campos de Cachoeira (1941) e Marajó (1947), na produção ensaística de
Gunter Karl Pressler (é preciso que o estrangeiro venha aqui e valorize nossa produção
cultural para nos darmos conta da nossa riqueza de produções simbólicas!).
De forte ideologia de esquerda, Terra Imatura traz artigos sobre a necessidade de
organização do movimento estudantil, as dificuldades econômicas que o estudante de
outros lugares encontra em Belém (até hoje é assim!), a denúncia das injustiças sociais,
a indignação diante dos movimentos totalitários que assolavam a Europa e a revolta
contra o abuso de poder dos ditadores (2005, p.95-6).
De acordo com Marinilce Coelho, “Terra Imatura ampliou e desenvolveu os novos
itinerários da literatura local e nacional da década de 1930, marcando definitivamente o
movimento literário paraense” (2005, p.106), consolidando, seguindo o viés teórico de
Antonio Candido, o subsistema literário da Amazônia paraense. Não havia mais, nesse
período, a necessidade de enfatizar a cor local da região amazônica; essa preocupação
foi gradativamente substituída por uma produção literária capaz de “desvendar o
alcance e os limites circunscritos ao homem moderno” (2005, p.102), tal como ocorre
na poesia de Ruy Barata, antecipando as novas tendências do pós-guerra. Possibilita-se,
assim, a abertura do Pará a movimentos estéticos como as artes de vanguarda, o
Modernismo paulista, o Concretismo, dentre outras poéticas do século XX.
A formação de grupos de leitura, ao redor do filósofo Benedito Nunes; a circulação
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maior de obras produzidas por autores como Mário Faustino e Max Martins, apesar dos
poucos recursos e da pouca qualidade do material datilografado; a formação de um
público leitor, sobretudo com a criação da Universidade Federal do Pará e da divulgação
em revistas e jornais locais dos trabalhos desses autores, começa por possibilitar a
configuração de um subsistema literário em consonância com a tradição estabelecida
pelo sistema literário nacional, consolidado no período do Realismo.
No caso específico de Max Martins (1926-2009), destaca-se seu constante diálogo
com autores canônicos como Drummond, João Cabral de Melo Neto, os concretistas,
Mário Faustino e Ferreira Gullar, dentre outros. Há nessas relações dialógicas uma
poética orientada pela “aprendizagem de desaprender, tenacidade de quem tenta se
desapegar dos hábitos já estabelecidos de sua própria escrita” (NUNES, 2001, p.33). As
descontinuidades da poesia de Max Martins estão relacionadas às crises com a própria
forma poética. Há o enfrentamento do poeta com a linguagem, e essa adquire um fluxo
contínuo ininterrupto, marcado, tal como a dialética, por continuidades e rupturas,
gerando a descontinuidade, a aprendizagem pelo desaprender. Essa reflexão que denota
maturidade e evolução dos processos lingüísticos ocorre no poema “A cabana”, inserido
em Para ter onde ir (1992).
A cabana
Estranho
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Introdução
1
Isto é, “identidades podem se misturar hibridamente, cruzando fronteiras e culturas”, conforme Nelson
Vieira (In: VIEIRA; GRIN, 2004, p. 91). Nesse sentido, os irmãos Boyarin, em seu ensaio Diaspora:
Generation and The Ground of Jewish Identity, defendem o hibridismo como fenômeno da diáspora
judaica (1993).
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condição diaspórica das identidades de outros povos, com outros sentidos (HALL,
2003; HUA, In: AGNEW (Ed.), 2005; BOYARIN, In: BOYARIN (Ed.), 1997).
Com a análise da novela rawetiana supracitada, inserimos a obra de Rawet num
campo de pesquisas que têm surgido dentro da amplitude dos Estudos Culturais,
especialmente nas academias norte-americanas: os novos estudos culturais judaicos. A
despeito de existirem notáveis trabalhos publicados e relacionados com os estudos
culturais judaicos, iniciados germinalmente em meados da década de 1980, segundo
Daniel e Jonathan Boyarin, teóricos desse campo de estudos, “o trabalho de estabelecer
um ‘lugar judaico’ dentro do campo de esquema dos Estudos Culturais só está
iniciando” (In: BOYARIN (Ed.), 1997, p. viii. Tradução nossa). No Brasil, como
sabemos por ora, há três núcleos de pesquisas em estudos judaicos que agregam
pesquisas sobre o campo de estudos culturais judaicos: o NEJ, Núcleo de Estudos
Judaicos, da UFMG, o NIEJ, Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos, da UFRJ, e o
Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas, da
USP. Os novos estudos judaico-culturais, segundo os irmãos Jonathan e Daniel Boyarin,
na condição de “crítica e pesquisa da cultura judaica”, “também têm muito a oferecer à
comunidade dos estudos culturais” (In: BOYARIN (Ed.), 1997, p. xviii. Tradução
nossa). Noutras palavras:
Esse processo de inserção dos estudos judaicos no campo dos Estudos Culturais
decorre do fato de que ele “é um campo de estudos onde diversas disciplinas se
intersecionam no estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea”
(ESCOSTEGUY, In: SILVA (Org.), 2006, p.137). Reforçando a contribuição judaica
para os estudos culturais, conforme Lisa Silverman, os estudos culturais judaicos
constituem “um rico e produtivo campo, para o mais profundo entendimento de
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questões mais gerais, tanto da diferença quando da diáspora” (2006, p. 01. Tradução
nossa). E o exemplo dado é a questão da diáspora:
2
Assim, Hua (In: AGNEW (Ed.), 2005) vincula a diáspora às questões de identidade, memória e exílio,
considerando esses fenômenos como parte de um todo, e a memória judaica converge para a fusão desses
fenômenos consigo mesma.
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Rawet ingressou no ensino superior e cursou Engenharia. Posteriormente, a equipe de Oscar Niemayer
na construção de Brasília. Não obstante, ser literato era o que mais lhe interessava. Rawet começou pela
produção ensaística sobre teatro, de 1950 a 1954. Logo depois, uma pausa ensaística é assinalada pelo
sucesso de Contos do imigrante, publicado em 1956 (BINES; TONUS, In; RAWET, 2008, p. 09-10;
KIRSCHBAUM, 2000, p. 31). Faleceu solitário em Sobradinho-DF, em 1984, possivelmente vitimado
por um aneurisma cerebral.
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4
Numa entrevista, Rawet revelou que sentia uma profunda inquietação pela figura do Ahasverus,
chegando a afirmar que não sabia se escreveria uma novela ou um conto sobre esse judeu errante,
inclusive ressaltando que o usaria “com a mesma característica, mas completamente diferente do
marginal” (apud WALDMAN, 2003, p. 89-90). Noutras palavras, ele fundiria o judeu errante da lenda
cristã com o vagabundo suburbano (BINES, In: GRIN; VIEIRA, 2004, p. 203-204).
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narrativo sugere que as duas condições identitárias são possíveis. Em suma, há um ser
híbrido, que funde elementos fantásticos e realistas, especialmente nos vários momentos
de suas metamorfoses surreais. Mesmo momentaneamente sem saber “se podia assumir
a responsabilidade de sua consciência, cansada já, exausta, sempre renovada no entanto,
sempre alerta ao movimento dela mesma, um olho dentro de um olho, espreitado e
espreitando” (RAWET, 2004, p. 453), como o texto mesmo o diz, Ahasverus tinha sua
consciência, após os períodos oscilantes, sempre renovada. Isso sugere que ele se sabia
mais em estado de Ahasverus, de modo que a não-identificação da origem do
personagem é um não-saber que pode ser lido como um saber recusado, latente,
reprimido, por causa da dor, da angústia e do próprio percurso histórico da errância:
“[Ahasverus] descobriu que tinha mais de mil anos, que era imortal” (RAWET, 2004, p.
454). Segundo Vilém Flusser, “a viagem ao passado encontra sempre resistência da
memória, que dificulta o progresso. A memória se recusa a entregar tudo o que esconde,
e muitas vezes cala” (2007, p. 48). Não obstante, a possível oscilação de Ahasverus traz
implicações para a identidade cultural: “disjunturas patentes de tempo e espaço são
abruptamente convocadas, sem obliterar seus ritmos e tempos diferenciais. As culturas,
é claro, têm seus ‘locais’. Porém, não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam”
(HALL, 2003, p. 36). Sob ecos derridianos, ainda segundo Hall, a ausência-presença de
uma origem cultural é como uma “repetição-com-diferença, ou de reciprocidade-sem-
começo” (2003, p. 37): a identidade refletirá palidamente o lugar verdadeiramente
original, mas, com o percurso híbrido-diaspórico, ela passou por um enfraquecimento
progressivo. Isso mostra, no âmbito dos estudos judaicos culturais, que Ahasverus é
uma metáfora da dispersão da origem da identidade do povo judeu, e tal dispersão
denota que essa identidade não um dado pronto, pois “mais que descrever quem somos,
ou de que lugar nós estamos vindo, a identidade deve lidar com o nosso vir a ser”
(SILBERSTEIN, In: SILBERSTEIN (Ed.), 2000, p. 03). Assim, a identidade judaica,
traçando-se uma origem, é diaspórica, pois Avrahám (Abraão), o primeiro hebreu,
conforme a Torá, era um desterritorializado, que saiu da antiga Babilônia em direção à
Terra Prometida por Deus. Mas antes de o povo judeu entrar nessa terra, ele teve a sua
formação no exílio egípcio: um nascimento diaspórico. Assim, o povo judeu tem “uma
identidade diaspórica” (BOYARIN, Jonathan; BOYARIN, Daniel, 1993, p. 721.
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Tradução nossa), pois esteve na Diáspora desde Abraão, e mesmo com a existência
nacional na antiga Judeia (até antes do exílio provocado pelos romanos, em 135 d.C.), e
no posterior e moderno Estado de Israel, “a condição de existência do povo judeu foi
sempre a de ser diaspórico” (SORJ, In: FUKS, 2005, p. 177. Grifo do autor).
Vejamos a desconstrução da lenda católica do Ahasverus, na novela rawetiana; logo
após retornaremos à problemática da identidade, do exílio e da memória do povo judeu,
finalizando o nosso trabalho: “[...] lembrou-se de uma conversa que teve com um
nazareno num monte de oliveiras. Que bela conversa! Que companheiro excelente! [...]
Falavam e riam de lírios dos campos, de agulhas e camelos [...]” (RAWET, 2004, p.
455). Apesar de não compreender a profundidade do nível de vínculo que tinha com o
nazareno (Jesus), Ahasverus “sentia-se estranhamente ligado a ele, entrevia às vezes,
uma relação vital nas duas existências. Mas sabia, também, de uma distância quase
infinita a separá-los” (RAWET, 2004, p. 455). O encontro entre Ahasverus e Jesus
transcorre fraternalmente, com conversas midráschicas sobre o sermão da montanha,
sobre parábolas e milagres de Cristo. Ahasverus até pensou em se metamorfosear,
queria ser os dois, mesmo tendo desistido dessa mutação fantástica. Não obstante essa
leitura desconstrutiva, a quase infinita distância a separá-los sugere os pressupostos
antissemitas da lenda medieval e cristã do judeu errante, de modo que isso é confirmado
pela imagem de Cristo que é mostrada a Ahasverus: um Jesus irreconhecível, diferente
do que ele encontrou. Dessa desconstrução da lenda, o decurso narrativo de Viagens de
Ahasverus [...] desemboca na questão do hibridismo das múltiplas identidades que
constituem as metamorfoses fantásticas da personagem, considerando seus
deslocamentos diaspóricos (WALDMAN, 2003):
Conclusão
5
Conforme Nelson Vieira, “essa identificação pessoal de Rawet com sua novela não só confirma o
comissionamento de Rawet com sua arte, como também abre uma fissura entre ficção e realidade. Em
1968, a pós-modernista Leslie Fiedler propôs que os artistas deveriam ‘atravessar o limite e abrir essa
fissura’, uma perspectiva que deu a entender uma apreciação de consciência pela heterogeneidade cultural
e pela alteridade, as quais Rawet acreditava estar faltando no Brasil” (1995, p. 99).
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Introdução
1
Bernard Malamud nasceu em Nova Iorque, em 26 de abril de 1914. Filho de judeus imigrantes russos,
Malamud foi romancista e contista; escreveu oito romances e vários contos, sendo o The fixer premiado
com os prêmios Pulitzer e National Book, em 1967. Segundo a crítica literária norte-americana,
juntamente com Isaac Bashevis Singer, Philip Roth e Saul Bellow, entre outros, Malamud se tornou um
dos grandes escritores da literatura judaica norte-americana do século XX. Morreu em 18 de março de
1986.
2
Marc Chagall, registrado Moishe Shagal, nasceu em Vitebsk, no dia 07 de julho de 1887, na Bielorússia
(na época integrada ao Império Czarista Russo). Foi um dos maiores pintores do século XX, combinando
com estilo próprio, os movimentos artísticos de seu tempo: o cubismo, o surrealismo, simbolismo e
fauvismo. Sua pintura é de expressão judaica, com exceção de alguns quadros parisienses. Pintou
quadros, fez ilustrações para a Bíblia e para as fábulas de La Fontaine, tapeçarias, vitrais, etc. Morreu em
28 de março de 1985.
3
Cf., por exemplo, o ensaio The Loathly Landlady: Chagallian Unions and Malamudian Parody: “The
Girl of My Dreams” Revisited”, de Joel Salzberg. In: Studies In Short Fiction, vol. 30, n. 4, Sep. 22,
1993, p. 543-554.
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hipótese de trabalho não partirá dessa temática, mesmo que haja poucos trabalhos sobre
esta, mas das questões quanto à memória e ao exílio, uma vez que até o momento
desconhecemos, à luz das nossas pesquisas, algum trabalho comparando a pintura de
Chagall com a prosa romanesca de Malamud. Mais específica e detidamente, partimos
hipoteticamente da necessidade de um estudo comparativo entre a obra romanesca
malamudiana e a pintura chagalliana. Noutras palavras, de um trabalho comparativo que
explore possíveis relações chagallianas com o romance The fixer (O faz-tudo). Essas
possíveis relações são sugeridas pelo fato de que esses artistas tematizam memórias do
schtetl (embora Malamud só ouvisse histórias sobre este, mas Chagall passou sua
infância em um na Rússia) e o sofrido exílio do povo judeu, pelo viés antissemita,
supostamente legitimado, segundo tal viés, pelo crime judaico da morte de Cristo.
Para reforçar a necessidade deste estudo comparativo, temos a confissão de Malamud
Malamud de que ele foi influenciado por Chagall. Em uma entrevista, disse que foi
influenciado por Chagall: “eu utilizei o imaginário chagalliano, intencionalmente, em
uma estória, O barril mágico, e é isso mesmo” (In: THE PARIS REVIEW
FOUNDATION, 2005, p. 19. Tradução nossa). Essa influência ocorreu no conto O
barril mágico. Nele, fundindo linguagem verbal e visual, há o encontro amoroso entre
Leo Finkle, estudante de yeshiváh (academia rabínica), e a sofrida prostituta Stella
Salzman (MALAMUD, 2007 4), tematizando o amor como instrumento de redenção:
Diante disso, estamos diante de possíveis leituras intersemióticas entre a obra ficcional
de Malamud e a obra pictórica de Chagall. É com base nos temas da memória e do
exílio que este trabalho propõe uma leitura intersemiótica entre alguns quadros
chagallianos e o romance malamudiano The fixer. Também nos fundamentaremos no
que Erwin Panofsky chamou de Iconologia, que consiste no estudo da produção e da
interpretação “de imagens, histórias e alegorias que dão sentido, mesmo para os planos
formais e para os procedimentos técnicos empregados [nas obras de arte]” (1955, p. 31.
Tradução nossa). Imagens, histórias e alegorias que constituem o “significado
intrínseco, ou o conteúdo” (PANOFSKY, 1955, p. 30), fincado nas influências
4
“[Finkle] viu naquela jovem a sua própria redenção. Violinos e velas acesas encheram o ar. Leo correu
para ela com seu buquê de flores. Quem dobrasse a esquina veria Salzman encostado a uma parede a
entoar orações pelos mortos” (MALAMUD, 2007, p. 254).
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Muitos locais passados são presentificados na arte, através da memória. Eles podem
ser vistos como documentos civilizatórios historicamente relacionados a uma obra, ou
grupos de obras de arte (PANOFSKY, 1955, p. 39). Um local tornou-se atemporal na
memória judaica, especialmente para os ashkenazim, judeus do Leste Europeu, e para
seus descendentes: o schtetl. Em iídiche, significa cidadezinha ou aldeia. Os schtetlekh
constituíam pequenas comunidades judaicas na Europa Oriental durante os séculos XIX
e XX, na Rússia, na Polônia, na Ucrânia, na Lituânia e a parte leste do Império Austro-
Húngaro (ZOLLMAN, 2010; UNTERMAN, 1992). O schtetl era cercado por campos e
florestas; suas residências, construídas em madeira, eram de centenas a milhares; as ruas
do schtetl, em sua maioria, não eram pavimentadas. O conceito de cultura no schtetl
estava restritivamente ligado ao da religião judaica, pois o idishkeit (o judaísmo)
norteava a visão da vida, da existência (BEREZIN, 1977, p. 37). Assim, conforme
Joellyn Zollman (2010), os espaços públicos do schtetl tinham sinagogas de madeira,
cemitério judaico, tanques rituais (mikvaôt), o mercado, etc., juntamente com igrejas
ortodoxas russas ou católicas 5. Ademais, “no ‘schtetl’, o rabino era tanto o guia
religioso quando o secular” (BEREZIN, 1977, p. 37). Havia schtetlekh com feição
totalmente judaica (UNTERMAN, 1992, p. 246), havendo neles residências de não-
judeus, de modo que o schtetl era marcado pelo contato diário (social e comercial) entre
judeus e não-judeus, apesar de períodos de tensões antissemitas (ZOLLMAN, 2010;
UNTERMAN, 1992). A vida no schtetl era difícil: as pessoas tinham poucas posses e
não tinham acesso à educação secular.
5
Quanto ao trabalho, “a maioria dos judeus do schtetl, tanto homens quanto mulheres, trabalhava para
sustentar suas famílias, usualmente em negócios artesanais e comerciais [...]” (ZOLLMAN, 2010, p. 01.
Tradução nossa).
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Shmuel [...] passava havia muito dos sessenta, tinha uma barba branca
[...]. [...] Era um homem religioso [...]. [O cavalo] era um animal
descarnado, de pernas compridas, corpo marrom e ossudo e grandes
olhos estúpidos. O animal e Shmuel entendiam-se muito bem
(MALAMUD, 2006, p. 17-18/23).
Shmuel era um velho sofrido com o grau de miséria do schtetl em que vivia.
Diferentemente da visão bucólico-paradisíaca do schtetl de Chagall, em Eu e minha
aldeia, Shmuel sofria com o seu, mas havia algo edênico em sua aldeia: a harmonia com
seu cavalo, e esse aspecto, de certo modo, dialoga com o entre-olhar do pintor com a
ovelha. Como? Ambos schtetlekh, o de Chagall e o de Shmuel, têm uma atmosfera
religiosa: a do movimento hassídico, um dos ramos do judaísmo. O seu fundador, o rabi
Israel ben Eliezer, conhecido como Baal Shem Tov, “gostava de passar o tempo nos
campos e nas florestas, experimentando o divino no mundo da natureza”
(UNTERMAN, 1992, p. 40), de modo que, através da ascese mística, esse sábio
conhecia a linguagem da fauna e da flora. É esse aspecto hassídico que nos ajuda a
compreender a harmonia entre o humano e o animal, na pintura de Chagall e no
romance de Malamud. Esses artistas colocaram esse aspecto do movimento hassídico
em suas respectivas obras, tornando possível esse diálogo, como uma evocação
paradisíaca do schtetl, confirmando, nessas obras, o que disse Anh Hua: “a memória é
encontrada [...] na literatura, [...] nas artes visuais [...]” (In: AGNEW (Ed.), 2005, p.
199). Ademais, a tentativa de reconstituição do schtetl concerne à memória judaica. A
memória individual de Chagall e Malamud, através de suas obras, se vincula à memória
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coletiva judaica, pois segundo o sociólogo judeu Maurice Halbwachs, “para evocar seu
próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se
transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade”
(2006, p. 72). Assim, “a memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva” (HALBWACHS, 2006, p. 69). Considerando que “a memória do passado foi
sempre um componente central da experiência judaica”, o historiador Yosef Yerushalmi
declara que “os judeus [...] tem a mais longa e a mais persistente de todas as memórias”
(1996, p. xxxiii. Tradução nossa). É o mandamento do zékher (lembrança),
acompanhado do ato. Zékher é a memória individual e coletiva do povo judeu, cuja
transmissão ocorre mediante o ritual e a narrativa (YERUSHALMI, 1999). Assim, a
memória recria o espaço e o tempo, transgredindo cronologias (IGEL, 1997).
Infelizmente, Shmuel e seu cavalo, que tão bem se entendiam (compartilhando de
uma existência pobre), tiveram de se separar, pois Yákov Bok, genro de Shmuel,
revoltado com a miséria do schtetl, trocara uma vaca por ele, para ir embora do schtetl,
a fim de tentar uma vida melhor em Kiev. Essa partida desencadeia outro tema: a lenda
do judeu errante, vinculada ao antissemitismo, enredado na história que permeia o
romance The fixer: a recriação do caso Mendel Neils, para ser a estória de Yákov Bok.
Malamud e Chagall tematizam o exílio sofrido pelo povo judeu, contestando o uso da
crucificação de Jesus como pretexto antissemita. Malamud o faz com o personagem
Yákov Bok, anti-herói que vive um auto-exílio de seu schtetl, sob as implicações do
histórico exílio coletivo do povo judeu, por causa da falsa acusação de libelo de
sangue 6, que surgiu na Idade Média e que ainda ocorreu no século XX. Chagall também
o faz, a seu modo, recriando a lenda de Ahasverus, o judeu errante 7, inserindo-o em
6
Originada pelo anti-judaísmo cristão medieval, consiste na acusação de que os judeus cometiam
assassinato de cristãos, especialmente crianças, para usar o sangue deles para fazer a matsá (pão sem
fermento) da Páscoa judaica (UNTERMAN, 1992). Reapareceu em Kishinev, em 1903.
7
Conforme Joseph Jacobs, trata-se de “uma figura imaginária de um sapateiro de Jerusalém que, tendo
insultado Jesus no caminho em direção à crucificação” (2002, p. 01. Tradução nossa), recebeu uma
maldição de que andaria perpetuamente como um errante sobre a Terra, até o retorno de Cristo.
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A crucificação branca, 1938, de Marc Chagall (In: WALTHER; METZGER, 2006, p. 62).
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Em 1911, mais uma vez aparece a acusação antissemita de libelo de sangue: a vítima
foi Menahem Mendel Beilis foi acusado de haver matado ritualmente o garoto Andrei
Yushchinsky. Beilis foi mantido preso por dois anos, torturado, mas foi absolvido
quando a verdadeira assassina confessou o crime. Por trás desse velho discurso de crime
ritual há o antissemitismo, que deriva de séculos de antijudaísmo cristão: os judeus
deveriam pagar por haverem matado Jesus. Antes de falar da recriação literária feita por
Malamud, convém fazermos uma breve análise dos dois quadros chagallianos que, de
certo modo, retratam implicitamente o libelo de sangue, e com mais contundência o
exílio judaico. O uso de Jesus crucificado é para Chagall a resposta-explicação
definitiva “para a desgraça de sua época” (WELTHER; METZGER, 2006, p. 62), ou
seja, o sofrimento exílico do seu povo. A presença de Jesus crucificado é corrente em
várias pinturas de Chagall, como A guerra, de 1964-66, Obsessão, de 1943, O mártir,
de 1940, A alma da cidade, de 1945, A queda do anjo, de 1923-1947, por exemplo. A
herança cubista do simultaneísmo dos motivos salta aos olhos. Pogroms no schtetl, um
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romance The fixer, de Malamud, sai-se do exílio coletivo para o exílio individual, mas
sob a implicação histórica do exílio coletivo judaico: do consertador Yákov
Chepsovitch Bok, recriação literária de Mendel Beinis. Nesse sentido, dialogando com
os quadros chagallianos apresentados, um motivo central norteia a estória de Yákov
Bok: “Desde que Cristo foi crucificado, o crime de quem o matou passou a ser de todos
os judeus para sempre” (2006, p. 321).
Romance histórico, mas entremeado pela estética surrealista (especialmente nos
momentos de sonhos e aparições vivenciados pelo protagonista na prisão), The fixer se
apresenta como literatura de testemunho contra a barbárie histórica cometida pelo
Império Czarista contra o povo judeu. Obviamente, também se insere o Holocausto,
pois, no contexto desse romance, o que o Império Czarista fez foi uma antecipação do
que faria o Nazismo 8, e, mais amplamente, todas as atrocidades cometidas contra o
gênero humano pelos regimes totalitaristas. Situado na Kiev de 1911, o romance retrata
a história de Yákov Chepsovitch Bok. Ele, cansado da miséria do schtetl, e marcado
pelo abandono da esposa, Yákov resolve deixá-lo, para buscar uma vida melhor na
cidade de Kiev. Apesar das advertências de seu sogro Shmuel, consistindo no perigo
antissemita que rondava a vida judaica nessa cidade, Bok resolveu ir embora, conquanto
temesse essa partida e sentisse saudade do schtetl, enfrentando um conflito nostálgico.
Após haver salvo da morte um velho antissemita, e membro das Centúrias Negras,
Nikolai Maximovitch Lebedev, este o põe como encarregado em uma olaria. Mais tarde,
Yákov foi acusado de haver assassinado ritualmente o menino Jênia Golov, a velha
acusação de libelo de sangue reaparece, apesar de o judaísmo proibir a ingestão de
sangue. A partir do exílio de Yákov na prisão, o narrador reflete sobre o exílio, a
errância do povo judeu, como eles marcam profundamente a memória judaica,
mostrando o povo judeu como vítima do antissemitismo ao longo da História, em
qualquer lugar, reflexão também empastada nas telas chagallianas:
8
“De uma hora para outra surge um louco dizendo que o sangue dos judeus é maldito”, diz o narrador de
The fixer (MALAMUD, 2006, p. 321).
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Refutando a culpabilidade judaica pela morte de Jesus, o narrador diz que a dispersão
exílica dos judeus pelo mundo tem uma explicação metafísica, baseada no
relacionamento eterno entre Deus e os judeus (MALAMUD, 2006). Diferentemente de
Chagall, que não mostra a causa da diáspora exílica do povo judeu, preferindo – com
contundência estética – mostrar a causa dada pelo antissemitismo moderno, filho do
antijudaísmo cristão medieval. Não obstante, para o narrador de The fixer, que na
verdade expressa as reflexões de Yákov Bok, a diáspora judaica não decorre da paixão
de Cristo, mas de uma quebra da aliança com Deus, que consta na Torá, acompanhada
da contrapartida: a promessa messiânica. Sem respostas de seu amigo judeu Sygmund
Freud para explicar a profundidade absurda do exílio do povo judeu ao longo da
História, o judeu intelectual, radicado no Brasil, Stephan Zweig, em sua obra O mundo
de ontem, vislumbra a explicação metafísica: “mas talvez seja precisamente o sentido
supremo do judaísmo repetir sem descanso, por sua existência cujo enigma desafia o
tempo, a eterna pergunta proposta a Deus por Jó, a fim de que jamais aquela possa ser
integralmente esquecida na terra” (apud BEREZIN, 1977, p. 209). Diante disso, a
transcendência da resposta consiste na miraculosa sobrevivência do povo judeu,
considerando que, como explica o filósofo Nicolai Berdaiyev, pelo “critério materialista
positivista, a nação judaica já deveria ter desaparecido da face da terra já há muito
tempo. Sua existência é um fenômeno misterioso e espantoso, [...] a vida dessa nação é
regida por alguma força de algum decreto antigo [...] (apud GRYLAK, 1998, p. 176)”.
Como lembra Edward Said, inexiste uma linguagem adequada para tentar exprimir a
descontinuidade da existência exílica (2003, p. 50), e que “apesar da opressão e da
ameaça de extinção, um determinado ethos permanece vido no exílio” (SAID, 2003, p.
57). Especificamente, em se tratando da descontinuidade exílica do povo judeu, sua
existência, após séculos de tentativa de extermínio, “extrapola a regra corrente no
destino dos povos”, de modo que “vive e respira, apesar de contradizer com sua
persistência as leis usuais da história” (GRYLAK, 1998, p. 176). É com essa linguagem
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Conclusão
Mesmo com a descoberta dos verdadeiros criminosos, Yákov sai da prisão, para ser
julgado. A caminho do julgamento, a narrativa suspende-se em um diálogo imaginário
entre Yákov e o Czar, revelando a frieza irônica do trato deste com os judeus de seu
império. Yákov pega uma arma e mata o Czar. Esse gesto denota que, segundo a
personagem, a História pode ter seu curso alterado e que “um homem não pode ficar
parado vendo a própria destruição” (MALAMUD, 2006, p. 392). Com isso, vemos a
universalização da condição judaica. Ambos – Marc Chagall e Bernard Malamud –
usaram o judeu como alegoria da condição universal humana. Malamud disse: “eu tento
ver o judeu como um homem universal. [...]. O drama judaico é prototípico, um símbolo
da luta pela existência humana, nos mais altos e possíveis termos humanos” (1991, p.
30. Tradução nossa). Chagall o confirma: “quando um pintor é judeu e pinta a vida,
como se poderia ele defender contra elementos judaicos em sua obra! [...] Com efeito, o
elemento judaico permanece aí, mas a sua obra pretende alcançar prestígio universal”
(apud WELTHER; METZGER, 2006, p. 62).
Referências
BEREZIN, Rifka. Caminhos do povo judeu: vol. 04. São Paulo: Federação Israelita do
Estado de São Paulo, 1977.
CEDILLO, Adolfo Gómez. Marc Chagall. Trad. Berta Rodrigues Silveira. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da
Costa e Silva. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
GRYLAK, Moshe. Reflexões sobre a Torá. Trad.Marcelo Firer. São Paulo: Sêfer, 1998.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro, 2006.
HUA, Ann. Diaspora and Cultural Memory, In: AGNEW, Vijai (Ed.). Diaspora,
Memory, and Identity: A Search for Home. Toronto: University of Toronto Press, 2005.
IGEL, Regina. Emigrantes judeus, escritores brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1997.
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Introdução
O presente estudo, centrado na análise documental, ocupa-se em problematizar
tópicos específicos da literatura infantil e juvenil com base na apreciação crítica de três
escritores emblemáticos nacionais: Olavo Bilac, Monteiro Lobato e Ana Maria
Machado. Em outras palavras, a pesquisa objetiva verificar como os citados ficcionistas,
movidos por determinadas convicções e imersos em distintos contextos, definem,
descrevem e discutem o gênero infanto-juvenil.
Para tanto, tal investigação científica optou por seguir um caminho ainda não muito
explorado na tradição de pesquisas consolidadas nesse campo: recupera, examina e
polemiza, com base na crítica literária contemporânea, os conceitos “teóricos” dos
anunciados autores, dispersos ora em produções de caráter epistolar (como no caso de
Lobato), ora em prefácios e ensaios (como acontece, respectivamente, com Bilac e
Machado). Os resultados obtidos apontam para o diálogo que os escritores mantiveram
com seus antecessores (Rousseau, Herbat e Comte, entre outros), em específicos
momentos de suas vidas.
A esse respeito, vale ressaltar no texto bilaquiano a severa crítica aos contos de
fadas, seguida de uma proposta literária bastante ufanista, monológica e conservadora,
em plena sintonia com as diretrizes escolares da época. Lobato, rompendo com esse
paradigma, enveredaria pelas trilhas dos pensadores da Escola Nova e introduziria um
modelo bastante moderno de literatura. Filiando-se à linha inaugurada pelo criador de
Emília e em total diálogo com a poética pós-moderna e o cognitivismo piagetiano,
Machado apresenta uma retórica em que conceitua a literatura infantil como aquela que
também pode ser lida pelas crianças, firmando-se, consequentemente, como capaz de
envolver o público em geral.
Não é novidade assinalar que a produção literária de Olavo Bilac revela um estreito
pacto com uma postura nacionalista e plenamente escolar. A crítica literária
contemporânea já havia acentuado tal faceta das publicações bilaquianas direcionadas
ao leitor em formação. Novidade, no entanto, é discutir como o escritor em questão
definia e “teorizava” a literatura para crianças, introduzindo alguns conceitos em textos
mais “dogmáticos”. É o que acontece, por exemplo, no pórtico de Poesias Infantis
(1904). Aqui, o autor explicita abertamente sua visão de literatura infanto-juvenil: textos
que exigiriam total cuidado e excessivo trabalho do ficcionista, uma vez que se dirigiria
a sujeitos sem experiências, com um repertório ainda vago e possivelmente incapazes
de compreender as nuances do poema ou da narrativa a ser examinada.
Quando a Casa Alves & Cia me incumbiu de preparar este livro para o
uso das aulas de instrução primária, não deixei de pensar, com
receios, nas dificuldades grandes do trabalho. Era preciso fazer
qualquer cousa simples, acessível à inteligência das crianças; e quem
vive de escrever, vencendo dificuldades de forma, fica viciado pelo
hábito de fazer estilo. Como perder o escritor a feição que já adquiriu,
e as suas complicadas construções de frases, e o seu arsenal de
vocábulos peregrinos, para se colocar ao alcance da inteligência
infantil? (BILAC, 1904, p. 09)
Em outro pólo, Bilac investe nas críticas aos materiais de leitura até então presentes
no país, formados, basicamente, pelos contos de fadas europeus traduzidos no solo
português.
Outro perigo: a possibilidade de cair no extremo oposto – fazendo um
livro ingênuo demais, ou, o que seria peor, um livro, como tantos há
por aí, cheio de histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a
credulidade das crianças, fazendo-as ter medo de cousas que não
existem (BILAC, 1904, p. 09).
tendo em vista que sua estrutura não condizia com o que ele defendia, pontuava e
valorizava como “literatura escolar”.
O livro aqui está. É um livro em que não há os animais que falam,
nem as fadas que protegem ou perseguem crianças, nem as feiticeiras
que entram pelos buracos das fechaduras; há aqui descrições da
natureza, cenas de família, hinos ao trabalho, à fé, ao dever, alusões
ligeiras à história da pátria, pequenos contos em que a bondade é
louvada e premiada (BILAC, 1904, p. 10).
No parágrafo posterior, tal dado ganha novos contornos e seu pensamento parece
ainda mais claro ao leitor: o trabalho estético não está em voga, e sim o de ordem
moralizante, calcado na ideologia de propagar valores como a importância dos estudos,
o amor ao território brasileiro, o respeito à casa, aos pais e, por conseguinte, ao
professor: “O que o autor deseja é que se reconheça neste pequeno volume, não o
trabalho de um artista, mas a boa vontade com que um brasileiro quis contribuir para a
educação moral das crianças do seu país” (BILAC, 1904, p. 10).
Em linhas gerais, as “teses” defendidas pela retórica bilaquiana expressam as
aspirações e diretrizes do sistema educacional brasileiro da segunda metade do século
XIX. Ganha força aqui a vertente positivista ancorada a quatro pilares que seriam, mais
tarde, polemizados por Coelho. Compondo os pilares anunciados, destacam-se o
nacionalismo, marcado pela dedicação à pátria, o culto às origens e à construção de
heróis locais; o intelectualismo, priorizando estudos e livros como meios de realização
social; o tradicionalismo cultural, elegendo modelos da literatura a serem assimilados e
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Na verdade, o exposto fragmento permite inferir que Lobato, leitor exímio de Barrie
e solidário ao movimento escolanovista, explicitava uma visão que o aproximava dos
princípios iluministas difundidos pelo pensador Jean Jacques Rousseau. Em linhas
gerais, há para o filósofo francês uma hipervalorização da natureza, definindo-se o
homem como um desdobramento desta. O sujeito, por conseguinte, seria naturalmente
bom. O problema se encontraria na sociedade civilizada, que o afasta de sua essência.
Por isso, Rousseau almejava que as crianças vivessem por mais tempo possível em seu
estado natural de inocência, ao passo que Lobato, também comungando desse
paradigma, acreditava que a causa do mal proporcionado pelos adultos – em especial as
guerras – residia no fato destes terem se distanciado de sua respectiva “essência
natural”, ou seja, a infância.
Assim, apoiando-se nesse viés, Lobato, no artigo “A Criança é a Humanidade de
Amanhã” (Conferências, Artigos e Crônicas (1948)), denuncia as condições de
produção e circulação dos livros brasileiros no princípio do século XX, fixando-se no
impasse da formação de leitores. Nessa direção, critica a abordagem educacional
empirista, que desconsiderava as particularidades e potencialidades da criança,
entendendo-a como mero elemento passivo na relação ensino x aprendizagem. No
entanto, o autor investe sua apreciação sobre os textos estritamente pedagógicos
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-Não faça caso! – Gritou Emília. Eles não sabem o que dizem.
Pedrinho quando diz uma coisa é por que é. Pode acreditar nele.
-Obrigado pelo consolo, bonequinha. Tua opinião e a de Pedrinho
valem muito para mim, por que em ambas vejo grande necessidade
(LOBATO, 1931, 138, grifos nossos).
conversa com Godofredo Rangel, recomenda a ele que, antes de publicar qualquer conto
nessa área, submetesse-o à avaliação de alguns garotos, cujo “veredicto” seria
fundamental para determinar o destino da obra. Essa era, inclusive, uma prática adotada
pelo autor ao projetar o lançamento de seus livros no competitivo mercado nacional.
Além disso, Lobato defendia o texto infanto-juvenil como um peculiar gênero
literário, uma produção revestida de artisticidade. Tal posicionamento, nas primeiras
décadas do século XX, repercutiu em considerável polêmica, uma vez que, tanto para a
crítica local quanto para a maior parte dos reconhecidos escritores brasileiros, a
literatura para crianças, que lentamente se projetava, não era definida como objeto
estético, mas simples material pedagógico.
Atento a esse preconceito, que se estenderia pelos decênios seguintes, o autor, em
Histórias Diversas (1947), consagra Visconde de Sabugosa como literato e o conduz à
Academia Brasileira de Letras para a cerimônia de posse. Sua eleição mostrava-se
excessivamente tumultuada, já que os ilustres membros da Academia o desconheciam.
Nesse sentido, o registro denuncia e satiriza a pouca atenção dispensada pelos
intelectuais do período para a ficção infanto-juvenil nacional, em contraste com a
apreciação positiva que endereçavam à literatura sem o adjetivo.
Havendo o Visconde de Sabugosa entrado para a Academia Brasileira
de Letras, Dona Benta fez questão de ir ao Rio, com todo o pessoal do
sítio, a fim de assistir à cerimônia de posse. A eleição do Visconde
ocorrera muito barulhenta graças à imposição dos imortais que não
tinham em casa filhos crianças e, portanto, ignoravam quem fosse o
tal “sabugo científico” (LOBATO, 1947, p. 86, grifos nossos).
Outro ponto pertinente para Lobato é de que o texto não deveria se fixar no anseio de
auxiliar a criança a se inserir na realidade adulta, transmitindo-lhe preceitos morais, mas
permitir com que ela evadisse da vida cotidiana, transferindo-se a um universo interno
às malhas textuais.
Nesse sentido, o escritor procurava minimizar a grande assimetria que era inevitável
na literatura infanto-juvenil, ou seja, o fato de ser escrita e comercializada por adultos,
mas consumida pela criança. Para isso, Lobato propõe a ruptura da rigidez gramatical,
da linguagem hermética, lançando livros que pudessem ser absorvidos como se o leitor
estivesse ouvindo a história em um contexto informal.
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Tendo em vista o que foi explorado, ratifica-se que, para Lobato, o texto infanto-
juvenil constitui uma especial modalidade da literatura e, por conseguinte, um objeto
cultural altamente artístico. Sua especificidade deve-se ao fato de se dirigir a um
destinatário ainda jovem, projetando-o na escritura como um leitor implícito.
Ana Maria Machado teve a infância marcada pelo efetivo contato com os títulos de
Monteiro Lobato – fato, inclusive, decisivo na consolidação de sua carreira. Assim,
consagrando-se com um estilo incomum e na condição de seguidora da proposta
lobatiana, chegou a ser indicada ao júri que integra o International Board on Books
Yang People (IBBY), recebendo, em 2000, o prêmio H. C. Andersen pelo conjunto de
sua obra.
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Revisitando sua obra, Lajolo (1995) apregoa que em vários pontos a trajetória da
autora em questão se cruza com a percorrida por Lobato nos anos 20, 30 e 40. Entre os
pontos que merecem destaque, a pesquisadora observa a “modernização do texto, a
coloquialização da linguagem, o arejamento das mensagens, a concepção de criança
leitora como inteligente e inventiva, além de uma atitude radicalmente crítica da
realidade brasileira” (p.73).
Tendo em vista essas relações, é prudente ainda salientar que a própria autora assume
abertamente seu vínculo com Lobato. É o que explicita tanto nos depoimentos contidos
na publicação Ana e Ruth: 25 anos de literatura, quanto na seqüência de artigos
enfeixados no livro Contracorrente: conversas sobre leitura e política. Aqui, Machado,
examinando o percurso histórico da literatura infanto-juvenil brasileira, sublinha a
contribuição de Monteiro Lobato no processo de construção, consolidação e legitimação
da literatura para crianças e jovens como gênero.
Tendo em vista essas relações, é prudente ainda salientar que a própria autora assume
abertamente seu vínculo com Lobato. É o que explicita tanto nos depoimentos contidos
na publicação Ana & Ruth: 25 anos de literatura (1995), quanto na sequência de artigos
enfeixados no livro Contracorrente: conversas sobre leitura e política (1999). Aqui,
Machado, examinando o percurso histórico da literatura infanto-juvenil brasileira,
sublinha a contribuição de Monteiro Lobato no processo de constituição, consolidação e
legitimação da literatura para crianças e jovens como gênero.
Situando-se em um período histórico diferente do vivenciado por Lobato, a escritora
acompanha as múltiplas transformações no campo da teoria literária, os novos
paradigmas sustentados pela crítica nacional e as mais recentes vertentes na esfera
pedagógica. O texto estético, agora, passa a ser visto como equacionado em seus
aspectos sociais e ideológicos, passível ao diálogo com outros textos, pleno de lacunas a
serem preenchidas pelo leitor no processo de interação.
A concepção de criança, sustentada no início do século XX pelo aporte de Rousseau,
ganha novos contornos ante as contribuições do cognitivismo piagetiano e da pedagogia
histórico-crítica.
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Imersa nesse novo contexto, Machado define a literatura infanto-juvenil não como
aquela que será lida exclusivamente pelo público em questão, mas também por esses
leitores – o que confere ao termo absoluta amplitude.
A gramática ensina que os adjetivos podem ser explicativos ou
restritivos. No primeiro caso, referem-se a uma qualidade essencial do
ser. No segundo, a uma qualidade acidental. No entanto, se
considerarmos o sintagma literatura infantil, essa classificação cai por
terra. Evidentemente, não se trata de uma qualidade essencial da
literatura, há toda uma literatura que não é infantil. E apesar disso,
paradoxalmente, não se pode dizer que nesse caso o adjetivo tem um
papel restritivo. A rigor, ele não restringe o sentido do substantivo. Ao
contrário, o amplia. Literatura infantil é aquela que pode ser lida
também pelas crianças (MACHADO, 1995, p. 57).
Em última análise, vale afirmar que Ana Maria Machado, bem como parte
significativa dos escritores consagrados que integram o mercado editorial
contemporâneo (cabendo aqui uma longa lista que agrega Ziraldo, Ruth Rocha,
Fernanda Lopes de Almeida e Lygia Bojunga Nunes, entre outros), teve na infância
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amplo contato com os livros de Lobato. Esse dado pode ser paralelamente ilustrado com
a assertiva de que não existia competição entre os meios de comunicação de massa do
passado. Segundo Penteado (1999), pelo fato de não haver TV ou facilidades para ir ao
cinema, bem como revistas em quadrinhos e outros textos literários do mesmo porte da
série O Sítio do Picapau Amarelo, particularizava-se a saga dos netos de D. Benta como
relevante mídia entre os anos 20 e 50. Nesse sentido, o citado grupo de autores se
inscreve em uma geração que, mais tarde, Penteado referir-se-ia como filhos de Lobato,
e que Coelho (1995), não obstante, rotularia como pós-lobatianos.
Considerações finais:
Referências
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Ouro, 1972 [primeira edição em 1911].
BILAC, Olavo Poesias infantis. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1957
[primeira edição em 1904].
CADERMATORI, Lígia. O que é Literatura Infantil. São Paulo: Brasiliense, 1986.
_______. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Ed. Moderna, 2000.
LAJOLO, Marisa. Ana Monteiro & Ruth Lobato ou vice-versa? In: BASTOS, Dau Ana
& Ruth: 25 anos de literatura. Rio de janeiro: Salamandra, 1995.
______. Histórias Diversas. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1972 [primeira edição em
1947].
______. Cartas Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1961 [primeira edição em 1948].
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MACHADO, Ana Maria Leitura Infantil In: BASTOS, Dau Ana & Ruth: 25 anos de
literatura. Rio de janeiro: Salamandra, 1995.
MACHADO, Ana Maria A expansão da literatura infantil In: BASTOS, Dau Ana &
Ruth: 25 anos de literatura. Rio de janeiro: Salamandra, 1995.
MACHADO, Ana Maria Contracorrente: conversas sobre literatura e política. São
Paulo: Editora Ática, 1999.
PENTEADO, José. Os filhos de Lobato: o imaginário infantil na ideologia do adulto.
Rio de Janeiro: Qualitymark / Dunya, 1997.
PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves (Re) criando e (Com) partilhando a palavra:
considerações sobre a linguagem de Ana Maria Machado. In: PEREIRA, Maria Teresa
Gonçalves, ANTUNES, Benedito. Trança de Histórias: a criação literária de Ana Maria
Machado. São Paulo: Editora da Unesp, 2004.
ZILBERMAN, Regina. Como e por que Ler a Literatura Infantil Brasileira. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2005.
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Introdução
1. Diáspora e Multiculturalismo
1.1. Diáspora
O termo diáspora (do grego diasporein: semear) refere-se à dispersão de povos de
seus países de origem para outras regiões do mundo (ASHCROFT, 1998), constituindo
em um trauma coletivo de um povo que voluntária ou involuntariamente foi exilado da
sua terra e, vivendo em um lugar estranho, sente-se deslocado de sua cultura e de seu
lar.
A palavra diáspora frequentemente invoca a imagem de dispersão forçada,
separação, exílio, traumas, como ocorreu na escravidão. Em contrapartida, na diáspora
contemporânea o termo pode assumir uma conotação positiva, uma vez que o
deslocamento é caracterizado por situações que não são nem traumáticas e nem
associadas com desastres. (REIS, 2004). A busca por emprego e de oportunidade de
estudo, facilitados pela globalização, são razões suficientes para estimular o processo
diaspórico no contexto contemporâneo.
Reis (2004) aponta três períodos principais no processo diaspórico pelo mundo: (1)
O Período Clássico – envolve não apenas a diáspora judaica, mas a dispersão dos gregos
(de onde se origina o termo) na colonização da Ásia Menor (Oriente Médio) e da região
do Mediterrâneo no período de 800-600 a.C. (2) O Período Moderno – inclui os Mouros
na Espanha, assim como os Ciganos no início do século XIV. Também registra-se um
modelo diaspórico, dentro do colonialismo, que envolve o próprio colonizador, que nos
séculos XV, XVI e XVII, deixou sua terra natal e foi para terras estrangeiras estabelecer
suas colônias de exploração capitalista. Durante esse período muitos nativos foram
dizimados, principalmente nas Américas, o que resultou na necessidade de reposição de
trabalhadores nas colônias, desencadeando assim, o tráfico de escravos da África. Esses
povos eram forçados a deixar seus países para trabalhar em terras estrangeiras em
péssimas condições de sobrevivência. (3) A Diáspora Contemporânea – período que
iniciou em 1945 com o fim da II Guerra Mundial e estende-se até o presente.
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identidade. Eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas
linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. (HALL, 2006, p.89).
Nesse sentido, podemos perceber que a diáspora não se limita ao fato histórico de
mudanças de pessoas de um lugar para o outro, mas, a partir de seu aspecto funcional de
relações de poder, inserem-se em seu contexto contemporâneo grandes problemas como
relações de classe e racismo, provocados pelas diferenças de raça e cultura, que as
estratégias políticas multiculturais tentam contornar.
1.2. Multiculturalismo
Enquanto Hall (2003) o considera uma estratégia política racista, Gilroy (2006)
defende o multiculturalismo como a solução para os países hegemônicos enfrentarem o
seu passado colonial. Ele propõe um outro termo para designar o multiculturalismo, o
que chama de “convivialidade”. Para Gilroy (2006), este conceito
Chanu, um homem medíocre, enfadonho, pseudo-intelectual e muito mais velho que sua
noiva. Após o casamento, eles vão para a Inglaterra, tornando-se um dos milhares de
imigrantes orientais que vivem em Londres em busca de melhores condições de vida.
Entretanto, esses imigrantes ao chegarem à Inglaterra encontram um contexto muito
diferente do que eles imaginavam, passando por todos os processos de exclusão social e
sofrendo as desvantagens que o racismo lhes impõe. A maioria do povo britânico olhava
esses “filhos do Império” como se não pudessem sequer imaginar de onde “eles”
vinham, por que ou que outra relação eles poderiam ter com a Inglaterra. (HALL, 2003).
Alguns imigrantes, apesar de altamente qualificados, como Chanu na obra em análise,
enfrentam o que Hall (2003) designa de “teto de vidro”, ou seja, o bloqueio à promoção
nos níveis superiores da carreira profissional:
Mesmo com todos os seus certificados e seu conhecimento, Chanu nunca conseguiu
a promoção que tanto almejava, atribuindo seu fracasso profissional ao racismo e ao
preconceito da sociedade britânica que julga como inferior os ‘outros’:
Meu marido diz que eles são racistas, principalmente o sr. Dalloway.
Ele acha que vai conseguir a promoção, mas que vai levar mais
tempo do que qualquer homem branco para consegui-la. Ele diz que
se pintasse a pele de branco e rosa, aí não haveria problema. [...].
(ALI, 2004, p.68).
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Para a mulher diaspórica torna-se ainda mais difícil esse espaço no ambiente cultural
dominante, especialmente por ser subjugada pelo gênero e pelos ditames patriarcais. Ao
chegar à Inglaterra, Nazneen é confinada em um pequeno apartamento numa
comunidade reclusa e invisível para o restante da sociedade inglesa. Ao invés de
conhecer as possibilidades ofertadas pelo novo país, ela acaba por ser vítima do
patriarcalismo de sua antiga nação, sendo obrigada a seguir as tradições impostas pela
cultura bangladeshiana. A vida de Nazneen é projetada para ser semelhante à de muitas
mulheres diaspóricas muçulmana: cuidar das tarefas domésticas, do marido, dos filhos:
“[...] Nazneen limpava e cozinhava e lavava. Ela preparava o café de Chanu e o servia
enquanto ele comia, juntava suas canetas e guardava-as em sua pasta. [...] Ela fazia a
cama e arrumava o apartamento [...]”. (ALI, 2004, p.37).
Chanu exercia sobre sua esposa uma força silenciosa que tinha como propósito
oprimi-la e desencorajá-la a exercer qualquer atividade social, como ir à rua, fazer
amizades, estudar inglês. Quando ela pedia para sair Chanu sempre a repreendia
dizendo: “Por que você deveria sair? Se você sair, dez pessoas irão dizer, ´Eu a vi
andando na rua´. E eu vou fazer papel de bobo. Pessoalmente, eu não me importo que
você saia, mas este pessoal é muito ignorante. O que se pode fazer?”. (ALI, 2004, p.42).
Submissa a autoridade do marido, Nazneen não o questionava e aceitava tudo
passivamente, sempre pensando nas palavras de sua mãe: “Se Deus quisesse que nós
fizéssemos perguntas, ele nos teria feito homens”. (ALI, 2004, p.76). Sua única
distração, deste modo, era assistir a patinação no gelo pela televisão, algo que mexia
profundamente com seu íntimo, e visitar a sua vizinha Razia, uma bangladeshiana que
busca ocupar seu espaço no contexto britânico hegemônico.
