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Universidade Estadual de Maringá – UEM

Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350


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SERGIO KOKIS E O ENTRELUGAR

Adalberto de Oliveira Souza (UEM)

A intenção desta comunicação é tocar nos estudos canadenses para verificar aquilo
que eles podem ter de determinante e de contribuição à teoria literária atual. Além disso,
pretende-se verificar se há um elo desses pressupostos com o Brasil. Para isto,
decidimos apresentara obra de Sergio Kokis. Pretende-se comentar um pouco como foi
realizada e concomitantemente verificar os problemas apresentado na obra, tais como o
multiculturalismo, as mobilidades (trans)culturais, a pós-modernidade, o imaginário
coletivo, as identidades, a pós-modernidade, o americanismo, a americanidade e o
entrelugar. Outros conceitos poderão ser estudados também, haja vista que no Quebec
muitos estudos se preocupam com esses temas. Na verdade pretendemos observar
melhor o que ocorre nos estudos atuais sobre a arte, a literatura e a relação especial que
nos traz a obra desse brasileiro radicado no Canadá.
Como se quer estudar uma literatura em movimento, um texto que foge bastante dos
padrões costumeiros dos romances normalmente estudados, pelo menos pela condição
do autor como não nativo, vivendo numa terra de adoção, assimilando e adotando uma
nova cultura. O que nos obriga a uma postura distinta das análises comumente usada
nos romances tradicionais. O autor e o livro se encontram em uma posição de ruptura
bem singular com a historiografia literária.
Para realizar essa tarefa, não esquecemos tampouco de teóricos da modernidade.
Escolhemos Octavio Paz (1984) para quem a ruptura da modernidade atua como
mudança e como tradição, devido ao enaltecimento da negação e da continuidade e a
revolta contra os padrões tradicionais. Desde a sua origem a literatura conviveu com a
adesão ou com o rompimento; afinal, um movimento artístico nasce sempre de sua
rescisão com o anterior, cedendo espaço, mais tarde a um outro que virá para negá-lo ou
dar-lhe sequência. O autor em questão e cuja obra pretendemos estudar assume toda
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uma postura de adesão aos padrões e valores culturais do país que o acolheu. Mas
perguntamos, até que ponto?
Há muitos elemento que fogem aos padrões normais dos romances europeus e
brasileiros. Aliás, deve-se ressaltar que o Quebec tem uma cultura muito própria e muito
autocentrada, com processos estéticos e sociais marcadamente autoconscientes. E foi
justamente num meio severo desses que este autor com a sua escritura conseguiu obter
êxito. Por um lado, ele aderiu à cultura vigente e, por outro acrescentou elementos de
fora e inéditos que trazia consigo e dessa mistura nasceu sua obra dedicada à
comunidade que o leu. O autor escolheu a liberdade numa busca estética, ao mesmo
tempo, pelo novo e pelo tradicional, realizando um amálgama que ultrapassou a
novidade. Segundo Agnaldo José Gonçalves (1997, p.59):

cada artista passou a procurar, com certa persistência, a


natureza de seu objeto, a natureza de sua linguagem. Chega a
sintetizar aquele fenômeno por meio da conhecida frase de
Sócrates: “conhece-te a ti mesmo”, que de modo muito
particular, passou a reger uma das vertentes da modernidade,
nisso residindo um paradoxo dos mais marcantes: ao procurar a
essência de seu próprio meio de produção, cada artista passou
mais e mais a procurar a observar, colocar sua atenção no
sistema vizinho (GONÇALVES, p.59).

É preciso lembrar que paralelamente à sua produção literária Sergio Kokis tem
também uma obra como pintor. Só a conhecemos através das capas de seus livros que
são sempre ilustrados pelo próprio autor. No entanto, sabe-se que ela está muito
relacionada com sua própria literatura.
No que se refere à pintura e à literatura, sabemos que na época que iniciou suas
atividades no Canadá, as experiências individuais de ruptura com a estética tradicional
já estariam consolidadas. A peculiaridade de cada linguagem, tanto pictórica, quanto
verbal, torna-se o campo de onde surgirão as novas experiências artísticas. A
transgressão, a ruptura e a negação são os elementos de base que irão marcar a produção
artística desde o final do século XIX até a atualidade. Com essa perspectiva, os artistas
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utilizam a linguagem verbal para expressarem a linguagem imagética, problematizando


tanto o fazer da narrativa quanto o fazer pictórico.
No processo de consolidação e transformação do romance, escolhemos esta obra de
Sergio Kokis, L´amour du lointain (O amor pelo longínquo) que, à sua maneira,
transforma também profundamente o romance já transformado, o que é natural, dadas as
diferenças de tempo e de acumulação de experiências com que tudo ocorreu.
Estudaremos, pois, um romance do século XXI, herdeiro de tudo o que o precedeu, com
o agravante que se trata de um escritor que é também pintor. Entretanto, não se pode
esquecer do passado, mesmo que o ambiente social e cultural contemporâneos sejam
radicalmente diferentes, com o acréscimo de que o movimento criador de Kokis
apresenta inovações, uma vez que sua obra literária foi escrita nas Américas, ainda que
em língua francesa e num contexto bem diferente das literaturas européias.
Rosenfeld (1985) utiliza a palavra “desrealização” para explicar esse processo na
pintura, o fenômeno que mais tarde seria denominado por Derrida como
“desconstrução”. Na pintura, por exemplo, a partir do impressionismo os quadros
apresentados vão se fragmentando – de uma vaga sombra, dois pontos no centro do
quadro, uma mancha na tela, chega-se a inúmeras telas totalmente em branco. Nesse
caso a pintura só se concretiza na medida em que o observador se envolve
emocionalmente com o objeto. O único elemento que possibilita a conexão com a tela
vazia é o título, que funciona como elemento desencadeador da imagem, uma imagem
feita de lembranças, de referências e de memórias. Em um processo de associação livre
o observador vai pintando o quadro, criando imagens, preenchendo o espaço em branco
com sua imaginação. A desconstrução de tudo que se entende por pintura, substitui a
cor e a forma pela construção onírica do quadro. Trata-se do último passo que a pintura
poderia dar na direção da imaginação e é a Literatura que a ajuda a transpô-lo.
Essas considerações são importantes para nos ajudar na compreensão da obra de
Kokis que se situa num entrelugar, em movimento de um país para outro, na aceitação
de uma outra língua e de um outro país, e de outra expressão artística, sem negar a sua
língua ou o seu país que lhe são viscerais e na qual ele, regularmente, busca inspiração
do tema e da visão de mundo para realizar sua escritura.
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A apresentação deste projeto divide-se em duas partes, uma análise da narrativa


segundo os procedimentos da Teoria Literária e uma reflexão sobre as relações literárias
entre o Brasil e o Quebec, decorrentes dos resultados obtidos na etapas anterior, ou seja,
na análise do texto, acrescidas de uma busca de dados no extratexto, isto é, nas duas
culturas, fatos históricos, situações econômicas, concepções da arte, condição das
minorias , visões estéticas e, por fim, conjunção e disjunções literárias nas duas
sociedades, dentre outros aspectos capazes de determinar as personalidades nacionais
envolvidas, o Quebec e o Brasil contemporâneos.
O romance L´amour du lointain do escritor, Sergio Kokis foi publicado em 2004, no
Quebec. A justificativa da escolha desse autor e desse livro leva em consideração o fato
de tratar-se do elo literário mais nítido existente nas relações literárias entre o Brasil e o
Quebec que tenho notícia. Sergio Kokis conseguiu uma grande fortuna crítica no
Quebec, e, sendo brasileiro, é oportuno que seja estudado no Brasil.
A pesquisadora Eurídice Figueiredo, quando analisa sua obra, num artigo intitulado:
“Sergio Kokis: imagens do Brasil na literatura canadense” diz:

As representações generalizantes e estereotipadas do país não passariam


pelo crivo do leitor brasileiro. De uma certa maneira, o seu alter ego de
Le pavillon des miroir tem razão quando diz ter medo de voltar porque
se transformaria numa estátua de sal. Embora em Errances o
personagem chegue à conclusão de que são as mulheres que se
desvanecem quando ele olha para trás, como Eurídice e não como a
mulher de Lot, temo que Kokis, enquanto escritor, esteja condenado a
ser romancista canadense, porque se traduzido e lido por brasileiros, ele
talvez não consiga, o mesmo sucesso que obteve no Canadá. No
entanto, é preciso perceber que os caminhos são múltiplos e, quem sabe,
ele encontre um que lhe permita escrever também para brasileiros”
(FIGUEIREDO, 1997, p.62).

A conclusão da estudiosa é pertinente, uma vez que não é categórica, deixa uma
abertura para outras possíveis inferências. Ela age com equilíbrio e também não fecha a
questão. É preciso esclarecer que o seu texto foi publicado em 1997 e o livro que nos
interessa em 2004.
Há também um outro pesquisador dedicado ao autor, Renato Venâncio Henriques de
Souza, que na classificação que faz do conjunto da obra de Kokis, reconhece apenas três
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romances escritos por Kokis como parte da literatura migrante do Quebec, que ele
denomina trilogia brasileira. São eles: Le pavillon des miroirs (1994), Negão et
Doralice (1995) e Errances (1996). Como se vê, o crítico não menciona L´amour du
lointain (2004) em que pese o Brasil aí aparecer de forma bem marcante. (SOUZA, 2008
p. 93,)
A intenção do nosso trabalho é verificar se Sergio Kokis tem algo a oferecer ao leitor
brasileiro, para além da imagem do Brasil, mas sim nos assuntos expostos no seu
romance que são de atualidade e universalidade evidenciadas. O fato de ele ser
brasileiro ou canadense e de abordar temas desses dois países fica em segundo plano, as
fronteiras se diluem para dar lugar a uma escritura que extrapola formas e temáticas
regionais. No entanto, o leitor de sua obra acabará por estabelecer ligações entre o
Brasil, mesmo que sejam poucas as pessoas que conhecem sua criação literária no Brasil
e a realização de uma tradução acompanhada de uma produção crítica sobre a obra
constituiria uma contribuição importante para a compreensão entre nós desse autor de
um entrelugar tão singular como é o caso desse romance e do escritor Sergio Kokis.
A análise do livro, L`amour du lointain, objeto de estudo, levando em consideração
que o autor o classifica como “récit en marge des textes”(narrativa à margem dos
textos). O narrador inicia o seu texto da seguinte maneira:

‘Marcha’ e ‘margem’ têm as mesmas origens etimológicas, as duas


palavras se relacionando com a idéia de caminho. A língua inglesa
manteve do latim o bonito nome “marginalia”, para designar o conjunto
das notas na margem de um texto, este caminho do verdadeiro leitor,
aquele que lê com um lápis e que se apropria deste modo do livro do
autor. É o que conto fazer aqui: caminhar à margem de meus próprios
textos e de palavras, sobre minha própria vida, na esperança senão de
apropriar-me delas, pelo menos de encontrar nelas uma espécie de
panorama que me dê a ilusão de uma totalidade (KOKIS, 2004, p. 13
tradução nossa).

Desde esse começo, já se tem uma pista facilitadora para a compreensão do livro. É
um romance, ou melhor, uma narrativa autobiográfica. Por isso, será preciso utilizar
uma metodologia e uma fundamentação teórica que dêem respaldo ao relato que, em
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seguida, é apresentado. Nesse sentido, vale colocar que o livro é composto de doze
capítulos sem título. No início de seu último capítulo o narrador escreve:

Eu ignoro o que o leitor pôde compreender de si mesmo, seguindo-me


neste longo passeio à margem de minha vida e de meus escritos. Eu, em
todo caso, volto a mim mesmo com uma enorme serenidade e com um
sorriso irônico nos lábios diante do esforço imenso que me foi preciso
desdobrar para chegar a me compreender melhor (KOKIS, 2004, p.300,
tradução nossa).

Pode-se notar que se trata de uma viagem ao interior de si mesmo e de seus textos,
quase de uma autoanálise. Isto não poderá ser esquecido durante toda a realização do
trabalho. Há uma preocupação bem subjetiva que envolve também uma reflexão, um
confronto entre a vida e a escrita. A vida explica a obra, mas a obra explica a vida? Eis
um grande tema ou desafio que este livro coloca. Até que ponto a obra tem relação com
a própria vida e vice-versa. Este livro é um convite para esta reflexão e se constitui
numa instigante proposta de exercício crítico, uma oportunidade única de realização de
uma tarefa complexa, porém altamente compensadora se levada a bom cabo.
Há informações de várias origens sobre Kokis, e escolhemos esta de um depoimento
em um colóquio realizado na Universidade de Montreal. Inteiramo-nos que Sergio
Kokis nasceu em 1944 no Rio de Janeiro:

Oriundo de um meio pobre foi preso e levado para uma casa de


correção, onde recebeu uma educação que de outra forma não lhe teria
sido permitida. Mais tarde ainda no Rio de Janeiro, freqüentou a Escola
de Belas-Artes e, depois, estudou Filosofia. A partir de 1963, aderiu ao
movimento comunista combatendo a ditadura que a pouco a pouco se ia
implantando na sua terra. Denunciado pelos próprios líderes e
companheiros do seu partido, conseguiu fugir e acabou por exilar-se em
França. Na universidade de Strasbourg, Sérgio Kokis terminava, em
1969 uma licenciatura em Psicologia enquanto, no Brasil a ditadura
estava para durar. Exilou-se mais tarde no Canadá, onde trabalhou
durante muito tempo, no domínio da Psicologia.
Em 1994 foi publicado o seu primeiro livro: Le pavillon des miroirs,
que recebeu vários prêmios. (sic) Reportagem de Kathy Santos e
Daphné Vieira
http://www.teiaportuguesa.com/lusografo/sergiokokis.htm acessado em
23/08/2009
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Nessas poucas linhas biográficas, podemos perceber traços insuficientes de sua


trajetória. Na verdade isto é parte de um texto que descreve uma palestra de Sergio
Kokis, ou melhor, de um bate-papo com Luís Aguilar, professor de Língua Portuguesa e
Cultura Lusófonas, em Montreal.
A literatura quebequense costuma ser estudada de forma diversa das literaturas
europeias. Ficam observadas suas características próprias. Nepveu (1988), por exemplo,
demarca fases pelas quais passou a literatura do Quebec. Ele propõe a seguinte divisão a
partir dos anos 1960: a Estética de fundação (1960-1969), a Estética de transgressão
(1970-1979) e A estética de ritualização (1980). Roseline Tremblay (2004) tratando do
tema do personagem escritor na literatura do Quebec, aponta uma forte intertextualidade
com grande parte da produção literária das Américas. Reforça também o problema do
deslocamento, a desterritorialização, as migrações, a mestiçagem e a busca identitária,
como características fundamentais dessa literatura.
Não pretendemos realizar uma abordagem que dê conta de toda a história da
literatura do Quebec, mas o que interessa é o que implica a situação de Sérgio Kokis.
No capítulo 6 de seu livro Littérature du Québec, intitulado “De la Révolution
tranquille aux écritures migrantes”, Pont-Humbert (1998) nos apresenta itens para
mostrar o processo pelo qual passou esta literatura: “la spécificité québécoise” “du joual
au québécois”, “une littérature en ébullition”, “l´épreuve formelle en poésie, “le livre
dans le livre”, “l´écrivain dans le roman”, “être américain”, “la littérature ‘liberée’ du
pays”, “ les écritures migrantes”, “le chapitre ouvert des années 1990”. Como se vê
nesses títulos, ainda que no momento não seja o caso de se deter sobre cada um deles,
Sergio Kokis se enquadra na literatura quebequense sobretudo no tema das escritas
migrantes e sobretudo no capítulo aberto dos anos 1990.
A maioria francófona do Quebec não é suficiente para estabelecer o
quadro de realidades quebequenses. Se ela se afirmou com muito vigor,
ela caminha ao lado minorias que, também, aprenderam a tomar a
palavra. Numa cultura que se internacionaliza, o papel dos criadores
chamados de “neo-quebequenses” reside nas suas contribuições a essa
internacionalização. Eles cultivam e transformam o imaginário trazendo
pontos de vista novos, sensibilidades diferentes sobre temas
quebequenses. (PONT-HUMBERT, 1998, p. 113 - tradução nossa)
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Ocorre que Sérgio Kokis publicou no Quebec seu primeiro livro em 1994, Le
Pavillon des miroirs, portanto apesar de podermos classificar sua escrita migrante,
dentro da proposta classificatória de Pont-Humbert, ele estaria também em outro
estágio: “o capítulo aberto dos anos 1990”, do qual ela diz:

O capítulo dessa última geração de escritores fica inteiramente aberto e


seria muito presunçoso querer expor eixos temáticos ou estilísticos
significativos. Muito bem, trata-se de uma geração desiludida,
frequentemente crítica com relação a uma sociedade de consumo cujos
valores parecem apenas repousar mais no dinheiro e no sucesso.
Qualificando-os de “romancistas da desesperança”, quisemos sublinhar
o peso, nas suas obras, da desocupação, da solidão, da pobreza, da
droga, da errância [...] ( PONT-HUMBERT, 1998, p. 116 - tradução
nossa).

Sabe-se, por meio de informação de seus estudiosos que o autor em questão


escreveu um ensaio Franz Kafka e a expressão da realidade (1967) ainda no Brasil, e
que antes de se tornar um escritor de sucesso exerceu a profissão de psicanalista e
sempre se dedicou à pintura, que caminha ao lado de sua literatura. Nas primeiras
páginas de L`amour du lointain estão mencionados os doze livros que escreveu
anteriormente: Le pavillon des miroirs, (Montréal, XYZ éditeur, 1994) com o qual
ganhou 4 prêmios: Prix de l`Académie des lettres du Québec, Grand prix du livre de
Montréal, Prix Québec-Paris, Prix Desjardins du Salon du livre de Québec; Negão et
Doralice, (Montréal, XYZ, éditeur, 1995); Errances, (Montréal, XYZ éditeur, 1996);
Les langages de la création, (Québec, Nuit blanche éditeur, 1996); L´art du maquillage,
(Montréal, XYZ éditeur, 1997), com o qual ganhor o Grand Prix des lectrices de Elle
Québec, 1998; Un sourire blindé, (Montréal, XYZ éditeur, 1998); La danse macabre du
Québec, (Montréal, XYZ éditeur, 1999); Le maître de jeu, (Montréal, XYZ éditeur,
1999); Saltimbanques, (Montréal XYZ, 2000); Kaléidoscope brisé, (Montréal, XYZ
éditeur, 2001); Le magicien, (Montréal, XYZ éditeur, 2002); com o qual ganhou o Prix
Québec-Mexique, 2003; Les amants de l`Alfama, (Montréal, XYZ éditeur, 2003).
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Podemos, assim, constatar que ele ganhou seis prêmios literários, isso revela sua
aceitação pela crítica quebequense. Nota-se, também, que nos primeiros livros a
presença do Brasil é mais forte, tanto que são chamados de a trilogia brasileira. Nos
outros seguintes, os temas são outros. Seria bom verificar quanto o Brasil está presente
em cada um deles. O certo é que no livro que nos propusemos a analisar a presença do
Brasil é muito forte.
Na obra objeto de estudo, o autor coloca três epígrafes: uma de Nietzsche: Mes
frères, c`est n´est pas l`amour du prochain que je vous conseille; je vous conseille
l´amour du lointain ( Meus irmãos, não é o amor pelo próximo que eu lhes aconselho;
eu lhes aconselho o amor pelo longínquo) ; outra de Miguel Torga: c`est à travers la
mémoire que notre passé joue son avenir ( é através da memória que nosso passado
representa seu futuro; outra de Blaise Cendrars: écrire n´est pas mon ambition, mais
vivre. J`ai vécu. Maintenant j`écris ( escrever não é minha ambição, mas viver. Eu vivi.
Agora escrevo). Essas epígrafes revelam suas leituras e suas admirações, mas também
compromissos, inquietações e intenções filosóficas que norteiam a própria escritura do
texto..

Citando Nietzsche, ele demonstra sua preocupação filosófica com a modernidade e


com a posmodernidade e todas as questões existenciais que esta condição implica. Já
referindo-se a Miguel Torga, ele demonstra sua ligação com Portugal, pois há vários
índices de ligação com este país. Kokis não voltou ao Brasil, mas esteve várias vezes
naquele país, segundo informações que tivemos e pretendemos averiguar com mais
precisão.
Já no que concerne a Blaise Cendrars, tudo fica mais revelador ainda. A obra de
Cendrars mostra o viver no entrelugar: as viagens constantes, a escolha de outro país de
adoção, como está sobejamente demonstrado, inclusive, em trabalhos nossos publicados
a esse respeito, uma vez que nossas pesquisas anteriores tiveram uma ligação com a
obra de Cendrars. Ali está explicitado que um dos tópicos de Blaise Cendrars é sua
Utupialand, a terra da utopia, o longínquo. Há outros elementos da obra dele que serão
de extrema valia para cotejarmos com a obra de Sergio Kokis.
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Albert T`Serstevens no seu livro, L´homme que fut Blaise Cendrars, dá a sua opinião
sobre o amor que Cendrars sentia pelo Brasil:

Embora ele tenha guardado desse país uma forte lembrança retomada
tantas vezes em seus livros, não parece que ele o tenha amado muit:
parece-me que tenha se decepcionado com este país. Como seu amigo
Paulo Prado, que ele nos diz ter morrido dessa desilusão, não encontrara
nada do ardor, da vitalidade que ele esperava do Brasil.
Frequentemente, ele falou-me dele com uma espécie de negligência
desdenhosa e na dedicatória que ele me escreveu num exemplar do
catálogo de Mônaco, acrescenta sob o título impresso: Para que você
não vá lá. No fundo, ele amou, sobretudo, os países que sonhou visitar
(T`SERSTEVENS, 1972, p.141 – tradução nossa).

A referência ao Catálogo de Mônaco trata-se de uma alusão ao prefácio que fez


Cendrars a um conjunto de fotos do Brasil realizadas por Jean Manzon, o célebre
cineasta que atuou no país durante décadas, e publicadas em 1952 pela editora
Documents d`Arts de Mônaco.
É importante agora que falemos sobre o entrelugar, uma vez que a tradução, a
trajetória literária do autor que vamos estudar e o livro a ser analisado encontram-se
classificados dentro deste conceito. No texto de Sergio Kokis, a situação é mais
complexa, visto que há outra voz, outra língua que ecoa. Há outro país o acompanha.
Por isso, vamos ter que estudar este assunto dentro desse aspecto.
Núbia Jacques Hanciau no artigo “Entre-lugar” (FIGUEIREDO 2005, p. 127) nos
explica que este termo criado por Silviano Santiago no texto” O entre-lugar do discurso
latino-americano” nos anos de 1970. O conceito de entrelugar, segundo ela, toma outros
nomes. Para Edouard Glissant se chama lugar intervalar, para Alberto Moreiras, tercer
espacio, Homi K. Bhabha, espaço intersticial, para a revista Chora, the thirdspace, para
Walter e S. Gruzinski, in-between, para Zilá Bernd, caminho do meio, para Mary Louise
Pratt, zona de contato, para Ana Pizarro e S. Pesavento, zona de fronteira. Quanto a
Régine Robin, hors-lieu. E continua:

são algumas, entre as muitas variantes para denominar, nesta virada de


século, as “zonas” criadas pelos descentramentos, quando da debilitação
dos esquemas cristalizados de unidade, pureza e autenticidade, que vêm
testemunhar a heterogeneidade das culturas nacionais no contexto das
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Américas e deslocar a única referência atribuída à cultura européia


FIGUEIREDO, 2005, p. 127).

Acreditamos ter até o momento ter material suficiente para estudar a questão e
pretendemos ampliá-lo para poder aprendermos mais sobre este assunto e para
atingirmos nosso objetivo de apreensão mais aprofundada da obra objeto de nosso
estudo. Nosso tema se adapta muito bem a este objeto de estudo: um escritor de origem
brasileira que, de algum modo, troca sua identidade e consegue um reconhecimento
num outro país, numa outra cultura, outra expressão artística, outra língua. Destaca-se
nesse nosso trabalho uma preocupação com o problema da identidade do autor, em
relação à heterogeneidade cultural do seu país por encontrar, por incrível que possa
parecer, ressonâncias em nossa própria nação e literatura. A análise do romance
permitirá realizarmos verificações sobre uma série de problemas tão importantes para o
nosso trabalho dentro da Universidade, assim como para deixarmos um legado de
análise, por pequeno que seja para futuras gerações brasileiras. A prática crítica
acadêmica deve permanecer cada vez mais próxima da realidade sociocultural, para
atingir seus objetivos científicos e educacionais. É o que este estudo poderá vir a
contribuir significativamente. Nossa tentativa visa a responder essas questões e é por
isso que propomos esta pesquisa, buscando preencher aquilo que poderíamos também a
nosso turno, nomear como um entrelugar teórico-literário a demandar compreensão.

Referências

FIGUEIREDO, Eurídice. Conceitos de literatura e cultura. Rio de Janeiro:


Ed.UFJF/EDUFF, 2005
FIGUEIREDO, Eurídice; SANTOS, Eloína Prati dos. Recortes transculturais. Niterói:
Ed. EDUFF, 1997.
GONÇALVES, Agnaldo José. Relações homológicas entre literatura e artes plásticas.
Algumas considerações. In: ___ Literatura e sociedade 2. Revista de teoria literária e
literatura comparada. São Paulo: Bartira, 1997, p. 58-68.
KOKIS, Sergio .Errances. Montréal: XYZ éditeur, 1994.
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KOKIS, Sergio. Franz Kafka e a expressão da realidade. Rio de Janeiro: Tempo


Brasileiro, 1967 (Temas de todos os tempos)
KOKIS, Sergio. L´amour du lointain: récit en marge des textes. Montréal: XYZ éditeur,
2004.
KOKIS, Sergio. Le pavillon des miroirs. Montréal: XYZ éditeur, 1994.
KOKIS, Sergio. Negão et Doralice. Montréal: XYZ éditeur, 1994.
NEPVEU, Pierre. L´écologie du réel. Montréal : Boréal, 1988
PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do Romantismo à vanguarda. Trad. SAVARY, Olga.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
PONT-HUMBERT, Catherine. Littérature du Québec. Paris : Nathan, 1998
ROSENFELD, Anatol & GUINSBURG, Jacob. Romantismo e classicismo. In:
GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1985
SANTIAGO, Silviano Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000
T`SERSTEVENS, Albert. L`homme que fut Blaise Cendrars. Paris, Denoël, 1972
TREMBLAY, Roselyne. L´écrivain imaginaire: essais sur le roman québécois. 1960-
1995. Montréal : Cahiers du Québec, 2004 ( Littéraire)
SOUZA, Renato Venancio Henriques de. « Escrita e tradução : as línguas de Sergio
Kokis. » Interfaces Brasil/Canadá. Revista da Abecan n.8, , 2008.
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O OUTRO A DESPERTAR O MESMO: ANÁLISE DE “O AFOGADO MAIS


BONITO DO MUNDO”, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

Adelaide Caramuru Cezar (UEL)


Volnei Edson dos Santos (UEL)

Objetiva-se análise de “O afogado mais bonito do mundo”, conto escrito pelo


colombiano Gabriel García Márquez (1928) em 1968 e pelo autor inserido em A incrível
e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada, coletânea constituída por
sete contos curtos publicada em 1972. Todavia, antes da objetivada análise, abre-se aqui
espaço para uma pequena observação de ordem mais geral. No conto, o autor nos
conduz por um caminho bastante interessante, mas, por vezes, não devidamente
valorizado no que se refere à aceitação do aspecto formal da fantasia e da imaginação a
nos influenciar constantemente na elaboração que fazemos de nossa existência
cotidiana. Admitindo-se este caminho, pode-se mesmo dizer que a fantasia e a
imaginação se encontrariam sempre a fundamentar nossas mais preciosas
representações.
Neste sentido, firmados em bases extra-lógicas e no solo sempre movediço das
analogias, nos encontraríamos, desta forma, confrontados com aquilo que bem poderia
servir de limite para as nossas certezas. Essas nossas certezas, no fim das contas,
relativas, nos reenviariam assim à expressão como se enquanto um procedimento
bastante valioso e bastante utilizado, inclusive pela filosofia e ciência, no intuído de nos
tornar possíveis, no discurso, situações improváveis em sua realização. A expressão se
nos faz necessária pelo fato de sempre vivermos nos limites da vertigem que prova a
nossa razão em face daquilo que a ultrapassa, em suma, diante daquilo que nos inibe em
nossa exacerbada vontade de verdade. Nossa representação não nos viria aqui da luz
racional, mas sim da luz da fantasia a embaralhar sonho e realidade, instinto e razão,
corpo e espírito. E nossas mais variadas formações de mundo nos revelariam, no terreno
da experiência, nosso modo fantástico de habitar nossos espaços de convivência. Após
esta breve observação, passa-se agora à pretendida análise do conto em questão,
enveredando com cuidado pelo mundo do fantástico a causar estranhamento no leitor e
também modificações nos valores enraizados.
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“O afogado mais bonito do mundo” é narrativa em terceira pessoa na qual, de


maneira distanciada, o narrador não denominado conta como um corpo de afogado,
encontrado por crianças em praia caribenha, desperta na pequena comunidade de
pescadores que o acolhe as mais diferentes reações, conduzindo-os à reelaboração dos
valores até então dominantes. O tema do conto consiste, pois, no relato de como o
encontro com o outro, com elemento de fora, sem vida, desperta nos vivos desejos e
atitudes até então impensados, modificando radicalmente suas vidas. Partindo deste
ponto de vista, a alteridade pode ser considerada como sendo a questão central do conto
em pauta. O outro, o estrangeiro, desperta nos mesmos, no caso, na comunidade de
pescadores, valores, ainda que sempre existentes, até então adormecidos. Reconhecem
no outro uma representação deles mesmos pelo viés de possibilidades a serem
efetivadas.
O narrador em terceira pessoa usa, em praticamente todo seu relato, o verbo na
terceira pessoa do plural a marcar que sua narrativa é decorrente de seu olhar que se
atém a grupos, a conjuntos, seja de meninos, seja de homens, seja de mulheres, seja de
viajantes, que enfocam um mesmo elemento: o corpo do afogado recém chegado. As
únicas individualidades presentes no texto são as do narrador, do narratário e a de
Estevão, ou seja, a do afogado. Interessa ao narrador não a individualidade de Estevão,
mas sua ação sobre o grupo. O narrador registra o encontro dos mesmos como outro e a
atuação deste, ser desprovido de vida, sobre os primeiros, modificando-os. Não se sabe
quem nos conta a história. Sabe-se, no entanto, que este narrador é capaz de adentrar-se
nos pensamentos e nas emoções dos diferentes membros da comunidade de pescadores
e transmitir a seu leitor, por seu relato, esta atuação.
Poucas são as vezes que o narrador fala sem a mediação dos olhares e pensamentos
coletivos. Ocorre quando quer descrever a aridez do espaço antes da chegada do morto e
quando quer situar a história no tempo cronológico:
O povoado tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de
pedra sem flores, dispersas no fim de um cabo desértico. A terra era
tão escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento
levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando
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tinham que atirar das escarpas. Mas o mar era manso e pródigo, e
todos os homens cabiam em sete botes 1.
Depois da meia-noite diminuíram os assovios do vento e o mar
caiu na sonolência da quarta-feira (p. 50).

Já no primeiro parágrafo do conto é marcada a oposição entre os elementos da terra e


aquele que chega do mar. Os meninos são os que o recebem. Tomam-no como “o
volume escuro e silencioso”. Gradativamente vão procurando pela identidade: “um
barco inimigo”, “uma baleia”. Compete ao narrador onisciente ir revelando como
chegaram ao conhecimento de que se tratava apenas de “um afogado” e revelar ao leitor
como se relacionaram com ele: tomam-no como um brinquedo a ser enterrado e
desenterrado. O afogado chegou, pois, segundo palavras do onisciente narrador, na
terça-feira, tendo permanecido com os filhos dos pescadores durante todo o período da
tarde. Coube a um anônimo tirar dos meninos o brinquedo, dando “o alarma no
povoado” (p. 48).
Enquanto as crianças com ele logo se familiarizaram, os adultos o tomam, de
imediato, como “um morto estranho” (p. 48). A estranheza é proveniente, segundo nos
revela o narrador, do peso, do tamanho e do cheiro. Tudo nele excede ao conhecido.
Não causa, no entanto, enquanto defunto, tarefas outras que não as costumeiras em tais
situações. Os homens saem em busca da família do morto. As mulheres cuidam de
preparar seu corpo para a despedida. O trabalho faz-se de maneira gradativa, cuidando o
narrador de descrever minuciosamente ao leitor como as mulheres o empreendem:
“Tiraram-lhe o lodo com escovas de esparto, desembaraçaram-lhe os cabelos dos
abrolhos submarinos e rasparam a rêmora com ferros de descamar peixes” (p. 49).
Descritas as ações das mulheres de maneira a revelar que o afogado, ainda que
humano, vinha recoberto de especificidades do mar, submetendo as mulheres, para o
limparem, a exercícios que exigiam delas muita força física, o narrador onisciente
adentra-se nos pensamentos destas mulheres que vêem naquilo que retiram do corpo do
afogado a história de sua trajetória bastante distante e diferente daquela por elas,

1
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O afogado mais bonito do mundo. In: ______. A incrível e triste
história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Trad. Remy Gorga, Filho. Rio de Janeiro: Record,
2009. p. 48. Todas as citações deste trabalho referentes ao conto analisado serão retiradas desta edição.
Indicaremos, portanto, apenas a sua página.
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mulheres enraizadas no solo caribenho, conhecida. A vegetação que estava agregada ao


corpo do afogado foi visto, conforme palavras do narrador, como “de oceanos remotos e
de águas profundas” (p. 49). O estado de suas roupas revelava ter antes “navegado por
entre labirintos de corais” (p. 49). Note-se que o mundo lendário vem à tona,
acompanhado da figura do herói épico a caracterizar-se por sua diferenciação superior
aos demais homens que lhes são familiares. As mulheres vêem naquilo que retiram do
corpo do afogado sua origem remota e sua ação efetivada num mundo encantado. O
reconhecimento do fato de ser ele “o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais bem
servido que jamais tinham visto” (p. 49) traz a elas a dura consciência de que tal
homem, ainda que diante delas, “não lhes cabia na imaginação” (p. 49), dado nunca
terem com algo similar se deparado.
O narrador continua seu relato, ocupando-se agora do encadeamento das ações das
mulheres após terem cuidado do corpo do morto: procuram por uma cama na qual o
corpo do afogado caiba, por uma mesa onde o possam velar, por roupas que o vistam,
por sapatos que o calcem. Tal procura é empreendida em suas casas e o fato de não
encontrarem nada que possa ser utilizado pelo homem que veio do mar leva-as à
constatação da pequenez do mundo por elas conhecido. A estranheza da nova situação
pede delas ações outras e decisões: “Fascinadas por sua desproporção e sua beleza, as
mulheres decidiram então fazer-lhe umas calças com um bom pedaço de vela
carangueja e uma camisa de cretone de noiva, para que pudesse continuar sua morte
com dignidade” (p. 49). Note-se que as decisões delas têm origem em seus valores. As
calças deveriam ser fortes, rijas. Numa comunidade de pescadores, o tecido que mais se
presta para tal fim é o de “vela carangueja”. Ao mesmo tempo, elas sonham com este
homem para si e, para tanto, fazem-lhe “camisa de cretone de noiva”. E mais se adentra
o narrador nos pensamentos das mulheres, levando-as a cogitarem como a casa dele, se
tivesse sido construída neste povoado de pescadores, modificaria a realidade do mesmo:
“Pensavam que se aquele homem magnífico tivesse vivido no povoado, sua casa teria as
portas mais largas, o teto mais alto e o piso mais firme, e o estrado de sua cama seria de
cavernas mestras com pernas de ferro, e sua mulher seria a mais feliz” (p. 49-50). A
partir dele, de sua casa, começam, em sonhos relatados pelo narrador, a devanear sobre
a mudança do mundo em que vivem, mundo sem flores, sem terra, onde dominam as
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pedras, conforme foi descrito pelo narrador no segundo parágrafo do conto e aqui
ressaltado. O mundo que tivesse o afogado como homem do dia a dia, além das portas
largas, dos tetos altos, dos pisos firmes, das camas fortes, teria uma maneira mais fácil
de viver, vida com muita água minando da terra, muitas flores enfeitando a paisagem:
“Pensavam que tivera tanta autoridade que poderia tirar os peixes do mar só os
chamando por seus nomes, e pusera tanto empenho no trabalho que fizera brotar
mananciais entre as pedras mais áridas, e semear flores nas escarpas” (p. 50).
Em meio a tantas fantasias, surge a preocupação em dar nome ao afogado. Seria
Estevão? Trata-se de nome de santo que foi apedrejado em vida. Este nome é-lhe
atribuído pela senhora mais velha do grupo, imbuída, como salienta o narrador, de
“menos paixão” (p. 50) ou, até mesmo de algo próximo ao significado do idiota, no
interior da psicologia de Dostoiesvski, retratado em seu deslocado existir. Este último
significado presta-se à maneira como o grupo de mulheres imagina ter sido sua vida:
repleta de generosidade, benevolência e, dado tal fato, visto pelos outros como pouco
inteligente:
Viram-no condenado em vida a passar de lado pelas portas, a ferir-se
nos tetos, a permanecer de pé nas visitas, sem saber o que fazer com
suas ternas e rosadas mãos de boi marinho, enquanto a dona da casa
procurava a cadeira mais resistente e suplicava-lhe, morta de medo,
sente-se aqui Estêvão, faça-me o favor, e ele encostado nas paredes,
sorrindo, não se preocupe senhora, estou bem assim, com os
calcanhares em carne viva e as costas abrasadas de tanto repetir o
mesmo, em todas as visitas, não se preocupe senhora, estou bem
assim, só para não passar pela vergonha de destruir a cadeira, e talvez
sem ter sabido nunca que aqueles que lhe diziam não se vá, Estêvão,
espere pelo menos até que aqueça o café, eram os mesmos que,
depois, sussurravam já se foi o bobo grande, que bom, já se foi o bobo
bonito (p. 51).

Seria Lautaro? Poderia ser também esta a denominação a ser atribuída ao afogado,
dado o registro em seu corpo de força, determinação, paixão e carisma, segundo desejos
inconfessos das personagens caribenhas mais novas e apaixonadas presentes no conto
de Gabriel García Márquez. Ao denominarem o afogado desta forma, as jovens
mulheres revelam ver nele a beleza do herói presente no poema épico intitulado La
Araucara, do escritor espanhol Alonso de Ercilla (1533-1594). Lautaro pertencia à tribo
mapuche. Esta é a denominação de civilizações nativas da América Latina que
resistiram bravamente aos colonizadores espanhóis, travando contra eles uma batalha
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que teve duração de trezentos anos (1536 a 1818). A possibilidade de assim denominá-
lo é logo descartada, pois as jovens mulheres “compreenderam quanto devia ter sido
infeliz com aquele corpo descomunal” (p. 50-51), não poderia, pois, ter sido o referido
herói latino-americano, que viveu, seguramente, em conformidade com seu corpo.
Acabam por aceitar compreensivamente a primeira denominação, Estêvão, aquela de
um santo martirizado proposta pela senhora mais velha.
Também os homens o reconhecem como Estêvão. Vêem nele a fragilidade, a pureza
de intenções, a vergonha de seu tamanho descomunal. Logo depois que as mulheres
tiram do rosto do afogado o lenço que o protegia da luz, percebem que, se o
denominassem Sir Walter Raleigh, estariam atuando contra as características do morto,
pois longe de ser o conquistador, misto de astúcia e velocidade “com seu sotaque de
gringo, com sua arara no ombro, com seu arcabuz de matar canibais” (p. 53), era um
pobre infeliz, tão humilde quanto cada um dos moradores do povoado, conforme o
narrador nos faz saber:
Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estava
envergonhado, de que não tinha a culpa de ser tão grande, nem tão
pesado, nem tão bonito, e se soubesse que isso ia acontecer, teria
procurado um lugar mais discreto para afogar-se, de verdade, me
amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e teria
tropeçado como quem não quer nada nas escarpas, para não andar
agora estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês
chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de presunto
que nada tem a ver comigo (p. 53).

O discurso registrado no conto é revelador. Já foi dito que o narrador mantém-se


distanciado, fazendo uso da terceira pessoa do plural a marcar que traduz em palavras
aquilo que vê pela mediação dos moradores. Inicialmente eles vêem “volume escuro e
silencioso”, que pensam ser “um barco inimigo”, “uma baleia”, que passa a ser
reconhecido como “um morto estranho” com o qual vão gradativamente se
familiarizando. De ser altivo, herói épico, passam a ver no afogado um ser fragilizado
cujo discurso humilde aparece por dois distintos momentos registrado no conto, seja
quando os moradores do povoado imaginam o que dizia em vida às pessoas às quais
visitava ? “não se preocupe senhora, estou bem assim, com os calcanhares em carne
viva e as costas abrasadas de tanto repetir o mesmo, em todas as visitas, não se
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preocupe senhora, estou bem assim (p. 51, destaques nossos) ? , seja quando se
desculpa frente aos homens que pela primeira vez lhe vêem o rosto:
me amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e teria
tropeçado como quem não quer nada nas escarpas, para não andar
agora estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês
chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de presunto
que nada tem a ver comigo (p. 53, destaques nossos).

Este ser tão humilde só poderia chamar-se Estêvão, um misto de nativo, Laudaro, e
de colonizador, Sir Walter Raleigh. Talvez a humildade que o caracteriza seja a de uma
outra raça que em seu sangue se faz presente, a de um negro anônimo. Estêvão
apresenta-se, pois, como resultado de uma síntese a caracterizar o homem latino-
americano, sejam os de língua espanhola, sejam os de língua portuguesa, todos
humildes terceiro-mundistas a viverem a cotidianidade sem grandeza, sem orgulho, sem
competência para encantar o outro com “antigas fábulas de sereias” (p. 54).
Estêvão, que vem de fora, apresenta-se como o “duplo exterior” da comunidade de
pescadores. Através dele, cada um de seus membros, estranhando seu aspecto, passa a
olhar para si mesmo, até que, ao final, o que era estranho torna-se familiar, revelando
uma possibilidade de ser diferente daquela que lhes era conhecida. Assim sendo, o
“duplo exterior” transforma-se em “duplo interior”.
Freud, em 1919, publicou artigo intitulado “Das Unheimliche”, traduzido como “El
sinistro”, “L’inquiétante étrangeté”, “O estranhamente familiar”, “O estranho”, “O
inquietante”. Neste ensaio, o psicanalista toma como ponto de partida estudo semântico
do adjetivo alemão heimlich (familiar) e de seu antônimo unheimlich (secreto, íntimo,
escondido, inquietante, macabro, tenebroso, esquisito, misterioso, dissimulado). Toda a
primeira parte deste ensaio é dedicada às diferentes significações destes adjetivos,
recorrendo até mesmo a dicionários de outras línguas. O resultado é a coincidência final
dos dois adjetivos, conforme se lê no derradeiro parágrafo desta primeira parte do
ensaio, onde o psicanalista remete ao significado dado por Schelling: “ ‘Unheimlich’ é o
nome de tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz” (FREUD,
1976, p. 91).
Seguindo as colocações de Freud, Estêvão é o morto que veio de fora, o forasteiro, o
“duplo exterior” dos tranqüilos e acomodados pescadores. Ao chegar, desperta
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estranhamento nos membros desta comunidade de pescadores que o acolhe, levando-os


ao questionamento e, ao final, à percepção de que aquilo que achavam que lhes era
estranho, era-lhes, em verdade, familiar, não tendo sido antes percebido devido ao fato
de estar, há muito tempo, recalcado. O “duplo exterior” desperta, pois, o “duplo
interior” que, até o momento do encontro, não tinha podido ser percebido.
No conto de Gabriel García Márquez, a descoberta de si mesmo através do outro é
efetivada com festa na qual as flores abundam, contrastando com aquele povoado
presente no início da narração no qual o narrador registrou seus “pátios de pedras sem
flores”. Ao final,
Algumas mulheres, que tinham ido buscar flores nos povoados
vizinhos, voltaram com outras que não acreditavam no que lhes
contavam, e estas foram buscar mais flores quando viram o morto, e
levaram mais e mais, até que houve tantas flores e tanta gente que mal
se podia caminhar (p. 53-54).

Assim, tanto uma transfiguração interior de si mesmo quanto uma transfiguração


exterior do espaço do vivido cotidiano, em torno deste “desvalido” (p.51) e “envergonhado” (p.
53) afogado, parecem conspirar secretamente para a reconciliação desta comunidade consigo
própria. Um pouco antes de lançá-lo novamente ao mar e num momento de intensa
comoção na qual o choro ouvido ao longe acaba por confundir marinheiros, fazendo-os
perder “a segurança do rumo” (p. 54) e pensar, por um momento, escutar o canto de
sedutoras sereias, resolvem não devolvê-lo assim tão órfão. Deste modo, num ato que
mais se liga ao de uma atividade cartorial, na qual se emite um documento de
identificação, resolvem dar-lhe “um pai e uma mãe dentre os melhores” (p. 54) e,
também, fazem dos demais “seus irmãos, tios e primos de tal forma que, através dele,
todos os habitantes do povoado acabaram por ser parentes entre si” (p. 54). Ao modo de
uma reciprocidade, ao mesmo tempo em que o acolhem como parente e se tornam
parentes entre si, passam, também, a ser conhecidos para além de suas próprias
fronteiras como o “povoado de Estevão” (p. 55).
Enfim, nesta longa e intensa noite na qual nem mesmo os homens “foram
trabalhar no mar” (p. 48), a presença deste “morto estranho” (p. 48) a revirar terras
interiores e exteriores fez com que algo de novo fosse inoculado no cotidiano deste
povoado, dando-lhes uma nova compreensão e perspectiva do seu agora fantástico
espaço de sociabilidade:
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Jogaram-no sem âncora, para que voltasse se quisesse, e quando o


quisesse, e todos prenderam a respiração durante a fração de séculos
que demorou a queda do corpo até o abismo. Não tiveram necessidade
de olhar-se uns aos outros para perceber que já não estavam todos,
nem voltariam a estar jamais. Mas também sabiam que tudo seria
diferente desde então [...] (p. 54).

REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. O estranho. In: ________. Obra completa. v. VII. Edição standart
brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Trad. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1976.

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O afogado mais bonito do mundo. In: ______. A incrível e
triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Trad. Remy Gorga, Filho. Rio
de Janeiro: Record, 2009.
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O DISCURSO PERFEITO: UMA ANÁLISE DO CONTO DOS PALABRAS

Adenilson de Barros de Albuquerque (PG - CTESOP)

Introdução

Um chefe de um grupo de foras da lei compra um discurso, para ser usado durante três
meses de campanha eleitoral, o qual consegue deixar toda a população de um país
convencida de que não poderiam existir palavras melhores e tão bem ditas.
Analisar os aspectos que possivelmente contribuíram para a criação desse discurso assim
como os que influenciaram para seu incrível sucesso frente à população é o principal
objetivo deste estudo já que, até para o leitor menos atento, não parece ser muito fácil
aceitar tais ocorrências nos moldes que Isabel Allende sugere. Um resumo do conto, assim
como algumas considerações a respeito de grupos de foras da lei possivelmente
semelhantes ao do Coronel (chefe do grupo), também será apresentado além de algumas
ponderações em relação a aspectos intertextuais e ao modo como a protagonista da
narrativa aprendeu a ler e escrever. Posto isso, é possível perceber que as páginas seguintes
apresentarão postulações relacionadas ao discurso, à ideologia e ao poder em alguns pontos
da sociedade que, direta ou indiretamente, fazem parte do mundo de Dos palabras.

1. Dos palabras

Ao chegar numa aldeia nas proximidades do litoral, Belisa Crepusculario se deparou


com uma folha de papel. A um homem que estava próximo perguntou o que era aquilo. Ele
lhe respondeu que era uma página de jornal. Ao indagar sobre o significado das patas de
mosca desenhadas na folha e ao obter a resposta de que aquilo eram palavras, nesse dia
Belisa Crepusculario se enteró que las palabras andan sueltas sin dueño y cualquiera con
un poco de maña puede apoderárselas para comerciar con ellas (ALLENDE, 2000, p.
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17) 1.
A primeira forma que ela encontrou de comerciar com as palavras foi vendendo jornais.
Mas, quando soube que las palabras podían también escribirse fuera de los periódicos,
[…] calculó las infinitas proyecciones de su negocio (DP, p. 17). Com vinte pesos pagou a
un cura para que le enseñara a leer y escribir (DP, p. 17) e com os três que restaram do
total que conseguira se compró un diccionario. Lo revisó desde la A hasta la Z y luego
lanzó al mar, porque no era su intención estafar a los clientes con palabras envasadas
(DP, p. 17) e logo começou a vender versos de memória, sonhos os quais ela melhorava a
qualidade, cartas de apaixonados, insultos para inimigos irreconciliáveis, argumentos de
justiça e también vendía cuentos, pero no eran cuentos de fantasía, sino largas historias
verdaderas que recitaba de corrido, sin saltarse nada. Así llevaba las nuevas de un pueblo
a otro (DP, p. 15).
Vários anos depois, de repente foi surpreendida pelos homens do Coronel que, assim
como este, viviam fora da lei. O chefe do grupo necessitava de seus serviços.
Levaram-na até o lugar onde ele estava. Ela não pode ver seu rosto, mas imaginó que
debía ser de expresión perdularia si su gigantesco ayudante se dirigía a él con tanta
humildad (DP, p. 19).
Após perguntar se era ela quem vendia palavras e obtendo reposta afirmativa, disse o
Coronel: – Quiero ser Presidente (DP, p. 19).
Estaba cansado de recorrer esa tierra maldita en guerras inútiles y
derrotas que ningún subterfugio podía transformar en victorias. Llevaba
muchos años durmiendo a la intemperie, picado de mosquitos,
alimentándose de iguanas y sopa de culebra, pero esos inconvenientes
menores no constituían razón suficiente para cambiar su destino. Lo que
en verdad le fastidiaba era el terror en los ojos ajenos. Deseaba entrar a
los pueblos bajo arco de triunfo, entre banderas de colores y flores […].
Estaba harto de comprobar cómo a su paso huían los hombres, abortaban
de susto las mujeres y temblaban las criaturas, por eso había decidido ser
Presidente. […] – Para eso necesito hablar como un candidato (DP, p. 19-
20). (grifos meus)

1
A partir daqui, referir-se-á ao conto Dos palabras pela sigla DP seguida do número da página.
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Ele necessitava de palavras para um discurso e ela podia vendê-las. Durante a noite e
parte do dia seguinte, Belisa buscou em seu repertório as palavras adequadas para um
discurso presidencial. Descartou as palavras ásperas e secas, as floridas, as que estavam
desgastadas pelo uso, as que ofereciam promessas improváveis, as carentes de verdade e as
confusas, para ficar só com aquellas capaces de tocar con certeza el pensamiento de los
hombres y la intuición de las mujeres (DP, p. 20).
Ao entregar o discurso ao Coronel, ele perguntou o quê diziam aquelas palavras. Não
sabia ler. Disse que sabia hacer es la guerra (DP, p. 21). Então Belisa Crepusculario leu o
discurso três vezes para que ele o gravasse na memória. Quando terminou viu que os
homens da tropa que se juntaram para escutá-la estavam emocionados e notou que os olhos
do Coronel estavam entusiasmados, certos de que com aquelas palavras a cadeira
presidencial seria sua. Si después de oírlo tres veces los muchachos siguen con la boca
abierta, es que esta vaina sirve, Coronel – aprobó el Mulato (DP, p. 21).
Um peso foi o preço do discurso. Belisa Crepusculario, no primeiro encontro, já havia
sentido el impulso de ayudarlo, porque percibió un palpitante calor en su piel, un deseo
poderoso de tocar a ese hombre, de recogerlo con sus manos, de estrecharlo entre sus
brazos (DP, p.20).
El los meses de septiembre, octubre y noviembre el Coronel pronunció su
discurso tantas veces, que de no haber sido hecho con palabras
refulgentes y durables el uso lo habría vuelto en ceniza. […] Nadie
prestaba atención a esos recursos de mercader, porque estaban
deslumbrados por la claridad de sus proposiciones y la lucidez poética de
sus argumentos, contagiados de su deseo tremendo de corregir los
errores de la historia y alegres por primera vez en sus vidas. […] Pronto
el Coronel se convirtió en el político más popular. Era un fenómeno
nunca visto… (DP, p. 22).

Ao passo que ia pronunciando seu discurso de povoado em povoado, jamais se esquecia


das duas palavras secretas que recebera de brinde pelos dois pesos pagos a Belisa. Estava
ficando tão triste que o Mulato logo desconfiou que tal estado de ânimo teria algo a ver
com alguma feitiçaria de Belisa Crepusculario. Depois de procurá-la pelo país e de trazê-la
até o seu chefe para se desfazer o possível feitiço, viu que eles se encararam longamente,
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medindo-se à distância. Os homens logo compreenderam que o Coronel já não podia se


livrar del hechizo de esas dos palabras endemoniadas, porque todos pudieron ver los ojos
carnívoros del puma tornarse mansos cuando ella avanzó y le tomó la mano (DP, p. 24).

2. Os bandidos

O Coronel, que deseja ser presidente e reconhecido pela população como pessoa melhor,
é líder de um grupo de homens os quais se pode chamar de guerreiros, bandidos,
bandoleiros ou simplesmente foras da lei. Eric Hobsbawm, no livro Bandidos (2001), expõe
que para comprender el bandolerismo y su historia debemos verlo en el contexto de la
historia del poder, es decir, del control por parte de los gobiernos u otros centros de poder
(HOBSBAWM, 2001, p. 24). Nesta direção, tem-se que os grupos que pretendem
sobreviver fora da lei em situações as quais se podem considerar como estáveis nos vários
tipos de governo não conseguem bons resultados, já que las limitaciones, tanto técnicas
como ideológicas, son tales que los hacen inviables para algo que vaya más allá de unas
operaciones momentáneas (HOBSBAWM, 2001, p. 122).

3. Um aspecto em Dos palabras presente na literatura brasileira

Não é difícil perceber, em uma grande quantidade de textos, literários ou não, aspectos
de outros textos já escritos que, de uma maneira ou de outra, se repetem. A esse fenômeno
se dá o nome de intertextualidade. Um trecho do conto é paradigmático neste sentido:
Belisa Crepusculario había nacido en una familia tan mísera, que ni
siquiera poseía nombres para llamar a sus hijos. Vino al mundo y creció
en la región más inhóspita, donde algunos años las lluvias se convierten
en avalanchas de agua que se llevan todo, y en otros no cae ni una gota
del cielo, el sol se agranda hasta ocupar el horizonte entero y el mundo se
convierte en un desierto. Hasta cumplió doce años no tubo otra
ocupación ni virtud que sobrevivir al hambre y a la fatiga de siglos.
Durante una interminable sequía le tocó a enterrar a cuatro hermanos y
cuando comprendió que llegaba a su turno, decidió echar a andar por las
llanuras en dirección al mar, a ver si en el viaje lograba burlar la muerte.
La tierra estaba erosionada, partida en profundas grietas, sembrada de
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piedras, fósiles de árboles y de arbustos espinudos, esqueletos de


animales blanqueados por el calor. De vez en cuando tropezaba con
familias que, como ella, iban hacia el sur siguiendo el espejismo de agua.
Algunos habían iniciado la marcha llevando sus pertenencias al hombro
o en carretillas, pero apenas podían mover sus propios huesos y a poco
andar debían abandonar sus cosas. Se arrastraban penosamente, con la
piel convertida en cuero de lagarto y los ojos quemados por la
reverberación de la luz. Belisa los saludaba con un gesto al pasar, pero
no se detenía, porque no podía gastar sus fuerzas con ejercicios de
compasión. Muchos cayeron por el camino, pero ella era tan tozuda que
consiguió atravesar el infierno y arribó por fin a los primeros
manantiales, finos hilos de agua, casi invisibles, que alimentaban una
vegetación raquítica, y que más adelante se convertían en riachuelos y
esteros (DP, p. 16).

Esses aspectos referentes à seca, pobreza, sede, fome e fuga não são estranhos à
literatura brasileira, principalmente, no que se refere a muitos dos romances escritos na
primeira metade do século XX os quais tinham como característica problematizar situações
políticas, sociais, econômicas, religiosas, culturais, etc., inerentes ao nordeste do Brasil.
Considerando-se que “as formas de uma enunciação literária, de uma obra literária, só
podem ser apreendidas na unicidade da vida literária, em conexão permanente com outras
espécies de formas literárias” (BAKHTIN, 2006, p. 106), pode-se admitir que o caminho
que Belisa Crepusculario teve que seguir repleto de, entre outras coisas, fósseis
branqueados de animais, bem que poderia ser o mesmo que a família de Chico Bento (O
Quinze – 1930) ou a de Fabiano (Vidas secas – 1938) seguiram em direção a outra vida,
dias melhores ou coisa parecida. Tanto um como o outro estão sob as marcas da seca e do
meio social desfavorável. As “rachaduras da terra árida transplantam-se para o corpo de
Fabiano. Em seu pé encontram-se as mesmas gretas fundas que cobrem o sertão seco”
(DEMARCHI, 2006, p. 04). Chico Bento, esse que, como todos em situação tranquilamente
confundível com a sua, tem somente o nome de diferente, “sem legume, sem serviço, sem
meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca durasse”
(QUEIROZ, 1993, p. 26).
Sobre a dificuldade do trajeto feito por Belisa Crepusculario, pelas famílias de Chico
Bento e Fabiano, é possível apresentar algumas características capazes de indicar o
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fenômeno da intertextualidade nas obras. O narrador de Vidas secas escreve que, depois de
caminhar umas três léguas antes que aparecesse a barra do nascente, pararam, e Fabiano
olhou para o céu. “Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança.
Retardara-se e repreendera os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os a poupar forças”
(RAMOS, 1989, p. 117).
Belisa Crepusculario não se detinha ao passar por pessoas nas mesmas condições que as
suas, ela não podia gastar suas forças em exercícios de compaixão. Chico Bento (O Quinze)
ao se deparar com um grupo de pessoas que estava começando a preparar uma rês que já
estava em decomposição, mas que queriam aproveitar para não deixá-la para aos urubus,
não deixou que isso se passasse. “– E vosmecês têm a coragem de comer isso? Me ripuna
só de olhar... [...] Eu vou lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tendo um bocado
no meu surrão!” (QUEIROZ, 1993, p. 40).
Outro aspecto ao qual vale à pena pôr atenção se refere ao confrontamento de uma
certeza, em Dos palabras, com uma possibilidade, em Vidas secas. É importante recordar
que os dois aspectos estão caracterizados no mundo da ficção no qual a autora Isabel
Allende
empenha-se num contrato com o real de modo que subjetividade,
imaginário, cotidiano, presente e passado se articulam num fluxo
ininterrupto. Pela multiplicidade de discursos, o que se pretende é manter
uma fidelidade a cenários, a emoções e a um certo panorama do momento
– fidelidade que só se torna possível porque se dá no plano da ficção, um
terreno no qual tudo (ou quase tudo) cabe (VERUNSCHK, s.d., p. 38-9).

Nessa direção, não se pode deixar de ter em conta as palavras de Antonio Candido ao
afirmar que “a literatura é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte”
(CANDIDO, 2000, p. 162).
A certeza está relacionada com o sucesso que Belisa Crepusculario obteve depois de
chegar a seu destino. Já se sabe que ela aprendeu a ler, escrever e, com essas habilidades,
foi passando os anos de povoado a povoado vendendo suas palavras até o ano das eleições
em que seu trabalho foi requerido pelo Coronel. Já a situação literária dada em Vidas secas
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parece não contribuir para que a família de Fabiano tenha a mesma sorte que Belisa
Crepusculário. Às últimas linhas, o autor alagoano expõe que Fabiano e sua família
andavam para o sul, acompanhados por um sonho: uma cidade grande, cheia de pessoas
fortes. “Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois
velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia” (RAMOS,
1989, p. 126).
Ao mostrar os aspectos de um texto presente em outro, seria demais pretender que além
dos meios, parecidos nos trechos citados, também os fins fossem os mesmos. Dos palabras,
O Quinze e Vidas secas apresentam imagens comuns ao descrever as condições geográficas
e sociais de determinadas regiões assim como as dificuldades encontradas por aqueles que,
quase sempre por necessidade, enfrentam a dura viagem em busca de melhores condições
para viver.

4. Belisa e as palavras

A maneira como Belisa Crepusculario foi descobrindo as possibilidades de se trabalhar


com as palavras não deixa de ser curiosa. Primeiro vendendo os jornais e depois
percebendo que poderia ela mesma escrevê-las e comerciar com elas. Após conhecer os
caminhos seguidos por ela, seu grande sucesso graças às palavras que procurou e conseguiu
dominar, torna-se quase impossível não chegar a um questionamento, ou pelo menos a uma
curiosidade: a da importância do papel da escola na formação intelectual das pessoas. Pelo
menos três possibilidades podem ser aplicadas ao caso de Belisa. Primeira: ela é um gênio.
Segunda: a escola não faz falta desde que se tenha vontade de adquirir conhecimento e, por
último, ao contrário de ajudar, impõe limitações para que se desenvolvam potenciais
ocultos. Não se sabe se a decisão foi de Belisa ou da autora. Mas, se for possível
considerar os anos de repressão militar que Isabel Allende conheceu em seu país, algumas
hipóteses podem justificar sua escolha de não levar Belisa a uma escola. Esta que, segundo
Louis Althusser, “desde a pré-primária, inculca nas crianças saberes práticos [...]
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envolvidos na ideologia dominante [pelos] profissionais da ideologia (padres de toda a


espécie, a maioria dos quais são laicos convencidos)” (ALTHUSSER, 1974, p. 64-5).
A forma como o autor se refere aos padres pode parecer incongruente em relação ao fato
de Belisa ter escolhido um deles para alfabetizar-se. Mas isso não deixa de ser
compreensível, já que a simpatia da autora chilena pelos representantes da Igreja Católica
pode ser percebida claramente em seu romance intitulado De amor y de sombra.
Religiosidades e formações educacionais à parte, o que se sabe é que, em pouco tempo,
Belisa Crepusculario adquiriu cultura e postura crítica suficientes para entender que as
palavras em estado de dicionário não poderiam dar-lhe os melhores resultados em sua
futura atividade comercial. Isso revela que ela logo soube que a “palavra revela-se, no
momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais”
(BAKHTIN, 2006, p. 66).
As palavras voam para além do que se pode prever. Essa parece ser a grande descoberta
feita por Belisa e talvez se deva a ela seu sucesso comercial. Provavelmente sua
particularidade em relação às outras pessoas esteja justamente na questão de que ela pode
perceber que “as palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua. O
que é dito em outro lugar também significa nas nossas palavras” (ORLANDI, 2007, p. 32).

5. O discurso perfeito

A sugestão feita pelo Mulato, fiel escudeiro do Coronel, de que eles fossem à capital e
entrassem galopando no palácio para se apoderar do governo, assim como tomaram tantas
outras coisas sem pedir permissão, como se sabe, foi recusada pelo líder bandoleiro.
Mesmo sendo rude, bandido e analfabeto, ele parece perceber que a única maneira de
chegar e permanecer na presidência é pelo meio considerado legal. De outra forma não
conseguiria se manter frente ao Estado que “é a preservação dos interesses particulares da
classe que domina a sociedade. Ele exprime na esfera da política as relações de exploração
que existem na esfera econômica” (CHAUI, 1994, p. 70).
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Sem alfabetização, esta que “não é apenas a simples habilidade de ler e escrever, mas
uma habilidade que recebe irrestrita aprovação social e institucionalmente incentivada, com
o status de virtude de caráter normativo e prescritivo” (MARCUSCHI, 1995, p. 39),
definitivamente ele necessitaria de alguém para que lhe fizesse um discurso. Resta saber se,
além do mundo da ficção, é possível a ocorrência do tão bem sucedido projeto do Coronel,
executado sob os conhecimentos da vendedora de palavras.
No curto tempo que Belisa teve para construir o discurso, algumas considerações, direta
ou indiretamente, certamente influenciaram para que ela o formulasse de uma e não de
outra forma. Os aspectos externos, além de sua estupenda capacidade linguística, pelo
menos é isso que o conto sugere, devem ter-se completado no momento criativo. Nessa
direção, pode-se ter em conta que, “qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação
considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é,
antes de tudo pela situação social mais imediata” (BAKHTIN, 2006, p. 114).
Não estando afastada dos acontecimentos no pais onde cresceu e teve a oportunidade de
conhecê-lo de forma privilegiada, durante muitos anos de profissão, percorrendo-o “desde
las regiones más altas y frias hasta las costas calientes, intalándose en las ferias y en los
mercados, donde montaba cuatro palos con un toldo de lienzo” (DP, p. 15), não parece ter
sido complicado a Belisa recorrer retrospectivamente às diferentes ou parecidas
características do povo a que o discurso dirigir-se-ia . Tais características são fundamentais
para o sucesso de suas palavras ao considerar que enunciação é o produto da interação de
dois indivíduos socialmente organizados, que mesmo sem interlocutor real, “este pode ser
substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor”
(BAKHTIN, 2006, p. 114).
Por já ser conhecido que o discurso proferido pelo Coronel teve grande aceitação por
parte da população, esta que estava deslumbrada por la claridad de sus proposiciones y la
lucidez poética (DP, p. 22), não é difícil aceitar que a maioria ou todo o povo do país vivia
sob condições sociais, econômicas, políticas, religiosas ou culturais muito parecidas, as
quais estão mais próximas de caracterizar pessoas em situações pouco favoráveis. Dessa
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forma, pode-se concluir que se trata de uma população pobre e sem perspectivas sob o
momento histórico em que se encontra.
A essa gente se torna menos complicado convencê-la devido sua fragilidade ante tudo
que a rodeia. Isso não quer dizer que o povo (a massa) não perceba, de certa forma, o que
acontece a sua volta. Michel Foucault, ao comentar sobre a função dos intelectuais, afirma
que as massas não necessitam deles para ter conhecimento das coisas. Ao contrário, elas
sabem muito melhor do que eles e o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que
“barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas
instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente
em toda a trama da sociedade” (FOUCAULT, 2000, p. 71).
As pessoas são levadas, influenciadas pelo que Foucault chama de “múltiplas coerções
que produzem efeitos regulamentados de poder” (2000, p. 12) a aceitar determinadas
verdades as quais, segundo o autor, não se refere ao “conjunto das coisas verdadeiras a
descobrir ou a fazer aceitar, mas o conjunto das regras segundo as quais se distingue o
verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (FOUCAULT,
2000, p. 13). Em relação a este último, em outro lugar se lê que ele deve ser analisado como
algo que circula ou como algo que só funciona em cadeia. Para o autor, ele nunca está
localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns ou é apropriado como uma riqueza ou
um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só
circulam, mas, “estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca
são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão”
(FOUCAULT, 2000, p. 183).
Já que o poder pode ser exercido, de certa forma, até pelos oprimidos, pode-se supor que
nas muitas vezes que o Coronel pronunciou seu discurso encomendado, os ouvintes deviam
reagir a ele de acordo com seus poderes. O que se torna difícil de aceitar é, agora fora da
verossimilhança ficcional, que um mesmo discurso pronunciado com as mesmas palavras
(o Coronel as decorou, já que não sabia ler) em várias ocasiões e para pessoas de todas as
partes do país, tenha conseguido resultados muito semelhantes, para não dizer idênticos.
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Por mais que se trate de um povo pouco acostumado com grandes intentos intelectuais, não
é fácil acreditar nos magníficos êxitos da campanha eleitoral do Coronel. O que pode
fundamentar esta hipótese é a proposição de que
toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de
que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela
constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda
palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra,
defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à
coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se
sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do
interlocutor (BAKHTIN 2006, p. 115).

O autor ainda corrobora com a dúvida em relação à total passividade do eleitorado


afirmando que “a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo
ocasionais da enunciação” (BAKHTIN, 2006, p. 116). Além disso, há os aspectos inerentes
às diferentes características que o público pode apresentar dependendo do seu humor, das
condições climáticas, das necessidades fundamentais de cada parte do país, etc. Ao
considerar esses pontos, não parece provável que as mesmas palavras pronunciadas durante
três meses tenham um sucesso constante, por mais que tenham sido escolhidas por uma
especialista. É necessário ter em conta, antes de tudo, que toda palavra falada possui acento
de valor ou apreciativo, isto é, “quando um conteúdo objetivo é expresso (dito ou escrito)
pela fala viva, ele é sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado. Sem
acento apreciativo, não há palavra” (BAKHTIN, 2006, p. 136).
Essas considerações a respeito da linguagem na interação entre interlocutores vão ao
encontro da improbabilidade do discurso, talvez não o composto por Belisa Crepusculario,
mas o tantas vezes pronunciado pelo Coronel, ter todos os êxitos que o conto Dos palabras
propõe. Se ele tivesse a capacidade de adequar o discurso a cada situação que – no mundo
real é muito provável – se deparasse nos três meses de campanha, até se poderia considerar
o discurso como sendo perfeito ou próximo da perfeição. Mas não é isso que se pode
perceber no conto, já que a vendedora de palavras o leu três vezes para que o Coronel o
decorasse e não o contou para que ele o compreendesse.
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Posto isso, o que se pode aceitar como ato a receber maior consideração é a provável
vida feliz que teriam Belisa e o Coronal assim que passassem as eleições. Vê-lo como
presidente do país já é uma realidade que dificilmente poderá existir fora do mundo de Dos
palabras ou outros possíveis de se inventar.

Conclusão

No que foi exposto neste estudo houve a pretensão de contribuir para mostrar que o que
se deseja, o que se propõe e do que se desiste, tudo há que passar, de um modo ou de outro,
de mãos dadas com as palavras. Como se sabe, quase toda pessoa, natural ou socialmente,
pode ouvir e falar, mas muitas vezes de maneira passiva. Quem não pode adquirir palavras
por meio de boas escolas ou pela forte decisão de aprender a ler e escrever como um
autodidata, de uma forma ou outra, necessariamente, terá que procurar uma Belisa
Crepusculario para que as venda. O sucesso do propósito da procura é o que não se garante.
Posto isso, entende-se que o objetivo de ter trazido à discussão relações de poder
envolvendo o mundo das palavras na especificidade do discurso político e nas condições
sociais, econômicas e culturais que o conto propõe, de alguma maneira, foi alcançado sob
as proposições propostas neste trabalho. Dessa forma, espera-se que o lido até aqui tenha
contribuído, mesmo que de maneira irrisória, para a compreensão de que o que se relaciona
na significação das palavras vai muito mais além das Dos palabras.

Referências

ALLENDE, Isabel. Dos palabras. In. Cuentos de Eva Luna. Barcelona: Plaza & Janés,
2000.
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Trad. RAMOS,
Joaquim José de Moura. Porto: Presença, 1974.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 2006.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.
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CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1994.


DEMARCHI, André Luis Campanha. Homens livres, Vidas secas: violência e latifúndio
num romance de Graciliano Ramos. Revista enfoques. v. 5, n. 1, 2006. Disponível
em <http://www.ifcs.ufrj.br/~ppgsa/Revista_enfoques/marco06/03.html>. Acesso em
25/06/2009.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. e Trad. MACHADO, Roberto. Rio de
Janeiro: Graal, 2000.
HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Barcelona: Crítica, 2001.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Leitura e compreensão de texto falado e escrito como ato
individual de uma prática social. In. ZIBERMAN, R. & SILVA, E. T. Leitura perspectivas
interdisciplinares. São Paulo, SP: Ática, 1995.
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes,
2007.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 1989.
QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. São Paulo: Siciliano, 1993.
VERUNSCHK, Micheliny. A dona da história. Revista Discutindo Literatura. São Paulo:
Escala Educacional. nº 17, Ano 3. p. 34-42. (s.d.)
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O MOVIMENTO CIRCULAR DO LETRAMENTO LITERÁRIO: UM ESTUDO


NO NORDESTE GOIANO

Adriana Demite Stephani (PG-UNB)


Robson Coelho Tinoco (UNB)

Preliminares

Um breve levantamento dos estudos existentes demonstra que a questão do


letramento literário da população já é tema recorrente em pesquisas por todo o país,
sendo discutida por diversos autores (COSSON, 2002, 2006; PAULINO, 2001, 2005).
No entanto, num país continental como o nosso, ao estudarmos determinadas regiões,
percebemos que alguns fatores desse letramento são mais determinantes que outros em
virtude da realidade local. Esse panorama nos levou a estudar a realidade do letramento
literário no nordeste goiano.
O trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa de campo (2008/2009) realizada
por meio de questionários semi-estruturados destinados a: a) cinco professores de língua
portuguesa egressos do curso de Letras Regular da Universidade Estadual de Goiás
(UEG), Unidade de Campos Belos e atuantes nos 3os. anos do Ensino Médio da região
(colégios de Arraias e Lavandeira, TO e de Campos Belos, GO); b) 150 estudantes de
3os. anos do Ensino Médio das referidas escolas e alunos dos docentes egressos da UEG
e c) 50 alunos, entre ingressantes e concluintes do curso de Letras da mesma
universidade. Os questionários tiveram como objetivo observar o contato e as
perspectivas que os entrevistados têm em relação à literatura, mostrando a existência de
um movimento circular na construção do letramento literário na região, bem como
mapear o nível desse letramento dos entrevistados.
O presente estudo apresenta dados que demonstram esse movimento circular de
formação do repertório literário e propõe possíveis intervenções na formação
profissional dos futuros professores de Literatura, entre elas, algumas já em
desenvolvimento pela UEG - Campos Belos. A intenção não é destacar os “culpados”
da precariedade do repertório literário dos professores de Literatura, mas sim, diante da
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análise da realidade sócio-educacional da região, apresentar alternativas para a reversão


do quadro atual.

1. A compreensão do cenário

Para que se possa entender melhor o porquê da escolha desta região para a pesquisa,
primeiro é necessário entendê-la. Essa é uma região de antiga colonização, mas de
recente modernização e, até décadas anteriores, quase todo o comércio estava voltado
apenas para a pecuária extensiva.
Essa estrutura econômica, atrelada à distância de cidades maiores, influenciou muito
a realidade educacional e cultural da região. Após a criação do estado do Tocantins
(1988), a região começou a receber profissionais de diferentes áreas das mais diversas
localidades do país que vieram em busca de novas oportunidades diante da nova
situação política, social e territorial que se estabeleceu. A região de Campos Belos deixa
de fazer parte da região central do estado e passa a possuir uma nova divisa estadual,
pertencendo agora ao extremo norte goiano e recebendo maior atenção governamental.
Os profissionais de nível superior que atuavam nessa região eram poucos e todos
formados nas universidades de Goiânia e Brasília. Uma grande quantidade dos
profissionais da educação possuía apenas o ensino médio (magistério ou curso técnico),
o que pode ser comprovado ao se fazer o levantamento dos profissionais concursados há
mais de 6 anos e quantos se formaram na UEG de Campos Belos, cidade onde apenas
10% dos professores concursados e atuantes na área de Letras já eram formados quando
foram efetivados/concursados. Os demais já atuavam como professores sem ter o curso
superior, o qual concluíram em programas específicos de formação de professores em
exercício. Conforme constatado em nossa pesquisa, nas cidades próximas (no vizinho
estado do Tocantins) a situação difere-se apenas em relação à efetivação (concurso) dos
professores, visto que muitos dos profissionais (75%) são contratados. A escassez de
profissionais com nível superior na região ainda é grande.
Essa relativa prosperidade, no entanto, parece não se confirmar na mesma proporção
nos aspectos educacionais e culturais, porque Campos Belos, assim como boa parte das
outras cidades cujo comércio ela atende, também não possui bibliotecas públicas. Para o
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público adolescente, as opções convencionais são quase inexistentes: não há parques,


nem shopping-centers. Numa esfera de “cultura culta”, o quadro é ainda mais
desestimulante: Campos Belos e região não possuem cinema, teatro, museus, casas de
cultura e não há uma única livraria num raio de centenas de quilômetros.
Conforme comprovado na pesquisa com alunos do Ensino Médio, a leitura do texto
literário não é uma constante na vida (social e familiar) dos adolescentes e as poucas
relações que têm com a literatura estão vinculadas às atividades escolares; o que
demonstra que a escola (e os livros escolares) é, para muitos, a única oportunidade de
contato com a literatura. “Muitos alunos têm nos livros escolares sua única ração de
literatura; é o único meio de chegar a conclusões sobre o que são letras e escritores”.
(LINS, 1977, p. 35). Ao abordar questões sobre letramento literário de uma
comunidade, Paulino destaca que,
As motivações para a leitura literária teriam de ultrapassar esse
contexto de urgência e serem encaradas em nível cultural mais amplo
que o escolar, para que se relacionem à cidadania crítica e criativa, à
vida social, ao cotidiano, tornando-se um letramento literário de fato,
ao compor a vida cotidiana da maioria dos indivíduos. (PAULINO,
2005, p. 9)

O letramento literário é tão importante para o indivíduo que deve estar presente
também na escola (COSSON, 2002, 2006). No entanto, o que a realidade brasileira nos
apresenta é que para a maioria da população o único contato é dado na escola, muitas
vezes encaminhado por professores com um letramento literário distante do ideal para
desenvolver tal papel, e acaba não sendo feito como deveria (SOARES, 2002).
A precarização do letramento literário, vivida tanto por estudantes como por
professores, não é realidade apenas do nordeste goiano. No entanto, as particularidades
da região – destaca-se aqui a distância de cidades maiores, as dificuldades de acesso a
diversos meios culturais e o próprio não-hábito da leitura literária – são mais
determinantes. É o que Paulino denomina como “impedimento geográfico-econômico
do letramento literário” (2001, p. 124). Distante de centros maiores e com poucas
opções de cursos universitários, a população regional tem na UEG - Campos Belos uma
das poucas opções de reverter este círculo vicioso de (má)formação do leitor literário.

2. Fundamentação
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Esta pesquisa é inspirada numa concepção teórico-literária que, na linha conceitual


de autores como Mario Vargas Llosa, George Steiner, Antonio Candido, Vera Teixeira
de Aguiar e Maria da Glória Bordini, entre outros, acredita na literatura como um
fenômeno que torna o homem mais humano. A visão de literatura aqui apresentada é
aquela segundo a qual literatura é o meio privilegiado para a formação humanista e para
“a abertura” do ser em direção ao outro, encontro intermediado por textos literários. No
dizer de Antonio Candido (1995), tais sentidos conceituais preconizam o direito à
apreciação literária como um direito básico e inalienável do ser humano.
Dessa convicção é que nasce o conceito de crise da leitura literária, pois só pode
entender como crítica uma situação não ideal aquele que busca e valoriza esse ideal. No
caso dessa pesquisa, o ideal é o de um ambiente de livre circuito de obras e leituras
literárias, num movimento intenso de apreciação e imersão no mundo dos livros e da
literatura no seio de uma comunidade. Se esse movimento é inexistente ou não encontra
livre fluxo, caracteriza-se a crise da leitura literária.
O que se pretendeu foi, partindo de um ambiente formacional e pedagógico, mapear
a realidade da apreciação literária na região, dentro e fora do âmbito estudantil. O
trabalho parte de dados empíricos, coletados em pesquisa de campo realizada com
alunos e professores para delinear, em contraponto com os estudos sobre ensino de
literatura e leitura literária, a situação da literatura nessa realidade concreta.
Evidenciou-se a situação de crise da leitura literária, compartilhada e vivida pelos
“atores” da problemática: instituições governamentais, comunidade, escolas, pais,
alunos/leitores, professores não-leitores, universidade. Posteriormente, propõe-se
configurar a universidade como “atriz principal” da realidade quanto à leitura literária
no nordeste goiano. A partir dos dados coletados, apresenta-se uma proposta de
enfrentamento dessa realidade por meio da aplicação, na formação dos professores de
língua portuguesa e literatura, de abordagens metodológicas como as desenvolvidas pela
teoria da estética da recepção.
O trabalho se fundamentou em dados técnicos, teóricos e empíricos que,
contemplados “em diálogo” com a realidade, resultam numa visão do problema que
procura ser a mais abrangente e objetiva possível. Como exemplo, apresenta-se uma
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situação: um estudante, após 8 ou 9 anos de ensino fundamental, mais 3 anos de ensino


médio, ingressa no curso superior de Letras para sair de lá, 4 anos depois, como
professor de língua portuguesa sem praticamente ter um contato real com a literatura.
Aqui, subentende-se “real” como algo distinto da obrigação e do dever, como
experiência prazerosa e plena de significados. Outra situação: o egresso, agora professor
do ensino básico, passa à frente sua indiferença, antipatia ou mesmo hostilidade pela
leitura literária. A idéia-base defendida é a de que situações como essas estão
organicamente relacionadas com a crise da leitura literária.

3. Algumas considerações

A literatura, segundo uma perspectiva humanista e formadora, como a de Antonio


Candido (2000, 1995, 1972) George Steiner (1988) e Aguiar e Bordini (1993) é um
direito inalienável dos seres individuais e das comunidades humanas. Assim sendo,
pode-se afirmar que uma comunidade está vivendo em crise (a crise da leitura literária)
quando nela não há um pleno e livre trânsito de obras e leituras literárias. Como essa
crise é criada e mantida pela “colaboração” mútua dos seus múltiplos atores
(instituições governamentais, escolas, professores, pais, alunos/leitores, universidade), é
perfeitamente possível falar-se em círculo vicioso já que, segundo Alain Birou, círculo
vicioso é o “processo causal circular que faz com que cada factor componente de um
conjunto ou de uma estrutura actue sobre os outros de maneira negativa, de modo que o
conjunto os mantém na situação inicial ou até piora.” (1982, p. 65).
A percepção desse “processo causal circular” de que fala Birou aconteceu durante
nossa prática docente de oito anos no ensino superior, cinco deles à frente da
coordenação do curso de Letras da UEG - Campos Belos. Observou-se, nesse período, a
Unidade habilitar para o magistério um grande número de professores que não
conseguiam atender a requisitos reconhecidamente básicos para o exercício da função,
como o do gosto pela leitura literária e a capacidade de formar novos leitores e/ou
apreciadores da literatura.
Percebeu-se, ainda, que a universidade se insere de forma negativa na problemática
da crise da leitura literária na região, dada a sua impotência diante da antipatia e/ou
despreparo que os egressos do ensino básico, estudantes universitários e futuros
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profissionais de língua portuguesa alimentam pela literatura. O que se configura como


“drama” é o fato de que professores (mal)formados acabam por realimentar um circuito
de desapreço pela literatura no nordeste goiano. Dessa forma, a universidade não tem
cumprido cabalmente a sua vocação, expressa na expectativa de Alfredo Bosi:

é um círculo vicioso que precisamos quebrar, e tem que ser aqui, na


Universidade. É também aqui, na Universidade, que precisamos
pensar esses problemas (...) que são muito vivos: saber o que estamos
ensinando, e que tipo de professor de literatura está saindo de nossas
mãos. (1992, p. 116)

Corroborando a idéia de Bosi, esse trabalho procurou então compreender a real


participação da universidade no círculo vicioso da não-formação de leitores, partindo,
principalmente, das seguintes perguntas: a universidade falha no enfrentamento do
círculo? Em que falha? Por que falha? Existe uma saída para o círculo vicioso?
O primeiro passo a ser dado no sentido de uma solução é justamente o da
compreensão adequada do fenômeno. Essa compreensão engloba o reconhecimento de
que a crise da leitura literária é uma conjuntura que envolve múltiplos fatores e que,
para que ela exista, é necessária a contribuição de cada um dos seus agentes.
Assim, avaliou-se que é preciso conhecer o papel que cada ator desempenha na
situação dada para compreender de que forma tal atuação individual contribui(u) para
agravar o problema. Nesse sentido, considerou-se que a universidade é a protagonista
fundamental para a sobrevida do círculo e que, mais do que qualquer outro, ela é a
agente da crise mais habilitada a lutar contra esta, em vista de seus inúmeros “poderes”
e recursos, sendo o principal justamente o privilégio da formação dos formadores de
leitores de leitura literária: os professores de língua portuguesa dos cursos de Letras.
A relevância (tanto no sentido negativo como no positivo) que a Universidade
Estadual de Goiás assume na situação da leitura literária em Campos Belos e região
desde 2000, ano de sua instalação, fica mais evidente nos dados coletados na pesquisa
de campo ali realizada. Partindo-se de números do IDEB – Índice de Desenvolvimento
da Educação Básica – publicado em 2008 com referências a dados de 2007, constata-se
que, apesar da atuação como formadora de professores para as escolas de ensino básico
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em todo o estado há oito anos, os números do ensino básico no estado não refletem uma
presença decisiva no sentido da melhoria da qualidade da educação.
Em Campos Belos, por exemplo, os dados apontam para uma queda na média
observada em 2005 para os anos iniciais. As posições de Goiás (em 10º. lugar, com
39,30) e Tocantins (em penúltimo lugar, com 33,65) avalizam a inferência de que a
presença do ensino universitário na região ainda não foi decisiva nesses últimos anos.
Mais que isso, prova-se que a qualidade de ensino da educação no nordeste goiano está
longe da esperada e que há uma verdadeira crise na situação da leitura literária e do
ensino de literatura nessa região do país.
Isso revela que a formação de professores, ofertada pela UEG – Campos Belos há
cinco anos, ainda não contribui de forma efetiva para desfazer as distorções no contato
escolar com a literatura. Mostrou-se, também, que isso se deve a alguns fatores, dos
quais o principal é, sem dúvida, o fato de que os primeiros professores formados ali não
eram tão apreciadores da literatura como seria de se esperar desse tipo de profissional,
uma vez que, no dizer de Marisa Lajolo,

se a relação do professor com o texto não tiver um significado, se ele


não for um bom leitor, são grandes as chances de que ele seja um mau
professor. E, à semelhança do que ocorre com ele, são igualmente
grandes os riscos de que o texto não apresente significado nenhum
para os alunos, mesmo que eles respondam satisfatoriamente a todas
as questões propostas (...) O primeiro requisito, portanto, para que o
contato aluno/texto seja o menos doloroso possível é que o mestre não
seja um mau leitor. Que goste de ler e pratique a leitura. (1988, p. 53-
4)

Os dados coletados pela pesquisa de campo são esclarecedores: herdeiros de


estratégias equivocadas de ensino, os universitários são na maioria desmotivados com a
idéia de virem a se tornar professores de língua portuguesa. Destaque-se que nenhum
dos entrevistados afirma ter feito vestibular em Letras porque pretendera ser professor e
52% dos alunos não estariam fazendo Letras se pudessem escolher outro curso.
De alguma forma o professor é um dos principais corresponsáveis pela crise da
leitura literária no nordeste goiano, ainda que se saiba que suas dificuldades
profissionais são inúmeras. A pesquisa de campo apontou, por exemplo, que 65 % dos
futuros professores são membros de famílias cuja renda máxima é a de três salários
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mínimos; 76 % precisa trabalhar fora, não podendo se dedicar exclusivamente aos


estudos e à sua formação, e metade dos alunos ingressantes entrevistados (50%)
trabalha para ajudar no sustento da família.
Assim, premido por diversos obstáculos, como o de suas próprias contingências
financeiras, dos alunos e das instituições onde atua, o professor assume papel de grande
relevância na trama da crise. Eis porque se defendeu aqui a tese de que na boa formação
do professor de língua portuguesa pode estar a saída para o impasse. Justamente porque,
como afirma Ana Mariza Ribeiro Filipouski, “um professor que assume a sua função
legítima de educador é capaz de transformar os efeitos perniciosos da miséria, má
nutrição e doença em elementos propulsores de consciência e engajamento com a
realidade” (1988, p. 111).
Os dados da pesquisa de campo configuraram a circularidade da exclusão cultural
dominante no nordeste goiano, quando provam que parte significativa dos futuros
professores de língua portuguesa são filhos de pais analfabetos ou semianalfabetos.
Quando se cruzam os dados com os resultantes de outra questão (acerca da profissão
dos pais dos alunos), constata-se uma relação excludente entre renda, tipo de trabalho,
escolaridade e chances de ser um pai ou uma mãe que tiveram ou têm condições de
perceber o valor da leitura literária e de compartilhar essa compreensão com o filho ou a
filha.
Nesse contexto, os pais e a comunidade acabam por “perpetuar”, de certa maneira
como fazem os professores, a impotência de filhos e membros diante do mundo da
leitura. Isso se dá porque, segundo Richard Bamberger (1995) e Ezequiel Theodoro da
Silva (1997), o desenvolvimento de interesses e hábitos permanentes de leitura é um
processo que tem início no lar e no grupo social do qual fazem parte os indivíduos e é
daí que eles recebem suas diretrizes básicas. Nesse sentido,

grande parte da aprendizagem humana ocorre através da observação


do comportamento de outras pessoas. Apesar dessa frase surrada
“Faça o que eu digo; não faça o que eu faço”, os indivíduos e
particularmente as crianças tendem a utilizar o comportamento de
outras pessoas como paradigma para seu próprio comportamento
(SILVA, 1997, p. 56).
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O processo de exclusão da leitura letrada nesses estratos sociais menos

privilegiados formata o tipo de cultura desejável, disponível e valorizado, que quase

sempre exclui o livro literário e põe no centro canais culturais como o rádio e a

televisão. Assim, “a grande massa da população, sem condições para estudar, sempre

aderiu aos meios diretos de comunicação, que não exigem educação formal para sua

recepção”. (SILVA, 1987, p. 36)

Desse processo resultam dificultadores no processo de formação de professores na


UnU Campos Belos, principalmente no que se refere ao escasso letramento literário dos
ingressantes. Por exemplo, questionados se Você leu alguma obra literária além das
solicitadas por seus professores do curso de Letras? Qual (is)?, 18 alunos (dos 28
entrevistados) responderam Não a essa pergunta. Notou-se que boa parte dos alunos “se
esconde” atrás das contingências sócio-econômicas para camuflar um real desinteresse
pela leitura literária, alegando que o pouco tempo que têm para ler não é suficiente nem
para ler as obras que são solicitadas.
A partir dessa constatação – e dentro da discussão sobre metodologias adequadas
para o ensino e a formação do professor de literatura –, uma proposta aqui apresentada é
a de, na esteira aberta por autores como Câmara Cascudo (2006) e Luis Antonio
Marcuschi (2003), desenvolver uma reavaliação da cultura oral por parte do curso de
Letras da UEG – Campos Belos, pois ela está inserida em um contexto marcado pela
realidade cultural descrita por Silva (1987).
Esse esforço de flexibilização ideológica e metodológica, com vistas a conquistar o
público estudantil para um maior interesse e reconhecimento no próprio processo de
formação, exige constante vigilância com o perigo, sempre presente, de um
“esvaziamento” da formação do profissional de língua portuguesa. Esse esvaziamento
ocorrerá se ele for impedido de se defrontar com problemas tais como o de sua pouca
capacidade de abstração com os textos fundamentais da literatura brasileira e universal.
Não obstante, os “presumidos perigos” não devem coibir os “esforços criativos”, visto
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que sem tornar atraentes a leitura e o ensino de literatura não se conseguirá superar a
crise da leitura literária.
É nessa configuração que se apresenta uma sugestão de ensino e formação de
professores de literatura tendo como apoio a proposta do método recepcional, baseado
na estética da recepção criada por Hans-Robert Jauss, proposta essa desenvolvida no
livro Literatura: a formação do leitor, alternativas metodológicas (AGUIAR e
BORDINI, 1993). Acredita-se que a metodologia recepcional é a que se insere de forma
mais proveitosa num contexto como o do nordeste goiano, marcado pela apatia e
indiferença para com a leitura literária, em parte resultante de uma exclusão histórica
dos estratos literários letrados.
Aguiar e Bordini pressupõem a flexibilização dos programas e listas de leituras em
favor dos estudantes e suas necessidades específicas como aspecto de grande relevância
na expectativa da formação de novos leitores. Diante da ressalva que esse método possa
excluir estudantes inexperientes do contato com obras clássicas e que o tempo
consagrou como excelentes, as autoras demonstram que o método recepcional tem a
vantagem de ser um processo dialógico que consiste de dois momentos: no primeiro faz
concessões, mas no segundo conquista ganhos, pois o leitor se vê motivado e amplia
exigências, experiências e expectativas; aumentam, portanto, as possibilidades de que
ele venha a ler sempre mais e melhor.
As autoras reconhecem, ainda, que o método recepcional é estranho à escola
brasileira, acostumada a tratar a literatura numa perspectiva pragmatista e positivista,
por meio de propostas de leitura que valorizam a apropriação mecânica de aspectos
irrelevantes do texto literário. Tal apropriação dispensa os alunos e leitores de uma
leitura crítica, ativa e, portanto, verdadeira dos textos. Não obstante, os resultados
positivos são evidentes e as escolas e universidades só têm a ganhar com o método.
Pode-se ampliar a percepção das implicações desse método, vendo nele recursos para
qualquer abordagem no âmbito universitário da formação de professores de língua
portuguesa, fazendo-o dialogar com a linguística, a teoria literária e a literatura
comparada. Assim, considerou-se que a proposta de Aguiar e Bordini contempla um
momento local, sincrônico, familiar (aqui entram as concessões com as imagens, os
sons e os movimentos nos quais os estudantes/leitores possam se reconhecer), naif, e
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outro universal, diacrônico, universal e clássico, crítico etc. – nesse âmbito dialógico,
haveria um momento de conciliação e outro de ruptura.
No bojo dessa postura formadora e humanista, o aluno não é mais uma tábula rasa
nem figura passiva, mas co-autor de sua formação na medida em que participa dela,
fazendo suas escolhas e sendo reconhecido nos processos pedagógicos. Sob tal
percepção, o ensino e a apreciação da leitura é feita “com base nas vivências pessoais do
sujeito. A literatura, desse modo, se torna uma reserva de vida paralela, onde o leitor
encontra o que não pode ou não sabe experimentar na realidade” (AGUIAR; BORDINI,
1993, p. 15). Enfim, o método será plenamente eficaz na medida em que o professor
conseguir levar os alunos a ultrapassarem os próprios limites, atingindo a “mudança de
horizonte” pretendida por Jauss (1994, p. 31) e a “transfiguração do real” desejada por
Aguiar e Bordini (1993, p. 26).

Apontando caminhos

Com a presente pesquisa, pode-se mapear a realidade regional quanto ao letramento


literário e, diante disso, propor alguns encaminhamentos para o enfretamento da
situação atual. O primeiro foi a divulgação dos dados da pesquisa, tanto em eventos da
área quanto para os envolvidos. Como se acreditou desde o princípio da pesquisa na
importância do papel da universidade no enfrentamento da realidade, foram realizados
desde o segundo semestre de 2009, apresentações e discussões da pesquisa com os
alunos do curso de Letras, bem como o colegiado do curso.
É interessante ressaltar que, nessa divulgação houve a princípio um desconforto
perante aos dados quando apenas apresentados; quando esses foram analisados e
discutidos (desde o formato da pesquisa como também seu resultado), os alunos e
professores se “enxergaram” como pontos do círculo e compreenderam o movimento
circular existente no letramento literário.
Uma outra postura que está sendo tomada junto ao curso é o monitoramento (se
assim pudermos chamar) do desenvolvimento e ampliação do letramento literário dos
alunos durante o período que frequentar o curso de Letras. Isso está sendo feito por
meio da continuação de projetos de pesquisa sobre leitura e formação do leitor, como
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também em orientações de trabalhos finais de curso que abordam a temática. Pesquisa–


se qual o horizonte de expectativas (na perspectiva de Jauss e Ingarden) no aspecto
literário ao entrar e ao sair do curso de Letras.
Além dessas ações, estão sendo estruturados cursos de extensão para atender tantos
os alunos do curso de Letras, com também os de Pedagogia e os professores já em
exercício. Nesses cursos serão estudadas diversas propostas de trabalho com o texto
literário em sala de aula, entre elas sobre o método recepcional apresentado por Aguiar
e Bordini. Com tais ações, pretende-se discutir, acompanhar e melhorar a formação de
professores na região e, consequentemente, influenciar no aumento do nível de
letramento literário da população a médio e logo prazo.

Referências

AGUIAR, Vera Teixeira de; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do


leitor: alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.
BAMBERGER, Richard. Como incentivar o gosto pela leitura. São Paulo: Ática, 1995.
BIROU, Alain. Dicionário das ciências sociais. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1982.
BOSI, Alfredo. Entrevista com Alfredo Bosi. In: ROCCO, Maria Tereza Fraga.
Literatura/ensino: uma problemática. São Paulo: Ática, 1992.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed.
São Paulo: Queiroz, 2000.
_____. O direito à literatura. In: Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
_____. A literatura e a formação do Homem. In: Ciência e Cultura. 24 (9). São Paulo:
1972. p. 803-809.
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2. ed. São Paulo: Global, 2006.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
_______. O apagamento da literatura na escola. Investigações – Lingüística e Teoria
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FILIPOUSKI, Ana Mariza Ribeiro. Atividades com textos em sala de aula. In:
ZILBERMAN, Regina. (Org). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
JAUSS, Hans Robert. A História da literatura como provocação à teoria da literatura.
São Paulo, Ática, 1994.
LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina. (org.). Leitura em
crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, pp.
107-131.
LLOSA, Mario Vargas. Um mundo sem romances. In: Seleções, maio de 2003. p. 98-
102.
LINS, Osman. Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo:
Summus editorial, 1977.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Oralidade e letramento. In: Da fala para a escrita:
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PAULINO, Maria das Graças Rodrigues. Algumas especificidades da leitura literária.
In: 28 Reunião Nacional da ANPED, Caxambu, 2005. Disponível em:
http://www.anped.org.br/reunioes/28/textos/gt10/gt10572int.rtf .Acesso em 25 de Abril de 2010.
_______. Letramento literário: por vielas e alamedas. Revista da Faced, n.º 5.,
Salvador, Faced/ UFBA, 2001.
SILVA, Ezequiel Teodoro. Leitura e realidade brasileira. 2 ed. Porto Alegre: Mercado
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_____. O Ato de Ler. 4 ed. São Paulo:Cortez, 1987.
SOARES, Magda Becker. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In:
EVANGELISTA, Aracy, BRINA, Heliana, MACHADO, Maria Zélia (orgs.). A
escolarização da leitura literária: O jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
STEINER, George. Linguagem e silêncio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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"NÃO ACONSELHO ENVELHECER" DE RACHEL DE QUEIROZ:


IMPRESSÕES DE UMA ESCRITORA INCOMODADA

Adriana Giarola Ferraz Figueiredo (PG-UEL)

Durante grande parte de sua vida, a escritora Rachel de Queiroz tornou público, por
meio de seus escritos, que a velhice era para ela uma situação praticamente inaceitável e
algo que a incomodava muito. Depois de quase dois anos sem publicar um novo
trabalho, a autora resolve apresentar um falso mundo aos seus leitores. Não para
desanimá-los, mas sim para alertá-los sobre algumas contrariedades nem sempre
pronunciadas.
Falso mar, falso mundo, livro lançado no ano de 2002, trata-se do último livro da
autora. Essa obra apresenta a reunião de oitenta e nove crônicas, produzidas entre o
período de 1983 até 2000, carregadas das impressões de uma mulher perplexa diante de
todas as transformações, diante do progresso e das degradações sofridas pelo mundo e
pela sociedade ao longo do século XX. Atenta observadora da realidade que a cerca,
nada lhe passa despercebido e, com sinceridade, retrata, nessa coletânea de crônicas, sua
visão sobre o cotidiano e sobre o atordoamento em que se encontra o homem,
especialmente o velho, personagem que vive totalmente à mercê das transformações do
mundo.
Para apresentar todo o seu espanto frente a esse novo mundo e a situação dos idosos
nesse contexto, Raquel utiliza-se da crônica, gênero literário, segundo Eduardo Portella,
totalmente matizado, “a ponto de se ter ajustado à trama existencial complexa da
sociedade de massa. Porque a crônica hoje se enriqueceu desta nova função: é elemento
de contato entre a ânsia quantitativa da massa e a necessidade de evitar-se o desnível
qualitativo da informação” (1986, p. 27). Sendo o cronista o prosador do cotidiano, seu
texto é motivado pelos próprios acontecimentos diários e acaba por invadir o dia a dia
do leitor, ainda mais na situação em que se encontra o sujeito, desprovido de qualquer
couraça e perdido no tumulto da vida contemporânea.
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Os sábios conselhos que eram dados semanalmente nos artigos da autora, publicados
na imprensa do país, chegam ao mercado editorial para possibilitar aos leitores de
Rachel o acompanhamento do cotidiano dessa cidadã que, na crônica “Não aconselho
envelhecer”, aos moços dá um conselho: “[...] não fiquem velhos. Verdade que as
opções são poucas – morrer ou lutar contra a velhice. E morrer não seria opção, mas
entrega; e a luta? Bem, a luta resulta sempre numa batalha perdida e inglória”
(QUEIROZ, 2002, p. 56). E, de acordo com Walter Benjamin, “de qualquer forma, o
narrador é uma espécie de conselheiro do seu ouvinte” (1975, p. 65), por isso, Rachel,
no papel de narradora da crônica em questão, sente-se na obrigação de transmitir um
pouco de sua experiência alertando seu público em relação àquilo que já vivenciou. Ou
ainda, por sustentar a sua ranzinzice diante da senescência, perceba nesse momento
mais uma possibilidade de questionar as razões (e também as incertezas) que cercam a
velhice.
“Não aconselho envelhecer” trata-se de uma crônica em que a escritora, ao falar
sobre as questões que norteiam a velhice e que se relacionam com todos aqueles que
atingem certa idade, centra-se numa perspectiva mais subjetiva e incorpora o que aborda
para si mesma, tentando expressar a sua opinião a respeito do tema sobre o qual discorre
durante a escrita. Assumindo um traço comum entre os cronistas modernos, Rachel
realiza uma crítica social diante da condição da terceira idade. Ao aprofundar atos e
sentimentos expressos por sua indignação, a autora consegue destacar a força maior da
crônica, que está na capacidade de traçar o perfil do mundo e dos homens.
Assim, no início da crônica em questão, Rachel já manifesta a sua intenção: informar
aos seus leitores, e a quem possa interessar, as suas impressões a respeito dessa
conturbada fase da vida:
Entre os processos cruéis da natureza, é a velhice o mais cruel.
Implacável, insidiosa, ataca por todos os lados, abre a porta a todas as
moléstias mortais. Pensando bem, é uma espécie de HIV a longo
prazo. Te ataca o coração, o pulmão, todas as demais vísceras – a
tripa, o fígado, o que nos abatedouros se chama o arrasto. E mais a
fiação arterial e venosa; e a coluna! E não falei na atividade cerebral.
E também esqueci os ossos, a infame osteoporose, que te rói os ossos
pelo tutano, deixando-os como frágeis cascas de ovos. E então te basta
um pequeno escorregão na banheira para deixar um fêmur fraturado
(QUEIROZ, 2002, p. 56).
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Esse primeiro desabafo da autora refere-se à velhice como um problema biológico,


uma condição natural e própria de todos os seres humanos. As modificações no corpo
são as constatações de que a senilidade está acontecendo. É nesse período que a pessoa
terá de se assumir velha ou renegar essa imposição da natureza humana: “algumas
tentarão adiar esse momento, outras irão exagerar as conseqüências da velhice. As duas
atitudes, opostas, incidirão sobre as atitudes diante da doença e da saúde, com
conseqüências práticas quanto aos cuidados com o corpo” (BARRETO, 1992, p. 27).
Comparar a velhice ao HIV é uma forma de acusar essa condição biológica nata de
ser algo totalmente impróprio e capaz de comprometer a vida de qualquer ser humano,
já que suas consequências são aterrorizantes, se observadas sob o ponto de vista da
escritora. Quando a idade se apodera do homem, e isso quase sempre o pega de
surpresa, não há outra alternativa a não ser morrer prematuramente ou envelhecer. E
envelhecer consiste em aceitar as mudanças do corpo e da mente e conviver com essas
transformações, mesmo que elas lhe pareçam implacáveis e insanas.
No plano biológico, a noção de decadência do corpo tem um sentido claro: o
organismo declina quando as suas chances de subsistir se reduzem. E a fatalidade dessa
alteração deve ser considerada conscienciosamente, visto que estabelece uma ruptura do
equilíbrio do corpo. Mesmo a medicina moderna não mais procura atribuir uma causa
ao envelhecimento biológico, ela o compreende como um processo inerente ao curso da
vida, assim como o nascimento, o crescimento, a reprodução e a morte.
E o que dizer da atividade cerebral. Esta também sofre alterações com a chegada da
senilidade: se as exigências diminuem, de igual modo, também as capacidades são
afetadas. Assim, se as pessoas de mais idade não podem mais viver hoje como viviam
antigamente, sentem a necessidade de ocupar e de redefinir os espaços criados para
envelhecer, pois só dessa forma conseguem responder, de diversas maneiras, aos tipos
de controle de emoções que passam a ser exigidos perante essa nova situação.
Rachel de Queiroz não aceita passivamente todas essas mudanças ocorridas no corpo
e na mente daqueles que ficam velhos. Desse modo, por meio de uma linguagem mais
leve e mais descompromissada, como se estivesse mesmo batendo um papo com seu
público, ajusta a sua fala à sensibilidade do dia a dia para retratar um assunto tão
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significativo para ela. E se a crônica, conforme afirmou Antonio Candido, “está sempre
ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas” (1992, p.
14), a cronista aproveita-se dessa condição para fazer valer a sua posição frente ao
assunto.
A autora, na excelência de suas faculdades mentais, desfrutando de toda a sua
sabedoria e desenvolvendo seus escritos, não consegue admitir que as perdas fiquem
mais próximas quando a terceira idade vai se aproximando. Para ela, o estar velho
caracteriza uma condição nada comedida, portanto, tem a capacidade de desestabilizar
todo o desenvolvimento daqueles que atingem essa etapa. Então, o fêmur fraturado
deixa de configurar-se apenas uma lesão que pode fazer parte da vida de qualquer
indivíduo, e passa e simbolizar um dos exemplos daquilo que a senescência pode
representar para os sujeitos que nela se enraízam.
Aí chegam as famosas bobagens da terceira idade. Conforme Rachel, clubes,
associações, academias, etc., todos se mobilizam em prol da velhice, buscando oferecer
atividades nada convencionais e nem tampouco totalmente apropriadas para a vida dos
idosos. E, mais uma vez, de acordo com essa afirmação, pode ser notado o
descontentamento da autora diante dessa situação, pois algumas instituições realmente
têm se preocupado com a saúde e com o bem estar dos senis, oferecendo atividades
como esportes, danças, ginástica etc., para propiciar aos mesmos momentos de prazer,
de diversão, de interação e de cuidados com a saúde mental e física. No entanto, a
autora, por apegar-se sempre a sua irritação diante dessa condição do ser humano, não
consegue vislumbrar os reais benefícios que essas bobagens podem proporcionar aos
senis.
Mas a realidade é mesmo um pouco dura e incômoda. Com o desenvolvimento da
senectude, algumas promessas de atenção especial, de oferecimento de atividades
compatíveis e de outras soluções milagrosas para a inclusão do velho na nova sociedade
vão surgindo sem a preocupação de se estabelecer um compromisso sério. Nem sempre
essas promessas cumprem com o anunciado, pois se configuram, em sua maioria, em
mais uma maneira de mascarar o que essa realidade reserva aos idosos. Além do mais,
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nem toda ginástica, dieta ou malhação conseguem esconder o que realmente a velhice
proporciona aos indivíduos.
Em “Não aconselho envelhecer”, essa questão da máscara utilizada para esconder a
realidade da senilidade é fortemente apresentada pela autora, que considera uma tolice
essa busca de se esconder algo que fará parte da vida de todos, quer queiram ou não. No
entanto, ela reconhece a dificuldade de aceitação dessa realidade, principalmente
quando a aparência insiste em mostrar que a pessoa está velha, mas esta não se sente
velha:
Diz-se que já se consegue muito na luta contra a velhice. Ginástica,
dieta, malhação, corrida etc. Cirurgia plástica. Ah, já pensaram no
tormento de uma bela mulher, atriz, dama da soçaite, cortesã, que viva
da e para a beleza, ao descobrir as primeiras rugas, a flacidez do
mento, daquela sutil rede de outras pequenas rugas que rodeiam os
lábios? O dr. Pitanguy opera e os seus colegas de mérito variável
também operam. Mas, por mais famosos, competentes e mágicos que
sejam os cirurgiões plásticos, só fazem mágicas, não fazem milagres.
Esticam a pele sobre os músculos flácidos, fazem peeling, que é uma
espécie de raladura na cútis, fica lindo a princípio, mas, como toda
mágica, não dura muito. E aí tem que começar tudo outra vez, as
cicatrizes já não se escondem tão bem atrás das orelhas ou no couro
cabeludo, que aparado, vai encurtando, deixando as pacientes com
testas enormes, quase uma calvície. E nem falei em calvície que,
mercê de Deus, ataca mais os homens que as mulheres (QUEIROZ,
2002, p. 57).

Mesmo diante de todas essas inovações oferecidas por uma sociedade também
repaginada, os milagres ainda não são possíveis. E, ao se deparar com o espelho, a
máscara acaba se desfazendo e traz à tona o que, muitas vezes, se quer esconder. Ainda
que o sujeito não se sinta velho, que sua cabeça e seus sentimentos insistam em
contrariar as evidências, nada disso confirma o que o espelho reproduz, ou seja, a
realidade. E, por pior que pareça, as demais pessoas não verão aquilo que se quer deixar
transparecer, mas, aquilo que o espelho vê, ainda mais diante de uma sociedade que
declara, dia após dia, a primazia dos jovens:
Hoje a juventude é mais prestigiosa do que nunca, como convém a
culturas que passaram pela desestabilização dos princípios
hierárquicos. A infância já não proporciona uma base adequada para
as ilusões de felicidade, suspensão tranqüilizadora da sexualidade ou
inocência. A categoria de ‘jovem’, por sua vez, garante um outro set
de ilusões [...] Assim, a juventude é um território onde todos querem
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viver indefinidamente. No entanto, os ‘jovens’ expulsam desse


território os impostores que não cumprem as condições da idade [...]
(SARLO, 1997, p. 39).

Para essa juventude soberana, os senis correspondem aos maiores impostores, pois se
entregam aos subsídios modernos para tentar mascarar a irrefutável realidade da idade e,
em alguns casos, acabam ultrapassando os limites do possível para promover a sua
provável aceitação junto a essa mocidade.
Essa situação acaba se transformando em um pesadelo para as pessoas de mais idade
a partir do momento em que o ideal estético firma-se sobre o corpo jovem: o velho
representa o que é feio e desfigurado pelas marcas do tempo. Diante de sua fragilidade,
a autoimagem do senescente fica bastante comprometida. Muitos problemas surgem em
virtude dessa desfiguração: problemas psicológicos, principalmente a depressão, quando
acontecem nessa idade, estão intimamente ligados ao declínio das funções gerais do
organismo e às mudanças na beleza e na forma do corpo. Além disso, a vida sexual
acaba perdendo parte de seu vigor, tudo fundamentado nas inúmeras transformações que
o sujeito sofre nessa altura de sua vida.
Desse modo, fica mais fácil compreender a ironia da autora ao falar dessas
futilidades criadas para compensar tantas perdas e tantas regressões. Se a velhice é
degeneração, perda, diminuição progressiva, desorganização, redução e involução, o
que dizer aos que atingem essa faixa etária diante de um vocabulário tão desestimulante
e que impressiona por sua configuração negativa?
Para reforçar a sua teoria de que o envelhecimento não constitui o primor da vida e
que, apesar de parecer um privilégio chegar à velhice nessa realidade tumultuada da
vida cotidiana contemporânea, a escritora termina as ideias da crônica “Não aconselho
envelhecer” falando sobre o envelhecimento da cabeça, o momento em que o cansaço
das ideias, da inteligência e da alma torna-se real e, praticamente, irreversível:
O velho tenta se equiparar às audácias dos jovens, até mesmo excedê-
las – mas a si próprio não se convence. Sabe que as suas idéias são as
do seu tempo, fruto do que leu, viu e acumulou; e isso pode ser
camuflado, mas não pode ser modificado. Dizem que as células
cerebrais não se renovam, como as demais células do corpo – será
verdade? (QUEIROZ, 2002, p. 58).
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Não há como evitar as desilusões diante daquilo que não se consegue mais alcançar.
Por mais que se tente mascarar alguns dissabores diante das irrealizações que vão
acontecendo com a consolidação da senescência, mais cedo ou mais tarde o cansaço
toma conta do sujeito idoso que, diante das suas restrições, tem consciência de que o seu
mundo, a sua instrução, o seu vocabulário, as suas leituras e até mesmo a sua formação,
são coisas que pertencem a um passado e, como tal, perdem a sua importância.
Tudo que foi acumulado acaba sendo abafado com o tempo e, fatalmente, torna-se
parte de um legado que deixa de ser imprescindível à sociedade, mesmo que represente
toda a vida de um indivíduo. E, para que esse passado não se perca até mesmo para
quem o vive, é preciso que se tenha em mente a sua autoridade: “Meu passado é o em-si
que sou, enquanto ultrapassado: para tê-lo, é necessário que eu o mantenha existindo
através de um projeto; se esse projeto é conhecê-lo, é preciso que eu o torne presente,
rememorando-o para mim mesmo” (BEAUVOIR, 1990, p. 445).
Até mesmo as ideias dos grandes gênios envelhecem. Simone de Beauvoir (1990)
analisa as atividades artísticas intelectuais na velhice e confirma que escritores, artistas
e pesquisadores em geral deixam de vibrar com a sua criação, porque não se instalam
mais em batalha para fazer e recriar a vida. Seja qual for a sua criação cultural, perdem
o estímulo, pois acreditam que ela não mudará mais o mundo. Dessa forma, a
curiosidade natural pela pesquisa e pela aprendizagem perde, gradativamente, o seu
brilho e a sua alteridade. Até mesmo os escritores, segundo a estudiosa,
Apanhados por esse espírito geral, passam a repensar sua produção, É
comum que passem a preferir as memórias, o ensaio ou a poesia;
embora haja exceções, pois a ‘aventura humana não suscita mais
interesse’ e, por isso, não há como criar supostos heróis ou destinos
imaginários (apud GUIDIN, 2000, p. 80).

Para se manterem vivos em seus projetos, os intelectuais também procuram viver


mais da lembrança do que da esperança de mudança nos objetivos daqueles que
compõem o cotidiano na modernidade.
No entanto, essa colocação de Beauvoir pode ser questionada, visto que a própria
Rachel de Queiroz escreveu até pouco tempo antes de sua morte, aguardando a
publicação do livro Visões, uma fusão de imagens do Ceará fotografadas por Maurício
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Albano com textos da autora. E o que dizer, então, de tantos outros escritores, pintores,
escultores etc., que produziram e que produzem até o fim de sua vida?!
Mas, independente de quem seja atingido pela senescência, gênios incontestáveis ou
pobres mortais, o pior de tudo na constatação de que a senilidade se concretizou,
conforme Rachel, concentra-se no fato de não se poder lamentar os estragos que a
velhice proporciona ao seu corpo e a sua mente. Quando isso acontece, geralmente há
alguém para protestar diante dessa tentativa: “Eu queria, quando chegar à sua idade, ter
essa lucidez!” (QUEIROZ, 2002, p. 58). E a autora encerra a crônica em questão
revoltada com as particularidades da terceira idade e condena, mais uma vez, o intuito
de mascarar essa realidade e as suas implicações, delegando um mínimo de dignidade
ao fato: “Lucidez? O que é que esse cara esperava? Que você estivesse caduco?”
(QUEIROZ, 2002, p. 58).

Referências
BARRETO, Maria Lecticia. Admirável mundo velho: velhice, fantasia e realidade
social. São Paulo: Ática, 1992.
BENJAMIN, Walter. O narrador: observações acerca da obra de Nicolau Lescov. In:
______. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 63-81.
BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Trad. Maria Helena Franco Monteiro. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. In: CANDIDO, Antonio. et. al. A
crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da
Unicamp, 1992. p. 13-22.
GUIDIN, Márcia Lígia. Armário de vidro: a velhice em Machado de Assis. São Paulo:
Nova Alexandria, 2000.
PORTELLA, Eduardo. “A cidade e a letra”. In: ______ Dimensões I. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1958.
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QUEIROZ, Rachel de. Falso mar, falso mundo. São Paulo: Editora Arx, 2002.
SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na
Argentina. Trad. Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 22-42.