Ao contrário de Nazneen, Razia assimila rapidamente a cultura ocidental,
apropriando-se da língua do país colonizador, cortando os cabelos, trocando o sári por
vestimentas ocidentais e começando a trabalhar como costureira em uma fábrica. A
personagem expressa sua identificação à nova cultura, vestindo-se com um casaco de
moletom com uma grande bandeira da Inglaterra na frente e declarando: “Cidadã
Britânica”. (ALI, 2004, p.217). Contudo, após o fatídico 11 de setembro de 2001, Razia
sente-se perseguida pela Inglaterra ‘supostamente’ materna e multicultural: “[...] Razia
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usou a sua blusa com a bandeira da Inglaterra e cuspiram nela [...]”. (ALI, 2004, p.350).
Tal atitude simboliza o poder e a hierarquização da sociedade britânica sobre os
imigrantes, estando longe de ser ideologicamente multicultural, uma vez que não admite
a inclusão de pessoas de diferentes culturas e exclui radicalmente os indivíduos
diaspóricos que não fazem parte de sua etnicidade.
Diante do exposto, podemos observar duas mulheres diaspóricas que são oprimidas e
subjugadas pelo gênero e pela sociedade em que vivem. Enquanto Nazneen é obrigada a
submeter-se aos ditames patriarcais de sua tradição ancestral, Razia, apesar de assimilar
a nova cultura, é excluída e outremizada pela sociedade inglesa, reiterando a idéia de
que o sujeito diaspórico só é sujeito dentro de sua comunidade, pois fora dela, ele é o
‘outro’.
Ele a beijou na boca e levou-a para o quarto. Tire a roupa, ele disse, e
deite-se na cama. Ele saiu do quarto. Ela vestiu a camisola e se deitou
debaixo dos lençóis. Pela janela, ela contemplou um pedaço de céu
azul e uma faixa branca de nuvem. Ela puxou o lençol até o pescoço
e fechou os olhos. O que ela queria fazer era dormir. Ela estava com
febre e seu corpo estava tremendo. Ela enfiou o rosto no travesseiro e
gemeu e quando ele beijou sua nuca ela tornou a gemer (ALI, 2004,
p.274).
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Assim, seguindo os passos de Karim e de suas filhas para os quais a Inglaterra é sua
terra e adquirindo algumas características liberais da cultura ocidental, ela recusa-se a
voltar para Bangladesh com Chanu e renega seu romance com Karim, negociando sua
estada na Inglaterra junto com suas duas filhas, porém, sem deixar completamente sua
cultura e sua individualidade.
Repelindo a vida passada e assimilando alguns aspectos da cultura britânica, por
mais problemático que isso possa ser, Nazneen juntamente com Razia iniciam suas
vidas como mulheres agentes e negociam seu espaço em um ambiente multicultural:
Conclusão
Como se pode constatar por meio do breve estudo que acabamos de desenvolver, é
possibilitado ao leitor analisar o status da mulher diaspórica bangladeshiana no contexto
hegemônico londrino, através das personagens Nazneen e Razia.
Nazneen, a bangladeshiana fiel à sua cultura islâmica, transgride as fronteiras
impostas pelo gênero, renega seu casamento com Chanu e negocia seu espaço na
conflituosa comunidade londrina. Razia demonstra de forma enfática a sua assimilação
à cultura britânica. Mesmo sendo discriminada em diversos momentos da narrativa, ela
luta para romper as barreiras impostas pelo país em que vive e ter melhores
oportunidades econômicas, montando sua própria facção.
Nesse sentido, se cada personagem feminina preserva um pouco de sua cultura
ancestral, não deixam também de negociar com uma sociedade ‘homogênea’ branca
caracterizada por ‘olhos hostis’ frente à invasão de suas fronteiras.
Referências
Introdução
Os tipos de riso são tão variados, possuem tantos aspectos que cabe ao leitor /
decodificador da obra de arte (literatura, música, pintura, escultura, enfim, todas as
manifestações da expressividade do ethos humano) captar qual riso foi proposto pelo
enunciador, por um pathos realmente intencionado do artista.
Caso contrário, cai-se na ingenuidade de interpretar a obra de maneira superficial e
imprimir o riso frouxo ou leve, fácil, a algo que não foi dito pelo parodista ou ironista.
Em nosso trabalho, vamos explorar justamente essas intenções do não dito, da ironia
mais profunda, julgadora, enraizada na paródia que a escritora brasileira Marina
Colasanti cria a partir de um mito muito conhecido no cânone literário mundial – o
“Mito de Sísifo”. É com a estrutura dos minicontos, ou como a própria definição trazida
na contracapa de Contos de Amor Rasgados define esse hermético e eximiamente
construído novo gênero do conto – “São minicontos, pequenas fábulas ou talvez curtos
poemas em prosa...” (COLASANTI, 1985) – que Colasanti tece a paródia “Ela era sua
tarefa” a “pouca tinta”. Por se tratar de uma narrativa poética, erigida em não mais que
uma página (às vezes disposta em apenas um parágrafo), torna-se ainda mais
dispendiosa a tarefa daquele leitor / decodificador a que nos referimos acima, de
1
Aluno de mestrado bolsista da FAPESP (Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo),
orientado pela Profª. Dra. Cleide Antonia Rapucci.
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que iremos desenvolver nosso estudo. Além dessa estudiosa, empregaremos teóricos
que, em suas obras, trataram do riso, humor, ironia, paródia e sátira, como o fizeram
Henri Bergson, Vladimir Propp, Elias Thomé Saliba, Beth Brait, Klaus Gerth, Matthew
Hodgart, dentre outros.
Paralelamente à elucidação do humor na narrativa por nós selecionada, também
faremos uma análise do miniconto “Ela era sua tarefa” sob o escopo da Teoria e Crítica
Literária Feminista, sobretudo a vertente da Ginocrítica, concebida pela estudiosa de
gênero em textos de autoria feminina, Elaine Showalter. Entendemos ser crucial essa
investigação pelo fato dessa narrativa estar impregnada de relações de gênero, sobretudo
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Conclusão
Podemos concluir, por meio de nossa análise, que a escritora Marina Colasanti, em
sua paródia “Ela era sua tarefa” se vale o tempo todo da ironia que causa o riso
escarnecedor, mas que também incute a galhofa, a zombaria. Contudo, como
demonstramos, é perigoso tentar assimilar a intenção dessas ironias apenas
superficialmente, pois elas contêm críticas, julgamentos de comportamentos ainda
muito recorrentes na sociedade de hoje (a escritora publicou Contos de amor rasgados,
inicialmente, há 25 anos – daí a qualidade e relevância que seus textos têm, por ainda
carregarem consigo uma carga semântica muito forte e atual).
E essa crítica, nessa paródia, não pode ser compreendida como sátira, apesar de
encontrarmos algumas características desse subgênero no texto da autora que
estudamos.
Vimos que, apesar dos dois textos de Colasanti se afastarem e se diferenciarem do
“Mito de Sísifo” quanto à estrutura formal e, acima de tudo, ao enredo, não estão
ausentes elementos que corroborem que suas paródias, de certa forma, também laureiam
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esse último texto, porém mantém-se o “distanciamento com diferença” de que Linda
Hutcheon fala, o bouncing (movimento de vai-e-vem).
Além disso, pudemos constatar que essa paródia construída por Colasanti traz
consigo uma carga metafórica muito forte, aproximando a prosa da poesia. A metáfora,
comparada à paródia, destarte, de acordo com Linda Hutcheon:
Em certo sentido, pode dizer-se que a paródia se assemelha à
metáfora. Ambas exigem que o descodificador construa um segundo
sentido através de interferências acerca de afirmações superficiais e
complemente o primeiro plano com o conhecimento e reconhecimento
de um contexto em fundo. (HUTCHEON, 1989, p. 50).
Referências
______. Teoria e política da ironia. Trad. JEHA, Julio. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2000, 359 p.
______. Uma teoria da paródia: Ensinamentos das formas de arte no século XX. A
Theory of Parody. Trad. PÉREZ, Teresa Louro. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 45-68.
OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença: o feminino emergente. 1. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1991, p. 84.
PAULSON, Ronald. (Editor). Satire: Modern Essays in Criticism. Englewood Cliffs,
New Jersey: Prentice Hall, Inc., 1971, 378 p.
PEIXOTO, Afrânio. Aspectos do “humour” na literatura nacional. In: ______. Poeira
da estrada. Ensaios de crítica e de história. Revista pelo Autor. Rio de Janeiro: W. M.
Jackson, 1947. p. 276-318.
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Série Fundamentos. Trad. BERNARDINI,
Aurora Fornoni; DE ANDRADE, Homero Freitas. São Paulo: Ática, 1992, 215 p.
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: A representação humorística na história
brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, 366 p.
SHOWALTER, Elaine. A literature of their own: from Charlote Brontë to Doris
Lessing. New Jersey: Princeton UP, 1985.
ZOLIN, Lúcia Osana. “Crítica feminista”. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana
(org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2. ed.
Maringá: Eduem, 2005, p. 181-203.
Anexos
Desde sempre. Até o momento em que, cravando os dentes e agarrando as unhas nas
pedras daquele cimo árido, a mulher contém seu destino. E erguidas aos poucos as
costas, mal equilibrada ainda sobre si, faz-se de pé.
Desaparece quase a luz do sol, o último alento vermelho tinge a mão do homem. Que
se levanta. E firme, empurra a mulher pelas costas, monte abaixo.
(COLASANTI, Marina, 1986, p. 99)
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Introdução
Bem sei que Roma não é a Cachoeira, nem as gazetas dessa cidade
baiana podem competir com historiadores de gênio. Mas é isso mesmo
que deploro. Essa parcialidade dos tempos, que só recolhem,
conservam e transmitem as ações encomendadas nos bons livros, é
que me entristece, para não dizer que me indigna. Cachoeira não é
Roma, mas o punhal de Lucrécia, por mais digno que seja dos
encômios do mundo, não ocupa tanto lugar na história, que não fique
um canto para o punhal de Martinha. [...]
Se, ao menos, o punhal de Lucrécia tivesse existido, vá; mas tal alma,
nem tal ação, nem tal injúria, existiram jamais, é tudo uma pura lenda,
que a história meteu nos seus livros. A mentira usurpa assim a coroa
da verdade, e o punhal de Martinha, que existiu e existe, não logrará
ocupar um lugarzinho ao pé do de Lucrécia, pura ficção. Não quero
mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis às
realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das coisas
tangíveis em comparação com as imaginárias. Grande sabedoria é
inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e
acabar acreditando que não há pássaros com asas... (ASSIS, 2010-a)
Eis uma pequena ponta de sabedoria cética escrita no fim do século XIX, o século
positivista. Ao comentar a história clássica e o tanto de falsa grandiosidade que nela
existe, Machado discute de forma simples e exemplificada o mesmo tema que
desenvolveu incessantemente em toda a sua obra literária: os limites entre o dito e o ato,
a fala e o fato, o discurso e a verdade. Este tema, identificado pelo professor Antônio
Cândido (1970, p.25-6) como um dos traços da modernidade da prosa machadiana,
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adquire uma importância singular para quem deseja fazer as pontes entre a literatura e
história partindo de sua obra.
Na verdade, tal temática desdobra necessariamente em um jogo de ambigüidades
perigoso para o pesquisador, que será obrigado tanto a ler a história através da literatura
quanto a literatura através da história. Pelo menos, tratando-se de Machado de Assis,
seria impossível escolher apenas um destes dois caminhos sem condenar-se a
superficialidades. Se em uma simples crônica a respeito de um assassinato, nós leitores
somos conduzidos a uma dúvida radical e cética sobre a relevância e veracidade de
determinados fatos contados em nossa historiografia, o que diremos então de uma
novela tão complexa quanto O Alienista, publicada originalmente em 1882 na coletânea
Papéis Avulsos, poucos anos antes do Brasil deparar-se com a proclamação de sua
República?
O presente trabalho pretende ler a célebre narrativa da literatura brasileira através
dessa via de mão dupla com a história, onde ficção e realidade estão postas
simultaneamente num jogo de reinvenção do mundo através da escrita. Gostaríamos de
mostrar como Machado utiliza-se deste profético “pássaro sem asas”, que é a ficção,
para revelar o quanto a história tem, em si própria, de absurda, inverossímil e irracional.
Para isso, analisaremos como se dá a crítica machadiana ao positivismo, doutrina
científica e moral arraigada na sociedade brasileira da época de Machado, tanto em um
nível narrativo quanto retórico. Assim, dedicaremos a primeira parte deste trabalho para
a descrição da cultura da Belle Époque, seguido de uma análise de como ela é retratada
em O Alienista por meio da sina trágica do cientista Simão Bacamarte, contada por esse
narrador/historiador a partir das ditas “crônicas de Itaguaí”.
1.A utopia cientificista do republicanismo brasileiro
O Brasil da segunda metade do século XIX viu circular entre as elites dos meios
urbanos um ímpeto enérgico de modernização técnico-científico que teve origem na
Europa e nos Estados Unidos, lugares que viviam o recente impacto da chamada
Segunda Revolução Industrial e que cintilavam como modelos de prosperidade a serem
seguidos por outros países do continente americano. O surgimento instantâneo e
simultâneo de uma série de novas tecnologias, como a luz elétrica, o cinema e o bond,
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tiveram uma pesada conseqüência para os hábitos da vida cotidiana, que começaram a
se alinhar com a expansão das fronteiras do capitalismo a níveis globais, tendo como
modelo cultural principalmente os países da Europa. As conseqüências deste
movimento histórico para o Brasil foram imensas, e fazem parte do contexto da
proclamação e aceitação do regime político republicano e da sedimentação da economia
capitalista no país.
Inserido na conjuntura da expansão do ideário positivista na América Latina como
um todo, a história nacional teve como marco da consolidação do republicanismo a
fundação do Partido Republicano, em 1870. Tal como o México, o Chile e a Argentina,
a faceta brasileira dessa doutrina encontrou na filosofia de Comte o modelo que
explicava os impasses políticos que passavam na época.
Segundo Nicolau Sevcenko (1998-a, p.14), além do positivismo comtiano, a nova
elite intelectual brasileira respaldava-se também na corrente do darwinismo social de
Spencer e no monismo alemão. Baseada nestas visões de mundo marcadas pela plena
convicção na “evolução”, no “progresso” e na “regeneração”, não faltaria muito tempo
para que, depois da fundação do partido em 1870, a República fosse proclamada com
um golpe militar que destituiu o imperador Pedro II de seu trono, instaurando o regime
presidencialista em 1889, apenas um ano depois da libertação dos escravos, em 1888.
Parecia inevitável que o país sofresse por sucessivas mudanças políticas, sociais e
culturais nos anos que se seguiriam. O que não se sabia ainda eram as conseqüências
dessas mudanças. O Alienista, publicado em 1882, pode ser entendido como uma
previsão cética de Machado em relação a esses acontecimentos iminentes.
Sabe-se hoje, a partir do estudo de José Murilo de Carvalho em Os Bestializados
(1987), que as camadas populares assistiram passivamente a essa “mudança”
arquitetada pelos militares positivistas, sem que pudessem participar dela ou
compreender a sua amplitude. De fato, como a história nos mostrou em seus
desdobramentos, o projeto utópico de uma nova sociedade defendido pelos republicanos
não se revelou nem um pouco preocupado com os problemas das classes mais humildes.
Pelo contrário; a leitura do darwinismo social e a interpretação do positivismo comtiano
que se aplicaram no Brasil viam neste contingente de pessoas um problema, uma chaga
social a ser curada. O desejo do progresso e do alinhamento das cidades brasileiras com
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as capitais européias levou o Rio de Janeiro, então capital brasileira, a uma campanha de
higienização e reconstrução da cidade em padrões europeus que ficou conhecida como a
“Regeneração”.
Não à toa, a passagem do Império à República foi marcada por uma mudança
abrupta da forma com que o brasileiro olhava para a sua história. Diferentemente da
época da independência, em que as imagens do patriotismo estavam ligadas a um
retorno às origens idílicas de um país rico de naturezas, o projeto republicano repudiou
todas essas lembranças “selvagens” ao vangloriar o homem cosmopolita e afinado com
o exterior. Na literatura, este momento é identificado com a passagem dos discursos
patriotas do romancista José de Alencar e do poeta Gonçalves Dias para o apego à
ciência e à estética escatológica de Aluísio de Azevedo. Inspirada pelo escritor francês
Émile Zola, viu-se florescer na literatura brasileira da década de 1880 a escola
naturalista e seu apego incondicional às ciências da vida, principalmente à medicina e à
psiquiatria. Títulos como O Homem e A Carne refletem bem em seus enredos o poder e
o prestígio que a ciência médica tinha conquistado na época, representando uma
alavanca para o progresso e para a construção de uma sociedade civilizada.
Como não podia deixar de ser, a mesma década que viu especialistas clamarem por
uma “medicalização da sociedade” acabou por refletir, em sua literatura, a autoridade
que o discurso científico começava a ganhar no contexto da vida cotidiana carioca.
Quais são os indícios que nos levam a afirmar uma inevitável vinculação entre O
Alienista e uma reflexão a respeito do contexto histórico de sua publicação? É preciso
salientar que esta novela apresenta um elemento chave que a distingue de outros textos
machadianos: a referência explícita à historiografia. Devemos nos dar conta de que “as
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crônicas de Itaguaí” são uma espécie de personagem que, como vemos na primeira frase
da novela, aparece na narrativa antes mesmo do personagem principal, Simão
Bacamarte: “As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um
certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos
do Brasil, de Portugal e das Espanhas” (ASSIS).
Muitas das leituras que vinculam a obra de Machado ao contexto histórico de sua
época parecem não dar muita atenção ao fato de que o narrador de O Alienista é um
historiador que faz o papel de mediador entre as crônicas e o leitor. Kátia Muricy irá
interpretar esse “recuo no tempo” como “a escansão necessária para o autor sentir-se
mais à vontade na crítica às concepções científicas suas contemporâneas” (1988, p.33);
ou seja, a referência ao passado estaria indicando os meados do século XIX, quando é
decretada a criação do Hospício de Pedro II no Rio de Janeiro. Para a autora,
No entanto, a interpretação de Kátia Muricy não vai além desta hipótese de que as
crônicas apenas situam a narrativa na História. A autoridade deste narrador que se
baseia nas crônicas de Itaguaí não é, em nenhum momento, discutido pela autora em seu
estudo sobre O Alienista.
Já Luís Augusto Fischer (2008, p.199), para defender a tese de que o texto se baseia
em relações de verossimilhança, irá afirmar que as crônicas são “relatos de tipo
histórico que aparentemente afiançam a verdade do que vai sendo dito”, concluindo
assim que “o conjunto narrativo da novela, ainda que dê ares paródicos, centra sua força
no realismo”. As crônicas seriam então um recurso utilizado por Machado para afirmar
a verdade dos fatos, não deixar nenhuma dúvida ao leitor de que eles realmente
aconteceram.
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Mas é preciso se perguntar até que ponto não seria mais “realista” e
“verossimilhante” a simples utilização de um narrador onisciente em terceira pessoa, tal
como nos romances naturalistas inspirados em Emilé Zola. Ora, o narrador de O
Alienista fala em terceira pessoa, mas não é onisciente; pelo contrário, ele sabe apenas
aquilo que as crônicas de Itaguaí contam, chegando ao ponto de, em alguns momentos,
questionar a insuficiência dos documentos para esclarecer todos os detalhes da história,
como no seguinte trecho: “A derrota dos Canjicas estava iminente, quando um terço dos
dragões, — qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram — passou
subitamente para o lado da rebelião” (ASSIS). E, em outro momento, o narrador
contesta a veracidade das crônicas, dizendo:
A partir da leitura destes trechos, é possível então fazer uma leitura avessa a de
Fischer, no que diz respeito à verossimilhança da narrativa. A referência às crônicas de
Itaguaí pelo narrador de O Alienista deve ser entendida muito mais como um propósito
cético do que como uma forma de afiançar a veracidade. O fato de o narrador referir-se
explicitamente ao seu poder de reescrever, da maneira que lhe for mais conveniente, a
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Vê-se bem aqui como o narrador conta que a verdadeira opinião do boticário – a de
que a tese de Bacamarte era extravagante – não foi expressada; perante a autoridade
médica de seu amigo, Crispim Soares só teve coragem de dizer, com um “nobre
entusiasmo”, que concordava com ele, que ele não falava nada mais do que a pura
verdade. E, para completar, diz que esta descoberta “é caso de matraca”, ou seja, que é
notícia a ser espalhada por toda a vila de Itaguaí. Mas o mais ácido da ironia
machadiana está logo a seguir, quando o narrador ironiza ao explicar no que consistia o
uso da matraca e, ao mesmo tempo, questionar a confiabilidade deste sistema em
relação aos tempos atuais:
De fato, o destino reservado para Simão Bacamarte no fim da narrativa deve ser
interpretado como uma reflexão a respeito da crença inquestionável na palavra de ordem
positivista, na a evolução da ciência e no progresso da racionalidade. O positivismo,
herdeiro do iluminismo, pregava o natural progresso da razão a caminho de uma
verdade absoluta e via na ciência a prática que conduziria o homem ao conhecimento
pleno da realidade, a extinção de todas as dúvidas. No entanto, os caminhos da ciência
em O Alienista conduzem exatamente para o lado oposto da razão, revelando a loucura
que já existia, em estado latente, no projeto ambicioso de Bacamarte. Se a utopia
positivista pregava que a verdade do futuro é sempre “mais verdadeira” que as verdades
do passado, o ceticismo machadiano tomará o rumo contrário, e fará o fim da história
coincidir com o momento de maior dúvida a respeito da narrativa, quando entra em cena
o boato de Padre Lopes a respeito da loucura originária de Bacamarte.
todas as coisas. Uma percepção trágica do mundo parece impregnar essa historiografia
inventada que é O Alienista; para Machado, não é o progresso que sela o fim da
história, mas a morte, o desmoronamento da utopia.
Para nós que, atualmente, conhecemos tão bem a história desastrosa de nossa
República Velha, O Alienista pode parecer apenas mais uma destas estórias que nos
recontam a História, documento de papel que nos reflete o mundo como um espelho. No
entanto, se tivéssemos lido esta novela no alvoroço do Brasil de 1882, a sina de
Bacamarte deixaria no ar a mesma sensação de incerteza e dúvida que a vida brasileira
passava; muito mais que uma alegoria da alma humana ou uma irônica reinvenção do
passado, haveria nesta ficção um quê de mistério e profecia: nem pura ficção, nem pura
realidade, mas este “pássaro sem asas” que nos ensinaria a reconhecer no sonho do
progresso a sina da morte e do fracasso. Machado transpôs a tragicidade da vida para o
âmbito da História, e criou esta peça literária de escárnio que é O Alienista, uma cética
historiografia do futuro.
Referências
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Crônicas do jornal “A Semana” (1892-1900).
Disponível em: http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/cronica/macr12.pdf
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis Avulsos. Disponível em:
http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn003.pdf.
CANDIDO, Antônio. Esquema de Machado de Assis. In: ______. Vários Escritos. São
Paulo: Duas Cidades, 1970.
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que
não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
DANTAS, Luiz. O Alienista de Machado de Assis: a loucura e a hipérbole. In.
RIBEIRO, Renato Janine (Org.) Recordar Foucault. São Paulo: editora Brasiliense,
1985. p.144-152
FISCHER, Luís Augusto. Uma Coisa e outra e nenhuma delas: “O Alienista” In.:
___________ Machado e Borges – e outros ensaios sobra Machado de Assis. Porto
Alegre: Arquipélago, 2008. p.197-214
MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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Carlo Levi (1902-1975) foi escritor, jornalista, poeta, pintor e político italiano,
nascido em Turim, de família judia. Uma de suas primeiras atividades jornalísticas
começou em 1922, no jornal Rivoluzione liberale, fundado por Pietro Gobetti, em
tempos de consolidação de ideias socialistas que pregavam a aproximação aos
problemas do sul do país. Nessa época Levi também se iniciava na pintura e cursava
medicina, curso em que se formou em 1924.
A década de 1930 se abre com a opção de Levi pela pintura e pela escrita. Já em
1929 integrava o grupo “Sei pittori di Torino” (com Jessie Boswell, Gigi Chessa,
Francesco Menzio, Nicola Galante, Enrico Paolucci) e participava das mostras de
Turim, Gênova e Milão. Logo em seguida expôs nas Bienais de Veneza, em Buenos
Aires, em Roma e em Paris, onde abriu um estúdio. Contudo, seu interesse pelos
problemas sociais, civis e políticos motivou outras atividades além dos temas de seus
quadros. Do periódico de número único Lotta Politica, publicado clandestinamente em
Turim, ao programa revolucionário do declarado antifascista Quaderni di Giustizia e
libertà, publicado pelo grupo “Giustizia e libertà”, fundado em Paris (refúgio de vários
intelectuais torineses) por Carlo e Nello Roselli, suas ideias tomaram forma em ensaios
cujos pontos centrais são as reivindicações de reformas sociais e de soluções para o
problema meridional, além de uma das questões cruciais para o jornalista Carlo Levi - a
autonomia, princípio fundador da revolução italiana, que deveria seguir a queda do
fascismo.
Dois escritos importantes, “Seconda lettera dall’Italia” e “Il concetto di
autonomia nel programma di GL”, publicados em março de 1932, respectivamente no
segundo e quarto número de Quaderni di Giustizia e Libertà, podem servir como
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1
Confinamento (confino) era uma medida policial introduzida em 1931 para substituir a prisão
domiciliar, e consistia em impor ao condenado o seu deslocamento e permanência em região distante de
seu local de residência.
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2
O livro apareceu primeiro aos capítulos na revista Il Ponte, fundada em janeiro de 1945 e dirigida por
Piero Calamandrei. A revista privilegiava assuntos políticos, econômicos e sociais. Inspirada nos ideais
da Resistência, Il Ponte procurava não mitificar aqueles tempos dramáticos, mas manter os ideais
humanistas, a dignidade coletiva após a ruína deixada pela guerra e pelo fascismo.
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Na altura de 1945 Levi vivia em Roma e dirigia L’Italia Libera, e em 1946 era
candidato para a Constituinte, motivo que o levou de volta para a Lucânia, em
campanha política. Foi durante esse retorno que encontrou o jovem poeta Rocco
Scotellaro, com o qual estabeleceu uma relação literária de efeitos muito positivos. Levi
voltou em outras ocasiões para visitar várias regiões do sul do país. As viagens à Sicília
produziram o livro Le parole sono pietre, publicado em 1955.
Após vários escritos gerados em anos profícuos para a literatura, no início da
década de 1960 Levi começou a pintar uma grande obra, o “Lucania ‘61”, apresentado
em Turim durante as comemorações do primeiro centenário da unidade italiana, em
1961. A pintura está exposta numa sala dedicada a Carlo Levi no Palazzo Lanfranchi,
em Matera, na Lucania. Pode-se observar no gigantesco painel algumas cenas que
sintetizam certas passagens do livro que rememora o deslocamento de Levi para a
região devastada pela miséria.
Durante os anos de 1960 a atividade política de Levi esteve livre de legenda de
partido - ele era um candidato “independente de esquerda”, qualificação com a qual foi
eleito senador, por dois mandatos. As mostras de pintura com suas obras continuaram a
se organizar por todo o país. Em 1974, após sofrer consequências de sérios problemas
de saúde, retornou ao sul para apresentar sete litografias inspiradas em Cristo parou em
Eboli, na Lucânia. Em janeiro de 1975 Carlo Levi faleceu em Roma, e foi sepultado em
Aliano.
Após a cena de abertura, o tempo volta através da data “1935” no meio da tela, e
vemos Carlo Levi (interpretado por Gian Maria Volonté) desembarcando na estação de
trem de Eboli, onde troca de trem, sempre acompanhado por dois oficiais. Seguem para
Pisticci, o fim da linha. Depois acompanhamos Levi num automóvel coletivo por uma
estrada tortuosa, subindo a serra, com a visão de duas pequenas cidades, até um
cruzamento em que somente Levi e seus guardiões embarcam num automóvel de
direção inglesa, cujo condutor faz questão de se referir às origensdocarro, comprado
com o dinheiro que havia conseguido trabalhando na América. Assim, Rosi recompõe o
exílio de Levi segundo uma linha tempo-espacial mais fiel à realidade, restituindo a
sequência original do percurso e, mais que isso, oferecendo um sentido mais palpável
para o título da obra. O caráter memorialístico também ganha destaque graças à cena de
abertura e às falas em off que permanecem trazendo passagens do livro durante a
viagem através da paisagem lucana.
A escrita das memórias revisita as impressões do exilado através das diversas
histórias de habitantes locais, camponeses que desenham um painel de homens e
mulheres mostrando as razões da emigração, a exclusão dessa população pelo Estado, o
misticismo religioso, as péssimas condições de saúde. De um modo geral e panorâmico,
a obra cumpre uma função semelhante à do painel “Lucania ‘61”, no sentido de dar
conta de um universo verdadeiro, imediato, palpável, apenas entrevisto pelo pensamento
teórico. A narrativa, por sua vez, parece mapear toda a região, explorar o tempo através
das descrições de mudanças de estação e anular a primeira pessoa do discurso através de
uma diluição promovida pelos momentos descritivos que contaminam o texto. Portanto,
assim como a pintura não torna as imagens necessariamente didáticas ao misturá-las
como num amálgama em movimento de cenas, cenários e pessoas, o texto condensa e
traduz a experiência numa espécie de “travelling intertemporal” capaz de dialogar com
as técnicas do audiovisual que resultam na simultaneidade e nas atualizações e que
podem revelar a ânsia pelo registro e a necessidade do apelo constante à memória.
Curiosamente, o filme de Francesco Rosi não aproveita esse tipo de registro com
quebras tempo-espaciais.
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momento que vivia durante a composição do livro imagens nada consoladoras, posto
que agravantes de uma aflição e do absurdo da desumanização compulsória. Destaca a
impotência e agrava seu sentido com as imagens de abandono, de desolação.
O filme de Francesco Rosi aparece num tempo em que não adiantava muito
gritar, porque antes de tudo era preciso entender as diferenças condensadas na questão
meridional e agir sobre elas, conforme o próprio diretor declarou. Sua ação é a de
transpor para a tela inclusive a dimensão ensaística da obra em forma de narrativa
linear, evitando as digressões e tornando o efeito mais didático (que pagou o preço de
alguns comentários acentuando o caráter pouco analítico do filme), assim como resolve
mostrar a paisagem genuína da Lucânia com belas tomadas que incluem a multiforme
região com resquícios de floresta e recursos que poderiam ser melhor aproveitados por
planos de desenvolvimento do lugar. Desse modo, a leitura do diretor napolitano
certamente tem influência dessa origem sulista, no sentido de oferecer para a aridez e
desolação da paisagem do livro uma possibilidade de modificação, sem apelos ao
pitoresco regional, visto que o filme também se livra da exploração das superstições e
magias que povoam o livro.
Todavia, a construção de imagens não poupa sagacidade documentarista,
dramatização e elegância, distantes do sectarismo que poderia rondar a obra. Não se
pode negar uma nota exagerada no formalismo da reconstrução histórica disposta a
captar uma realidade política e social distante daquele final dos anos de 1970 somente
na aparência. Ainda que seja pela narrativa fragmentada, voltar ao modo de vida
daquela sociedade arcaica e aos sistemas de repressão que atravessaram os tempos é
revelar, de certo modo, uma face única infelizmente disposta a atravessar o milênio,
conforme já profetizava Carlo Levi, de certo modo revisando nos anos de 1940, em
plena presença da guerra, suas próprias posições dos anos de 1920:
Independente do teor das soluções que Levi apontará, voltadas para a revolução
camponesa e para a reforma radical do Estado, não se pode negar a clareza do
pensamento nessa altura e a contribuição das imagens representadas ao longo do livro
para a nossa compreensão.
Referências
Pensar sobre o lugar que a literatura ocupa na escola brasileira hoje significa refletir
sobre como ela é tratada dentro do currículo escolar e sobre as práticas de ensino dessa
disciplina na escola. No sentido de orientar a formação de leitores literários foram
publicadas pelo governo federal, em 2006, as Orientações Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (OCNEM) específicas de literatura. Nelas, destaca-se que é de grande
importância a seleção dos textos feita pelos professores para serem trabalhados em sala
de aula e que a escolha de qualquer texto escrito, “popular ou erudito”, deve levar em
consideração o mesmo “crivo que se usa para os escritos canônicos: há ou não
intencionalidade artística? a realização correspondeu à intenção? quais os recursos
utilizados para tal? qual o seu significado histórico-social? proporciona o texto o
estranhamento, o prazer estético?” (MEC, 2006, p. 57). O documento defende, portanto,
que o texto a ser levado para a sala de aula deva ter uma qualidade estética, partindo do
pressuposto de que ele será lido e trabalhado com os alunos, com vistas à formação de
leitores literários, entendidos no sentido que Umberto Eco atribui ao leitor crítico 1. Tais
orientações, no entanto, vão na contramão das práticas instituídas e perpetuadas nas
salas de aula de português do Ensino Médio.
1
Umberto Eco identifica dois tipos básico de leitor: “O primeiro é a vítima, designada pelas próprias
estratégias enunciativas, o segundo é o leitor crítico, que ri do modo pelo qual foi levado a ser vítima
designada” (Eco, 1989, apud MEC, 2006, p. 68). Segundo as orientações, o leitor vítima seria aquele
interessado no conteúdo do texto, enquanto o leitor crítico se preocuparia com a questão formal, com
o “como” a história é contada. Para as OCNEM, portanto, a principal questão do ensino de literatura
deveria ser justamente fornecer as condições necessárias para que os alunos pudessem se tornar
leitores críticos. Essa concepção de ensino de literatura como ensino de leitura literária tem sido
defendida também por diversos pesquisadores franceses da atualidade, tais como Jean Verrier (2007),
Annie Rouxel (2004) e Baudelot e Chartier (1998).
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época por portugueses e seus descendentes – para o curso universitário português. Nesse
modelo de educação, fundamentado em uma concepção humanista, a literatura era vista
como “posse de um conhecimento erudito e de um patrimônio” (Zilberman, 1988) e
como um “conjunto de modelos estéticos” (Frederico, Osakabe, 2004) necessários para
unir os sujeitos que a ele tivessem acesso e para também diferenciá-los.
A segunda metade do século XIX trouxe mudanças para o ensino da disciplina. O
conceito de literatura como conjunto de modelos persistiu, mas não se tratava mais dos
modelos estéticos da “concepção clássica” e sim de modelos como “monumentos
definidores das particularidades de uma língua e, via de regra, de uma nacionalidade”
(Frederico, Osakabe, 2004). Algum tempo depois, em fins do século XIX, José
Veríssimo, homem de letras e crítico literário, passou a defender um movimento pela
presença de obras brasileiras no que era chamado o livro de leitura, antologia de trechos
de obras literárias usada para o ensino (LAJOLO, 1982). Dessa maneira, entrava para o
currículo a “história da literatura nacional.
Pesquisas de campo realizadas com professores do então chamado colegial nas
décadas de 1970 (ROCCO, 1981), 1980 (VIEIRA, 1988), 1990 (LEAHY-DIOS, 1995)
e 2000 (OLIVEIRA, 2008) apontam que nas quatro últimas décadas os professores
continuam optando pelo ensino tradicional de história da literatura, que privilegia o
estudo de dados sobre a biografia dos autores e o contexto sócio-histórico dos
movimentos literários, organizado a partir da leitura de textos curtos ou de fragmentos
de obras de autores selecionados dentro de um cânone escolar. Essa ênfase tem como
consequência a ausência da proposta de leitura de textos maiores, sem que se trabalhe
com a organização da linguagem literária ou os valores estéticos de uma obra, o que
provavelmente não leva à formação de leitores literários.
Tendo em vista essas constatações, interessou-nos a idéia de poder verificar in loco
como são as aulas de literatura hoje e se elas ajudam na formação de leitores literários.
Assim, fomos a campo para observar as aulas de literatura de um professor de Ensino
Médio da rede estadual. Depois de algumas dificuldades, chegamos à escola que nos
aceitou como observadora. As observações foram realizadas nos dias 26, 27 e 29 de
outubro, 13, 23 e 24 de novembro e 17 de dezembro de 2009.
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Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos sujeitos citados no artigo.
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A mudança constante de sala faz com tenham de carregar suas mochilas para o
intervalo; nesse período, em que a circulação fica restrita ao pátio, observou-se um
fenômeno que denominamos “itinerância permanente”. Por outro lado – quando de uma
discussão sobre a necessidade da instalação de uma grade que separasse o espaço dos
alunos do espaço dos professores – foi possível notar a preocupação da escola de não se
assemelhar a uma cadeia.
Esses elementos parecem constituir um efeito de lugar 3 que toma corpo na ação dos
sujeitos dentro do espaço físico da escola. Como observa Bourdieu (2003, p. 165), se “o
habitat contribui para fazer o hábito, o hábito contribui também para fazer o habitat
através dos costumes sociais mais ou menos adequados que ele estimula a fazer”. Os
adultos parecem buscar a segregação em relação aos alunos, ainda que à maneira
disfarçada de uma grade “bonita”, e a esses últimos não é permitido ter uma sala ou um
lugar que sejam “seus”, onde possam ficar quando não estão em aula e onde possam
guardar seus pertences, ficando assim sujeitos a uma constante perambulação.
2. O professor
José tem 26 anos e é professor de português há seis anos. Filho de pais que
trabalharam na área de turismo, em agências, ele nos contou que quem gosta de ler em
sua casa é sua mãe. Leitora ávida de romances policiais, ela havia lido recentemente
toda a série de livros sobre Harry Potter e os da série Crepúsculo, apesar da crítica do
filho a esses últimos. Segundo o professor, ela costuma ter sempre um livro perto de si.
O pai já gosta mais de ler jornal.
Com relação a seus próprios hábitos de leitura, José nos contou que só lê romances
nas férias, quando tem tempo. Durante o ano letivo, ele prefere os livros de auto-ajuda,
que pode ler de maneira fragmentada, entre as atividades na escola, a preparação das
aulas e correção dos trabalhos dos alunos, suas aulas de yoga e seu treino na academia.
Comentou também que um dos livros de que mais gosta é de Clarice Lispector,
3
“Os efeitos de lugar”, explica Pereira et. al. (2006, p. 13), “são as formas pelas quais as características
do espaço físico são incorporadas pelos agentes e, simultaneamente, os modos pelos quais os
indivíduos emprestam ao espaço físico suas propriedades distintivas”.
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confessando que quase havia desistido de lê-lo durante a faculdade. Mas explicou que,
passadas as dez primeiras páginas, a leitura correu bem, tendo afirmado que considera
esse livro um dos melhores dentre os 150/200 livros que já leu na vida, ainda que não se
lembrasse do nome. Questionado se seus alunos liam, José respondeu que não, que eles
não liam, tendo atribuído a falta de interesse deles pela leitura a uma provável falta de
valorização dessa atividade por parte dos respectivos pais 4. Quando perguntamos se ele
havia pedido a leitura de livros durante o ano letivo, respondeu que havia feito isso no
ano anterior e comentou que pretendia pedir a leitura de livros no próximo ano.
À época de prestar o vestibular, a primeira opção de José foi pelo curso de
Jornalismo, para o qual se inscreveu no vestibular da FUVEST. Como não passou,
resolveu tentar o curso de Letras, pensando em se tornar revisor ou preparador de textos
e entrar para a área de edição ou ainda em se tornar tradutor. Chegou a passar no
vestibular do Mackenzie, mas como o valor das prestações era muito alto, decidiu-se
pelo curso da faculdade UniNove. Ao chegar ao segundo ano do curso de Letras, no
entanto, começou a se interessar pelos assuntos da Educação e, ao fazer um estágio em
sala de aula, acabou optando pela docência. Tendo passado em concurso do Estado,
começou a dar aulas e está no Tamandaré há cinco anos. Afirmou que se sente
“confortável” com sua escolha e com a profissão, embora, em alguns momentos reflita
sobre a possibilidade de mudar de rumo algum dia.
4
Em pesquisa realizada com professores de literatura da rede estadual da cidade de São Paulo, Oliveira
(2008, p. 91) afirma que dentre as causas apontadas pelos professores como responsáveis pela
constituição de um aluno carente do ponto de vista intelectual estão as “famílias de origem dos
estudantes, acusadas de não ‘incentivar’ o hábito da leitura, de não ‘motivar’ seus filhos a ler e de não
dar ‘exemplos’ que possam ser seguidos.” Dessa maneira, no discurso dos professores, os jovens que
freqüentam hoje o Ensino Médio não teriam aprendido a valorizar a leitura ou a literatura,
“deficiência” que se reflete no trabalho em sala de aula.
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ministradas duas aulas seguidas em uma mesma turma. Para este relato, optamos por
descrever a primeira aula observada no 1º B, pois, após a análise do diário de campo
produzido durante o período em que estivemos na escola, foi possível perceber que dela
já constava grande parte da dinâmica presente em todas as aulas do professor.
Nessa primeira aula observada, que começou às 7h20, o professor procedeu a uma
recapitulação da matéria vista ao longo do ano, desenhando na lousa uma linha do
tempo da história da literatura, de 1200 d.C. a 1800 d.C. Ao comentário de uma aluna:
“Lá vem a famosa linha do tempo...”, o professor respondeu: “Que eu sempre vou
cobrar!” Em seguida, foram distribuídos aos alunos os livros de português do Ensino
Médio de Maia, que ficam em estante da sala de aula do professor de português. Foi
lido então em voz alta por um dos alunos um trecho do livro sobre o Neoclassicismo.
Em comentário sobre a passagem do período Barroco para o período Árcade e
Neoclássico, José ressaltou a importância do movimento intelectual do Iluminismo. Ao
falar sobre Rousseau, afirmou que para o pensador o homem era bom por princípio,
sendo a vida em sociedade a grande causadora de todos os problemas. Um aluno
sentado na frente da sala questionou-o: “Mas e quem nasce psicopata?”. José respondeu
que essas eram as idéias de Rousseau e continuou sua exposição, destacando o
desenvolvimento da ciência no mesmo período. Nesse momento, um segundo aluno,
Fernando, garoto alto, agitado, inteligente e participativo, sentado ao fundo da sala, fez
a seguinte observação: “Professor, como, de uma hora para outra, todo mundo resolve
mudar de opinião?”. José respondeu dizendo que não era “assim de uma hora para
outra”, que ele já havia explicado como se dava esse processo e relembrou que “o único
movimento que teve hora e lugar para começar foi o Modernismo brasileiro, que se
iniciou em 13 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo, às 20h”.
Acrescentou ainda que essas nomeações eram feitas a posteriori, quando tudo já havia
acontecido, ressaltando que hoje temos muitos tipos de livros diferentes (como os
romances policiais, os de vampiros, os livros de auto-ajuda) e que não sabemos como
seremos nomeados daqui a alguns anos. Retomando a explicação sobre o Arcadismo e o
Neoclassicismo, José contou que se tratava de um período cuja literatura havia sido
“elitizada” e que o movimento era “dos mais fracos”, além de ter sido “irrisório”,
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“chato”, “sem importância”, “só ter tido poesias” e de não ter sequer influenciado o
Romantismo, movimento que eles estudariam no 2º ano, “esse sim digno de nota”.
Às 7h40, foi retomada a leitura em voz alta do texto expositivo do livro didático.
José ressaltou, ao final da leitura, que Bocage era um autor importante, pois seus
poemas por vezes constavam dos vestibulares. Na seqüência, o professor explicou ainda
que “os movimentos mais distantes da gente têm temas um pouco mais chatos; depois,
tudo fica mais interessante, porque os autores precisam vender para as pessoas e não
escrevem mais para reis ou para a classe dominante”. Houve ainda uma discussão sobre
uma imagem do período neoclássico presente no livro didático, que mostrava duas
mulheres nuas. Um dos alunos disse que estava “todo mundo pelado no quadro”, outro
afirmou que aquilo era “pedofilia”. O professor classificou a imagem como um “nu
artístico”, explicou que se tratava de “influência da arte da Grécia Antiga” e seguiu com
a aula. Em vez de resposta às questões propostas pelo livro, o professor propôs na lousa
duas perguntas para os alunos: “1) Qual o tema central do poema?; 2) Identifique
características do movimento árcade no poema.” Conforme José nos explicou em
seguida, as perguntas do livro tratavam também de questões linguísticas, das quais ele
não achava apropriado se ocupar naquele momento.
Durante a leitura e a exposição da matéria, metade da classe acompanhava pelo livro
e metade só escutava, sendo que alguns grupos conversavam baixinho. Mas, de modo
geral, a sala estava relativamente tranqüila. Às 8h05, porém, a dinâmica da escola
passou a interferir no ritmo da aula. Nesse momento a inspetora bateu à porta,
perguntando se uma aluna atrasada poderia entrar na sala de aula. O professor
aquiesceu. Em seguida foi retomada a leitura de um poema de Bocage por Maria, uma
aluna que se prontificou a lê-lo, mas, às 8h07, foi interrompida pela outra professora de
português do Ensino Médio, que bateu à porta para perguntar algo a José. Alguns
meninos passaram então a conversar mais alto, uma aluna resolveu pintar os olhos e
outra passou a fazer anotações no que pareceu ser um diário ou agenda decorada com
flores. Às 8h10 foi a vez de um aluno bater à porta. Quando ela foi aberta, ele gritou
algo e os alunos do 1º B responderam aos berros. José repreendeu-os e retomou a aula.
Às 8h15, chamado pela professora de matemática, o professor desceu para acudir o 1º
C, sem aula em função da falta de um professor (os professores em geral buscavam “se
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Rocco (1981) já chamava a atenção para a preferência dada pelos professores ao trabalho com aspectos
da biografia do autor e da história da literatura, além da aquisição de cultura, em detrimento do
trabalho com o próprio texto. Vieira (1988) também aponta a tendência docente de deixar em segundo
plano os valores estéticos da obra literária.
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A questão que mais nos chamou a atenção, no entanto, foi o trabalho com a cópia da
lousa. Por que fazer com que os alunos copiassem poemas, textos sobre biografias de
autores e sobre características de períodos literários ou pontos gramaticais com tanta
frequência? A explicação que o professor nos forneceu sobre a atividade da cópia, é que
esta serve para que os alunos fixem os conteúdos estudados e para que os tenham
arquivados, já que precisarão devolver os livros para a escola ao final do ano letivo.
Dessa maneira, eles poderão consultar seus cadernos quando precisarem rever a matéria
para um concurso. Além disso, enquanto os alunos copiam, ele pode aproveitar o tempo
para dar conta de todas as suas outras atribuições escolares (como corrigir provas,
trabalhos e redações, preencher diários, dar vistos em cadernos, etc.). Nesse sentido,
José parece entender a cópia como uma estratégia legítima para se “resguardar” do
desgaste da profissão. Segundo ele, quando envolvidos nessa tarefa, com a qual aliás
estão acostumados (“eles mesmos pedem a matéria na lousa”), os alunos tendem a ficar
mais quietos e a se comportar melhor. Mas – José fez questão de ressaltar – isso só
acontece se o professor realmente der visto nos cadernos depois: professores que não se
dão ao trabalho de olhar os cadernos de seus alunos não costumam contar com a
colaboração deles em sala de aula. A cópia parece então ter relação direta com o visto
nos cadernos. Entretanto, há outra modalidade de trabalho que parece render à cópia
uma apreciação negativa pelo professor: com relação à correção de trabalhos feitos em
casa, José chegou a comentar que ele só lê a introdução e a conclusão porque o resto
“eles copiam da internet mesmo...”. Mas como os alunos produziriam trabalhos sem
“copiá-los”, se são treinados a copiar tudo da lousa em sala?
François Bresson, em seu artigo “A leitura e suas dificuldades” (2001), chama a
atenção para o fato de que, ao contrário da linguagem oral (forma da língua que poderia
ser considerada “natural”, já que pode ser adquirida espontaneamente no contato com a
palavra do outro), a escrita e a leitura não podem ser objetos de um procedimento
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espontâneo de aquisição. Segundo o autor, essas são práticas sociais instituídas, que não
podem ser transmitidas pelo simples contato com a escrita ou a partir da observação de
alguém lendo. Traçando um paralelo, poderíamos perguntar se o desenvolvimento de
uma pesquisa ou a escrita de trabalhos comprometidos com a análise e a pesquisa não
dependem de habilidades que precisam ser ensinadas e desenvolvidas pela própria
escola. Será legítimo esperar que os alunos ajam de maneira diferente e que não se
prestem a copiar da internet os textos que entregam como trabalhos seus? Afinal, o que
é que se ensina em uma sala de aula de Português do Ensino Médio?
Nos últimos dias do ano letivo, José reservou um bom tempo das aulas em todas as
salas para dar vistos nos cadernos. Tanto a cópia da matéria colocada na lousa, como as
respostas às questões propostas e a organização dos conteúdos foram vistadas.
Uma das alunas, que recebeu uma nota dez com direito a um “Excelente!” assinado
por José, voltou para sua carteira exultante com o resultado e com o fato de o professor
ter dado visto “em todas as páginas!” de seu caderno, tendo exclamado ainda: “Que da
hora!”. Na sala do 1º C, pudemos observar outra aluna que copiou todo o bimestre do
caderno de uma outra colega, enquanto o professor olhava os cadernos de outros alunos.
Alternando canetas de cores diferentes, ela copiou tudo, inclusive as respostas que a
amiga havia dado às questões colocadas ao longo do último bimestre de 2009. Um
pouco antes do final da aula, levou seu caderno para a vistoria. Recebeu um 8,5, em
função da falta da cópia da matéria dada nas últimas aulas e retornou à sua carteira feliz
com o resultado e dizendo-nos que sua mãe ficaria contente com a nota obtida.
De alguma maneira, o esforço por manter os alunos quietos nas salas de aula, o
emprego da estratégia da cópia da matéria e a criação de laços de identificação com os
alunos fizeram sentido quando presenciamos o impacto que o momento de vistoria dos
cadernos causou nos estudantes. Não se tratava, portanto, do ensino de história da
literatura ou mesmo do ensino de gramática e muito menos da formação de leitores
literários. Pois, então, do que se tratava?
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O antropólogo defende um conceito de cultura essencialmente semiótico, partindo do pressuposto de
que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu e que a cultura é essa
teia. Geertz afirma, citando Goodenough, que “a cultura [está localizada] na mente e no coração dos
homens”. Nesse sentido, ela seria composta de “estruturas psicológicas por meio das quais os
indivíduos ou grupos de indivíduos guiam seu comportamento, consistindo no que quer que seja que
alguém tem que saber ou [em que tem que] acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus
membros”. Para o autor, “a cultura é pública porque a significação/o significado é pública/o” (Geertz,
1987, tradução nossa).
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àquilo que o professor espera deles e receberem por isso atenção e uma nota coerente
com a sua produção, os alunos parecem sentir-se respeitados.
Nesse sentido, o que é ensinado nas salas do professor José parece não ter relação
com o saber sobre a literatura em si ou com um saber sobre a história da literatura, mas
sim com um tipo de organização materializada no caderno por meio da cópia, com um
tipo de trabalho do professor, que é colocar na lousa o que julga importante e conseguir
a obediência a seu comando, ou seja, o que é ensinado tem a ver com o respeito à figura
do professor e com a sua autoridade, tanto no que se refere à orientação de atividades
como à avaliação do trabalho realizado.
Referências
BRESSON, François. A leitura e suas dificuldades. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas
de leitura São Fernando: Estação Liberdade, 2001.
Introdução
7
Definição de Teresa Cristina, estudante de 15 anos (apud ZACCHI, 2000, p. 22).
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Pé de Pilão (2001), nome que nasceu da quadra popular “Pé de pilão/ carne seca com
feijão./Arreda camundongo,/Pra passar o batalhão!”, é uma das mais belas obras de
Mário Quintana. O poema narrativo – característica da poesia modernista –, mostra a
história de um menino que virou pato. “O pato, naqueles dias,/ Era um menino, o
Matias. (QUINTANA, 2001, não pag). O menino fora enfeitiçado pela Fada Mascarada:
e construir imagens, ao mesmo tempo em que instiga o leitor a querer saber o que vem
depois.
O poema inicia em médias res, apresentando o pato-menino enfeitiçado pela Fada
Mascarada, que deseja tirar retrato para mandar à sua avó. Já no início, surge a
complicação. O macaco tenta tirar retrato do pato, quando chega o passarinho: “- Eu
também quero retrato!” Nesse instante, passa um polícia: “Uma briga? Que delícia!”
O encontro entre poeta e leitor é marcado, sobretudo, pelo lúdico e pela linguagem.
Na contemporaneidade, esse encontro se diferencia do caso tradicional, em que o poema
era o veículo privilegiado de conselhos, ensinamentos e normas, “(...) exceto no que
respeita à utilização de certos recursos formais como a redondilha, o paralelismo, o
dístico e a rima fácil.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1999, p. 148). Quintana, em Pé de
pilão, constrói o diálogo com seu leitor, aproveitando esses recursos formais,
acrescentados da temática do cotidiano infantil e do ponto de vista que “(...) compartilha
com seus pequenos leitores a anticonvencionalidade, quer na linguagem, quer do recorte
de realidade.” (LAJOLO; ZILBERMAN 1999, p.148).