Anexo
“Não Aconselho Envelhecer” (18-03-1995)
Aos moços dou um conselho: não fiquem velhos. Verdade que as opções são poucas
— morrer, ou lutar contra a velhice. E morrer não seria opção, mas entrega; e a luta?
Bem, a luta resulta sempre numa batalha perdida e inglória.
Entre os processos cruéis da natureza, é a velhice o mais cruel. Implacável, insidiosa,
ataca por todos os lados, abre a porta a todas as moléstias mortais. Pensando bem, é uma
espécie de HIV a longo prazo. Te ataca o coração, o pulmão, todas as demais vísceras
— a tripa, o fígado, o que nos abatedouros se chama o arrasto. E mais a fiação arterial e
venosa; e a coluna! E não falei na atividade cerebral. E também esqueci os ossos, a
infame osteoporose, que te rói os ossos pelo tutano, deixando-os como frágeis cascas de
ovos. E então basta um pequeno escorregão na banheira para deixar um fêmur fraturado.
Os moços compadecidos, os quarentões assustados e os próprios velhos, apelando
para tudo, inventaram ultimamente essas bobagens de “terceira idade”, clubes e
associações que trabalham contra o isolamento e as tristezas da velhice. Mas não se
iluda, velho, meu amigo e colega. Ninguém está acreditando naquilo. Você já viu na TV
um quadro de propaganda dessa falsa recuperação de terceira idade? Um velho e uma
velha, vestidos à moda dos anos 30, tentando dançar um tango argentino? É patético,
embora a maioria dos moços apenas o considere docemente ridículo.
Diz-se que já se consegue muito na luta contra a velhice. Ginástica, dieta, malhação,
corrida etc. Cirurgia plástica. Ah, já pensaram no tormento de uma bela mulher, atriz,
dama do soçaite, cortesã, que viva da e para a sua beleza, ao descobrir as primeiras
rugas, a flacidez do mento, daquela sutil rede de outras pequenas rugas que rodeiam os
lábios? O dr. Pitanguy opera e os seus colegas de mérito variável também operam. Mas,
por mais famosos, competentes e mágicos que sejam os cirurgiões plásticos, só fazem
mágicas, não fazem milagres. Esticam a pele sobre os músculos flácidos, fazem um
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peeling, que é uma espécie de raladura na cútis, fica lindo a princípio, mas, como toda
mágica, não dura muito. E aí tem que começar tudo outra vez, as cicatrizes já não se
escondem tão bem atrás das orelhas ou no couro cabeludo, que, aparado, vai
encurtando, deixando as pacientes com testas enormes, quase uma calvície. E nem falei
em calvície que, mercê de Deus, ataca mais os homens que as mulheres!
Você contempla no espelho, vê as rugas do seu rosto, do seu pescoço, como se
olhasse uma máscara que se desfaz. Vê bem, sabe como está velho, embora não sinta
que está velho. Sua alma, seus sentimentos, sua cabeça, nada disso confirma a palavra
ou a imagem do espelho. Mas os outros só vêem de você o que o espelho vê.
E a par disso as cãs, quer dizer, os cabelos brancos? Bem, os cabelos pintam-se. Mas
vocês já descobriram que, por mais excelentes que sejam os cabeleireiros e as tinturas, o
cabelo pintado fica sempre gritantemente diverso do natural? Pensei sobre isso e acabei
descobrindo: o cabelo nosso, a natureza lhe dá cor de fio em fio, cada fio na sua
tonalidade, uns mais claros, outros mais escuros: o conjunto toma esse colorido
inimitável, que profissional nenhum pode obter, já que lhe é impossível tingir fio por
fio. E, daí, essas senhoras de comas tão louras, tão ruivas, tão castanhas e negras, não
iludirem nunca, darem mesmo a impressão de que usam perucas.
E, no final de tudo, vem o envelhecimento da cabeça, da inteligência, das idéias, da
alma — da chamada psiquê. O velho tenta se equiparar às audácias dos jovens, até
mesmo excedê-las — mas a si próprio não se convence. Sabe que as suas idéias são as
do seu tempo, fruto do que leu, viu e acumulou; e isso pode ser camuflado, mas não
pode ser modificado. Dizem que as células cerebrais não se renovam, como as demais
células do corpo — será verdade? Até mesmo as idéias dos gênios mortos envelhecem;
e diante das idéias de um Nietzsche, de um Freud, tem que se dar o desconto do tempo e
das mudanças. Contudo, o pior mesmo é quando você, com honesta sinceridade,
lamenta diante de alguém os estragos que lhe traz a velhice, e esse alguém protesta com
veemência: “Eu queria, quando chegar à sua idade, ter essa sua lucidez!”
Lucidez? O que é que esse cara esperava? Que você já estivesse caduco?
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"O PESSOAL É POLÍTICO": GÊNERO E OPRESSÃO N'O QUARTO FECHADO


DE LYA LUFT

Adriana Gonçalves da Silva (PG-UFV)

Stuart Hall, em A identidade cultural da pós-modernidade, menciona que a frase “O


pessoal é político” tornou-se o slogan do feminismo, isto porque as teorias feministas
colocaram em xeque o sujeito cartesiano1 e questionaram as fronteiras entre o particular e o
universal, ou seja, o feminismo “politizou a subjetividade”. (HALL: 2005; p.45)
De acordo com Badinter (1980), o feminismo dos anos 60 vem imbuído no intuito de
“lançar toda a luz sobre desejos ocultados havia séculos e a opressão sexista que os
provocava”(BADINTER: 1980; p.331-grifo nosso). Essa visão da mulher enquanto ser
desejante, sempre foi rechaçada da sociedade. Não há espaço no universo feminino para o
desejo além daquele determinado socialmente: o casamento e a maternidade. Dessa forma,
possuímos uma faca de dois gumes, não há saída para o desejo feminino, pois não ceder é
manter a hegemonia do patriarcado e reforçá-la, já ceder seria negar a concepção do
patriarcado buscando um rompimento, o qual reforçaria a concepção essencialista de
impulsividade e passionalidade atribuída à mulher. Em outras palavras: uma vez que as
mulheres cedem aos desejos que não são os construídos para as mesmas, elas não só postulam
uma crítica ao patriarcado como reforçam o discurso vigente.
O termo patriarcalismo, utilizado em sociedades antigas que possuíam como figura central
um chefe de família, foi apropriado pelas feministas para aplicar-se a toda forma de opressão
à mulher. Em contrapartida, com o constante desgaste do termo, esse terminou por gerar “um
discurso metaessencialista sobre os sexos e suas relações”(SORJ: 1992; p. 17) agindo, desse
modo, contra o próprio intuito buscado.
A idéia de subordinação feminina inserida em contextos e tempos diversos, embora com
nuances menos ou mais incisivas, menos ou mais declaradas, não deixou de atuar sobre a
humanidade. E foi isso que Piscitelli localizou como centro do pensamento feminista no final

1
O sujeito cartesiano é o correspondente ao sujeito do Iluminismo “baseado numa concepção de
pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades da razão, de
consciência e de ação...” (HALL, 2005; p.10-11)
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da década de 60 em que a subordinação “é pensada como universal, na medida em que parece


ocorrer em todas as partes e em todos os períodos históricos conhecidos”. (PISCITELLI: 2004; p.44)
Podemos verificar que essa visão sexista é, portanto, uma visão culturalmente arraigada e
estabelecida em nossa sociedade. Textos como as publicações: Um teto todo seu (1928) de
Virginia Woolf e o Segundo Sexo (1949) de Simone de Beauvoir, surgem como tentativas de
colocar no cerne da questão a mulher, o seu papel social e os essencialismos que aprisionam o
gênero feminino, antecipando questões que serão abordadas pelo feminismo mais à frente.
Partindo da concepção do próprio termo gênero, Scott (1990) nos informa que a sua
instituição deu notoriedade cientifica às reivindicações das feministas, afastando-as da
militância política para o academicismo a partir do elo com as ciências sociais, “esse uso do
termo gênero constitui um dos aspectos daquilo que se poderia chamar de busca de
legitimidade acadêmica para os estudos feministas, nos anos 80”(SCOTT: 1990; p.75).
A busca de legitimação as moveu da esfera meramente política, ideológica e utópica para a
da inserção social e prática do discurso. O caminho trilhado, mais do que inserir o estudo de
gênero em um âmbito universitário proporcionou um afastamento dos “aspectos biológicos
[que] colocava o feminismo em um terreno potencialmente essencialista, [para] o
desenvolvimento do conceito de opressão [que] incidiu em um alargamento dos significados
do político”(PISCITELLI: 2004; p.47).
O romance analisado, O quarto fechado, de Lya Luft, datado de 1984, está imerso nesse
período histórico singular para os estudos de gênero. A transformação sofrida e o
amadurecimento atingido desde as primeiras manifestações em 60 chegam agora a uma
potencialidade para o desenvolvimento e conquista desse espaço almejado. Esse passo de
uma inserção sócio-histórica é decisivo, considera-se que teorias como a do patriarcado
ganham muito mais expressão quando para além dos papéis sociais atribuídos são verificadas
as formas como se constroem esses papéis pelo discurso, aliadas à concepção ideológica do
discurso presentes nessas construções. Para Bakhtin (2006), nenhum discurso é livre dessas
ideologias, não há efetivamente um discurso neutro. Todo texto, seja ele oral ou escrito, está
enraizado em outros já enunciados, ou seja, o dialogismo bakhtiniano irá pressupor que “o
discurso [...] é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande
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escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções
potenciais, procura apoio, etc.”(BAKHTIN: 2006; p.128).
O romance de Luft virá nesta esteia respondendo, mais do que a outros textos ao seu
próprio tempo e aos discursos correntes, percebendo as relações de gênero e de opressão que
daí advém. A leitura que se pretende da obra O Quarto Fechado, perpassa as formas de
opressões que surgem na constituição dos gêneros em âmbitos sociais, alargando-as a uma
esfera política de maior abrangência. O que se pretende, portanto, é alcançar outros
questionamentos, percebendo o movimento elaborado na obra pela autora, que concentra e
expande significados, em que uma forma de opressão será simbólica no apontamento de
outra. Esse jogo constante nos ajudará a compreensão das metáforas que se encontram
disseminadas na obra em um plano não-aparente. Seguindo essa trilha, torna-se importante
esboçar uma aproximação em linhas gerais do enredo e dos personagens para, a posteriore,
nos determos à averiguação de maiores sentidos incutidos nesses.
O enredo principal de O quarto fechado, apesar do tom trágico, é simples: uma família
encontra-se velando o jovem Camilo que morreu ao cair de um cavalo na fazenda. Entretanto,
enquanto as horas do velório transcorrem, transcorrem também na mente dos personagens
inúmeros flashbacks que se vinculam à história presente daquele clã. Há, portanto, uma
condição temporal cronológica e uma psicológica. Enquanto a penumbra da noite e a neblina
reinam na sala do velório, outros ambientes soturnos nos são revelados como retratos do
espaço interior de cada um daqueles personagens.
Mamãe, a que criara Clara e Martim (pai do morto), está em seu quarto a espera que a
qualquer momento a campainha toque e tenha que atender a filha legítima Ella. Aprisionada à
condição da filha é por excelência a figura da maternidade – apontada desde seu nome. Em
alguns momentos sente como se a filha a estivesse punindo e no momento do velório chega a
desejar que essa estivesse morta no lugar de Camilo. Assume uma postura ambivalente em
que sua construção física opõe-se a imagem da boa samaritana. Sempre com sua peruca e
maquiada, Mamãe parece não perceber a passagem do tempo.
A filha legítima, Ella, está entrevada em uma cama, pois na adolescência sofreu uma
fatalidade ao cair da cerca no momento em que esperava por Martim às escondidas de
Mamãe, que proibia o relacionamento alegando incesto. Ela se tornou um ser amorfo em seu
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leito, criatura estranha e indefinida. Hostil a visitas, só recebe os cuidados de sua mãe e as
visitas escassas de Martim. Além disso, assim como a mãe não tem um nome próprio
corrente na língua, Ella vincula-se ao pronome pessoal em espanhol (terceira pessoa do
singular), apontando tanto a noção de a Outra, a do quarto, a distante, a estrangeira e
distanciada da casa, como para a figuração personificada da própria Morte que já reina em
seu quarto, nos seus membros inertes, no cheiro fétido e na atmosfera fechada.
Clara, irmã de Martim envolve-se com o padre que freqüenta a casa para ver Ella. Porém,
o envolvimento físico é frustrado com o pedido inusitado do padre de apenas ver o seu sexo.
Desde então, o padre é remanejado para outra diocese e Clara vive a espera que ele retorne,
por isso, às vezes de súbito, se arruma e desce as escadas na esperança de que ele apareça. No
momento do velório, Clara está nua em seu quarto, absorta em suas recordações.
Além desses temos: os pais de Camilo, Martim e Renata, que estando separados,
permanecem na sala e pouco se comunicam, imersos nas recordações daquele casamento
fracassado; Carolina, irmã gêmea do morto, encerrada em seu quarto e permanecendo tão
imóvel quanto o cadáver do irmão; e Rafael, o último filho do casal, o anjo provavelmente
vitimado pelos gêmeos, que aparece na narrativa pela recordação dos pais que o
consideravam a última tábua de salvação, a tábua que foi perdida.
Feito este mapeamento o título do livro pode ser compreendido de duas maneiras: tanto
pelo quarto central da casa que vive fechado, o de Ella, como pelo constante isolamento dos
indivíduos. Excetuando os pais do morto, no momento do velório todos os familiares estão
reclusos em seus quartos. Mas, para além dessa reclusão física o isolamento também é notório
no casal que permanece na sala, afastados. Renata e Martim estão prostrados em lados
opostos do caixão: simbolicamente o filho morto ainda delata as causas da separação.
Martim, figura ícone do patriarcado, possui códigos comportamentais que se vinculam aos
padrões sociais vigentes. Homem rude e do campo, faz o tipo heterossexual e viril. Desde
solteiros, Martim apresenta uma visão essencialista e estereotipada percebida em um de seus
diálogos no qual salienta que é apenas “um bruto que vai se casar com uma fada”(p.17)2.

2
Todas as citações serão feitas pela edição: LUFT, Lya. O Quarto Fechado. Rio de Janeiro:
Record, 2008. A partir de então, indicaremos apenas o número da página.
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Renata, por sua vez, ainda que possua fisicamente e em seu espírito os atributos de
sensibilidade e fragilidade esperados da mulher, esses se dão pelo dom da música, mas ela
não se constitui enquanto modelo de matriarca subalterna. “Pianista de sucesso, Renata
descera dos palcos para o mundo de Martim, um mundo terra-a-terra, forte e racional.”(p.15),
não servia para se casar e já havia renunciado a um companheiro que ao avesso de Martim era
mais cúmplice de sua arte. Mesmo assim, cedeu. A amargura é provocada pela não-
completude que a diversidade de interesses emerge, “por mais que a amasse, era preciso algo
além disso: capacidade de a compreender, participar” (p.16). Ela não fora feita para a vida
doméstica e vendo-se reduzida à esposa e mãe, não compreende sua existência.
A infelicidade de Renata se dá pelo fato de esta abdicar de seu desejo em um momento em
que a solidão a atormentava: “Eu me atirei nos braços dele para fugir da solidão e foi tudo
uma fraude”(p.26). Não demorou muito para que depois de casada a pulsão da música a
cobrasse sua parcela de vida que já não podia responder.
Marilena Chauí (2006) em seu texto Laços do desejo menciona que o desejo, desiderium,
aparentemente inclui em si uma parcela de alteridade, mas que o desejo é também parcela de
falta, possuindo um elo estreito com a condição temporal e, por sua vez, com mnemosyne.
Sendo o desejo, vontade do que não está presente, lança-nos ao mesmo tempo para o passado
em que porventura já possuímos o ser ou coisa desejada e/ou ao futuro, no qual esperamos ter
aquele objeto ausente, do qual ainda sentimos falta. Dessa forma, Renata trará sempre as
recordações do palco e de suas apresentações. As notas dissonantes virão no relacionamento
que não se harmoniza: “Fora uma estranha na casa, na mesa, na cama”(p.16).
O ponto desestabilizador do matrimônio é o crescimento dos filhos. Irmãos gêmeos,
Camilo e Carolina pareciam imitar-se constantemente e estavam sempre juntos. As tentativas
de Martim para separá-los não surtiam efeitos, abatiam-se, adoeciam e não interagiam
socialmente. Eram suficientes um ao outro: não havia elemento de falta, bastavam-se. Martim
intervinha tentando controlar seus hábitos, mas tanto conviviam e possuíam de semelhanças
que às vezes era impossível até mesmo distingui-los: eram andróginos.
O Mito da Androginia que surge no discurso de Aristófanes sobre o Amor, no livro O
Banquete de Platão, corrobora para o entrelaçamento do desejo à condição de falta. De acordo
com o mito, a humanidade possuía um gênero designado como andrógino por possuir em
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essência as duas naturezas. Os andróginos, enquanto gênero, compunham-se do elemento


masculino e do feminino, e, enquanto forma, no mito também eram seres sexuados e
compostos duplamente. Porém, se voltaram contra Zeus, sendo castigados. E a forma desse
castigo foi justamente a separação, pois Zeus sabia que ao dividi-los os deixaria mais fracos.
O mesmo que ocorre com Camilo e Carolina que só são seres completos quando possuem um
ao outro, na ausência, desfalecem, da mesma forma que Renata desfalece sem a música..
Assim, com a morte de Camilo, Carolina se rende. Ela não consegue mais sentir-se inteira e
não saberá viver com a ausência de sua parte. O vazio, a aniquilação gerada pelo sentimento
de incompletude estagnam a personagem.
Quando Camilo é velado morto na sala, Carolina em seu quarto está deitada possuindo o
mesmo rosto pálido daquele que não mais existe. Sentindo que começara a morrer junto com
o irmão, Carolina elimina o último sinal diferenciador. Desde que Martim havia obrigado o
corte do cabelo de Camilo, eles não os possuíam em cumprimentos iguais como antes. Agora,
ela no quarto cortando seus cabelos, reproduz a mesma imagem que outrora fora símbolo da
opressão de Martim ao seu irmão: “Ao terminar, era a mesma figura que se ajoelhara na sala
de Mamãe: caracóis rentes ao crânio estreito, um ser andrógino, estranho.” (p.105)
Apesar dos irmãos da narrativa reconhecerem-se como semelhantes, extensão um do
outro, precisavam lidar com as expectativas diferentes criadas para cada um deles. Camilo e
Carolina não só não se separavam enquanto masculino/feminino, como queriam ter em si a
parcela do outro. Não acreditavam em ser necessária uma divisão sexuada de seus caracteres
e ações, não se essencializavam. Já eram, pois, desconstrucionistas dessa visão separatista e
não agiam como crentes em tal: “Em um tal universo “descentralizador” e instável, parece
plausível questionar uma das facetas mais naturais da existência humana – as relações de
gênero.” (FLAX: 1992; p.226)
Gênero é uma construção social ou “uma categoria social imposta sobre um corpo
sexuado”(grifo nosso-SCOTT: 1990; p.75). A correspondência binária sexo/gênero surge
como imposição na própria educação oferecida aos indivíduos. Porém, os gêmeos, não se
enquadram nessa equivalência e não querem se enquadrar, eles se constroem duplamente e
não deixam que a sociedade interfira nesse processo. Logo, os papéis sociais desempenhados
pelos univitelinos frustram os padrões essencialistas. Camilo, por ser o herdeiro direto do pai,
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é o que mais sofre as pressões dessa equivalência. Ele não atende as expectativas geradas por
Martim que tenta exercer sobre ele um controle autoritário. Os atributos do masculino não são
preenchidos por Camilo, além de não se interessar pelas coisas do campo, o jovem possui
uma sensibilidade apurada, estereotipada como própria às mulheres:

A idéia de masculinidade repousa na repressão necessária de aspectos


femininos – do potencial do sujeito para a bissexualidade – e introduz o
conflito entre o masculino e o feminino. [...] Além disso, as idéias
conscientes sobre o masculino ou o feminino não são fixas, uma vez que
elas variam de acordo com situações contextuais (SCOTT: 1990; p.82).

Mas essa multiplicidade de aspectos assumidos por cada um dos irmãos funciona como
um duplo da personalidade de Renata que não consegue abdicar, de fato, de sua vida artística.
Ela abandona as apresentações, entretanto não assume o papel social que a sociedade
patriarcal espera de uma esposa: a total entrega ao lar. Poderíamos dizer que ao seu modo,
Renata já é um ser andrógino que acumula caracteres que não são os símbolos de
feminilidade corrente: “Durante a penosa gravidez Renata alimentara um único anseio: livrar-
se de tudo aquilo. Sabia que era errado, era condenável, mas não podia como as outras
mulheres, esperar com alegria o desenlace: tinha medo” (p.39).
Os filhos escolhem o caminho da desconstrução, do questionamento abandonado
socialmente pela mãe, porém presente em seu interior. Como espelhos desses
questionamentos anteriores “os filhos apenas prosseguiam numa busca que ela já não tinha
condições de realizar”(p.25). O jogo do duplo é configurado na obra não apenas pelos gêmeos
enquanto metade do outro, não apenas desses enquanto similar à desagregação psicológica de
Renata ou à deformidade (a)mórfica de Ella, mas também na própria figuração dos pais como
antagônicos. Outro ponto são os paralelos possíveis de Renata com outros personagens como:
Mamãe, que se oporá à Renata no exercício da maternidade, Clara em sua vaidade e a figura
de Ella, que encantou Martim em tempos remotos, com a força do aspecto de female fataly
que foi, aspecto não visto na estrutura franzina de sua esposa.
Apesar destes antagonismos as personagens femininas no romance possuem um elemento
unificador: nenhuma delas ratifica os padrões esperados. Fragmentam-se, são ambíguas e
complexas. E, por reconhecer-se como indivíduo complexo e (ex)cêntrico, Carolina não
mobiliza esforços para aderir outro mundo que não o do irmão, seu ideal símile. Já Camilo
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apesar de sua inadequação social e sua dificuldade de interação, sente-se impulsionado a


aproximar-se quando o outro possui um elemento que o impele: a beleza.
Com toda a sensibilidade que cultivava era amante do Belo, escutar a mãe tocar pianos o
fazia chorar, ver o quadro da Ilha dos Mortos o fazia embarcar para outros mundos. As duas
tentativas buscadas por Camilo para alargamento de seu âmbito social ocorreram com dois
seres que, em primeiro lugar, julgava belo.
Na adolescência, Camilo começou a levar um rapaz para casa de forma a afrontar o pai
que desde a infância lhe dizia: “Garoto que só anda com a irmã vira maricas!”(p.31). O rapaz
possuía todos os atributos necessários á contemplação de Camilo, mas o intruso teve intuito
de “divertir-se com Carolina”(p.95), o que se tornou um jogo perigoso, uma vez que via no
semblante dela o semblante de Camilo e atormentava-se. O afastamento foi inevitável.
A outra experiência se deu ainda na infância com aquele garotinho descrito como
“pequeno pajem de conto de fadas”(p.21), do qual Camilo venerava tanto a imagem que, em
sua presença ou em suas recordações, ficava embevecido. Gostava de tê-lo por perto para a
contemplação, a contemplação do Belo era para ele essencial. Ao morrer a criança, vítima de
uma enfermidade, Camilo pede para ir ao enterro. Desde então, cria-se uma nova associação:
beleza x morte: “Na memória de Camilo o rosto da criança morta se desfez, nem um perfume
sobrou, um gesto. Tudo fora transferido para aquele espaço maior de atração: na Morte estão
as coisas mais belas que um dia serão minhas”(p.22).
A morte e o mistério que dela advém sempre foram simbolizados para ele pelo quadro de
Renata. O quadro intitulado Ilha dos mortos, única lembrança da vida antiga da mãe, traz a
configuração da morte na figura de um barqueiro que leva de uma margem à outra: a clássica
concepção grega. Embora Camilo já contemplasse a morte em outros tempos, essa se dava,
sobretudo no jogo da representação. Tanto o quadro era uma representação quanto ele
representava ao brincar com sua irmã do jogo do fingir de morto. Porém, agora vira em
realidade. E não só a contemplou como a tocou. De perto, ela causara comoção.
O livro traz, então, esta ressonância da morte pelo olhar contemplativo de Camilo que a
amava. Assim, possuindo a morte como eixo central divide-se em três partes que narram o
ritual de passagem de Camilo ao encontro com a “fria Dama”(p.103): A primeira parte é
denominada A ilha numa alusão ao quadro de Renata em que é possível ver o barqueiro
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remando em direção a uma ilha sombria e misteriosa. Aqui, Camilo ainda não embarcou,
refere-se muito mais a sua forma de lidar com a mesma em vida, num modo contemplativo e
desejoso. A segunda parte é dedicada para As águas, referindo-se já ao trânsito, à
transposição do mar exercida pelo personagem. A terceira parte e última remete ao encontro
crucial ou o espetáculo inaugural com Tânatos, em que Camilo abraça-a antes de aportar,
uma referência também ao fim do velório e hora do enterro.
A forma como Camilo lida com a morte é singular, assim como será singular o meio que
escolhe para morrer. O suicídio intentado ao montar um cavalo bravio remonta à cena de sua
festa de seis anos, quando o pai comprou um pônei de presente o obrigando a montá-lo à
frente de todos, por mais que relutasse. A inadequação do filho pelas coisas do campo sempre
foi do conhecimento de Martim que se sentia ferido em seu orgulho. O cavalo na obra
engloba os símbolos de virilidade, militarismo como também o símbolo forte de sexualidade.
A própria morte é descrita envolta a uma sensualidade que enfatiza o desejo do personagem
por ela, como também o elo irrompível dos gêmeos, outrora vivenciado pelo intruso ao
possuí-los: “Agora, quem possuía Camilo era a fria Dama que começava a corrompê-lo com
seu toque obsceno, atingindo Carolina também. A vida: serpente voltando para dentro de si
mesma, começo e fim, masculino e feminino, prazer e destruição”(p.103).
Camilo no momento de sua morte denuncia seu pai rendendo-lhe um último tributo ao
fazer sua vontade. É assim que essa se torna uma resposta à opressão paterna que representa a
opressão social na obra. Entretanto, nessas opressões demarcadas em relação ao território do
gênero e da forma como esse se constrói socialmente há uma alavanca que nos impulsiona a
outro plano. Luft utiliza das teorias feministas vigentes, de forma metafórica, para a denúncia
de seu tempo sob as égides de um regime que se posicionava autoritário tal qual o
patriarcado. De acordo com Silviano Santiago em seu livro Nas malhas da letra, as narrativas
dos anos pós-64 se voltam para o ambiente doméstico como meio de a partir de uma
microestrutura denunciar a macroestrutura social: “o poder toma as mais inusitadas formas no
cotidiano do cidadão” (SANTIAGO, 2002, p. 16). E isto se dá como forma de livrar-se das
oposições da censura, marcadamente presente no período ditatorial pós-64. O princípio
enquanto meio criativo é continuar expressando-se incutindo no aparente toda uma
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construção mais ampla. Como diria Daniel Defoe em sua célebre frase3:“É tão válido
representar um modo de aprisionamento por outro, quanto representar qualquer coisa que de
fato existe por alguma coisa que não existe”. Esse recurso surge presente no romance da
escritora pela recorrência de elementos opressores de seus personagens. Para fugir ao veto,
denuncia-se um modo opressor por meio de outro. O livro publicado em 1984 encontra-se no
limiar do fim do regime ditatorial, ainda imerso e resultante dos sons ecoantes desse tempo:

Houve uma primeira e camuflada resposta da literatura às imposições de


censura e repressão feitas pelo regime militar: a prosa de intriga fantástica e
estilo onírico em que o intrincado jogo de metáforas e símbolos transmitia
uma crítica radical das estruturas de poder no Brasil, tanto à estrutura
ditatorial centrada em Brasília como às microestruturas que reproduziam no
cotidiano o autoritarismo do modelo central. (SANTIAGO: 2002; p.37)

O estilo fantástico/onírico é perceptível na obra pela figuração do grotesco e do gótico,


principalmente nas imagens envoltas a personagem Ella, como a despeito de seu próprio
corpo e do quarto onde se encontra. Em outro momento Silviano Santiago menciona que a
literatura nacional aproximou-se da contemporânea hispano-americana (de certo modo essa
aproximação com os latinos é apontada na utilização do nome da personagem: Ella),“abrindo
mão do naturalismo da representação”(SANTIAGO: 2002; p.14), por conta da censura.
Encerrado nos limites da censura “adentra-se o texto literário por uma escrita metafórica ou
fantástica, até então praticamente inédita entre nós” ( SANTIAGO: 2002; p.14).
Desta forma, teremos como alegoria deste regime autoritário as opressões traumáticas
geradas em cada um: Renata que não pode exercer sua arte; os gêmeos acorrentados à
correspondência sexo/gênero; Mamãe sob a égide da culpa do acidente da filha; Camilo no
seu humilhante desfile (civil?) em cima de seu pônei; Carolina perdendo sua virgindade de
forma violenta, o sangue na morte de Camilo que se junta simbolicamente ao da irmã sob os
lençóis; Clara se abrindo a visão do Padre, como acusação explícita do poder da Igreja, por
vezes também opressor; Ella envolta a uma aparelhagem com manivelas que lembra os
métodos de tortura; Mamãe escrava de uma campainha que assim como o toque de recolher
impõe o ritmo de seu dia, colocando-a reclusa; o próprio quarto trancado com chaves; o

3
A frase em questão foi traduzida para o Francês por Albert Camus, ao ser utilizada como epígrafe
de seu romance La Peste. Em português foi retirada da obra do autor sob a tradução de Valerie Rumjanek.
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silêncio costumeiro na casa e etc. Além disso, pululam os interditos. O ambiente doméstico
possui seu próprio pacto de censura do que deve ou não ser dito. Para Focault em A ordem do
discurso, “em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão.
O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição”(FOUCAULT: 2008; p. 9).
Assim, é que a história de Ella não deve ser mencionada, nem mesmo a de Clara. Renata
só irá descobri-las com o tempo. Na fala de Renata: “Havia estranhas coisas naquela casa,
coisas não ditas brotavam como cogumelos pelos cantos” (p.49). A restrição ao acesso se dá
tanto no plano discursivo como também no próprio ambiente, assuntos são velados como é
vedado o acesso ao quarto de Ella. Apenas sua mãe pode atendê-la ao soar da campainha, a
doente seleciona quem deixa vê-la e este ato mecanizado do toque e da retirada prontamente
de Mamãe, torna-se tão automatizado que não assusta a indiferença que daí advém: “Era
como se a doente não existisse, ou todos fossem surdos, cegos”(p.45)
Martim, cujo próprio nome nos remete a figura do opressor, do militar ao significar
guerreiro é o responsável em trazer para casa o olhar marginalizador e agressivo aos filhos. O
único capaz de romper com esta opressão será Camilo. O andrógino e o seu não-lugar social
são representados pelo jovem que se volta contra o sistema martirizando-se. Camilo seria o
típico herói romântico, se as causas pelas quais luta, não fossem justamente aquelas que o
constroem como indivíduo marginal. A androginia é essencial na categorização deste
(anti)herói de Luft. Ele sabia que só conseguiria libertar-se e libertar Carolina com sua morte.
Uma morte ao seu estilo passional e contemplativo ao mesmo tempo, como um amante que
se lança. Que se lança ao escatológico, ao suor do cavalo, ao cheiro da fazenda. Além disso, a
causa enquanto queda, também retira a áurea elevada desse ato de sacrifício.
A queda é recorrente na obra. Até mesmo Mamãe a salienta: “Todo mundo nesta casa tem
mania de cair, ocorreu-lhe então”(p.101). São três os vitimados pelo mesmo ato. Ella fica
moribunda por cair de uma cerca, Rafael é o “anjo caído” das escadas e Camilo se lança à
morte ao cair do lombo de um cavalo. Estas configurações dos indivíduos que alcançam o
estado de morte por um caminho tão banal poderiam ser compreendidas, continuando na
esteira de Silviano Santiago, como uma concentração simbólica de um ato político. Seguindo
a tese de que o livro possui dois planos significativos, um do mythos e outro metafórico do
período ditatorial e suas mazelas, compreenderíamos, então, essas quedas como alegorias das
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sucessivas deposições de sistemas governamentais que ocorreram nesse período, sendo a


última uma alusão ao regime ditatorial que em 84 já se encontrava fadado ao fim.
Novamente o rito é de passagem: a atmosfera da casa que começa a se fechar com Ella,
obscurece-se com a morte de Rafael e só será liberta com o suicídio de Camilo. No momento
em que amanhece e que Camilo parece concluir sua passagem com o barqueiro até a ilha, Ella
repentinamente ri. Esse riso encontra no plano da narrativa, confluências que nos levam a
entendê-lo como o da própria morte tão presente naquele quarto, que estaria anunciando a
hora do enterro e a posse de seu amado/amante, Camilo, como também pode nos levar a uma
idéia de libertação ao passo que Ella, “o coração doente da casa”(p.110), rompe o silêncio,
forma ícone da censura tão presente na mudez dos personagens do romance luftiano que,
encontram-se engendrados em seus traumas: “a dor acumulada e a consciência repugnada de
si mesma e dos outros começavam a rebentar”(p.110). O romper vem significativo, como na
imagem da aurora ao final do livro, em que o sol nasce vencendo a neblina.
E Ella não só ri como sacode o corpo embalada pelo riso, o corpo que serve como
referência à falta de forma espelhada também nos irmãos, surge agora como símbolo da
opressão desfeita: “O corpo aparece, assim, como o centro de onde emana e para onde
convergem a opressão sexual e a desigualdade”(PISCITELLI: 2004; p.46). O corpo é o local
privilegiado das manifestações de gênero, as feministas francesas o consideravam como um
texto. Logo, é pelo corpo que os gêmeos negam a opressão, sendo impossível lê-los dentro
dos padrões convencionais. E é pelo corpo que Ella manifesta a libertação.
A incapacidade de expressar que estava presente em Ella, além de marcar um ato de
censura, provém da experiência traumatizante que não permite verbalização, assim como
Walter Benjamin (1994) irá apontar sobre a crise das narrativas modernas, pautada em um
trauma irreparável que fora o progresso e suas mutilações. E este não é o único fator
preocupante na sociedade de 84. A proximidade com a posição finissecular, os conflitos
políticos, começa por tornar os relacionamentos intersubjetivos, no dizer de Bauman (2007),
cada vez mais fluídos e temporários. Não há mais crença em ideais coletivos. O esforço e
dedicação para construção de uma civilização é substituído por uma preocupação com os
interesses particulares. O alargamento do âmbito político-social atinge diretamente a
particularidade dos indivíduos que reagem em prol de seus interesses. O mesmo ocorre com o
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feminismo que, imbuído em validar as críticas ao patriarcalismo e ao lugar social até então
ocupado pela mulher, respalda-se na questão de que as relações privadas também são
politizadas, exercendo a partir de tais pressupostos outro processo de opressão, mesmo que
involuntário. Ao final, “Seria o caso, portanto, de se questionar até que ponto o feminismo,
com sua reivindicação de politização do privado, não estaria participando ativamente no
processo de disciplinamento da sexualidade”(SORJ:1992; p.21).
O ciclo é de certo modo mantido, substitui-se um estado de opressão por outro em
potencial. É desta forma que, O quarto fechado retrata um movimento cíclico em torno dos
indivíduos que se encerram neles mesmos, em suas angústias e experiências da mesma forma
que, socialmente abdicamos de interagir, quando nossas bandeiras já estão a meio mastro. Ao
fim do período ditatorial, o encerramento que antes era imposto pelo regime agora passa a ser
voluntário, em um profundo desencantamento político. O isolamento dos indivíduos se torna
a parcela de segurança pretendida contra as diversas formas de opressão.

REFERÊNCIAS

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. Waltensir


Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da linguagem. .São Paulo: Hucitec, 2006.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CAMUS, Albert. A peste. Trad: Valerie Rumjanek, 6ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
CHAUÍ, Marilena. Laços do Desejo. In: NOVAES, Adauto. O Desejo. São Paulo:
Companhia das Letras: 2006.
FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: HOLANDA,
Heloísa Buarque de (Org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio.
São Paulo: Edições Loyola, 2008.
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:DP&A Editora,


2005.
LUFT, Lya. O Quarto Fechado. Rio de Janeiro: Record, 2008.
PITSCITELLI, Adriana. Reflexões em torno do gênero e feminismo. In: COSTA, C. de L; e
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2004.

SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da Letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.


SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil de análise histórica. Educação&Realidade. n.2.
V.15. jul/dez, 1990.
SORJ, Bila. O Feminismo na Encruzilhada Modernidade e Pós-modernidade. In: COSTA,
A.O.; BRUSCHINI, C. Uma Questão de Gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. SP:
Fundação Carlos Chagas, 1992.
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“OS LADOS DOS DOIS LADOS”: IDENTIDADE FEMININA EM AS DOZE


CORES DO VERMELHO DE HELENA PARENTE CUNHA

Adriana Lopes de Araujo (PG-UEM)

Introdução

A figura feminina esteve, historicamente, inserida em uma estrutura patriarcal que a


direcionava ao casamento e à submissão. O que, em conseqüência, implicou no
sacrifício à própria identidade. No presente contexto, tem-se a procura desesperada por
autenticidade e independência, que consiste o sujeito ativo. As personagens que
perscrutam na obra de Helena Parente Cunha, pertencentes ao momento histórico pós
anos 60, muitas vezes, representam e, ao mesmo tempo, denunciam as inquietações do
ser feminino que se depara entre permanecer emudecida, anulada ou reagir aos abusos
do poder androcêntrico. Assim, demonstram ser, em sua maioria, sofredoras.
O romance em estudo, intitulado As doze cores do vermelho, traz em seu bojo a
constituição fragmentada da consciência do ser feminino, resultado de sua condição na
sociedade contemporânea. Além disso, a narrativa questiona a situação de opressão e
conflitos da figura feminina na sociedade patriarcal. A personagem-protagonista
encontra-se dividida entre o lado de cá, das convenções e o lado de lá, da transgressão.
Seus pensamentos e atitudes são formados por paradoxos. O que permite ser
considerada, muitas vezes, inconstante. Tal instabilidade atua diretamente na construção
de sua identidade, o que justifica realizar uma análise dessa personagem. Sendo assim é
que o trabalho se insere no âmbito dos estudos de gênero e construção da identidade
feminina.

1. Crítica literária feminista

A crítica literária feminista refere-se tanto à reavaliação e redescoberta de uma


escrita de autoria feminina, como também da releitura de obras do ponto de vista da
mulher. Assim como observa Bonnici (2007, p. 49) “a finalidade da crítica literária e da
leitura feministas é focalizar a constituição do estilo, da imagística e das características
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do patriarcalismo numa determinada obra”. Nesse sentido, a crítica feminista consiste


na argumentação de que a grande maioria dos textos da cultura ocidental foi escritos por
homens e apresentam uma visão a partir de um ponto de vista masculino. Além disso,
tais textos considerados célebres apresentam a mulher como uma figura emudecida, sem
poder para decidir o próprio destino, ocupando, assim um lugar secundário em relação
ao lugar ocupado pelo homem.
A partir das décadas de 1960/70, no contexto do pensamento feminista, inúmeros
estudiosos (as) têm feito emergir a consciência histórica da mulher como ser
marginalizado pelas práticas sociais hegemônicas. Trata-se do desejo de redefinição de
identidades que impõe o debate sobre a diferença e sobre os sentidos de valores como
liberdade, cidadania e ética.
O enfoque às obras produzidas por mulheres enfatizaram quatro pontos principais: o
biológico, o lingüístico, o psicanalítico e o político cultural. No primeiro, ou seja, o
biológico, critica-se a posição dos homens em relação ao corpo feminino, obrigando a
mulher a aceitar sua condição de inferior como uma imposição da natureza.
Logo, o enfoque lingüístico põe em discussão a diferença no uso da linguagem entre
homens e mulheres. Defende-se, todavia, a adoção de um tipo de linguagem feminina
que possa ir contra o discurso patriarcal. Uma terceira postura refere-se ao psicanalítico
que, com base nos pressupostos de Lacan e Freud, propõe um estudo acerca da escrita
feminina. Por fim, o estudo político-cultural que discute as diferenças entre gênero e
classe social.
São recentes os estudos ligados à mulher e sua representação no Brasil, isso em vista
das pesquisas realizadas nos Estados Unidos e Europa. Todavia, “a consolidação de
trabalhos dessa natureza nas instituições acadêmicas brasileiras data de meados dos
anos 1980, quando grupos de pesquisadores (as) passaram a se reunir para desenvolver
estudos” (ZOLIN in BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 239) relativos ao tema.
Permite-se, assim, falar em uma concretização efetiva da crítica literária no Brasil,
visto que se torna evidente o crescimento de estudos ligados a essas linhas de pesquisa
“atestado pelas constantes publicações de antologias, dicionários, ensaios, coletâneas de
estudos críticos” (ZOLIN in BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 240) e anais de congressos.
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2. Gênero e identidade

A crítica literária feminista delineia uma estética a partir da desconstrução do caráter


discriminatório das ideologias de gênero construídas, ao longo do tempo, pela cultura.
Trata-se de uma busca por reconhecimento, igualdade e, sobretudo, da reformulação de
sua identidade na sociedade. Para o desenvolvimento da análise do romance As doze
cores do vermelho de Helena Parente Cunha, alguns termos e teorias serão abordados,
dentro da concepção da crítica literária feminista, tais como gênero e identidade, a fim
de esclarecer seus conceitos e significados, assim como o de estabelecer parâmetros
referentes a analise em questão.

2.1 Gênero

O termo gênero começou a ser utilizado justamente para marcar que as diferenças
entre homens e mulheres não são apenas de ordem física, biológica, mas sim, referentes
a um dado cultural. Nas palavras de Teresa de Lauretis (1994, p. 211), “gênero não é
sexo, uma condição natural, e sim a representação de cada indivíduo em termos de uma
relação social preexistente ao próprio indivíduo e predicada sobre a oposição
‘conceitual’”. A noção de gênero, portanto, passou a apontar para a dimensão das
relações sociais do feminino e do masculino.
Nos anos 60 e 70, o conceito de gênero como diferença sexual encontrava-se no
centro das discussões dos escritos feministas e das práticas culturais. No entanto,
tornou-se limitado, passando a ser caracterizado como uma deficiência do movimento
feminista.
Enquanto diferença sexual revelava-se na relação masculina e feminina, todavia, a
opressão e exploração deste último pelo primeiro. Essa relação de opressão tem servido
de sustentáculo para as intervenções feministas no âmbito do conhecimento.
Atualmente, na perspectiva da análise feminista contemporânea, pode-se perceber
duas ordens operando juntas: a sexual e a econômica. Dentro dessa dupla perspectiva,
todavia, é possível perceber como opera a ideologia do gênero: o lugar da mulher, a
posição atribuída à mulher pelo sistema de sexo-gênero.
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2.2 Identidade

O conceito de identidade é muito complexo, pouco desenvolvido e compreendido na


ciência social e contemporânea. Todavia, o fato da sociedade se encontrar em constante
transformação, em uma crise de identidade, leva o indivíduo a se deparar com inúmeros
questionamentos que terminam por abalar a idéia de sujeito integrado. Em vista disso é
que o sujeito moderno passa a apresentar uma identidade fragmentada.
Diante de tais circunstâncias, Hall (2006, p.10) propõe três concepções diferentes de
identidade. A primeira refere-se à identidade do Iluminismo, que estava baseada “numa
concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado,
dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação (...). O centro essencial do eu
era a identidade de uma pessoa”. A segunda concepção de identidade é atribuída à
identidade do sujeito sociológico, que “refletia a crescente complexidade do mundo
moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-
suficiente, mas era formado na relação com outras pessoas importantes para ele”.
(HALL, 2006, p.12). Sendo assim, a identidade é formada na interação entre o eu e a
sociedade. Uma terceira concepção de identidade descrita por Hall (2006) refere-se ao
sujeito fragmentado pós-moderno, caracterizado como não portador de uma identidade
fixa, estável ou permanente.
O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente. (...) A
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia. Ao invés disso, á medida em que os sistemas de significações
e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis,
com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos
temporariamente. (HALL, 2006, p. 13).

Desse modo, podemos observar que a identidade não é algo fixo e acabado, mas sim,
uma construção imaginária em permanente processo de significação e re-elaboração de
novas identificações e novas significações.

3. Entre o lado de cá e o lado de lá: A identidade fragmentada da mulher-artista


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As doze cores do vermelho de Helena Parente Cunha, retrata uma personagem


protagonista sufocada pela pressão do paradigma falocêntrico que relegava à mulher a
passividade e a posição de outro do homem. Ela, uma inominada pintora, depara-se a
todo o momento com os obstáculos impostos por tecnologias do gênero (conforme
Teresa de Lauretis) que a induzem aos papéis sociais pré-determinados, como o de ser
mãe e o de ser esposa. A obra revela três momentos temporais da protagonista. São eles:
infância, juventude e vida adulta. A partir de uma linguagem poética, a narrativa aborda,
entre outros temas, uma crítica às relações de gênero e ao papel da mulher na sociedade
contemporânea.
A protagonista, assim como outras personagens, apresenta-se como um ser
inominado. É, assim, descrita por meio de características físicas ou psicológicas, como a
menina loura, a mulher negra. Sobre esta questão, vale destacar que a sociedade
hegemônica masculina negou à mulher, durante muito tempo, a identificação pelo
próprio nome. Ela era, portanto, reconhecida a partir do sobrenome do marido. Portanto,
se ele tivesse o sobrenome Silva, para citar um sobrenome comum, ela era referida
como senhora Silva. Desse modo, tal caracterização da personagem protagonista
relaciona-se ao fato de apesar das tentativas, não conseguir construir uma identidade.
A mulher-artista (personagem protagonista) representa, todavia, o perfil de mulher
submissa aos ditos sociais que possui um desejo de se emancipar. Em conflito entre as
convenções e o desejo de transgressão, passa a ser retratada a partir de seus medos e de
suas coragens, dos seus fracassos e de seus sucessos, ou seja, ela se constrói por
paradoxos.
Durante toda a narrativa, a protagonista encontra-se dividida entre o lado de cá, da
aceitação dos preceitos patriarcais e o lado de lá, da transgressão. A vontade de
conhecer o outro lado é liderada por questionamentos em relação ao lado de cá, o que a
conduz a não aceitação de todas as normas: “Eu escutava mas não escutava o que as
vozes diziam” (CUNHA, 1998, p. 24). O discurso opressor permeia a narrativa com o
intuito de impor padrões de comportamentos que concorrem para a reprodução da
diferença. Tem-se assim a reivindicação das escolhas identitárias por essa personagem,
visto que ela não aceita mais seguir sem questionar o ideário social vigente.
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A personagem encontra-se no meio, no entre - lugar. Tanto por ser do sexo feminino,
quanto por estar dividida entre seus pensamentos e o discurso patriarcal. A
problemática do meio perpassa todo o romance, demonstrando a fragmentação do
sujeito, o desejo de mudança e o medo que o acompanha, demonstrando a possibilidade
de ocupar um lugar de onde se possa emitir um discurso diferente do já legitimado. O
medo, entretanto, prevalece durante todos os módulos da narrativa, limitando-a,
controlando suas atitudes e a impedindo, assim, de construir sua identidade: “As
meninas do lado de cá e os meninos do lado de lá. Entre lá e cá o meio cheio de medo”
(CUNHA, 1998, p. 14); “Você tem medo de se apresentar numa exposição. Você quer
entrar para a escola de belas artes. Seu novo emprego” (CUNHA, 1998, p. 33). Tais
trechos retirados do romance revelam, assim, uma personagem inconstante, ambígua.
Para Hall (2006, p. 13), “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. (...) A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia.” Sendo assim, ele desconsidera a identidade como única e imutável, mas sim
acredita que ela não seja fixa, essencial e permanente. Como é o caso da personagem
pintora que se encontra dividida entre aceitar a imposição da sociedade ou emancipar-
se, o que acarreta em uma identidade contraditória, nos termos de Hall.
Ademais, vale destacar que os pensamentos da sociedade encontram-se, muitas
vezes, na frente da própria vontade da mulher artista: “Você faz vinte anos e vai se
casar. (...) Seu noivo tem a promessa de uma situação melhor no emprego. (...) A
mulher é a rainha do lar. Você não vai mais entrar para a escola de belas artes. Você
prometeu a seu noivo que não vai mais pintar (CUNHA, 1998, p. 15). Nessa passagem é
possível perceber o aniquilamento do desejo que demonstra a determinação dos papéis
sexuais, o que coloca a mulher como um ser secundário, inferior perante o homem.
Sendo assim, torna-se evidente a fragmentação da personalidade da mulher artista, uma
vez que ela demonstra uma independência, porém lhe é exigido a assumir o papel social
determinado pelo sistema patriarcal.
O discurso hegemônico patriarcal está incutido na personagem protagonista a ponto
de aceitar tal imposição como se fosse seu próprio desejo embora não o seja, já que em
alguns momentos da narrativa é evidente o intuito de romper com as regras do meio
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social em que está inserida: “Você quer se casar virgem como a maioria das outras
moças. Você espera seu noivo todas as noites depois do jantar” (CUNHA, 1998, p. 15).
Nesse fragmento retirado do romance é importante perceber tal afirmação. Assim como
considera Bauman (2005, p. 19, grifos do autor) ao dizer que “as identidades flutuam no
ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em
nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras [as de nossa
própria escolha] em relação às últimas”. Dessa forma, o discurso hegemônico é
assimilado, muitas vezes, como natural e com o valor de verdade, o que termina por
reproduzir tais valores.
Embora a sociedade tenha estruturado uma identidade para a protagonista, ela
percebe-se com possibilidades de outras identidades. Vejamos o trecho elucidativo:
“Sempre vozes de um lado e vozes de outro lado. Bifurcação. No lado de cá o elo e o nó
e as cores certas. No lado de lá o repente e as migrações e o livre desdobramento dos
vermelhos. Entre lá e cá o meio cheio de sustos e desejos” (CUNHA, 1998, p. 81).
Sendo assim, podemos perceber que a pintora assume diferentes identidades em
diferentes momentos. É menina, mulher, esposa, amante, amiga e/ou profissional. Como
afirma Hall (2006, p.12), “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade
unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas”. A protagonista é,
assim, um ser em processo, constituída em diferença. Destacaremos, aqui, dois papéis
principais exercidos por essa mulher artista.
Para tanto, enquanto menina, a personagem assume-se como obediente, mas ao
mesmo tempo questionadora. Possui assim inúmeros conflitos, resultado dessas diversas
interrogações como o porquê de se casar virgem, o porquê de não poder brincar com os
meninos, já que a sociedade a conduzia à retaliação: “Vozes me mandavam calar a
boca” (CUNHA, 1998, p.26). Sendo assim, a conseqüência de assumir tal papel a
destinava a limitações, já que não poderia criar, mas sim reproduzir o que o meio social
ditava como o correto. Quando na cena em que ela pintou o céu de vermelho e foi
contestada. Outras conseqüências referem-se à dependência e ausência de direitos, pois
a ela era reservada somente a aceitação das normas ditas pela sociedade patriarcal. T
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Todavia, o modo como exerce o papel de esposa e de mãe demonstra novamente uma
obediência e submissão, agora em relação ao marido, uma vez que aprendeu durante a
infância que deveria agradar a todos os seus gostos. Ela se vê, assim, diante de uma
rotina, de limpar, cozinhar, cuidar dos filhos. Como conseqüência, verifica-se uma
exaustão, um cansaço em relação ao marido, ao próprio casamento.
Por estar inserida em um ambiente tradicional teve de abdicar do desejo de ser
pintora. Ela sonha em pintar, enquanto sua família a educa de acordo com o papel
social, com a identidade que lhe caberia, futuramente, dentro da sociedade. É somente,
na vida adulta que consegue retomar sua criação. É, através das cores que não
correspondem ao real, como a de um rosto sem boca, que a protagonista consegue se
expressar e se esquecer, pelo menos naquele momento, das amarras do patriarcalismo.
Eis exemplo elucidativo:
Ela terá muitos medos e muitas coragens. O lado de lá e o lado de cá.
Nos dois lados as cores transbordarão mais luminosas e mais
sombrias. (...) Vozes farão muito ruído dos lados. Ela continuará a
tentar conciliar sua pintura com os afazeres domésticos. Os quadros
dela mais as fichas dos clientes do marido. As formas informes e as
fôrmas conformes. O marido repetindo que ninguém pode entender
aqueles quadros de profusões e florações e doze badaladas da meia-
noite no meio-dia. (...) Mas ela buscará passagem no cerco circular.
Elos e nós em desatadas impregnações (CUNHA, 1998, p. 21).

Nessa passagem é importante verificar a personagem se sentindo livre da atuação da


instituição do casamento. A pintura, assim, representa a construção da identidade dessa
mulher, pois é nela que estão envolvidos todos seus anseios e desejos. Determina,
assim, seu processo de subjetificação.

Considerações finais

O romance As doze cores do vermelho retrata, entre outros aspectos, a personagem


protagonista com uma identidade fragmentada, múltipla, com disponibilidade para a
mudança. Ela é a representação do que Bauman (2005) considera como identidade
flutuante. Diante das relações de gênero, todavia, a personagem apresenta-se como
inferior, submissa, mas que possui o desejo de romper com a pressão do paradigma
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falocêntrico. Por fim, vale destacar que a busca pela identidade que caracteriza a
mulher artista não envolve o romper com a moral ou com os bons costumes, como
afirma Helena Parente Cunha em uma entrevista, mas sim, do desejo de ser sujeito ativo
na história e não permanecer à margem, emudecida no meio social.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto


Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
BONNICI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências.
Maringá: Eduem, 2007.
CUNHA, Helena Parente. As doze cores do vermelho. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro: 2ª edição, 1998.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomáz Tadeu da Silva
e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP &A, 2006.
LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: Hollanda, H.B. Tendências e
impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, L. O. (org.).
Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá:
EDUEM, 2005.
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“RUPTURA E NÓ”: SCRIPT SOCIAL X TRANSGRESSÕES DA MULHER-


ARTISTA EM AS DOZE CORES DO VERMELHO DE HELENA PARENTE
CUNHA

Adriana Lopes de Araujo (PG-UEM)

Introdução

O romance As doze cores do vermelho, de Helena Parente Cunha evidencia, entre


outras, as inquietudes de uma personagem-protagonista inominada quanto a permanecer
do lado de cá, das convenções sociais, das regras, da dominação masculina ou realizar a
travessia para o lado de lá, o da transgressão. Para tanto, são tantas interrogações que
parecem, outrora, (di) fundir ou confundir os pensamentos da personagem. O que,
afinal, termina por gerar medo e sofrimento. Medo porque apresenta, em essência, o
perfil da mulher que se submete às normas sociais, mas deseja transgredir. Em virtude
disso, ela passa a ser retratada a partir de suas coerências e incoerências, seus sucessos e
seus fracassos. Paradoxo. Em conseqüência, sofre por viver em uma atmosfera de
mudanças pós anos 60. Uma época de ruptura de paradigmas, quebra de tabus, e de
outras mudanças que repercutem ainda hoje.
É logo na infância que surgem suas primeiras dúvidas. Entre elas o porquê de não
poder ser pintora, mas somente mãe e esposa. Já que o contexto social em que ela se
insere é o da reprodução do pensamento androcêntrico. Nossa leitura da narrativa,
procura demonstrar a trajetória dessa personagem, arquétipo do ser fragmentado da Pós-
Modernidade, que busca compreender o outro lado, o lado de lá. A protagonista tem que
resolver tal dilema, ao mesmo tempo em que se depara com os obstáculos a ela
impostos pela sociedade patriarcal, por meio dos papéis pré-determinados como o de ser
mãe e de ser esposa. Para tanto, é que a análise basear-se-á nos estudos de gênero e da
crítica feminista.

1- Crítica literária feminista: Apontamentos


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A crítica feminista promove, em seu bojo, o desmantelamento das amarras do


patriarcalismo que manteve a mulher, durante um longo período da história, à margem,
como um ser submisso e sem direito à voz, assim como a emancipação da mulher na
literatura quando, a partir de 1960, pesquisadoras (es) voltadas (os) para as discussões
do movimento feminista começaram a (re) elaborar uma crítica literária que buscasse
interpretar as obras de autoria feminina analisando-as de modo diferenciado da escrita
masculina e sendo ela, muitas vezes, influenciada pelas vivências dessas escritoras. Há,
portanto, uma reavaliação e redescoberta de uma escrita de autoria feminina.
A crítica literária feminista teve início em 1970, com a publicação do livro Sexual
politics (A Política Sexual) de Kate Millet. Para tanto, essa vertente “tem assumido o
papel de questionadora da prática acadêmica patriarcal” (ZOLIN in BONNICI; ZOLIN,
2009, p. 217). Ademais, em um primeiro momento, a percepção de que a mulher
enquanto leitora e escritora possuía uma experiência diferente da masculina, “implicou
significativas mudanças no campo intelectual, marcadas pela quebra de paradigmas e
pela descoberta de novos horizontes de expectativas” (ZOLIN in BONNICI; ZOLIN,
2009, p. 217).
Em uma segunda fase, todavia, a intenção era demonstrar que as mulheres tinham
sua escrita marcada pelo gênero e que, portanto, seria importante o destaque ao texto de
autoria feminina. Já em um terceiro instante, a crítica feminista propôs uma revisão
sistemática dos conceitos hegemônicos e patriarcais predominantes em vários campos
sociais e culturais, com vista ao reconhecimento da produção literária feita por
mulheres.
Com o passar do tempo, a crítica feminista expandiu-se e passou a enfatizar quatro
enfoques principais com o objetivo de investigar a literatura produzida por mulheres.
São eles: o biológico, o lingüístico, o psicanalítico e o político-cultural. O primeiro
enfoque, o biológico, tem sido utilizado por homens através da justificativa de “tomar o
corpo da mulher como o seu destino e, portanto, de aceitar os papéis a ela atribuídos
como sendo da ordem da natureza” (ZOLIN in BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 227). Não
obstante, dá-se a desconstrução desse argumento quando algumas feministas radicais
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entendem os atributos biológicos da mulher como sendo superior e não inferior como
constata o discurso falocêntrico.
O enfoque lingüístico volta-se para discussões que buscam responder se homens e
mulheres utilizam a língua de forma distinta. Assim como observa Zolin (in BONNICI;
ZOLIN, 2009, p. 227), no caso de uma resposta afirmativa “tais diferenças (...) seriam
teorizadas em termos de biologia, de socialização ou de cultura”. Ademais, esse enfoque
privilegia também questões relacionadas à ideologia dominante.
Quanto ao campo psicanalítico, situado na diferença na psique do autor e na relação
do gênero com o processo de criação, tomaram-se como base os pressupostos de Lacan
e Freud propondo um estudo acerca da escrita feminina. E por último o enfoque
político-cultural que, apoiando-se nas tendências marxistas, estabelece a relação gênero
e classe social, sendo bastante evidente no romance em estudo.
Embora os estudos a respeito da mulher e sua representação na literatura constem a
partir de 1970 nos Estados Unidos e Europa, no Brasil essa discussão figura-se recente.
Contudo, é imperativo destacar que cada vez mais o tema tem sido objeto de inúmeras
pesquisas. O desenvolvimento desses estudos, assim, nos permite falar, como considera
Zolin (in BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 240), “na crítica literária feminista no Brasil
como algo consolidado.

2- Repensando o cânone: Helena Parente Cunha e a literatura de autoria feminina

Nesse capítulo, pretende-se ressaltar uma breve análise da trajetória da literatura de


autoria feminina, assim como da escritora Helena Parente Cunha e de sua obra no
campo literário brasileiro.
Os textos de autoria feminina permaneceram, durante um longo período, perdidos ou
esquecidos. Sua redescoberta, portanto, provocou o desenvolvimento da crítica literária
feminista. A esse respeito, Pratt (in BONNICI, 1997, p. 28) considera que tais textos
“não eram nem perdidos nem esquecidos, mas simplesmente suprimidos porque (...)
eram altamente críticos para sobreviver à crítica masculina”.
Historicamente, o cânone literário ocidental formado por homens, brancos e de classe
média/alta, correspondeu a uma das extensões do discurso dominante. Todavia, não se
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restringia apenas às questões estéticas do texto literário, mas também a fatores sociais e
morais do universo da crítica. Para tanto, eram regulados por uma ideologia de exclusão
aos escritos das mulheres, das etnias não-brancas. Enfim, todos aqueles que eram
considerados minorias não pertenciam à lista.
Desse modo, a inauguração da crítica feminista, por volta de 1970, fez emergir uma
tradição literária de autoria feminina que promoveu a reavaliação e redescoberta desses
textos, assim como a releitura de obras do ponto de vista da mulher resultando em uma
subversão ao cânone.
Vale destacar que os primeiros textos literários escritos por mulheres no Brasil,
apontam para figuras femininas silenciadas pela sociedade patriarcal, presas à ideologia
dominante. Nesse contexto, há a reduplicação dos valores vigentes que conduzia a
mulher à alteridade.
Na metade do século XX, com a publicação de Perto do coração selvagem (1944),
Clarice Lispector inaugura uma nova fase da literatura brasileira de autoria feminina.
Há, nesse contexto, o desnudamento da ideologia dominante promovendo, assim,
discussões a respeito da dominação masculina e da opressão feminina. A literatura
passou, então, a representar a mulher sob uma ótica diferente daquela tradicional
patriarcal que permeava a literatura anterior. Se no passado a literatura produzida por
homens e mulheres reproduzia a ideologia patriarcal, que conduzia a mulher à
submissão e à marginalidade, a literatura de autoria feminina contemporânea propõe um
questionamento da condição feminina. Para tanto, traz em seu bojo questões como
representação, identidade e diferença. Destaca-se, portanto, que tais textos apresentam
temas que não dizem respeito apenas às mulheres, mas à humanidade em geral, isto é
universais. Nessa esteira contemporânea é que se encontra a obra de Helena Parente
Cunha.
A autora baiana possui livros publicados nos gêneros poesia, conto e romance.
Quando indagada, em uma entrevista concedida à revista Literária Plural II (2006) a
respeito da preferência a esses gêneros, Helena Parente Cunha afirma que
o ser humano é sempre muito complexo e se expressa de maneira
particular, de acordo com o momento. Em geral, quando mergulho em
questões de ordem metafísica ou de indagações introspectivas, prefiro
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a linguagem poética. Quando me preocupo mais com os problemas do


dia-a-dia e me vejo tomada pela indignação e revolta diante da
desigualdade, das injustiças e da violência, me expresso melhor na
prosa.

Nessa declaração da autora, é importante perceber que sua prosa, objeto de nosso
estudo, remete-se à poética do cotidiano como pano de fundo, visto que temas como a
injustiça, a violência, a revolta são postos em discussão. Ganhadora de diversos prêmios
literários brasileiros, sua obra se debruça, além dos temas já citados, sobre a situação da
opressão e conflitos da mulher na sociedade patriarcal brasileira. No romance As doze
cores do vermelho podemos justificar tal afirmação. Eis um trecho elucidativo: “Eu não
devia ficar fazendo perguntas. Não devia ficar conversando com os meninos. Aprendia a
costurar a bordar a cozinhar eu aprendia a ser uma boa dona-de-casa” (CUNHA, 1998,
p. 18). A passagem refere-se ao ângulo 1 (um) do romance em que podemos observar a
ideologia patriarcal sendo transmitida à mulher desde sua infância, através das tarefas
diárias, condição de uma boa esposa. Outra questão levantada nessa passagem é o
silenciamento da mulher. À ela era proibida uma posição crítica de sua situação, sendo
permitida somente uma passividade perante a sociedade hegemônica masculina.
Foi devido à repercussão do romance Mulher no espelho (1985) que os artigos de
crítica sobre a obra de Helena Parente Cunha se ampliaram, principalmente fora do
Brasil. O romance As doze cores do vermelho (1988) recebeu alguma atenção da crítica
produzida em jornal. Porém, somente dez anos após seu lançamento, que a obra foi
retomada por Marcílio Erhms que fez uma leitura do romance, em que mostra “as
estratégias patriarcais de sobredeterminação da masculinidade, que desde sempre atuam
como fatores de desqualificação do feminino” (ERHMS, 1998), além de “desvendar o
procedimento patriarcal de constituição de gênero” (ERHMS, 1998). Atualmente, é
possível verificar artigos, dissertações, teses que propõem uma análise de sua obra, não
só da prosa, mas também de sua poesia.

3- Script social vs. Transgressão

O romance As doze cores do vermelho envereda-se por três momentos temporais da


protagonista. São eles: infância, juventude e vida adulta. A partir de uma linguagem
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poética, a narrativa aborda, entre outros temas, uma crítica às relações de gênero e ao
papel da mulher na sociedade contemporânea. Sendo assim é que o capítulo desnuda a
trajetória dessa personagem, a representação dos papéis desempenhados por ela diante
da sociedade vigente, seus questionamentos e transgressões.
Antes de iniciarmos a análise da personagem, é importante entender como a obra é
construída de modo a contribuir com sua caracterização. Em uma entrevista concedida à
revista Literária plural II em 2006, como citado no capítulo anterior, Helena Parente
Cunha revelou expressar-se melhor através da prosa para referir-se a questões tais como
indignação e revolta diante da desigualdade, da injustiça e da violência. Realiza-se,
aqui, uma referência à condição da mulher na sociedade. Para tanto, questionada quanto
aos seus personagens, nisso em outra entrevista ocorrida no ano seguinte à Léa
Madureira, ela destaca que eles são frutos de uma realidade fragmentada, vazia de
sentido, daí o sofrimento. Sendo assim, a autora vai além do próprio enredo para
representar essa instabilidade, e realiza um mergulho nos interstícios da própria
narrativa, ancorando em sua estrutura. Logo na disposição da folha é possível perceber
os primeiros sinais de ruptura com o tradicional, através do lugar certo da escrita na
folha. Por isso é que As doze cores do vermelho apresenta-se como um romance de
simultaneidades, visto que a narrativa se desenvolve a partir de três tempos (ou três
ângulos) e três vozes distintas. Sendo assim, há a presença de um eu que recorda o
passado, um você que dialoga no presente e por último um ela que antevê o futuro das
personagens. Portanto, é evidente a subversão das regras que compõem a narrativa
tradicional, tais como a unidade, linearidade e continuidade. Nesse quadro, é
importante destacar a articulação da narrativa em módulos, que se somam, ao final, em
quarenta e oito seqüências. O romance permite, dessa forma, que sua leitura aconteça
módulo a módulo ou “primeiro um dos ângulos e depois os outros dois” (ABREU,
1999, p.127).
Ao questionar, portanto, a quebra da linearidade na leitura de As doze cores do
vermelho, é que Marcilio Ehms de Abreu (1999) apóia-se no pensamento de Hutcheon
ao dizer que “o importante debate contemporâneo sobre as margens e as fronteiras das
convenções sociais e artísticas, (...) é também o resultado de uma transgressão
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tipicamente pós-moderna em relação aos limites (...) de determinadas artes, dos gêneros
ou da arte em si” (ABREU in CUNHA, 1999, p. 127). Assim, Abreu cita as estratégias
de inconformidade com a escrita usual, que, de acordo com o autor, reafirmam o
“caráter libertário e inovador da literatura” (ABREU in CUNHA, 1999, p. 127). É o
que podemos verificar durante a narrativa em que há a ruptura com a sintaxe tradicional,
figurando o predomínio da ausência de vírgulas no texto. Eis um exemplo: “Ela terá
sua casa e o marido e as duas filhas. E vai procurar organizar os horários para as
obrigações domésticas. Limpeza cozinha compras atenção e dedicação para a família”
(CUNHA, 1998, p. 3).
Com efeito, tal inexistência é tida como um fator positivo na obra, já que o uso da
vírgula, muitas vezes, conduz a uma narrativa fragmentada, propondo um recorte da
fala. Há, no entanto a presença dos pontos finais e do sinal de interrogação que, como
bem observa Silva (1999) “amarra o texto, torna-o mais independente, solto, livre para
ser retirado da seqüência, podendo até ser invertido, se for o caso”. Como nesse
fragmento retirado do romance: “Uma voz estreita furou o ar da manhã. Eu tive muito
medo. Por que eu não podia passar para o lado de lá?” (CUNHA, 1998, p. 14). Nota-se
nessa passagem, o uso de períodos curtos que contribui para o fluir do texto. A
apresentação de uma tessitura fragmentada, que rompe com a regra tradicional da
sintaxe, é reflexo de como se dá a própria construção da personagem principal.
A protagonista da narrativa representa o perfil de mulher submissa às normas sociais
que possui o desejo de se emancipar:
Desde que eu era muito pequena sempre dizia que quando eu
crescesse queria ser pintora. Vozes rangiam que a mulher tem que
colocar em primeiro lugar o lar. E pintar? Família marido filhos casa
eu tinha que me preparar. Eu dizia que também queria pintar. Vozes se
quebravam em suadas ruminações. A esposa deve se dedicar e servir.
Pintar só se meu marido consentisse? Por que consentir? (CUNHA,
1998, p. 60).

O exemplo em destaque revela a personagem em conflito entre as convenções e a


transgressão. Ela, uma pintora, é retratada a partir de seus medos e de suas coragens,
dos seus fracassos e de seus sucessos, ou seja, ela se constrói por paradoxos.
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Casada, mãe de duas filhas, esta pintora inominada encontra-se, desde a infância,
dividida entre o lado de cá, das convenções e o lado de lá, da transgressão, querendo
romper com essas fronteiras. O ângulo 1 (um) do romance representa o passado dessa
mulher-artista, ou seja, sua infância. Nesse período ela recebe as primeiras instruções de
como uma menina deveria se comportar em uma sociedade masculina hegemônica.
Assim, à ela não era permitido o contato com o sexo masculino: “Nós brincávamos de
casinha comidinha de mãezinha das bonecas. Os meninos brincavam de soldado
espingarda revólver de espoleta. As meninas do lado de cá e os meninos do lado de lá”
(CUNHA, 1998, p. 14). Essa passagem representa a diferença imposta desde o início
pela sociedade patriarcal, como nas brincadeiras em que os meninos desempenham o
papel de dominantes, o soldado, enquanto às meninas, ao brincarem de casinha,
comidinha e mãezinha, reproduzem o pensamento dominante que destina a mulher aos
cuidados do lar e dos filhos, assumindo, assim, seu papel de ser passivo na sociedade.
Dessa forma, observa-se que a característica de passividade da mulher feminina é
desenvolvida nela desde os primeiros anos. Como considera Simone de Beauvoir:
É um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é
um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade. A
imensa possibilidade do menino está em que sua maneira de existir
para outrem encoraja-o a pôr-se para si. Ele faz o aprendizado de sua
existência como livre movimento para o mundo; rivaliza-se em rudeza
e em independência com os outros meninos, despreza as meninas.
Subindo nas árvores, brigando com colegas, enfrentando-os em jogos
violentos, ele apreende seu corpo com um meio de dominar a natureza
e um instrumento de luta; orgulha-se de seus músculos como de seu
sexo (BEAUVOIR, 1980, p. 21).

É importante destacar nessa passagem que, durante muito tempo, a diferença entre
homem e mulher foi considerada um fator biológico. A superioridade masculina diante
do ser feminino foi pensada como sendo natural, embora não seja. É na verdade,
imposta à mulher pelo meio social opressor.
É ainda na infância que lhe é dito que a mulher deve-se casar virgem: “Você quer se
casar virgem como a maioria das outras moças. Você espera seu noivo todas as noites
depois do jantar” (CUNHA, 1998, p. 15). Nesse trecho é importante perceber como o
discurso hegemônico patriarcal está incutido na personagem a ponto de aceitar tal
imposição como se fosse seu próprio desejo, embora não o seja já que, em alguns
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momentos da narrativa, é evidente o intuito de romper com as regras do meio social em


que está inserida.
O destino imposto pela sociedade para a mulher é o casamento. Este, porém
apresenta-se de modo diferente ao homem. Simone de Beauvoir (1980, p. 166) postula
que “ambos os sexos são necessários um ao outro, mas essa necessidade nunca
engendrou nenhuma reciprocidade”. É dessa forma que a mulher tem no casamento, a
justificativa social de sua existência. Uma vez inserida dentro dos padrões preconizados
pela sociedade é que ela volta-se à imanência, ou seja, assume o papel da perpetuação
da espécie e manutenção do lar. O casamento faz da mulher dona de um lar. Seu
destino, assim, é o de cuidar da casa, educar os filhos.
A ideologia de que a mulher precisa ser submissa ao seu marido também lhe é
imposta pela sociedade. Sendo assim, ela deve aprender a limpar, cozinhar, organizar, a
se dedicar à família e, principalmente, agradar o marido: “Aos domingos você prepara o
almoço como ele gosta” (CUNHA, 1998, p. 15). Quando adulta, a personagem
protagonista procura conciliar os afazeres domésticos com sua pintura. Sendo que, em
muitos momentos, esta última lhe é renegada. Nas palavras de Simone de Beauvoir, “na
mulher há, no início, um conflito entre sua existência autônoma e seu “ser-outro”;
ensinam-lhe que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve,
portanto, renunciar à sua autonomia” (BEAUVOIR, 1980, p.22), o que a caracteriza
como um ser passivo nas relações de gênero.
Além de esposa, a personagem exerce o papel de mãe:
Ela levará as filhas à pracinha à escola aos aniversários. Praia cinema
circo jardim zoológico. Primeiro carrega uma e depois carrega a outra.
(...) Ela fará festinha e vai cantar parabéns e vai acender velinhas e vai
cortar o bolinho todo confeitado e vai distribuir as bolinhas de soprar
penduradas na sala. (...) Ela conversará com as outras mães sobre
receitas de doces e pontos de tricô. (CUNHA, 1998, p. 17).

Tal fragmento evidencia, portanto, os preceitos que a sociedade ditava como sendo
de uma mãe exemplar. Com efeito, ela deveria se relacionar com outras mães,
organizar festas de aniversários para seus filhos. Trata-se, todavia, da mulher
doméstica, assim definida por Susana Pravaz (1981). Esse estilo de mulher, “provém de
uma longa tradição de mulheres do lar ou (...) surgem como uma resposta crítica à falta
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de uma mãe que tenha cumprido satisfatoriamente tal papel” (PRAVAZ, 1981, p. 67).
Nesse aspecto, é que se espera que a filha deva constituir uma nova família que satisfaça
a antiga.
É importante ressaltar que a sociedade patriarcal age como vozes que ecoam a todo o
momento na mente da personagem pintora ditando o que é correto e o que é errado para
a mulher. Eis alguns trechos elucidativos: “Vozes estreitas repetiam que nós não
devíamos falar nem devíamos brincar com a menina dos cabelos cor de fogo. A menina
não tinha pai e a mãe não prestava. Não prestava as vozes ecoavam” (CUNHA, 1998, p.
20); “No pátio antes de entrarmos para a sala de aula minha colega negra ocupava o
último lugar na fila. Por que se ela não é a maior? Vozes me mandavam calar a boca”
(CUNHA, 1998, p. 26); “Muitas vozes eram vozes e vezes na vigência dos nossos
ouvidos. Vozes dizendo. Cuidado. Juízo. Bom comportamento. Nada de saliência.
Rapaz direito só se casa com moça de recato” (CUNHA, 1998, p.36). Os exemplos
citados ilustram, desse modo, um meio social preconceituoso, que exclui todo aquele
que não se enquadra em seu molde. A menina dos cabelos cor de fogo foi posta à
margem por sua mãe ser prostituta. Logo, a ela caberia todas as implicações de sua mãe
ter assumido tal identidade. Em relação à menina negra, a exclusão ocorre pelo racismo
que prossegue até sua vida adulta, mesmo tendo se tornado uma médica conceituada.
Por fim, tem-se a afirmação da passividade feminina dada através de sua retaliação, de
seu pudor. O que justifica o não poder pintar, sufocado desde a infância, pois sua
pintura indicava transgressão às normas, já que ela criava e recriava através de sua arte.
Como quando pintava o céu de vermelho ao invés de azul ou a laranja de vermelho ao
invés de alaranjada e a professora ou os colegas diziam que estava errado.
Apesar de assumir os papéis sociais pré determinados como o de ser mãe e o de ser
esposa, a mulher-artista encontra-se dividida entre o lado de cá, das normas e o lado de
lá da transgressão. Todavia, ela se encontra no meio, no entre - lugar. Isso lhe causa
medo. Ele prevalece, todavia, durante todos os módulos da narrativa, limitando a
personagem, o que leva a entender que os preceitos sociais encontram-se, muitas vezes,
na frente da própria vontade: “Você faz vinte anos e vai se casar. (...) Seu noivo tem a
promessa de uma situação melhor no emprego. (...) A mulher é a rainha do lar. Você
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não vai mais entrar para a escola de belas artes. Você prometeu a seu noivo que não vai
mais pintar (CUNHA, 1998, p. 15). Nesse trecho é possível perceber o aniquilamento
do desejo que demonstra a determinação dos papéis sexuais, o que coloca a mulher
como um ser secundário, inferior perante o homem.
A vontade de conhecer o outro lado é liderada por questionamentos em relação ao
lado de cá, o que a conduz a não aceitação de todas as normas: “Eu escutava mas não
escutava o que as vozes diziam” (CUNHA, 1998, p. 24). O discurso opressor permeia a
narrativa com o intuito de impor padrões de comportamentos que concorrem para a
reprodução da diferença. Assim a protagonista depara-se na fronteira do que é dito e o
que gostaria de fazer: “No pátio antes de entrarmos para a sala de aula minha colega
negra ocupava o último lugar na fila. Por que se ela não é a maior? Vozes me
mandavam calar a boca. Por que eu não podia falar?” (CUNHA, 1998, p.26).
Sendo assim, a personagem protagonista apresenta marcas de transgressão. Como no
trecho a seguir, em que ela sente curiosidade de conhecer esse outro lado que lhe é
proibido, no caso, relacionado ao masculino: “Um dia eu subi até o alto do muro. No
alto do muro eu olhei o lado de lá. Um dos meninos me viu e correu devagarmente
depressa para perto de mim. (...) Eu pulei para o lado de lá. Eu tinha medo mas não
tinha” (CUNHA, 1998, p. 14). Embora dissessem que ela deveria permanecer longe do
masculino, a personagem rompe com as regras.
Outro desejo da transgressão da protagonista justifica-se pelo comportamento
sistemático do marido que, além de cansá-la de vê-lo “entrando e saindo com a pasta
preta pregada na mão e os dois relógios agarrados no pulso e a voz hibernada”
(CUNHA, 1998, p. 47), a faz perder a vontade, não só de “tomar conta da casa”
(CUNHA, 1998, p. 47), como também do desejo de ser aquela mulher, tanto existencial
como sexualmente:
Você ouve seu marido perguntar as horas e depois a dele voz dizendo
em demoradas sílabas que quer fazer amor. Você está deitada na cama
e abre as pernas sem nenhuma estrela acesa. Seu corpo está cansado
do corpo de seu marido em comedidas ordenações. A luz do abajur
apagada entre suas pernas apagadas. Cansada. Casada. Você está
cansada do lado de cá (CUNHA, 1998, p. 47).
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È interessante notar o jogo que se faz com as palavras “casada” e “cansada”, aqui
atuando como sinônimos.
Outro exemplo a citar está em suas pinturas assumidas como o ápice de seu processo
de subjetificação. Mesmo tendo de deixá-las em segundo plano, pois precisava cumprir
com os papéis de mãe, dona-de-casa e esposa, não ficaram esquecidas, pois recebe a
ajuda de suas amigas para voltar a pintar. Com efeito, sua pintura revelava traços
incomuns, incompreensíveis para algumas personagens, demonstrando, assim, a
dificuldade da sociedade em reconhecer a diferença e valorizá-la como tal. Assim,
enquanto a protagonista “coloria o céu de vermelhos” (CUNHA, 1998, p. 16), a
professora, como representação da ideologia hegemônica, “dizia que o céu era azul”
(CUNHA, 1998, p. 16).

Conclusão

O romance As doze cores do vermelho remete para a importância da conscientização


da posição marginalizada e oprimida da mulher como ponto de partida para a sua
emancipação. Daí, o interesse de Helena Parente Cunha por abordar em sua obra a
imagem de uma mulher desafiadora, porém intimidada pelo sistema hegemônico
masculino. Os preceitos sociais, altamente punitivos, o medo do desconhecido e a
insegurança conseguiram mantê-la submissa, mas o próprio reconhecimento de sua
condição pode ser considerado o primeiro passo rumo ao encontro de sua identidade, ou
seja, de sua transgressão.

Referências
ABREU, Marcilio Ehms de. Vozes femininas na pós-modernidade: mulher (es) em tons
de vermelho, leitura de As doze cores do vermelho, de Helena Parente Cunha.
In: CUNHA, Helena Parente (org.). Desafiando o cânone: aspectos da literatura de
autoria feminina na prosa e na poesia (anos 70/80). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1999.
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BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
BONNICI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências.
Maringá: Eduem, 2007.
CUNHA, Helena Parente. As doze cores do vermelho. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro: 2ª edição, 1998.
PRAVAZ, Susana. Três estilos de mulher: A doméstica, a sensual, a combativa. Rio de
janeiro: Paz e Terra, 1981.
SILVA, Antônio de Pádua Dias da. (À) Terceira Margem: Uma Leitura de As Doze
Cores Do Vermelho em Instantâneo Fotogramático: O Oráculo de uma Tragédia.
Maceió: 1999. Disponível em: http://www.helenaparente.com.br/criticastxt/criticas_
antonio.asp, acesso em 17, abr, 2010.
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, L. O. (org.).
Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3 ed. Ver. Ampl.
Maringá: EDUEM, 2009.
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“AS PEQUENAS MEMÓRIAS” DE SARAMAGO: TENSÃO ENTRE


BIOGRAFIA E FICÇÃO

Adriana Marcon (G) (UNESP/Assis – FAPESP)


Sandra Aparecida Ferreira (UNESP/Assis)

Introdução

O desejo de escrever um registro autobiográfico teria surgido no início da


década de 1980, quando o escritor elaborava o Memorial do Convento, permanecendo
latente há cerca de 20 anos, parece querer reunir traços memorialísticos disseminados
em várias outras obras de seu Autor, a exemplo, sobretudo do Manual de Pintura e
Caligrafia (1977), romance em que a multiplicidade genológica é acentuadamente
perceptível.
Como objeto explícito de reflexão, a escrita autobiográfica de Saramago começa
a dar-se, realmente, nos Cadernos de Lanzarote – diários do escritor publicados entre os
anos de 1993 e 1997. Nestas páginas encontra-se, em tom de conversa informal e
amistosa, um retrato precioso do autor e do ambiente em que se move. Contudo, nestes
diários não estão dispostos somente elementos do cotidiano e densas meditações. Há
vários relatos de eventos envolvendo o mundo literário e a atividade profissional do
escritor.
Os primeiros indícios textuais das memórias da infância de Saramago são
registrados não só durante as anotações diarísticas dos Cadernos de Lanzarote, como
também na elaboração do Ensaio sobre a cegueira (1995), obra que pode ser vista como
o marco inicial da fase mais universalista do autor.

Uma hipótese: talvez essa necessidade imperiosa de organizar uma


lembrança coerente do meu passado, dessa sempre, feliz ou infeliz,
única infância, quando a esperança ainda estava intacta, ou, ao menos,
a possibilidade de vir a tê-la, se tenha constituído, sem que eu o
pensasse, como uma resposta vital para contrapor ao mundo medonho
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que estou a caminho de imaginar e descrever no Ensaio sobre a


Cegueira (SARAMAGO, 1997, p.105).

A partir dessas considerações, pode-se dizer que o projeto autobiográfico


permaneceu presente durante a fase mais recente de seu trabalho, até que, em 2006, foi
publicada sua autobiografia, intitulada As pequenas memórias, cujo lançamento ocorreu
em Azinhaga, freguesia natal do autor, coincidindo com o seu 84º aniversário.

Ao contrário do que talvez se esperasse em uma biografia de um prêmio Nobel,


não são os grandes acontecimentos da vida do escritor que são retratados na obra, mas
sim uma sucessão de pequenos trechos, um contínuo jorrar de lembranças que
simplesmente falarão da sua infância, como o próprio autor cita numa certa passagem
do livro: “Terá sido então por essa razão que este livro mudou de nome e passou a
chamar-se “As Pequenas Memórias”. Sim, as memórias pequenas de quando fui
pequeno, simplesmente” (SARAMAGO, 2006, p.33).

A ambiciosa idéia inicial do Livro das Tentações, primeiro título cogitado por
Saramago para o que depois viria a ser As Pequenas Memórias, seria mostrar que a
santidade do espírito humano é capaz de subverter a animalidade do homem,
perturbando e desorientando a sua natureza. Assim, o autor resgata de um desvão da
memória os momentos em que ainda era o menino Zezito e sofria perseguições de
monstros imaginários, estabelecendo um paralelo com os “monstros da imaginação” que
assaltavam Santo Antão, representados pelo pintor flamengo Hyeronimus Bosch (1450-
1516), e que teriam atormentado Saramago, ao tentar desencavar de si as recordações da
infância:

E não posso acreditar que Santo Antão tenha experimentado pavores


como os meus, aquele pesadelo recorrente em que me via encerrado
num quarto de forma triangular onde não havia móveis, nem portas,
nem janelas, e a um canto dele “ qualquer coisa” (chamo-lhe assim
porque nunca consegui saber do que se tratava) que pouco a pouco ia
aumentando de tamanho enquanto uma música soava, sempre a
mesma, e tudo aquilo crescia e crescia até me fazer recuar para o
último recanto, onde finalmente despertava, aflito, sufocado, coberto
de suor, no tenebroso silêncio da noite (SARAMAGO, 2006, p.33-34).
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Dessa forma, as aproximações com Bosh explicitam a idéia de um caráter


agônico da memória e das tentações que instigam o artista por tanto tempo, presente em
sua produção durante um período significativo de seu trabalho artístico, para só começar
a irromper no final de seu período formativo.

1. O ficcional e o Biográfico nas “Pequenas Memórias”

O principal veículo utilizado por Saramago para recriar em seu registro


autobiográfico a infância, que ainda incide no homem de hoje, são as memórias que
afloram “letra a letra”, surgindo não simplesmente como biografia, mas como
necessidade cada vez mais urgente de poder reconhecer-se em meio às inúmeras
imagens que foram se disseminando para dar conta da tarefa, como o próprio Saramago
comenta em uma de suas anotações dos Cadernos de Lanzarote:

Leio e, inevitavelmente, sou levado a pensar no meu Livro das


Tentações, sempre anunciado e sempre adiado: que não será um livro
de memórias, respondo eu, quando me pergunta, acerca dele, mas sim,
como declarei ao José Manuel Mendes, na entrevista à Setembro, um
livro do qual eu possa vir a dizer: “Esta é a memória que eu tenho de
mim próprio” (1997, p.31).

Também, trata dessa questão em um trecho de uma das crônicas de A bagagem


do Viajante (1973):
Se passo as minhas lembranças ao papel, é mais para que não se
percam (em mim) minutos de ouro, horas que resplandecem como sóis
no céu tumultuário e imenso que é a memória. Coisas que são
também, com o mais, a minha vida (apud OLIVEIRA, 2008, p.11).

Assim, pela via da memória, Saramago empreende a busca de sensações e


explicações que possam caracterizar o ser-criança nas impressões por ele
experimentadas enquanto menino e modeladas pelo adulto romancista. Na narrativa, há
diálogos constantes entre os universos infantil e adulto, de modo que a obra parece
buscar uma reconstrução do menino que foi e daquilo que realmente caracterizaria a
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infância naquele lugar e naquele tempo. Consegue, conforme combinado já no título da


obra, trazer à luz a dimensão das memórias de uma criança: pequenas, porque
esteticamente recortadas e referentes ao menino, personagem revisitado.
Pelo simples fato de não ter sido escrita por qualquer um, mas sim por um
romancista, a obra em questão apresenta recursos que não são comuns à autobiografia,
geralmente resultante do levantamento de sua própria existência feito por um autor,
podendo incluir manifestações literárias semelhantes entre si, como confissões,
memórias e cartas, que revelam sentimentos íntimos e a experiência do autor.
Diferentemente da linguagem comum e objetiva utilizada nos Cadernos,
Saramago, em seu relato autobiográfico faz uso de elementos ficcionais na narrativa que
podem causar certa confusão na mente do leitor quanto à veracidade do que está escrito.
Outra questão que foge às características do gênero é fato de somente estarem
abordados na obra acontecimentos de sua infância, uma vez que nas narrativas
autobiográficas, o foco costumeiramente incide sobre a fase adulta do biografado, com
especial ênfase no apogeu da trajetória.
Uma questão central no embate entre o real e o imaginário é considerar que o
discurso ficcional não se limita ao significado de falsidade, como sugerem vários
dicionários de língua portuguesa ao apresentarem modalidades dessa significação. Sobre
essa dificuldade, Philippe Lejeune, um dos principais estudiosos do gênero
autobiográfico comenta:

Penso também que tal autobiografia, apresentada sob forma de


“romance”, toca mais profundamente os leitores na medida em que é
“essencial”, alheia às contingências anedóticas particulares da vida do
autor. Esse aspecto “essencial” permite aos leitores pensarem, por sua
vez, em sua própria história, não mais limitada a sua individualidade,
a seu conteúdo anedótico, mas em sua “essencialidade” (LEJEUNE,
2008, p. 105).

Após essas constatações, pode-se considerar que a obra As Pequenas Memórias


é uma autobiografia romanceada ou um romance autobiográfico, em que são relatados
fatos da vida do autor. Esses fatos são revestidos por um caráter ficcional, pela razão
simples de a obra ter sido escrita por um romancista, que se dedicou a construir uma
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narrativa que instigasse a curiosidade do leitor, prendendo a sua atenção sem


desrespeitar o “compromisso” autor-leitor, proposto por Lejeune. Sobre essa questão, o
estudioso francês declara:

A autobiografia é um ato excepcional e intimidador: com que direito


conta-se a própria vida? É preciso de alguma maneira estar
legitimado. Além disso, como construir uma narrativa que chame a
atenção dos outros? (apud NORONHA, 2002, p.24).

Refletindo sobre a natureza delicada do pacto entre leitor e o autor de


autobiografia, Lejeune acrescenta:
A problemática da autobiografia aqui proposta não está, pois,
fundamentada na relação, estabelecida de fora, entre a referência
extratextual e o texto- pois tal relação só poderia ser de semelhança e
nada provaria. Ela tampouco está fundamentada na análise interna do
funcionamento do texto, da estrutura ou dos aspectos do texto
publicado, mas sim em uma analise, empreendida a partir de um
enfoque global da publicação,do contrato implícito ou explícito
proposto pelo autor ao leitor, contrato que determina o modo de
leitura do texto e engendra os efeitos que, atribuídos ao texto, nos
parecem defini-lo como autobiografia.(LEJEUNE, 2008, p. 45).

Ainda sobre esse assunto e em face da relevância da análise de elementos


ficcionais na composição de um registro histórico, o autobiográfico, é fundamental a
abordagem de questões que propiciem reflexões voltadas para o real e o imaginário.
Teresa Cristina Cerdeira, em ensaio inserido na obra O avesso do bordado, faz o
seguinte comentário sobre esse aspecto na escrita de Saramago:

É assim, no acto de emendar a História, que José Saramago intervém


com o seu discurso ficcional. Não porque acredite apenas que à ficção
não cabe o resgate do referencial, mas por um facto mesmo que lhe
serve de a priori: o de que todo discurso – enquanto linguagem –, seja
ele o discurso da História, estabelece com o referente uma lacuna
irreparável: o que não for vida é literatura. A história também. A
história sobretudo, sem querer ofender (CERDEIRA, 2000, p.200).

Para compor essa reflexão histórico-ficcional em sua autobiografia, Saramago se


vale, sobretudo, de recursos metafóricos e alegóricos, compondo um jogo de palavras
que se entremeia com o histórico. Assim, conforme informa Rodolfo Londero, a
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autobiografia nunca é o vivido, pois a realidade é um âmbito inexprimível, nela transita


a mentira e o falso, pois, apesar dela não ser o vivido, ora ela é crível, ora não (cf.
LONDERO, 2007, p.100).
Em razão de a autobiografia resultar de uma narração ulterior e contínua, o autor
da obra As pequenas Memórias recria experiências que, por meio da memória, podem
abarcar uma visão retrospectiva e englobante. Por não obedecer a uma ordem
cronológica rígida, são-lhe permitidos desvios temporais: analepses, prolepses,
associações entre episódios pertencentes à tempos diversos. Dessa forma, não se pode
pensar que o registro autobiográfico que preside a esta publicação segue uma linha de
tempo objetiva e totalmente linear, e muito menos que este seja um atestado de
veracidade absoluta de toda matéria contada.
Em W ou a Memória da Infância (1995), relato autobiográfico do escritor
Georges Perec, nota-se assim como nas Pequenas Memórias (2006), características não
pertinentes à autobiografia. Esta narrativa é composta de duas histórias alternadas,
sendo a primeira o relato de lembranças da infância do próprio Perec, e a segunda, a
história de um país dedicado aos esportes. Da mesma maneira que Perec, Saramago
também concilia em seu registro autobiográfico esses dois universos, o real e o
imaginário. Em ambas as obras, a infância é tida como aspecto principal do relato,
exercendo uma grande influência na vida e na obra de seus respectivos autores,
apresentando várias diferenças em relação aos relatos habituais do gênero (em geral, um
registro cronológico dos fatos que marcaram a vida do autor).
Devido há intervalos tensos, oriundos da oposição entre autobiografia, ficção e
realidade, a referida obra foi alvo de diversas críticas e teve menor repercussão que os
romances do mesmo autor entre os leitores brasileiros. Várias questões e dúvidas talvez
sejam decorrentes do caráter híbrido que o livro apresenta, uma vez que a personagem
protagonista remete tanto ao menino Zezito, como ao autor, José Saramago. Além do
mais, tais críticas podem ser uma conseqüência da decepção por parte dos leitores que
não puderam e não podem encontrar ali uma das imagens mais significativas do escritor
a de “esquerdista” (cf. OLIVEIRA, 2008, p. 7).
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2. “Deixa-te levar pela criança que foste”

“Deixa-te levar pela criança que foste”, é com este conselho extraído do Livro
dos Conselhos que Saramago inicia suas memórias, que se constituirão a partir daquilo
que sua memória individual se recorda: a aldeia de Azinhaga, onde nasceu e onde
voltará para “acabar de nascer” (p.13) como afirma o próprio autor; o rio Tejo “lá mais
adiante, meio oculto por trás da muralha de choupos” (p.13) e o Almonda que “a seus
pés desliza”; a casa dos avós maternos, “mágico casulo” (p.15) onde geraram as
“metamorfoses decisivas da criança e do adolescente”; os avós paternos, pais, amigos e
vizinho; sua ida a Lisboa quando tinha apenas dois anos; o percurso escolar e as leituras
feitas em casa onde “não havia livros” (p.99) porque não havia dinheiro para os
comprar; as aulas particulares com o professor Varinho (p.106) e muitas outras
“recordações soltas” que apesar de o serem, não obstam ao conhecimento da pessoa que
foi e que deixou estagnada em algum lugar no tempo.
Quanto ao ser que foi, ou melhor, que começou a ser, cumpre ainda elucidar os
acontecimentos que facultam sobre o seu nome e o seu nascimento:

Foi o caso em que meu pai andava nessa altura a trabalhar fora da
terra, longe, e, além de não ter estado presente no nascimento do filho,
só pôde regressar a casa depois de 16 de Dezembro, o mais provável
no dia 17, que foi domingo. É que então, e suponho que ainda hoje, a
declaração de um nascimento deveria ser feita no prazo de trinta dias,
sob pena de multa em caso de infracção. Uma vez que naqueles
tempos patriarcais, tratando-se de um filho legítimo, não passaria pela
cabeça de ninguém que a participação fosse feita pela mãe ou por um
parente qualquer, e tendo em conta que o pai era considerado
oficialmente autor único do nascido (do meu boletim de matrícula no
Liceu Gil Vicente só conta o nome do meu pai, não o da minha mãe),
ficou-se à espera de que ele regressasse, e, para não ter de esportular a
multa (qualquer quantia mesmo pequena, seria excessiva para o bolso
da família), adiantaram-se dois dias à data real do nascimento, e o
caso ficou solucionado (SARAMAGO, 2006, P.46-47).

Ficou este caso pelo menos solucionado em meio a inúmeros outros que ficaram
“encalhados” no tempo do novelo emaranhado da memória, que quase nunca obedece
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aos desejados e tradicionais preceitos da seqüencialidade temporal, contando também


com os inevitáveis lapsos de memória, dado que são vários os momentos em que, indo a
história já avançada, o autor sente a necessidade de complementar e/ou corrigir
informações já citadas como certas. Tal procedimento pode ser observado, na passagem
em que descreve os tempos vividos na Rua dos Cavaleiros (p. 34-35) e no momento em
que depois a eles regressa de modo mais detalhado nas páginas (p.53-54).
Ainda como prova maior de que a memória possui suas lacunas e que nem
sempre é possível distinguir o que é real e o que é falso da capacidade inventiva da
imaginação, têm-se entre outras, as dúvidas sobre as suas recordações mais antigas,
como, por exemplo, as lembranças relativas a seu irmão Francisco ou a ausência de
certeza de um relacionamento quase amoroso com Alice, como o próprio autor declara:
“Não tenho a certeza absoluta de as coisas se terem passado exactamente desta maneira”
(SARAMAGO, 2006, p.74).
Considerando a memória como um lugar onde imagens, percepções e
conhecimentos são “estocados”, deve-se levar em consideração a dificuldade de trazer a
tona essas recordações guardadas no mais profundo do nosso subconsciente. Assim,
durante o seu “rememorar” deste tempo longínquo e obscuro que é a infância, Saramago
em várias passagens questiona a aparentemente natural propensão humana para baralhar
dados do passado:

Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se


não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu
tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter
conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles
houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por
terem ouvido contar a outras pessoas” (pp. 63-64).

Desse modo, o ato de lembrar e escrever na composição de uma literatura


memorialística, trata-se de um relato em permanente relação com o tempo, de onde é
extraída a memória escrita, sua matéria principal e o que fica do vivido esta aplicado
igualmente ao discurso da História a que um dia deu lugar, sem deixar de considerar
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também como capacidade inata ao homem a criação inventiva, que por vezes, incute a
revisitação do tempo-lugar.

Conclusão

Neste pequeno ensaio autobiográfico, Saramago consegue conciliar dois


universos completamente distintos, o real e o ficcional, revestindo a sua narrativa de um
tom poético onde a qualidade de sua escrita é indiscutível. Apesar das diversas críticas
que foram dirigidas à obra, o autor, no seu estilo rendilhado e mordaz, em que as frases
podem tornar-se estradas longas, mas que, invariavelmente, chegam a um bom porto,
faz dessas memórias algo muito mais além do que um mero documento autobiográfico,
proporcionando ao leitor um prazer sensorial e enriquecedor seguir as peripécias da
criança que um dia foi.

Bibliografia

CERDEIRA, Teresa Cristina .O avesso do bordado: Ensaios de Literatura. Lisboa:


Caminho, 2000.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rosseau à Internet. Trad.
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Editora UFMG, 2008.
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http://www.revistaguavira.com.br/downloads/revguavira005.pdf >. Acesso em: 29
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NORONHA, Jovita Maria Gerheim. Entrevista com Philippe Lejeune. In: Revista
Ipotesi. Juiz de Fora, v.6, n.2, p.21 a 30, jul/dez. 2002.
OLIVEIRA FILHO, Odil José de. As tentações da memória: sobre As Pequenas
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PEREC, Georges. W ou a memória da infância. Trad. NEVES, Paulo. São Paulo:
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SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras,
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1997.
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EÇA E SARAMAGO: A DESCONSTRUÇÃO DOS CANONES CRISTÃOS

Fábio Gonçalves Fernandes (G-UEM)


Marisa Corrêa Silva (UEM)

Introdução: O Fantástico na Literatura

Desde sempre o ser humano têm se deparado com situações para as quais não
consegue encontrar explicação. Situações que fogem das leis que o homem julga serem
naturais. Essas situações causam estranhamento ao homem, pois ele sente sua
aparentemente sólida representação do universo modificada e/ou ameaçada por alguma
coisa que desconhece.
Para aquilo que não se pode entender, e que intriga o ser humano, há sempre a
busca por alguma resposta, uma explicação, algo que sane ou minimize o mal-estar
frente àquilo que ameaça romper a lógica interna da sua representação do mundo. Assim
surgiram as ciências, na tentativa de explicar os fenômenos incompreendidos.
Nas artes, a incompreensão, a curiosidade, a fuga do real, ganharam outras
perspectivas. Os artistas, por muitas vezes, utilizam a fuga ao “real” interpretada como
liberdade para desenvolver suas ideias, seja sob a forma de simbolismos, seja de
arquétipos, seja de distorções propositais. Na literatura, diversos são os textos que
apresentam tais características, e, na tentativa de entender melhor essas características,
alguns críticos literários pesquisaram e escreveram suas ideias acerca do tema.
Desenvolveram então, teorias que se denominavam Fantástico, Maravilhoso e Estranho,
gêneros vizinhos. Sendo o foco deste trabalho o Fantástico na literatura, iremos
contemplar apenas a teoria proposta por Tzvetan Todorov acerca do gênero Fantástico,
que nas suas próprias palavras se trata de:

A hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis


naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural [
...] Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas
maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A
possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico
(TODOROV, 2004, p.31).
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Em outras palavras, o efeito fantástico na literatura se trata da hesitação da


personagem ou do leitor diante de algum acontecimento estranho a sua realidade. A
perplexidade diante de alguma quebra das leis que regem o universo estabelecido.
Assim, a confusão com outros gêneros é comum, por serem tão estreitas suas divisões,
logo, deve-se agir com cautela na distinção do Fantástico para com seus gêneros
vizinhos, como salienta Todorov:

O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra


resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero
vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a
um acontecimento aparentemente sobrenatural (IBIDEM, p. 31).

Percebemos então que estabelecer alguma obra literária como pertencente ao


gênero Fantástico é uma tarefa complexa, pois, o Fantástico e seus vizinhos são
separados por uma linha muito tênue. É neste ponto que reside o desafio de estabelecer
as características fantásticas dos romances A Relíquia e O Evangelho Segundo Jesus
Cristo.

1. A Relíquia

A Relíquia traz o narrador/personagem Teodorico Raposo, que, primeiramente,


retrata ao leitor o círculo social onde é criado pela tia, uma viúva rica e beata fanática.
Neste contexto nos é apresentado um universo extremamente religioso, com padres e
religiosos que prezam muito a fé e, mais ainda, a fortuna da tia de Teodorico. O menino
recebe o que era considerada, na época, uma boa educação e, quando deixa de ser
criança, percebe que sua principal vocação é a devoção ao sexo oposto, tornando-se,
então, um grande mulherengo. Posteriormente, Teodorico realiza uma viagem à Terra
Santa para satisfazer os desejos religiosos de sua tia, além de seus próprios desejos
sexuais, conhecendo a personagem Miss Mary. É nesta viagem que Teodorico tem
sonhos nos quais conhece o Diabo e presencia a Paixão de Cristo, episódio que nos é
apresentado de uma maneira diferente da que conhecemos.
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1.1. O Fantástico e a Relíquia


O primeiro personagem bíblico a figurar na narrativa de Eça é, nada mais, nada
menos, que o próprio Satanás, pintado de uma maneira extremamente cômica, sendo o
primeiro a aparecer no sonho de Teodorico. Os dois conversam e surge até uma espécie
de camaradagem. O Diabo fala a Teodorico sobre as outras religiões que se passaram e
de como a Terra era mais divertida antes do cristianismo;

Mas aparecera este carpinteiro de Galileia – e logo tudo acabara!


A face humana tornava-se para sempre pálida, cheia de
mortificação: uma cruz escura, esmagando a terra, secava o
esplendor das rosas , tirava o sabor aos beijos: - e era grata ao
deus novo a fealdade das formas. (QUEIROS, 1887, p.106)

No romance de Eça, o Diabo não é a figura representante de todo o mal, o


Senhor das Trevas, tal como apresentado na tradição cristã: para nossa surpresa,
apresenta sentimentos humanos, como a tristeza. O personagem diabólico conversa com
Teodorico amigavelmente e fala sobre seus problemas. Teodorico, por sua vez, fica
compadecido, e tenta consolar o novo amigo.

Julgando Lúcifer entristecido, eu procurava consolá-lo: Deixe


estar, ainda há-de haver no mundo muito orgulho, muita
prostituição, muito sangue, muito furor! Não lamente as
fogueiras de Moloch. Há-de ter fogueiras de judeus. E ele,
espantado: Eu? Uns ou outros, que me importa, Raposo? Eles
passam, eu fico! (QUEIROS, 1887, p.106)

Mais tarde, no romance, Jesus Cristo nos é apresentado; entretanto, é um Cristo


com características diferentes das que a doutrina cristã tem como verdadeiras, diferente
do Cristo narrado pelos Evangelhos, diferente das representações populares. É um
choque para o leitor a maneira como Teodorico testemunha a “verdadeira história” do
personagem símbolo da religião cristã. Na Relíquia, Jesus não é Deus, mas um
personagem repleto de humanidade.

E aquele homem não era Jesus, nem Cristo, nem Messias – mas
apenas um moço de Galiléia, que cheio dum grande sonho,
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desce da sua verde aldeia para transfigurar todo um mundo e


renovar todo um céu, e encontra a uma esquina um Netenim do
Templo que o amarra e o traz ao pretor, numa manhã de
audiência,entre um ladrão que roubara a estrada de Siquém e
outro que atirara facadas numa rixa em Emath! (QUEIROS,
1887, p. 119)

Ao longo do romance, vários episódios bíblicos são desmitificados e um, em


especial, chama mais a atenção. A ressurreição de Cristo, um episódio importantíssimo
na tradição cristã, é recontado de maneira diferente. Em A Relíquia, tudo não passou de
um plano mal sucedido. Jesus Cristo ingerira uma substância que o deixaria como morto
mas, posteriormente, após o efeito passar, Jesus “ressuscitaria”. Entretanto, algo no
plano falhara e Jesus morrera,

Demos-lhe a beber os cordiais, chamámo-lo, esperámos,


orámos... Mas ai! Sentíamos, sob as nossas mãos, arrefecer-lhe o
corpo!... Um instante abriu lentamente os olhos, uma palavra
saiu-lhe dos lábios. Era vaga, não a compreendemos... Parecia
que invocava seu pai, e que se queixava de um abandono...
Depois estremeceu: um pouco de sangue apareceu-lhe ao canto
da boca... E com a cabeça sobre o peito de Nicodemus, o rabi
ficou morto!(QUEIROS, 1887, pg.265)

Assim, percebemos que o texto de Eça dialoga com um universo, de certa


maneira, diferente daquele que estamos habituados. A Bíblia cristã é um livro muito
influente nas sociedades ocidentais e, desconstruindo as bases deste livro,
automaticamente se constrói uma sensação de perplexidade diante de algo diferente.
Apesar da crescente diminuição da importância do pensamento religioso na prática
cotidiana constatado já por Friedrich Nietszche, no século XIX, muitas pessoas ainda
crescem ouvindo histórias bíblicas e fazendo delas fontes dos modelos de moral e de
ética a serem seguidos: quando deparamos com a desconstrução de tais cânones
bíblicos, temos, para além da vaga sensação de “heresia”, uma fuga daquilo que
tomamos como o “real” estabelecido pela tradição e/ou pela fé.
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2. O Evangelho Segundo Jesus Cristo

Em 1991, José Saramago publicou o romance O Evangelho Segundo Jesus


Cristo, que propõe um recontar da vida de Jesus e de outros episódios eternizados pela
religião cristã. Vera Bastazin, em seu livro Mito e Poética na Literatura
Contemporânea, discorre acerca do romance de José Saramago.

O romance reconta episódios do nascimento, vida e morte de


Cristo, aquele que, filho de Deus, veio à terra com a missão de
redimir os homens por meio de seu sofrimento e morte na cruz.
Entretanto, essa história se modifica, não no seu todo, mas nos
pequenos episódios que compõem a macronarrativa, e essa
ruptura ocorre não apenas em nível semântico – que subverte
significados seculares, sedimentadores de toda uma cultura
cristã – mas também na estrutura da obra, na linearidade
narrativa, que se rompe, com frequência, para dar espaço a
afirmações irônicas, alegóricas e, por vezes, de humor
sutil.(BASTAZIN, 2006, p.19)

Então, o romance de Saramago recria uma narrativa que segue o modelo de um


Evangelho. Entretanto, o autor usa da liberdade literária para expôr de maneira diferente
episódios e personagens cuja trajetória vem sendo narrada reiteradamente, de forma a
desencorajar dúvidas e/ou reinterpretações, pelas religiões cristãs.

2.1. O Fantástico no Texto Saramaguiano

Uma das principais características do romance é trazer personagens tidos como


sagrados pela religião como simples seres humanos, com defeitos e virtudes, fugindo
totalmente dos moldes tradicionais. São inúmeras as divergências entre a Bíblia Cristã e
o Evangelho de Saramago, no qual, em alguns trechos, o próprio Jesus, que fora
assimilado a Deus (embora com diferenças, como a de substância divina, que causou o
cisma entre as igrejas católica romana e ortodoxa) pela tradição cristã e, de forma
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equivocada, santificado pelo apelo popular de sua figura (muitos católicos referem-se ao
Menino Jesus como “o Santinho”), se define inteiramente humano,

[...]Como pode um homem ser filho de Deus, Se és filho de


Deus, não és um homem, Sou um homem vivo, como, durmo,
amo como um homem, portanto sou um homem e como homem
morrerei. (SARAMAGO, 2006, p.305).

Neste trecho, Jesus atribui a si mesmo características humanas, com destaque


para a capacidade de realização amorosa; nesse ponto, reside uma das divergências mais
evidentes entre o texto de Saramago e a tradição religiosa. Segundo a fé cristã aceita
pelas instituições católicas e protestantes, Jesus não teria tido experiências amorosas
com nenhuma mulher, o que lhe reforçaria a pureza e santidade. Porém, no Evangelho
Saramaguiano, da mesma forma que em alguns textos apócrifos, Jesus se relaciona com
Maria Madalena, outra personagem bíblica que toma novas formas no texto alternativo
do escritor português:

Maria de Magdala apareceu, nua. Nu estava também Jesus,


como ela o deixara […] Maria de Magdala, que dizia, Calma,
não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então
sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo
dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um
estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-
se, e que de súbito se escapava gritando, impossível, não pode
ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao
mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo
sobre o dele (SARAMAGO, 2006, p.234 -5)

No romance de Saramago, além de Jesus, o próprio Deus apresenta


características humanas. Murilo Moiana, em seu artigo “A humanização do divino em O
Evangelho Segundo Jesus Cristo”, discorre sobre o Deus presente no romance de José
Saramago:

A personalidade de Deus. Uma personalidade irônica,


aparentemente sádica e que sempre deixa que suas vontades, por
díspares que pareçam, sejam as únicas verdades, nos leva a
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pensar que Deus é o antagonista da humanidade por fazer dela


apenas o meio para satisfação de seu id, ego e superego.
(Moiana, 2004, p.1)

No trecho a seguir, Deus perde a condição de absoluto (Todo-poderoso e fonte


de todo o Bem), cristalizada na cultura popular e na religiosa, e reconhece precisar de
ajuda, como qualquer ser humano,

E este filho que sou, para que o quiseste, Por gosto de variar,
não foi, escusado seria dizê-lo, Então Porquê, Porque estava
precisando de quem me ajudasse aqui na terra, Como Deus que
és, não devias precisar de ajudas, Essa é a segunda questão.”
(SARAMAGO, 2006, p.306)

Além de humanizado, o Deus recriado pelo evangelho de Saramago lembra,


muitas vezes, os Deuses sedentos de sangue de diversas mitologias. Também lembra, de
certo modo, os deuses do Olimpo e os do Walhala, em suas buscas por poder e
hegemonia. Isso parece estranho aos nossos olhos pois, influenciados pelas religiões
modernas, como o Cristianismo, o Islamismo, o Ba'Hai – e deixando de fora o Budismo,
por exemplo - temos como ideia de Deus um bom pai e criador de todas as coisas, um
ser absoluto que não pode ser contestado e que rege todas as leis do universo, logo, que
não teria a necessidade de buscar o poder ou de lutar para preserva-lo. Encontramos
neste ponto uma certa ganância e/ou vaidade, ou seja, características humanas
impressas na figura maior da religião, Deus.
A sequência do diálogo no pequeno bote no Mar da Galiléia, do qual Jesus é
testemunha muda e durante o qual Deus combina com o Diabo o nascimento da nova
religião, que renderá mortes e calamidades em fim para a satisfação da vaidade divina,
reintroduz uma dimensão pagã nesse Deus. Assimilado às deidades que se deleitam com
as desgraças humanas e que se divertem manipulando as Criaturas, Deus é repugnante
para o próprio Jesus. Apesar disso, submetido à vontade do Pai pelo poder deste, Cristo
não consegue alertar os humanos sobre seu verdadeiro papel no que se configura como
uma comédia macabra, destinada a criar uma tradição religiosa hipócrita, que concilia o
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discurso da piedade, da caridade e da tolerância com os futuros autos-da-fé, Cruzadas,


Noites de São Bartolomeu, massacres diversos etc.
Tal sanguinarismo entra em choque com a proposta aceita pelos cristãos
contemporâneos de que o ser humano deve se aprimorar, agindo com bondade e
tolerância para com os outros. Assim, não apenas o Deus do Evangelho saramaguiano é
humanizado, mas acaba por ser mesmo degradado, apresentado como dono de
sentimentos e apetites que seriam considerados “maus” e “inferiores” num ser humano.
Em duas palavras, Deus é apresentado como um tirano sádico.
As características degradadas atribuídas no romance a seres santificados pela
tradição obrigam o leitor a um estranhamento diante do texto. Mesmo leitores não
cristãos são conhecedores dos elementos que compõem a tradição cristã e estão
provavelmente em contato com uma sociedade que perpetua os mitos religiosos. Logo,
a narrativa saramaguiana foge daquilo que poderíamos chamar de senso comum e nos
apresenta um contexto que extrapola aquilo que temos como natural.

3. Eça e Saramago Dialogando com o Fantástico

Aplicando as teorias acerca do Fantástico, segundo Todorov, aos textos de Eça e


Saramago, não conseguimos estabelecer nenhuma das obras como totalmente engajada
ao gênero fantástico. Entretanto, podemos achar certos momentos nos textos onde há
alguma fuga ao “normal” e onde podemos encontrar características fantásticas.
O universo de O Evangelho Segundo Jesus Cristo é estranho aos nossos olhos. À
medida em que são apresentados os personagens, somos surpreendidos e começamos a
lidar com construções não condizentes com as imagens pre-estabelecidas do cristão. Em
certos momentos, tornam-se até chocantes algumas passagens do texto, por exemplo, a
já citada cena de sexo entre Jesus Cristo e Maria de Magdála. Essa ruptura da santidade
(entenda-se castidade) de Cristo e as características, negativas, humanas, de Deus, são
os pontos onde o leitor sente mais distanciamento daquilo que tem como estabelecidos,
logo, pontos onde o texto flerta com o Fantástico.
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Entretanto, o Fantástico não caracteriza o romance, pois, ao longo da narrativa o


leitor se habitua àquele universo, e indiretamente, através de diálogos filosóficos, o
autor explica os comportamentos dos personagens, sempre através das incoerências da
doutrina cristã. Tomemos como exemplo a passagem onde Deus utiliza o diabo como
“bode expiatório” para sanar as suas incompetências como regente do universo e
atribuir tudo o que há de ruim ao seu maior inimigo,

[…] o pecado e o Diabo são os dois nomes duma mesma coisa,


Que coisa, perguntou Jesus, A ausência de mim, E a ausência de
ti, a que se deve, a teres-te retirado tu ou a terem-se retirado de
ti, Eu não me retiro nunca, Mas consentes que te deixem, Quem
me deixa, procura-me, E se não te encontra, a culpa, já se sabe, é
do Diabo[...] (SARAMAGO, 2006, pg. 323)

Assim, podemos entender que o Evangelho saramaguiano não se trata de um


texto totalmente fantástico, mas que instaura por vezes uma ambiência fantástica, ou
seja, que lança mão de recursos que visam provocar no leitor exatamente a hesitação, a
dúvida, o instante no qual não se sabe se a história é maravilhosa (ficção em estado
puro, numa espécie de Universo Paralelo onde Deus possui licença para seu mau) ou
estranha (Deus pode, de fato, ser mau e sádico e a narrativa saramaguiana apenas
desvela didaticamente sua duplicidade).
Características também presentes em A Relíquia. No romance de Eça, também
identificamos o estranhamento no que diz respeito ao senso comum acerca da fé cristã.
A trama mostra que o episódio da Paixão de Cristo não teria sido tal como o
conhecemos, e tudo não teria passado de um plano mal sucedido, que Jesus não era
divino e que não ressuscitou. Ora, podemos estabelecer aí o estranhamento, pois, assim
como no romance de Saramago, a desconstrução da santidade de Cristo é algo que foge
do senso comum para a maioria dos leitores ainda hoje – para não falar do Portugal
oitocentista!
A quebra da possibilidade do Fantástico ocorre quando recordamos que os episódios
recontados sobre a vida de Cristo se passam durante um sonho do personagem
Teodorico: logo, o estranhamento é explicado, uma vez que, em sonhos, tudo é possível.
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No sonho de um hipócrita devasso, embora simpático, o embuste pode ser mesclado á


trama do divino.
Entretanto, no fim do livro temos uma passagem que aproxima o livro do gênero
fantástico, mais até do que o evangelho saramaguiano,

E tudo isto perdera! Porquê? Porque houve um momento em que


me faltou esse descarado heroísmo de afirmar, que, batendo na
Terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu –
cria, através da universal ilusão, ciências e religiões.
(QUEIROS, 1887, pg. 348, 349).

Para finalizar seu romance, Eça deixa ao leitor essa frase, inferindo que as
religiões são fundadas em inverdades. Coloca tal afirmação na fala de Teodorico, que
desabafa suas reflexões acerca de suas experiencias vividas e sobre sua escolha de viver
com a verdade. Esta passagem ocorre depois do sonho, já no universo “real”, enquanto
Teodorico conversa com outra pessoa. A partir do momento que o personagem traz as
experiências oníricas para a sua realidade, a sociedade portuguesa do século XIX, há um
movimento duplo: primeiro, recupera e modifica os sentidos do sonho do protagonista,
que passa a significar uma revelação epifânica do poder da mentira fervorosa. Depois
disso, nota-se a súbita aproximação da focalização do personagem (devasso e cínico)
com a do autor implícito (que escolhe encerrar o livro com a frase de efeito).
Esse duplo movimento reinsere no texto a dúvida, o instante de hesitação: ou a fala é
de um personagem cínico e indigno de confiança (portanto, temos o estranho, explicável
pelo caráter de quem interpreta as instituições sociais) ou é a de um autor implícito (e
que teria, portanto, segundo o pacto de leitura oitocentista, um peso de “verdade” na
internalidade do texto, o que restabeleceria a versão blasfema da morte de Jesus como
plano de tomada de poder). Portanto, o romance encerra utilizando a brecha do
Fantástico para veicular sutilmente as idéias revolucionárias de Eça e sua crítica mordaz
ao catolicismo.