Ainda de acordo com as autoras:
Esses aspectos, comuns às memórias de leitura, aliados aos efeitos do som, também
provocavam/convocam o pequeno leitor, embora nem sempre consiga efetuar as
transformações de representação implicadas em Pé de pilão. Os mais experientes atinge
por meio do exercício da reflexão, porém baseado na coordenação de relações sensoriais
possíveis e inesperadas, perceptíveis pela carga figurativa do discurso. Daí ser uma
leitura para qualquer idade. E nesse sentido, também possibilita a apreensão das
camadas emocional, sentimental e conceptual do poema, mesmo que não aconteça de
uma só vez.
Seguindo essa perspectiva, a passagem seguinte ilustra a transformação da avó de
Matias pela Fada Mascarada, que a enfeitiçou:
Lá na Floreta Encantada
Mora a Fada Mascarada.
(...)
Chega a vó. E vejam só:
A Fada lhe atira um pó.
(...)
Num segundo a pobre Alice
Toda encolheu de velhice.
(QUINTANA, 2001, não pag.).
A Fada Mascarada é uma bruxa que usa disfarces com interesses malvados. Suas
travessuras se confundem com as travessuras verbais e recursos poéticos elaborados
pelo autor, num clima envolvente, mágico, produzindo prazer. A poeticidade dessa obra
está, entre outros elementos, na construção fluida, assegurada pelo ritmo, e na
brincadeira que se dá também pelas surpresas. O fato de a bruxa mudar o rosto,
segundo seu gosto e o dia, além de tornar a narrativa poética diferente, a sonoridade lhe
confere um certo “suspense” peculiar: /Ninguém direito a conhece,/ Pois sempre outra
parece./(...)/ Quando no espelho se olhava,/O espelho logo rachava./ - Se olhava um rio
– ora essa!/Corria o rio mais depressa!
Esse suspense se acentua nos versos:
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E o repelente animal
Prepara o bote mortal.
(QUINTANA, 2001, não pag.).
Medo e suspense, tão bem enfatizados pelos personagens e seus adjetivos, tomam
um sentido maior pela pontuação, sobretudo pelo uso da exclamação. Esses elementos
são detonadores, a um só tempo, de medo e prazer, sentimentos desejados pelos leitores
infantis/juvenis. Por outro lado, a melodia, o ritmo e o fluxo dos acontecimentos causam
uma espécie de “apagamento” do medo, mostrando-se muito mais como uma
brincadeira.
O jogo sonoro, criado pelas rimas, estende-se pelo emprego das aliterações
(t,s,v,z,p), assonâncias (a,a,e), alternância de sílabas fortes e fracas e rimas bem
marcadas: /quanto é sete vezes nove?/ e rosinha nem se move? /mas o pato, desta vez,/
assopra: sessenta e três/. Além disso, o s sibilante faz som com o z. Esses elementos,
estabelecidos pelo paradigma estético-lúdico, imprimem à poesia uma brincadeira
semelhante à das quadras populares.
Ao conflito inicial, a prisão do pato, macaco e passarinho, Quintana arranja uma bela
saída, sempre mantendo as rimas, o ritmo e o lúdico:
“O macaco retratista,
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(...)
Vê a cobra e pensa: “hum!
Vou matar esse muçum...”
(...)
Pega a cobra do chocalho.
“E o macaco...desgranido
Tem uma idéia, o sabido...
(...)
Corta o chocalho da cobra
(...)
Também corta com perícia,
Ao cavalo do polícia,
O sabido macaco engana o polícia que continua ouvindo o guizo da extinta cobra à
“procura de outra rima”:
“Olhar pra trás não preciso,
Enquanto escuto esse guizo...”
E para finalizar, o céu escurece, a noite cai e todos se encontram em uma modesta
capela à beira da floresta. E “Por fé, ou outros motivos”, como diz o autor, “Entram
nela os fugitivos” e mais tarde, somam-se a eles “Uma velha... quem é ela? Eis que
surge a avó Alice enfeitiçada. Passam a noite na capela, e Quintana mescla magia,
fantasia e religião, numa bem humorada solução:
Por fim, Matias retorna à escola, e como poetiza Quintana: “E para que nossa
história/Não ficasse relambória,/A Rosinha, envergonhada/(...)/Estuda como uma
traça/Passa sempre nos exames/Como a luz pela vidraça.
O jogo linguístico do texto se completa com o plano interno da obra, com as formas,
com as ilustrações, que tornam o momento da leitura ainda mais prazeroso.
As imagens retratam muito bem o dinamismo/movimento dos personagens, suas
expressões frente aos acontecimentos. Quando o pato reclama: “/- No retrato saiu eu
só/”, sua imagem expressa um bater de pé, um mexer com as mãos e uma boca bem
aberta para deixar bem claro que era só ele que deveria sair na foto. Além de
complementarem, as ilustrações imprimem mais movimento ao texto, criando uma
simbiose perfeita entre a imagem e a palavra, uma simbiose lírico-lúdica.
A Fada Mascarada é outro exemplo. Suas mãos magras e compridas passam a
impressão da agilidade para fazer feitiços e maldades; seus disfarces são as máscaras
como o próprio texto descreve: Cada dia usa um rosto.” A figura do pássaro é produzida
numa confluência de imagem e palavra, enriquecendo de tal forma a leitura, que é
possível imaginar e escutar o barulho dos guizos que enfeitam suas penas: “Com três
penas no topete/ E no rabo apenas sete./ E como enfeite ele tinha/ Um guizo em cada
peninha.”
A narrativa poética encanta, prende pela sonoridade e a plasticidade, aguçando a
curiosidade do leitor para saber o que vem depois e como se desenrola a história. No
exemplo acima, pelas rimas emparelhadas (topete/sete = ete), (tinha/peninha = inha) e
ricas (substantivo, verbo e numeral, adjetivo); pela aliteração das consoantes T e P:
“/São Três Penas no ToPeTe,/ E no rabo aPenas seTe/”, somando-se ao som sibilante do
S; pela assonância da vogal E, fica evidente a relação desses elementos. Acentuando
ainda mais a sonoridade, o autor “brinca” com as palavras apenas e penas, revelando
um jogo sonoro/rítmico que se associa ao jogo linguístico. Mário Quintana evidencia
em seu texto um lírico-lúdico. O jogo sonoro, os ritmos, o trabalho realizado com a
linguagem, o humor, características dos paradigmas estético e lúdico trazidos por Luis
Camargo e, aqui, refletidos pelos autores com os quais conversamos, não só promovem
o encontro do leitor com o literário, como contribuem com o desenvolvimento do
imaginário e suas vivências perceptivas. Desse modo, a articulação da linguagem
escrita e sua plasticidade auxilia nas representações mentais, na compreensão de
vivências ou experiências anteriores e presenciais da infância.
Pé de pilão é um poema “em movimento”, que se constrói por seus ritmos, suas
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imagens, suas metáforas e sua linguagem. É um jogo lúdico entre texto e leitor na
descoberta/decifração semântica e rítmica proposto por Quintana. O leitor identifica sua
própria voz na voz do eu-lírico, desencadeado pelo poema. Todavia, isso requer uma
leitura literária, cujo itinerário teórico, em sua maior parte, está por ser percorrido.
Dessa perspectiva, partimos do pressuposto de que, para encaminhar o texto poético, no
espaço escolar, é necessário conhecer as suas peculiaridades, o que tentamos evidenciar
aqui.
Na perspectiva do paradigma lúdico, fizemos uma leitura da obra de Quintana,
considerando que os elementos/recursos trazidos por esse paradigma desafiam seus
leitores a responderem com inteligência aos jogos propostos pela linguagem literária.
Dito de outro modo, o poema aproxima-se do “eu” infantil/juvenil e provoca-o poética e
criativamente. Há, nessa produção, um comprometimento com os leitores, à medida que
delega a eles a tarefa de decifrar, de entrar no jogo enigmático, provocativo e
desafiador. Ora, se o texto literário se compromete com o leitor, entendemos ser
compromisso da escola uma literatura sem “pretextos”.
Nossa leitura é só mais uma leitura que deseja somar-se a outras leituras e instigar
leituras provocativas, que privilegiem os aspectos propostos pelo paradigma lúdico,
presentes nos poemas; que convidem os leitores a entrar na ciranda poética, no jogo,
com Quintanas, Dinorahs, Paes, Capparellis e tantos outros, no ensino de nossas
escolas, a fim de decifrar os enigmas do poema que os desafiam e desacomodam, a
exemplo de Pé de Pilão.
Referências
Introdução
Não é por acaso, portanto, que a literatura de autoria feminina tem se caracterizado
por certa tendência de pôr em relevo questionamentos acerca dos papéis sociais
destinados à mulher, bem como do silenciamento histórico a ela imposto, além da
naturalização da dominação masculina e da opressão feminina. Nessa empreitada, ganha
relevo o fato de a mulher passar a representar na literatura a própria mulher, com voz e
vez, com capacidade, enfim, de ação e reação.
Tendo isso em vista, o presente artigo apresenta três escritoras paranaenses do gênero
lírico que, por terem vivido e escrito em diferentes épocas, representam a mulher
inserida em diferentes contextos histórico-sociais. Nosso intuito é compreender e avaliar
o modo como a mulher representa a si própria no universo literário.
Com o objetivo de por fim a essa marginalização, a crítica feminista, sustentada pelo
feminismo, tem empreendido, nas últimas décadas, discussões acerca do texto literário,
face às práticas sociais e à autoria, com vistas ao rompimento do estereótipo feminino
negativo, difundido pela ideologia dominante e reproduzido pela literatura e pelo
cinema. A intrínseca relação entre sexo e poder estabelecida pela sociedade
patriarcalista gerou e gera essa imagem negativa da mulher, que é baseada nas relações
sociais – inicialmente privadas e depois, também, públicas – de poder entre homem e
mulher.
A crítica literária feminista empenha-se em revelar como o texto literário representa
e discute as questões de gênero, ou seja, as práticas que apontam para a construção ou
desconstrução da oposição binária homem/mulher, relacionada com outros pares
binários bem conhecidos: dominador/dominada, opressor/oprimida, centro/margem, etc.
Desconstruir essas estruturas binárias implica tomá-las como construções sociais e
não como estruturas essencialistas, relacionadas a cada um dos gêneros. A origem
mesma da dominação masculina e da submissão feminina, apesar de ser, muitas vezes,
relacionada a aspectos biológicos e naturais, em verdade, é produto de construções
sociais, calcadas em relações de poder. A simples diferença é transformada em
diferença hierarquizada.
A crítica feminista, em face disso, tem procurado dar visibilidade à produção literária
feminina, muitas vezes, capaz pôr esse estado de coisas em discussão, de reivindicar a
igualdade de direitos entre os sexos, de denunciar a opressão feminina, de representar a
mulher a partir de outros vieses diferentes daquele que a toma sempre como frágil,
dependente e incapaz. Trata-se de uma forma de resistência à ideologia patriarcal, por
tanto tempo dominante, não só no universo social, mas também literário. Muitos críticos
literários começaram, alavancados pelo feminismo crítico, a resgatar e a reinterpretar as
obras literárias de autoria feminina. Com isso, apontou-se para um espaço que, se antes
era exclusivamente masculino, agora passa também a ser ocupado pela mulher.
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“Forte, decidida, às vezes audaciosa, antes de mais nada, porém uma mulher que se
antecipou à sua época e que, por isso, muito sofreu” (MUZART, 2001, p.15). A poetisa,
assim definida pela pesquisadora catarinense, inaugura a literatura de autoria feminina
no Paraná. Viveu em um período de preconceitos e de tabus e, como forma de escape,
escrevia. Publicou, em vida, dois livros: Flores dispersas (1867-1ª série) e Flores
dispersas (1868-2ª série). Outros dois livros da escritora foram publicados: Flores
Dispersas (1913-3ªsérie), publicado pelo Centro de Letras do Paraná, que traz todos os
poemas encontrados no acervo da poetisa, e Bouquet de violetas, coletânea de poemas,
manuscrita, organizada e nomeada pela própria escritora e recolhidos e publicados pela
Drª Rosy Pinheiro Lima.
Um passeio pela biografia de Júlia da Costa nos vai mostrar uma mulher, não raro,
descrita como “inteligente” e “independente” que se recusou a desempenhar os papéis
sociais destinadas à figura feminina de seu tempo. Apesar de casada com o comendador
Carlos da Costa Pereira e de possuir uma vida próspera, seus poemas retratam a solidão,
como resultado da paixão pelo poeta Benjamin Carvoliva que, por duas vezes, teria
fugido às propostas da poetisa de viverem juntos e enfrentarem os preconceitos da
sociedade.
Essa melancolia faz-se retratar no poema “Página Solta”, da coletânea Bouquet de
Violetas.
Página Solta
Seres programados:
As mesmas atitudes,
As mesmas idéias,
As mesmas decisões.
faz de mim
gato e sapato
me desconcerta
me conserta
me espanta
me aperta
me acerta
me alerta
me espeta
me deita
e seu poder
mais alto
se levanta
A escritora paranaense inicia o poema afirmando ser feita de “gato e sapato”. Trata-
se de um ditado popular por meio do qual diz ser maltratada, usada, explorada. No
decorrer do poema, diversos outros verbos na 3ª pessoa, como “desconcerta”,
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“conserta”, “espanta”, “acerta”, “alerta”, etc.”, apontam para atitudes que encerram
dominação, porém, em nenhum momento, o eu-lírico evidencia quem as pratica.
Somente no fim do poema, nos últimos quatro versos, faz inferência a uma figura
masculina cujo “poder mais alto” parece estar a serviço da conquista e/ou da dominação
por meio do sexo. Segundo Bourdieu (2005) “o ato sexual em si é concebido pelos
homens como uma forma de dominação, de apropriação, de posse” (p. 30). A sucessão
de verbos que compõem os versos, dentre os quais se destaca o décimo – “me deita” –,
sugere não apenas o ato sexual, mas a relação de dominação de que fala Bourdieu
(2005), cujas “posições tradicionais” parecem implicar: a mulher deitada e o homem
sobre ela, como que representando o princípio fundamental entre o masculino, ativo, e o
feminino, passivo. Trata-se, no fim, da dominação erotizada.
Além disso, se observarmos o modo como o poema foi gramaticalmente construído,
o pronome “me” remete ao eu-lírico (a mulher) que, apesar de iniciar os versos, age
como objeto dos verbos aos quais se refere e que possuem como sujeito implícito o
homem. Isso significa que o homem (sujeito) rege a mulher (objeto). Todavia, ao
sugerir, ironicamente, que o falo ereto é o que torna o homem poderoso perante a
mulher, Ruiz acaba por desconstruir, de modo sagaz, a superioridade masculina. Ao
afirmar que “seu poder mais alto se levanta”, referindo-se à ereção, é como se
relativizasse e/ou minimizasse a importância dos supostos outros “poderes” que o
pensamento patriarcal confere ao homem.
Com isso, Ruiz dialoga, verso a verso, com o modo tradicional de a sociedade pensar
a mulher: reprodutora e objeto de manejo. Contudo, acaba por evidenciar a mulher
como sendo capaz de afirmar sua identidade, por meio da superioridade intelectual que
lhe torna capaz de fazer o jogo da dominação sem, efetivamente, se curvar a ela. Quem
sabe aqui poderíamos falar na representação da figura feminina aos moldes da terceira
fase da literatura de autoria feminina, reconhecida por Showalter (1985) a fase fêmea
(ou mulher), na qual a mulher reconhece seu espaço na sociedade, passe a ter, em fim,
voz e vez.
Coclusão
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Com base no que foi exposto observou-se que a tradicional figura feminina,
considerada objeto em relação ao sujeito masculino, sofre uma espécie de evolução no
que se refere ao modo como é representada na poesia produzida por mulheres no
Paraná. Trata-se do reflexo dos avanços empreendidos pelo movimento feminista.
Não só na realidade social, mas também no universo literário, a mulher sai da espécie
de limbo em que sempre estivera confinada para se impor como sujeito e passar a gerir a
própria vida e atuar na sociedade da qual faz parte. Até meados dos anos 1950, não
havia nomes femininos representativos na literatura. O cânone literário brasileiro, até
então, era constituído apenas de homens, considerados mais capazes de exercer o ofício
da escrita.
A literatura de autoria feminina no Paraná, ainda que tardiamente, também contribuiu
para que a voz da mulher não se calasse, fosse pela maneira sofrida de Júlia da Costa em
demonstrar sua revolta contra a sociedade patriarcal; ou com Helena Kolody que, de
modo simples e objetivo, reclamou pelo espaço feminino no mundo das letras; ou ainda
com Alice Ruiz que, de forma despojada e irônica, traz à baila o velho tema das relações
de gênero, coroadas pela dominação masculina, hoje em declínio graças ao feminismo.
Referências
No mundo ficcional de Jorge Luis Borges, em que se rompem esquemas lineares de espaço e
tempo, a presença da mulher na esfera social chama a atenção do leitor mais atento, nos contos de
contornos mais regionais. Entretanto, estes não são os mais comumente apontados pela crítica
quando se trata de estudos sobre o universo borgeano. Na contracorrente, este trabalho tem como
objetivo apontar a presença feminina no conto “Hombre de la esquisa rosada”, de Jorge Luis Borges
(1899 – 1986), publicado no livro Historia universal de la infamia (1935), demonstrando os
aspectos que promovem a ação feminina em um mundo predominantemente masculino.
Conforme aponta Sarlo (2008), a fama internacional borgeana acabou por anular aspectos da
cultura argentina que aparecem na obra. Por mais que o autor tenha sido acusado de estar à margem
das questões culturais de seu tempo, debateu diversas vezes acerca das principais figuras da história
nacional: o gaúcho e o compadrito. O gaúcho argentino, herdeiro de índios e espanhóis, foi
desaparecendo aos poucos, com a chegada da industrialização no pampa 1. Ao invés deste, quem
passeia pelos contos de Borges é o compadrito, o gaúcho que chegou à cidade, mas não se adequou
a tal situação.
Em “Hombre de la esquina rosada”, que teve sua continuação, com retrocesso, em “Historia de Rosendo
Juárez” 2, surge a questão da coragem como virtude primeira para o crioulo 3 argentino. Francisco Real, além
de humilhar Rosendo Juárez em público, rouba sua mulher, a “Lujanera”, assim chamada de forma
depreciativa devido a sua região de origem (Luján). É apresentada como a mulher mais desejada pelos
compadritos, a amante de Juárez, o mais valente entre eles.
Encontra-se, em ambos os contos, o “pendenciero” ou “malevo”, outras denominações ao compadrito
1
“Al gaucho se le achica el territorio cada vez más, y su marginación como sujeto social útil al nuevo orden, lo
impulsa ahora a sólo dos opciones: terminar sus días como peón de estancia asalariado, o convertirse en perseguido de
la justicia bajo imputación de malhechor.” In: RELA, Walter. El gaucho en el contexto sócio-político rioplatense:
(desde la época colonial hasta fin del siglo XIX). Letras de Hoje, n. 77, 1989. Porto Alegre, p. 9-22.
2
Sarlo (2008) aclara a questão da reescritura do conto: “Altera a perspectiva da narrativa e, por meio dessa
variação, introduz uma dimensão moral explícita: em seu rival, o cuchillero reconhece e repudia um reflexo de si
mesmo. Esse reflexo de vergonha, e não a covardia (como acontecia na primeira versão), obriga-o a fugir à peleja.” (p.
141)
3
Crioulo, no sentido espanhol do termo, representa o branco nascido em colônias hispano-americanas, em
oposição aos nascidos na Espanha.
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temido por sua bravura e habilidade com o punhal ou com o “cuchillo”, como ressalta Agheana (1995). A
violência, se utilizada na defesa dos valores desse contexto em particular, não é motivo de censura. Pelo
contrário, a covardia é motivo de crítica, vergonha e reprovação. Tanto é que no conto “Historia de Rosendo
Juárez”, a personagem homônima conta que não aguentava mais um duelo atrás do outro, sempre a vida
testando sua masculinidade. A coragem resume o ethos desse homem, o meio pelo qual ele alcança a justiça.
Sarlo (2008, 139) comenta os valores que regem essa determinada sociedade:
A violência definiria, em profundidade, a cultura criolla: vivida como um destino
americano, durante séculos a violência levou os homens a um limite em que tão-
somente a resignação e a coragem eram virtudes válidas; mas, ao mesmo tempo, a
violência formalizou um código que dava sentido às relações privadas e públicas.
Quando dois homens se enfrentam em duelo, ritual que ambos aceitam como lei,
eles participam de valores “bárbaros” que, apesar de tudo, são o único fundamento
da vida comum naquelas regiões em que o Estado não organizou as relações
jurídicas entre os sujeitos.
O narrador inicia a história demarcando a importância de Rosendo para a sociedade local, já que
os homens o imitam até no jeito de cuspir. Em seguida, após detalhado o lugar onde inicia o
conflito, o salão “La Júlia”, insere-se na narrativa a presença de Lujanera, mulher de Rosendo, mas
admirada por todos, devido à beleza: “Verla, no daba sueño”. Apesar de haver muitas mulheres
resistentes para o baile, esta se destacava, tanto é que o narrador comenta que era preciso vê-la “en
sus días, con esos ojos”, uma beleza praticamente impossível, então, de descrever. Como diria
Bourdieu (2007, p. 82) sobre a dependência simbólica das mulheres, “elas existem primeiro pelo, e
para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis.” De início o
leitor de Borges, se também for leitor de Simões Lopes Neto, lembra de Tudinha, do conto “O negro
Bonifácio”, já que ambas, as mulheres mais bonitas, levam os machos à perdição.
Aqui vale ressaltar o excelente trabalho de Vallerius (2009), que traduz o conto borgeano para o
português, a partir da linguagem simoniana, devido à semelhança temática de representação.
Segundo a autora, esse trabalho foi motivado pelas perdas que a versão do texto de uma língua a
outra ocasiona. Ela explica o título do conto: antigos botecos de esquina dos bairros periféricos de
Buenos Aires eram pintados de cor-de-rosa. Sem essa informação de caráter cultural, o leitor pode
não compreender o título. O fato de citar uma esquina, onde ficaria o bar, representa um lugar de
passagem ou de encontro.
É importante analisar os elementos que compõem todo o conflito dessa narrativa. Francisco real,
o valente do norte, chega aos subúrbios do sul com seus companheiros, em busca de um homem,
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simplesmente para matá-lo: Rosendo, respeitado por homens, cães e mulheres. Desenrola-se
praticamente um confronto entre os líderes: Curraleiro contra Batedor. Aquele, fora de seu ambiente
de domínio, desafia a coragem do mandante local. O narrador, ao ver que este joga a faca pela
janela e vai embora, não compreende tal covardia. Entretanto, no final, o leitor entende que o
próprio narrador foi quem restabeleceu a “ordem” quebrada com a chegada (e o desafio) do
forasteiro. E a mulher, nesse contexto, move-se como um troféu, que cabe, logicamente, ao
vencedor da batalha.
Novamente o leitor se lembra de Simões Lopes Neto, devido às semelhanças entre esta
personagem e Lalica, em “Jogo do Osso” (Contos Gauchescos, 1912), “uma piguancha bem
jeitosa”. A saber, mais um objeto que passa tranquilamente das mãos de um homem a outro, tratada
como simples mercadoria. A mulher é equiparada a um cavalo, tornando-se motivo de aposta4. Sua
atitude é entregar-se a Osoro, diante da humilhação a que estava exposta: Lalica se oferece,
aceitando ser o prêmio e ofendendo Chico Ruivo: “...guampudo, por gosto”...Este, agora, é que me
encilha, retalhado!...” A ofensa se estenderia em uma dança entre novo “casal”, semelhantemente ao
conto aqui analisado: “quando quiseres, meu negro, ...eu vou na tua garupa”. É evidente que
acabaria em dupla morte o jogo do osso, que certamente desafiou a hombridade.
Vale ressaltar que conhecemos o episódio de “Hombre de la Esquina Rosada” pela visão do
próprio assassino, portanto os elementos narrados foram selecionados por ele. Isso se confirma na
leitura do já citado “Historia de Rosendo Juárez”, em que a personagem homônima traz à tona
outros elementos – o motivo de ter recuado frente ao convite à “peleia”, por exemplo –, o que
aponta para a questão do perspectivismo: a realidade, tal como é percebida, depende do ponto de
vista do observador. Ao leitor cabe conhecer, então, a versão de Curraleiro (Corralero) e de Batedor
(Pegador). Surgem aqui dois conceitos de coragem. Enquanto, para aquele, é defender sua honra e
sua hombridade em um ambiente de violência gratuita, para este é justamente ir contra tal
concepção de vida. O narrador acerta o forasteiro quando este adentra o salão, mas Real não se
intimida. Na verdade, deixa-se apanhar porque está à procura de um só homem.
Após a irrupção da violência, Francisco Real, ou Curraleiro, afirma procurar por um tal de
Batedor, para aprender com ele a ser valente. Ele desafia, então, Rosendo Juárez. E aqui a mulher
comete um ato decisivo: entrega uma faca, incentivando-o a aceitar o combate. Vale a pena reler o
trecho sobre sua atitude frente à estagnação de Rosendo: “La Lujanera lo miró aborreciéndolo y se
4
E Blau explica, num dos “Artigos de fé do gaúcho”, que “mulher, arma e cavalo do andar, nada de emprestar”.
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abrió paso con la crencha en la espalda, entre el carreraje y las chinas, y se jue a su hombre y le
metió la mano en el pecho y le sacó el cuchillo desenvainado y se lo dió con estas palabras: -
Rosendo, creo que lo estarás precisando.” (BORGES, 1996, p. 333)
Nesse mundo de duelos, o feminino aparece somente para reconhecer o compadrito mais valente
e ser protegida por ele. Ela manifesta claramente que desaprova a atitude covarde de Juárez, depois
de sugerir que ele tomasse seu “cuchillo” e enfrentasse quem o desafiava: “Entonces la Lujanera se
le prendió y le echó los brazos al cuello y lo miró con esos ojos y le dijo con ira:
- Déjalo a esse, que nos hizo creer que era un hombre” (BORGES, 1996, p. 333). Ela demonstra,
então, que reprova tal atitude, ou melhor, ausência de atitude.
Além disso, deixa bem claro que não permaneceria com um homem covarde, fora dos padrões
esperados. A ação de Real, frente à abertura feminina, é previsível: “Francisco Real se quedó
perplejo un espacio y luego la abrazó como para siempre y les gritó a los musicantes que le
metieran tango y milonga y a los demás de la diversión, que bailaramos.” (BORGES, 1996, p. 333)
Conforme Castillo (1995, p. 207):
Para ella, es una relación de pretección y, por tanto, carece de sentimentalidad. Por
eso se muestra igualmente fria y dura con la cobardia de Juárez como, despúes, con
la muerte de Real. No es el amor lo que la une a los hombres sino el sentido de
protección. Se me ocurre que quizá el apellido Real del forastero tiene un valor
simbólico y significa que él es un compadrito ‘real’ frente a Juárez que es un
compadrito fingido o falso.
Frente à negativa deste, interpretada como covardia, mais surpreendente ainda resulta a atitude
de entrega feminina. O narrador coloca que, além de humilhar Rosendo, o “estrangeiro” consegue
uma mulher para aquela noite, ou melhor, para várias noites. Desde já, é viável concluir que as
ações femininas, bem como as palavras, são escassas nesse conto, porém decisivas, visto que
desencadeiam a tragédia. Passar das mãos de um para as do outro representa o reconhecimento de
uma vitória.
“Abram cancha que eu a conduzo na dança”. 5 O fato de Real envolver Lujanera no tango é
significativo, devido à carga de paixão, sedução, sensualidade e drama imbricados nesse ritmo,
nascido nos cabarés e bordéis dos subúrbios em Buenos Aires, no final do século XIX. Nas tristes
letras de tango, quase sempre aparece o sofrimento amoroso masculino, causado, evidentemente,
5
Segundo tradução de Denise Mallmann Vallerius (2009), em tese de dissertação já citada. A expressão “la
llevo dormida” significa, nesse contexto, que o homem sabe conduzir bem a mulher na dança, então ela acaba fechando
os olhos.
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pela feminino. Na mesma noite, o resto das mulheres, “el hembraje”, começa a dançar com os
homens do Norte, porém sem falar nada.
Ao sair do baile, Rosendo ofende o narrador, o que faz este refletir sobre sua condição de vida.
Pistas sobre o desenlace: covardia de Rosendo e coragem intragável do forasteiro não o deixavam
em paz. Até uma mulher o forasteiro consegue! Como lembra Bourdieu (2007, p. 65), “a virilidade
tem que ser validada pelos outros homens, em sua verdade de violência real ou potencial, e atestada
pelo reconhecimento de fazer parte de um grupo de ‘verdadeiros homens’.”
Todavia, Lujanera e Real voltam ao baile, só que ele chega ferido. Havia sido atacado por um
desconhecido, em um pequeno campo. Morre na frente de todos, que decidem se livrar do corpo
antes que a polícia chegasse, pois não queriam encontrá-la. Chegam a acusar Lujanera, mas ela
escapa nesse ínterim. O narrador parte em defesa dela, ressaltando as características “femininas”
que lhe impediriam de cometer tal ato: “fijensén el las manos de esa mujer. ¿Qué pulso ni que
corazón va a tener para clavar una puñalada?” (BORGES, 1996, p. 336)
Finalmente, o narrador conta a Borges que era o assassino. Quando se aproxima de casa, percebe
uma luz acesa. Diz que se apressa em chegar quando se dá conta do que era. Cabe ao leitor concluir,
assim, que a mulher esperava pelo “herói”, afinal ele já havia contado ao interlocutor que dormira
com ela na mesma noite.
Yo me fui tranquilo a mi rancho, que estaba a unas tres cuadras. Ardía en la
ventana una lucecita, que se apagó en seguida. De juro que me apuré a llegar,
cuando me di cuenta. Entonces, Borges, volví a sacar el cuchillo corto y filoso que
yo sabía cargar aquí, en el chaleco, junto al sobaco izquierdo, y le pegué otra
revisada despacio, y estaba como nuevo, inocente, y no quedaba ni un rastrito de
sangre. (BORGES, 1996, p. 336)
O narrador praticamente “toma” o lugar de Rosendo Juárez, seu ídolo, assumindo sua identidade
ao ponto de matar quem o havia desafiado e ficar com Lujanera, a mulher do “Pegador”, mitificado
aos olhos dos demais “compadritos”. A questão da identidade remete a outro conto borgeano,
igualmente interessante por conter características semelhantes: “El muerto”, em que a mesma
relação de admiração e consequente tomada de lugar se estabelece. Quando consegue a amizade de
Suárez, o guarda-costas de Bandeira, Otálora coloca em prática um plano para derrotar a quem
inveja. Aparentemente bem-sucedido, resulta na posse dos três atributos que “identificam”
Bandeira: o cavalo, a autoridade e a mulher: “son atributos o adjetivos de um hombre que él aspira a
destruir.” (p. 547)
Castillo (1995, p. 2003) esclarece essa questão identitária, exemplificando com o conto aqui
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abordado: “Frente al miedo de Juárez, el narrador siente horror y el vacío que le produce el
derrumbamiento de un mito. Se siente desprotegido porque la admiración que sentia por el outro se
fundamentaba en un reconocimiento de tipo carismático e irracional, casi religioso.” E a mulher,
nesse contexto, possui uma importância simbólica: “La identificación con ‘el otro’ significa aqui,
para el narrador, convertirse en el Juárez que admiró. La Lujanera refuerza el reconocimiento de ese
código sagrado, de ese sistema de valores que comparte con el compadrito narrador.” (CASTILLO,
1995, p. 205)
Afinal, por que Otálora, personagem principal de “El muerto”, quer ser o gaúcho Bandeira, líder
admirado por todos? Bourdieu (2007, p. 65) explica a exaltação da virilidade, uma espécie de não
feminilidade: “em oposição à mulher, cuja honra, essencialmente negativa, só pode ser defendida ou
perdida, sua virtude sendo sucessivamente a virgindade e a fidelidade, o homem ‘verdadeiramente
homem’ é aquele que se sente obrigado a estar à altura da possibilidade que lhe é oferecida de fazer
crescer sua honra buscando a glória e a distinção na esfera pública”. Aplica-se a observação de
Bourdieu ao conto mais precisamente analisado nesse estudo. Rosendo Juárez nega-se a participar
do duelo, perdendo, dessa maneira, o posto de homem mais admirado que lhe cabia. Bourdieu
(2007, p. 20 e 64) continua:
A aura de proteção inerente ao compadrito é vista pela mulher como condição necessária. Em
outras palavras, em nenhum momento “questiona” (aos outros ou a si mesma) se precisa dessa
proteção, de submeter-se ao homem mais admirado pelos outros, afinal, para os esquemas de
pensamento, é “natural” que seja assim, processo esse denominado de “naturalização” dos papéis
sociais. Em se tratando de uma sociedade patriarcal, Zinani (2006, p. 60), na esteira de Bourdieu,
coloca que
A dominação patriarcal se legitima, tanto pela força da tradição que demarca o
conteúdo dos ordenamentos como pelo livre-arbítrio de seu senhor. A dominação
patriarcal é constituída por associações de caráter comunitário, regidas pelo
‘senhor’, o qual é obedecido pelos ‘súditos’. O poder do patriarca alicerça-se na
idéia arraigada nos dominados de que essa dominação é um direito próprio e
tradicional do dominador e que exerce no interesse deles próprios. A fidelidade é
um princípio básico, legitimado pela santidade da tradição.
Es indudable que existe una ley de reciprocidad entre la más bella de las mujeres y
el más bravo de los hombres. No cumplir esta relación de reciprocidad significaría
para ella vulnerar, más que un principio meramente funcional, un principio de
reconocimiento ritual frente al grupo de compadritos y prostitutas.
Segundo esse autor, o fato de o conto ser o menos “borgeano”, no sentido de ausência de
complexidade, o levou a ser acolhido por mais leitores, transformado inclusive em filme. Cabe ao
leitor deduzir que o narrador é o protagonista, o que mantém Borges a uma distância considerável.
Esse aspecto reforça a verossimilhança: não se trata de “invenção” do autor, mas sim de uma
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história que lhe contaram, fato esse corroborado pelas marcas de oralidade que compõem a estrutura
gramatical. O efeito é claro: esquece-se definitivamente do autor, nesse caso convertido em
personagem, mero interlocutor do narrador. Borges consegue escrever segundo a mentalidade e a
visão de mundo de um “compadrito”.
Fica claro para o leitor que Lujanera joga-se nos braços de Real como um troféu ao homem mais
valente da noite. Não obstante, depois de ele ser misteriosamente assassinado, ela reconhece no
narrador um novo protetor: vai para o rancho dele. Ou seja, em poucas horas esteve com os três
homens mais importantes do local. Este, de início, já deixa claro que ela dormira com ele, uma
possível pista sobre o desenlace da história. Aliás, a frase que abre o conto por si só já constitui uma
pista: “A mí, tan luego, hablarme del finado Francisco Real”. (BORGES, 1996, p. 331) Castillo
(1995, p. 203) comenta que “La Lujanera, que se puede entender como la mujer más deseada por
los compadritos, o la que está con el compadrito más valiente, reconoce al narrador como su nuevo
protector al haber sido capaz de hacer lo que Juárez no hizo, esto es, desafiar a Real.”
Entretanto, Bonicci (2007, p. 80) ressalta que há estereótipos, herança das sociedades patriarcais,
que acabam determinando como a mulher será representada, o que extrapola, em parte, o contexto
histórico-social, as condições do meio machista e violento que explicam como esta se delineia no
conto: “Na literatura e na mídia as mulheres ou são ausentes ou representadas em termos de
sedução, objetos sexuais, feminilidade, dependentes, consumidoras e ocupadas com trabalhos
domésticos, enquanto os homens mostram independência, autoridade e dominância”.
Outro aspecto fundamental para o estabelecimento de sentido da narrativa aponta,
evidentemente, para a mulher. Não é possível saber o nome de “Lujanera”, ela é referida dessa
forma durante todo o conto. Entretanto, não é a única tratada de maneira depreciativa. Ao descrever
o baile, o narrador comenta sobre “la caña, la milonga, el hembraje.” Segundo a o dicionário da
Real Academia Espanhola, este último termo significa conjunto de fêmeas do gado. Todavia, na
Argentina, no Paraguai e no Uruguai é utilizado para designar conjunto ou grupo de mulheres.
Como deriva do vocábulo “hembra”, fêmea em língua portuguesa, o significado mais evidente
compreende o mundo animal, indicando comportamento instintivo, ignorante, ou até mesmo sexual.
Vallerius (2007) traduz o vocábulo como “mulherio”. De qualquer forma, o narrador poderia ter
comentado que havia “mujeres”. O interessante é que ele tinha parceira para dançar, mas acaba a
noite com Lujanera, já que se transforma em “o mais valente”. Por conseguinte, merece ficar com
esta, afinal “las sobrava a lejos a todas” e representa um elemento concreto de posse do outro, a
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Faz-se necessário ler a narrativa sob a perspectiva de Rosendo Juárez, no conto já referido
anteriormente. Assim o narrador começa: “Usted, señor, ha puesto el sucedido en una novela, que
yo no estoy capacitado para apreciar, pero quiero que sepa la verdad sobre esos infundios.”
(BORGES, 1970, p. 40) A história centra-se na versão deste sobre o que aconteceu na noite em que
o Curraleiro morre. Rosendo comenta como ficou conhecido como o mais valente, pois é a partir de
tal fato que a mulher entra em sua história: “No había un alma que no me respetara. Me agencié
uma mujer, la Lujanera, y un alazán dorado de linda pinta.” (BORGES, 1970, p. 44) Nesse
momento, toma posse de dois objetos de reconhecimento dele como homem: a mulher e o cavalo.
Sobre mulheres, ele e Luís Irala conversam. Este havia perdido a sua para Rufino Aquilera e
conta ao outro que planejava se vingar. Rosendo, em uma postura antiviolência, o aconselha a
recuar, mas ele insiste, argumentando que as pessoas o vão rotular de covarde. Então, em uma frase,
ele resume a humilhação que significa, nesse mundo em particular, sofrer por uma mulher: “Un
hombre que piensa cinco minutos seguidos en una mujer no es un hombre sino un marica.”
(BORGES, 1970, p. 45)
Quando conta sobre a chegada dos forasteiros no baile, comenta que se lembra do vestido
floreado da companheira. Nesse momento, ele explica o motivo – uma espécie de coragem – de ter
“fugido” do embate: “En ese botorate provocador me vi como en un espejo y me dio vergüenza. No
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sentí miedo; acaso de haberlo sentido, salgo a pelear. Me quede como si tal cosa.” (BORGES, 1970,
p. 47) Na sua versão da história, ele é chamado de covarde pelo desafiante e responde que não lhe
importaria sair dali com essa fama. Conforme Sarlo (2008, p. 141),“Como o duelo exige uma
relação entre iguais, a inferioridade moral do desafiante justifica a recusa do desafio.”
Ele conta a atitude de Lujanera, quando coloca a faca em sua mão. Finalmente ele escapa, sem
importar-se com a aparente covardia. A personagem, então, fala dos novos rumos que havia
seguido: “Para zafarme de esa vida, me corri a la República Oriental, donde me puse de Carrero.
Desde mi vuelta me he fincado aqui. San Telmo ha sido siempre un barrio de orden.” (BORGES,
1970, p. 48) Nessa história, pelo ponto de vista de outra personagem, não há a fala provocativa de
Lujanera, esta não ofende “seu homem”. Ademais, fica claro que há uma tomada de consciência por
parte deste, que não vê mais justificativa nessa vida de violência gratuita e de desordem. Sarlo
(2008, p. 142) justifica: “Quem desafia sem ofensa é um espelho no qual o desafiado não quer ver
seu reflexo. Rosendo Juárez recusa-se a duelar porque aquele que o provoca não o respeita como
instrumento para restabelecer uma ordem. Tão-somente os cuchilleros de uma época que anuncia a
decadência do duelo recorrem a ele sem necessidade de reparação ou de justiça.” (SARLO, 2008, p.
142)
Voltando à construção do gênero feminino, de acordo com Vallerius (2007), “Lujanera”, além de
um gentílico, pode ser referir à Nossa Senhora de Luján ou ainda a uma carta específica dos jogos
de baralho, que simboliza a perda do jogo para quem a possui, nos costumes dos gauchos
argentinos. Ou seja, carta de azar, com poder de decidir o resultado de uma partida. Spagnuolo 6
auxilia a compreender esse sentido tão intrigante no contexto do conto borgeano, apontando a
instauração do caráter ambíguo da mulher:
La Lujanera es la mujer fatídica, la mujer-carta que le hace perder la suerte a
Francisco Real cuando la cree muy segura. [… ] En ese punto, la suerte de
Francisco Real está echada. La intervención de la Lujanera – ese golpe del juego –
ya ha decidido la muerte del Corralero, aunque su victimario aún no sepa con
claridad el lance que se le prepara.
Mesmo que o leitor desconheça tal informação, fica evidente a importancia da irrupção feminina
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SPAGNUOLO, Marta. Ascasubi, Borges y La Lujanera. Ensaio originalmente publicado na revista
Variaciones Borges # 16/ 2003, pp. 16-78 (The J. L. Borges Center for Studies and Documentation, University of
Aarhus, Denmark). Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/bh26borges.htm. Acesso em: 10 abr.
2010.
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no destino dos homens. É claro que, para o leitor argentino, esse detalhe cultural auxilia a atribuir
significação ao conto: conforme a autora supracitada, há uma mulher-carta (passa de mão em mão),
dissimulada (esconde elementos do assassinato) e prostituta (oferece seu corpo ao forasteiro). Em
um ambiente violento, de ação esencialmente masculina, ela consegue manipular o sexo oposto,
mas somente utilizando-se de sua sexualidade como argumento.
De acordo ainda com Bourdieu (2007, p. 22):
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produto da
dominação ou, em outros termos, quando seus pensamentos e suas percepções
estão estruturados de conformidade com as estruturas mesmas da relação da
dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são, inevitavelmente,
atos de reconhecimento, de submissão.
E no âmbito da sexualidade,
Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela
está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino,
ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e
dirige o desejo – o desejo masculino como desejo de posse, como dominação
erotizada, e o desejo feminino como desejo da dominação masculina, como
subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento
erotizado de dominação. (BOURDIEU, 2007, p. 31)
Ainda quanto à representação de gênero feminino, é bom lembrar Campos (1992, p. 113), em
consonância com as teorias de Bourdieu: “a ‘naturalização’ de papéis sociais atribuídos aos sexos
consolidou-se hierarquicamente, como se fossem da ordem do senso comum, quando, em verdade,
neles se abrigam a dominação, a opressão, a exclusão.”
Com relação a essa dominação, é necessário retomar Bourdieu (2007, p. 7), para quem a
submissão feminina resulta em uma aniquilação simbólica da mulher, processo esse denominado de
“violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas”, mas que não
acontece na ordem das intenções conscientes. Para o sociólogo, uma sociedade androcêntrica (visão
essa historicamente construída) origina uma discriminação simbólica. E as divisões entre os sexos,
construídas arbitrariamente, são apreendidas como naturais, evidentes. As mulheres, em
consequência, legitimam essa dominação, pois “aplicam a toda a realidade e, particularmente, às
relações de poder em que se veem envolvidas, esquemas de pensamento que são produto da
incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem
simbólica.” (BOURDIEU, 2007, p. 45) Ele ainda comenta que os dominados acabam lançando mão
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Variaciones Borges # 16/ 2003, pp. 16-78 (The J. L. Borges Center for Studies and Documentation, University of
Aarhus, Denmark). Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/bh26borges.htm. Acesso em: 10 abr.
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como ele lida com a matéria particular a que deu forma universal, tudo isto é tarefa crítica vasta,
complexa e fundamental.” Ou seja, é preciso resgatar a leitura da obra borgeana que busque
estender as relações de regionalidade, as marcas regionais que atuam para o estabelecimento de uma
visão de mundo.
REFERÊNCIAS
AGHEANA, Ion. El sur. In: CAÑEQUE, Carlos. Conversaciones sobre Borges. Barcelona: Destino,
1995.ALONSO, Amado. Materia y forma en poesía. Madrid: Gredos, 1960.
ARRIGUCCI JR., Davi. Enigma e Comentário. Ensaios Sobre Literatura e Experiência. São Paulo:
Cia. das Letras, 1987.
BONICCI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: EDUEM,
2007.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Barcelona: Emecé, 1996, 4 v.
______. El informe de Brodie. Barcelona: Emecé, 1970.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Gênero. In: JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da Crítica. Rio
de Janeiro: Imago, 1992.
CAÑEQUE, Carlos. Conversaciones sobre Borges. Barcelona: Destino, 1995.
DICCIONARIO DE LA LENGUA ESPAÑOLA. Disponível em:
http://buscon.rae.es/draeI/SrvltConsulta?TIPO_BUS=3&LEMA=hembraje. Acesso em 10 abr.
2010.
RELA, Walter. El gaucho en el contexto sócio-político rioplatense: (desde la época colonial hasta
fin del siglo XIX). Letras de Hoje, n. 77, 1989. Porto Alegre, p. 9-22.U
SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges, um escritor na periferia. São Paulo: Iluminuras, 2008.
SAVATER, Fernando. In: CAÑEQUE, Carlos (Org.). Conversaciones sobre Borges. Barcelona, ES:
Destino, 1995.
SPAGNUOLO, Marta. Ascasubi, Borges y La Lujanera. Ensaio originalmente publicado na revista
Variaciones Borges # 16/ 2003, pp. 16-78 (The J. L. Borges Center for Studies and Documentation,
University of Aarhus, Denmark). Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/bh26borges.htm.
Acesso em: 10 abr. 2010.
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diversas histórias. Ele discute a diáspora em geral e todos os problemas que estas
pessoas podem vir a enfrentar, inclusive os resultados, tais como alienação e/ou
destruição destas sociedades. O trabalho de Phillips é tão significativo que muitos
consideram que ele ‘concretizou’ o divórcio entre a Inglaterra e o Caribe e entre a
América do Norte e a África.
A violência, neste caso, vem a ser a força purificadora, que liberta sua nação do
parasita da metrópole. Ele acredita que como a violência já está sendo empregada, o
desejo de aniquilação do colonizador é, ou deve ser, uma reação natural do colono, pois
ela proporciona a unidade entre os nativos na luta contra a história da metrópole em
favor da construção da história de sua nação (FANON, 1990).
Já Hannah Arendt (1906 – 1975), uma teórica política judia-alemã, tem posição
contrária. Ela admite, porém, que a política e, conseqüentemente, a história tem sido
permeada pela violência: “No one concerned with history and politics can remain
unaware of the enormous role violence has always played in human affairs” (ARENDT,
1969)]. Para Arendt, isso demonstra o quanto estamos habituados à violência e o quanto
ela tem sido ignorada, dada sua presença óbvia tão intimamente ligada ao poder. A
violência, segundo ela, está hoje intrínseca ao poder, pois este é um tipo de violência.
Contudo, a visão de governo que Arendt defende é aquela em que há poder, pois ele é
da sua essência, mas sem violência, porque esta não o é.
Assim, o poder e a violência, embora sejam fenômenos distintos, usualmente
aparecem juntos e a violência, ao contrário do poder, não precisa de legitimidade, mas
de implementos. Uma violência bem implementada apresenta artefatos que podem
destruir o poder ou subjugar outra nação imediatamente, o que não advém do poder em
si. Quando não há poder, ou ele é perdido, ele é passível de ser substituído pela
violência.
A resistência discursiva também tem importante papel como defesa contra a
outremização. Embora Spivak (1995) acredite que o sujeito não pode falar, já que não
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tem espaço para se expressar, Bhabha (1998) afirma que há táticas usadas pelo
colonizado que podem ser vistas como sua voz.
Segundo ele, tal resistência consiste no discurso empregado pelo colonizado. A
mímica ou a imitação, a paródia, além da cortesia dissimulada, fazem ruir a sistemática
monolítica do colonizador, pois a língua é, afinal, uma atitude e isso quebra a primazia
do invasor.
A mímica é a tentativa, por parte do colonizado, de imitar o colonizador. Como é
difícil para o colonizado fugir da vitimização, ela está implícita na condição pós-
colonial. A mímica aparece, inicialmente, com a função de se assemelhar ao outro,
àquele que se acredita ser o padrão correto. Pode-se dizer, então, que a mímica é
produto do apregoamento da idéia binária do adequado (europeu) e do inadequado
(negro, colonizado). Tal resultado verifica-se na forma de resistência à opressão, já que,
parecendo o outro, não se pode mais ser subjugado.
A mímica e a paródia podem ser sarcásticas e tornar ridículos os padrões
colonizadores. Elas também são consideradas como defesa, já que um abismo é criado:
o colonizador se vê a partir de uma perspectiva diferente. Ele vê que sua ‘criação /
criatura’ – o outro – não é o mesmo que encontrou e nem o mesmo que ‘adestrou’ e que,
conseqüentemente, o negro não está completamente colonizado e pode se tornar uma
ameaça, já que percebe os pontos fracos do invasor. Nas palavras de ASHCROFT et al.
(1989, p. 88), “the distinction is between the authentic experience of the ‘real’ world
and the inauthentic experience of the unvalidated periphery”.
Essa oposição é vista nos mais diferentes aspectos:
[…] there is no neat binary opposition between the colonizer and the
colonized, both are caught up in a complex reciprocity and colonial
subjects can negotiate the cracks of dominant discourses in a variety
of ways (LOOMBA, 1998, p.10).
4. Análise
Como em suas outras obras, Phillips trata, ao contar diferentes histórias de seus mais
diversos personagens da preocupação com a imigração e da solidão, decepção e
exclusão que usualmente a acompanham.
O caso de In the Falling Snow não é diferente. As personagens são oprimidas pelo
centralismo europeu e se encontram à margem da sociedade. Keith, protagonista do
livro, é a segunda geração de imigrantes da família vivendo na Inglaterra, já que seu pai,
Earl, é quem primeiro sai da Jamaica.
Ao final da obra, Earl tem sua vez de falar. Até o momento ele permanece em
silêncio, o que também pode ser significativo, já que, até o momento de sua morte, não
teve voz. Sua triste história, além de afetar Keith profundamente e fazer com que ele
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entenda que o legado que leva consigo tem importante papel na sua história pessoal,
permite uma série de analises acerca da experiência do imigrante na Inglaterra de hoje.
Dentre os muitos tipos de resistência empregados pela personagem, um relevante é a
construção e manutenção da comunidade (community building) como forma de
subversão à outremização do jamaicano pelo inglês.
Earl tinha seus amigos na Jamaica – Ralph e Baron, entre outros – que imigraram
anteriormente para a Europa. Lá eles viviam em uma comunidade que se ajudava
mutuamente. Depois da morte de seu pai, Earl resolve juntar-se a eles na Inglaterra,
onde também é auxiliado pelos companheiros já lá residentes. No novo país, eles se
reúnem regularmente num bar, para trocar experiências, compartilhar problemas e
prestar assistência uns aos outros. Mais tarde, quando ficam velhos, recolhem-se, então
a uma mesma casa de idosos, onde relação idêntica permanece, mantendo, assim,
características da comunidade jamaicana para se abrigarem dentro da Europa.
Pelo seu relato, Earl queria apenas levar uma vida normal e equilibrada. Ele não
almejava enriquecer, mas ser livre como cidadão para trabalhar. Em outras palavras,
isso mostra sua maior resistência. Earl e seus amigos (Ralph e Baron) estavam dispostos
a superar todos os obstáculos, desde que fossem de fato livres. Este senso de formação
de comunidade (community building) pode ser visto como um dos tipos de resistência
mencionados anteriormente. Tal esforço compreende-se pela
Isto significa que os negros também queriam sua sociedade, onde as pessoas
pudessem trabalhar e ninguém tivesse poder sobre a outra. Eles sonhavam viver numa
relação sujeito – sujeito, em que todos vivessem seu papel sem a interferência de
‘proprietários’. Em suma, apesar do descrédito da sociedade, eles seriam todos
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Colonialism operated very differently for women and for men, and the
‘double colonization’ that resulted when women were subject both to
general discrimination as colonial subjects and specific discrimination
as women needs to be taken into account in any analysis of colonial
oppression (ASHCROFT, 1998, p. 105).