Referências
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SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: Schwarcz, 2006.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Persperctiva,
2007.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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HISTÓRIAS DE LEITURA DE UM DEPUTADO FEDERAL: O POETA


WEIMAR TORRES

Adriana Viana 1 (G-UFGD)


Alexandra Santos Pinheiro 2 (UFGD)

Introdução: Caminhos da leitura

Humildade
Ah! A aventura de viver humildemente
E, assim humildemente amar o mundo inteiro;
Querer bem a uma pedra, um ninho, uma semente,
A ver em cada amor o amor mais verdadeiro [...].
Weimar Torres. (Meus Versos, 1970, p.18).

Weimar Torres nasceu em 1922, na cidade de Ponta Porã. Formou-se em


Ciências e Letras no Ginásio Municipal de Campo Grande e em advocacia no ano de
1947 no Rio de Janeiro. O escritor se instala na cidade de Dourados em 1948 e se torna
o primeiro advogado da cidade. Com o falecimento de seu pai José dos Passos Rangel,
diretor e proprietário do jornal O Progresso em Ponta Porã, transfere a tipografia para
Dourados em 1951, sendo o segundo meio jornalístico implantado na cidade. No
mesmo ano casou-se com Adiles do Amaral, com quem teve duas meninas e um menino
falecido ainda criança. Sobre a carreira política, foi eleito várias vezes vereador,
conquistou vários encargos na comunidade douradense, como, um dos fundadores do
Rotary Clube de Dourados e participante do Lions Clube. Em 1966 conseguiu realizar
sua aspiração máxima elegendo-se Deputado Federal. O escritor e deputado foi vítima
de um acidente aéreo em 1969, quando regressava para Brasília.
Na primeira edição do jornal, Weimar escreve uma coluna agradecendo a
oportunidade de instalar um jornal em Dourados e, assim, prosseguir com as “vitórias”
de seu pai. Declara que sua intenção é proporcionar o crescimento da cidade, e
compartilhar com todas as camadas sociais as opiniões e informações que merecem ser
destacadas.

1
Graduanda do curso de Letras e bolsista de Iniciação Científica desde julho de 2009.
2
Professora Adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados e orientadora da pesquisa.

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Neste trabalho, pretendo destacar Weimar Torres como escritor, analisando os


cadernos de anotações, sua materialidade e a construção de sentido na fase poética. Com
o material em mãos, a tarefa foi a de perceber em seus registros tanto a sua paixão pela
literatura, quanto a importância de ter sido o primeiro a editar um jornal em Dourados.
A contar pelos registros encontrados em sua Biblioteca, a vida poética de Weimar se
inicia aos 17 anos, no prefácio de seu caderno Coração de estudante, como ele baliza,
revela frustrações e alegrias que os levou a escrever tais poemas.

Coração de estudante – foi o nome com que batisei este livro, este
meu pobre livro – catecismo de meu coração e meu evangelho de
amor [...]
Coração de estudante – é um coração de adolescente a palpitar com a
maior pujança que a vida pode dar!
Desde então quando sofria alguma dor e se alguma tristeza me
apunhalava o coração eu transformava essa dor num verso... e sofria
menos [...] (Coração de Estudante, 1941, p.5)

Weimar Torres constitui-se como uma personalidade importante para a


consolidação de práticas de leitura no município de Dourados, tanto pela editoração do
jornal quanto por sua dedicação à literatura. Embora tenha falecido aos 46 anos, os seus
diários (8 volumes manuscritos) e as suas produções poéticas (dois volumes
datilografados e corrigidos a caneta) permitem observar que seus anos de existência
foram vividos com intensidade. Em seus registros, tem-se a imagem de um homem que
foi político, empresário, leitor, escritor e incentivador de práticas de Leitura. Para se
averiguar essas marcas de leituras e os meios sociais em que se vinculavam as obras do
escritor na década de 60 e 70, faz-se necessário dialogar com alguns especialistas sobre
o assunto, tornando-se indispensável mencionar a transição da História da Literatura e
de seus leitores.
O século XVIII ficou marcado pela censura e controle de livros por parte da
coroa portuguesa, e mesmo assim os leitores não desistiam de adquirir alguma obra. A
escritora, Márcia Abreu em Os Caminhos dos Livros, revela dados teóricos sobre a
procura pelas obras e o controle da leitura desses textos. As proibições eram feitas pela
Mesa do Desembargo do Paço com a intenção de não permitir uma revolução, já que a
leitura proporcionaria o conhecimento de outras possibilidades de vida. A escritora

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afirma que no Brasil colonial não havia leitores justamente por não haver um incentivo
como, bibliotecas, livrarias, instituições ligadas ao livro e à leitura, meios culturais e
outros que fornecessem a instituição de um significativo grupo de leitores. Antes da
transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro apenas 110 obras a cada ano
chegavam à cidade com cerca de 50 mil habitantes. Com a chegada da Família Real as
vivencias culturais se alteraram, pois, trouxeram para o Brasil a instalação de
bibliotecas, espaço literário, livreiros, criaram jornais ampliando assim o contato com a
leitura. Mas como aponta Abreu o acesso a obras ainda continuava restrito.

É bem verdade que a população aumentou de forma significativa com


a chegada da corte e seus acompanhantes, mas o acréscimo na
quantidade de livros não pode ser atribuído, entretanto, unicamente a
transferência da corte, pois o transporte da biblioteca dos nobres e
seus acompanhantes deve ter-se realizado sem a intervenção das
instituições responsáveis pela censura, já que no ano de 1808, apenas
12 pessoas submeteram pedidos de autorização, das quais apenas duas
diziam estar se transferindo para o Rio de Janeiro. (ABREU, 2003,
p.40)

O pequeno número de leitores está relacionado não apenas ao controle, mas


também à aquisição das obras, em que apenas os que tinham poder aquisitivo poderiam
comprar. As obras demoravam meses para chegar à cidade, isso quando não se perdiam
ao meio de outras mercadorias transportadas no navio, ou comidas por traças e ratos.
Essas informações nos remetem à situação atual de leitura, ainda se sofre com o
controle e a acessibilidade aos livros, pois o número de leitores ainda continua inferior,
e o acesso é facilitado muitas vezes apenas para a elite.
Dentre os dados levantados, a pesquisadora Márcia Abreu fornece os tipos de
obras lidos na época e faz pressupor os seus leitores. Com sua árdua tarefa, resgatou
apenas registros sobre os pedidos das obras, mas nada sobre quem fazia esses pedidos.
No Rio de Janeiro a Literatura ocupava as primeiras posições de livros mais apreciados.
Segue as obras que mais estavam presentes na cultura letrada do Brasil no século XVIII:

Romances enviados entre 1769 e 1807: Les aventures de Télémaque;


Histoire de Gil Blas de Santillane; Le voyageur françois; Caroline de
Litchfield; El ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha; História
do Imperador Carlos Magno; Lances de la ventura, viagens de Altina;

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Delli viaggi di Enrico Wanton; O feliz independente do mundo e da


fortuna. Romances enviados entre 1808 e 1826: Les aventures de
Télémaque; Les mille et une nuits; Histoire de Gil Blas; Magazin d’
enfants; História do Imperados Carlos Magno; O feliz independente;
Lances da ventura; Thesouro de meninos; o piolho viajante; Voyage
de La Perouse; Voyage du Jeune Anacharsis em Grece; El ingenuoso
Hidalgo Don Quijote de la Mancha; Robinson Crusoe; Oeuvres de
Lesage; Paul et Virginie; Oeuvres de Prevost; Scenes de l avie du
grand monde.(ABREU, 2003 p.131)

A pesquisadora não encontrou informações sobre leitores, mas podemos


observar as riquezas que faziam parte do estilo cultural e a finalidade da leitura como
algo que os levava para o conhecimento das melhores obras. As leituras de romances
eram realizadas em voz alta para toda família, crianças e adultos. Nesse período,
diversos teóricos defendem a Literatura como algo estruturado para humanizar a
sociedade, e a igreja a utilizava para impor os conceitos morais, propondo que apenas os
que seguissem as regras impostas teriam a salvação eterna. Mesmo com todas as
conjurações e dificuldades de impressões, a literatura não deixou de fazer parte do dia-
a-dia dos amantes da leitura, porque ela permite a escolha de novas oportunidades e faz
refletir sobre os acontecimentos de um determinado momento. O famoso teórico
Antonio Candido aponta a Literatura como algo que modifica a conduta do indivíduo e
dependendo da aceitação dessa obra pode até transformar os conceitos e valores de toda
uma sociedade. Com essa repercussão e valorização, a Literatura passa a assumir status
diferenciados pela sociedade. No século XX, a arte passou a ser aceita com mais
flexibilidade, estudiosos se aprofundaram em seus significados, definições, estruturas,
escritores e as funções de todo o conjunto dentro de um meio social. Na obra, Cultura
letrada Literatura e leitura, Márcia Abreu destaca as exclusões que permaneceram
vivas na sociedade. Mais uma vez a questão econômica entra como fator a ser discutido.
A Literatura popular e erudita é aceita de forma diferenciada pelos estudiosos. Os textos
são divididos de acordo com a popularidade do escritor e, como afirma Abreu, apenas
os textos que forem considerados de prestígio pelas “instâncias de legitimação” é que
devem ser aceitos por todos os leitores:

Para que uma obra seja considerada Grande Literatura ela precisa ser
declarada literária pelas chamadas “instâncias de legitimação”. Essas

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instâncias são várias: a universidade, os exemplos culturais dos


grandes jornais, as revistas especializadas, os livros didáticos, as
historias literárias etc. (ABREU, p. 40)

Ou seja, apenas os textos escolhidos pela elite são considerados de importância


para a circulação, e apenas eles devem seguir como exemplos de “grandes obras”,
desprivilegiando, assim, a literatura oral e os textos dos escritores que não foram
hierarquizados. A imagem que se tem do lugar do autor na sociedade conta muito para a
classificação do texto, ele deve ser reconhecido pela população e ter envolvimento com
importantes fatos sociais. Somos pressionados a escolher apenas obras renomadas para
nos incluirmos na cultura letrada, onde se avaliam que apenas dessa maneira criamos
gosto estético e cultural. Dessa forma, a população carente e com pouca instrução é
considerada inapta para a realização de tais obras por falta de leituras suficientes, mas
isso não desqualifica seu interesse pela leitura. Para Candido a arte erudita e popular
tem praticamente o mesmo objetivo de expressão. O grupo se manifesta de acordo com
suas necessidades, utilizam a linguagem ou escrita para explicar de forma ilusória ou
fantástica a sua realidade. Valoriza o mundo do outro, pois, por mais primitivo ou
civilizado que seja sempre transmitirá riquezas relevantes:

A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o


ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo
arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se
combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e
um elemento de manifestação técnica, indispensável à sua
configuração, e ampliando uma atividade de gratuidade. Gratuidade
tanto do criador, no momento de conceber e executar, quanto do
receptor, no momento de sentir e apreciar. Isto ocorre em qualquer
tipo de arte, primitiva ou civilizada (CANDIDO, p. 53).

Todo artista pretende transmitir para os receptores certo conjunto de significados


sobre sentimentos ou assuntos envolvendo questões sociais. No entanto, a escolha
desses assuntos pode se tornar desinteressante para alguns leitores se o escritor não for
renomado. Nas visitas ao jornal O Progresso pude perceber o grande incentivo pela
leitura dos cânones, sempre abordando colunas sobre poemas, trovas, versos e outros de
diversos escritores e assuntos. O professor José Pereira Lins escreve vários ensaios

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intitulados “Livros, sempre livro”, retratando sobre o surgimento da escrita, os valores


culturais e a importância de algumas obras e sobre tais escritores.

... O livro é a Luz do coração, o espelho do corpo, guia das virtudes,


repelidor dos vícios. É a coroa dos prudentes, o companheiro de
viagem, o amigo caseiro, o entretenedor do enfêrmo... (LINS, Jornal O
progresso, 29 de julho de 1956).

O professor Lins tem por objetivo avaliar e motivar o interesse por certas obras
clássicas, fazendo referência e algumas explicações sobre as obras A Divina Comédia e
Os Lusíadas, valorizando o trabalho dos escritores e revelando sua grande preocupação
pela falta de leitura dos adolescentes:

Felizmente ainda há quem leia Camões. Dias atrás surpreendi alguém


declamando-o magistralmente: era um senhor de meia idade, mais
velho do que moço. E preciso frisar bem isso, pois a mocidade de hoje
já não lê e quando não o ignoram totalmente... ( LINS, Jornal O
Progresso, 30 de dezembro de 1956)
O jornal valoriza não apenas os cânones, mas também os escritores da região,
trazendo suas contribuições literárias para a população de Dourados, por exemplo, a
escritora Mercedes Amiki, como aborda a coluna do jornal, nova moradora da cidade
com Dons poéticos, brinca com os versos e transmite com facilidade seus objetivos,
escreveu vários poemas sobre a cidade e foi uma das grandes homenageadas pelos
editores. Este exemplo que valoriza o trabalho do poeta como algo único faz refletir
sobre a hierarquia em que consiste a divisão das obras e quem os lê. Não tive
informações consistentes sobre quem lia os jornais, mas diante da pesquisa realizada
sobre a população da época na obra Aspectos históricos do povoamento e da
colonização de Alice Lori, pude constatar que a maioria era trabalhador rural, ou seja,
tinham pouco acesso à leitura e os habitavam não passavam de 14.985. Mesmo assim,
Weimar investiu em uma tipografia acreditando na capacidade do crescimento
econômico e cultural dessa cidade.
Diante da experiência adquirida na coleta de dados e reflexões sobre os teóricos
aqui citados, considero a arte como algo livre para os vários indivíduos, o que pode ser
de grande relevância para um pode ser ignorada pelo outro, a alteridade deve ser
respeitada, é na leitura que ativamos o nosso conhecimento de mundo que é adquirido

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individualmente. No entanto, Abreu considera o ato de ler um valor social que deve ser
acessível para todos, não importa a classe e nem por meio de qual objeto o fará, o
importante é ser apreciado:

Ler um livro é cotejá-lo com nossas convicções sobre tendências


literárias, sobre paradigmas estéticos e sobre valores culturais. É sentir
o peso da posição do autor no campo literário (sua filiação intelectual,
sua condição social e étnica, suas relações políticas etc.). É contrastá-
lo com nossas idéias sobre ética, política e moral. É verificar o quanto
ele se aproxima da imagem que fazemos do que seja literatura
(ABREU, p. 99).

A leitura está vinculada a uma série de discussões sociais. Uma delas é


proporcionar o poder e o saber que se torna perigoso para os dominantes, pois ela
permite a formação de opiniões e abre as portas para questionamentos, como por
exemplo, a imagem que temos de nós como cidadãos, questões políticas e religiosas, e o
conhecimento da existência humana e seus direitos. Contribuindo para o debate, Eneida
Maria de Souza aponta a Literatura como um fator que deve ser melhor aproveitado e
avaliado, aumentar nas agendas escolares o espaço artístico e ser considerada como
forma de interdisciplinaridade pois nela está contido não apenas conteúdos do
sentimento humano mas os acontecimentos de uma determinada época e região.
O ato de escrever para Candido está relacionado não apenas em descrever um
personagem com problemas sociais, mas em como as experiências sofridas irão influir
na vida do leitor, e se tal fato nada se referir aos acontecimentos da época e se
identificar com o leitor, o trabalho será perdido. Para melhor refletir sobre a atuação da
literatura e o seu espaço merecido na sociedade, o escritor aponta consideráveis
contribuições que ela exerce no meio em que circula dependendo do conceito de cultura
de cada grupo:

O conceito de cultura que eu defendo [...] denota um padrão de


significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um
sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas, por
meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e suas atividades em relação à vida. Portanto a
totalidade das linguagens e das ações simbólicas próprias de uma
comunidade constitui a sua cultura.” (CANDIDO, ANO, p.35)

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De acordo com ele, a Literatura permite conceitos vinculados com a história, ou


seja, muitos dos símbolos utilizados fazem relação com a imagem que se tem do
passado, ajudando a compreender o presente de uma determinada comunidade, pois,
mesmo antes do surgimento da escrita, os primitivos já sentiam a necessidade de
explicar de alguma forma os acontecimentos em sua volta. Um exemplo claro dessa
necessidade de compreender a Literatura como algo herdado é este próprio artigo, em
que recorri às várias informações de diversas épocas principalmente nas encadernações
do jornal e os registros nos cadernos de anotações, para assim compreender os valores
sociais de um escritor e sua pretensão de conteúdo para uma determinada população.
Perante tais informações sobre os estudiosos, tenho por objetivo nesse texto
investigar a relação entre obra e escritor e seus efeitos visando a sociedade de uma
determinada época. Primeiramente, foi necessário perceber a nítida contribuição da
linguagem e o seu sentido literário como meio implícito ou explícito de informar sobre
as necessidades humanas. Ao adotar o escritor e político Weimar Torres como morador
antigo do município de Dourados e referência para tal estudo, terei a grande
responsabilidade de perceber, em suas obras, anotações, envolvimento social e a sua
contribuição para com os leitores douradenses, refletindo sobre a pretensão de seus
poemas onde muitos se referem ao patriotismo e a sua paixão pelas riquezas e
crescimento da região.

O fazer poético: materialidade e construção

Meu Coração de Estudante,


Que não esqueço um instante...
Ó relicário odorante
Da minha grande paixão...
Pagão tu és meu batismo,
Se rezo és meu catecismo
De perenal oração...!
Weimar Torres. (Coração de Estudante, 1941, p.9).

Como afirmado anteriormente, no presente artigo, apresento a análise


comparativa entre os cadernos de anotações intitulados Coração de Estudante e

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Juventude, que parece ter sido um ensaio para uma futura publicação. Desses cadernos
nasce o livro Meus Versos, edição póstuma dos versos do escritor, organizada por sua
esposa em 1970. No prefácio do caderno de anotações Coração de Estudante, Weimar
revela o início de suas inspirações aos 17 anos, registrando sempre as decepções e
empolgações vividas por um adolescente romântico e patriótico. Ele compara sua obra
como um filho, em que o pai o entrega ao mundo. É importante observar que, na década
de 40, o Brasil estava passando por várias faces de mudanças e transtornos, declara
guerra aos países do eixo, e se inicia alguns movimentos literários como o segundo
período do modernismo em que muitos escritores regionalistas estavam preocupados em
expressar as vivências dos povos de sua região:

E... Adeus meu pobre livro...


Vai e dize ao mundo tudo o que sente um coração de adolescente, um
coração em flor de um estudante que ama, que sofre, que delira e
sonha...
Adeus... meu coração de estudante! Adeus (Coração de Estudante,
1941, p.6).

O Coração de Estudante possui características de um pequeno livro de capa dura


marrom, onde está escrito “Coração” a dedo com tinta branca. Na contracapa apresenta
uma colagem de dois jovens apaixonados e um poema de sua autoria cujo tema é
“Sublime Mendigo”. No geral, o caderno está em decomposição por motivos do tempo
e pela má conservação. Os poemas estão na maioria datilografados e outros escritos a
lápis ou caneta. Pode-se perceber na 5ª página uma pequena foto de Weimar aos 17 anos
e logo abaixo sua assinatura com a data de 1941 e ao lado uma outra assinatura com a
data de 1963, tal observação faz pressupor que o poeta escreveu seus versos há algum
tempo atrás e só depois de muitos anos voltou a analisá-los na intenção de publicá-los.
Algumas datas registradas mostram que a construção do caderno foi realizada enquanto
estava cursando Direito no Rio de Janeiro. Ele faz algumas correções ao lado dos
poemas datilografados e, muitas vezes, exclui a escrita anterior com a marca de
negação. Outro fator que faz pressupor que o escritor resgatava seus poemas depois de

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vinte anos são as anotações que ele faz na última folha do caderno Coração de
Estudante, em que ele questiona a construção de um livro e seus “inocentes” poemas:

Escrever um livro? – Só depois de ter lido todos os que já estão


escritos.
Muitos anos depois de ter escrito estes primeiros versos, leio-os e me
sinto um pouco encabulado diante de tanta pieguice e inocência que,
então, povoavam meus versos.
Mas, o que fazer? Rasga-los? Queimá-los? (Coração de Estudante
p.102).

Percebe-se que Weimar menosprezou os poemas contidos nesse caderno por considerá-
los imaturos e serem suas primeiras construções de sentido na adolescência. Mas alguns
deles foram publicados no livro póstumo juntamente com os poemas do segundo
caderno de anotações Juventude. No caderno Juventude, os poemas estão distribuídos
em 85 páginas datilografados e com poucas correções, apresenta as mesmas
características do caderno anterior, capa dura marrom e uma foto de Weimar na terceira
página. O caderno parece estar pronto para uma futura publicação, sua conservação
física se encontra em bom estado. Na quarta página escreveu a caneta o poema
“Juventude”. A dedicatória é destinada a si mesmo: “Á mim mesmo, ao meu romantismo
incurável, à minha mocidade de ouro. Rio de Janeiro, 1944”. Tal dedicatória não foi
mencionada no livro póstumo. Ao passar as páginas, encontra-se uma marca de
positivo, ou seja, os poemas que foram escolhidos para a publicação.
Como apresenta seu amigo de infância, Elpídio Reis no prefácio de Meus
Versos, muitos dos poemas não foram publicados:

Esta edição póstuma dos versos de Weimar, - punhado de flores para


enfeitar sua tumba, como êle disse – apresentará, como todo livro de
poemas preparado depois da morte do autor, falhas que os mais
entendidos saberão perdoa. Por exemplo: quando o próprio autor
prepara a edição, deixa de lado muitos versos, poemas, que julga não

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estarem à altura de tantos outros; dá-lhes a seqüência que considera


mais apropriada para a apresentação, corta, acrescenta, burila, ajeita a
moda de seu gôsto artístico, enfim (Meus Versos, p. 9).

Em dois de setembro de 1970, o jornal O Progresso divulga que em breve será


lançado o livro Meus Versos e o dinheiro arrecadado com as vendas será inteiramente
em benefício da Casa da Criança Desamparada de Dourados. A obra póstuma apresenta
171 páginas apenas com os poemas, versos e crônicas encontrados nos dois cadernos de
anotações. Na contracapa se faz uma breve biografia de Weimar e uma foto, similar a
que ele sugeriu nos cadernos.
Tendo em vista que Weimar nasceu no inicio do século XX em que as
influências do modernismo estão átona, diante das observações das construções poéticas
do escritor, verifica-se sua grande paixão pelas características românticas, escreveu
vários poemas carregados de emoções, dores e felicidades vividas pelos amantes:

[...] E tu fontes, porque choras?


— Eu choro por não ter alma, por nunca poder amar!!!

E por outro lado revela uma admiração pelo regional, escrevendo vários temas sobre as
belezas e conquistas da cidade de Dourados e Ponta Porã:

Rainha dos ervais, flor de aliança


Tu és a doce donzela de esplendor
Que eu celebro em meu verso de esperança
Que eu venero no altar do meu amor [...]

O poeta também demonstra certo interesse por símbolos, seu poema “Magua” na
página 62 do caderno Juventude é todo construído por letras artísticas que não
conseguimos identificar, a intenção era justamente não ser compreendido, pois o poema
não foi publicado.

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Considerações finais:

Perante tais observações e analises, é importante destacar que a vida do escritor


não se resumia apenas em versos e poemas, Weimar também escrevia para as colunas
de seu jornal assuntos sobre política, progresso de Dourados e sua satisfação pela
criação de uma editora na cidade. Suas várias manifestações literárias e políticas foram
de grande contribuição para a consolidação de práticas culturais na cidade. Coube neste
trabalho primeiramente observar os registros que demonstram ter sido um verdadeiro
amante da escrita. É categórico perceber em seus versos, a vasta complexidade e
minuciosidade em que Weimar construiu seus cadernos de anotações. Escolher apenas
alguns para serem citados gerou certa tensão, pois a intenção não foi a de diminuir a
obra em poucos versos, e sim observar o seu sentido integral dentro de uma determinada
época.
A oportunidade de ter em mãos os dois cadernos de anotações, e que um dia
pertenceram ao próprio escritor me fez retroceder e compreender um jovem que tinha
muitos sonhos e aventuras. Seus versos foram escritos há 70 anos atrás e ainda dialoga
com as emoções da juventude atual, “... vai dizer ao mundo tudo o que sente um coração
de adolescente...”. Penso que realmente era essa a imensa vontade de Weimar,
transmitir desejos e paixões que foram vividos intensamente, mas não como algo único
que será esquecido, mas algo que mesmo depois de sua morte vagará pelo mundo:
[...] Versos que eu sei guardar entre as coisas mais gratas da existência e que eu quero reler
piedoso pelos anos em fóra, até que a morte me atire sob a esteira da terra e êles fiquem
vagando pelas plantas do mundo ou se transformem, doridos, em punhados de flores para
enfeitar minha tumba... (Meus Versos, 1970, p.12)

Referências

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ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras: Associação de


Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 2003.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Ed. Nacional, 1967.

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2009.

GRESSLER, Lori Alice. Aspectos históricos do povoamento e da colonização do


Estado de Mato Grosso do Sul: destaque especial ao município de Dourados. Estado:
L.A Gressler, 1988.

SOUZA, Eneida Maria. Crítica Cult. Belo Horizonte, ed. UFMG 2007.

Jornal O Progresso, Dourados-MS - 1920 a 1971.

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A RELAÇÃO ENTRE O EU E O OUTRO NA LITERATURA FANTÁSTICA DE


HOJE

Adriano Julio Nogueira (G-UNESP/ASSIS)


Ester Mirian Osório Rojas (UNESP/ASSIS)

Introdução

A literatura fantástica foi muitas vezes deixada de lado, por causa dos cânones de
uma literatura clássica, mesmo sendo uma literatura, de autores de prestigio, o grande
desafio sempre foi entendê-la, como uma arte que também é capaz de revelar algo a
mais ao leitor. Assim, o que buscaremos apresentar aqui, é uma leitura de como é o
fantástico nos dias de hoje, destacaremos como é a relação dos seres fantásticos e para
alcançar esse objetivo pensaremos na relação do “eu e o outro”.
Basicamente usaremos duas fontes teóricas. Uma sobre o fantástico, tendo como base
as idéias do escritor Todorov no seu livro Introdução à Literatura Fantástica, e os
conceitos de relações estudado por Bakhtin, principalmente nos que constam no livro
Estética da Criação Verbal. Nesse trabalho não se tratara de nenhum enredo fantástico
especifico, já que o foco é verificar como é a relação, do fantástico e dos seres fantástico
nos dias de hoje.
O que dizer de vampiros, lobisomens, bruxos, fantasmas e zumbis. Podemos passar o
artigo inteiro, citando as criaturas fantásticas que povoam essas obras. O fato é que
esses mitos estão intrínsecos em cada sujeito. Você pode não gostar dessas histórias, ou
de um mito propriamente dito, mas, isso não apaga o mito como expressão social. São
mitos justamente porque ultrapassam o tempo, viajam pelas épocas, são inacabados. Ora
o mito torna-se algo corrente em determinada época, ora é esquecido. São enunciados
que sempre retornam com novas roupagens.
Pensando assim, os mitos figuram basicamente num coletivo, num contexto que
indica também a sociedade da época. Tudo tem uma base nas questões ideológicas, e
por consequência, como algo do social e de uma época, dialógico. Esses mitos são
regidos socialmente, estando sempre num circulo de relações, o sujeito em sua época
que dialoga com esses mitos e os mitos que dialogam com os próprios mitos, cria-se um
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contraponto daquilo que é o estético e esta diante do leitor, e o ético e real numa
compreensão social. O senso lúdico é que define aquilo como algo aceitável ou não a
cada sujeito.
O escritor, Todorov, afirma que é preciso uma aceitação ou não da obra. O leitor
aceitando essa literatura, com o estético posto ali, vai acreditar em vampiros,
lobisomens, fantasmas e qualquer outra criatura fantástica. Deste modo, não basta o
escritor criar sua obra, ele precisa tentar fazer que haja a aceitação do leitor. Para isso
ele segue o enunciado da época, faz uma leitura social, a fim de descobrir qual mito
fantástico cabe melhor naquele momento, desta forma, surge à literatura fantástica da
nossa época.
Ao tratar então desses enunciados faremos algumas reflexões a partir das idéias do
filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin. O que define aquilo que será vinculado, nos
enunciados de determinada época? Se for o sujeito, é ele que no alto de sua necessidade
de vir a ser, determina quais serão os diálogos na sociedade de tempos em tempos. Tal
postura deixa evidente a necessidade das relações, do eu mais um outro.
Tudo isso faz com que entendamos aquilo que vem sendo produzido na literatura e
no cinema. O sujeito de hoje, absorve e produz discursos, que servem de base para uma
construção fantástica, essa seria a razão pela qual um mito esteja aparecendo com maior
frequência, sendo fruto daquilo que o próprio leitor ou telespectador pensa, vê e sente
no seu mundo em determinada época.
Na literatura então teremos obras que reapresentam um mito, criando uma
segmentação desse mesmo mito. É isso que faz com que outros escritores escrevam
sobre o mesmo mito, ou faz o próprio leitor buscar livros com a mesma temática. E
nessa busca, ele recupera alguns escritores e obras, de outra época que não a sua. Cria-
se então circularidade, ou seja, dialogismo.
No cinema o que ocorre é a revitalização das obras literárias. Ou seja, o cinema se
preocupa com o enunciado vigente, revitalizando as obras com os mitos. Pensamos
nessa idéia revitalizadora porque acreditamos que o termo adaptação cria juízo de valor,
o que não cabe quando se trata de obras artísticas e expressões artísticas. Cada gênero é
importante, e tem sua função social. O cinema então revela por uma outra ótica esses
mesmos mitos que estão sendo apresentados na literatura. E, se o sujeito busca outras
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obras literárias com as mesmas temáticas, o mesmo faz no cinema, criando assim um
dialogo entre as obras e os sujeitos, deste modo, vemos a circularidade entre literatura,
cinema e sujeito. Relação continua entorno de uma mesma questão, o mito fantástico
que estiver corrente na época.
Essa segmentação cria, por determinado tempo, uma necessidade por essas obras
fantásticas caracterizadas principalmente pela literatura e o cinema, elas encontram um
lugar certo na sociedade e por sua vez no circulo das relações. Ao definir assim, a arte
no tempo, nos deparemos com a idéia principal que é o fantástico nos dias de hoje, e,
para chegar a isso precisamos entender como esse gênero funciona.

1 - Conceitos fantásticos

O termo fantástico abrange obras que mexem profundamente com os sujeitos,


positiva ou negativamente. Como já dito, quando é positiva cria-se uma ligação entre
obra e leitor, no qual tudo que é posto ali se torna aceitável. Agora quando essa
aceitação é negativa acontece por sua vez o afastamento. Tal fato pode-se dizer que
ocorre em todas as artes, mas no fantástico, por se tratar de um mundo regido
diferenciadamente muitos procuram uma ligação na realidade pura, o que não é possível
acontecer na maioria dessas obras.
Essas obras exigem que seja aceito novas regras de mundo, que é necessário para que
surja uma zona de contato (BAKHTIN, 1990, p. 414) entre leitor e obra, e essa seja
efetiva. Assim, o leitor que aceita essas obras precisa acreditar em tudo que a obra
apresenta. O que faz com que ele interaja com essas novas regras de mundo e o mito
apresentado. Acreditar e aceitar passam a ser as palavras-chave para entender essa
forma literária. Todorov trata desses assuntos antes de tratar o gênero em si. Vejamos
então nas próprias palavras do Todorov:

Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos,


sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível
de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Que percebe
o acontecimento deve optar por uma das duas soluções
possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto
de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o
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acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da


realidade, e então esta realidade está regida por leis que
desconhecemos. (TODOROV, 1981, p. 15)

A partir disso Todorov apresenta duas idéias básicas, servindo para uma melhor
compreensão. Uma que dará conta dos sujeitos que não aceitam essas obras, e outra que
trata de quem aceita. São eles o estranho e o maravilhoso. O entendimento desses temas
é fundamental, para sabermos, como uma mesma obra pode ter uma ligação diferente
entre sujeitos distintos. Ligados socialmente por uma mesma época, mas, com ligações
ideológicas diferentes.
O estranho trata do sujeito que não aceita essas obras. Para eles as ordens do mundo
continuam iguais, nada muda, e ele não aceita essa obra por isso. Pois, ele consegue
explicar tais fenômenos sociais, como aceitar vampiros ou lobisomens, se seu senso
lúdico diz que isso não existe no mundo real. A obra não é mais nada do que algo
estranho, pois provoca o estranhamento nesse sujeito. “Se decidir que as leis da
realidade ficam intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a
obra pertence a outro gênero: o estranho.” (TODOROV, 1981, p. 24)
Outro elemento é o maravilhoso. Por consequência, esse dá conta dos sujeitos que
aceitam essas obras. O que acontece é uma comprovação, de que existem outras regras
que regem o mundo, e por consequência a sociedade. Regras que podem identificar
aquilo como algo real. O sujeito que aceita essa obra sempre a entende como algo
natural, e por isso esse maravilhoso causa o efeito esperado nele. “Se, pelo contrário,
decide que é necessário admitir novas leis da natureza mediante as quais o fenômeno
pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso.” (TODOROV, 1981, p. 24)
Essas idéias possuem outras divisões, mas, não trataremos aqui, já que o que importa
é entender principalmente esses sujeitos distintos. Um que lê toma contato com a obra,
mas, não provoca movimento social. E aquele que também toma contato, mas, responde
a arte com a vida e por sua vez, consegue criar tal movimento. Esse leitor circular, e por
assim dialógico, é capaz de ter uma visão de mundo aberta para novas leituras, não
somente das artes, senão para fazer novas leituras do mundo e da época que está
vivendo.
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São muitas as relações socialmente possíveis, somos vários “eu” e vários “outro”,
com idéias diferentes, ideologias diferentes, e que se relacionam. Os enunciados
também são diversos, compreender esses é muito importante. Porém, entender a ligação
desses nas obras artísticas, nos autores e nos leitores, aqui será mais importante. Pois,
não existe uma única visão sobre uma época, ou sobre um mito. O que interfere
realmente é o enunciado mais usado em determinadas épocas e as relações, por fim, do
“eu” e o “outro”.

2 - Eu e o outro

Como existir socialmente sem essa relação? Não é possível, existimos e nos
constituímos como seres, porque existe essa relação. É uma aliança, um circulo sem
fim, de relações e de troca de conhecimentos, assim tentamos nos constituirmos como
pessoas com ideologias, e, que não existe porque só pensa, existe porque dialoga com o
seu outro e, vive socialmente inserido. Seres inacabados num mundo inacabado, com
mitos inacabados, com artes inacabadas.
Sabemos que pessoas com formação social ideológica diferente, convivem nesse
mesmo circulo. Porém, as relações mais efetivas se dão, sem dúvida, entre pessoas com
idéias e ideologias iguais. Vejamos duas pessoas, uma que acredita num estranho, e
uma que acredita num maravilhoso, estas possuem uma visão de mundo diferenciada.
Um não deixara de existir por isso, pois fazem parte de um corpo social, o que segue é
somente um embate ideológico.
Na arte quem deve criar esse desafio, é o autor e artista. É ele que transporta o ético
para o estético, a fim de criar embates, por sua vez inevitáveis, pois já vimos que podem
existir dois tipos de leitores das obras fantásticas. Nessa criação ele deve imaginar quem
será o público e leitores alvos. Para determinar seu material de trabalho, existe então a
relação do autor com um “auditório virtual” (BAKHTIN, 1930, p.5). Nesse ele imagina
todas as situações possíveis.
Do outro lado, tem então o leitor. Esse deve compreender a arte com a vida, podendo
aceita-la ou não, isso move sua condição de inacabado. Para não deixar que a arte fique
inerte na sociedade é preciso que o sujeito compreenda isso. “Pelo que vivenciei e
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compreendi na arte, devo responder com minha vida para que o todo vivenciado e
compreendido nela não permaneçam inativos” (BAKHTIN, 2003, p. XXXIII; XXXIV).
Sabemos que deve existir o apoio mutuo entre autor e leitor. Para que haja aceitação e
por sua vez, compreensão a fim de criar discursos na sociedade, para que esses sirvam
de compreensão, de um momento distinto.
Robert Stam apresenta essa idéia de forma bem clara. Vejamos o que ele fala nesse
trecho sobre essa relação:

Bakhtin argumenta que cada um de nós ocupa um lugar e um


tempo específicos no mundo, e que cada um de nós é
responsável, ou “respondível” por nossas atividades. Essas
atividades ocorrem nas fronteiras entre o eu e o outro, e,
portanto, a comunicação entre as pessoas tem uma importância
capital. O eu, para Bakhtin, não é autônomo nem monádico, o
cogito autocriador de Descartes; em vez disso, existe somente
em dialogo com outros eus. O eu necessita da colaboração de
outros para poder definir-se e ser “autor” de si mesmo. (STAM,
1992, p. 17)

Assim, cada eu e cada outro, só se constituem por causa do seu ponto de contato. O
que torna tudo inacabado por sua vez. É tratar o outro, como coisa integrante de si
mesmo, pensar que sem esse contato, não existiria nenhum outro. Nossa relação é
definida para nós, e definimos o outro e os objetos. Quando isso é arbitrário modifica
nossa relação e as determinidades do mundo. Pensando no fantástico, por exemplo,
quando nossa ligação é aleatória, perdemos nossa relação principal, e não nos
constituímos na sociedade.

O que na vida, na cognição e no ato chamamos de objeto


definido só adquire determinidade na nossa relação com ele: é
nossa relação que define o objeto e sua estrutura e não o
contrário; só onde a relação se torna aleatória de nossa parte,
meio caprichosa, e nos afastamos da nossa relação de principio
com as coisas e com o mundo, a determinidade do objeto resiste
a nós como algo estranho e independente e começa a
desagregar-se, e nós mesmos ficamos sujeitos ao domínio do
aleatório, perdemos a nós mesmo e perdemos também a
determinidade estável do mundo. (BAKHTIN, 2003, p. 4)
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Os mitos que povoam o fantástico é o alimento para as obras, fazendo parte das
relações sociais. Devendo ser seguido pelos enunciados de determinada época. São
esses enunciados, como já dito, que determina o mito que estará sendo usado com mais
frequência, em determinadas épocas. Os discursos e enunciados hoje, privilegiam um
mito vampirico. Servindo de material para escritores, diretores e produtores de filmes.
Assim, o que essa relação gera é um dialogismo com outros mitos, e com o próprio mito
no decorrer dos tempos.

3 - Variações dentro de um mito

Temos então o mito corrente na nossa época, o vampirico. Esse mito não é o mesmo
desde sua criação, ele é inacabado e assim, sofre adequação no decorrer dos tempos. O
vampiro retratado por Bram Stocker publicado no romance Drácula (STOCKER,
1897), ou o retratado por E.T.A. Hoffimann, não é o mesmo de hoje. Esses vampiros
possuíam o desejo de sangue e o desejo de matar, que era a característica primordial
desses seres fantásticos. Assim, eles não poderiam ser heróis.
Essa idéia de vampiro herói, nos é dada na modernidade. O que mudou as
características desses seres, ou melhor, ocorreu na adequação do mito à nossa época.
Para isso foi preciso uma mudança, o vampiro precisou ser retratado não como, violento
e sanguinário, mas, como mocinho e bom. Sua forma é retratada como algo natural. O
fato é que esse vampiro que conhecemos, sofre de uma crise existencial, e por isso ele
tenta se adequar socialmente. Deixando de ser vilão, passando a se tornar mocinho.
Desse modo, autores como Charlaine Harris, L. J. Smith ou Stephenie Meyer, criam
seres vampirico, que representam essa mudança. Seres que não tem o interesse em suas
imortalidades, preferindo respeitar uma ordem social ao invés de respeitarem suas
próprias condições como seres diferenciados. Isso também pode ser visto no cinema
como em filmes como Anjos da Noite (WISEMAN, 2003) ou nas diversas revitalizações
que as obras desses mesmos autores sofreram, tanto no cinema, quanto em seriados de
televisão.
Essa adequação do mito traz consigo algo muito interessante que é a questão de
quando se trata isso, uma obra é capaz de mudar a interpretação, e no nosso caso, de um
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mito. O sentido anterior, não é apagado. Surgindo conforme o interesse pelo mito
retorna. Visto isso, temos o retrato do Drácula no filme Van Helsing (SOMMERS,
2004). Nesse o vampiro não é bonzinho, e é obvio, pois, o vilão é o próprio Drácula.
Podendo então ter variações desse tipo, vemos que os enunciados estão em todos os
momentos dialogando, com tudo que está no social. Essa enunciação pode ser vista na
obra do Todorov:

A evolução segue aqui um ritmo muito diferente: toda obra


modifica o conjunto das possibilidades; cada novo exemplo
modifica à espécie. Poderia dizer-se que estamos frente a uma
língua na qual tudo o que é enunciado torna-se àgramatical no
momento de sua enunciação. (TODOROV, 1981, p. 6)

Algo interessante, encontramos também, na obra de determinado mito que trata de


outro mito. Por exemplo, num livro ou num filme de vampiros, lobisomens serão
sempre vilões. Salvo Van Helsing (SOMMERS, 2004), como já dito, por causa do
Drácula. Em obras como Harry Potter (ROWLING, 1997), todos os sete livros,
concentram a maioria dos seres fantásticos, no nosso tempo. Na obra Harry Potter
(ROWLING, 1997), tem ainda a questão, dos lobisomens como seres superiores,
enquanto, os vampiros existem como sendo seres pequenos e sem importância.
Temos a partir disso, as relações entre os mitos. E as variações que essas relações
trazem. Nos diários do Vampiro (SMITH, 1991) também existe uma ligação dialógica,
entre os mitos, que é bem interessante. Nessa obra não serão vampiros, nem lobisomens,
mas, sim vampiros e bruxos. E como esses convivem entre si, não da pra saber se são
amigos ou inimigos, se ajudam em determinados casos, mas conservam uma certa
insegurança uns com os outros.
E mesmo em obras como Os vampiros sulinos (HARRIS, 2008), ou se preferirmos o
mesmo livro revitalizado num seriado, True Blood (BALL, 2008). Ainda sendo a obra
vampirica de nossa época com cenas de maior impacto e violência, ainda, conserva a
mudança na caracterização do vampiro. Essa obra também é interessante por que mostra
alguns mitos gregos. E claro sem esquecer a forma intrigante, das construções feitas
pela autora das personagens.
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Certas ligações são necessárias para entendermos o movimento circular que os mitos
conservam. O mito decorrente é sem dúvida, na literatura fantástica e no cinema, o
vampiro. Isso já aconteceu em outras épocas, agora o fenômeno se repete. Assim
sabemos que num outro momento esses mitos estarão escondidos, até que tornem a
surgir novamente em outras circunstancias, com outras ideologias, com outras
caracterizações, e por sua vez, com outros discursos e construindo novos diálogos.
Enquanto os autores explorarem esses mitos, cabe ao leitor definir a hora que o discurso
precisa mudar, no nosso caso, na literatura fantástica.
Portanto, todas as relações entre eu e o outro que encontramos na literatura fantástica
nos dias de hoje, provêem dos mitos decorrentes, adequados para nossa época. O que
faz com que haja diferenciações entre um mito, e os outros que constam no social. Esse
movimentar entre sujeito, arte e mito é a expressão máxima de um vir a ser. Cabe ao
sujeito e leitor, decidir qual caminho escolher, para compreensão e aceitação dessas
obras, que já constam num repertorio social, como representação dos enunciados da
nossa época.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4.ed. Martins Fontes. São Paulo.
2003. Trad. de Paulo Bezerra.
_____.Estrutura do enunciado. 1930. [Trad. Ana Vaz], Para fins didáticos.
_____.Questões de Literatura e de Estética: a Teoria do Romance. [Trad. Aurora
Bernadini et al]. São Paulo: Hucitec, 1990.
STAM, Robert, Bakhtin, Da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.
TODOROV,Tzevtan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Pespectiva,2007.
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AS REMINISCÊNCIAS DO PASSADO NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO NA


PROSA REGIONALISTA

Afrânio Gurgel de Lucena


(Universidade do Estado do Rio Grande do Norte)

As marcas da introspecção estão presentes na literatura regionalista de 1930


porque seus enredos vão além da representação do social como formadora das
personagens, ela mostra que as reminiscências do passado moldam a personalidade do
sujeito, este agirá como agente transformador do seu mundo ou será moldado quando
tentar transformar o meio que lhe é próprio. Dessa forma ele poderá dar consistência ao
espaço que o molda como espelho refrator do seu próprio “eu”, ou seu reflexo,
aparentemente de decadência, condicionará a construção do outro cheio de problemas;
pois “O herói problemático seria um louco, ou um criminoso, cuja busca inautêntica de
valores autênticos, num mundo conformista e convencional, constitui o núcleo do
gênero literário romanesco.” (SAMUEL, p. 109, 2000). A narrativa social é produzida
sob vários argumentos como o engajamento, a verossimilhança e a introspecção, que
levam a degradação ao imaginário produzido. Dessa forma percebemos que

[...] O romance é a criação imaginária de um universo regido pela


degradação universal. Mas a superação deste estado de coisa também é
degradada, abstrata, conceitual, não é vivida como realidade concreta,
porque parte de uma perspectiva que só levaria ao erro: em vez de
encaminhar-se para uma desintegração do existente (a burguesia), parte
para uma correção ou lastimação do que existe (SAMUEL, p. 109,
2000).

Em Angústia (1936). Essas prerrogativas podem muito bem sintetizar a relação


autor-vida-autor-personagem-outro, pois Graciliano Ramos foi um cidadão de
existência complexa sob as marcas de um contra ponto: passado de força / presente de
fragilidade. O livro Angústia foi construído, como relata em Memórias do Cárcere, em
momentos pessoais conturbados. Vejamos:
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Tinha agora uns projetos literários, indecisos, Certamente não se


realizariam, mas anulavam desavenças conjugais que se vinha
arruinando sem causa. A lembrança dessas querelas, somada aos
telefonemas e à demissão, azedou-me a viagem a Pajuçara.
Indispensável refugiar-me no romance concluído, imaginá-lo na
livraria, despertando algum interesse, possibilitando ainda uma vez
mudança de profissão (RAMOS, 2004, vol. l, p. 40).

Descontente com a vida em Alagoas, o escrito teve necessidade de refugiar-se


além dos acontecimentos, pois segundo ele não podia “[...] identificar inimigos, dirigir
ódio a alguém. O ódio se dispensava, diluía-se, era uma indeterminada repugnância
morna, [...]” (RAMOS, 2004. vol. I, p. 41). Um sentimento vil que se dispersava por
todos os lados, porém as capacidades de conter instintos negativos de Ramos iam além,
muitas além das forças devastadoras que as coisas negativas costumam ter, ele queria
um refúgio solitário com o seu novo livro, fazer reforços e diluir excessos. Pensando
assim, diz:

Certas passagens desse livro não me descontentavam, mas era preciso


refazê-lo, suprimir repetições inúteis, eliminar pelo menos um terço
dele. Necessário meter-me no interior, passar meses trancado,
riscando linhas, condensando observações espalhadas (RAMOS,
2004, vol. I, p. 41).

A revisão era uma prática de Graciliano, seus textos eram despidos de termos
complexos, em Angústia não seria diferente, principalmente por ter sido reescrito em
diversos momentos. Quando parava de escrever, lá vinham os estímulos do amigo para
que continuasse, pois se tratava de algo interessante. A revisão aconteceu na solidão de
uma pequena casa, como ele descreveu:

Na casinha de Pajuçara fiquei até a madrugada consertando as últimas


páginas do romance. Os consertos não me satisfaziam: indispensável
recopiar tudo, suprimir as repetições excessivas. Alguns capítulos não
me pareciam muito ruins e isso fazia que os defeitos medonhos
avultassem.” ( RAMOS, 2004, vol. l, p. 42).
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Podemos observar uma citação anterior que diz: “suprimir repetições inúteis”
(RAMOS, 2004, vol. 1, p. 41). Nada mais comum para um escritor que trabalha para
“limpar” seu texto, porém, ao submetermos na empreitada de leitura e releitura de
Angústia, evidenciamos que se houve condensamento das palavras e termos, algo
passou despercebido ou foi deixado por mera intenção pelo autor, pois é objeto deste
estudo o recorrente o uso de termos ligados aos olhos. Dessa forma observamos o uso
constante do substantivo olho (plural e singular) e do verbo olhar e suas diversas
conjugações, são repetições que impressionam, principalmente, vindas de uma obra em
que seu escritor é dado a contenções de palavras para objetivar seus textos e deixarem
afastados alguns preceitos mecânicos modernistas.
A pluralidade do olhar na obra mostra a funcionalidade e o sentido da
observação como recursos para rememorar fatos – o olhar substantivo, o olho adjetivo,
o verbo olhar e suas recorrências no infinitivo, no gerúndio e no passado formam uma
cadeia de registros que constroem um complexo de memória. O maior suporte para
memória de imagens são os olhos, lentes silenciosas que captam e registram tudo
(consciente e inconsciente) e depois remetem em fleches filtrados para que o sujeito
reviva num determinado momento da história algo de bom ou ruim. O reviver funciona
como uma fuga presente, como acontece com o protagonista da obra, Luís da Silva –
um sujeito condenado ao isolamento e a solidão; a estar entre o bem e o mal,
rememorando e vivendo num monólogo interior que recria fatos; e, cria situação de
convivência fugindo de si e dos outros.
O uso excessivo do substantivo olho e sua derivação verbal, mais conjugações
de tempo, serão apresentados em gráficos para que possamos ter a dimensão de seu uso
ao longo dos quarenta capítulos que formam romance.
Vejamos: no Primeiro quadro gráfico, os substantivos.

OLHINHOS; 13

1 OLHOS; 150
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No Segundo, o verbo olhar com diversas conjugações.

OLHAVA-A; 1
OLHAM; 2
OLHEI-AS; 1
OLHEI-ME; 1
OLHEI-O; 1
OLHAVAM-LHE; 7
OLHAVA-ME; 1
OLHOU; 4
OLHAVA-O; 1
OLHOU-ME; 2
OLHÁ-LA; 1
OLHAVAM; 2
1
OLHE; 2
OLHO; 1
OLHARES; 1
OLHAM-ME; 1
OLHASSE; 1
OLHA-ME; 1
OLHARIA; 3
OLHEI; 15
OLHARAM; 1
OLHAR; 13
OLHAVA; 27
OLHANDO; 32

0 5 10 15 20 25 30 35

Esse panorama semiótico de recorrência grafado poderia ser sequenciado com


os outras representação secundários, mas não acrescentamos mais números que viessem
provar essa façanha (ou falha) estrutura do autor. Por exemplo: o termo “olheira” –
manchas azuladas - aparece uma vez; a expressão verbal “espiou-me” uma vez; a
palavra “olhos” acompanhada de adjetivo está no texto sem repetição, vinte e nove
vezes, com repetição do adjetivo passa para cinquenta e três; os verbos no passado e no
gerúndio são mais constantes em repetição no enredo, o gerúndio é o verbo que mantém
as coisas em constante movimento, algo em comum com a própria narrativa (com
expressões constantemente retomadas; circulando sem fim); alguns têm um papel
importantíssimo pela função de recorrer ao passado, buscar fatos, rememorar
sentimentos marcantes que relacionam espaço, tempo, acontecimentos e personagem.
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Esses tipos de olhares são capazes de registrar imagens e recuperá-las instintivamente


ou de maneira intencional quando se encontram impregnadas na memória, isso tudo
condiciona a formação do discurso narrativo. Assim, todo

O processo literário, convertido em discurso narrativo como prática


semiótica, estrutura o Espaço, o Personagem e o Acontecimento,
criando uma realidade imagonária. A criação da realidade ficcional se
faz por uma operação imitativa da dinâmica que, estruturando o mundo,
o homem e as ocorrências, cria a realidade objetiva. [...] Os discurso
ficcionais, articulados pelo processo literário, realizam a relação do
homem com o mundo no nível do imaginário (SAMUEL, p. 111,
2000).

A característica enigmática do “olhar” na obra é de suma importância para


desvendarmos as imagens das mazelas da submissão social que, por sua vez leva a
humilhação que deixa o sujeito reduzido entre os seus pares. O olhar para cima, por
sobre os outros, para o chão, dentre outros, serão pontos fundamentais para entendermos
a concepção do social na narrativa. Como as obras de Graciliano Ramos têm em suas
personagens o fluxo de sua vivência, observamos em Brayner (1977) a capacidade de
remeter ao longo do texto essa visão do social. Vejamos:

Seu olhar, assim, se dirige para mais longe do que o espetáculo


imediato dos homens formigando e defendendo as suas
reivindicações de classe. [...] Como um moralista, o Sr. Graciliano
Ramos sabe que o mal reside principalmente no homem, e que
somente será possível salvar a sociedade no dia em que pudermos
reformar o homem (BRAYNER,1977, p. 40,).

A sociedade reforma o homem e o remete ao bem e ao mal, com isso o autor


pôde olhar com particularidade o mundo que o moldava, as reminiscências da infância,
os tipos de sujeitos, os espaços coletivos, a solidão, entre outros que compunham o seu
meio social e sua personalidade afetada. São cadeias de situações vividas e observadas
que o prendeu e o fez criar suas personagens que apresentam rastros da vida do seu
criador. A exceção ao livro Infância que apresenta um enredo centrado no protagonista-
autor, mas a maestria dessas memórias se dá pelo fato dele ter que usar suas habilidades
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romanescas para lapidar sua autobiografia e mostrar amadurecidamente a vida pela


ficção. Em Wellek e Warner (2003) observamos que a literatura e a sociedade se
fundem representativamente em imitação, quando dizem que:

[...], além disso, a literatura “representa” a “vida”, e a vida, em grande


medida, é uma realidade social, embora o mundo natural e o mundo
interior ou subjetivo do indivíduo também tenham sido objetos de
“imitação literária.” (WELLER e WARREN, 2003, p. 113).

Se a vida pela literatura é representada “em grande medida” é porque o tempo e


o espaço dessa representatividade se mostram “grandes”, uma longevidade que parte da
ingênua infância, segue pelo jovem desestruturado por traumas de percas e chega ao
adulto frustrado por acumular fracassos. As personagens de Ramos podem ser
analisadas seguindo uma óptica de que há vestígios da vida do autor na sua criação, pois
são lembranças, recalques, frustrações, medos, culpas e solidão, que são observados nos
seus enredos. Essa ideia nos fez analisar a capacidade do “olhar” existente como uma
lente de captação e receptação que leva a refração, ou seja, capacidade de colher a
imagem, ir buscá-la na memória e nesses intervalos ter a habilidade de se desviar de um
pensamento intencionalmente ou não. Nove anos separou a criação de Angústia a de
Infância, essa 1945, aquela em 1936; mas, aprofundando o olhar entre as duas,
observamos elementos literários do primeiro que foram comprovados como memória no
segundo. Desta forma, é evidente em Angústia, mesmo aparentando ser um romance
psicológico, uma representação social da vida da personagem que teve um passado
pomposo e um presente miserável. Luís da Silva é a ponta do processo de decadência
com suas lembranças aleatórias, jeito, mal estar, rotina e de repente entre um problema
social ou biológico, retoma as memórias da infância na fazenda. Ramos (1975) escreve
sobre isso:

Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de


Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na
fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva,
ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do
copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno,
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sonhando com a vitória do Partido que Padre Inácio chefiava.


(RAMOS, 1975, p. 11).

Isso comprova uma das diversas retomadas de memória do protagonista,


aparece um fator vital da representação da decadência das hegemonias dos senhores de
engenho, a redução dos nomes das personagens. Esses fazendeiros tinham nomes
acompanhados de uma grande quantidade de sobrenomes, uma forma manter as
representações familiares das burguesias canavieiras ou de outro tipo de poder. A
redução desses nomes forma representação da decadente redução social dos valores
prósperos que passavam os senhores de engenho e, consequentemente, toda uma região:
vejamos os nomes abaixo: Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva (avô); Camilo
Pereira da Silva (pai); e Luís da Silva (filho).
Na última citação do livro Angústia, vemos que a hegemonia relembrada pelo
protagonista do seu avô fazendeiro aparece nas memórias do livro Infância, em diversas
páginas e em um capítulo exclusivo. Portanto a figura do avô fazendeiro (o materno),
“alto, magro, de cabelos e barba como pasta de algodão, [...] o olho azul perdido na
capoeira familiar” (RAMOS, 1975, p.23), é inspiração do homem Graciliano para criar
um personagem com efeito de sentido e representação real de uma época. Além disso, a
expressão “olho azul perdido na capoeira familiar” representa um distanciamento
genealógico de uma possível descendência européia do velho Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva, porém a “capoeira familiar” se torna mais vasta e distante com o
acréscimo do sobrenome “Silva”, pois esse deixa o velho fazendeiro como um homem
próprio da terra, mas com vestígios familiares importantes pelo o azul dos olhos. Essa
proposta do autor poder ter sido uma tentativa representar certa realidade nacional
transformação etnológica, já que o modernismo centrado no Romance de 30 se
apresentava como uma proposta neo-realista de produzir uma literatura voltada para as
particularidades do homem e da sociedade ao qual estava fincado, deste modo, nada
mais condizente do que a extensão natural própria e local que o sobrenome “Silva”
proporciona ao sujeito ficcional dessa literatura. Coutinho (1988) acrescenta que um
olhar local fez surgir efeitos na prosa regionalista que transpuseram limites de
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significados e estéticas, pois

[...] o que ressalta é o quadro, o ambiente, a terra ou a cidade, os


dois elementos em franca hostilidade ao homem, devorado
pelos problemas que o meio lhe opõe. Foi graças às técnicas do
Realismo que a ficção brasileira logrou a vitória nessa
incorporação do regional, imprimindo-lhe um valor e um
significado universal (COUTINHO, 1988, p. 300).

Ao refletirmos sobre o Romance de 30, ficamos mais convencidos que essa


produção é resultado de um amadurecimento intelectual nacional que soube pegar o
cerne embrutecido de uma região e de um povo, e transformá-lo em ficção, essa, além
de tudo, se sobrepõe como documental de uma sociedade narrada a partir do seu
interior, apresentada por uma escrita de denúncia e testemunho social.

Além desses pontos incomuns de lembranças, há a questão do pensamento num


determinado momento, que de súbito é tomado por outras lembranças que deixam a
ideia confusa e sem nexo. Há um trecho em Angústia que o narrador deixa evidente esse
problema:

Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro,


mas os dois vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo, tudo
empastado, confuso. Em seguida os dois acontecimentos se distanciam
e entre eles nascem outros acontecimentos que vão crescendo até me
darem sofrível noção da realidade (RAMOS, 1975, p. 15).

Essa fragmentação do sujeito quando rememora fatos aparece como uma


sequência de atos que o afirmam no seu processo de construção social, para Candido
(2007)

Cada um desses fragmentos, mesmo considerado um todo, uma unidade


total, não é uno, nem contínuo. Ele permite um conhecimento mais ou
menos adequado ao estabelecimento da nossa conduta, com base num
juízo sobre o outro ser; permite, mesmo, uma noção conjunta e coerente
deste ser; mas essa noção é oscilante, aproximativa, descontínua. Os
seres são, por sua natureza, misteriosos, inesperados. Daí a psicologia
moderna ter ampliado e investigado sistematicamente as noções de
subconsciente e inconsciente, que explicariam o que há de insólito nas
pessoas que reputamos conhecer, e no entanto nos surpreendem, como
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se uma outra pessoa entrasse nelas, invadindo inesperadamente a sua


área de essência e de existência (CANDIDO, 2007, p. 56)

Como reforço a condição introspectiva da obra, observamos que ela não


obedeçe a uma ordem cronológica. Esse embaraço literário acontece entre a criatura e o
criador como uma tentativa de narrar fatos “reais”, porém sem concentração no foco
narrado, sendo sempre repreendido por flashback. Essas retomadas geram truncamentos
pelas excessivas repetições de palavras. O enredo é repleto de micro-repetições, com um
condicionamento para formar uma macro-repetição, pois o final da narrativa só pode ser
entendido ao lermos o primeiro capítulo, assim, a sensação de queremos continuar essa
intencionada artimanha literária - enredo sem fim, viramos compulsivamente leitores-
gerúndio, a exemplo do verbo “olhando” que aparece trinta e duas vezes no texto.
Aparece surtos de autonomia e superioridade que acontecem em momentos em
que o protagonista olha para outro como figura inferior na representação social, isso,
numa atitude de reflexo de um passado de poder. Numa atitude de orgulho, escolheu
para lembrar com ultraje de superioridade a figura marginalizada do cidadão que limpa
sapatos e diz “um engraxate ambulante olhou-me os pés [...]" (RAMOS, 1975, p. 120).
As recaídas de poder são relembranças em pequenos flashes, mas em outros momentos,
diante das circunstâncias e da superioridade de Julião Tavares (seu opositor ou o seu
“eu” idealizado), o que pudemos detectar é um Luís da Silva submisso, olhando sempre
para baixo. Vejamos algumas passagens: - página 19: “Não quero vê-lo, baixo os olhos
para não vê-lo.” p.19; “Debruçava-me, olhava os paralelepípedos, a sarjeta,...” p.41;
“olhei os pés dele, e meu ódio aumentou.” p.73; “Tornei a baixar a cabeça, desanimado,
continuei a olhar os pés dos raros transeuntes que passavam na rua.” p.74
Dessa forma, o confronto de superioridade versus inferioridade entre os dois
são evidentes em várias passagens do texto.
Há também a frustração por não ter como dominar Marina, como seu avô tinha
Sinhá Germana. Marina não cedeu quando estava no fogo da paixão depois com Julião a
dificuldade aumentou. Mas com Sinhá Germana sob os mandos do seu avô era
diferente. Como poderemos ler:
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Sinhá Germana nunca havia trastejado, ali no duro, as costas calejando


a esfregar-se no couro cru do leito de Trajano. – “Sinhá Germana!” E
Sinhá Germana, doente ou com saúde, quisesse ou não quisesse, lá
estava pronta, livre de desejos, tranquila, para o rápido amor dos
brutos (RAMOS, 1975, p. 97).

Se não era Sinhá Germana que o Velho Trajano possuía como dono absoluto,
eram as negras da fazenda, ele não era senhor de uma escrava só que se deitava com ele
sob as catingueiras. Todas as façanhas de velho avô davam a Luís a sensação de ser vil e
sem coragem. Essa coragem que ele pretendia ter para dar fim à vida do seu oponente,
que estava cada vez mais próximo de Marina, dando-lhe prazer. Em consequência de
um aborto, Marina é destratada por Luís, seu ódio por Julião aumenta. A morte do seu
opressor era inevitável, mas como fazer sem deixar suspeita. Veio o planejamento, na
mente a recordação de instrumentos que o maltratava na infância: a corda, o cinturão.
Esses elementos que serviram de inspiração macabra para efetivar o fim do seu rival.
Outra retomada no passado, a lembrança do poder do avô, que tinha amigo cangaceiro,
mandava matar e tudo ficava bem; o velho era forte e tinha sua própria lei, o poder da
riqueza. Parece esta em devaneio quando relata que “Julião Tavares flutuava para a
cidade, no ar denso e leitoso.” (RAMOS, 1975, p.178). Delírio! Era preciso distinguir
esse pensamento. Como? Cobras, cascavéis... Chegou a uma definição do instrumento
que usaria para o crime, uma corda. A corda que recebera de presente. A luta foi
intensa, muita força, a corda no pescoço, Julião estava morto. Essa ideia lhe causou
estarrecimento, pois “Não tinha pensado nisso” (RAMOS, 1975, p.186), ou seja, a
morte real de um indivíduo, de uma ideia, de uma ilusão (Será que a luta representa a
razão se sobrepondo a força da rudeza do sertão? Talvez a sensibilidade poética tenha
essa resposta...). Dessa forma, percebemos que as evoluções de Luis transcorrem a
partir das reminiscências que permeiam sua mente, são lembranças que o deixo
condicionado a não agir ou reagir para viver o seu presente.
Dessa forma, pudemos observar a recorrência do “olhar” na obra, algo
incomum para o autor por se tratar de termos que se repetem dinamizando o texto. Essa
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observação oportunizou ver no “olho” uma lente silenciosa engmática que capta
(consciente e inconsciente) a realidade que circunda os sujeitos; vimos à capacidade do
“olhar” se voltar para o interior da memória e capturar elementos que facilitem fugir de
si e dos outros em flashback. A reincidência do olhar demonstra uma denúncia social,
uma camuflagem do indivíduo perante as relações de grupos. Psicologicamente, Luis é
uma personagem marcada pelo processo redutor da sociedade, onde reminiscências de
um passado de poder e de um presente de declínio marcam sua convivência com o outro
e consigo mesmo.

REFERÊNCIAS

BRAYNER, Sônia. Graciliano Ramos. Direção: Afrânio Coutinho. Brasília: Civilização


Brasileira. 1977.
CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In. A personagem de ficção. 11 ed.
São Paulo: Perspectica. 2007.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 14 ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil. 1988.
RAMOS, Graciliano. Angústia. 15 ed. São Paulo: Martins. 1975.
_______. Infância. 10 ed. São Paulo: Martins. 1975.
_______. Memórias do Cárcere. Vol. I. 40 ed. Rio de Janeiro: Record. 2004.
SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de teoria literária. 13 ed. Petrópolis: Vozes, 2000
WELLEK, René. WARREN, Austin. Teoria da Literatura e Metodologia dos Estudos
Literários. Trad.: BORGES, Luís Carlos. São Paulo: Martins Fontes. 2003.
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FORMA E MEMÓRIA: O PROJETO ESTÉTICO DE OSWALD DE


ANDRADE EM SUA AUTOBIOGRAFIA

Alex Alves Fogal (PG/ UFMG)

Introdução

A importância de Oswald de Andrade para a literatura brasileira é algo muito


fácil de ser constatado. Para isso, basta observar a produção romanesca, poética e
ensaística do autor e os estudos críticos realizados sobre elas. Porém, um ponto
pouco discutido em relação à totalidade da obra do autor é a escrita de sua
autobiografia, intitulada Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe, obra
que teve sua primeira edição em 1954.
Apesar do considerável volume de trabalhos que abordaram a obra de
Oswald, poucos se dedicaram exclusivamente às suas memórias, talvez pelo fato de
existir uma tendência muito forte em se considerar as produções autobiográficas
simplesmente como documentos que possuem importância apenas no que tange a
biografia do autor.
No presente artigo, parto de um pressuposto um pouco diferente a respeito
dessa obra. Pretendo demonstrar aqui, como as memórias do autor são constituídas a
partir de um projeto poético identificável na totalidade de sua obra, ou seja, como a
sua autobiografia segue dentro de seu projeto estético, mantendo o mesmo estatuto
poetológico que o escritor utiliza em outras criações. A partir disso, torna-se
importante tentar abordar Um homem sem profissão como obra que vai além de um
simples auxílio para a compreensão da vida e da obra de Oswald, mas sim como
mais uma construção literária onde o autor emprega seu estilo. Ou seja, não pretendo
estabelecer uma hierarquia entre as produções do escritor abordando sua
autobiografia apenas como um tipo de chave para que seus romances e poesias sejam
compreendidos de modo mais eficiente, mas sim entendê-la como mais um objeto
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artístico no qual os elementos memorialísticos aparecem estilizados, dramatizados


ficcionalmente pelo narrador.
Para atingir tal intuito, torna-se indispensável lidar com suas produções
romanescas e também parte de sua poesia, para que o paralelo seja estabelecido de
maneira mais pertinente e fundamentada. Assim sendo, serão de grande valia
algumas considerações sobre os dois romances mais conhecidos do autor, que
formam o chamado par Miramar-Serafim, respectivamente Memórias sentimentais
de João Miramar (publicado em 1924) e Serafim Ponte Grande (publicado em
1933). Será relevante também a observação de alguns aspectos de sua poética na
obra Pau-Brasil, lançada em 1925.
Será buscada, portanto, uma perspectiva de análise que objetivará apreender a
autobiografia de Oswald como obra que utiliza a memória como elemento
estruturado pelo movimento da ficção, o que cria a necessidade de entender como se
dá a transposição do plano real para o ficcional na estética oswaldiana, ou seja, é
importante observar como os fatos que dão origem à narrativa são deformados pela
performance mimética do narrador. O estudo de tal técnica narrativa permitirá
entender as memórias dentro do plano da invenção estética a partir de uma noção
dialética da mimesis (WAIZBORT, 2007, p. 23-25).

2. Relação entre memória e poética

A estrutura formal observada na totalidade da obra de Oswald já foi relacionada


anteriormente com a estética observável em Um homem sem profissão, no entanto,
nenhum dos estudos que fizeram isso se preocuparam em investigar essa relação um
pouco mais a fundo.
No prefácio das memórias, Antonio Candido afirma que Oswald “fez da vida
romance e poesia, e fez do romance e da poesia um apêndice da vida”, o que
demonstra a forte relação existente entre o elemento memorialístico e a construção
estética do autor (CANDIDO, 2002, p.12). Nota-se que no livro em questão, o autor
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não se preocupa em estabelecer um traçado totalmente coerente de seu próprio eu, o


que exigiria uma forte confluência entre vivido e acontecido. Nem ao menos as
impressões do autor sobre a vida ou as pessoas que o cercam são observadas num
sistema fechado e estabelecido. Na obra, tudo se encontra mesclado, não há
independência entre o pólo do eu e o pólo do mundo. O próprio escritor não vê sua
vida separada da obra, pois exibe plena consciência do processo de estilização que
transpõe os fatos vividos para o plano literário. Um exemplo disso é a afirmação do
autor no segundo prefácio que escreveu para Serafim Ponte Grande sobre o conteúdo
do romance: “Epitáfio do que fui” (ANDRADE, 1996, p.39.)

3. A forma sempre presente

A forma poética desenvolvida por Oswald de Andrade tem como principais


traços o caráter de inovação e a ânsia de ruptura, o que já foi suficientemente
apontado por muitos estudiosos. Assim sendo, torna-se importante entender como tal
método de composição pode ser desenvolvido pelo autor.
Pensando nisso, é relevante lembrar do contato de Oswald com as
vanguardas européias, um tema que aparece em quase todos os estudos críticos sobre
o escritor, sendo realmente um ponto visível em suas obras. O crítico Haroldo de
Campos chega a dizer que a influência de tal conceito artístico na obra do autor é tão
grande, que vai além da assimilação da prática literária futurista, uma vez que ao
lermos os textos de Oswald, parece que observamos a “transposição imediata de suas
descobertas pictóricas nas exposições de Paris” (CAMPOS, 1999, p.31-32). O estilo
chega a ser denominado pelo crítico como “cubo-futurismo-plástico-estilístico”
(CAMPOS, 1999, p.32).
Esse método de narrativa altamente relacionado às vanguardas européias é uma
constante na estrutura dos romances de Oswald. Vide o seguinte trecho de Memórias
sentimentais de João Miramar:
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Um cão ladrou à porta barbuda em mangas de camisa e uma lanterna


bicor mostrou os iluminados na entrada da parede. O cachorro
deitado tinha duas caras com uma de esfinge e cabelos bebês. Mas a
calçada rodante de Pigalle levou-me sozinho por tapetes de luzes e de
vozes ao mata-bicho decotado de um dancing com grogs cetindas
pernas na mistura de corpos e de globos e de gaitas com tambores
(ANDRADE, 1999, p.60).

Na visão de Haroldo de Campos, esses são trechos nos quais as cláusulas se


encontram e se interceptam como planos, os atributos saltam do engaste e efetuam
um deslizamento de uma superfície semântica à outra (CAMPOS, 1999, p.32). É
interessante notar também o trabalho com as imagens se seccionam como se fossem
providas de arestas. No romance Serafim Ponte Grande também pode ser observada
uma construção narrativa parecida:

Mulheres fendidas colocam pandeiros nos corações dançarinos, com


cabelos de peopaias, sob as árvores degoladas do verão.
No espaço das mesas bem toalhadas, mulheres sincopam como
bandeiras, como dínamos nos braços esmaltados de São Guido
(ANDRADE, 1996, p.111).

Esse tipo de uso da linguagem também é muito comum na escrita da


autobiografia do modernista. Assim como se observa nas idéias contidas no
manifesto futurista do italiano Marinetti, o texto de Oswald faz uso de um
simultaneísmo que aponta como objetivo trabalhar com as palavras em liberdade.
Segue abaixo um exemplo desse traço constante da prosa oswaldiana:

Na Calábria, no fundo do grande mar triste e silencioso, o sol estava


envolvido de roxo como um Cristo de Semana Santa.
E dos desmaios violetas dispersos em redor, criou-se um momento
uma figura de mulher céu acima, alongou o braço fantástico, chamou.
Pensei em mamãe. (ANDRADE, 2002, p.112.)

Nesse trecho fica explícito o movimento agressivo e acelerado da narrativa,


além de uma ânsia de desconstrução da sintaxe. O próprio autor revela em suas
memórias: “mesmo as coisas mais espantosas nunca me espantaram. Encaixo tudo,
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somo, incorporo”. (ANDRADE, 2002, p.61.) Nessa passagem é como se o narrador


de si mesmo da autobiografia revelasse a sua própria poetologia, misturando a
maneira de enxergar a vida com o método de escrever as obras.
Nesses trechos é observável também a rica orquestração de imagens
empreendida pelo narrador, dispostas a partir de um movimento de desordem. Aliás,
esse trabalho com a composição imagética é outro ponto constante na estética
empregada pelo autor, uma vez que se observa em suas obras um método peculiar de
montagem. Apesar da aparente ordenação caótica, os fragmentos imagéticos das
obras podem ser agrupados em estruturas que se reúnem de acordo com uma
determinada lógica. Essa lógica, que é fundamentada a partir do plano visual, pode
ser definida como uma junção de imagens muitas vezes heterogêneas num todo
formado por movimentos de combinação ou justaposição, arranjados para ilustrar
uma associação de idéias (JACKSON, 1978, p.20).
O crítico Kenneth Jackson (1978) compara a composição fragmentária de
Oswald com um álbum de fotografias, que revelariam as experiências do narrador em
circunstâncias diversas, algo como uma prosa cinematográfica. Nesse sentido, quem
estabelece um interessante paralelo é Haroldo de Campos, que define o estilo de
narrar do autor a partir de um método eisensteiniano. A referência nesse caso é ao
cineasta russo Sergei Eisenstein, conhecido por ter aplicado um método de
montagem revolucionário no plano da estética, pois suas considerações não se
limitam ao cinema. Para Eisenstein, um realizador forma uma nova idéia a partir da
fusão ou colisão de planos até então vistos como independentes demonstrando um
ideal de estética muito próximo àquele que pode ser observado no autor de Um
homem sem profissão, uma vez que considera a idéia segundo a qual a arte é o
conflito entre a lógica da forma orgânica e a lógica da forma racional (EISENSTEIN,
2002). Podemos ver esse movimento na narrativa de Oswald quando o narrador de
suas obras não se preocupa em aparar as arestas que resultam de sua junção de
imagens vistas como incongruentes, mas que são associadas justamente para ressaltar
o conflito. Um exemplo de tal construção é o seguinte trecho das memórias:
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O transporte do corpo para a câmara funerária armada na sala.


Estamos morando numa casa grande de esquina da Rua Augusta.
Faço a barba à gilete, sem perceber bem o que se passa. Cornélio
Pires e outros amigos compareceram (ANDRADE, 2002, p.189).

Apesar dessa montagem baseada no conflito, há uma lógica que organiza a


escrita do autor, como foi dito anteriormente. Apesar do próprio autor afirmar que
“Este livro é uma matinada” (ANDRADE, 2002, p.33), a forma adotada não é
fundamentada pelo caos puro. Isso pode ser observado em Serafim Ponte Grande, no
qual a desconstrução do modelo habitual em capítulos é capaz de produzir um efeito
desagregador, sem que, no entanto, deixe de existir um tênue – mas efetivo – fio
condutor (CAMPOS, 1996, p.7). Tudo isso nos leva a reconhecer uma unidade
macrosintagmática da narrativa.
Novamente é válido lembrar das técnicas de montagem de Eisenstein, que nos
mostra que numa obra de arte construída a partir do método de montagem intelectual,
como a de Oswald, os elementos que sustentam a obra como um todo, perpassam
todas as suas partes constituintes. A partir da perspectiva de Engels, o cineasta russo
demonstra como um mesmo critério formal é capaz de impregnar cada área que se
coloca como constituinte da obra. As leis artificiais ou estéticas passam a se
assemelharem às leis naturais (EISENSTEIN, 2002, p.147-149).
Tais características são comuns não apenas ao plano da prosa de Oswald, mas
podem ser observadas também em sua produção poética. Vera Lúcia de Oliveira
afirma que as imagens nas obras do escritor nunca são estáticas, mas sim
apresentadas de maneira dinâmica, como no cinema:

O que imediatamente ressalta aos olhos, em Pau-Brasil, é o estilo


telegráfico, epigramático, das breves e incisivas poesias, em que as
imagens são montadas por um processo de justaposição e a pontuação
é totalmente abolida. Nunca se vira na poesia brasileira uma tal
síntese de concisão (OLIVEIRA, 2002, p.109).
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Observa-se, portanto, que o autor realmente possuía um projeto estético


abrangente, uma vez que não fica apenas no plano da sua produção em prosa. Essa
estética do fragmentário, (mas não puramente caótico) empregada pelo escritor é
capaz de realizar uma representação da realidade que a coloca como mutável e
assimétrica. Tendo a metonímia como tropo privilegiado, tal construção formal
favorece a percepção de seres e coisas, não em sua plenitude e totalidade, mas a
partir de segmentos e de pequenas partes (OLIVEIRA, 2002, p.111). Na
autobiografia, nota-se o mesmo método de composição nas descrições realizadas
pelo narrador:

O pano se levantou e eu vi a Grécia, não a Grécia livresca dos sonetões de Bilac


que toda uma subliteratura ocidental vazava para a colônia inerme. Eu vi de fato
a Grécia. E a Grécia era uma criança seminua que colhia pedrinhas nos atalho,
conchas nas praias e com elas dançava (ANDRADE, 2002, p.150.)

Nesse trecho da obra, observa-se como a descrição da Grécia inteira pode ser
resumida em apenas uma imagem de criança seminua, instaurando assim, uma
linguagem metonímica também na produção em prosa. A partir disso, é notável a
habilidade com que o autor plasma uma fusão entre prosa e poesia. Pode-se dizer que
a técnica de escrita de Oswald representa de maneira efetiva alguns pressupostos da
lírica moderna, como por exemplo, a utilização dessa desarmonia dos fragmentos
(apesar de ser apenas aparente) para aliviar-nos do contato com uma beleza
tradicionalmente concebida e nos afastar da monotonia. Nota-se a preponderância da
vontade da forma sobre a vontade da simples expressão (FRIEDRICH, 1978, p.33-
40).
Ainda no que diz respeito às técnicas de construção da forma textual nas
memórias, pode-se notar um outro elemento que configura a poetologia de Oswald
de Andrade no todo de sua obra: a mescla ou a justaposição de gêneros. O crítico
Kenneth Jackson chama tal tendência de paródias estilísticas, como quando aponta
tal tipo de técnica no romance Serafim Ponte Grande: “Os quarenta e seis fragmentos
em que se contam aventuras de Serafim na Europa são únicos por sua justaposição de
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cartas, diálogos, poesia e teatro, numa colagem crítica” (JACKSON, 1978, p.71.). O
texto oswaldiano é entendido como uma construção capaz de incorporar em si
materiais literários bastante heterogêneos, como, por exemplo, colocar dentro de um
mesmo espaço textual paródias de convenções e normas, fusão de poesia e prosa,
termos chulos, imagens grotescas, o erro gramatical ao lado do pedantismo letrado,
discursos, cartas e outros mais (FARINACCIO, 2001, p.195-196.). Muitas vezes
associada ao estilo de James Joyce (claro, sempre com as devidas ressalvas), essa
trama babélica do texto pode ser observada de modo bem explícito também no
romance Memórias sentimentais de João Miramar. Um exemplo pode ser tomado
quando o narrador anuncia o casamento da sogra do protagonista por meio da
inserção direta de uma paródia estilística dos convites para a cerimônia: “O conde
José Chelinini Della Robia Grecca e D. Gabriela Miguela da Cunha participam a V.
Exa. O seu casamento. Nice” (ANDRADE, 1999, p.76.).
Esse hibridismo estilístico observável nos romances pode ser encontrado
também na poesia do autor, que através de efeitos parodísticos e satíricos, realiza o
pastiche de materiais retirados dos mais diferentes setores, como textos jornalísticos,
fragmentos de cartas, anúncios publicitários e vários outros (OLIVEIRA, 2002,
p.113.). No poema a seguir, contido na obra Pau-Brasil, nota-se uma paródia em
relação à linguagem das cartas do período do descobrimento do Brasil:

As fontes que ha na terra sam infinitas


Cujas águas fazem crescer a muytos e muy grandes rios
Que por esta costa
Assi da banda do Norte como do Oriente
Entram no mar oceano (ANDRADE, 2003, p.110).

Da mesma forma observada nos romances e na poesia, o narrador de Um homem


sem profissão coloca sem aviso prévio, o bilhete de um amigo sobre sua amante bem
no meio de uma narrativa que falava de um passeio com seu pai, sua mulher e seu
filho: “Falei com Cyclone pelo telefone. Está impossível” (ANDRADE, 2002,
p.178.)
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Outro ponto-comum da forma poética de Oswald é a satirização da sociedade


burguesa e das literatices de salão, típicas dessa classe. Tanto nos romances quanto
nas memórias, a sátira como elemento de desconstrução do ideal beletrista da
literatura sofre achaques. No romance Serafim Ponte Grande o narrador promove
sua sátira em relação ao padrão literário conservador da época através das ações e
das frases de um personagem chamado Pires de Melo. No trecho a seguir, nota-se
como o narrador ironiza verbalmente o comportamento do literato, que por sua vez,
demonstra uma postura bem dentro dos moldes dos escritores românticos de salão:

O Manso apresenta-me ao literato Pires de Melo. Vamos pela garoa


até um bar pitoresco do Anhangabaú. Aí, ele expôs-nos a sua vida
que é um verdadeiro chef- d’oeuvre. Precisava de uma mulher para
inspirá-lo. Achou-a. Mostrou- nos uma carta e uma fotografia. A
carta terminava assim: “Agora a nossa encantada aventura jaz
embelezada pela distância” (ANDRADE, 1996, p.65).

Vale ressaltar que tal personagem, além de exibir esse tipo de postura
melodramática, é o escritor de um romance chamado Recordações de um ósculo,
cujo título remete ao ideal estético combatido por Oswald.
Em Memórias Sentimentais de João Miramar, também podem ser encontrados
alguns exemplos de tal postura crítica em relação à literatura de salão. Os
personagens Machado Penumbra (que, aliás, é quem escreve o prefácio do livro em
estilo rebuscadíssimo) e Dr. Pilatos, são bons exemplos da postura do burguês
retórico, pedante e que acredita ser detentor do bom gosto em relação aos padrões
artísticos. Vide o trecho a seguir, no qual o narrador descreve uma cena
desempenhada por Dr. Pilatos:

O Dr, Pilatos com ohs e ahs emitira a Célia entre duas bananainhas
uma opinião a meu respeito.
- Seu marido, minha senhora, parece Telêmaco segundo o Fénelon na
tradução portuguesa em quem era de admirar tanta facúndia em tão
verdes anos.
Como lisonjeada matrimonialmente ela insistisse por outra bananinha
o sábio da Grécia entre um oh e um ah eruditou, ser todo homem
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depois dos quarenta anos responsável pela sua fisiologia.


(ANDRADE, 1999 p.68.)

Como foi dito um pouco acima, a estilização de tais tipos de discursos e


mentalidades é uma constante na forma literária adotada por Oswald em suas obras,
o que, evidentemente, também aparece na sua autobiografia, cuja forma se encontra
em consonância à dos romances e das poesias. No seguinte trecho das memórias,
nota-se a seguinte passagem, na qual o alvo é Olavo Bilac:

Este aparecera com versos frouxos e ardentes que a Corruxa


adolescente de Caxambu e com ela todas as Corruxas do Brasil
recitavam gemendo. Mas breve enveredou para o Parnasianismo que
teve seu recorde de consagração na leitura da “Tarde” pelo próprio
Bilac aqui em São Paulo (ANDRADE, 2002, p.125.).

Após tais apontamentos, é possível dizer que a identificação de um mesmo


projeto formal na obra de Oswald é algo que possa ser elucidado após a análise de
alguns elementos em comum que perpassam os diferentes gêneros aos quais o autor
se lançou. A análise de tal questão ainda poderia ser mais explorada, no entanto, é
importante passar também por outros pontos.

4. A memória como ficção

Nessa parte do trabalho será analisada uma questão que está diretamente ligada ao
que foi discutido no tópico anterior, buscando uma linha de interpretação que
possibilite entender de que maneira as memórias, que seriam factuais, são estilizadas
no plano literário. Ou seja, como ocorre a transposição daquilo que, inicialmente,
está situado no plano concreto para o plano literário, estético.
Para compreendermos bem o que aqui se argumenta, basta observar que, ao
entendermos a produção literária de Oswald como uma estrutura organizada segundo
um mesmo método de composição, enquadramos também sua autobiografia dentro
de sua produção estética e artística, deixando um pouco de lado a perspectiva que
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considera a obra memorialística simplesmente como documento ou registro. Assim


sendo, nada mais lógico do que tentar entender seu mecanismo de funcionamento, ou
seja, como se dá a estilização em sua composição formal. Mais uma vez será possível
identificar uma certa uniformidade do desempenho do narrador no que tange o
conjunto da obra.
O modo mais pertinente de introduzir tal questão é através de alguns
apontamentos de Antonio Candido: “Nas presentes memórias de Oswald de Andrade,
não se deve procurar auto-análise nem retrato do tempo. Nada, com efeito, menos
próprio a nos dar conhecimento da sociedade ou do espírito” (CANDIDO, 2002,
p.12). O que Antonio Candido nos mostra é que a autobiografia do modernista não se
constitui como instrumento adequado para interpretações historicistas dos períodos
ou do meio que aparecem na obra sob o olhar deformador e altamente subjetivo do
autor. É o próprio Oswald quem esclarece esse dispositivo no prefácio de Serafim
Ponte Grande: “Transponho a vida, não copio igualzinho. Nisso residiu o mestre
equívoco naturalista. A verdade de uma casa transposta na tela é outra que a verdade
na natureza”.(ANDRADE, 1996, p.34).
Ainda tendo como base a opinião bem fundamentada do crítico e a questão
da estilização, nota-se que o fato de o autor nos apresentar em suas memórias a
humanidade própria de alguns personagens saídos de sua pena – como José
Chelinini, Pantico, Pinto Calçudo, Dona Lalá e outros mais – não espanta os leitores
(CANDIDO, 2002, p.14). Ainda com base na opinião de Antonio Candido, são
importantes as considerações sobre o modo de construção de Um homem sem
profissão, que segundo o crítico, é permeada pelo método de composição das outras
obras do autor. A citação é longa, porém importante:

No tocante a esta solidariedade da obra e da vida, bem como a


soberania da impressão sobre a construção, enquanto técnica literária,
vale notar, no presente volume, certa dualidade do autor em face de
duas reminiscências.
Na primeira parte, quando a pesquisa do passado vai encontrar o
próprio nascedouro das emoções, percebemos um trabalho da
inteligência, organizando os dados os dados do passado da memória
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num sistema evocativo mais inteiriço. À medida porém, que vai


passando à idade adulta, e o material evocado corresponde a uma fase
de sua personalidade já constituída, a elaboração sistemática cede
lugar à notação. O impressionismo se desenvolve, por vezes, de modo
a superar a verossimilhança, fragmentando a realidade na poalha dos
dados da sensibilidade e desta maneira dando acesso a um mundo
tornado equivalente ao imaginário da ficção (CANDIDO, 2002,
p.14).

Após essa colocação, reafirma-se o que já havia sido dito acima acerca do
método de constituição das memórias de Oswald: torna-se visível o caráter de
construção ficcional que predomina nas memórias. Assim como ocorre nos romances
do par Miramar-Serafim, a técnica narrativa se assemelha bastante ao que se entende
como a posição do narrador no romance contemporâneo, já que o subjetivismo
hipertrofiado de tais construções não tolera nenhuma matéria sem transformá-la,
jogando por terra o preceito da objetividade (ADORNO, 2003, p.55.).
A partir disso, torna-se interessante pensar como identificar um desempenho
mimético do narrador em uma obra autobiográfica cuja premissa é a transfiguração
do real. Antes de pensar em tal questão, é preciso deixar claro que abordo o conceito
de mimesis como Mimesthai e não como imitatio. A distinção reside no fato de que o
conceito de imitatio limita o significado de mimesis uma vez que o primeiro se refere
apenas à representação, enquanto o segundo diz respeito à representação e à
expressão. Dentro do sentido mais adequado, considerar que um narrador possui um
desempenho mimético é considerar que este não se empenha apenas em representar
algo, mas também – ou principalmente – em dramatiza algo e dramatizar a si mesmo,
assumindo uma postura de mutação constante (SOUZA, 2006, p.17). A prova disso
vem do fato de que Oswald de Andrade trabalha um processo de desidentificação de
si mesmo para narrar, assumindo outras identidades: em Um homem sem profissão,
ora o narrador-memorialista se apresenta como Miramar e ora como Serafim,
estabelecendo assim um tipo de paralelo entre as obras as quais tais narradores-
personagens aparecem.
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Miramar, de rabona, fala. Está quase comovido. Quase treme.


Precipita, engole, joga períodos. Estaca. Terminou. Tijucópolis
hesita. Aristides hesita. Mas Miramar sentou-se. Então despenca
sobre ele a mais bem entoada das salvas de palmas.(ANDRADE,
2002, p.183).

Percebe-se, na autobiografia, uma estrutura narrativa comumente encontrada no


processo de construção romanesca, o que demonstra que se trata de um livro de
memórias que adota uma forma estética nada convencional, bem ao estilo de seu
autor.
Para melhor compreender uma autobiografia que utiliza tal método de
composição, é preciso pensar a relação entre literatura e realidade de modo próximo
ao de Erich Auerbach, para quem a realidade que se cria na literatura é constituída
por meio de um processo estético, sem o qual a relação entre vida e obra não pode
ser compreendida em sua dinâmica dialética. É preciso entender que o ficcionista
estiliza os fatos e os homens, já que a realidade que este expõe não é real no sentido
do mundo empiricamente considerado, mas sim estilizada (WAIZBORT, 2007,
p.14).
Um homem sem profissão pode ser considerada uma obra que se constitui como
ficção irônica, tendo como fundamento de sua composição a memória crítica do
narrador (JACKSON, 1978, p.33). Desse ponto de vista é interessante observar as
memórias de Oswald como uma composição que tem por base o princípio da ironia,
mas não como tropo retórico e sim como elemento estrutural. Nesse sentido pode ser
dito que a ficção narrativa se focaliza na consciência da ilusão ao invés de apenas dar
suporte à ilusão da consciência, realizando uma reflexão sobre a própria estrutura na
qual se apresenta (SOUZA, 2000, p.30). Tal afirmativa fica mais clara se
observarmos o seguinte trecho:

Seu Andrade com um instinto terrível sente o meu desligamento


crescente da francesa. E o impacto do ciúme ele o atira sobre Landa
Kosbach, que é mamãe Macbeth nas roupagens carnais de Ofélia.
Esta dublagem persiste e se desenvolve numa atração de crime. Eu
quero certezas para repicar e somente colho dúvidas e desesperos.
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Sinto delírios auditivos. Desce sobre mim uma vaia lúgubre. Há


grilos fora de casa (ANDRADE, 2002, p.135).

Nesse trecho o narrador realiza reflexões sobre sua própria situação no


desenvolvimento da narrativa deixando a estrutura do que se narra totalmente
exposta. O ápice é o movimento de parábase no final do trecho, quando o narrador se
dramatiza numa cena teatral onde recebe vaias da platéia por suas atitudes e realiza o
desnudamento do plano ficcional (SOUZA, 2000, p.27-37). Essas estratégias
narrativas aplicadas num livro de memórias tornam a obra peculiar, já que esta não
assume a forma padrão do que seria uma autobiografia. Vale deixar claro que,
quando se diz que a obra não segue a estrutura tradicional de um livro
memorialístico, não se está dizendo que encontraremos nos exemplos padrões um
modo de representação não-transfigurador e objetivo da realidade. A diferença
dessas realizações para a de Oswald é que estas se preocupam em esconder esse
processo mimético realizado pelo narrador, enquanto as outras buscam expor seu
método de construção.
Após tais considerações, acredito que seja pertinente afirmar que a autobiografia
oswaldiana se estrutura a partir de uma estilização diversa da esfera concreta da vida
e dos fatos, ou seja, pode-se dizer que as memórias do autor se apresentam na forma
de ficção. Visto isso, seria praticamente impossível situar a obra simplesmente no
âmbito do registro, como se tal produção do escritor fosse apenas um apêndice para
entender o montante de sua obra ou de sua formação como escritor. Um homem sem
profissão, claro, pode ser visto sob essa perspectiva, mas não apenas dela.

Conclusão

A título de conclusão, é possível afirmar que a forma que se apresenta como


fundamento estético das produções literárias de Oswald de Andrade como um todo
pode ser identificada também na estrutura de sua autobiografia, o que nos permite
esboçar uma linha de interpretação que constrói uma perspectiva um pouco distinta
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daquela que considera as obras de tom memorialístico apenas no âmbito do


testemunho. Além disso, nota-se também que Um Homem sem profissão não deve
ser uma obra interpretada apenas como ferramenta para a exegese das outras obras do
autor ou estudo de sua formação intelectual, uma vez que pode ser valorizada
também pela sua forma estética.
Para finalizar, é importante deixar claro que existem também algumas
distinções na autobiografia de Oswald em relação às suas outras obras, pois apesar de
se estruturarem de forma parecida, sabemos que nenhuma obra é igual à outra,
mesmo sendo constituídas por métodos semelhantes. Entretanto, nesse trabalho,
procurei focar apenas as semelhanças, o que estava mais em consonância com o
objetivo do empreendimento.

Referências

ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo,
1999.
ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. São Paulo: Globo, 2003.
ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Globo, 1996.
ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão. São Paulo: Globo, 2002.
CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. In: Memórias Sentimentais de João Miramar.
São Paulo: Globo, 1999.
CAMPOS, Haroldo de. Serafim: Um grande não-livro. In: Serafim Ponte Grande. São
Paulo: Globo, 1996.
CANDIDO, Antonio. Brigada ligeira. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004.
CANDIDO, Antonio. Prefácio inútil. In: Um homem sem profissão. São Paulo: Globo,
2002.
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
FARINACCIO, Pascoal. Serafim Ponte Grande e as dificuldades da Crítica
Literária.São Paulo: Ateliê Editorial: FAPESP, 2001.
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JACKSON, Kenneth. A Prosa vanguardista na literatura brasileira: Oswald de


Andrade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978.
OLIVEIRA, Vera Lúcia de. Poesia, mito e história no modernismo brasileiro. São
Paulo: Editora Unesp: Blumenau, SC: FURB, 2002.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. “Introdução à poética da ironia”. Revista Linha de
Pesquisa. Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, p.29-45,out. 2000.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2006.
WAIZBORT, Leopoldo. A passagem do três ao um: crítica literária, sociologia,
filologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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NAS MALHAS DA HISTÓRIA, NAS ENTRELINHAS DA LITERATURA: IMAGENS


E REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO EM MEMÓRIAS DE MARTA

Alex dos Santos Guimarães (PG-UFSJ)


Adelaine Laguardia (UFSJ)

Os primeiros resultados da pesquisa sobre a “História das Mulheres”, enquanto objeto


da História, confunde-se com o movimento historiográfico da “Nova História”, associada à
chamada Escola dos Annales. Tal perspectiva de abordagem se alicerça enquanto oposição à
velha história, tradicional, descrita por Peter Burke (1992) como “história rankeana”. A Nova
História, nesse sentido, é uma reação deliberada à história essencialmente política,
acontecimental, centrada em grandes homens, pensável apenas por meio de uma análise
objetiva através de documentos oficiais, lócus da pretensa veracidade histórica.
Com o desenvolvimento de novos campos de estudos, como a História das
Mentalidades e a História Cultural, os exames sobre o feminino dilatam-se. Debruçando-se
sobre novas temáticas, ampliando os limites do horizonte histórico, passando a incluir novos
grupos sociais – como operários, camponeses e escravos –, “as mulheres são alçadas à
condição de objeto e sujeito da história” (SOIHET, 1997, p. 275).
Joan Scott (1992), investigando a produção historiográfica sobre a mulher, enfatiza a
contribuição recíproca entre a história das mulheres e o movimento feminista da década de
1960, percebendo neste período uma visão homogênea que favoreceu o discurso de uma
identidade coletiva. Já no final da década de 1960 e início de 1970, tensões se instauram no
seio da disciplina por meio de questionamentos sobre a categoria universal da “mulher”,
inaugurando a “diferença” como conceito a ser esquadrinhado. O fracionamento de uma idéia
generalizante de “mulher”, através do diverso como classe, raça, etnia e sexualidade, firmou a
possibilidade de múltiplas identidades, desnudando as contradições históricas positivistas
sobre um sujeito universal. A partir de meados da década de 1970, o gênero passa a ser
utilizado como conceito teórico da diferença e, ao mesmo tempo, relacional entre os sexos.

O gênero se torna, inclusive, uma maneira de indicar as “construções


sociais” – a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis
próprios aos homens e às mulheres. “O gênero” sublinha também o
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aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, que


nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir através
de um estudo que os considere totalmente em separado (SOIHET,
1997, p. 279).

As perspectivas deste novo campo de estudos, rejeitando o historiar tradicional,


desafiam a autoridade dominante das academias para propor uma nova escrita da história,
reposicionando paradigmas epistemológicos tradicionais e contribuindo para uma nova
atitude metodológica na relação passado-presente, revitalizando o conceito de memória.
Dentro desta diretriz, os estudos sobre as experiências ou representações sociais das
mulheres – tal como se revela no registro histórico e/ou literário –, nos permite redefinir
processos de subjetividade, identidades ou papéis sociais. Revisitar o passado, a fim de
identificar a historicidade da construção discursiva sobre as mulheres, nos faz repensar a
variedade de sujeitos e atores para contrapor ao universalismo que padroniza culturas,
legitimando sistemas de dominação. Ademais, para a incursão na abordagem do feminino, é
imprescindível que se faça uso da interdisciplinaridade, desvendando de forma abrangente as
dimensões desse novo objeto. Desta forma, o diálogo com outras disciplinas como a
Antropologia, a Psicanálise, a Sociologia, a Lingüística e, principalmente para nós, a
Literatura, vem demonstrando eficácia para o estudo das mulheres.
A crítica literária feminista que surge a partir da segunda metade do século XX,
acompanha as altercações sobre a militância política e as análises literárias de autoria
feminina: “do feminismo da igualdade ao feminismo da diferença, ao feminismo cultural e até
ao pós-feminismo” (ARAÚJO, 2000, p. 15). No entanto, na esteira dessas discussões,
verificou-se que grande parte da produção literária de autoria feminina esteve submetida ao
olvido da crítica brasileira. Uma vez que é negada a história às mulheres, ou quando muito
estas se nos apresenta por meio de uma perspectiva autoral masculina, no caso dos romances
do XIX, o problema da memória torna-se fundamental. Conseqüentemente, partindo da
constatação de uma ausência e de um esquecimento, pesquisadoras e pesquisadores vêem
propondo um resgate da obra de escritoras brasileiras do século XIX, para repensar suas
trajetórias e suas lutas, superando o olhar da mera vitimização. Por conseguinte, novas
propostas de trabalhos povoam alguns universos acadêmicos no intuito de investigar os
silêncios impostos a estas mulheres dos Oitocentos.
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Sua visão e (re)visão do lugar da escritora na história cultural do


Brasil, de sua luta por ter acesso à voz, a partir de suas estratégias
discursivas e seu diálogo com a autoridade e o poder, são uma
contribuição ao desenvolvimento da teoria e da práxis literária
feminista em geral (ARAÚJO, 2000, p. 15).

Destarte, no esteio de uma revisão historiográfica no âmbito da literatura, pretendemos


deslindar o romance Memórias de Marta, de Julia Lopes de Almeida, para entender como a
escritora faz uso da literatura no sentido de propor caminhos alternativos para as mulheres,
mas críveis, que, de certa forma, subvertem o modelo de feminilidade do século XIX. Para
tanto, tencionamos escrutar a construção da narrativa almeidiana, entendendo-a como
produção discursiva que emerge em um determinado momento histórico – o Oitocentos – e
advoga a favor do trabalho e da instrução feminina enquanto possibilidades de ascensão
social. Igualmente, faz-se necessário pensar a tensão temporal em que se constrói a urdidura
da narrativa através da criação literária.

A escritura feminina no século XIX

O século XIX constitui-se enquanto continuidade temporal de um discurso misógino,


que tende a privilegiar o ponto de vista masculino enquanto forma representante do geral,
determinando papéis sociais a serem ocupados por homens e mulheres. Definições
generalizantes, como “homem, branco e burguês”, aspiravam a demarcação dos espaços por
meio de discursos que se pretendiam hegemônicos de um ponto de vista interessado,
excluindo, desta forma, mulheres, negros e pobres das participações no campo público e
cultural, notadamente exclusivo ao universo masculino.
Às mulheres era legado essencialmente o espaço privado do lar. Deveriam ser
responsáveis pela casa, o marido e os filhos. A educação, quase que exclusivamente restrita às
burguesas, se resumia em aulas de piano e francês. Assim, se considerarmos os Oitocentos
como o século do romance, a escritura e a educação estiveram sempre andando de mãos dadas
com a legitimação de condutas e determinando “modos de socialização, papéis sociais e até
sentimentos esperados em determinadas situações” (TELLES, 2007, p. 402).
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Estereótipos femininos eram construídos e repetidos por meio do imaginário dos


romances, escritos por homens, para determinar e controlar espaços e papéis esperados das
mulheres. Consequentemente, a linguagem torna-se objeto onde se instaura e se manifesta o
poder, uma vez que, repetida exaustivamente, gesta-se estereótipos discursivos em um
determinado tempo configurando-se como uma construção histórico-cultural.
O poder exercido pela linguagem nos romances do século XIX, enquanto tentativa de
impor o ponto de vista androcêntrico sobre a representação da mulher, nos permite perceber,
com um olhar mais acurado, a gestação de mecanismos de controle junto ao gênero feminino,
forjando uma cultura exemplar de comportamentos a serem seguidos já que, “excluídas do
processo de criação cultural, as mulheres estavam sujeitas à autoridade/autoria masculina”
(TELLES, 2007, p. 408). Igualmente, as mulheres eram antes de tudo inspirações, criações,
jamais criadoras, sendo retratadas, inclusive, através de um maniqueísmo social ubíquo que
explicitava sua condição entre o “bem”, subserviente e “natural”, e o “mal”, transgressor da
ordem ao simples gesto de empunharem a pena e fazerem uso da escrita.

O discurso sobre a “natureza feminina”, que se formulou a partir do


século XVIII e se impôs à sociedade burguesa em ascensão, definiu a
mulher, quando maternal e delicada, como força do bem, mas, quando
“usurpadora” de atividades que não lhe eram culturalmente atribuídas,
como potência do mal (TELLES, 2007, p. 403).

Era, então, necessário que elas lançassem mãos da pena – mesmo sob o olhar
preconceituoso de potência do mal – para propor a sua própria ontologia. Não obstante, para a
decomposição de estereótipos sociais, fazia-se mister escamotear o mundo do silêncio
privado, das atividades domésticas, na busca de se fazerem ouvidas no âmbito público,
ocupando o ofício das letras que se constituía enquanto espaço inexoravelmente masculino.
Visto por este prisma, o discurso se configura enquanto local de desejo e poder para a
legitimação e, ao mesmo tempo, construção histórico-social de lugares.

O discurso [...] não é simplesmente aquilo que manifesta o desejo; é,


também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que – isto a história
não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo
que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT,
2008, p. 10).
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No Brasil dos Oitocentos, algumas escritoras buscaram novos caminhos para uma
expressão que rompesse com estereótipos e silêncios impostos. Deste modo, as narrativas
escritas por mulheres – principalmente nos séculos XVIII e XIX – faz parte justamente da
tentativa de deslocar a língua dos mecanismos de poder coercitivo estabelecido ao se opor aos
estereótipos culturais, disseminados sob a rubrica máscula.
Deste modo, participar da construção de discursos emancipatórios, transgressores de
modelos construídos culturalmente, para propor novas perspectivas de representação do
mundo feminino, constituía-se enquanto assertiva fundamental para a quebra da estereotipia e,
sobretudo, para a luta de novas concepções do caráter nacional e das relações que se fizeram
presentes diante dessa idealização.

A Escritora e a Escritura: Memórias de Marta

Com uma produção notável, que se envereda pela literatura infantil, por matérias
jornalísticas, crônicas, ensaios, contos, romances e peças teatrais, o trabalho literário de Julia
Lopes de Almeida 1 (1862-1934) ficou durante muito tempo submetido ao olvido da crítica
brasileira, embora os seus coetâneos, no entre-séculos, a considerassem, na expressão de
Guiomar Torresão 2, como “a primeira escritora do seu país”, ou ainda, como afirma Leonora
De Luca (1995), “a mais importante mulher-escritora do Brasil” (p. 277).
A crítica especializada, entretanto, tem-se dividido quanto ao “lugar transgressor”
ocupado por Júlia e frequentemente as discussões permanecem no campo ideológico. O
resgate da obra da autora segue caminhos antagônicos: enquanto a crítica feminista preocupa-
se em recuperar os seus textos por meio de um olhar transgressor, outros estudos, a exemplo

1
Peggy Sharpe, em face da grande quantidade de textos publicados por Júlia Lopes de Almeida, sugere
dividir a obra da autora em duas categorias: 1) obra de ficção e 2) obra didática. Entretanto, tal proposta de
divisão não nos parece adequada, uma vez que a própria ficção tecida pela autora possui um caráter didático que
advoga pela emancipação da mulher, por meio de exemplos que se forjam na trama de suas escrituras. Assim,
acreditamos que Julia Lopes de Almeida lança mão da ficção para propor, estrategicamente, discursos didáticos
contra-hegemônicos ao modelo subserviente de feminilidade. Por conseguinte, o caráter ficcional e didático da
obra não se excluem, pelo contrário, se completam para propor um novo discurso.
2
Tal comentário foi publicado em A Mensageira de 15 de junho de 1899. Ver nota de roda-pé em
SHARPE, Paggy. Julia Lopes de Almeida. In: MUZART, Zahidé Lupinacci (org.). Escritoras Brasileiras do
Século XX. V. 2. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. p. 188.
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de Nelly Novaes Coelho (2000), percebem nela um discurso que “confirma a ideologia
dominante e até mesmo reforça a dualidade contraditória com que a tradição estigmatizou a
mulher” (COELHO, 2000, p. 109).
Mesmo sob o efeito de tais controvérsias, não podemos furtar o nosso olhar para o fato
de que tornar-se “criadora” de um discurso, rompendo os limites privados do lar e alcançando
o espaço publico para sobreviver do ofício das letras 3, já se constitui como ato transgressor do
modelo de feminilidade nos Oitocentos. Ademais, se podemos vislumbrar avanços e
acomodações em seus textos, acreditamos que seja por conta das tensões históricas por quais
atravessam a vida da escritora: processos que se alicerçam no fim da escravidão, na
proclamação da República, na Belle Époque brasileira, no golpe de 1930, entre as transições
sociais, políticas e econômicas que se vai forjando o Brasil.
Por outro lado, através da análise do seu estilo literário, podemos perceber uma ironia,
tão característica do XIX, que se configura como discurso para, estrategicamente, alcançar as
suas publicações e fazer-se a escritora mais lida do final do século XIX e início do XX 4.
Assim, de acordo com os estudos desenvolvidos por Leonora De Lucca, sobre o “feminismo
possível de Julia Lopes de Almeida”, estamos persuadidos de que o alcance de sua
visibilidade, no ofício das letras, só foi possível por meio de estratégias e táticas
desenvolvidas no intuito de permanecer no universo público para, fazendo-se uso do poder do
discurso, redefinir o local da mulher na sociedade oitocentista.

Num certo sentido, sua propalada “amenidade” refere-se mais a


recursos estilísticos (sua estratégia de “aconselhar persuadindo”) do
que ao caráter brando de seu feminismo propriamente dito. Foi
justamente graças às suas pouco agressivas intervenções que a
escritora teve acesso garantido à grande massa de leitores distribuídos
pelos mais diferentes extratos sociais. Propostas de cunho mais

3
Julia Lopes de Almeida “foi na prática a primeira escritora profissional das letras brasileiras que
conseguiu sustentar-se a se e à família com renda proveniente de seus livros” (SHARPE, 2004, p. 197), “ganhou
fama e talvez tenha sido a única escritora do período a conseguir dinheiro com sua pena” (TELLES, 2007, p.
441).
4
Num belíssimo estudo sobre leituras de mulheres no final do século XIX e início do XX, com base em
autobiografias, Lilian Lacerda cita alguns escritores lidos e, entre eles, encontra-se Julia Lopes de Almeida:
“Assim, entre os nomes mais apontados nas autobiografias eleitas poderia destacar: Miguel Zevacco, Victor
Hugo, Ponson du Terrail, Balzac, Eugène Sue, Alexandre Dumas, Perez Escrich, Condessa de Ségur, M. Delly,
Tostoi, Dostoievsky, Flaubert, Eça de Queiroz, Felipe de Oliveira, Castro Alves, Edmundo de Amicis,
Lamartine, Shakespeare, Dante, Joaquim Manoel de Macedo, Machado de Assis, José de Alencar, Julia Lopes de
Almeida” (LACERDA, 2003, p. 271).
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revolucionário iriam bani-la da grande imprensa, principal meio de


comunicação de massa da época – condenando-a a permanecer
confinada às páginas dos periódicos de circulação restrita e minúscula
tiragem, como já ocorrera com sua antecessora Josefina Álvares de
Azevedo. (DE LUCCA, 1992, p. 298-299).

Para entender a grande contribuição da narrativa – na tensão despertada interna e


externamente ao texto –, basta pensar nas microrresistências por meio de trajetórias culturais
que metaforizam a disposição dominante, no exercício dialético da ordem e da burla,
configurados em estratégias (a temática feminista) e táticas (avanços e acomodações
discursivas). Assim, de acordo com o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior,
entendemos a

Estratégia como procedimento que nasce de um cálculo das relações


de força e que são empreendidas por um sujeito de poder e de querer
para atingir objetivos previamente traçados. Já as táticas não
demandam um lugar como a estratégia, não calculam, vigiam e
captam no vôo as possibilidades de ganho; é um ato que visa a
aproveitar uma ocasião, não é necessariamente articulada
discursivamente; é um gesto, breve efeito cuja força pode se
desvanecer imediatamente, multiplicar as máscaras e as metáforas,
desaparecer no próprio ato (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p.
161).

No intuito de ilustrar os nossos argumentos supracitados, faremos algumas


ponderações sobre Memórias de Marta, a sua primeira “narrativa”, como classifica a própria
autora, para a pensarmos enquanto construção embrionária de uma vultosa e heterogênea
obra. Por esta forma, através de trabalhos que visam o resgate e a revisão dos textos escritos
por Julia Lopes de Almeida, Rosane Saint-Denis Salomoni (2007), por meio de pesquisas
realizadas no arquivo particular da autora, localizado no Rio de Janeiro, encontrou três
edições de Memórias de Marta: a primeira de 1888, publicada em folhetins na Tribuna
Liberal do Rio de Janeiro; a segunda, de 1899 e a terceira, editada entre 1925 e 1932, ambas
em formato materializado em livro. O texto que chegou até nossas mãos, publicado pela
Editora Mulheres (em 2007), faz parte da atualização desta ultima edição, no entanto, como
esclarece a pesquisadora, para além das dificuldades em se encontrar os textos, há diferenças
consistentes entre as narrativas. A principal delas, segundo Salomoni, é a omissão de alguns
parágrafos, na edição de 1925-1932, que estão nos folhetins.
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O título do romance, de início, já nos fornece dois dados essenciais para entendê-lo. O
primeiro diz respeito às memórias, subjetivas, que parecem constituir estratégias discursivas
para nos propor um efeito de real, justificador da verossimilhança tão comum ao século XIX,
uma vez que as memórias pressupõem o testemunhar de experiências vividas 5. Estas, no
entanto, privilegiam formas introspectivas que “domina o mundo ficcional e cada vez mais a
forma romanesca é solicitada a acompanhar esta aventura de um discurso interior”
(BRAYNER, 1979, apud SALOMONI, 2007, p. 08). O segundo dado nos permite perceber
que tais memórias não são de homens, mas sim de uma mulher: Marta. Ora, propiciar ao
público leitor uma ficção que contém como matéria principal as memórias de uma mulher,
confronta com a expectativa normativa dos Oitocentos, sobretudo por representar a
perspectiva de uma outra mulher. É a mulher se auto-representando, tecendo e desconstruindo
discursos de antanho. O apelo à memória, ainda, liga-se ao projeto de descrição da realidade
social e crítica já dentro de um realismo subjetivo, atomístico.
O texto de Almeida pode ser tido como diferenciado, na medida em que a urdidura da
sua narrativa estabelece relações nodais entre o ambiente ficcional e as experiências vividas
pela autora. São, nas palavras de Salomoni, “reminiscência do espaço real na recriação do
ficcional” (SALOMONI, 2007, p. 14), uma vez que o nome da personagem principal se
coaduna com o da Adjunta Marta, que trabalhava no Colégio de Humanidades pertencente ao
Dr. Valentim, pai de Julia Lopes de Almeida. Assim, por meio da nota manuscrita que lhe
pertencia – e veio afixada à edição de 2007 –, a autora afirma:

5
Não se trata, aqui, de uma autobiografia, segundo os conceitos teóricos de Philippe Lejeune (2008),
uma vez que não existe a relação direta de identidade do nome entre autor-narrador-personagem, ou seja, temos a
secessão de identidades entre autor (Julia Lopes de Almeida) e narrador-personagem (Marta), rompendo, assim,
o conceito de Pacto Autobiográfico, na medida em que o leitor é levado a levantar questões sobre a relação de
identidade. Por outro lado, se considerarmos apenas o discurso interno do texto, suprimindo a página do título –
como acontece em Memórias de Marta – poderemos notar diferenças consistentes entre autobiografia e romance
autobiográfico? Assim nos responde Lejeune: “Tenho de confessar que, se nos ativermos a análise interna do
texto, não há nenhuma diferença. Todos os procedimentos que a autobiografia utiliza para nos convencer da
autenticidade do relato podem ser – e muitas vezes o foram – imitadas pelo romance” (LEJEUNE, 2008, p. 26).
Não obstante, não podemos afirmar que Memórias de Marta se trata de um romance autobiográfico apenas pelo
fato de não haver coincidência de identidade entre autor-narrador-personagem, mas podemos afirmar, no
entanto, que as memórias da narradora-personagem Marta, faz parte de uma autobiografia. Ou seja, o romance
Memórias de Marta, tem como assunto interno a autobiografia da heroína Marta, na medida em que esta escreve
suas lembranças para a sua filha. Esta ultima, por sua vez, conseguirá estabelecer o Pacto Autobiográfico quando
identificar a relação entre autor-narrador-personagem (Marta escreve, narra e é a personagem).
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A adjunta Marta não será por ventura a mesma pobre D. Marta que
ajudou minha irmã Adelina a ensinar-me as primeiras letras? Creio
bem que sim. As cenas brutas do livro, o pequeno alcoólico, foram
pressentidas através do muro que dividia o meu colégio de um
movimentado cortiço de São Cristóvão. Aquele ambiente inspirou à
minha sensibilidade de menina muita melancolia...
Se tudo no livro é fantasia, toda essa fantasia saiu da verdade como o
cheiro da maresia saiu do mar.

A narrativa nos apresenta o relato de Marta, já adulta, sobre as lembranças de sua vida,
seguindo uma linha cronológica do tempo de sua existência que podem ser resumidas assim: a
morte do pai; o empobrecimento; a mudança para um cortiço no Rio de Janeiro Imperial; o
intermitente labor de sua mãe, engomadeira, para conseguir sobreviver; os estudos na escola
pública; sua formatura como professora e uma sensível melhoria de vida para saírem do
cortiço; a decepção do primeiro amor; o seu casamento desprovido de afeto; e, por fim, a
morte de sua mãe dias depois.
Os desdobramentos dos eventos narrados por Marta nos permitem perceber a matéria
de que trata o seu discurso, na medida em que não se limita a verbalizar apenas suas
experiências, mas, sobretudo, se expressa por meio de juízos de valor sobre certas condutas
que transgridem os códigos de sua época. As suas memórias não descrevem somente ações
que se encaixam no horizonte da expectativa masculina. Os exames de seu passado nos parece
indicar, através de exemplos pedagógicos, alternativas para que as mulheres se libertem da
tutela masculina, apontando possibilidades de sobrevivência sem a intercessão do ser varonil,
embora os caminhos possam ser bastante tortuosos e difíceis.
O próprio conceito de memória, na narrativa, é construído a partir da tensão entre a
capacidade visual e a sugestão da imaginação. As primeiras imagens suscitadas corroboram a
presença da monotonia, da pobreza, da sombra, em choque com a única boa lembrança da
menina: a casuarina.
Após a morte do seu pai, por conta da febre amarela, sua mãe é obrigada a romper os
limites privados do lar para garantir meios de sobrevivência. O trabalho vai ser o pano de
fundo do palco de sua vida. Depois de se matricular em uma escola pública, Marta irá
perceber que apenas o trabalho poderá lhes garantir condições mais dignas de existência.
Todavia, não será o trabalho braçal e extenuante de sua mãe e sim o trabalho intelectual de
professora.
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A extrema pobreza, a imagem da mãe “em seu corpo de tísica”, a convivência no


cortiço vão transformando a sugestão da imaginação. A narrativa, aos poucos, exprime a
destruição das expectativas em face de um real dramático. O refúgio encontrado na natureza
vai transformando-se, lentamente, na própria memória que isola, particulariza, propicia a vida
interior. O constante isolamento, presente em reiteradas cenas em que predomina a tristeza, só
é superado através da educação. O sonho de ser mestra funde a capacidade de percepção
(fugir da pobreza) através de um programa prático para superar o meio: “eu queria ser mestra
para não morar em um cortiço mal alumiado, infecto, úmido nesta terra onde há tantas flores,
tanta luz e tantas alegrias” (ALMEIDA, 2007, p. 72-73) 6. O desejo de superação é, ainda,
marcado por uma minuciosa descrição do cortiço e de seus hábitos. O apego ao estudo, a
saída do cortiço, a melhoria de vida, entretanto, não são capazes de apaziguar o isolamento,
constante em toda a narrativa.
A única felicidade, o encontro de Luís, desmorona em face da crueldade do mundo das
conveniências, demonstrando que a única saída para a melhoria de vida torna-se o estudo.
Tendo conseguido ser aprovada em exame público para o cargo de mestra, Marta
consegue alcançar uma considerável melhoria de vida se se considerarmos o seu passado.
Almeida não reproduz o discurso de vitimização feminina, ela aponta possibilidades de
mudanças sociais através de uma campanha didática do trabalho e da educação, no esforço de
transformar a “natureza feminina”. Outra questão que emerge da leitura do texto, é a carência
de predicados belos à Marta. Uma moça pobre, sem beleza, sem a presença do patriarca no
núcleo familiar conseguir alcançar degraus melhores de sobrevivência por conta de seus
esforços educacionais e profissionais, em um ambiente marcado pela presença de modelos de
feminilidade, constitui-se em uma renovação discursiva que traz em seu bojo a subversão de
modelos impostos.
Julia Lopes de Almeida faz uma reflexão sobre as tensões femininas de sua época que
se instauram no casamento burguês, por meio do enlace de Marta com Miranda, “homem de
quarenta e tantos anos” (MM, p. 148). Este se apaixonara pelo espírito e intelecto daquela,
lendo as cartas que Marta enviava à mãe sob a influência da paixão por Luís, primo da mestra
da protagonista. Tais tensões ganham vida na postura de sua mãe que a queria casada por

6
A partir desta citação, todas as demais provenientes de Memórias de Marta virão assinaladas como
MM e discriminado o número da página.
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conta do renome feminino: “ouve-me filha: a reputação da mulher é essencialmente


melindrosa. Como o cristal puro, o mínimo sopro a enturva” (MM, p. 143). Em contrapartida,
Marta reluta à proposição de um casamento sem amor – “Não desejo casar-me”, uma vez que
“alcancei uma posição independente: não precisarei do apoio de ninguém” (MM, p. 149).
É neste momento, de acordo com Salomoni, que o romance atinge seu ápice e nos faz
pensar em avanços, uma vez que “triunfa a apologia que a escritora faz ao trabalho feminino e
à capacidade das mulheres de superarem desafios” (SALOMONI, 2007, p. 19). No entanto, a
narrativa se acomoda na medida em que Marta, por estar ciente dos seus atributos físicos,
aceita o pedido de casamento como uma vingança pessoal. Não obstante, e ainda de acordo
com Salomoni, Julia Lopes de Almeida acomoda a situação “ou por estar presa ao contexto
patriarcalista em que vivia ou em virtude de precisar preservar uma imagem de escritora e
senhora ‘bem comportada’, ou ainda por acreditar na instituição do matrimônio”
(SALOMONI, 2007, p. 19). O casamento funciona como uma espécie de “remédio” para o
mal estar social. O próprio descompasso intelectual entre a mulher educada e o homem é
aconselhado pela mãe de forma a garantir o sucesso do empreendimento de “bem estar”:

Quando um homem de espírito superior não encontra na esposa um


entendimento claro, uma percepção nítida das coisas, uma
inteligência preparada para a perfeita compreensão da sua, como um
refletor de suas idéias, esse homem deixa de lhe comunicar os seus
projetos(...). A mulher, então ou se resigna a viver encolhida em casa,
na humilhante posição de mera governante, ou revolta-se contra a
superioridade do marido e provoca-o de todas as maneiras (...).
Agora, quando, é a mulher a mais inteligente e a mais ilustrada(...)
Cabe-lhe a ela então disfarçar a diferença intelectual que entre os dois
exista e procurar nivelar-se com ele ao mesmo tempo em que
insensivelmente lhe vai polindo a educação.( MM, 2007, p.155)

Conseqüentemente, podemos perceber avanços e acomodações no discurso


almeidiano, na medida em que a autora desconstrói a representação romântica do casamento
e, ao mesmo tempo, advoga pela emancipação feminina através da educação e do trabalho. Se
o casamento aconteceu sem o amor, ele só se concretizou pelos predicados intelectuais de
Marta, capaz de despertar a paixão. A subserviência ao poder masculino institui, mais que
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uma acomodação, uma delicada compreensão do papel exercido pela mulher, denunciado pela
narrativa sob diversos focos.
Pelo papel questionador, D. Julia nos convida a (re)pensar a condição feminina no
Oitocentos para além da expectativa modelar e normativa da época. Transgredindo o espaço
privado do lar e lançando mão do ofício das letras, o seu primeiro romance se constitui
enquanto peça fundamental para se entender toda a sua obra, uma vez que os seus silêncios e
vazios internos nos permitem conjecturar sobre algo mais, preenchendo interstícios no
exercício de desenhar sobre a própria tessitura desvelada, através de indícios e marcas que
pululam nas entrelinhas da literatura e que não fogem, de maneira alguma, das malhas da
história.

Se pensarmos o passado como uma renda, permanentemente


retrabalhada, devemos lembrar que não são apenas as linhas, laços e
nós, por mais coloridos que sejam, que dão forma ao desenho
projetado; são, justamente, os buracos, os vazios, as ausências, que
são responsáveis por fazer aparecer com nitidez o que se pretendia
fazer (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 153).

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Um Leque que Respira: a questão do objeto
em História. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o
passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 149-164.
ALMEIDA, Julia Lopes de. Memórias de Marta. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007.
ARAÚJO, Nara. Do vazio e do silêncio. In: MUZART, Zahidé Lupinacci (org.). Escritoras
Brasileiras do Século XIX. V. 1. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2000. p 13-16.
BURKE, Peter. Abertura: a Nova História, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter
(Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. Ed. UNESP, 1992, p. 07-37.
COELHO, N. N. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Petrópolis, 2000.
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DE LUCCA, Leonora. O “Feminismo Possível” de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). In:


CORRÊA, Mariza (org.). Cadernos Pagu: Simone de Beauvoir e os Feminismos do século
XIX. Campinas, Unicamp (12) 1999.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 17ª Ed., São Paulo:Edições Loyola, 2008.
LACERDA, Lílian de. Álbum de Leitura: memória de vida, história de leitores. São Paulo:
Editora UNESP, 2003.
LEJEUNE, Philippe. O Pacto Auto Biográfico. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim (org.)
O Pacto Autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. .
SALOMONI, Rosane. Introdução. In: ALMEIDA, Julia Lopes de. Memórias de Marta.
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SCOTT, Joan.. História das Mulheres. In: Burke, Peter (org.). A Escrita da História: novas
perspectivas. Ed. UNESP, 1992, p.63-95.
SHARPE, Paggy. Julia Lopes de Almeida. In: MUZART, Zahidé Lupinacci (org.). Escritoras
Brasileiras do Século XX. V. 2. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2004. p. 188-238.
SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS,
Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.
TELLES, Norma. Escritoras, Escritas, Escrituras. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História
das Mulheres no Brasil. 9ª. ed. – São Paulo: Contexto, 2007. p. 401-442
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PRÁTICAS CULTURAIS E HISTÓRIA DA LEITURA: LEMBRANÇAS DE


LEITURAS LITERÁRIAS

Alexandra Santos Pinheiro (UFGD) 1

1.1 Introdução: práticas de leitura e seus impactos

Um dos romances mais impressionantes que já li foi A cor púrpura (1982), de


Alice Walker, adaptado e dirigido por Steven Spielberg para o cinema em 1985. Quem
teve a oportunidade de ler a obra ou de assistir ao filme lembrar-se-á da vida da
protagonista Celie. Violentada pelo padrasto, que ela julgava ser seu pai, a jovem teve,
antes de completar quinze anos, dois filhos, levados logo após o parto pelo padrasto. O
nascimento do segundo filho levou dela, também, a possibilidade de voltar a ser mãe.
Tempo depois, é entregue pelo suposto pai ao viúvo Albert, que procurava por uma
esposa para cuidar de suas crianças, da casa e para servi-lo na cama. O viúvo pediu a
mão de Nettie, irmã caçula de Celie, mas o padrasto avisou que ele só poderia levar a
filha mais velha. Mostrou que Celie, apesar de deflorada, poderia ser “usada” como ele
desejasse, pois já não teria mais filhos.
Celie passa por um longo período de humilhação, violência doméstica e privação
de sua liberdade, até que a irmã Nettie, fugindo das investidas do padrasto, vai morar
com ela. Longe de casa, é o viúvo Albert quem vai provocar angustias nas duas irmãs.
Os comentários lançados a Nettie são explícitos e as irmãs percebem que não ficarão
muito tempo juntas. No livro, elas prometem que vão sempre trocar cartas: “eu falei,
Escreve. Ela falou, Que foi? Eu falei, Escreve. Ela falou, só a morte pode fazer eu num
escrever procê” (WALKER, s/d, p. 29). A adaptação feita por Steven Spielberg, em
1985, dá ênfase nesse processo de leitura-libertação que envolve a protagonista. Antes
de partir, Nettie ensina Cellie a ler. Inicia-se por palavras, segue-se para montagem de
frases e, finalmente, para a leitura de livros.

1
Professora adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados. Membro do grupo de pesquisa
NÚCLEO DE ESTUDOS LITERÁRIOS E CULTURAIS.
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Quando a irmã parte, Celie volta a vivenciar as humilhações provocadas por


Albert e por seus filhos. Todos os dias espera pela entrega da correspondência, mas seu
“Mister” a proíbe de se aproximar da caixa de correio. A esperança de receber uma carta
da irmã lhe dá forças para prosseguir, mas após vários anos sem notícias, prefere
acreditar que a irmã estivesse morta. A visita da amante de Albert, Shug Avery, dá novo
sentido a sua vida. O relacionamento homossexual, pouco enfatizado no filme,
experimentado com a amante de “seu senhor”, revigora suas energias e faz com que ela
se sinta, finalmente, amada. Mas a importância de Shug na vida de Celie também se
refere ao fato de ser ela quem encontra as cartas enviadas por Nettie e escondidas por
Albert. Ao ler as cartas, descobre que a irmã está na África, na companhia de seus filhos
e do casal que adotou os dois. As cartas trazem para Celie informações sobre a cultura
africana, a luta econômica e política da comunidade onde cresceram seus filhos. Numa
das correspondências, Nettie descreve como a filha de Celie a questionou sobre o fato
de as meninas da comunidade serem proibidas de estudar. Por fim, o material impresso,
as cartas, trouxe para Celie o conhecimento de outra possibilidade para sua vida que não
a de ser a escrava de “Mister”. O conhecimento, por sua vez, lhe deu forças para
enfrentar o homem que por anos lhe aprisionou. A irmã ensinou Celie a ler para que
pudessem trocar cartas e assim permanecer sempre unidas. Albert sabia que o
conhecimento de que a irmã estava viva deixaria Celie feliz e a privou desse
contentamento.
O romance epistolar de Alice Walker é um exemplo de resistência diante da
única opção que a vida parecia lhe oferecer: servir seus senhores, primeiro o padrasto,
depois o viúvo Albert. Celie estava fadada à infelicidade: pobre, deflorada, negra e
mulher. Mas resistiu ao que estava determinado e superou os desafios, graças ao afeto
encontrado em Shug e à leitura das cartas da irmã. O interessante é que Albert nunca
abre as cartas, apenas as esconde. Assim, ao encará-lo, Celie é aquela que sabe sobre as
viagens da irmã, da vida de seus filhos, dos acontecimentos vividos na África. Albert
reconhece apenas a angustia e a falta de esperança causada em Celie. Mas a
protagonista supera esta condição.
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Inicio este artigo explicitando a marca significativa da leitura na vida de Celie. O


material impresso também diferencia as leitoras douradenses que têm, desde 2008, me
dado a possibilidade de ouvi-las e de perceber como os livros, os jornais, as revistas
femininas participam do jeito com que cada uma encara a vida familiar e social e a
relação com a cidade de Dourados. A leitura possibilitou outras experiências para Celie,
ao mesmo tempo em que lhe deu energia para romper com a humilhação vivenciada ao
longo de sua vida. Ressignifico o romance A cor púrpura ao propor a análise da
trajetória de vida de senhoras leitoras, considero o espaço de vivência da leitora Celie,
mas o percurso dessa protagonista se cruza com as leitoras que tenho entrevistado, o não
acesso à leitura e à escrita, o espaço doméstico, o casamento são repensados a partir do
reconhecimento de si e do conhecimento de outras possibilidades de conduzir a vida. É
a aprendizagem de mundos e de fatos por meio da leitura que marcam o discurso das
leitoras douradenses. A maioria não rompeu com a função de “dona de casa” (e toda
marca histórica que o termo acarreta) e não concluiu o ginásio, mas superou o
autoritarismo paterno e, posteriormente, o conjugal. Nesses dois anos de pesquisa,
encontro vozes femininas que resistiram às imposições e desfrutaram da prática cultural
da leitura, encontrando nela a força para tocarem a vida.
Armand Mattlart e Érik Neveu (2004) lembram que as pesquisas sobre os
estudos culturais abrem seus horizontes a partir das contribuições da Escola de
Birmingham. Historiadores, antropólogos e sociólogos desviam seu olhar das “elites
culturais” e procuram compreender as manifestações culturais mais populares.
Pesquisam que se “aventuram no metrô, nos parques de diversão, nos aeroportos, nos
“não-lugares”” (2004, p. 14). Os estudos culturais, portanto, passam a:

Englobar objetos até então tratados por diversas ciências sociais e


humanas: consumo, moda, identidades sexuais, museus, turismo,
literatura. Os defensores mais radicais dessas pesquisas reinvindicam
doravante o estatuto de uma “antidisciplina”. O termo marca a recusa
de divisões disciplinares, de especializações, a vontade de combinar as
contribuições e os questionamentos advindos de saberes cruzados, a
convicção de que a maioria dos desafios do mundo contemporâneo
ganham ao ser questionados pelo prisma cultural (Mattlart & Neveu,
2004, p. 15-16).
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Além de explicitar as novas abordagens do estudo das Práticas Culturais, os


autores destacam o caráter interdisciplinar desse tipo de pesquisa. No caso desse texto,
por exemplo, não há como analisar o discurso das entrevistadas sem situá-lo na questão
de gênero e de classe social. Como duas são imigrantes, também é preciso considerar os
aspectos identitários de suas falas, ou seja, como se colocaram na nova cidade, como
viram e como observam a espacialidade na qual se inserem. Observar, também, de que
maneira a leitura contribuiu para a ressignificação entre as vivencias experimentadas no
local de origem e as novas. A História da Leitura mostra que o acesso aos materiais
impressos transcorreu de forma lenta e “seletiva”. Ou seja, após a invenção da imprensa,
ainda era preciso vencer o processo educacional, que oportunizara a poucos a
aprendizagem da leitura e da escrita. Some-se a isso a desigualdade de gênero, apenas às
mulheres abastadas era permitido o acesso ao mundo das letras:

A cultura escrita é inseparável dos gestos violentos que a reprimem.


Antes mesmo que fosse reconhecido o direito do autor sobre sua obra,
a primeira afirmação de sua identidade esteve ligada à censura e à
interdição dos textos tidos como subversivos pelas autoridades
religiosas ou políticas.
(...).
Não basta ao autor escapar da censura e das condenações para ser
definido positivamente. É necessário que se beneficie de um estatuto
jurídico particular que reconheça sua propriedade. Isto se fará a partir
do século XVIII para se desfazer talvez no fim de nosso século
(CHARTIER, 1999, p. 23 e 45).

A Prática da Leitura, nas falas das senhoras que trago para análise representa a
possibilidade de se emocionar, de conhecer outras vidas e até de se sentir menos só.
Todavia, essa prática foi conquistada a partir da superação do rigor do pai e depois do
marido. As senhoras têm, respectivamente, 80 e 92 anos de idade e a trajetória de suas
vidas permite perceber o quanto o século XX foi marcado pelo olhar da autoridade
masculina, destinando às suas filhas e às suas esposas o lugar da submissão. Por outro
lado, assim como muitas mulheres romperam com o espaço destinado a elas e brilharam
no mundo da moda, da arte cênica, da música, da Literatura, etc; muitas, apesar de
permanecerem no ambiente doméstico, ressignificaram suas vidas a partir dos
conhecimentos proporcionados pela leitura, em especial, pela leitura do texto Literário.
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Assim, pela perspectiva interdisciplinar, apresento a trajetória de senhoras que


dedicaram a vida ao marido, aos filhos e às suas leituras.
1.2 Discursos femininos e Práticas de leitura
Em sua proposta original, a pesquisa “Histórias de Leitura em Dourados (1925-
1980): livros, leitores(as), escritores(as), escolas e bibliotecas”, da qual esse artigo é
resultado, não delimitou o gênero de leitores, buscava-se simplesmente apreender, a
partir das lembranças dos/as moradores/as, nascidos no município ou vindos de fora, a
presença dos materiais impressos ao longo da constituição da cidade. As facilidades (ou
não) para o acesso à leitura e como esse processo contribuiu (ou não) para os aspectos
culturais do município. Porém, o trabalho de campo possibilitou o encontro com um
número muito mais significativo de mulheres que vivenciam a prática de leitura do que
de homens. Exceto os moradores que cursaram o nível superior, a maior parte dos
homens que procurei, por indicação de outros moradores, não quis dar a entrevista e
alegou não ser leitor. Apesar de minha insistência e da explicação de que as recordações
que tinham dos primeiros anos de vida em Dourados poderiam contribuir para a
compreensão do lugar do livro nos projetos políticos para consolidação do município,
não houve a permissão para a entrevista.
Em contrapartida, ao procurar por mulheres que tinham a prática da leitura, a
maioria sem a Educação Básica completa, a recepção foi diferenciada. Nenhuma se
negou a ser filmada e trouxeram, a partir de suas lembranças, imagens de um processo
histórico em que às mulheres era negado o acesso à escola. A Prática de leitura entre
essas mulheres se dá, assim, por um processo de resistência às condições impostas pelos
pais e pelos maridos. Para estudar a História da Leitura, na concepção de Chartier e
Cavallo é preciso:

(...). Partir assim da circulação dos objetos e da identidade das


práticas, e não das classes ou dos grupos, leva a reconhecer a
multiplicidade dos princípios de diferenciação que podem explicar as
distâncias culturais: por exemplo, as propriedades de gênero ou de
geração, as adesões religiosas, as comunidades solidárias, as tradições
educativas ou corporativas, etc. CHARTIER, Roger & CAVALLO,
Guglielmo, 2002, p. 8.
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Nesse sentido, analiso as lembranças de leitura dessas mulheres que se intitulam


“donas de casa” com o objetivo de identificar a circulação de materiais impressos no
município e as diferentes formas com elas se apropriaram desses materiais. Ao
transcrever as entrevistas, deparo-me com narrativas memorialísticas, realizadas por
quem aceita visitar o seu passado, ressignificar a sua história, como afirma Viana:

Importância da experiência pessoal e a oportunidade de oferecê-la ao


outro até o estabelecimento de uma relação pactual, num acordo tácito
de um eu autorizado pelo próprio sujeito da enunciação e que toma
para si sua vivência passada (VIANA, 1993, p. 16).

As narrativas memorialísticas que trago para o debate apontam para um processo


de apropriação da leitura marcado pela superação das adversidades causadas por pais e
maridos, como demonstram as recordações de uma das entrevistadas. Nascida em
Pernambuco, em 21 de novembro de 1917, dona Isabel Pereira Lins 2 era filha de militar.
No início da entrevista, afirmou ter parado de estudar por opção. Depois de explicar que
a mãe teve dezesseis filhos, seis mortos ao nascer, traçou a seguinte característica do
pai: “meu pai muito era rigoroso, por causa do rigor dele, não foi só eu que parei de
estudar. A gente no aguentava aquelas coisas que ele fazia com a gente. Você sabe que
o militar é rigoroso por natureza, né? Concorda comigo?”.
O que seriam “aquelas coisas” que o pai fazia com os filhos? Solicitei à
entrevistada que explicitasse as atitudes do pai e ela disse que preferia não contar.
Meses depois, ao visitá-la após saber que estivera internada, ela me contou, sem que eu
perguntasse, sobre seu pai. Sem descrever os detalhes narrados por ela, embora haja o
seu consentimento para expô-lo, gostaria de frisar que o rigor do pai para que
estudassem era tanto que ele, todos os dias, tomava a lição dos filhos em uma lousa no
quintal, para cada erro havia uma punição física. Assim, apesar de ter sido uma
excelente aluna no “primário”, preferiu largar os estudos a continuar com as “lições”
dadas pelo pai.
O rigor do pai para com os filhos seria apenas uma das superações que dona
Isabel enfrentou enquanto em sua trajetória de leitora. Vale dizer que as lembranças de

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Permitiu ser identificada.
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seu pai não foram acompanhadas por sentimentos de rancor. Pelo contrário, a filha olha
para trás com a maturidade e sensibilidade de quem sabe considerar o lugar de
enunciação dos gestos paterno. Com a filmadora desligada, ela me narra a morte do pai
e desabafa: “eu ainda tenho muitas saudades dele”. Loiva Félix eplicita que “memória é
um dos suportes essenciais para o encontrar-se dos sujeitos coletivos, isto é, para a
definição dos laços de identidade” (1998, p. 35). Com a mesma pertinência Ecléa Bosi
define a função da memória:

Qual a função da memória? Não constrói o tempo, não o anula


tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado
lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além, ao qual retorna
tudo o que deixou à luz do sol. Realiza uma evocação (Bosi, 1994, p.
59)

A leitora Isabel evoca sem passado sem ressentimentos. Reencontra-se com os


fatos que marcaram a sua trajetória de maneira sensível e emotiva. Ao tratar da infância
e da escola, afirma que gostava muito de gostar de estudar, talvez por isso suas
lembranças apontem para a pouca opção de material de leitura oferecido pela escola:

Aprendi a ler quando estava no segundo ano primário. A professora


era fã da pessoa que estudava. Geralmente, no fim da aula, a
professora tirava o tempo para a leitura. Eu tomei gosto pela leitura.
Dos livros que eu estudei, minha memória guarda o livro de Erasmo
Braga, era essa a eitura que tínhamos na escola.

Na juventude, tinha-se mais opção de livros, mas ainda existia a presença


controladora do pai: “A juventude foi bem, mas sempre com o rigor de meu pai”.
Quando trata desse período de sua vida, traz à tona, pela segunda vez, a presença
materna: “Na juventude eu tinha uma carreira de livros que eu gostava de ler. Minha
mãe fiscalizava nossas leituras. Com uma de minhas irmãs ela achou uma leitura que
para ela era desagradável”. Indaguei a ela o que era considerada uma leitura
“desagradável” e obtive a seguinte resposta: “Leitura desagradável era uma leitura não
digna de ler”. A experiência vivenciada na metade do século XX é resultado de uma
forma de viver que tinha sua fundamentação no processo histórico de formação social.
Demarcadas, quase sempre, pela voz masculina, as regras de convivência social,
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baseadas em pressupostos moral-religioso, dificultam, por um longo período, a


aproximação entre o gênero feminino e o processo de leitura e de escrita. Amparados
pelo ideal de proteger a “moral” feminina, padres, médicos, políticos discursaram sobre
a importância de delimitar o acesso das mulheres à leitura. Silvana Fernandes Lopes
(1997), oferece um exemplo desses discursos:

Na sessão de 29 de agosto, o Marquês de Caravellas apresenta uma


emenda relativa à educação das meninas:
“Salva a redação – quanto à Aritmética somente as quatro operações, e
não ensinarão as noções de geometria prática”.
(....)
“Na sessão do dia 30 de agosto, entretanto, foi aprovada a emenda que
propunha a simplificação do conteúdo do ensino das meninas, após
um longo discurso do senador Visconde de Cayru a propósito da
superioridade masculina, e da argumentação final do Marquês de
Cravellas: “As meninas não tem desenvolvimento de raciocínio tão
grande como os meninos” (Fonte: Annaes do Senado Federal, 1827,
vol 2º, sessão de 29 de agosto de 1827 (pp. 261-272. Annaes do
Senado Federal, 1827, Annaes do Senado Federal, 1827, vol 2º,
sessão de 29 de agosto de 1827 (pp. 261-272sessão de 30 de agosto de
1827 (pp. 261-272) (LOPES, 1997, p. 25).

A tranquilidade para vivenciar a prática da leitura e para ampliar as


possibilidades de acesso ao livro deu-se, de acordo com as recordações de dona Isabel, a
partir do casamento: “nós nos conhecemos na igreja. Ele foi daqui para Curitiba, para
estudar. Naquela semana ele foi ao culto e nos encontramos. Diz ele que quando me
viu.... Acho que deu certo- rsrsrs. Casamos no dia 13 de agosto de 1948 e tivemos seis
filhos. Depois de casada, saiu do Paraná para iniciar uma nova vida em Dourados:
“Cheguei em Dourados em 1956”. Do município vai se recordar: “Aqui tinha muitos
bailes e o cinema. (...). Na época, nunca percebi outras mulheres que gostassem de ler
como eu”. Mas suas lembranças não trazem aspectos da cidade, volta-se mais para sua
vida privada: “Eu fiz um ótimo casamento. Nunca esperei na minha vida que
encontrasse um marido tão bom como era o Lins”. José Pereira Lins, seu marido,
formou-se em Letras na Universidade Federal do Paraná. Pelo que Dona Isabel indica,
buscou compartilhar com a esposa sua paixão pelos livros, em especial, pelos literários:
“Ele sempre estava me dando livros. Presenteava-me com muitos livros”. As obras
adquiridas na infância e as presenteadas pelo marido ficam guardadas em uma
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prateleira, fechada com dois cadeados. Na prateleira se encontra uma diversidade de


títulos, a coleção completa de José de Alencar: “Quando jovem eu sempre gostei de ler
José de Alencar. Eu li todos os livros de José de Alencar”, das obras do autor ela
destaca Iracema e complementa: “Iracema eu já li muitas vezes. Leitura boa e
agradável 3”.
Os livros escolares com os quais estudou também são guardados na prateleira.
Em especialmente, destaca o de Erasmo Braga, do qual se lembra com maior apreço,
talvez pela relação que estabeleça com a professora que se utilizava dessa obra ou quem
sabe por terem sido os livros de leitura as únicas opções em sua época. Além dos
citados, dona Isabel enumera outros títulos: “Além do José de Alencar, li Victor Hugo,
Alexandre Dumas, José Mauro de Vasconcelos, Setubal. A maioria dos meus livros são
evangélicos, poesias e romances evangélicos”. Os últimos materiais citados
correspondem à escolha religiosa da leitora.
As lembranças de d. Isabel apontam para escolhas de leitura diversas. Além
disso, demonstram que o incentivo a essa prática partiu da família, apesar do rigor e da
fiscalização de seus pais. A pouca opção de livros oferecidos pela escola, por sua vez,
foi recompensado pelo afeto da professora, que despertava o interesse pelas leituras das
histórias do livro didático de Erasmo Braga. O casamento com um professor formado
em Letras e apaixonado pela leitura literária trouxe-lhe novas possibilidade de títulos e
de estilo:
(...), se concordarmos implicitamente sobre o que deve ser a leitura.
Aqueles que são considerados não-leitores lêem, mas lêem coisa
diferente daquilo que o cânone escolar define como uma leitura
legítima. O problema não é tanto o de considerar como não-leituras
estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de fraca
legitimidade cultural, mas é o tentar apoiar-se sobre essas práticas
incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola,
mas também sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras
leituras (CHARTIER, 1999, pp. 103-104).

Sem dúvida, as recordações de leitura apontam para escolhas advindas de


diferentes esferas: pais, escolas e marido. Da experiência de leitura, procura conceituar
essa prática: “A leitura para mim é descanso, ela abre a mente. Muitas vezes a

3
Grifo meu.
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compreensão desaparece da gente e na leitura a gente encontra o porquê de muitas


coisas”. De acordo com sua definição, a leitura oferece explicações para os fatos,
possibilita ver a vida de forma mais flexível. Além disso, a leitura também oferece o
descanso, ou seja, é realizada por ela como lazer. O que seria “abrir a mente” para essa
entrevistada? Para Celie, citada no início deste artigo, a leitura das cartas da irmã
possibilitou rever seu passado e vislumbrar um futuro sem as marcas da submissão ao
sexo masculino. “Abrir a mente” talvez represente esclarecer dúvidas, adquirir
conhecimentos, ressignificar a si e ao outro. Hoje, com mais de noventa anos, o físico já
não lhe permite ler na quantidade de antes: “Não posso mais ler muito porque não
enxergo mais letras pequenas. Preciso usar lupa”. Diante da limitação física, ela
seleciona as leituras que mais lhe marcaram: “O que eu mais tenho lido é a Bíblia e José
de Alencar”. A Bíblia marca a sua trajetória religiosa, o pai, além de militar, também
era pastor evangélico; já José de Alencar, durante a entrevista, foi citado como o autor
que mais marcou a sua juventude. Peço que ela me conte uma das histórias que mais
gostou de ler e ela me narra a vida de Ester, do livro de Ester, antigo testamento da
Bíblia.
Muitos podem questionar a definição dada por ela de que a leitura “abre a
mente” com a seleção que d. Isabel faz das leituras que mais lhe marcaram e como
afirma ser a Bíblia, hoje, o livro mais lido por ela. A Bíblia, escrita por homens, em
muitos momentos subjuga as mulheres. Todavia, a narrativa memorialística dessa
leitora está transpassada por sua trajetória de vida. Ao definir Identidades Culturais,
Stuart Hall lembra que elas são “aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de
nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de
tudo, nacionais” (HALL, 200, p. 8). O pai era pastor evangélico, o marido era/é
evangélico e ela sempre comungou dessa fé. Assim, nada mais natural que na velhice,
apesar das opções de leitura que tem em sua casa, opte por dedicar o tempo à leitura da
Bíblia.
A forma como Dona Isabel descreve sua trajetória de leitura e as obras citadas
como as que marcaram a sua infância e a sua juventude contribui para a compreensão de
uma História da Leitura que deseja perceber não apenas as maneiras de ler, mas que
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também se interessa pelo processo de escolhas. O que justifica uma escolha em


detrimento da outra?:

(...). Uma história da leitura não deve limitar-se apenas à genealogia


da maneira contemporânea de ler em silêncio e com os olhos. Ela tem
também, e talvez sobretudo, como tarefa reencontrar os gestos
esquecidos, os hábitos que desapareceram. O desafio é muito
importante, pois revela não só a distante estranheza de práticas que
eram comuns antigamente mas também o estatuto, primeiro e
específico, de textos que foram compostos para leituras que não são
mais as de hoje (CHARTIER & CAVALLO, 2002, p. 08).

Ao narrar sua trajetória de leitura, dona Isabel expõe também um processo de


limitação ao texto. A leitura vigiada, a escassez de materiais impressos na escola, o
rigor do pai ao cobrar os estudos dos filhos. A narrativa memorialística de dona Isabel
compõe, portanto, uma história coletiva. A História da Leitura, como explicitado aqui,
também acompanha essas marcas de vigilância e de acesso aos livros.
1.3. Últimas palavras
Quando se chega a um lugar novo, onde se passará a ganhar o “pão nosso de
cada dia”, surge a quase necessidade de conhecer o novo território. Intencionei conhecer
Dourados a partir de sua História da Leitura. Ouvir a trajetória dos pioneiros e de seus
descendentes a partir das lembranças do tempo escolar, dos causos ouvidos na infância e
das lembranças das leituras que marcaram a trajetória dessas pessoas que contribuíram,
de diferentes formas, para a consolidação do Município de Dourados, tem sido uma
aprendizagem enriquecedora. Ao refletir sobre a trajetória de leitura desses moradores,
empreendo uma das muitas possibilidades de abordagem da pesquisa voltada para a
História da Leitura:

[...] a história da leitura encontrou um poderoso auxílio na história da


alfabetização e da escolarização, a das normas e das competências
culturais e da difusão e dos usos do impresso. Ela apareceu como o
prolongamento possível, necessário, dos estudos clássicos que
desenharam, para diferentes locais europeus, a conjuntura da produção
editorial, a sociologia dos possuidores de livros, a clientela dos
livreiros, dos gabinetes literários e das sociedades de leitura
CHARTIER & CAVALLO, 2002, p. 36.
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Ao narrar suas histórias e as leituras que marcaram as diversas fases de suas


vidas, as leitoras deixam transparecer o quanto foi preciso resistir às imposições dos
pais e dos maridos para desfrutarem da prática da leitura. Como tenho divulgado em
outros artigos, é comum ouvir mulheres descrevendo histórias de leituras marcadas pela
opressão: a necessidade de esconder os folhetins das revistas e dos jornais dentro da
Bíblia para não serem importunadas; senhoras que além de ler se deram ao direito de
escrever textos literários e que tiveram sua produção queimada pelo marido, mulheres
subjugadas pelos pais e pelos companheiros, retiradas da escola ou proibidas de ler.
Professoras que resistiram às palavras pessimistas de pais que acreditavam que “estudar
era coisa de homem”. Trajetórias que demonstram que a pesquisa acerca da História da
Leitura, quando se trata do gênero feminino, exige mais do que explicitar o rol de obras
lidas, requer observar as entrelinhas dos discursos, perceber a resistência e o
rompimento ao discurso que historicamente subjugou o espaço das mulheres.
A trajetória de leitura de dona Isabel é, nesse sentido, exemplar. Mesmo sem
completar o ensino básico, dialogou com os clássicos: Victor Hugo, Alexandre Dumas,
José de Alencar, Machado de Assis, Dante Alighieri, etc. Superou a fiscalização
materna e o rigor paterno. Apropriou-se dos poucos livros que a escola oferecia e deles
ainda se recorda com afeto. Aos noventa e dois anos, dona Isabel, enquanto narra a sua
trajetória, aponta um lugar diferenciado nos espaços ocupados por ela. Foi/é filha, mãe,
esposa e leitora, com todas as implicações que a prática sugere.

Referências

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Letras: Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 1999 (Coleção Histórias de
Leitura).

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das
Letras, 1994.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo de


Moraes. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.

CHARTIER, Roger & CAVALLO, Guglielmo. História da Leitura no Mundo


Ocidental 1. São Paulo: Ática, 2002.
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FÉLIX, Loiva Otero. História e memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo:


Ediupf, 1998.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva


e Guaracira Lopes Louro. 6. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

LACERDA, Lilian de. Album de leitura: memórias de vida, histórias de leitores.


Prefácio de Roger Chartier. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

LOPES, Silvana Fernandes. A formação feminina na sociedade brasileira do século


XIX: um exame de “modelos” veiculados pela literatura de ficção. Campinas: São
Paulo, 1997.

MATTELART, Armand & NEVEU, Érik. Introdução aos Estudo Culturais. Trad.
Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

VIANA, Maria José Motta. Do sótão à vitrine: memórias de mulheres. Belo Horizonte:
editora UFMG, 1993.

WALKER, Alice. A cor púrpura. 7ª. Ed. Trad.: Betúlia Machado e Maria José Silveira.
São Paulo: Editora Marco Zero,
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A ESTÉTICA DA PROVOCAÇÃO FORMAL NA PEÇA PRAÇA DOS HERÓIS,


DE THOMAS BERNHARD

Alexandre Villibor Flory (UEM)

Introdução

A obra do austríaco Thomas Bernhard vem paulatinamente sendo alçada à condição


de cânone literário na Europa. Já são muitos os que o consideram um clássico, com toda
a carga, positiva e negativa, que tal estatuto carrega consigo. O arrefecimento de seu
ímpeto crítico em relação à literatura e à sociedade passa pelo processo de canonização
do homem público, tomado agora como um escritor excêntrico e atormentado, dono de
uma sensibilidade aguçada e neo-romântica. Essa perspectiva empresta caráter subjetivo
às questões espinhosas com que sua obra lidou e ainda lida. Esse é o contexto mais
amplo de sua recepção hoje em dia, momento em que suas narrativas são traduzidas e
publicadas no Brasil, nos últimos anos pela Cia das Letras. Curiosamente, nenhuma de
suas muitas peças foi ainda publicada no Brasil, embora haja algumas montagens de
suas peças, como por exemplo No alvo, em 2004, e A força do hábito, em 2004, ambas
em São Paulo, além de Ritter, Dene, Voss, em Porto Alegre e São Paulo. Para fugir
dessa leitura esteticizante de sua obra, é preciso nunca perder de vista o chão austríaco,
sempre presente em suas obras, com ênfase cada vez maior a partir da escrita do
primeiro volume autobiográfico, em 1975. O perigo que sua obra corre é recair em uma
análise de influência pós-moderna, identificando a perda de sentido da linguagem e sua
incapacidade de expressão num mundo em que tudo é fugidio, recaindo numa aporia
niilista ou no gozo do texto, como artefato verbal. Cumpre lembrar que a obra de
Bernhard se esquiva a essa leitura unidirecional de diversas maneiras, no teatro em
especial, escrevendo sempre para seu público de estréia, ou melhor, contra ele, como
bem formulou um crítico sagaz, que será comentado a seu tempo.

Nesta comunicação pretendo discorrer sobre alguns aspectos do teatro do austríaco


Thomas Bernhard, mais especificamente sobre sua última peça, Praça dos Heróis
(Heldenplatz), de 1988. Essa montagem foi marcada por um escândalo que, tudo leva a
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crer, era previsto pelo autor, talvez mesmo programado por ele. Isso se torna ainda mais
instigante quando se sabe que esta citação quase direta da realidade material, pelo tema,
será contrastada, no âmbito da criação verbal, por uma escrita fragmentária, circular, a
tal ponto que o autor chega a ser acusado de solipsista por sua linguagem labiríntica,
hermética, repetitiva e cansativa, exagerada até o limite do aceitável.

Algumas questões que norteiam essa comunicação podem ser assim formuladas:
como articular essas duas perspectivas, em aparência mutuamente excludentes, a saber,
uma aproximação quase imediata com a matéria social na concepção de uma
provocação direta e implacável, combinada com uma mediação exacerbada pela
linguagem, que impede uma visada ‘realista’, no sentido de escola realista, exigindo a
distância do público pela artificialidade e esteticização da linguagem? Quais os
impactos e produtividade em termos formais? De que modo se constitui uma dialética
entre forma literária e processo social a partir dessa encenação? Qual o modo pelo qual
dialoga com a história das formas teatrais? São questões abrangentes e complexas que,
aqui, serão antes apresentadas do que desenvolvidas em todas as suas potencialidades,
com o intuito de colocar em debate esse teatro ainda pouco difundido no Brasil.

1) Heldenplatz 1938-1988: a arte ‘imita’ a vida

Algumas linhas sobre o enredo e estrutura da peça se afiguram como necessárias.


O diretor alemão Claus Peyman, então superintendente do Burgtheater de Viena, o mais
respeitado palco da Áustria, pede ao amigo e colaborador Bernhard uma peça para ser
montada no jubileu de cem anos da fundação do teatro, 1988, coincidindo com os 50
anos da anexação nazista. Um grande circo estava sendo armado em torno destas
comemorações, buscando repisar a velha tecla da vitimização da Áustria e dos
austríacos. Os eventos procuravam, em especial, esquecer o escândalo da eleição de
Kurt Waldheim, em 1986, para a presidência da Áustria, quando seu passado ligado às
SS viera à tona e, não obstante isso (e talvez mesmo por causa disso) fora escolhido
como presidente. Um momento em que a política austríaca muda radicalmente, nas
palavras de vários críticos, ao se perceber que a remissão ao passado nazista (nas tropas
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SS, que exigiam alistamento voluntário e perpetravam os crimes mais hediondos) não
impedia um político de ocupar uma das cadeiras mais importantes de seu sistema
político.

Com estréia em 4 de novembro de 1988, Heldenplatz é o local onde, cinqüenta


anos atrás (exatamente no dia 15 de março) Hitler fora recebido com júbilo e festa pelos
vienenses. Num apartamento diante desta praça (onde se situa, de fato, o Burgtheater), a
família e os amigos do prof. Josef Schuster, judeu autríaco, se reúnem para o enterro
deste, que se suicidara após constatar que a situação da Áustria estaria pior agora (1988)
do que cinqüenta anos atrás, com os ex-nazistas saindo dos escuros para onde foram
impelidos, voltando ao primeiro plano. A peça prescinde de conflitos intersubjetivos e
de curva dramática ascendente, com base na ação. Os personagens, das camareiras às
filhas, irmãos e amigos, discutem a situação atual da Áustria ou questões banais, do dia-
a-dia. O tema central, de fato, é a Áustria e sua história recente, assunto épico por
excelência. O momento no qual, ao final da peça, a esposa do prof. Schuster ouve,
apenas ela e o público, a gravação original da recepção pra lá de calorosa que Hitler
recebera logo ali em frente, funciona como a materialização cabal dessa perspectiva
épica, em chave crítica. São milhares de vozes em estado de êxtase e adoração,
contrastando com o olhar vítreo da silenciosa Schuster. Os outros personagens não
param de conversar, e a princípio ouve-se apenas um sussurro. Aos poucos, o volume
aumenta e não se ouve mais suas vozes, embora continuem conversando. Agora temos
apenas Frau Schuster, imóvel, estarrecida, desfigurando-se aos poucos, e a voz da
multidão, tomando conta da cena. Formalmente, o diálogo intersubjetivo perde
importância e centralidade, embora presente, e a história atualizada em 1988 vê-se
cenicamente, evidenciando a afinidade eletiva com que um tempo histórico cita outro,
ganha sentido num presente que o significa, na expressão do rosto de Frau Schuster,
abrindo espaço para um ‘agora da conhecibilidade’ benjaminiano, que se abre quando
um momento histórico cita outro, aumentando a tensão e permitindo o irromper de
significados sobre ambos os momentos. A montagem faz as vezes do historiador
materialista benjaminiano, que quer contar a história a contrapelo da voz dominante.
(BENJAMIN, 1996) Seu efeito cênico é potencializado pelo escândalo público em torno
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da montagem. No fim da cena, Frau Schuster cai morta, com a cara na sopa. Em cena,
as vozes que são a verdade da Áustria de 1938, agora audíveis e mais aterradoras nos
idos de 1988. Nos porões da democracia austríaca e da união pela autonomia política,
pouca coisa mudou; apenas na superfície, com a recriação de sua imagem como um
povo bonachão e alegre, incapaz de cometer as atrocidades nazistas, colocando-se como
as primeiras vítimas de Hitler. A remissão ao quadro político-social não poderia ser
mais evidente. Bernhard, deste modo, incita o debate que se queria abafar. Waldheim
em pessoa acusa a peça, dizendo: “Eu considero essa peça uma ofensa grosseira ao
povo austríaco”, ao que o autor responde: “Sim, minha peça é atroz. Mas a peça
encenada diariamente em todos os cantos deste país é igualmente atroz.”
(BERNHARD, 1995, contracapa)

A crítica teatral Sigrid Löffler consegue trechos da peça, vazados em meio aos
ensaios, e os publica na revista Profil – o que, segundo muitos, teria ocorrido com a
anuência implícita de Bernhard e Peyman – em agosto e setembro de 1988, dois meses
antes da estréia, o que instaura um escândalo pelas invectivas dos personagens contra a
Áustria e os austríacos, chamados ao longo da peça de débeis-mentais, nazistas e
católicos, todos os seis milhões de habitantes (MILLNER, 1995, p. 249 ss) Como se
verá, esse caráter hiperbólico faz parte de sua estética, constituindo o que ele chamará
de ‘arte do exagero’. Jornais como o Neuen Kronen Zeitung e políticos como o vice-
Kanzler Alois Mock, além do ex-Kanzler Bruno Kreisky, posicionam-se contra a
montagem da peça, enquanto a ministra da educação Hilde Hawlicek e autores do porte
de Elfriede Jelinek, Michael Scharang e Peter Turrini defendem a liberdade de
expressão. No dia 12 de outubro de 1988, Alois Mock e o famigerado Jörg Haider
exigem a demissão do diretor do Burgtheater, com as palavras: “Fora de Viena com a
escória” (DITTMAR, 1993, p. 183), com o que miravam o alemão Peyman e parte de
sua equipe. Surgem campanhas de difamação contra Peyman e Bernhard que, de certa
forma, fazem com que o texto da peça seja atualizado, por assim dizer, no palco real da
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opinião pública austríaca, antes mesmo da encenação, concordando com o crítico Hans
Höller. 1

2) Do uso e do efeito das repetições em Bernhard

Seguiremos agora para algumas breves considerações sobre a linguagem em


Heldenplatz. As repetições, retomadas, voltas caracterizam toda sua obra e o tom de
seus textos. Os efeitos disso são muito variados e, às vezes, até paradoxais. Aqui nos
restringiremos a algumas considerações sobre um trecho de Heldenplatz característico
de seu estilo:

“O que os escritores escrevem / não é nada frente à realidade / simsim eles


escrevem sim que tudo é amedrontador / que tudo é pervertido e decadente /
que tudo é catastrófico / e que não há saída / mas tudo que eles escrevem /
não é nada frente à realidade / a realidade é tão pior / que ela não pode ser
descrita / ainda nenhum escritor a realidade / descreveu / como ela
realmente é / isto é o mais amedrontador.” (tradução livre de AF)

Aqui já podemos perceber alguns traços que vão permear sua escrita, em todos os
seus romances e dramas, de uma maneira obstinada, e que funciona como uma espécie
de provocação também contra o leitor. Em termos formais, não se trata de um poema
dentro da peça, toda ela é escrita com frases curtas e, por vezes, por palavras isoladas, o
que pode até ser lido como uma indicação cênica, embora não marcada como tal. A
linguagem tenta apreender a realidade caracterizando-a como amedrontadora,
assustadora, pervertida, decadente, catastrófica e sem saída, o que é repetido
incansavelmente. No entanto, terrível mesmo é a impossibilidade de expressá-la pela
linguagem, como ela é. No caso em questão temos escrevem, descrevem, escrevem; que
tudo, que tudo, e que tudo, mas tudo; realidade, realidade, realmente, e por aí afora.
São vários os efeitos desta repetição; em primeiro lugar, a repetição excessiva
embaralha o sentido atribuído às palavras. A repetição sistemática nos leva também a
questionar se o falante está realmente certo daquilo que diz: a assertividade e a
objetividade costumam ser dadas apenas uma vez. Quem vacila, duvida, não se sente

1
“De uma hora para outra havia esforços para o boicote da apresentação e se exigia a expulsão do autor e
do diretor, como se o teatro tivesse conseguido provar a provocante asserção da peça, de que os anos de
1938 e 1988 seriam intercambiáveis.” (HÖLLER, 2001, p. 7; trad. livre AF)
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seguro repete, muda a entonação, a ordem sintática, dá voltas em torno do mesmo ponto
sem parar, cisma. O cismador é aquele que nunca se considera pronto, aquele que acha
que deve sempre voltar ao tema, buscar novas cores. O mais importante, porém, é a falta
de mobilidade que a repetição expressa. Se, no plano do conteúdo, 1938 e 1988 são
aproximados em sua infâmia, essa identidade e permanência ganham contornos, em
termos formais, pela repetição das mesmas ideias, vocábulos e estrutura sintática. Já se
viu que a peça não é marcada nem pela ação e nem pelo diálogo, embora seja o texto o
único recurso que resta aos personagens. Sua repetição dá contornos a esse falar
contínuo sem alteração: repisa o mesmo, como se esses fossem os únicos assuntos que
valessem a pena ser tratados. Deste modo, a linguagem não é, em Bernhard, desviante
em direção ao esteticismo. Primeiro porque impede, pela repetição e exagero, que seja
denotativa, mero instrumento de transmissão de mensagens. Segundo, mimetiza a
imobilidade psicológica e social. Terceiro, pelas invectivas contra a Áustria e sua
política sócio-cultural de encobrimento pela repressão de sua culpa e postura na guerra,
fugindo dum estilo realista e, ainda, contando com tom provocador, atiçando a opinião
pública. Sua incapacidade de descrever a realidade não recai em vale-tudo semântico,
mas na crítica à cultura: a linguagem é social, por natureza, e não pode ser usada sem
mais. Sendo assim, faz crítica da linguagem para torná-la produtiva e criativa para a
compreensão da realidade. Sendo assim, ela não se afasta da realidade, mas exige uma
remissão dialética a ela, reforçando o papel ético da estética. Vale a pena discutir um
pouco mais detidamente sua ‘arte do exagero’.

3) Arte do exagero e teor de verdade da mentira


Comecemos por uma citação:
Prof. Robert: A Áustria não é nada além de um palco / no qual tudo é
degradado e exterminado e degenerado / [...] / seis milhões e meio de
débeis-mentais e desvairados / que urram ininterruptamente com toda
a fúria por um diretor / O diretor virá / e os levará definitivamente ao
abismo / seis milhões e meio de comparsas.” (BERNHARD, 1988, p.
89: trad. livre AF)

Aqui se abre o espaço para uma curta discussão sobre a forma da escrita artística,
sem perder de vista sua inserção na sociedade, pois Bernard, como já se viu, só por erro
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pode ser rotulado como um autor fechado em si mesmo, preocupado apenas em realizar
torneios lingüísticos auto-referentes. A “arte do exagero” (Übertreibungskunst) é um
dos pontos centrais de sua estética, levada em consideração por todos os seus
comentadores. Ela encontra sua formulação mais acabada no romance Extinção, de
1986, que tem um diálogo muito frutífero com a peça em questão, especialmente no que
tange à atualização do passado nazista na Áustria da década de 80, tanto pelo tema
como pela concepção de linguagem que se depreende dos textos. Neste romance, lê-se a
determinada altura:
Muitas vezes somos levados a tal ponto por um exagero [...] que
acabamos por considerar este exagero como o único fato lógico e não
percebemos mais o fato real, só o exagero levado desmedidamente ao
extremo. BERNHARD, 2000, p. 447)

A realidade passa a ser então este exagero, necessário para a expressão e criação de
todo e qualquer fato. Mas que não se incorra em erro: este exagero não pode ter suas
arestas aparadas para se chegar ao “fato” verdadeiro, em estado puro, intocado: este não
existe, pois depende da linguagem, de uma forma, de uma expressão e de uma posição,
tarefa da qual não podem fugir os artistas, em especial os escritores: “[...] tal como o
escritor que não exagera é um escritor ruim, pode ocorrer também que a verdadeira
arte do exagero consista em subentender tudo [...] (BERNHARD, 2000, p. 448)

O exagero na expressão não passa de uma diminuição, ou, em outras palavras, de


algo muito diferente da realidade social, visto que o material é outro: não há sangue no
chão, mas tinta no papel, que aceita tudo. A mediação artística, mesmo quando utiliza as
tintas mais negras, não chega perto do terror da realidade social que, por outro lado, cria
e sustenta. A passagem citada em Heldenplatz é das mais significativas a este respeito.
Nela a linguagem não pode exprimir a realidade, não apenas por ser outra coisa, mas
ainda por ser a realidade muito pior do que qualquer expressão, mesmo a mais incisiva.
Nos dois casos, de Extinção como de Heldenplatz, a história recente da Áustria e da
modernidade estão no campo de visão destas assertivas. Por trás desta concepção está a
impossibilidade da mimetização do real pela arte, o que implica numa necessária
distorção pela mediação da linguagem e, ainda, pela perspectiva e interesses de quem
narra. A forma literária em que esta mentira será articulada fala uma verdade da forma
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social, também ela mediada. A Untertreibung pode ser lida como a insuficiência da arte
e do sujeito em estabelecer a ponte que conduza à realidade, de modo que resulte num
arrefecimento em relação à experiência social real; a ocultação disto consiste no maior
dos perigos. Daí a necessidade do exagero que, no caso em questão, provoca o leitor e
tenta, ao menos, estimulá-lo, retirá-lo da apatia típica do momento do consumo passivo
das informações segundo o padrão em nossa sociedade.

4) Provocação formal em Heldenplatz: politização da estética

O exagero leva à provocação. Ao desenvolver estes temas tanto no conteúdo


quanto na forma, criando um diálogo incessante e rico, com choques, reforços – nova
repetição – surge uma estrutura. Isto tudo não seria tão vivo e forte, se a escrita de
Bernhard fosse eminentemente metafísica e abstrata, o que não é definitivamente o
caso: trata-se da Europa, da Áustria e sua cultura, história, espírito. Como bem notado
por Winkler (2002, p. 100), Bernhard escreve contra seu público de estréia, o que não
ocorre pela primeira vez, sendo antes um fator estrutural em muitas de suas peças. Isso
exige a participação ativa do público, instigado a interagir. Fica evidente que a
provocação se eleva à forma quando se compara com uma encenação desta peça na
França, que tenta ser fiel às palavras do texto, e não à forma, realizando assim uma
crítica desabrida à Áustria. Sua verdadeira índole assoma ao primeiro plano pela única
alteração introduzida por esta montagem: na passagem em que os socialistas são
considerados colaboradores dos nazistas, sem especificação, a adaptação insere uma
palavrinha: os socialistas austríacos teriam agido assim. Deste modo, os encenadores
franceses evitam que se confunda esta montagem – que se quer estéril – à colaboração
dos socialistas com o governo de Vichy, na França sob ocupação alemã. Entre eles,
como se aventava, figurava o então primeiro-ministro Mitterand. Ou seja: esta
encenação funciona como um panfleto contra a Áustria, sem citar nem de perto o
contexto francês. Isto difere muito do caso austríaco que, a despeito das oposições, foi
encenada no Burgtheater, com todo o escândalo tanto dentro quanto fora do teatro.
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Como se viu, a obra de Thomas Bernhard nos anos 80 não é alheia ao quadro
histórico em que está inserida. A politização da estética contra esse contexto será uma
das linhas de força de sua obra. Por um lado, a altercação com a história recente
austríaca, que deve ser relida a contrapelo, buscando justamente na linguagem e na
memória o outro discurso, abafado, reprimido e esquecido: esta linha leva até a obra
considerada sua obra-prima Extinção. Por outro lado, uma provocação conseguida pela
entrada quase direta da matéria social para dentro da obra de arte, por meio da palavra
mediada: impureza na autonomia da obra de arte que está relacionada com a forma
social que engendra a modernidade.

O autor não descuida em criticar o isolamento da arte como esfera autônoma da


vida, cisão essa materializada em templos como o Burgtheater, que ele pretende
dessacralizar. O palco do Burgtheater agora faz parte das conversas pelas ruas de Viena,
e o escândalo faz parte deste cálculo. O Neue Kronen Zeitung, jornal conservador entre
os mais importantes da Áustria, publica no dia da estréia uma fotomontagem do teatro
em chamas, o que remonta ao fogo que destruiu o Burgtheater durante o austrofascismo.
Peter Sichrovsky, então chefe de redação da seção Feuilleton do jornal Der Standart,
publica no dia da estréia (4 de novembro de 1988) um artigo no qual pede não apenas
boicote, mas tumulto em frente e dentro do teatro. Suas palavras são eloquentes:

Um escritor e diretor de teatro, que tem uma opinião inequívoca sobre esse
país e vê seus moradores, de modo geral, como idiotas e criminosos, utiliza
uma personagem [...] para transmitir essa mensagem ao público. Essa
personagem é, para fazer justiça com os diversos jubileus deste ano, um
judeu! O judeu, analítico e inteligente como (naturalmente) todos os judeus,
se ocupa, na condição de imigrante que retornou ao país, dia e noite com a
alma austríaca. [...] Aqui um diretor de teatro de Bochum, com a ajuda de
um escritor austríaco, deixa um judeu de Viena latir como um pastor alemão.
(BEIL, 1999, p. 98)

Assim a peça e o texto conseguem uma amplitude importante para o cálculo de


Bernhard, e vai às folhas policiais, políticas e econômicas, tendo em vista a crítica que
recebe pelo fato desse teatro ser financiado com dinheiro público. Nesse sentido, a
recepção e o efeito deixam de ser exteriores à obra, que conta com essa repercussão
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como parte de sua estratégia. “Hoje já se tornou difícil falar sobre a Áustria sem citar o
nome Bernhard.” (SCHMIDT-DENGLER: 1997, 177) Sua ativa participação como
figura pública contribui para a incursão da vida pulsante na obra. Uma montagem que
não leve em conta esse aspecto não faz jus à peça, o que dá conta de seu caráter formal.

5) Brecht e a provocação formal


Pasta Jr. (1986) mostra que Brecht, em seu texto Processo dos três vinténs, eleva a
nível formal a penetração social de suas performances públicas. 2 O objetivo era
organizar e controlar um escândalo, com o que angariava visibilidade social, não se
restringindo apenas ao âmbito estético. Como visto até aqui, esta perspectiva também
foi adotada por Bernhard em Heldenplatz, o que aproxima os dois projetos estéticos. Em
primeiro lugar, Brecht projeta uma pendenga judicial com um grande estúdio
cinematográfico. Ele vende os direitos de filmagem da peça Die Dreigroschenoper, mas
exige que ele mesmo seja o adaptador. Brecht conta com a amenização do teor crítico da
filmagem, visando o grande público, o que de fato ocorre. Quando já se havia gasto
mais de um milhão de marcos com produção e filmagem, Brecht processa a empresa,
alegando mudanças em sua adaptação. A partir daí, Brecht conduz os episódios do
processo como um diretor de teatro. Ele sabe que não tem como lutar contra um milhão
de marcos, e quer fazer do episódio a ilustração e expressão desta impossibilidade: a
integridade da arte versus um milhão de marcos. Neste sentido, ele deseja perder o
processo, para deixar evidente a lógica capitalista, e assim propiciar aprendizagem aos
que acompanharem o caso. Assim, não recorre quando perde em primeira instância.
Brecht intentava trazer para seu projeto o que antes era fortuito e ocasional: a
performance pública tornava-se parte da obra. Este passo do projeto brechtiano está
diretamente relacionado com a estética da provocação formal de Bernhard, o que mostra
uma relação importante entre projetos estéticos tão diversos. Essa relação será mais
importante à medida que a formação de um novo público e de uma retomada da função
social da arte em perspectiva crítica, impedindo a identificação com o palco, faz parte
da estética dos dois autores. Bernhard será, também, aproximado do teatro do absurdo,

2
Sigo de perto as reflexões de José Antonio Pasta Júnior, 1986, especialmente p. 56-71.
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por conta de sua linguagem elíptica e pouco instrumental, beirando o sem-sentido, por
vezes.

Considerações finais

No caso austríaco, escrever a história contra a corrente, salvando as leituras que


foram abafadas por uma cultura que se firma e se confirma continuamente, equivale,
também, a uma crítica da própria linguagem, já pesada como chumbo de tanto peso
histórico que carrega, nem todos heróicos ou sequer dignos. Daí a necessidade da
ruptura, que é tanto um enredo sem ação como personagens paralisados, em estado
aporético. Noutras palavras, será preciso negar a autonomia da obra de arte, o que se
consegue por seu estilo fragmentário e repetitivo, entre outras coisas. Sua ‘arte do
exagero’ também realiza esse percurso rumo a uma arte que não é espelho da realidade,
mas a torna visível, por mais que seja irrepresentável, que a realidade seja inexprimível.
Daí a tão comentada escrita solipcista, que, ao se ver por esse ângulo, é negação da
concepção tradicional de obra de arte que se esgota em si mesma. Porque ela faz, em
Bernhard, com que a arte se confronte com sua insuficiência em retratar qualquer real, o
que afirma seu estatuto de criação, em chave metalingüística e, também, metateatral. O
exagero explícito, elevado à forma, é também a porta de entrada para a provocação,
posto que a Áustria e os austríacos estão na alça de mira de suas invectivas, que não são
justificadas, mas apenas apresentadas: Bernhard não é um moralista que espera fazer um
julgamento, mas apresenta questões que, abertas como aparecem, cobram uma
participação do leitor, mesmo que seja negativa. Nas palavras de um crítico: “A
encenação do escândalo genuíno – que Bernhard tem em mente – segue outra lógica.
Ela oferece à arte autônoma a possibilidade de entrar em contato com a realidade mais
séria e perigosa.” (ELLRICH, 2002, p.180-1) Seu teatro é o lugar por excelência onde
consegue realizar esse projeto, e Heldenplatz seu exemplo mais bem acabado, dadas as
circunstâncias em que a obra é concebida, criada, ensaiada e encenada.

Deve-se notar que a crise da linguagem é cultural, e está diretamente ligada às


diversas crises do século XX, que atingiram, com muito vigor, a Áustria. Como no caso
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de Heldenplatz é quase impossível que se perca de vista a remissão ao contexto externo,


que inclusive se imiscui na estrutura da obra e impede que se a tome como uma obra de
arte orgânica, e sim como fragmento, como arte alegórica (BÜRGER, 2009), a análise
dessa obra serve como antídoto às correntes estetizantes, exigindo uma leitura
materialista que não exclui, pelo contrário, o estudo da linguagem. Neste sentido, sua
dramaticidade está tanto no palco como fora dele. Com essas considerações fecho esse
artigo, abrindo perspectivas para próximos estudos sobre essa forma de teatro dialético.

Referências

BEIL, Hermann /FERBERS, Jutta /PEYMANN, Claus /THIELE, Rita (orgs).


Weltkomödie Österreich. 13 Jahre Burgtheater 1986-1999. Wien: Zsolnay Verlag,
1999.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. SP:
Brasiliense, 1996.
BERNHARD, Thomas. Extinção. Tradução de José M. de Macedo. São Paulo:
Companhia das Letras , 2000.
___. Heldenplatz. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1988.
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Trad. José Pedro Antunes. SP: Cosac Naify,
2008.
DITTMAR, Jens. (org) Sehr Gescherte Reaktion. Leserbrief-Schlachten um Thomas
Bernhard. Wien: Edition S, 1993.
ELLRICH, Lutz. Die Tragikomödie des Skandals: Thomas Bernhards Roman
Holzfällen und der Ausbruch des Spiels in die Zeit. In: SCHÖSSLER, Franziska;
VILLINGER, Ingeborg (Orgs.) Politik und Medien bei Thomas Bernhard. Würzburg:
Königshausen & Neumann, 2002, p. 180-1.
HÖLLER, Hans. Thomas Bernhard. Reinbeck bei Hamburg, Rowohlt Verlag, 2001.
MILLNER, Alexandra. Theater um das Burgtheater: eine Kleine Skandalogie. In:
SCHMIDT-DENGLER, Wendelin; SONNLEITNER, Johann; ZEYRINGER, Klaus
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(Orgs.). Konflikte – Skandale – Dichterfehden in der österreichischen Literatur. Berlin:


Erich Schmidt Verlag, 1995.
PASTA Jr. Trabalho de Brecht: breve introdução ao estudo de uma classicidade
contemporânea. São Paulo: Ática, 1986.
SCHMIDT-DENGLER, Wendelin. Bruchlinien. Vorlesungen zur österreichischen
Literatur 1945 bis 1990. Salzburg und Wien: Residenz Verlag, 1996.
___. Der Übertreibungskünstler. Zu Thomas Bernhard. Wien: Sonderzahl, 3., erweiterte
Auflage, 1997.
WINKLER, J.-M. Rezeption und/oder Interpretation. In: HUBER, Martin; SCHMIDT-
DENGLER, Wendelin (Orgs.) Wissenschaft als Finsternis: Jahrbuch der Thomas-
Bernhard-Privatstiftung in Kooperation mit dem Österreichischen Literaturarchiv, p. 95-
108. Böhlau Verlag, Wien/Köln/Weimar 2002.
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A RIQUEZA NAS MALHAS DE O SOFÁ ESTAMPADO, DE LYGIA BOJUNGA


NUNES

Alice Atsuko Matsuda (SEED-CP/FACCREI/GP-CRELIT-UENP-CP)

Introdução

Lygia Bojunga Nunes, um dos nomes mais importantes da Literatura Infanto-Juvenil,


considerada herdeira de Lobato de grande porte, trata em suas obras questões ligadas a
temas universais que extrapolam o campo apenas infantil e juvenil. Pode ser
considerada uma escritora que atende a todos os níveis de leitores, da criança ao adulto.
Em uma linguagem acessível, escreve como quem conversa com seus leitores,
envolvendo-os e levando-os à reflexão da vida social, política e econômica, com jeito
poético e mágico. Além disso, possui uma habilidade para mesclar aspectos da escrita
com outros da oralidade. No entanto, poucos professores do Ensino Fundamental
conhecem sua obra e, portanto, não é comum encontrá-la nas bibliotecas escolares e ser
indicada para leitura. Desta forma, a presente comunicação pretende analisar a obra O
sofá estampado, uma das 22 obras da escritora, discutindo os temas presentes como
meio ambiente, consumismo, luta de poder, capitalismo, insegurança, desejo de
afirmação da identidade, entre outras questões contemporâneas. Além disso, o objetivo
do trabalho é também mostrar a riqueza literária do texto e sugerir uma prática
pedagógica, por meio do Método Recepcional, de como trabalhar na sala de aula com a
presente obra. Por ser uma obra rica, tanto no aspecto literário como no conteúdo,
professores e alunos não ficarão indiferentes à proposta do livro, proporcionando-os
sabedoria, prazer e aprofundamento nas relações humanas e participação na sociedade.

1. Temas abordados no livro

O tema central de O sofá estampado é a construção da identidade de Vitor, um tatu


tímido, inseguro que está em busca de afirmação de si mesmo. O livro retrata o
amadurecimento emocional da personagem em meio as suas frustrações familiares,
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amorosas e profissionais, por meio do embate com a sociedade. Para adquirir segurança,
autonomia e decidir o seu destino, foi explorado pelo sistema capitalista e teve que
aprender a superar as dificuldades de timidez e insegurança.
Em meio ao relato dos confrontos dos problemas que Vitor teve que enfrentar, os
temas são abordados. O primeiro confronto de Vítor acontece com sua família. O pai
deseja que ele dê continuidade aos seus negócios, visto que é um empresário bem
sucedido, dono de uma indústria de carapaças de plástico. Quando Vítor se forma, como
presente de formatura, o pai o presenteia com uma viagem para ele conhecer o mar,
sonho que o acompanha desde a infância, e uma maleta, igual de sua avó, quem tanto
ele admirava. Vítor pensou que fosse a maleta da avó com as coisas que ele tanto
estimava: diário de viagem, fotos, anotações de trabalho... No entanto, era uma maleta
de trabalho com carapaça de plástico para que ele aproveitasse a viagem e visitasse os
clientes e vendesse as carapaças.
Nesse primeiro embate, os temas do capitalismo desenfreado, do consumismo, dos
produtos descartáveis são mencionados e de forma sutil e criticados. A atitude do pai,
querendo aproveitar da viagem de Vítor para vender mais seus produtos, fazer mais
clientes, revela o comportamento ganancioso do pai capitalista que só visa ao lucro. Ele
não tem a sensibilidade de perceber que o filho não deseja seguir a mesma profissão
dele, mesmo Vítor tentando dizer. O pai impõe o que ele planejou para o Vítor, o que
ele sonha para o filho. Na verdade, tenta impor o seu desejo, não o do filho: “Mas eu
estou criando essa indústria de carapaças de plástico pro Vítor: quando ele se formar já
tem um trabalho pronto esperando; é só continuar” (BOJUNGA, 2001, p.27).
Observa-se também a importância que o pai dá aos bens materiais e não ao
sentimento:

- A minha indústria está indo às mil maravilhas e o meu único filho


não quer saber do negócio? Que é isso?! [...] Dou dinheiro, dou
viagem, dou maleta profissional, [...] Me controlo o dia inteiro, dou
um monte de presentes, e no fim vocês ficam contra mim? Ah, isso
não fica assim! Você vai tratar de tirar esse chapéu já e já! E você vai
tratar de vender essa carapaça, sim senhor! - Fechou a maleta
profissional e empurrou ela pro Vítor (BOJUNGA, 2001, p.56).
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O pai se mostra egoísta, impondo os seus desejos de empresário capitalista que


espera o retorno do seu investimento. Nota-se também incentivo ao consumismo, do
produto descartável, visto que com isso a empresa venderá mais e lucrará em dobro: “-
Eu também quero. E explica bem pra eles tudo que é vantagem da carapaça de plástico:
quebrou? joga fora e compra outra; rachou? joga fora e compra outra; sujou? joga fora e
compra outra” (BOJUNGA, 2001, p.55).
Vítor, no entanto, deseja conhecer o mar da Bahia, passear e ir à busca de seu ideal,
decisão tomada quando viu o mar pela primeira vez no filme a que assistiu na infância.
O mar tem um significado simbólico. Ele representa o lugar ideal, em que tudo pode vir
a realizar, transformar, um lugar utópico. “O mar, em O sofá estampado, conota local de
aconchego, de segurança, do ideal a ser atingido. Tanto que, Vítor, após sua formatura,
antes de decidir que carreira profissional irá seguir, deseja primeiro ir conhecer o mar”
(PAULI, 2003, p.2).
Além disso, o mar é uma simbologia recorrente na obra de Lygia Bojunga. Vera
Maria Tietzmann Silva, no artigo “A ambivalência do mar em Lygia Bojunga Nunes”
(1996), afirma que o mar recebe vários significados simbólicos nas obras da escritora:
ora positivo ora negativo, conforme divisão em duas fases – a luminosa e a cinzenta.
Para ela, O sofá estampado enquadra-se na fase de transição.
O tema da busca por um ideal está presente desde a infância do Vítor, conforme pode
ser constatado também no poema “O último andar”, de Cecília Meireles, que ele teve
que recitar em uma das aulas de português e acabou se engasgando. A timidez era tão
grande que ele, para se esconder da vergonha, cavou tanto que formou um túnel e foi
parar em uma rua deserta. O poema revela a imagem do vir-a-ser, de Hegel, de
esperança no futuro, num mundo melhor a se realizar. Ele transmite também a idéia da
visão de totalidade da sociedade que se pode alcançar do “último andar”, além da
imagem do mar estar presente novamente.
Vítor não chega ao mar da Bahia, para no Rio de Janeiro, metade do caminho,
desanimando com a lonjura do estado baiano. Atingir a “metade do caminho” pode
significar a realização da metade de seus ideais, visto que Vitor precisa superar outros
desafios e sofre outras decepções, não se realizando como pessoa.
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Ao chegar ao Rio de Janeiro, conhece Dalva, gata angorá, por qual se apaixona.
Dalva representa o ser mais alienado, escravo da sociedade consumista, vazio de
qualquer senso crítico. Ela foi premiada por ser a telespectadora mais assídua e ficar 12
horas por dia em frente da televisão. Ela não desgruda seu olho da televisão,
principalmente das propagandas. O que aparece na televisão, a gata considera o certo, o
correto, o que se deve ser feito, conforme se observa nos trechos a que ela se refere,
assistindo aos programas televisivos: “- Olha a casa dele que bacana. Nossa, quanto
empregado! Olha o carro dele, olha, olha. Ah, e o Vítor que não fuma! ele nunca vai ter
uma casa assim, nem um carro assim, nem...” (BOJUNGA, 2001, p.14). Para Dalva,
quem fuma tem condições de ter a casa e o carro de luxo. Na visão alienada dela, o
Vítor, por não fumar, nunca terá esses tipos de bens. Esses trechos demonstram o
quanto ela está influenciada pelas propagandas de cigarro que emitem mensagens de
que quem fuma consegue determinado status social. O trecho seguinte reforça também a
visão alienada da Dalva:

___ Olha aí, não te disse que a gente tem que morar no endereço
certo?
___ Tem que morar aonde?
___ Mas olha, Vítor, olha!
___ Pra onde?
___ Pra televisão!
___ Tô olhando, que que tem?
___ Agora já passou, ah! Eles estavam mostrando o endereço certo.
Pra ter status a gente tem que morar onde eles mostram. (BOJUNGA,
2001, p.18).

Desta forma, verifica-se a análise crítica da obra em relação ao tema do consumismo


que cega, que bestializa o ser humano. A Dalva não questiona nada que vê na televisão,
apenas recebe tudo, engole, sem análise alguma, nem mesmo verifica se necessita do
produto ou não:

___ Vi você na tevê! Vi você na tevê! Adorei. A minha dona já


comprou.
___ Você tá com tosse?
___ Eu não, mas a tevê não disse pra gente comprar? (BOJUNGA,
2001, p.95).
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Percebe-se crítica em relação à tecnologia enquanto processo automatizado, alienado


e reificado. Em um ensaio, Michel Henry “chama ‘barbárie tecno-científica’ dos tempos
modernos responsável pela atrofia da cultura, morte da arte e perda do sagrado” (apud
LÖWY; SAYRE, 1995, p.314).
Para Vítor conseguir falar com Dalva, teve que aparecer na televisão, tornar-se
garoto propaganda. Assim, pôde-se declarar e foi aceito como namorado. No entanto,
não conseguiu travar um diálogo com ela, nem mesmo escrevendo cartas a ela. Dalva
representa o ser mais alienado, escravo da televisão, do consumismo, enfim, um produto
robotizado do capitalismo.
Vítor, para conseguir ser visto pela Dalva, submeteu aos mandos e desmandos da
Dona Popô, uma hipopótomo, dona de Agência de Publicidade, que o explorou,
aproveitando de todas as potencialidades dele e depois que não tinha mais o que usar,
descartou-o como objeto qualquer. Vítor foi à agência de publicidade dela com a
intenção de fazer uma propaganda de sabão em pó, mas, ao apresentar como tinha
imaginado o anúncio, começou a tossir. Dessa forma, Dona Popô constatou que ele
poderia fazer propaganda de xarope para tosse. O nervosismo tomou conta de Vítor que
começou a cavar. Assim, Dona Popô observou que Vítor poderia anunciar também
furadeira de poço de petróleo e cavadeira elétrica. “Sentiu que ia poder usar o Vítor pra
faturar um dinheirinho alto, e aí a orelha direita deu uma tremidinha: quando a Dona
Popô ficava contente a orelha dela tremia assim” (BOJUNGA, 2001, p.70).
Vítor fez anúncio de cigarro Status, Queijo Oblivion, Vodka Bliss, Cerveja Plus,
pasta de dente, aparelho de barba, desodorante, toalha, sabão, sabonete. Foi alugado
para anunciar em Porto Alegre e Belo Horizonte, foi vendido por 15 dias para Curitiba,
fechou contrato com ele para Portugal, foi emprestado para o governo anunciar que o
agricultor brasileiro devia cavar e plantar mais. “O Vítor foi ficando num tal estado de
nervos de ser tão alugado-vendido-emprestado que já não parava mais de se engasgar”
(BOJUNGA, 2001, p.97).
O tatu chegou a um estado desolador: não conseguia mais parar de tossir, não
conseguia alimentar-se. No entanto, a Dona Popô ainda aproveitou o que sobrou dele:
aproveitou a unha do Vitor para anunciar esmalte, o rabo para anunciar mala grã-fina
com alça, orelha para anunciar cotonete. Só quando o telespectador começou a reclamar
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que não suportava mais ver o tatu, Dona Popô despediu-o. Não conseguiu mais emprego
em agência nenhuma, pois conforme o recado recebido: “Ele não interessa mais: a tevê
já espremeu tudo que ele podia dar”. (BOJUNGA, 2001, p.98). Vítor chegou a um
estado de degradação, vítima da exploração capitalista, completamente consumido pelo
marketing publicitário.
Não bastasse a decepção com a atitude de Dona Popô, Dalva rompeu também com
ele. Da mesma forma que os outros, Vítor recebeu um recado transmitido pela Dona-da-
casa. A gata angorá nem quis falar com ele. Nota-se a dificuldade de Vítor se
comunicar, interagir-se com as pessoas. No embate discursivo, “a voz do mais forte
tenta bloquear e impedir a expressão do outro” (SANT’ANNA, 2008, p.63). Não
consegue dialogar com seu pai, expondo o seu ponto de vista. Falar com Dalva torna-se
um suplício, pois ela tem um aliado forte: a televisão, que impede o diálogo.
Incoerentemente, embora seja um meio de comunicação, a televisão impede a interação
entre os telespectadores enquanto estiver ligada – é preciso que se faça silêncio, não se
converse para a pessoa receber a mensagem, sem muitos questionamentos. Dona Popô
não possibilita também o diálogo: impõe o seu ponto de vista e o explora o máximo, até
que não sobre nada para depois descartá-lo.
Essa falta de diálogo é também uma característica da modernidade. O homem não
tem tempo para conversar, pois está o tempo todo preocupado em trabalhar, ganhar mais
dinheiro, acumular riquezas e poder. A Dona Popô e o Ipo, outro hipopótamo símbolo
do empresário inescrupuloso, são produtos dessa sociedade capitalista que só pensa no
lucro, na exploração, em usar o outro. Da mesma forma que Ipo usou Dona Popô, ela
usou o Vítor para lucrar mais ainda e ter mais dinheiro, tornando-se uma pessoa egoísta,
cheia de mágoa e rancor, sem sentimento de solidariedade: de Pôzinha, ingênua,
romântica e cheia de ilusões, passa a D. Popô, ambiciosa e individualista.
Percebe-se na obra, de acordo com Löwy & Sayre, a “reificação” ou a “coisificação”
– isto é, “a desumanização do humano, a transformação das relações humanas em
relações entre coisas, objetos inertes” (1995, p.38). Verifica-se que as relações entre as
personagens Dona Popô, Ipo e Dalva são monetárias, coisificadas, fetichizadas:
qualquer gesto, pensamento, atitude ou projeto estão relacionados ao dinheiro, tudo
envolve pagamento, troca, moeda, sacrifício, submissão. Há um culto ao mammonismo
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– endeusamento do dinheiro. Para Löwy e Sayre é o “utilitarismo, como racionalidade


instrumental e limitada, que constitui a característica central das sociedades modernas,
conduzindo a uma uniformização monodimensional e achatamento do sistema de
valores, e reduzindo tudo ao cálculo dos interesses individuais” (1995, p.314).
Vitor só consegue estabelecer um diálogo com sua avó. Desde a primeira vez que se
veem, acontece uma química boa. A avó é ambientalista, solidária, despojada de bens
materiais e trabalha só para o bem dos outros, em prol do meio ambiente. Adora viajar e
possui uma mala com diário de viagem, binóculo e álbum de fotos que a acompanha.
Quando ela morre no Amazonas, defendendo a floresta, Vítor praticamente morre junto,
vai ao encontro da morte simbolizada pela mulher sem rosto que surge na rua deserta,
no fim do túnel que ele cava em momentos de fuga, devido à extrema insegurança e
timidez.
Depois de sofrer todos esses confrontos que o proporcionaram um amadurecimento,
Vítor resolve voltar para casa. Ao voltar para sua terra, sua família, suas raízes, retorna
também ao túnel e se encontra com o inventor que havia levado o invento de
transformar mágoa em uma atitude solidária para Dona Popô. Ele representa um
“antiutilitarista”, percebe que a “operação de trocas se opera sob forma de doações” [...]
que uma “comunidade não poderia se constituir a partir de critérios estritamente
‘utilitários’, ainda que seja obrigada a satisfazer as necessidades de cada um” (LÖWY;
SAYRE, 1995, p.317). Para o inventor, uma sociedade deveria ser regida pela lógica do
desinteresse, da doação, do não-utilitário, conforme regula a vida das sociedades
arcaicas. Ele havia encontrado a mala da avó de Vítor e a entrega para ele. Vítor fica
lendo o diário de viagem, vendo as fotos e decide que o que ele deseja é seguir a
carreira de sua avó, dar continuidade ao trabalho dela.
Segundo Löwy e Sayre,

Os desastres ecológicos da modernidade (degradação da camada de


ozônio, poluição do ar e das águas, acumulação de detritos, destruição
das florestas) não são ‘acidentes’ ou ‘erros’, mas resultam
necessariamente dessa pseudo-racionalidade produtivista. Segundo os
ecossocialistas, existe uma contradição irredutível entre a lógica
moderna da rentabilidade imediata e os interesses gerais a longo prazo
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da espécie humana, entre a lei do lucro e a salvaguarda do meio


ambiente, entre as regras do mercado e a sobrevivência da natureza (e,
portanto, da humanidade) (1995, p. 315).

Observa-se, assim, a riqueza na escritura de O sofá estampado, tratando de temas tão


contemporâneos ao criticar a sociedade capitalista, a desumanização do homem, de
maneira sutil, em que pessoas como Vítor sentem-se deslocados dessa sociedade e
necessitam se encontrar, buscando a sua identidade. Desta forma, é uma obra que deve
ser trabalhada com os alunos, possibilitando-os a desfrutar dessa riqueza literária.

2. Sugestão de prática em sala de aula

Ao pensar na formação do leitor, uma prática de leitura que tem surtido resultado
positivo é a prática pedagógica em que se utiliza da teoria da Estética da Recepção, de
Hans Robert Jauss, a Teoria do Efeito, de Iser, a Sociologia da leitura, além do Método
Recepcional, desenvolvido por Bordini e Aguiar.
Utilizando-se do Método Recepcional, pode-se elaborar um projeto de leitura, para
que os alunos possam, paulatinamente, adquirir uma competência maior com leituras de
textos mais complexos. Parte-se do pressuposto que é por meio da leitura que ocorre a
ampliação do conhecimento, permitindo ao leitor compreender melhor o presente e seu
papel como sujeito histórico.

O acesso aos mais variados textos, informativos e literários,


proporciona, assim, a tessitura de um universo de informações sobre a
humanidade e o mundo que gera vínculos entre o leitor e os outros
homens. A socialização do indivíduo se faz, para além dos contatos
pessoais, também através da leitura, quando ele se defronta com
produções significantes provenientes de outros indivíduos, por meio
do código comum da linguagem escrita. No diálogo que então se
estabelece o sujeito obriga-se a descobrir sentidos e tomar posições, o
que o abre para o outro (BORDINI; AGUIAR, 1993, p.10).

Dessa forma, desenvolver um trabalho com o texto literário é imprescindível, pois se


todos os livros favorecem a descoberta de sentidos, os literários “fazem de modo mais
abrangente. Enquanto os textos informativos atêm-se aos fatos particulares, a literatura
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dá conta da totalidade do real, pois, representando o particular, logra atingir uma


significação mais ampla” (BORDINI & AGUIAR, 1993, p.13).
No entanto, para formar leitor competente, que seja ativo no processo de leitura, que
compreenda o texto, faça inferências, preencha lacunas, interaja, se solidarize com o
autor e complete seu trabalho de criação, é preciso basear-se em uma teoria e seguir
uma metodologia. A teoria da Estética da Recepção surgida na década de sessenta por
meio dos estudos dos teóricos ligados à Escola de Constança, centro universitário
alemão, liderada pelo estudioso Hans Robert Jauss, é uma corrente teórica que vem
dando resultado na questão da formação do leitor de obras literárias. Para a Estética
Recepcional, a concepção de arte literária está centrada na atuação do leitor, visa fazer
com que o texto seja parte do processo de conhecimento, e não uma entidade autônoma
que não interage com o leitor. Como sugere o próprio nome desta corrente estética,
leva-se em conta como o espectador recebe a obra, deste modo a análise torna-se viva.
Além disso, de acordo com Aguiar, a Estética da Recepção e a Sociologia da leitura
podem auxiliar na questão da formação do leitor, “uma vez que as duas teorias, oriundas
de posições epistemológicas diversas, acabam por completar-se, permitindo que se
tenha um retrato mais minucioso do leitor em sua atuação social e dinâmica individual,
isto é, em suas ações extra e intratextuais” (AGUIAR, 1996, p.23). A Teoria do efeito,
de Iser (1996), tem recebido boa acolhida também, pois analisa os efeitos da obra
literária provocados no leitor, por meio da leitura. Para Iser, a leitura é um processo de
comunicação, um diálogo de vozes que se entrecruzam no ato da leitura com o autor,
com o texto e com o leitor.
Ademais, o Método Recepcional organizado por Bordini e Aguiar, que tem como
base teórica a Estética da Recepção, vem sendo bem recebido, visto que está
contribuindo para a melhoria do processo de formação do leitor, alargando horizontes e
permitindo ao indivíduo a descoberta de novas formas de ser e de viver, interna e
externamente. Conforme Bordini & Aguiar, a “recepção é concebida, pelos teóricos
alemães da Escola de Constança, como uma concretização pertinente à estrutura da
obra, tanto no momento da sua produção como no da sua leitura, que pode ser estudada
esteticamente” (1993, p.82). Assim, a literatura é concebida como um dos meios de
emancipação da sociedade por meio da “ampliação” constante do horizonte de
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expectativas dos leitores devido à natureza também formadora da obra literária e não
apenas reprodutora das estruturas sociais.
Dessa forma, Bordini & Aguiar, utilizando-se dos pressupostos teóricos da Estética
da Recepção, elaboraram um método de ensino de leitura de obras literárias. Para as
estudiosas, a Estética da Recepção, enquanto método de ensino, pode contribuir para
uma maior sistematização dos estudos da literatura por parte dos professores através da
ampliação dos “horizontes de expectativas” dos alunos, além de permitir a
democratização da leitura e a formação do leitor crítico, visto que o método recepcional
de ensino funda-se na atitude participativa do aluno em contato com os diferentes
textos.
O professor parte do horizonte de expectativas da classe, verificando os interesses
literários da turma, determinados por suas vivências anteriores. Em seguida, o professor
provoca situações que propiciem o questionamento desse horizonte, levando a ruptura
do horizonte de expectativas e seu consequente alargamento.
De acordo com Bordini & Aguiar, o método recepcional de ensino de literatura
enfatiza a comparação entre o familiar e o novo, entre o próximo e o distante no tempo e
no espaço. Além disso, o processo de trabalho apóia-se no debate constante, em todas as
formas: oral e escrito, consigo mesmo, com os colegas, com o professor e com os
membros da comunidade. Portanto, o método é eminentemente social ao pensar o
sujeito em constante interação com os demais, através do debate, e ao atentar para a
atuação do aluno como sujeito da História.
Para aplicar o Método Recepcional, as autoras sugerem cinco etapas a serem
desenvolvidas. Assim, tendo como foco o livro O sofá estampado, ao analisar os temas
tratados na obra, com o intuito de determinar do horizonte de expectativas – momento
em que o professor verificará os interesses dos alunos a fim de prever estratégias de
ruptura e transformação do mesmo – pode-se sondar se os alunos têm interesse em
discutir questões relacionadas ao meio ambiente, por meio de um diálogo informal,
apresentando a eles uma tira ou uma charge que trate do tema.
Para atender o horizonte de expectativas – etapa que se proporcionará à classe
experiências com textos literários que satisfaçam suas necessidades quanto ao objeto
escolhido e às estratégias de ensino – poderia oferecer o texto “O homem pertence à
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Terra (Carta do Cacique Seattle)” que trata da resposta do Cacique Seattle ao presidente
dos Estados Unidos à oferta de compra de uma grande área de terra dos índios peles-
vermelhas. Na resposta do Cacique há uma profunda declaração de amor ao Meio
Ambiente, denunciando a ganância do homem branco, destruindo a natureza devido ao
consumismo desenfreado. Parece que na sociedade atual quem não consome não pode
ser considerado cidadão. Observa-se a ideia de que “Consumo, logo existo”, parodiando
Descartes. Na sociedade consumista, quem não consome não existe. Ser cidadão é ser
consumista.
Com o objetivo de romper o horizonte de expectativas – momento em que é
introduzido textos e atividades de leitura que abalem as certezas e costumes dos alunos,
seja em termos de literatura ou de vivência cultural – podem-se desenvolver atividades
com o poema “Eu, etiqueta”, de Carlos Drummond de Andrade. O poema trata de forma
sutil da alienação presente na sociedade, da reificação e de fetichismo, pois retrata, o
não reconhecimento de um indivíduo como indivíduo que produz com sua força de
trabalho o que consome.
Na fase do questionamento do horizonte de expectativas – fase em que serão
comparados os dois momentos anteriores, verificando que conhecimentos ou vivências
pessoais, em qualquer nível, proporcionaram a eles facilidade de entendimento do texto
– poderão ser comparados os dois textos anteriores, observando que o comportamento
do homem consumista leva, muitas vezes, à destruição do meio ambiente. O indivíduo
alienado, reificado, fetichizado, coisificado não controla suas atividades, perde sua
autonomia e se torna escravo da sociedade capitalista que visa apenas o lucro. Depois de
explorado é descartado. Dessa forma, perde sua humanidade, tornando-se objeto,
joguete nas mãos do capitalismo selvagem, inescrupuloso.

A alienação, reificação, fetichismo: é esse processo fantástico no qual


as atividades humanas começam a se realizar como se fossem
autônomas ou independentes dos homens e passam a dirigir e
comandar a vida dos homens, sem que estes possam controlá-las.
(CHAUÍ, 1994, p. 58)

Com intuito de ampliar o horizonte de expectativas – última etapa em que os alunos


tomam consciência das alterações e aquisições, obtidas através da experiência com a
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literatura, agora, conscientes de suas novas possibilidades de manejo com a literatura,


em que partem para a busca de novos textos, que atendam a suas expectativas ampliadas
em termos de temas e composição mais complexos – pode-se propor a leitura de O sofá
estampado, de Lygia Bojunga. A obra abarca todos os temas tratados nos textos
anteriores, facilitando reconhecer personagens alienados como Dalva, a reificação, a
coisificação por qual Vítor passa, a representação do capitalismo selvagem pela Dona
Popô e por Ipo e a força opositora dessa sociedade capitalista no papel do Inventor e da
avó de Vítor que o neto deseja dar continuidade.
O final desta etapa é o início de uma nova aplicação do método, que evolui em
espiral, sempre permitindo aos alunos uma postura mais consciente com relação à
literatura e à vida.

Conclusão

Portanto, tendo como base a teoria da Estética da Recepção, a Teoria do Efeito e a


Sociologia da leitura e seguindo a metodologia proposta por Bordini e Aguiar – Método
Recepcional –, acredita-se que se possa formar o leitor crítico. Aquele que tem
competência para ler e compreender uma obra esteticamente bem elaborada, seja de seu
momento histórico, seja de períodos passados, visto que é uma proposta de ensino de
leitura da literatura com um processo gradativo de crescimento intelectual e cultural do
leitor ao longo de sua escolarização. Além disso, a obra O sofá estampado proporciona
um aprofundamento em questões contemporâneas sérias, de maneira sutil, por meio da
linguagem altamente literária da escritora, possibilitando a formação do ser, a sua
humanização.

Referências

AGUIAR, Vera Teixeira de. O leitor competente à luz da teoria literária. Revista Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 124, p.23-34, jan. a mar., 1996.
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BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura – a formação do


leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

CHAUI Marilena. O que é ideologia. São Paulo Brasiliense, 1994.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura - uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34,
1996. v.1.

_____. O ato da leitura - uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34, 1999. v. 2.

JAUSS, Hans Robert et all. A literatura e o leitor - textos de estética da recepção. Rio
de Janerio: Paz e Terra, 1979.

LÖWY, Michel; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da


modernidade. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 1995.

NUNES, Lygia Bojunga. O sofá estampado. Ilustrações de Regina Yolanda. 28.ed. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2001.

PAULI, Alice Atsuko Matsuda. Utopias românticas em O sofá estampado, de Lygia


Bojunga Nunes. In: CELLIP – CENTRO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E
LITERÁRIOS DO PARANÁ, 16., 2003, Londrina. Anais do XVI Seminário do Cellip...
Londrina: UEL – Universidade Estadual de Londrina, 2003.

SANT’ANNA, Marco Antonio Domingues. A inter-relação da construção do discurso e


a construção da identidade de Vítor. In: CECCANTINI, João Luís; PEREIRA, Rony
Farto. (Orgs.). Narrativas Juvenis – outros modos de ler. São Paulo: Editora UNESP;
Assis, SP: ANEP, 2008.

SILVA, Vera Maria Tietzmann. A ambivalência do mar em Lygia Bojunga Nunes.


Releitura, Belo Horizonte, v.1, p.35-42, ago., 1996.
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O DIÁRIO NA LITERATURA JUVENIL CONTEMPORÂNEA: MEU PAI NÃO


MORA MAIS AQUI, DE CAIO RITER.

Alice Áurea Penteado Martha (UEM)

O corpo de autores de obras destinadas à leitura de jovens ampliou-se a partir do


final dos anos 70 do século passado, e, se o conjunto ainda não compõe uma tradição,
caminha decididamente para isso, pois, além de narradores já consagrados no cenário da
literatura juvenil como Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Stella Carr, Joel Rufino
dos Santos, Marcos Rey, Ségio Caparelli, Ricardo Azevedo, para citar apenas alguns,
podemos apontar outros com produção de qualidade, direcionada a esse público. Nomes
como Laura Bergallo, Fernando Bonassi, Luís Dill, Mário Teixeira, Heloísa Prieto, Ivan
Jaf, Menalton Braff, Gustavo Bernardo, Flávio Carneiro, Adriana Falcão, Caio Riter e
Angélica Lopes – citações que não se mostram exaustivas, uma vez que não excluem
outras referências – circulam pelos espaços do campo literário, como obras premiadas, e
constam inclusive de catálogos de editoras, listas de prêmios, indicações de programas
de leitura, trabalhos acadêmicos e da crítica especializada.
Embora as relações entre fatores que compõem o campo literário reportem-se à
literatura “lato sensu”, uma das questões mais frequentes, discutidas nos meios
acadêmicos, refere-se ao que designamos elementos de constituição do objeto artístico,
especialmente, se podemos consignar como “literatura” uma obra destinada a um
público específico; se aspectos capazes de constituir uma forma literária podem ser
encontrados em produções dirigidas aos jovens. A questão mais premente para os
estudiosos é de reconhecimento da qualidade artística da literatura juvenil, que deve ser
buscada na confluência dos elementos do campo literário que a constituem. Dessa
forma, além da construção lingüística, do modo de formar a narrativa ou o poema,
outros fatores, externos à obra, devem ser considerados, como sua produção, circulação
e consumo.
Neste texto, a partir da leitura Meu pai não mora mais aqui (Biruta, 2008), narrativa
de Caio Riter, em forma de diário, pretende-se instigar o aprofundamento da questão,
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considerando os elementos fundamentais de sua estrutura narrativa –


narrador/focalizador e personagens, uma vez que o modo de construção da obra permite
estabelecer o grau de proximidade com os leitores e levantar elementos que constituam
o processo de identificação entre receptores e criaturas do mundo ficcional.
Entre os novos narradores para o público adolescente, destacamos Caio Riter (1962),
escritor gaúcho, graduado em Comunicação Social e em Letras, com Mestrado e
Doutorado em Literatura Brasileira. Professor de língua Portuguesa, mantém íntimo
contato com seus leitores, inclusive, ministrando oficinas de narrativas literárias em
diversas instituições do estado.
A produção de Riter registra inúmeras publicações para crianças e jovens,
reconhecidas por leitores e pela crítica especializada, como podemos observar pelo
grande número de menções e prêmios recebidos. Entre os livros infantis, destacamos O
fusquinha cor-de-rosa (Paulinas, 2005), Teiniaguá, a princesa moura encantada
(Scipione, 2006), Um menino qualquer (WS Editor, 2003); Eduarda na barriga do
Dragão (Artes e Ofícios, 2006), Um reino todo quadrado (Paulinas, 2007) e Viagem ao
redor de Felipe (Projeto, 2009). Quanto aos juvenis, apontamos Chico (WS Editor,
2001), Atrás da porta azul (WSEditor, 2004), Debaixo de mau tempo (Artes e Ofícios,
2005), O Rapaz que não era de Liverpool (Edições SM, 2006), O tempo das surpresas
(Edições SM, 2007) e Meu pai não mora mais aqui (Biruta, 2008).
O reconhecimento do valor da obra de Riter pode ser considerado desde 1997, com a
premiação ao poema “Pão”, no Concurso Literário Poemas no ônibus, realizado em
Porto Alegre; desde então, suas produções têm recebido menções honrosas, têm sido
selecionadas, pelo MEC/PNBE para compor o acervo das bibliotecas das escolas
brasileiras e têm sido incluídas em Catálogos de Feiras Internacionais de Livros, como o
Catálogo de Bolonha. O escritor recebeu, em 2004, o Prêmio Açorianos de Literatura
com A cor das coisas findas (WS Editor, 2003) e duas vezes o Prêmio Ages pelos livros
Atrás da porta azul (WS Editor, 2004), em 2005 e Debaixo de mau tempo (Artes e
Ofícios, 2005), em 2006. O grande premiado continua sendo O rapaz que não era de
Liverpool (Edições SM, 2006), que recebeu o 1º Prêmio Barco a vapor – Edições SM,
em 2005, o Prêmio Açorianos de Literatura, em 2006 e o Prêmio Orígenes Lessa, da
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FNLIJ, em 2007; Meu pai não mora mais aqui (Biruta, 2008), por sua vez, recebeu o
selo de Altamente Recomendável da FNLIJ, foi finalista do Prêmio Jabuti/2009, na
categoria juvenil e selecionado pelo PNBE – Programa Nacional de Bibliotecas
Escolares - neste mesmo ano.
As narrativas juvenis de Caio Riter tratam principalmente de conquistas (amores,
amizades, crescimento, reconhecimento da identidade) e perdas (mortes, separações,
situações violentas) das personagens jovens, que transitam em ambientes escolares e
familiares da classe média alta das cidades de médio e grande porte.
Debaixo de mau tempo trata de um assunto temido e, ao mesmo tempo, desejado
pelos adolescentes – a iniciação sexual. Renato, garoto de 15 anos, que mora com os
pais e uma irmã, Luiza, ressente-se da ausência do pai e vive uma fase de dúvidas que
se referem, principalmente, à descoberta da sexualidade. A narrativa, em terceira
pessoa, desenvolve-se a partir dos questionamentos de Renato, acima de tudo, sobre seu
comportamento tímido diante de Gabi Giacomini, a garota pela qual está apaixonado.
Durante um passeio pelo rio para praticar remo, desaba, inesperadamente, uma
tempestade, o garoto fica preso na ilha, recebe abrigo em uma casa pobre e conhece
Cecília, menina totalmente diferente das que conhecera até então. Acontece entre ambos
uma grande atração e Renato beija pela primeira vez, experimenta a “maravilha” tantas
vezes apregoada pelo amigo Pedro, iniciando sua vida sexual.
Em O rapaz que não era de Liverpool, Marcelo, o jovem de 15 anos, garoto que
amava os Beatles e a família acima de todas as coisas, narra emoções e sustos vividos
por ocasião da descoberta de sua adoção, quando sentimentos de raiva e frustração de
toda ordem tomam conta de seu íntimo. Durante uma aula de biologia, por causa de
ervilhas e da Lei de Mendel, entende a razão da diferença da cor de seus olhos, já que
não tem olhos azuis como todos em casa. O modo de narrar os fatos revela a
impossibilidade de evasão do narrador, a dificuldade de distanciamento e observação de
sentimentos alheios, especialmente as emoções experimentadas pelos pais, a seu ver,
responsáveis por todo seu drama interior.
Pedro, narrador protagonista de O tempo das surpresas, tem catorze anos e leucemia;
rememora, em longa noite de vigília que antecede o transplante da medula que recebe
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do irmão de cinco, seus afetos, a ausência paterna, a amizade e confiança em Peter, o


marido da mãe, bem como a surpresa com a doença e seus desdobramentos, os temores
que enfrenta desde então. A partir de um relato bastante sensível, sem ser piegas, os
leitores podem compartilhar as alegrias e as tristezas daquele tempo de convivência com
a doença, responsável, inclusive, pelo amadurecimento do garoto. Ao contrário do que
possa parecer, ele não trata apenas do momento difícil em que se encontra, com grave
problema de saúde. Narra também suas experiências com as meninas, os primeiros
amores; revela a força do sentimento que o une ao grupo de amigos; trata com
naturalidade o segundo casamento da mãe e o bom relacionamento com o padrasto e
não esconde a carência provocada pelo distanciamento “afetivo” do pai.
Meu pai não mora mais aqui, narrativa de que nos ocupamos neste texto, também
apresenta, como as demais citadas, questões caras aos jovens, inovando em seu modo de
narrar os fatos, que são relatados em forma de diário, construído a partir da perspectiva
de dois adolescentes. As duas vozes narrativas – Letícia e Tadeu – relatam, em páginas
do diário solicitado como tarefa pela professora de português, suas experiências
individuais na escola, na família, bem como os fatos vividos pelo grupo com o qual
compartilham amizades e amores.
No que concerne aos elementos externos de uma obra literária, um aspecto
facilmente observável no livro contemporâneo dirigido a adolescentes é seu projeto
gráfico-editorial, voltado a leitores constantemente aliciados por produtos atraentes e de
consumo rápido da indústria cultural. O objeto livro compete com jogos, videoclips,
internet e cinema e, por essa razão, apropria-se de seus recursos; o público, porém, não
possui, normalmente, percepção da influência de aspectos que configuram o projeto
gráfico-editorial de um livro, como qualidade do papel, tamanho e formato da letra,
encadernação, quantidade de texto e de ilustração em cada página, bem como do
conteúdo e realização de paratextos, no processo de leitura de cada leitor. Por isso é
importante ressaltar as escolhas que definem o corpo e a alma do livro.
Meu pai não mora mais aqui compõe a Coleção Leituras Descoladas, selecionada
para o Anuário da revista americana Communication Arts, prêmio importante do design
gráfico mundial. Com ilustrações de Gustavo Piqueira e Samia Jacintho, o projeto
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gráfico do livro investe em formas e em cores, especialmente marrom claro e preto, no


fundo branco da página. Ora são folhas brancas, com pequenas circunferências em
tonalidade clara de marrom, ora totalmente marrons, fundo para tesouras e papéis
recortados, em formas que lembram janelas venezianas. Não há qualquer prefácio ou
texto informativo; nas orelhas, apenas alguns dados sobre o escritor e os ilustradores. As
páginas brancas trazem o relato de Letícia; as marrons, a narrativa de Tadeu. As duas
últimas folhas dos diários dos jovens, impressas lado a lado, podem ser lidas com o
livro aberto e parecem selar o encontro de suas expectativas, após o primeiro beijo entre
eles.
A originalidade da narrativa deve-se, sobretudo, à multiplicidade de pontos de vista,
materializada pelo artifício da duplicidade de vozes, o que pode conceder aos leitores
probabilidades mais amplas de leitura e compreensão do texto, e não à forma “diário”,
não mais considerada inovação, uma vez que a primeira novela escrita com tais
características, A pintura de Saltzburg (1803), de Charles Nodier (PICARD, s/d, p.
119), foi publicada há mais de duzentos anos. Em linhas gerais, o texto diarístico é
considerado uma forma literária que, em sentido amplo, se insere na literatura
autobiográfica, modalidade que acolhe tanto confidências, relatos de viagens e cartas,
como impressões de leitura e reflexões a respeito de questões morais, políticas e de
qualquer outra natureza.
Quando o diário se torna uma técnica de narração ficcional, de acordo ainda com
Picard, uma das formas de narrativa em primeira pessoa, o diarista é também uma
personagem e as propriedades de seu discurso – fragmentação e incoerência – adquirem
estatuto relevante no sistema significativo e se convertem em elementos de
comunicação estética. Em outras palavras, o que podia ser visto como falha
comunicativa na escrita não ficcional é apontado como valor artístico, consignando uma
das modalidades de discurso literário contemporâneo, muito adequado ao “sujeito pós-
moderno”, uma das três modalidades propostas por Hall (2003, p. 7-22), e constituído
pela mobilidade e instabilidade, aspectos que traduzem estágios em que se encontram
personagens e leitores da narrativa que pretendemos abordar.
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No que se refere à temporalidade da narrativa em forma de diário, há maior


coincidência entre o tempo da escrita e o tempo da história, ou seja, embora os fatos e
emoções sejam relatados no passado, não se mostram distanciados do momento em que
ocorreram. A escrita de ações e sentimentos faz-se no “calor da hora”, o que pode
também intensificar seu caráter fragmentário, marcado também pela subjetividade do
tom confessional:

DO DIÁRIO DE LETÍCIA
A Juliana estava fazendo o trabalho de história. Eu sentei perto dela e
a gente começou a jogar conversa fora. De repente, nem sei como, eu
me vi falando do meu pai, da separação e da barra que é viver entre
duas famílias.
[...]
Mas não é fácil. Eu até tento, porém, quando vejo, estou envolvida e
cobrando atitudes que meu pai não pode e não quer tomar. Viro meio
criança, sabe? Meio birrenta. Chorona. Reclamona. Não queria ser
assim. (RITER, 2008, p. 100-101)

Além da forma literária, outro aspecto importante da narrativa é o seu contexto, o


mundo narrado, pois se há um público-alvo, o juvenil, seu horizonte de expectativas
precisa ser levado em conta. O conceito de horizonte – cognitivo e estético - resulta da
educação e da interação social, condições das quais emergem os leitores e é constituído
por diferentes convenções, de natureza social, intelectual, ideológica, lingüística e
literária (ZILBERMAN, 1982, p. 103).
Na obra de Riter, temos personagens adolescentes, que atuam em ambiente urbano,
contemporâneo, vivenciam momentos alegres e problemáticos, em família (morte e
separação), com amigos e em espaços escolares. Namoros, beijos, amizades
conquistadas e rompidas, festas, perdas e vida escolar compõem o cotidiano ficcional do
escritor, de modo muito semelhante aos acontecimentos e sentimentos experimentados
pela juventude em qualquer parte do mundo. Trata-se, portanto, de um contexto realista,
uma vez que seu universo de referências aproxima-se do dos leitores pretendidos, tanto
no que se refere aos aspectos histórico-sociais como aos psicológicos e lingüísticos.
Como forma literária – diário – aproxima-se também das vivências de escrita e leitura
dos jovens:
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DO DIÁRIO DO TADEU
Hoje:
Beijei a Lari. Uau!
Passei uma tarde muito dez com o pessoal no colégio. A namorada de
Cau é muito legal, tem a voz superafinada. E curte as mesmas músicas
que eu. Acho que ficamos amigos.
Beijei a Lari. (RITER, 2008, p. 67)

DO DIÁRIO DE LETÍCIA
Quando penso que estou me acostumando com a idéia de separação,
me vem uma raiva da Vitória, e eu fico sofrendo de novo e desejando
que toda esta história acabe e meu pai seja só meu pai de novo.
(RITER, 2008, p. 113)

Embora seja narrada em primeira pessoa, não podemos atestar a uniformidade de


vozes, distintas em razão do artifício narrativo: uma parte é narrada por Letícia, garota
de 13 anos; a outra, por Tadeu, adolescente de 14 anos. Mas os desejos, traços e
emoções assemelham-se aos de jovens de classe média, urbana de qualquer parte do
mundo e os fatos e emoções ganham, por assim dizer, um olhar feminino e outro
masculino.
Com estrutura diferenciada, a narrativa contém 30 capítulos escritos por cada um dos
narradores. Nos capítulos iniciais, até o número 16, Letícia, de forma introspectiva,
relata conflitos mais íntimos. Tadeu, mais aberto e alegre, revela com maiores detalhes
seus aspectos físicos e procura jogar seus leitores no relato; mais resolvido, em
ambiente familiar equilibrado, questiona inicialmente o que incomoda seu cotidiano, a
obrigatoriedade do trabalho escolar. Ela, com dificuldades para aceitar o novo
relacionamento do pai, escreve, já nas primeiras linhas do diário, sobre o casamento
desfeito e seus sentimentos em relação ao fato, como se a escrita pudesse produzir a
catarse, de alguma forma modificar a situação:

DO DIÁRIO DE LETÍCIA
Como se não bastasse.
Como se não.
Como se.
Como.
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Me sinto assim, igual a essa frase que vai se acabando, acabando,


acabando, devorada por um sentimento de dor, que me invade e que
me deixa muito mal, mesmo eu sabendo que não deveria. Os sinais
estavam todos ali, bem diante de meus olhos, eu é que não queria ver,
eu é que, assim como minha mãe, fiquei inventando que estava tudo
bem. (RITER, 2008, p. 14)

DO DIÁRIO DE TADEU
Nossa cara. Tá louco. Escrever um diário. Nunca pensei nisso. E
agora? Escrever o quê? Sei lá. Acho que prefiro fala mais e escrever
menos. E a sora ainda disse que ele, o diário, tem que ter um nome.
Que a gente vai falando com ele e contando o que acontece com a
gente. Pode? Tá, ela disse que a intenção é a gente poder escrever
todos os dias, nem que seja uma linha. Mas por que um diário?
(RITER, 2008, p. 17)

A partir do capítulo 17 de cada diário, ocorrem inversões no modo de narrar,


explicáveis pelos acontecimentos do mundo narrado. Letícia tem se valido até então da
escrita para liberar suas emoções, purgar seus sentimentos em relação à nova situação
familiar e revela amadurecimento paulatino. Cola no diário a carta escrita pela amiga
Juliana, na qual relata que também tem pais separados, mas que isso não é um
problema, pois ambos cuidam dela e a amam. Um fato trágico também vai mudar o
modo de Tadeu ver a vida, a partir do capítulo 17 - “Meu pai morreu, Chuck. Meu pai
morreu” (RITER, 2008, p. 122) - e influenciar Letícia, que escreve em seu capítulo 18:

DO CAPÍTULO DE LETÍCIA
Chorava mais por mim do que pelo Tadeu.
E, quando a gente estava saindo, ainda o ouvi perguntando, meio
perdido, para a mãe dele: O que vai ser da gente agora, mãe?
Não ouvi o que ela respondeu, porém, aquela pergunta ficou presa nos
meus ouvidos a tarde toda.
O que será da gente?
O que será?
Então, mandei um torpedo para o meu pai. Escrevi assim: Pai, eu te
amo muito (RITER, 2008, p. 132-133).

Após a morte do pai, o estilo Tadeu torna-se mais introspectivo, aproximando-se do


modo de escrita de Letícia nos 16 capítulos iniciais:

DO DIÁRIO DE TADEU
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Faz dez dias que meu pai se foi, Chuck. [...]. Maldito caminhão que
tirou meu pai de mim. Eu não quis ver o carro dele, mas ouvi minha
tia dizendo que ele ficou um amontoado de ferros. E meu pai estava
dentro. O que será que ele sentiu? Será que pensou em mim naquele
momento? Será que se deu conta de que nunca mais me veria, nem a
mim, nem a minha mãe, e que nunca mais a gente poderia jogar
futebol na praça como quando eu era criança? (RITER, 2008, p. 140)

O jogo estabelecido pela duplicidade de vozes narrativas no texto promove maior


interação entre os fatos do mundo narrado e os leitores e, ainda que os discursos se
mostrem dissonantes, não notamos a presença de uma voz dominante, adulta, que se
dirige a interlocutores em situação de inferioridade. As vozes narrativas empenham-se
em interagir com os prováveis receptores, norteando-se por suas aptidões e interesses.
Emoções e fatos vivenciados pelos jovens são relatados a partir de olhares diferentes.
Os espaços por onde se movem as personagens, Tadeu, Letícia e os amigos, são
principalmente a casa e a escola, notadamente o pátio, local de encontro dos jovens.
Espaços de aconchego e crescimento, esses ambientes mostram-se vitais para a trama. O
primeiro universo do indivíduo é a casa, seu grande berço, como observa Bachelard:
“[...] a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o
homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades da vida. É
corpo e é alma. E é o primeiro mundo do ser humano” (BACHELARD, 1988, p. 26). O
relato sobre as relações familiares, no âmbito da casa, revela os sentimentos e emoções
que os jovens narradores vivem intensamente, como a separação dos pais, as
dificuldades com a nova mulher do pai, as críticas à mãe, “que deixou o pai ir embora”,
as brigas com a irmã mais nova (DIÁRIO DE LETÍCIA); há ainda o clima de afeto e
amor entre os pais, a harmonia entre o garoto e o pai e a dor por sua morte (DIÁRIO DE
TADEU).
A escola, para os jovens adolescentes, converte-se na extensão do lar e os professores
são representações maternas e paternas. Quando se referem à escola, Letícia e Tadeu
comentam sobre os professores que mais (ou menos) estimam, criticam atividades que
consideram ultrapassadas e relatam brincadeiras e rusgas com os colegas: “Teve dois de
matemática (um saco), um de educação física (seis a quatro, vencemos. Gremistas
versus colorados. E o sor Carlos é bem legal. Ah, ele me escalou para seleção do
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colégio. O papai aqui não é mole com uma bola nos pés), mais dois de geografia”
(RITER, 2008, p. 24).
A escrita da narrativa – diário – concebida como exercício de construção dos
indivíduos, espaço de reconhecimento de suas dúvidas, amores e medos, mostra-se
síntese do processo de integração dos dois ambientes, uma vez que é tarefa escolar,
realizada no ambiente da casa.

DO DIÁRIO DA LETÍCIA
Diário, meu refúgio tem sido a cama. Gosto de ficar trancada aqui no
meu quarto. E aquilo que eu pensava que ia ser horrível, escrever em
você, tem sido minha melhor companhia. Às vezes tenho dúvida se
vou entregá-lo para a professora. Tenho escrito coisas tão minhas. Não
sei se gostaria de partilhar com alguém estranho. Tá, eu sei, ela é
minha professora, ela pediu que eu escrevesse você, mas não é uma
amiga. (RITER, 2008, p. 41)

Um dos aspectos significativos do texto de Riter é a adequação linguística aos


interesses e possibilidades comunicativas dos leitores; muito próxima da usual, a
linguagem traz marcas de oralidade, aspecto bastante previsível em textos narrados em
primeira pessoa e muito importante por não promover o desnível de vozes no mundo
narrado. A linguagem atua como meio de interação entre leitores e universo ficcional,
com períodos de estruturas simples e predomínio da ordem direta; os diálogos são
simplificados, com ausência de elementos de ligação – “disse ele”, “falou fulano”, entre
outros -; há certo tempero de gíria e expressões mais utilizadas pelos jovens, cujo uso,
parcimonioso, não causa atravancamentos no discurso da narrativa.

DO DIÁRIO DE TADEU
Aí, ela disse que gostava de mim, blá-blá-blá, aqueles papos, sabe,
Chuck? Claro que você não deve saber. Tô até parecendo meio louco,
babaca, conversando com uma tela de computador que se faz de
diário. Pirei. (RITER, 2008, p. 83)

A discussão sobre as fronteiras da literatura juvenil, demarcadas por estudos de


natureza diversa – historiografia, sociologia, psicologia e estética -, não teve a pretensão
de esgotar as possibilidades para o estabelecimento de critérios para o reconhecimento
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da produção para jovens como subsistema de obras literárias. O assunto merece estudos
aprofundados, capazes de examinar mais atentamente suas intrincadas relações, pois
acreditamos que, quando nos propomos tratar de literatura juvenil, além dos conceitos
sobre “juventude” e “cultura juvenil”, devemos considerar o campo literário em que se
move a produção, com todos os atores que atuam nesse universo – produtores, editores,
livreiros, leitores, mediadores, escola – sem desmerecer as especificidades literárias do
gênero, tanto temáticas quanto formais.
Os trabalhos acadêmicos têm reclamado estudos mais densos sobre caráter estético
dos textos, como pudemos observar no breve levantamento realizado, mas é possível
afirmarmos que o “estado da arte”, no que se refere à literatura juvenil, vem alcançando,
de modo bastante convincente, tanto sob o ponto de vista histórico como teórico, seu
estatuto estético, sem perder de vista as relações dessa produção com a indústria
cultural.
Ao lado de autores consagrados, novos nomes se lançam à produção juvenil,
utilizando-se de formas literárias próprias da literatura para adultos: narrativas em
primeira pessoa, que revelam o estágio de incompletude em que se encontram
narradores e personagens, sujeitos pós-modernos, e que se constroem, sobretudo, por
diferentes pontos de vista, pelo discurso fragmentado e pela busca da identidade dos
seres ficcionais.
Caio Riter, narrador contemporâneo abordado neste texto, tem revelado intenso
interesse pelas experiências e emoções vivenciadas cotidianamente por jovens, como a
primeira relação sexual, a adoção, a doença de personagens jovens, a morte e a
separação da família, em íntima conexão com as preocupações e sentimentos
experimentados por seus leitores, sempre a partir da perspectiva juvenil. Em vista de
tais aspectos, sua produção já merece estudo temático-formal mais apurado.
Enfim, em Meu pai não mora mais aqui, a linguagem peculiar, muito próxima da
oralidade, trata, de modo natural, as consequências da ausência paterna, em razão de um
novo relacionamento amoroso, na história de Letícia, e da morte, na de Tadeu. São
questões delicadas, notadamente na fase em que se encontram personagens e leitores,
mas tratadas de maneira delicada e sensível. Como os conflitos experimentados pelas
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personagens esgotam-se na vivência e escritura deles, na produção do diário, a narrativa


se configura como espaço de reconhecimento de identidades.

Referências

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Anais do 53º Congresso Internacional de Americanistas. Cidade do México:
Universidade Iberoamericana, 2009.

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Paulo: Martins Fontes, 1988.

BECKET, Sandra L. “Romans pour tous?” In: DOUGLAS, Virginie (Org.).


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BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário.


Tradução: Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

CADERMATORI, Lígia. O professor e a literatura. Para pequenos, médios e grandes.


Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1976.

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premiada (1978 – 1997). Tese de Doutoramento. Faculdade de Ciências e Letras de
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thématiques et reception. Paris: SCÉRÉN-CRDP de Académie de Créteil; La Joie par
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da


Silva & Guaracira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
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HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX (1914-1991). Tradução:


Marcos Santarrita. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

HUMIÉRES, Catherine d´. "À travers la littérature de jeunesse hispanique: découverte,


apprentissage et pédagogie", Acta Fabula, Février 2008 (Volume 9, numéro 2), URL :
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PAIVA, Aparecida. “A produção literária para crianças: onipresença e ausência de


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http://www.cervantesvirtual.com/FichaMateria.html?Ref=45801&idGrupo=estudiosCrit
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RITER, Caio. Meu pai não mora mais aqui. São Paulo: Biruta, 2008.