Vê-se, assim, que, por meio de sua atitude, ela questionava o sistema, e, opondo-se a
ele, buscava sua identificação e desejos. Isto mostra como o sujeito colonizador pode
ser fragmentado e contraditório – como o indivíduo o é na realidade. Reflexões pós-
estruturais refutam a unicidade do ser humano e seu monolitismo. A representação das
personagens híbridas ou negras nos romances pós-coloniais
disrupt this man-centred view of the world, arguing that the subject,
and that sense of unique subjectivity itself, is constructed in language
and discourse; and rather than being fixed and unified, the subject is
split, unstable or fragmented (IN RICE e WAUGH, 1996, p. 123).
Deste modo, Brenda provoca a ideologia racista ao assumir uma relação de afeto
inter-racial numa sociedade excludente e a conseqüente dificuldade de manter uma
mentalidade aberta ao outro. Contrapondo a outremização, criar um enteado, e não um
filho, é a prova viva da resistência contra o eurocentrismo e a exclusão decorrente desta
ideologia.
Referências
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BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da Teoria Pós-Colonial. Eduem: Maringá, 2005.
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BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lucia Ozana (org.) Teoria Literária. Abordagens
Históricas e Tendências Contemporâneas. 2ª ed. Eduem: Maringá, 2005.
LOOMBA, Ania. Colonialism / Postcolonialism. London: Routledge, 1998.
PHILLIPS, Caryl. In the Falling Snow. New York: A Knopf, 2009.
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Além dessas questões, Lobato luta pelo petróleo e investe no setor editorial,
expandindo o acesso aos livros e elevando o nível de sua materialidade. Se,
inicialmente, o público-alvo de seus textos não era as crianças, posteriormente, após
observar o comportamento dos seus filhos diante das narrativas contadas por Purezinha,
Lobato desperta-se para o gênero:
Preocupado com a formação literária de seus filhos e movido pelo desejo de criar
livros que realmente interessassem e despertassem a imaginação das crianças, Lobato
publica seu primeiro livro infanto-juvenil – A Menina do Narizinho Arrebitado – em
1920 e que, no ano seguinte, é reformulado e vem à público com o título de Narizinho
Arrebitado. O desejo de agradar aos pequenos leitores fica registrado na passagem da
carta de 09 de fevereiro de 1921 a Rangel: “Mando-te Narizinho escolar. Quero tua
impressão de professor acostumado a lidar com crianças. Experimente nalgumas, a ver
se se interessam. Só procuro isso: que interesse às crianças” (LOBATO, 1964, v.12,
p.228, grifo nosso).
Com a aceitação do público, sucessivamente, Lobato publica novas obras que
constituem uma série, ambientada num espaço comum – o Sítio do Picapau Amarelo – e
integrada pelas mesmas personagens: Dona Benta, Tia Nastácia, Narizinho, Pedrinho,
Emília, Visconde de Sabugosa, Marquês Rabicó, Quindin e Burro Falante. Com uma
linguagem fluida, as narrativas lobatianas se filiam àquelas construídas sob a atmosfera
do maravilhoso. André Jolles, em Formas Simples (1930), declara que nos contos de
fadas “o maravilhoso não é maravilhoso, mas natural” (JOLLES, 1976, p.202) e que
esse recurso torna-se imprescindível a essa forma. De forma similar, Tzvetan Todorov
afirma que “o conto de fadas é senão uma das variedades do maravilhoso e os
acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa: nem o sono de cem
anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas” (TODOROV, 1975, p.60).
Com as mesmas características de escritura dos contos de fadas, as histórias
lobatianas são repletas de acontecimentos sobrenaturais que em nada gera o
estranhamento das personagens, ao contrário disso, o maravilhoso é vivenciado,
sobretudo pelas personagens-crianças, com muita naturalidade. Na primeira narrativa do
livro Reinações de Narizinho (1931), “Narizinho Arrebitado”, logo após a apresentação
das personagens, Narizinho conhece o Reino das Águas Claras, que fica no fundo do
ribeirão do Sítio. Nesse trecho da história, a paisagem comum do ribeirão de Dona
Benta metamorfoseia-se, trazendo à luz um Reino Encantado que, até então, passava
despercebido: “E ainda estavam discutindo os milagres das famosas pílulas quando
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chegaram a certa gruta que Narizinho jamais havia visto naquele ponto. Que coisa
estranha! A paisagem estava outra” (LOBATO, 1957, v.1, p.09).
Essas transformações ocorrem com certa freqüência no universo ficcional lobatiano.
Em Emília no país da gramática (1934), as personagens estão caminhando e, de
repente, deparam-se com um novo espaço: “Trotou, trotou e, depois de muito trotar, deu
com eles numa região onde o ar chiava de modo muito estranho [...] – É que já entramos
em terras do País da Gramática – explicou o rinoceronte – Estes zumbidos são os SONS
ORAIS, que voam soltos no espaço” (LOBATO 1988, v.6, p.11). Sem qualquer
explicação, a paisagem modifica-se, como também se observa em O Picapau Amarelo
(1939), com a mudança das personagens do País das Maravilhas para as Terras Novas:
“Aquelas terras ordinaríssimas, onde só havia saúva e sapé, começaram a transformar-se
por encanto” (LOBATO, 1956, p.22-3). Outro exemplo está em O Minotauro (1939), no
momento em que a turma do Sítio decide ir visitar a Grécia antiga e não a atual: “Todos
concordaram e, fechando os olhos, fizeram tchibum! Foram sair lá adiante, em plena
Grécia de Péricles. Tudo mudou como por encanto” (LOBATO, 1988, v.12, p.113).
Além da transformação do espaço, verificamos, no Sítio, a transformação das
próprias personagens. Os grandes exemplos são a Emília e o Visconde. Ambos deixam
de ser bonecos e metamorfoseiam-se em “gente”, como reconhece Dona Benta, em
Caçadas de Pedrinho (1933): “Mas lembre-se, Nastácia, que também nunca vimos
contar de nenhuma boneca que falasse, nem de nenhum visconde de sabugo que agisse
tal qual uma gentinha – e aí estão a Emília e o Visconde de Sabugosa” (LOBATO,
1988, v.3, p.39). Em O Saci (1921), Narizinho também sofre uma metamorfose, é
transformada por Cuca em pedra. A menina é salva por Pedrinho e o Saci: “um fato
maravilhoso se deu. Uma pedra no terreiro, que ninguém se lembrara de ter visto ali,
principiou a inchar, a crescer e a tomar forma de gente. Segundos depois essa forma de
gente começou a apresentar os traços de Narizinho (LOBATO, 1988, v.2, p.245-6).
Considerando os exemplos mencionados nos parágrafos anteriores e as palavras de
Marina Warner, em Da fera à loira, de que “é a metamorfose que define o conto de
fadas” (WARNER, 1999, p.17), constatamos que Monteiro Lobato, na elaboração do
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[...] sentiram-se leves como plumas, e tontos com uma zoeira nos
ouvidos. As árvores começaram a girar-lhes em torno como
dançarinas de saiote de folhas e depois foram se apagando [...] Eles
boiavam no espaço como bolhas de sabão levadas por um vento de
extraordinária rapidez (LOBATO, 1957, p.260).
Esses eram os sintomas do pó que logo passavam com a chegada ao destino. Peninha
é uma personagem que desperta dúvida nas crianças do Sítio a respeito de sua
verdadeira identidade: – “Estou desconfiado – disse Pedrinho – que o tal pó mágico de
Peter Pan era o nosso pó de pirlimpimpim. / – E quem nos garante que o tal Peninha,
que deu a você o pó de pirlimpimpim, não seja esse mesmo Peter Pan?” (LOBATO,
1988, v.5, p.133). Com essa sugestão, Lobato explicita ao leitor empírico sua concepção
concernente ao processo de composição de uma obra literária. Nesse jogo intertextual,
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Esteve lá, sim! E posso dizer mais: esteve lá há três meses, logo
depois que entrou na ponta dos pés em meu laboratório e furtou duas
pitadas de pim, um para ir até à ilha de Bikini e outra para voltar. Foi
ou não foi assim, Senhora Marquesa de Rabicó? (LOBATO, 1988,
p.250).
pirlimpimpim que viabiliza a viagem de Emília até a ilha e lhe permite constatar tanto a
destruição quanto viver as conseqüências desse experimento.
Por fim, cabe dizer que Lobato aborda diversos assuntos em seus textos,
possibilitando, por meio da atmosfera maravilhosa, a reflexão crítica do pequeno leitor.
Assim, consciente das debilidades dos livros destinados a esse público específico,
Lobato propõe, com a criação do Sítio do Picapau Amarelo e de sua turma, uma re-
apresentação dos contos de fadas, combinando elementos próprios com as
características basilares dessa modalidade literária. Verificamos, portanto, que Lobato
investe genericamente nos contos de fadas, não para perpetuar um modelo amplamente
divulgado, mas para atualizá-lo.. Com esse procedimento criativo, Lobato cria o “novo”
a partir do “velho”, rompendo com as barreiras do conservadorismo vigente na literatura
infantil.
Referências
JOLLES, André. O conto. In:______. Formas Simples. Tradução: Álvaro Cabral. São
Paulo: Cultrix, 1976, pp.181-204.
KRISTEVA, Julia. A palavra, o diálogo e o romance. In: ______. Introdução á
Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974, pp.61-90.
LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. 11.ed. São Paulo: Brasiliense, 1964. (Obras
completas de Monteiro Lobato, v.11).
______. A barca de Gleyre. 11.ed. São Paulo: Brasiliense, 1964. (Obras completas de
Monteiro Lobato, v.12).
______. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 1957.
______. O Picapau Amarelo. São Paulo: Brasiliense, 1956.
______. O Saci. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-juvenil de Monteiro
Lobato, v.2).
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______. Caçadas de Pedrinho. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-juvenil
de Monteiro Lobato, v.3).
______. Emília no país da gramática. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-
juvenil de Monteiro Lobato, v.6).
______. Minotauro. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-juvenil de
Monteiro Lobato, v.12).
______. Histórias Diversas. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-juvenil de
Monteiro Lobato, v.15).
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002.
SANT’ANNA, Affonso Romano. Paródia, Paráfrase e Cia. 6.ed. São Paulo: Editora
Ática: 1998.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução: Maria Clara Correa
Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.
WARNER, Marina. Da Fera à Loira: sobre contos de fadas e seus narradores.
Tradução: Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
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1. O ritmo e a rima
1
Em anexo.
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Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero
aprender, dispenso”. (FREIRE, 2005, p. 79)
Nota-se que as perguntas que iniciam o texto não exigem respostas científicas.
Exigem reflexão. São muito menos simples do que parecem a princípio: falam de
natureza, ciência, valores e, ainda, desestabilizam o leitor letrado que se depara com
uma personagem que lhe diz: não quero ser como você: “Não quero aprender, dispenso”
(FREIRE, 2005, p. 79). O fato de a personagem dispensar o aprendizado força o leitor a
des-pensar o que ele tem como verdade absoluta: o letramento/alfabetização como valor
positivo. Afinal, o confronto não se dá pelo que ela diz, mas pelo como diz, ou seja, por
meio de um dizer específico que não fala sobre ela, mas é ela própria, sujeito
incomunicável-comunicável da linguagem:
O que ela [a linguagem] mostra melhor é o que você faz dela. Por
isso somos todos, nós mesmos, inteiramente, o conteúdo da
linguagem. A linguagem é, a cada vez, o sujeito inteiro. Sua história.
Que significa mais o que ele não diz do que o que ele diz. O que
interessa é descobrir como. O incomunicado é o que se comunica
antes de tudo” (MESCHONNIC, 2006, p. 4).
Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de
doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só
precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto.
Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?
(FREIRE, 2005, p. 79)
completa em tô bem; na boca especifica meu canto; fogo retoma o derivado fogão. Essa
linguagem imagética não precisa da ponderação que se espera no texto escrito: a
remissão de fragmentos, muitas vezes realizada pela profusão de rimas no interior do
texto, funciona como uma pintura, cujo jogo entre luz e sombra dirige sensivelmente os
olhos a deslizarem pelos contornos do objeto.
Esse deslizamento, que é efeito e causa da oralidade, é fisicamente incorporado pelo
leitor que traga essa linguagem que não é a sua, mas de um outro que o habita no
momento da leitura e passa a controlar seus impulsos respiratórios. É inegável que o
ritmo esteja ligado à respiração e esta, por sua vez, é o que mantém o vínculo entre o
homem e seu exterior: quando cessa a respiração, cessa a vida. Assim, o leitor precisa
ler Totonha, a personagem, aos solavancos, com seu imaginário respiratório, porque ela
é esse sujeito que reúne e remenda as concepções suas às dos outros; o saber de um não-
saber sabedor, porque poético. E,
2
Ao se referir à expressão “linguagem ordinária”, Meschonnic diz que: “À primeira vista, ela parece dupla, pelo
menos. (...) Ela designa, indistintamente, a linguagem e uma relação com a linguagem, que se esconde por detrás de
uma aparente evidência, como se o termo mostrasse, com toda transparência, a própria natureza da linguagem. Um
estatuto e uma teoria. A expressão linguagem ordinária é, então, tanto mais perversa, e perniciosa, quanto mais
simples parece. Ela implica uma atitude e uma história localizadas, e o próprio instrumentalismo a que ela se refere
passa despercebido por detrás de sua banalidade” (MESCHONNIC, 2006, p. 12).
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Por tudo isso, creio que, se a escritura esconde o sujeito generalizando-o pela
arbitrariedade do signo linguístico e do uso regrado dele, “que interpõe seus filtros”
(ZUMTHOR, 1993, p. 109), é pela oralidade que o sujeito se desvela naquilo que lhe é
único e irrepetível: sua forma específica de exteriorizar e interiorizar o “em torno”. O
ritmo, então, é a “organização subjetiva do discurso da ordem do contínuo, não do
descontínuo do signo” (MESCHONNIC, 2006, p. 17) que se manifesta gestualmente
promovendo a subjetividade na linguagem.
2. O gesto e a voz
3
Disponível em: http://www.verbo21.com.br/index.php?Itemid=94&id=77&option=com_content&task=view.
Acesso em 10/04/2010.
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No balanço do autor, percebe-se a importância do som “de ouvido” dos seus textos e
a gestualidade teatral que o produz. Zumthor (1993, p. 105) comenta que a leitura
silenciosa e ocular substituiu a “leitura ruminativa”, de articulação vocal, devido à
multiplicação e à circulação de escritos. De fato, na infância da escritura, voz era
sinônimo de fonia. Contudo, é importante destacar que não é somente como fonia e
performance que a oralidade se concretiza nos textos do autor, mas, também na prosódia
e sintaxe que dão certa “visão da voz”.
Diz Meschonnic que
Não é preciso ler o fragmento em voz alta para sentir as nuances da voz: o falar
espaçado da segunda frase estende-se no olhar físico ou imaginativo, aguçado pela
pergunta antecedente, imbuindo-o de uma ternura que vai esmorecendo até o “Hein?”,
cujo sobressalto faz com que o tom aumente nas frases sequenciais. Destacam-se duas
frases que recebem entonações peculiares na leitura: “Tem esforço mais esforço que o
meu esforço?”, cuja leitura obriga a acentuar o segundo termo esforço porque reenvia ao
primeiro, e o termo meu por anteceder uma nova repetição. A segunda frase em
destaque é: “Tenha santa paciência!”, que, por fechar uma série de desabafos, soa como
uma explosão com acento nas sibilantes santa e ciência.
Essas reflexões sugerem que a voz indicia o tipo de relação estabelecida entre a
personagem e seus interlocutores e, pela forma como Totonha se dirige à professora,
percebe-se que estão de frente uma para a outra. De acordo com Hall (1973), em seus
estudos sobre a proxemística, essa seria a “distância social” (1,20 a 3,60m) e marca o
limite da dominação. Nela, há uma sensação da presença corporal do outro, porém o
olhar é fundamental para manter o contato, pois o toque é interditado. No conto, é certo
que ambas se olham porque nesse tipo de distância “cuando se deja de mantener la
mirada de la otra persona equivale a despedirla, lo que hace que la conversación se
detenga” (HALL, 1973, p. 191).
Na distância social, a voz varia entre normal a um pouco mais alta, podendo ser
ouvida num raio de seis metros, ou seja, a voz marginal de Totonha se desloca da
periferia para o centro desse círculo compreendido pelo som. É possível ainda que
Totonha esteja no ambiente de trabalho ou em casa: “Deixa eu, aqui no meu canto. Na
boca do fogão é que fico”, pois a proximidade permite que “uma de ellas continue
haciendo su trabajo em presencia de la outra sin que por ello se cometa uma grosería”
(HALL, 1973, p. 191). Por outro lado, pode ser que ambas estejam sentadas, mas nada
indicia que a professora esteja em pé frente à Totonha no trecho: “Não preciso ler,
moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente (...)”, pois Totonha inverte
facilmente as posições de quem precisa aprender: a moça/mocinha/professora, como se
se movimentasse livremente no espaço, afirmando-contrariando seu próprio dizer:
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“Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa.
Que voa.” (FREIRE, 2005, p. 81).
É interessante que, mesmo se Totonha estivesse em pé diante da professora sentada,
ainda assim não conotaria dominação em seu discurso porque a voz do letrado, pelo
status que ocupa na sociedade, possui força mesmo quando não pronunciada em
palavras: “há voz no silêncio e silêncio na voz. Há sempre sentido. Ou, sobretudo, há
significação. Pois, para a linguagem, não existe fora da linguagem. Os silêncios fazem
parte dela. Aliás, nós os fazemos falar” (MESCHONNIC, 2006, p. 38).
Assim, se a voz e o ritmo são invisíveis, a energia que produzem torna a oralidade
visualizável na escritura. Totonha, uma vez desmascarado o signo, realiza sua
subjetividade tornando-se sujeito-voz ou voz-sujeito, sendo que a posição desses termos
é continuamente redefinida: enquanto sujeito, Totonha é uma voz, enquanto voz,
Totonha é um sujeito.
Totonha não é uma personagem de fácil acesso; as questões que ela coloca são, no
mínimo, desestabilizadoras do senso comum: qualquer leitor que se dispõe a ler esse ou
qualquer conto, a priori é a favor de qualquer programa de letramento/alfabetização.
Porém, lendo Totonha, a personagem, ele é obrigado a dispensar suas certezas, o que, é
claro, não significa apenas concordar com ela, mas refletir e relativizar seus próprios
pontos de vista.
Isso significa que Totonha nivela-se com o leitor e é ouvida porque no interior de
sua linguagem ressoa também a voz do outro, apropriada e remodelada sem ingenuidade
porque nenhuma apropriação representativa é inocente (MOREIRAS, 2001). Isso se
comprova no fragmento acima. Segundo Zumthor (1973, p. 113), para a “massa dos
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iletrados, a letra traçada é uma coisa – significante da mesma condição que toda coisa
criada – irrefutável, mas inacessível, quase imaterial, portadora de esperanças ou
pavores mágicos”. Totonha, embora iletrada, não participa da mesma massa a qual se
refere Zumthor, para ela o nome é apenas coisa, sem misticismo algum: sem vida
porque sem gente, sem voz.
É preciso levar em conta que Zumthor se baseia na cultura medieval e Totonha vive
num outro tempo-espaço, contemporâneo, de passagem da cultura logocêntrica para a
imagocêntrica “ou de uma cultura literária para uma tecnocultura electrônica. À
emergência, em suma, de uma nova ordem cultural polarizada já não no livro e na
leitura, mas na televisão e no computador.” (DIAS, 1998, p. 15). Totonha pode não
saber ler e escrever, mas nem por isso sabe menos, pois está “informada” dos
acontecimentos. Assim, a personagem alia a informação recebida pelas mídias a seu
conhecimento de mundo:
O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o
vale-doce e o vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com
o vento, ta me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta
ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A
química. (FREIRE, 2005, p. 81; grifos meus)
Diferente daquele que ignora sua própria ignorância, Totonha sabe dela e sabe que
apenas ignorando há a oportunidade de aprender com o que existe e, por isso, se
respeita. Não seria exagero lembrar Sócrates aqui, afinal ele também não sabia.
Portanto, é nessa relação com o saber-não-saber, inscrita no seu ritmo e voz, que
Totonha vai se constituindo como sujeito político.
Porém, como definir esse sujeito que parece sujeitar-se a todas as mazelas de sua
condição social? Seu direito à liberdade significa abandono do político ou a recusa à
representação? Essas questões não se resolvem facilmente, ao contrário, elas colocam a
personagem em estado de “suspensão”, visto que construída na/pela oralidade é
definitivamente inacabada. Esse inacabamento ocorre porque a voz é, sobretudo,
loucura (MESCHONNIC, 2006, p. 49), daí entender o desejo de Totonha ser “demente
como um mosquito”, o que lembra o discurso da histeria em Lacan: a histérica como
sujeito que questiona o outro é quem, de fato, conduz ao saber.
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A profusão de perguntas desemboca na asserção final: “Eu é que não vou baixar
minha cabeça para escrever. Ah, não vou.” (FREIRE, 2005, p. 81), que se coloca como
o grande dilema do texto. Uso o termo dilema como tradução do “double bind”, de
Derrida, sugerido por Evando Nascimento, que o lê como uma situação que “impõe uma
decisão impossível entre duas solicitações que aparentemente se excluem” (2001, p. 99).
Assim, a situação proposta – baixar a cabeça para escrever – se bifurca em duas
significações: a primeira que denuncia a libertação pela aprendizagem e, a segunda, a
submissão ao que o governo espera dela.
Essa estrutura é construída por um olhar dissimétrico, que olha para sua própria
representação, por isso “o campo de visão que o olhar dissimétrico articula já é sempre
desarticulado por ele” (MOREIRAS, 2001, p. 168). De modo que Totonha, por um lado,
pode ser o “novo sujeito político”, representante da multidão e “resultado histórico que
não é nem produtor nem cidadão porque não está interessada em se reconstituir como
sujeito” (MOREIRAS, 2001, p. 155) e daí explica-se seu acomodamento à situação
exposta. Mas, por outro, ao transpor a representação pré-concebida, Totonha se afirma
como “palavra nova”, ou como venho defendendo, inaudita: “do representado virá o que
subverte a representação, mas apenas se a subversão não resultar em nova
representação” (MOREIRAS, 2001, p. 191). Nesse sentido, seu acomodamento daria
lugar a uma atitude de resistência frente ao que o outro, representando o poder
hegemônico – professora/governo/leitor – espera dela. Porém, nenhuma das posições
efetivamente se firmam.
Essa hesitação, como os deslizamentos orais, é decisiva para manter a tensão no
texto de Marcelino Freire, deixando em suspenso uma significação que pudesse resolvê-
la. Talvez essa seja a causa do “irrecuperável” (PIGLIA, 1999) ao fim do conto: porque
a “negociação política e/ou crítica da alteridade incorpora necessariamente um elemento
de imprevisibilidade: a alteridade nunca é dominada ou mesmo contida exaustivamente
por antecipação” (MOREIRAS, 2001, p. 160). Tudo isso justifica o que Meschonnic
(2006, p. 7) propõe no início do livro: o ritmo como “missão do sujeito” e como
“experimentação imprevisível da alteridade sobre a identidade”; a oralidade e o ritmo
como “a matéria e a questão da modernidade”.
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Nesse movimento contínuo, do ritmo e da voz, que chama o leitor a fundir-se com
seu tempo e espaço, por meio do imaginário respiratório, Totonha constrói sua
subjetividade e historicidade também no papel, que é de onde ela se faz ouvir.
Referências
DERRIDA, Jacques. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica,
2001.
DIAS, Sousa. “Esforços de guerra: pensamento, comunicação e resistência”. In: Estética
do conceito: A filosofia na era da comunicação. Coimbra: Editora Pé de Página, 1998.
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HALL, Edward T. La dimensión oculta. Enfoque antropológico del uso del espacio.
Madrid: Instituto de Estudios de administración Local, 1973.
LACAN, Jacques. Psicoses. Seminário III. Trad. Aluísio Menezes. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1988.
MESCHONNIC, Henri. Linguagem: ritmo e vida. Extratos traduzidos por Cristiano
Florentino. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2006.
MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença. Trad. Eliana L. de Lima Reis e Glaucia
R. Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos
textos da desconstrução. Niterói: EdUFF, 1999.
PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. Buenos Aires: Temas Grupo Editorial, 1999.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A literatura medieval. Trad. São Paulo: Cia das
Letras, 1993.
Anexo: Totonha
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Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor?
Em quê? Não quero aprender, dispenso.
Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar
bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa.
Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás
de sílaba?
O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-
lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, ta me entendendo? Demente
como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que
eu. A química.
Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O
risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?
Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o
meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol.
Tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?
Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso
de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa
paciência!
Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí
ficar contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me
diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás
do nome não conta?
No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos
aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não
mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.
Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não
tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem
sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?
Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa
saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever.
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Talvez o conto de amor mais belo de Caio Fernando Abreu não seja realmente
um conto de amor... É claro que Sem Ana, blues fala da (tentativa de) reconstrução da
vida quando e depois do fim de um relacionamento amoroso, da dor da perda, de novos
amores e da ausência sempre presente do ser amado, mas, mais do que essa leitura
linear, o conto-blues fala do tempo e da história. É a partir dessa chave e numa leitura
que toma como base para a análise o artigo Spätzeit, de Walter Moser (1999), que
empreendo minha leitura do conto de Caio, cruzando-o em algum momento com o
conto Amor, de Clarice Lispector.
No artigo homônimo, Moser busca pela arqueologia do conceito Spätzeit que,
correntemente, refere-se à “modernidade tardia”. Para isso, o autor seleciona alguns
componentes semânticos inscritos no termo: a perda da energia, a decadência, a
saturação cultural, a secundariedade e a posteridade, todos, a meu ver, intimamente
presentes no conto Sem Ana, Blues, que extrapola os limites do ficcional, adquirindo
envergadura de metaficção teórica e crítica cultural, num momento em que toda
atividade crítica está em crise.
Mas, como essas questões se apresentam sob a fina malha poética? Como
delinear os pontos de cruzamento entre o ficcional e a atividade teórica e crítica do real?
Esse é o objetivo deste artigo.
amorosa é uma busca no mais das vezes acompanhada da decepção. A diversa gama de
personagens (que inclui mulheres, homossexuais, adolescentes e bêbados) é uma mostra
heterogênea do que se pode chamar coletividade, de modo que a narrador-personagem,
abandonado por Ana, pode representar em sua particularidade um estado de frustração
compartilhado pelo homem contemporâneo.
É importante salientar que o narrador de Sem Ana, blues fala de um tempo-
espaço específico, ou seja, de um Brasil recém democratizado, o que significa que se
encontra “em passagem” do período sócio-político autoritário, marcado pela opressão e
insegurança, a outro – não menos traumático – no qual se esperava viver plenamente as
promessas de futuro. Evidentemente, o futuro tornado presente não se concretiza como
esperado acentuando, assim, as incertezas de um também autoritário excesso de
liberdade 1 e as tentativas de reconstituição da memória utópica esgarçada pela força do
presente. Desse modo, os pontos de cruzamento entre o estado emocional vivenciado
pela personagem de Caio e um estado que diz respeito à contemporaneidade como um
todo podem ser surpreendidos no relato desse ‘eu’ deslizante entre dois tempos – o
quando e o depois:
Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois
jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma
frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu
pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a
única espécie de não continuação que vinha. (ABREU, 1988, p. 41)
1
Zizek (2003, p. 16-17), nas páginas iniciais de Bem-vindo ao deserto do real, alerta para o
“potencial antidemocrático do princípio de liberdade de pensamento” que paradoxalmente
garante sua “servidão”. Ele argumenta que, na modernidade, a escolha é sempre imposta: “você
tem a liberdade de escolher o que quiser, desde que faça a escolha certa”.
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sentimento que precisa se con-formar, ou seja, encontrar uma forma/fôrma que lhe dê
contornos ou com a qual possa ao menos estar com. Lê-se, assim, no desespero
amoroso, a perda de certa materialidade presente na expressão estética, ou ainda, de um
modo de dizer que dê conta do vazio do sentir. Nessa direção, continua:
Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha
cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela
ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco
sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou
ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade
foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo,
para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios,
meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras
coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro
dela. (ABREU, 1988, p. 41)
Essa longa seleção do poema faz-se necessária para entender a personagem que
vive num Spätzeit em relação à sua antiga condição de plenitude, na qual, imagina-se,
viveu o ápice de sua história, tomando essa condição como aquela em que reinavam a
esperança e a força heróica e, porque não dizer utópica, de futuro. Lembrando a leitura
de Natali (2006, p. 36-37) sobre A educação sentimental, pode-se dizer que aqui
também a nostalgia é “pelo ‘futuro’ que um dia existira em seu passado” [grifo do
autor], ou ainda “pela perda de um horizonte de possibilidades” que faz com que se
“perceba o presente como uma falta, em contraste com a plenitude do passado, mesmo
que com a plenitude de uma promessa”. É isso que parece sentir o narrador que precisa
vivenciar e, ao mesmo tempo, narrar a perda dessa promessa.
Moser (1999, p. 34) exemplifica essa situação com o mito do “paraíso perdido”
que aproximo do também mítico “primeiro amor” – poderia dizer grande ao invés de
primeiro, mas, como não há nada que anteceda Ana no relato, esses adjetivos se
equiparam. Então, uma vez encontrado o clímax, esse grande/primeiro amor evolui para
a “perda progressiva da plenitude inicial”. Não é difícil ver sob a pele desse indivíduo,
tardio em relação a si mesmo, toda a coletividade contemporânea que vive a angústia de
sentir que chegou tarde em relação a uma primeira época de grandes acontecimentos, de
grandes heróis, transformações e revoluções, frente à qual se encontra estática.
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Nesse sentido, à emergência de uma forma que possa dar corpo à ausência, a
personagem responde com o silêncio e a imobilidade, faces visíveis da perda de energia
que vem com a perda do que era considerado o dispositivo gerador de completude.
Entretanto, trata-se de um silêncio paradoxal porque pleno de palavras: o narrador-
personagem narra esse silêncio e essa falta justamente com o excesso de significantes
agora vazios de significado para ele: “meus dias, meu apartamento, minha cama, meus
passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas” (Idem, ibidem).
Nota-se que, como o sujeito do Spätzeit, a personagem acredita se tratar de uma
perda irreparável e, por isso, “desenvolve[r] estratégias para prolongar o sistema do qual
faz parte” (MOSER, 1999, p. 35):
Ana, então, passa a existir apenas nos restos e como fragmentos: o bilhete, cujo
“suor que escorre pelo meu corpo começa a molhar as mãos e a dissolver a tinta das
letras”; o cheiro, “cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda
guardavam o cheiro dela” e o copo de cristal “que sobrara de uma briga” (ABREU,
1988, p. 42). Pode-se, nesses cacos imagéticos, ver a personagem a partir de outra
imagem: a do anjo da história benjaminiano que vira as costas ao futuro para encarar
fixamente a catástrofe e as ruínas do passado (BENJAMIN, 1987), fazendo com que
essa degradação seja a “alegoria por excelência do ser histórico do homem” (MOSER,
1999, p. 37). A personagem, como o anjo, resiste a deixar para trás o que ficou e lançar
seu olhar ao futuro, vivendo assim entre dois tempos, de modo intempestivo.
Agamben (2009), a partir da leitura do poema O século (1923, Osip
Mandel’stam), apresenta outra forte imagem para o contemporâneo: aquela da época-
fera que tem as vértebras fraturadas e, por isso, ao tentar virar-se para trás mostra o
sorriso demente. Na versão do filósofo, o homem contemporâneo fatalmente precisa
continuar sua caminhada rumo ao futuro que desconhece, futuro que Benjamin compara
à força de uma tempestade. Entre a visão de Benjamin, na qual o avanço ocorre
passivamente (o anjo é arrastado pela tempestade) e a de Agamben, cuja fera-demente
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escondeu a admiração pela autora e a influência direta de Clarice sobre sua obra, o que
permite associar o conto Sem Ana, blues ao conto Amor, cuja personagem tomada por
um amor dos mais transcendentais da literatura brasileira também se chama Ana.
Parece-me que há, aqui, um importante combate, no qual não se pode apenas repetir o
modelo, mas é necessário profaná-lo, torná-lo outro para que assim seja seu:
Entre aquele que vem tarde e aquilo que ele já encontra na cena
cultural acontece uma prova de força que culmina na criação. E essa
prova de força é, no sentido próprio do termo, um corpo a corpo
textual, ela se pratica nos e com e contra os materiais de uma poesia
que já ocupa o espaço poético. (MOSER, 1999, p. 46-47)
comecei a trazer outras mulheres para casa. Mulheres que não eram
Ana, mulheres que jamais poderiam ser Ana, mulheres que não tinham
nem teriam nada a ver com Ana. Se Ana tinha os seios pequenos e
duros, eu as escolhia pelos seios grandes e moles, se Ana tinha os
cabelos quase louros, eu as trazia de cabelos pretos, se Ana tivesse a
voz rouca eu a selecionava pelas vozes estridentes que gemiam coisas
vulgares quando estávamos trepando, bem diversas das que Ana dizia
ou não dizia, ela nunca dizia nada além de amor-amor ou meu-menino-
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Se, ao dormir com todas as mulheres que não são Ana, o que facilmente se
observa é um processo rumo à superação do trauma, conforme assinalaria Freud (2002)
em “Luto e Melancolia”, nisso também reside outro processo que está inscrito no termo
Spätzeit: o da secundariedade. Segundo Moser (1999, p. 40), “é secundário um
fenômeno que se repete de maneira mais fraca e muitas vezes deformada, tardio no
tempo em relação a um primeiro aparecimento”. Assim, Ana – a cada reaparição no seio
do próprio desaparecimento – aponta para tudo aquilo que é secundário e que estava à
margem de sua própria centralidade. De modo semelhante, a secundariedade designa
“um modo de produção cultural que trabalha a partir de um pré-construído cultural, a
partir de materiais previamente dados, que já tem um estatuto cultural” (Idem, 41), o
que, neste caso, torna todas as mulheres apenas uma deformação caricata da Ana
primeira, cuja representação seria a personagem clariciana. Talvez por isso, a
impossibilidade da Ana de Caio figurar no conto: se acaso fosse representada também
cairia na armadilha da secundariedade, daí que apenas como fantasmagoria ou ausência
(sem Ana) sua integridade possa ser assegurada e equiparada à força da, também
ausente, antecessora.
Tudo isso leva a crer que é inequívoca a associação da personagem, saturado de
passado, com a cultura contemporânea, descarga de culturas passadas e heterogêneas,
pois “a condição do Spätzeit inclui a vida num mundo culturalmente pleno, cheio dos
restos das épocas que o antecederam”, de forma que “destruídas e decaídas” as culturas
do passado se mantém “materialmente presentes sob a forma de destroços que irrompem
no presente” (MOSER, 1999, p. 38-40). É o que se vê na sopa cultural apresentada pela
personagem:
Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das
anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos,
vidências, números e axés ¿ ela volta, garantiam, mas ela não voltava -
e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, dos sonhos
junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da
humildade, com promessas à Santo Antônio, velas de sete dias, novenas
de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas e velhinhos
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Diehl (2006, p. 370) afirma que tal “heterogeneidade revela um espaço cultural
contemporâneo saturado de diferenças”. Assim, a personagem de Caio, vivendo num
mundo “culturalmente pleno, talvez pleno demais”, pode ter duas reações que
desembocam em atitudes diferentes: a reação negativa que “percebe menos a plenitude
do que o excesso” e a reação positiva que “percebe menos o excesso do que a plenitude”
(MOSER, 1999, p. 39). No conto, essas atitudes oscilam, deslizando da paralisia à
criação, quando o narrador finalmente aceita produzir a partir de “uma mesa cultural já
posta [e] onde reina a abundância”:
Ana, portanto, se torna esse elemento aglutinador, uma imagem secreta, única
entre tantas incertezas, que possibilita ao narrador um ponto de partida – ou de retorno –
para a (re)criação de si: “Porque nunca contei à ninguém de Ana. Nunca ninguém soube
de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém” (ABREU, 1988, p. 46). Ana
(ou o espectro de) é de certa forma a única coisa que o narrador possui integralmente,
pois tudo o mais é pulverizado, é excessivo ou multiplicado em “inúmeros recados,
convites e propostas da secretária eletrônica” ; por isso “nunca ninguém jamais soube de
tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou” (Idem, ibidem):
disso somente ele é sabedor.
É compreensível, então, o tom nostálgico ou melancólico do texto. Para Moser
(1999, p. 49-50) tanto a nostalgia como a melancolia são provocadas “pela experiência
de uma perda, ou, pelo menos, pela consciência de uma distância que deslizou entre nós
e um objeto que nossa força desejante investiu”. Porém, se o “afeto nostálgico consiste
no desejo de recuperar o objeto perdido e gozar dele novamente, ou, pelo menos,
encurtar a distância que nos separa dele” – ou que separa o tempo dele e o Spätzeit em
relação a essa temporalidade - “o sujeito melancólico sabe que o objeto perdido ou
longínquo não é recuperável, que sempre será inatingível” Mesmo assim, esse objeto
perdido não lhe sai da consciência, não é possível, “em termos freudianos, fazer dele o
trabalho de luto para desinvesti-lo inteiramente”.
Nota-se que a diferença essencial está na crença ou não num reencontro futuro.
Entretanto, Natali (2006, p. 72-73) observa que o esquema mental que difere a
melancolia da nostalgia, em ambos os casos, está alicerçado no desencantamento, sendo
que “se não houver desencantamento ou ateísmo, então outro território conceitual
emerge”: neste caso, diz ele, “estaríamos diante de algo que não é nem nostalgia, nem
melancolia”. Como então definir o território em se encontra essa personagem?
Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo
depois, (...) tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e
eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo,
como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como
se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até
hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com
o último bilhete dela nas mãos. (...) por mais que o tempo passe e eu,
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Referências
ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC:
Argos, 2009.
_____. Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
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TESSITURA DE UM PASSADO
GRACILIANO RAMOS E A INVENÇÃO DE SUA INFÂNCIA
Introdução
1
Dentre outros, cf. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004;
Idem. História da sexualidade. 9 ed. São Paulo: Graal, 2007 [vol. 3 – O cuidado de si].
2
Dentre outros, cf. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1994; SENNETT, Richard. O declínio do homem público – as tiranias da intimidade [trad. Lygia Araujo
Watanabe]. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
verdade e a possibilidade de se localizar historicamente a fabricação dos enunciados que
uma sociedade culturalmente elabora e naturaliza como verdade.
Assim, toda suposta “verdade biográfica” não passa de uma interpretação de eventos
concernentes à vida do sujeito narrado, interpretação, esta, que é estabelecida por um
outro lugar, por um sujeito que dá sentido aos eventos que narra. Todo conhecimento,
portanto, como disse Nietzsche, é uma metáfora, uma transposição de um elemento de
um lugar a outro, uma nova distribuição cultural determinada pelo lugar de onde se fala,
como também alertou Michel de Certeau (CERTEAU, 2007, p. 65-122).
Neste sentido, todo biografado, portanto, é produto de seu biógrafo. É este quem
interpreta os eventos e as ações do sujeito, atribui-lhe pensamentos, sentimentos, dá-lhe
um sentido para a vida, produzindo-o muitas vezes como um sujeito coerente, cujas
ações sempre foram bem pensadas, elaboradas e efetuadas logicamente, esquecendo-se
dos momentos de angústia, das incoerências, das modificações de pensamento, dos
erros, etc (LEVI, 1996, p. 167-182). O sujeito narrado, assim, é um sujeito produto do
lugar que o fabricou, interpretado pelo olhar do biógrafo e ficcionalizado por este, só
existindo na narrativa e não no mundo empírico.
Mesmo nas chamadas autobiografias é possível perceber este movimento. Neste
caso, apenas aparentemente as figuras do biógrafo e do biografado se confundem, posto
que o biógrafo, ao pensar sobre sua própria vida e transformá-la em narrativa, também
fará uma interpretação dos eventos que a marcaram partindo do seu lugar presente para
ler eventos do passado. O sujeito que escreve é um sujeito diferente do da época que ele
narra: a distância entre esses dois lugares provoca as mais diversas mudanças nas
maneiras de dar sentido ao mundo. Deste modo, o sujeito que escreve produz um sujeito
narrado a partir do seu olhar presente, atribuindo certos comportamentos e pensamentos,
informadores do seu olhar presente, a um sujeito no passado que tinha outras maneiras
de relacionar-se com as coisas do mundo. Neste sentido é que hoje tais elaborações são
estudadas, não mais enquanto reveladoras da verdade sobre um sujeito ou sobre si
próprio, mas como produções, portanto, elaborações e escritas de si (GOMES, 2004).
Pensar, portanto, que tais textos são capazes de trazer à tona a verdade sobre um
sujeito, mesmo quando escritos pelo próprio sujeito, é cair naquilo que Bourdieu
chamou de ilusão biográfica (BOURDIEU, 1996, p.183-191). Os biografados são
sujeitos que só existem nas narrativas de seus biógrafos, pois são representações
elaboradas por estes que produzem uma imagem para aqueles. É assim que, tal qual
obras de arte, como a “Monalisa” de Da Vinci, a “Criação do Homem”, de
Michelangelo, a “Independência do Brasil”, de Pedro Américo, o “Abaporu” de Tarsila
do Amaral, posso me referir ao “São Luís” de Jacques LeGoff, ao “Maquiavel” de
Sebastian de Grazia, ao “Albert Camus” de Olivier Todd e ao “Thomas Mann” de
Marianne Krüll, que não são os mesmos sujeitos vistos por outros biógrafos: o “Freud”
de Peter Gay não é o mesmo Freud de Rene Major, assim como o “Dom Pedro II” de
José Murilo de Carvalho não é o mesmo imperador do Brasil que desfila pelas páginas
das obras de Lilia Moritz Schwarcz e de Jean Soublin, nem o “Gilberto Freyre” de
Maria Lucia Garcia Pallares-Burke é o mesmo de Guilhermo Giucci nem de Manuel
Correia de Andrade, e assim por diante.
No caso específico das escritas de si, quando o autor se debruça sobre suas próprias
lembranças para narrar o seu passado, está, tal qual tenho falado, produzindo um olhar
sobre si próprio que ele deseja ver circular socialmente. Aqui, é possível perceber como
o suposto passado do autor é construído interessadamente, muitas vezes para elaborar
uma linha de continuidade entre o seu passado e o seu presente, uma coerência no
processo de construção do pensamento que o leva a ser, no presente, o resultado de
todas as experiências que o formaram no passado e, desta maneira, este seu passado
seria o legitimador de suas ações no presente. O passado, portanto, como um produto do
olhar do presente, é construído interessadamente para justificar as ações e os
pensamentos do sujeito que conta e inventa as suas memórias.
É a partir de todas essas concepções que vislumbro a obra “Infância”, de Graciliano
Ramos, da qual passo a tratar agora.
Muitas das memórias sobre os pais que Graciliano narra no livro dizem respeito,
especificamente, aos comportamentos opressores e autoritários deles sobre a criança. O
alvo principal acaba sendo o pai, responsável tanto pelo primeiro contato que a criança
teve com a “justiça”, quando foi surrado por supostamente ter sumido com um cinturão
(RAMOS, 2008, p.33-37), bem como pelo abuso de poder que cometeu ao prender o
mendigo Venta-Romba, mais em nome da demonstração pública de poder que o seu
cargo de juiz substituto lhe conferia e do “enjôo que lhe causava a figura mofina”
(p.241), do que em nome de um interesse social em tal conduta. O narrador chega a
afirmar que tal comportamento paterno “deve ter contribuído também para a
desconfiança que a autoridade me inspira” (p.243).
Desconfiança, esta, que foi sendo formada ao longo de toda uma vivência opressora,
promovida tanto por elementos “naturais”, como a seca que assolava o sertão nordestino
(RAMOS, 2008, p.27-32), quanto pelas pessoas que o rodeavam, fossem seus pais,
familiares – o avô que tentava educar com tamanha rispidez que desincentivava o garoto
nas leituras (p.135-142) –, vizinhos – como Chico Brabo, que, apesar de ser “amável”
no espaço público, constantemente espancava o empregado de sua casa, o menino João
(p.151-156) –, ou mesmo colegas de escola – que, de tanto humilharem e rejeitarem a
presença de um dos alunos, este acabou se tornando um bandido aos quinze anos e foi
morto a punhaladas na casa de uma de suas mulheres (p.55-260). Opressão que pouco a
pouco foi tomando conta também da própria criança, naturalizando-se nela sem que se
percebesse, o que a levou, inclusive, a tentar ajudar o pai na surra que este executava no
moleque José, um garoto que trabalhava em sua casa e que foi alvo de sua ira certo dia
(p.90-91), ao olhar racista e preconceituoso lançado a D. Maria do Ó (p.179-185) e ao
novo professor do largo do Comércio (p. 193-198), bem como a unir-se àqueles colegas
de escola que rejeitavam a pobre criança infeliz (p.255-260).
A transformação, entretanto, da criança-animal, do ser acuado, miúdo e mudo,
começou, pela narrativa de Graciliano, quando teve contato com as letras. Mesmo que
inicialmente tal contato tenha sido um tanto perturbado, passou a significar a sua
passagem para a vida adulta. Convencido inicialmente pelo pai da importância de
alfabetizar-se, teve com este e com a escola que freqüentou péssimas experiências de
ensino, devido à rigidez e violência com que o pai tentava educá-lo (RAMOS, 2008, p.
109-114), bem como ao despreparo dos professores e às punições escolares que se
seguiam à dificuldade em aprender a cartilha, o que deixou marcas e traumas que o
narrador confessa ainda serem profundas e vivas (p.115-120). A experiência
educacional com o avô, por sua vez, também não se diferenciou muito das demais até
então, sendo experienciado pela criança de maneira traumática (p.135-142). A paixão
pelas letras, entretanto, começou a ser despertada quando o garoto foi privado, devido a
doença nos olhos, da visão, e, em meio à escuridão da cegueira, encontrou prazer em
ouvir as cantigas folclóricas cantadas pela mãe durante os trabalhos domésticos (p.143-
150).
Daí por diante, novas relações passaram a ser estabelecidas entre a criança e a leitura.
Um pai temporariamente compreensivo o acompanhou nesta trajetória, talvez
estabelecendo aí certos laços sentimentais tocantes à paternidade que até então o garoto
não havia experimentado (RAMOS, 2008, p.205-210), e um novo professor que o fez
começar a envaidecer-se perante os outros pelo conhecimento que adquiria (p.211-216),
bem como um desafio que despontou à sua frente que transformou a leitura do livro O
Menino da Mata e o seu Cão Piloto ainda mais instigante: a ciência de descobrir e
revelar o que lhe era proibido (p.217-222). Foi a possibilidade de descoberta por meio
da leitura que o levou a enveredar-se pela biblioteca de Jerônimo Barreto (p.229-236) e
a cada vez mais aprofundar-se nas letras, libertando-se dos grilhões de uma infância
oprimida e muda.
Considerações finais
Referências bibliográficas
Introdução
“Aonde a mão vai, o olho segue; aonde o olho vai, a mente vai; aonde a mente vai, está
o coração; onde está o coração, repousa a realidade de existir”. 1
É cada vez mais presente em nosso cotidiano notícias que anunciam avanços
tecnológicos que revolucionarão nossas relações sociais, inclusive as relações de
consumo. Por exemplo, o advento da televisão digital no Brasil e as promessas de uma
sensação de realidade sem precisar estar in loco (o que se chama de tele sense: "Nosso
objetivo é criar no espectador a sensação de estar lá, imerso na própria cena") e de uma
interatividade fenomenal – leia-se interferir na escolha dos ângulos em que se pode ver
a cena ou comprar algo que apareça em cena.
Nessa mesma diretriz, já se pensa em aplicações para o turismo por meio de home
theaters e DVDs de alta definição com chamadas do tipo “Por apenas R$2,00 ou R$3,00
você poderá conhecer as pirâmides do Egito”2.
Se de um lado isso pode parecer um grande avanço, de outro não podemos nos
esquecer de quais lugares esse discurso e seus “textos” (DVDs, games, por exemplo)
são construídos, para não cairmos numa reprodução acrítica de valores que não mais se
sustentam.
Gostaria de propor neste artigo uma reflexão sobre a natureza heterogênea de nossa
realidade (tomada aqui como uma construção social, seja constituída por pixels, por
campos magnéticos, ou por aglomerados químicos de carbono) e de nossa interação
1
Trecho de Natyashastra, tratado sobre dramaturgia e dança, em sânscrito, de autoria de Bharata, datado
entre os séculos 500 AC e 500 DC.
2
Revista Época, nº 471, 28/05/2007, p.61.
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Nesse sentido, andar na rota do navio pode ser comparado ao mainstream desses
grupões. Ao passo que a coragem de ser nômade, pode ser comparada à mesma atitude
do pássaro de alçar vôo sobre as águas do mar, porque ele “sabe” que haverá algum
mastro para repousar.
Em nosso atual contexto, esses “grupões” ou se deslumbram ou se chocam com a
realidade da virtualidade. A questão aqui não se restringe a uma visão sedutora ou
apocalíptica dessa realidade, mas à brecha que ela abre para re-vermos nossas premissas
fundamentais ou os regimes de verdade que a sustenta(va)m.
Não é de se admirar que com o advento da imagem digital, formada pelos pixels, o
status de verdade de imagem-documento começa a ser questionado. Ameaçando a
relação direta com referentes localizados no mundo “real” ou “material”, essa imagem é
construída na imaterialidade dos pixels. Mas não seria essa “ameaça” a possibilidade de
quebrarmos a ilusão de o referente dessa realidade “lá fora” garante sua veracidade? Em
outras palavras, não seria esta a oportunidade de lembrarmos que nossa postura de
espectador co-cria o que vemos e não garante nada além do que é compartilhado em
nossas práticas sociais. Por exemplo, mesmo sabendo que um mapa não é o território,
acreditamos piamente que o google maps ou um GPS serve para nossa orientação
espacial – este é um típico caso em que a sobreposição de conhecimento gera a sensação
de transparência.
Em face disso, começamos a perceber que configuramos nossa realidade conforme
os valores e as verdades que assumimos (e/ou aprendemos a assumir) como legítimos e
válidos dentro de nossas práticas culturais. Daí, por exemplo, nossos espaços e nossas
relações serem distintamente organizados em cada momento, em cada contexto – assim
como a catedral gótica torna visível uma concepção de Deus como um ser superior e
inatingível, bem como de seu poder incontestável, o computador pode ser derivado de
um meio de comunicação nascido dentro da cultura patriarcal. Mas, paradoxalmente, ele
indica mudanças epistemológicas que mais tendem à ordem da simultaneidade e das
relações de afinidade, as quais desestruturam a ordem linear do patriarcado. Daí essa
maleabilidade ser entendida como ameaça ou uma des-realização, para não dizer
falsidade, ou ainda uma artificialidade pós-humana (SANTAELLA, 2003) ou um
modelo de mundo simulado por algoritmos matemáticos.
Por isso, a questão não é mais sobre considerar falsas as manifestações que não mais
se encaixam nos moldes materialistas ou racionalistas, mas sim se queremos ou não
continuar a acreditar em tais modelos de realidade objetiva, independente de seu
observador.
uma forma de ajuda e avanço humano, daí a crença de que ele pode trazer tais
“benefícios” a práticas sociais que não o têm.
Outra visão disseminada pelo senso comum em nossas práticas sociais é a de que
essas máquinas, ao se tornarem cada vez mais inteligentes, possam ter vida, chegando a
“pensar ou tomar decisão” por nós – de alguma maneira, essa crença está presente na
programação da web 3.0, estruturada em redes semânticas que norteiam a buscam de
uma informação pelas relações de significados já estabelecidos para determinado
assunto. O mecanismo mais disseminado atualmente é o tag como temos nos sites dos
principais jornais diários de São Paulo e no site del.icio.us, um bookmark, por meio do
qual podemos organizar nossos sites favoritos estabelecendo relações de sentido entre
eles.
Contrário a esse senso comum de valorizar a tecnologia como um valor em si
mesma, acreditamos que essa tecnologia, por ser criada dentro de determinadas
condições socioculturais e de acordo com as regras estabelecidas pelas práticas de
letramento que a reproduz e utiliza, carrega traços de seu momento e contexto de
produção, ao mesmo tempo em que sofre a influência de usuários localizados em outras
práticas de letramento com outras regras e usos, distintos daqueles de seu momento de
produção.
Assim sendo, essa tecnologia não serve para tudo e para todos, ou seja, tem contexto
restrito de atuação e prazo de validade. E, à medida que ela se transforma, percebemos
como os regimes de verdade (VEYNE, 1984), sejam os que fundam as bases
epistemológicas ou ontológicas da sociedade que a re-cria, se transformam, ou
depurando ainda mais as premissas fundamentais ou ontológicas (como é o caso do uso
exacerbado de câmeras de vídeo em nossa cidade com o propósito de vigiar e punir) ou
sinalizando uma mudança ontológica.
Curiosamente, essa característica ou condição sociocultural não se restringe às
máquinas, ou à tecnologia digital. Além disso, nos esquecemos de que cada cultura tem
suas respectivas e distintas tecnologias, que não se restringem a aparelhos eletrônicos ou
digitais.
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Nesse sentido, refletir sobre os reflexos que constituem nossa realidade nos faz
perceber onde as premissas fundamentais que a sustenta são construídas e suspender sua
legitimidade intrínseca, sempre lembrando que têm espaços e prazos de validade. Isso
nos torna observadores mais críticos, menos ingênuos, mais propensos a mudanças que
nos libertem das jaulas da ilusão de uma realidade preexistente e unicamente concreta e
material.
Daí, nossa liberdade em escolher onde colocar nosso “coração” e nos
responsabilizar pela rede de significação que estabelecemos para justificar ou ancorar
nossas interpretações.
Bibliografia
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução por Raquel Ramalhete. 14. ed.
Petrópolis: Vozes, 1996.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. SP: Martins Fontes, 1995.
FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: MOTTA, Manoel Barros da (org.). Michel
Foucault: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Tradução por Inês A.
Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, pp. 411-422. (Coleção
Ditos & Escritos III)
GOMBRICH, Ernst. Verdade e Estereótipo. In: ________. Arte e Ilusão. São Paulo:
Martins Fontes, 1986. p. 54-79.
LEMKE, Jay L. Travels in hypermodality. In: Jewitt, Carey et al. (ed.) Visual
Communication. London: Sage Publications, vol. 1, number 3, Oct. 2002, pp. 299-325.
MANOVICH, Lev. The poetics of augmented space, In: JEWITT, C., TRIGGS, T.
(ed.), Visual Communication – special issue: Screens and the social landscape, volume
5, number 2, june 2006, pp.219-240.
MATURANA, Humberto e Verden-Zöller, Gerda. Amar e Brincar: Fundamentos
Esquecidos do Humano. Tradução por Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo:
Palas Athena, 2004.
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Anexo 1
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Anexo 2
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Introdução
A infância nos proporciona uma série de conhecimentos que levamos por toda uma
vida. É nessa fase que fazemos descobertas, que desvendamos sonhos e que criamos
mitos. Histórias que não sabemos até onde são verdadeiras e a que ponto fazem parte da
imaginação daqueles que nos contam. Assim, na escola pintamos desenhos conforme as
datas comemorativas do ano: no natal, o bom velhinho é pintado de vermelho, com
barba branca e rosto rosado; na páscoa é a vez do coelhinho branco, com cenoura na
boca e ovos coloridos ao seu redor; no dia do índio, a figura que nos revelam é a do
homem de cara-pintada, com folhinhas presas na cintura, cocar na cabeça, arco e flecha
na mão. Mas até que ponto essa figura indígena ainda existe, é real? Será essa a sua
verdadeira identidade?
Mato Grosso do Sul é uma região privilegiada, pois em seu território há aldeias quase
urbanas, praticamente dentro da cidade. Os sujeitos co-habitantes das aldeias e da
cidade constituem o índio sul-matogrossense, que, em alguns casos, estuda, trabalha nos
moldes do homem branco, mas que sustenta os resquícios de sua cultura. Mesmo assim,
a figura representativa do índio é a mesma: crianças em todas as escolas do estado ainda
desenham os índios que viviam isolados no país, antes da chegada dos portugueses, e
essas imagens são decorrentes dessa época, onde uma verdadeira guerra instaurou-se
pelo poder, pela terra, pela vida.
Segundo dados do RCENEI (2005) quando os portugueses chegaram ao Brasil à
população indígena era estimada de 6 a 10 milhões de índios. Atualmente esse
contingente não chega a 300.000. Com a destruição em massa dessa população uma
série de perdas ocorreu nesses séculos todos. As línguas indígenas que somavam cerca
de 1.300 línguas nativas e que hoje chega a aproximadamente a 180 línguas foi apenas
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uma das grandes perdas que essa população sofreu. Como a língua, a identidade desses
povos foi rechaçada, uma vez que estes se viram forçados a abdicar de muitos de seus
costumes em prol do homem branco. O que se conservou da época de Cabral aos
tempos atuais foi apenas a imagem dos índios que eles encontraram aqui; a
conseqüência é identidade indígena fragmentada.
Não são raros os exemplos da figura indígena em nossa literatura, especialmente da
mulher indígena. Em Iracema, por exemplo, essa mulher nos aparece como uma figura
idealizada, com traços de um bom selvagem. Em Bugras, poema da obra Fonte
Luminosa, da escritora sul-mato-grossense Raquel Naveira, essa beleza é equiparada a
elos naturais e críticos, mesclados com imagens coloridas que produzem um retrato
diante de nossos olhos. Com base nesses aspectos, o presente artigo propõe-se analisar a
imagem que emana do poema Bugras bem como a identidade da mulher indígena
conforme o poema suscita.
Do texto emanam imagens... Pensar num texto verbal que revela um caminho
imagético implica uma série de postulações. Ao falar desse aspecto específico do texto
não abordamos um fato recente. No século XX, Pound, um dos grandes expoentes na
defesa das aproximações da poesia com a imagem visual, já postulava este conceito,
denominado fanopéia. Seguindo essa linha, vários teóricos vêm defendendo a
possibilidade da fusão do imagético com o verbal.
Além da teoria de fanopéia, postulada por Pound, existe a abordagem semiótica do
texto, que contempla os níveis de significação de um determinado objeto literário.
Valdevino Oliveira (1999) em seu livro Poesia e Pintura: um diálogo em três
dimensões se baseia nesses estudos, traçando um paralelo entre seus teóricos,
postuladores da ciência, tais como Saussure, Greimas, Heljmeslev, Pierce, entre outros.
A linha semiótica de Pierce, segundo Oliveira, é a única ajuda a perceber a conversão da
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poesia para a esfera visual e convive com formas de um e outro código. Sendo assim,
essa é a linha abordada por Oliveira.
Por vezes, essa imagem que o texto revela perpassa por um outro conceito. De que
forma ela foi construída? O que revela essa imagem? Quem é aquele/aquilo que se
mostra ao leitor diante de um texto verbal? Qual a sua identidade?
Rita Limberti (2009), em Discurso indígena: aculturação e polifonia, traz as
considerações semânticas sobre os termos identidade, identificação, identificar e
identificável, mostrando dessa formas os contrastes semânticos dos termos.
Segundo Limberti, o contato com a cultura branca impõe uma quebra de valores por
parte de uma determinada comunidade indígena. Antes, todos seguiam rigorosamente
suas crenças; agora os mesmo, questionam a sua tribo.
Uma vez que há uma ruptura na identidade do indígena, ele foca o outro, para tentar
encontrar-se. Entretanto, essa escolha nem sempre é acertada. O outro reconstitui uma
nova identidade. Mas nem sempre, esse novo eu é visto de forma imagem/ semelhança
por aquele que corrompeu com a sua cultura, com suas crenças, seus hábitos. E então a
imagem deste indígena passa a ser estereotipada, seja na vida cotidiana; seja na
linguagem literária.
Ao compor o poema Bugras, Raquel Naveira traz em seus versos uma multiplicidade
de significantes que proporcionam ao leitor o questionamento e a reflexão. Partindo do
pressuposto de construção de identidade e do imagético do texto poético, analisaremos o
poema Bugras de Fonte Luminosa, colhendo as imagens de mulheres indígenas,
presentes no texto.
BUGRAS
As índias bugras
Caminham pela 14
Com aquele ar selvagem
De potrancas,
Os cabelos lisos e longos como crinas,
O remexer musculoso das ancas.
Carregam na cabeça
Latas de avencas
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O poema acima pertence ao livro Fonte Luminosa de Raquel Naveira, uma produtora
assídua da arte sul-mato-grossense. Naveira tem um total de 24 livros editados,
inúmeros poemas publicados, participações em diversas escalas do setor cultural, entre
outros.
Bugras no chama atenção desde o primeiro momento. Nessa primeira leitura, a
interpretação superficial do poema, nos leva a certa indignação. Questionaríamos se o
poema não seria uma ofensa às mulheres indígenas, pois a índia é metamorfoseada
animal/mulher. Entretanto, essa primeira interpretação contemplativa muda à medida
que nos deixamos envolver pelos aspectos imagéticos do poema. Nessa perspectiva,
lemos o poema, de forma que imagens da natureza saltam aos nossos olhos. A poesia de
Raquel é repleta de metáforas, que ora nos parece um tanto agressivas com a imagem da
mulher indígena (O remexer musculoso das ancas), ora nos emociona com tamanha
poesia, como o exemplo dos dois últimos versos: Como se a primavera / Fizesse ninho
dentro delas. Isso torna o poema extremamente imagético. Nesses versos a imagem
salta aos nossos olhos, seja no colorido das palavras, ou seja, em seu cunho descritivo.
Os versos que descrevem o perfume das bugras retratam bem esse colorido, essas
imagens recorrentes da natureza: Um perfume de frutas maduras, / De seixos rolados, /
De plumagens vermelhas.
Naveira inicia seus versos descrevendo o caminhar das índias pelas ruas de Campo
Grande, MS. Bugras, termo que se refere à índia, tem todo um significado em nossa
mente. A etimologia do termo, que vem do francês, lembra os indivíduos que estão à
margem da sociedade. As mulheres de pele vermelha, que já começam a colorir o
poema desde o título são chamadas de bugras por grande parte da sociedade, o que é
considerado, por vezes, uma forma de ofensa. As bugras seriam as mulheres feias da
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semelhanças. Esses versos, portanto, não podem ser lidos literalmente. Os termos foram
empregados para que a leitura significasse além do que está ao alcance de nossos olhos,
provocasse certo estranhamento. Isso se acentua a medida que percorremos o poema.
Naveira descreve o físico das bugras: Os cabelos lisos e longos como crinas, O remexer
musculoso das ancas. Os cabelos longos, escuros e lisos e o remexer do quadril são
comparados ao de uma potranca. Uma comparação direta da mulher com o animal. A
índia de Naveira, mesmo urbanizada, não deixa de carregar consigo, o estereotipo de
mulher não-civilizada. Nesses versos a beleza das índias é equiparada a uma beleza
natural, porém rústica. A imagem que se forma em nossa mente se distorce nesse
momento da poesia, confundindo-nos entre a mulher e o animal.
As mulheres indígenas no poema de Raquel Naveira são descritas não só por suas
belezas naturais. O suor de seu trabalho, a força que as leva a enfrentar os problemas do
cotidiano dão aos versos seguintes, o início do grande clímax de todos os versos. Agora,
as bugras carregam na cabeça latas de avencas e cajus de castanhas duras. Avencas são
plantas ornamentais que junto com os cajus enfeitam a cabeça das indígenas. Se de um
lado, as plantas e as frutas somam a imagem da beleza natural que desde o primeiro
verso se instaura no poema, por outro poderíamos pensar, metaforicamente, no
equilíbrio que essas mulheres mantêm entre ser mulher e representar uma etnia, que é
tão discriminada e tão desvalorizada. Os índios são discriminados e menosprezados
desde o inicio da colonização. Sua cultura, suas crenças vem sofrendo desde então,
profundas rupturas, por questões políticas, ideológicas, etc.
Os aspectos da natureza, que compõe todo o poema, evidenciam-se neste trecho. O ar
selvagem, o remexer sinuoso do quadril cedem lugar ao perfume de frutas maduras,
uma fragrância própria da pele das bugras, simples e agradável. Doce, como frutas que
estão prontas para serem colhidas. Perfume este que provem de seixos rolados, de
plumagens vermelhas, que combina com a vermelhidão da pele indígena. Este trecho
explode em cores, todos decorrentes da beleza das coisas simples. Toda uma estação se
desenha aos nossos olhos, seja pelas plantas, pelo fruto maduro, pelas multicores
presentes. A imagem da mulher indígena ora se mostra como ela sempre foi
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estigmatizada pelo tempo, pelas ações do homem branco, ora se faz pretender mulher
contemporânea, que é mulher de garra, independente de sua raça.
A primavera que se revela nos versos agora se faz presente dentro do ventre. “Como
se primavera/ Fizesse ninho dentro dela”. O ninho, semente da vida, que se formou por
meio de uma estação capaz de fazer renascer flores, capaz de amadurecer frutas, brota
também no útero das índias. Essa sem dúvida é a grande metáfora de todo o poema. O
ninho promove a continuidade, a reprodução do ser. O ninho é a similitude entre todas
as raças, independente de cor ou sexo. A primavera que ocorre dentro da mulher
amadurece um fruto para a vida.
O poema Bugras permite uma profunda reflexão do ser. A índia, com toda sua
particularidade, é pintada em cada verso, que ora indigna, ora encanta tamanho cunho
poético de toda a poesia. A primeira imagem da indígena levantada aqui não é diferente
da encontrada nos livros didáticos, ou diferente da imagem que a maioria dos docentes
leva aos seus alunos pequenos: o índio com penacho na cabeça, o índio que só fala
guarani, o índio rústico, que às vezes mais parece animal do que gente. A nossa região
tem o privilégio de conviver de perto, em co-irmandade com aldeias que não estão tão
longe da cidade. Convivemos com indígenas em nosso ambiente de trabalho, nas
escolas, em nosso lazer, e mesmo assim, a imagem que permanece em nossa mente é a
estereotipada por toda uma sociedade que fecha os olhos para sua realidade.
Conclusão
O presente artigo teve por objetivo refletir sobre a imagem e a identidade da mulher
indígena, num contexto contemporâneo na poesia de Raquel Naveira. Percebemos que a
poesia caracteriza a indígena que percorre nossa imaginação desde nossa infância. Por
vezes comparada a elementos da natureza, as bugras da 14, também podem ser vistas
com uma mulher qualquer, que luta, trabalha, que se mantêm bela, que gera filhos.
Gerar filhos, algo tão natural, talvez seja a maior beleza de toda a poesia e de toda a
vida dessas mulheres, indígenas ou não. A primavera que acontece em seus ninhos, não
poderia ser descrita de outra forma. O poema nos oferece múltiplas interpretações. Cabe
ao leitor a forma de conceber a leitura. Ou olhamos para o poema equiparando a mulher
indígena a um animal, a selvageria ou a enxergamos sim, por sua beleza de aspectos
naturais, mas principalmente como uma mulher que luta diariamente para vencer as
barreiras do preconceito que as estigmatiza.
Referências
OLIVEIRA, Valdevino Soares de. Poesia e pintura: um diálogo em três dimensões. São
Paulo: Editora UNESP, 1999.
POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 9ª ed.
São Paulo: Cultrix, 1990.
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Introdução
Bem como grande parte das narrativas de João Guimarães Rosa, A estória de Lélio e
Lina (2001), novela pertencente a um dos volumes de Corpo de Baile, situa-se
espacialmente no sertão, região que é registrada, pelo autor, como um mundo em
transformação. Tal transformação nos instiga a pesquisar as personagens femininas que,
se não desencadeiam, fazem parte dessas transformações de maneira bastante ativa.
Neste trabalho esboçaremos de que forma mulheres como Sinhá Linda e Rosalina,
personagens de A estória de Lélio e Lina, contribuem para o deslocamento do
paradigma da tradição paternalista no Sertão dos Gerais.
A ambientação ficcional da novela nos remete a um momento de transição entre a
República Velha e a era Vargas, visto que há ali a presença de alguns dos principais
ícones desse período da história do Brasil, marcado pela atuação dos coronéis. O
fenômeno social reconhecido como coronelismo estabelecia a aplicação de domínio
econômico e social em regiões do interior do Brasil; típico da República velha, esse
fenômeno instituiu também o que se denominou “homem cordial. Para Sérgio Buarque
de Holanda (2002), essa cordialidade resulta de um poder simbólico, instituído pelo
patriarca e se baseia em relações de afetividade e de parentesco.
Com efeito, nota-se que no espaço em que está situada a narrativa vigora o sistema
patriarcal ou paternalista, que submetia camadas inferiormente localizadas, na
hierarquia estabelecida, à “proteção” dos grandes proprietários de terra – o que, por sua
vez, acarretava a submissão dessas camadas ao seu poder. Isto fica evidente ao se
observar as relações amigáveis instituídas no âmbito da Fazenda do Pinhém, onde o
coronel faz de si um núcleo detentor de poder, através das relações afetivas.
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1
“O estriado é o que entrecruza fixos e variáveis, ordena e faz sucederem-se formas distintas, organiza as
linhas melódicas horizontais e os planos harmônicos verticais” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 184).
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todas suas forças” (ROSA, 2001, p. 307), fustiga uma ordem ao encarar a todos e
exclamar o seu amor.
Todas essas manifestações de alteridade ancoram-se naquilo que Pierre Bourdieu
chama de poder simbólico, segundo o qual
[...] é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde
ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder
simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser
exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe
estão sujeitos ou mesmo que o exercem. (BOURDIEU, 2005, p. 07-
08).
2
O Devir caracteriza-se como algo que está em processo, algo passível de provocar mudanças, assim:
“As minorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O
que define a maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme. Ao passo que uma minoria não tem
modelo, é um devir, um processo” (DELEUZE, 214, 1992).
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espécie de “paixão platônica” pela moça, uma vez que não era correspondido e nem
mesmo notado por Sinhá Linda. A moça, legítima representante de uma classe
hegemônica, reafirma os códigos de uma tradição por meio do seu modo de se vestir e
agir, inclusive ao não cogitar a possibilidade de se envolver com alguém de classe social
inferior à sua.
O amor que Lélio tem por Sinhá Linda nos remete ao amor cortês que, em sua
essência, é uma experiência que impulsiona o amante a tentar fazer de si próprio
merecedor de sua senhora, seja colocando-se de forma subordinada a ela:
[...] à tarde por um acaso ele pôde ver seus pezinhos, que ela lavava, à
beira de água corrente. Demorou agudo os olhos, no susto de um
roubado momento, e era como se os tivesse beijado: nunca antes
soubera que pudesse haver uns pezinhos assim, bonitos, alvos,
rosados, aquela visão jamais esqueceria. (ROSA, 2001, p. 188-189),
seja demonstrando-se corajoso e realizando quaisquer feitos que ela deseje: “Se ela
olhasse mandasse, ele tinha asas, gostava de ir longe, até a distância do mundo, por ela
estrepolir fazer o que fosse, guerrear, não voltar [...].” (ROSA, 2001, p. 185-186).
Esse amor, que contradiz desejo erótico e realização espiritual, distancia-se do amor
platônico, visto que mesmo sendo permeado pela submissão e idealização do amante ao
ser amado, possui, subliminarmente, o mote do desejo, da atração sexual que, conforme
Mary Del Priore, explicita-se pela presença da insígnia dos pés, já que
Além da marcante presença dos pés, faz notar-se, argutamente elencada por
Guimarães Rosa, a metáfora do Buriti, que é amplamente representativa na obra do
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autor mineiro, uma vez que em Noites do Sertão (2001), especificamente na novela
Buriti, uma imensa palmeira alegoriza o falo, insurgindo como metáfora da sexualidade
ali latente. Entretanto, é em outra acepção simbólica do buriti que se nota um sutil
movimento entreposto na novela em apreço:
que Sinhá Linda é, a todo instante, retomada por Lélio, através do mecanismo da
memória) como um primeiro movimento de desvencilhamento das amarras da tradição
patriarcal.
É essa razão o mote que nos leva a projetar Rosalina como aquela que, através de sua
sabedoria, consegue impor e ser autônoma em um contexto em que ainda vigorava,
embora em decadência, um sistema tradicionalista desencadeador da subordinação
feminina. Cabe, então, nos remetermos a Theodor Adorno e a Max Horkheimer, para
definirmos razão, já que para os autores a razão constitui-se duplamente; ao mesmo
tempo em que é esclarecimento, a razão pode tornar-se também instrumento de
dominação. Por esse motivo, Adorno e Horkheimer apontam que
Assim, Lina, enquanto detentora da razão, posiciona o seu lugar de fala no sertão
ficcionalizado por Guimarães Rosa na medida em que não se deixa levar pela vontade
do filho, representante de uma classe hegemônica, fazendo com que o discurso, o da
mãe, representante da minoria, não se deixasse apagar:
Conclusão
Referências
PRIORE, Mary Del. “Pés e mãos: objetos de desejo”. In: História de amor no Brasil. 2.
ed. São Paulo: Contexto, 2006.p. 158-161.
RONCARI, Luiz. “Irmão Lélio, Irmã Lina: incesto e milagre na "Ilha" do Pinhém”. In:
O Brasil de Rosa: Mito e história no universo Rosiano: O amor e o poder. São Paulo:
UNESP, 2004. p. 151-198.
ROSA, João Guimarães. “A estória de Lélio e Lina”. In: No Urubuquaquá, no Pinhém:
(corpo de baile). 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 175-311.
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Este trabalho reflete, portanto, sobre o ensino de língua e de literatura, com foco em
suas possíveis interfaces em outros suportes e outras mídias. As interações entre
literatura e cinema ocupam um lugar especial, pela quantidade de obras hoje existentes
em ambos os suportes, livro e filme (DVD). Componentes narrativos como espaço,
personagem, tempo ou focalização podem ser analisados e interpretados não como
substituíveis entre si, mas como recursos que estão presentes em obras estéticas ou
artísticas passíveis de fruição e portadoras de múltiplos sentidos.
Em primeiro lugar, a discussão ou o estudo de textos literários, cinematográficos e
teledramatúrgicos têm em comum a narratividade e a ficcionalidade. Outras
peculiaridades do texto escrito, como as descrições ou digressões, podem oferecer
maiores desafios quando se pensa em sua transposição para códigos audiovisuais, o que
não diminui o potencial de interesse de tais interações midiáticas. No caso específico do
cinema e da literatura de ficção, cada produto deve ser compreendido em sua condição
de artefato artístico ou cultural, devendo ser interpretado à luz de outros textos da
mesma ou de outra natureza. A interatividade dialógica é o caminho para que os estudos
de língua e literatura superem a falsa impressão de obsolescência e se reafirmem em
patamar compatível com sua verdadeira importância.
Quanto à literatura na sala de aula, nem sempre seus textos são acolhidos com gosto
ou atenção e, mais grave, raramente são explorados pelo viés artístico, já que muitos
professores limitam-se a explorar aspectos temáticos ou a retomar esquemas
reproduzidos ad infinitum, com vistas a exames seletivos para a universidade. Em
paralelo à superficialidade da formação de grande parte dos professores de Ensino
Médio em todo o território nacional, agrava-se o problema com a precariedade das
situações de leitura a que são expostos, em sua maioria, os alunos. Mesmo em
ambientes socioculturais mais adequados, pouco se estimula a criação de um hábito que
exige tempo e reflexão, como é o caso da leitura em geral e da literária em particular.
Difunde-se velozmente, por razões óbvias, a leitura apressada nas telas dos
computadores, inundadas de estímulos, vocacionadas para a movimentação aleatória e
refratárias à continuidade. Para complicar, a literatura é apresentada habitualmente, no
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Ensino Médio, por meio de um enfoque histórico, sem o menor vínculo com as
manifestações contemporâneas e, sobretudo, sem a necessária ênfase em sua natureza
artística e criativa. Por outro lado, a narrativa ficcional está presente em outros suportes,
dentre os quais o cinema, onde a generalizada falta de percepção quanto aos
componentes estéticos do texto narrativo também ocorre, mesmo em filmes
intencionalmente distantes do mero lazer. Dessa forma, considerando o parentesco da
narrativa ficcional cinematográfica com a literária, sendo ambas produtos culturais
facilmente intercambiáveis entre si e também adaptáveis a outras mídias, este trabalho
apresenta um brevíssimo estudo de uma obra literária e de sua conversão em filme, a
partir de O carteiro e o poeta, do escritor chileno Antonio Skármeta. Trata-se da
ficcionalização de episódios da vida de Pablo Neruda, em um período de ostracismo
político em seu país, no livro, e de exílio em uma região litorânea da Itália, no filme.
Surge uma inesperada camaradagem entre o grande poeta Neruda e Mário, o jovem
carteiro, que é um dos poucos indivíduos alfabetizados no vilarejo peninsular. O jovem
passa a perceber o mundo também em sua dimensão artística e, a partir de fatos
corriqueiros, passa a reconhecer e, posteriormente, a criar poesia.
A presença da linguagem poética na vida cotidiana é o aspecto que sobressai, em um
livro e em um filme de indiscutível qualidade artística, o que torna O carteiro e o poeta
um excelente material para a fruição estética do texto e para a compreensão da
dimensão artística em obras literárias e cinematográficas.
1. Narrativa ficcional
Nem todas as narrativas são ficcionais: basta ser espectador de tevê ou leitor de
jornal para estabelecer a distinção entre ficcional e não-ficcional. Apresentadores de
telejornais, locutores esportivos e outros comunicadores narram diariamente, e
jornalistas escrevem sobre episódios corriqueiros ou excepcionais, em situações de rua,
competições esportivas, problemas de trânsito ou reuniões ministeriais, com maior ou
menor compromisso com a exatidão dos fatos. Embora haja consenso, hoje, quanto à
impossibilidade do discurso neutro, ainda assim tais narrativas propõem-se a informar,
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2. Linguagem cinematográfica
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Araújo (1995, p. 30) refere-se ao cinema como “arte de iludir o olhar”, pois nele não
há movimento, mas apenas imagens fixas que, quando projetadas, proporcionam a
ilusão do movimento. À medida que essa ilusão, graças a diversos mecanismos, foi-se
aperfeiçoando, surgiu a linguagem cinematográfica. Boa parte dessa criação coletiva
começou por acaso, mas algumas inovações resultaram da genialidade de alguns
profissionais do cinema, que aprenderam, aos poucos, a movimentar a câmera, não só
por aproximação ou distanciamento em relação aos atores, como também pelo recorte
do espaço, pela variação do ritmo, pela construção de ações simultâneas, pela seleção de
posições ou ângulos.
Bernardet (2000, p. 34-35) reconhece no processo de elaboração dois procedimentos
sucessivos: “filmar é uma atividade de análise. Depois, na composição do filme, as
imagens filmadas são colocadas umas após as outras. Essa reunião de imagens, a
montagem, é então uma atividade de síntese”. Realizando-se por meio de operações
como seleção e montagem, a linguagem cinematográfica conta histórias, mantendo a
impressão de realidade.
Do ponto de vista da especificidade da linguagem cinematográfica, Stam (2004, p.
27) afirma que a narrativa deve ser considerada a partir de diversas abordagens: a
tecnológica, referente aos dispositivos necessários a sua produção; a linguística, que
inclui os materiais de expressão, ou seja, a camada significante do cinema; a histórica,
que leva em conta suas origens; a institucional, que concerne aos processos de
produção, e mais uma que se refere aos processos de recepção.
Como se observou inicialmente, estabeleceu-se um vínculo indissolúvel entre
literatura e cinema por meio da narratividade, ou seja, pela capacidade de contar
histórias, independentemente de compromisso com a verdade, exatidão, fundamentação
rigorosa.
Outro aspecto comum a ambas as artes reside no fato de se terem construído, como
linguagens, e ao mesmo tempo terem sido alvo da construção do referencial teórico-
crítico a seu respeito. Embora haja enorme diferença temporal, já que o cinema tem
pouco mais de um século de existência, a narratividade foi um dos fatores que
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Para analisar um filme, deve-se levar em conta que, ao contrário do que ocorre com o
texto literário, que se expressa e que pode ser comentado em um único suporte - a
linguagem verbal -, o texto fílmico não comporta o comentário crítico em forma de
filme, ou seja, só pode ser comentado em outro suporte, em que seja possível efetuar os
procedimentos analíticos e a síntese interpretativa.
A própria natureza do filme pode direcionar as leituras. Assim, a análise de um filme
com ênfase nos componentes artísticos terá mais êxito se focalizar os recursos
expressivos, a materialidade do filme e, de maneira análoga, a análise de um filme de
intensas marcas ideológicas levará o teórico a atentar para o conteúdo. Taddei (1981, p.
77) faz a distinção entre leitura temática e leitura artística: “com a primeira
conseguimos colher a idéia central quando ela é de caráter ideológico ; com a segunda,
quando a idéia central é de caráter poético”. Neste último caso, insere-se o filme O
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carteiro e o poeta (Il postino, 1995), inspirado no livro que o romancista chileno
Antonio Skármeta havia lançado como Ardiente paciencia em 1985.
3. O carteiro e o poeta
O filme mostra um diálogo mais áspero, pois a tia foi composta como uma
personagem rústica, camponesa bastante perspicaz e resoluta, proprietária de uma
estalagem, porém analfabeta. Conversam tia e sobrinha:
R – Que foi que disse o seu poeta?
B – Metáforas.
R – Metáforas? Nunca ouvi você falar assim antes. Que metáforas ele
fez para você?
B – Fez? Ele disse!
R – Que disse ele?
B – Que meu sorriso se espalha como uma borboleta...
4. A metáfora
Referências
Referências fílmicas
O carteiro e o poeta (Il postino). França-Itália, Produção: Miramax Films, Cecchi Gori
Group Tiger Cinematografica,1995. 108 minutos. Direção: Michael Radford. Roteiro:
Pablo Neruda (poemas), Anna Pavignano, Michael Radford, Furio Scarpelli, Giacomo
Scarpelli, Massimo Troisi.
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Este trabalho visa a enfocar um dos subtemas da obra de Antônio da Fonseca Soares, a
beleza feminina, uma vez que, a mulher é a temática central da obra deste escritor
português vivido no final do século XVII. Entre os diversos subtemas tratados nos 104
romances analisados e catalogados no manuscrito 2998 da Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, a beleza é predominantemente trabalhada por Fonseca em
modos descritivo e narrativo. As mulheres retratadas por ele se dividem em dois grupos:
comuns (aquelas que possuem atividades cotidianas como costureira, vendedora, florista
etc.) e mitológicas (aquelas consideradas deusas, como Vênus, Afrodite etc.).
Por se tratar de aspecto explicitamente visual, o ut pictura poesis, as descrições, as
comparações e a divinização (mitológica) da mulher estão contidos nas obras do poeta
português, como procedimentos de prescrição no âmbito da poesia seiscentista. Para este
trabalho, abordaremos o poema 36, que trata da descrição da beleza feminina em
comparação com lugares de Lisboa. O poema é narrativo e, através das referidas
descrições, cria-se uma imagem relacionando mulher / Lisboa.
Utilizaremos como suporte de prescrição do modelo as obras de Horácio e
Aristóteles e alguns especialistas na poesia seiscentista, nossos contemporâneos, tais
como: Hansen e Muhana, que tratam da produção da agudeza, ou seja, do modo como
se devia escrever e lançar mão dos artifícios necessários para a obtenção dos resultados
almejados. Essas prescrições, atendendo à necessidade da argúcia e do engenho, visam à
recepção da obra pelo público, conhecedor das técnicas da retórica e da poética
consagradas como modelos praticados na produção do engenho 1.
1
Tringali (1993) trata das questões do engenho (dom natural) e da arte (estudo e prática da arte) a partir
da perspectiva Horaciana. Para ele, somente o poeta tem vocação. Na época do poeta latino, a crítica
valorizava a arte como produto do engenho. Assim, a arte decorre da perfeição e deve agradar e instruir
pela beleza e pela utilidade.
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Para este autor, a poética do engenho considera o talento natural como fator único da
produção artística, enquanto a poética da arte defende a idéia de que a produção artística
depende exclusivamente do estudo e do exercício. Em Horácio, a segunda assertiva é a
que se privilegia. A realização de uma obra deve ser bela e perfeita em todos os níveis,
o belo se caracteriza pela unidade na multiplicidade, pela harmonia do todo e pelas
adequações entre as partes.
A escolha é tida como a ação principal de fazer arte, já que o poeta precisa escolher o
material, a colocação, a linguagem; é preciso ter bom gosto e ter como objetivo a
perpetuação da obra. Horácio considera que o poeta deve a obediência às regras, já que
não existe arte em criação livre. O artista imita direta ou indiretamente a vida humana,
ou seja, o comportamento realista do agir dos homens. Tudo é possível no plano
alegórico.
A falta de coerência, a brevidade demasiada, o excesso de polidez que apaga a
inspiração e o surrealismo exagerado são vistos como defeitos nas obras. Também
ressalta os problemas de elocução. Para o autor, tanto a poética do engenho quanto a
poética da arte, respectivamente o talento/inspiração e teoria/prática, privilegiam a arte
tornando-a útil e bela.
A poética do engenho trata de escrever poesia como uma vocação ou talento natural.
Os escritores desta linha eram considerados gênios e por isso deviam se submeter às
regras e também a outros modelos. Já a poética da arte pressupunha muito estudo, ou
seja, um longo aprendizado baseado em uma sólida formação e uma incansável prática.
A busca constante pela perfeição e a prescrição utilizados como regras para uma obra
de arte idealizada, as faculdades artísticas, como a razão, o sentimento e a fantasia,
devem fornecer às artes emoções tocantes e autênticas. A clareza deve sobrepor à
obscuridade, o conteúdo se concretiza pela expressão, o estilo deve se harmonizar com
o contexto, a crítica, o sublime e o público são modos de demonstrar a agudeza e
engenho para o leitor, e, por fim, a função da arte, para Horácio, concilia agradar e
ensinar, sendo o prazer mais importante.
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teórica destaca a analogia que Almeida traça em relação à pintura e poesia, que “pintura
é poesia muda, poesia é pintura que fala” (MUHANA, 2002, p.12).
Na concepção de Alberti sobre pintura, encontram-se conceitos retórico-poéticos
latinos fundamentais, que possibilitam estipular a semelhança entre a poesia e a pintura,
pois exige um conhecimento da técnica por parte de quem a pratica. A retórica, a poesia
e pintura são artes que têm uma finalidade e ofício, desempenhadas por alguém que
conhece os preceitos. Segundo Alberti a retórica predomina sobre a poética “A
insistência nas virtudes elocutivas das chamadas figuras de clareza, metáfora e
evidência, “que pintam como um quadro”, nas preceptivas de Aristóteles, Cícero e
Quintiliano” (MUHANA, 2002 p.13), propicia a fraternidade entre pintura e letras.
A preceptiva acerca da arte da poesia ou da arte da pintura até o século XVIII é
aristotélica. Sendo assim, estabelece paralelos entre a duas artes. A poesia difere da
pintura pelo ritmo, linguagem e harmonia da primeira, e pela cores e figuras da segunda.
Ambas compreendem ações humanas e divinas, sendo que a primeira predomina em
relação à segunda, pela conveniência.
Para Muhana, Alberti divide a poesia em circunscrição (desenho), composição
(conjunto de superfícies) e recepção de luzes (cores); é na composição dos corpos que
reside toda fama e engenho do pintor. A invenção e a elocução são partes essenciais da
poesia, já na pintura são o rascunho e a cor. O fim é a parte mais importante, porque o
fim da poesia consiste na imitação, no verossímil e não na verdade. Sua perfeição está
em imitar. A fórmula horaciana ut pictura poesis tem a função de autorizar o poema e a
pintura como detentores de clareza, imagens, variedade de locução, cores vivas,
menosprezando o descuido.
Para a expressão da verdadeira poesia e pintura, é necessária a figuração da
linguagem e o colorido das carnes, respectivamente, para que possam afetar os leitores e
espectadores. A poesia é metáfora da pintura e vice versa. A boa poesia procede do
homem engenhoso ou furioso. Almeida (apud MUHANA, 2002, p. 41) privilegia o
engenho, mas não despreza a importância do furor; a poesia aparece como retrato do
universo. A excelência da poesia está em imitar a pintura. Enfim, quando Almeida se
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refere ao “pintor poeta”, quer dizer que a poesia e pintura se equiparam, sendo uma
metáfora da outra.
No século XVII, poesia e poeta são aqueles que pintam as ações humanas como “os
costumes”, “as palavras” e “os sucessos”, sendo estes respectivamente, os costumes ou
caracteres, que na Poética estão contrapostos em situação inferior às ações; as palavras
ou sentenças elemento que na Poética é nitidamente distinguido das ações e relacionado
com os caracteres, como aquilo que manifesta o pensamento; e por fim o sucesso ou as
ações propriamente ditas. Hoje se pode afirmar que as ações se referem a qualquer tipo.
A imitação tem a capacidade de causar prazer e conhecimento, sendo expressão por
intermédio da poesia um campo próprio de prazeres e saberes.
Na doutrina do engenho seiscentista como invenção retórica dialética do desenho fica
evidente que o discurso interior é um contexto ordenado de metáforas. Assim como a
pintura usa dos artifícios, a poesia deve calcular como proporção seus efeitos, tendo
como finalidade o belo eficaz.
Nas praticas em que a metáfora é central, A Arte Poética de Horácio é apropriada
como critério retórico ordenador do decoro na emulação de obras, paralelo entre a
pintura/poesia. O ut pictura poesis pondera o juízo no decoro interno e externo, já que é
uma doutrina genérica da verossimilhança, segundo a invenção, disposição e elocução.
O ut pictura poesis implica na distância exata, encontrada nas letras do século XVII,
empenhadas em produzir o fantástico. O quiasma ocorre nas letras ditas cultistas e
conceptistas, estilo que deve ser entendido como enigma ou alegoria fechada.
Enfim, no século XVII o ut pictura poesis em alguns gêneros tende a ser obscuro e
hermético, ou seja, é necessária uma análise profunda e vagarosa, pois pode haver
mudança anacrônica na leitura para os pós-modernos. Por fim, o modo de produzir
agudeza ou ornato dialético demonstra que o poeta deve dominar o engenho e todos os
seus artifícios para que a obra de arte possa ser contemplada e entendida pelo seu
público, previamente conhecedor do catálogo de realizações agudas e engenhosas.
Com base nos teóricos utilizados, principalmente em Muhana, notamos a descrição
do recurso ut pictura poesis e a importância que este tem nas poesias, em particular as
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do século XVII. Em nosso objeto de estudo averiguamos que Fonseca é um dos autores
deste período e que faz o uso deste recurso em romances. Para esta comunicação
selecionamos o romance 36, o qual o poeta faz a descrição da mulher e simultaneamente
da cidade, em cada lugar citado ele ressalta algo dela e inclui o lugar. Vejamos a
análise do romance 36:
Romançe 36
Estes Domingos de Mayo
foi Leanor a Bem fica
e que mal ficou sem ella
a Cidade aquelle dia
Foy passando por fazer
couto liue a cotouia
coutada naõ que quis dar
caça á toda couza viva.
Pos os pes em campo Lide,
e tanto campou de linda
que Lidauaõ as moquestas
em uer a Roza com uida
Chegou logo a Sette riso
A tempo que amanheçia
e de flores Requintadas
aparecião as quintas
Meteo na fonte do vale
Leonor a mão cristalina,
e dever Cristal tao puro
ficou a fonte corrida
Perguntarão lhe os galanes
como uos chamais menina,
bem podeis romper o nome
pois em uos a aurora he vinda
As contas Leua na maõ
Õ quanto melhor lhe siria
da llas boas dos que morrem
nas maos dessa tirania
Impropiamente fazeis
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as deuotas romarias
pois uindes buscar as graças
sendo as uossas infenitas.
Chegou Leanor á cidade
oh numca della sahira,
pois com o lume deseos olhos
abrazado o mundo fica Retira
Que Leanor aos amantes
faz guera viua
Todos os guardem,
porque mata no campo, e na cidade
O romance trata de uma mulher comum, Leonor, apresentada como uma bela mulher,
a qual, no decorrer do poema, começa a ser descrita em comparação à cidade de Lisboa.
O poema é narrativo, a partir das atitudes de Leonor em relação aos lugares por onde
passa. A princípio Leonor sai da cidade indo para a região de Benfica, nestes versos o
poeta utiliza o nome do lugar “Bem fica” para introduzir a antítese “a cidade fica mal
sem ela”: “foi Leanor a Bem fica, e que mal ficou sem Ella, a Cidade aquelle dia”.
Em seguida, faz referência a Campolide, lugar no qual Leonor fez muito sucesso com
sua beleza, relacionando o locus ao trabalho, a lida no campo, no verso “Pos os pes em
campo Lide, e tanto campou de linda, que Lidauaõ as moquestas, em uer a Roza com
uida”. As figuras da homofonia em “campou linda” e antítese, pela “lida no campo”, são
os principais efeitos sugeridos neste verso.
Segue, então, para Sete Rios, lugar no qual se mostrou envaidecida pela sua beleza
física. O encontro pode sugerir exatamente a aproximação com o topônimo, “sete rios”.
Neste ambiente, Leonor é cortejada por muitos homens pela sua beleza e pelo seu jeito
sedutor. Na sequência, Leonor cumpre o destino chegando à cidade, da qual nunca saiu.
Na estrofe final, o poeta faz menção do poder que causa a beleza de Leonor sobre os
homens: beleza que faz guerra viva no campo e na cidade. Assim feita a descrição,
observa-se ela não se desenvolve numa única direção: ela é visual, quanto à beleza de
Leonor, toponímica, quanto às lembranças da cidade, imagética, quanto ao poder
provocado pela descrição e finalmente comparativa, quando coloca esses três elementos
em condições de igualdade e de progressão, no processo de construção da personagem
que inspirou o poema.
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Referências
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padre Antônio da Fonseca. Assis, 2005
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Tradução Jaime Bruna. 7ª
ed. São Paulo, Cultrix, 2005
COSTA, M. C. A poética de Aristóteles: Mímese e verossimilhança. 1ªedição. São
Paulo, Ática, 2001
DURÃO, S. R. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. São Paulo,
Martins Fontes, 2001
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HANSEN, J.A. et al. Para Segismundo Spina: Língua, Filologia, Literatura. São Paulo,
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HORÁCIO. Arte Poética. Tradução R. M. Rosada Fernandes. Lisboa, Inquérito, 1984
MUHANA, A. A Epopéia em Prosa Seiscentista. São Paulo: UNESP, 1997
SILVA, V. M. P. A. Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa. Coimbra:
Centro de Estudos Românicos, 1971.
TAVARES, H. U.C. Teoria Literária. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares S.A.,
1954
VERISSIMO, J. História da literatura brasileira. 3ª. ed. Rio de Janeiro, Livraria José
Olympio editora, 1954
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o consumo, mas também dialoga com a memória cultural desse mesmo espectador,
contribuindo para a produção e recomposição dos sentidos da cultura.
1. Simulacros televisuais
O simulacro não necessita de uma realidade externa para ser validado. Ele existe por
si enquanto imagem e promove um apagamento dos limites entre o real e o imaginário.
A fotografia e o cinema, simulacros modernos, concederam ao olho artificial – a
objetiva – uma relevância incomensurável, quando outrora era a mão que produzia as
imagens. Há um alinhamento estético e político entre a mente de quem manipula a
máquina e a visão monocular da câmera fotográfica ou cinematográfica. Na fotografia e
no cinema, o mundo passa a ser organizado conforme as antigas regras da perspectiva
renascentista, registrado por meio de um arranjo espacial geométrico, que dita a forma
como o mundo deve ser visto e simulado.
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No século passado, nos anos 60, Mcluhan lança o conceito do qual é impossível
escapar, mesmo tentando observar a mídia de outra maneira: “o meio é a mensagem”.
Mordaz, Mcluhan ainda diz que “é o meio que configura e controla a proporção e a
forma das ações e associações humanas” (2007, p. 23). A palavra forma nos remete
diversos significados, mas principalmente aos sentidos de uma ordenação veemente
oculta logo abaixo das superfícies das coisas visuais. A forma pressupõe cálculos,
planejamentos, valores e políticas que regulamentam o que é captado pelo olhar. A
televisão não é diferente. Repleta de enunciados efêmeros, fragmentados, narrativas
entrecortadas por outras narrativas – tudo direcionado para indivíduos atomizados e
encasulados em suas casas, em suas salas de TV – a televisão simula a interconexão dos
indivíduos, a coletividade, legitimando o controle por meio de conteúdos com discursos
de entretenimento, notícia, conhecimento e comunicação universal.
Para manter essa superestrutura, e continuar participando do controle do ethos, a
televisão necessita atuar em duas frentes: uma na forma e outra no conteúdo. A forma é
ditada por uma arquitetura telecomunicacional imensurável – informática, redes de
comunicação, novas tecnologias eletrônicas e, agora, digitais, em que a velocidade e a
capacidade de transmissão possibilitam maior cobertura e fluxo de informações em
menor tempo; o conteúdo, a faceta mais sorridente da realidade fabricada, tem a função
de capturar o olhar do espectador e impor discursos que resultam na organização social.
Para Sodré (1994, p.39), “cultura e sociedade passam, assim, à condição de objetos de
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um gerenciamento cada vez mais reflexivo das relações de mercado e dos discursos
legitimadores da produção capitalista”.
Por que ver televisão? Sodré (1994) aponta para esse meio como componente do
sistema organizador em que, como espelho, é onde, narcisicamente, a ordem
tecnocapitalista se reflete e indica as suas grandes linhas de constituição das identidades
culturais. Como simulacro, o espaço-tempo televisual naturalmente é narcísico, ele
existe por si só, e essa autossuficiência é o seu principal atrator. Vemos televisão porque
ela tem a capacidade de fascinar nosso olhar, de nos extirpar a alma fazendo-nos pensar
que somos nós o duplo da realidade televisual, e não o contrário. Somos mais o reflexo
a admirar a bela face de Narciso, em que “o simulacro, a duplicação trazem sempre a
possibilidade de morte para o original. Narciso abisma-se (e morre) em sua própria
imagem, porque esta efetivamente implica a morte de sua verdade enquanto protótipo,
identidade primeira” (Idem, p. 41).
2. A oralidade midiatizada
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palavra retórica vem do grego rhetor, que significava “orador”. Para isso, o emprego
ornamental ou eloquente da linguagem é a sua principal característica. Não é desta
forma, ornamental, eloquente e fantástica, que a publicidade audiovisual mantém
contato com seu público, os espectadores, com vistas a se tornarem consumidores? Não
é desta maneira que cada plano (monema) do filme publicitário e sua montagem
(sintaxe) é planejado para mimetizar a oralidade, naturalizar o discurso do real para
tornar-se indelével na memória do espectador?
Sabe-se que, baseado em Aristóteles, Cícero divide o discurso retórico em cinco
partes distintas: Inventio, Dispositio, Elocutio, Memoria e Actio.
Para que o discurso obtenha êxito – que é convencer ou persuadir a plateia da sua
veracidade –, uma grande parte de conhecimentos deve ser retida pelo orador, tanto para
o discurso ao qual ele se propõe, quanto para a rememoração de discursos que
obtiveram êxito no passado. Sendo assim, ele deve ter uma memória prodigiosa. A obra
Retórica a Herênio (Ad Herennium) é um tratado sobre retórica, dividido em quatro
livros, sendo o Livro III dedicado totalmente à Arte da Memória. Para ampliar a
capacidade mnemônica do orador, Cícero sistematizou, em sua obra De oratore,
técnicas da arte retórica e em especial uma delas que ele chamou de “arte da memória”.
Um dos poucos escritos sobre essa arte – datado entre 86-82 a.C. –, foi atribuído a
Cícero que escreveu para um amigo, na Idade Média, na Europa. Cícero escreve:
“Passemos agora ao tesouro das coisas inventadas e à guardiã de todas as partes da
retórica: a memória”.
A Arte da Memória foi um estudo iniciado na Grécia, continuado, sistematizado e
aplicado por Cícero e consiste na educação da memória do orador, por meio da
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Os lugares e imagens que ele chamou de “agentes”, isto é, ativas no sentido de que
devem agir sobre a memória do orador tornando-se indeléveis, devem manter uma
sequência lógica de forma que o orador, em pensamento (reminiscência), consiga
transitar por elas, lê-las, interpretá-las e traduzi-las em discurso oral.
Conclusão
O filme publicitário, por essa premissa, participa de uma educação estética e visual
do homem urbano contemporâneo, assim como as imagens-sons do cinema, arte da qual
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ele traz grande parte dos seus elementos sintáticos. Do conceito do cinema como
“língua da realidade”, de Pasolini; e do cinema como “arte da memória”, de Milton José
de Almeida, conclui-se que, para compreender a sintaxe do filme publicitário, repleta de
escolhas estéticas e políticas próprias de uma língua audiovisual, é necessário apreender
os caminhos pelos quais imagens e lugares são organizados para serem fantásticos,
portanto, inesquecíveis.
Referências
ALMEIDA, Milton José de. Imagens e sons: a nova cultura oral. Autores Associados:
Campinas, 1994.
______é. Cinema: arte da memória. Campinas: Autores Associados, 1999.
BUCCI, Eugênio, KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo:
Boitempo, 2004
CICERO, Marcus Tullius. La invención retórica. Tradución: Salvador Nunez. Madrid:
Editorial Gredos, 1997.
______. Retórica a Herênio. Tradução: Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra.
São Paulo: Hedra, 2005.
Grupo de Mídia. Mídia Dados 2009. São Paulo: RWA, 2009.
KOCH, Ingedore G. V. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2006.
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo : Senac, 2005.
PASOLINI, Pier Paolo. O empirismo hereje. Lisboa: Assirio e Alvim, 1982.
SODRÉ, Muniz. A máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil. São
Paulo: Cortez Editora, 1994
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Para o crítico Antonio Ramos Rosa, Sophia é a poetisa da claridade e da clareza. Sua
linguagem é transparente e luminosa, mesmo nos poemas mais obscuros. “Na sua
fulgurante nudez os poemas de Sophia criam uma euritmia cósmica como se a missão
do poeta fosse transcender a noite na lumière nature de Rimbaud.” (ROSA, 1987, p.
16). Também a identidade de Sophia com os cosmos, sempre presente em sua obra, foi
descrita por Lamas, lembrando a relação intensa que Sophia tem pelos elementos e sua
necessidade de liberdade para encontrá-los:
Essa atração pelo primitivo, essa imantização pela luz e pelo silêncio é
peculiar ao texto de Sophia. O ‘eu’ desnuda-se, procura libertar-se de
tudo quanto o acorrenta para poder ir ao encontro das coisas, numa
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Mesmo tendo nascido no Porto e passado grande parte da sua vida em frente ao
mar, o desejo de Sophia de viver eternamente junto a ele choca-se com esta mesma
vontade exposta pelo eu-lírico em sua poesia. Neste caso, a praia serve como
esperança de regresso da morte para viver com o mar aquilo que não foi vivido. A
contemplação que Sophia tem pelo mar, tornando sua alma de maresia e desejando,
mesmo após a morte, retornar e viver junto dele, gera um estado de alma que coloca
o sonhador fora do mundo próximo, como na imensidão íntima de Bachelard:
Para Sophia, seu refúgio é a praia. Seu canto predileto (mesmo sem ângulos, sem
paredes, sem teto) é a imensidão da praia. É ela quem lhe assegura a imobilidade
mesmo sem a pressão das paredes, pois como num êxtase, o eu-lírico contempla tal
espaço. A solidão e a imobilidade que encontramos num canto, o eu-lírico encontra
na praia. Para ele não importa outros amores, outros cantos, outras pessoas... Seu
local seguro que lhe dá a consciência de paz e imobilidade é o conjunto de areia mais
mar. Além do eu-lírico poder encontrar-se consigo mesmo de frente ao mar, ele tem
a liberdade de amar com maior apresso esta praia e unir-se ao mar, ao vento e à lua.
No poema “Eu me perdi” há outro aspecto de liberdade
A imensidão do mar faz com que ele se divida em vários reinos, apresentando o
equilíbrio entre a água lisa e a presença dos monstros e formas espantosas, como a
medusa, monstros marinhos e todas as lendas que acompanham as histórias
marítimas. Para Langrouva há a positividade do mar como reino:
mundo, porém diante do infinito, que neste caso ilustra-se, como a relação eterna
(infinita) do eu-lírico .
Percebe-se o mar como liberdade a partir da dualidade dos espaços quarto e mar,
onde a oposição entre o ambiente fechado e aberto interferiu nas ações do eu-lírico.
Seus movimentos inconscientes de sonâmbulo se diferenciaram de seus movimentos
livres de gaivota, opondo a prisão do quarto à liberdade do mar. Foi vista também a
partir da relação entre a imobilidade do canto praia e o desejo do sujeito lírico de amá-la
profundamente e unir-se aos elementos mar, vento e lua. Por último, mas não menos
importante, a liberdade foi vista nos desencontros e reencontros do sujeito-lírico
consigo mesmo a partir de seu desaparecimento no mundo, da sua salvação na terra, da
sua busca no vento e essencialmente do seu reencontro no mar.