ZILBERMAN, Regina. “Literatura infantil: livro, leitura e leitor”. In: ZILBEMAN,


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A HORA DA ESTRELA: O ESPAÇO E A IDENTIDADE DE MACABÉA 1

Aline Brustello Pereira (PG-UFU)

Introdução

...limito-me a contar as fracas aventuras de


uma moça numa cidade toda feita contra
ela, Ela que deveria ter ficado no sertão de
Alagoas com vestido de chita e sem
nenhuma datilografia...(Lispector, 1998,
p.15 – grifo nosso)

Escrito em 1977, A Hora da Estrela, última obra lançada pela autora Clarice
Lispector em vida, é um marco na produção da escritora bem como de toda literatura
brasileira. O processo de escrita de Clarice é sempre original e com um estilo
incomparável. A linguagem da escritora, considerada introspectiva e intimista,
despertou o interesse da crítica, gerando uma imensa gama de interpretações e reflexões
acerca de seu estilo narrativo; de questões filosófico-existencialistas e da representação
do universo feminino em suas obras.
O narrador, normalmente, subentendido na narrativa, em A Hora da Estrela
apresenta-se. Trata-se do escritor Rodrigo S. M. que narra a história de Macabéa, uma
datilógrafa alagoana, que vive no Rio de Janeiro, dividindo um quarto com quatro
companheiras, na Rua do Acre. Criada por uma tia que a castigava que a castigava com
freqüência, Macabéa cresceu acreditando que as coisas aconteciam porque tinham que
acontecer, sem questionar nada, e sempre aceitava as provações que lhe sobrevinham,
só prestando atenção nas coisas insignificantes, sendo que, ela própria era um ser
insignificante que ninguém notava.
No decorrer da história ela se apaixona por Olímpico, um ambicioso nordestino que
a abandona para namorar Glória, companheira de trabalho de Macabéa, já que para ele é
mais vantajoso namorar uma carioca, filha de açougueiro, cuja casa não falta comida.

1
Trabalho orientado pela Profa. Dra. Marisa Martins Gama-Khalil, vinculado a resultados de estudos
desenvolvidos no Grupo de Pesquisa em Espacialidades Artísticas/CNPq.
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Aconselhada por Glória, Macabéa resolve visitar uma cartomante. Esta adivinha
todo seu passado, e faz com que a jovem perceba o quanto sua vida era miserável, e
enfim lhe revela um futuro grandioso, afirmando que Macabéa conheceria um rico
gringo chamado “Hans” com quem se casaria e seria feliz.
Macabéa sai do apartamento da madame feliz, “grávida do futuro”, mudada, já que
antes nunca ousara ter esperanças, mas então, quando tenta atravessar a rua, é atropelada
por um carro de luxo e morre e, paradoxalmente, tem assim a sua hora de estrela.
Transgredindo novamente todo e qualquer modelo de narrativa presente no cânone
literário, a autora intimista e psicológica desloca seus leitores para a mais profunda
investigação do abismo interior de seus personagens.
Essa personagem feminina em questão será o contrário de outras mulheres
representadas em outros textos de Clarice. Não é como Laura do conto A Imitação da
Rosa, uma mulher comum, qualquer, sempre em casa, retida em si mesma ou nas
malhas da memória; tão pouco como Ana, personagem do conto Amor, que não
consegue se libertar de sua condição de mulher, cujo papel limita-se a cuidar dos
afazeres da casa.
Em A Hora da Estrela, Lispector desvenda diferentes identidades emergentes na
literatura. A visão da presença de elementos sociais na produção literária de Clarice não
minimiza seu valor estético, antes amplia o entendimento da luta permanente da
escritora com o signo linguístico e com as estruturas narrativas na tradição literária
brasileira.

O espaço e a identidade de Macabéa

Neste artigo, tomaremos para análise dois fragmentos de A Hora da Estrela. Esses
fragmentos são os que a principal personagem desta obra (Macabéa) está dentro do
banheiro do seu local de trabalho. Para entender sobre o significado do espaço dessas
partes, discorremos um pouco sobre o espaço e sobre os símbolos que permeiam a
construção deles.
O filósofo Michel Foucault (2001) pontuou a importância do espaço para a
compreensão das sociedades e da literatura Para ele, as pessoas vivem em um conjunto
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de relações, as quais formam posicionamentos sem possibilidade de sobreposições.


Porém, há três formas espaciais que de acordo com ele são curiosas, em vista de
possuírem a propriedade de estar em relação com todas as posições, de modo que elas
podem suspender, neutralizar, ou inverter as posições. De acordo com Foucault, esses
espaços, apesar de algumas vezes contradizerem os outros espaços, estão ligados a eles,
podendo ser caracterizados de duas maneiras: o espaço utópico e o espaço heterotópico.
As Utopias são os lugares sem ocupação real, ou seja, são na sua essência irreais.
Foucault diz que esse espaço mantém relação analógica direta ou inversa com a
sociedade, para ele a utopia caracteriza a sociedade aperfeiçoada ou inversamente
colocada. Em contrapartida, há espaços reais, projetados na instituição social, de forma
oposta aos posicionamentos, pois agora estão representados, são heterotópicos.

As utopias consolam, porque, se não dispõem de um tempo


real, disseminam-se, no entanto, num espaço maravilhoso e
liso: abrem cidades de vastas avenidas, jardins bem cultivados,
países fáceis, mesmo que o acesso a eles seja quimérico. As
heterotopias inquietam, sem duvida, porque minam
secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e
aquilo, porque quebram os nomes comuns ou os emaranham,
porque de antemão arruínam a sintaxe, e não apenas a que
constrói as frases mas também a que, embora menos manifesta,
faz manter em conjunto (ao lado e em frente uma das outras) as
palavras e as coisas. (FOUCAULT, 1968, p. 6).

Entre a utopia e a heterotopia existe ainda um lugar, e ainda que tenha um papel
mediano, não deixa de ter importância. Esse espaço é atópico, sendo nem real, nem
irreal, como se vê:
Assim, entre o olhar já codificado e o conhecimento reflexivo,
há uma região mediana que liberta a ordem no seu ser mesmo: é
aí que ela surge, segundo as culturas e segundo as épocas,
contínua e graduada, ou fragmentada e descontínua, ligada ao
espaço ou constituída em cada instante pelo impulso do tempo,
aparentada a um quadro de variáveis ou definida por sistemas
separados de coerências, composta de semelhança que se
sucedem gradualmente ou se respondem como espelhos.
(FOUCAUL, 1968, p. 09).
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De acordo com isso, pode-se dizer que as críticas à sociedade, feita pela autora da
obra, fazem nascer em Macabéa a identidade, pode-se dizer “vazia”, a que a
personagem demonstra em toda a história e é exatamente o espaço que faz com que a
personagem principal do livro encare essa identidade.
Como o narrador diz logo no início do texto, Macabéa vivia numa “cidade toda feita
contra ela” (LISPECTOR, 1998, p.15). É na cidade do Rio de Janeiro que a infância
sem os pais e em companhia de uma tia tirana floresce na identidade adulta dessa
personagem, uma vez que ela, apesar da vivência sofrida com a tia quando criança,
sempre lembra do interior do nordeste com saudade e carinho, tanto que quando
começara a namorar Olímpico, também do nordeste, tinham apenas os assuntos das
coisas boas a que este local fornecera a ambos.
Quando adulta Macabéa vai ao Rio de Janeiro, logo no primeiro momento, ela já
adquire uma identidade dentro dessa cidade, uma vez que não seria possível viver na
cidade carioca sem uma profissão, torna-se assim datilógrafa. Contudo, a posição social
dessa personagem nordestina em uma grande cidade capitalista, sem muitos estudos, faz
com que ela faça parte de um grupo social de baixa renda, marginalizado, ou seja,
dentro desse espaço heterotópico (real), Macabéa toma uma posição condizente com o
que ela representava para a sociedade, feia, vazia, pobre e alienada.
Não obstante, o lugar em que essa personagem morava evidencia aquilo que de
acordo com Bauman (2001) são os lugares vazios, isto é, espaços vazios de
significados, a que a sociedade ignora a existência. O cortiço em que a personagem
vivia dividindo um quarto com quatro pessoas, demonstra o quão vazio era aquele
espaço, o que reflete a identidade vazia de Macabéa, “antes ela tivesse ficado no sertão
de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia” (LISPECTOR, 1998,
P.15).
O espaço utópico e atópico da obra aparecem em situações relacionadas, algumas
vezes um após o outro.
Depois de levar uma bronca do patrão por “não saber escrever” e por tomar aviso de
despedida do trabalho, Macabéa resolvi ir ao banheiro. Esse espaço é apresentado
predominantemente de forma caracterizar a personagem psicologicamente, descrevendo
um lugar com uma “pia imunda e rachada, cheia de cabelos... espelho baço e
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escurecido” (LISPECTOR, 1998, p. 25), acrescentando que tal ambiente muito combina
com a vida da protagonista. Por sinal, é o lugar para onde vai quando está “atordoada”,
necessitando ficar sozinha. O espelho dessa cena, por sua vez, também possui um
significado.
De acordo com o dicionário dos símbolos, speculum deu origem à palavra espelho.
Originalmente, especular era observar o céu e os movimentos relativos das estrelas, com
o auxílio de um espelho, nesse sentido, enquanto superfície que reflete. Constituindo o
próprio símbolo do simbolismo, para os chineses ele reflete a verdade, a sinceridade, o
conteúdo do coração e da consciência. Na tradição nipônica o espelho é do mesmo
modo relacionado entre verdade e não menos do que pureza. Para o Dharma budista o
espelho será o instrumento de iluminação, símbolo de sabedoria e de conhecimento, eles
acreditavam que o espelho coberto de pó era aquele do espírito obscurecido pela
ignorância. Para os japoneses, o Kagami (espelho) é símbolo de pureza perfeita da alma,
de reflexão de si na consciência. Ainda considerado símbolo lunar e feminino, ele é
signo da harmonia, sendo o espelho quebrado a separação. O espelho ainda possui
característica da magicidade. O espelho mágico corresponde a uma das mais antigas
formas da adivinhação; segundo a lenda, Pitágoras tinha um espelho mágico que nele
representava a face da lua antes de ver o futuro, como faziam muitas feiticeiras.
Com o surgimento da psicanálise a partir de Freud, o significado do espelho torna-se
ainda mais profundo o significado do espelho, como instrumento da Psique, acentuando
o lado tenebroso da alma. Desses conceitos, surge o espelho como símbolo da
manifestação que reflete a inteligência criativa, bem como do intelecto divino de refletir
a manifestação como tal sua imagem. Não obstante, o espelho reflete a imagem
invertida da realidade.

Para os sufistas todo o universo constitui um conjunto de


espelhos nos quais a Essência infinita se contempla sob
múltiplas formas ou que refletem em diversos graus a
irradiação do ser único; os espelhos simbolizam as
possibilidades que tem a Essência de se determinar a si mesma,
possibilidade que ela comporta de maneira soberana em virtude
de sua infinitude. Está aí pelo menos a significação em
princípio dos espelhos. Eles têm também um sentido
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cosmológico, o das substancias receptivas em relação ao Ato


puro. (Dicionário de Símbolos)

O espelho, portanto, possui variados significados, adquiridos e transformados com o


tempo e a cultura de cada lugar, possibilitando muitas leituras em diferentes contextos.
Porém, em boa parte dos signos supracitados dados a esse objeto podemos notificar que
prevalece a questão do reflexo da verdade (essência para os sufistas), da alma.
Nesse sentido, compreenderemos espelho ainda como um plano cuja superfície
fornece uma imagem virtual correta, invertida (simétrica), partindo do pressuposto de
que o espelho nos mostre a verdade, eles não produzem signos, a relação do objeto com
a imagem não possui mediações, assim sendo, a imagem só é produzida na presença do
objeto, sendo impossível acontecer sem este. Desse modo, o espelho fornece duplicação
do objeto que fica em sua frente, fazendo com que o meu corpo de sujeito se desdobre e
se coloque diante dele mesmo, por isso, a experiência de se colocar frente ao espelho
torna-se o limiar entre percepção e significação, isto é, o que se sente e o que se vê.

Tendo apurado o que percebemos é uma imagem especular,


partimos sempre do principio de que o espelho “diga sempre a
verdade”. A diz a tal ponto que nem mesmo se preocupa em
reverter a imagem (como faz a fotografia revelada que quer dar-
nos uma ilusão da realidade). O espelho não se permite sequer
esse pequeno artifício destinado a ajudar nossa percepção ou
nosso juízo. Ele não traduz. Registra aquilo que o atinge da
forma como o atinge. Ele diz a verdade de modo desumano
como bem sabe quem - diante do espelho – perde toda e
qualquer ilusão sobre a própria juventude. O cérebro interpreta
os dados fornecidos ela retina, o espelho não interpreta os
objetos. (ECO, 1989, P. 17).

Utilizamos o espelho como algo que nos melhore a visão sobre nós mesmos, que
nos mostre como somos de verdade, e nesse gênero, o espelho exerce as mesmas
funções dos óculos, ou do binóculo, por exemplo, permitindo que o estímulo visual
onde o olho não alcança. Assim, o espelho proporciona nossa visão não apenas como
somos, mas como nos vêem os outros, sendo um canal num sentido de permitir a
passagem da informação da representação do outro sobre o sujeito. O espelho torna-se
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espaço limiar, no momento em que o eu espectador de si mesmo volta ao eu social, ou,


como é visto pelos outros.

O espelho, afinal, é uma atopia, pois é um lugar sem lugar. No


espelho, eu me vejo lá onde não estou, em um espaço irreal que
se abre virtualmente atrás da superfície, eu estou lá longe, lá
onde não estou, uma espécie de sombra que me dá a mim
mesmo minha própria visibilidade, que me permite me olhar lá
onde estou ausente. (FOUCAULT, 1968, p.41).

Ao mesmo tempo em que o espelho traz a imagem real, projeta uma imagem virtual,
em um espaço em que o sujeito não está presente. Nesse sentido, o espelho é uma utopia
na medida em que eu me vejo num lugar onde não estou, mas ao mesmo tempo é uma
heteropia, na medida em que o espelho existe realmente, com uma espécie de efeito
retroativo, porque a partir dele me descubro no ausente lugar onde estou. Dessa forma, o
espelho é ponto de passagem entre o real e o irreal, para Foucault, o real é o certo, ou
melhor, o que os homens consideram como certo, linear, o espaço que acomoda,
nomeando como espaço utópico. A heterotopia é o lugar de inquietude, que incomoda,
são espaços justapostos ou superpostos uns aos outros. O espaço intermediário entre
utopia e heterotopia Foucault nomeia atopia, portanto, o espelho é atopia, ponto de
passagem entre o real e o irreal.
Por tudo isso o espelho, no banheiro em que Macabéa entra quando se sente
“atordoada” toda um sentido importante. Ela olha-se:

...maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e


rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida.
Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia
imagem alguma. Sumira por acaso a sua existência física? Logo
depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada pelo
espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um
palhaço de nariz de papelão. Olhou-se levemente e pensou: tão
jovem é já com ferrugem. (LISPECTOR, 1998, p. 25)

O espaço do espelho mostra a Macabéa o que ela é de verdade, ora, a sociedade


enxerga essa personagem como enferrujada, isto é, dispensável, que pode ser jogada
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fora. Sua existência perante a sociedade era desaparecida, despercebida. A identidade de


Macabéa é refletida no espelho.
Mais para o final da narrativa o banheiro volta a ser tema. Desta vez, Macabéa se
sente a vontade e acaba por fazer o que já quisera: “No banheiro da firma pintou a boca
toda e até fora dos contornos para que os seus lábios finos tivessem aquela coisa
esquisita dos lábios de Marylin Monroe.” (LISPECTOR, 1998, p.62). “Às vezes a
graça a pegava em pleno escritório. Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha. De pé
e sorrindo até passar…” (LISPECTOR, 1998, p. 63).
No banheiro Macabéa se sentia Marylin Monroe, era lá que ela encontrava
felicidade. Esse local é tomado como utopia de felicidade por ela, é um espaço
consolador, lá não havia tempo para ela, apesar de ser um local imundo, com as coisas
depredadas, a atmosfera era muito agradável a Macabéa. Era lá que por um curto tempo
ela conseguiu sentir felicidade, ou acalmar seus tormentos. Nessa cena, o espelho
demonstra a Macabeá tudo o que ela queria ser e não era, ao contrário da outra em que
ela se enxergou como de fato as pessoas a viam na sociedade do Rio do Janeiro.
Outro fato relevante é que a imagem de Macabéa no espelho reflete a cultura norte-
americana do momento histórico a que a cidade do Rio de Janeiro, e todo o Brasil, da
época era submetida. Pois, no banheiro, ela passa o batom vermelho, fora do lábio, e
fica se imaginando ser Marilyn Monroe.
E porque Macabéa se sentia bem em um banheiro e não em um outro lugar? A
identidade de Macabeá casa-se com o lugar em que lhe trazia prazer. Um banheiro é
sinônimo de fezes de esgoto, onde todas as coisas ruins e fétidas são jogadas. E não era
assim que Macabéa era vista por todos daquela sociedade de que fazia parte? Até
mesmo nós leitores temos compaixão dessa personagem, em alguns momentos também
podendo sentir repulsa, ou raiva pelas atitudes da personagem em subestimar ela
própria.

Considerações finais

Como vemos a descrição dos espaços da narrativa está carregada de uma série
de informações sobre o enredo, personagens, tempo etc. Através do espaço, pode-se
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conhecer ao menos parte de cada um desses elementos, além do conhecimento sobre a


personagem, tema da obra, e do envolvimento com a mesma, antes mesmo de lermos
informações precisas sobre ela.
A identidade de Macabéa está em muito ligada aos espaços perpassados por esta
personagem durante a narrativa, uma vez que o espaço é responsável pela caracterização
da personagem em seu contexto sócio-econômico e psicológico. É, portanto, frente aos
espaços que a identidade de Macabéa irá se constituir. A identidade, dessa forma, é tida
como não fixa e fragmentária, conjunta às relações sociais, ao espaço ocupado pelo
sujeito frente a esta, como também ao “outro”, a sociedade, a cultura etc.
Essa personagem em questão será representada como um ser feminino vítima de
uma repressão cultural recorrente de sua infância vivida no sertão de Alagoas. Ela
pertence à classe dos marginalizados, que para a sociedade carioca da década de 70 e
inclusive para o narrador Rodrigo S.M vai ser o estranho, “o outro”.
Macabéa é descrita como uma mulher excluída do contexto social, ela não se
reconhece na grande cidade capitalista em que vive, não sabe quem é, e tão pouco se
interroga sobre sua vida, como o próprio narrador a define, “vivia numa sociedade
técnica onde ela era um parafuso dispensável.”(LISPECTOR, 1998, p.29).Assim, a
identidade dessa personagem se dá aos poucos, uma identidade fragmentada que vai se
moldando entre os questionamentos e as dúvidas, pelos espaços sociais a que ela está
suscetível, entre sua infância no interior do nordeste, e a grande cidade do Rio de
Janeiro de 1970. Um estereótipo de uma migrante nordestina que traz no rosto um
sentimento de perdição, uma personagem feminina descrita de maneira transgressora,
desestabilizando estereótipos de outras mulheres representadas nas obras do cânone
literário, pois Macabéa não apenas seguirá o código ideológico referente ao papel da
mulher na sociedade, como também representará tudo o que há de feio, desagradável,
disforme, indecoroso e indecente na sociedade. Assim, ela fará parte da classe dos
marginalizados e excluídos.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. São Paulo: Jorge Zahar, 2001.


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CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. São Paulo: José


Olympio, 2010. Tradução de Raul de Sá Barbosa.
ECO, Umberto. Sobre os Espelhos e outros Ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1989.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Editora Portugália, 1968.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos: estética, literatura, pintura e música. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
__________ A Imitação da Rosa. Rio de Janeiro: Artenova, 1973.
__________ Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
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UMA REVISÃO DA PRÁTICA DE ENSINO DA LEITURA LITERÁRIA E


DA ANÁLISE LINGUÍSTICA NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Aline Carla Dalmutt (G - UNICENTRO)


Cláudio José de Almeida Mello (UNICENTRO)

Introdução

É notório que a sociedade brasileira não possuiu o hábito de ler e isto se deve a
vários fatores, como econômicos e culturais. Infelizmente, há ainda problemas de acesso
ao livro, visto por muitos como artigo de luxo, dificultando o direito à literatura que,
patrimônio da humanidade, deve estar presente na vida cotidiana de pobres e ricos como
manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas, expressando valores, culturas e
identidades.
Sendo o acesso ao livro ainda limitado, tira-se uma oportunidade de saber das mãos
do leitor e de sua autonomia, porque o livro, positivamente, pode ser fator de
perturbação, conflitos e mesmo de risco, pelo fato de libertar sua consciência de certos
preconceitos e atitudes, donde o caráter humanizador da literatura, mediante a junção de
três aspectos: construção de objetos autônomos como estrutura e significado; forma de
expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos;
forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente
(CANDIDO, 1995).
Além de haver pouco contato com esta ação humanizadora, quando há atividade
com a leitura literária, muitas vezes o leitor não consegue relacionar os textos com seus
sentidos e com a realidade, sem compreender a leitura, sem, portanto, estabelecer
relações com o texto que ultrapassam a mera decodificação, isto é, sem realizar práticas
sociais que medeiam e transformam as relações humanas, desde que o leitor faça
interações entre o que leu e a realidade.
Dada a dificuldade de compreensão de textos, a análise linguística pode servir como
um instrumento para auxiliar a compreensão. O problema situa-se no fato de que a
leitura literária está associada ao estudo de língua e os professores ainda possuem
dúvidas quanto ao lugar que a literatura deve ocupar nas aulas de Língua Portuguesa, e
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acabam por não explorá-la como algo lúdico e prazeroso, donde uma das problemáticas
que revestem o processo de ensino-aprendizagem de literatura e língua. A partir disso, o
texto literário continua a ser pretexto para uma abordagem taxiconômica, centrada no
estudo da nomenclatura gramatical e de outros aspectos conteudísticos da disciplina.
Dessa forma, o ensino de literatura passa a ser visto como um segundo plano, um
“instrumento” ou recurso para o ensino de língua (LAJOLO, 1992).
Com efeito, em grande parte das práticas de leitura literária escolarizadas, não há o
ato de ler por prazer, ou seja, o “ler por ler”. O texto sempre é usado tanto com fim
baseado no trabalho sobre as questões tradicionais da gramática quanto com questões
amplas a propósito do texto, entre as quais é importante citar: coesão e coerência;
adequação do texto aos objetivos pretendidos; análise dos recursos expressivos
utilizados; organização e inclusão de informações, entre outros, sem o objetivo,
entretanto, de alcançar a fruição estética.
Perante toda esta problemática, este trabalho faz uma análise crítica de alguns
elementos envolvidos com a leitura literária na escola: uso do livro didático, atividades
de produção de texto, ensino de poesia, métodos e técnicas de ensino no trabalho com a
leitura literária e a análise linguística nas aulas de Língua Portuguesa. O estudo faz parte
de Iniciação Científica em andamento, pautada em revisão bibliográfica e também em
pesquisa empírica realizada no Colégio Liane Marta da Costa, situado na periferia de
Guarapuava-PR.
O objetivo é analisar o porquê do ensino literário não despertar o interesse do aluno,
contribuindo para que o texto literário seja apreciado pelos alunos e considerado como
um objeto estético, sem contradição com outras atividades de leitura, produção de texto,
análise linguística e oralidade.

1. Ensino de literatura e análise linguística

O uso inadequado do livro didático é um dos fatores que dificulta a promoção da


leitura literária, cuja presença ofusca o papel do professor, podendo tirar a autonomia do
professor de trabalhar o conteúdo em relação à realidade, ou seja, dificulta a preparação
de um planejamento apropriado para cada contexto, com atividades interativas com a
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classe, gerando uma contradição, caracterizada pelo fato de que o texto literário em sala
de aula parece não ser mais competência do professor, pois já há alguns anos quem está
fazendo isso, em muitos casos, são as editoras, são livros didáticos e paradidáticos,
muitos dos quais se afirmaram como quase monopolizadores do mercado escolar,
tirando da alçada dos professores a tarefa de preparar as aulas (LAJOLO, 2002).
Além de o livro didático ser pouco criativo, normalmente repetitivo, o ensino,
especificamente no Ensino Médio, é baseado nas épocas literárias, biografias de autores,
enfim, um conteúdo historiográfico e teórico. Os textos nele presentes não têm nexo
com a realidade dos alunos e o professor não relaciona os seus múltiplos sentidos.
Como diz Lajolo:

A literatura presente nos programas, livros e aulas do segundo grau,


e consequentemente cobrada para o ingresso no curso superior, é
muito estereotipada. Limita-se quase sempre aos clássicos
brasileiros (ou luso-brasileiros, até algum tempo atrás), repetindo
textos antológicos, juízos críticos e compartimentações estilísticas,
que cumpre ao aluno memorizar, arquivar e, obedientemente,
reproduzir sempre que solicitado (LAJOLO, 1982, p. 13-14).

Dessa maneira, o professor deve fazer um novo uso do livro didático, em outras
palavras, deve ser criativo. Precisa perceber o contraste entre o conteúdo do livro e a
vivência do estudante e, se for necessário, fazer mudanças e buscar material adequado e
inovador.
Ao fazer uma breve análise sobre o livro “Língua Portuguesa” de Heloísa Harue
Takazaki – Ensino Médio, destinado ao ensino de língua portuguesa e
consequentemente literatura, já que são conteúdos pertinentes ao mesmo professor, é
possível extrair uma visão desta maneira inapropriada de ensinar literatura e língua.
De acordo com o tema de cada capítulo, são trazidos textos para servir como
instrumento de trabalho. Para abordar diferentes formas de organização que um texto
pode ser construído, o texto O rio, capítulo 3, de Oswaldo França Júnior (TAKAZAKI,
2005, p. 37), serve como simples exemplo de narrativa, apresentando como exercícios
questões acerca das suas características, como identificar a situação inicial, a
compilação e o desfecho e citar exemplos de outros textos que utilizam diferentes
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linguagens (imagens, movimento, som, etc.) e são também narrativos, como se nota nas
seguintes questões referentes ao texto:

Identifique, no texto “O rio”, a situação inicial, a compilação e o


desfecho.
Em que outros textos, que você conhece, predomina a narrativa?
Cite exemplos.
Há textos que utilizam diferentes linguagens (imagens, movimento,
som, etc.) e são também narrativos. Cite alguns (TAKAZAKI, 2005,
p. 37).

Percebe-se que em nenhum momento as questões remetem o aluno a pensar no sentido


do texto, acabando por desperdiçá-lo, já que não há uma interação social que pudesse
possibilitar a fruição estética.
Igualmente, há outros textos, não de caráter literário, mas também utilizados
simplesmente para análise linguística. Um exemplo encontra-se no capítulo 7
(TAKAZAKI, 2005, p. 87), em que o texto A religião contra – ataca de Marília
Coutinho, serve de pressuposto para estudar a coesão textual, não havendo na
interpretação perguntas no âmbito do sentido que o texto possui para o leitor, nem suas
relações com a realidade social do aluno.
Também há textos utilizados simplesmente para exemplificar as fases literárias. No
capítulo 19 (TAKAZAKI, 2005, p. 219), o poema Profissão de fé está somente para
mostrar que no Parnasianismo os poetas defendiam a poesia “perfeita” em sua
construção: rimas raras, métrica rigorosa, elevado nível vocabular.
Dessa forma, o texto literário é desperdiçado, pois é usado meramente como tarefa
ou exemplo, para na sequência ensinar gramática ou outros estudos de base linguística,
impedindo o estudante de apropriar-se do valor estético e do sentido do texto, para
consequentemente conseguir falar sobre o que leu e transitar da escola para o seu meio
social e a sociedade como um todo. Portanto, o uso do livro didático de forma
inadequada gera equívocos, sendo necessário o professor fazer uma análise e seleção
daquilo que ele considera útil ao processo de aprendizagem dos alunos, sempre de um
ponto de vista crítico.
Visto o problema da leitura no uso do livro didático, torna-se inevitável tratar da
maneira pela qual o professor coloca a produção de texto, pois aqui também se
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encontram obstáculos. Ao propor a escrita para os estudantes, na maioria das vezes


estipula-se um tema e estes devem desenvolver seu pensamento sobre aquele
determinado assunto, impedindo uma produção espontânea e talvez mais inteligente.
Dessa maneira, o professor sempre deve se questionar acerca do seu objetivo antes de
aplicar qualquer atividade, pois muitas são inválidas.
Nesse tipo de produção de texto, não se pensa em um interlocutor, a fim de a escrita
representar um ato de interação social efetivamente dialógico (BAKHTIN, 1992).
Assim, não há um objetivo para o que se está produzindo. Se o aluno perceber que sua
escrita terá um destinatário - um público real e finalidades, ele verá sentido em escrever
e fará de maneira mais interessante e produtiva. Também esta escrita deve ter uma visão
ampla de produção, com vários gêneros, ou seja, diversidade de seus usos, mas de
forma que isso aconteça na prática das relações sociais do aluno, para que ele realmente
possa interagir com o texto e seus interlocutores (PARANÁ, 2009).
Outro problema quanto à proposta de escrita encontra-se no momento da correção
destes textos, pois geralmente o professor olha o texto somente no âmbito da gramática,
apontando erros, e consequentemente desestimulando este aluno. É preciso fazer a
análise linguística analisando se o texto possui uma tese, se as ideias estão claras, se há
originalidade, se os argumentos são importantes, se o texto possui criatividade, se é
possível perceber a voz do autor no texto e se a linguagem está apropriada ao contexto,
ver se o raciocínio está bem construído e se os parágrafos estão bem dispostos e se há
coesão entre eles – tudo isto com vistas ao objetivo do autor-aluno e à situação concreta
em que o texto se insere, o que exigirá também a revisão gramatical e ortográfica.
Desse modo, promove-se o aluno a escrever e a ler. De acordo com a proposta lançada
pelas Diretrizes quanto à avaliação para a modalidade escrita:

Escrita: considera-se a adequação à proposta e ao gênero solicitado,


se a linguagem está de acordo com o contexto exigido, a elaboração
de argumentos consistentes, a coesão e coerência textual, a
organização dos parágrafos (DIRETRIZES, 2009, p. 82).
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Exercendo a avaliação dessa maneira, a correção linguística não despreza o valor da


escrita, valorizando o sentido que está empregado àquilo que foi escrito, fazendo com
que o aluno sinta-se capaz de criar um texto (GERALDI, 1997).
É nesse contexto que situamos o trabalho (tradicional) com a poesia. Nota-se que não
existe um roteiro didático para tal, e, como consequência, os professores ficam
inseguros e acabam não trabalhando esse gênero – ou, se trabalham, muitas vezes não o
fazem de forma planejada, com o objetivo de promover a leitura literária entre os
alunos. A ausência de livros que pensem a questão didática do ensino da poesia faz os
professores irem tateando no escuro, dando topadas, sem um roteiro seguro
(PINHEIRO, 2007). Não se dá importância ao poder que a poesia tem tanto do ponto de
vista cognitivo quanto estético, o que poderia levar o leitor a participar da construção de
sentidos, adivinhando e inventando uma nova visão de mundo. De acordo com Pinheiro:

O poder da poesia é que torna o mundo mais verdadeiro, exatamente


porque nela, as palavras não funcionam como sinais, ou como
rótulos, mas como substitutos de alguma coisa que permanece por
trás delas (PINHEIRO, 2007, p. 102).

Também não existe incentivo para trabalhar uma poesia, não se valoriza a oralidade,
que é um modo de provocar a leitura. Claro que esta tarefa requer tempo, pois precisa
ler, reler, valorizar determinadas palavras, descobrir as pausas adequadas, acomodando
a leitura ao tom do poema, porém ler em voz alta é indispensável e precisa de preparo.
Do mesmo modo, os professores trazem poemas que não atendem o universo do aluno,
não solicitam e muito menos ouvem as suas sugestões, não buscam um ambiente
adequado para favorecer o gosto pela poesia (pátio da escola, distribuição das carteiras)
ou mesmo recorrem aos jogos envolvendo outras linguagens, como a música. Assim, é
necessário utilizar procedimentos didáticos diversificados para trabalhar o texto
literário, qualquer instrumento que colabore com a divulgação de poesia deve ser
incentivado (PINHEIRO, 2007).
O que se percebe é que nem mesmo os professores gostam e acreditam no poder que
a poesia possui, passando aos alunos todo o seu desgosto. Logo, o professor precisa
fazer da poesia algo prazeroso, abrindo a “apetite” do aluno, precisa, enfim, ser um
mediador, caso contrário, afastará as pessoas da poesia.
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Esta problemática foi estudada em uma pesquisa quantitativa realizada em 2009 no


Colégio Estadual Liane Marta da Costa, situado na periferia de Guarapuava-PR com
alunos do Ensino Médio - idade média de 16 anos, alunos, portanto, que já estão a
alguns anos na escola e talvez por isso melhor possam mostrar o efeito que todo esse
conjunto (professor, livro didático, métodos e técnicas) produz. Para a pesquisa ter
maior êxito, uma entrevista com perguntas diferentes daquelas aplicadas aos alunos,
mas com o mesmo objetivo, foi aplicada a 104 pais destes mesmos alunos.
Iniciado-se pelo fato anteriormente exposto, de que o povo brasileiro não tem o
hábito pela leitura (ainda mais quando se trata de leitura literária), ao interrogar os
alunos para saber se os seus pais leem literatura, verifica-se que apenas 13% destes
sempre leem literatura (Gráfico 1).

SEUS PAIS LEEM LITERATURA

13%

sempre
51% as vezes
36% nunca

Gráfico 1- Pergunta: Seus pais leem literatura?


Fonte: Grupo de Pesquisa Literatura e Educação

Dessa maneira, fica claro que a realidade pesquisada, como a sociedade em geral,
realmente lê pouco. Para aprofundar a questão, interrogou-se os pais sobre a frequência
que eles têm visitado a biblioteca da escola de seus filhos para leitura, observando-se
que 69% deles não estiveram nenhuma vez na biblioteca e 31% foram 1 ou mais vezes
(Gráfico 2).

nenhuma
69%

1 ou mais
31%

Gráfico 2: Já esteve na biblioteca da escola para leitura?


Fonte: Grupo de Pesquisa Literatura e Educação
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Assim, foi possível associar o baixo gosto pela leitura dos pais, com a falta de hábito
de frequentar a biblioteca. Partindo desta relação, aplicou-se para os alunos a questão:
Gosta de ler? Com as alternativas de resposta de 0 a 10. Agrupou-se as respostas em
dois níveis, de 0 a 5, interpretadas como “não”, e de 6 a 10, interpretadas como “sim”
(Gráfico 3).

GOSTA DE LER

33% 0-5 não


67% 6- 10 sim

Gráfico 3 - Pergunta: Gosta de ler?


Fonte: Grupo de Pesquisa Literatura e Educação

A análise mostra o atual desgosto pela leitura, pois 67% dos alunos deram nota de 0 a
5(não) e apenas 33% de 6 a 10(sim).
Ao mesmo tempo em que há um desgosto pela leitura, fica evidente que a leitura,
para os entrevistados, não traz prazer. Quando se analisa o que estes alunos consideram
como mais importante da leitura, verifica-se o prazer em 6º lugar (com 14%) no total de
7 alternativas (Gráfico 4).

VOCÊ ACHA QUE O MAIS IMPORTANTE DA LEITURA É:

para ficar inteligente


3% 17% aprender a falar corretamente
16%
aprender a escrever
14% 17% aprender a ler
prazer
16% 17% fuga da realidade
outros

Gráfico 4 – Pergunta: Você acha que o mais importante da leitura é?


Fonte: Grupo de Pesquisa Literatura e Educação
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Em vista deste descontentamento pela leitura, tentou-se analisar se o livro didático é


um elemento que auxilia para esta problemática. Primeiramente interrogou-se os alunos
a fim de saber se o livro didático é usado em sala de aula e verificou-se como sendo o
principal suporte, pois apenas 3% dos alunos afirmam que o professor sempre busca
material em outros meios (Gráfico 5).

ONDE ESTÃO OS TEXTOS LIDOS


EM SALA DE AULA
sempre no livro didático

mais no livro didático, mas


3% também em outros suportes

12%
38% mais em outros suportes,mas
também no livro didático

47%
sempre em outros suportes

Gráfico 5 – Pergunta: Onde estão os textos lidos em sala de aula?


Fonte: Grupo de Pesquisa Literatura e Educação

Visto isso, é possível afirmar que o ensino tem o livro didático ainda como uma base
forte, restringindo-se muito o papel do professor àquilo que prescreve esse suporte,
reduzindo as possibilidades do ensino de literatura e língua. Isto é observado quando os
alunos são questionados a respeito do interesse dos textos lidos em sala de aula (Gráfico
6).

ESSAS LEITURAS SÃO INTERESSANTES

6%
29%
sempre
as vezes
nunca
65%

Gráfico 6 – Pergunta: Essas leituras são interessantes?


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Fonte: Grupo de Pesquisa Literatura e Educação

Posteriormente, indaga-se a resposta dos alunos. Aqueles que responderam que “às
vezes ou nunca” são interessantes essas leituras realizadas na sala de aula devem
justificar o porquê (Gráfico 7).

SE NUNCA, OU AS VEZES, PORQUÊ?

23%

são chatas
não entendo
direito
77%

Gráfico 7 – Pergunta: Se nunca, ou as vezes, porquê?


Fonte: Grupo de Pesquisa Literatura e Educação

Esta questão torna patente a impossibilidade de os alunos realizarem uma fruição dos
textos lidos, afinal, 77% confessam não entender direito as leituras existentes nos livros
didáticos e 23% atestam que são chatas. Dessa maneira, mostra-se a importância do
professor em fazer uma análise, seleção e trabalho adequado com o livro didático, para
que o ato cognitivo permita que a leitura literária seja prazerosa.
Na coleta, os dados permitiram averiguar que existe por parte dos alunos atração para
com a poesia, porém, como já foi apontado, não há um trabalho adequado. Ao inquirir
os alunos com as alternativas: poesia, romance, conto e outros, a fim de apontar qual
forma literária mais gostam, é notável o apreço à poesia, que ficou em 2º lugar, com
28% das preferências (Gráfico 8).
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NOTA PARA O GOSTO LITERÁRIO

19%
28% POESIA 6 A 10
ROMANCE 6 A 10
23% CONTO 6 A 10
30% OUTROS 6 A 10

Gráfico 8 – Pergunta: Nota para o gosto literário?


Fonte: Grupo de Pesquisa Literatura e Educação

Em vista disso, fica clara a necessidade de os educadores, no que se refere ao ensino


de poesia e literatura, em geral, realizarem um trabalho sistemático e constantemente
avaliado, sem contar pequenas ações que poderiam ser constantes, como mural, varal,
recitação ou leitura de ao menos um poema no início ou término da aula, para
descontrair e criar o hábito no aluno. Para isso, o professor precisa demonstrar seu gosto
e procurar sensibilizar os leitores mais renitentes.

Conclusão

Diante desta discussão é possível afirmar que não há somente uma incógnita que
impede o ensino de língua e da leitura literária serem um exercício produtivo, mas é
necessário pensar e fazer uma revisão de todo um conjunto de recursos. O livro didático
precisa ser trabalhado de modo aberto, como instrumento de auxílio, excluindo o que
não é apropriado e buscando um material novo e coerente. A proposta de produção de
texto precisa permitir ao aluno escrever e ler de forma produtiva. A poesia deve estar
presente na sala de aula de maneira significativa, ou seja, valorizando tanto o aspecto
estético, quanto o indivíduo e sua cultura. Os métodos e as técnicas de ensino precisam
ser planejados e elaborados de maneira acessível, dentro do objetivo de promover a
leitura literária como prática social, para propiciar conhecimento e fruição. Para isso, o
professor é o agente chave no processo, pois é a ele que cabe valorizar as atividades
mais produtivas, descartar outras inapropriadas, reformular todas, balizando-as pelo que
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conhece de seus alunos e da leitura deles, pelo que conhece de língua, linguagem e
literatura, pelo que entende por ensino, por leitura e por escrita, e, particularmente pelo
que entende por ensinar Português no Brasil de hoje (LAJOLO, 2002), já que é ele que
deve orquestrar as ações em torno da leitura e do processo de ensino na escola, de forma
colaborativa com outros agentes, como a equipe pedagógica e os bibliotecários.
Desse modo, o professor possui uma função determinante na promoção da leitura,
sendo necessária vontade para realizar as mudanças pertinentes a fim de inserir-se nas
novas perspectivas do ensino de literatura, vista como algo humanizante e dotada de
ludicidade e fruição. Nesse contexto, a análise linguística possui papel importante,
porém, ela deve ser subordinada à realização da interação social do aluno com o texto,
de modo a que ele consiga perceber os valores nele contidos, e se aproprie deles, num
ato de fruição compreensiva.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes,


1992.
CANDIDO, A. O direito à literatura E outros ensaios. São. Paulo: Duas Cidades,
1995.
GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed. São Paulo:
Ática, 2002.
LAJOLO, Marisa Philbert. Usos e abusos da literatura na escola: Bilac e a literatura
escolar na República Velha. Rio de Janeiro: Globo, 1982.
LAJOLO, M. e ZILBERMANN, Regina. A leitura rarefeita: Livro e literatura no
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1992.
PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares de Língua
Portuguesa para a Educação Básica do Paraná. Curitiba, 2009. Disponível em:
<http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/diretrizes_2009/
2_edicao/portugues.pdf >.Acesso em: 15 out. 2009.
PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. Campina Grande: Bagagem, 2007.
TAKAZAKI, Heloísa. Língua Portuguesa: ensino médio. 2. ed. São Paulo: IBEP,
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DE ÉDIPO A VALDIR; TRADIÇÃO E RUPTURA NA TEMÁTICA DO


INCESTO

Aline Cristina de Farias Marques (PG-UEM)


Lúcia Osana Zolin (UEM)

Introdução

O incesto tem sido um tema bastante visitado pela literatura, desde o amor existente
entre o rei Édipo e sua mãe Jocasta, perpassando pela literatura portuguesa em obras
como Os Maias, de Eça de Queiroz, na qual Maria Eduarda e Carlos, criados afastados
em função da separação dos pais, se apaixonam ao se encontrarem já adultos, e
chegando a Lavoura Arcaica de Raduan Nassar, obra da literatura brasileira
contemporânea, em que André, ao que tudo indica, via em sua irmã Ana a extensão do
amor da mãe.
No conto “Noções de Direito”, presente na obra Traição e outros desejos (2001), da
escritora contemporânea Sônia Peçanha, o pai (Valdir) descobre na própria filha
(Valdirene) uma linda mulher, tomando para si um sentimento de posse, misturado à
“instintos” masculinos, objetificando a menina que é tida como extensão de seu ser,
extensão está que visualizamos inclusive pelos nomes de ambos os personagens. Esse
relacionamento que irá surgir entre o pai e a filha extrapola todo e qualquer direito (ou
mesmo “noção de direito”) que um pai pode exercer sobre seus filhos, chegando a
níveis de agressão por meio da relação sexual forçada pelo pai. Já entre Édipo e Jocasta
não há uma imposição na relação amorosa-sexual existente, além de ambos os
personagens não terem consciência do incesto cometido (não inicialmente), sendo este
fruto do fado ou destino. Partindo dessas ponderações, pretendemos visualizar o
movimento pendular entre tradição (clássica) e modernidade, voltando o olhar à ruptura
e à continuidade existente entre esse tema em ambas as épocas.
Parece-nos que no trabalho com um mesmo tema (incesto) realizado por diferentes
autores em épocas distintas, há uma grande distância que pode ser vislumbrada também
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por influência do que Lukács (2000) define como cultura fechada e cultura aberta.
Apesar de Lukács (2000) em sua Teoria do romance utilizar os termos “cultura fechada
e aberta” para retratar os ambientes nos quais foram produzidos, respectivamente, a
epopéia e o romance, estamos aqui pensando nesses termos como representantes da
tragédia e do conto, afinal eles estão inseridos na mesma cultura dos gêneros acima
citados.

1. O horror ao incesto explicado por Freud

É interessante lembrar que foi a relação de Édipo e Jocasta que deu à psicanálise de
Freud, matéria para o estudo do Complexo de Édipo, uma espécie de incesto resultante
da paixão do filho pela mãe, ou da busca pela mãe através da mulher com quem ele se
relaciona. Com relação a esse assunto, o contributo de Freud é indiscutível, pois foi ele
um dos que se preocupou em buscar as raízes da formação social do homem para
melhor compreender o seu comportamento.
Em sua pesquisa sobre “O Horror ao incesto”, Freud analisa os povos aborígenes
australianos, pois estes impõem as mais rigorosas interdições às relações sexuais
incestuosas. Suas normas e regras se estabelecem através de um sistema totêmico que
divide a sociedade deles em clãs, onde cada clã tem seu totem. Esse totem pode ser um
animal, inofensivo ou perigoso, mais raramente uma planta ou ainda uma força natural.
O totem normalmente é um antepassado do clã ou um espírito protetor. Os grupos
dirigidos pelo mesmo totem devem seguir a “sagrada obrigação”, sendo que o não
cumprimento leva a punições e castigos. O totem, portanto, é a base das obrigações
sociais, sendo que para alguns estudiosos, ele faz parte de uma fase necessária ao
desenvolvimento humano.
Do ponto de vista psicanalítico, o totem é uma “Lei” que serve, entre outras coisas,
para estabelecer que os membros de um mesmo clã (mesmo totem), não podem manter
relações sexuais entre si. Esse assunto nos é interessante, pois nos permite visualizar
como os personagens que destacamos nesse artigo (Édipo e Valdir), mesmo em épocas
distintas, cometeram um crime há muito considerado bárbaro, e como esse “horror ao
incesto” foi sendo, ao longo do tempo, transmitido às gerações posteriores.
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Partindo da análise de como a proibição ao incesto se constitui na reprodução do
sistema totêmico, Freud (1996) considera que os povos “selvagens” são mais
escrupulosos que nós, pelo menos nessa questão. Talvez isso ocorra por que eles
estavam mais sujeitos a essa tentação, necessitando de uma proteção maior. Contudo,
não é o que vislumbramos no conto “Noções de direito”, por meio da relação existente
entre o pai e a filha em tempo muito distante do “primitivo”. Dentro da cultura aberta, o
homem também se encontra desprotegido, portanto, mais propenso a realização
consciente do incesto.
O homem, no seu desenvolvimento histórico-cultural, cria tabus para poder dar conta
das proibições, expressando por meio deles, o que é sagrado, inquietante, perigoso ou
proibido. O perigo, de acordo com o Freud, surge quando sentimos os desejos
inconscientes como impulsos conscientes, como ocorrem com o personagem Valdir que
externaliza os desejos incestuosos sobre sua própria filha. Já o personagem Édipo
realiza o incesto de forma inconsciente, imbuído do sentimento de estar fazendo o bem
para a cidade de Tebas, afinal a livrou da Esfinge (monstro que dominava a cidade) e
em conseqüência desse ato heróico tornou-se rei, tendo, assim, sua própria mãe como
esposa.
A universalidade da proibição do incesto constitui um fenômeno social que provém
do universo das regras (da cultura) e, portanto, tornou-se objeto de diversas áreas do
saber, como a Antropologia, a Psicologia e, como regra social, diz respeito à Sociologia.
Sendo assim, é interessante mostrar como outras áreas de conhecimento trabalham com
essa temática, como é o caso da visão antropológica de Lévi-Strauss.

2.1 Lévi-Strauss e a proibição do incesto

A proibição ao incesto que aparece representada através dos mitos, religiões e


códigos é uma regra universal. Entendemos que, por detrás da necessidade de tamanha
proibição, só possa existir um desejo universal equivalente. Portanto, para tentar
explicar essa interdição universal, são utilizadas muitas teorias, como as sociais,
biológicas e psicológicas (vista anteriormente).
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Antropologicamente, vários estudos demonstram que o tema do incesto vem
provocando a preocupação dos homens, no decorrer do tempo, nas mais diversas
culturas. Há uma tendência, em quase todos os povos e culturas, a certa aversão ao
incesto, o que nos remete à universalidade de tal sentimento, ao mesmo tempo em que
observamos certas regras que fazem com que pensemos tratar-se de algo proveniente da
cultura.
Em As estruturas elementares do parentesco (1976), Lévi-Strauss afirma que o ponto
de partida para o estudo da proibição do incesto é a distinção entre natureza e cultura, o
que não é fácil de estabelecer, pois, ao tentarmos, esbarramos na impossibilidade de
determinar o que seja natureza. O único critério seguro para diferenciar natureza de
cultura é a ausência de regras da primeira. Tudo o que é universal, no homem, decorre
da ordem da natureza e tudo o que está submetido a uma norma pertence à cultura.
Para Lévi-Strauss, o impedimento ao incesto pertence simultaneamente ao âmbito da
natureza e ao da cultura, ou seja, a proibição desse instinto apresenta caráter
contraditório: por um lado é cultural por constituir-se em uma regra, por outro é natural
por ser universal, já que encontramos essa interdição em todos os grupos sociais, ainda
que cada um determine as próprias regras. Se, conforme acredita Lévi-Strauss, o horror
ao incesto representa a passagem da natureza para a cultura, essa seria a forma de nos
distinguirmos dos demais animais. Além disso, a proibição do incesto é universalmente
imposta a fim de estabelecer a “troca de mulheres entre homens", condição
indispensável à instituição do matrimônio, da família, do parentesco e da própria vida
social.
Para Lévi-Strauss (1976), é a troca que emerge como a base comum e fundamental
de todas as modalidades da instituição do casamento. Ela tende a assegurar a circulação
total e contínua do valor mais importante do grupo; esposas e filhas. Se a sociedade
deve ser coesa, a maior coesão é dada pela troca: “O valor de troca não é aquele dos
bens trocados. A troca tem um valor social em si mesma. Ela provê os meios de manter
os homens unidos e de superimpor aos vínculos naturais do parentesco os vínculos
doravante artificiais” (p. 480).
Como contestação ao tipo de explicação de que haveria um horror “natural” ao
incesto, devido a fatores genéticos ou a tendências psíquicas ligadas “ao papel negativo
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dos hábitos cotidianos sobre a excitabilidade erótica” (p.57), basta considerar que, se
houvesse um horror natural ao incesto e a consequente falta de desejo de praticá-lo, não
seria preciso proibi-lo, pois só se proíbe aquilo que se deseja. Além disso, as constantes
violações à proibição são uma prova suplementar de que não há nenhum horror
instintivo a esse tipo de relação. É preciso observar também que se o incesto é interdito
socialmente é porque ele ameaça a ordem social de alguma forma.
Lévi-Strauss recusa-se a enfocar a proibição do incesto em termos biológicos ou
psíquicos, pois o que realmente importa, no seu entender, são as razões que fazem do
incesto algo socialmente inconcebível: “Nada existe na irmã, na mãe, nem na filha que
as desqualifique enquanto tais. O incesto é socialmente absurdo antes de ser moralmente
condenável” (p.526)
Para o autor, o objetivo primeiro da interdição do incesto seria “imobilizar as
mulheres no seio da família, a fim de que a divisão delas ou a competição por elas seja
feita no grupo e sob o controle do grupo, e não em regime privado” (p.85). A proibição
do incesto obriga os homens a estabelecer uma série de normas através das quais se
possa determinar a forma pela qual será feita a distribuição das mulheres, que estão
imobilizadas no seio do grupo familiar.
Tal hipótese, além de causar admiração e, em certos casos, rejeição, por subverter
completamente a forma pela qual estamos habituados a pensar o casamento, costuma
provocar também uma reação negativa, por colocar as mulheres como objeto de
transação entre homens. Não se pode esquecer, todavia, que para se combater a
desigualdade entre os sexos é preciso conhecer suas raízes mais profundas. Razão pela
qual a noção de que o casamento estabelece um laço de reciprocidade e de aliança entre
os homens, por meio das mulheres, tem sido considerada como válida e útil por aqueles
que se empenham em defender as causas feministas. Simone de Beauvoir, que tomou
conhecimento da noção de “troca de mulheres” de Lévi-Strauss num momento em que
estava interessada em analisar a condição feminina, acata suas idéias ao atribuir a razão
pela qual as mulheres jamais constituíram um grupo separado que se pusesse para si em
face do grupo masculino, ao fato de que “o laço de reciprocidade que estabelece o
casamento não se firmar entre homens e mulheres e sim entre homens através das
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mulheres”. Pelo mesmo motivo, “a mulher não é nunca o símbolo de sua linhagem, ela
é apenas a mediadora do direito, não a detentora” (BEAUVOIR, 1970, p. 92).
Assim como Freud, Lévi-Strauss também fez uso da história de Édipo e Jocasta, que
de acordo com ele seria uma espécie de “mito de origem”. O próprio trajeto circular
feito por Édipo mostra um regresso do herói ao seu ponto de partida. Esse círculo só é
rompido com o exílio de Édipo.
Com esse aparato teórico a respeito do horror ao incesto, pretendemos ter ressaltado
que as relações incestuosas, que há muito são consideradas imorais, chegaram à
contemporaneidade com o mesmo caráter de perversidade que existia em tempos ditos
primitivos, seja na cultura fechada ou aberta. Assim, tentamos explorar a temática do
incesto em textos representativos dessas diferentes culturas a partir do olhar lukacsiano.

3. Falsas “noções de direito”

Qual seria o limite do direito que um pai pode exercer sobre um (a) filho (a)? No
conto “Noções de Direito” retirado do livro Traição e outros desejos (2001), da
escritora brasileira contemporânea Sônia Peçanha, essa noção de direito exercida por
Valdir sobre sua filha Valdirene ultrapassa o limite da legalidade quando o sentimento
de amor e cuidado paterno é transmutado e confundido com o sentimento de posse e de
desejo que um homem pode sentir por uma mulher. A partir do momento que o pai
descobre na filha uma mulher, o instinto de atração se sobrepõe a todos os ensinamentos
culturais, éticos e morais, do qual também fazem parte o tabu e a proibição do incesto,
ensinamentos estes que devem ser internalizados no cotidiano familiar.
O conto se apresenta divido em três partes com os seguintes subtítulos: “Privado”,
“Público” e “Era uma vez”. Esse mosaico compõe um único texto, sendo o segundo
subtítulo uma espécie de boletim de ocorrência realizado na delegacia três anos após a
história familiar nos ter sido apresentada com o subtítulo “Privado”. Na parte intitulada
“Era uma vez” vislumbramos a realização do casamento de Valdir com Irene, ou seja,
como a história familiar começou em uma atmosfera de conto de fadas, terminando de
forma drástica com a acusação do pai. O que para Valdir era apenas a execução de um
direito paterno, quando passa da esfera privada para pública transforma-se em crime.
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Em meio à cultura aberta, que tem o personagem Valdir como uma das
representações possíveis de individualidades, a melancolia humana está ligada ao
sentimento de perda pelo “[...] paraíso eternamente perdido que foi buscado mas não
encontrado” (LUKÁCS, 2000, p.86). Há uma frustração, um vazio que faz o indivíduo
peregrinar rumo a si mesmo no cativeiro da realidade existente; realidade esta vazia e
heterogênea, onde o ser humano pretende chegar a um autoconhecimento (LUKÁCS;
2000) que no caso de Valdir é essa fragmentação entre o pai e o homem internalizada
nele.
Existe uma enorme discrepância entre o que o personagem Valdir é (Ser) e o que ele
deveria ser (dever-ser); entre o que ele sente por Valdirene (desejo incestuoso) e o que
ele deveria sentir (amor paterno); sendo ele o único responsável por sua formação,
escolhas e caráter.
Apesar do crime horrendo cometido pelo pai, algumas passagens do conto deixam
transparecer a culpabilidade feminina, pois esta exala corporeamente elementos de
sedução como o andar de cio, o jeito de olhar preguiçoso, as manhas de mulher (p.32)
capazes de alvoroçar os sentidos masculinos de qualquer homem. Ainda assim, a
mulher é vislumbrada como corpo-objeto disponível e a procura de um macho. Essa
postura a respeito da mulher pode ser parcialmente explicada pelo patriarcalismo
disseminado por diversas instituições sociais, que hierarquizam os sexos em termos de
superioridade (homem) e inferioridade (mulher), e nesse binarismo a culpa sempre recai
sobre o sexo dominado.
Na fragmentação identitária de Valdir, são muitos os elementos textuais que
demonstram, gradativamente, o crescente desejo do personagem pela filha, desejo este
muitas vezes camuflado pelo sentimento de zelo paterno. A partir do momento que
Valdir questiona sua esposa para saber se a filha já era “moça”, ele transforma-se em
um homem desassossegado, como mostra a seguinte passagem: “Nessa noite, Valdir
não dormiu. Revirou-se na cama, madrugada inteira, pensando só em Valdirene,
sozinha na sala, com os dois irmãos [...] E a insônia se repetiu nele, noite após noite”.
(grifos nossos, p.32-3). A partir desse momento, o desejo incestuoso inconsciente de
Valdir começa a se corporificar por meio de suas ações e pensamentos, é o que Freud
(1996) denomina de “perigo do incesto”.
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Interessante notar que o pai projeta nos filhos o que ele sente por Valdirene, temendo
pela segurança da filha, afinal sendo a casa pequena, todos os filhos dormiam juntos na
sala da casa, e como Valdir bem coloca ao constatar se os filhos realmente dormem,
“não era fácil um homem se controlar, nada fácil” (p.33). Com isso passa a levantar
várias vezes no meio da noite para observar a filha: “Chegava junto à filha, puxava o
lençol para cobrir uma coxa mais à mostra, a camisola transparente, deixando ver os
seios” (p.33). Outra vez, notamos elementos de sedução embutidos na personagem
feminina (a coxa à mostra, a camisola transparente e os seios). É como um incentivo a
concretização do incesto.
A construção de um quartinho nos fundos da casa para presentear Valdirene quando
completasse 12 anos revela a intenção de construir uma alcova amorosa; um lugar onde
pudesse se encontrar com a filha longe dos olhos dos demais familiares. A rosa
vermelha deixada na cabeceira da cama da menina é mais um indício da intenção
paterna. O ciúmes que sentia dos filhos e principalmente o fato de imaginar que a filha
estaria interessada em Rui, o novo colega de trabalho, desencadeiam um sentimento de
posse doentio, como podemos evidenciar no seguinte trecho:
Valdirene logo logo ia ser mulher. Logo ia abrir as pernas pra
qualquer um, pro primeiro que mandasse. [...] Com paciência, sem
pressa alguma, ia se convencendo de seus sentimentos. Afinal, o que é
de sangue ninguém tira, e aquela menina viera dele, não tinha como
aquele Rui ou um outro qualquer querer que fosse diferente. Era sua
filha. Sua. (grifos nossos, p.38)

Toda essa conexão de pensamentos realizados por Valdir tem a pretensão de justificar o
incesto, esse ato sexual ilícito que se realizaria pelo seu direito paterno, pelo “sangue”
em comum, pelo sentimento de posse embutido no pronome “sua”, resultando
fatalmente na seguinte fala “- Sou teu pai. Por isso, eu é que digo a hora de você ser
mulher” (grifo nosso, p.39).
A gradativa exposição de elementos como a percepção da puberdade da filha, o
medo de que os filhos também percebam na irmã uma mulher, a construção do
quartinho, a rosa vermelha na cabeceira, as constantes visitas noturnas a filha, o ciúmes
doentio resultam no incesto paterno. Todas essas características colocam Valdir como
um indivíduo problemático em meio a um mundo desarmonioso (reflexo da cultura
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aberta), onde todas as certezas, como a certeza do sentimento paterno, estão diluídas no
mundo a espera de serem encontradas.
Como um homem sem base ou parâmetros estáveis de comportamento morais e
éticos, Valdir chega a pensar em engravidar a filha, pois “com um filho nos braços
ninguém iria querer saber dela” (p.41). Este tipo de fala mostra que Valdir tenciona
romper com a relação de “troca de mulheres entre homens” que Lévi-Strauss coloca
como uma relação necessária à vida social dos grupos. Dentro desses grupos a proibição
do incesto seria um meio de estabelecer normas para determinar a forma pela qual será
feita a distribuição das mulheres, que estão imobilizadas nos seios dos grupos
familiares. Há uma negação dessa relação socialmente estabelecida; Valdir não aceita
entregar sua filha a outro homem como fez Joaquim, seu sogro, ao lhe conceder a mão
de Irene: “Joaquim apertou com força a mão de Valdir. Valdir olhou nos olhos daquele
homem que lhe dava a filha” (p.42). O aperto de mão que sela essa relação de troca de
mulheres entre homens é rompida por Valdir a partir do momento que ele decide não
“entregar” sua filha a alguém.
Quando a história do incesto se torna pública ao leitor por meio de um boletim de
ocorrência, é que constatamos que Valdirene sofreu com a violência sexual paterna por
três anos sem que os demais familiares acreditassem no que ela contava, inclusive a
mãe. A relação que inicialmente nos é apresentada como a de pai e filha, termina sendo
substituída pelo par binário acusado e informante, e a certeza de Valdir de que “ia ser
feliz” (p.42) ao casar-se com Irene é destruída pela realização do incesto, pelo emprego
que perdeu, por tornar-se alcoólatra, por violentar fisicamente a mulher e os filhos,
terminando, assim, foragido da polícia.
Mesmo depois de toda a violência sofrida, a culpabilidade perante os familiares recai
sobre Valdirene, como mostra o seguinte trecho: “A informante não tem notícias da mãe
e dos irmãos; que nenhum deles a procurou” (p.41). A partir do momento que a prática
incestuosa é relatada por Valdirene há uma quebra na simbolização das funções
familiares (pai, mãe e irmãos), o que torna o relato feito por Valdirene algo fantasioso e
irreal para os demais familiares, que rejeitam o deslocamento da figura paterna:
[...] a informante contou o ocorrido a sua mãe; que sua mãe não
acreditou, dizendo que ela estava vendo muita novela; [...] que a mãe
e os irmãos diziam que o acusado só queria o seu bem; que o irmão
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mais velho dizia que ela era a preferida do pai e por isso ganhara um
quarto só para ela (grifos nossos, p.40).

Todo esse desnorteamento de uma família inserida nas contradições do mundo


moderno pode ser parcialmente explicado pelo sentimento de abandono que recai sobre
o ser humano, como bem coloca Lukács (2000) ao ressaltar as problemáticas do homem
envolto na atmosfera da cultura aberta. Para o autor (p.60), o herói do romance, ou,
nesse caso, do conto, busca algo; e esse simples fato de buscar revela que não há
objetivos e nem caminhos predestinados a ele, ou seja, trata-se do indivíduo
problemático, abandonado por Deus. Diferente do que acontece com o herói inserido na
cultura fechada (LUKÁCS, 2000, p.79-80), pois os objetivos dele são dados com
evidência imediata, sendo que o mundo só lhe reserva obstáculos e dificuldades para a
realização dos objetivos, mas nunca um perigo intrinsecamente sério, como é o caso de
Édipo que tendo seu objetivo, ou seu destino (fado) traçado pelos deuses, todas as suas
ações o levam ao cumprimento do que lhe foi predestinado, por mais que ele tente fugir
ou alterar seu destino.

Depois de analisarmos e discutirmos o incesto realizado por Valdir, iremos


confrontá-lo com o incesto cometido por Édipo na tragédia Édipo Rei de Sófocles,
procurando entender como se dá a realização do incesto em culturas diferentes.

3.1 Édipo e Valdir: incestos díspares

Na tragédia Édipo Rei podemos vislumbrar Édipo, um dos personagens sofocliano,


situando-se diante de um problema; a previsão feita pelo oráculo. A tentativa de fuga
diante da previsão de que cometeria o incesto com sua mãe e mataria seu pai, o leva
cada vez mais próximo da efetivação dos dizeres. Isso poderia ser parcialmente
explicado pelo fato de a tragédia de Sófocles refletir a cultura na qual ele está inserido; a
cultura fechada, onde todos os acontecimentos interligam-se num grande elo, no qual os
eventos se justificam e se explicam pela vontade dos deuses e são previstos pelos
oráculos (LUKÁCS; 2000). Existe a possibilidade de escolha por parte dos personagens,
mas fatalmente essas escolhas já foram previstas.
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Em Édipo Rei, o homem, representado pelo personagem Édipo, inicia um caminhar
petulante, desafia os deuses, foge do seu destino, tenta construir um caminho alternativo
para sua vida baseado nas suas ponderações racionais. Porém, o personagem trágico
quase sempre paga um alto preço por suas escolhas. A ele resta, muitas vezes, a simples
certeza de ter podido praticar a escolha, “desobedecer” o destino, “rebelar-se” contra as
vontades divinas em benefício das vontades humanas. Neste sentido, a tragédia marca o
momento da ação humana. Contudo, essa ação humana não se sobrepõe a vontade
divina; o que foi previsto se realiza.
Lukács (2000) ao distinguir as culturas representantes das duas obras em análise,
compara a cultura fechada à infância, e a aberta à maturidade. Na maturidade o homem
se encontra sozinho, sem o auxílio dos deuses, daí advêm a “melancolia de ser adulto”,
que aparece representada em textos produzidos dentro desse contexto cultural
desarmonioso, como é o caso do conto “Noções de Direito”. Já na infância, a criança
seria acompanhada e guiada pelos pais, e apesar de toda dúvida ou insegurança, tem em
quem se aparar, como ressalta o seguinte trecho:
Os heróis da juventude são acompanhados em seus caminhos pelos
deuses, [...] eles jamais avançam sozinhos, são sempre conduzidos.
Daí a profunda certeza da sua marcha: abandonados por todos, podem
eles chorar de tristeza em ilha desertas, podem cambalear até os
portais do inferno no mais profundo descaminho da cegueira – sempre
os envolve essa atmosfera de segurança, do deus que traça os
caminhos do herói e toma-lhe a frente na caminhada. (p.87-8)

Talvez essa “atmosfera de segurança” e essa “profunda certeza de sua marcha”, tenham
levado Édipo a cometer todos os crimes previstos pelo oráculo, pois, lutando contra
esses dizeres, acaba por consumar o que lhe foi predito. Ou seja, o livre arbítrio
existente na cultura fechada se diferencia do existente na cultura aberta, pois mesmo
tentando traçar seu destino individual, fugindo da vontade dos deuses, Édipo concretiza
os crimes previstos. Já Valdir não tem seu destino traçado pelos deuses, pois na sua
cultura há um abismo entre o homem e as divindades (o ser humano se encontra
sozinho). Isso não quer dizer que não há regras a serem seguidas, mas apenas que o
homem é o único responsável pela transgressão dos parâmetros estabelecidos
socialmente, como é o caso do incesto cometido por Valdir.
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Com relação à punição pelo crime do incesto, podemos dizer que ela se realiza de
forma díspare nos dois textos. Édipo, mesmo tendo cometido o incesto culposo, por
força do destino, tem a hombridade de se castigar, furando os próprios olhos para que
não mais visse a desgraça que cometeu: “Foi Apolo, meus amigos, quem me infligiu
estas desgraças, todas estas desgraças; mas ninguém me feriu, a não ser eu. Que me
importava ver, se nada me era agradável à vista?” (SÓFOCLES, 1988, p.87). Já Valdir
que cometeu um incesto doloso, pois não possuía um destino traçado e o livre arbítrio
funciona plenamente em sua cultura, termina a história como foragido da polícia,
recusando-se a pagar por um crime no qual ele foi o único responsável.
Assim como Édipo, Valdir também passa “da boa para a má fortuna”, pois o
personagem possuía um bom relacionamento familiar, tinha um emprego, em suma,
uma vida tranqüila e termina sua história de forma catastrófica. Após a realização do
incesto, Valdir passa a beber e agredir “a informante e os familiares com socos,
pontapés” (PEÇANHA, 2001, p.41), quase matando a mulher com um espeto de
churrasco, além de perder o emprego. Contudo, ele não aceita pagar pelo crime
horrendo que cometeu; ao contrário, foge, deixando os filhos e esposa pagando pela
“má fortuna” da qual ele foi o único responsável.
Tomando Édipo como exemplo, parece que os seres humanos criados na atmosfera
da cultura fechada são imbuídos de sentimentos mais estáveis e mais nobres, seja por
sua religiosidade mais apurada, ou pela própria ética e moral que a cultura fechada
impõe. Diferente disso, na cultura aberta o homem se encontra mais desprotegido,
repleto de incertezas, portanto, mais propenso a realização consciente do incesto, como
foi o caso de Valdir.

Conclusão

Confrontando duas obras que são frutos de culturas diferentes, percebemos que
existe uma intertextualidade na temática “família”, com todos os seus problemas e
desajustes eternos. A literatura da Antigüidade Clássica e a Bíblia Sagrada confirmam
isso. Homicídios, traições, rivalidades, ódio entre irmãos, são alguns dos temas de
reflexão filosófica e literária mais antigos do mundo. Biblicamente, podemos pensar na
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atitude de Caim que mata o irmão (fatricídio), no incesto ocorrido com a destruição de
Sodoma e Gomorra, onde as filhas embebedam o pai para que tenham a sua
descendência, entre outros temas trabalhados.
Todos esses temas não são novos e têm se renovado na produção literária atual,
repetindo os conflitos e agravando-os, na medida em que os inserem no caos urbano do
nosso tempo. Dessa forma, o diálogo entre o presente e o passado nos faz resgatar
histórias bíblicas, clássicas e contemporâneas para mostrar que seus temas são tão
antigos, como atuais, eternos como a própria impossibilidade de harmonia terrena

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Européia
do Livro. 1970.
FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos (1913~1914). Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1996.
LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes. 1976.
LUKÁCS, G. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Marian de Macedo. São
Paulo: Duas Cidades, 2000.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
PEÇANHA, Sônia. Traição e outros desejos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
QUEIROZ, Eça. Os maias. São Paulo: Martin Claret, 2005.
SÓFOCLES. Édipo rei. Tradução de Agostinho da Silva. S.l: Ed. América do Sul, 1988.
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A RECRIAÇÃO HISTÓRICO-LITERÁRIA EM O TETRANETO DEL-REI


DE HAROLDO MARANHÃO

Aline de Souza Muniz (PG - UFPA/CAPES)

Haroldo Maranhão foi um escritor múltiplo que se destacou pela produção de contos,
mas que também atingiu singularidade ao produzir romances extraordinários, embora
tenha sido pouco reconhecido pela crítica e pouco tenha sido escrito a respeito de sua
obra. Mesmo assim, pode-se falar de alguns prêmios recebidos por sua vasta produção,
dentre eles destacam-se: o Prêmio da União Brasileira de Escritores, o Vértice de
Literatura, o Prêmio Instituto Nacional do Livro, o Prêmio José Lins do Rego e o
Prêmio Guimarães Rosa, entre outros. Esse último concedido em 1980 pelo romance O
Tetraneto Del-Rei antes mesmo de ser publicado.
O escritor paraense nasceu em 7 de agosto de 1927. Vivendo com sua família no
último andar do prédio do jornal Folha do Norte 1, o menino cresceu entre as
brincadeiras com o irmão Ivan e as impressões diárias das folhas a publicar, assim, logo
se habituou às letras. Sua trajetória na escrita foi iniciada ainda nos tempos de escola,
aos treze anos ele publicou crônicas no jornal escolar O Colegial. Com o tempo, se
tornou redator na Folha do Norte¸ ainda adolescente começou como revisor e repórter
policial, passando, em pouco tempo, a chefe de redação. No período de 1946 a 1950,
dirigiu o Suplemento literário, importante veículo de informação acerca de literatura e
arte em Belém. É nessa época também que funda a livraria Dom Quixote, importante
ponto de encontro de alguns intelectuais. Posteriormente, torna-se advogado e muda-se
para o Rio de Janeiro onde vive como procurador da Caixa Econômica Federal. Lá, ele
vive até o final de sua vida, em 17 de julho de 2004.
Quanto à sua produção, Sérgio Alves marca três importantes fatores para a formação
do escritor Haroldo Maranhão: a atividade jornalística, a leitura e a escrita diária. De
jornalista, sobraram traços da crônica, inclusive pela observação do cotidiano da vida do

1
A família de Haroldo vivia no último andar do prédio do jornal, propriedade do avô Paulo Maranhão,
buscando se proteger dos inimigos políticos do avô e do jornal.
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povo belemense. De sua formação na leitura, é perceptível sua característica de ávido


leitor de autores nacionais e estrangeiros — tendo por preferência Machado de Assis e
Antonio Vieira segundo ele —, uma vez que além da vasta biblioteca deixada, ler seus
textos é um verdadeiro desafio, deparamo-nos com uma verdadeira colcha de retalhos
das palavras dos outros.
Além disso, o exercício da escrita também é reflexo de sua formação jornalística,
bem como de uma necessidade vital, por isso mesmo “Haroldo produziu o seu diário de
escritor, um volume de mais de duas mil páginas escritas até 1982. Em 1995, contava
com cinco mil, conforme afirmou em certa ocasião” (ALVES, 2006, p. 33-34).
Até aqui, detivemo-nos com um breve histórico da vida do autor, não objetivando
uma leitura de caráter biográfico, mas procurando esclarecer a respeito dele e de sua
formação para prosseguirmos a leitura do romance pretendido.

1. Confluências textuais

Em O Tetraneto Del-Rei, tem-se a retomada dos escritos dos cronistas, no entanto,


uma retomada questionadora, que já começa na epígrafe do romance. A segunda
epígrafe de O Tetraneto apresenta de forma irônica a pretensão dos textos coloniais em
retratar “assim como melhor puder” as terras recém descobertas: “A verdade se passa
como tenho contado”. Estrategicamente escolhida, ela dá o tom de galhofa do autor no
que diz respeito à forma como os textos de informação contam a história, delineando
traços da perspectiva sob a qual a obra será demarcada. O romance haroldiano propõe-
se a recontar esse momento histórico a partir da chegada de uma frota portuguesa e os
primeiros contatos dessa com os habitantes da nova terra de maneira diferente da
composta pelos textos coloniais. Nesse romance, sobrepõe-se uma perspectiva
questionadora, contestando o discurso etnocêntrico e dominador cristalizado.
O que vem a chamar maior atenção na obra é a construção feita pelo autor, iniciada
pela preocupação com a linguagem, escrita à maneira dos escritos do século XVI, bem
como com a inscrição de outros textos criando uma abertura para diversas redes
intertextuais. É articulado, assim, um verdadeiro jogo iniciado a partir de outras obras
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que se inscrevem e são claramente reescritas pelo contexto do romance, as quais ecoam
apenas pelas suas estruturas bem de longe reconhecidas.
Em O Tetraneto Del-Rei, há enxertos de passagens e versos que vão desde autores
portugueses aos nossos modernistas. O próprio autor, em nota no livro, diz ter utilizado
os textos de Fr. Amador Arrais, Pero Vaz de Caminha, Camões, Bocage, Gregório de
Matos, Fr. Francisco de Mont’Alverne, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Eça
de Queiroz, Machado de Assis, Francisco Otaviano, Olavo Bilac, Fernando Pessoa,
João Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de
Melo Neto, Mario Faustino e Lêdo Ivo.
Há também a incorporação de elementos paratextuais como títulos de obras e nomes
de autores inscritos na narrativa. Dos títulos são citados: Fogo morto, Pedra do sono,
Canaã, Ubirajara, Clã do jabuti, O cão sem plumas, Verde vago mundo, Chão dos lobos,
Passagem dos inocentes, dentre outros. Dos autores, são citados João “Cabral
amantíssimo amante de rios” e “Mário: que tão cedo te partiste! Mário fausto; Mário
Faustino” (MARANHÃO, 1982, p. 113).
É feita, assim, uma verdadeira justaposição de elementos e excertos que vão “além
de um mero percurso intertextual” 2. Os textos mostram tons diferentes ao serem
pronunciados por outra pessoa no contexto do romance. Na sexta carta de O Tetraneto
Del-Rei, os versos de Fernando Pessoa e seus heterônimos são pronunciados pelo
protagonista Jerônimo de Albuquerque num tom reflexivo e triste, o que segundo ele era
resultado do cansaço.

Senhora,
estou cansado, é claro, porque, a esta altura, a

Álvaro de gente tem que estar cansado. - Um supremíssimo cansaço, /


Campos “Não”, Álvaro
“Opiário”, íssimo, íssimo, íssimo, / cansaço... - Não. Cansaço por quê? -
de Campos
Álvaro de Começo a conhecer-me. Não existo. - Meu Deus, que fiz eu
Álvaro de Fernando
Campos
da vida? - Tenho vontade de chorar, / tenho vontade de Pessoa
“Adiamento”,
Álvaro de “Passagem
chorar muito de repente, de dentro. - Onde estais vós, que eu das horas”,
Campos
F. Pessoa
2
“Aquele
Em seu F.
peso”, “A espantosa
artigo, Silvio Holanda mostra essa confluência textual fazendo um quadro comparativo entre a
carta 8 de
Pessoa O Tetraneto Del-Rei e o texto de Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas. realidade das
coisas”,
Ricardo Alberto
Reis
“Opiário”,
Álvaro de
Campos
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quero chorar de qualquer maneira? - Aquele peso em mim –


meu coração. - A espantosa realidade das coisas é a minha
descoberta de todos os dias. - Aqui neste misérrimo desterro
/ onde nem desterrado estou, habito, / fiel, sem que queira, “Opiário”,

àquele antigo erro / pelo qual sou proscrito. - São dias só de Álvaro de
febre na cabeça, / não faço mais que ir ver o navio ir, / levo o Campos

dia a fumar, a beber coisas, / escrevo estas linhas. / Febre! Se


isto que tenho não é febre, não sei como é que se tem febre e
sente. O fato essencial é que estou doente. / Sou doente e
fraco. / Pertenço a um gênero de portugueses que depois de
“Ode
marítima”, estar a Índia descoberta ficaram sem trabalho. A morte é
certa. Tenho pensado nisto muitas vezes. / Nasci para
Álvaro de mandarim de condição, mas falta-me o sossego, o chá e a
Campos
esteira. / Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas
“Mar
marítimas. - Chamam por mim as águas, / chamam por mim
português,
“Mar os mares, / o chamamento confuso das águas, / a voz inédita III. Padrão”,
português, Fernando
X. Mar
e implícita de todas as coisas do mar, / dos naufrágios, das Pessoa
português” viagens longínquas, das travessias perigosas. / Ah, seja como “Ode
Fernando marítima”,
Pessoa for, seja por onde for, partir! / Largar por aí fora, pelas Álvaro de
ondas, pelo perigo, pelo mar. / Ir para Longe, ir para Fora, Campos
“Passagem
das horas”,
para a Distância Abstrata, / indefinidamente, pelas noites
Fernando “Ah, um
Pessoa misteriosas e fundas, / levado, como a poeira, plos ventos, soneto”,
Álvaro de
plos vendavais! / Ir, ir, ir, ir de vez! - O mar sem fim é Campos
“Eu”,
Fernando português. - Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas
Pessoa
de Portugal! - Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e “Ora”,
“Primeiro Álvaro de
Fausto – do crime! / Minhas marítimas feras, maridos da minha Campos
Mistério imaginação! - Trago dentro do meu coração como num cofre
do mundo
XIX”, que se não pode fechar de cheio, / todos os ligares onde
Fernando
Pessoa estive. - Meu coração é um almirante louco / que abandonou
a profissão do mar. - Sou louco e tenho por memória / uma
longínqua e infiel lembrança / de qualquer dita transitória /
que sonhei ter quando criança. - Tenho a loucura exatamente
na cabeça. / Graças a Deus que estou doido. - Abre-me o
Álvaro de

“Primeiro
Fausto –
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Maringá-PR, 9, 10 eMistério
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do mundo
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XIX”,
Fernando
sonho para a loucura a tenebrosa porta, / que a treva é menos “Poesias
Pessoa
inéditas”,
negra que esta luz. - Vejo passar os barcos pelo mar, / as Fernando
velas, como asas do que vejo/trazem-me um vago e íntimo Pessoa

desejo / de ser quem fui, sem eu saber que foi. / Por isso tudo
lembra o meu lar, / e, porque o lembra, quanto sou me dói. -
De quem são as velas onde me roço? / De quem as quilhas
que vejo e ouço? - Há saudades nas pernas e nos braços. / Há
saudades no cérebro por fora. / Há grandes raivas feitas de
“Barrow-
on-furness, cansaços. - Há quanto tempo, Portugal há quanto tempo /
Álvaro de
vivemos separados! Horror! - Não nos vemos mais!
Campos
Em toda a noite o sono não veio. Agora / raia do fundo
“Em toda
noite o / do horizonte, encoberta e fria, a manhã. / Com olhos tontos
sono não de febre vã, da vigília / vejo com horror / o novo dia trazer-
veio”,
Fernando me o mesmo dia do fim / do mundo e da dor / – um igual aos
Pessoa
outros, da eterna família / de serem assim. - Aqui na orla da
praia, mudo e contente do mar. / Sem nada já que me atraia,
sem nada que desejar, / farei um sonho, terei meu dia, “Ah, um
soneto”,
fecharei a vida, / e nunca terei agonia, pois dormirei de
seguida. / Só, no silêncio cercado pelo som branco do mar, / Álvaro de
Campos
quero dormir sossegado, sem nada que desejar, / quero
“Vaga no dormir na distância de um ser que nunca foi seu, / tocado do
azul amplo
solta, vai ar sem fragrância da brisa de qualquer céu. - Vaga, no azul
uma nuvem amplo solta, / vai uma nuvem errando. / O meu passado não
errando...”, “Passou
Fernando volta. / Não é o que estou chorando. - Passou a nuvem; o sol uma nuvem
Pessoa pelo sol”,
volta. / A alegria girassolou. / Pendão latente de revolta, /
Fernando
“É brando o que hora maligna te enrolou? - É brando o dia, é brando o Pessoa
dia, brando
o vento”, vento. / É brando o sol e brando o céu. / Assim fosse meu
Fernando “Tenho
pensamento! / Assim fosse eu, assim fosse eu! - Tenho esperança?
Pessoa “Poesias
Não tenho”,
esperança? Não tenho. / Tenho vontade de a ter? / Não sei. inéditas”,
Fernando
“Ode Fernando
Pessoa
Ignoro a que venho, / quero dormir e esquecer. - Deus tenha
marcial”, Pessoa
Álvaro de piedade de mim que não a tive de ninguém. - Quando a erva
“Mensa-
Campos
gem”, crescer em cima da minha sepultura, / seja esse o sinal para Alberto
“Ah, um
Caeiro
Fernando
soneto”,
Pessoa
Álvaro de
Campos
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me esquecerem de todo. / A Natureza nunca se recorda, e por


isso é bela. - Que coisa curiosa estas associações de idéias!
Torno ao chão; e rogo a indulgência vossa para estes
devaneios, que é como se alto pensasse, não eu, mas outra
pessoa.
Deste desterro meu vos invio muito saudar.

J. D’Alb 3. (MARANHÃO, p. 46-47)

Logo após o primeiro encontro com os índios, o protagonista Jerônimo passa a ser
atormentado por pesadelos com flechadas despejadas por “índios irosos”, o que lhe
fazia se sentir com a “ombridade pisada”, haja vista que ele “nisso muito gosto até
mostrava e à feição se punha, agachando-se e empinando a plataforma do assento”
(MARANHÃO, p. 32). Isso o deixa aflito e pela persistência dos sonhos, angustiado.
A razão de maior tormento do protagonista se dava, principalmente, pela aparição do
poeta Camões em seus sonhos, o qual conhecera em Goa, fato estranho a Jerônimo, já
que se dera conta de que nunca estivera por lá ou em qualquer outra parte das Índias.
Mas por que lhe parecia tão clara a figura do poeta caolho com os poemas embaixo do
braço? Ele jamais relataria tais fatos à senhora que tanto desejava impressionar nas
cartas anteriores, por isso, atribui a melancolia impressa nas letras escritas ao cansaço
produzido pela estada na terra a ser desbravada e para isso se serve das palavras de
Pessoa e seus heterônimos, fazendo, ao final da carta, um jogo interessante com o nome
do poeta.

2. Contestação

Os textos utilizados na obra haroldiana são reconstruídos num tom, sobretudo irônico
e crítico, revelando uma outra visão do processo de colonização. A história é

3
Para demonstrar os excertos de Fernando Pessoa e seus heterônimos, foram inseridos à carta dois
elementos: “-” , para separação de poemas e “/” , para separação de versos.
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reinventada e a obra faz questão de mostrar em seu corpo as tintas do colonizador, sem
deixar, contudo, de valorizar suas próprias cores. Reside aí a riqueza do romance do
autor paraense, pois ele contém em si

uma representação do texto dominante e uma resposta a esta


representação no próprio nível da fabulação, resposta esta que passa
a ser um padrão de aferição cultural da universalidade tão eficaz
quanto os já conhecidos e catalogados. (SANTIAGO, 1983, p. 23).

Se a dependência é inegável, a idéia de simples imitação do outro será transposta.


Em O Tetraneto Del-Rei, o outro é assimilado e tem seu discurso questionado tendo
como base exatamente o que ele havia pronunciado. Olhando por esse ângulo, o texto de
Haroldo Maranhão brinca com os signos do outro e projeta neles um novo significado,
um significado destruidor a partir de uma linguagem na qual predomina a ironia. Além
disso, há um verdadeiro diálogo com a literatura do século XVI pela imitação da
linguagem da época, do uso de vocabulários peculiares e da reconstrução de eventos
históricos.
Por exemplo, temos na Carta de Caminha um relato acerca do primeiro encontro
entre portugueses e índios. Nessa, o escrivão relata que ao lançarem âncora, ainda um
tanto distantes da praia, avistaram-se sete ou oito homens que por ali andavam. O
Capitão logo manda que um de seus homens, Nicolau Coelho, aproxime-se. Antes
mesmo de o batel aportar, os homens “pardos, nus” com arcos e setas nas mãos cercam-
no e ele apenas sinaliza para que eles pousem os arcos para ser imediatamente
obedecido. Em seguida, Nicolau Coelho arremessa um barrete vermelho, uma carapuça
de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Reconhecendo e retribuindo o
gesto, um dos índios lança um sombreiro de penas de ave, outro lhe dá um ramal grande
de continhas brancas. Assim, é selada pronta amizade.
Episódio em parte semelhante é contado pelo narrador de O Tetraneto Del-Rei, o
qual relata que no segundo dia após a chegada da nau em terras desconhecidas, os
capitaneados de Duarte Coelho têm seu primeiro encontro com um “rancho de índios de
ruim catadura”. Apesar de visivelmente amedrontado, tal qual seus companheiros,
Jerônimo de Albuquerque decreta-se comandante dos demais e toma a primeira atitude
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interpelando o gentio que considerara principal entre eles. “Esta ação meteu assombro
aos acuados, que acuados eram, não os índios, mas os portugueses. Os quais
atordoaram-se vivissimamente” (MARANHÃO, p. 14).
Em posição de arrogância, o protagonista retira seu chapéu e o lança em direção aos
índios, no entanto, ao ver seu tricórnio chapéu jazido em terra sem a esperada
retribuição amical, o Torto retoma-o. Após segunda tentativa, num gesto teatral
Jeronimo lança uma banana no braço de um dos índios, porém isso em nada
compromete a passividade indígena, até que se ouve o grito: “Nããããão! Bananas,
nãããão!”, o qual paralisa o grupo luso. Ouve-se novo grito provindo do grupo dos
ameríndios que os assombra ainda mais e os faz correr, “e até hoje haverá português
alhures em debandada. À frente do pugilo apavorado, corria justo o capitão, e em seu
couce vinha obra de oitenta ou mais portugueses” (MARANHÃO, p. 16). Cotejados os
episódios em que se nota evidente semelhança, ressalta-se no primeiro a coragem do
português Nicolau Coelho que sozinho consegue estabelecer comunicação com um
grupo inicialmente de sete a oito índios, posteriormente passando a vinte que o cerca,
sem manifestar qualquer alteração.
De forma irônica, o segundo episódio parodia o primeiro contestando-o. No encontro
com um moderadíssimo número de índios, em vez de um português apenas, tem-se um
grupo de mais de oitenta armados de mosquetes seguidos do seu comandante no
momento improvisado. Embora em maior número e melhor armados, eles demonstram
assombro ao se depararem com os donos da terra, os quais se mantinham calmos e
mesmo curiosos em aproximarem-se dos visitantes. Mas é depois de ouvir o enunciado
tão vivissimamente deflagrado: “Quem, tem cuuuuuuuu tem meeeeedo!”
(MARANHÃO, p. 15) que o grupo luso atinge o auge do despropósito fugindo
vergonhosamente, deixando seus rastros pelo caminho. Eles regressam ao galeão em
metade do tempo percorrido anteriormente tão assustados estavam.
Dessa forma, o comportamento português é ridicularizado pelo narrador que lança
por terra a visão de coragem e bravura portuguesa constituída nos textos canonizados,
sobretudo no épico camoniano. Os portugueses são caracterizados em seu aspecto mais
vil, são todos homens sem caráter e covardes. “Porcos. Selvagens. Que selvagens eram
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eles, eles si: selvagens. Calafurnas, sacotos, freixos, corvinos, bacalhaos, o capitão-mor
– o doido-mor” (MARANHÃO, p. 113). Note-se que mesmo o capitão da frota, figura
exaltada em Os Lusíadas, é colocado ao nível dos outros e qualificado de louco.
Ademais, o narrador insere comentários quanto à preocupação maior em usufruir e
saltear o melhor da terra a ser desbravada, o que evidencia a falta de caráter dos
embarcados. O narrador mostra que os portugueses estavam afogueados “nem tanto do
sol a pino, porém da cobiça, tão apoderada de sua alma, salteados da febre do ouro, da
prata e do âmbar que sabiam assoberbar-se ali a odres” (MARANHÃO, p . 14).
Eis o argumento que motivava a empresa portuguesa. Os embarcados estavam em
busca da fortuna a qual poderiam acumular, afinal, as notícias sobre as riquezas e a
conquista fácil delas chegavam em Portugal. No entanto, para se atingir esse objetivo
era necessário passar pelos habitantes da terra, tarefa difícil de ser realizada, tendo em
vista o medo que os assombrava. Apesar disso, o outro é tratado como inferior. Segundo
o capitão Duarte Coelho, “gentio é gentio, mais próximo às feras que aos seus
semelhantes” (MARANHÃO, p. 13).
É até risível a presunção lusa frente às derrotas sofridas, haja vista o narrador contar
como eles eram massacrados pelos aborígenes. Em apenas uma das batalhas travadas,
oitenta e sete portugueses foram derrubados em um curto espaço de tempo, então, como
qualificar de bárbaro aquele que tão habilmente derrota o seu inimigo? Talvez fosse
necessário repensar o comportamento e organização do outro, tal qual o rei Pìrro 4, antes
de qualificá-lo. Antes de se impor violentamente, melhor seria tentar conhecer. “Se
houvera esse Albuquerque usado a cabeça e não o chapéu, e invés do traste emplumado
houvesse dádivas arremessado aos naturais, pronta amizade ter-se-ia selado”
(MARANHÃO, p. 16).

Conclusão

4
Ao falar da imposição violenta cometida pelo colonizador aos povos latino-americanos, Silviano
Santiago em “O entre-lugar do discurso latino-americano” utiliza uma afirmação de Montaigne extraída
dos Ensaios, na qual Montaigne demonstra seu deslumbramento ao ver a organização do exército bárbaro,
que de forma nenhuma poderia ser considerada como tal.
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Haroldo Maranhão foi um escritor multifacetado que engendrou em sua produção


uma multiplicidade de temas, tendo a preocupação em refletir o tempo presente a partir
das experiências resgatadas do passado. Conforme afirma Maria Elisa Guimarães, nos
dois últimos romances do escritor, é feito um desafio irrecusável aos cientistas sociais e
historiadores, já que enquanto textos ficcionais, “interessam à pesquisa como
‘documentos de época’ ou como forma de recuperação de uma história de mentalidade”.
(GUIMARÃES, 2002, p. 81).
Aceitando o desafio, tomou-se para este trabalho O Tetraneto Del-Rei, um dos
romances a que Maria Elisa Guimarães se refere, o qual se apresenta como repetição da
tradição histórico-literária ao se apropriar dela, contudo, instaurando a diferença,
resultado da reconstrução dos elementos que dela utiliza. Para Derrida, a “pura
repetição, ainda que não mudasse nem uma coisa, nem um signo, traz consigo um poder
ilimitado de perversão e de subversão.” (DERRIDA, 1995, p. 76). Assim, além de
subverter o código, a História é recontada; a mesma História que nos foi relatada pelo
colonizador, agora é recontada de maneira irônica por um outro viés.
No romance haroldiano transparece o discurso de um narrador que reconstrói o
relato do protagonista Jerônimo D’Albuquerque, contudo, além de contradizê-lo, tal
discurso oferece ao leitor um outro viés da história que faz repensar a respeito da
veracidade dos documentos coloniais inseridos em nosso cânone. Se é que se pode falar
dessa forma ao se tratar de literatura, haja vista segundo Luiz Costa Lima: “a literatura
se pretende semelhante a um infinito caleidoscópio, tal a capacidade de transgredir
fronteiras. Ficção de segundo grau, sendo a realidade a de primeiro; liberta da carga de
declarar verdades ou indicar caminhos, a literatura seria o ponto de concentração e
convergência da ficção.” (LIMA, 1980, p. 243).
Toda essa riqueza literária se oferece ao olhar dos leitores de maneira sedutora e
instigante, seja pela literariedade da obra, seja pela reconstrução de nossa história, ou
outros aspectos que a cada leitura se abrem. Dessa forma, torna-se imprescindível falar
no universo literário de Haroldo Maranhão.

Referências
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ALVES, Sérgio Afonso Gonçalves. Fios da memória, jogo textual e ficcional de


Haroldo Maranhão. Belo Horizonte: UFMG, 2006. – Programa de Pós-graduação em
Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais.

DERRIDA. Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Tradução de Maria Beatriz


Marques Nizza da Silva. 2 edição. São Paulo: Perspectiva, 1995.

GUIMARÃES, Maria Elisa. Trilha sem fronteiras: Haroldo Maranhão e o silêncio das
cidades. Asas da palavra. Belém: Unama, v. 6, n.13. p. 79-83, 2002.

HOLANDA, Silvio. O sertão é dentro da gente: algumas anotações de torno da carta 8


de O tertaneto Del-Rei. Asas da palavra. Belém: Unama, v. 6, n. 13, p. 75-77, 2002.

LIMA. Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal,
1980.

MARANHÃO, Haroldo. O Tetraneto Del-Rei: O Torto: Suas idas e venidas. Rio de


Janeiro: Francisco Alves Editora, 1982.

SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura


nos trópicos: ensaios de dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 9-26.

___. Apesar de dependente, universal. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1983. p. 13-24.
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LA CASA DE LA LAGUNA: DIFERENCIADAS VISÕES DE UMA MESMA


HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Aline Letícia Rech de Abreu (UCS) 1

La historia no tiene que ver más con la verdad que la literatura.


Desde el momento en que el historiador escoge un tema en lugar
de otro, ya está ejerciendo un criterio subjetivo, está
manipulando los hechos. El historiador, como el novelista,
observa el mundo a través de sus propios lentes y cuenta lo que
le da gana. Pero es sólo una parte de la verdad.
Isabel Monfort, La casa de la laguna –Rosario Ferré

A prática e o estudo da literatura, em geral, foram realizados por homens os quais


estabeleceram os conceitos a respeito da posição da mulher na sociedade e acabaram
por determinar os papéis de subordinação feminina em relação ao poder masculino. A
literatura latino-americana caracterizou-se pela não valorização da mulher tanto como
personagem-sujeito quanto como autora de sua própria história. A escrita feminina
rejeita as divisões de gênero e, na medida em que as autoras vão se apropriando do
discurso, elas promovem, por meio do questionamento dos valores tradicionais, a
ruptura com a dominação patriarcal. A autora porto-riquenha Rosario Ferré, no
romance La casa de la laguna (1996), ourtoga à mulher um papel fundamental em uma
visão diferenciada da história de Porto Rico, e de toda América Latina, ao representá-la
como um agente catalítico que substitui o discurso masculino, questionando e sugerindo
uma ordem alternativa, dando voz àquelas que foram constantemente silenciadas pelo
discurso oficial.
Porto Rico, espaço que serve de pano de fundo para a narração, é um país latino-
americano, mas também é um estado norte-americano. Essa característica peculiar é
importante para a libertação da mulher porto-riquenha pois, depois de 1898, quando
Porto Rico passa das mãos da Espanha para os Estados Unidos, as mudanças

1
Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade (UCS), professora do Centro Tecnológico
niversidade de Caxias do Sul e da Prefeitura de Caxias do Sul.
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econômicas e sociais foram responsáveis por integrar os segmentos femininos ao


mercado de trabalho, anos antes do que qualquer outra situação latino-americana. Esse
processo de industrialização foi positivo para a conscientização e para a independência
da mulher já que os movimentos sociais de libertação feminina, no primeiro mundo,
causaram um impacto considerável nesse país pelo menos uma década antes de
surgirem na América Latina. Navarro (2001, p. 3) afirma que, em virtude disso surgiu
em Porto Rico, no início dos anos 70, “um importante grupo de escritoras, introdutoras
de uma perspectiva inovadora e transgressora, que iria subverter o status quo cultural e
literário”. Entre essas, encontra-se Rosario Ferré, autora que revolve as normas textuais
utilizando técnicas narrativas que fazem ruir a construção tradicional da história,
escrevendo, a partir de fragmentos, fatos que possibilitam um questionamento da noção
de autoria, isto é, sobre a posição privilegiada e unificadora do autor sobre a “fonte da
verdade” que há pouco tempo era composta pela versão do homem branco da elite.
O romance La casa de la laguna (1996) foi publicado originalmente em 1995, em
inglês, tendo a primeira versão em espanhol no ano seguinte. Nele a história é contada
por meio de versões diferentes apresentadas por Isabel Monfort e Quintín Mendizábal,
sendo assim, este artigo tem como objetivo analisar de que forma uma mesma história
pode ser contada por meio da voz de duas personagens fisicamente próximas, mas que
apresentam maneiras absolutamente diferente de perceber a realidade que as cerca,
Isabel por meio da literatura e Quintín refugiando-se na visão unívoca oficial advinda da
história tradicional.
A relação entre história e literatura é antiga e, apesar de essas disciplinas se
cruzarem, as fronteiras entre ambas são mutáveis, seguindo os padrões das diferentes
épocas. Por muito tempo, acreditou-se que, na história, o pesquisador precisava
estabelecer fatos bem circunscritos, irrefutáveis, sendo que o acontecimento histórico
deveria ser examinado de maneira mais isenta possível para, dessa forma, poder ser
explicado, para a literatura, sobrava, portanto, a utilização do contexto histórico a fim de
narrar um episódio qualquer que não possuía relação com a história propriamente dita.
Hoje se acredita que a criação artística, além de ser influenciada pelos discursos
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históricos, exerce também uma função social, não representando o universo, mas
mostrando os valores de uma cultura, assim, “as obras literárias que melhor traduzem os
movimentos sociais e históricos não são as que retratam de forma escrupulosamente
exata os acontecimentos exteriores; são as que exprimem aquilo que falta a um grupo
social, e não aquilo que ele possui plenamente.” (FREITAS, 1984, p. 175).
Na Grécia antiga e na Idade Média, segundo Burke (1997, p. 112), a distinção entre
história e ficção era autoconsciente, isto é, derivava da consciência do ser humano. Com
a chegada do Renascimento e o retorno aos padrões clássicos, a diferenciação entre
história e ficção torna-se nítida, distinção que permanece durante o século XVIII, no
qual, segundo o autor, história e ficção tornavam-se cada dia mais distante, mesmo
ambas apresentando uma tendência a reverenciar os fatos grandiosos, esquecendo-se das
demais camadas sociais que não possuíam narrações heroicas para contar. A fronteira,
como dita por Burke (1997), entre literatura e história, abre-se apenas no final do século
XX, quando literatos e historiadores dão-se conta de que a voz dos demais setores da
sociedade acrescenta informações cruciais para o entendimento da história humana.
Dessa forma, as mulheres, assim como outros grupos descentralizados, tiveram a chance
de, tal como Isabel Monfort, narrarem a história por meio de uma face esquecida e
diluída na verdade apresentada até pouco tempo atrás.
Ferré escreve em seu romance sobre personagens que se inserem no contexto
histórico-político de Porto Rico a fim de mostrar que as construções genéricas não são
resultadas apenas da diferença sexual, mas também dos processos históricos,
econômicos e sociais que delimitam os espaços de cada gênero. A narrativa origina-se
da ideia de Isabel Monfort de escrever sua própria história e a da família do seu marido,
família esta que representa a história de Porto Rico desde a conquista espanhola até os
dias atuais. A narradora declara que “mi propósito original fue tejer, a los recuerdos de
Quintín, las memorias de mi propia familia, pero lo que escribí finalmente fue algo muy
distinto” (FERRÉ, 1996, p. 18), pois na medida em que o texto se expande, ele se
desdobra em outras implicações históricas e textuais, e, no momento em que Quintín o
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encontra, escondido na biblioteca, será neste instante que o leitor dar-se-á conta de que
o que está lendo configura-se nas páginas do romance de Isabel.
A narradora vai mesclando a sua vida juntamente com as histórias das duas famílias
em oito partes, separadas em quarenta e cinco capítulos, incluindo os relatos de Quintín
sobre a narração e o seu próprio diário sobre os acontecimentos do seu cotidiano. Isabel
retoma seu passado e narra que se graduou em literatura e decidiu ser escritora,
profissão que Abby, avó Valentina, lhe dá força, proferindo sobre a importância que há
no poder de transformação advinda da narração das experiências pessoais dolorosas por
meio da catarse fomentada pela literatura.
Isabel relata a história de Porto Rico desde 1917, com a chegada de Buenaventura,
pai de Quintín. Como havia chego sem direito algum, o único bem que possuía consistia
na árvore genealógica de sua família, a qual declarava que Buenaventura tinha um título
de nobreza herdado de seu tataravô Francisco Pizarro, o conquistador do Peru. Isabel
assevera que, naqueles tempos, a linhagem valia peso de ouro e por isso Buenaventura
consegue um bom casamento e, com o passar dos anos, torna-se um dos homens mais
poderosos de San Juan, construindo a casa da laguna a fim de mostrar o seu poder
econômico, tendo, a casa, na parte detrás, a “tour de force”, isto é, um terraço feito com
mosaicos de ouro que se sobressaía sobre a laguna. Quando Quintín lê sobre o cotidiano
de seus pais, repleto de traições, roubos e submissão de sua mãe, não entende o motivo
de Isabel escrever “aquella sarta de mentiras sobre su família” (FERRÉ, 1996, p. 87) e
declara que a pretensão de Isabel era manchar o nome dos Mendizábal narrando uma
história de ficção, justamente porque não pertencia a nobreza por nascimento, mas
apenas por meio do seu matrimônio com ele.
As mulheres, sob o domínio patriarcal, foram levadas a acreditar que dependiam da
proteção masculina sendo que não poderiam desempenhar os mesmo papéis sociais que
os homens, correndo o risco de se masculinizarem. Na oposição entre feminino e
masculino, é o homem quem detém a hegemonia e a corporidade feminina será utilizada
para justificar as desigualdades sociais uma vez que é vinculada a feminilidade ao corpo
e a masculinidade à mente, o que acaba por restringir as ações das mulheres, confinadas
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às exigências biológicas da reprodução, deixando assim aos homens o campo do


conhecimento e do saber. Para ascender socialmente colocava-se às mulheres uma única
saída, o casamento, no qual, em troca da proteção do marido, a mulher lhe prestava
obediência.
Segundo Decca (1997, p. 199), a historiografia moderna e o romance partilham,
desde suas origens, o mesmo ideal que é encontrar o sentido da experiência humana,

a diferença entre a historiografia e o romance não está portanto


naquilo que ambos perseguem, mas no modo de investigar tais
objetivos. A historiografia direcionou-se para o campo das ciências
(...) acreditando na objetividade do método e da teoria para a
apreensão do mundo real. Caminho diferente acabou percorrendo o
romance, na busca da apreensão do real, acreditando mais na força da
imaginação e da subjetividade.

Como o acontecimento histórico é organizado por meio da linguagem formalizada


em uma narração, na base do conhecimento histórico e do artístico está a tentativa de
apreensão dos eventos humanos sob a forma de narrativa, enfim, menciona o autor, “a
historiografia e o romance são modos de narrar eventos humanos com o objetivo de
extrair os seus significados” (DECCA, 1997, p. 200).
O ser humano tem contato com a história a partir da leitura do texto histórico. As
informações que o compõem somente são acessíveis por meio da linguagem, como
proferido por White (1994, p. 23), “nossa experiência da história é indissociável de
nosso discurso sobre ela”. Em primeiro lugar, o discurso histórico “só é possível quando
se pressupõe a existência do ‘passado’ como algo sobre que se pode falar de maneira
significativa, o que o discurso histórico produz são interpretações de seja qual for a
informação ou conhecimento do passado de que o historiador dispõe” (WHITE, 1994, p.
24). O historiador utiliza-se do fato e da linguagem para expô-lo, como usa a
linguagem, sabe que ela é simbólica e que sua representação é alegórica, isto é, significa
mais do que literalmente diz, ou fala algo diferente do que parece significar, revelando
apenas algumas coisas sobre o mundo, escondendo outras tantas. Esse jogo linguístico
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não precisa ser considerado negativo, pois o historiador utiliza fontes e dados precisos,
escolhendo um foco e deixando de contar muitos outros pontos de vista.
Ao narrar um acontecimento, uma personagem e/ou um tempo específico são
escolhidos para relatar tal fenômeno, porém, ao escolher alguém ou um período, uma
série de outras personagens que também viveram o episódio fica apagada, permitindo
que outro ponto de vista, inserido em uma realidade diferenciada, possa relatar este
mesmo fato com a sua visão, que será diferente, possibilitando refazer o percurso
proposto, ampliando o tema, problematizando fatos antes inviáveis ao questionamento,
mas que, ao apresentar outra possibilidade, fornece dados para uma nova pesquisa e
uma opinião diferenciada sobre determinado assunto. No romance, ao se narrar um
episódio, vê-se as diferenças de visão pois, sobre um único evento da vida do avô de
Quintín, Arístides Arrigoitia, Isabel conta que, no domingo de ramos de 1937,
aconteceu em Ponce o tiroteio dos cadetes nacionalistas, os quais desejavam a
independência total de Porto Rico dos Estados Unidos. Segundo a narração de Isabel, os
nacionalistas intensificaram seus ataques com bombas e tiros a fim de buscarem a
independência da ilha e Arrigoitia, chefe de polícia, ficou responsável por prender todos
contrários ao governo que encontrasse. No domingo de ramos desse ano, os
nacionalistas realizaram uma marcha pela cidade contra a prisão dos comandantes do
Partido Nacionalista, Arrigoitia avisou seu supervisor sobre a marcha que foi proibida,
porém, no domingo, muitos cadetes que “no tenían más de quince o diecieseis años”
(FERRÉ, 1996, p. 143) desafiaram Arrigoitia o qual autorizou que a força física fosse
utilizada para dissipar a multidão, assim, nesse dia, dezessete pessoas morreram, quase
todos adolescentes e muitos ficaram feridos devido a força bélica utilizada pelo
exército. Por meio de uma pesquisa histórica, sabe-se que esse fato realmente aconteceu
na história de Porto Rico, mas Quintín, ao lê-la, fica abismado com as inverdades que
Isabel conta porque, segundo ele, não se podia negar que o tiroteio havia acontecido
nesta data, porém Isabel havia alterado conscientemente o foco, culpando os inocentes,
no caso seu avô e todos aqueles que desejavam que Porto Rico continuasse pertencendo
aos Estados Unidos. Quintín narra que seu avô não foi a pessoa sem alma que Isabel
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havia dito e sim um chefe de polícia exigente, leal ao governador Winship e que utilizou
a força a fim de restabelecer a ordem, pois “el coronel Arrigoitia había sido un héroe en
la lucha por la estabilidad, y aquí estaba la truhana de su mujer, que no sabía una mierda
de política, dándole un baño de fango” (FERRÉ, 1996, p. 163).
O historiador, narrador do texto histórico, desaparece por trás do fato, tornando-o,
dessa forma, um fato coletivo. O texto literário, por sua vez, parte de um olhar
subjetivo, dessa forma, não é visto como algo puro e simplesmente fantasioso, mas
como

um sintoma de uma época, como representação do mundo (...) o que é


sobretudo novo para a história, caminho no qual ela se empenha em
trilhar, é a possibilidade que a literatura lhe oferece para o resgate
das sensibilidades. (...) É aqui que o olhar do historiador precisa
realmente da literatura, no seu intento de recuperar outras dimensões
da vida. (...) É a literatura que lhe dá a sensibilidade, a sintonia fina
que permite “captar” o passado de outra forma (PESAVENTO, 1997,
p. 250).

Ao expressar as vivências femininas, seguidamente Ferré abre espaço na narração


para a versão de Quintín quando este, escondido à noite, lê o romance de Isabel e nele
vai acrescentado fatos os quais considera verídicos e começa a re-escrever as ações das
personagens. A narradora assevera que Quintín prefere a história a literatura justamente
porque os escritores literários interpretavam a realidade a partir de seu olhar, deixando-
a confusa e, segundo Quintín, a realidade possui apenas uma versão, sem a chance de
transformá-la, aponta a narradora que

Quintín prefería la historia a la literatura. La literatura no era lo


suficientemente ética para su gusto. Los escritores interpretaban
siempre la realidad a su manera, pero aunque los bordes de la
realidad fuesen difusos, la interpretación tenía sus límites. El bien y
el mal existían. La verdad estaba ahí, y era inmoral tratar de
cambiarla. Por eso, la literatura no era un que hacer serio, como lo
eran la ciencia o la historia (FERRÉ, 1996, p. 88).

Por exemplo, ao ler os trechos da obra de Isabel, Quintín os percebe como uma
calúnia, descobrindo um lado que Isabel nunca lhe mostrara anteriormente. É a escrita
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que desnuda o mundo para Isabel, é por meio dela que ela liberta-se da versão única de
seu marido. Preocupado em manter seu status, Isabel refuta a visão unilateral de seu
esposo e percebe que a escrita recria um mundo diferente a ponto de dizer que Quintín,
ao ler a narrativa escrita por ela, “más que enojado com Isabel, (Quintín) se sentía
profundamente herido” (FERRÉ, 1996, p. 90), não revelando suas leituras noturnas a
Isabel, mas decidindo observá-la de perto, além de, em sua opinião, ajudá-la a escrever
a novela, fazendo anotações ao lado de cada página, com alterações no texto. Quintín
reflete que Isabel prefere personagens rebeldes, isto é, mulheres que não se dobram ao
poder masculino e se deixam levar pelo prazer e pela sedução da vida. Isso se torna
motivo de crítica de Quintín que, não conseguindo se conter em ler, modifica as ações,
relatando uma outra versão de muitos fatos narrados. O texto revela sua esposa a
Quintín, é nele que Isabel conta seu amor pelo professor de dança e Quintín sente medo
de sua mulher porque, por meio da escrita, ela detém o poder de, com as palavras,
modificar fatos históricos e transformar vítimas em culpados.
As visões do casal são distintas, para Quintín as mulheres não deveriam ser vistas
como vítimas, tal como Isabel pregava em seu texto. Isabel, mesmo percebendo a
intromissão do seu marido no texto, narrando uma versão masculina dos fatos, não
comenta nada, porém não deixa de escrever o romance a partir de sua visão, afirmando
que “y no sólo está leyendo, le está añadiendo sus comentarios a mano, garabateándolos
con furia en los márgenes. En algunos casos, hasta ha sumado su versión a la mía, por la
parte de atrás de las páginas” (FERRÉ, 1996, p. 209). A escrita de Quintín mostra que a
verdade viria da versão dele e que sua esposa estava procurando manchar o nome da
família Mendizábal para assim libertar-se do domínio social que ela, até esse ponto, não
tinha como fugir.
Percebe-se, nas últimas décadas, uma grande reviravolta nos assuntos abordados pela
história, já que os historiadores começaram a debruçar-se sobre temáticas e grupos
sociais até então excluídos do seu interesse. Fundamental, neste particular, é o “vulto
assumido pela história cultural, preocupada com as identidades coletivas de uma ampla
variedade de grupos sociais, pluralizam-se os objetos da investigação histórica, e, nesse
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bojo, as mulheres são alçadas à condição de objeto e sujeito da história.” (SOIHET,


1997, p. 275). Como a história da mulher foi escrita pela voz masculina, penetrar nesse
passado feminino tem levado historiadores a lançarem mão da criatividade na procura
por pistas que lhes permitam transpor o silêncio e a invisibilidade que perduraram por
tão longo tempo, surgindo, então, a literatura como uma possibilidade para esse
desvelamento do passado feminino.
Tradicionalmente, o discurso historiográfico é escrito a partir do ponto de vista de
grupos privilegiados que comandam a situação social e, por isso, tendem a escrever uma
visão idealizada dos acontecimentos históricos a fim de manter o status quo, não
permitindo, dessa forma, o questionamento das assimetrias do poder presentes na
sociedade. A obra literária relata as contradições históricas de maneira eficaz, agindo
sobre seus leitores, levando-os até as últimas consequências, não se preocupando com a
realidade, pois, ao experimentar novas formas de relações dos homens com outros
homens e com o seu meio ambiente, a obra literária liberta olhares subjacentes a certas
situações, explorando, de forma imaginária, virtudes inerentes de uma época.
Como aqueles que desejam manter o poder, Quintín tem ojeriza às mudanças que
apresentam a possibilidade de reduzir as assimetrias de poder. Politicamente Quintín é
conservador, isto é, pertence ao grupo que gostaria que Porto Rico fosse anexado aos
Estados Unidos como estado. Isabel, por sua vez, é estado-librista, aqueles que desejam
que o país permaneça como estado-livre-associado, mas, ao passar da narrativa,
transforma-se em independista, juntando-se ao filho Manuel na luta pela independência
total de Porto Rico.
Se a história é vista a partir de um ponto de vista único, o do centro, parece claro que,
por meio desse único olhar, torna-se impossível abarcar uma sociedade inteira. Ao
tentar mostrar outras realidades, os historiadores encontram um problema, como dar voz
às pessoas que não participavam da elite se esses registros são raros. Nesse caso, a
literatura preenche alguns pontos dessa lacuna, pois ela dá vazão à valores e ideologias
de classes que anteriormente não apareciam na história, trazendo de volta a memória
dos esquecidos. Ao estudar a história daqueles que estão à margem, Schmitt (1998, p.
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288) afirma que esse procedimento traz uma contribuição essencial, pois é “através dos
discursos e das práticas da marginalidade e da exclusão, que se manifestam as
transformações mais fundamentais das estruturas econômicas, sociais e ideológicas”.
A leitura particular e inventiva de cada leitor vem repleta de uma série de
determinações, desde os efeitos de sentido postos no texto, até referências impostas
pelas formas transmitidas nesses textos e nas convenções de leitura particular de cada
comunidade, nas quais as representações coletivas estão incorporadas nos indivíduos,
permeando as divisões do mundo social e, por consequência, estruturando os esquemas
de percepção a partir dos quais determinado grupo julga e age. Chartier (1994, p. 108),
ao abordar as representações do poder ou da construção das identidades sociais ou
culturais, diz que se definiu uma história das modalidades do fazer-crer e das formas da
crença que é “uma história das relações de forças simbólicas, uma história de aceitação
ou de rejeição pelos dominados dos princípios inculcados, das identidades impostas que
visam a assegurar e perpetuar sua dominação”. A história das mulheres encaixa-se nesse
discurso, pois a identidade feminina tem se enraizado na interiorização, pelas mulheres,
das normas enunciadas pelos discursos masculinos. A história das mulheres é contada
pela visão masculina a qual a silencia e a coloca como parte imutável, não agindo como
autora, mas como espectadora das ações, assim,

definir a submissão imposta às mulheres como uma violência


simbólica ajuda a compreender como a relação de dominação, que é
histórica e culturalmente construída, é sempre afirmada como uma
diferença de natureza, irredutível, universal. O essencial não é opor
termo a termo uma definição biológica e uma definição histórica da
oposição masculino/feminino, mas antes identificar, em cada
configuração histórica, os mecanismos que enunciam e representam
como “natural” (portanto biológica) a divisão social (portanto
histórica) dos papéis e das funções (CHARTIER, 1994, p 109).

Ao ler sobre sua família, como se fez a fortuna de seu pai e sobre os relacionamentos
deste com sua mãe, Quintín sente-se incomodado, pois considera o texto
demasiadamente ficcional e critica a sua mulher por ter deixado de fora o que realmente
acontecera. Embora Quintín apareça como um incentivador da escrita de sua esposa no
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início do casamento, ele não aceita que Isabel possa escrever com autonomia.
Diplomado em História pela Universidade de Columbia, eles haviam pensado, no
passado, na possibilidade de escreverem a história de suas famílias, mas ao ler o texto
de Isabel, desencadeiam-se em Quintín reações contraditórias que vão desde o
incômodo inicial, passando pelo assombro, a inveja e a ira. Ele sente-se traído pelas
palavras já que dividiu com ela o passado de sua família em conversas e agora
acreditava que ela apropriara-se deste, alterando conscientemente os fatos para dar
maior efetividade à narrativa. Quintín vê o mundo por meio da história oficial, cujo
propósito é manter as aparências e assegurar a continuidade do poder inalterado que
sempre exercera. Ele indigna-se quando o texto traz à luz roubos, assassinatos, traições,
abortos e narrações em que os homens, a partir de sua opinião, eram os vilões e as
mulheres suas vítimas.
Com o passar da narrativa, a esposa submissa ao marido acaba por apresentar um
olhar diferenciado em aspectos sociais, políticos e familiares. As diferenças ideológicas
entre o casal propiciam um confronto que se desenvolve paralelamente ao romance de
Isabel, em capítulos intercalados que mostram como a história é construída. A versão da
narradora mostra a possibilidade de reconstrução, pois, ao contrário de seu marido,
Isabel acredita que a história não está pronta, sempre podendo ser revista e
reinterpretada, sendo que essa mobilidade permite que o passado possa ser reconstruído
e que surja uma versão subversiva para contradizer o discurso patriarcal. Quando
conversam sobre a escrita, Quintín afirma que

- Tu novela tiene algunas partes bien escritas, Isabel, pero no es


una obra de arte. Es un alegato independentista, un manifiesto
feminista y, lo que es peor, falsea la historia.
- Mi novela no es sobre política. Es sobre mi emancipación de ti.
Tengo derecho a escribir lo que pienso y tú nunca has podido
aceptarlo (FERRÉ, 1996, p. 408).

Burke (1992) assevera que os acontecimentos tornam-se mais inteligíveis quando são
apresentados por meio de mais pontos de vista, assim, na obra em análise, ao subverter
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os fatos históricos, mudando o ângulo de visão dos acontecimentos, a narradora


transcende o discurso histórico tradicional, acrescenta a sua visão, enriquecendo a
percepção dos leitores em relação ao mundo apresentado na narrativa. Por meio da voz
de Isabel Monfort, Ferré subverte o discurso histórico tradicional, oferecendo uma
versão alternativa das origens de Porto Rico, re-escrevendo uma história que estava
mal-contada ao narrar fragmentos que apresentam contradições e distorções ideológicas
existentes entre os gêneros.
A autora explora a maneira com que foram projetadas as subjetividades pessoais e
coletivas, mostrando o conflito entre as visões diferenciadas entre homens e mulheres,
redefinindo as formas de representar a realidade social e de intervir nela. Isabel, ao
retomar os fatos históricos, sejam os de sua vida, os do cotidiano de seus antepassados e
mesmo os de seu país, refaz seu destino, detendo o poder sobre a verdade exposta
narrativa, propondo a quebra da dominação masculina. É ela quem permite, com suas
palavras, alcançar um dos objetivos da própria arte literária, a possibilidade de mudança
de posição e sentidos, provando que a palavra tem o poder transformador da realidade
tanto nas questões de submissão do feminino quanto nas questões de mudanças de
cunho político-sociais, afinal seu romance tem o poder de modificar sua vida e a
história, tal como dito pela narradora “nada es verdad, nada es mentira, todo es según el
color del cristal con que se mira” (FERRÉ, 1996, p. 120).

Referências

BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
______. As fronteiras instáveis entre História e Ficção. In: AGUIAR, Flávio et al. (org.)
Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã,
1997. p. 107-115.
CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos históricos.
Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994. p. 97-113.
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DECCA, Edgar de. O que é romance histórico? Ou, devolvo a bola pra você, Hyden
White. In: AGUIAR, Flávio et al. (org.) Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o
histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997. p. 197-206.
FERRÉ, Rosario. La casa de la laguna. Barcelona: Emecé Editores, 1996.
FREITAS, Maria Teresa de. História na Literatura: princípios de abordagem. Revista de
história da USP. São Paulo, n. 117, 1984. p. 171 – 176.
NAVARRO, Márcia Hoppe. Desconstruindo o discurso patriarcal: o papel de Rosario
Ferré na nova percepção da História de Porto Rico In: TROUCHE, André e REIS, Lívia
(orgs). Hispanismo 2000. Niterói: Conserjeria de Educación/ Embajada de España,
2001.
PESAVENTO, Sandra. Cruzamento de leituras: Jose Lins do Rego e Cyro Martins sob
o olhar da história. In: AGUIAR, Flávio et al. (org.) Gêneros de fronteira: cruzamentos
entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997. p. 249-254.
SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,
Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro,
Campus, 1997. p. 275 – 296.
SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: LE GOFF, Jacques. A história
nova. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 261-289.
WHITE, Hayden. Teoria literária e escrita da história. Estudos históricos. Rio de
Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994. p. 21-48.
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A DUPLICIDADE NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS:


OS ESPELHOS DE DOM CASMURRO

Autor: Allan Francisco Melnik (G-UEPG)


Coautor: Fernando de Moraes Gebra (UFPA) 1

Como aponta Alfredo Bosi, não se deve considerar na obra de Machado de Assis um
fosso existente entre os romances ditos da fase romântica, chamados pelo crítico de
romances “de compromisso” ou “convencionais”, e aqueles de maturidade, marcados
pelo “realismo de sondagem moral” (1994, p.174). Essa observação se deve ao fato de
que já na primeira fase da ficção machadiana aparece um tema recorrente: “a ambição
de mudar de classe social e a procura de um novo status, mesmo à custa de sacrifícios
no plano afetivo” (1994, p.177), contrariando, assim, o ideário romântico.
A temática do desejo de ascensão social e dos movimentos previamente calculados,
visando à obtenção de um reconhecimento em sociedade, que já se delineiam na
estrutura de romances como A mão e a luva (1874) e Iaiá Garcia (1878), ganham maior
vulto nos romances da fase de maturidade. Nessa fase, iniciada com Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881), destaca-se o conto “O espelho”, que acreditamos ser a
epígrafe da ficção machadiana, uma vez que revela a teoria das duas almas que existem
no indivíduo e da importância dada ao “papel social na formação do ‘eu’, papel que
vem a ser aquela segunda natureza, considerada em Iaiá Garcia ‘tão legítima e
imperiosa como a outra’” (1997, p.37).
É também de Alfredo Bosi o comentário a respeito das máscaras sociais, presentes
nas personagens machadianas: “O roteiro de Machado após a experiência dos romances
juvenis desenvolveu essa linha de análise das máscaras que o homem afivela à
consciência tão firmemente que acaba por identificar-se com elas” (1994, p.178). Essa
observação serve tanto para o estudo do conto “O espelho”, como para a descrição de
muitas das personagens machadianas, como Bento Santiago de Dom Casmurro (1900).

1
Queremos registrar nossos agradecimentos à FADESP (Fundação de Amparo e Desenvolvimento da
Pesquisa) pelo financiamento das passagens aéreas do docente-autor, viabilizando sua participação no 1º
CIELLI (Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários)
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Deste modo, a identidade do sujeito é construída nas relações com o Outro. Este
pode ser entendido em sentido amplo, relacionado a formulações de ordem social. Esses
elementos podem colaborar na construção identitária, tanto quando o indivíduo os
aceita, como quando este os recusa.
Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Essas questões ontológicas apontam
para o problema do eu inserido no mundo. Esse último pode ser entendido como um
real que se mostra a todo instante e permite-nos aceitá-lo ou recusá-lo. No segundo
caso, podemos ter atitudes extremas diante desse mundo, tais como o suicídio, a loucura
e a cegueira voluntária, estudados por Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo:
ensaio sobre a ilusão. Nessa obra, o filósofo classifica essas atitudes mencionadas como
radicais, pois implicam em não admitir o que é real.
Temos, por outro lado, um meio termo entre a aceitação do real e sua recusa. Trata-
se da ilusão, entendida como o desdobramento de uma determinada percepção. A
proposta do ensaio de Clément Rosset é relacionar a ilusão com o duplo, pois este
implica em ser, paradoxalmente, ao mesmo tempo, uma coisa e outra. Tem-se aqui um
novo enfoque para essa teoria que tem seu discurso fundador nos ensaios de Sigmund
Freud e Otto Rank.
Dessa forma, se algum elemento do mundo exterior teima em se mostrar, a tolerância
é suspensa e esse é colocado em outro lugar, criando um duplo. Isto é, a ilusão, tal como
a técnica do ilusionista que visa bipartir as percepções do real, faz com que o sujeito
enxergue duplicado, que acredite naquilo que é criado pela sua consciência.
Na classificação proposta por Rosset sobre os tipos de ilusão, destaca-se, neste
artigo, a ilusão psicológica, que consiste não mais em duplicar um acontecimento nem o
mundo, mas sim o próprio sujeito. Tem-se, assim, o desdobramento de personalidade,
que consiste na duplicação do sujeito em seus lados manifesto e imanente. Aquele é o
lado que é apresentado no convívio social e esse último se situa nas profundezas do
inconsciente, que se vale de mecanismos repressivos para evitar que esse lado se
manifeste (GEBRA, 2003, p.143).
O desdobramento de personalidade, tão caro aos psiquiatras que estudam casos
patológicos de neurastenia e esquizofrenia, ocorre em condições nas quais o sujeito opta
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por não ser eu. “Eu é um outro”, como dizia Rimbaud, resume bem esse mecanismo de
não aceitar ser o que se é, mas ser um outro, que teria uma realidade superior à do
próprio sujeito.
Esse duplo, ou esse Outro, em certos casos, pode ser todo um sistema social. Os
outros podem olhar e apreender um determinado sujeito, porém, esse sujeito jamais
poderá se olhar nem se compreender na sua totalidade. Mesmo quando esse indivíduo se
contempla no espelho, ainda assim, não se vê em sua totalidade, mas sim sua
representação virtual, figurativa e que é seu inverso, não o próprio ser. Isso se dá, pois,
segundo Rosset, o espelho “[...] oferece não a coisa, mas o seu outro, seu inverso, seu
contrário, sua projeção segundo tal eixo ou tal plano (1998, p.80).
O discurso filosófico de Rosset opõe-se à leitura psicanalítica feita por Otto Rank
acerca do tema do duplo. Para Rank, o duplo surge em resposta ao medo ancestral da
morte, isto é, o duplo traria para o sujeito o alívio de poder continuar a existir, agora já
não mais num plano terreno, mas num outro universo (1939, p.98). Para Rosset, “morrer
seria um mal menor, se ao menos se pudesse afirmar que se viveu” (1998, p.78), e,
sendo a nossa existência assegurada pela presença do outro, o duplo é a representação
desse papel. Ou seja, é no confronto com o duplo que o indivíduo constrói sua
identidade.
Machado de Assis, em sua obra, por vezes leva o leitor a uma inferência à teoria de
que o ser humano é alguém dividido em duas almas, ou duas naturezas, como ocorre em
“O espelho” (1882). Nesse conto, por meio da personagem Jacobina, é defendida a
existência de duas almas no ser humano “[...] _ Nada menos de duas almas. Cada
criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que
olha de fora para dentro...” (1957, p.259).
A narrativa se dá a partir de uma reunião de cinco cavalheiros, um deles, cujo nome é
Jacobina, toma a palavra e expõe sua teoria acerca da dualidade da alma humana. Para
comprovar o que expõe, conta um episódio que se passou quando tinha 25 anos de
idade, e acabava de ser nomeado Alferes da Guarda Nacional.
Jacobina passa um tempo em casa de sua tia Marcolina, e essa, além de lhe deixar em
seu quarto um enorme espelho, peça de luxo, destoante do mobiliário modesto da casa,
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trata-o e exige que os escravos o tratem por “Seu Alferes”. A situação se complica
quando, por ter que dar assistência a uma filha que se encontra adoentada distante dali,
dona Marcolina e seu cunhado deixam a casa e os escravos aos cuidados de Jacobina e,
aproveitando-se da situação de isolamento da casa, os escravos fogem, deixando o
alferes na mais completa solidão. Nessa ocasião, ao procurar contemplar-se no espelho,
vê sua imagem difusa. Entretanto, ao vestir a farda de alferes, encontra-se na sua
plenitude.
Jacobina vai além, quando afirma que o ser humano é “metafisicamente falando, uma
laranja” (1957, p.259), ou seja, se ele tem duas almas, não pode a alma interior
sobreviver sem uma proteção, ao mesmo tempo em que não é possível perceber-se
aquela sem primeiro visualizar e transpor essa proteção que é a alma exterior.
Sendo assim, compara-se ao que Clément Rosset defende ao afirmar que o ser
humano tem um duplo, e, quando a existência desse duplo não pode ser comprovada,
assim como num vampiro, ele não pode existir senão problematicamente (1998, p. 80).
Como vimos anteriormente, tanto a teoria de Jacobina como a de Rosset são
responsáveis pela construção identitária de personagens como Bento Santiago, de Dom
Casmurro (1900), pois como se poderá avaliar nesse romance, essa personagem se
encaixa no que se pode interpretar como perda de uma de suas almas e, por
consequencia, caracterizar-se como um sujeito falho.

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na


velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi
nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se
só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos
das pessoas que perde; mas falto eu mesmo e esta lacuna é tudo (1997,
p.14).

Feita essa observação, nota-se como esse indivíduo não se reconhece como ser
existencial, e, considerando que esta afirmação é feita depois de toda uma amargura
vivida, é possível verificar essa ausência latente que o incomoda. Tal como Jacobina
que se vê “disperso, esgarçado, mutilado...” (1957, p. 270), sem sua farda simbólica,
Bento, no tempo da enunciação, reconhece sua falha como sujeito: “falto eu mesmo e
esta lacuna é tudo”.
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Em Dom Casmurro, observamos que Bento Santiago foi criado pela mãe, D. Glória,
numa casa que ele mesmo descreve como a “casa dos três viúvos”, pois ali moram
também seu tio Cosme, e uma prima, Justina. Além destes, há ainda um agregado à
família, José Dias, o qual é visto como alguém submisso. Segundo o narrador, esse
agregado “não abusava e sabia opinar obedecendo” (1997, p.19), ou seja, alguém que
não tinha autonomia e, por consequência, não pode ser visto como um exemplo de
conduta, algo que fundamentalmente faz falta na vida do garoto. Outra personagem
masculina é Tio Cosme, porém, ele já é velho demais para servir de modelo à
construção identitária de Bentinho.
A ausência de uma figura masculina propiciadora dessa construção se completa ao
avaliarmos também a falta física do pai, que morreu quando Bentinho era muito
pequeno. Em uma das muitas descrições de sua mãe, o narrador, por não ter um
referencial masculino que dissesse que ela, antes de tudo, era mulher, refere-se a ela da
seguinte maneira: “cândida como a primeira aurora, anterior ao primeiro pecado;”
(1997, p.69). Também na inscrição da lápide, o narrador resume a concepção que tem
de sua mãe: “[...] Procura no cemitério de São João Batista uma sepultura sem nome,
com esta única indicação: Uma santa. É aí. Fiz fazer essa inscrição com alguma
dificuldade” (1997, p.177).
Vemos que o narrador tem uma visão extremista das virtudes da mãe, chegando ao
ponto de lhe atribuir qualidades de santa e pura, tal como sua comparação com a aurora
primordial, e quer que isso se registre levando sua ideia para além das ponderações da
Igreja.
Para Carlos Byington, o complexo materno em Bentinho é muito forte, ao mesmo
tempo em que apresenta sinais da ausência do pai. Segundo o psicanalista, há quatro
pilares na formação da personalidade da criança: o complexo materno, o complexo
paterno, o vínculo entre eles e as vivências da criança (2008, p.5). Um desenvolvimento
psicológico considerado normal pressupõe que o menino se identifique com seus pares
do sexo masculino e se veja diferente da mãe; isso não ocorre apenas pela imposição
paterna no complexo de Édipo, mas sim pela necessidade de se separar da mãe, o que
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não ocorre com Bentinho, pois o flagramos, em vários momentos da narrativa, pedindo
a aceitação da mãe em suas decisões.
Pelo viés psicanalítico, a formação de uma personalidade saudável está ligada à
capacidade da mãe “de abrir mão daquilo que é um outro”, possibilitando a construção
de um ego masculino (2008, p.6). Para Byngton, D. Glória é a “grande mãe devoradora
e castradora”, pois impede a independência emocional de Bentinho. Há, pois, uma
vivência patológica no complexo materno. Byington ressalta que há um ardil
inconsciente que faz com que D. Glória encontre na promessa de tornar Bento padre
uma espécie de possibilidade de não se separar do filho (2008, p.3).
Ainda de acordo com Byington, D. Glória “preenche não só o lugar de mãe, como
também o vazio deixado pelo pai falecido” (2008, p.6). O complexo materno fortíssimo
atua como afirmação da ausência de um referencial masculino na vida da nossa
personagem analisada, pois a veneração ao modelo feminino da mãe faz com que Bento
se torne um sujeito incompleto, ou seja, sem uma masculinidade integral. Entenda-se,
aqui, o sentido de masculinidade incompleta, decorrente do “complexo materno
deformado” (BYINGTON, 2008, p.6), referente a todo homem que não consegue se
separar da mãe: “Fraco desde o início, ele é uma vergonha como homem. É o oposto da
masculinidade integrada, da hombridade, da virilidade, da criatividade” (BYINGTON,
2008, p.7). Ainda para o psicanalista, “Esse rapaz é um castrado, é uma pessoa anulada.
O dueto absolutamente harmônico entre o enaltecimento incessante de D. Glória e a
castração de Bentinho é um tema que atravessa todo o romance” (2008, p.8).
Isso também se evidencia quando, mesmo velho, o narrador é capaz de afirmar que
“Capitu era mais mulher do que eu era homem” (1997, p.52), ou seja, o próprio sujeito
não é capaz de afirmar sua masculinidade integral, como nunca fora. Ressalta-se, ainda,
que o mesmo faz questão de acentuar esse conceito: “Se ainda não o disse, aí fica. Se
disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de
repetição” (1997, p.52).
A afirmação acima leva ao ápice do presente discurso. Entenda-se aqui que Bentinho
demonstra a necessidade desse referencial masculino, que será encontrado em Ezequiel
de Souza Escobar, seu colega e amigo de seminário. Este chama sua atenção por ser
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alguém esbelto, mais velho e digno de confiança: “Eis aqui outro seminarista.
Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco
fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo [...]” (1997, p.86). Nota-
se que a aproximação de Bento e Escobar acontece por aquele encontrar neste uma
segurança em sua figura masculina que não lhe era possível antes.
Comparando-se esta passagem com a teoria do conto “O espelho”, a qual afirma que
a segunda alma de alguém pode ser qualquer coisa, inclusive outra pessoa, é possível
afirmar que o narrador a encontra no amigo, conforme o pressuposto filosófico de
Jacobina: “A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens,
um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é
a alma exterior de uma pessoa [...]” (1957, p.259).
Ressalta-se aqui o terceiro elemento apresentado: “um homem”, marcando a alma
exterior de Bento como sendo o próprio Escobar. Essa relação agora passa a ser de
dependência, pois a alma interior de Bentinho está ligada ao outro. O homem integral,
que ele não é, figura em outra pessoa e, a partir de então, aprofunda-se cada vez mais a
amizade de ambos.
A problemática abordada na narrativa é apresentada no capítulo “As mãos de
Sancha”, por um motivo: Ao ver a esposa de Escobar com outros olhos, que não os
fraternais, Bento admite um possível adultério, criando uma realidade inaceitável para
si, pois assumindo um desejo mútuo, ele estaria traindo duplamente seu amigo – por ser
este também sua alma exterior.
Bento perturba-se com a possibilidade de ter desejado a esposa de sua segunda alma
e, então, o desejo desloca-se do objeto desejado para a imagem refletida, para a alma
exterior de Bento. Dito de outra forma, ao apalpar os braços de Escobar, Bento duplica
o seu desejo, isto é, imagina as possíveis sensações que os braços de Sancha poderiam
causar nele.
No plano da autocensura de Bento, a mistura das sensações pode ser explicada se
levarmos em consideração duas descrições, uma referente aos braços de Escobar, e
outra relacionada às mãos de Sancha. No primeiro caso, o narrador assim se expressa:
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Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me essa


confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Não só os
apalpei com essa ideia, mas ainda senti outra coisa: achei-os mais
grossos e fortes que os meus e tive-lhes inveja; acresce que sabiam
nadar (1997, p.157).

As sensações provocadas pelo contato físico com as mãos da esposa do amigo são
reiteradas ao longo de, pelo menos, dois capítulos. Em “As mãos de Sancha”,
encontramos as recorrências do enigma do olhar da esposa do amigo, para ficarmos com
uma expressão de Alfredo Bosi: “[…] Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a
expansões fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra coisa, e não tardou
que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo […]” (1997,
p.157).
Vale lembrar também a presença de um retrato de Escobar no gabinete de Bento,
que, segundo o narrador, lhe fala como a própria pessoa e reprime qualquer
manifestação de desejo pela esposa do amigo. Nota-se também que tal fotografia está
situada ao pé do retrato de D. Glória, figurando como a presença paternal: “O retrato de
Escobar, que eu tinha ali, ao pé do de minha mãe, falou-me como se fosse a própria
pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo; rejeitei a figura da
mulher do meu amigo” (1997, p.158).
Por mais que se afirme a censura (“Combati sinceramente os impulsos que trazia do
Flamengo”), o desejo irrompe: “Agarrei-me a esta hipótese que se conciliava com a
mão de Sancha, que eu sentia de memória dentro da minha mão, quente e demorada,
apertada e apertando” (1997, p.158). Medo e fascínio, atração pela mulher do amigo e
repulsa por tais desejos, sentimentos ambivalentes que encontram no retrato de Escobar
a figuração da criação do duplo.
Segundo Lisboa de Mello, “O retrato pode ser outro elemento que se presta à
representação do duplo” (2000, p.115). Essa afirmação valida nossa proposta acerca da
identidade de Bento ser obliterada pela figura de Escobar. Se o duplo é compreendido
por Clément Rosset “como tendo uma realidade ‘melhor’ do que o próprio sujeito”
(1998, p.77), Bento, por reconhecer em Escobar um ser completo, a própria
representação simbólica da masculinidade integral, acaba por meio de mecanismos
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inconscientes projetando no amigo a figura paterna ausente, como foi observado quando
tratávamos da disposição do retrato do amigo ao lado da fotografia de Dona Glória.

Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bela fotografia
tirada um ano antes. Estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão
esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida ao peito, o olhar ao
longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A
moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita
embaixo, não nas costas do cartão: “Ao meu querido Bentinho o seu
querido Escobar. 20-4-70”. Estas palavras fortaleceram-me os
pensamentos daquela manhã, e espantaram de todo as recordações da
véspera (1997, p.159).

O retrato de Escobar, entendido como uma figuração do duplo, verdadeiro simulacro


do original Escobar, exerce uma censura dentro da mente de Bento e espanta “de todo
as recordações da véspera”. Além disso, verificamos em Escobar o modelo da
masculinidade completa, tão almejada por Bento, quando este, ao apalpar os braços do
amigo, considera-os “mais grossos e fortes que os meus” e manifesta inveja tanto pela
força dos braços como pelo fato de o amigo saber nadar. Ora, se Bento sente inveja dos
braços fortes do amigo, é de se pressupor que não possuía o vigor físico nem a coragem
deste que desafiava o mar, enfrentando ressacas. Podemos entender aqui que o narrador,
ao fazer menção a tal fato, expõe uma dificuldade sua: a de encarar desafios, tal como
era o olhar de Capitu.
Após a morte de Escobar, Bento, que já era falho, mas tinha encontrado no amigo o
ponto de apoio, se vê disjunto de sua segunda alma e, por não se tratar de uma escolha
pela troca desta, ele não aceita a situação que lhe foi imposta e, então, começa a projetar
pontos de fuga que lhe assegurassem o alívio para sua possível culpa de sujeito
desejante. No conto “O espelho”, Jacobina esclarece que a perda de uma das duas almas
significa a perda da existência: “Quem perde uma das metades, perde naturalmente
metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a
da existência inteira” (1957, p.259).
Como a figura de Escobar representa a alma exterior de Bento, a morte do duplo
representaria a perda da existência do narrador, hipótese respaldada no discurso
psicanalítico de Carlos Byington:
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Escobar morto é a tragédia do amor de Bentinho, porque, sem o amigo


ele simplesmente não é homem e não pode mais sustentar sua relação
com Capitu. Escobar era a garantia de equilíbrio no casamento. O
cadáver de Escobar reflete a morte da virilidade de Bentinho e a
impossibilidade de continuar a ser pai dali para frente. Nestas
circunstâncias, Ezequiel não podia mais ser seu filho e vai ser filho do
cadáver (2008, p.11).

Parece um exagero a afirmação “ele simplesmente não é homem”, ao que


retificaríamos, embasados na teoria do duplo, por “não é homem integral”. Descontada
essa ênfase na masculinidade falhada, tal como “a perda da alma exterior” implicada na
“perda da existência inteira”, o discurso de Byington aponta para as fraturas da
masculinidade de Bento, antes construída na relação de espelhamento com Escobar: “O
cadáver de Escobar reflete a morte da virilidade de Bentinho”. Como aponta Clément
Rosset, a morte do duplo resulta na morte do único: “Matando-o, matará ele próprio, ou
melhor, aquele que desesperadamente tentava ser” (1998, p.78).
Dessa forma, a morte de Escobar representa, simbolicamente, a destruição do
espelho de masculinidade integral de Bento. Este, como vimos, passa a existir
problematicamente, projetando no filho Ezequiel um pouco do que fora o amigo. Basta
lembrar que, para Otto Rank, a criação do duplo está relacionada ao medo ancestral da
morte. Seguindo a proposta filosófica de Clément Rosset, a representação simbólica de
Escobar no filho Ezequiel seria uma maneira que o inconsciente de Bento encontra para
assegurar sua própria existência enquanto sujeito.
Há, porém, um limite dessa projeção, pois como Escobar existiria na figura de
Ezequiel, se este último é filho de Bento e não do outro? Aqui, ocorre o que Antonio
Candido comenta acerca do romance sobre a relação entre o fato real e o fato
imaginado: “A mesma reversibilidade entre a razão e a loucura, que torna impossível
demarcar as fronteiras e, portanto, defini-las de modo satisfatório, existe entre o que
aconteceu e o que pensamos que aconteceu” (1995, p.30)
Essa impossibilidade de “demarcar as fronteiras” entre fato real (o que aconteceu) e
fato imaginado (o que pensamos que aconteceu) faz com que Bento enxergue detalhes
que o levam a crer na sua não-paternidade e, consequentemente, numa traição de Capitu
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e Escobar. Um dos dados levantados por Bento refere-se às imitações de Ezequiel dos
gestos e modos de falar de Escobar. No mecanismo de ilusão, Bento enxerga Ezequiel
Santiago, mas quer enxergar Ezequiel Escobar. Para Antonio Candido,

Como o livro é narrado por este, na primeira pessoa, é preciso convir


que só conhecemos a sua visão das coisas, e que para a furiosa
“cristalização” negativa de um ciumento, é possível até encontrar
semelhanças inexistentes,ou que são produtos do acaso (como a de
Capitu com a mãe de Sancha, mulher de Escobar, assinalada por Lúcia
Miguel-Pereira) (1995, p.30).

A partir de então, Bento se põe em dúvida a respeito das ações de sua esposa,
começando pelo enterro do amigo, onde ela, segundo o narrador, olha “[...] tão fixa, tão
apaixonadamente fixa que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas
(1997, p.161)”. Ressalta-se, ainda, seguindo o discurso de Antonio Candido, a
“cristalização negativa de um ciumento” como responsável pela imaginação de
semelhanças “inexistentes” ou “produtos do acaso”. Dessa forma, Bento passa a reparar
mais em seu filho, e achar-lhe novos aspectos, tal como é descrito no capítulo “O
debuxo e o colorido”, após a mulher chamar a atenção do esposo para os olhos do filho,
que, segundo ela, teriam a expressão dos olhos do amigo defunto; para o narrador

Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa


inteira, iam-se apurando com o tempo. [...]
Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do
Flamengo para sentar-se comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-
me no gabinete de manhã, ou pedir-me, à noite, a benção do costume
[...] (1997, p.167-8).

Esse comportamento do narrador, de enxergar o amigo no filho, vem então da


necessidade oculta de ele reencontrar sua alma exterior, pois se esta figurava no amigo,
que agora jazia, havia a necessidade de ele mudá-la. Porém, ele não faz isso, por um
princípio de não aceitação da morte, e projeta então a figura do colega em seu próprio
filho, criando a possibilidade de uma traição da esposa.
Sendo assim, infere-se que não é possível distinguir o que é fato real do que é
imaginado, pois se trata de alguém conturbado pela perda de sua alma exterior. Situado
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no que Rosset chama de “ilusão psicológica”, Bento apresenta um mecanismo de


construção identitária colado em Escobar. Aqui, o real não é negado, mas posto a meio-
termo entre a recusa e a aceitação. Esse real é apenas deslocado, posto em outro lugar. E
que lugar seria este? Para entendermos, devemos compreender que, considerando a
hipótese, as fronteiras entre real e imaginário não se podem mais estabelecer com
equilíbrio, gerando, na narrativa amargurada de Bento Santiago incompletudes, já que
ele se falta a si mesmo.
Relembramos, então, que tudo está sendo contado posteriormente a um longo tempo
decorrido por um narrador-protagonista, que seleciona o que conta de acordo com seus
interesses. Para o narrador, tudo o que ele diz é verdade, tanto que afirma: “e sendo este
livro a verdade pura” (1997, p. 89). Ele se vale, pois, de uma formação católica e
jurídica, logo, ele se atribui o poder de julgar os outros, ele é o promotor, o advogado de
acusação e o juiz dos seus próprios valores, e de quem o cerca, haja vista as descrições
do caráter das personagens, ao longo do enunciado narrativo.
Por outro lado, o narrador, no decorrer de seu discurso, apresenta contradições, como
no capítulo intitulado “A fotografia”: “Palavra que estive a pique de crer que era vítima
de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de
Ezequiel [...] restitui-me à realidade” (1997, p.175). Cabe um questionamento: o que
Bento afirma ser realidade restituída é, seguindo a proposta de Antonio Candido, fato
real? Ou é fato imaginado, desdobramento, portanto, do real? Já que Bento cogita estar
iludido na crença de uma possível traição de Capitu, mistura-se no discurso do narrador
o que aconteceu e o que pensamos que aconteceu, reforçando que o livro escrito por ele
é uma tentativa frustrada de “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a
adolescência” (1997, p.14).
Portanto, não se pode afirmar se a hipótese criada e defendida pelo narrador no
decorrer de sua obra é possível, pois não se tem a noção de quanto esse deslocamento da
realidade alterou sua percepção de mundo, e a discussão sobre a traição ou não por parte
de Capitu, torna-se totalmente inútil.

Referências
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ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 32 ed. São Paulo: Ática, 1997.
______. Iaiá Garcia. São Paulo: Globo, 1997.
______. Papéis avulsos. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1957.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 35 ed. São Paulo: Cultrix,
1994.
BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Dom Casmurro no divã: um estudo da
psicologia simbólica junguiana. Disponível em:
http://www.carlosbyington.com.br/downloads/artigos/pt/dom_casmurro_no_diva.pdf.
Acesso em: 26 abr 2010.
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In:______. Vários escritos. São
Paulo: Duas cidades, 1995. p.17-39.
MELLO, Ana Maria Lisboa de. As faces do duplo na Literatura. In: INDURSKY,
Freda; CAMPOS, Maria do Carmo. Discurso, memória, identidade. Porto alegre: Sagra
Luzzatto, 2000.
GEBRA, Fernando de Moraes. O ritual esotérico no Cancioneiro de Fernando Pessoa.
Londrina: UEL, 2003. (Dissertação de Mestrado).
RANK, Otto. O duplo. Rio de Janeiro: Coeditora Brasílica, 1939.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Apres. e Trad. José
Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 1998.
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UMA EXPERIÊNCIA DE LEITURA DE A VIDA DE CANCÃO DE FOGO


COMO ELEMENTO "EMBLEMÁTICO" PARA TROCAS INTERCULTURAIS

Alyere Silva Farias (PG - UFCG)


José Hélder Pinheiro Alves (UFCG)

A presença de personagens espertalhões e sagazes é marcante na literatura popular


universal, e não é diferente na nordestina, que apresenta personagens como o João
Grilo, que povoou desde o folheto de João Ferreira de Lima ao drama de Ariano
Suassuna, mais tarde adaptado para o cinema e a televisão, o Pedro Malasartes (ou
Malazartes) de Antonio Teodoro dos Santos, que foi imortalizado pela atuação de
Amácio Mazzaropi no filme “As Aventuras de Pedro Malasartes”, e o menos conhecido
Cancão de Fogo, de Leandro Gomes de Barros.
Estes personagens são homens astutos, espertos e de uma inteligência notável, por
isso são tidos como as cabeças mais astutas ou os quengos mais finos do Nordeste, por
conseguirem se safar de situações difíceis ao traçar, e colocar em prática, planos
bastante inteligentes, conhecidos popularmente como quengos ou quengada
Dentre as obras que retratam os quengos, selecionamos o folheto "A vida de cancão
de Fogo", de Leandro Gomes de Barros, para ser lido com alunos do terceiro ano do
ensino médio de uma escola municipal do município de Arara-Pb.
A nossa leitura considerou os aspectos a que Galvão (2001) se refere sobre o sucesso
da leitura de folhetos de cordel, como a experiência coletiva de leitura, a dimensão
estética da narrativa e o humor, que, para os leitores por ela entrevistados, reforçam o
caráter de lazer dessa leitura, o que podemos compreender como uma experiência de
recepção estética positiva.
Nessa perspectiva, consideramos que a leitura possui uma importância sócio-cultural
no momento de sua realização coletiva e que, se a cada gênero corresponde o que se
pode considerar como um modelo de recepção, a leitura de folhetos não se prende à
liturgia de leitura oficial, mas abre espaço para uma experiência de leitura mais livre,
por conta de sua origem e sua tradicional realização oral.
Para esta análise, partimos da perspectiva de que a identidade é formada a partir de
representações sociais (FLEURI, 2003), como também levamos em conta o caráter de
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relato da memória social presente nas narrativas. A partir destes aspectos e perspectivas
buscamos refletir sobre a ideologia difundida nos folhetos, nos contrapondo à
concepção de folheto de cordel enquanto mera narrativa lúdica que remete à estrutura
do conto tradicional, considerado como forma simples (JOLLES, 1976) .
Esta experiência de leitura procurou atender às diretrizes do componente curricular
Literatura das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) e dos Referenciais
Curriculares para o Ensino Médio na Paraíba (2006). Estes documentos compreendem
que uma das condições para que um texto seja tido como literário é o seu efeito estético,
ou seja, a sensação que ele produz no leitor.
A concepção norteadora do ensino de literatura aqui adotada abre espaço para a
leitura da obra literária sem que seja necessário defini-la enquanto popular ou erudita,
canônica ou não-canônica, pois procuramos evidenciar a universalidade da narrativa em
vez de salientar suas particularidades de forma pitoresca.

1 O criador de Cancão: Leandro Gomes de Barros

O poeta Leandro Gomes de Barros nasceu na Paraíba, próximo à cidade de Pombal,


em 19 de novembro de 1865 e morreu em Recife no dia 04 de março de 1918. Em 1881
mudou-se para Recife, capital de Pernambuco, onde fundou uma editora e distribuidora
de folhetos.
Leandro se destacou tanto com a publicação de inúmeros folhetos que é comum que
se considere que sua vasta produção tenha ultrapassado o número de mil títulos. Pela
importância de sua produção, ressaltada por críticos tanto em quantidade quanto em
qualidade, Leandro Gomes de Barros é reconhecido como o nome de maior expressão
na literatura popular.
A obra de Leandro Gomes de Barros preza pelas características do gênero
Cordel, como o humor, caracterizado por uma escrita reconhecidamente crítica, ao
explorar o tom satírico em suas narrativas.
Seus folhetos inspiram outros escritores, como Ariano Suassuna em cuja obra se
encontram indícios de narrativas como “O cavalo que defecava dinheiro” e “O Dinheiro
(o enterro do cachorro)”. Alguns dos seus romances, como “Juvenal e o Dragão”, e
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folhetos como “O Soldado Jogador” são citados e vendidos ainda hoje como obras
chave do gênero Folheto de Cordel produzido no Nordeste.
Seus temas são variados e atendem desde as histórias da vida de figuras míticas da
cultura nordestina, como Cancão de Fogo, até as histórias de amor e de temáticas
cômicas. Sua obra contém diversos folhetos que se tornaram ícones na literatura de
cordel, configurando-se como obras de leitura obrigatória para os que se iniciam nessa
arte, como leitores ou autores.

2 Considerações sobre o gênero Literatura de Cordel

De origem oral, a Literatura de Cordel surgiu a partir do desejo de registrar e


comercializar as produções dos repentistas, guardadas apenas na mente dos ouvintes
(ALVES SOBRINHO, 2003). É válido salientar que o termo Literatura de Cordel foi
cunhado por pesquisadores ligados à academia. Popularmente, os livrinhos eram
conhecidos como folhetos, folhetos de feira, romances, quando mais longos, e outras
denominações locais.
O termo Cordel, que se propagou a partir dos anos 1970 e hoje é hegemônico, e que
muitos historiadores afirmaram ter vindo de Portugal, não condiz com o que era e
continua sendo vendido hoje no Brasil. Os Cordéis portugueses, segundo Abreu (1999),
guardam semelhança com a produção nordestina apenas no que se refere à forma, pois
não seguiam a configuração estética que o gênero folheto apresenta no Brasil.
Sabe-se que um dos poetas pioneiros na publicação de folhetos foi Leandro
Gomes de Barros. Com uma tipografia, no Recife, o poeta escreveu, publicou e
distribuiu folhetos para todo o Nordeste. Destacam-se até a década de 60 do século XX,
na produção e distribuição de folhetos, cidades como Crato e Juazeiro, no estado do
Ceará, Campina Grande e Guarabira, na Paraíba, além de outros centros menores.
As características deste gênero foram definidas, juntamente com as suas
primeiras publicações, pelos primeiros editores, no final do século XIX, a partir do
momento em que os autores Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista
fundam as suas tipografias e começam a imprimir nos folhetos in quarto, que
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consistiam em folhas de papel jornal dobradas em quatro partes, as histórias em versos


cantadas pelos violeiros e poetas populares nas feiras, festas reuniões familiares.

3 Cancão de Fogo na escola

Para esta experiência de leitura, utilizamos a edição em livreto que se assemelha ao


formato do Gibi e em lugar de uma xilogravura, apresenta uma representação colorida
do personagem Cancão. O livreto une dois volumes de folhetos de Leandro Gomes de
Barros, intitulada Vida e Testamento de Cancão de Fogo, e contém 32 páginas e se
divide em dois volumes, que juntos apresentam as 312 sextilhas setessilábicas com o
esquema rímico ABCBDB da narrativa do autor. Tal forma, tradicional para o gênero, é
atribuída a Silvino Pirauá de Lima, que as introduziu nas cantorias.
A escolha do volume único se deu por conta do desaparecimento das edições
individuais do folheto, assim, entre levar para a sala de aula a cópia dos folhetos retirada
de uma antologia poética e apresentar o folheto que reúne as narrativas, optamos pela
última alternativa. A diferença entre as versões restringe-se ao suporte, que no primeiro
caso é um livro e no segundo é um livreto, como ressaltamos, no tamanho comum ao
Gibi, formato utilizado atualmente pela editora Luzeiro.
A nossa leitura das narrativas considera esse texto literário enquanto parte da
vida das pessoas, primando pela valorização do caráter de memória social da obra e,
portanto, procuraremos enfocar a identificação dos leitores com o personagem, aqui tido
como o “processo pelo qual nos identificamos com os outros (...) fazendo com que seja
possível nos vermos na imagem ou na personagem” (WOODWARD, 2009 p.18).
A experiência de leitura do folheto "A vida de Cancão de Fogo" foi realizada no
mês de março de 2010 com a turma noturna do terceiro ano de uma escola da rede
municipal do município de Arara-Pb, que inicialmente era formada por 12 alunos entre
15 e 18 anos e mais tarde passou a 14 alunos.
Antes da leitura, acompanhamos algumas aulas ministradas pelo professor titular
da turma e aplicamos um questionário com o objetivo de delinear o perfil dos leitores.
Durante as aulas observadas, os alunos realizaram a leitura de dois contos de Graciliano
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Ramos, "história de um bode" e "O papagaio falador", e teceram muitos comentários


relacionados ao personagem Alexandre, relembraram ditados populares e provérbios
durante a leitura e não sentiram dificuldades quanto à ambientação rural das narrativas.
Mais tarde pudemos constatar que os comentários dos alunos revelaram características
da experiência de leitura e de reflexão realizadas por esse grupo.
A observação e o questionário nos fizeram perceber que os alunos gostavam das
"aulas de literatura", não sentiam muitas dificuldades na leitura e se sentiam livres para
formular hipóteses sobre os textos literários lidos, como também para discuti-las. Ao
perguntarmos se gostavam de ler, as 10 alunas da sala responderam "sim", e os dois
alunos responderam que "não". Apesar de muitos alunos confessarem que já tinham
visto um cordel e conheciam alguns folhetos, apenas uma das meninas revelou ter lido
um folheto de cordel antes daquele momento.
Ao conversarmos sobre a experiência de leitura deles, observamos a preferência
pelo final feliz e por um tipo de narrativa chamada por eles como "de novela", modelo
que nos remete à estrutura do conto enquanto forma simples, ou "uma forma em que o
curso das coisas obedece a uma ordem tal que elas satisfazem inteiramente às
exigências da moral ingênua" (JOLLES, 1976 p. 200) e que os alunos definiram como
uma história na qual se apresentam os personagens principais, um problema que leva
estes personagens a sofrerem, e a resolução do problema com o final feliz.
A preferência dos alunos não se devia ao conhecimento de um único modelo de
narrativa, mas todos faziam questão de esclarecer que haviam lido um livro inteiro que
não seguia este modelo e eles o tinham detestado. O livro a que se referiam era
"Quincas Borba", de Machado de Assis, lido no ano anterior por estar na lista dos
indicados para o vestibular.
Após retomar essas informações com os alunos, distribuímos e realizamos a
leitura do folheto, esclarecendo que estávamos interessados na opinião deles sobre o
texto literário a ser lido. A ilustração da capa chamou atenção e os alunos passaram a
apontar semelhanças entre a figura de Cancão e os alunos da sala, principalmente o
aluno Pa., e ainda outros personagens, como Chuck- o boneco assassino, o que foi
natural nesse momento, visto que as relações estabelecidas pelos alunos para as
comparações se limitavam às características físicas da ilustração.
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A comparação com um personagem de filme - Chuck, por sua vez, já nos


permite reiterar o que havíamos percebido durante as observações de aulas: os alunos
faziam uso, a todo tempo, de seu conhecimento de mundo e teciam comentários com a
preocupação de apresentar elementos para justificá-los.
Ao iniciarmos a leitura, o aluno F. exclamou: "ih, o cara faz rima, é irado aí!" e
todos riram concordando, confirmando a nossa perspectiva de leitura que prefere que o
leitor identifique as características essenciais de um gênero a partir da sua convivência
com ele. Em seguida, a aluna G. chamou a atenção para a informação sobre o esquema
de rimas presente na ficha no verso da primeira capa, que é costume da editora Luzeiro
imprimir
Após a leitura das quatro primeiras estrofes, F. chama a atenção novamente para
as rimas e diz: "é de três em três", se referindo que a cada estrofe de seis versos, três
deles rimavam entre si. Já a aluna V. revela: "eu achei parecido com o João Grilo, do
Auto da Compadecida" quando perguntamos o por quê da semelhança ela responde:
"porque ele pra tudo tinha uma mentira que ele inventava", os alunos concordam e a
aluna I. chega a imitar o personagem do filme, citando trechos das falas do personagem,
como "não sei, só sei que foi assim".
Os comentários dos alunos revelam seu conhecimento de personagens da
literatura popular, mas que eles não os conhecem por essa nomenclatura, como vemos
no caso de João Grilo, que para eles é um personagem do filme ou do seriado que
assistiram pela televisão. Assim é perceptível a falta de barreiras entre o que se chama
na academia de "cultura popular" e "cultura de massa" para os nossos leitores.
Essa ausência de barreiras, como também a ausência de conhecimento teórico
sobre gênero folheto, não prejudicaram a leitura e muito menos a discussão a respeito de
suas reflexões sobre o texto literário lido, como veremos ao final da leitura, mas
provavelmente auxiliaram a reflexão a partir do estabelecimento de relações que seriam
possivelmente prejudicadas pelo estabelecimento de classificações.
As estrofes seguintes apresentaram as características físicas de Cancão e os
alunos acharam que a representação da capa não se aproximava muito do que
imaginavam após a leitura, o que nos remete à reflexão sobre os espaços a serem
preenchidos pelo leitor durante a leitura do texto literário (JOUVE, 2002). Neste
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momento ressaltamos que os alunos continuaram a identificar o personagem Cancão


com o aluno Pa., por suas características físicas.
A aluna I. volta a comparar os personagens "Cancão" e "João Grilo", lembrando
trechos do "Auto da Compadecida" nos quais João Grilo engana o padre, no que é
auxiliada pela aluna Pe., que relata o momento em que João Grilo consegue que o padre
realize o enterro de uma cachorra, e os outros riem e concordam com a semelhança. Ao
relacionarem os personagens Cancão e João Grilo, os alunos começaram a fazer
comentários que revelavam seu horizonte de expectativas, como percebemos no
momento em que lemos a estrofe 16:
Cancão tinha sete anos
Quando andou perto da morte,
Foi passar um rio cheio,
A correnteza era forte -
Dessa vez quase a desgraça
Fez ele mudar de sorte.

Na leitura do quarto verso, a aluna I. observou: “é mais fácil ele levar a


correnteza nas costas", arrancando risos dos colegas com seu comentário, baseado em
seu conhecimento sobre o personagem João Grilo.
Apesar de não se surpreenderem com a astúcia de Cancão, os alunos se
incomodaram com o comportamento de sua mãe, que se alegrou ao pensar que o filho
havia morrido, e todos sorriram quando o personagem reapareceu e a sua mãe lhe
perguntou na estrofe 21: "-A morte então não te quis?" e a aluna I. mais uma vez
comenta: "muito besta a morte!",reafirmando a relação entre o personagem conhecido e
o que ela ainda estava conhecendo.
Percebemos que os alunos começaram a se identificar com o personagem
quando chegamos à estrofe 24, na qual o personagem principal fala sobre a perda de seu
pai, e os alunos fazem um gesto afirmativo com a cabeça quando lemos "Pai é que eu
não posso achar" e alguns chegaram a dizer "é verdade", se compadecendo de Cancão.
Todos voltaram a sorrir quando chegamos à estrofe 28 e lemos os seguintes
versos: "-Pode tudo me odiar! / Amor não enche barriga,/ Ódio não faz ninguém
empachar", com os quais novamente se identificaram com Cancão. Essa identificação se
fortalece quando continuamos a leitura e Cancão demonstra a falta de gratidão pela sua
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mãe, que já sabíamos que o detestava e por isso era um personagem do qual eles
gostavam de ver ser desprezado.
Algumas estrofes à frente, a aluna G. interrompe a leitura para questionar sobre
o valor roubado por Cancão do velho usurário, e nós voltamos ao trecho e verificamos
que ele havia roubado 5 mil réis, e F. afirma "foi pouco", visto que estávamos em um
trecho da narrativa em que Cancão consegue juntar 64 mil réis trabalhando de vendedor
de bolos, bem como para minimizar a atitude de Cancão ao se apropriar do dinheiro do
velho, já que F. já simpatizava com o personagem, se identificando com a sua esperteza
e o fato do personagem ter sempre "uma resposta" para todos os que lhe afrontavam.
A cada nova quengada os alunos se manifestavam rindo bastante, mas não
comentavam as ações de Cancão, e demonstravam certa impaciência quando
interrompíamos a leitura, dado o interesse em continuá-la a fim de conhecer o final da
narrativa.
Ao chegarmos ao final do primeiro volume, momento em que Cancão, junto
com seu amigo Alfredo, havia juntado muito dinheiro pedindo esmolas, as alunas G. e
Pe. dizem que Cancão deve mandar novamente o dinheiro para a mãe, e I. afirma que o
personagem vai mandar uma parte do dinheiro para a mãe, mas não tudo, pois ele não
pode mais voltar sob o risco de ser preso, ao que Pe. responde: “todo o dinheiro não,
mas ele vai ajudar" e a aluna E. discorda e diz que acha que Cancão é bem malandro e
"vai comprar coisas para ele e Alfredo". Os alunos F. e A. afirmam que o personagem
Cancão é "sem noção" e, junto com Alfredo, vai decidir ajudar sua mãe e o pai de seu
amigo, só para provarem que podem "se virar sozinhos".
As hipóteses levantadas se revelavam possíveis de se realizar, o que demonstra
que os alunos conseguiram refletir sobre a narrativa de forma a considerar as
informações já obtidas para imaginar os possíveis fatos que se sucederão, o que fica
claro quando a aluna I. afirma: "ele vai pegar o dinheiro e vai viajar, que era isso mesmo
que ele queria, pelo menos é o que demonstra aqui" e aponta para o folheto.
Continuamos a leitura para que eles descobrissem se alguma das hipóteses seria
confirmada. Ao lermos os versos "pra ele tudo era fácil / sem precisar ser ladrão"
perguntamos se todos concordavam com essa filosofia de Cancão. A aluna E. diz "não",
mas os demais alunos respondem "sim", então perguntamos: "ele era ladrão?" e alguns
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respondem com um sonoro "não" e I. esclarece: "ele era cafajeste" e a aluna Pe. ajuda:
"ele era muito esperto".
Entretanto, E. afirma que Cancão era ladrão porque roubava, então perguntamos
a ela: "ele roubava quem?" e E. diz: "ele roubava pra ele", sustentando que ele era
ladrão, e I. acrescenta: "mas ele roubava quem tinha muito dinheiro, ele não chegava pra
roubar um pobre" e para retrucar E. lembra: "ele roubava uma bengala!" e I. esclarece,
tentando amenizar o fato: "ele enganava!".
É perceptível que esses alunos já haviam desenvolvido o hábito de argumentar
utilizando-se de trechos da narrativa para fundamentar suas interpretações, e após as
alunas terminarem de expor seus argumentos, continuamos a leitura para observar se
teríamos mais aspectos a considerar para retornar a esta discussão.
Ao continuarmos a leitura os alunos constataram que Cancão e Alfredo
resolveram viajar, como I. havia observado que poderia acontecer. Ao ler o trecho no
qual Cancão arma um quengo para a negra, perguntamos se os alunos achavam que o
plano de Cancão iria dar certo. A aluna E. diz que não, mas os outros acham que dará
certo.
O posicionamento de E. se deve ao fato de que a turma espera que o personagem
seja castigado para que a narrativa tenha seu final moralizante e o folheto siga o modelo
popular de narrativas de forma simples, a que eles estão acostumados, como
percebemos pelos comentários da aluna G. que diz: "é , pode ser, tá começando a ficar
ruim, eles estão passando fome" e I. esclarece: "é, tá passando da metade, tá na hora já
de acontecer alguma coisa com ele".
Ao lermos o trecho em que Cancão justifica o roubo à negra, I. concorda com
ele: "é, ele ia morrer de fome! antes roubar do que a morte, né!", mas os outros alunos
ficam em silêncio, mais tarde a aluna G. diz, a respeito do comportamento do
personagem da negra: "é, a burra foi ela".
Quando chegamos ao trecho em que Cancão e Alfredo, já no Rio de Janeiro, são
pegos pela polícia, a aluna Pe. diz: "é, vai ser pego por eles, são as consequências do
que ele fez", reforçando a preferência pelo modelo de narrativa já referido.
Ao concluirmos a leitura, a aluna I. observa: "acho que é a vida que algumas
pessoas pediram. Não: que todo mundo pede a Deus, de liberdade... não sei o quê... que
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queria sair no mundo...é o que ele quis fazer e a gente não pode julgar, é a forma que ele
teve de sair e se divertir". I. reforça que é um desejo comum, mas que ninguém tem
coragem de realizar, saindo de casa para se aventurar sozinho.
Questionamos os outros alunos e G. afirma: "para ele foi bom porque ninguém
da família gostava dele, então ele não tinha o que fazer num lugar onde ninguém
gostava dele" e M. diz: "ele tinha uma certa revolta também" e E. observa; "mas ele
nunca estava livre, tinha sempre alguém atrás dele", insistindo em sua concepção de que
o personagem não se portava bem e deveria pagar pelos quengos aplicados.
Perguntamos a M. qual seria a revolta do personagem e ela esclarece: "de
ninguém gostar dele, da própria mãe chegar e dizer que nem a morte quis ele" e I. e G.
concordaram com esse argumento.
Ao retomarmos a discussão sobre o folheto lido, algumas alunas disseram se
tratar da história de "F. de fogo" e a sala passou a identificar o personagem com o aluno
F., por suas ações, e não mais com o aluno Pa. por sua aparência física. F. diz que
Cancão é a "imagem do cão" e G. acrescenta: "a imagem e a pessoa, porque era feio que
doía e aprontava igual ao Cão" e Pe. explica: "ele enganava tanta gente que acabava se
enganando” - observamos que essas são interpretações dos alunos a partir do que
haviam comentado sobre a narrativa lida.

4. Algumas considerações sobre a leitura do folheto

Ao lermos "A vida de Cancão de Fogo", os alunos foram se identificando com o


personagem ao passo que percebiam que esta narrativa não repetia o modelo de
narrativa preferido por eles e nem reafirmava a ideologia dominante defensora do
trabalho e da moral católica, mas sua reflexão ultrapassou a superfície da narrativa e os
alunos concluíram que, apesar dos quengos, Cancão não era apenas o que se chama de
representação do malandro mestiço, e percebemos que os modelos maniqueístas não
serviam como guias para a interpretação desses alunos.
Considerando o que diz Reis (2006), a leitura dos alunos se aproxima mais do que
Roberto da Matta diz sobre o personagem Malasartes do que de qualquer das outras
posições ali expostas, pois eles observaram que Cancão ao mesmo tempo em que
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resiste, se negando a repetir o comportamento submisso de viver com a família que o


detesta e fazer o que sua mãe lhe indica, ele não se nega a trabalhar e preocupa-se com a
sua família.
Por muito tempo, a postura mais comum ante a literatura popular foi a de ler as
produções populares e encontrar apenas “mais um lugar de reprodução das lógicas de
dominação” (PASTA Jr., 2006 p. 62), e qualquer traço de conformidade com a
ideologia dominante, como a atitude obediente de Cancão ante os policiais no final do
folheto, seria tida como uma forma de assumir e preservar essa ideologia, reproduzindo-
a num texto literário que deveria ser o espaço do popular. Os alunos não seguiram esse
modelo de leitura, mas exploraram em seus comentários alguns aspectos que contrariam
esse modelo de leitura.
De forma geral, os alunos se identificaram com o personagem por conta da lógica da
justiça social que rege a narrativa, pois com sua astúcia e inteligência Cancão consegue
se safar dos golpes pretendidos por tipos que representam várias categorias sociais que
abusam do poder.
Por se tratar de um público próximo à realidade do campo, e habitantes de uma
pequena cidade do interior do mesmo estado do personagem - a Paraíba, não houve
dificuldades em compreender as viagens realizadas por Cancão, bem como os destinos
escolhidos, dado o alto índice de êxodo para os grandes centros do sudeste.
As ligações dos leitores com a cultura popular se manifestaram principalmente a
partir de citações de provérbios. Observamos que o paradigma popular-erudito não
existe para os leitores, que passaram da leitura de contos de Graciliano Ramos - um
autor que faz parte do cânone erudito- para o folheto de Leandro Gomes de Barros sem
qualquer indagação a respeito sequer do material em que as obras são comercializadas,
visto que o material barato do folheto ainda desperta comentários a respeito de sua
qualidade estética na academia.

REFERÊNCIAS

BARROS, Leandro Gomes. A vida de Cancão de Fogo. In: BARROS, Leandro G. Vida
e Testamento de Cancão de Fogo. São Paulo: Luzeiro, 2006. p. 03-21.
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FLEURI, Reinaldo Matias. Apresentação - Educação intercultural: mediações


necessárias. In: FLEURI, Reinaldo Matias (org.). Educação intercultural. mediações
necessárias. DP&A, 2003. p. 09- 15
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Cordel: leitores e ouvintes. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001.
JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
JOUVE, Vincent. A leitura. Trad. Brigitte Hervat. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
PASTA Jr. José A. Cordel, intelectuais e o Divino Espírito Santo (notas sobre artes do
povo e estética da representação). In: BOSI, Alfredo (org.). Cultura Brasileira: temas e
situações. São Paulo: Ática, 2006. p.58-74.
REIS, Zenir Campos. O mundo do trabalho e seus avessos. In: BOSI, Alfredo (org.).
Cultura Brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 2006. p.42-57.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.
In: SILVA, Tomaz Tadeu (org). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. 9ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. p.07-72.
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A IMAGEM DO HOMEM NEGRO NOS FOLHETOS DE CORDEL DA BC/UEL

Amanda Crispim Ferreira (G-UEL)


Raimunda de Brito Batista (UEL)

Introdução

Literatura de cordel é o nome atribuído a pequenos romances em versos e possue esta


denominação devido à forma de comercialização, pendurados em cordões que em
Portugal é chamado de cordel. Chega ao Brasil através dos colonizadores portugueses e
populariza-se no nordeste, onde ganha características próprias enquanto escrita, sobre
assuntos variados e com temáticas baseadas na cultura popular.
Os folhetos têm a função de entreter utilizando temas como lendas, biografias,
cangaceirismo, histórias de amor, ou levar seus leitores a fazerem reflexões sobre
questões importantes como a política brasileira, a injustiça social, o abuso do poder,
entre outros. Outra função importante, talvez a mais comum, é a informativa, neste caso
os cordelistas dedicam-se a escrever sobre acontecimentos de grande repercussão. Aqui
podemos citar como exemplo a morte de personalidades, desastres, a seca, reviravoltas
políticas, entre outros.
Acredita-se que os primeiros cordéis brasileiros começaram a ser publicados no final
do século XIX. Nesta época o pensamento escravocrata ainda estava enraizado em
alguns brasileiros, um exemplo são alguns poetas nordestinos. Tal pensamento pode ser
confirmado nos próprios folhetos, que mostram os autores de cordel, em grande parte,
como conservadores. Por isso, foi (é) difícil se acostumar com a idéia de que agora o
negro era (é), pelo menos juridicamente, uma pessoa e livre. Digo juridicamente, porque
mesmo com a Lei Áurea em 1888, o homem negro ainda convive com as correntes
invisíveis que os prendem: a pobreza e o preconceito.
Assim, pretendo, a partir desse estudo, analisar não só essas correntes e a maneira
como elas se manifestam por meio de livretos preconceituosos, mas também a forma
como o negro resiste a elas, através dos estudos de livretos de poetas preocupados em
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resgatar a identidade do homem negro que foi destruída durante esses anos. Pois
acredito que a nova geração (séc XXI) traz uma literatura mais engajada, que mostra o
negro de uma forma digna e não preconceituosa, diferente dos cordelistas dos séculos
XIX e XX.
Além dos folhetos, utilizarei para minha análise os conteúdos assimilados a partir da
leitura de Clovis Moura e Joel Rufino. O primeiro, em seu livro O preconceito de cor
na literatura de cordel, pontua as várias formas de preconceito que ele encontrou nos
livretos. A mais freqüente é a personificação do mal no negro, ou seja, colocar o diabo e
outros monstros como negros tanto no texto como nas xilogravuras. A zoomorfizaçao
do negro (atribuir características de animais ao homem) também esta bem presente.
Além dessas, Moura, apresenta outra característica, a inferiorização do negro presente
em quase todos os cordéis que possuem personagens negras. Se a história é sobre um
duelo, a personagem negra sempre perde; se é uma historia de amor, o negro é o marido
traído ou sempre está atrás de mulheres brancas, e a mulher negra é sempre apresentada
como objeto sexual; enfim, a maioria das personagens ruins como criminosos,
indefesos, ou crianças abandonadas são negras.
Joel Rufino dos Santos, em seu livro O que é racismo, apresenta uma reflexão sobre
as origens do racismo e sobre o “racismo á brasileira” marcado por uma falsa
democracia racial e por estereótipos zelosamente guardados dentro das pessoas e que se
manifestam no momento em que se sentem “ameaçadas”. Através desta análise,
poderemos perceber o preconceito principalmente quando não está explicito nos
livretos, mas mascarado através de figuras negras frágeis demais ou exageradamente
ruins, nunca humanas.

1. O preconceito racial no Brasil: A falsa idéia de democracia racial no Brasil

“Dizem os especialistas que o primeiro


passo para curar um toxicômano é fazê-lo
admitir que o é. Assim, se a sociedade
brasileira deseja acabar com violência e o
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racismo, deve confessar que é violenta e


racista.”(SANTOS,1984,p.48)

No Brasil o racismo não é declarado como na África do Sul com o apartheid, na


Alemanha com o nazi-facismo de Hitler, ou nos EUA com o separatismo. Pelo
contrário, acredita-se que no Brasil não há racismo. Aqui, o preconceito é mascarado e
descoberto geralmente em uma situação de competição, em que brancos se sentem
ameaçados, como numa disputa por melhor desempenho numa modalidade esportiva ou
até, numa disputa por emprego.
A chamada democracia racial também é sustentada por nossos governantes para
controlar a população, domesticar (“dando – lhe” direitos humanos, que no fundo
sempre foram seus, fazendo o papel do branco que respeita o negro) e branquear
(supervalorizar suas qualidades) o negro, caracterizando um “racismo paternalista”, ou
seja, um racismo sem conflitos. Esse racismo, à brasileira, é pior que o “racismo
aberto”, uma discriminalização com conflitos, pois, no primeiro o racismo aos poucos
vai sendo incorporado nas vítimas tornando-as também racistas, fazendo-as aceitar as
desculpas criadas para justificar a sua inferiorização em relação ao branco. “Nos EUA o
negro tem uma pistola apontada para sua cabeça; no Brasil ela esta apontada para suas
costas. Para quem segura a pistola, a segunda opção é, sem dúvida a mais cômoda.”
(KENNEDY, 1967). 1
Nos EUA, onde o racismo é aberto, havia escolas para brancos e escolas para negros,
mas, mesmo separando os alunos pela sua cor de pele todos tinham direito a educação.
E no Brasil?
Aqui, o “racismo à brasileira” gerou comentários como: “ele é preto mais é legal!”
designando a expressão “negro de alma branca”, referindo-se a negros diferentes, as
exceções, os que venceram na vida, nomeados por Santos em 1984, como a “burguesia
negra”.

1
Senador norte-americano Bob Kennedy, declarou esta frase na PUC-Rio em 1967 após ser criticado
pelos estudantes que mencionaram o ódio racial existente nos EUA.
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Esses eram exibidos para a população para provar que havia uma democracia racial
no país, estabelecendo aos negros dois novos papéis na sociedade, o de sambista e o de
jogador de futebol. Atualmente também há para as mulheres o de dançarinas, cantoras, e
os papéis de empregadas ou “gostosas destruidoras de lares” nas novelas. Mas não de
intelectual. Tal afirmação é confirmada pelo desabafo da escritora afro-brasileira
Conceição Evaristo 2·:"Espera-se que a mulher negra seja capaz de desempenhar
determinadas funções, como cozinhar muito bem, dançar, cantar, mas não escrever. Às
vezes me perguntam: 'você canta? '. E eu digo: 'não canto nem danço”. (EVARISTO,
2006)
Não teria lugar para o negro brasileiro nas universidades, nas prefeituras, entre
outros, a não ser desempenhando papéis inferiores ao do branco. “O único lugar onde
negro é maioria é na favela ou na cana” (SANTOS, 1984, p.64). A prova disso é um
simples olhar para as periferias e para os centros brasileiros e observar a cor da pele
daqueles que estão no primeiro e daqueles que estão no segundo. É pesquisar a luta de
Lima Barreto e de outros escritores negros para viver daquilo que escrevem.

2. O preconceito racial na literatura de cordel

A literatura de cordel popularizou-se principalmente no nordeste tornando-se um dos


principais meios de informação do nordestino. Sendo um meio de comunicação
poderoso, foi e é um dos principais instrumentos de disseminação do racismo nas
regiões que ele alcança.
Apesar dos poetas da literatura de cordel assumirem-se preconceituosos através de
sua escritura, esse não é considerado um pensamento global, mas de uma minoria
elitista que controla os meios de produção com sua ideologia. Clovis Moura em seu
livro O preconceito de cor na literatura de cordel (1976), afirma “o preconceito é uma
transferência ideológica das classes dominantes para os cordelistas, de vez que, no atual

2
Conceição Evaristo é uma escritora afro-brasileira, doutora em literatura comparada. Fez este desabafo
em entrevista para a revista Raça Brasil em agosto de 2006 em relação a imagem da mulher negra na
sociedade brasileira atual.
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sistema de estratificação social no campo, esse preconceito não tem função para os
consumidores dessas histórias.” (MOURA, 1976, p.79).
Assim, espalham-se e fortificam-se os estereótipos atribuídos ao negro na
literatura de cordel, o inferiorizando e ridicularizando. Os mais comuns destacados em
Moura (1976) são: a mulher negra é mais ardente que a branca e por isso uma
lubricidade e uma capacidade de gozar e fazer gozar o macho branco de forma
inusitada; o homem negro esta sempre correndo atrás de mulheres brancas.
As formas mais comuns de inferiorização do negro também são apontadas no
livro de Moura: mulher negra colocada apenas como objeto sexual do homem branco,
homem negro é colocado como corno, marido traído; preconceito no casamento
interracial; criação de situações humilhantes para o negro, exaltando o branco;
identificação do negro com o diabo; idéia de que o inferno é habitado por negros.
Porém, assim como na Literatura canônica, no final do século XX e inicio do XXI,
pode-se encontrar livretos, que tem por objetivo, resgatar a dignidade do homem negro
e refletir sobre a sua condição no Brasil, como “Recordando Zumbi” de Luis Melo
(1994) e “Abolição sem libertação” de Hélvia Callou (2002), além de homenagens a
personalidades afro-brasileiras como o jogador de futebol Mané Garrincha e o músico
Pixinguinha.

2.1. Análise dos folhetos


Para analisar as afirmações de Moura (1976), usei como fonte os livretos do acervo
da Biblioteca Central da UEL, que mantém um projeto de pesquisa intitulado
“Literatura popular: os folhetos de cordel da Biblioteca Central/UEL; pesquisa,
preservação e divulgação.” Desenvolvido por professores e alunos da Universidade
Estadual de Londrina. O acervo é um dos mais bem organizados do país com cerca de
3000 títulos de cordel. Dentre estes, pesquisei 40 títulos de livretos que pudessem se
referir ao negro. 3

3
Como as indicações bibliográficas são insuficientes, recomendo a pesquisa desses títulos na Biblioteca
Central da UEL, na sala de pesquisa em Literatura de Cordel.
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1. ABC da Umbanda – Vivência Macedo Maia;


2. A abolição do cativeiro – Diniz Vitorino Ferreira
3. O anticristo no mundo – Antonio Marques Teixeira Filho
4. O encontro do negrão com o monstro do Rio negro – Manoel Caboclo de Silva
5. Enforcamento do poeta negro – Raimundo Santa Helena
6. Encontro do cangaceiro Vilela com o negrão do Paraná–Apolônio Alves dos Santos
7. A escrava Isaura “a jovem sofredora” – Apolônio Alves dos Santos
8. Graças a Deus!... Amor e paz para Exu – Homero do Rego Barros
9. Irene anjo do mal – Elias A. de Carvalho
10. Luz de um preto velho - Gonçalo Ferreira da Silva
11. Mãe Maria – Raimundo Santa Helena
12. A malassombrada peleja de Francisco Sales com o negro visão – Francisco Sales Arêda
13. Milagres de Anastácia – Gonçalo Ferreira da Silva
14. O caminho do inferno – José Pedro Pontual
15. Certo ou errado mão branca defende o povo – Zé Gamela
16. Cortina negra – Pedro Jacob de Medeiros
17. Deus fez o homem e o diabo fez o macaco – Rodolfo Coelho Cavalcante
18. A criança abandonada – José Hermínio
19. Discussão do macumbeiro e o crente – Gonçalo Ferreira da Silva
20. Dona Maria Fulô – José Hermínio
21. Quem foi Nabuco ou um ídolo dos escravos – Homero do Rego Barros
22. Rio mancha negra no mapa do Brasil – Gonçalo Ferreira da Silva
23. Sofrer dos flagelados – João Batista da Silva
24. Umbanda em versos – Flavio Fernandes Moreira
25. O valente João corta-braço e negrão endiabrado – Antônio Alves da Silva
26. O valor que o peido tem e o peido que a nega deu – Otacílio Batista
27. Vida e morte de Mane Garrincha – Nelci Lima da Cruz
28. Vida, paixão e morte de Mane Garrincha, a alegria do povo – Paulo Teixeira de Souza
29. Vida e morte gloriosa do grande músico negro Pixinguinha – Edigar de Alencar
30. Zé baiano, o ferrador de gente – Gonçalo Ferreira da Silva
31. Historia de cel.Galvão e o escravo sofredor – Rodolfo Coelho Cavalcante
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32. História do pequeno marginal – Jussandir Raimundo de Souza


33. Recordando Zumbi - Luis Melo
34. As aventuras de um corno conformado – José Pedro Pontual
35. O exemplo da moça que viu o diabo – José Francisco Borges
36. Faleceu Mane Garrincha o fabricante de joãos-Gonçalo Ferreira da Silva
37. Seios nus – Raimundo Santa Helena
38. O bode subversivo que deu no diabo – Flanklin Maxado Nordestino
39. ABC do chifrudo – Têo Azevedo
40. Abolição sem libertação – Hélvia Callou

Depois de analisá-los pude detectar os aspectos racistas mencionados


anteriormente e me deterei nos mais relevantes. Dos 40 folhetos analisados, 32 se
referem ao negro de forma direta ou indireta (através das religiões afrodescendentes, por
exemplo) e destes 21 o inferiorizam, ou o identifica com o demônio, ou usam de
estereótipos e de termos pejorativos.
Um exemplo claro é o livreto “encontro do cangaceiro Vilela com o negrão do
Paraná” de Apolônio A. dos Santos, em que um negro (não se sabe o nome), foge do
Paraná para o nordeste e desafia o cangaceiro Vilela para uma briga, após ter matado o
sargento da cidade. Vilela é um cangaceiro muito conhecido na região por sua valentia e
vencendo o negrão, o prende na cadeia da cidade. Este consegue fugir e Vilela movido
pelo desejo de terminar o “serviço” iniciado e sustentado pela vingança do irmão do
sargento assassinado, sai à procura do negrão e quando o encontro o mata.
Percebemos a inferiorizaçao do negro a começar pela capa, em que este não
possue nome, ao contrario de branco que além de possuir (Vilela) também lhe possui o
título de cangaceiro. Vejamos a maneira com que o cordelista descreve o branco e o
negro:
O Cangaceiro Vilela
Era um valente afamado
Que para punhal e balas
Tinha o corpo fechado
Contava cento e dez mortes
E nunca foi baleado.
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Varias vezes foi cercado


por forças policiais
porque sempre em sua pista
a policia andava atrás
mas ele sempre escapava
por ser esperto e sagaz.

E assim correu a fama


Desse cabra valentão
Todo mundo respeitava
Sua fama no sertão
Até as autoridades
Deixaram ele de mão.

Agora vejamos a forma como o negro é descrito:


O negrão era horroroso
Beiçudo e preto demais
Usava um chapéu de couro
Quebrando adiante e atrás
Seu aspecto parecia
Ser filho de satanás

O autor descreve o negro como feio por suas características étnicas: lábios grandes
e pele negra, e finaliza a estrofe o identificando com o demônio. Além de ser
inferiorizado esteticamente, o negro é vencido pelo branco no final do cordel:

Vilela disse: Negrão


Eu estou falando sério
O negro quis reagir
Nesse momento funério
Vilela deu-lhe dois tiros
Mandou-o pro cemitério.

Outro exemplo do negro identificado com o demônio nessa literatura é o livreto

“O valente João corta-braço e negrão endiabrado” de Antônio


Alves da Silva. Outro duelo entre um negro “sem nome” um “um
cabra” valente do nordeste, em que o negro (como era de se
esperar na literatura de cordel), perde. No enredo, o negro é o
próprio diabo que veio lutar com o valente e incrédulo João corta-
braço que para vencer a luta roga a Deus e passa de incrédulo a
cristão. Um outro exemplo interessante é a capa do livreto “o
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bode subversivo que deu no diabo” de Flanklin Maxado


Nordestino. A xilogravura traz a imagem do inferno em que o
bode vence o diabo (representado pela figura de um negro) e fica
com a “diaba”, uma negra com os seios a mostra, quadris largos,
entre outros atributos. Na xilogravura também aparecem outras
figuras demoníacas e todas são negras, confirmando a teoria de
Moura (1976): “na literatura de cordel prega-se que o inferno é
um lugar povoado e governado por negros” (p.46)
Um folheto aparentemente inocente, mas que esconde o processo de domesticação
e branqueamento do negro é o “Luz de um preto velho” de Gonçalo Ferreira da Silva,
que apresenta na capa uma xilogravura confeccionada por JOEL, de um negro
encurvado, triste, fumando um cachimbo. A figura instiga o leitor um sentimento de
pena, dando a entender que é este o sentimento que tem o autor e o artista branco em
relação ao ex-escravo, quando este relato seu passado. O negro é dócil, renega a religião
afrodescentente e perdoa seus opressores. Imagem do negro ideal numa sociedade
racista:

Eu mesmo muitas vezes


fiquei preso o dia inteiro
sem comida e sem bebida
num tronco de juazeiro,
como as vezes me soltava
me chamavam de mandingueiro.

Mandingueiro eu nunca fui


Mas era tratado assim,
Livrei das cordas escravos
Que eram leais a mim
Elevando o pensamento
Ao meu senhor do Bonfim.
...
Levavam-me para o tronco
Com uma humilhante escolta
Que dizia com sadismo:
Que ver se ele se solta,
Nessa hora a carne é fraca
Propicia a revolta.

No entanto eu perdoava
A boca que me cuspia
Não porque eu possuísse
Humana sabedoria
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Porém a voz da razão


Secretamente dizia...

Além desse folheto, há folhetos dedicados a personalidades históricas brancas que


pregavam o abolicionismo como Joaquim Nabuco ou a própria princesa Isabel que
assinou a lei Áurea, como “A abolição do cativeiro” de Diniz Vitorino Ferreira e “Quem
foi Nabuco ou um ídolo dos escravos” de Homero do Rego Barros, dando ao branco o
“status” de salvador do negro. Passado a escravidão o branco continua salvando o negro
das dores atuais como está ilustrado na capa do livreto intitulado “A criança
abandonada” de José Hermínio, em que uma mulher branca segura pela mão uma
criança negra.
O branqueamento também foi encontrado nos livretos analisados e um dos
exemplos mais relevantes foi o livreto “Vida e Morte de Mané Garrincha” de Nelci
Lima da Cruz. O autor ilustra a capa com um jogador branco e no interior do livreto faz
muitos elogios ao grande ídolo do futebol brasileiro, mas, em nenhum momento é
mencionado que Garrincha era negro.
Será que nessas circunstâncias em que o negro é visto como um ídolo nacional não
se faz necessário ressaltar sua cor de pele? E porque que quando ele é um bandido ou
uma criança abandonada é? São questões aparentemente sem respostas.
Finalizo a análise dos folhetos preconceituosos com o exemplo do negro
inferiorizado como marido traído, com o cordel “As aventuras de um corno
conformado” de José Pedro Pontual, em que o narrador conta a história de um negro
que é corno conformado:
Um dia ela mudou-se
E disse assim seu chifrudo
Amanhã eu vou embora
Não vou viver com galhudo
Ele disse minha filha
Não despreze seu cornudo

Ele disse eu não posso


Nem siquer passar na porta
Não faça isso comigo
Você é quem me conforta
Tem aqui o seu negrinho
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Que vê tudo e não se importa

Além deste, há o “ABC do chifrudo” de Têo Azevedo, cuja capa aparece o rosto
alegre de um homem negro com chifres na cabeça, simbolizando um homem traído
conformado e feliz com a traição.
Agora passando para os exemplos de cordéis atuais e não preconceituosos, há o
exemplo “Recordando Zumbi” de Luis Melo (1994). Neste livreto, o poeta conta a
história do Quilombo dos Palmares e de seu fundador Zumbi dos Palmares, com o
objetivo de narrar aquilo que a História oficial não narrou e recordar aquilo que tentou-
se esconder, para assim manter viva a história de um dos heróis do povo negro. Segue
alguns exemplos que comprovam tais informações:
No Quilombo dos Palmares
Um povo pode encontrar
Aquilo que lhe roubaram
Do outro lado do mar:
O direito de ser livre
Sem ninguém para mandar.
....
Bem que tentaram esconder
Deixar ZUMBI esquecido.
Mas, hoje trezentos anos
Depois de ter sucumbido
ZUMBI se ergue do chão
Para ser reconhecido.

Como o GRANDE GENERAL,


O maior que aqui se viu:
Venceu batalhas na terra
Até que um dia caiu
Para virar estrela
E iluminar o Brasil

O livreto é ilustrado com a técnica Off-set, e apresenta bonitos desenhos de


homens negros, diferente das ilustrações anteriores que apresentavam caricaturas, que
só ajudavam a fortalecer os estereótipos. Além deste, é importante destacar o folheto
“Enforcamento do poeta negro” de Raimundo Santa Helena de 1985. O livreto narra a
revolta do autor para com o enforcamento do poeta Benjamin Moloise na África do Sul
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em 1985. O poeta,além de dar ao negro um “status” de intelectual chamando-o de poeta,


elogia Benjamin e sua poesia, admitindo que seu trabalho seja digno de valor. Na
contracapa do livreto, o autor colocou várias noticias retiradas de jornais da época
mostrando a indignação de várias organizações do mundo.
Outro folheto, cujo conteúdo é interessante, é “Abolição sem libertação” de
Hélvia Callou (2002). A cordelista faz uma reflexão sobre a abolição da escravatura,
apontando questões como a maneira que a abolição é contada nos livros didáticos, em
que ocultam-se as revoltas e lutas dos escravos, o preconceito racial atual, os
estereótipos que foram criados para o homem e a mulher negra na Literatura, na mídia e
na sociedade em geral. Depois de todos esses apontamentos, a poetisa finaliza o cordel
com a estrofe a seguir, e é com ela que finalizo também esta análise:
Agora caro leitor
Que fiz esta explanação
Eu pergunto aos brasileiros,
Houve ou não abolição?
E aos negros: vocês são livres?...
Acabou-se a escravidão?...

Considerações finais

A pesquisa para este artigo possibilitou a discussão em torno da questão racial


não somente na Literatura de cordel, mas no Brasil, pois a Literatura é um reflexo da
sociedade em que ela está inserida. Após a análise, pudemos concluir que esta
Literatura, na sua maioria é preconceituosa, difusora de estereótipos e caricaturas. Essa
constatação é preocupante porque a Literatura é um meio formador de opinião e no caso
da literatura de cordel, por exemplo, os livretos durante muito tempo foram o “jornal”
do nordestino, por isso é de responsabilidade do poeta ter uma escritura engajada e não
usar literatura como instrumento de disseminação do racismo.
Antes de concluir este artigo, há ainda um último ponto de reflexão: o preconceito
camuflado ou nas entrelinhas. Pudemos percebê-lo na análise dos folhetos “Vida,
paixão e morte de Mané Garrincha, a alegria do povo” de Paulo Teixeira de Souza e
“Vida e morte gloriosa do grande músico negro Pixinguinha” de Edigar de Alencar. Os
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dois fazem uma homenagem á personalidades negras e não apresentam nenhuma forma
explícita de preconceito. Porém diante das profissões das personalidades apresentadas,
jogador de futebol e músico, se faz necessário um questionamento: será que no fundo,
os folhetos acima não são a confirmação da tese de Joel Rufino sobre a burguesia negra,
ou os “negros de alma branca” já que apresentam os únicos papéis desempenhados por
negros respeitados no Brasil?
Apesar do exemplo acima, pudemos analisar exemplos de cordéis não
preconceituosos, prova de que o pensamento está mudando, principalmente o do poeta
popular, que tem um papel de extrema relevância no imaginário nordestino.

Referências

MOURA, Clovis. O preconceito de cor na literatura de cordel. São Paulo: Resenha


Universitária, 1976.
SANTOS, Joel Rufino dos. O que é racismo. São Paulo: Abril Cultural: Brasiliense,
1984.
FREDERICO,Carol.Conceição Evaristo: eu não sei cantar. Raça Brasil, São Paulo, edição96.
Disponível em: racabrasil.uol.com.br/Edicoes/96/artigo15620-1.asp- acessado em 26/10/2008
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GÊNEROS LITERÁRIOS E ENSINO: NECESSIDADES E DESAFIOS

Amélia Zenir Coral (PDE-UEM)

Considerações iniciais

Esta pesquisa faz parte do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) 1 do


Estado do Paraná e tem por objetivo o estudo dos gêneros literários, pois os gêneros do
discurso têm sido o foco de muita atenção nas aulas de Língua Portuguesa, uma vez
que, hoje, busca-se, de acordo com as DCEs, uma proposta que dê ênfase à língua viva,
dialógica, na qual os textos são enunciados concretos relacionados aos mais diversos
campos da atividade humana. Nas palavras de Bakhtin:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e


escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou
daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as
condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só
por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela
seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas,
acima de tudo, por sua construção composicional.(BAKHTIN, 2003,
p.261)

É evidente que, ao contrário de décadas atrás, em que os textos eram levados para a
sala de aula como pretexto para ensinar gramática e portanto desconsideravam o
contexto social, essa perspectiva atua de modo decisivo no sentido de exercitar a
tolerância e a interação, levando-se em conta o discurso do Outro, de modo que esse
Outro possa se configurar como verdadeiramente um sujeito. Deste modo
compreendemos a relevância do ensino por meio dos gêneros textuais que socialmente
circulam entre nós, uma vez que esse ensino, além de ampliar a competência lingüística
e discursiva dos alunos, aponta-lhes inúmeras formas de participação social que eles,
como cidadãos, podem ter fazendo uso da linguagem.

1
É uma política pública que estabelece o diálogo entre os professores da Educação Superior e os da
Educação Básica, através de atividades teórico-práticas orientadas, tendo como resultado a produção de
conhecimento e mudanças qualitativas na prática escolar da escola pública paranaense.
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Buscando atingir esta meta, o presente projeto de pesquisa terá como objeto de
estudo os gêneros literários, visto que, além de serem a manifestação de um modo
discursivo entre vários (o jornalístico, o científico, o coloquial, etc. ), o discurso literário
é polifônico, dialógico, isto é, apresenta uma diversidade discursiva que vai além dos
limites da estrutura interna da obra, estendendo-se à leitura, e provocando no leitor
efeitos de sentido.
Tais efeitos possibilitam momentos de prazer, reflexão, identificação e catarse, pois,
como diz Aristóteles na Poética, a arte é natural do ser humano e fonte de prazer
(ARISTÓTELES, 1993, p.27). Além disso, é fonte de conhecimento, pois através da
interação do leitor com a obra, observa-se uma realidade antes não revelada pela
ideologia dominante, ampliando sobremaneira a sua visão de mundo, tornando-se um
leitor mais crítico e competente.
Portanto, a pesquisa que esta sendo desenvolvida no PDE e que será implementada
no Colégio Estadual “São Francisco de Assis” de Ivatuba, tem o propósito de
desenvolver práticas de leitura e escrita que ofereça aos alunos a apropriação dos
conceitos literários, visto que é na escola, que a grande maioria dos alunos terá
oportunidade de ter uma relação mais próxima com os gêneros literários.
Nesta perspectiva, as reflexões a ser desenvolvidas darão prioridade aos gêneros
narrativo (por meio do conto) e ao dramático, porque além de suas especificidades,
usufruem quase dos mesmos elementos, podendo desta forma estabelecer comparações,
adaptações, transposições, etc., para que o aluno se aproprie deste universo e
compreenda a natureza literária que nos faz reconhecer e ativar sentidos.

1.Breves reflexões teóricas

1.1. O conto

O ato de contar alguma coisa a alguém pode ser entendido como um processo
“primitivo” da vida em sociedade. As primeiras manifestações do “narrar”, segundo
Nadia Gotlib, em Teoria do Conto, estariam vinculadas à aquisição da linguagem pelo
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homem que, nas sociedades tribais, perto do fogo, reunia-se para transmissão de ritos e
mitos. Portanto, esta prática acontece desde os tempos mais remotos, os assuntos
variam tanto quanto o modo de narrar. Gotlib diz que, no início a criação e a
transmissão do conto era apenas oral, depois passou a ser registrado pela escrita, e
posteriormente, a criação por escrito de contos. A voz do contador de histórias tem o
poder de interferir na história narrada, pois ele utiliza todo um repertório no modo de
contar para conquistar o leitor, seja por meio da voz, dos gestos ou do olhar. Esses
mesmos recursos podem ser utilizados no texto escrito, mas para que se produza um
conto de caráter literário é necessário que se tenha “um resultado de ordem estética, ou
seja: quando consegue construir um conto que ressalte os seus próprios valores
enquanto conto, nesta que já é, a esta altura, a arte do conto, do conto literário”
(GOTLIB, 2006, p.13).
O conto, não se refere só ao acontecido, pois não tem compromisso com o real.
Nele, realidade e ficção não têm limites precisos. Narrativa breve, concisa, clara,
graciosa, mas ao mesmo tempo forte, que causa impacto. Utilizando o mínimo dos
meios narrativos, busca-se atingir o máximo dos efeitos, visto que centra-se geralmente
em um único conflito dramático, em que cada detalhe é significativo para atingir a
unidade de impressão, que é alcançada por meio de uma leitura sem interrupções. De
acordo com Julio Cortázar:

[ ...] o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar


uma imagem ou acontecimento que sejam significativos, que não só
valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no
espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que
projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai além
do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.
(CORTÁZAR, 1993, p. 151-2)

A temática do conto é praticamente ilimitada, quase tudo pode ser objeto para um
conto. Mas em princípio a idéia de conto estava ligada ao acontecimento, ao fato. As
formas modernas de narrativa, por sua vez, instituíram a investigação psicológica das
personagens e não apenas acontecimentos pontuais. Assim, o conto realiza-se nesta sua
capacidade de abertura para uma realidade que está além dele, para além da simples
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estória que conta. É o que afirma Julio Cortázar, em Alguns aspectos do conto: “O bom
contista é aquele cuja escolha possibilita essa fabulosa abertura do pequeno para o
grande, do individual e circunscrito para a essência mesma da condição humana”
(CORTÁZAR, 1993, p.155).

Aliar os recursos tradicionais com aqueles que vão surgindo é uma boa forma de
combinar tradição e modernidade. A narrativa pode ganhar mais qualidade quando
mistura os acontecimentos à investigação psicológica das personagens que as vivenciam
ou presenciam. Produzindo, por meio deste recurso, os mais diversos efeitos no leitor,
podendo encantar, aterrorizar, surpreender, emocionar, e isto é alcançado pela forma
de narrar, é o modo pelo qual a estória é narrada.
Mas, de acordo com Luiz Costa Lima (LIMA, 1983, p. 259), a obra se completa no
efeito que provoca no leitor, e para que ocorra tais efeitos é necessário que o leitor tenha
condições de entender a obra literária, por isso é imprescindível um contato mais
próximo com os gêneros literários, por meio de experiências individuais e coletivas de
leitura, lembrando que prazer estético, por sua vez, será resultado destas experiências.
Nas palavras das DCEs, (2008, p. 58) “Trata-se, de fato, da relação entre o leitor e a
obra, e nela a representação de mundo do autor que se confronta com a representação de
mundo do leitor, no ato ao mesmo tempo solitário e dialógico da leitura. Aquele que lê
amplia seu universo, mas amplia também o universo da obra a partir da sua experiência
cultural.”

1.2. A peça teatral

De acordo com Sábato Magaldi, a palavra “teatro” pode referir-se tanto ao edifício
em que se realizam espetáculos, como também a uma arte específica que necessita do
intermédio do ator para ser transmitida ao público. Considerando o segundo significado,
o autor afirma que o teatro não existe sem a sua tríade, ou melhor, os seus elementos
essenciais: o ator, o texto e o público. Mas para que o teatro aconteça, é necessário o
trabalho do dramaturgo que produz os textos teatrais, isto é, a literatura dramática que
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fica a espera de um encenador, para dar vida a sua peça, para transformar a literatura em
espetáculo. Segundo Magaldi, “assim como o dramaturgo é o autor do texto, o
encenador é o autor do espetáculo.”
Magaldi (1997) afirma que o ator é o responsável por dar vida cênica à arte teatral, é
a sua presença que caracteriza o fenômeno do teatro. É aquele que materializa o texto
dramático por meio da sua voz, do seu gesto, da sua expressão. O ponto de partida,
portanto, é o texto do dramaturgo, no qual o ator encontra informações necessárias para
encarnar a sua personagem. Assim, tanto o ator quanto o dramaturgo são responsáveis
pela criação do teatro, este por produzir, criar o texto e os seus personagens, e aquele
por dar vida e personalidade às personagens descritas pelo dramaturgo.
Segundo Magaldi, a arte dramática será mais fecunda quando envolve todos os seus
elementos. O dramaturgo, ao criar a sua obra, deve preocupar-se com o público e com a
encenação, por isso o autor do texto dramático deve oferecer ferramentas por meio da
escrita (como por exemplo, as didascálias) para subsidiar o trabalho do
diretor/encenador, fazendo com que o espetáculo aconteça.
O texto dramático apresenta alguns elementos fundamentais, tais como os
destacados no texto “Operadores de leitura do texto dramático” de Sonia Pascolati
(PASCOLATI, 2009, p. 99-101). São eles:
• Ação
A ação é o elemento fundamental do texto dramático, tudo gira em torno deste
elemento. Uma peça é uma série de ações concatenadas, as quais são apresentadas
em uma sequência progressiva, decorrentes uma da outra, promovendo a progressão
da peça. Isto cria expectativas em relação ao que poderá acontecer após cada evento.
• Diálogo
O diálogo contribui para a dinâmica da ação. Por meio do discurso das personagens,
revelam-se intenções, informações importantes para a compreensão da história e
também apresentam-se dados importantes para a caracterização da própria
personagem. E além disso, é pelo diálogo que se efetiva a manipulação do outro,
situação semelhante ao que ocorre na vida real. Esta manipulação pode acontecer
não só pelas palavras, mas também por insinuações e silêncios, que são tão
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significativos quanto as palavras.


• Conflito dramático
O conflito, junto com a ação e o diálogo sustentam o drama. O conflito dramático
surge das divergências das personagens que criam obstáculos, os quais são
removidos por meio do discurso dessas personagens para realizar os seus objetivos.
De acordo com Magaldi, “Pela natureza e pelo comportamento do público se
conseguiria traçar o perfil de um teatro” (MAGALDI, 1997, p. 71). Agradar ao público
é fundamental, pois este é o consumidor desta arte que não é produzida em ‘larga
escala’, de modo que o desinteresse do público faz com que toda a produção possa ser
até mesmo substituída.
Segundo Magaldi, o público brasileiro vai ao teatro para se divertir, e mesmo o
espetáculo que levante questões sociais que incomodam, na mensagem final deve
tranqüilizar o seu público, geralmente burguês, para que a sua consciência fique em paz,
embora nem todas as peças atuais alinhem-se nessa perspectiva. Até mesmo por isso,
afirma Magaldi (MAGALDI, 1997, p. 78), que os espetáculos teatrais não devem baixar
ao nível cultural do público, mas este deve incumbir-se de alçar à linguagem do texto.
Portanto, o público deve preparar-se intelectualmente para usufruir no teatro o autêntico
prazer estético.
A próxima parte deste texto procura mostrar uma proposta de leitura e escrita que tem
como base estes pressupostos teóricos.

2. Uma proposta de leitura e escrita com gêneros literários

Os textos selecionados para desenvolver esta proposta de práticas de leitura e escrita


servem como sugestão de trabalho, visto que podem ser substituídos de acordo com o
nível e interesse dos alunos.
O conto “Venha ver o pôr do sol” (da obra Antes do baile verde), de Lygia Fagundes
Telles, foi escolhido porque o assunto que envolve o texto é uma constante na vida dos
adolescentes, apesar de apresentar um final trágico. O amor, a paixão fazem parte do
contexto dos alunos, propiciando portanto, a identificação com a história, com a
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linguagem, com o ambiente, com as características das personagens e principalmente


com os problemas colocados, gerando, desta forma, predisposição para a leitura, pois,
além de tudo isso, envolve mistério e suspense, situações que os atraem ainda mais
nesta faixa etária.
Venha ver o pôr do sol é uma vingança planejada passo a passo, que acontece em
clima de história de suspense, pois as descrições do espaço, que é o elemento essencial
para o desenrolar do conflito, são feitas por um narrador heterodiegético, que se
posiciona fora da história, mas que emprega os termos perfeitos para construir o cenário
do encontro.
O narrador, num primeiro momento nos dá uma visão mais ampla, para mostrar que
o cemitério abandonado se encontra em lugar afastado do centro urbano, com poucas
casas, terrenos baldios, onde as crianças podem brincar com tranquilidade nas ruas, pois
não há movimento algum. As palavras empregadas compõem um espaço soturno “ela
subiu sem pressa a tortuosa ladeira”(TELLES, 1999, p.123), “as casas iam rareando,
modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios”(TELLES, 1999,
p.123), “a débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde”(TELLES,
1999, p.123).
Depois que a personagem Raquel se aproxima da personagem Ricardo e se
surpreende com o lugar do encontro, o narrador fecha o recorte da descrição e apresenta
um cemitério totalmente abandonado e esquecido pelos vivos “o velho muro
arruinado”(TELLES, 1999, p.124), “o portão de ferro carcomido pela
ferrugem”(TELLES, 1999, p.124) e o “mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de
ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepultura, infiltrara-se ávido pelos
rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se
quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da
morte”(TELLES, 1999, p.125). O efeito da passagem do tempo produzido pela
descrição da vegetação que toma conta do cemitério de forma violenta é também
reforçado por meio dos verbos no tempo mais-que-perfeito do indicativo, intensificando
o tempo de abandono e mostrando para o leitor que realmente ninguém iria presenciar o
encontro.
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Questionar ao aluno qual seria a intenção do narrador em realizar tais descrições do


espaço, o que seria possível acontecer em um ambiente como esse, seria uma leitura
mais produtiva do que pedir para que o aluno identifique os espaços descritos no texto.
Em relação ao tempo, o conto em questão, ao longo da sua narrativa, apresenta
alguns índices de recuo temporal, que permitem a recuperação de fatos passados,
analepses, como por exemplo, “Me implora um último encontro, me atormenta dias
seguidos,...”(TELLES, 1999, p.124) e com maior intensidade, índices de antecipação do
desfecho, prolepses, que o leitor só identificará após o término da leitura do conto,
como por exemplo, “ Esta a morte perfeita, nem lembranças, nem saudade, nem o nome
sequer”(TELLES, 1999, p.127). O conto, por conter apenas um conflito dramático, o
qual é formado por forças antagônicas, centraliza-se nesse conflito, mas trabalha com
analepses e prolepses para intensificar o mistério, provocando um impacto no desfecho.
De acordo com Julio Cortázar:

... o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar


uma imagem ou acontecimento que sejam significativos, que não só
valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no
espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que
projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai além
do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.
(CORTÁZAR, 1993, p. 151-2)

Estes recursos utilizados para recuar ou antecipar o tempo da narrativa provocam


um desencontro entre a ordem dos acontecimentos da história com a ordem dos
acontecimentos no discurso narrativo, marcando um tempo mais subjetivo, o tempo
psicológico, que contribuiu para aumentar a tensão dramática do conto de Lygia
Fagundes, portanto é interessante fazer com que o aluno perceba essas situações e a
função que elas exercem na construção da narrativa.
Tão importante quanto os outros recursos da narrativa, as personagens não devem
apenas ser identificadas e classificadas, mas observadas em todos os seus aspectos que
envolvem a sua trajetória na história, desde a função que desempenham às
transformações que sofrem no decorrer da narrativa, pois tudo contribui para
desenvolver o conflito.
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No caso do conto que é uma narrativa curta e geralmente contém um único conflito
dramático, as personagens envolvidas assumem papéis fundamentais, como é o caso de
Raquel, que apresenta transformações em sua aparência física e financeira no decorrer
da história, que é percebida por meio da fala de Ricardo “Pensei que viesse vestida
esportiva e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns
sapatões de sete léguas, lembra?”(TELLES, 1999, p.123), “__ Você está uma coisa de
linda... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse
perfume.”(TELLES, 1999, p.123), Esta transformação ocorre em função do atual
namorado, que é caracterizado por meio da sua condição financeira e sentimental. “Ele
é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos”(TELLES, 1999, p.125),
“Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente”(TELLES, 1999,
p.126). Esta lacuna na descrição física, da aparência do atual namorado, diz muito para
o conflito. As transformações de Raquel são percebidas até o final do texto, “ –A boa
vida te deixou preguiçosa? Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente”(TELLES,
1999, p.127), no desfecho do conto, quando Ricardo consegue concretizar a sua
vingança, Raquel encontra-se na condição de um animal enjaulado, “Durante algum
tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal
sendo estraçalhado. Depois os uivo foram ficando mais remotos...”(TELLES, 1999,
p.131). Ricardo, por sua vez, durante todo o texto, por meio da sua fala, enfatiza a sua
pobreza e que ela se agravou ainda mais, “Esguio e magro, metido num largo blusão
azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de
estudante”(TELLES, 1999, p.123), “ Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu
apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível”(TELLES, 1999,
p.124). Em relação a sua condição psicológica, o narrador nos deixa claro que ele não é
uma personagem equilibrada, “Ele riu entre malicioso e ingênuo”(TELLES, 1999,
p.123), “A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu,
envelhecida.”(TELLES, 1999, p.126), “Os leques de rugas se aprofundaram numa
expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a
rede de regas desapareceu sem deixar vestígio”(TELLES, 1999, p.125).
Entre os elementos que podem contribuir para a construção de sentidos do texto
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literário, estes são alguns de fundamental importância para que isto ocorra, mas o
professor deve estar atento para perceber quais são mais relevantes para determinadas
narrativas e dar prioridade a eles no momento da leitura.
Em relação ao gênero dramático, o texto selecionado foi Romeu e Julieta de William
Shakespeare e a sua escolha seguiu os mesmos critérios do conto.
As práticas de leitura a serem realizadas num primeiro momento com o gênero
dramático, buscarão proporcionar aos alunos uma maior compreensão da sua estrutura,
visto que o drama apresenta quase os mesmos elementos que o gênero narrativo, mas
que se distingue por ser “uma arte específica que necessita do intermédio do ator para
ser transmitida ao público”(MAGALDI, 1997, p.12), pois o dramaturgo, ao criar a sua
obra, preocupa-se com o público e com a encenação, por isso o autor do texto dramático
oferece ferramentas por meio da escrita para subsidiar o trabalho do diretor/encenador.
Num segundo momento, é importante mostrar aos alunos que o texto dramático
necessita de alguns elementos fundamentais, tais como: a ação, o diálogo e o conflito
dramático. Segundo Pascolati, a ação é o elemento fundamental do texto dramático,
tudo gira em torno deste elemento. Uma peça é uma série de ações concatenadas, as
quais são apresentadas em uma sequência progressiva, decorrentes uma da outra,
promovendo a progressão da peça e criando expectativas em relação ao que poderá
acontecer após cada evento. Por seu turno, o diálogo, contribui para a dinâmica da ação,
pois é por meio do discurso das personagens, que se revelam intenções e informações
importantes para a compreensão da história. Por sua vez, o conflito dramático surge das
divergências das personagens que criam obstáculos, os quais são removidos por meio do
discurso dessas personagens para realizar os seus objetivos.
É fundamental que o aluno compreenda a funcionalidade do gênero dramático, e
para que isto ocorra, é interessante, por exemplo, uma visita ao Teatro, para que os
alunos possam assistir a uma peça e posteriormente discutir em sala de aula a diferença
entre a literatura dramática e o espetáculo, comentar as estratégias utilizadas para
marcar os elementos do gênero dramático, dentre outras coisas.
Uma possibilidade que ainda se abre em termos de atividade junto aos alunos é a
transposição do conto “Venha ver o pôr do sol” de Lygia Fagundes Telles para o gênero
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dramático. Para que isto ocorra, aos alunos podem reler o texto, dessa vez já com vistas
às mudanças que imaginam ser necessárias para a adaptação ao gênero dramático,
listando as personagens e descrevendo os cenários para começar a organizar a
transposição, na qual poderão ser realizadas algumas atualizações em relação à época e
ao contexto dos alunos. Produzido o texto dramático, seria interessante realizar a
correção e reescrita dos textos, observando as especifidades linguísticas e artísticas do
gênero discursivo. Por fim, a organização da apresentação do texto dramático,
produzido pelo aluno, promovendo a interação entre os segmentos da escola, seria um
complemento especialmente interessante e dinâmico.

Considerações finais

Esta reflexão possibilitou-nos entender que a leitura e escrita de textos literários


constitui-se um desafio para a escola e formar leitores críticos e autônomos depende de
um trabalho com embasamento teórico. Para que o leitor interaja com a obra, e se torne
co-produtor, como propõem as DCEs (2008, p.71) é necessário que o aluno/leitor
compreenda a construção do texto, e tenha condições de entender a obra literária.
Portanto, espera-se que um trabalho como o proposto em nossa discussão, possa
contribuir para amenizar a grande desmotivação e as dificuldades dos alunos em relação
à leitura de textos literários, e transformar os alunos em leitores e produtores de textos,
não só literários, mas de um modo que se estenda aos diversos gêneros, e que esses
alunos sintam necessárias as práticas de leitura, não só desenvolvidas na escola, como
obrigação, mas no seu dia a dia, visto que se sentirão motivados a fazer algo que
desejem, e que lhes traga conhecimento e autonomia.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza / Edição Bilíngüe Grego-


Português. 2. ed. São Paulo: Ars Poética, 1993.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In:___. Estética da criação verbal. 4. ed.


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São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.261-306.

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In:___.Valise de cronópio. 2. ed. São


Paulo: Perspectiva, 1993. p.147-163.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988. (Série
Princípios)

LIMA, Luiz Costa. A questão de gêneros. In:___.Teoria da literatura em suas fontes. 2.


Ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983. v.1, p. 237-74.

MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. 6. ed. São Paulo: Ática, 1997. (Série
Fundamentos)

PARANÁ/SEED. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Diretrizes Curriculares


Estaduais de Língua Portuguesa. Curitiba, 2008.

PASCOLATI, Sonia Aparecida Vido. Operadores de leitura do texto dramático. In:


BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.) Teoria literária: abordagens
históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. Maringá: UEM, 2009. p. 94-112.

SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Trad. FONDELLI, Mario. Curitiba: Pólo


Editorial do Paraná, 1997.

TELLES, Lygia Fagundes Telles. Antes do Baile Verde. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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O FANTÁSTICO FANTASIOSO

Ana Carla Vieira Bellon (G-UEPG)


Silvana Oliveira (UEPG)

Introdução

Este artigo tem como objetivo apresentar uma leitura do texto Alice no país das
maravilhas, de Lewis Carrol, à luz da teoria do fantástico, mais precisamente, a partir
das considerações de T. Todorov, em sua Introdução à literatura fantástica (1975).
“A toca do coelho dava direto numa espécie de túnel que de repente descia terra
adentro, tão de repente que Alice não teve nem um segundo para pensar em parar, antes
de despencar em algo que parecia ser um poço muito fundo” (CARROL, 2005, p.16).
No fundo deste poço, Alice encontra um fantástico país de maravilhas, isso não é
novidade. O que nos chama a reflexão é justamente o fato de não ter tido tempo para
pensar, para hesitar diante desta situação no mínimo inusitada.
Tzvetan Todorov em sua obra Introdução à Literatura Fantástica apresenta várias
questões acerca do gênero intitulado ‘fantástico’, dentre elas a posição de que o
fantástico seria o momento da hesitação do protagonista face a um acontecimento
aparentemente sobrenatural (TODOROV, 1975, p.31). A hesitação do protagonista
como condição para a instauração do fantástico, entre outras considerações de Todorov,
deu origem a esta reflexão cujo ponto central é verificar analiticamente se a Alice de
Lewis Carrol poderia ser considerado um texto fantástico. De início, colocamos as
seguintes questões: Como uma narrativa aparentemente fantástica – não natural - pode
não se inserir integralmente neste gênero? O que é e o que não é fantástico nesta obra de
acordo com a teoria de Todorov?
Este clássico da literatura escrito há mais de século é classificado, na maioria das
vezes como fantástico (em classificações de DVDs, edições contemporâneas, estudos
acadêmicos, etc.). A proposta deste trabalho é justamente delimitar o fantástico desta
obra e aplicar alguns pontos da teoria de Todorov, enquanto analisamos ainda outras
posições e estudos sobre o assunto.
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1. Considerações Fantásticas

1.1 O Estranho e o Maravilhoso

Para Todorov, o fantástico puro estaria localizado no limite entre dois gêneros: o
estranho e o maravilhoso. O teórico dedica grande parte de sua reflexão a essa discussão
que faz com que a explicação ou a não explicação dos fenômenos sobrenaturais
exercerem uma carga essencial para a denominação do gênero fantástico.
O Sobrenatural é um tema estudado e presente há muito tempo na literatura. H.P.
Lovecraft dedica a sua obra O Horror Sobrenatural na Literatura (1987) para tratar
deste assunto. Diz que o verdadeiro conto de horror deve conter “uma certa atmosfera
de terror sufocante e inexplicável ante forças externas ignotas (...)”(LOVECRAFT,
1987, p. 4), esta tensão diante daquilo que não conseguimos explicar imediatamente
com leis naturais é o que chama de sobrenatural. A tensão que sentimos diante deste
sobrenatural é chamada de medo e o autor explica que “a emoção mais forte e mais
antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do
desconhecido (...)” (LOVECRAFT, 1987, p. 1). Todorov parte deste sobrenatural e do
natural para classificar a obra como maravilhosa ou estranha.
Resumidamente, a obra cujos acontecimentos aparentemente sobrenaturais são
explicados por leis naturais mesmo que tenham causado a hesitação fantástica , e/ou
medo, antes da explicação do fenômeno, faz parte do que o autor denomina como
fantástica-estranha. E a obra cujos acontecimentos aparentemente sobrenaturais não
podem ser explicados por leis naturais no decorrer da história é denominada fantástico-
maravilhosa. O estranho decide que as leis da realidade permaneçam intactas e
permitem explicar os fenômenos descritos, enquanto que o maravilhoso deve admitir
novas leis (TODOROV, 1975, p. 48).
O fantástico, como já dito, configura-se como o momento da hesitação da
personagem e do leitor e da decisão se o acontecimento depende ou não da “realidade”.
O puramente fantástico encontra-se na seguinte posição:
Quadro 1:
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Estranho Fantástico Fantástico Maravilhoso


Puro estranho maravilhoso puro

(TODOROV, 1975, p. 50)


Fantástico Puro
O fantástico puro, como demonstrado no quadro 1, “encontra-se entre o fantástico-
estranho e o fantástico-maravilhoso, ao mesmo tempo que se opta pelo estranho não
houve o fantástico, ou seja, “a arte fantástica ideal sabe se manter na indecisão” (VAX,
1960, p. 98).
Baseado nesta perspectiva voltemos à Alice. O primeiro ponto a ser tratado é a não
existência do acordo entre personagem e leitor perante o acontecimento inesperado. O
leitor pode ter hesitado, mas a personagem não: “Não havia nada de extraordinário
nisso; nem Alice achou assim tão estranho ouvir o Coelho dizer para si mesmo: - Ai, ai,
ai! Eu vou chegar atrasado!”(CARROL, 2005, p. 15), este foi o primeiro acontecimento
aparentemente estranho em que não houve hesitação por parte da personagem. E ainda
prossegue: “Quando ela se lembrou disso mais tarde, achou que deveria ter ficado
espantada, mas na hora achou tudo muito natural” (CARROL, 2005, p.16), aqui parece
que o narrador está mesmo tentando nos convencer de que não houve nada de absurdo
ou “não natural” no início da aventura de Alice.
O narrador prossegue ainda: “Mas quando viu o Coelho tirar um relógio de bolso do
colete, olhar as horas, e apressar o passo, Alice deu um pulo, pois passou pela sua
cabeça que nunca na vida tinha visto um coelho vestindo um colete, muito menos
usando um relógio (...)” (CARROL, 2005, p. 16). Agora temos uma situação pré-
fantástica, uma hesitação diante de algo, digamos, pouco corriqueiro para a personagem.
Daqui em diante as situações que ocorrem causarão certo espanto em Alice, que seguirá
até perto do fim cogitando e se questionando sobre os acontecimentos. Podemos dizer,
portanto, que a protagonista leva o tempo do início ao fim da história para optar entre o
estranho e o maravilhoso.
Todorov diz que “o fantástico leva, pois uma vida cheia de perigos, e pode se
desvanecer a qualquer instante” (TODOROV, 1975, p. 48); o teórico prossegue dando
exemplos de obras que seguiram nesta indecisão diante dos acontecimentos e que “uma
vez terminado o livro, compreendemos que não houve fantástico” (IDEM). Após
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mergulharmos nesta terra repleta de coisas e seres maravilhosos (criança que vira porco,
gato de desaparece, flores que falam, chapeleiro maluco) já nos convencemos,
automaticamente, do fantástico. Mas, como o gênero fantástico existe mesmo na
indecisão e na hesitação, Alice só nos revela o gênero da história que viveu quando a
história chega ao final:
“ – Acorde, Alice querida! – solicitou sua irmã. – Puxa, como você dormiu pesado!
- Nossa, tive um sonho tão esquisito! – contou Alice e relatou à sua irmã tudo o que
conseguia lembrar sobre essas aventuras que você acabou de ler.” (CARROL, 2005, p.
136). Assim, temos que concordar que se trata de um fantástico-estranho.

1.2 A Alegoria

É recorrente encontramos leituras psicanalistas sobre Alice no País das Maravilhas.


Em vários sites 1 aparecem opiniões dos estudiosos, e/ou amadores, desta área
abordando a alegoria sobre a infância, sobre a teoria de Sigmund Freud e outras tantas.
Entretanto, parto da resposta dada pelo professor e tradutor Nicolau Sevcenko em
entrevista a editora Cosac Naify sobre a sua tradução do clássico de Lewis Carrol:
O livro todo é uma alegoria sobre os mecanismos que sustentam
sistemas de poder e como desarmá-los. Eu sei que dizer isso soa
como uma aberração e parece extrapolar o universo de um livro
infanto-juvenil. Mas esse é o verdadeiro mistério pelo qual essa
obra é das mais lidas, traduzidas e admiradas da cultura
ocidental: ela comporta imensas ambivalências e cria uma
realidade limiar, que tanto pode ser entendida como uma fábula

1
Alguns sites em que encontramos algumas destas visões:

http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:FrE6yoQT8wUJ:jorge-
leberg.livejournal.com/4729.html+Alice+%2B+alegoria+da+inf%C3%A2ncia&cd=3&hl=pt-
BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-a

http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:QTXqP3ULUkgJ:revistaepoca.globo.com/Edit
oraGlobo2/Materia/exibir.ssp%3FmateriaId%3D132370%26secaoId%3D15220+Alice+%2B+alegoria+da+
inf%C3%A2ncia&cd=9&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-a

http://www.bocc.uff.br/pag/bocc-publicidade-pimentel.pdf
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para jovens, quanto como uma das mais percucientes alegorias


políticas (SEVCENKO, 2009, grifo meu)

Sem a pretensão de tentar desmerecer o comentário do professor, nem este é o objetivo


do trabalho, pergunto: se o livro é todo uma alegoria, qual é o espaço do fantástico e
como as alegorias devem ser tratadas, de acordo com a teoria abordada aqui de
Todorov?
Alegoria é uma proposição de duplo sentido, mas o sentido que desta proposição lhe
era convencional foi apagado inteiramente, ou seja, “falando em termos simples, a
alegoria diz uma coisa e significa outra diferente” (FLETCHER, 1964). Todorov (1985)
segue explicando que a alegoria deve ser explícita, ou seja, não deve depender da
interpretação de um ou outro leitor e é neste ponto que ‘mora o perigo’, alegoricamente
falando.
Se quando lemos uma obra e nos deparamos com uma hesitação diante de um
acontecimento sobrenatural e este acontecimento exige que nós leitores tomemos as
palavras em um outro sentido que não o literal, “não há mais lugar para o fantástico”
(TODOROV, 1985, p. 71). Ora, dizer que Alice no País das Maravilhas é uma alegoria
pura é o mesmo que dizer que se trata de uma fábula, já que este é, segundo o autor, o
gênero em que o primeiro sentido tende a desaparecer por completo e implica, também,
desmerecer todo este trabalho.
Dizer que o livro é uma alegoria inteira disso ou daquilo é desmerecer o seu valor, já
que a “alegoria explícita é considerada subliteratura” (TODOROV, 1985, p. 74). O
fantástico deve dar o direito de o leitor não se preocupar com o sentido alegórico e
descobrir outro completamente diferente em que haja o fantástico, por exemplo, já que a
hesitação fantástica “se situa ao nível do sentido literal” (TODOROV, 1985, p. 75).
Podemos encontrar alegorias dentro da obra, mas não se pode falar delas sem que se
encontrem indicações muito claras, tampouco, então, se deve apontar o livro como uma
grande fábula sem que também haja indicações explícitas. “Senão passa-se à simples
interpretação do leitor; por conseguinte, não existiria mais texto literário que não fosse
alegórico (....)”(TODOROV, 1985, p. 81). E ainda, a literatura não pode ser um meio de
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resolver problemas que existem fora dela e traduzi-los independentemente, afinal isso
seria, mais uma vez, diminuir a literatura. (TODOROV, 1985, p. 118).

1.3 O Discurso Fantástico

Continuo a análise parafraseando, mais uma vez, o teórico em estudo: nem toda
ficção e sentido literal está relacionada ao fantástico, mas a recíproca é verdadeira (
TODOROV, 1985, p.84). Isto é, o sobrenatural que provoca o fantástico surge com
freqüência de tomarmos o sentido figurado ao pé da letra. Assim o maravilhoso realiza a
união entre o crer e o não crer no que se diz, ou seja, propõe a nós leitores que
acreditemos sem acreditar realmente e resolve o dilema provocado pelo fantástico.
Vale afirmar ainda, conforme visto, que “não há um fantástico fechado, porque o que
dele conseguimos conhecer é sempre uma parte e por isso o julgamos fantástico.”
(CORTÁZAR, 1993, p. 178), assim não deixamos de chamar uma obra de fantástica por
decidirmos que ela pertence ao gênero “estranho”, quando terminamos de ler. Em Alice
ocorre o que chamamos, e já discutimos, de fantástico-estranho, que nos deixa apenas
no estranhamento que é, ao fim, explicado por razões naturais, ou seja, Alice estava
sonhando. Mas isso não invalida todo o discurso utilizado até chegar ao estranho.
O narrador mais propenso, segundo Todorov, ao fantástico, sem desmerecer nenhum
outro, é aquele que é também personagem, um “homem médio” em que todo leitor pode
se reconhecer, pois assim submeteríamos a sua narrativa, diante do sobrenatural, à
verdade 2, afinal como narrador não duvidaríamos das suas palavras, mas enquanto
personagem ele pode estar mentindo. Como o fantástico exige a dúvida este narrador-
personagem esta configuração narrativa estaria muito propícia ao fantástico, pois se o
narrador é apenas observador 3 nos atira direto para o fantástico sem espaço para a
hesitação.
Mas o narrador do clássico em foco constrói algo inusitado. Parece ser aquele tipo de
narrador observador que nos faz transportar diretamente para o maravilhoso: “Alice

2
Verdade aqui usada dentro da obra, pois “toda literatura escapa à categoria do verdadeiro e do falso”
(TODOROV, 1985, p. 91)
3
Aquele que conta a história em terceira pessoa fazer parte do elenco de personagens.
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estava começando a se cansar de ficar sentada ao lado de sua irmã, sem nada pra fazer, à
beira do riacho”(CARROL, 2005, p. 15).
O narrador conhece muito da história e até dos pensamentos da personagem, como
um bom narrador observador que tudo sabe e tudo vê, soberano:
Alice abriu a porta e viu que ela dava para uma pequena
passagem, não muito maior que um buraco de rato. Ela se
ajoelhou, deu uma espiada lá dentro, e viu um jardim. Era o
jardim mais gracioso que já se viu! Ah, como ela gostaria de sair
daquele salão escuro e passear naquele jardim, por entre os
canteiros de flores e fontes de água fresca... Mas como é que ela
iria atravessar aquela porta tão pequena, que mal dava para
passar a cabeça? (CARROL, 2005, p. 19)

Porém, esse narrador que se espera que nos jogue diretamente para o maravilhoso, ao
final surpreende por revelar o estranho a partir do processo já comentado anteriormente.
O discurso fantástico presente na obra é composto - ademais do narrador, do sentido
literal e da construção do estranho - de elementos, isto é, temas fantásticos, cujos temas
está ligado principalmente ao domínio do olhar. Ou seja, entendemos o que se passa no
país das maravilhas a partir do que Alice vê, os elementos sobrenaturais são
acompanhados pela introdução de algo que ela está vendo.
Stephen King, em Dança Macabra (2003), comenta sobre a visão na narrativa de
horror: “O horror também gera uma reação física, para nos mostrar que algo está
fisicamente errado” (2003, p.30). Nesse sentido é que afirmamos que Alice traz muito
de anormalidades e monstros como é o caso da criança que se transforma em porco:
E olhou novamente para os olhos dele para ver se havia
lágrimas. Mas não havia.
Se por acaso você estiver se transformando num porco,
queridinho – disse a menina, seriamente - não vou querer mais
nada com você. Tome cuidado!
A pobre criaturinha soluçou novamente (ou grunhiu, porque era
impossível distinguir), e depois ficaram em silencio por um
tempo. [...] Desta vez não havia mais dúvida nenhuma: a
criatura era mesmo um porco (CARROL, 2005, p.72).

Quando chegamos ao fim da narrativa, somos tranqüilizados pela informação de que


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Alice estava sonhando, somos conduzidos junto com ela para a segurança da “realidade
conhecida”, no entanto o país das maravilhas continua ecoando em nossa sensibilidade e
hesitamos, ainda, entre acreditar ou não que aquele sonho acabou. Talvez a recorrência
das leituras e releituras da Alice na cultura contemporânea esteja nos dizendo sempre
que o aquele sonho das maravilhas de Alice, na verdade, não acabou.