O mar como reino se instaura na relação de poder do eu-lírico com as ondas do mar,
onde tal sujeito-lírico seria o único apreciador da vasta beleza marinha. Sendo assim, as
ondas cantavam somente para ele, como se ele estivesse com plenos poderes em um
reinado. Também o mar foi descrito reino a partir de metáforas que nos remetem à
imaginação de um reino marinho, onde seus elementos e o equilíbrio do sujeito-lírico
com os cosmos prevalecem. Identidade, liberdade e reino três substantivos que
definiram os mares de Sophia. A maresia tomada como a verdadeira identidade, a
imobilidade do canto praia, desencontros e reencontros do sujeito-lírico como a real
liberdade e a contemplação da grandeza como reino, permitiu-nos reconhecer e
compreender mais sobre a poesia “marinha” de Sophia. Seus leitores passam a ter maior
encantamento pelo mar, depois de seus poemas.
Desde 2005, no Oceanário de Lisboa, os poemas de Sophia sobre o Mar foram
colocados para leitura permanente nos locais de apreciação e descanso da exposição,
permitindo aos visitantes daquele museu marinho absorverem a força da sua escrita
enquanto estão imersos numa visão de fundo do mar. É considerada a mais importante
poeta da literatura portuguesa contemporânea, cantora da “vida de mil faces
transbordantes”.
Referências
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Também passou pelo mesmo processo a ementa de Prática de Ensino II, do 4º ano,
que hoje compreende:
Aspectos teóricos sobre o ensino de literatura no ensino médio. A
literatura no ensino médio: problemas e possíveis soluções.
Elaboração de projetos de leitura literária. Planejamento da regência
em ensino fundamental e ensino médio. Execução de regência.
Elaboração do Portfólio. (UENP, 2010b)
1
Considere-se que a edição consultada apresenta problemas de paginação, conforme consta em
errata apresentada pela editora.
portugueses, com o objetivo de se chegar à sugestão de um formato de portfólio,
modelo este que ainda está em processo de aperfeiçoamento.
Alarcão assim procura definir portfólio: “Um conjunto coerente de documentação
reflectidamente seleccionada, significativamente comentada e sistematicamente
organizada e contextualizada no tempo, reveladora do percurso profissional.” (2004, p.
55) Trata-se, como se vê, de uma concepção já distanciada do campo das artes, de onde
o vocábulo se originou, mas é Idália Sá-Chaves, segundo Alarcão, quem vai adaptar o
conceito à área da formação de professores, por isso mesmo ampliando o significado da
expressão ao associá-la à designação de “portfólios reflexivos”. Em entrevista
concedida à revista do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino, da
Universidade Estadual de Ponta Grossa, denominada Olhar de professor, em 2004, a
autora, que é doutora em Didática na especialidade de Supervisão e Formação pela
Universidade de Aveiro, ressalta as peculiaridades do portfólio como instrumento
coerente com as propostas de avaliação formativa:
Contudo, para aqueles que não pretendem assumir a profissão, já neste primeiro
depoimento se revela a falta de gosto pelo magistério, na não aceitação da experiência
em sala de aula como processo natural de formação do futuro professor:
No entanto, para aqueles que não se identificam com a profissão, o relato é objetivo,
desprovido de qualquer encantamento:
REFERÊNCIAS
ALARCÃO, Isabel. Professores reflexivos em uma escola reflexiva.3. ed. São Paulo,
Cortez, 2004. (Coleção Questões da Nossa Época; 103).
PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. São
Paulo, 2004. (Coleção docência em formação. Série saberes pedagógicos).
SÁ-CHAVES, Idália. Discutindo sobre portfólios nos processos de formação.
Entrevista com Idália Sá-Chaves. Olhar de professor. Ponta Grossa, 7 (2): 09-17, 2004.
Disponível em: <www.uepg.br/olhardeprofessor/pdf/revista72_artigo01.pdf.> Acesso em: 20
fev. 2006.
Como o objetivo maior desse trabalho é tentar elucidar um traço de escrita que
nasce, especialmente, das lacunas, das margens, das perdas e de possíveis vazios, é
imprescindível o destaque sobre a relação entre esse tipo de escrita e a memória,
parceira primeira, propulsora da escrita entendida como feminina. Se “é preciso
haver lacuna para que o gesto da memória se dê”, como nos diz Lúcia Castello
Branco, citada na epígrafe deste trabalho, e se a escrita feminina se dá, também,
através de — e em — um espaço lacunar, é inevitável realçar a aproximação,
especialmente no que diz respeito ao caráter constitutivo de ambas.
A proposta desse artigo é analisar como se dá a relação entre mito, memória e
escrita, refletindo sobre a possibilidade de ser o trajeto de rememoração de Anelise
(narradora do romance As Parceiras) similar àquele feito por Mnemosyne, deusa
da memória. Pretendemos refletir, também, sobre o sentido de (re) lembrar para
essa personagem / narradora, uma vez que ela se entrega ao ofício de narrar os
acontecimentos pretéritos, motivada pela razão de conhecer uma verdade sobre sua
história familiar. Ao trazer para o espaço romanesco esses acontecimentos, Anelise
cria uma estratégia apropriada para resgatar sua trajetória existencial desde a
infância, o que faz com que o texto que se tece a partir de suas reminiscências fale
mais do que ela mesma diz. A partir dessa situação, o leitor é convocado a
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descobrir, a decifrar os códigos desse jogo que propõe, agora, um passeio pelos
tortuosos caminhos da (des) memória feminina.
A memória, que é elemento especial para a construção dessa enunciação
feminina, se constrói a partir das lembranças de infância do infante, ou seja,
daquele que não fala. E a partir do que se cala, invadimos os territórios dessa
construção, nos quais se entrelaçam memória e escrita feminina, uma vez que
ambas se erigem a partir de um vazio estruturante, de um vazio que as constitui.
Para lembrar, é preciso esquecer, e para esquecer é preciso buscar o que ficou em
um tempo distante. Por isso Anelise volta aos tempos de infância, na esperança de
que, revivendo-os, possa superar os seus traumas existenciais. Como o que efetiva
a construção dessa narrativa é uma escrita baseada nos relatos da memória, uma
vez que Anelise nos narra muitas histórias de infância, achamos interessante
também citar Béatrice Didier, ao se referir à infância:
A infância é esta ‘espaciosa catedral’ onde as mulheres gostam de
retornar, e se recolher: parece-lhes que lá é possível reencontrar sua
verdadeira identidade, como numa nostalgia de sua integridade
original. Nostalgia talvez de uma linguagem, feita mais de balbucios
e gritos, sensações e imagens do que palavras. (DIDIER, 1981,
p.25).
Como se pode ver, o processo da memória transcrito no trecho acima não deve
ser entendido apenas como preenchimento de lacunas, (re) composição de imagens
passadas, mas, também, enquanto a própria lacuna, enquanto decomposição, litura
dessas imagens.
Além disso, as reflexões advindas do trecho acima nos remetem à epígrafe deste
artigo, uma vez que elas nos permitem considerar o fato de que o passado não se
conserva inteiro nos refúgios da memória; ele se constrói, também, a partir de
faltas, de ausências, que (re) aproximam o processo da memória com o processo de
produção da escrita feminina, constituída, especialmente, desses constantes vazios.
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narradora, se perdeu. Além disso, Anelise tem “bastante tempo para repassar o
filme todo mais uma vez” (AP., p.17). Essa idéia de “repassar o filme todo mais
uma vez” nos remete a uma possibilidade de escolha, por exemplo, das cenas a que
se pretende assistir, dos acontecimentos que, de fato, Anelise quer narrar. Adélia
Bezerra de Menezes, em um ensaio sobre Memória e ficção, já nos fala sobre a
condição de registro da memória, no que diz respeito à capacidade de seleção
daquilo que se pretende registrar: “a memória não é museológica, mas seletiva”,
isto é, ela não acumula as coisas — os acontecimentos — indiscriminadamente,
tampouco as relata dessa forma. Ao sistematizar uma cadeia associativa que
estabeleça uma ordem para que os fatos sejam narrados, automaticamente já ocorre
esse processo de seleção na memória. Não há mais um “depositar sem seleção,
indiscriminado”. Nesse momento, já se sabe o quê lembrar e como o reconstituir
no nível da linguagem.
Como no romance tudo o que sabemos obedece a uma (des) ordem instituída na
memória da narradora, não se pode confiar na veracidade dos fatos que se narra no
momento presente, embora eles se dêem a conhecer através de buscas pretéritas. É
certo que o tempo da narrativa é um tanto diferente do tempo da história vivida
pela personagem, mas isso, que parece óbvio, ganha complexidade a partir da
seguinte reflexão:
(...) não há como fazer coincidir o chamado tempo do vivido com
o tempo do revivido, com o tempo construído pela memória e,
portanto, pela linguagem: qualquer gesto de rememoração se
efetua sempre a partir de um fosso temporal intransponível. É
precisamente na linguagem que pretende descrever, criar a
continuidade almejada, que essa continuidade se rompe: o signo se
erige sempre a partir do que já não é. (grifo da autora)
(CASTELLO BRANCO, 1994, p.29).
(BENJAMIN, 1985, p.207), o que determina que o texto se constitua antes num
produto da rememoração do que propriamente da experiência. Para isso, leia-se:
Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na
esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem
limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e
depois. Num outro sentido, é a reminiscência que prescreve, com
rigor, o modo da textura. Ou seja, a unidade do texto está apenas
no actus purus da própria recordação. (BENJAMIN, 1986, p.37).
Como se pode ver, Anelise isola sua intimidade no sótão, como a avó Catarina.
Como se isso não lhe bastasse, ela faz de si mesma seu próprio sótão existencial.
Para ela, não se trata apenas de escrever essa narrativa, mas, também, de escrever-
se nela. Talvez por isso lhe seja fundamental tecer o seu bordado, ainda que
partindo do lado avesso, esse da memória.
Referências
“PATRIMÔNIO
1
Doutora em Literatura Comparada pela UFMG. Professora de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua
Portuguesa do Departamento de Comunicação e Letras e do Mestrado em Estudos Literários da Unimontes. O
presente texto faz parte de resultados de pesquisa desenvolvida no projeto “Cidades de Minas na poesia brasileira do
século XX”, financiado pelo CNPq.
2
ANDRADE, Mário de., BANDEIRA, Manuel. Itinerários. Cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira a
Alphonsus de Guimaraens filho. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
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Mário foi o primeiro bandeirante modernista que veio explorar essa gruta encantada
que existe nas cidades barrocas. Em 1924, depois da Semana de Arte Moderna, com a
viagem da caravana dos paulistas Mário, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e do
poeta franco-suiço Blaise Cendrars a São João del Rei e Tiradentes, pode-se ver que
outros bandeirantes teriam se juntado a Mário na busca de metais preciosos. A arte
dessas cidades de Minas provocou um efeito em todo o grupo que, ao retornar para São
Paulo, passou a se preocupar com a valorização das cidades históricas e do patrimônio
cultural do país. Como resultado da descoberta do século 18 pelos modernistas
paulistas, temos várias produções artísticas e críticas como, por exemplo, a pintora
Tarsila do Amaral que produziu desenhos inspirados na plástica local e Oswald de
Andrade que compôs vários poemas para Pau Brasil, de 1925. Sobre a visita dos
modernistas às cidades de Minas e a repercussão que ela teve para esses intelectuais, o
crítico Rui Mourão faz a seguinte exposição:
No retorno a São Paulo, a preocupação com a valorização das cidades
históricas passou a ser incluída nas linhas programáticas dos jovens
revolucionários. Eles identificavam, naquela arte de dois séculos
atrás, a autenticidade de inventiva que desejavam alcançar. Essa
descoberta os inseria numa tradição. Com a retaguarda daquela forma
protegida, sentiam-se mais seguros e mais bem plantados. E o
trabalho para divulgar o patrimônio barroco e difundir informações
sobre ele não terminaria mais. Através de artigos e constantes
referências, procurava-se trazer, para o desfrute dos contemporâneos,
valores que não podiam continuar ignorados, exilados ou esquecidos
no passado. Na obra de Francisco Lisboa e outros, brilhava a chispa
da genialidade. O acervo que as chamadas cidades históricas reuniam
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No início de 1919, ano em que Mário de Andrade esteve em Mariana para visitar o
poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, o poeta Manuel Bandeira – que também
tem papel importante na Semana de Arte Moderna e no modernismo brasileiro –
encontrava-se em Juiz de Fora e escreveu um artigo “A academia e Alphonsus de
Guimaraens” para o Correio de Minas, jornal daquela cidade, em 19 de janeiro,
mostrando que seria uma honra a Academia ter esse poeta como sucessor de Bilac. Mas
essa não seria a vez de um escritor mineiro ocupar a cadeira do poeta parnasiano, mas
sim do escritor paulista Amadeu Amaral. Muitos anos depois, em 1953, Bandeira ainda
retoma a frustrada candidatura desse escritor à Academia Brasileira de Letras e continua
a defender esse poeta simbolista por reconhecer a importância da sua poesia para a
literatura brasileira, chegando a comparar a sua grandeza poética à do escritor francês
Mallarmé 3.
O poeta Bandeira, ao longo de sua vida, manteve contato com vários intelectuais
mineiros, correspondendo-se com alguns deles por vários anos. Nota-se que suas
viagens por Minas não se restringiram às leituras da poética árcade e simbolista que
demonstra conhecer muito bem em seu exercício de crítico e poeta; elas são, de fato,
viagens reais que o poeta fez como pesquisador para conhecer e recolher informações
para compor o livro-guia de Ouro Preto. Em carta de 26/7/1937 para Mário de Andrade,
o poeta Bandeira, quando retorna de São Paulo para o Rio, informa ao amigo que a
3
O texto de Manuel Bandeira de 1953 chama-se “Alphonsus de Guimaraens”. Bandeira, em carta escrita para Mário
de Andrade com data de 12/10/1941, entre as notícias que dá ao amigo, pede um conselho sobre a antologia dos
simbolistas e pós-parnasianos que estava em fase de preparação para o Ministério de Educação. Apresentamos
fragmento do texto: “O Capanema mandou me chamar e reclamou a antologia dos simbolistas e pós-parnasianos.
Tenho que fazer! Dê-me um conselho: não acha que é pena misturar simbolistas e pós-parnasianos? Já li e reli com
cuidado o Cruz e Sousa e estou seguro da minha escolha. Mas o Alphonsus de Guimaraens me atrapalha: é mais
difícil de apanhar e limitar numa seleção. Você quer me apontar o que lhe parece melhor – o que lhe pareçam dez
coisas que não devem ser esquecidas? P’ra comparar com o que separei. Meu critério você conhece: não o mais belo
ou forte ou perfeito. – Ou tudo junto equilibradamente”. (ANDRADE; BANDEIRA, 2001. p. 656). Em carta de
26/10/1941, Bandeira acusa recebimento da carta de Mário do dia 17 e reclama que o amigo não o ajudou no pedido
feito anteriormente. Vejamos o comentário de Bandeira: “Mas estou safado de você não me ajudar no caso de
Alphonsus de Guimaraens. Que diabo, você já andou lendo e estudando e tomando apontamentos sobre o homem.
Faça uma releitura rápida. Não é preciso ler os sonetos, pois o que me está embaraçando são as poesias mais longas,
não os sonetos, dos quais já fiz a minha escolha. Insisto com você, porque fiz igual pedido ao Carlos Drummond e a
resposta dele me atrapalhou ainda mais: só em duas coisas (uma delas “Ismália”) concordamos”. (ANDRADE;
BANDEIRA, 2001. p. 657) Na correspondência dos dois, não encontramos essa carta do dia 17 que Bandeira
responde a Mário. Com certeza, o documento não foi localizado pelo organizador Marco Antonio de Moraes.
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viagem de volta correu bem melhor que a de ida e, no fim do relato, confessa: “Agora
vou me atirar ao Guia de Ouro Preto. Estou com preguiça e com medo. Mas com amor
também. Amor e medo...” (ANDRADE; BANDEIRA, 2001, p. 638). Mário não faz
nenhum comentário sobre essa carta que Bandeira a ele enviara, pois, em toda a
correspondência dos dois, não localizamos novas informações sobre a escrita desse
livro-guia 4. As informações que encontramos sobre a atuação de Bandeira como sujeito
que teve acesso aos documentos históricos e artísticos de Ouro Preto estão presentes em
sua produção de ensaísta e cronista. Na crônica “Uma revista”, de 9/9/1937, o poeta
revela o seu lado crítico de investigador da história do passado colonial de Minas
Gerais, com comentários sobre o texto de abertura “Roteiro Lírico de Ouro Preto”, de
Afonso Arinos de Melo e Franco, publicado no boletim “Lanterna Verde, nº 5”. Após
ler esse texto de abertura, Bandeira ressalta que “informações preciosas” ali presentes
mereciam ser revistas 5.
Manuel Bandeira fez um trabalho intenso de pesquisa para o Serviço de Patrimônio,
em 1937-1938, para escrever o livro-guia da cidade, iniciando, assim, uma biografia de
Ouro Preto que encanta os seus leitores-viajantes, pois ao material recolhido pelo
pesquisador, comprometido com os fatos históricos, foi concedido tratamento “especial”
na visão do artista 6. O estudo “Viagem a Ouro Preto”, de Lourival Gomes Machado, é
um texto que traz comentários sobre esse livro de Bandeira. Vejamos o texto a seguir:
4
Em carta de 20/9/1937 para Mário, Bandeira dá notícias da viagem de Cândido Portinari para Minas: “Ontem partiu
o Candinho para Minas. Maria e Olga, Santa Rosa e Glorinha também foram. Candinho foi ver de perto os trabalhos
de minas e siderurgia para fazer um dos painéis do futuro Ministério. Passarão lá uma semana. Iam a Sabará, Ouro
Preto e Mariana. O Brodosquinho poderá fazer observações precisas sobre as pinturas de Ouro Preto e Mariana”.
(ANDRADE; BANDEIRA, 2001. p. 639-640) Entretanto, em toda a correspondência, não existe mais nada sobre o
trabalho realizado para a escrita desse guia sobre Ouro Preto.
5
Para esclarecer melhor a informação exposta, apresentamos fragmento da crônica de Manuel Bandeira. Vejamos:
“Arinos repete que o palácio da Penitenciária foi riscado por D. Luís da Cunha Meneses. Parece que não. O Sr.
Augusto de Lima Júnior, contaram-me, descobriu ultimamente em Portugal que o risco veio de lá. Descobertas
líquidas e que ainda não aparecem no “Roteiro” são que o risco do Carmo é obra de Manuel Francisco Lisboa,
arquiteto português, suposto pai do Aleijadinho, e que das mãos deste último são as talhas dos altares laterais de São
João e de Nossa Senhora da Piedade. Uma e outra coisa constam dos livros de termos das liberações das mesas da
Ordem do Carmo: a primeira no livro 1.º, pág. 107; a segunda no livro 2.º, pág. 70. Devemos essas descobertas a
pesquisas mandadas efetuar pelo Serviço de Defesa do Patrimônio Artístico e Histórico, criado pelo Ministro
Capanema e dirigido por Rodrigo M. F. de Andrade. Arinos me acusa de leviano por eu achar meio sem graça os
amores do Dr. Gonzaga com Maria Dorotéia. E me emprestou o livro de Tomás Brandão, Marília de Dirceu, para eu
mudar de idéia. Ainda não tive tempo de ler o livro, e por isso continuo na minha leviandade de achar aqueles amores
do ouvidor bordando vestidinhos para Marília um caso daquilo que a neo-gnomonia chama “mozarlismo
lacrimejante”. (ANDRADE; BANDEIRA, 1986, p. 234)
6
Em 1938, Bandeira é nomeado pelo Ministro Gustavo Capanema professor de Literatura do Colégio Pedro II e
membro do Conselho Consultivo do Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Com ilustrações de
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Nesse estudo, o crítico descreve a sua experiência de viajante que em 1948 visita a
cidade de Ouro Preto, informando aos desavisados que desejam visitar a cidade pela
primeira vez e têm em mãos o Guia turístico de Bandeira que os passeios pela cidade
não são tão saborosos como explicita a sensibilidade desse poeta, principalmente porque
a geografia da cidade não ajuda o visitante que encontrará uma cidade barroca diante de
si, com todos os seus contrastes.
Diante de toda a discussão até aqui exposta, perguntamos-nos: por que motivo o
diretor do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rodrigo Mello Franco
de Andrade, pede ao poeta Manuel Bandeira para escrever um Guia de Ouro Preto?
Como bem sabemos, no contexto em que esse guia foi publicado, a cidade barroca de
Ouro Preto passava por um processo de “restauração” como objeto material, pois os
intelectuais mineiros da época estavam empenhados para que ela fosse reconhecida
como Monumento Nacional, fato esse, ocorrido em 1936, com o decreto de nº 756-A,
assinado pelo presidente Getúlio Vargas. Com tal ato público, a cidade Ouro Preto
adquire o status de “cidade mítica”, “inventada” pelo poder público. O poder público
passa a investir na preservação do patrimônio histórico e artístico do País e realiza
vários projetos de “salvamento” dessas cidades históricas de Minas, principalmente
porque, segundo Rui Mourão, o Ministro Gustavo Capanema era entrosado com os
modernistas e tinha como chefe de Gabinete o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Rui Mourão ainda ressalta que, em 1937, esse ministro resolveu encomendar a Mário de
Andrade um projeto para a proteção do patrimônio histórico e artístico, trazendo-nos um
esclarecimento importante sobre essa época e o projeto de preservação dessas cidades:
Luís Jardim e Joanita Blank, o Guia de Ouro Preto teve a primeira edição sob a chancela do Ministério da Educação
e Saúde, Rio de Janeiro, 1938. Manuel Bandeira elaborou o livro atendendo ao pedido de Rodrigo M. F. de Andrade,
diretor do SPHAN.
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O Guia de Ouro Preto está dentro desse projeto modernista de resgatar e divulgar os
monumentos históricos e artísticos do Brasil. O poeta-viajante se coloca na perspectiva
de um turista que, com a sua máquina, tenta fotografar a paisagem que se descortina
diante de seus olhos, percorrendo os espaços mais recônditos da cidade barroca e
mergulha numa gruta encantada.
O poeta, de posse de documentação sobre a cidade e seus monumentos, constrói uma
série de itinerários para o turista que deseja visitar a cidade. Esse itinerário, que começa
pela “História” de Ouro Preto, surgida com a chegada dos bandeirantes, também expõe
informações importantes, com várias descrições sobre a fundação da primitiva Vila
Rica, focalizando o período de construção de seus monumentos religiosos e civis até o
instante em que a cidade recebe o título de Monumento Nacional. No poema “Ouro
Preto”, que abre o livro Lira dos cinquenta anos (1940), Bandeira descreve,
poeticamente, o instante da chegada dos bandeirantes em busca de ouro e pedras
preciosas, a exploração e opulência dos anos de glória e a decadência da cidade:
Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada
Ribeirão trepidante e de cada recosto
De montanha o metal rolou na cascalhada
Para o fausto d’El-Rei, para a glória do imposto.
(BANDEIRA, 1986a, p. 140)
Sobre esse livro, o crítico Jorge Miguel afirma: “Não se pode pretender estabelecer
uma característica aos poemas que compõem o 6º livro de Bandeira. Pode-se dizer que
novas experiências formais continuam” (MIGUEL, 1988, p. 44). Sobre o soneto “Ouro
Preto”, diz que esse “guarda a forma ainda tradicional, não só a rigidez dos 14 versos
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em dois quartetos e dois tercetos, com a presença de versos alexandrinos (doze sílabas)
(...) – soneto de abertura – parece sugerir o retorno ao Parnasianismo”. (MIGUEL,
1988, p. 44-45) A partir do comentário desse crítico, é importante esclarecermos aqui
que, nesse momento de composição, o poeta Bandeira mantivera contato estreito com a
produção dos poetas do século XVIII e a história de Ouro Preto. Com isso, o eu lírico
faz uma pintura interior de Ouro Preto e o que se revela diante dos olhos do leitor não é
a paisagem montanhosa e o conjunto arquitetônico com a sua opulência barroca, mas os
contrastes da linguagem barroca que já aparecem no primeiro verso, com o “ouro
branco/ouro preto”, e o próprio adjetivo podre, contrastando com o “ouro” que é um
metal precioso, o que configura um tom irônico. A vogal /o/, que nos lembra o oco e o
vazio, ressoa por todos os versos do poema e remete-nos ao vazio e às destruições das
montanhas que foram exploradas de maneira desenfreada. A cidade tem o seu momento
de glória; com a extração dos metais preciosos, atinge a sua opulência, mas terá a sua
decadência por causa da ganância dos homens e dos altos impostos que eram cobrados
pela Coroa portuguesa.
De leitor do passado histórico da cidade no cap. 1, o poeta passa a descrever, no cap.
2, “As impressões dos viajantes estrangeiros” que apresentaram visões sobre Vila Rica
no século XIX, quais sejam: João Antônio Antonil, Jonh Mawe, Auguste Saint-Hilaire,
Jonh Luccock, Walsh, Georg Gardner, Castelnau, Milliet de Saint-Adolphe e Richard
Francis Burton. É nessa parte do Guia de Ouro Preto que Bandeira resolve o seu
impasse com Afonso Arinos sobre as liras de Gonzaga, corrigindo informações
equivocadas de viajantes sobre Marília ao informar que ela não se casou. Vejamos:
“Tomás Brandão restabeleceu a verdade em sua obra Marília de Dirceu, provando ter
havido confusão de Marília com sua irmã Emerciana” (BANDEIRA, 2000, p. 31) 7. O
“Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga”, de Lira dos cinquenta anos (1940),
expressa uma diferença formal em relação ao soneto de abertura do livro, “Ouro Preto”,
que parece ainda trazer o “penumbrismo” que Norma Goldstein (1983) estuda nos seus
7
Como podemos ver, no momento da escrita do Guia, Bandeira já demonstra outra visão em relação ao lirismo de
Gonzaga e, pelas informações que apresenta no texto, confirma a leitura do texto de Tomás Brandão sobre Marília,
sugerida por Afonso Arinos.
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três primeiros livros: A cinza das horas (1917), Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto
(1924). Nesse poema, Manuel Bandeira retoma o tema do amor tão bem explorado pela
lira árcade, contudo o próprio título do texto já provoca certa dissonância, pois o haicai
fora retirado de uma “falsa lira de Gonzaga”. Assim, o poeta nega o lirismo, expondo
uma antilira, mas não com a intensidade de quem combate, em Libertinagem, todas as
formas de lirismo que se encontram no poema “Poética”, no qual o eu combatente
expressa: “Estou farto do lirismo comedido/Do lirismo bem comportado/Do lirismo
funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço
ao sr. diretor./Estou farto do lirismo namorador”. (BANDEIRA, 1986e, p. 98)
No cap. 3, “Ouro Preto, a cidade que não mudou”, Bandeira faz uma avaliação da
cidade e esclarece: “Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. Morta
é São José del-Rei. Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside o seu
incomparável encanto” (BANDEIRA, 2000, p. 34). Apesar desse comentário de
abertura do capítulo, Bandeira, na sequência de seu texto, trata da mudança sofrida pela
cidade ao longo dos anos. Com um olhar crítico de um biógrafo, não deixa de observar
que o conjunto arquitetônico sofreu alterações com o tempo, pois novas casas foram
construídas com um estilo diferente do colonial, é o neocolonial. No fim do capítulo, faz
uma comparação de Ouro Preto com Olinda e Salvador e assegura que essa cidade
mineira não perdeu as feições do passado com o progresso que tudo transforma. A visão
que a voz narradora expõe da cidade no Guia não é a mesma que a voz lírica expressa
no soneto “Ouro Preto”, pois inicia o segundo quarteto com indagações, explicitando
um momento de reflexão:
Que resta do esplendor de outrora? Quase nada:
Pedras... templos que são fantasmas ao sol-posto.
Esta agência postal era a Casa de Entrada...
Este escombro foi um solar... Cinzas e desgosto!
(BANDEIRA, 1986a, p. 140)
que metaforizam as ruínas e a morte nos “templos que são fantasmas ao sol-posto”, nos
“escombros” e nas “cinzas e desgosto”, restando apenas o pó. O poeta Manuel Bandeira
faz um mergulho na realidade, refletindo, a partir dela, sobre a própria condição da
cidade. Nesse aspecto, aprofunda o tema da morte e da destruição, revelando que os
monumentos que vão representar a memória material e imaterial do nosso país estão
ameaçadas pelo próprio tempo que tudo destrói, estando a decadência e a morte ligadas
à transitoriedade das coisas no tempo.
No cap. 4, “As duas grandes sombras de Vila Rica”, o poeta viaja para o passado
com um olhar que privilegia homens que fizeram parte da história de Ouro Preto, mas
não tiveram o mesmo lugar de destaque na história, por isso seleciona duas personagens
que considera mais relevantes, Tiradentes e Aleijadinho. Não se detém nos poetas
letrados, tais como Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga, porque esses já
possuíam um lugar na sociedade, ou seja, “eram homens requintados, letrados, a quem a
vida corria fácil”, todavia valoriza o alferes Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes)
pelo seu papel na conspiração de 1789 e artista Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho)
pela sua importância cultural, principalmente na construção de igrejas e esculturas.
Como se vê, a morte é retomada através da referência a essas “duas sombras”. No
poema “Ouro Preto”, esses mortos são evocados nos dois tercetos seguintes:
O bandeirante decaiu – é funcionário.
Último sabedor da crônica estupenda,
Chico Diogo escarnece o último visionário.
de Automóvel”, o poeta sai do centro da cidade de Ouro Preto e vai conhecer os bairros
mais distantes, a mina de ouro de Passagem, Cachoeira do Campo, Ouro Branco e
Itatiaia, o Itacolomi e as cidades de Mariana e Congonhas do Campo. Nos capítulos 7,
“Monumentos Religiosos”, e 8, “Monumentos Civis” Bandeira revela mais ainda a
preocupação que tinham os modernistas em valorizar e divulgar os objetos materiais e
imateriais da cidade como um Monumento Nacional, pois os monumentos religiosos e
civis são representados, desde as suas construções, cada um sendo descrito como objeto
importante para cada cidade e também para o patrimônio histórico e artístico nacional.
E, para finalizar o seu Guia de Ouro Preto, Bandeira indica as “estradas” para os
viajantes que desejam conhecer essa cidade encantada. Em 1938, podia-se ir a Ouro
Preto por estrada de ferro ou por estrada de rodagem; hoje, somente por estrada de
rodagem.
No poema “Minha gente, salvemos Ouro Preto”, de Opus 10 (1952), o poeta
Bandeira descreve, de forma imagética e pictórica, o tema da destruição da cidade de
Ouro Preto. Ao fazer uma revisão sobre a poética de Bandeira, em 1986, o crítico
Giovanni Pontiero faz o seguinte comentário sobre Opus 10:
os poemas desta nova coletânea são caracterizados por uma maior
simplicidade e força de expressão. Movimentando-se livremente do
epigrama satírico à grave meditação, Bandeira agora parece capaz de
transformar tudo ao seu redor em poesia, não importando o lugar-
comum ou o trivial aparente. (PONTIERO, 1986, p. 206)
O poeta apresenta um cenário cotidiano de maneira meditava, faz uma reflexão sobre
a condição humana ao colocar em cena a cidade que se encontra em estado de
destruição e revela o elemento responsável pelos danos desse monumento-nacional,
pedindo, na primeira estrofe, ajuda: “As chuvas de verão ameaçaram derruir Ouro
Preto./Ouro Preto, a avozinha, vacila./Meus amigos, meus inimigos,/Salvemos Ouro
Preto”. (BANDEIRA, 1986a, p. 197)
O poema apresenta elementos imagéticos e pictóricos, pois ele se constrói a partir da
memória do poeta que evoca eventos do passado ao mesmo tempo em que conjuga
elementos do coletivo. O tom lírico está expresso na subjetividade que o eu expõe à
condição do outro, entretanto explicita um tom memorialista, já que o passado histórico
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Referências
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de Janeiro: Editora Aguilar, 2002.
ANDRADE, Mário de; BANDEIRA, Manuel. Correspondência Mário de Andrade &
Manuel Bandeira. Org. introdução e notas de Marcos Antonio de Moraes. 2. ed. São
Paulo: Edusp, Instituto de Estudos Brasileiros, USP, 2001. (Coleção Correspondência
de Mário de Andrade, 1).
ANDRADE, Mário de; BANDEIRA, Manuel. Itinerários. Cartas de Mário de Andrade
e Manuel Bandeira a Alphonsus de Guimaraens filho. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
ANDRADE, Oswald. Pau Brasil. 2. ed. São Paulo: Globo, 2003.
BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto (1938). Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
BANDEIRA, Manuel. Lira dos cinquenta anos (1940). Seleção e coordenação de texto
de Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986a.
BANDEIRA, Manuel. Opus 10 (1952). Seleção e coordenação de texto de Carlos
Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986b.
BANDEIRA, Manuel. “Ouro Preto remoçada”. In: Andorinha, Andorinha. Seleção e
coordenação de texto de Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1986c.
BANDEIRA, Manuel. “Uma revista”. In: Andorinha, Andorinha. Seleção e
coordenação de texto de Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1986d.
BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Seleção e coordenação de texto de Carlos
Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986e.
GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Do penumbrismo ao modernismo: o primeiro Bandeira e
outros poetas significativos. São Paulo: Ática, 1983.
GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Alphonsus de Guimaraens no seu ambiente.
Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1995.
MACHADO, Lourival Gomes. Barroco mineiro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
MIGUEL, Jorge. Coleção engenho e arte – Manuel Bandeira. São Paulo: Harbra, 1988.
MOURÃO, Rui. A nova realidade do museu. Ouro Preto: MinC; IPHAN; Museu da
Inconfidência, 1994.
PONTIERO, Giovanni. Manuel Bandeira: revisão geral de sua obra. Seleção e
coordenação de texto de Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1986.
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Foi em 1900 que Sigmund Freud publicou A Interpretação dos Sonhos, que
encaminhou outro tipo de visão da corrente positivista, que “pretendia dar ao império de
uma razão dita científica, bem no sentido da prova experimental, do domínio
permanente de uma razão soberana que excluiria qualquer investigação do fato humano
como significação, desconsiderando o imaginário e o campo simbólico” (VITAL, 1992,
p.25). Freud primeiramente para formular suas teorias observa na literatura o
comportamento do homem. O seu envolvimento com a arte o levou ao prêmio Goethe
de literatura e depois aos escritos de outras obras. Eis alguns exemplos:
olhada, de fato, e interpretada pela psicanálise. Assim, podemos notar que o discurso do
personagem pode ser interpretado de maneira a permitir o acesso à linguagem do desejo
inconsciente, presente em qualquer texto. Segundo Freitas, outra forma de representação
da linguagem do desejo inconsciente está no que Freud explica sobre a sublimação da
pulsão que permite o surgimento das artes, das ciências e das religiões, que seriam
formas de realização simbólica que se associam à criatividade humana. Notamos que
essas realizações simbólicas podem necessariamente ser alvo de muitas interpretações,
através do saber psicanalítico, na medida em que sempre podemos nelas encontrar,
como já dissemos, a presença da linguagem do desejo inconsciente.
A questão da cultura é importante para muitas explicações e lembramos aqui que
Freud tinha essa preocupação como princípio, pois para ele a sociedade do século XIX
estava vivendo um momento em que a razão e a ciência significavam a perda da
subjetividade, já que na época o positivismo se expandia por todo lado. A cultura é
representada e o indivíduo, por fazer parte dela, de alguma forma se vê identificado
neste processo. O autor enfatiza bastante a figura do leitor e a importância que este tem
perante uma obra literária.
É através da identificação com os personagens que o leitor participa
fantasiosamente das cenas, ao poder modificá-las imaginariamente e com a certeza da
ausência de crítica do outro. Temos um exemplo:
causa ainda tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga, escarra
nessa boca que te beija. (MIRANDA, 1995, p.13).
Ao longo do romance notamos que esse recorte que a autora faz é de certa forma
um modo de imortalizar Augusto dos Anjos, é como se o narrador fosse o próprio poeta
recitando exatamente na madrugada de sua morte para Olavo Bilac, que age como o
esperado, dizendo: “Pois bem”, ele diz. Eh... “Tosse, cobrindo a boca com a mão.
Depois se cala visivelmente perturbado. Olha para os lados. Num impulso súbito deseja
livrar-se de mim. “Pois se quem morreu é o poeta que escreveu esses versos”, então não
se perdeu grande coisa”. (MIRANDA, 1995, p.13). Ana Miranda também nos mostra
um panorama do período de transição do século XIX para o XX e certamente a
manifestação de estilos como o simbolismo e parnasianismo eram bem conflituosas.
Diríamos que há uma questão de identidade literária também.
Falar de identidade ou de um processo de identificação com o outro é complexo.
Notamos que ao mesmo tempo em que há um problema de identidade do narrador, há
um problema de identidade com a sociedade da época. No romance Ana Miranda traça
um panorama histórico do século XX e relembra alguns instantes do final do XIX, como
citamos. São retratados “os descaminhos da República, as disputas políticas, a Revolta
da Chibata, a modernização do Rio de Janeiro, o duelo entre Olavo Bilac e Raul
Pompéia, a manifestação da influência francesa, esta, que tem um grande momento na
nossa sociedade no processo modernização cultural, isto é, nas artes e na literatura.
Esses fatos são abordados e significam o processo de identidade de uma cultura
brasileira que ainda está, de certa maneira, muito ligada à Europa. No romance notamos
quão forte é a presença francesa; tanto é assim que em muitos momentos o poeta
simbolista Charles Baudelaire é comparado a Augusto.
A cultura e particularmente a produção literária só são possíveis pela regressão e
pela liberação do estranho que habita em nós, pela liberação das forças da morte que
vão fragmentar as mesmices, seguindo o caminho da reunião dos fragmentos para
reestruturar o futuro, mediante reconstruções e recriações. É por causa da subjetividade
que temos o poder de criar um mundo diferente e, no ato criativo, deixamos de ser quem
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somos para ser o outro. Podemos pensar que o narrador representa essa liberdade de
criação de si que transcende no outro.
A psicanálise surge com o objetivo de desvendar, “não se reduz à lógica formal e
à dimensão racional de uma consciência, uma ciência que fala de um ‘desconhecido
incognoscível’ e de um saber que não se sabe a si mesmo, e que usa este construto
hipotético de um inconsciente determinativo” (BRAZIL, 1992, p.26). A valorização da
interpretação foi fundamental para o desenvolvimento da cultura, que mostrou uma
reação contra a “cultura utilitária” e que para Hórus Vital Brazil se expressa na literatura
“de um romantismo impressionista” e de um “realismo crítico” (BRAZIL, 1992, p.27).
Como já citamos a propósito de textos anteriores, ao conhecer o psiquismo,
Freud valoriza o objeto de interpretação e as artes e a literatura quando, em suas obras,
cita poetas, os mais representativos de seu tempo, e se coloca contra um realismo
ingênuo que tem como conseqüência um pragmatismo eficaz. Por isso inaugura mais
tarde a abordagem de “densidade cultural” como o conceito de um inconsciente
determinativo acrônico e incognoscível. Brazil procura tornar visível para nós, leitores,
a importância que Freud atribui à questão da cultura.
Podemos pensar também que a atividade interpretativa da psicanálise é realizada
num intertexto e informa o ato interpretativo, e a literatura, como ato criativo, se insere
na intersubjetividade do contexto cultural. Freud tem um jeito admirável de escrever e,
por conta disso, quando arquiva seus casos clínicos, é como se escrevesse uma obra
literária. E essa intersubjetividade, na representação do “caso Dora”, por exemplo, faz
com que Freud não aja somente como o autor da obra, mas também como um dos
personagens que vivem o drama, tão intensamente quanto qualquer outro. O psicanalista
assume a função de deslocamento de autor para auditor/leitor que decifra num
intertexto, revelando a busca do sentido e da “alteridade” num texto clínico que não
deixa de ser literário.
É por isso que Freud merecidamente ganhou o prêmio Goethe, pois seus textos
têm estilo narrativo bem argumentado, pois quase sempre são poéticos. Ele conseguiu
admiração por ser um “pensador da modernidade” que não se deixou levar pela razão.
Brazil termina a primeira etapa do livro da seguinte forma:
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Para a psicanálise somos todos sujeitos trágicos; em algum lugar somos sujeitos
extraordinários que lutamos contra as tensões e dramas profundos, e isso é muito
atraente. A psicanálise para Nabokov (1899-1977) era vista como um fenômeno da
cultura de massas, pois o fato de cada indivíduo se conectar às grandes tragédias está
relacionado com o procedimento clássico na cultura de massas. Para Manuel Puig
(1932-1990), segundo o autor, “o inconsciente tem estrutura de folhetim” (PIGLIA,
1998, p.111). Essa idéia é devida às suas criações: ele escrevia suas histórias com base
nas estruturas das telenovelas e dos grandes folhetins da cultura de massas, tendo
conseguido notar essa dramaticidade escondida na vida de todos.
Põe-se em questão a velha pergunta: A literatura usou a psicanálise? De que
modo a psicanálise tem usado a literatura e vice-versa? Para muitos autores, quem de
fato conseguiu utilizar devidamente a psicanálise foi o escritor James Joyce,
considerado um dos maiores escritores do século XX. E, como nos parece, Joyce
conhecia perfeitamente a Psicopatologia da vida cotidiana e A interpretação dos
Sonhos. Com sua notável utilização da psicanálise, Joyce soube usar de maneira
coerente esse conhecimento para o mundo literário.
Como já vimos através do exemplo de Joyce, a literatura buscou a psicanálise.
Agora Piglia mostra o outro lado dessa história. A psicanálise deve à literatura.
Exemplo maior é o envolvimento que Freud teve com as tragédias, mas não com o olhar
nos conteúdos de Sófocles e Shakespeare, mas sim com a visão que a tragédia
estabelece quando se trata de tensão, isto é, entre o herói e a palavra.
A literatura e psicanálise têm uma relação extremamente importante, pois o
sujeito precisa se reconhecer e buscar mais ainda a subjetividade. O homem vive no
mundo tido como globalizado, mas ainda assim mantém um comportamento de uma
sociedade tradicional em muitos aspectos: principalmente o cultural, em que às vezes é
complicado compreender e respeitar o outro.
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Essa descrição é uma das formas pela qual notamos a construção da imortalidade
do poeta, assim como os recortes dos poemas dentro do romance, cuja percepção é a da
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existência de uma obra dentro de outra, ou seja, o livro EU e outras poesias (1912), o
único que Augusto escreveu. Ana Miranda faz com que sobreviva a obra do poeta. É
tratando da imortalidade, do duplo, da psicanálise e da literatura que nos lembramos do
conto de Edgar Allan Poe “Willian Wilson”. Através desse conto podemos fazer uma
relação com o romance e pensar por que o Estranho nos é familiar em ambas as obras.
O estranho mostra a maneira secreta de encarar o mundo, isto é, um olhar para si
mesmo sempre se encarando e também agindo assim com o mundo em sua totalidade. O
estranho existe em cada um, à medida que se é freqüentemente estranho a si mesmo e,
como visto, o conceito do estranho é tudo aquilo que já foi familiar, e que se manifesta
sob certas condições. Cunha (2009) também afirma que o duplo é uma das
manifestações do estranhamento que está no limite da imaginação e da realidade, sem
esquecer que para Freud o conceito de Estranho é absolutamente contrário à questão da
estética. Em seu artigo, ela prioriza como objeto a intenção de valorizar as formas vivas
da pulsão de morte como reconhecimento na criação do artista, aquele que transforma o
perigo interior de morte, ou de enlouquecer, no poder de fazer dele uma forma de vida
com a reconstrução:
conto do escritor Edgar Allan Poe é um dos mais fantásticos que ele escreveu: “A
literatura e particularmente o conto fantástico é uma modalidade narrativa que associa
imagens, tempo e espaço, numa forma particular de subversão da realidade, ao dar um
passo além desta.” (FREITAS, 2009, p.139). Podemos dizer que se caracteriza por uma
hesitação, aspecto marcante da literatura fantástica, que corresponde à relação complexa
entre o racional e o irracional, ou mesmo, na mediação entre a realidade e o sobrenatural
que atinge o leitor quanto à linguagem e ao sentido dos fatos relatados.
Nesse artigo de Freitas sobre “William Wilson”, a autora relaciona a literatura
(conto) com a psicanálise (a questão do duplo). O que podemos observar é que o conto é
marcado pela estranheza. Aqui Freitas exprime o seu ponto de vista sobre o estranho,
dizendo que este se refere ao narcisismo, tema que nos remete à questão do duplo, que
Freud trabalhou através do sentimento de estranheza também e que Lacan desenvolveu
com a experiência do Estágio do espelho: “Na primeira situação especular do Estágio do
espelho eu não sou eu, mas sim o reflexo daquilo que o outro vê em mim. Isso
fundamenta a “identificação ao semelhante” com sua agressividade inerente.” (p.144).
Podemos concluir que isso nos faz pensar em uma reação de agressividade no sujeito
diante dessa simetria:
o fim trágico não poderia ser outro a não ser o desejo de morte. O personagem de
Wilson, assim como a representação do indivíduo, estabelece com o outro um processo
de identificação e se põe sempre em dúvida a respeito de si próprio. Segundo Freitas, o
duplo formulado por Lacan ocorre em três níveis − Imaginário, Simbólico e Real:
Augusto dos Anjos, mas uma figura do universo feminino que também demonstra traços
semelhantes aos do poeta. É por isso que podemos afirmar que há, no romance, uma
preocupação de não esquecer o poeta e a pessoa de Augusto dos Anjos. Sua
originalidade justifica a sua grande contribuição para a nossa literatura brasileira.
Referências
BRAZIL, Hórus Vital. Freud e a literatura. In: ___. Dois ensaios sobre psicanálise e
literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 25-39.
BRAZIL, Hórus Vital. Psicanálise e teoria literária. In: ___. Dois ensaios sobre
psicanálise e literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p.39-57.
CUNHA, Dirce Ferreira da. Olhando a pulsão de morte: sobre o ato de criar. In:
ALBUQUERQUE et al (org.). Escritos sobre psicanálise e literatura. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud/Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, 2009, p.55-66.
1
Tendo tido acesso aos arquivos públicos de Luanda e às notas do historiador Angolano
Alberto de Lemos, Walter Spalding conseguiu incluir ambas as declarações na sua obra
Angola e a Independência do Brasil.
2
Spalding, “Angola e a Independência do Brasil”, Revista do IHGB, vol. 296 (Rio de
Janeiro, 1972), pp. 32-33.
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Em contraste, Queirós Coutinho dirige-se, veemente e explicitamente, aos
verdadeiros recipientes da mensagem, os comerciantes nascidos na África que estavam
ansiosos para manter suas conexões brasileiras. Embora fosse claro que a falta de
recursos e peso político da colônia os obrigasse a aceitar o patrocínio de um poder mais
forte, com certeza eles tinham todo o interesse em escolher o mal menor. É também
importante reparar que o assunto da raça aparece aqui pela primeira vez entre as
reivindicações: Queirós Coutinho fala abertamente de “injúria, suborno e corrupção
[padecidos] por parte desses brancos enviados pela metrópole para vos comandar com
punho de ferro, usando e abusando do poder que detém de maneira irresponsável”. 3
De qualquer maneira, o senado de Luanda foi prontamente avisado por padre Correia
de Castro e, graças ao apoio do exército colonial, condenou a traição e conseguiu conter
a onda de dissenso, pelo menos por um tempo.
O clima político entre 1820 e 1840 foi de fato turbulento e as vezes violento na
colônia. Um pavoroso sistema de remuneração e benefícios, a férrea disciplina imposta
por oficiais que freqüentemente adotavam medidas brutais: tudo isso contribuía para
aumentar a agitação nas filas do exército colonial, que era principalmente composto por
degredados originalmente condenados por crimes comuns, militares ou políticos.
Tal descontentamento podia ser facilmente manipulado por outras categorias de
pessoas dispostas a quebrar a ordem: questões ligadas à abolição do tráfico de escravos,
à proteção dos interesses dos negreiros, ou à prossecução e exclusão dos filhos da terra
dos postos administrativos uniram contra a metrópole residentes de origem social e
racial diferente.
As revoltas e os conflitos que aconteceram durante este período foram oficialmente
considerados como tentativas de se unir ao império brasileiro. Provavelmente, a maioria
das pessoas denunciadas às autoridades como membros do ‘Partido Brasileiro’ não
passavam de vítimas da luta constante para o controle de fundos e créditos locais. 4 Os
residentes mais influentes, divididos em facções rivais, competiam entre si - e com os
portugueses enviados da metrópole - para alcançar os postos administrativos mais
importantes ou para obter nomeações no setor judiciário, na alfândega ou como oficiais
da fazenda. Por meio destes cargos, eles tinham a possibilidade de promover seus
3
Spalding, “Angola e a Independência do Brasil”, pp. 33-34.
4
Dias, “A sociedade colonial de Angola e o Liberalismo Português”, p. 272.
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interesses comerciais, não pagar impostos e taxas de alfândega, ganhar precedência
sobre seus rivais e desviar recursos públicos em benefício próprio. 5 Dentro desse
contexto, aderir a princípios de nacionalismo (seja português ou brasileiro), absolutismo
monárquico ou constitucionalismo liberal era, na maioria dos casos, uma das formas de
consolidar uma estratégia que visava perseguir mais urgentes e pragmáticos objetivos a
curto prazo.
A ameaça da separação alcançou o ponto mais alto durante o período de confusão
política causada pela temporária suspensão do tráfico com o Brasil que precedeu o
reconhecimento da independência brasileira por parte de Portugal (1825). Como pode se
imaginar, o ‘Partido Brasileiro’ ganhou bastante popularidade entre os que mais deviam
ao tesouro real. Em 1823, o seqüestro de propriedade privada pertencente a devedores
locais e uma série de ataques retaliatórios por parte das autoridades portuguesas contra
os navios negreiros brasileiros provocaram revoltas em Luanda e - especialmente - em
Benguela onde, segundo os insistentes boatos, em 1824 os comerciantes juraram
fidelidade ao Imperador Pedro I. O historiador Varnhagen nos informa que, depois da
proclamação de independência, no Brasil “chegou a notícia de que Benguela tinha
aclamado o Imperador Pedro I, enquanto Luanda não pôde fazer o mesmo por causa da
oposição do bispo”. 6 De acordo com Rebelo da Silva, em Benguela o motim explodiu
nas barracas do exército colonial no dia 7 de Novembro de 1823, e foi chefiado por
soldados sicilianos e napolitanos que até conseguiram capturar o governador, antes da
repressão final. 7
Mais informações sobre o descontentamento em Luanda são fornecidas por um
relatório enviado ao governo central pelo Governador-Geral Cristóvão Avelino Dias,
que nos mostra o outro lado da moeda: “os habitantes deste município parecem não
entender o sentido de palavras quais ‘liberdade’ ou ‘igualdade’, tal como sua arrogância
e falta de respeito perante as autoridades bem o demonstra. Quando desembarquei em
Luanda, a província estava sob o controle de um club de mercantes de escravos. Agora,
5
Em particular, no Arquivo Histórico Ultramarino abundam as fontes relativas aos abusos e
à má gestão de bens e propriedades dos órfãos. Ofícios do Governador-Geral Nicolau de
Abreu Castelo Branco, AHU, Angola: 04/09/1824, box 145, doc. 76; 23/11/1824 box 146,
doc. 58; 19/10/1825, box 149-A, doc. 53.
6
Francisco Adolfo de Varnhagen, “História da Independência do Brasil” in Revista do
IHGB, vol. 173 (Rio de Janeiro, 1938), p. 178...
7
Rebelo da Silva, Relações entre Angola e Brasil 1808-1830 (Lisboa: AGU, 1970), p. 241
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as despesas do batalhão expedicionário, junto com a diminuição da renda pública
causada pela interrupção do comércio com o Brasil, me obrigaram a seqüestrar bens e
propriedades que pertenciam aos maiores devedores inadimplentes da cidade. Em
conseqüência disso, estes facciosos tentaram convencer oficiais e soldados a desertar, na
esperança de anular as suas dívidas simplesmente integrando-se ao Brasil e pedindo a
proteção do seu novo governo: e até conseguiram, porque a tropa, insatisfeita com o
soldo recebido, só queria deixar esta terra insalubre. A causa principal do tumulto, entre
outras tantas, é mesmo o desejo de integrar-se ao Brasil (…) O ‘Partido Brasileiro’
continua a crescer mais forte a cada dia e esta gente olha para o Brasil como a sua pátria
natural”. 8
Se Luanda, sede do governo, mantinha relações mais estreitas e frutíferas com a
metrópole, Benguela estava mais perto do Pernambuco do que de Lisboa em virtude do
intenso comércio marítimo e oferecia um suporte relativamente maior à causa Brasileira
também por causa do número de habitantes brasileiros que ali residiam. Mas afinal de
contas, pouco importa quanto intenso fosse o desejo local de se separar da metrópole, a
falta de suporte recebido pelo governo brasileiro acabou por frear entusiasmo e
confiança.