Conclusão

Diante da discussão estabelecida, resta justificar o título do trabalho “O Fantástico


Fantasioso”. A abordagem foi feita sobre o fantástico, mas diante da leitura do livro de
Todorov, Alice no País das Maravilhas parecia não ser um livro fantástico, ledo engano.
A partir da aplicação das explicações e delimitações do fantástico na obra de Carrol
percebemos que, embora o fantástico parecesse estar fantasiado ou fosse fantasioso
(imaginação livre), é sim uma obra fantástica, estranha, mas fantástica e, por isso, o
fantasioso do título passa a ser tomado como relativo à fantasia, ou seja, duplamente
fantástico: “Fantástico” de Todorov e “Fantasia” de Alice.
Mas vale lembrar aquilo que já enfatizou Todorov: o objeto de predileção da
interpretação “é a obra em particular; o que interessa ao crítico não é o que a obra tem
em comum com o resto da literatura, mas o que tem de específico”(1985, p. 151).
“A literatura fantástica é como um terreno estreito, mas privilegiado a partir do qual
se podem levantar hipóteses convincentes à literatura em geral” (1985, p. 163) e foi
esta, também, uma das tentativas deste artigo, não generalizá-la por enquadrá-la na
teoria de Todorov, mas abrir novos caminhos à arte literária em geral.
Alice no País das Maravilhas se utiliza de um discurso fantástico para chegar ao
fantástico-estranho, além de todos os demais elementos já apontados muito freqüentes
em obras fantásticas em geral. Não é uma grande fábula! Possui a sua importância e
valor dentro do terreno da literatura fantástica!
Por fim,
a realidade do mundo se apresenta a nossos olhos múltitpla,
espinhosa, com estratos densamente sobrepostos. Como uma
alcachofra. O que conta para nós na obra literária é a
possibilidade de continuar a desfolhá-la como uma alcachofra
infinita, descobrindo dimensões de leitura sempre novas
(CALVINO, 2007, p.210),

Assim, depreendemos dessa análise que a arte literária é versátil e nos oferece inúmeros
caminhos para percorrer, surpresas, descobertas e maravilhas, da mesma forma
vivenciada por Alice naquele estranho país que percorreu.
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Referências
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? Trad. Nilson Moulin. São Paulo, Companhia
de Bolso, 2007.
CARROL, Lewis. Alice no país das maravilhas: Trad. MEIRA, Márcia Feriotti. São
Paulo, Martin Claret, 2005
CORTAZAR, Júlio. Valise de Cronópio. Trad. JR, Davi Arrigucci; BARBOSA, João
Alexandre. São Paulo: Perspectiva, 1993.
DEORSOLA, Lívia. Alice, nossa heroína e inspiradora. Disponível em: <
http://editora.cosacnaify.com.br/ObraEntrevista/10169/20/Alice-no-Pa%C3%ADs-das-
Maravilhas.aspx>, acesso em: 29, out, 2010.
FLETCHER, A. Allegory. Ithaca, Cornel University Press, 1964.
KING, Stephen. Dança Macabra, Trad. IBAÑEZ, Louisa. Rio de Janeiro, Objetiva,
2003
LOVECRAFT, Howard Phillips. O Horror Sobrenatural na Literatura: Trad. LINKE,
João Guilherme. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1987.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica: Trad.CASTELLO, Mario
Clara. São Paulo, Perspectiva, 1985.
VAX, L. L’art et al Littérature fantastiques. Paris, P.U.F., 1960
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A DIÁSPORA SIMBÓLICA NO ROMANCE LUEJI, DE PEPETELA 1

Ana Claudia Duarte Mendes (PG-UEL- UEMS)

O presente trabalho busca fazer uma reflexão acerca da diáspora presente no


romance Lueji, de Pepetela, publicado em Angola, pela Associação dos Escritores
Angolanos, em 1989. Artur Carlos Maurício Pestana do Santos tornou-se, durante a
guerrilha, Pepetela, palavra de origem umbundo, que significa pestana (CHAVES;
MACEDO, 2002). O romancista, nascido em Angola, comprometido com as questões
ideológicas que envolvem o projeto de construção de uma identidade angolana, nas
palavras de Adolfo (1992), “Para Pepetela não é a diferença que está em foco e sim a
semelhança. Suas obras destinam-se a resgatar e firmar uma identidade nacional
angolana, e para tanto o círculo deve ser alargado até para além das fronteiras
angolanas.” (p. 162).
Podemos perceber essa perspectiva do autor no romance em questão, ao destacarmos
a narrativa da trajetória da personagem Lu, moradora da cidade de Luanda, capital de
Angola, e bailarina, que encontra no mito da Rainha Lueji inspiração para a criação e
produção de um bailado, espetáculo de dança. Nesse processo, no qual a personagem Lu
estuda, aprende e rememora as músicas, as danças, os ritos e tradições do povo da
Lunda, região na qual Lueji reinou, ocorre uma nova identificação, conforme Hall
(2005) conceitua ao afirmar que não há possibilidade de uma identidade única, uma vez
que transitamos por grupos sociais distintos, e no caso dos habitantes de Luanda, por
culturas distintas, e Lu, em especial, não apenas no presente, mas distante no tempo e
espaço.
Compreendendo que a personagem não voltará a ser igual aos seus ancestrais, uma
vez que aquela sociedade não existe mais, mas que sua identidade tende a ser
reconstruída e amalgamada, a partir da memória coletiva, que se guardou e se manteve

1
Trabalho orientado pelo professor Doutor Sérgio Paulo Adolfo.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
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viva, de acordo com Halbwachs (2004), a partir de suas lembranças ligadas às narrativas
das lendas e mitos contados por sua avó materna. Nas palavras de Lu:

E falou de Lueji, porque a foi buscar ao fundo dos tempos para firmar
raízes e a amparar e como pensava dançar a rainha do seu coração e
como as versões se transformavam por influência da música de
marimbas e do lago que criara em sonhos acordados. (PEPETELA,
1989, p. 311)

Na cultura bantu, da região da Lunda, as ligações de parentesco são dadas pelo


sistema matrilinear, a ligação de Lu com a avó é reforçada por essa característica, apesar
de ser filha de pai branco, ela pertence ao grupo social da mãe. A procura de identidade
no romance dar-se-á no sentido do encontro com as tradições ainda vivas na memória
coletiva de seu grupo social familiar, em confronto com a do grupo a que pertence em
Luanda. Esse processo permeia a produção da narrativa e liga os elementos que
constituem o romance.
O recorte que empreendemos nesse trabalho, centra-se na personagem Lu, por esta
apresentar, de forma simbólica e real, a questão da diáspora, no sentido em que estamos
compreendendo a questão. Pensamos nessa possibilidade de análise por considerarmos a
trajetória da personagem Lu em seu deslocar: no tempo – em busca da ancestralidade –
e no espaço geográfico, de identificação ancestral.
Para compreender melhor a questão da diáspora no espaço, evocamos brevemente
estudos que abordam a questão da formação mesmo do território, que ora chamamos de
Angola, pois de acordo com Adolfo (1992):
Como dissemos um pouco atrás ser angolano não é nascer em Angola,
pois Angola não é uma criação angolana e sim uma criação portuguesa.
Assim como os portugueses inventaram o Brasil, inventaram também a
Angola, delinearam-lhe fronteiras, marcaram território, fortificaram-lhe
defesas através da luta, da pirataria, da exploração, levaram àqueles
povos uma maneira de ser lusitana, uma nova língua, novos hábitos,
uma nova maneira de sentir. Durante os séculos XVI, XVII e XVIII a
metrópole manteve-se no poder através da exploração mineral, das lutas
internas, do tráfico de escravos. (p. 159)

A construção da identidade angolana é um tema recorrente na obra de Pepetela, e


suas ramificações são muitas, apresentaremos apenas um esboço do problema, com a
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finalidade de melhor olhar para o romance que ora analisamos, e não pretendemos
aprofundar, em tão curta comunicação, as consequências da presença portuguesa em
Angola, que apresentaremos em linhas gerais, apenas para situar a questão da diáspora
no romance, não se constituindo nosso objetivo nesse trabalho.

1. Deslocar no espaço: o território

A personagem Lu vive na cidade de Luanda, veio de Benguela para a capital de


Angola ainda menina para estudar dança. Efetua aí o primeiro deslocamento, e adentra
na cidade que, segundo Macedo (2008) “conquista seu visitante” ao primeiro olhar, por
sua beleza natural inquestionável, mas que não deixa de ter ainda as marcas do
colonizador, “presentes em suas ruas e edifícios”, a denunciar a história da ocupação e
exploração de seu território. “Trata-se, como se pode inferir, de uma cidade do Terceiro
Mundo com profundas contradições, já que o diferencial entre os ganhos da população
mais rica e os da mais pobre chega a 37 vezes!” (2008, p. 13)
A pesquisadora continua a descrição de Luanda e aponta outro dado importante para
o nosso trabalho acerca da identidade de Lu, a questão dos moradores de Luanda, pois
segundo Macedo: “A maior parte da população do país aí vive (cerca de um quarto os
12 milhões de angolanos)” (2008, p. 14), pressupomos que de todas as etnias, os
mestiços como Lu, além dos que vieram de outros países.
Ainda na perspectiva da discussão acerca da construção da identidade de Lu, como
habitante de Luanda, consideramos pertinente apontar, também no caso da personagem,
o conceito de tradução, descrito por Hall:
Pois há outra possibilidade: a de Tradução. Este conceito descreve
aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as
fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para
sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus
lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao
passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que
vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder
completamente suas identidades. (2005, p. 88) [grifo do autor]
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O conceito de tradução, exposto acima pelo teórico, abarca as identidades que devem
ser constituídas pelas populações que sofreram com o deslocamento de seu território,
principalmente, as que foram arrancadas de seu país. Mas, ao observar as condições de
Luanda, uma cidade constituída pela diversidade cultural, não podemos deixar de
imaginar que lá ocorre a mesma necessidade de se negociar o tempo inteiro com as
culturas e deste fazer resultar uma nova identidade.
Devido aos deslocamentos de populações do interior do país, somados a todos os
tipos de migrantes, descendentes destes, enfim, consideramos que a proposta de
construção de identidade complexa, permeada por todas as contradições que
pressupomos existir em Luanda.
Estamos apenas imaginando uma parte da questão ao pensarmos as condições da
capital, mas segundo Luansi (2010), a separação arbitrária dos povos, pelo
estabelecimento de fronteiras, primeiro pelo colonizador, depois por acordos
internacionais, que não respeitaram os “Estados precoloniais (nações étnicas) que foram
constituídos ao longo de vários séculos de movimentos migratórios bantu”, torna a
questão da unidade de Angola um problema de difícil solução.
Mas voltemos novamente a atenção para a questão da diáspora no romance. Na
primeira aparição de Lu, na página 26, a moça caminha apressada e já a encontramos
envolta no mistério da Lunda, e no projeto indefinido que a persegue, a criação do
bailado:
Lu as tinha de outra ordem. Raramente pensava no próximo ano 2000.
Ouvia música indefinida de marimbas, procurava algo desconhecido em
livros sobre a Lunda, só porque a avó viera de lá para Benguela e
encheu a infância dela de lendas e estórias de feitiços, cuidado menina,
teu pai não acredita porque é branco, mas eu vi muita coisa, vivi muito,
sabedoria antiga, não despreza só. (PEPETELA, 1989, p. 27)

A partir do fragmento podemos perceber que a personagem já nos é apresentada em


sua condição de diáspora, pois nascida em Benguela, tem tradições ancestrais ligadas,
pelo lado materno, à Lunda, e habita atualmente Luanda. Esse seu deslocar é um dos
muitos que sofreram a população do território.
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Este processo de deslocamentos, no território que hoje conhecemos como Angola,


não é novo, e foi caracterizado por uma fluidez e mudanças motivadas por vários
fatores, como a fome, a guerra, por deslocamentos individuais ou em grupamentos. Sem
contar com o tráfico de escravos que, se já existia antes dos portugueses, “se reverteram
numa hemorragia extraordinária de dezenas de milhões de pessoas que saíram
compulsoriamente do continente africano como escravizados, para nunca mais voltar.”
(MOORE, 2008, p. 13) [grifos do autor]
Pelas palavras do pesquisador podemos compreender que após a invasão colonial
houve um agravamento no processo, compreendendo agora não apenas a perda de
território por deslocamentos por motivos internos, mas o processo de perda da posse da
terra mesmo, que se dá a partir da ação do colonizador. Ao apropriar-se da terra,
intitula-se proprietário e os nativos passam a ser submetidos ao regime de governo.
É importante notar também a dimensão de nação que perpassava o
império português como um todo: os territórios ultramarinos eram
vistos não só como pertencentes ao império, mas também à nação
portuguesa. A desterritorialização da nação permitia estender a todos os
súditos do ultramar a condição de cidadãos portugueses. Os indígenas,
ao mesmo tempo em que eram vistos como deficitários em relação aos
metropolitanos em termos de evolução, e eram, portanto, relegados a
uma posição hierárquica inferior, eram considerados parte do povo
português. Caberia aos europeus promover seu progresso para elevar o
nível moral e intelectual do império como um todo. (DULLEY, 2010,
p.1)

Segundo a autora, no processo de perda do território, os habitantes da terra, que se


organizavam em reinos distintos e com fronteiras diversas das adotadas pelo
colonizador, passam a ser submetidos ao poder colonial. O projeto de evangelização é
um dos instrumentos importantes nesse processo de dominação, a produção de
conhecimento acerca do universo simbólico e da língua, para melhor evangelização, e
também o ensino da língua portuguesa, fazem parte do plano para unificação do
território.
A questão da unidade do império, a partir do ensino do idioma é uma das políticas
que propiciariam sua consolidação, vinha ao encontro de uma política de assimilação da
população. De acordo com Dulley (2010), a ação dos padres na catequização e
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construção dos dicionários da língua Umbundu, foi importante para a separação, a partir
de bases linguísticas, da língua em diferentes dialetos, o que fomentou ainda mais
divisões entre as etnias.
A questão da língua nos interessa apenas para apontar mais essa dificuldade na
construção da identidade, na condição de diáspora da personagem Lu, que fala
português, mora em uma cidade em que as diferentes línguas e dialetos convivem nas
ruas. Esses elementos nos ajudam a perceber que, apesar do deslocamento espacial não
significar deslocamento no sentido de mudança de país, Lu está relativamente longe de
seu local de pertencimento ancestral.

2. Deslocar no tempo: o mito


Consideramos esse deslocamento no espaço significativo para o nosso trabalho, mas
há outro, o deslocamento no tempo, na busca dos sons das marimbas (instrumento
musical típico da região) que tocam em sua consciência despertando a memória
ancestral, Lu parte na produção do bailado e encontro com Lueji. Mito esse que desenha
de acordo com seu próprio percurso, ou desejo, conforme afirma, ao discutir com o
historiador Herculano a versão construída por ela para o bailado:
- Não usámos metodologia nenhuma – disse Lu. – Não nos interessam
as metodologias.
- E depois querem fazer obra científica...
- Ninguém pretendeu fazer obra científica. Para isso são os cientistas.
Nós somos artistas. Eu li uma série de livros. E tu sabes bem, porque
mos indicaste. Ora, as versões são contraditórias, como disseste. São
ideológicas? Tudo certo. Então, não tenho o direito, eu também, de
inventar a minha própria versão? Quem te garante que é mais falsa que
a que tu escreverias? A tua também seria ideológica... (PEPETELA,
1989, p. 376)

Nesse diálogo, podemos perceber que o mito é construído no romance, a partir da


história de Lueji, e seu sentido discutido entre as personagens, o narrador explicita as
diferentes opiniões e discursos acerca das crenças e do fazer dos grupos sociais. E nos
informa que a narrativa que lemos é uma das muitas versões possíveis do mito. Estamos
entendendo mito a partir dos estudos de Eliade, que considera que
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A função mais importante do mito é, pois, “fixar” os modelos


exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas
significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação, etc.
(2008, p. 87)

A partir da ideia de um modelo exemplar, começamos a pensar o desenvolvimento


da trama que enreda a personagem Lu. Conforme avançamos na leitura do romance
mais se observa que o narrador nos coloca diante da questão da atualização do mito,
tanto no plano de conteúdo quanto no plano estético, no desdobramento da narrativa.
Uma vez que, segundo Eliade:
O Tempo de origem de uma realidade, quer dizer, o Tempo
fundado pela primeira aparição desta realidade, tem um valor e
uma função exemplares; e por essa razão que o homem se esforça
por reatualizá-lo periodicamente mediante rituais apropriados.
Mas a “primeira manifestação” de uma realidade equivale à sua
“criação” pelos Seres divinos ou semi-divinos: reencontrar o
Tempo de origem implica, portanto, a repetição ritual do ato
criador dos deuses. (2008, p. 76) [grifo do autor]

Essa atualização do mito, em que se tem a repetição do fazer, o rito como ato criador,
é apresentada a partir da construção do bailado, mas não fica apenas nessa condição. Há
o desdobramento dessa atualização no plano do conteúdo da história narrada e na forma
da narrativa.
No plano na narrativa, esse enredar, que atribuímos ao narrador, vai acontecendo
gradativamente, pois se no início do romance há a demarcação exata do tempo,
separando a história de Lueji e de Lu, que são contadas em paralelo, como indica os
títulos dos primeiros dois capítulos: “quase quatro séculos atrás (pelo menos)...” na
página 9, no qual encontramos Lueji, e na página 26: “Quatro séculos depois
(amanhã)...” que marca o início da história de Lu.
No decorrer da narrativa essas marcas vão se esgarçando, conforme a personagem se
apropria da história da ancestral, tornando nítida a construção do bailado, a narrativa
perde as marcas de separação dos tempos, que gradativamente vai se amalgamando,
pois o que no início era separado por capítulos, passa a ser por parágrafos, e depois não
há nem essas divisões, o narrador na mesma frase une os tempos. Podemos perceber um
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exemplo desse procedimento no fragmento abaixo, quando lemos a narrativa da viagem


de Lu a Benguela, para visitar a avó doente e, nesse mesmo momento da narrativa,
Mussumba, a sede do reino de Lueji, vive a expectativa da guerra com Tchinguri, que
ataca as terras de seus inimigos:
E a velha kimbanda partiu na carrinha do pai. Lu foi telefonar para
reservar lugar no avião, ainda podia ganhar o dia de hoje para o seu
trabalho, era preciso começar a contar os dias, os quais foram passando
e cada um trazia um mujimbo a confirmar a estratégia de Tchinguri.
Arrasou as terras de Kakolo e pouca gente pôde se salvar. (PEPETELA,
1989, p. 320)

Dessa forma, no plano estético o narrador rompe com as marcas que separavam as
histórias narradas. Esse fragmento acima é rico, pois no mesmo momento em que Lu é
chamada a viajar a Benguela, para a casa do pai, pois a avó se encontra doente e a
própria Lu encontra-se passando por atribulações também. Essa passagem não apenas
ilustra o rompimento da narrativa no plano estético, conforme apontado acima, mas há
mudança no plano de conteúdo, como veremos.
No plano do conteúdo, Lu avança na construção do mito e o atualiza, e assim,
também gradativamente vai se misturando a ele. O tempo ganha outra configuração,
com a demarcação esgarçada apontada acima, e assim como a história passa a não ter
marcas de separação narrativa, a vida de Lu aproxima-se da de Lueji.
No fragmento abaixo encontramos o exemplo do início desse procedimento, quando
Lu não tinha claro ainda como seria o bailado, e todas as coisas começavam a dar
errado, até sua amizade foi comprometida com Uli e Marina, e a apresentação do
bailado que estavam ensaiando fora cancelada, ela começa a considerar, ainda não de
forma totalmente séria:
Espíritos? Quem sabe os seus males não vinham daí. Disparate, agora
vou virar feiticista? Havia no entanto coisas estranhas. Estórias que a
avó contava e que nada podia explicar. (PEPETELA, 1989, p. 165)

Mas quando Lu, mais adiante, compunha uma passagem do bailado, imaginando a
cena a ser dançada, na qual Lueji está envolta pelos espíritos, em angústia, e a emoção
necessária para a criação e interpretação da rainha a esgota, Lu reflete:
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Esta cena ainda me mata. Mas é essencial, não dá para fugir. Sou eu ou
Lueji? Se a vou dançar, ela sou eu, pois é minha criação. Não é peso
demais criar uma Lueji? Eu? Tão fraca e sem espíritos protectores?
Inútil tentar escapar, só na minha fraqueza posso encontrar a força. E
nela. (1989, p. 169)

Nesse fragmento, percebemos sutilmente a influência do mito a dar segurança a


personagem Lu, que se apoia no modelo a ser seguido para ter força para superar os
obstáculos e compor o bailado. Se o mito é o modelo exemplar e o homem o busca para
entender-se no mundo, para viver mais plenamente, esse procedimento passa a ser
seguido pela personagem.
Nesse sentido, ocorre gradativamente a alteração do comportamento, que se
completa com a passagem em que Lu parte para Benguela, ao encontro da avó e de suas
tradições. Ao romper a distância física que a separa da avó doente, a encontra com tia
Augusta, uma kimbanda, curandeira, que mora em Catumbela, também descendente da
Lunda, e que ao vê-la diz a ela e a avó que tem um cazumbi, um espírito, atrapalhando a
vida da moça, e que foi acordado pela própria Lu, ao ir mexer com coisas antigas, ódios
antigos. A Kimbanda faz as rezas queimando ervas no fogareiro:
Lu despediu das duas velhas, muito tonta, os olhos ardendo, mas
estranhamente calma. Nunca acreditara nessas coisas, mas dava para
duvidar? Segredos antigos. Precisava acreditar agora, acalmar os
nervos, ganhar coragem de continuar. Mesmo se depois risse dela
própria. Segredos antigos não dão para desprezar. (1989, p. 313)

Por esse fragmento, após o qual ocorre não apenas a melhora física da avó, uma vez
que seus males provinham do espírito que perturbava a neta, mas a disposição de Lu
também muda, percebemos a tradição começando a ditar os caminhos da personagem.
Lueji surge assim mais forte, conforme avança a narrativa, e as decisões que esta precisa
tomar na construção da estória, que Lu está contando.
Ora, apesar do Lueji ser um bailado moderno a partir da dança
tradicional, precisava da base clássica para a dança de pares. Aí estava o
mambo e já a Directora se arrependia da sua ideia. E Lu apertava o
amuleto e invocava a centavó, ajuda-me que isto é o mais difícil de
tudo. (PEPETELA, 1989, p. 429)

A evocação da centavó e a certeza da ajuda desta para desfazer os problemas, que


atrapalham a realização do bailado, passam a estar presentes na atuação de Lu. A
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narrativa de Lu funda outra vez a história de Lueji, e esta ao ser representada ganha
força, passa a ser a verdade do bailado,
O mito é pois a história do que se passou in illo tempore, a narração
daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do
Tempo. “Dizer” um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma
vez “dito”, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica:
funda a verdade absoluta. (ELIADE, 2008, p. 84)

Ao contar novamente a versão da história de Lueji, criou-se uma nova realidade, o


narrador atualiza pela forma e conteúdo a verdade do mito. Nesse procedimento, funda
uma nova identidade para Lu, na qual justapõe a atual e a tradicional, unindo tempo e
espaço que pareciam intransponíveis.
O mito de Lueji auxilia na composição de uma identidade mais unificada, a
personagem não deixa de ser a bailarina moderna, mas dança e representa o mito,
unindo visões de mundo, que não precisam ser dissociadas. É possível a convivência
entre a tradição e a modernidade, talvez seja a síntese que o romance pretenda construir
em termos ideológicos.

Referências

ADOLFO, Sérgio Paulo. A ficção de Pepetela e formação da angolanidade. Assis,


1992. 187 p. Tese (Doutorado em Letras) Faculdade de Ciências e Letras –
Universidade Estadual Paulista.
CHAVES, Rita; MACEDO, Tania. (Org.) Portanto... Pepetela. Luanda: Chá de
Caxinde, 2002. v. 01.
DULLEY, Iracema. Suku Onganga – divindade traduzida em feitiçaria e missionação
no colonialismo português em Angola, disponível em:
<http://www.ifch.unicamp.br/ihb/Textos/GT48Iracema.pdf>, acesso em: 15, mar, 2010.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad.
FERNANDES, Rogério. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. BENOIR, Laís Teles. São Paulo:
Centauro, 2004.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. SILVA, Tomaz Tadeu
da; LOURO, Guaracira Lopes. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
LUANSI, Lukonde. Angola: movimentos migratórios e estados precoloniais –
identidade nacional e autonomia regional, disponível em:
<http://www.zmo.de/angola/Papers/Luansi_(29-03-04).pdf>, acesso em: 20, mar, 2010.
MACEDO, Tania. Luanda, cidade e literatura. São Paulo: Editora Unesp; Luanda
(Angola): Nzila, 2008.
MOORE, Carlos. A África que incomoda: sobre a problematização do legado africano
no quotidiano brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
PEPETELA. Lueji, o nascimento de um império. Porto – Portugal: União dos Escritores
Angolanos. 1989.
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LETRAMENTO CRÍTICO, MULTIMODALIDADES E ENSINO DE


LITERATURA DE LÍNGUA INGLESA: ANALISANDO THE TAMING OF THE
SHREW

Ana Paula de Castro Sierakowski (PG - UEM)

Introdução
É inegável que exista uma grande diversidade de temas na obra de William
Shakespeare. Diante dessa variedade, muitas adaptações de suas obras foram realizadas,
tanto no que se refere à forma literária convencional, ou seja, o texto escrito, quanto às
outras formas semióticas de apresentação de uma obra literária, como os filmes. Nesse
sentido, pode-se considerar a obra shakespeariana como uma das fontes canônicas mais
adaptadas atualmente. Além disso, sua obra é, muitas vezes, base para o estudo de
língua e literatura estrangeira. Nesse contexto, o governo do Estado do Paraná,
concernente à Língua Estrangeira Moderna, adotou, na rede pública de ensino, um livro
didático contendo uma unidade completa tratando da comédia The Taming of the Shrew
(A Megera Domada), de William Shakespeare e uma das suas adaptações para o cinema
Ten Things I Hate About You (10 Coisas que eu Odeio em Você) (1999), do diretor
estadunidense Gil Junger.
Assim, este trabalho tem por objetivos: a) verificar se a unidade didática está em
consonância com o ensino de línguas norteado pelo letramento crítico; b) observar como
a peça shakespeariana se relaciona com sua adaptação fílmica; c) averiguar a circulação
da literatura de língua estrangeira em contextos escolares brasileiros, especialmente em
suas formas multimodais, já que a literatura aqui circula também no meio
cinematográfico.

1. Revisão Teórica
Adaptações de obras canônicas é algo comum em nossa sociedade, no entanto, por
muito tempo tomaram-se adaptações por obras de segundo plano, como algo de menor
valor, uma vez que poderiam “deturpar” a obra dita original. Todavia, o próprio
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Shakespeare, de certa forma, adaptou muitas de suas peças, partindo de um enredo pré-
existente e desenvolvendo suas próprias estórias. Assim, para base teórica sobre
adaptação/tradução e multimodalidades tem-se Clüver (1997), Diniz (2003), Amorim
(2005), além de (2006), Kleiman (1995), Cervetti, Pardales & Damico (2001), Jordão
(2003), para dar suporte aos estudos de leitura e letramento crítico.
Os termos adaptação e tradução por vezes se confundem. Muitos autores consideram
a adaptação como um texto que carrega em si uma mudança do texto original e a
tradução como um texto em que busca reproduzir em outra língua o conteúdo e a forma
do texto original (AMORIM, 2005). Contudo, tais conceitos variam de acordo com um
autor ou outro.
Nesse artigo, o processo tradutório é entendido como aquele que não deve ser
concebido apenas como um processo em que um texto original é transformado em outro
em outra língua, e que o resultado da tradução tem de ser fiel ao original, mas deve ser
entendido como aquele em que o texto de origem e o texto alvo são signos um do outro.
Nesse viés, a tradução também é tida como um processo de transformação do texto
fonte e ainda, mais importante, estabelece-se uma referência entre ambos os textos em
que suas relações evidentes ou não expressem um tipo de reconhecimento de um texto
como signo do outro (DINIZ, 2003; p.13). Desse modo, o teor semântico de tradução
assemelha-se com o de adaptação ─ mais comumente usado como aquele que transmuta
um texto; não importa que mudanças sejam feitas, contanto que possam se estabelecer
relações entre o texto original e o adaptado/traduzido.
Levando em conta tradução como textos pertencentes ou não à linguagem verbal ou
como transposições de um texto literário pode-se dizer que os filmes também são uma
forma de tradução. Clüver (1997) e Diniz (2003) trazem o conceito de tradução ou
transposição intersemiótica, que é aqui entendido por multimodalidade, uma vez que
consideram-se outros modos de representação de um texto, mudam-se os códigos e os
meios de significação do texto original, em outras palavras, passa-se da linguagem
verbal, escrita no papel, para a imagem, o áudio-visual. Então, entendem-se as
adaptações fílmicas como uma das formas multimodais de se apresentar um texto
literário.
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Tendo em vista as tendências de uma época e a idiossincrasia de um tradutor, uma


obra pode ser adaptada o mais fielmente possível à obra original ou “modernizada”. E é
isso que acontece em Ten Things I Hate About You, uma vez que toda uma nova
construção é feita para representar o conflito da peça shakespeariana. Transforma-se a
peça que se passa mais ou menos no século XVI para um filme situado no contexto do
século XX, transpondo-se uma Katherina de um ambiente misógino e patriarcal para
uma Kat feminista em um contexto escolar adolescente que prima pela popularidade
entre as “tribos”.
Muito mais que a “vontade” individual de um tradutor, das tendências de uma época,
tem de se considerar também o público a quem se destina a obra adaptada. Em Ten
Things I Hate About You, fica evidente que a reinvenção da peça de Shakespeare, de
uma peça teatral do gênero comédia, para um filme do gênero comédia romântica, se
direciona ao público adolescente. Reinventando Shakespeare para um gênero e um
contexto mais próximo ao público jovem, a transposição intersemiótica poderia ser um
fator de resgate da curiosidade pela obra literária da qual o filme se inspirou - não que
esse tenha sido o objetivo do filme. Além disso, tem-se a credibilidade que se impõe de
um escritor como Shakespeare, defendido pelos puristas como ícone do cânone literário.
Mesmo que no filme não haja a indicação explícita de que tenha sido inspirado ou
baseado na peça shakespeariana, há inúmeras referências ao dramaturgo no desenrolar
do enredo. Assim, confere-se ao autor da obra de origem um tipo de autoridade que
pode ser colaboradora do sucesso da obra adaptada.
Apesar das críticas, deve-se entender que a obra adaptada é uma obra independente e
que muitas adaptações exerceram mais influência do que a própria obra original. The
Godfather (O Poderoso Chefão), por exemplo, é mais conhecido pela trilogia de filmes
dirigida por Coppola do que pelos livros nos quais foram inspirados, escritos por Mario
Puzo.
É por esse viés que a obra adaptada pode ser levada à sala de aula: como uma obra
independente e rica em sua forma, sendo uma outra maneira de mostrar significações e
olhares sobre uma mesma coisa. Mas, como trabalhar literatura se o foco de “Ensino de
língua estrangeira” está, em sua maioria, na língua em si? Como trabalhar literatura, se
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o clichê que se prega é que os alunos não lêem? Mas qual é o sentido real de leitura
atualmente? Como e quais os tipos de literatura que circulam entre os jovens e de que
forma isso contribui para a sua formação enquanto leitor? Jordão (2003) comenta:

dizer que não temos o hábito de leitura no Brasil normalmente é


dizer que não lemos o cânone literário. Isso é verdade
principalmente quando tido por alunos e professores de
literatura. Assim, ler fotonovelas, romances açucarados ou
páginas da internet não valem como leitura; ler legendas de
filmes, anúncios em “outdoors” ou histórias em quadrinhos não
é Ler (com maiúscula); também não vale ler figuras, gráficos,
tabelas, ilustrações; relacionar elementos, interpretar, fazer
relações entre imagens e sons ou entre fenômenos são atividades
que contam muito menos ainda, mas muito menos mesmo, como
leitura. Mas então o que é ler? (JORDÃO, 2003; p.345).

Tendo a escola como a instituição que seleciona e legitima o conhecimento e a


literatura, estabelecendo o que é canônico ou não, é justamente esse o pensamento
corrente que se tem de leitura, de que é leitura apenas aquilo que se inclui no cânone
literário. E é por isso que sempre se diz que os alunos não lêem.
Como dizer que os alunos não lêem se o que se vê são adolescentes ávidos pelas
séries britânica e americana, respectivamente, Harry Potter e Twilight (Crepúsculo),
que mesmo lendo os livros em língua materna, estão lendo. E é isso, acredito eu, o que
realmente importa. O fato é que, muitos, por lerem em língua materna não se dão conta
de que o que estão lendo se trata de literatura estrangeira. Uma experiência que tive, que
pode até explicar esse fato, foi de, no estágio de observação em um colégio público da
cidade de Maringá, checando a biblioteca a fim de verificar como estavam dispostos os
livros de Literatura Estrangeira (se é que existiam), vi que tais livros estavam todos nas
prateleiras rotuladas como literatura brasileira, justamente pelo fato de estarem
traduzidos.
Os alunos têm, sim, contato com a literatura estrangeira, o que se percebe é que,
mesmo lendo sobre textos tratando de contextos sociais, culturais e ideológicos
diferentes, muitos não se dão conta disso. Outro fator é que os livros que circulam entre
eles são livros não considerados integrantes do cânone literário o que faz com que
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muitos considerem que os alunos não lêem, pois tais livros não fazem parte do conteúdo
dado em sala de aula. Eles de fato lêem, só não lêem o que é dito leitura de verdade.
Entretanto, cabe ao professor aproveitar essas deixas para que, se de fato importa, o
cânone seja trabalhado, uma vez que obras das séries Harry Potter e Twilight trazem em
suas sagas muitas vezes referências a obras consagradas, como, por exemplo, várias
referências à mitologia grega e latina, em Harry Potter, e a Shakespeare (Romeu e
Julieta) e Emily Brontë (Wuthering Heights - O Morro dos Ventos Uivantes) em
Twilight. A intertextualidade se faz, mas os alunos estão hábeis para percebê-las e
entendê-las?
Sem contar que o contato com os livros supracitados começou a partir do momento
em que os filmes foram lançados no Brasil. O conhecimento de tal literatura era mínimo
até o momento em que a febre dos filmes Harry Potter e Twilight estourou no país. E é
nesse contexto que o trabalho com as multimodalidades se encaixa. Muitas pessoas
conhecem e já assistiram a adaptação cinematográfica Ten Things I Hate About You, e,
ainda mais, conhecem também a telenovela O Cravo e a Rosa, transmitida pela Rede
Globo, mas a maioria não sabe que tais textos são adaptações da peça shakespeariana. A
identidade leitora, mesmo que seja fundamentada em adaptações de obras canônicas ou
na literatura considerada não canônica, já vem sendo construída nesses alunos, pois há o
contato com essa “outra” forma de leitura, mesmo que a curiosidade deles possa ter
partido de um filme ou um livro sobre um bruxo, um vampiro ou uma garota feminista
sendo conquistada por um bad boy.

2. Análise do corpus da pesquisa


The Taming of the Shrew, uma das mais conhecidas comédias de Shakespeare, acima
de tudo, trata da relação homem-mulher. Trata-se de uma peça em que um pai, Baptista
Minola, viúvo, condiciona que sua filha mais nova, a doce Bianca, apenas casará se sua
irmã mais velha, a megera Kate, case antes. No filme de 1999, inspirado na peça
shakespeariana, tem-se a estória de Bianca e Kat Stratford, filhas de um pai viúvo que
só permite que Bianca, a filha mais nova, namore se a feminista insuportável Kat
arrumar um namorado primeiro.
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Em uma análise simples, o enredo da peça e do filme são os mesmos, apenas sua
forma de apresentação é modificada. Os elementos que se modificam mais visivelmente
são a linguagem, a construção do espaço, tempo e personagens, mas não é foco desse
trabalho analisá-los, uma vez que a mudança desses elementos se faz necessária já que a
adaptação cinematográfica “moderniza” a obra de Shakespeare. Caso diferente ocorre
na adaptação de The Taming of the Shrew feita por Franco Zeffirelli, em 1967. Esta traz
excertos completos da peça como parte dos diálogos dos personagens e é considerada
uma adaptação mais “fiel”, tentando reproduzir as mesmas falas, cenário e personagens.
Ler e escrever em língua materna são habilidades que vêm sendo construídas na
criança desde seus quatro ou cinco anos de idade, mas ler “de verdade” e não apenas
decodificar as palavras ensinadas pelos professores é realmente desenvolvido nesses
alunos desde o começo da alfabetização? Os alunos são levados a ler criticamente? O
letramento crítico postula que o sentido (s) do texto deve ser visto como um processo de
construção, não apenas decodificação, mais que isso, o sentido (s) de um texto é
entendido em um contexto social, histórico e não somente um produto da intenção de
um autor. Ler, para o letramento crítico é um ato de conhecimento do mundo e meio de
transformação social (CERVETTI et al, 2001; p.5).
Na concepção de letramento exposta por Kleiman (1995), esse fenômeno extrapola o
mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas agências que são legitimadas a incluir os
sujeitos no mundo da escrita. Pode-se dizer, então que
a escola, a mais importante das agências de letramento,
preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas como
apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o
processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico),
processo geralmente concebido em termos de uma competência
individual necessária para o sucesso e promoção na escola. Já
outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua
como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento
muito diferentes (KLEIMAN, 1995; p.20).

Dentro desse foco, traz-se a idéia de que a literatura em sala de aula não deva ser
trabalhada apenas como meio para aquisição da língua, no caso do ensino de língua
inglesa, mas, como aquela que traz em si aspectos socioculturais da língua aprendida.
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Além disso, o filme, como representação multimodal da literatura, é também elemento


portador desses elementos prezados pelo letramento.
Dado o contexto geral das duas obras, e de letramento, a análise a ser feita no LD se
guia por estes conceitos, uma vez que intenta-se compreender se o LD ajuda no
desenvolvimento da criticidade no aluno e se auxilia na sua formação como leitor.
A unidade didática que é corpus de análise deste se encontra no LD Língua
Estrangeira Moderna – Espanhol – Inglês, de 2006, destinado ao ensino médio das
escolas públicas do estado do Paraná, escrito por três professoras de colégios públicos
paranaenses. Trata-se da unidade 1 do livro de língua inglesa (páginas 160 à 168),
intitulada “Shakespeare and ‘Ten Things I Hate About You’”.
A organização da unidade se dá da seguinte forma: abertura, mostrando os propósitos
da unidade; uma pequena introdução sobre o filme, falando que é inspirado na peça The
Taming of the Shrew, de Shakespeare; uma biografia de Shakespeare seguida por
perguntas de interpretação da mesma (intitulado “Task”); uma sinopse do filme; um
tópico com o título “Informal Language Used in the Film”, trazendo algumas falas dos
personagens da adaptação cinematográfica; outro exercício trazendo perguntas sobre os
textos acima mencionados (“Task”); tópico com o título “Reflecting About the Film and
the Play”, constituído de uma citação sobre o tema da peça e do filme; questões de
reflexão sobre a citação; em seguida, tem-se o gênero “film review”, acompanhado de
exercícios sobre eles (“Task”); outra atividade intitulada “Task”, sugerindo a encenação
da peça shakespeariana; uma canção tocada no filme; uma sugestão de pesquisa sobre a
trilha sonora de 10 Coisas que eu Odeio em Você e, por último, as referências
bibliográficas. 1
A abertura do livro traz o conteúdo que a unidade se propõe a trabalhar, que diz:
Você quer aprender o verdadeiro inglês? Estamos falando sobre a
linguagem falada por jovens com gírias, expressões idiomáticas e formas
contraídas. Você sabe como é a rotina diária de uma escola norte
americana? Você está curioso para comparar as escolas deles com as
1
No decorrer da análise, algumas atividades e excertos do livro didático serão mostrados de maneira
mais detalhada. Porém, não estão dispostos de acordo com a ordem em que aparecem na unidade.
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nossas aqui no Brasil? O que William Shakespeare, um dramaturgo


inglês do século XVI tem a ver com esses assuntos? E você sabe por que
“10 Coisas que eu Odeio em Você” é parte disso? (LD p.13, minha
tradução).2

Nesse contexto, percebem-se três propostas a serem trabalhadas pela unidade: 1)


trabalhar a linguagem oral, ou seja, a língua inglesa, com suas gírias, expressões e
contrações; 2) comparar os contextos escolares do Brasil e dos EUA; 3) interligar
Shakespeare e o filme Ten Things I Hate About You com os conteúdos propostos.
Observa-se aqui que a unidade não se propõe diretamente a trabalhar com a peça, mas
seu autor e o filme inspirado na obra de Shakespeare. Implicitamente, espera-se que a
peça seja pelo menos mostrada (por meio de um resumo, excertos, etc) como aquela que
baseou o filme. No entanto, ela não é trabalhada, cita-se apenas que o filme fora
inspirado nela. Não há uma contextualização inicial do aluno nos assuntos discutidos na
peça, e mais para frente se verá que essa “lacuna” deixada comprometerá a resolução de
algumas atividades propostas. Não defendo que a obra original deve ser trabalhada em
sala de aula, visto que seria um trabalho inviável para o professor e enfadonho para
alunos de mais ou menos 16 anos, mas entendo que excertos da peça ou mesmo um
resumo poderiam ampliar a compreensão do todo.
Por conseguinte, tem-se a pequena introdução sobre o filme e de onde fora inspirado:

O filme “10 Coisas que eu Odeio em Você” é uma produção americana de


1999, estrelando Julia Stiles e Heath Ledger nos papéis principais. O filme
é uma comédia romântica que foca o estilo de vida dos adolescentes. O
filme fora inspirado em uma famosa peça de Shakespeare chamada “A
Megera Domada”. Vamos falar um pouco sobre William Shakespeare
primeiro!”(LD, p.162; minha tradução). 3

2
“Do you want to learn the real English? We are talking about the language spoken by young people
with slang, idioms and short forms. Do you know how the daily routine of a North American high school
is? Are you curious to compare their schools with ours here in Brazil? What does William Shakespeare,
th
an English playwright of the 16 century, have to do with those issues? And do you know why “10
Things I Hate About You” is part of this purpose?” (LD, p.13).
3
The film “10 things I hate about you” is a 1999 American production, staring Julia Stiles and Heath
Ledger, in the lead roles. The film is a romantic comedy which focuses on teenage lifestyle. It is inspired
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Depois dessa introdução da unidade, há uma pequena biografia de Shakespeare, que,


como no comando anterior, apenas cita a peça da qual o filme “10 Things I Hate About
You” fora inspirado. Após isso, tem-se uma sinopse do filme supracitado, mas em
nenhum momento encontra-se um resumo ou algum trecho da obra shakespeariana. Não
defendo, como já dito, que a peça seja trabalhada no original com os alunos. Não
defendo que se use uma peça escrita em uma linguagem que está fora do alcance de
compreensão do alunado. No entanto, como a adaptação fílmica, a peça tem várias
adaptações em livros também. Adaptações compactadas na língua inglesa e portuguesa.
Trabalhar excertos dessas adaptações faria com que os alunos se familiarizassem com o
que estão estudando de fato e facilitaria o estudo das questões que são propostas mais
adiante, como, por exemplo, a atividade que propõe uma discussão sobre o assunto mais
importante discutido na peça: o poder patriarcal.
Ter em mãos esse tipo de material viabilizaria ao aluno o conhecimento propício para
a discussão, além de contribuir para que seus argumentos fossem válidos e que a sua
criticidade fosse construída aos poucos. Crítica pautada em nada, não é crítica. Mesmo
que o aluno não tenha lido a obra toda, ela precisa ter conhecimento do que se passa na
peça para que seus argumentos tenham cabimento na discussão e, além disso, para que
ele esteja hábil a responder as seguintes questões propostas.
A meu ver, a atividade que se segue seria o ponto mais importante a ser trabalhado
na unidade no que se refere à criação da criticidade e da autonomia do aluno em
formular argumentos para uma discussão. Para começar, o tópico é chamado de
Reflecting About the Film and the Play, como os alunos poderão refletir sobre a peça se
ela não foi abordada pelo LD? A atividade se dá a partir dessa citação:
Dissemos que o poder é branco, masculino e adulto. Portanto, uma das
características da nossa civilização é ser androcêntrica, ou seja, centrada
na figura masculina. Os direitos, deveres, aspirações e sentimentos das
mulheres se acham há tempos (calculam-se seis milênios!) subordinados

by a famous Shakespeare’s play called “The Taming of the Shrew”. Let’s talk a little about William
Shakespeare first!
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aos interesses do patriarcado, isto é, ao sistema de relações sociais que


garante a dependência da mulher em relação ao homem. (Aranha; Martins,
2000, p.197), (LD, p.165).

Nessa atividade, fica claro que a falta de contextualização sobre os temas da peça
shakespeariana prejudica o trabalho. Sem saber o que se passa na comédia, o aluno não
será capaz de argumentar ou refletir sobre a peça e o filme e as relações existentes entre
os dois. Nesta parte, seria muito interessante discutir a cena do filme em que Kat tem
uma certa “discussão” com o professor de literatura, em que ela pergunta porque não
são estudadas autoras (de abordagem feminista) como Simone de Beauvoir, Sylvia Plath
ao invés de Hemingway que é um autor misógino, segundo a personagem Kat. Daria
para se trabalhar, nesse sentido, o tema principal da peça – a subjugação da mulher –
concomitantemente à citação da unidade didática e a cena do filme. Assim, trabalhar-se-
ia a comunicação oral dos alunos com as suas argumentações sobre o assunto como
parte do letramento.
Porém, as atividade que se seguem não têm relação com a citação, tratam das
diferenças e similaridades entre os contextos escolares do Brasil e dos EUA, entre as
diferenças de comportamento dos adolescentes daqui e de lá. São, no entanto, atividades
que mostram o objetivo inicial da unidade, que era o de comparar os contextos
brasileiros e norte americano, mas não se relacionam com a citação acima exposta.
É apenas na última questão da atividade que o assunto do poder patriarcal é
colocado:
A peça ‘A Megera Domada’ mostra aspectos do chauvinismo masculino que
era comum na época de Shakespeare. Às mulheres não era permitido ter
opiniões. Katherina é uma personagem revolucionária, porque ela se recusa
a obedecer. Você pode ver esse tipo de preconceito contra as mulheres no
filme, também? E na sociedade moderna? Isso ainda acontece? Por quê? 4
(LD, p.166; minha tradução).

4
“The play “The Taming of the Shrew” shows aspects of male chauvinism that were common in
Shakespeare’s time. Women were not allowed to have opinions. Katherina is a revolutionary character,
because she refused to obey. Can we see this kind of prejudice against women in the film, too? How
about in modern society? Does it still happen? Why?”(LD, p.166).
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Considerando o letramento crítico, essa atividade seria de suma importância, pois


requer argumentação, conhecimento de mundo e opinião própria para a resolução. Além
disso, o professor poderia unir o discurso final que Katherina profere na peça, ao poema
que Kat dirige a Patrick no filme, mostrando as suas diferenças e motivos que levaram
cada uma formar seu respectivo discurso. Dessa forma, daria para se criar um terceiro
discurso, feito pelo aluno, trabalhando-se assim, a prática escrita como parte do
letramento. Além do mais, a literatura estaria sendo trabalhada aqui concomitantemente
à sua adaptação cinematográfica.
Em outra atividade analisada observa-se que ela se foca apenas na forma/estrutura da
língua, listando uma série de frases de determinados personagens do filme. Nesse tipo
de exercício preza-se apenas pela estrutura da língua em si. O foco era tentar mostrar o
uso da língua. Todavia, apresentam-se frases estanques, descontextualizadas e que não
fazem o menor sentido para o aluno. O filme, como forma multimodal da peça
shakespeariana, também é usado como mero pretexto para se ensinar expressões fora de
contexto, o que, a meu ver, não contribui nem para o aprendizado dessas estruturas, nem
para a construção do pensamento de que o filme também é uma forma de a literatura se
apresentar. Dessa forma, o filme perde a sua riqueza e seu sentido, sendo desnecessário
assisti-lo.
Por fim, como fechamento da unidade, tem-se uma canção “Can’t take my eyes off
you”, de Frankie Valli, que o personagem Patrick canta para Kat no filme. Todavia, não
há nenhum trabalho específico com a canção, não explorando tal gênero. O que poderia
ser feito, já que no início da unidade didática é proposto um trabalho com a linguagem
oral usada no filme, seria usar a canção de abertura do filme – Bad Reputation, de Joan
Jett - que mostra as características da personagem Kat, que se recusa em ser popular em
um ambiente que preza muito por isso, além de conter gírias e contrações comuns à
linguagem coloquial. Dessa forma, cumprir-se-ia o objetivo da unidade – trabalhar a
linguagem oral – e não seriam abordadas apenas frases soltas, fora de contexto, como
foram mostradas na atividade anterior. Por meio do trabalho com a linguagem,
concomitantemente à construção da personagem e ainda, da discussão do tema de
“popularidade” com os alunos, o trabalho seria enriquecido com o filme (e a canção, no
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caso) em sala de aula e os temas poderiam ser trazidos para a realidade dos
adolescentes, uma vez que a questão de “popularidade” não existe só nos colégios norte
americanos.
Nesse sentido, o aluno estaria ciente do gênero estético e dos gêneros textuais que
estão sendo estudados (drama, filme, música, e assim por diante), e, também, da própria
literatura, uma vez que, para ele se apropriar efetivamente da “experiência estética” ele
deve conhecer aquilo que está sendo estudado, por meio da mediação do professor. Mas
o que percebemos é que o LD não dá margem para que isso aconteça, boicotando as
chances de a literatura (e dos gêneros citados) circular efetivamente, usando-a como
mero pretexto do ensino de língua estrangeira.

Conclusão
Como aluna que um dia fui, o trabalho com filmes em sala de aula era visto como o
mesmo que “enrolar” ou “matar aula” e isso não se modificou muito com o passar dos
tempos. Essa visão pode ter sido formada pelo fato de que muitas vezes os filmes são
trabalhados apenas como mero entretenimento. De fato, esse é o objetivo do cinema. No
entanto, quando se fala de adaptações cinematográficas de obras literárias, o exercício
delas em sala de aula pode ser um forte aliado, principalmente nas aulas de língua
estrangeira.
Muitas vezes a literatura canônica é de difícil acesso aos alunos, pois a linguagem é
mais elaborada e os assuntos são distantes da realidade deles, por esses motivos, muito
se fala que os alunos não lêem. Contudo, grande parte dos alunos está familiarizada com
obras canônicas, por meio de adaptações, muitas vezes, sem saber.
Como visto, a unidade didática analisada preconiza o filme. Isso é um ponto muito
positivo, uma vez que não enfatiza que a leitura do cânone é mais importante. Todavia,
não discute os vários temas que poderiam ser discutidos em sala de aula, como a
subjugação da mulher, a busca pela popularidade, as diferenças de “tribos” – como é
nos EUA e como é aqui -, entre outros assuntos. Nesse sentido, entende-se que a
adaptação foi apenas usada como uma das formas de multimodalidades, mas não foi
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explorada a ponto de provocar as discussões e desenvolver no aluno a criticidade por


meio de letramento.
A literatura de língua estrangeira circula sim, nesse meio específico – um livro de
línguas adotado no sistema público de ensino -, mas essa circulação é apenas uma
“maquiagem” para que o texto literário sirva de pretexto para o ensino de língua inglesa
o que faz com que a literatura seja tratada com superficialidade, como algo de segundo
plano e é inferiorizada, pois é um mero “enfeite” no LD. Sem contar que o letramento
crítico também não é base para o ensino. Além disso, mesmo que a adaptação
cinematográfica seja primada pela unidade didática, uma vez que é nela que se baseiam
as atividades propostas, percebemos que a literatura em si, a de papel, não circula da
maneira esperada nesse contexto fazendo com que se enfraqueça o trabalho da língua e
cultura de outro país com os alunos.

Referências

AMORIM, Lauro. Tradução e adaptação: encruzilhadas da textualidade em Alice no


País das Maravilhas, De Lewis Carrol, e Kim, de Rudyard Kipling. São Paulo: Editora
UNESP, 2005.
CERVETTI, G.; PARDALES, M. J,; DAMICO, J. S. A tale of differences: comparing
the traditions, perspectives, and educational goals of critical reading and critical
literacy. www.readingonline.org, abril, 2001. Disponível em
http://www.readingonline.org/articles/art_index.asp?HREF=/articles/cervetti/index.html
Acesso em: 21 abr. de 2010.
CLÜVER, Claus. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. In: Literatura e
Sociedade 2. São Paulo: USP, 1997.
DINIZ, Thaïs Flores. Literatura e Cinema: da semiótica à tradução cultural. 2.ed. Belo
Horizonte: O Lutador, 2003.
HUTCHEON, Linda. A theory of adaptation. New York, London: Routledge, 2006.
JORDÃO, Clarissa Menezes. No Brasil não desenvolvemos o habitus da leitura? In:
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GIMENEZ, Telma (org). Ensinando e aprendendo inglês na universidade: Formação


de professores em tempos de mudança. Londrina: ABRAPUI, 2003.
KLEIMAN, Angela B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola.
In: KLEIMAN, Angela B. (org). Os significados do letramento. Campinas: Mercado
das Letras, 1995.
Língua Estrangeira Moderna – Espanhol e Inglês / vários autores. – Curitiba: SEED –
PR, 2006. – p.160-168.
SHAKESPEARE, William. The Taming of the Shrew. Ed. By Robert B. Heilman.
Harmondsworth: Penguin Books, 1966.
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TENSÕES E INTERSECÇÕES NA RECEPÇÃO CRÍTICA DE O AMANUENSE


BELMIRO (1937), DE CYRO DOS ANJOS

Ana Paula F. Nobile Brandileone (UNIFADRA/GP:CRELIT)

O estudo da recepção crítica do livro de estreia de Cyro dos Anjos, O amanuense


Belmiro (1937), lança luz não apenas sobre um certo “modo” de ler o romance à época
do seu lançamento e que se perpetuou ao longo do tempo, como também insinua
reflexões acerca do seu lugar no panorama da Literatura Brasileira, sobretudo na ficção
da década de 30.
Da recepção no “calor da hora” 1 - recortes publicados em jornais e revistas nos
meses de outubro, novembro e dezembro de 1937 2 - salta aos olhos a dificuldade no
enquadramento da obra e de seu autor. Da maioria dos críticos observa-se a
preocupação em filiá-los a alguma tendência, autor, obra, linha ou tradição literária:
regionalismo, romance estético, literatura psicológica, de costumes, Machado de Assis,
Proust, Amiel, Georges Duhamel, esquerda, direita, etc.
Por conta dessa dificuldade da crítica literária brasileira em construir um “lugar” para
Cyro dos Anjos é que a nota dominante da recepção crítica de O amanuense em 1937
foi a busca por referências, fontes e/ou sinais de influência, daí então as inúmeras
filiações. Por ser um livro escrito em primeira pessoa e em forma de diário suscitou nos
críticos a dúvida: tratar-se-ia de um romance ou de uma autobiografia? O gênero
autobiográfico do livro levou os críticos então a associá-lo a obras do mesmo gênero, a
Amiel e seu Journal Intime, e Georges Duhamel, Remarques sur les Memoires
Imaginaire. O estilo disciplinado e o sense of humour do romance de Cyro dos Anjos
fez pensar em Alfredo Panzini, Pérez de Ayala e Machado de Assis; houve quem

1
Sobre o estudo da recepção crítica de O amanuense Belmiro em 1937, ver livro publicado em 2006, pela
Editora AnnaBlume, A recepção crítica de O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos (1937).
2
Segundo artigo publicado no jornal Minas Gerais, o romance de Cyro dos Anjos foi dado à publicidade
em 14 de outubro de 1937: “Será posto hoje nas livrarias O amanuense Belmiro. Editado pela sociedade
“Os amigos do livro”, que o intelectual Cyro dos Anjos vem dar à publicidade, será posto hoje à venda
nas livrarias” (PUBLICAÇÕES. Minas Gerais. Belo Horizonte, 14 out. 1937).
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vislumbrasse na ironia dissolvente a influência de Jules Renard e do autor de Dom


Casmurro; a presença marcante da memória ou da “expedição à procura do tempo
perdido” fez lembrar Marcel Proust (LEMOS, 1937). Dentre os autores brasileiros, além
de Machado de Assis também Graciliano Ramos foi lembrado por seu romance
Angústia. Segundo Nelson Werneck Sodré, em artigo publicado em dezembro de 1937,
as irmãs de Belmiro, sobretudo a amalucada, lembram a empregada de Luis da Silva.
Ainda que a muitos autores Cyro dos Anjos tenha sido filiado, Machado de Assis é,
de longe, o mais lembrado. Dos quarenta e seis artigos publicados, entre jornais e
revistas, vinte e um deles identificaram semelhanças entre os autores, dos aspectos
formais aos aspectos de conteúdos.
Se no estudo da fortuna crítica de O amanuense Belmiro em 1937, a busca por sinais
de influência foi a vertente mais vigorosa, pós-1937 ela continuou ganhando destaque.
Além dos autores já citados, Rainer Maria Rilke, Montaigne, Anatole France, Musset,
Benjamin Constant, Gide, Fromentin, Stendhal, Gerard Nerval e Carlos Drummond de
Andrade engrossaram a fileira de escritores para os quais a aproximação com Cyro e seu
romance de estreia era “indisfarçável”. As inúmeras associações a que a crítica literária
conferiu a Cyro dos Anjos e seu romance corrobora o seu esforço obstinado em
classificar um autor que fugia ao padrão estético da ficção dos anos 30.
Quando Cyro dos Anjos surgiu no panorama da literatura brasileira, foi de pronto
apresentado como um escritor notadamente “diferente” da maioria que publicava àquela
altura da década de 30. Quando se achava que cismas, reflexões, quadros da vida
interior já não faziam mais parte da ordem do dia, o romance evidenciou que obras com
o feitio de O amanuense, voltado para “dentro”, para o homem e seus problemas,
poderiam chamar atenção naquele momento de domínio quase que exclusivo da
literatura social. O fato de Cyro dos Anjos apresentar uma outra versão da ficção
brasileira dos anos 30, contrário à incorporação crítica da problemática da realidade
social brasileira, da abundância descritiva dos romancistas-modelo à época e da
tendência naturalista de estabelecer unidade entre literatura e “verdade”, tão cara à
maioria dos romancistas de 30, trouxe desatino à crítica literária da época que não sabia
onde enquadrar, como classificar esse autor que, apreendido como “coisa nova” dentro
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de um panorama literário impregnado pelos mesmos temas e pelas mesmas


preocupações, cindiu com uma literatura que naquele momento se exigia documental. O
modo encontrado pela crítica para pacificar o desconforto trazido por Cyro dos Anjos
que rompia com um modelo vigente e impunha um outro, ligado à introspecção, foi ler
o romance e seu autor através de outros.
O apuro experimentado pela crítica de primeira hora, que reconhecia na classificação
do romance e de seu autor uma tarefa complexa e ariscada, parece ter sido sentido de
perto por alguns historiadores da literatura e críticos literários de renome. Em História
concisa da literatura brasileira, Alfredo Bosi (1978) depois de apresentar os principais
escritores do denominado romance social – José Américo de Almeida, Raquel de
Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado –, coloca Cyro dos Anjos
no capítulo Outros narradores intimistas, ao lado de nomes como Otávio de Faria, Otto
Lara Rezende e Dionélio Machado. Também nada inovador é José Aderaldo Castello,
no livro A literatura brasileira: origens e unidade, que insiste na influência exercida por
Machado de Assis: “[...] se Abdias complementa O amanuense Belmiro, é com ambos
que Ciro dos Anjos se coloca entre os representantes mais destacados do que temos
chamado linhagem machadiana [...]” (CASTELLO, 1999, p. 325). Quanto ao rótulo de
escritor intimista, Castello prefere não mexer nesse vespeiro, apresenta Cyro como uma
das novas contribuições dos anos de 1930 e 1940. Para Antonio Candido (1992) Cyro
dos Anjos é um escritor estrategista em oposição aos táticos, isto é, “que veem na
criação o afloramento definitivo de um largo trabalho anterior, baseado em anos de
meditação e de progressivo domínio dos meios técnicos” (1992, p.79). Já para João Luís
Lafetá, o romancista montes-clarense toma uma “direção diferente”, distinguindo-se da
literatura da década de 30 que nos deu “algumas das obras mais realizadas e alguns dos
escritores mais importantes da literatura brasileira”: o romance social de José Lins do
Rego, Jorge Amado, Raquel Queiroz e Graciliano Ramos (1974, p.20). Sem falar
naqueles que sem saber dar um “lugar” para Cyro dos Anjos, excluíram-no de suas
listas, como Bezerra de Freitas (1947), em Formas e expressão em romance brasileiro;
Olívio Montenegro, em O romance brasileiro (1951) e Adonias Filho, em O romance
Brasileiro de 30 (1972).
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Um outro exemplo de apagamento a que foram condenados os autores ditos


intimistas que surgiram nos anos 30, como é o caso de Cyro dos Anjos, apresenta-se a
partir do espaço diminuto a eles destinado nas Histórias da Literatura, quando a ficção
brasileira de 30 é objeto de discussão. Alfredo Bosi (1978) dedica ao escritor mineiro
apenas 14 linhas das 528 páginas da sua História Concisa da Literatura Brasileira. José
Aderaldo Castello (1999), em empate técnico com Bosi, destina 20 linhas das 583
páginas do volume II de A Literatura Brasileira: origens e unidade. Embora essas
coisas não se expliquem com facilidade, não é difícil apontar algum motivo que tenha
prejudicado o prestígio do escritor mineiro. Seu destino foi o mesmo de outros autores
importantes do período, como Lúcio Cardoso, Dionélio Machado, Otávio de Faria ou
Cornélio Pena, alvos de pouca discussão. Coincidência ou não, todos fizeram sua estreia
literária nos anos 30, época que acabou ganhando em nossa memória cultural uma
imagem bastante estereotipada: a do domínio do romance social de corte regionalista.
Indo um pouco mais longe, pode-se ainda afirmar que Cyro dos Anjos, assim como
os demais autores acima citados, longe de reproduzir uma literatura alicerçada na
imagem da nação, isto é, na fidelidade documental à paisagem, à realidade e ao caráter
nacionais, garantindo com isso a continuidade de um modelo narrativo dominante, o
escritor fragmenta essa tradição literária brasileira, gerando inquietação, indefinição,
corpo estranho numa história literária que se pretende contínua e evolucionista. Nada
que desfaça o contínuo de uma tradição ganha ênfase. Caso a trama novelesca, de
alguma forma, frature o caráter nacional, trazendo diferenças ou descontinuidades ao
contínuo de uma tradição fundamentada nas “cores” do país, resta-lhe a condenação, a
“lata de lixo da história”, como quer Silviano Santiago (1999, p. 14), ou então o
ocultamento da diferença.
Por então exibir um modelo romanesco e narrativo antitético ao “mais característico
do período”, acrescido ao fato de o romance social não ter produzido qualquer nova
estreia significativa, segundo Luis G. Bueno de Camargo (2001), é que o grande
estreante de 1937 foi Cyro dos Anjos que, no calor da hora, foi entendido como o
criador do romance puramente intimista, o que acabou gerando na memória da tradição
crítica o rótulo de autor intimista/psicológico. Rótulo que sintetiza bem as dificuldades
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de uma crítica que toma como padrão de referência uma tradição da prosa brasileira de
ficção, que é de se ligar, explicitamente, à realidade nacional. Um outro fator que
contribuiu para que Cyro dos Anjos fosse enquadrado como intimista foi a relação
estabelecida entre sua prosa e a tradição mineira. Fundado numa peculiar visão do fato
humano, o “mineirismo” seria, antes de mais nada, um mundo construído sobre a
introspecção, daí raramente se valer do realismo objetivo, da descrição minuciosa de
ambientes, das sugestões da natureza. Um último fator vai de encontro à nota dominante
da recepção crítica de O amanuense Belmiro em 1937, que é a vinculação com
Machado de Assis.
Se por um lado a recuperação da fortuna crítica de O amanuense Belmiro nos dá a
conhecer a origem de “certas” leituras que, não raro, se proliferam ao longo dos anos,
por outro, ela simultânea e contraditoriamente ajuda a romper com esse estado de
coisas, abrindo assim espaço para uma revisão daquilo que se perpetuou como lugar-
comum.
Flagrante de uma “outra” maneira de ler O amanuense Belmiro porque distante da
polarização que reduziu a ficção de 30 a dois blocos estanques, o dos que faziam
romance social e o dos que escreviam o romance psicológico, está Antonio Motta do
Valle que, em janeiro de 1938, já apontava para exploração do especificamente
brasileiro, revelando “a mesma raiz de tragédia brasileira” dos romances cíclicos de
José Lins do Rego: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933) e, sobretudo, Bangüê
(1934). Para Motta do Valle, a afinidade “entre essas duas expressões do romance
nacional está no personagem central, nesse tipo de raça, de rural decaído”, pois neles se
esconde o drama “da industrialização, da emigração urbana e da decadência do
patriarcalismo rural” 3. Também João Etienne Filho, em artigo publicado em 21 de
outubro de 1945, põe em xeque essa discussão, alertando que “passa por ridículo”
aquele que ainda acusar Cyro dos Anjos de escritor “puramente literário”, de “escritor

3
Sobre essa releitura de O amanuense Belmiro, ver ensaio publicado no livro Dispersa Memória: escritos
sobre representação e memória na literatura brasileira, de 2009, p.167-180.
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gratuito”, porque para ele o romancista mineiro “a seu modo, participa também da
realidade, do movimento, do espaço, e vai dando o seu testemunho, lá a seu jeito”:

Aparentemente, o seu livro não participa, não tomou partido do povo,


para usar uma expressão tão elevada, mas que toma o ar detestável à
custa de ser explorada em campanhas políticas nem sempre muito
honestas. O primeiro livro nos narra as desventuras de um pobre
amanuense, cheio de dramas, às voltas com uma turma de literatos,
amando a um mito, vivendo entre duas irmãs esquisitíssimas,
escrevendo seu diário lírico. De fato, nada de mais aparentemente
gratuito, inócuo. Passado o tempo, porém, voltemos ao amanuense.
Como resiste bem a estes nove anos de vida. Como encontramos ali
uma sociedade, um clima. Como a "situação" histórica está fixada por
processos sutis da arte. Em toda uma classe miseravelmente
desamparada que é fixada em Belmiro. É todo um mundo pequeno-
burguês que se move ao seu redor. O que há apenas é o seguinte: o
livro não quis ser documental, não foi feito com a intervenção de
servir para arte social, no mau sentido em que tomamos essa
expressão. Como toda a grande obra, aliás, que quase nunca é feita
com o caráter específico de documento, de prova, de testemunho, mas
que, justamente por isto, fica com melhor documento, a melhor prova,
o melhor testemunho. (ETIENNE FILHO, 1945)

O fato de Cyro dos Anjos ter inscrito as pautas da realidade nacional na sua forma
literária, a partir da qual interiorizou e dramatizou a estrutura e as relações sociais do
país, ou por ter fixado a situação histórica brasileira por “processos sutis de arte” e,
portanto, “com a intenção de (não) servir para a arte social”, é que a tensão histórica que
permeia O amanuense Belmiro passou despercebida pela crítica literária ou realizada
apenas de forma parcial, por conta da “preponderância da preocupação com o problema
sobre a preocupação com a literatura”, segundo afirma Antonio Candido, em revelador
ensaio intitulado A Revolução de 30 e a cultura (1987, p.196).
A partir de 1983 começaram, entretanto, a pipocar trabalhos acadêmicos que
privilegiaram o estudo de O amanuense Belmiro sob a perspectiva social, com o
objetivo óbvio de descristalizar um dos lugares-comuns instituídos pela crítica literária
desde o seu lançamento: caráter puramente intimista do romance. Vale dizer que a
minha tese de doutorado que investigou a recepção crítica de O amanuense junto à
imprensa e ao meio acadêmico, no período de 1938 a 2001, a relação entre a estrutura
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romanesca e o meio social foi a abordagem ‘preferida’ para analisar o romance – das 17
pesquisas seis escolheram este enfoque 4.
O primeiro trabalho que tratou dessa relação entre texto e contexto foi o de Dulce
Maria Viana Póvoa, em dissertação de mestrado realizada na PUC/Rio de Janeiro, em
1983. A autora propôs-se a analisar três personagens da ficção brasileira do século XX,
com o objetivo de caracterizar os impasses e a problemática do intelectual na sociedade.
São eles: Policarpo Quaresma, do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto; Belmiro Borba, de O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, e Eduardo
Marciano, de Encontro Marcado, de Fernando Sabino. Segundo a autora, a crise de
valores que Policarpo, Belmiro e Eduardo vivenciam, metonimiza, subrepticiamente, os
problemas históricos reais do intelectual brasileiro.
Outro trabalho que associa a estrutura de O amanuense Belmiro à sociedade
brasileira é a dissertação de mestrado de Vera Márcia P. S. Vidigal Milanesi 5, Para uma
interpretação de Cyro dos Anjos, concluído em 1988. O objetivo da autora foi
contribuir para uma visão mais abrangente da obra romanesca de Cyro dos Anjos, que
até então estava restrita aos seus dois primeiros romances, O amanuense Belmiro e
Abdias, com menosprezo ou esquecimento do terceiro, Montanha. Para autora, o
universo romanesco cyriano delineia conflitos de forças histórico-sociais.
Diferente dessa modalidade mais comum de estudo que estabelece e descreve as
relações entre a sociedade e as obras literárias, outros três pesquisadores entenderam o
fator social não como uma tensão que atua de fora para dentro, mas é dado
composicional do próprio texto, que o estrutura e internaliza. Isto é, tomaram o traço
social como elemento que fundamentalmente atua na organização interna do romance,
de maneira a compor o seu significado. O que antes era dissociado, de um lado fator
externo, de outro estrutura, funde-se num bloco indissolúvel.
Exemplar no sentido de prezar pela integridade de O amanuense Belmiro enquanto
fusão de fator externo e interno é a tese de doutorado de Marlene Bilenky, intitulada A

4
Tese de doutorado concluída em 2005, sob o título As leituras de O amanuense Belmiro: da crítica
jornalística à crítica universitária, pela Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis, a ser publicada
pela Editora AnnaBlume, ainda neste semestre.
5
Trabalho posteriormente publicado pela Editora Arte & Ciência.
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poética do desvio: a forma do diário em O amanuense Belmiro de Cyro dos Anjos, de


1992. Sentindo-se tapeada, no sentido de ser arrastada para as malhas da ficção sob a
aparente e simples intenção de se tratar de um diário, a autora problematiza a forma
diário do romance, vislumbrando nele uma estratégia utilizada por Cyro dos Anjos para
representar o difícil período do Brasil de 1935. Para a estudiosa, o diário do amanuense
mais do que uma escritura da intimidade, do segredo ou do recolhimento, serve para
inocentar os amigos, os suspeitos e a si mesmo, pois foi com o diário que Belmiro se
livrou da polícia. Daí ser apenas aparente a contradição do diário ter como característica
a inviolabilidade, pelo menos no caso de O amanuense Belmiro.
Seguindo as pegadas de Marlene Bilenky, Fernando C. Gil, em trabalho também de
doutorado, concluído em 1997 6, sugere que no bojo dos romances de 1930 surgiu um
tipo específico de narrativa que ele identifica como romance da urbanização. Segundo o
pesquisador, este romance problematiza, em diferentes níveis de sua construção formal,
os impasses e as contradições da transição – sempre inconclusa – do Brasil agrário,
rural, para um país em vias de urbanização e industrialização. Para tanto, valeu-se de
três romances dos anos 30: Os ratos, Angústia e O amanuense Belmiro.
Para o autor, o que está em jogo em O amanuense é o conflito de dois tempos
históricos distintos – presente e passado – que correspondem a espaços, valores sociais
e culturais também diversos, que se formalizam no nível estético, como irreconciliáveis
para a vida do protagonista. Essa dualidade temporal que colore e define o romance da
urbanização está firmada em duas perspectivas antagônicas: de um lado, uma
perspectiva referenciada pela experiência tradicional, rural e patriarcal, de outro, pela
experiência moderna, urbana e burguesa. Segundo Gil, é o atrito dessa diferença
histórico-temporal vivida pelo sujeito-narrador, que atualiza o caráter bifronte da
experiência histórica brasileira.
Uma quinta pesquisa em torno das dimensões sociais assumidas pelo livro de Cyro
dos Anjos é o trabalho de doutorado de Luís Gonçalves Bueno de Camargo 7 que,

6
Também sob o título de Romance da Urbanização, esta pesquisada foi posteriormente transformada em
livro, publicado em 1999, pela EDIPUCRS.
7
Com o mesmo título, o autor publicou o trabalho pela Edusp, em 2006.
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recentemente, traçou uma história do romance de 1930 partindo de um equívoco que


tem dominado o debate sobre a ficção de 30: a divisão entre regionalistas e intimistas.
Incorporando essa divisão mais como problema do que como solução, o autor realizou
uma abordagem bem ampla dessa questão, interessado numa gama extensa de obras. A
partir da leitura dessas obras, Camargo procurou assinalar que a década de 1930 assistiu
a um movimento mais complexo do que a simples predominância do romance social,
que tem sido considerado a face do período.
Assim como muitos pesquisadores que se debruçaram sobre O amanuense Belmiro,
também Bueno desconfia do seu narrador em primeira pessoa. Segundo o autor, todas as
conclusões parecem provisórias para o leitor, que não sabe se estão ali para despistá-lo
ou se é confissão o que o texto efetivamente promete para ele. De uma coisa, no
entanto, ele discorda. Para a crítica literária que se ocupou do livro, o conflito entre o
passado e o presente que se desdobra em outro conflito, entre o rural e o urbano, é a
problemática central. Para Bueno, apenas embuste: “é possível ler O amanuense
Belmiro como o livro mais imerso no presente imediato que a década de 30 produziu”
(BUENO, 2001, p. 724).
Segundo o autor, O amanuense Belmiro pode ser lido como a figuração da
impossibilidade de isolamento do intelectual. Mesmo que ele não queira, como Belmiro
não quer, o presente o alcançará. É por isso que grande parte das ações do romance se
passa no período de 1935, para demonstrar que os acontecimentos políticos, que tanto o
horrorizavam, chegam até ele. É nessa situação de gravidade que sua roda de amigos vai
definitivamente se romper e Belmiro, não por acaso, fará parte de um círculo de homens
sem história: Florêncio, Carolino e seus vizinhos de bairro. Só assim consegue o
apaziguamento que tanto procura, porém incompatível com a sua atividade intelectual.
Adotando um enfoque não especificamente histórico de O amanuense Belmiro, como
os trabalhos de Dulce Maria Viana Póvoa, Vera Márcia P. S. Vidigal Milanesi, Marlene
Bilenky e Luís Gonçalves Bueno de Camargo, que vislumbraram na organização interna
do romance as condições sociais do Brasil de 1935, e Fernando C. Gil, o caráter bifronte
da experiência histórica brasileira, Idemburgo Félix (1999), conduzido pela leitura dos
gestos dos protagonistas dos romances Memorial de Aires, O triste fim de Policarpo
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Quaresma e O amanuense Belmiro – Aires, Policarpo e Belmiro –, intuiu neles a


introjeção das redes da burocracia.
Para o autor de Burocracia como imaginação: três momentos da literatura brasileira
e suas fronteiras, o universo da burocracia não é o tema central de nenhum dos três
romances, porém se incorpora nos personagens e, sem precisar ser nomeado, está
presente nos momentos mais fundamentais, muitas vezes na própria técnica usada pelos
personagens e narradores para analisar e/ou intervir no cotidiano.
Para aquele momento em que então vigorava uma literatura de temática
ideologicamente ostensiva, a lição ensinada por Machado de Assis a respeito do direito à
universalidade das matérias, em oposição ao ponto de vista “que só reconhece o espírito
nacional nas obras que tratem de assunto local” ( 1937, p. 130), não foi aprendida pela
grande maioria dos críticos. O modo nada óbvio de O amanuense Belmiro trazer a
matéria nacional – pois prescinde de marcas externas –, aliado à sua densidade
psicológica, pleno de ideias e reflexões, carregado ao mesmo tempo de sentido
dramático da vida e de requintado senso de humor, é que o levou a ser lido como um
romance absolutamente alienado aos problemas do seu tempo.

Referências

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___. Estratégia. In: Brigada ligeira. São Paulo: Unesp, 1992. p. 79-85
CASTELLO, J. A. A Literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). São Paulo:
Edusp, 1999. v. 2.

ETIENNE FILHO, J. Ao lado do amanuense. O Diário, Belo Horizonte, 21 out. 1945.

FÉLIX, I. P. F. Burocracia como imaginação: três momentos da Literatura Brasileira e


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Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.

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LEMOS, Pinheiro. Autores e livros – O amanuense Belmiro. O Globo, Rio de Janeiro,


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SANTIAGO, S. A aula inaugural de Clarice. In: MIRANDA, W. M. (Ed.). Narrativas


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VALLE, A.M. do. Crônica do Amanuense. Revista Surto, S.l., jan.1938.


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“OS CUS DE JUDAS”: LUGARES ABANDONADOS PELA MEMÓRIA

Ana Paula Silva (PG - UFV)

Enquanto n’Os lusíadas Camões exalta as conquistas coloniais, em Os cus de Judas


Lobo Antunes substitui essa exaltação pelo tom de lamentação e angústia com que o
protagonista narra suas memórias da guerra contra a independência das colônias
africanas. Assim, nesta narrativa, o espírito épico e coletivo da exaltação ao
imperialismo dá lugar ao questionamento de um indivíduo que se sente fracassado como
ser humano e estrangeiro em sua pátria após a experiência da guerra contra as colônias
africanas. Para o personagem de Lobo Antunes, a guerra colonial não se trata de uma
luta em defesa de um território e da manutenção do projeto imperial, mas sim de uma
invasão dos espaços do outro. Assim, neste trabalho, pretende-se mostrar como o
romance “Os cus de Judas” problematiza a memória coletiva portuguesa do
colonialismo a partir das memórias de um “retornado” das guerras coloniais.
Segundo Gomes (1993, p. 84), o romance português contemporâneo tem um caráter
combativo, sendo alvo de sua crítica, de um lado, os problemas político-sociais de
Portugal e, de outro, o universo do romance e os mecanismos da ficção: “(...) o romance
português contemporâneo não só fará um inventário crítico da situação sociopolítico-
econômica portuguesa, como também fará um inventário crítico da linguagem, do modo
de narrar e do compromisso do escritor com a realidade.” Neste contexto, o romance
“Os cus de Judas” chama a atenção para as guerras coloniais na África e a situação dos
“retornados”, problematizando a imagem épica da conquista de um Grande Império. No
romance, um médico relata suas memórias da Guerra Colonial. Nessa narrativa,
observa-se a incompreensão dos soldados, que não se identificam com a guerra,
tampouco com o sonho imperialista: “O médico competente e responsável que
desejavam que eu fosse, consertando a linha e agulha os heróicos defensores do
Império, que passeavam nas picadas a incompreensão do seu espanto (...)” (ANTUNES,
1984, p. 41). Como mostra a citação, o narrador não participa do sonho imperial, como
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sua família, que esperava um dia ver nele as virtudes de herói épico dos seus
antepassados.
Sabe-se, pelo relato, que o narrador se trata de um médico retornado da Guerra
Colonial, que foi casado, tem duas filhas e vive solitário em seu apartamento. O
personagem, em vez de glória, mostra seu fracasso, enquanto ser humano, e de Portugal,
como país que se prende a um projeto imperial anacrônico. Com o término da guerra, a
grande quantidade de ex-combatentes, quando retornada, foi marginalizada na
sociedade portuguesa. Para o personagem, a vivência dos horrores da guerra
impossibilita-o de efetivar o retorno à pátria, retomando suas relações sociais. Nessa
situação marginal em relação à sociedade, a pátria torna-se irreal para o narrador, sendo
substituída pela memória da África: “O certo é que, à medida que Lisboa se afastava de
mim, o meu país, percebe?, se me tornava irreal, o meu país, a minha casa, a minha filha
de olhos claros no seu berço, irreais como estas árvores (...), moramos numa terra que
não existe. (...) Luanda, enevoada, subiu ao meu encontro (...).”(ANTUNES, 984,p. 80).
Depois de passar pela “aprendizagem da agonia”, na guerra, não há possibilidade de
interação com a realidade no retorno a Lisboa: “(...) Descíamos para as Terras do Fim
do Mundo (...) janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia,
sentado na cabina da caminhoneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de
um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia.” (ANTUNES,
1984,p.32). A participação na guerra como médico proporciona ao narrador o contato
próximo com a experiência da morte. A memória da morte e o sofrimento, no entanto,
não desaparecem quando do retorno à pátria, por isso aos retornados será necessária
“uma penosa reaprendizagem da vida”. (ANTUNES, 1984, p.45). A vida solitária do
narrador mostra essa impossibilidade das relações sociais após a vivência da “agonia”
na África . O espaço do bar, a noite e o álcool é a única situação que permite ao
narrador entrar em contato com o outro, ainda que num diálogo em que a voz deste
outro apareça apenas na fala do próprio narrador. Isso porque nesse espaço a realidade
se desprende do espírito, portanto, tornando o espaço de alguma maneira também irreal:

O encanto dos bares, não é?, consiste em, a partir das duas da manhã,
não ser a alma a libertar-se do seu invólucro terrestre e a seguir
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verticalmente para o céu no esvoaçar místico de cortinas brancas das


mortes do missal, mas a carne que se livra, um pouco espantada, do
espírito, e inicia uma dança pastosa de estátua de cera que se funde até
terminar nas lágrimas de remorso da aurora, quando a primeira luz
oblíqua nos revela, com implacabilidade radioscópica, o triste
esqueleto da solidão sem remédio. (ANTUNES, 1984, p.39)

O romance desenvolve-se em torno de uma conversa do narrador com uma mulher


encontrada casualmente num bar e terminada na casa dele. A interlocutora é impassível,
apenas ouve, e a conversa é entrecortada algumas vezes por expressões fáticas dela ou
pedidos de atenção feitos por ele. O narrador tem a necessidade de falar, apesar de a
interação efetiva não ser possível, pois é preciso falar das experiências da guerra, mas
tanto é impossível romper a solidão quanto transmitir essas experiências. Benjamim
(1985, p.115) aponta essa impossibilidade de transmissão de experiências observando o
silêncio de combatentes que voltavam do campo de batalha na Primeira Guerra
Mundial: “(...) Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado
silenciosos do campo de batalha. Mais pobres de experiências comunicáveis, e não mais
ricos.” Transmitir as experiências da guerra só se tornou possível para o narrador no
ambiente de devaneio, da irrealidade. É necessário falar sobre a guerra, como uma
tentativa de se livrar dessas memórias, de se libertar dos traumas, porém, na realidade
da guerra, as palavras não estão ao alcance dessa experiência:

“Nunca as palavras me pareceram tão supérfluas como nesse tempo de


cinza (...), à medida que trabalhava o coto descascado de um membro
ou reintroduzia numa barriga os intestinos que sobravam, nunca os
protestos me surgiram tão vãos, nunca os exílios jacobinos de Paris se
me afiguraram tão estúpidos: se me perguntam porque continuo no
Exército repondo que a revolução se faz por dentro, explicava o
capitão de óculos moles e dedos membranosos atrás de seu cigarro
eterno, o capitão que puxou da pistola para o pide magrinho que
atirara um pontapé a uma rapariga grávida e o expulsou da companhia
indiferente às ameaças azedas do outro (...)” (ANTUNES, 1984, p.41).

Assim como as palavras são insuficientes para descrever a experiência da guerra,


também os discursos comunistas são vãos e estúpidos diante da barbárie na África. O
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País também precisa falar e ouvir sobre a Guerra Colonial, para que se conheça o avesso
do sonho de um império. Segundo Lourenço

Treze anos de guerra colonial, derrocada abrupta desse império,


pareciam acontecimentos destinados não só a criar na nossa
consciência um traumatismo profundo – análogo ao da perda da
independência – mas um repensamento em profundidade da totalidade
da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo.
Contudo, todos nós assistimos a este espetáculo surpreendente: nem
uma nem outra coisa tiveram lugar. É possível que a profundidades
hoje ainda não perceptíveis supure uma ferida que à simples vista
ninguém apercebeu. (2007, p. 46)

Para Eduardo Lourenço (2007), essa “inconsciência coletiva” diante da Guerra


Colonial se deve à imagem camoniana de “povo colonizador por excelência”. Em Os
cus de Judas, essa imagem arquetípica do herói épico é questionada no relato das
memórias do colonizador. Tem-se, no relato das memórias, uma tentativa de superação
do trauma da guerra e não de transmitir as experiências de aprendizagem por que passa
um herói épico ao enfrentar os desafios de uma viagem. No seu desdobramento,
Portugal também precisa “tomar consciência” da Guerra Colonial, para superar a
imagem imperial e assim tomar consciência também do drama que vivem os retornados
das colônias africanas. Nesse sentido, compreende-se a expressão que dá título ao livro,
pois as colônias africanas em guerra teriam sido banidas da memória dos portugueses.
O arquétipo do herói épico encontra-se nas referências familiares do narrador:

As tias instalavam-se a custo no rebordo de poltronas gigantescas


decoradas por filigranas de croché, serviam o chá em bules
trabalhados com custódias manuelinas, e completavam a jaculatória
designando com a colher do açúcar fotografias de generais furibundos,
falecidos antes do meu nascimento após gloriosos combates de gamão
e de bilhar em messes melancólicas como salas de jantar vazias, de
Últimas Ceias substituídas por gravuras de batalhas:
– Felizmente a tropa há-de torná-lo homem. (ANTUNES, 1984: 12)

A noção de nobreza garantida pelos objetos e pela imagem dos heróis das fotografias
de batalhas contribui para o sentido épico das conquistas portuguesas nas lembranças da
infância do narrador. Contudo, essas lembranças são ironizadas, pois o relato delas é
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posterior à experiência na Guerra Colonial. Assim, os gloriosos combates são


diminuídos para jogos de gamão e bilhar, e aquele ambiente de gravuras de batalhas
sugere, para o narrador adulto, apenas melancolia.
As referências da família tornam-se claras na citação seguinte:

O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de


Espírito Santo corporativo, salvando-nos da idéia tenebrosa e deletéria
do socialismo. A PIDE prosseguia corajosamente a sua valorosa
cruzada contra a noção sinistra de democracia (...). O cardeal
Cerejeira, emoldurado, garantia, de um canto, a perpetuidade da
Conferência de São Vicente de Paula, e, por inerência, dos pobres
domesticados. O desenho que representava o povo em uivos de júbilo
ateu em torno de uma guilhotina libertária fora definitivamente
exilado para o sótão, entre bidés velhos e cadeiras coxas, que uma
fresta poeirenta de sol aureolava do mistério que acentua as
inutilidades abandonadas. (ANTUNES, 1984, p.13)

Essas referências são o nacionalismo de Salazar e a religião católica. Eles o queriam


ver como guerreiro exemplar, era essa a formação que esperavam que o exército lhe
desse. Nota-se, nesse trecho, também a seleção de memórias no grupo familiar por meio
da exposição dos objetos representantes do ideal guerreiro-religioso e do “exílio” da
pintura que representava o ideal “libertário”. Ao grupo familiar interessava a memória
do socialismo como “idéia tenebrosa e deletéria”. Entretanto, a representação dessas
lembranças no romance subverte esse sentido que o grupo familiar impunha aos objetos
da casa. Depois de passar pela experiência do combate nas colônias africanas, o
narrador ironiza os valores que constituem a imagem do seu passado. A metamorfose
pela qual passará o personagem não será positiva. Além disso, a imagem da multidão,
que na Revolução Francesa vê cair a nobreza, agora assisti ao seu próprio enforcamento.
A multidão vê seus filhos seguirem para a morte na África, enquanto a burguesia, na
qual se inclui o narrador, assiste a sua partida como sonho de um feito heróico:

De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio


cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida
ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose,
compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor
patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anônima
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semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir,


impotente, à sua própria morte. (ANTUNES, 1984, p.13)

Segundo Halbwachs, citado por Burke (2000, p. 70): “São os indivíduos que
lembram, no sentido literal, físico, mas são os grupos sociais que determinam o que é
‘memorável’, e também como será lembrado.” O fato de o desenho da guilhotina
constar no relato do narrador já é significativo do fracasso do grupo familiar em
selecionar seu esquecimento. A noção de história como produto de grupos sociais é
marcada também nesta citação:
(...) a idéia de uma África portuguesa, de que os livros de História do
liceu, as arengas dos políticos e o capelão de Mafra me falavam em
imagens majestosas, não passava afinal de uma espécie de cenário de
província a apodrecer na desmedida vastidão do espaço (...)
(ANTUNES, 1984, p. 104).

A memória coletiva que se presta como referência para a construção das imagens das
lembranças tanto quanto a história citada enquanto disciplina são histórias de grupos
sociais, impregnadas da religiosidade e do imperialismo do colonizador. Dessa maneira,
a história não é artifício de verossimilhança, não serve apenas como referência do real
no plano literário, mas é tratada como um discurso. O romance ironiza a história oficial
da Guerra Colonial, com a associação dos combatentes aos heróis dos Descobrimentos,
“Cabrais” e “Gamas”, e mostra como os discursos oficiais minimizaram os horrores da
luta:
(...) calcule o senhor presidente o que será desaparecer de súbito um
bocado de si, os legítimos descendentes dos Cabrais e dos Gamas a
sumirem-se por frações um tornozelo um braço (...), faleceu em
combate explica o jornal, mas é isto falecer seus filhos da puta (...),
cobriam-se as bombas de napalm com oleado e o governo afirmou
solenemente Em caso nenhum recorreríamos a tão cruel meio de
extermínio, eu vi cobrir as bombas em Gago Coutinho (...)
(ANTUNES, 198, p. 91).

Ainda que neste trecho o narrador afirme que testemunhou o fato, não se deve perder
de vista que se trata de uma obra literária, portanto, sem compromisso com a
veracidade. Burke (2000, p.74) ressalta o caráter de representação ao comentar os meios
de transmissão das memórias: “Precisamos nos lembrar de que esses relatos não são
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atos inocentes da memória, mas antes tentativas de convencer, formar a memória de


outrem.” Nesse sentido, no romance de Lobo Antunes, o relato do narrador pode ser
uma maneira de lutar contra o esquecimento desse episódio na história portuguesa, visto
que não se trata de um episódio amplamente discutido no País, apesar dos 13 anos de
guerra:

Se a revolução acabou, percebe?, e em certo sentido acabou de fato, é


porque os mortos de África, de boca cheia de terra, não podem
protestar, e hora a hora a direita os vai matando de novo, e nós, os
sobreviventes, continuamos tão duvidosos de estar vivos que temos
receio de, através da impossibilidade de um movimento qualquer, nos
apercebemos de que não existe carne nos nossos gestos nem som nas
palavras que dizemos, nos apercebemos de que estamos mortos como
eles (...). (ANTUNES, 1984, pp.52-53)

Segundo Eduardo Lourenço (2007, p. 62): “A revolução de Abril foi recebida e


festejada como uma simples mudança de cenários gastos que não alteraria o pacatíssimo
e delicioso viver à beira-mar plantado, nem alteraria em nada a imagem que os
Portugueses se faziam de si mesmos.” De acordo com o autor, a Revolução não
significou, para Portugal, um momento de tomada de consciência das mazelas mais
profundas do colonialismo e a revisão do mito de povo colonizador. Os horrores da
guerra só foram percebidos pela população quando “milhares de retornados invadem de
súbito a pacífica e bonacheirona terra lusitana...” (LOURENÇO, 2007, p.63). Esse
quadro que se apresenta ao povo português fará com que seja necessário não apenas a
revisão do que foi a Guerra Colonial, mas também da postura da população diante do
colonialismo e da Revolução de Abril, considerando as verdades históricas como
discursos produzidos.
O romance estrutura-se em torno da temática da guerra colonial e do pós-guerra.
Entretanto, Maria Alzira Seixo (2002, p. 499) aponta a experiência pós-colonial na obra
de Lobo Antunes como “motivação pretextual de escrita”. As guerras e os
deslocamentos que o colonialismo provocou são pretextos para a transfiguração de
experiências humanas. Desse modo, a situação do pós-colonialismo leva à
problematização, por exemplo, de questões relativas à identidade e à relação com o
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outro. Não se trata, portanto, apenas da identidade portuguesa, mas da construção de


identidade nesta complexa situação de encontro com o outro. O narrador se vê numa
guerra em que não reconhece o outro como inimigo, não reconhece como seu o
território pelo qual luta, não se sente superior quando vence, tampouco considera vitória
a morte do inimigo. Ademais, essas complexas relações sociais não se resolverão com o
fim da guerra. O drama dos soldados da Guerra Colonial não se resolve com a volta
para casa. O sentimento de pertença à pátria que os enviou a “lugares abandonados pela
memória” é rasurado pela permanência dessa memória da agonia nos retornados e pelo
esquecimento da guerra na sociedade.
A aprendizagem que se esperava tornar o narrador um grande herói também não
ocorre:
De fato, e consoante as profecias da família, tornara-me um homem:
uma espécie de avidez triste e cínica, feita de desesperança cúpida, de
egoísmo, e da pressa de esconder de mim próprio, tinha substituído
para sempre o prazer da alegria infantil, do riso sem reservas nem
subentendidos, embalsamado de pureza, e que me parece escutar,
sabe?, de tempos em tempos, à noite, ao voltar para casa, numa rua
deserta, ecoando nas minhas costas numa cascata de troça.
(ANTUNES, 1984, p.25)

O personagem retorna da guerra “mais humano”, porém não superior em virtudes e


mais sábio pelas aprendizagens da viagem. Ao contrário, “mais humano” significa, aqui,
na medida normal dos homens, sem a superioridade dos valores épicos. A aprendizagem
que se fez nesta viagem aos “cus de Judas”, afinal, foi a da agonia. A esta aprendizagem
se opõe a aprendizagem da infância, esta sim, da alegria, que é ainda guardada na
memória, mas que apenas ecoa às suas costas, sem preencher a vida, que fora
substituída pela memória da agonia nos “cus de Judas”. Nesse sentido, compreende-se a
expressão que dá título ao livro, pois as colônias africanas em guerra teriam sido
banidas da memória dos portugueses, por isso é preciso narrar de outro modo que não o
da história oficial esses horrores.

REFERÊNCIAS
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ANTUNES, Antônio Lobo. Os cus de Judas. Lisboa: Vega, 1979.


BENJAMIM, W. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Lisboa: Editora Gradiva, 2000.
HALBWACHS, M. Memória coletiva e memória histórica. In: A memória coletiva. São
Paulo: Centauro, 2006.
BURKE, P. História como memória social. In: Variedade de história cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
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UMA RELEITURA DO CORPO FEMININO EM O ALEGRE CANTO DA


PERDIZ DE PAULINA CHIZIANE

Anamélia Fernandes Gonçalves (UFSJ)


Adelaine LaGuardia (UFSJ)

Introdução

Paulina Chiziane, natural da Província de Gaza, localizada ao sul de Moçambique,


surge no circuito da produção literária internacional com a obra Niketche: Uma História
de Poligamia (única publicada no Brasil), em 2003, embora já tivesse lançado três
outros títulos anteriormente. Sua primeira obra de ficção – Balada de Amor ao Vento –
é publicada em 1990. Inserida em um contexto de produção literária caracteristicamente
masculina, Chiziane ganha notoriedade, juntamente com Noêmia de Sousa (poesia) e
Lília Momplé (prosa de ficção), dentro do restrito cenário literário de autoria feminina
em seu país. Considerada a primeira romancista de Moçambique, destaca-se pela
temática centrada na mulher e na condição feminina em África, embora se recuse a
levantar - explicitamente - qualquer bandeira feminista, conforme afirma em entrevista
concedida sobre Niketche:
Quando pronuncio a palavra feminista, faço-o entre aspas, porque não
quero associar-me às loucuras do mundo. É um livro feminino porque
nele exponho a mulher e o seu mundo, embora não seja uma obra que
desafie o estatuto da própria mulher. Isso ajuda a reflectir e reconhecer
afinal quem é a “mulher” com que nós vivemos. É a minha forma de
contribuir para a compreensão dessa realidade e, quem sabe, ajudar a
definir novos caminhos. Também é uma paixão. Gosto de escrever
sobre mulheres. Vou escrever sobre o quê, se não sobre o que sei?!
Não sou capaz de ter uma visão assexuada da vida. 1

A linha cronológica da produção literária da autora revela um projeto que delineia


uma configuração corporal. A mulher e seu corpo constituem o centro do interesse
narrativo que atinge seu maior nível de complexidade no último livro, intitulado O
Alegre Canto da Perdiz, publicado em 2008. Neste, a materialidade física feminina

1
Disponível em www.ccpm.pt/paulina.htm. Acesso em 15 de Agosto de 2008.
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alcança uma densidade significativa, o que nos impede de ignorar sua presença
enquanto categoria de análise. O corpo das mulheres no romance entrecruza-se com o
próprio corpo da nação moçambicana, cujas histórias vão se misturando em um
processo de releitura crítica da construção de ambos.
Neste artigo, nos propomos a analisar como se deu a construção do corpo das
personagens Delfina e Maria das Dores dentro do romance, numa tentativa de
compreender os aspectos relacionais implícitos na edificação desta categoria. Uma vez
que o romance tem como pano de fundo os cenários colonial e pós-colonial em
Moçambique, investigamos também a hipótese de a categoria corpo atuar como
elemento de mediação da narrativa de uma nação gendrada. Essa proposta se justifica
nas palavras de Tânia Swain, quando esta chama a atenção para a força da materialidade
física do corpo feminino na construção da identidade de gênero:
Que faço eu de mim? No pronome oblíquo, o desdobramento do
sujeito em objeto. Na ação, o assujeitamento a práticas regulatórias ou
à reflexão crítica que faz de mim uma “forasteira de dentro” ancorada
em minha identidade de gênero, experiência de um corpo sexuado,
cuja pesada materialidade pede um questionamento (SWAIN, 2007, p.
231).

A mulher, assim como o negro, carrega o peso das implicações biológicas,


naturalizadas pela cultura. É no corpo de ambos que a cultura inscreve a diferença, a
partir de marcas que buscam justificar os estereótipos aos quais são submetidos. A
cultura apaga as semelhanças, ao mesmo tempo em que realça as diferenças entre os
sexos, naturalizando-as, como nos lembra Gayle Rubin:
Men and women are of course different. But they are not as different
as day and night, earth and sky, yin and yang, life and death. In fact,
from the standpoint of nature, men and women are closer to each other
than either is to anything else – for instance, mountains kangaroos, or
coconut palms. The idea that men and women are more different from
one another than either from anything else must come from
somewhere other than nature (RUBIN, 2001, p. 546).

Na visão do feminismo radical, “o corpo aparece como o centro de onde emana e


para onde convergem a opressão sexual e a desigualdade” (PISCITELLI, op.cit., p. 46).
Segundo Swain, “(...) o sexo biológico tomado como dado natural, não problematizado,
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é o produto de um sistema de representações do mundo, de um regime de verdade que


constrói a diferença ao anunciá-la” (SWAIN, op.cit., p. 228).
Sobre o corpo feminino estão inscritos códigos culturais, naturalizados pela
construção de uma narrativa produzida por um sistema social e político que sempre
relegou a mulher à margem, utilizando-se para tanto de essencialismos biológicos que
promoviam um reducionismo da mulher a seu corpo e do corpo ao sexo.
Mesmo a uma primeira leitura, a centralidade do corpo no romance de Chiziane pode
ser evidenciada: “Maria deve ter sido casada e repudiada. Por esterilidade. A obsessiva
ideia da mulher mãe afasta a mulher estéril da categoria humana” (CHIZIANE, 2008, p.
32) 2. Sendo assim, nesta leitura buscar-se-ão as configurações do corpo de maneira
historicizada, para evidenciar os aspectos relacionais que o constroem discursivamente,
evitando, desse modo, o perigo de se instituírem verdades incontestáveis, semelhantes
àquelas que, por tanto tempo, oprimiram e violentaram a mulher.

1. O (en)canto do corpo

A partir do corpo de Maria das Dores, nu às margens de um rio, cena com a qual
inicia-se a narrativa, a autora traça a genealogia da personagem, e, ao desvelar sua
história descreve, em um processo simultâneo, os mitos de origem da Zambézia
(província matriarcal situada ao Norte de Moçambique) e da própria África. Desse
modo, constrói uma rede discursiva que costura relatos míticos com fatos históricos,
dentro da própria trama narrativa.
Delfina, mãe de Maria das Dores é uma das personagens centrais do romance. Trata-
se de uma mulher que não sucumbe às normas estabelecidas para a população feminina
de seu país e transgride muitas regras morais de seu tempo, na busca por melhores
condições de vida. Através dessa manifestação de rebeldia, lança mão do poder de sua
corporeidade e impõe-se como sujeito da (sua) história (moçambicana) buscando, a todo
custo, o branqueamento de seus filhos, de forma a garantir para si um status
privilegiado dentro do sistema colonial.

2
Doravante as citações a O Alegre Canto da Perdiz serão feitas utilizando-se apenas o número da página
consultada.
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Por sua vida, passam os personagens José dos Montes, o negro com quem tem dois
filhos: Maria das Dores e Zezinho; Soares, o português branco, pai de Luisinho e da
mulata Jacinta (cujo nascimento promove a elevação social de Delfina e a derrocada de
José dos Montes); além deles, há o amante negro, o feiticeiro Simba, a quem Delfina
vende sua filha negra – Maria das Dores. O corpo da menina é utilizado como moeda de
troca pela própria mãe, quando esta é abandonada pelo segundo marido, o português
Soares, que a deixa para voltar para a metrópole com sua esposa branca.
Na obra em questão, o corpo feminino, representado pelo corpo de Maria das Dores -
a filha negra de Delfina – emerge da narrativa e exige do leitor um olhar atento que
perceba os novos contornos que se insinuam através de sua reescritura. A escrita de
Chiziane vai, aos poucos, descortinando detalhadamente as particularidades desse corpo
africano, moçambicano de Maria das Dores:
A multidão vê a mulher nua sentada num trono de barro, beira do rio.
Na posição de lótus, colocando a sua intimidade na frescura do rio.
Vê-lhe o interior desabrochado, como um antúrio vermelho com
rebordos de barro. Vê-lhe as tatuagens no seu ventre de mulher
madura. Vê-lhe o corpo esguio, pequeno, recheado à frente, recheado
atrás, esculpido por inspiração divina. Vê-lhe a pele macia, de café
torrado. Os lábios gordos como um tutano, cheios de sangue, cheios
de carne. Olhos de gata. Vê-lhe o cabelo e sobrancelhas macias e
fartas como novelos de seda, com gotas de água escorrendo sobre as
costas, como contas de lágrimas, na grinalda de uma noiva. (p. 12-13)

Alheio aos preceitos ocidentais que inferiorizavam a mulher por suas conformações
biológicas, o romance de Chiziane inicia-se justamente com ênfase naquilo que
supostamente fragiliza a mulher, ou seja, seu corpo:
Um grito colectivo. Um refrão.
Há uma mulher nua nas margens do rio Licungo. Do lado dos homens.
- Ah?
Há uma mulher na solidão das águas do rio. Parece que escuta o
silêncio dos peixes. Uma mulher jovem. Bela e reluzente como uma
escultura maconde. De olhos pregados no céu, parece até que guarda
algum mistério.
- Quem é ela?
Uma mulher negra, tão negra como as esculturas de pau-preto. Negra
pura, tatuada no ventre, nas coxas, nos ombros. Nua assim completa.
Ancas. Cintura. Umbigo. Ventre. Mamilos. Ombros. Tudo à mostra.
(p.11).
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A nudez torna o corpo feminino novamente visível e o reabilita no cenário das relações
de gênero. O corpo à mostra torna-se para as outras mulheres um espelho maldito, no
qual projetam sua própria imagem corporal, negada e reprimida por séculos. O poder do
corpo, transformado em discurso por Chiziane, e que fala às mulheres sobre sua própria
condição aceita como natural, emerge repentinamente da malha narrativa e projeta-se
como ameaça à ordem estabelecida: “Aquela presença era o prenúncio do
desaparecimento da espécie dos galináceos. Nas curvas da mulher nua, mensagens de
desespero” (p. 12). Desse modo, o reaparecimento do corpo e, por conseguinte, do sexo,
incomoda a turba, principalmente o grupo indignado das mulheres. Como consequência,
a multidão vai aumentando e se fortalecendo, buscando desesperadamente uma maneira
de vestir a mulher nua a qualquer custo, para que o caos não se instaure e possa se
restabelecer a tranquilidade.
- Usa a tua roupa, desconhecida. [...]
- Vá, veste-te já, mulher! [...]
- Mulher, não tens vergonha na cara? Onde vendeste a tua vergonha?
Não tens pena das nossas crianças que vão cegar com a tua nudez?
Não tens medo dos homens que te podem usar e abusar? Oh mulher,
veste lá a tua roupa que a tua nudez mata e cega.. [...]
- Ouve, mulher: se não te vestes a bem, vais vestir-te a mal (p. 14-15).

O corpo feminino despido institui-se assim como um centro de construção da


alteridade. Uma mulher outra se posiciona frente às semelhantes para que as mesmas
possam promover uma percepção de si mesmas, percepção possibilitada pelo
desnudamento das diferenças (culturais) inscritas em um corpo supostamente igual.
Maria das Dores questiona o significado da nudez e põe em xeque o peso das
instituições simbolizadas pelas roupas e tudo que significam, inclusive a sobrecarga da
própria opressão feminina:
Será que estou nua, mãe? A nudez que elas viam não é a
minha, é a delas. Dizem que não vejo nada e enganam-se. Cegas são
elas. Gritam sobre mim a sua própria desgraça e me chamam louca.
Mas loucas são elas, prisioneiras, cobertas de mil peças de roupa
como cascas de uma cebola (p. 17).

Ora, a cebola é toda casca, e quando retiramos a última, não há um corpo


remanescente. O discurso instituído sobre o corpo provoca uma anulação gradativa
desse mesmo corpo, negando-o. A roupa-discurso iguala todas as mulheres.
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- Maria, tens que te vestir.


- Para quê?
- Para te protegeres e seres igual às outras mulheres.
A nudez de Maria era o regresso ao estado de pureza. Da
transparência. As mulheres ficam escandalizadas, porque o nu de uma
se reflecte no corpo da outra (p. 33, grifo nosso).

Ao ser exposto o corpo, expõe-se também o sexo que, dentro do contexto da


narrativa, constitui-se como o centro do poder e não da fragilidade feminina. A mulher
lança mão de sua capacidade de procriação para manipular seu destino dentro da
narrativa e, dentro de um nível mais profundo de leitura, para se projetar como sujeito
da construção nacional.
Esse corpo nu e imóvel, treinado para ser dócil e disciplinado, que não reagiu às
imposições de Delfina e, posteriormente, do marido Simba, provoca uma discussão que
desnaturaliza a condição feminina, aceita pelas próprias mulheres, promovendo um
deslocamento discursivo. A pretensa fixidez se torna o símbolo de um movimento
importante: o corpo em performance produz um gesto de petrificação da imagem para
que o mesmo possa ser observado e (re)visto. Despido, revela as articulações de um
pensamento que constrói uma imagem mítica da mulher e de seu corpo: “A imagem de
Maria distorce o sentido mágico da nudez das sereias” (p. 15). A imagem da sereia é
entendida como a imagem da meia mulher, cuja metade não mulher insinua a ausência
do sexo, uma característica relevante na construção da identidade feminina. Ao expor
seu sexo, Maria das Dores reinstala uma discussão importante sobre o mesmo,
revelando de que modo a construção do corpo, especialmente do corpo feminino,
perpassada pelas relações de gênero, pode ser relacionada à própria construção histórica
da nação.
Na história do corpo da mulher, a história da nação moçambicana é subitamente
revelada, permitindo o vislumbre de conflitos étnicos travados pelos antepassados.
Primeiro, entre os nativos entre si e, posteriormente, por outros povos, como os árabes e
os portugueses. No corpo negro de Maria estão impressas as feridas resultantes das
guerras, a dor dos filhos que partiam nos navios para serem escravos em outras terras, as
marcas dos diferentes povos que guerreavam durante o dia e se amavam à noite. As
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mulheres abrigaram em seus ventres as sementes dessa relação paradoxal, dando origem
a uma nova nação.
O processo de gestação da nação moçambicana passa, inevitavelmente, pelo corpo
feminino, pelo seu sexo. A nação é representada pelo corpo doloroso de Maria das
Dores, onde ficou tatuada a genealogia das variadas gestas advindas de diferentes
ventres e lugares e as marcas dos conflitos entre esses povos diversos, assim como os
sinais das lutas culturais travadas no interior das batalhas étnicas - a construção de
nova(s) língua(s), raça(s) e crença(s). Como fênix renascida, a cultura nacional ressurge
da destruição operada na cultura de origem.
Somente o desnudamento permite que esse corpo fale, revelando na pele a própria
história de sua construção. “O ser humano despe-se das suas roupas, mas nunca dos
seus actos. As imagens amargas estão gravadas nas córneas como tatuagens” (p. 189).
Uma nação que nasce, literalmente, pelo corpo da mulher.
A nudez de Maria das Dores, possibilita um processo de auto(descobrimento) do
corpo. A suposta fragilidade se reveste de um poder inesperado, descortinado pela
revel(ação) desse corpo. No texto de Chiziane, o corpo feminino emerge do rio – e da
narrativa -, exigindo do leitor um olhar atento, que perceba os novos contornos que se
insinuam através de sua reescritura. Chiziane abre-se a um discurso particular sobre o
corpo que aqui funciona como um novo significante:
As tatuagens belas, geométricas, pareciam uma teia, malha, cinto de
renda bordada à mão, cobrindo apenas o ventre. [...] Reconhece as
origens de Maria. São tatuagens lómwè. Ela é oriunda das montanhas,
e naquelas veias corre o sangue sagrado das pedras. Era a filha da
terra, regressando da grande viagem, chamada pelos espíritos. Para
curar-se nas águas do Licungo ou para escalar o monte do repouso
eterno. [...] As tatuagens remontam ao tempo do esclavagismo, a velha
sabe. Os povos africanos tiveram de carimbar seus corpos com marcas
de identidade. Cada tatuagem é única. É marca de nascença. No corpo,
desenhando-se o mapa da terra. Da aldeia. Da linhagem. Em cada
traço uma mensagem. Árvore genealógica (p. 31).

A mulher do régulo, idosa, símbolo do saber acumulado, lê as tatuagens sobre a


superfície da pele de Maria, decifrando os segredos desse signo novo, imbuído de
significados inusitados. Através dessa leitura, identifica as cicatrizes genealógicas,
sociais e culturais que foram sendo impressas sobre o corpo feminino, metonímia da
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própria África. As tatuagens são as marcas deixadas pela memória de uma história de
violência e opressão. Uma história que envolve não apenas o colonizador, mas o próprio
homem africano, num contexto de relações sociais polêmicas entre homens e mulheres.
O corpo nu chama a atenção, choca, perturba, justamente pelo fato de (des)velar um
quotidiano naturalizado que faz passar despercebida sua construção cultural. Nele estão
inscritas as marcas da opressão feminina na África. A investigação dessa escrita cultural
do corpo nos permite ler, sob uma outra ótica - perpassada pelo viés das construções de
gênero – a própria história da ocupação do território africano.
A referência ao povo lómwè confere a Maria uma ancestralidade pré-colonial. Essa
origem possui um berço territorial específico: os montes Namuli, situados na cidade de
Gurué, conhecidos como sendo o berço da grande família lómwè-Macua, de onde
irradiaram os vários ramos para diferentes regiões. O lómwè é um dos maiores grupos
étnicos de Moçambique. A cidade de Gurué e a província da Zambézia são as
referências topográficas de conotação metonímica representantes da nação. Percebemos
aqui as bases comuns de formação de uma identidade nacional: uma origem étnica
comum, vinculada a um território determinado. Os montes Namuli, sempre
reverenciados como localidade sagrada, possuem uma existência geográfica real, assim
como a cidade do Gurué, cujo nome remete ao título da obra. Gurué é uma referência ao
canto da perdiz, de cujo ovo teria saído toda a humanidade. Esse mito de origem, assim
como outros presentes na narrativa, vêm legitimar essa construção, pois neles também
estão presentes, explícita ou implicitamente, os símbolos que se referem às localidades
relacionadas anteriormente.
Tais marcas podem trazer à tona antigas divisões tribais e relembrar velhos conflitos.
Atualizados pelas inscrições na pele nua de uma mulher negra de origem rural humilde,
tais conflitos entre tribos se desdobram em divisões outras como as de classe, gênero e
etnia. Assim, a Zambézia dá corpo a uma nação primordial, que une todos sob um
mesmo objetivo comum: “No princípio éramos apenas um. Um povo. Uma família, um
exército de resistência. De repente ficamos diferentes” (p. 128). Esse povo é evocado
como os m’zambezi, que se ramificam em nharinga, Nama ya roi, cuja relação com a
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terra é descrita por um viés de afetividade interfamiliar, em que sobressai o amor entre
pai e mãe ou deles com seus filhos:
A voz dos m’zambezi se ouvia mais alto. Lutando desesperados pela
Zambézia amada, pátria de palmeiras altas, semeadas pelas mãos dos
escravos como testemunhos da história. Defendem o Zambeze, seu
rio, onde os peixes saborosos brincam como nenúfares florindo nas
ondas. Apesar do sofrimento – dizem no canto – é bom nascer na
Zambézia. O chão é de mármore, ouro e madrepérola, é bom viver na
Zambézia. A relva é de verde-vivo e os montes cobertos de antúrios.
A terra inteira é uma laje florida, que convida ao repouso eterno. É
bom morrer na Zambézia (p. 129).

A Zambézia é o topônimo da pátria. O limite territorial necessário para que a


abstração da nação se concretize. É o lugar privilegiado do híbrido, representado pela
imagem dos antúrios. A terra é um dos aspectos essenciais de identificação entre os
membros pertencentes a um mesmo grupo. O elemento que tem o poder de unificar as
diferenças individuais, provocando uma sensação de irmandade entre os membros de
uma comunidade.
José dos Montes, por outro lado, é a referência corpórea dos Montes Namuli, os
quais, por sua vez, podem ser lidos como a representação fálica da nação Zambeziana.
José dos Montes e Delfina: os Montes Namuli e a Zambézia. Metonímias que
concretizam o jogo por meio do qual se deu a construção de um mito ancestral de nação,
ou de uma nação imaginada, nos termos de Benedict Anderson, em Comunidades
imaginadas (2005), em que a imagem feminina é convocada a todo o momento. A
indicação dos elementos geográficos é sempre construída por meio de uma rede
semântica de referência à mulher e às suas atribuições corporais:
Descobre que a terra está madura e fértil como o ventre da mulher
negra, aguardando o sêmen para o prolongamento da vida. Ah, minha
Zambézia virgem, enfeitada de palmar. Minha Zambézia de beleza
ímpar, que coloca o fogo da paixão no coração dos homens (p. 158).

O corpo da nação, representado no texto pela Zambézia, espaço metonímico da


África e metaforizado no corpo negro feminino, exerce um poder sedutor sobre o
colonizador, que deseja possuí-lo a qualquer preço:
De todas as sereias, a Zambézia era a mais bela. Os marinheiros
invadiram-na e amaram-na furiosamente como só se invade a mulher
amada. A Zambézia bela, encantada, gritava em orgasmo pleno: vem,
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marinheiro, ama-me, eu te darei um filho. Eu e tu, sempre juntos,


criando uma nova raça. Em todo o lado deixaremos marcas do nosso
amor. Deixaremos um mulato em cada grão de areia, para celebrarmos
a tua passagem por esse mundo! [...] A Zambézia abriu o seu corpo de
mulher e se engravidou de espinhos e fel. Em nome desse amor se
conheceram momentos de eterno tormento e as lágrimas tornaram-se
um rio inesgotável no rosto das mulheres. As dores de parto se
tornaram eternas, os filhos nasciam apenas para morrer, eram carne
para canhão (p. 63-64).

Pode-se observar, pelo excerto acima, que mulher e terra confundem-se no romance.
Ambas são corpos geradores de vida: “Pisa com firmeza a terra vermelha. Menstruada.
Terra parturiente. Sente que dentro de si o cordão umbilical se rompe e a sua imagem se
ergue infinitamente para o sol escondido na noite” (p. 129). No processo de construção
narrativa, ao situar a mulher ao lado do homem e evidenciar sua importância na
construção da história nacional, a autora promove uma inversão da lógica patriarcal
colonial. Em um diálogo entre José dos Montes, o marido negro de Delfina e Moyo,
uma espécie de sábio feiticeiro a quem José recorre na tentativa desesperada de resolver
sua situação conjugal, percebe-se que na opinião dos homens, Delfina não se deixa
manipular, mas que, ao contrário, tem consciência da força de sua corporeidade:
- A Delfina! Ela sabe com quantas linhas se cose o amor, e com
quantos suspiros se enlouquece o mais forte dos homens. Estão a
assediá-la? Tens a certeza?
- Vão prostituí-la outra vez.
- Ela é o palco e a artista. O teatro inteiro. Sempre foi (p. 167).

José dos Montes atribui a Delfina, ou ao corpo da mulher todo o poder sobre a
procriação: “Pertence a Delfina todo o bordado e toda a trama. Que faça o que lhe der
na gana. O filho é dela, o ventre é sua pertença” (p. 143). A própria Delfina coloca seu
corpo como instrumento fundamental de ascensão social:
O que querem eles de mim? Que me levante ao cantar do galo para ir
semear arroz? [...] Não! Prefiro oferecer as doçuras do meu corpo aos
marinheiros e ganhar moedas para alimentar a ilusão de cada dia. A
natureza deu-me um celeiro no fundo do meu corpo. Uma mina de
ouro (p. 81).