De acordo com o tratado de independência assinado no Rio de Janeiro no dia 29 de
Agosto de 1825 - e ratificado por Portugal a 15 de Novembro do mesmo ano – o Brasil
passava a ser considerado como um império separado dos reinos de Portugal e
Algarves; El-Rei João VI concedia o título de Imperador ao filho Pedro; os direitos de
portugueses e brasileiros haveriam de ser respeitados, assim como todos seus bens e
propriedades, ao fim de restabelecer o mais cedo possível as relações comerciais entre
os dois países. Mas, sobretudo, obedecendo ao pedido das Cortes - justamente
preocupadas com a brecha aberta na soberania portuguesa pela secessão do Brasil -
Pedro I prometeu que nunca tomaria em consideração qualquer proposta procedente de
colônias portuguesas que desejassem se unir ao império brasileiro. 9
No dia 16 de Abril de 1826, o tratado de aliança entre Portugal e o Brasil foi
celebrado com uma missa solene na catedral de Luanda, presenciada pelo Governador-
8
Ofício do Governador ao Conte de Subserra, AHU, Angola, 12/10/1823, box 68.
9
Maria Cândida Proença, A Independência do Brasil (Lisboa: Edições Colibri, 1999), p. 81.
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General e pelos representantes de nobreza, clero secular e regular, câmara municipal,
residentes e nativos. 10
Imóvel, a colônia aceitou seu destino e viu o Brasil se afastar.
A partir desse momento, as relações entre Brasil e Angola eram destinadas a
enfraquecer progressivamente, mas isso não significa que a forte influência consolidada
durante séculos de trocas ao longo da costa africana se apagou de repente. Em
particular, no que diz respeito às trocas culturais dentro do triângulo luso atlântico, não
é possível descurar as freqüentes referências ao movimento de famílias angolenses para
os portos pernambucanos de Recife, Olinda e Porto de Galinhas.
Em Pernambuco muitas famílias angolenses tinham sua segunda residência e
negócios a tratar, como no caso do pai de José Da Silva Maia Ferreira, o autor de
Espontaneidades da Minha Alma, a primeira obra publicada por um autor africano de
língua portuguesa, em 1849. 11
No que diz respeito à formação de poeta do autor que hoje consideramos como o
fundador da literatura angolana, portanto, os livros lidos por Maia Ferreira em Luanda
ou no Rio de Janeiro podiam também ter sido encontrados por ele mesmo ou por seus
patrícios no Recife, ou trazidos de volta por angolenses que tinham passado um tempo
em Olinda, atraídos pela qualidade dos seus estudos jurídicos. Afinal das contas, a zona
Recife-Olinda oferecia cursos de educação superior reconhecidos em todo o mundo de
língua portuguesa, tinha jornais imprimidos desde 1825 e hospedava famílias de
comerciantes angolenses envolvidos no tráfico.
Francisco Soares colecionou pacientemente todas as referências a obras literárias
mencionadas na secção de anúncios e vendas do Diário de Pernambuco. Em linhas
gerais, o resultado mostra um milieu cultural ainda fortemente marcado pela segunda
metade do século XVIII: Rousseau, Mirabeau, La Fontaine e Boileau mais, com certeza,
clássicos como Cícero, Lívio, Horácio, Ovídio, Quintiliano e Santo Agostinho. Além
10
Ruela Pombo, “O Brasil Colonial…” (Luanda, 1932), p. 16.
11
Carlos Pacheco, José da Silva Maia Ferreira, novas achegas para a sua biografia
(Luanda: UEA, 1992), p. 179.
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disso, a existência do curso superior de estudos jurídicos em Olinda explica a
predominância dos textos sobre jurisprudência, ética, retórica e oratória. 12
O panorama bibliográfico sugerido pelos anúncios de venda ou procura de livros
publicados no Diário de Pernambuco pode então ser definido de pré-romântico.
Suspiros Poéticos e Saudades, a obra de Gonçalves de Magalhães que mais do que outra
representa o romantismo brasileiro, só apareceu em 1836, dois anos depois da chegada
de Maia Ferreira no Rio de Janeiro. Contudo, apesar de desenvolver em seguida uma
atitude critica perante algumas das ramificações do movimento no Brasil, sem dúvida
Gonçalves de Magalhães tinha pelo menos uma característica em comum com Garrett e
Herculano, referências igualmente assimiladas na gênese da obra de Maia Ferreira: uma
formação influenciada por cultura iluminista, literatura neoclássica e oratória
revolucionária procedente de Paris. Como já sugerido por Mário António, partindo de
uma visão em retrospectiva das principais obras e autores referenciados por Maia
Ferreira na sua obra - junto com Alexander Pope, Lamartine, Hugo, André Chenier e
alguns poetas ultra-românticos portugueses - se destacam Homero, Cícero e Fenelon,
três referências que aparecem também na bibliografia mencionada acima. 13
O melting pot cultural ativo em Olinda, Recife ou Rio de Janeiro duas décadas antes
do aparecimento do livro de poemas Espontaneidades da Minha Alma com certeza
deixou algum rasto num texto cujo background bibliográfico - mesmo sendo mais
condicionado pelo contato com os círculos literários cariocas que inauguraram o
Romantismo Brasileiro do que diretamente influenciado pelo que veio antes - é muito
parecido. 14 Embora elementos neoclássicos apareçam só raramente nas obras publicadas
pelos intelectuais Angolenses do século XIX, podemos afirmar que esta influência
subterrânea produziu personalidades ávidas de retórica pré-romântica. Nesse sentido, o
intercâmbio cultural e literário entre Angola e Brasil nunca pode ser subestimado ou
considerado esgotado em conseqüência da interrupção das atividades ligadas ao tráfico
de escravos.
12
Francisco Soares, “Um percurso Lusotropical: migração e bibliografia entre Luanda e
Recife/Olinda no princípio do século XIX”, in Lusotropicalismo, uma teoria social em
questão, Adriano Moreira & José Carlos Venâncio (Lisboa: ed. Vega, 2000), p. 132.
13
Mário António, A formação da Literatura Angolana 1851-1950 (Lisboa: Imprensa
Nacional Casa da Moeda, 1997), pp. 30-31.
14
Soares, “Um percurso Lusotropical...”, p. 141.
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Como brevemente esboçado, a época em que Maia Ferreira viveu foi caracterizada
por profundas mudanças históricas em Angola, principalmente devido à grave crise
econômica que seguiu a abolição do comércio de escravos para o Brasil. Além disso, a
introdução de ideais liberais e da imprensa clandestina possibilitou, pela primeira vez na
colônia, a elaboração de sentimentos nativistas. O nativismo, precursor do
nacionalismo, foi a expressão de um grupo social cujos interesses começaram a divergir
significativamente dos projetos da metrópole. Esta comunidade só levantará a voz em
protesto contra o regime colonial a partir do último quartel do século XIX, mas é
precisamente agora que uma nova consciência se manifesta pela primeira vez em
literatura.
A família de José da Silva Maia Ferreira (1827-1867) deixou Angola quando ele
tinha sete anos. Seu pai, um comerciante miguelista envolvido no tráfico, teve que fugir
para o Rio de Janeiro depois do fim definitivo da monarquia absoluta em Portugal.
Educado na capital do império brasileiro, Maia Ferreira freqüentou os círculos literários
daquele vivaz, ainda que restrito, milieu cultural. De qualquer maneira, em 1845 seu pai
faliu e Maia Ferreira, depois de uma estadia em Portugal, voltou para Angola a fim de
começar uma carreira na administração pública. Durante os seis anos passados em
África - talvez interrompidos por mais uma breve estadia no Brasil - Maia Ferreira
experimentou pessoalmente todas as dificuldades e o constrangimento que os filhos da
terra mais instruídos tinham que enfrentar na colônia. Este período da vida de Maia
Ferreira permanece bastante nebuloso devido às freqüentes viagens do poeta e à escassa
e espalhada documentação disponível. Os seus biógrafos mais fiáveis, Mário António,
Carlos Pacheco e William P. Rougle discordam freqüentemente sobre as datas ou sobre
detalhes relativos à atividade laborativa de Maia Ferreira. No entanto, deixando de lado
esse gênero de disputas, nessa altura o que mais importa é sublinhar quanto fosse difícil,
para a descendência de uma antiga família euroafricana arruinada pela cessação do
tráfico, encontrar um lugar dentro da nova sociedade colonial. Como sublinhado por
Rougle num ensaio escrito depois do achamento da correspondência americana de Maia
Ferreira, o poeta lutou a vida inteira a busca de um trabalho que pudesse garantir
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estabilidade financeira à família. 15 Em Angola, ele trabalhou seja em Luanda que em
Benguela como servidor público ou empregado da alfândega. Tudo o que conseguiu foi
uma série de empregos temporários, vagas abertas para cobrir o intervalo de tempo entre
a partida e a chegada de funcionários portugueses. 16
Por meados do século XIX, época em que mestiços como Maia Ferreira ainda
figuravam entre os mais ricos e instruídos indivíduos da colônia, o agravamento da crise
econômica e social em Angola contribuiu a tornar amargas as relações entre
euroafricanos e portugueses. Em Benguela Maia Ferreira entrou em contato com um
grupo de mestiços igualmente descontentes. Eles começaram a chamar-se filhos da
terra, a reunir-se em clubes como a União ou a Jovem Luanda - agremiações de
inspiração maçônica que abrigavam as atividades políticas dos seus membros mais
antiportugueses - e a desenvolver sentimentos nativistas, exprimindo-os principalmente
por meio da disseminação de pasquinades e outras “indecentes peças anônimas”
endereçadas contra as autoridades e, mais em geral, contra os portugueses da colônia. 17
Em Benguela, o Governador Tavares de Almeida perseguiu este grupo impiedosamente,
demitindo os filhos da terra do serviço público por motivos fúteis para os substituir com
confiáveis cidadãos portugueses, pouco importa se de dúbia reputação.18
O envolvimento com este tipo de ‘amizades perigosas’, entre as quais temos que
mencionar um amor proibido com a mulher de um oficial público, acabou por forçar a
saída de Maia Ferreira: o poeta deixou Benguela e um funcionário português logo
tomou seu lugar no secretariado do governo. 19 De volta a Luanda, trabalhou por um
tempo como escriturário da alfândega antes de ser despedido mais uma vez por “ter
15
Rougle, “José da Silva Maia Ferreira, poeta angolano, correspondente brasileiro, homem de
negócios americano”, in Colóquio-Letras, n° 120 (Lisboa, 1991), p. 186.
16
“Como torna-se necessário designar um secretário ad interim para os trabalhos da comissão
mista anglo-portuguesa estabelecida nesta cidade, na espera da chegada do Doutor Luís
António Baptista, nomeado por Sua Majestade (…) ao fim de não prejudicar os programas da
dita comissão, o Governador-Geral nomeou José da Silva Maia Ferreira à posição acima
mencionada”. BGGPA, n° 67, Luanda, 19/12/1846.
17
Pacheco, José da Silva Maia Ferreira, novas achegas para a sua biografia (Luanda: UEA,
1992), p. 63.
18
Pacheco, José da Silva Maia Ferreira, novas achegas..., p. 60.
19
Para saber mais sobre o romance entre Maia Ferreira e Dona Maria Paula da Gama
Teixeira de Cravela ver Pacheco, José da Silva Maia Ferreira: o homem e a sua época
(Luanda: UEA, 1990). Maia Ferreira dedicou à dama Portuguesa o poema Já não tenho fé,
revelando como a sua turbulenta vida sentimental o levou a “desconfiar do mundo e desprezar
terra e céu”.
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vergonhosamente perturbado a ordem pública, pondo em perigo a segurança pública e
faltando-lhe a responsabilidade moral e civil para exercer tal função”. 20 Indesejável em
sua própria terra, em 1851 Maia Ferreira embarcou para os Estados Unidos. Ele viveu
principalmente em Nova Iorque até 1864, quando regressou ao Rio de Janeiro a fim de
passar os últimos anos de sua vida.
Nos cinqüenta e seis poemas de Espontaneidades da Minha Alma, na maioria
dedicados ao amor e à amizade, Maia Ferreira também evocou a peculiaridade da sua
terra natal produzindo, sob a influência de modelos brasileiros e europeus, uma
descrição pitoresca da paisagem angolana. Comentando este duplo imprint
(eurobrasileiro e africano, respectivamente) o crítico Angolano Carlos Ervedosa afirmou
que Maia Ferreira é um magnífico exemplo do fenômeno de assimilação cultural. 21 Por
um lado, o poeta assume uma atitude tipicamente colonial, mostrando seu orgulho em
ser um leal súdito português e pintando retratos de nativos em puro estilo cartão-postal;
mas, por outro lado, ele foi o primeiro a desenvolver um novo regionalismo africano,
abrindo o caminho para a criação da literatura Angolana moderna. A autoconsciência da
africanidade do autor constitui o tema principal de dois entre os seus poemas mais
conhecidos e quase homônimos: À minha terra e A minha terra.
Em À minha terra o poeta, de volta de uma longa viagem, o autor sente-se
profundamente comovido à vista da costa angolana: “É minha terra querida, / Toda da
alma, toda-vida.” 22 Em seguida, o adjetivo possessivo minha é repetido com insistência,
como se o poeta quisesse literalmente tomar posse da terra que o viu nascer: “É minha
terra querida (…) minha terra primorosa (…) da minha terra a beleza (…) da minha
terra natal”.
Embora fosse às vezes afetado e amaneirado, o seu amor por Angola levou-o a
retratar o seu país e a fundar um novo tipo de regionalismo, que resulta evidente em
poemas como Benguelinha, composição dedicada à ave da qual a cidade herdou o
nome, e A minha terra, que resume perfeitamente o dilema dos assimilados, cuja
formação cultural estritamente eurobrasileira tinha que ser adaptada à nova exigência de
20
Portaria provincial n° 239, 25/01/1851, documento citado por Salvato Trigo no prefácio de
Espontaneidades da Minha Alma (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002), p. 9.
21
Ervedosa, Roteiro da Literatura Angolana (Havana: UEA, 1985), p. 21.
22
José da Silva Maia Ferreira, “À minha terra”, Espontaneidades da Minha Alma (Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002), p. 118.
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afirmar um sentimento de identificação com a terra natal africana. O poema é quase
inteiramente construído com base na confrontação entre Angola e Portugal. Comparada
com a metrópole, a terra de Maia Ferreira parece ter pouco a oferecer, o incipit do
poema sendo minha terra não tem seguido pelas principais atrações de Portugal: seus
rios, fontes e costas; seus celebrados poetas; seu glorioso passado. A esse leitmotiv,
Maia Ferreira opõe o termo restritivo só tem, que é todavia compensado pela poesia
intrínseca à paisagem africana, percebida pelo autor por meio de seus sentidos
despertados: a vista de ondas de areia branca, o canto da benguelinha e o calor do sol.
Na segunda parte do poema, Maia Ferreira põe em evidência algumas peculiaridades
do seu país, celebrando a flora e fauna africana, mas também os africanos, sem esquecer
as mulheres angolanas, tão diferentes das européias por causa da sua natureza honesta,
generosa e da sua falta de afetação:
23
Maia Ferreira, “A minha terra”, Espontaneidades da Minha Alma, p. 27.
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crescimento de um sentimento nativista destinado a se transformar progressivamente em
consciência nacional.
A análise das trocas de estruturas literárias entre Brasil, Angola e Portugal mostra
claramente que a poesia angolana - e mais em geral a literatura angolana - deu seus
primeiros passos ao seguir as pistas deixadas pelas duas literaturas lusófonas já
formadas. Um processo que encontra a sua origem não só na imitação de referências
literárias paradigmáticas como, por exemplo, Gonçalves Dias, mas também no
conhecimento e assimilação de obras hoje pouco estudadas - ou até quase totalmente
desconhecidas, como no caso da maioria dos poetas ultra-românticos portugueses
menores - mas que naquela época eram consideradas paradigmáticas, dignas de ser lidas
ou simplesmente constituíam o único material de leitura disponível.
Neste sentido, o seguinte caso de plagiarismo nos oferece um exemplo tangível da
maneira com que escolas de pensamento e modelos europeus ‘viajavam’ ao longo dos
três vértices do triângulo atlântico, acabando por ser assimiladas na remota província de
Angola. Na edição do Almanach de Lembranças Luso Brasileiro de 1877 aprendemos
que o poema enviado de Moçâmedes por Valentim Augusto Monteiro da Silva,
publicado na edição de 1866, é mera replicação de uma composição escrita pelo poeta
português João d’Aboim.
Eis o texto do poema em questão:
Infelizmente não foram encontradas fontes que nos permitam de saber mais sobre o
lugar de nascimento do plagiário ou de conhecer mais detalhes acerca da sua vida em
Angola e da sua atividade literária. As alterações introduzidas por Monteiro da Silva são
24
Valentim Augusto Monteiro da Silva, POESIA, Novo Almanach de Lembranças Luso
Brasileiro (Lisboa: Lallemant Frérès, 1877), p. 5.
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geralmente insignificantes, mas a transformação dos últimos dois versos da composição
merece atenção : “Sou homem e eu sinto, eu sofro, eu gemo, / sua presença no mundo
me pode matar” torna-se “Sou homem que sofre, que ama e que sente, / Que sente e não
póde teu seio abrandar”.
A passagem da primeira à terceira pessoa revela o maior destacamento do autor,
acentuado no último verso, onde a possível morte do poeta foi substituída com a
preocupação pela pessoa amada. De acordo com Francisco Soares e suas pesquisas
sobre a poesia angolana do século XIX, concentrando a atenção do leitor sobre uma
segunda pessoa antes do que sobre o sujeito poético, Monteiro da Silva recorre a um
expediente dramático bastante comum entre os poetas angolenses. 25 Aliás, tal
característica, ganha um sentido particular dentro de uma sociedade em que indivíduos
ou famílias eram expostos a repentinas e as vezes imprevisíveis alterações do seu status
social - em alguns casos mais do que uma vez na vida, como os casos paradigmaticos de
outros intelectuais ativos em Angola na época quais Arsénio Pompílio Pompeu de
Carpo e Joaquim António de Carvalho e Meneses parecem confirmar. Dadas as
condições anteriormente apontadas, a coabitação era mais aberta e penetrante: os laços
familiais ou sociais adquiriam um valor especial e, muitas vezes, deles dependia a
possibilidade de alcançar uma boa posição ou fechar um bom negócio, por exemplo. De
qualquer maneira, o simples fato de que um poema escrito por João d’Aboim tem sido
lido por alguém em Angola é por si bastante significativo.
Jornalista, dramaturgo e poeta, João Correia Manuel d’Aboim (1814-1861) publicou
muitas obras, entre as quais se destacam O Livro da Minha Alma e Devaneios Poéticos,
que são dignos de menção, visto que estes títulos são muito semelhantes a
Espontaneidades da Minha Alma e Delírios de Joaquim Dias Cordeiro da Matta (1888),
outro pioneiro da literatura angolana. Além disso, João d’Aboim viveu no Brasil -
exilado por causa do seu envolvimento político durante o período das revoluções
liberais - onde encontrou Maia Ferreira. 26 Talvez Monteiro da Silva teve acesso à obra
de d’Aboim porque foi um entre os muitos colonos portugueses que deixaram o Brasil
para fundar e povoar Moçâmedes durante os anos 40, mas a divulgação em Angola de
25
Francisco Soares, “Se: percurso Lusotropical de uma estrutura literária”, Revista
Internacional de Estudos Africanos, nn° 16-17 (Lisboa: IICT, 1992-94), p. 259.
26
Como confirmado por Carlos Pacheco, Mário António e Gerald Moser no prefácio da
edição de Espontaneidades da Minha Alma publicada em 1980 (Lisboa: Edições 70, 1980).
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livros ou poemas escritos por este pouco conhecido autor português poderia também ser
atribuída ao próprio Maia Ferreira. O poeta angolense poderia ter disseminado ou
ajudado a disseminar a obra do seu amigo d’Aboim entre os seus patrícios, pois que
nenhuma menção relativa ao Livro da Minha Alma pode ser encontrada nos anúncios
dos jornais da época.
A influência deste texto sobre Espontaneidades da Minha Alma é evidente e
manifesta, a partir do subtítulo escolhido por Maia Ferreira, “Às Senhoras Africanas”.
Na introdução do seu livro, D’Aboim cita uma carta escrita a Gonçalves Dias, seguida
pela resposta do poeta brasileiro. Agradecendo Gonçalves Dias por tê-lo recebido de
braços abertos no Brasil, d’Aboim despede-se dizendo: “É minha intenção dedicar este
livro às senhoras brasileiras...” 27 O fato de Dias e d’Aboim serem amigos é também
significativo: provavelmente Maia Ferreira teve a possibilidade de conhecer Gonçalves
Dias por meio do amigo comum, ou vice-versa. Talvez isso possa explicar a razão por
que os poemas de Espontaneidades da Minha Alma devem tanto à obra de Gonçalves
Dias, cuja Canção do Exílio, por exemplo, inspirou os versos de A minha terra. 28
Entretanto, em primeira leitura, quase parece que o poema de Maia Ferreira,
apresentando elementos que denotam a superioridade do seu modelo de referência,
reverte completamente a postura ‘standard’ geralmente requerida pela tarefa de exaltar
qualquer pátria. De certo modo, o sentido de negatividade que emerge da seqüência de
imagens evocadas pelo texto reflete o desconforto de quem reconhece as deficiências do
próprio país. Ao mesmo tempo, é possível detectar um certo grau de ambigüidade
especialmente nos versos finais, quando a alusão do autor ao Brasil parece temperar
com um pouco de ironia uma atitude senão suspeitosamente lealista e reverente.
Considerando que a recente independência do Brasil ainda constituía algo como uma
ferida aberta no orgulho nacional e no imaginário português, não é sem zombaria que
Maia Ferreira decidiu fechar o poema com a celebração das maravilhas daquele país,
colocando o Brasil ao mesmo nível de importância do seu ex-colonizador. Além disso,
27
Soares, “Se: percurso Lusotropical de uma estrutura literária”, pp. 260-261.
28
O famoso incipit de Canção do Exílio providenciou as imagens utilizadas por Maia
Ferreira na tentativa de definir a essência de um país: “Minha terra tem palmeiras, / Onde
canta o Sabiá; / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá. / Nosso céu tem mais
estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais
amores” Gonçalves Dias, Poesia e Prosa completas (Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar,
1998), pp. 105-106.
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sugerindo que Angola, cujo único recurso era a “solidão de um deserto”, não tinha
ilustres eruditos e maravilhas artísticas, o poeta, ainda que indiretamente, aponta o dedo
à administração colonial. A crítica dirigida por Maia Ferreira contra a maneira com que
Portugal administrava a colônia de Angola resulta ainda mais evidente no panegírico
dedicado ao Governador-Geral Adrião Acácio da Silveira Pinto (1848-1851), no qual o
poeta denuncia a cobiça de seus predecessores e invoca um “melhoramento na província
morta, abandonada pelo mundo, solitária e triste”. 29
Embora resolvidos a celebrar Angola como pátria e reconhecendo que os verdadeiros
beneficiários de suas riquezas e oportunidades - especialmente no que diz respeito aos
postos mais altos na administração civil e militar - teriam que ser os filhos da terra, é
preciso lembrar aqui que a geração de Maia Ferreira nunca contestou abertamente o
sistema colonial. Exceção feita para a elite econômica da colônia que tentou, em vão,
consolidar e tornar autônomo o eixo comercial Angola-Brasil durante os anos 30, a
natureza dos laços que uniam Angola a Portugal foi raramente posta em discussão antes
do último quartel do século XIX. A elite local só queria manter seus privilégios e o
nativismo, como sugerido por Carlos Pacheco, caracterizava-se principalmente pela
oposição entre nativos e estrangeiros, ou seja, entre ‘portugueses africanos’ e
‘portugueses de Portugal’. 30 Portanto, o conceito de pátria limitava-se às diferenças
geográficas, antropológicas e culturais que opunham Angola aos outros países
estrangeiros, inclusive Portugal. Referências a Angola vista como uma entidade
histórica distinta e concreta só apareceram no final do século XIX, em textos escritos
por José de Fontes Pereira e outros jornalistas ou intelectuais angolenses. Eis porque
muitas das acusações dirigidas a Maia Ferreira - cuja alienação cultural e dependência
dos modelos europeus e brasileiros tendem a ser consideradas por alguns críticos como
causas de uma certa ‘falta de angolanidade’ presente nos seus poemas - parecem
injustificadas se compararmos a obra do poeta ao contexto histórico-cultural em que
esta foi originalmente concebida e escrita.
É preciso lembrar que a consciência nativista ou regionalista de Maia Ferreira refletia
a consciência social de um homem que tinha que enfrentar os problemas da colônia
29
Maia Ferreira, “Dedicação ao Excelentíssimo Senhor Adrião Acácio da Silveira Pinto”,
Espontaneidades da Minha Alma, pp. 23-25.
30
Pacheco, O nativismo na poesia de José da Silva Maia Ferreira, p. 32.
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durante o período 1845-1849, um período que viu a emergência de movimentos
nativistas e sentimentos de lusofobia em reação ao controle e à pressão colonial que iam
se tornando cada vez mais asfixiantes. Para dizer o mínimo, parece prematuro tirar
conclusões precipitadas sobre a angolanidade do poeta num contexto parecido. Não
obstante tudo, Maia Ferreira - para usar as palavras de Gerald Moser - “foi o primeiro a
ousar dedicar poesias ao território africano escrevendo em Português, criando versos
simples que inauguraram um novo tipo de regionalismo. Por essa razão, podemos
afirmar que Espontaneidades da Minha Alma abriu o caminho para a formação da
literatura angolana”. 31 Ademais, como também observado por Manuel Ferreira, a
construção e a aquisição de uma consciência nacional reside principalmente numa forte
consciência regional. 32 Esta primeira abordagem aos temas de identidade e identificação
com o território contribuiu, seja como ponto de partida seja como memento constante, à
elaboração das reivindicações da elite euroafricana nas gerações seguintes.
Na obra de Maia Ferreira, o nascimento da consciência regional, misturada a um
sincero amor pela sua terra natal, se converteu numa reivindicação de pertença a
Angola, que:
E, na poesia A minha terra, este forte apelo à identidade nacional foi repetido duas
vezes.
31
Gerald Moser, introdução a Espontaneidades da Minha Alma (Lisboa: Edições 70, 1980),
pp. xxix-xxx.
32
Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 1 (Lisboa: ICALP,
1977), p. 13.
33
Maia Ferreira, “A minha terra”, Espontaneidades da Minha Alma, p. 30.
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Introdução
Por tratar-se da descrição de uma experiência no campo didático e ter como principal
objetivo o compartilhamento desta experiência como forma de inspiração aos
professores de lingua portuguesa para a elaboração de suas próprias estratégias de
ensino de produção de textos, não nos ateremos a questões teóricas no que diz respeito
aos fenômenos lingüísticos observados na escrita de textos no espaço novo da internet –
certamente relevantes para os congressistas deste simpósio sobre Literatura e
Ciberespaço.
As fases do projeto
Trata-se de uma narrativa aberta à produção de textos num curso de Português para o
Ensino Médio, visando o ensino de elementos da narrativa a partir da mobilização de
alunos no que diz respeito ao contexto social em que vivem e com o qual podem extrair
os elementos que tornem verossímil o desenvolvimento da narrativa ficcional.
O professor escreveu um curto primeiro capítulo e cada uma das três classes é
responsável pela produção dos demais capítulos. A cada mês vamos acrescentando um
novo capítulo, conforme a escolha (quase) livre dos alunos e ao término do ano teremos
(espero!) três obras diferentes e de autoria coletiva.
A princípio, pretendo que a cada mês tenhamos um novo capítulo inserido na Novela
Coletiva, escolhido pela própria classe, sob orientação do professor. Sugiro que os
textos produzidos tenham em torno de 500 palavras, algo em torno de uma página e
meia, mas não devemos ser rigorosos com estas regras. A criatividade e a boa redação
serão sempre os critérios mais importantes.
Mal tinha parado o elevador e antes de abrir a porta o pai foi logo atirando a frase
favorita: “Vais encontrar o mundo, Sérgio. Coragem para a luta”. Depositou as duas
malas no chão, tocou a campainha muitas vezes, contendo a impaciência. Uma moça
atrapalhada atendeu, mandou entrar. O homem fingiu achar normal os três rapazes e a
moça morarem juntos no mesmo apartamento, tentou parecer jovial, e aí, legal, beleza,
então. Constrangido, abraçou o filho e saiu sem muitas palavras. Juízo, hein, não
esquece de ligar.
Morando tão perto, Sérgio usava a bicicleta no trajeto para a Faculdade. Adorava
pedalar pelas ruas do campus, um lugar cheio de ipês que forravam o chão de amarelo.
A vida universitária era boa. As aulas eram boas. Até a comida do bandejão era boa. O
problema é que não conseguia conversar com os colegas. Todo mundo do curso de
Biologia parecia já se conhecer a tempos, falavam alto, riam alto e ele acabava isolado.
Um dia foi abordado por uma moça de fala lenta e gestos autômatos, que começou a lhe
falar de Jesus Cristo, chamou-o para um fim de semana no acampamento de sua
comunidade espiritual. Logo percebeu que se ficasse sentado sozinho era um prato
cheio para estes grupos religiosos que atacavam sempre os solitários.
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Com o tempo parou de telefonar para a mãe. Os cartões de telefone estavam sempre
amassados porque ele colocava no bolso de trás da calça e não percebia que quando
andava de bicicleta, o selim inutilizava os cartões. Depois, abandonou a bicicleta
também. São Paulo não era Cajuru, onde sempre viveu com a família, melhor não se
arriscar. Passou a usar os coletivos. Mesmo que a distância fosse pequena, sentava no
ponto e esperava um tempão pelo ônibus lotado. Uma tarde, voltando da Faculdade, não
conseguiu descer no ponto do seu prédio, foi parar no Largo de Pinheiros. Perambulou
pelas ruas sem compromisso, pra que voltar pro apartamento? Entrou num bar, depois
num Teatro, num Forró. Aquilo era muito movimentado, a noite não dormia em São
Paulo. Amyr Klink entre céu e mar, Sérgio estava descobrindo a cidade.
ruas da cidade de São Paulo que, aos poucos, começa a descobrir, como uma espécie de
cavaleiro solitário urbano.
O Enredo deve ser simples e não pode dominar a ação, evitando-se os episódios
espectaculares, pois o personagem é, acima de tudo, um observador do que acontece
com os habitantes da cidade. Trata-se de um jovem interiorano de 20 anos vem para São
Paulo estudar Biologia na Universidade, onde divide um apartamento com mais três
colegas que ainda não conhece (dois rapazes e uma moça). Socialmente inadaptado
desde a infância, começa a desenvolver o hábito de andar sozinho a pé pelas ruas de São
Paulo, descobrindo a grande cidade. Paralelamente, alguns conflitos de relacionamento
com os novos colegas podem enriquecer o enredo.
Este projeto foi exposto – além da cidade de São Paulo, onde foi elaborado – em
congressos em Caracas, na Venezuela, e em Buenos Aires, na Argentina, com a
presença de professores de outros países, que se manifestaram desejosos de explorar as
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elaboração da escrita direcionada a um leitor que ele deverá considerar existente nas
mais diversas esferas virtuais e ou idealizadas que se abre ao alcance ilimitado da
intranet ou mesmo da internet.
Por isso, ao postar cada novo capítulo, pretende-se a interação com o público leitor.
Em princípio, objetiva-se a comunidade escolar diretamente ligada ao projeto, através
da intranet. Mas pode ser ampliado para a manifestação dos leitores de fora da
comunidade, caso se estenda para além dos limites da escola, uma vez que o projeto
também pode ser disponibilizado para a rede externa.
Referências
FAVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Editora Ática, 2007.
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FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto : leitura e
redação. São Paulo: Ática, 2003.
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
d'água, 1995.
SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto
curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
Introdução
A Gazeta de Notícias ocupou uma posição de destaque em meio ao jornalismo
brasileiro, conforme se pode constatar pela bibliografia crítica, que é unânime em
afirmar a importância de suas inovações técnicas e de sua inusitada democratização da
informação. Para a reconstrução das condições históricas e da atuação cultural do
periódico, pretende-se promover uma combinação da análise das condições materiais e
técnicas com o exame do contexto sócio-cultural no qual a publicação está inserida,
atentando para as considerações teóricas de Tania Regina de Luca (2006, p. 139): “O
conteúdo em si não pode ser dissociado do lugar ocupado pela publicação na história da
imprensa, tarefa primeira e passo essencial das pesquisas com fontes periódicas”.
Dessa forma, o estudo do perfil editorial da Gazeta de Notícias pretende averiguar
não só o conteúdo publicado ao longo de sua trajetória, mas também a sua forma gráfica
(formato, diagramação, disposição das matérias, recursos técnicos), as estratégias de
mercado (métodos de venda, distribuição e uso da publicidade), o corpo de
colaboradores, o público-alvo, os objetivos propostos, a orientação ideológica e a
função social exercida pelo periódico. Para tanto, será de fundamental importância a
análise dos diversos depoimentos de intelectuais firmados por ocasião de aniversários
do jornal e de homenagens à morte de seu redator-chefe, e também das apreciações
expressas em histórias da imprensa e demais pesquisas sobre a atividade jornalística.
Para além da análise da materialidade e do conteúdo da publicação, é preciso atentar
em aspectos, influências e forças ocultas que não estão estampadas de maneira patente
nas páginas do periódico. Desse modo, cumpre averiguar o processo que motivou a
criação e organização do periódico, os interesses, escolhas e posicionamentos do grupo
responsável pela linha editorial, e as relações estabelecidas com instituições políticas e
associações econômicas e financeiras.
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especificidades desse contexto poderá contribuir para uma visão mais autêntica dos
Na visão de Alvaro Santos Simões Junior (2007), essa irreverência no combate das
combalidas instituições do Império constituía “uma característica essencial da Gazeta de
Notícias, cujo bom humor se refletia em quase todas as seções” (p. 119-20). Além do
humor irreverente, o autor destaca o “caráter liberal do jornal”, significativamente
evidenciado desde o primeiro ano de sua publicação, por ocasião da proibição, obtida
pelo clero junto ao Conservatório Dramático, do drama português Os Lazaristas, de
Antônio Ennes. Insurgindo-se contra a censura, a Gazeta “decidiu então publicar o texto
como folhetim” (SIMÕES JR., 2007, p. 120). Nessa linha, cumpre mencionar também a
atuação da Gazeta de Notícias na defesa da liberdade de imprensa, conforme se observa
em matéria intitulada “A polícia e a imprensa”:
A materialidade da publicação
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Em termos de composição, a Gazeta de Notícias era composta por quatro páginas por
número, divididas em oito colunas. A diagramação caracterizava-se por uma expressiva
simplicidade, carecendo de ornamentos gráficos, tais como ilustrações, vinhetas,
arabescos, destaques gráficos, entre outros recursos decorativos comumente empregados
para emoldurar as matérias publicadas. Na maioria dos casos, as matérias justapõem-se
umas às outras separadas simplesmente por um pequeno traço, sem mesmo a indicação
de títulos que permitisse identificar o assunto abordado.
De um modo geral, o conteúdo jornalístico e literário restringia-se às duas primeiras
páginas, reservando-se as duas últimas para a publicidade. O amplo espaço ocupado
pelos anúncios dos patrocinadores demonstra que o jornal procurava alcançar a sua
autonomia econômica e independência política por meio da publicidade.
A despeito da simplicidade gráfica, as condições de produção oferecidas aos
colaboradores permitem identificar a garantia de uma revisão textual cuidadosa,
conforme se depreende dos comentários emitidos pelos organizadores da edição crítica
da coletânea de contos machadianos, Histórias sem data (1884), em sua maioria
publicados inicialmente nas páginas da Gazeta:
Fundada num momento oportuno, a Gazeta soube, portanto, tirar o máximo proveito
dessa conjuntura, firmando-se como um jornal de efetiva participação nas grandes
campanhas que marcaram o Brasil nessa fase de transição, especialmente nos embates
em torno da proclamação da República e da Abolição do regime escravocrata.
A democratização da informação
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A “Gazeta de Notícias”
“Entrou hoje no sétimo ano de sua existência esse órgão da
imprensa fluminense, que tem procurado corresponder às simpatias
que lhe hão sido constantemente dispensadas pelo público.
Saudamos cordialmente ao nosso colega da manhã pelos triunfos
que tem sabido alcançar na difícil arena em que desenvolve as forças
de sua atividade; tanto mais quando, continuando em sua vida
jornalística o exemplo iniciado por outros jornais anteriores – o de pôr
ao alcance do leitor pobre o conhecimento dos grandes interesses que
sempre se agitam no país – conquistou eminente posição no
jornalismo brasileiro, deixando na retaguarda outros órgãos que,
apesar de erguidos nos antigos alicerces da longevidade e mau grado
os elementos de aristocráticas proteções de que gozam, não puderam,
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1
Publicista e político francês, redator do jornal La Presse, Emile Girardin (1806-1881) introduziu, em
1836, a técnica da publicação seriada (romance em folhetim) no âmbito jornalístico, alcançando um
aumento extraordinário das vendas do jornal.
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ensinar as filhas a ler e a escrever, para que não leiam e para que não
escrevam as cartas de namoro.
No atual momento histórico do Brasil, momento de transição,
período que para o organismo pátrio pode ser considerado eqüipotente
ao dos 21 anos, ao da emancipação e dos dentes de siso, no atual
momento histórico do Brasil, ao bom observador das coisas sociais é
evidente um lento processo de democratização, educando a alma
popular paras as reformas do porvir (Gazeta de Notícias, 3 ago. 1888,
p. 1).
Os mecanismos de consagração
2
“Os homens de letras viviam praticamente da imprensa: ela é que lhes permitia a divulgação de seus
trabalhos e o contato com o público” (SODRÉ, 1966, p. 283).
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p. 49). O fato de ser veiculada por páginas jornalísticas não dissociam dessa literatura
“os componentes de seriedade, criatividade, invenção, plasticidade e ritmo” (Idem, p.
50). Em vez disso, a imprensa, além de consagradora por excelência, afirma-se também
como um espaço privilegiado para o aprendizado e o exercício da criação literária:
Referências
LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY,
Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006, pp. 110-153.
MICELI, Sergio. Poder, sexo e letras na República Velha (estudo clínico dos
anatolianos). São Paulo: Perspectiva, 1977.
PONTES, Eloy. A vida exuberante de Olavo Bilac. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.
SIMÕES JR., Alvaro Santos. A sátira do parnaso: Estudo da poesia satírica de Olavo
Bilac publicada em periódicos de 1894 a 1904. São Paulo: Ed.UNESP, 2007.
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Introdução
O reconhecimento de que a Bíblia afirma-se como um livro que atinge seus efeitos
por meio do trabalho com a linguagem impõe a exigência de uma abordagem literária
capaz de apreender a sutileza de sua arte narrativa e a complexidade de seus recursos
linguístico-literários. Composta por histórias, personagens e situações narrativas
complexas, que não se reduzem a meras alegorias de fundo moralizante, a Bíblia se
apresenta como uma das fontes mais influentes da literatura, da filosofia e do
pensamento intelectual do Ocidente.
Além das incontáveis alusões a imagens e eventos bíblicos, evidencia-se também sua
atuação decisiva enquanto obra de referência tanto para a definição de enfoques
temáticos quanto para a escolha dos gêneros e formas literárias. Diversos autores
utilizaram-se de gêneros discursivos próprios da narrativa bíblica, como é o caso da
parábola, que influenciou decisivamente as produções literárias de autores como Sören
Kierkegaard, Bertolt Brecht e Franz Kafka.
Desse modo, este trabalho pretende demonstrar, a partir da análise de manifestações
do gênero presentes na Bíblia e nas obras dos autores citados, as similaridades que se
evidenciam no modo de configuração das propriedades formais da parábola e na
construção de uma visão de mundo paradoxal e de um efeito subversivo em relação aos
valores do senso comum.
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3. A forma do paradoxo
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O incêndio feliz
O que acontece àqueles que tentam prevenir a geração atual?
Aconteceu que um fogo estourou nos bastidores de um teatro. O
palhaço saiu para informar o público. Eles pensaram que era apenas
uma brincadeira e aplaudiram. Ele repetiu seu aviso, eles gritaram
ainda mais alto. Então eu penso que o mundo chegará a um final em
meio a um aplauso geral de todas as testemunhas que acreditam que
ele é uma brincadeira (KIERKEGAARD, 1989, p. 3, tradução minha).
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1
This is exactly what the parables require of readers, that they untie the knot for themselves; […] each
parable aims to challenge the subjective consciousness of the individual reader in its own way (ODEN,
1998, p. xiii).
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4. Narrativas de subversão
2
Para um estudo das diferenças entre fábula e parábola, conferir Sant’Anna (1998).
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Se a narrativa bíblica opera uma inversão das expectativas, uma vez que a ajuda à
vítima dos salteadores não vem das possibilidades mais esperáveis – o sacerdote e o
levita – mas de um samaritano, que mantinha uma rivalidade histórica com o povo
judeu a que pertencia o homem violentado, o texto de Brecht promove uma completa
reversão da probabilidade de uma solução positiva para a injustiça sofrida pela
personagem. O logro do garoto, somado à falta de assistência à impostura vivenciada,
traduz-se em uma ocasião oportuna para o homem, cinicamente compadecido com a
situação, aplicar um novo golpe ao menino ludibriado.
Dotado de um senso de humor peculiar, a narrativa executa uma instigante
combinação entre a simplicidade textual da situação representação e uma visão
penetrante das relações humanas na sociedade moderna.Conforme a apreciação geral
das Histórias do sr. Keuner, traçada por Vilma Botrel Coutinho de Melo no posfácio
que acompanha o volume,
Nesses textos, que variam de uma linha a uma página e meia, Brecht
[…] deixa a história em aberto, terminando, às vezes, com um dito
engraçado ou uma resposta irônica, surpreendente ou desconcertante,
quase um quebra-cabeça para o leitor. Ao acabar de ler, este perceberá
que não há propriamente uma conclusão para a argumentação, mas
que esta consiste num infindável processo dialético (MELO, 2006, p.
130).
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Considerações finais
Com este trabalho, foi possível analisar os procedimentos formais e temáticos que
atuam em função da construção do paradoxo ou nó dialético visado pelas parábolas
estudadas. Nesse sentido, pode-se considerar que esses textos mantêm um significativo
diálogo intertextual com as parábolas bíblicas do Novo Testamento, contadas por Jesus,
– fonte com a qual esses autores estavam nitidamente familiarizados. De modo similar,
as parábolas de Jesus caracterizam-se também por uma visão paradoxal e por um efeito
subversivo em relação aos valores do senso comum. Nessas narrativas em que os
últimos tornam-se os primeiros (Lucas, 13: 30), em que os publicanos são justificados e
fariseus humilhados (Lucas, 18: 13), em suma, em que a pedra rejeitada torna-se a pedra
angular (Mateus, 21: 42), Jesus revolve as posições estabelecidas, subverte conceitos e
traz os excluídos para o centro do Reino.
Referências
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; Brasília: INL, 1975 (Edições críticas de obras de Machado de Assis, v. 14).
BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1995.
BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Ed.
34, 2006.
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: ______. Vários escritos. 2.ed.
São Paulo: Duas Cidades, 1977, pp. 13-32.
KAFKA, Franz. Nas galerias. Seleção, apresentação e tradução de Flávio R. Kothe. São
Paulo: Estação Liberdade, 1989.
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KOTHE, Flávio R. Formas da contradição em Kafka. In: KAFKA, Franz. Nas galerias.
Seleção, apresentação e tradução de Flávio R. Kothe. São Paulo: Estação Liberdade,
1989. p. 9-22.
MELO, Vilma Botrel Coutinho de. “A verdade, minha casa e meu carro!”. In:
BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Ed.
34, 2006, pp. 125-135.
Introdução
Chuva Pasmada, de Mia Couto, conta a estória de uma chuva que está suspensa no
ar. Mas mais que isso, trata-se da história de vidas pasmadas. O narrador-personagem,
um garoto tido por seus pais como “lento no fazer, demorado no pensar” (COUTO,
2004, p. 07), irmana-se com essa chuva, já no primeiro capítulo, o que aproxima o
fenômeno natural às vidas das pessoas, insinuando o “intercâmbio privilegiado entre
natureza e sociedade” de que fala Fábio Leite (LEITE, 1995, p. 1).
No prefácio do livro, verifica-se a importância da tradição oral, do repassar da
experiência pelos mais velhos:
Ante o frio, faz com o coração o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o. Quanto mais nu, mais ele encontrará o único agasalho
possível – um outro coração. (COUTO, 2004)
O avô aconselha, indica uma direção dada por sua experiência, “de forma concisa,
com a autoridade da velhice, em provérbios” (BENJAMIN, 1995, p. 114). Uma chave
de interpretação para esse dizer do avô seria a pasmaceira. Não a da chuva, para entre
céu e terra, negando sua natureza de cair, mas a das pessoas, a dos corações.
Esses dois pontos assinalados no provérbio do avô (o aconselhamento – a
transmissão da experiência – e principalmente a ligação natureza-comunidade) podem
ser vistos em outras partes do texto; um deles, torna-se o fio condutor.
O estado de pasmaceira realiza-se na chuva assim como no garoto. Mas está também
sobre o pai do narrador-personagem, que não cumpre sua função de homem, não
trabalha mais, apenas dorme: “O fundo da terra levara o meu pai de mim, sem o levar da
vida” (COUTO, 2004, p. 14); está no avô, que já deveria ter se deixado levar ao mundo
dos mortos, mas não tinha coragem de morrer: “Quando eu era menino, cheio de vida,
eu sabia morrer. Agora, que já vou pra despedida, esqueci como se morre” (COUTO,
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2004, p. 49); está na tia, que permaneceu solteira e sem filhos para muito além do tempo
conveniente às mulheres da aldeia: “A tia amadurecera sem o calor de homem, noivo,
marido. Não se contemplam tais adiamentos nestes nossos lugares” (COUTO, 2004, p.
17).
Assim, podemos encontrar toda uma família em estado pasmado, contrariando o que
seria de bom senso para comunidade a que pertence, desnaturando-se, como a chuva
que se suspendeu no ar. Cada integrante da família tem uma questão específica a
resolver, alguma questão que se arrasta e que depende de alguma ação para se desfazer.
Podemos então pensar nesse avô como um homem muito fiel às tradições de seu
povo. No primeiro capítulo, pede aos que falam em seu redor que não falem alto para
não atrapalhar o sono da chuva (COUTO, 2004, p. 6).
Há grande respeito pela natureza em seu conselho, o que mais uma vez nos indica
sua reverência com as tradições locais. Segundo Fábio Leite, natureza e homem estão
intimamente ligados pela mesma força vital que estrutura todos os seres vivos (LEITE,
1995, p. 1). O narrador indica-nos a sacralização dos elementos da natureza: “Na nossa
terra, toda água é benta” (COUTO, 2004, p. 9). Com tal força em vista, torna-se fácil
compreender toda a reverência do avô pela natureza.
O prisma da tradição norteia as visões de mundo do avô para todos os seus assuntos.
Quando não encontrou explicação para o fenômeno da chuva parada, a tradição o acode
novamente. O que haveria com a chuva? “Deve ser feitiço, sugeriu o avô” (COUTO,
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2004, p. 9). A força desses costumes chega a tornar o avô até mesmo cruel em certos
momentos: sua filha mais nova, a tia do narrador, já avançava em idade e permanecia
solteira, sem filhos, o que vai de encontro com os costumes locais. O avô não se furta de
zombar, incomodando-a, humilhando-a (vide capítulo: O fluir no rio seco).
Sabe-se que, de acordo com os estudos de Armando Martins Tavares, na tradição
africana há uma grande importância para o casamento e para o gerar filhos. Aquele que
não casa e, conseqüentemente, não gera filhos legítimos não cumpre seu papel na
sociedade. Ter filhos, na sociedade africana, significa de estar bem com os ancestrais e
garante a imortalidade.
Outro fator que demonstra o olhar tradicional do avô e dessa sociedade está presente
quando pergunta ao menino se ele conheceu “essa sua avó legítima” (COUTO, 2004, p.
13) e o menino responde “– Nunca, avô. Desencontrámo-nos. E como era ela?”
(COUTO, 2004, p. 13). Na sociedade africana existe a família estendida e o respeito aos
mais velhos é tamanho, que todas as crianças se dirigem a eles como avós. Além disso,
há aqui mais uma demonstração de que a morte não é um fim, mas sim um estar em um
mundo, onde os seres podem encontrar-se ou desencontrar-se. O avô não se poupa da
força da tradição.
Nessa lógica irredutível em que a vida se faz em respeito à natureza e seus ciclos, há
o momento de nascer, crescer, reproduzir e morrer.
Habita o mundo dos mortos Ntowene, esposa e grande amor do avô. Em
consideração a ela, a cadeira em que ela costumava se sentar nunca mais fora usada por
ninguém. Não se trata apenas de respeito à memória de um ente falecido, pois nessa
tradição o falecimento não é uma morte definitiva, mas uma mudança do mundo dos
vivos para o dos ancestrais. (LEITE, 1995, p. 5). O avô, com idade avançada em
demasia, sabe que já deveria ter partido para tornar-se também ancestral, junto de sua
amada Ntowene e sente que ela quer levá-lo.
Em verdade, é “um homem à espera de ser terra” (COUTO, 2004, p. 46). Sabe que
deve deixar a vida, mas teme – o que não deveria ocorrer – já que a morte é um ciclo e
não o fim. Ele teria desaprendido a morrer. Ntowene, enterrada na beira do rio seco, o
rio em que sua ancestral – também chamada Ntowene – se tornou, estaria chamando o
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marido para junto de si, enquanto este, seco de magreza, se mantinha amarrada ao pé de
sua cadeira.
Quando as águas do rio das Ntowenes tornam a ser corrente, o avô finalmente toma
coragem a fazer sua derradeira viagem e se solta na correnteza. Seu estado pasmado é o
seu medo de abandonar a vida, sabendo que sua hora de morrer já havia chegado.
Entendemos então que o trabalho não é simplesmente uma relevante questão prática
ou econômica, mas é também a interação do homem com a natureza e com a sua
comunidade. Dentro dessa estrutura, cabe ao homem o trabalho. Mas a alma do pai
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estava tão morta que não pôde nem mesmo ajudar sua mulher no que ela mais
necessitava: falar aos brancos, donos da fábrica que poluía o ar, que parassem de emitir
fumaça:
– E então, homem? Não vai falar? Não vai lá à fábrica?
– Nem pensar.
– E por que não quer ir?
– Não é que não quero, não tenho é vontade. (COUTO, 2004)
Por esse motivo, a mãe teve de ir sem seu homem até a fábrica, o que causou
confusões dentro de seu próprio casamento. A pasmaceira do homem começa a findar
quando esse decide tomar as providências que julga mais justa para que a chuva volte a
cair – “Vou falar é com o rio” (COUTO, 2004, p. 32) – busca a resposta que a tradição
lhe ensinou, comungando com a sagrada natureza para que essa lhe atenda as
necessidades. Já no fim da estória, o pai retoma sua posição de homem forte e vai ajudar
o filho a empurrar a pesada canoa em que se realizaria a última viagem do avô: “Deixa
que eu lhe ajudo, meu filho” (COUTO, 2004, p. 68). Tal oferecimento é a marca de que
ele estava pronto a retomar sua original condição de pai de família.
Pode-se perceber o quão grave é a situação. Por não se casar e não ter gerado filhos,
a mulher estaria negando os preceitos da natureza. E, como já dissemos, em numa
comunidade tão harmonizada à natureza – considerada a sagrada fonte da vida e de toda
ordem de fenômenos – tal desrespeito não haveria de ser digno de perdão. A tia, no
entanto, busca sua solução, seu perdão. Já que as crenças de sua comunidade não foram
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capazes de acolhê-la, ela vai em busca de amparo onde esse lhe pareceu possível: a fé
cristã, a religião trazida pelo colonizador. Nessa religião, ser solteira não seria uma falta
e mesmo que o fosse, seus pecados estariam perdoados contanto que tivesse fé.
Segundo sua visão, se a chuva estava suspensa, era por pecados dos homens contra
Deus e assim, a solução que encontra é orar no santo solo da igreja, o verdadeiro espaço
para os milagres:
Eu que não emprestasse ouvido aos restantes, crédulos em espíritos e
mezinhas. Que isso não era civilizado. Sobretudo, eu não desse crédito
ao avô, que ele era o mais dado aos ancestrais.
– A gente cimenta a casa, não pode mais ficar de alma ao relento,
fazendo altar em ramos de árvore. (COUTO, 2004)
Com o progredir da narrativa, sabe-se que os pecados que atormentam a alma dessa
mulher não se restringem à sua condição de solteira. Ela teria supostamente matado um
homem numa festa – sufocou-o na força de seu abraço (COUTO, 2004, p. 22). Mas ao
que parece, sua pior falta foi de fato a traição à irmã. A tia teve envolvimento com o pai
do garoto, e tal envolvimento não passou despercebido, como podemos constatar no
capítulo A confissão na ponte morta. A traição foi descoberta pela mãe, por meio de um
costume tradicional. A tia tem pleno conhecimento disso e, julgando que a pasmaceira
da chuva se deve aos seus pecados, quando se retira da comunidade, vai se instalar no
mesmo lugar em que a irmã descobriu o que se passava. Seu estado de pasmaceira é a
culpa que carrega, culpa essa que seu pai trata de lembrá-la sempre que pode. Tal
pasmaceira acaba quando o avô lhe concede perdão: “Ela que volte pra casa. Sua tia não
tem culpa nenhuma. E lhe diga assim: que pedra contra pedra só pode dar fogo.”
(COUTO, 2004, p. 53). A tia possui, portanto, um desapego à tradição e uma
identificação com a religião do colonizador, apesar de demonstrar não compreender tal
cultura, como pode ser observado na reza dela: “– Pai nosso, cristais no Céu, santo e
ficado seja o vosso nome”. Esse distanciamento da tia de sua cultura e a aceitação
desmedida de uma outra, do colonizador, que nem se conhece, é mais um motivo para a
chuva pasmar.
4. Mãe: a política
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Lutar com as armas que tem contra a intervenção do colonizador e, num forte
processo de afirmação identitária, realiza uma releitura da tradição para a resolução de
um problema atual. A mãe, de todas as personagens, é a que tem postura mais decisiva
na estória. Diferente das demais, ela é quem toma iniciativas concretas para solucionar o
problema da chuva. Para ela, a chuva esta pasmada por causa da interferência do colono
no meio africano.
– Não – disse a mãe. - São fumos que vêm da nova fábrica.
– Fumos? Pode ser, sim, isto só aconteceu depois dessa maldita
fumaça...
– São esses fumos que estão a atrapalhar a chuva. A água fica pesada,
já não agüenta ser nuvem... (COUTO, 2004)
É também a mãe quem tem o senso de luta e de convocação da união. Quando pede
ao marido que vá falar com os donos da fábrica e o mesmo nega-se alegando que
ninguém ouviria um pobre, ela argumenta: “– Pobre é estar sozinho. Você se junte com
os vizinhos, fale com eles...” (COUTO, 2004, p. 10). Assim como sua ancestral, ela é
quem vai até fábrica tentar resolver o problema, já que seu marido estava
impossibilitado pela pasmaceira. Ela, aliás, é a única que aparenta não estar
completamente nesse estado. Na resolução do conflito, entretanto, há um diferencial
entre ela e a ancestral Ntowene. Há uma utilização da tradição, entretanto adaptado à
situação presente. Ou seja, a sua ancestral é quem vai solucionar o problema, porém ela
se rende ao dominante, que apesar de ser de outra tribo, é um homem comum a sua raça.
A mãe do narrador, por sua vez, não cede ao seu dominado europeu, afirmando a sua
identidade africana. “– Desde o primeiro dia, ele me desejou sim. Mas o homem não era
capaz. Disse-me que eu cheirava à minha raça”. O branco ordenou a ela perfumar-se. E
quisera lhe oferecer um frasco de perfume, que a mulher recusa. Tinha em casa um
frasco de cheiro que sobrara de sua festa de noivado, foi esse vidro “que ela quebrara de
encontro à parede do quarto”.
6. Proposta de análise
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Como se pode observar, o próprio título do livro já anuncia o conflito estabelecido.
Desde o princípio o leitor já encontra pistas que irão identificar o quão pasmadas estão
não só a vida das pessoas, mas da comunidade em geral. A primeira explicação dada
para esse fenômeno é que a comunidade poderia estar sofrendo uma maldição, já que,
na sociedade africana, há uma tendência a usar a tradição para explicar tudo aquilo que
não é entendido. Eles acreditam que quando algo não está em equilíbrio na comunidade,
a natureza responde de alguma forma, punindo-os. Diferente da sociedade ocidental, em
que apenas o indivíduo paga por seu erro, na africana a comunidade inteira paga, dando
assim a importância para o convívio de todos em harmonia. Existe, porém, uma
dificuldade em identificar os motivos para tal desequilíbrio, uma vez que há muitos
fatos desarmonizantes na sociedade que irão aparecendo ao longo da narrativa. Todos os
fatos, porém estão ligados à cultura / tradição.
Poderíamos dizer que, essa família pasmada representa a sociedade africana nos dias
de hoje. Após diversas lutas e toda a utopia da guerra de libertação, após as guerras pós-
coloniais, resta saber do que valeu a luta, resgatar os princípios e direcionar um caminho
para a sociedade. O menino, que se identifica com a chuva, representa a nova geração e
mostra que o que as gerações anteriores fizeram não pode ser deixado na pasmaceira.
Após a independência, a presença do colonizador em terras africanas continua a
representar um desequilíbrio, já que a terra possui a força vital daquela sociedade e ter
outro interferindo na mesma, é o mesmo que interferir nas suas vidas. Quando a mãe
luta pela expulsão desse colonizador, desperta no filho um direcionamento de
identidade. Essa sociedade que surge, entretanto, já não pode apenas contar com a
tradição para resolver os conflitos atuais. Há que utilizá-la, mas sempre a adaptando ao
presente. Isso é o que a mãe faz. O tradicional seria que os “samvuras” resolvessem os
problemas da chuva. Já que eles não conseguem, a mãe toma de sua tradição para
resolver o conflito de hoje. Há ainda, mesmo em figuras tão tradicionais quanto o avô, a
concepção de que algo mudou e que, agora não é apenas o colonizador que deve ser
considerado como inimigo.
Conclusão
Em Chuva Pasmada, Mia Couto, descreve uma realidade vivida hoje em África de
língua portuguesa, onde a sociedade encontra-se em pleno estado de pasmaceira. A
narrativa aponta diversos motivos: a perda da identidade, a valorização da cultura do
colono e, principalmente, a desistência da luta. O conflito se resolve com o equilíbrio de
toda a família, na tia que é perdoada, no avô que se deixa partir, no pai que abandona o
seu estado vegetativo, na mãe que recupera sua família, mas principalmente no menino,
essa nova geração que tem resgatada a cultura, sua identidade.
Referências
Introdução
1
O nome verdadeiro da autora é Joanne Rowling. Por sugestão da editora, apenas a letra inicial do seu
primeiro nome foi utilizada (J., ao invés de Joanne) juntamente com a inicial de “Katheleen”, nome da
avó favorita da escritora.
2
Harry Potter and the Philosopher’s stone
3
Usaremos ‘Harry Potter’, sem formatação, sempre que nos referirmos ao nome da personagem; em
itálico – Harry Potter – sempre que nos referirmos ao nome da série. Porém, nas citações usaremos
apenas suas iniciais, por exemplo: HP e a Pedra Filosofal, 2000, p. 1.
4
HP e a Câmara Secreta (HP and the Chamber of Secrets), 1998; HP e o Prisioneiro de Azkaban (HP and
the Prisoner of Azkaban), 1999; HP e o Cálice de Fogo (HP and the Goblet of Fire), 2000; HP e a Ordem
da Fênix (HP and the Order of the Phoenix), 2003; HP e o Enigma do Príncipe (HP and the half-blood
Prince), 2005; HP e as Relíquias da Morte (HP and the Deathly Hallows), 2007
5
http://www.abril.com.br/noticia/diversao/no_292574.shtml. Acesso em 20/04/2010
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significar tudo o que inicialmente expressavam para readequar novos sentidos no novo
conjunto. A isso, como os textos adicionados em uma obra se particularizam, Hélder
Godinho (2003, p. 142) deu o nome de mitoestilo.
Com base nisso, esse estudo busca encontrar alguns intertextos presentes na série a
fim de verificar até que ponto Rowling se manteve na tradição e/ou fez uso de rupturas,
readequando as imagens e textos ao seu estilo próprio. Porém, esse artigo não visa levar
a cabo tal trabalho de identificação e análise, já que pela leitura do texto pode ser muito
difícil identificar a natureza de todos os elementos que compõem a série.
6
Mitologia nórdica refere-se também à mitologia germânica, mitologia viking e mitologia escandinava.
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porém, os elfos são criaturas baixas, com orelhas de morcego e olhos esbugalhados,
vestem trapos7 e têm como missão de suas vidas servir famílias de bruxos no que diz se
refere às tarefas domésticas. Isso é ruptura.
Na floresta proibida, presente nas terras de Hogwarts, vive uma gama de seres
mágicos e dentre eles estão os centauros – seres fantásticos com cabeça e tronco de
homem e corpo de cavalo, oriundos da mitologia grega. Na série, a abordagem desses
seres é feita de forma tradicional, embora Rowling acrescente algumas coisas próprias
no comportamento de seus centauros: personalidade misteriosa, mística, são peritos em
astronomia e técnicas medicinais. Como na mitologia grega, em Harry Potter os
centauros não são submissos aos humanos (bruxos), o que pode ser um forte elemento
causador de guerras.
Na floresta também vivem os unicórnios – que têm a forma de um cavalo,
geralmente branco, com um único chifre em espiral. Esses seres, sempre associados à
pureza e força têm sua origem incerta, embora haja citações sobre unicórnios na cultura
oriental e grega centenas de anos antes de Cristo. Um unicórnio apenas deixa-se tocar
por mulheres e quem o toca fica curada de qualquer doença (DITERLIZZI; BLACK,
2005, p. 48). Rowling traz inovações a essa figura mitológica: o unicórnio em Harry
Potter possui sangue capaz de manter alguém vivo mesmo à beira da morte e o animal
adulto é extremamente branco, prateado enquanto adolescente e dourado ao nascer.
Gigantes. Da mitologia grega e nórdica, essas criaturas antropomórficas têm um
comportamento que varia de lenda para lenda. São extremamente fortes devido a sua
estatura corporal avantajada, algumas vezes são retratados como burros e ignorantes e
outras como inteligentes e até amigáveis (DITERLIZZI; BLACK, 2005, p. 78; MAY,
2002, p. 7). Rowling mantém a tradição do gigante agressivo e antisocial, pois vivem
em colônias isoladas longe dos bruxos, que têm medo deles.
Os gigantes em Harry Potter, assim como na mitologia grega e escandinava,
representam o caos primitivo (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p. 42). Entretanto, a
autora faz uma ruptura com a figura de Rúbeo Hagrid, o guarda-caça de Hogwarts, que
7
Um elfo doméstico só é libertado quando seu dono lhe presenteia com peças de roupa. No segundo livro
da série (HP e a Câmara Secreta, 2000, p. 284), Harry liberta Dobby, o empregado da família Malfoy,
quando o herói induz Lúcio Malfoy a dar uma meia ao elfo.
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é mestiço, filho de mãe gigante e pai bruxo. O meio-gigante é um dos melhores amigos
adultos de Harry e caracteriza-se por sua personalidade atrapalhada e bondosa.
No segundo volume da série (HP e a Câmara Secreta, 2000), a fênix ganha destaque.
Esse animal aparece em diversas culturas, dentre elas a egípcia, grega e árabe e hindu, e
é sempre associado à imortalidade e ao renascimento devido ao seu poder de renascer
das cinzas após pegar fogo no momento da sua morte (RAGACHE; RAGACHE, 1998,
p. 20). Em Harry Potter, a fênix tem um poder singular: suas lágrimas têm força
curativa, o que salva o herói do veneno de um basilisco. Este, por sua vez, que também
aparece no segundo volume da série, é uma enorme serpente que surge quando uma rã
choca um ovo de galinha. O basilisco não pertence a uma cultura específica e já foi
citado nos estudos de Leonardo Da Vinci e Voltaire (DITERLIZZI; BLACK, 2005, p.
26).
Os dragões também aparecem na série. Segundo a própria Rowling (SCAMANDER
[J. K. Rowling], 2001, p. 31), eles são os animais mágicos mais famosos do mundo.
Citados em diversas mitologias, os dragões são criaturas aladas que na maioria dos
casos cospem fogo e são cobertos de escamas. Em Harry Potter, os dragões são animais
perigosíssimos, os quais são escondidos pelo Departamento para Regulação e Controle
de Criaturas Mágicas 8.
No Campeonato Tribruxo 9, quatro dragões são utilizados: um Meteoro-Chinês, um
Verde-Galês, um Focinho-Curto sueco e um Rabo-Córneo húngaro, o qual Harry
enfrenta satisfatoriamente 10. A luta de Potter, montado em sua Firebolt 11, com o dragão
assemelha-se com a luta do herói grego Belerofonte, montado no lendário Pégaso, com
a Quimera, “monstro grego cujas três cabeças – de leão, de cabra e de dragão –
vomitavam fogo” (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p. 21). Como Belerofonte, Harry
descreve círculos sobre a cabeça do Rabo-Córneo, fugindo das labaredas de fogo que o
monstro soltava (HP e o Cálice de Fogo, 2001, p. 283).
Há mais dois episódios em que dragões aparecem: o primeiro está presente em
HP e a Pedra Filosofal (2000 p. 201), quando Hagrid ganha um ovo de dragão
norueguês, e o segundo encontra-se no sétimo livro, HP e as Relíquias da Morte (2007,
8
Departamento do Ministério da Magia, órgão estatal dos bruxos.
9
Campeonato de magia entre escolas de bruxos.
10
Raças de dragões criadas por Rowling.
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p. 417), quando Harry, Rony e Hermione pegam carona em um dragão albino para fugir
do banco Gringotes.
Outra figura alada que merece destaque é o Grifo, animal com com cabeça e asas de
águia e corpo de leão. Suspeita-se que esse animal surgiu no Oriente Médio onde
babilônios, assírios e persas representaram a criatura em pinturas e esculturas. Os grifos
também são excelentes em guardar tesouros. Na mitologia grega, conta-se uma lenda
que Apolo, o deus da luz, armazenou um grande tesouro em um misterioso país nórdico,
confiando-o à guarda de dois grifos (DITERLIZZI; BLACK, 2005, p. 98). Entretanto,
na série de Rowling é o Hipogrifo que ganha cena. Este animal é o resultado da união
de um grifo e um cavalo, o qual substitui as características do leão pelas suas, ou seja, o
hipogrifo tem cabeça e asas de águia e corpo de cavalo 12.
Ainda abordando animais alados, no quarto livro da série (HP e o Cálice de Fogo,
2001, p. 195) a carruagem da escola francesa de magia Beauxbatons é “puxada por doze
cavalos alados, todos baios, cada um parecendo um elefante de tão grande”; os cavalos
eram dourados e tinham olhos cor de fogo. Esses animais remetem-nos diretamente à
figura de Pégaso, o cavalo alado da mitologia grega (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p.
20).
Também oriundas dessa cultura, as Sereias, Sirenes ou Sirenas, eram as mulheres-
pássaros. Segunda a lenda, elas seduzem os navegadores com seus cantos hipnóticos e
os levavam para armadilhas mortais. Na idade média, as mulheres-pássaros se
transformaram em mulheres-peixe, mas continuaram a alimentar os boatos dos
marinheiros (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p. 44).
Em Harry Potter, os ‘sereianos’ não são apenas do sexo feminino e constituem
comunidades extremamente organizadas no fundo de mares e águas como as do Lago
Negro situado nas terras de Hogwarts. Eles são seres individualistas, falam uma língua
própria e em alguns casos mostram hostilidade com suas lanças 13. Ainda no lago negro,
vive uma simpática 14 lula gigante, que, fora do texto de Rowling, já fora citada na
11
Uma marca de vassoura que os bruxos e bruxas montam para voar; a mais veloz de todas.
12
Em Harry Potter, os Hipogrifos são utilizados como meio de transporte, mas seu dono precisa lançar
sobre o animal, periodicamente, um Feitiço Desilusório – feitiço de camuflagem ou invisibilidade
(SCAMANDER [J. K. Rowling], 2001, p. 63).
13
HP e o Cálice de Fogo, 2001, p. 396.
14
Simpática porque em nenhum momento da série ela é apresentada como um monstro hostil, pois
sempre está a nadar, “sonhadora, sobre a superfície do lago” (HP e o Prisioneiro de Azkaban, 2000, 254).
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15
Brother Bear, em inglês. Direção: Aaron Blaise e Robert Walker.
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O lobisomem Fenrir Lobo Greyback, também é nomeado com base em outro texto.
Fenrir vem da mitologia nórdica: o lobo gigante Fenris, cujo propósito era destruir os
deuses, pondo fim ao seu domínio sobre o céu e a terra (FRANCHINI; SEGANFREDO,
2006, p. 117). Os dois lobos agem de forma parecida, pois Greyback quer infectar o
maior número de pessoas para que os lobisomens possam superar os bruxos; Rowling
mantém a tradição dessa personagem mitológica. Outro lobisomem, que, ao contrário de
Greyback, ganha a simpatia dos leitores, é Remo João Lupin. Remo era o nome de um
dos fundadores do Império Romano e Lupin vem da palavra romana para lobo
(MALONE, 2007, p. 124).
Outros nomes também podem ter tido alguma inspiração em outros textos. Hermione
Jane Granger, melhor amiga do herói, tem o mesmo primeiro nome da esposa do rei da
Sicília, do ‘Conto de Inverno’, de Shakespeare. Simas Finnigan, aluno da Grifinória,
tem seu nome talvez inspirado em um livro de James Joyce: Finnigans Wake. O
fundador da casa da Sonserina 16, Salazar Slytherin, possui o mesmo primeiro nome do
ditador português Antônio de Oliveira Salazar. Slytherin é elitista e também um tipo de
ditador, pois quer erradicar os trouxas 17 do mundo bruxo e ensinar magia apenas aos
sangues-puros. Rowling mantém a tradição dessa personagem europeia.
O padrinho de Harry, Sirius Black, também é nomeado intertextualmente. “Na
China, o Grande Lobo celeste guarda o palácio do Senhor do Alto, que vive na grande
Ursa. Esse lobo tem olhos verticais que brilham no escuro e se materializa na estrela
Sírius” (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p. 41. Grifo meu). Para atestar e ir além da
semelhança dos nomes dessas duas personagens, Sirius Black pode se transformar em
uma espécie de lobo, ele é um animago 18: Rowling mantém a tradição.
Outros intertextos
16
Os alunos de Hogwarts são dividos em quatro casas, as quais receberam os nomes dos quatro
fundadores da escola: Godrico Gryffindor, Helga Hufflepuff, Rowena Ravenclaw e Salazar Slyntherin. Na
tradução para o português, os nomes das casas são Grifinória, Lufa-lufa, Corvinal e Sonserina,
respectivamente.
17
Trouxas são as pessoas sem poderes mágicos, os seres humanos do “mundo real” (nosso mundo). Em
inglês o termo é muggles.
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Além da questão dos animais mágicos e sua influência nas criações de Rowling,
podemos encontrar ligações da narrativa de Harry Potter com outros escritos do gênero
fantástico. Vejamos:
Na Ilíada e na Odisséia há a presença do imaginário escatológico da sociedade da
época, mitos que abordam a realidade além-túmulo do ser humano. Para eles, após
morrer o eidolon, espécie de alma, saía do corpo do morto por uma ferida ou pela boca
(ideia aproveitada na adaptação cinematográfica do terceiro livro na “quase morte” de
Sirius Black). O que restava do morto seguia até Hades, local final para onde se
dirigiam as almas. Para isso, deveriam atravessar o rio Estige e finalmente passar por
Cérbero, o cão de três cabeças que guardava a entrada para os planos inferiores
(ULSON apud BOECHAT, 1995, p.46)
Em Harry Potter, todos os alunos do primeiro ano após desembarcarem do Expresso
Hogwarts são levados ao castelo de barco atravessando o lago negro. É uma tradição,
todos o fizeram, inclusive Harry. No fim do primeiro ano, o herói precisa salvar a pedra
filosofal de Voldemort (o vilão da série) e, para chegar à câmara inferior onde a pedra
se encontrava, passa pelo cão de três cabeças Fofo.
É possível também relermos na série um mito muito conhecido da cultura grega: o
mito de Édipo. Dentre as várias versões existentes, vamos nos basear na peça de teatro
trágico de Sófocles (2007), Édipo Rei. A história começa com a figura de Édipo sendo
rei de Tebas. Em vista aos horríveis acontecimentos que assolam a região, um oráculo
diz que a causa do sofrimento da cidade é que esta abriga o assassino do antigo rei,
Laio, e para a remissão da pena sobre o local, seria preciso punir o culpado pelo
assassinato.
Édipo desencadeia uma investigação e descobre que o causador do pesar de Tebas
era ele mesmo; fora ele quem matara Laio e, o pior, o antigo rei era seu pai. O herói
descobre também que a mulher que desposa é sua mãe e sobre a sua causa recai a ruína:
Jocasta, sua mãe/esposa, suicida-se, ele fura os próprios olhos como castigo por não ter
visto a verdade e decreta a si mesmo uma pena de exílio.
18
Animagos são bruxos que com a ajuda de magia conseguem se transformar completamente em um
animal. O pai de Harry era um animago (se transformava em um veado), a professora Minerva
McGonagall (gato), entre outros.
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A peça é narrada, como diz Eco (2006, p. 39), in media res, ou seja, o início da
narrativa está no meio da história, quando Édipo já é o rei de Tebas. A trama
cronologicamente começa quando seu pai biológico, Laio, consulta um oráculo, após o
nascimento do filho, para saber qual seria seu futuro. O vidente prediz que o menino
mataria o pai e casaria-se com a mãe. Isso apavora Laio, que decide mandar furar os pés
da criança e deixá-lo numa montanha para que morra sozinho. Édipo foi salvo e criado
como filho por Políbio, rei de Corinto.
Quando jovem, o herói visita um oráculo e fica sabendo que seu futuro seria matar o
pai e casar-se com a mãe. Apavorado, foge erroneamente para longe de Políbio e sua
família para evitar que a desgraça acontecesse. Na estrada, Édipo se envolve em uma
briga e mata Laio, sem saber que este era seu legítimo pai e rei de Tebas. Então se
dirige àquela que seria sua cidade natal e, resolvendo o enigma da Esfinge, liberta o
lugar da repressão do monstro. Édipo é proclamado rei de Tebas e casa-se, sem saber,
com sua mãe Jocasta.
As histórias de Rowling e Sófocles possuem algumas ligações. Em ambas, as tramas
são desencadeadas por profecias, que decretam a Édipo e a Harry a existência de um
antagonista. Há uma união de sangue entre as personagens adversas e os heróis: Édipo é
filho de Laio e Voldemort, como se não bastasse ter os mesmos antepassados de Harry,
os Irmãos Peverell, usa o sangue do menino-que-sobreviveu 19 para voltar à vida.
As duas profecias são cumpridas, embora não da mesma forma. A de Édipo é
cumprida por ele mesmo quando mata o pai e se casa com a mãe, já a de Harry é levada
ao cabo pelo vilão, que sem saber cria para si o seu pior inimigo. As personagens que
levam a sério as previsões são o herói, em Édipo Rei, e o vilão, em Harry Potter.
Entretanto, esta informação pode ser revista se pensarmos que Édipo torna-se inimigo
de si mesmo quando descobre que seu povo, e até mesmo ele, sofre as consequências
dos seus atos (assassinato do pai). Assim, em ambas as narrativas temos o antagonista
fazendo com que a palavra do oráculo vire realidade.
Os heróis de Sófocles e Rowling enfrentam uma Esfinge, o que se configura uma
tarefa difícil, mas decisiva em seus destinos. Harry deveria passar pelo monstro para se
tornar o novo campeão do campeonato Tribruxo e Édipo para tornar-se o novo rei de
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Tebas. Nas duas narrativas, o monstro egípcio é um marco que separa os protagonistas
do seu destino final: Édipo iria tornar-se rei e cair em desgraça; Harry, ao passar pela
criatura, iria fazer parte do ritual que traria o vilão novamente à vida e no fim da série
deveria enfrentar esse antagonista. A figura da Esfinge representa o monstro guardião
que separa a vida “normal” da vida de herói; embora Édipo enfrente o monstro por
vontade própria e Harry não, ambos passam pela prova que os preparam para a vida
heroica.
Vladimir Propp (1928, p. 28) defende que todo o texto fantástico segue uma linha de
funcionamento universal, tradicional; ele define trinta e uma funções, as quais
organizam o andamento da narrativa maravilhosa. Com base nessa teoria estruturalista,
é possível identificar a função de número vinte e cinco – É dada ao herói uma tarefa
difícil – nos dois textos. Édipo (herói) deve punir o assassino de Laio (objeto de
procura); Harry (herói) deve eliminar todas as Horcruxes (objeto de procura).
De forma semelhante, temos nos dois enredos os heróis buscando a si mesmos:
Édipo é o assassino de Laio e Harry é uma das Horcruxes20. Por isso, recai sobre os dois
o dever de cumprir as missões que lhe são dadas mesmo após conhecerem a triste
verdade. Harry se entrega a Voldemort em sacrifício para que o mal seja extinto, já que
ao matar o menino o vilão estaria extinguindo parte da sua própria alma, e Édipo fura os
próprios olhos e se exila para se auto-punir, pois Tebas só comungaria da prosperidade
se o assassino do antigo rei fosse penitenciado; os protagonistas são movidos pelo dever
da justiça e é isso que faz de ambos autênticos heróis.
As duas narrativas são in media res, pois, embora Harry Potter comece quando o
herói ainda é bebê, é só muitos anos depois que o protagonista vem a saber, na íntegra,
o que lhe aconteceu; é o seu passado mostrando o seu futuro, como em Édipo. A grande
diferença entre o texto de Sófocles e de Rowling é que no fim do primeiro o herói tem
um final trágico conforme a justiça que deveria ser feita (Édipo é um herói trágico,
porque ele é mocinho e vilão da história, ao mesmo tempo). Em Harry Potter, o
19
Um dos epítetos do herói. Harry sobrevive quando era bebê à maldição imperdoável da morte – Avada
Kadavra. Ele seria o único na história dos bruxos a sobreviver.
20
Horcrux é um receptáculo (objeto, animal, etc.) que abriga um pedaço da alma de alguém e tal divisão
só pode ser feita através de um assassinato (HP e o Enigma do Príncipe, 2005, p. 390). Na série, o vilão,
Lorde Voldemort, cria sete Horcruxes, ou seja, divide sua alma em sete partes na tentativa de adquirir a
imortalidade.
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protagonista cumpre sua tarefa entregando-se à morte, mas não morre. Harry sobrevive,
mais uma vez, à maldição de Voldemort e re-enfrenta o vilão, que pelo próprio veneno
decai.
Algumas considerações
O que se propôs fazer esse estudo foi tentar destacar de maneira sucinta alguns
elementos que J. K. Rowling usou para criar uma das séries mais lidas da história. Seria,
é claro, uma tarefa extremamente árdua e quase impossível dissecar os sete livros em
busca de todos intertextos presentes. Entendamos, portanto, que na obra há inúmeras
ligações com o externo, empréstimos que se mantém na tradição ou partem para a
ruptura, o que faz do mitoestilo de Harry Potter um elemento de grande significado.
Referências
ECO, H. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
SÓFOCLES. Édipo Rei / Antígona. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin
Claret, 2007.
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...e o que ele tem? Nada. Vive às custas da mulher, jamais escreveu
um texto verdadeiramente bom, sofre de uma insegurança doentia e,
agora, tem um filho que, se sobreviver, o que é pouco provável, será
uma pedra inútil que ele terá de arrastar todas as manhãs... (TEZZA,
2007, p.53).
Parte integrante desta “nebulosa”, a obra O filho eterno traz em si, além das
já citadas, outras técnicas narrativas que conferem maior grau de ficcionalidade ao
romance, como é o caso da confecção do tempo da narrativa. Assim como as vozes
de narrador e personagem central se entrelaçam, também os episódios narrados são
marcados por um constante emaranhamento temporal. Durante a narrativa, o
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... nada mais será normal na sua vida até o fim dos tempos
(flashforward). Começa a viver pela primeira vez, na alma a angústia
da normalidade. (presente da narrativa). Desde que o pai morreu,
muitos anos antes, seu padrão de normalidade se quebrou. (flashback).
(TEZZA, 2007, p.40, grifos meus).
retratado pela lente da câmera fotográfica não deixa de ser uma representação, uma
particularização, um recorte do mundo, que, na verdade, pode ser visto como a
constituição de uma alteridade, como a criação de um outro mundo. E é neste
exercício de re-criação, neste entremeio entre mundos real e ficcional, nesta fronteira
muitas vezes estreita e nebulosa entre o acontecido e o inventado que estaria,
segundo o crítico Wilson Martins, uma das principais virtudes do escritor Cristóvão
Tezza que “se caracterizaria, antes, como romancista do olhar ou da visão, vendo a
realidade através das lentes imaginárias da literatura”. (MARTINS, 2009,
PÁGINA???)
Assim como em O fotógrafo, o tema da ficcionalização também aparece no
romance Juliano Pavolline (1994), neste caso não pela simbologia da lente
fotográfica, mas sob a roupagem da mentira, clássico traço ficcional que constitui
característica marcante da personagem que dá nome ao livro. Juliano diz a respeito
de si:
refletir é o de que nesta oposição entre vida e literatura, como vimos em outras obras
do autor, na visão do personagem-escritor a segunda também prepondera sobre a
primeira. A exemplo da afirmação de Umberto Eco (1994) de que a verdade ficcional
pode ser as vezes superior à verdade histórica, o personagem-escritor percebe a
ausência da síndrome de down na literatura romanesca:
Mesmo assim sabemos que a distinção entre ficção e realidade pode ser
considerada por correntes teóricas como assunto periférico, esgotado ou que ainda
possa ser visto como algo perigoso e até mesmo desnecessário para se estabelecer o
que seja um texto literário, como já defendeu Eagleton: “a distinção entre ‘fato’ e
‘ficção’(...) não nos parece ser muito útil, e uma das razões para isto é a de que a
própria distinção é muitas vezes questionável” (EAGLETON, 2003, p.1). Em lado
oposto, todavia, podemos encontrar teóricos como Humberto Eco que, parafraseando
a famosa gravura de Goya, defende que “refletir sobre essas complexas relações
entre leitor e história, ficção e vida, pode constituir uma forma de terapia contra o
sono da razão que gera monstros” (ECO, 1994, p. 145). Mais propenso a discordar de
Eagleton e a concordar com Eco, creio que exercícios imaginativos sobre as relações
entre o biográfico e o ficcional (e como um se torna o outro) são pressupostos
importantes para a recepção, fruição, entendimento e estudo do texto literário.
Referências
1
Veja-se, a exemplo, a rapidez da evolução computacional, da robótica e da própria arte, às vezes
duplamente virtual (tanto pelo caráter de ficção, como pela realidade que ocupa, passando do impresso à
tela do computador).
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fiel do fato, tão cara ao Postivismo oitocentista, que a Arte se sente à vontade para
explorar os interstícios da memória – objeto antes por excelência histórico –, colocando
em evidência não só as pretensões de representação autêntica da realidade histórica,
como também a própria condição de que a escrita do passado, na Arte ou na História, é
em ambos os casos uma reescrita do presente, impedindo, por isso mesmo, que a
memória se revele conclusiva ou teleológica. Isso não quer dizer, é claro, que não tenha
existido um passado real, mas apenas que o nosso conhecimento sobre este passado é
condicionado por representações que embora sejam aparentemente inteiriças, só o são
na medida em que preenchem as lacunas de um tempo que a nós só se pode recompor
por relíquias e vestígios. E mesmo aí permanece a dúvida: Será que estamos diante de
vestígios totais ou parciais? Qual a extensão do que foi eliminado?
Assim é, que pensando no caso específico da Literatura dentro desta instância
de interlocução, o romance das últimas décadas será guiado pela necessidade
transgressora não só de questionar os limites entre a memória oficial – respaldada de
autoridade –, e a, digamos, oficiosa, como também de desestabilizar uma identidade
firmada no recalque de ser o que nem outrora se foi2, algo tão natural, quanto
explicável, pelo nacionalismo infundido em nossa própria condição humana. A obra do
escritor português Almeida Faria não foge a esta visão. Sua obra, desconstrutora de toda
visão monolítica do real, desde o precoce Rumor branco (1962) ao desconcertante O
conquistador (1990), se erige como espaço de indagação, de busca da própria
identidade, em que a memória, como elemento estruturante, é redimensionada e
atualizada em um conjunto ficcional diferente do universo de onde fora extraída. É algo
como se a memória adquirisse a função redentora de que nos fala Benjamin (1994), e
como lugar de liberdade, ecoasse como uma espécie de grito contra a ordem
estabelecida.
O romance O conquistador, publicado pelo autor em 1990, configura-se como
mais uma possibilidade de leitura desse ataque incidido contra a memória oficial e sua
conseqüente mitificação do passado – mitificação esta, que, no romance, aparece em sua
forma maior e mais difundida em Portugal, que é através do mito sebastianista. Nesse
2
Vide, a exemplo, os favores das representações românticas.
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Dessa forma, igualmente duplas – e por que não múltiplas? – são as incursões
que o romance faz no terreno da memória, não para reiterar os fatos, mas para propor
perspectivas para a História. Assim é que se pelo título, O conquistador, somos
transplantados para uma realidade outra, onde o conquistador é a figura mítica do rei D.
Sebastião, depositário de todas as esperanças de salvação de uma quase inevitável união
de Portugal com Castela, no presente da narrativa será outra sua função: não a de salvar
a nação contra os mouros na traumática batalha de Alcácer-Quibir, episódio de seu
desaparecimento; mas a de, retornando da batalha em que desapareceu, recuperar o
ímpeto guerreiro e desbravador que caracterizava (e caracteriza) a (H ou h?)istória do
povo português desde pelo menos a expansão marítima, e pôr fim a uma ameaça maior:
a situação anárquica sob a qual vivia Portugal – em termos econômicos, sociais e
culturais, ainda mais latino-americano, que de fato europeu.
Mas se a ficção, primeiramente, nos conduz a participar do mito, fantasiando a
reencarnação do rei pelo reforço das semelhanças que o personagem Sebastião traz com
o oficial; depois ela nos arrebata, chamando-nos ao questionamento duma verdade
patética e mitificada. Tanto é que, se inicialmente a situação das semelhanças faz com
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que nos preparemos para a luta, para a batalha do presente em que se insere o Sebastião
das letras, que é a Revolução dos Cravos – até porque é unânime na historiografia
portuguesa apontar as violentas práticas desportivas do rei como uma característica de
seu empenho em preparar-se para a arte da guerra –; em seguida, a ficção dessacraliza
magistralmente a História por um reforço na diferença. Porque se o rei D. Sebastião era
dedicado às artes bélicas, tão naturais da brava gente portuguesa, e havia seguido à risca
a recomendação das Cortes para “que El- Rey Nosso Senhor, tanto que for de nove
annos, se tire dantre mulheres e se entregue aos homens” 3 (decerto uma tentativa
mascarada de afastá-lo das influências da avó, D. Catarina, que lembremos, era tia de
Felipe II de Espanha, rei de Castela), o Sebastião da ficção era dedicado aos “fluidos e
eflúvios, calores e tremores” (FARIA, 1993, p. 47) do corpo feminino. Seus interesses
incidiam menos sobre conquistas de terras que de mulheres. E estas são as únicas
conquistas que poderemos encontrar no romance: as sexuais.
Mas, ora, o amor aqui constitui um conflito quase que insolúvel, pois ao
mesmo tempo em que destrona a personagem de qualquer atitude heróica, uma vez que
este abdica dos interesses da nação em favor dos interesses individuais, por se tratar, no
romance, de uma experiência que se concretiza pela descoberta do sexo e do próprio
corpo, como aparato de erotismo, pode ser interpretado como um lugar de descoberta do
ser e de luta contra a repressão, que não se restringe apenas àquela exercida pelo
governo salazarista 4, mas a todas as instituições autoritárias e repressoras, inclusive a
família (das quais o gênio patriarcal salazarista era apenas representante):
3
FRANÇA, Eduardo d’Oliveira. Portugal na época da restauração. São Paulo: Hucitec, 1997 apud
HERMANN, Jaqueline. No reino do Desejado. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 82.
4
Correspondente ao período ditatorial do Estado Novo em Portugal, regido por António Salazar entre os
anos de 1932 e 1968.
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conscientemente ou não, pelo falo ditador de Salazar. Dessa sorte, é no plano sexual que
a procura do Graal é insinuada e vivenciada pela personagem, que busca o seu próprio
caminho, o auto-conhecimento, pois o sexo e o amor podem ensinar, como aprendera
com Clara, muito mais que todas as reflexões metafísicas. Mas como o mito do Graal é
retomado, atualizado e redimensionado relativamente à realidade político-social
contemporânea, ao mesmo tempo em que é cavaleiro andante – pela luta contra a
repressão que empreende através do sexo –, Sebastião se nega a sê-lo, na medida em
que sua busca é em favor próprio e não da nação.
Assim, no plano intertextual que a linguagem realiza, sua ficção acaba
promovendo uma desconfiança aguda em relação ao que diz e o que fala, afastando,
pela tensão entre o discurso ficcional e o histórico, qualquer convicção que se possa ter
a respeito da História. E, ora, isto também se dá no plano formal, por meio de uma
consciência que afasta os narradores de Faria daqueles de outrora, tanto da História,
quanto da Literatura, de Flaubert a Balzac, de Coulanges a Ranke, tão cientes de que a
linguagem poderia dar conta da verdade dos fatos. Claro que, poderia se advogar aqui,
que no memorialismo difuso instaurado pelo protagonista (cindido entre uma
componente individual – a de sua história – e uma componente coletiva – a História da
nação), poderíamos ver em Sebastião aquele mesmo narrador unívoco do positivismo
do século XIX, que embora não marcado pelo il y a do discurso – pretenso apagamento
do sujeito da enunciação –, não deixa de transmitir uma visão parcial da realidade, uma
vez que é ele quem narra. E de fato assim o seria se esse Sebastião, enquanto narrador,
não revelasse a plena consciência do caráter parcelar e da propensão seletiva da
memória. Mas ele a revela, não tentando gerar quaisquer ilusões de real, porque sabe
que “o notado procede do notável, mas o notável não é – desde Heródoto, quando a
palavra perdeu sua acepção mítica – senão aquilo que é digno de memória, isto é, digno
de ser notado” (BARTHES, 1988, p. 155), ou, nas suas próprias palavras, sabe que na
rememoração é apenas “por palpites” que distingue “quem é quem, sob o sol e a poeira
que não” lhe “deixam ver e” o “fazem vacilar de tonturas e vómitos” (passim FARIA,
1993, p. 31).
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É válido ressaltar que, como memória, o narrador pode agregar àquilo que
conta novos elementos, focando determinados aspectos que estão em consonância com a
sua visão do acontecimento, pois qualquer discurso que busque relembrar os
acontecimentos do passado tem em si uma considerável subjetividade, pois a memória
“cumpre a função operatória de espaçamento no tempo, por meio da marcação de
intervalos, pausas ou suspensões” (MIRANDA, 1995, p. 102) , isto é, a memória conta
com brechas e lacunas que só podem ser preenchidas pela imaginação. E Sebastião,
disso bem o sabia, e logo de início já deixa entrever que muito do que se passara não lhe
ficara bem na memória: “A cronologia de minha infância nem sempre me surge nítida”
(FARIA, 1993, p. 31). Por isso, fica a seu cargo reorganizar o rememorado, de acordo
com suas percepções individuais e com as suas intenções ao comunicar um fato a
outrem, pois como ele mesmo o diz, “onde falta bagagem o sexto sentido tapa buracos”
(FARIA, 1993, p. 106).
Sebastião, ao contar fatos de sua vida que já se passaram, tem tempo para
reelaborar o que foi vivido por meio de sua subjetividade, pois o eu inicial que os
presenciou, já envelheceu: tem vinte e quatro anos e escreve, na ermida da Peninha,
suas memórias. Com isso, cria-se um transitar permanente entre o eu inicial do passado
e o narrador do presente durante a rememoração, assim presentificando angústias e
inquietações próprias do momento em que a história é contada. Isso faz com que
acordemos para o fato de que, embora narre a sua própria história – do que se pressupõe
um narrador que sabe o que realmente aconteceu, uma vez que depõe sobre si mesmo –,
Sebastião é um narrador em cujo grau de incertezas reverbera tão forte que nem mesmo
acerca de si pode traçar qualquer afirmação universalmente válida: não sabe “se” foi
“quem hoje” julga “ser”, “se nunca será mais que não saber quem” é “ou quem” será
(passim FARIA, 1993, p. 126). Não lhe cabe mais, como outrora coube em Balzac,
Zola, Eça, a onisciência e a onipresença de um narrador que tudo sabe, tudo vê e em
tudo guia os rumos de suas criaturas. É algo como se o narrador fariano tomasse
consciência do pouco de realidade da realidade criada, “colocando-se a si próprio como
quem duvida, interroga e procura, como se a verdade acerca de sua personagem [e até
de si mesmo] não lhe fosse mais bem conhecida que as próprias personagens ao leitor”
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(AUERBACH, 2004, p. 482). É nessa ótica que o “eu que poderia ter sido” não será,
uma vez que Sebastião continuará ignorando quem é: “Continuo ignorando quem sou”
(FARIA, 1993, p. 126). E por isso mesmo, o passado, trazido pela memória afetiva,
acaba funcionando como uma forma de trazer à tona de um espaço de entrecruzamento
entre o eu inicial e o eu do presente, o eu insatisfatório e inerte que é, ao qual é negado
até mesmo o direito de conhecer a si próprio.
Ora, sabemos que o passado é algo por natureza ambíguo, sendo igualmente o
tempo que se consumou para o eu inicial e o pensamento sobre esse tempo estabelecido
pelo eu do presente, algo que permite pensar numa perspectiva de futuro mais plena;
mas como não há perspectiva de futuro preferível em tempos de revolução, este eu,
simultaneamente marcado pela profusão de passado, presente e futuro, continua
ignorando quem é, representando a inércia coletiva da nação. Contudo, é somente a
partir da profusão destes três tempos que o narrador pode nos oferecer uma visão muito
mais coesa, porque mais plural – por abarcar três e não apenas uma dimensão temporal
–, da realidade criada, que embora mais plena, não deixa de ser apenas uma realidade
maravilhosamente criada por alguém que apesar de instaurar a dúvida da epígrafe de
Manganelli a um de seus capítulos: “Lo sai, dunque, che questa è la descrizione del
nostro amore, che io non sai mai dove sei tu, e tu non sai mai dove sono io?” 5 (FARIA,
1993, p. 79), já sabe a resposta: sabe que nunca pode estar onde o outro está, e que a
recíproca é verdadeira, pois o pensamento do outro é algo do qual não se pode ter
certeza.
Se tomarmos como exemplo os atuais romances que se utilizam da História,
sobretudo os polifônicos, veremos que seguem a mesma lógica de desconstrução da
memória e multifacetação da realidade. Contudo, se nos romances polifônicos atuais, a
univocidade histórica é desconstruída pelo freqüentar de múltiplas consciências, n’O
conquistador, é a fragmentação de uma mesma consciência e de uma mesma memória
em várias, que faz com que duvidemos da matéria narrada. E não nos referimos só à
memória de um eu inicial, um eu presente e um eu (sem) futuro, mas também às
memórias advindas do entrecruzamento que a intertextualidade cria entre o Sebastião
5
“Você sabe, então, que essa é a descrição do nosso amor, que nunca sei onde você está, e você nunca
sabe onde estou?” (Tradução nossa)
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ficcional e o histórico (que faz da fala do narrador, desde o início, um concerto a duas
vozes), e, sobretudo, à memória transcodificada que se efetua do Sebastião de papel,
sujeito individual, para o sujeito coletivo, representante da nação que busca o seu Graal.
Podemos assim reconhecer em sua aparente egografia historiográfica, uma alterografia
que compõe um concerto discursivo semelhante ao criado pela polifonia romanesca
mencionada acima, mas muito mais complexo, pois trata-se de uma alterografia
composta a partir de uma egografia – que o é, fique claro, apenas no plano denotacional
do discurso. E não é só de vozes que esta é composta, mas também por uma profusão de
tempos, inclusive o de irrealidade, tudo simulando e ao mesmo tempo desconstruindo
inteligentemente a inteireza de uma verdade objetiva-fatual. Diferencia-se nisto,
fundamentalmente, do subjetivismo unipessoal daquele positivismo histórico-literário,
que só permite que fale um único ser, geralmente muito peculiar e que só considera
válida a sua visão da realidade.
E a esta alterografia, compõe também uma série de vozes com as quais o
romance dialoga, seja com poetas e escritores como Goethe, Camões, Pessoa, Joyce,
Cervantes, seja com pintores como Cristóvão de Moraes, Mário Botas, seja ainda com
adágios populares, discursos da mentalidade coletiva portuguesa, textos de cordel,
textos históricos, religiosos, mitos, enfim, tudo desmascarando a aparente univocidade e
trazendo à tona a liquidez de uma memória dita oficial, mas que nunca refletiu a sério,
por exemplo, sobre a manipulação da imprensa do governo salazarista, as invenções de
falsos documentos pelos monges de Alcobaça, e várias outras mitologias que se
arraigaram na consciência coletiva da nação e foram sendo transmitidas como verdades
sem quaisquer questionamentos.
Ora, e esta desarticulação objetiva-factual já é entrevista desde o princípio pela
própria linguagem, porque ao tom confessional do relato em primeira pessoa,
sobrepõem-se na ambigüidade estabelecida entre a História oficial e a sexual, uma série
de rimas, aliterações, jogos de palavras, adágios e provérbios populares, de que nos
valem exemplos os “Kama-sutras” e “camas- supras” (FARIA, 1993, p. 65); “Se assim
é à mesa, à cama deve ser tesa” (FARIA, 1993, p. 107); “A mulher muito doce, não a
comer logo toda” (FARIA, 1993, p. 107), enfim, uma série de recursos que, aliados ao
rebaixamento que o sexo, por si só, enquanto marcação estereotipada produz, só tendem
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palavras, outras palavras se dizem, que atrás da linearidade conforme emissão por uma
só voz se faz ouvir uma polifonia” (BRANDÃO, 1998, p. 55). E é justamente nesse
sentido, que o romance estabelece, pelo resgate da memória, uma interlocução entre
História e Literatura, de modo que ambas são identificadas como “construtos
lingüísticos, altamente convencionalizadas em suas formas narrativas, e nada têm de
transparentes em termos de linguagem ou de estrutura; sendo igualmente intertextuais”
(HUTCHEON, 1991, p. 141).
E como se a intertextualidade com a História já não conduzisse à dissolução
das fronteiras intergêneros, toda a polifonia a que nos referimos acima só faz por
contribuir para a dissolução do modelo causal-linear de romance. Ademais, o próprio
fato da personagem central d’O conquistador se colocar como a escritora do livro que
temos em mãos corrobora, incisiva e profundamente, não só para o exercício crítico e
auto-reflexivo acerca das escrituras que se empreendem na narrativa: a sua própria, no
plano textual, e a da História, no plano intertextual, como também e sobretudo, para a
confusão que se estabelece entre as entidades de escrita: enquanto narrativa de primeira
pessoa, cujo cerne é uma personagem escritora, o romance acaba por criar dificuldades
na percepção dos limites entre a figura ficcional do narrador e a figura real do autor. E
essa confusão acaba sendo refletida na forma: que é o livro que temos em mãos?
Memórias? Autobiografia ficcional? Romance? De fato, sabemos que é um romance,
mas não enquanto um gênero fechado, estável, pois revela em sua estrutura, “em
contraposição à existência em repouso da forma consumada dos demais gêneros, um
gênero em devir, como um processo” (LUKÁCS, 2000, p. 72), isto é, um gênero
desdobrado, aberto e polifônico, onde se misturam falas populares, literatura erudita,
dísticos religiosos, pinturas, textos históricos, formas de conto, poesia, autobiografias,
incorporando técnicas e linguagens que deixariam-nos de cabelo em pé se tivéssemos
como instrumento de análise a forma mimética aristotélica (que, lembremos, não têm
como base o estudo do romance).
Desta indecisão, o tema, de certo modo, passa a segundo plano e a escrita a
primeiro. Isso porque a própria escrita, no momento em que Sebastião se assume
enquanto narrador-escritor, é elevada a tema da produção ficcional de Almeida Faria.
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Nas palavras de Candido (2003, p. 206), não se trata mais de ver o texto como algo que
“se esgota ao conduzir a este ou àquele aspecto do mundo e do ser; mas de lhe pedir que
crie para nós o mundo, ou um mundo que existe e atua apenas na medida em que é
discurso literário”.
Dessa forma, pelas peculiaridades aqui constatadas, mesmo que breves, nota-se
que este romance, muito embora possa se aproximar dos romances e teses
realistas/naturalistas/positivistas de outrora, é apenas aparentemente que o faz. Pois ao
contrário daquele narrador, à semelhança de Flaubert e Ranke, que compendia de forma
fechada o destino de suas personagens (seja da História, seja da Literatura), com a
segurança e a objetividade de quem se acredita capaz de descrever a realidade, este
narrador fariano não é de confiança – adeus tranqüilidade! –; não estamos diante de
alguém que sabe verdadeiramente o que se passou. É algo como se a palavra começasse
a revelar traços de sua opacidade, mostrando que o mundo é composto por e em
fraturas, as quais o ser humano preenche ao longo de sua existência com representações
do real, mas que não são e nem pretendem ser, de nenhuma maneira, unívocas,
verdadeiras ou mesmo objetivas, pois não passam de construções narrativas que existem
e atuam, como sugeriu Candido, somente na medida em que criam para nós um mundo
que, por sua vez, existe apenas como discurso. Ou em outras palavras, o romance aqui
analisado sabe-se ficção e não têm pretensões de ser o real. É como as maçãs de
Cézanne, os girassóis de Van Gogh, as mulheres de Picasso: não chama a atenção para a
tela-texto enquanto janela do mundo real; chama a atenção para os debuxos, para as
pinceladas com que se matizam essa ficção que chamamos e acreditamos realidade.
Referências
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Magia e técnica; Arte e Política. 7ª ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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CANDIDO, A. A nova narrativa. In: ____. A educação pela noite e outros ensaios. São
Paulo: Ática, 2003, p. 199-215.
HERMANN, Jaqueline. No reino do Desejado. São Paulo: Cia. das Letras, 1998
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
Introdução
Estruturado de forma diferente, o livro de Zuenir Ventura limita seu texto ao fatídico
ano de 1968. Através de um trabalho de reconstituição histórica a partir de entrevistas,
jornais, documentos e livros, ele remonta o cenário político e comportamental da
juventude revolucionária da época. As duas obras destacam acontecimentos importantes
e decisivos daquele ano como a morte do estudante Edson Luis Lima Souto, a passeata
dos 100 mil e o decreto do Ato Institucional número 5. O cenário destes acontecimentos
é o Rio de Janeiro, embora Gabeira mencione São Paulo algumas vezes, portanto
podemos concluir que pensamos em um imaginário urbano que se contextualiza com a
ditadura militar que tem início em 1964.
Inicialmente, o artigo aborda as relações entre História e Literatura partindo dos
pressupostos da Nova História Cultural, assim, são analisados os diálogos que se
constituíram entre História e Literatura, a partir dos anos 1960, buscando perceber a
interligação desses saberes. A escolha predominante por autores brasileiros foi feita para
delinear os avanços de tais pesquisas em território nacional, são eles Antonio Celso
Ferreira e Nicolau Sevcenko; o único estrangeiro é o inglês Hyden White, precursor
destas ideias. No segundo momento, em “A(s) Testemunha(s)”, adentramos no território
da Literatura Testemunhal, tal reflexão se torna essencial se considerarmos os objetos
de estudo como tal. O cunho testemunhal das fontes e suas funções são analisados
juntamente com o autor Marcio Seligmann-Silva, que ajuda a compreender as
características adquiridas pelo autor-testemunha, caso das duas obras literárias
analisadas aqui e que conduzem o estudo do imaginário social. Estas são as propostas
para o desenvolvimento deste artigo, que parte do pressuposto de que a Literatura pode
ser muito útil aos estudos históricos pois “[...] as duas coisas operam
concomitantemente, como fossem sistemas de ondas, uma delas sendo do gênero
literário que a escrita da história pode adotar (tragédia, comédia, tragicomédia etc.) e a
outra da evidência. (...)” (Davis In: PALLARES-BURKE, 2000, p. 107)
1 História e Literatura