É por meio de seu corpo que a mulher negocia seu espaço social e, por conseguinte,
o destino da nação, uma vez que a procriação é a estratégia da qual se utiliza para
sobreviver em universo masculino de negros e brancos, cuja mestiçagem facilitará o
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processo de independência do país. Numa leitura alegórica, percebe-se um projeto de


construção da nação que privilegia o hibridismo 3.
Em uma conversa com a filha Maria das Dores, Delfina diz:
Sou das que hibernam de dia, para cantar com os morcegos a sinfonia
da noite, sou feiticeira. Tive todos os homens do mundo. Dois
maridos, muitos amantes, quatro filhos, um prostíbulo e muito
dinheiro. O José, teu pai negro, foi a instituição conjugal com que me
afirmei aos olhos da sociedade. O Soares, teu padrasto branco, foi a
minha instituição financeira. O Simba, esse belo negro, foi minha
instituição sexual, o meu outro eu de grandezas imaginárias, que me
deixou para ser seu marido (p. 44).

A passagem acima revela um discurso que se refere à própria historia da África,


também composta de diferentes etnias negras em um tempo ancestral, mas que
posteriormente seduziu e atraiu outros povos, prostituindo-se em situações de
convivência/conivência com o colonizador. Seu povo também contribuiu ao entregar
seu corpo para a gestação de uma nova raça. Tornou-se sipaio, corpo assimilado
voluntariamente, em alguns momentos, mesmo que tal fato se justifique pela própria
situação de opressão vivenciada.

Conclusão

O Alegre Canto da Perdiz transforma a dimensão física feminina em corpo-


significante que pode ser lido como um signo novo, imbuído de múltiplos significados.
Dentre eles, o próprio corpo da nação moçambicana, com suas chagas e cicatrizes
históricas. O corpo dessa nação é figurado como corpo de mulher, cuja sexualidade viva
e vibrante transforma-se em um esquema alegórico. No processo de construção
narrativa, a autora promove uma inversão da lógica patriarcal colonial situando a
mulher como protagonista da construção da nação.
Delfina escolhe seus parceiros e, através de seu corpo e poder de sedução, vai parir
os filhos que deseja ter. Como dito anteriormente, a narrativa de Chiziane constitui um

3
Uso aqui o termo “hibridismo” no sentido de mestiçagem, conforme teoriza Maria Lugones, no texto
Pureza, impureza y separación (1999). A autora compreende a mestiçagem como um elemento
intermediário que se interpõe entre os conceitos de puro e impuro, definidos por uma tentativa de controle
que busca uma pureza absoluta.
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projeto de construção da nação que privilegia o hibridismo. Para alcançar seu intento,
Delfina manipula as instituições e os homens, tanto o negro quanto o branco. Descarta
José dos Montes – o negro com quem já havia tido um casal de filhos negros – quando
lhe é conveniente, para enredar o branco Soares que lhe possibilitará gerar filhos
mulatos, além de manter em sua rede de relações o amante Simba, o que lhe garantirá a
satisfação sexual. Na mistura de raças da família percebe-se a própria hibridização da
nação moçambicana e a polêmica contribuição do nativo para o projeto colonial.
A autora subverte o conceito de mulher e de nação representados como vítimas
incondicionais e objetos passivos da colonização, colocando-os em uma posição de
sujeitos que protagonizaram papéis fundamentais no processo de construção da nação
moçambicana.

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a


expansão do nacionalismo. Lisboa/Portugal: Edições 70 Ltda, 2005.
CHIZIANE, Paulina. O Alegre Canto da Perdiz. Lisboa: Editorial Caminho, 1998.
LUGONES, Maria. Pureza, impureza y separación. In: CARBONELL, Neus; TORRAS,
Meri (orgs.). Feminismos literários. Madrid: Arco/Libros, S.L., 1999. p. 235-264.
PISCITELLI, Adriana. Reflexões em torno do gênero e feminismo. In: Claudia de Lima
Costa e Simone Pereira Schmidt (Orgs). Poéticas e Políticas feministas. Florianópolis:
Ed. Mulheres, 2005, p. 43-66.
RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes on the ‘Political Economy of Sex’. In:
RIVKIN, Julie; RYAN, Michael (eds.). Literary theory: an anthology. Malden:
Blackwell, 2001. p. 533-560.
SWAIN, Tânia Navarro. Meu corpo é um útero? Reflexões sobre a procriação e a
maternidade. In: Cristina Stevens (org). Maternidade e Feminismo: Diálogos
interdisciplinares. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007, p.
203 – 247.
www.ccpm.pt/paulina.htm. Acesso em 15 de Agosto de 2008.
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BAUDELAIRE-AUTOR AOS SEUS LEITORES: IDENTIDADE ATRAVÉS DOS


TEXTOS, TEXTURA E TESTAMENTO

Anderson Francisco Ribeiro (PG-UEL/ Fundação Araucária) 1

- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!


Baudelaire, Ao leitor, As Flores do Mal (BAUDELAIRE, 1995, p.104)

INTRODUÇÃO

Retrato de Baudelaire por Gustave Coubert. Montpellier, Museu Fabre, 1847.

O retrato acima é o ideal que temos hoje de Baudelaire. Uma pessoa


compenetrada, lendo, com uma caneta de pena pronta pra ser usada. Um autor de
postura, bem vestido.
Ilusão a nossa que esse retrato feito por Gustave Coubert, fosse lido dessa forma.
Podemos ver bem que a relação mesma é de um Baudelaire sem uma estante de livros,
apenas com essencial para o trabalho do literato, que na época sem dinheiro por uma
intervenção familiar (em 1844) iria deixá-lo com pouco dinheiro.

1
Este texto compõe parte das minhas pesquisas da dissertação: Lendo Baudelaire, do autor ao
leitor: textos, textura e testamento / Anderson Francisco Ribeiro. Mestrado em Estudos
Literários – Londrina, 2010. (no prelo) Orientador: Dr. André Luiz Joanilho.
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As Flores do Mal 2, livro célebre de Baudelaire, que aos nossos olhos vemos
como uma obra prima da literatura francesa, passa pela mesma ilusão do retrato acima.
A obra pronta e acabada não é de forma alguma a pensada por Baudelaire. Muitos
procedimentos foram necessários para que se chegasse à obra que temos hoje em mãos.
Processos judiciais, títulos, escritos, poemas, falta de dinheiro, viagens marítimas,
revoluções em Paris, tudo está de certa forma vinculado ao livro que conhecemos. Junto
ao título deste trabalho e as páginas seguintes podemos perceber a preocupação de
Baudelaire em arrumar sua obra, seja através de correções mínimas (como as imagens
das páginas iniciais deste trabalho), como a própria arte de escrever seus poemas:

[...] autores e editores têm sempre uma clara representação, são as


competências que supõem nele que guiam seu trabalho de escrita e de
edição; são os pensamentos e condutas que desejam nele que fundam
seus esforços e efeitos de persuasão. É possível, portanto,
interrogando de novos os textos e os livros, revelar as leituras que
pretendiam produzir, ou aquelas tidas como aptas para decifrar o
material que davam a ler. [...] (CHARTIER, 2001, p. 20)

Nós, como leitores que somos, esquecemos tudo isso, quando lemos o livro. Mas
a história não esquece. O processo da obra não esquece. A literatura não esquece.

1. O papel do leitor e as orelhas do livro

Vendo a proposta do autor e da edição, estamos habilitados a reconhecer a


importância do leitor e de sua formação, da relação que este leitor tem com os livros ou
mais expressamente com os autores de um determinado livro. Pesquisas realizadas em
diversos núcleos e disciplinas, como a crítica literária, a literatura, a semiótica, e a
história, tentam formatar um ponto em comum para o estudo da leitura, do livro e suas
apropriações:

2
A edição de As Flores do Mal, que utilizaremos aqui, como as demais obras são partes
integrantes de uma coletânea de textos traduzidos no Brasil das obras completas de
Baudelaire e organizada por Ivo Barroso. Charles Baudelaire: Prosa e Poesia: volume único; edição
organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguiar, 1995 (Biblioteca Universal)
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[...] (Tentar) reconstruir a diversidade de leituras mais antigas a partir


de seus vestígios múltiplos e esparsos, e identificar as estratégias
através das quais autoridades e editores tentaram impor uma ortodoxia
ou uma leitura autorizada do texto. (CHARTIER, 1992, p.215)

Entre eles congressos, livros, debates ajudam a compor essas possibilidades de


leitura 3, mostrando assim a multiplicidade de práticas culturais no tempo e espaço,
aparecendo assim, protocolos de leitura do autor ao editor. Protocolos esses, que tentam
frear a livre interpretação de seus leitores, concebendo assim, meios de organizar seu
pensamento idealizando um leitor, ou seja, o autor procura um tipo de “leitor ideal”.
Assim como o editor também vai procurar um leitor, ou “consumidor ideal” para a
compra e aquisição do livro. E também desta importância que se tem da História do
livro, conforme apontada por Robert Darnton (1990, p. 112), em O que é a História dos
livros?:

Do autor ao editor [...] ele transmite mensagens, transformando-as


durante o percurso, conforme passam do pensamento para o texto,
para a letra impressa e de novo para o pensamento. A história do livro
se interessa por cada fase deste processo e pelo processo como um
todo, em todas as suas variações no tempo e no espaço, e em todas as
suas relações com outros sistemas, econômico, social, político e
cultural, no meio circundante.

Existe então uma operação de leitura plural, de diferentes tipos onde o papel do
leitor vai ser parte da tensão central desse tipo de estudo, já que a leitura ela não é
passiva, e sim uma prática criativa.
Roger Chartier (1992, p.215) aponta algumas possibilidades já sendo executadas
tanto pela crítica literária, quanto pela fenomenologia do ato de ler, da “estética de
recepção”, como nas tentativas filosóficas, como a obra de Paul Ricoeur, em Temps et

3
CHARTIER, Roger. (Org.) Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. – 2. Ed. –
São Paulo-SP: Estação Liberdade, 2001. Este trabalho reúne estudiosos de diferentes áreas
que compareceram a um encontro sobre o tema de leitura, promovendo o confronto entre
diferentes trabalhos de modo a obter o campo dos estudos referentes às práticas de leituras.
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récit: “Ler é entendido como uma “apropriação” do texto, tanto por concretizar o
potencial semântico do mesmo quanto por criar uma mediação para o conhecimento do
eu através da compreensão do texto”.
Para compreender essa forma de apropriação e reutilização do texto, levantamos
algumas indagações: Por quais protocolos as obras de Baudelaire tiveram de passar?
Qual o tipo de leitor tanto Baudelaire procura? Como se dá o processo judicial que irá
impor novas formas para a obra? E a sua construção? Como são essas leituras?
Com essas perguntas emergindo, observamos aqui neste trabalho como de
herético “satânico” processado por imoralidade, ele passa a um ideal de cânone
literário. 4

2. A literatura como leitura. Do Cânone à ruptura

A “literatura” tal como entendemos hoje, nos passa a ideia da formação


consolidada de certos cânones, ou seja, leituras obrigatórias, que dizem mais, ou
melhor, sobre a nossa sociedade. Mas, se fizermos uma retrospectiva tal como coloca o
historiador Raymond Williams em seu livro Marxismo e Literatura (1979), poderíamos
assim, mostrar como o termo além de recente, está situado como consolidação do
“refinamento” dos “gostos” burgueses, como compreende também Pierre Bourdieu em
As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário:

Assim, esta claro que o campo literário e artístico constitui-se como


tal na e pela oposição a um mundo "burguês" que jamais afirmara de
maneira tão brutal seus valores e sua pretensão de controlar os
instrumentos de legitimação, tanto no domínio da arte como no
domínio da literatura, e que, por intermédio da imprensa e de seus
plumitivos, visa impor uma definição degradada e degradante da
produção cultural. O desgosto mesclado de desprezo que inspiram

4
Em junho de 2007, a obra poética de Charles Baudelaire completou 150 anos. Foram na
França organizadas comemorações, destacam-se leituras de poemas, mesas redondas
promovida pela Société des gens de lettres, intitulada “Du procès des Fleurs du Mal aux
nouvelles formes de censure” e um leilão organizado pela Sotheby’s contendo raridades tais
como um exemplar de Les Fleurs du mal dedicado ao pintor Eugène Delacroix, de quem o
poeta era fervoroso admirador (SOUZA, 2010, s/p.)
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nos escritores (Flaubert e Baudelaire especialmente) esse regime de


novos-ricos sem cultura, inteiramente colocado sob o signo do falso e
do falsificado, o crédito concedido pela corte das obras literárias mais
comuns, aquelas mesmas que toda a imprensa veicula e celebra, o
materialismo vulgar dos novos mestres da economia, o servilismo
cortesão de boa parte dos escritores e dos artistas não contribuiu
pouco para favorecer a ruptura com o mundo ordinário que e
inseparável da constituição do mundo da arte como um mundo a
parte, um império em um império. (BOURDIEU, 1996, p.75-76)

Tentamos apontar nesse trabalho parte da antiga fórmula própria da literatura


mais como ideia de alfabetização, de capacidade e experiência de leitura, ou seja, a
partir da Literatura, como categoria de uso e uma condição mais do que da produção.
Como percebemos, ampliado seu sentido, o termo literatura se torna parte de uma ideia
de grupos sociais característicos, que deteriam o “capital cultural”, como diria o
sociólogo Pierre Bourdieu.
A partir de Gutemberg e do Renascimento, e mais precisamente no século XIX,
o termo literatura torna-se parte de uma sensibilização do escrito, onde as qualidades
literárias, uma especialização da literatura através de uma didática que cria as condições
de uma “tradição” como veríamos com a literatura nacional, desfoca o sentido do termo
e reutiliza-o, mostrando o que é uma obra literária, e como ela deveria ser, mostrando-se
prontas a servir um país, assim elegendo cânones (dentro de uma lista) e
desqualificando as outras obras:

A literatura viu nascer o cânone clássico na Idade Média, com Dante


e os autores selecionados para a “bella scuola”. Já o cânone moderno
inicia no Renascimento italiano estendendo-se para a França. A
pretensão à universalidade do cânone só começa a perder suas forças
no século XVIII quando o juízo estético deixou de ser considerado
universal, e os ‘clássico’ perderam a condição de modelos absolutos e
eternos. Perrone-Moisés assegura que é possível explicar o cânone
moderno a partir da teoria kantiana, em que o juízo estético parte do
princípio do consentimento, ou seja, ao longo de um determinado
período, uma obra e seu escritor que tiveram maior assentimento,
independentes das transformações ocorridas nas sociedades, tornam-
se obras modelares. Dessa maneira, a sociedade, não raro, é
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assujeitada por um discurso dominante que lhe faz calar a voz,


“consentir” às decisões dos superiores. (JACOMEL, 2010, p.4-5)

Esse consentir que nos é “proposto” como forma de dizer que tal obra é
importante, e outras não o são. A partir dessa ideia poderíamos sugerir as ideias de
“gostos” burgueses que iriam influenciar não só a literatura, mas sua produção e sua
crítica, assim o “gosto” fala mais alto e deve demonstrar como devemos seguir certas
regras, comportamentos dentro de espaços público ou privados, da nossa importância de
distinguir o que é bom e o que não é.
Como veremos o gosto hoje pelo herético, por aquilo que era considerado
imoral, e hoje nos parece como natural, consideramos Baudelaire como um dos grandes
nomes da literatura mundial, sendo nossa pesquisa de sua vida como sua obra, explicada
por Ivan Junqueira em A arte de Baudelaire (BAUDELAIRE, 1995, p.61):

Qualquer abordagem à poesia de Baudelaire, por mais despretensiosa


e insipiente que seja – e este estudo, quando muito, nada mais é do
que isso -, não se pode furtar a uma das tantas exigências ou mesmo
imposições de índole biográfica e literária. [...] o legado de As Flores
do Mal da convulsa existência do seu autor, pois, como salienta
Pierre Emmanuel apoiado numa observação de Eliot, Baudelaire é: “o
maior arquétipo do poeta na época moderna. [...]”.

Parece como tortuoso seu papel como poeta em seu tempo, final do século XIX,
considerado imoral, herético, satânico, conforme o processo instaurado por causa de seu
livro de poesias, As flores do mal 5. Seria considerado apenas um autor medíocre, onde
em tão poucas páginas traziam muitos seios, ou melhor, “tantos seios mastigados”,

5
Processo que aconteceu em 27 de agosto de 1857, na 6ª vara Correcional, sendo condenado
à multa de 300 fr. por imoralidade da obra. Baudelaire em carta a princesa pediu que
intercedesse por ele na condição de poeta e que teria uma revisão do julgamento apenas em
31 de maio de 1949. Para o processo da obra de Baudelaire, e as cartas e artigos que foram
anexadas em seu processo, temos o livro GAUTIER, T. Baudelaire. (2001). O processo
encontram se disponíveis nas Oeuvres Complètes de Baudelaire (1976) e Documents sur le
procès des Fleurs du mal no site Wikisource (BAUDELAIRE, 2009).
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como definiriam Gustave Bourdin, crítico literário que lança um breve artigo
condenando As Flores do Mal.

3. A Heresia de Baudelaire: Ler As Flores do Mal

O estudo em questão é a do processo de instauração de uma obra literária,


conduzidas pela pesquisa a partir de alguns leitores fizeram da obra de Baudelaire, e
como sendo autor se relacionava com a produção da sua obra.
Por isso, o ano de 1857, é tão importante. É o ano da publicação do livro As
flores do mal e ano do processo judicial contra a sua obra pelo advogado imperial
Ernest Pinard 6, que também, alguns meses antes acusou de imoralidade a obra Madame
Bovary de Gustave Flaubert.7
Vários poemas de Baudelaire já haviam sido publicados em alguns jornais da
época e já situava se como um nome conhecido entre seus pares. Por isso, para essa
empreitada, colocaremos a leitura da obra de Baudelaire por uma série de literatos e
figuras da época, que vão mostrar como foi equivocado o processo da obra, tentando
ajudar Baudelaire a escapar da punição do governo para com a sua obra de poesia:

Em 1857, cerca de 1100 exemplares de Les Fleurs du Mal, de


Charles Baudelaire, ganhavam finalmente as livrarias, depois de
quatro longos meses de correções das provas, de fevereiro a junho,
pelo exigente poeta, que esgotava assim a paciência de seu temerário
editor, Poulet-Malassis, da cidade de Alençon. Esta primeira edição
de 1857 não tardará a ser censurada e seus exemplares recolhidos
pela justiça. De fato, desde a publicação, em 25 de junho, a obra só
havia recebido críticas extremamente negativas, sobretudo do jornal
conservador Le Figaro: “l’odieux y coudoie l’ignoble; le repoussant
s’y allie à l’infect.” Artigos elogiosos, notadamente o de Barbey
d’Aurevilly, serão recusados pela imprensa. O ano de 1857 estava
marcado pela censura do Segundo Império. A derrota dos
6
Esta acusação do então substituto advogado imperial, Ernest Pinard foi publicada, sem
indicação de fonte, em 1885 (p. 368-387) na Revista dos grandes processos contemporâneos
dirigida por G. Lèbre, advogado ao Tribunal de Paris.
7
Para o processo da obra de Gustave Flaubert, ver: FLAUBERT, G. Madame Bovary.
Costumes da Província. Tradução, apresentação e notas de Fúlvia M. L. Moretto. – São Paulo:
Nova Alexandria, 2001 e ver também a crítica literária de Baudelaire sobre Madame Bovary.
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revolucionários de 1848 teve como consequência o golpe de Estado


de Louis-Napoléon Bonaparte, em 2 de dezembro de 1851,
derrubando a Monarquia de Julho. Baudelaire, que havia apoiado o
movimento de 48, odiava os valores burgueses encarnados pelo poder
e tão alardeados pelo General Aupick, seu padrasto. (SOUZA, 2010,
S/P.)

Situados nesse contexto a preocupação de como deveria ter sido lido o livro de
poemas, seja no aspecto jurídico, seja no aspecto cultural/social, esclareceremos alguns
pontos interessantes com a relação às possibilidades de estudos dentro das áreas da
História e da Literatura, mais precisamente do campo hoje conhecido como História da
Leitura, conforme veremos no primeiro capítulo da dissertação que será defendida (no
prelo). E poderemos entender parte dos mecanismos da cultura escrita, que fazem desde
o texto formulado ao livro consumido pelo leitor. Poderíamos por assim dizer, refazer o
caminho da produção do livro, e a relação dela com a leitura:

Seria preciso refazer, nessa perspectiva, a história dos movimentos


poéticos que se ergueram cada um por sua vez contra as encarnações
sucessivas da figura exemplar do poeta, Lamartine, Hugo, Baudelaire
ou Mallarmè, e, com base nos grandes textos constitutivos e
legislativos, prefácios, programas ou manifestos, tentar redescobrir a
configuração objetiva do espaço e das formas e das figuras possíveis
ou impossíveis tal como se apresentava diante de cada um dos
grandes inovadores e a representa, ao que cada um deles fazia de sua
missão revolucionaria, formas a destruir, sonetos, alexandrinos,
poema e "ronrom poético", figuras de retórica a demolir, comparação,
metáfora, conteúdos e sentimentos a banir, lirismo, efusão,
psicologia. Tudo se passa como se, ao expulsar do universo da poesia
legitima os procedimentos cujo caráter convencional se denuncia sob
o efeito do desgaste, cada uma dessas revoluções contribuísse para
uma espécie de analise histórica da linguagem poética, que tende a
isolar os procedimentos e os efeitos mais específicos, como a ruptura
do paralelismo fonossemântico. (BOURDIEU, 1996, p.271-272)
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Para isso usaremos a concepção do historiador Roger Chartier tem sobre a


relação do livro e da leitura, e seu diálogo quanto aos procedimentos de Robert Darnton
também estudante dessa área, incorporando nela outros elementos.

Considerações Finais

Apesar das dificuldades, sempre aparecerão nas relações da produção do livro e


seu cotidiano, ou pelo menos parte dele para descobrirmos parte deste processo. Para
isso, correspondências, memórias, produções autobiográficas, processo incriminatório,
tanto de Baudelaire quanto o de Flaubert ou textos que evoquem os que participaram de
certa forma dessa produção. Mas sem esquecer-se de seus usos:

[...] Isso sem perder de vista que é preciso distinguir analiticamente


entre a correspondência, que é produzida no tempo curto dos
acontecimentos, que é produzida no tempo curto dos acontecimentos,
contemporânea aos dramas e aos desafios do tempo vivido, e a
evocação posterior que, na perspectiva do historiador, tem efeitos e
sentidos diversos, como alertam as teorias da memória ao ressaltar o
quanto o ato de rememorar é trabalho que não produz o vivido, mas
dele se apropria a partir do presente. Tais fontes de natureza pessoal e
biográfica são imprescindíveis para flagrar o cotidiano das redações e
a atuação de seus mentores, apesar de exigirem ampliação do
percurso teórico e o enfrentamento da questão do uso das “escritas de
si”. (LUCA, 2008, p. 122)

Também as discussões encontradas com o papel da cultura, e do nosso


pertencimento a determinados grupos sociais, que representa as qualidades necessárias
para julgar o quanto sabemos, e quem cria as regras do gostar. Entender como a
sociedade vê essa relação do livro e da leitura. No caso aqui estabelecer a França do
século XIX e alguns de seus leitores, e o modo como aponta a leitura da obra de
Baudelaire.
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Indicados os pontos e problemáticas envolvidas um estudo mais especifico sobre


como Baudelaire foi lido, através dos resquícios do que sobraram dessas leituras, como
é o caso do processo jurídico contra Baudelaire seria necessário.

Referências

SOBRE CHARLES BAUDELAIRE

BAUDELAIRE, Charles. Charles Baudelaire: Prosa e Poesia: volume único; edição


organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguiar, 1995 (Biblioteca Universal)

BAUDELAIRE, Charles. In: Documents sur le procès des Fleurs du mal. Wikisource.
Desenvolvido pela comunidade do Wikisource. Apresenta material proveniente de
diversas formas de fontes primárias. Disponível em:
<http://fr.wikisource.org/wiki/Documents_sur_le_proc%C3%A8s_des_Fleurs_du_mal.
>. Acesso em: 2 Abril 2009.

BENJAMIM, Walter. Passagens. Org. Willi Bolle. Trad. do alemão: Irene Aron.
Tradução do francês: Cleonice Paes Barreto Mourão. . Belo Horizonte: Editora UFMG;
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

GAUTHIER, Theóphile. Baudelaire. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo, Boitempo editorial,
2001

MENEZES, Marcos Antonio de. Um Flâneur pedido na metrópole do século XIX:


História e Literatura em Baudelaire. (tese de doutoramento em História) UFPR, 2004

OEHLER, Dolf. O Velho Mundo Desce aos Infernos: auto-análise da modernidade após
o trauma de junho de 1848 em Paris. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

TROYAT, Henri. Baudelaire. São Paulo. Scritta, 1995

REFERÊNCIAS

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de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
_________________. Cultura Escrita, Literatura e História. Conversas de Roger
Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio
Saborit. – Porto Alegre: ARTMED Editora, 2001.
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CHARTIER, Roger. “Textos, impressões e leituras”, in: HUNT, Lynn (org.). A Nova
História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

DARNTON, Robert. História da leitura. In: BURKE, Peter. (org.) A Escrita da


História. Novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. – São Paulo: Editora UNESP 1992. –
(Biblioteca Básica)

_____________________O beijo de Lamourette: reflexões sobre a história cultural.


São Paulo: Cia da Letras, 1990.

DE CERTEAU, Michel de. Ler: Uma operação de caça. A Invenção do Cotidiano 1.


artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, pp. 264-268.

FLAUBERT, G. Madame Bovary. Costumes da Província. Tradução, apresentação e


notas de Fúlvia M. L. Moretto. – São Paulo: Nova Alexandria, 2001

GAY, Peter. Modernismo. O fascínio da heresia De Baudelaire e Beckett e mais um


pouco. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

JACOMEL, Mirele Carolina Werneque. Uma leitura do processo de formação do


cânone literário: o relativismo e a pretensão de universalidade. Disponível em:
http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/travessias/ed_001/cultura/UMA
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Acessado em 05/05/2010

JOANILHO, André Luiz Joanilho. JOANILHO, Mariângela Peccioli Galli. Sombras


literárias: a fotonovela e a produção cultural. Revista Brasileira de História. São Paulo,
v. 28, nº 56, p. 529-548 – 2008

LUCA, Tânia Regina de. A Revista do Brasil (1916-1944): notas de pesquisa. In:
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Editora UNEPS: ANPUH, 2008.

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Representação e Modernidade (1861-1867). Trabalho de Conclusão de Curso.
Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho – PR (2006).

SOUZA, Germana H. Pereira de. Os 150 anos das Flores do Mal e o papel dos
primeiros baudelairianos no Brasil. Disponível em:
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O EMBRULHO DA CARNE, DE SÉRGIO SANT’ANNA: TERESA EM ANÁLISE

Anderson Possani Gongora (PG-UEL)

“Todo aquele que manipular a violência será finalmente manipulado por ela.”
René Girard

Todo indivíduo, para viver em comunidade e se adequar à racionalidade ou à


irracionalidade dos inúmeros sistemas construídos e impostos pela e para a humanidade,
precisa enfrentar um violento jogo extra e intrapessoal e estar sempre alerta, com o
propósito de permanecer livre de afrontas e injustiças. A dependência do meio ambiente
e a influência que ele exerce sobre as pessoas são condições irreversíveis,
principalmente para os mais frágeis que lutam pela sobrevivência física, moral,
intelectual e até mesmo religiosa. Os meios para proteger-se dos problemas e as técnicas
para o apaziguamento dos sentimentos que comprometem o equilíbrio da vida se tornam
cada vez mais complexos. O desejo frente ao outro, as disputas e o ódio diante das
dificuldades existentes levam, quase sempre, às contendas, aflições, perturbações e até
mesmo às vinganças. Ilegitimamente, os atos são desencadeados pela opressão, e esta,
muitas vezes está além da prevenção, de forma que a violência se torna interminável do
ponto de vista sociológico.
Aspirar à igualdade nesse mundo conturbado seria quase uma utopia se não fosse a
eterna condição humana de buscar melhoras diante do desconhecido. Nesse contexto, as
conseqüências provindas dos desajustes sociais são regidas por leis nem sempre
convincentes, obscuras, e que, para muitos, a justiça terrena, ou até mesmo a divina, não
passam de mais uma incerteza diante da universalidade do que se quer buscar, ou seja,
diante de um significado preciso para os acontecimentos. O que existe com mais
precisão e regularidade é, para muitos, apenas uma imagem desfigurada da realidade na
qual estão fundidos o corpo e a alma. Enquanto estes não forem separados, o que
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permanece é uma síndrome de solidão, angústia e impotência, tanto em relação à vida


como também, e principalmente, em relação à morte.
A metamorfose da violência se expande de tal forma que há sempre novas
possibilidades de interações entre os indivíduos e o mundo. Na verdade, as interações
são recíprocas e se constituem através de infindas e renovadas linguagens, e estas são
produzidas pelo meio social, de forma que se firmam através da complexa fragilidade
da mente, onde o principal objeto lesado é o corpo. A inanição que persiste neste parece
mais de ordem espiritual e moral do que biológica. Não há como exaurir esse problema
e, visto que as condições humanas são limitadas, muitas vezes o que resta é um
desespero diante de tudo e de todos.
Sérgio Sant’Anna, escritor nascido no Rio de Janeiro em 1941, é autor de vários
livros, entre eles, O Vôo da Madrugada, editado pela Companhia das letras em 2003 e
vencedor do Prêmio Jabuti 2004. Nesse livro de contos, é possível compreender parte da
realidade social através de textos que apresentam situações corriqueiras, porém, por
serem audaciosas, remetem a questões universais, como morte, sexualidade, identidade,
entre outras.
No conto “O embrulho da carne”, que pertence à primeira parte do livro já citado,
também fica explícito um universo contraditório onde as personagens reais da ficção
são exemplos claros de conflitos existenciais que acompanham muitas pessoas que
fazem parte do conturbado cotidiano citadino, promovido cada vez mais pelo crescente
capitalismo. Como afirma André Bueno:

o país já está formado, o futuro já chegou, em vários sentidos está


mesmo passando ao largo, e a prometida modernização do nosso
capitalismo deu no que deu, acesso civilizado em pequena escala,
violência e barbárie em grande escala (BUENO, 2002, p. 32).

Como exemplo dessa realidade, apesar de o próprio autor já ter afirmado em


entrevista a Suênio Campos de Lucena de que não se preocupa com a literatura
engajada, ao final do conto há uma nota por meio da qual ele esclarece:
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este conto foi imaginado a partir de matérias, sobre o mesmo crime,


publicada em O Dia e no Jornal do Brasil de 23.3.1987, um tempo em
que ainda havia açougues onde se embrulhava carne com jornais, mas
o texto só veio a ser escrito em 1999 (SANT’ANNA, 2003, p.71).

Partindo disso, como na maioria de seus contos, situações ambíguas também levam a
refletir sobre a ambigüidade do próprio ser humano, pois a maioria de seus personagens
possui crises existenciais onde questões de identidade são freqüentes. Nesse conto, a
narrativa parece ter sido criada pela própria personagem e somente para si mesma, como
se ela fosse engodada por uma necessidade intrínseca de preencher o seu cotidiano
vazio.
A cada conto Sérgio Sant’Anna procura uma nova linguagem, e no “O embrulho da
carne” predomina um diálogo entre Teresa, a protagonista, e o seu médico psicanalista,
chamado Elias. Este procura, a cada consulta, resolver os problemas da paciente que
são, quase sempre, de ordem sexual e psicológica. O papel do narrador é o de apenas
situar o leitor quanto aos movimentos e estado de espírito das personagens durante a
consulta, e muitas vezes, ele faz isso somente através de rubricas, como num texto
dramático.
Teresa é separada, depressiva, fumante impulsiva, vive à base de remédios, e quando
é acometida de crises, procura imediatamente uma forma de desabafo. Em um desses
casos, após ter sido vítima de um acidente de carro, resolve ir ao psicanalista para contar
o que se passara no dia anterior, ou seja, a sua saída para a rua em desespero, o acidente
causado pelo efeito inebriante do antidepressivo e, logo em seguida, relata o encontro
com Ivan, o homem que na ocasião a socorrera, levando-a para casa. Meio embaraçada
Teresa o agradeceu e fez um convite para jantarem juntos no dia seguinte no
apartamento dela. O convite foi aceito e ela, prevendo já um possível relacionamento
amoroso, se animou. Eis como conta a Elias:

E ele aceitou na hora o convite para vir jantar no dia seguinte; quer
dizer, hoje, e agora estou desse jeito e não sei o que fazer. Ele falou
que ia trazer o vinho e me perguntou se a gente ia comer carne ou
peixe; então eu perguntei o que ele preferia e ele disse carne,
prontamente, de um modo que me pareceu malicioso e me incomodou
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um pouco, pois, afinal, ele era praticamente um estranho, que só viera


ao meu apartamento por causa de um acidente (SANT’ANNA, 2003,
p. 57).

O que atormenta a personagem não é simplesmente esse fato, porém, outro que
desencadeara desse: resolveu ela mesma ir, no lugar de Neuza, a empregada, comprar e
preparar a carne para o jantar combinado. Entretanto, o susto foi grande ao desfazer o
embrulho, pois o plástico, que envolvia a carne, fora embrulhado com um jornal que
trazia uma notícia de um assassinato, junto com a fotografia de uma jovem mulher. E
Teresa continua a falar:

Parece que aquela mulher tinha mesmo de entrar na minha vida, para
detonar tudo. Como se tivesse um encontro marcado comigo. Entenda
bem que eu embolei o jornal que embrulhava o plástico com a carne e
atirei-o na lata de lixo, só que ele caiu fora da lata. E, não sei por quê,
num determinado instante, talvez porque o jornal se mexesse enquanto
eu cortava a carne pensando naquelas coisas todas, olhei para lá e não
pude deixar de ver. A mulher enforcada com a própria saia.
Amarraram a saia no pescoço dela e puxaram pelas pernas. Não tenho
certeza, mas acho que o jornal fez um barulhinho se mexendo, que me
assustou. Essas coisas acontecem, um papel embolado se mexer. Aí eu
me fixei na foto da mulher e não consegui mais me desligar. Foi como
se ela me atraísse, me obrigasse a olhá-la (SANT’ANNA, 2003, p.60).

A partir desse fato, o jornal que a incomoda se torna o liame narrativo e Elias procura
conduzir o diálogo de forma a relembrar outro episódio violento que a perturbara
anteriormente a esse, também impresso em jornal, ao que “ela ri, nervosamente, e
parece sentir um prazer compulsivo ao recontar a história” (SANT’ANNA, 2003, p. 60).
Com isso, Teresa passa a assumir a identidade da moça assassinada, revelando que a sua
é frágil, ou seja, não possui uma identidade própria, fixa, mas está sempre em busca de
identidades provisórias.
Teresa não conseguiu mais prosseguir com a preparação do jantar e tentou a qualquer
custo se desfazer da notícia, principalmente da imagem que a deixou em aflição, porém,
como um ímã, pelo que conta a Elias, não conseguia se desfazer do jornal. Quis jogá-lo
pela janela, mas inventou uma desculpa para ficar mais um tempo se “dilacerando” com
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o fato. E, pelo que diz, ela chegou a ponto de “incorporar” até mesmo a identidade física
da moça assassinada:

Eu posso ser uma burguesinha fresca que faz análise, mas, de repente,
aquela moça enforcada era eu, entende? E muito mais do que você
imagina. Porque eu era ela até fisicamente, pois minha mão estava
suja da tinta do jornal e engordurada da carne. Na pressa de sair da
cozinha, nem lavei as mãos e, para mim, eu estava engordurada era da
carne da moça. Ao mesmo tempo, era eu quem balançava, enforcada,
na escuridão da noite, num vagão de trem abandonado. E não havia
ninguém para vir em meu socorro; não havia ninguém comigo
(SANT’ANNA, 2003, p.64).

Para se desfazer do jornal de uma forma purificadora para que aquela imagem não
viesse mais à sua mente, ela ateou fogo nele com o isqueiro, isso, segundo ela, “porque
o fogo consome e purifica tudo” (SANT’ANNA, 2003, p.64). Se não fosse a
empregada, esse “ato de purificação” teria causado um incêndio muito maior além da
queima da roupa de cama e do colchão. Após esse acontecimento, Teresa precisava de
um amparo, por isso, antes de ir fazer análise, ligou até mesmo para o ex-marido,
Rodrigo, mas teve a infelicidade de ser atendida pela nova mulher dele que já esperava
um filho, o que deixou Teresa ainda mais chateada, pois nunca conseguira realizar o
sonho do ex-marido de ter uma família. Ela não teve filhos simplesmente por medo e
dizia a Elias que não suportaria “aquele negócio de ter uma criatura dentro do meu
corpo, que depois vai rasgar as minhas carnes para nascer num mundo desses”
(SANT’ANNA, 2003, p. 66).
Além do jantar marcado com o novo amigo ainda desconhecido, Teresa possui mais
dois encontros, e Elias também chega a essa conclusão já no final das sessões de
análise, quando do encontro com a moça do trem. É provável que, inconscientemente,
ela teria colocado fogo no colchão para ter uma ocasião de se encontrar com o próprio
analista, demonstrando a carência afetiva e a sua necessidade de amparo. Além disso,
ela mesma se considera meio louca; a tudo complica e impõe obstáculos, tem medo de
tudo e de todos, até mesmo de se libertar da própria loucura que a acompanha, pois o
fim de tudo isso poderia trazer um vazio ainda muito maior.
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O resultado da análise é um novo e estranho envolvimento, agora, com o próprio


Elias. Teresa não tem medo dele e passa a desejá-lo sexualmente, por isso não quer que
a consulta chegue ao final. O tempo foi aumentado para mais meia hora e enquanto ele
se ausenta para resolver outro problema, como num passe de mágica, Teresa se
recupera, parece estar novamente satisfeita e decidida a ir jantar com o Ivan.
Os últimos parágrafos do conto são surpreendentes e deixam claro que há muita
imprevisibilidade na vida de Teresa:

_ Decidiu comer a carne, Teresa?


_ Quer saber de uma coisa, Elias? Saindo daqui, vou passar numa
loja de colchões e vou comprar um colchão novo e exigir que eles
entreguem ainda hoje, antes do jantar, nem que eu pague um
dinheirão. Esse colchão vai pegar fogo hoje à noite, Elias. Porque
eu vou comer a carne, vou comer o Ivan, e, se você deixasse, comia
você também. – Teresa dá uma gargalhada, deliberadamente louca.
_Bom jantar, Teresa – Elias diz, já com a mão na maçaneta da porta
e num tom que procura ocultar todo sinal de sarcasmo.
_ Para você também, Elias, seja lá o que for que você vai comer –
ela diz, com uma risada, não procurando ocultar o que quer que seja.
E, na hora de trocarem beijos no rosto, ela se aproxima, bem mais do
que habitualmente, seus lábios dos dele.
Na sala de espera, Teresa vê, sentada a uma poltrona, uma mulher
fumando, fixando uma revista, com ar de enfado, como se tivesse
com o pensamento em outro lugar muito longe, dentro de si mesma.
Ela levanta os olhos para Teresa, deixando transparecer uma grande
hostilidade. Mas Teresa a desarma, dizendo:
_ Tudo de bom para você, querida.
A mulher ensaia um pálido sorriso:
_Para você também (SANT’ANNA, 2003, p. 70).

Entre outras possibilidades de leitura desse conto, podemos perceber que Teresa é
um personagem que reflete bem o sujeito da pós-modernidade. Ela vive em constantes
conflitos, não tem capacidade para resolver os seus problemas, por menores que sejam
eles, e além de tudo, tem a necessidade de assumir novas identidades, ou pelo menos
fingir que elas existem, convergindo-as para a sua vida. Nesse caso, cabe aqui uma
citação de Baudrillard, ao estudar alguns aspectos contemporâneos sobre simulacros e
simulação. No texto intitulado “A precessão dos simulacros” ele indaga:
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Ora que pode fazer a medicina com o que paira aquém e além da
doença, aquém e além da saúde, com a reiteração da doença num
discurso que não é nem verdadeiro nem falso? Que pode fazer o
psicanalista com a reiteração do inconsciente num discurso de
simulação que nunca mais pode ser desmascarado, já que também
não é falso (BAUDRILLARD, 1991, p. 10).

Ou seja, Teresa finge pela necessidade de fingir, ela existe como pessoa física, mas
também é um ser formado a partir de tudo o que a ela circunda. As influências do social,
como por exemplo, o da mídia, com o seu discurso e imagens convincentes, ajudam a
levá-la a um novo posicionamento diante dos fatos violentos divulgados, onde uma
espécie de humor e de sadismo se confunde. No diálogo que a protagonista tem com
Elias, ao contar esses fatos, em alguns pontos predominam as marcas do discurso
jornalístico, como se no seu subconsciente, ela também incorporasse esse caráter
profissional.
O conto também pode ser visto como uma espécie de texto “metafictício”, visto que
é produzido com base numa notícia de jornal e, além do mais, todo o enredo vai sendo
desenrolado pelo narrar da própria protagonista a partir de um texto imagético.
Confirmando o que Ítalo Calvino, ao estudar aspectos do conto, no capítulo
“Visibilidade”, chama de “caminho livre para uma fantasia do tipo onírico”
(CALVINO, 1990, p. 105), ou seja, imagens que poderiam ser consideradas até mesmo
inúteis são como uma avalanche que atinge as pessoas, e muitas vezes passam a ser
significativas para elas.
Dessa mesma forma acontece com a influência da violência urbana na vida de
Teresa, ela é um bom exemplo do que Stuart Hall chama de sujeito descentrado. Nesse
caso, o desespero diante de fatos corriqueiros que a princípio não tem nada a ver com
ela acaba por se tornar o seu problema central. A violência de sua vida é ligada
diretamente à violência brutal dos fatos externos a ela. Outro exemplo violento
lembrado por Elias, onde alguns sujeitos cortam a cabeça e esquartejam o corpo de uma
pessoa deixando uma parte em cada lugar para “ironizar” a polícia, deixa evidente que a
violência não existe simplesmente por instinto, mas funcionando como forma de
oposição ao poder instituído, que também usam, muitas vezes, de violência contra eles.
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Esses exemplos confirmam o que é considerado por Ronaldo Lima Lins, como o
surgimento de um novo homem: o homem violento. Ele mesmo acrescenta:

Pode-se dizer, sem exagero, que o novo homem cedeu lugar ao homem
violento, um tipo que “luta contra todos os habitantes da cidade” e
que se destaca de seu antecessor pelo caráter cotidiano e onipresente
de seu organismo. A humanidade tem sido, ao longo dos tempos, uma
velha amiga da violência. O que a particulariza agora, entretanto, é o
deslocamento que esta última sofreu dos movimentos da história para
o espaço diário do cenário urbano (LINS, 1990, p. 51).

No caso de Teresa, a culpada de tudo parece ser a própria vida, e no diálogo com
Elias, em alguns momentos, até questiona a realidade e filosofa sobre Deus, porém, em
nenhum momento o conto deixa transparecer que tipo de religiosidade é a dela.
Esse sujeito descentrado de que fala Stuart Hall é o que tem a sua identidade
fragmentada, ou seja, não é mais um sujeito unificado e unificador.Ele é também
desprovido de qualquer maniqueísmo. A sua complexidade vem da interação social de
várias instituições, sejam elas formais/funcionais ou não, já que muitas delas também já
entraram em contradição e decadência. Quanto à sua própria identidade, é algo que se
torna fantasioso, mas que nunca se deixa de buscar. As constantes mudanças levam o
indivíduo à não assimilação dos fatos e à sua incompreensão. Os choques e as crises
internas são alimentados pelo que é externo, como no caso de Teresa que “vive” a
violência da outra moça. É o que Stuart Hall afirma: “essa ‘internalização’ do exterior
no sujeito, e essa ‘externalização’ do interior, através da ação no mundo social, (como
discutida antes), constituem a descrição sociológica primária do sujeito moderno e estão
compreendidas na teoria da socialização (HALL, 1999, p. 39).
O diálogo e a cena representada por Teresa e o psicanalista também são uma
representação do vazio social de que ambos fazem parte, ou seja, aqui podemos fazer
uma leitura em duas instâncias, uma que parte do analisado e a outra que parte do
analisador, onde sujeito passivo e sujeito ativo se confundem numa mesma
problemática. Assim, toda essa conturbação social evidencia e prevê o aumento do
dilaceramento da identidade e do corpo.
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REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da C. Pereira.


Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
BUENO, André. Formas da crise: estudos de literatura, cultura e sociedade. Rio de
Janeiro: Graphia, 2002.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da
Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
LUCENA, Suênio Campos de. 21 escritores brasileiros: uma viagem entre mitos e
motes. São Paulo: Escrituras, 2002.
SANT’ANNA, Sérgio. O embrulho da carne. In: O Vôo da Madrugada. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003. p. 56 – 71.
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A CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS FEMININAS EM VOZES NUM


DIVERTIMENTO, DE LUCI COLLIN

Andiara Maximiano de Moura 1 *(PG – UEM)

Introdução

A literatura é uma forma fictícia e verossímil de representar, através de seus


personagens, a sociedade em questão, ora saciando os desejos implícitos do ser
humano, ora criticando as formas de pensar / agir da sociedade (GOLDMANN, 1972).
Tendo isso em vista, o objetivo deste trabalho foi fazer uma análise das personagens
femininas presentes nos contos da coletânea de Luci Collin, intitulada Vozes num
divertimento, levando em consideração seus atos, suas falas e seus pensamentos,
visando à identificação do modo de construção de uma pequena parte das personagens
que compõem a literatura feminina contemporânea paranaense.
Nosso intuito foi verificar quais as marcas ideológicas subjazem à construção
desses personagens, se reduplicam, questionam ou ironizam as relações do gênero, no
contexto do século XXI. Trata-se de observar o modo como a autora vê e representa a
questão do gênero em sua obra.
Este trabalho está fundamentado na Crítica Literária Feminista e no pensamento
pós-estruturalista dos Estudos Literários, que considera o contexto histórico, social,
político e discursivo; e também a visão diferenciada da literatura e da instituição – um
ser participante e integrante da realidade extraliterária. Isso faz com que, ao se deparar
com um texto literário, não se atente somente a forma, mas também ao contexto.

1. Revisão teórica

1
Andiara Maximiano de Moura, mestranda, Universidade Estadual de Maringá – UEM –
andiara_max19@hotmail.com
* Lucia Osana Zolin, orientadora, Universidade Estadual de Maringá – UEM –
luciazolin@yahoo.com.br
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Durante muitos séculos, a mulher foi vista como um ser inferior ao homem, em
todos os meios (estético, social, histórico e político). O silenciamento feminino causou
uma exclusão social da mulher ao longo da história. Isso aconteceu devido aos valores
patriarcais existentes que via a mulher com o propósito único de procriação –
reprodutora da espécie – não dando credibilidade à sua capacidade intelectual. A
experiência feminina, no espaço cultural e literário, sempre foi visto como algo sem
importância. Com esse pensamento constrói-se a literatura androcêntrica.
Em meados do século XX, toda esta discriminação feminina chamou a atenção de
muitos estudiosos e intelectuais em geral, que passaram a atuar como agentes de um
discurso crítico, voltado para a conscientização e desconstrução da opressão e
marginalização da mulher.
A partir de 1960/70, começam a aparecer debates nos meios acadêmicos e políticos,
com relação à posição feminina no mundo. No que diz respeito à posição social da
mulher na literatura, sua aparição e percepção se devem ao feminismo, pois ele
justificou sua exclusão literária na situação sócio-histórica feminina.
Assim, os estudos feministas tiveram como objetivo investigar e transformar a vida
da mulher até então marginalizada e desvalorizada pelo homem. Ocorre uma quebra de
paradigmas existentes, ou seja, eles rompem com os discursos cristalizados pela
tradição e dão espaço à descoberta de uma nova visão, novos horizontes, novas
expectativas no campo intelectual feminino. A Crítica Feminista facilitou a
visibilidade da literatura feminina. A mulher passou a ser vista não apenas como uma
personagem que compunha a literatura masculina, mas também como participante na
produção crítica e literária.
No Brasil, a literatura de autoria feminina também era inexistente, como no
exterior. O cânone brasileiro era composto apenas por homens, dando a impressão de
que a mulher não participava da nossa história. A aparição feminina ocorreu
isoladamente nos anos de 1920 e 1940, com publicações de Raquel Queiroz e Cecília
Meireles, dentre outras, que acarretaram uma explosão de publicações femininas nos
anos 1970 e 1980. Mas, é Clarice Lispector que fez com que a literatura feminina
brasileira alcançasse seu devido valor e fosse reconhecida mundialmente.
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O movimento feminista chegou ao Paraná no final do século XIX e início do século


XX, e teve como figura principal a escritora Mariana Coelho, autora das obras Paraná
Mental (1908), que relata a história literária do estado e A evolução do feminismo
(1933), revelando, numa visão feminista, a presença da mulher como ser social, em
diferentes épocas.
Dessa forma, a literatura feminina desprende-se da literatura masculina, criando a
sua própria escrita, com seu distinto jeito de escrever, “buscando, por meio de seus
personagens, estabelecerem representações que questionam e contestam as posições
ocupadas por homens e mulheres na sociedade” (TEIXEIRA, 2008, p. 33).
Dentro deste arcabouço teórico apresentado, observa-se que a personagem de
autoria feminina possui um estilo novo e diferenciado dentro da literatura até então
criada. Isso nos convida a voltar um olhar mais detalhado para estes personagens
criados pela literatura feminina contemporânea, principalmente a paranaense.

2. Análise do corpus da pesquisa

Atualmente, a escrita feminina mostra a conquista da sua expressividade e passa por


um processo de construção das várias identidades da personagem “mulher”. As
personagens femininas reconstroem uma posição social de reclusão, retratando em sua
figura, marcas de emudecimento pela tradição dominante.
Como este trabalho objetiva analisar alguns contos de Luci Collin, é necessário nos
atentarmos no contexto em que a obra se insere, como se dá a sua economia, os
costumes, e principalmente, qual o papel da mulher neste meio, para compreender um
pouco mais deste universo analisado.
A colonização brasileira foi marcada pela agricultura, pois o Brasil possui clima e
solo favorável para o cultivo da terra. Com o passar dos anos, alguns estados se
industrializaram rapidamente, como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, mas
outros, por questões de localização, não acompanharam com tanta rapidez esse
progresso. O Paraná ainda possui traços marcantes dessa sociedade agrária, pelo fato
de a agricultura ainda ser a maior renda econômica da região. Por esses motivos,
Segundo Teixeira (2008), a mulher paranaense atual ainda é vista um pouco com olhos
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patriarcalistas, mesmo que possua uma profissão e trabalhe fora. Esse comportamento
está relacionado com a visão conservadora de suas práticas políticas ou sociais.
Na coletânea de contos Vozes num divertimento, Luci Collin trabalha com as
diversas posições da mulher do século XXI, mostrando em suas personagens a
multiplicidade de identidades femininas que compõe a sociedade contemporânea.
Para melhor compreensão e análise dos contos, dividir-se-á a coletânea de contos
em três categorias: 1) divagações sobre a escrita contemporânea, estrutura e nova
forma de se escrever; 2) representação de personagens presas à visão patriarcal; 3)
representação de personagens contemporâneas.
A primeira categoria é composta por contos, muitas vezes metalingüísticos, que
trazem a complexidade da escrita contemporânea, juntamente com personagens
complexos e descentralizados. Os contos que fazem parte desta primeira categoria são:
A última moda em Aquis (à guizo de prefácio); Nome: Omen; É; Qwando; Noir;
Sinopse.
O primeiro conto da coletânea, A última moda em Aquis (à guizo de prefácio),
consiste em divagações do narrador a cerca de diversos assuntos. Em primeira
instância, o conto chama a atenção por não possuir pontuação, nem ponto final. É
separado por blocos, porém, esses blocos estão ligados por letras, cujo final da palavra
de um bloco esta interligado com o início da palavra do bloco seguinte. Essa nova
estrutura de conto, logo no início da coletânea, é para apresentar ao leitor o que será
encontrado na obra – como o próprio título do conto já diz: prefácio – chamando a
atenção do leitor à observar e apreciar o diferente.
O conto Nome: Omen fala sobre um(a) autor(a) criando um homem. Nesta criação,
é imaginado um mundo paralelo para este, juntamente com sua aparência física,
profissão, família, relações sociais, etc. No final do conto, percebe-se que na realidade,
não é um homem perfeito que se está tentando criar, e sim uma nova forma de
escrever. O(a) narrador(a) inventa um homem para inventar uma nova forma de se
escrever, com significações próprias, usando palavras desejadas e formas específicas
para o emprego das normas gramaticais. Assim, pode-se afirmar que não é apenas uma
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história que o(a) autor(a) deseja criar, mas sim um conjunto de características
peculiares para sua escrita.
Como não há marcação de gênero no(a) narrador(a), pode-se dizer que poderia se
tratar de uma mulher. Se o narrador for uma mulher, percebe-se que esta personagem
é ousada, criativa, crítica, intelectual, com personalidade, entre tantas outras
qualidades, pois ela tem a audácia de criar um homem, ou uma nova escrita, não se
importando com o que a crítica dirá desta criação. Ao terminar o conto, observa-se no
excerto “O homem que inventei não é nem de longe um homem daqueles com agá.
Que assim seja: “Omen” (p. 27). Percebe-se que o(a) narrador(a) inventa um homem
sem agá para criar um homem diferente daquele erigido pelo pensamento patriarcal e,
ao fazer o trocadilho no final do conto com a palavra Omen = Amém, usando a
mesma estrutura final da oração modelo ensinada por Deus, que tem como significado
“que assim seja”, o narrador também deseja que a sua criação seja assim.
O terceiro conto, É, discute a importância da escrita. O narrador – acredita-se que
seja um narrador, porque a parceira é uma mulher, mas também pode ser um casal de
lésbicas – tem relações com uma mulher, e desse caso, é feito um romance. Esse
romance também é representado como uma equação e estratégias matemáticas para o
futuro, daí a aparência de várias equações matemáticas no corpo do texto (1 + 1 = 1 =
2 = 1 + 1 = 0 < 2 = 1 < 0 = 1 - 1). Quando a relação supersatura, a mulher deseja um
novo parceiro, um novo “parágrafo”, deixando o narrador somente com as frases
construídas, equações não realizadas ou permanecidas no infinito, que ficarão na
lembrança.
Após a relação ter se desfeito, o narrador tenta escrever, mas a sua tentativa é em
vão, pois a mulher é tida como sua inspiração e, sem ela, nada pode ser feito, trazendo
para si constrangimento e dúvida, como pode ser visto neste trecho: Pelo que sei,
surpresas. Pelo que jamais eu posso ver, entendimento. O acúmulo de frases é
também um muro, quero dizer, fortaleza, é também abrir um daqueles portões de
castelo como pode isso?(p. 32). Assim, finaliza o conto divagando sobre o ato de
escrever, dizendo que folhas são lembranças apenas de imensos passados por isso me
foi dito: esteja aqui (p. 33). É no papel que o narrador coloca tudo o que realmente
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deseja e sente, pois, só nele cabe tanto silêncio e tanta profundidade de tanta
imobilidade que surge de tanta interrogação (p. 33 e 34). Aqui tem-se uma
semelhança entre os fatos ocorridos no conto Visionário, quando o protagonista, ao
perder a sua companheira, se vê incapaz de continuar a sua vida e seus escritos
poéticos, pois a mulher é vista como inspiração e rima para as suas poesias.
O conto Qwando inicia a narrativa com a seguinte indagação e resposta: “quando
pergunta Por quê? O quê? Por que não? eu nem respondo. eu nem preciso responder
(você sabe ler meus pensamentos). A partir desse pressuposto, o narrador faz uma
introspecção do personagem, sobre uma relação que o mesmo tem com seu parceiro
(a). A estrutura do conto é intrincada, porque o sentimento é abstruso, retratando a
relação complexa dos personagens, ou seja, a complexidade da estrutura do conto é o
reflexo da complexidade dos pensamentos do personagem. O protagonista deseja que
o seu parceiro (a) o (a) compreenda, consiga decifrar esta amálgama, para que possam
ficar juntos, mesmo sendo tão diferentes. Assim, pode-se concluir que a escrita
contemporânea está completamente ligada ao sujeito fragmentado, pois os
pensamentos são transpostos ao papel através da escrita.
Em seguida, tem-se o conto Noir, que é dividido em duas partes. A primeira parte
fala sobre o ato da escrita, como as palavras não existem no escuro, permitindo que o
escritor viaje na sua imaginação, brincando com as palavras sem preocupação. Esse
escuro remete a palavra sem propósito, ou até mesmo o escrito antes de ser lido. É o
que se percebe neste excerto: é uma certeza de noite é uma certeza de múltiplos é uma
certeza de insanidade infinita e cálculos que recuperam o princípio do círculo das
perdas das paixões das frases que se reconsideram (p. 73).
Já a segunda parte está relacionada ao momento de leitura, em que as palavras que
foram escritas passam a ter um sentido, uma interpretação. O narrador vê este
processo de forma árdua, pois, segundo ele tudo o que eu disser será usado contra
mim num tribunal (p. 74). Dessa forma, percebe-se a responsabilidade do autor ao
escrever. Vai me render flores e rimas. E depois vai converter em vaias (p. 75). Com
esse pensamento pessimista, o conto termina enfatizando a importância da escrita
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antes da leitura, A escuridão existe para proteger o invisível. Os cachorros sonham


em preto e branco. Inveja do cão (p. 76).
Por fim, o último conto da coletânea, Sinopse, é composto apenas por um
parágrafo. O conto não segue o padrão de pontuação, ou seja, o parágrafo inicia sem a
letra maiúscula e o fim não possui o ponto final, dando sentido de algo que já havia
começado e é inacabado. São apenas comentários das histórias, visto que todas elas
possuem características que se entrelaçam, pois elas não são únicas, contendo começo,
meio e fim. Como o próprio título já diz, este conto seria uma sinopse da coletânea de
contos, mostrando que todos os contos possuem um ponto de convergência, porque
contam uma história.
Uma das características marcantes da autora nessa obra é a não presença do gênero
em alguns personagens. Assim, cabe ao leitor atribuir a marcação do gênero,
decifrando quem é masculino e quem é feminino, através dos atos e ações dos
mesmos. Destarte, dentro das interpretações apresentadas nestes sete contos, pode-se
observar personagens femininas criadoras, criativas, que são inspiração aos homens,
que dominam a escrita e compreendem a responsabilidade da escrita.
A segunda categoria é a representação de personagens presas a visão patriarcalista,
presentes nos contos: Memórias do ontem que não sei; Ruídos; Minhas férias (refluxo
da consciência); “Vai ser avó, dona Cleide!?”; e Navífrago.
O conto Memórias do ontem que não sei tem a presença de muitas personagens
femininas com diferentes pensamentos e ações. A personagem principal é Ângela,
menina decidida e diferente dos padrões pré-estabelecidos para as crianças e,
posteriormente mulher da sociedade da época. Aos 15 anos, Ângela vai morar com os
tios Adalberto e Dinalva. Neste excerto, vê-se a descrição da tia Dinalva.

Tia Dinalva - até o nome parecia gordo. A alegria perpétua. Pressa


em chegar a novena. Preocupação doentia com os pratos
maravilhosos a serem preparados: “Marido a gente segura pelo
estômago...”. (Quer saber, tia? Ontem eu vi o tio Adalberto com uma
loira lá na Estação. Melhor inventar receita nova...). (p. 80).

A tia Dinalva é a típica esposa do início do século XX, que pensa que para manter o
casamento é necessário ser uma ótima dona de casa, proporcionando boas
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acomodações para o esposo. Porém, Ângela possui outra visão sobre esse assunto. No
final do conto, Ângela se encontra desapontada, pois, a força dos padrões e papeis de
gênero é mais forte que o seu desejo de liberdade. Toda sua experiência de vida
promove um desnudamento da dominação masculina, quando ela expõe seus
sentimentos e pensamentos interiores.
Este conto, através de uma visão feminina, presente na personagem Ângela, ilustra
a luta da mulher para se ver livre dos padrões patriarcalistas que regiam a sociedade,
mas a mulher não conseguia se desvincular disso, tendo que se calar perante muitas
situações. Toda a história está relacionada com o título Memórias do ontem que não
sei, mostrando o asujeitamento da mulher desta época.
O conto Ruídos tem como personagem principal uma mulher, que se encontra presa
dentro de um cômodo e a única coisa que vê é um muro grande e verde que a separa de
seu parceiro. Esta mulher pode ser vista como a representação da mulher patriarcal,
que durante muito tempo se viu presa dentro da ideologia masculina dominante. Logo
no início da narração, a personagem diz: eu acreditava muito em você – me fornecia
razões para as coisas (o muro, a janela); queria acreditar: você, as coisas, o muro, a
janela (p. 107). Mesmo sem entender o motivo de estar ali, a mulher acredita, ou se
força a acreditar, nas explicações do homem em mantê-la presa naquele cômodo. No
desenrolar da história, a mulher desfaz a parede, pouco a pouco e, quando se vê livre,
sente uma fome nostálgica como se tivesse tido asas e inventei histórias, cenas de
filmes onde vi desfilar o aço do alicate, cristal de vaso e a reticência dos tapetes. Por
último, você (p.109 e 110). Mas, por melhor que tenha sido esta fuga, o muro volta a
crescer, se transformando em uma floresta. Aqui, percebe-se a força que os padrões
patriarcais possuem, porque, por mais que a mulher tente se libertar deste muro, ele
sempre terá mais força que ela.
Outro conto que comenta sobre a inocência da mulher perante as ações do homem é
Minhas férias (refluxo da consciência). O que diferencia este conto dos anteriores é
que este é contado pela perspectiva de um homem. O protagonista comenta que seu pai
é ateu e um bêbado safado. Sua mãe, em contraposição, é uma santa, devota a vários
santos, como a Santa Julieta de Cortona, São Volfango, Santa Eustóquia; costureira;
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mulher prendada; com boa reputação; e religiosa. O pai ateu e bêbado traia a esposa
com várias mulheres da cidade. A mulher, com tanta bondade e qualidade, não
conseguiu ser feliz no casamento e deixar de ser submissa ao marido, tendo que
suportar a traição do esposo em silêncio.
Existe outro grupo de mulheres presentes neste conto, que são as pobres e
prostitutas. O protagonista perde a sua virgindade com uma “vagabunda” velha,
porque esse era o costume dos homens, naquela época, para aprender tudo sobre sexo.
No entanto, as vagabundas e as pobres também sofriam e eram submissas aos homens.
O conto é construído em um ambiente tradicionalmente patriarcal, pois, por mais que
não seja marcada a época em que se passa a história, percebe-se marcas dos padrões
que regiam este período.
Outra narrativa a partir da perspectiva masculina é a do conto Navífrago, onde
temos um protagonista tentando conversar com a parceira, para se justificar do
fracasso da relação. Segundo o personagem, a culpa da declinação do relacionamento
é totalmente da mulher, pois ela resolveu falar outra língua, diferente da que falava no
início da relação, fazendo com que suas idéias se divergissem. Assim, o homem que
durante a narrativa tenta se justificar, na realidade está impondo seu pensamento, pois,
no final do conto ele deixa claro que não dará oportunidade para respostas porque não
trouxe seu dicionário. O narrador expõe sua justificativa de forma calma, parecendo
que sente piedade da parceira, mas ao final, pode-se dizer que este sentimento não é
verdadeiro.
Parece que Collin, ao engendrar uma narrativa a partir da perspectiva masculina,
chama a atenção para o modo como a ideologia patriarcal sempre equaciona as
relações de gênero: homem/ dominação/ capacidade de reação; mulher/ dominada/
incapaz de reagir; como se essa equação fosse uma imposição da natureza das coisas,
e por ser natural, impossível de ser mudada. Nesse sentido, a piedade por vezes
demonstrada em relação as vicissitudes femininas soa irônica.
Por fim, o conto “Vai ser avó, dona Cleide!?” é um relato a importância do olhar
do outro, como uma sansão social. A história se passa no portão da casa de D. Cleide e
D. Izália. Ambas conversam sobre a vida da vizinhança, e os acontecimentos dos
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últimos dias. Na cama se encontra Rosinéia, filha de D. Cleide, com enjôo, por causa
da gravidez que mantém escondida. D. Cleide e D. Izália são duas mulheres de idade,
donas de casa, que vivem para o bem do marido e dos filhos. Nesse caso, vemos duas
gerações de mulheres, com conceitos diferentes. A D. Cleide e D. Izália são as típicas
mulheres do período patriarcalista, que são submissas aos seus esposos, donas de casa
e responsáveis pela educação dos filhos. Essas personagens cumprem o papel
tradicional imposto à mulher dos tempos patriarcalistas.
Este conto mostra de forma irônica os papéis tradicionais imposto às mulheres. Elas
acreditam nessas concepções e tentam manter o que lhes foi imposto na juventude. No
entanto, seus filhos pertencem a uma nova geração, a geração em que a mulher tem a
liberdade de escolha. A crítica se encontra na contradição entre as duas gerações, o
modo como um vê o outro.
Nesta categoria, pode-se concluir que as mulheres, independente se fossem bonitas,
ricas, de boa reputação, religiosas, prendadas, recatadas, ou, prostitutas, pobres e feias,
todas sofriam e dependiam dos homens completamente.
A terceira e última categoria abarcam os contos das representações de personagens
contemporâneas. Os contos que fazem parte desta categoria são: Modernas estratégias
de expressividade contemporânea – três observações tecno-científicas; Um ponto
sobre o outro; Cinco atos (mentiraria); Não era gato nem era preto; e Vozes num
divertimento.
O conto Modernas estratégias de expressividade contemporânea – três observações
tecno-científicas, tem-se um narrador que cria um conto em forma de artigo, possuindo
todas as características deste gênero. Poucas personagens femininas aparecem no
conto, apenas três, mas estas possuem uma posição de mulher ativa e intelectual na
sociedade, como o caso de Geórgia e Kátia, duas universitárias, ou também, de
mulheres conhecedoras dos pensamentos masculinos, como é o caso de T.T.. A
personagem T. T. namora R. I. B. e o namorado a surpreende com um pedido de
casamento. No exato momento do pedido, segue o pensamento de ambos, tanto do
noivo quanto da noiva.
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Ao valer-se da focalização interna de ambas as personagens no momento em que o


casal oficializa a união, a escritora promove a desmistificação dos papéis tradicionais
de gênero: o homem galante e sedutor e a mulher romântica e sonhadora. No lugar, há
o desnudamento de um sujeito masculino construído segundo os vícios
contemporâneos mais comuns; assim como uma identidade feminina consciente desse
estado de coisas e, acima de tudo, pronta para revidar-lhe também, conforme a sua
ótica acerca dos valores que lhes rodeiam.
Já o conto Um ponto sobre o outro, observa-se a importância da mulher na vida do
homem. O narrador discute a não compreensão às mulheres, caracterizando-as como:
mistério, silêncio, ausência, aquela que faz o homem se sentir diferente, um
amontoado de dúvidas, ter sensações de estranhamento e desconforto com as cenas.
Segundo uma de suas mulheres, o protagonista tem “entendimento de montanhas, de
cremes, de brancos, de não, de lentes, de sempre, de um qualquer descuidado, de
qualquer pausa, de qualquer pequeno vento insistindo sobre o tecido (...)” (p. 90).
Dessa forma, percebe-se que o homem deste conto não é o homem erigido pelos
padrões patriarcalistas, mas um homem que vê a mulher com olhos diferentes, dando
o seu devido valor, simplesmente pelo fato de querer compreendê-la.
O conto Cinco atos (mentiraria), apresenta várias personagens femininas, dentre
elas Dominika Szervnovska Pratt, Jonia e Maria Janaína Lima. Essas personagens são
mulheres que fogem do padrão estabelecido da época, de 1643. Dominika é casada e
tem um filho com um amante. Ela é descrita como “dissimulada” e oculta sua
nacionalidade para não preparar os pratos da cozinha típica polonesa. Jônia encontra o
manuscrito de um livro, publica em seu nome, ganha muito dinheiro e logo o perde
em “dívidas morais”, acabando em uma simples pensão. E, Maria, mais conhecida
como Belladona X, cantora de funk muito famosa, que se preocupa com seu status,
sempre fazendo algo para estar nas colunas sociais, através de cirurgias correcionais,
ou mesmo com seus diversos casamentos (estando atualmente no terceiro). Apesar da
época em que viveram, essas mulheres não se encaixavam nos padrões patriarcalistas,
porque tinham voz e autenticidade para fazer o que queriam.
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Não era gato nem era preto, é um conto que conta a história de um homem viril,
que usa todas as “armaduras” deste grupo, mas, por isso, morreu em combate. Durante
a sua vida, se apaixonou por duas mulheres, a primeira Tereza, mulher maravilhosa,
deliciosa, imperiosa, nome de rosa, rigorosa, etc., que o rejeitou. A segunda, Benedita,
mulher dona de si, possuía uma venda na segunda gaveta do lado esquerdo do
armário do quarto. Uma cinta-liga na cômoda (p. 116), e usou todos esses utensílios
com o protagonista. Um dia, passa na casa de Benedita, e ao pedir um pão, tem a
resposta: coma bala. Aqui, vê-se a subversão dos papéis de dominação, no qual o
homem se encontra sujeito aos desejos feminino.
Por último, temos o conto que dá título à coletânea de contos, Vozes num
divertimento. Neste conto, a própria autora, Luci Collin, se coloca como personagem
principal, e prevê várias críticas sobre a publicação de seu livro Vozes num
divertimento. Nessas críticas, observa-se visões diversas sobre a personagens. Ora ela
é vista como inteligente, autônoma, contemporânea, atrevida, etc, outras como velha,
desavergonhada, “mulher”. Estes comentários deixam bem claro que as personagens
que compõem esta coletânea são representações múltiplas das identidades femininas
presentes na atualidade, algumas presas aos padrões patriarcais e outras que já estão
conseguindo se desvincular destes.
Todos esses contos são situações verossímeis da nossa realidade, que, ao se ler, nos
faz viajar neste mundo diverso e lúdico da literatura. A escrita e a representação das
personagens mostram-nos a importância da escrita feminina paranaense. A partir
destes elementos, há maior reconhecimento e mais credibilidade a estas obras que
estão se destacando em nosso meio.

Conclusão

Após nos atentarmos um pouco mais nestes contos analisados acima, conclui-se que
a coletânea Vozes num divertimento de Luci Collin possui uma diversidade de
personagens femininas. Cada personagem possui um tipo. Essa representação de vários
tipos aponta para a multiplicidade identidades femininas que compõem a sociedade
contemporânea. Observa-se também que ocorre o questionamento e a ironia nos papéis
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tradicionais de gênero, presentes no início do século XXI. Toda essa nova forma de se
ver o mundo feminino mostra-nos a conquista da mulher em todos estes anos,
comprovando que, aos poucos ela está ocupando o espaço que sempre lhe pertenceu.
A mulher, a partir da sua escrita, cria uma nova visão para a sociedade
contemporânea, uma visão em que ela tem a liberdade de expressar os seus
pensamentos, desconstruindo concepções patriarcalistas cristalizadas e construindo
uma nova literatura, em que a mulher participa como um ser social e intelectual.

Referências

COLIN, L. Vozes num divertimento. Curitiba: Travessa dos Editores, 2008.

GOLDMANN, Lucien. As interdependências entre a sociedade industrial e as novas


formas de criação literária. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.

TEIXEIRA, N. C. R. B. Escrita de mulheres e a (dês) construção do cânone literário


na pós-modernidade: cenas paranaenses. Guarapuava: Unicentro, 2008.

ZOLIN, L. O. Crítica Feminista. IN: BONNICI, T. e ZOLIN, L. O. (org). Teoria


literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2. ed. Maringá:
Eduem, 2005.
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A POÉTICA DOS ORIXÁS NOS AFRO-SAMBAS DE BADEN E VINÍCIUS: POR


UMA PEDAGOGIA DA CANÇÃO POPULAR

André Rocha L. Haudenschild (PG-UFSC)

Introdução

A canção popular de um país pode ser pensada como um “idioma cultural” único
e plural de um povo. Deste modo, podemos afirmar que a nossa Música Popular
Brasileira traz em si uma memória coletiva enraizada em anos da mistura de muitos
povos que aqui se encontram desde o século XVI à nossa atual “Idade Mídia”. Mais do
que um mero reflexo da sociedade, a canção brasileira do século XX pode ser vista
como um projeto inacabado de país, uma nação à espera de novas escutas que percebam
os processos de educação sentimental, estética e ideológica contidos em nossa cultura
(NAPOLITANO, 2007). Ao fomentarmos uma pedagogia poética e musical no contexto
escolar, através da prática da canção popular como um instrumento literário para o
aprendizado de temas transdisciplinares - históricos, sociológicos e mitopoéticos –,
estaremos construindo uma eficiente e prazerosa prática lúdica de ensino.

1. O samba é uma forma de oração

Ao entoarmos os versos iniciais de Samba da benção, uma das diversas canções


compostas por Baden Powell e Vinícius de Moraes, ouviremos: É melhor ser alegre que ser
triste / Alegria é a melhor coisa que existe / É assim como a luz no coração... // Mas pra fazer
um samba com beleza / É preciso um bocado de tristeza / É preciso um bocado de tristeza /
Senão, não se faz um samba não... Deste modo, somos iniciados aos mistérios da criação
daquele que é um dos gêneros musicais mais representativos de nossa cultura popular, o samba.
Afinal, para se “fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza”, um sentimento
dialético que compactua com a dor de toda uma civilização que apesar de ser escravizada por
mais de três séculos, foi capaz de resistir com suas fecundas raízes culturais e ainda parir uma
das mais frondosas ramagens de nossa cultura: as manifestações culturais afro-brasileiras.
E o Samba da benção ainda continua: Fazer samba não é contar piada / E quem faz
samba assim não é de nada / O bom samba é uma forma de oração... // Porque o samba é a
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tristeza que balança / E a tristeza tem sempre uma esperança / A tristeza tem sempre uma
esperança / De um dia não ser mais triste não... Se o samba é, e sempre foi, “uma forma de
oração”, é porque a canção popular está vinculada ao canto ritualístico, como também já
afirmava uma canção de Vadico e Noel Rosa, Feitio de oração (1932): (...) Com satisfação
e com harmonia / Esta triste melodia / Que é meu samba em feitio de oração...
Como sabemos, a poesia e palavra cantada soaram juntas desde os Vedas hindus, o
Taoísmo chinês, e as cosmogonias africanas e ameríndias. Nas culturas ancestrais, a
linguagem poética dos cantores era um valioso meio de expressão, desempenhando uma
função muito maior do que a mera aspiração artística ou literária, cuja poesia punha os
rituais em palavras. E a lírica do samba é a prova concreta disso: Ponha um pouco de amor
numa cadência / E vai ver que ninguém no mundo vence / A beleza que tem um samba,
não... // Porque o samba nasceu lá na Bahia / E se hoje ele é branco na poesia / Se hoje ele
é branco na poesia / Ele é negro demais no coração...
A valorização da cultura afro-brasileira, como uma potencialidade “negra demais no
coração” da intelectualidade nacional, foi bem notada por Jocélio Santos ao afirmar que
houve um intenso movimento cultural no Brasil, no início da década de 60, que foi a busca
por autênticos símbolos nacionais e o que se desejava eram os símbolos culturais afro-
brasileiros (SANTOS, 2002). Vale notar que o próprio poeta Vinícius de Moraes tinha
criado na década anterior, o espetáculo teatral Orfeu da Conceição (1956), realizando com
grande sucesso uma releitura original do herói-músico grego 1. Assim como, uma canção
sintomática desta “obsessão afro” do poeta, vinculada à Bahia como a terra-mãe de nossa
fundação original, está presente na lírica da canção Maria Moita (1963), composta para o
espetáculo Pobre menina rica, em parceria com Carlos Lyra: Nasci lá na Bahia / De
Mucama com feitor / Meu pai dormia em cama / Minha mãe no pisador...
Não por acaso, em 1965, os compositores cariocas Tom Jobim e Vinícius de Moraes
gravariam dois álbuns com Dorival Caymmi em total sintonia com o lirismo de suas
“canções praieiras”, respectivamente os LPs Caymmi visita Tom e Vinícus e Caymmi no
Zum-zum (ambos pelo selo Elenco, de Aloysio de Oliveira). Vale à pena conhecermos como
se deu esta certa fascinação mística na obra musical do poeta Vinícius de Moraes:

1
Orfeu da Conceição, “tragédia carioca” de Vinícius de Moraes, ambientada nos morros dos anos 50,
estreiou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 25 de setembro de 1956, com cenografia de Oscar
Niemeyer e música de Tom Jobim (a trilha sonora seria lançada no mesmo ano pela gravadora Odeon).
Em 1959, a peça foi adaptada ao cinema por Marcel Camus sob o nome Orfeu Negro, recebendo diversos
prêmios internacionais e projetando as primeiras parcerias de Tom e Vinícius em nível mundial.
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Diz a lenda que tudo começou na boate Arpége, no Leme, Zona Sul do
Rio. O poeta Vinícius de Moraes foi a esta conhecida casa noturna dos
tempos da saudosa boemia bem vestida das noites cariocas do tempo
da Bossa Nova prestigiar o velho amigo, Antônio Carlos Jobim,
quando descobriu, pálido de espanto, o talento jovem e ligeiramente
desconhecido de um exímio violonista de Varre-e-Sai, que atendia
pelo curioso nome de Baden Powell de Aquino, e que fazia algum
sucesso pela voz de Lúcio Alves, com o seu “Samba Triste”, em
parceria com Billy Blanco.
(...) Mas e os Afro-sambas? Pouco antes de travar conhecimento do
Baden, o “poetinha” ganhou um disco, intitulado Sambas de Roda e
Candomblés da Bahia. Em pouco tempo, aquele despretensioso
bolachão transformaria o criador da “Balada das Arquivistas” e do
“Orfeu da Conceição” no “branco mais preto do Brasil, na linha direta
de Xangô”. Aqueles temas baianos o impressionaram, ao mesmo
tempo em que o próprio Baden rumava à este mesmo caminho,
quando fora apresentado ao capoeirista Canjiquinha que conduziria
Badeco a terreiros, rodas de capoeira ao mesmo tempo em que lhe
apresenta os sagrados cânticos do candomblé. O poeta se assomara
pelo místico; Baden, pelas novas harmonias. (XAVIER, 2006, s.p.)

Se a arte do encontro entre Baden e Vinícius 2 foi pautada pelo samba de roda, pela
capoeira e pelo candomblé, é porque ambos estavam em busca de um “elogio da negritude”
através de autênticas fontes culturais baianas. Segundo José Castello, “Baden não apenas
africanizou Vinícius, ele o transportou para um mundo mais quente, mais contaminado por
tradições e sentimentos atávicos, mais – bem mais – incontrolável” (CASTELLO, 1991,
p.58). Ou seja, o “Poetinha” seria iniciado ao mundo mitopoético dos orixás através do
contato com o candomblé via Baden Powell, sendo capaz de “entrelaçar o cotidiano com o
cósmico, de lançar uma ponte inesperada entre a tradição negra e as interrogações
metafísicas da zona sul” (CASTELLO, Op. cit., idem), conforme ainda veremos.

2. Iemanjá

2
Em 1963, as primeiras parcerias musicais de Baden Powell e Vinícius de Moraes, as canções: O
astronauta, Berimbau, Só por amor, Deixa, Seja feliz, Mulher carioca, Samba em prelúdio, Labareda, É
hoje só, Deve ser amor, Além do amor e Samba da bênção, foram registradas no LP Vinícius & Odette
Lara, pelo selo Elenco. Em 1964, Baden gravaria o LP À vontade, e passaria seis meses na Bahia,
pesquisando música de candomblé e os cantos dos terreiros. Em 1965, voltaria a compor com Vinícius
uma série de músicas registradas novamente pelo selo Elenco, no LP De Vinícius e Baden especialmente
para Cyro Monteiro, contendo as parcerias Samba do café, Linda baiana, Formosa e Tempo feliz, entre
outras. Em 1966, gravaram os afro-sambas Canto de Ossanha, Canto de Xangô, Bocochê, Canto de
Iemanjá, Tempo de amor, Canto de Pedra Preta, Tristeza e solidão e Lamento de Exu; respectivamente
registrados no LP Os afro-sambas (selo Forma), com arranjos de Guerra Peixe e participação do conjunto
vocal feminino, Quarteto em Cy.
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Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é dona Janaína que vem
Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é muita tristeza que vem

Vem do luar no céu


Vem do luar
No mar coberto de flor, meu bem
De Iemanjá
De Iemanjá a cantar o amor
E a se mirar
Na lua triste no céu, meu bem
Triste no mar

Se você quiser amar


Se você quiser amor
Vem comigo a Salvador
Para ouvir Iemanjá

A cantar, na maré que vai


E na maré que vem

Do fim, mais do fim, do mar


Bem mais além
Bem mais além do que o fim do mar
Bem mais além

Cultuada como “a senhora do mar, dona das águas, mãe dos orixás”, Iemanjá é
talvez o orixá mais conhecido no Brasil, associada sincreticamente ao culto à Nossa
Senhora. Afinal, “é uma das mães primordiais e está presente em muitos dos mitos que
falam da criação do mundo” (PRANDI, 2001, p.22) ela é a representação da ancestralidade
feminina da humanidade, assim como as nereidas e as divindades greco-latinas Hera e
Vênus. A ambigüidade de seu valor é que ela é uma força de sedução perigosa, pois transita
entre a vitalidade de sua beleza sedutora e a tristeza destrutiva daqueles que ela seduz, como
afirmam os versos: (...) De Iemanjá a cantar o amor / E a se mirar / Na lua triste no céu,
meu bem / Triste no mar... Como se ela também sofresse com a sina de sua condição
predadora, pois “é muito tristeza que vem” na maré do mar.
Esta canção exemplifica bem o apego do poeta pela paisagem baiana como um
locus amoenus de encantamento místico, como nos versos: (...) Se você quiser amar / Se
você quiser amor / Vem comigo a Salvador / Pra ouvir Iemanjá... Ao levarmos o Canto
de Iemanjá para a sala de aula, devemos contextualizá-lo em sua criação poética e musical
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(como já o tentamos) e, principalmente, em sua cosmogonia iorubá. Sua lenda de origem é
bastante oportuna para entendermos melhor a canção:

Filha de Olokum, deusa do mar, Iemanjá era casada com Olofim


Oduduá com quem tinha dez filhos orixás. Por amamentá-los, ficou
com seios enormes. Impaciente e cansada de morar na cidade de Ifé,
ela saiu em rumo oeste, e conheceu o rei Okerê; logo se apaixonaram
e casaram-se. Envergonhada de seus seios, Iemanjá pediu ao esposo
que nunca a ridiculariza-se por isso. Ele concordou; porem, um dia,
embriagou-se e começou a gracejar sobre os enormes seios da esposa.
Entristecida, Iemanjá fugiu. Desde menina, trazia num pote uma
poção, que o pai lhe dera para casos de perigo. Durante a fuga,
Iemanjá caiu quebrando o pote, a poção transformou-a num rio cujo
leito seguia em direção ao mar. Ante o ocorrido, Okerê, que não
queria perder a esposa, transformou-se numa montanha para barrar o
curso das águas. Iemanjá pediu ajuda ao filho Xangô, e este, com um
raio, partiu a montanha no meio; o rio seguiu para o oceano e, dessa
forma, a orixá tornou-se a rainha do mar. (TEEG, 2010, s.p.)

Como notamos, o poder feminino que Iemanjá representa está associada ao mar
como uma força maternal, a fonte ancestral de alimento e de vida. Ao ouvirmos o Canto
de Iemanjá é notável como essa força está impregnada na melodia e no ritmo da canção.
O vocal feminino tece a melodia em um acentuado movimento ondulatório: Iemanjá,
Iemanjá, gerando uma explícita isomorfia entre significantes e significados. Afinal, a
canção inteira nos embala no balanço das ondas do mar, nos seduzindo de início ao fim,
e nos conduzindo “bem mais além do que o fim do mar”.

Canto de Xangô
Eu vim de bem longe
Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim
Sou filho de Rei
Muito lutei pra ser o que eu sou

Eu sou negro de cor


Mas tudo é só o amor em mim
Tudo é só o amor para mim
Xangô Agodô
Hoje é tempo de amor
Hoje é tempo de dor, em mim
Xangô Agodô
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Salve, Xangô, meu Rei Senhor
Salve, meu Orixá
Tem sete cores sua cor
Sete dias para gente amar

Mas amar é sofrer


Mas amar é morrer de dor
Xangô meu Senhor, saravá!
Me faça sofrer
Ah, me faça morrer
Ah, me faça morrer de amar
Xangô, meu Senhor, saravá
Xangô Agodô

Já o Canto de Xangô, cantado com um sujeito em primeira pessoa, tem um ritmo


sincopado marcadamente africano com sua instrumentação repleta de percussões, como o
agogô (de metal) e os atabaques (com suas peles percutidas com hastes de bambu), que
criam uma sonoridade típica de um terreiro de candomblé bem apropriada para a lírica desta
canção. Vale atentarmos também para o seu arranjo, pois entram na introdução apenas o
agogô, os atabaques e o violão, seguidos da voz de Baden Powell, que contrastam com a
entrada apoteótica do coro feminino no refrão: Salve, Xangô, meu Rei Senhor / Salve, meu
Orixá / Tem sete cores sua cor / Sete dias para gente amar.
Xangô é o deus do raio e do fogo, um orixá temido e respeitado, pois além de viril e
violento, é também justiceiro. Seu símbolo principal é o machado de dois gumes e a
balança, símbolo da justiça. Assim como Iemanjá, tem um aspecto ambíguo, pois conforme
a situação pode reinar com autoritarismo e tirania, conforme entendemos em sua origem
iorubá:

Xangô era rei de Oyó, terra de seu pai; já sua mãe era da cidade de
Empê, no território de Tapa. Por isso, ele não era considerado filho
legítimo da cidade. A cada comentário maldoso Xangô cuspia fogo e
soltava faíscas pelo nariz. Andava pelas ruas da cidade com seu Oxé,
um machado de duas pontas, que o tornava cada vez mais forte e
astuto onde havia um roubo, o rei era chamado e, com seu olhar
certeiro, encontrava o ladrão onde quer que estivesse. Para continuar
reinando, Xangô defendia com bravura sua cidade; chegou até a
destronar o próprio irmão, Dadá, de uma cidade vizinha para ampliar
seu reino. Com o prestigio conquistado, Xangô ergueu um palácio
com cem colunas de bronze, no alto da cidade de Kossô, para viver
com suas três esposas: Iansã amiga e guerreira; Oxum, coquete e
faceira e Obá, amorosa e prestativa. Para prosseguir com suas
conquistas, Xangô pediu ao babalaô de Oyó uma fórmula para
aumentar seus poderes; este entregou-lhe uma caixinha de bronze,
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recomendando que só fosse aberta em caso de extrema necessidade de
defesa. Curioso, Xangô contou a Iansã o ocorrido e ambos, não se
contendo, abriram à caixa antes do tempo. Imediatamente começou a
relampejar e trovejar; os raios destruíram o palácio e a cidade,
matando toda a população. Não suportando tanta tristeza, Xangô
afundou terra adentro, retornando ao Orun. (TEEG, 2010, s.p.)

Outra fonte literária informa que a causa do incêndio da cidade de Xangô foi mais
complexa:
Xangô convocou os maiores feiticeiros de Oyó e lhes pediu que
inventassem fórmulas para aumentar seu poder, mas não satisfeito
com o trabalho dos feiticeiros, pediu ajuda a Exu. Exu aceitou a tarefa,
pediu uma cabra como sacrifício e ordenou que dentro de sete dias
Iansã fosse buscar o preparado. Quando chegou o dia combinado, lá
foi ela à casa de Exu. Lá chegando, saudou Exu e disse que o
sacrifício estava a caminho. O preparado estava embrulhado numa
folha. Ela pegou o pacote e partiu. No caminho, Iansã parou para
descansar. Não contendo a crescente curiosidade, desembrulhou o
pacote para ver o que tinha dentro. Não havia nada além de um pó
vermelho e ela pôs um pouquinho na boca para experimentar.
(...) Quando ela começou a falar, saiu fogo de sua boca. Xangô
entendeu que ela tinha provado o remédio. Ficou irado e tentou bater
em Iansã, mas ela fugiu de casa... (...) Mas ele ainda não sabia usar o
preparado. Quando anoiteceu, ele pegou o pacote de Exu e foi a um
lugar bem alto, de onde podia ver toda a cidade. Colocou um pouco do
pó vermelho na língua e, quando expirou o ar dos pulmões, uma
enorme labareda jorrou de sua boca, depois outra e mais outra, sem
parar. As chamas se estenderam por sobre toda a cidade... (PRANDI,
Op. cit. p.265-266)

Essa última versão talvez possa nos ajudar a entender o verso: Sete dias para gente
amar, pois esse foi o tempo necessário para que Exu preparasse a poção para Xangô, antes
de acontecer a tragédia do fogo. Uma alegoria da efemeridade do amor que foi também
representado liricamente por Camões como uma “chama que arde sem se ver”. Como um
ser vaidoso, sedutor e casado com três divindades femininas (Obá, Iansã e Oxum), Xangô
estaria situado no panteão dos orixás em plena simetria ao erotismo de Iemanjá. Só que
diferentemente da deusa marinha, que aparenta sofrer da sina de seu próprio fado, Xangô
aparenta “gostar de morrer de amar”, como anuncia eroticamente o final de seu canto: Mas
amar é sofrer / Mas amar é morrer de dor / Xangô meu Senhor, saravá! / Me faça sofrer /
Ah, me faça morrer / Ah, me faça morrer de amar...3

3
Há um outro afro-samba de Baden e Vinícius neste disco, Labareda, cuja letra é bem pertinente neste
sentido: Oh, labareda te encostou / Lá vai, lá vai, labareda // Oh, labareda te queimou / Lá vai, lá vai,
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Canto de Ossanha

O homem que diz “dou”, não dá


Porque quem dá mesmo não diz
O homem que diz “vou”, não vai
Porque quando foi, já não quis
O homem que diz “sou”, não é
Porque quem é mesmo é “não sou”
O homem que diz tô, não tá
Porque ninguém tá quando quer
Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha traidor
Coitado do homem que vai
Atrás de mandinga de amor

Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou
Eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou

Não, eu só vou se for pra ver


Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
Amigo senhor Saravá
Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha, não vá
Que muito vai se arrepender
Pergunte pro seu orixá
Amor só é bom se doer

Vai, vai, vai, vai, amar / Vai, vai, vai, vai, sofrer
Vai, vai, vai, vai, chorar / Vai, vai, vai, vai, dizer

Que eu não sou ninguém de ir


Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou

Não, eu só vou se for pra ver


Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor

labareda (...) Labareda / Fogo que parece amor / Tua dança / É a chama de uma flor / Labareda / Quem
te vê assim dançar / Em teus braços / Logo quer queimar.
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Esta canção inaugura o álbum Os afro-sambas como que abrindo os caminhos das
demais faixas do disco. Afinal, Ossanha, também chamado Ossaim, é o orixá conhecedor
das ervas e o curandeiro do candomblé, onde sua presença é fundamental na celebração de
todas as cerimônias. Para entendermos o Canto de Ossanha, precisamos recorrer novamente
aos mitos de origem iorubá:

Um rei decidiu casar a sua filha mais velha. Dá-la-ia em casamento ao


pretendente que adivinhasse o nome de suas três filhas. Ossaim
aceitou o desafio. À tarde, Ossaim saiu sorrateiro por trás do palácio.
Subiu no pé de obi [nogueira] e se escondeu entre seus galhos.
Quando as três princesinhas saíram para brincar, foram surpreendidas
por um canto que vinha daquela árvore.
Era o canto de pássaro irresistível, de um passarinho das matas de
Ossaim. Mas o canto era de Ossaim, imitando o pássaro. O passarinho
brincou com as três princesas e conseguiu saber o nome delas: Aio
Delê, Omi Delê e Onã Iná, eram estes os nomes das filhas do rei. Sua
esperteza havia dado certo.
No dia seguinte Ossaim foi ao rei e declamou a ele o nome das
princesas. Ossaim, então, casou-se com a mais velha. Sua esperteza
havia dado certo. Ossaim desde então é identificado com o pássaro.
(PRANDI, Op. cit., p.156).

Como notamos, Ossanha está associado ao artifício, ao engano de uma artimanha


musical usada para seduzir o ouvido (e o coração) de suas possíveis amantes, como avisam
os versos: Se é canto de Ossanha não vá / Que muito vai se arrepender... Mas talvez
possamos visualizar nesta canção, além da conotação da traição eminente (Coitado do
homem que cai / No canto de Ossanha traidor / Coitado do homem que vai / Atrás de
mandinga de amor) e indecisa (Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou), uma crítica
implícita aos “homens de poder” em plena instauração da ditadura pós-golpe de 1964: a
ilusão das promessas demagógicas (O homem que diz dou, não dá / Porque quem dá mesmo
não diz).
Notável o teor dialético dos primeiros versos desta canção, um movimento pendular
entre o “dizer” e o “fazer” que é redimensionado pelo jogo musical entre o canto do solista
(o próprio Baden) e o coro (o vocal do Quarteto em Cy), gerando um diálogo entre os
gêneros masculino e feminino muito apropriado ao sentido da canção. Estes versos iniciais
dialogam diretamente com os versos de outro afro-samba, a canção Berimbau: Quem é
homem de bem, não trai /O amor que lhe quer seu bem // Quem diz muito que vai, não vai /
E assim como não vai, não vem...
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Já quase no final da canção, a estrofe nos avisa: Vai, vai, vai, amar / Vai, vai, vai, sofrer
/ Vai, vai, vai, chorar / Vai, vai, vai, dizer, como se para viver a vida por inteiro é preciso
“amar, sofre, chorar e dizer”, completando um ciclo sem fim: o ciclo inesgotável do amor.
Pois mesmo sem mandinga ou feitiço, a dor deliciosa da paixão será sempre inevitável. “-
Pergunte pro seu orixá...”

Capa: Goebel Weyne / Foto: Pedro de Moraes


Selo Forma, 1966
Referências

CASTELLO, José. Livro de letras. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música
popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
SANTOS, Jocélio Teles. Menininha do Gantois: a sacralização do poder. In: SILVA,
Vagner Gonçalves da. Caminhos da Alma: memória afro-brasileira, São Paulo: Summus,
2002.
TEEG. Conhecendo os orixás. São Paulo: Templo Espírita Estrela Guia, 2010.
XAVIER, Marcelo. Os afro-sambas. In: Revista Rabisco. n.84. 2006. Disponível em:
< http://www.rabisco.com.br/84/afro_sambas.htm> acesso em 20, abr., 2010.
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HISTÓRIA LITERÁRIA E HISTÓRIA DA LEITURA

Andréa Correa Paraiso Müller (UEPG/PG-UNICAMP)

Introdução

A História Literária, disciplina que conheceu um grande prestígio no século XIX,


torna-se, ao longo do século XX, alvo de críticas de diversas correntes da Teoria
Literária do período.
No entanto, embora questionada, a perspectiva da História Literária continua a
nortear o ensino de Literatura em muitas escolas e universidades brasileiras. A ótica
historicista é calcada, como bem lembra Paulo Franchetti (2002), na “eleição estética”,
isto é, na formação do cânone. Ora, as obras que a História Literária coroa nem sempre
são as que foram as mais significativas no momento de sua produção, pois os critérios
dessa disciplina para a eleição de um cânone de obras do passado não costumam
considerar as leituras contemporâneas a essas obras. Em meados do século XIX
brasileiro, por exemplo, os romances mais lidos e comentados não eram os que ficaram
consagrados como os mais importantes do período.
Jean-Yves Mollier (2003) defende que a História Literária pode renovar-se e
readquirir sentido por meio da relação com a História Cultural, ou seja, reinscrevendo o
fenômeno literário no universo em que ele surgiu, tendo em conta, pois, a produção,
difusão e recepção da obra de arte e olhando sem preconceito para as preferências do
público.
Adotando o viés de Mollier, este trabalho pretende refletir sobre a possível validade
de uma História Literária que considere a História da Leitura.

1. História literária: prestígio e críticas

O século XIX constitui a época áurea da História Literária. Associada ao princípio de


identidade nacional em voga naquele momento, a disciplina firma-se e ganha imenso
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prestígio. Surgem, na Europa, várias obras buscando traçar a história das literaturas
nacionais __ as chamadas histórias literárias. Maria Elizabeth Chaves de Mello explica
que, ao longo dos Oitocentos, “o conceito de identidade nacional servirá de base para a
elaboração das diferentes histórias nacionais e histórias de literaturas, de cunho
positivista e cientificista” (MELLO, s.d., p.2). A redação de uma história literária chega
a representar, como observa Paulo Franchetti (2002, p.1), o coroamento da carreira de
um homem de letras. Na França oitocentista, vários intelectuais abraçaram a tarefa de
escrever histórias literárias, mas o nome mais representativo é o de Gustave Lanson, que
lança sua Histoire de la littérature française em 1894, baseando-se no método
cientificista. Chaves de Mello (s.d.) lembra que, naquele país, a História Literária passa
a compor, ainda no início do século XIX, o quadro das disciplinas das recém-criadas
faculdades de Letras, instituídas pelo decreto de Napoleão, assinado em 1808, pelo qual
se fundava a chamada Université Impériale.
No Brasil, surgem, ao longo do século XIX, trabalhos que procuram dar conta da
história da jovem literatura do país. Ferdinand Denis, francês que viveu por alguns anos
no Brasil, publica em 1826 o Resumo da História Literária do Brasil, que inclui desde
referências à obra de poetas dos séculos XVII e XVIII até considerações sobre a
geografia local. O cônego Fernandes Pinheiro talvez seja um dos nomes mais
representativos entre os iniciadores da História Literária em nosso país. Seu Curso
Elementar de Literatura Nacional (1862) foi redigido para ser utilizado pela cadeira de
“Literatura Nacional”, disciplina que o religioso lecionava no prestigiado Colégio Pedro
II, no Rio de Janeiro. Para Paulo Franchetti (2002, p.3), o apogeu da História Literária
no Brasil é mais tardio do que na Europa, estendendo-se do final do século XIX até o
último quartel do XX e tendo como primeiro grande expoente a obra de Sílvio Romero
e como último a de Alfredo Bosi.
O século XX assiste à crescente perda de prestígio da História Literária, que sofre
críticas oriundas de várias das correntes da Teoria Literária do período. O Formalismo
russo, o New Criticism e o Estruturalismo opõem-se ao modelo historicista no estudo da
literatura. Nos anos 1960, Hans Robert Jauss constata, em seu hoje clássico ensaio A
História da Literatura como provocação à Teoria Literária (1967), a decadência da
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História Literária e a ineficiência do gênero em sua forma tradicional. O prestígio e a


respeitabilidade recebidos no século XIX dão lugar aos questionamentos e à crise do
XX.
Entretanto, embora questionada nos meios acadêmicos, a História Literária continua
presente no ensino de Literatura. Na França de meados do século passado, ao mesmo
tempo em que vertentes da Teoria Literária então contemporânea colocam em xeque os
valores da História Literária, os editores escolares encomendam manuais e antologias
para servirem ao ensino em colégios e faculdades, como é o caso da conhecida coleção
organizada por Lagarde e Michard. Muitas outras coleções destinadas ao uso escolar são
lançadas no mercado francês ao longo do século XX abordando a literatura por meio da
sequência de autores e características de estilos de época acrescidos da chamada
contextualização histórica. Ou seja, apesar de desacreditada, a História Literária
permanece na escola, sendo, em grande parte do material didático, a principal forma de
trabalho com a Literatura. Também no Brasil essa situação se verifica. Até poucos anos
atrás (em alguns casos, até os dias de hoje), o viés historicista dominava os currículos de
escolas e cursos de Letras brasileiros, currículos esses muitas vezes reduzidos a
panoramas de época ou a uma sucessão de escolas literárias.
Haveria alguma utilidade em continuar a ensinar Literatura com base na História
Literária? Seria possível renová-la e dar sentido à sua presença no ensino ao lado de
outras abordagens do fenômeno literário? Voltaremos a essas questões mais adiante.

2. História Literária e anacronismos

Para refletir sobre a possível validade da permanência da História Literária no ensino


de Literatura, é fundamental que se coloquem as seguintes questões: até que ponto a
História Literária contribui para que se tenha uma visão esclarecedora e coerente da
literatura de décadas ou séculos passados? Em que medida esse tipo de abordagem dos
estudos literários conduz a equívocos e anacronismos?
A História Literária é calcada na formação de um cânone; trata, portanto, das obras e
autores mais significativos do período que toma por objeto de estudo. Mas os critérios
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empregados na eleição desses autores e obras costumam ser os do presente, ou seja, do


momento em que se elabora a narrativa que busca historiar a literatura do passado. Ora,
as obras que hoje são vistas como os grandes livros do passado nem sempre coincidem
com aqueles que eram considerados os grandes livros no passado:

Os grandes livros fazem parte de um conjunto canônico de


clássicos selecionados retrospectivamente, ao longo dos anos, pelos
profissionais que se encarregaram da literatura __ isto é, pelos críticos
e professores universitários cujos sucessores agora destroem-na. Esse
tipo de literatura talvez nunca tenha sequer existido fora da
imaginação dos profissionais e seus estudantes (DARNTON, 1995,
p.145).

Conforme observa Robert Darnton no fragmento transcrito, a História Literária corre


o risco de criar uma imagem fictícia da literatura do passado. Ao desconsiderar os
critérios e as leituras do passado em questão, afasta-se do que foi a literatura de que
pretende tratar e acaba por montar um panorama permeado de anacronismos. A visão da
produção literária de séculos anteriores que formamos a partir da História Literária,
muitas vezes está bem distante da “verdadeira experiência da literatura no passado”,
como ressalta Darnton em outro texto:

Vemos a literatura de cada século como um conjunto de obras


agrupadas em torno dos clássicos; e nossa ideia de clássico provém de
nossos professores, que por sua vez a receberam de seus mestres [...].
A história literária é um artifício criado ao longo de muitas gerações;
apresenta-se ora reduzida, ora ampliada; puída em alguns pontos,
remendada em outros; e por toda parte permeada de anacronismos.
Pouco tem a ver com a verdadeira experiência da literatura no passado
(DARNTON, 1998, p.9).

Para um exemplo concreto do quão anacrônico pode soar o cânone eleito pela
História Literária, basta observar os romances mais anunciados e comentados na
imprensa brasileira de meados do século XIX; a maior parte dos títulos não coincide
com as obras hoje reverenciadas como as mais importantes do período. Nos anos de
1857 e 1858, nos três maiores jornais diários do Rio de Janeiro, sede da corte do Brasil
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__ Correio Mercantil, Diário do Rio de Janeiro e Jornal do Comércio __ os escritores


cujos nomes apareciam com mais frequência nos anúncios de livrarias eram Alexandre
Dumas, Eugène Sue, Paul de Kock, Balzac, Frédéric Soulié, Xavier de Montépin, Élie
Berthet e Ponson du Terrail 1. Alguns desses romancistas assinavam também os folhetins
publicados nesses jornais. Xavier de Montépin, por exemplo, grande best-seller do
século XIX, é autor de dois romances publicados nos folhetins do Jornal do Comércio
em 1857: Esmeralda e companhia e Os ciganos da Regência. Alguns deles, além de
outras “celebridades oitocentistas” tais como Émile Richebourg e Octave Feuillet, são
citados por Brito Broca (1979, p.106) como sendo os folhetinistas mais apreciados da
época, lidos por muitos dos escritores românticos brasileiros. José de Alencar, em Como
e porque sou romancista, recorda suas leituras de juventude, entre as quais inclui
Eugène Sue, Arlincourt, Frédéric Soulié, Walter Scott e Fenimore Cooper, além de
Dumas e Balzac:

Li nesse decurso muita coisa mais: o que me faltava de Alexandre


Dumas e Balzac, o que encontrei de Arlincourt, Frederico Soulié,
Eugênio Sue e outros. Mas nada valia para mim as grandiosas
marinhas de Scott e Cooper e os combates heróicos de Marryat
(ALENCAR, 1998, p.54).

Também Taunay confessa em suas Memórias ter lido Walter Scott e Eugène Sue (O
judeu errante): “Assim da biblioteca do tio Beaupaire tirei o Judeu Errante, oito
grossos volumezinhos, edição de Bruxelas, que devorei sem parar. Também em extremo
apreciei uma contrafação de Valter [sic] Scott __ Aymé Verd [...]” (TAUNAY, 1960
apud SILVA, 2009, p.25).
Com exceção de Balzac, Alexandre Dumas e talvez Walter Scott, é bastante provável
que os demais romancistas mencionados, a maioria franceses, sejam completos

1
Dados obtidos por meio de pesquisa em fontes primárias, que incluem jornais e revistas brasileiros do
século XIX conservados em microfilme no Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade Estadual de
Campinas.
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desconhecidos para o público de hoje. No entanto, estavam entre os autores mais lidos
no século XIX, não apenas no Brasil, mas em praticamente todo o mundo ocidental.
Jean-Yves Mollier (2003, p.601) ressalta o imenso sucesso que esses escritores
populares atingiram na época em que viveram, e observa que suas tiragens
ultrapassaram as melhores vendas dos escritores oitocentistas mais lidos e aclamados
hoje, como, por exemplo, Émile Zola.
Esses autores de folhetins, embora não fossem unanimidade entre os críticos, eram os
romancistas mais apreciados pelo público e conseguiam conquistar leitores de todas as
classes sociais. Não entraram para o cânone; seus nomes, quando aparecem nas histórias
literárias, são mencionados como escritores menores. Talvez esses folhetinistas
populares não possuíssem qualidades literárias suficientes para fazer perpetuar seus
nomes, mas ignorá-los é ignorar também as preferências e modos de ler de toda uma
época, é desconsiderar o funcionamento do campo literário em todo um significativo
período.
Também no Brasil oitocentista havia escritores de sucesso que hoje são totalmente
desconhecidos. A produção romanesca especialmente, embora ainda em seus inícios,
era bem maior do que fazem crer as histórias literárias e antologias, e incluía autores
que, conquanto sejam hoje completamente anônimos, gozaram de prestígio e mereceram
elogios da crítica de sua época.
Um exemplo disso é Antonio José Fernandes dos Reis, tradutor e escritor cujo
romance A filha da vizinha recebeu elogiosos comentários em importantes periódicos do
início da segunda metade do século XIX, como a Revista Popular, editada pela
respeitada livraria Garnier. Em 1863, cerca de três anos após o lançamento do referido
romance, a Revista Mensal da Sociedade Ensaios Literários noticiava uma segunda
edição, o que atesta o êxito do livro de Fernandes dos Reis também junto ao público
leitor.
Vários outros escritores brasileiros hoje ignorados obtiveram grande aceitação por
parte da crítica oitocentista; é o caso de Bruno Seabra, autor de Flores e frutos e de João
Antonio de Barros Júnior, autor de Emílo. Não se pode deixar de citar, ainda, o nome de
Teixeira e Sousa, um dos romancistas nacionais mais admirados até meados do século
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XIX, elogiado por críticos e escritores, bem aceito pelo público, considerado por muitos
o autor do primeiro romance brasileiro __ O filho do pescador (1843) __, mas referido
nas histórias literárias e antologias produzidas no século XX como um escritor menor,
cujo valor literário seria inferior ao de seus contemporâneos hoje consagrados, como
Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar. Hebe Cristina da Silva (2009) destaca
que essa imagem de autor menor que Teixeira e Sousa adquire nas histórias literárias do
século XX contrasta com a maneira pela qual era avaliado no século XIX, quando seu
nome era mencionado ao lado do de Alencar e Macedo, os três tidos como grandes
expoentes da prosa romanesca nacional.
As obras dos escritores que mereceram destaque em sua época mas não foram
coroados pela História Literária agradaram aos críticos e ao público de seu tempo
porque correspondiam perfeitamente ao que se considerava um bom texto no século
XIX; estavam adequados aos critérios segundo os quais se avaliava uma obra literária
naquele período. Com a chegada do século XX, esses critérios foram se modificando, e
muitos daqueles que eram considerados excelentes escritores no século anterior
passaram a ser vistos como autores menores.
Obviamente, não se espera nem se recomenda que esses autores tenham, nas histórias
literárias e antologias, o mesmo lugar dos que ficaram consagrados. Porém, ignorar sua
existência e a posição por eles ocupada no universo literário de seu tempo é ignorar
público e crítica oitocentistas, ou seja, desconsiderar a leitura no período. E por
desconsiderar a leitura, a História Literária leva a anacronismos. Quando se afirma, por
exemplo, que o marco inicial do Realismo é a publicação de Madame Bovary, de
Gustave Flaubert, em 1857 (e é assim que, geralmente, aprendemos na escola),
transmite-se a falsa ideia de que a partir dessa data não houve mais produções
românticas. Ora, não apenas continua-se a escrever textos românticos, como o romance
de Flaubert só terá verdadeiro impacto e influência vários anos mais tarde. O que se
conhecia por Realismo, naquele momento, é bastante diferente do que se designa pelo
termo hoje.
Esses breves exemplos evidenciam os equívocos decorrentes de uma abordagem do
fenômeno literário restrita à perspectiva da História Literária e apontam para uma
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possível contribuição da História da Leitura para uma visão mais precisa da literatura do
passado.

3. História Literária e História da Leitura

Retomemos as duas questões propostas no final da primeira parte deste artigo:


haveria alguma utilidade em continuar a ensinar Literatura com base na História
Literária? Seria possível renová-la e dar sentido à sua presença no ensino ao lado de
outras abordagens do fenômeno literário?
Para a primeira pergunta, a resposta será negativa se esse ensino se basear somente
na perspectiva da História Literária, e os argumentos para essa negativa já foram
expostos neste trabalho: uma abordagem da literatura restrita à História Literária conduz
a equívocos e a anacronismos, pois avalia o passado com base nas condições e critérios
do presente, sem dispensar a devida atenção à leitura e ao universo cultural do período
que pretende descrever.
Já à segunda questão, acreditamos ser possível responder positivamente. Apesar dos
problemas advindos de uma abordagem baseada exclusivamente na História Literária, a
disciplina não deve ser simplesmente deixada de lado, mas relacionada a outras formas
de estudo da literatura. Uma das maneiras possíveis de ampliar e tornar mais precisa e
esclarecedora a visão que se tem a partrir da História Literária é relacioná-la à História
da Leitura. Isso implicaria ultrapassar o enfoque nos textos e em sua produção para
considerar também a difusão e a recepção desses textos, levando em conta tudo o que
envolve tais processos, como, por exemplo, a educação e o mercado editorial. Segundo
Regina Zilberman,

[...] a história da leitura ultrapassa a história da literatura, preocupada,


pelo menos até o momento, com a sequência, no tempo, de obras de
cunho artístico, divididas conforme o gênero [...]e conforme a língua
em que circularam pela primeira vez [...]
A história da leitura avança para além do texto, lidando, pelo menos,
com:
- uma instituição: a escola [...]
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- uma técnica: a escrita enquanto código reconhecido e aceito pela


comunidade [...]
- uma tecnologia: a fixação da escrita num meio físico permanente
(ZILBERMAN, s.d., p.1).

A História da Leitura envolve, portanto, a história dos livros e a da educação,


lidando, pois, com um objeto muito mais abrangente do que o da História Literária
tradicional.
Jean-Yves Mollier concebe a História da Leitura como parte da História Cultural e
defende o diálogo construtivo entre esta última e a História Literária:

À medida que, segundo as definições geralmente aceitas, a história


cultural se pretende “história social das representações”, das maneiras
pelas quais os homens representam e se representam o mundo que os
cerca, era inevitável que ela encontrasse a história literária e se
esforçasse para estabelecer com ela um diálogo mais ou menos
construtivo (MOLLIER, 2003, p.597, tradução nossa).

Mollier defende uma aboradgem social e cultural da literatura, que recuse os


julgamentos a priori e olhe sem preconceito para as leituras do passado. Uma tal
abordagem englobaria o estudo de diversos fatores do momento literário que se escolhe
como objeto: o contexto editorial, o suporte material dos textos, as condições de difusão
e circulação dos escritos, o estado da alfabetização e da escolarização, o horizonte de
expectativas dos leitores (na acepção que tem expressão para Jauss) etc. Para Mollier,
estudar uma obra significa “recolocá-la em situação” (MOLLIER, 2003, p.606), ou seja,
reinseri-la no universo que a viu nascer, considerar as condições sociais e culturais que
envolvem seu surgimento e sua trajetória. Para compreender melhor as obras hoje
consagradas, é preciso, pois, historicizá-las, porém em um sentido muito mais amplo do
que aquele que se observava na perspectiva tradicional da História Literária. Mas para
que se chegue a um entendimento mais apurado da literatura e da leitura de um dado
período, não se pode restringir a reflexão às obras que se tornaram canônicas. Não se
trata, como ressalta Mollier (2003, p.602), de aderir a correntes revisionistas que
procuram “reabilitar” determinados autores e grupos e colocá-los no lugar dos clássicos;
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o que se deve buscar é reconstituir o “espaço literário de uma época”, que se compõe
também por textos, autores e gêneros considerados menores.
O estudo da literatura seria, sem dúvida alguma, enriquecido por essa ótica cultural.
É importante buscar uma abordagem interdisciplinar, que permitiria construir um
conhecimento mais abrangente e, ao mesmo tempo, mais fundamentado do fenômeno
literário. A Teoria Literária não precisa e não deve ser excluída desse diálogo entre
áreas: um estudo abrangente e interdisciplinar da literatura não pode deixar de
contemplar também os elementos internos dos textos, ou seja, não pode prescindir da
análise do texto. O estudo da literatura, e consequentemente o seu ensino, ganhariam em
aliar História Literária, História da Leitura e Cultural, Teoria e Crítica. Os olhares de
várias disciplinas para um mesmo objeto literário podem propiciar, como sugere Regina
Zilberman (2004, p.16), uma “superação dos limites” dessas discilinas, sem suprimi-las.
O diálogo entre áreas levaria a uma visão mais esclarecedora da literatura, uma vez que
os conhecimentos e instrumentos de uma área ajudariam a suprir as lacunas de outra, o
que Darnton propõe para os estudo da história dos livros:

Prestando atenção à história, os críticos literários podem evitar o risco


de anacronismos, pois às vezes eles parecem supor que os ingleses
setecentistas liam Milton e Bunyan como se fossem professores
universitários do século XX. Levando em conta a retórica, os
historiadores podem encontrar pistas para comportamentos que, de
outra forma, seriam desconcertantes, tais como as paixões despertadas
desde Clarissa a La nouvelle Héloïse e de Werther a René.
Portanto, eu defenderia uma estratégia dupla, que combinaria a
análise textual e a pesquisa empírica. Dessa forma, seria possível
comparar os leitores implícitos dos textos e os leitores efetivos do
passado [...] (DARNTON, 1995, p.167).

Considerações finais

Restringir o ensino de Literatura nas escolas e universidades ao estudo da História


Literária em sua concepção tradicional constitui uma prática redutora e conduz a um
esvaziamento do próprio sentido de ensinar Literatura. No entanto, abolir a perspectiva
histórica em nome de uma supremacia da análise interna do texto mostra-se igualmente
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inadequado, pois incorre no risco de tomar o texto literário como um objeto a-histórico.
Analisar o funcionamento interno da obra é absolutamente necessário, porém, é
fundamental levar em conta a dimensão histórica de tal obra, o que não pode se limitar
ao prisma da História Literária tradicional, mas implica necessariamente estudar as
condições sociais e culturais que envolvem o surgimento, a difusão, a circulação e a
recepção da obra. Considerar a literatura pelo viés da História da Leitura e da História
Cultural significa ampliar o enfoque e buscar um entendimento mais amplo do
fenômeno literário. Uma abordagem que envolva tais disciplinas relacionando-as à
História Literária, à Teoria e à Crítica não seria nenhuma “invenção da roda”, mas
certamente proporcionaria mais sentido e profundidade ao ensino de Literatura.

Referências

ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Porto alegre: Mercado Aberto,
1998.

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. Trad. BOTTMANN, Denise. São Paulo:


Companhia das Letras, 1995.

DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos na França pré-revolucionária. Trad.


HEIST, Hildegard. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

FRANCHETTI, Paulo. História literária: um gênero em crise. Semear (PUCRJ), vol.1,


fac.7, pp.247-264, 2002.

MELLO, Maria Elizabeth Chaves de. História da literatura: um projeto romântico com
respaldo cientificista, disponível em:< www.pucrs.br/fale/pos/historiadaliteratura>,
acesso em: 23 mar.2010.
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Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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MOLLIER, Jean-Yves. Histoire culturelle et histoire littéraire. Revue d’histoire


littéraire de la France, vol.103, pp.597-612, jul.-set.2003.

SILVA, Hebe Cristina da. Prelúdio do romance brasileiro: Teixeira e Sousa e as


primeiras narrativas ficcionais. 2009, 275 p. Tese (Teoria e História Literária) –
Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2009.

ZILBERMAN, Regina. A leitura no Brasil: sua história e suas instituições, disponível


em: <www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/regina.html>, acesso em: 12 nov.2008.

ZILBERMAN, Regina. Fontes _ porque primárias. In: ZILBERMAN, Regina et al. As


pedras e o arco: fontes primárias, teoria e história da literatura. Belo Horizonte: editora
UFMG, 2004.
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LITERATURA, SOCIEDADE, MEMÓRIA E VELHICE:


ALINHAVANDO O PSICOSSOCIAL NA CANÇÃO “O VELHO E O MOÇO”

Andréa Grace Silva de Souza (PG-UFCG)


Márcia Tavares Silva (UFCG/UFRN)

Considerações Iniciais

Muito se tem discutido, ao longo do tempo, acerca das características e das


funções da Literatura. Nesse trabalho, procuramos aproximar Literatura, Sociedade,
Memória e Velhice, a fim de compreendermos como essas noções estão interligadas e
resgatar a função social da Literatura. Para tanto, discutiremos alguns tópicos teóricos e
realizaremos uma análise da canção “O velho e o moço”, composta por Rodrigo
Amarante e interpretada pelo grupo Los Hermanos.
Como suporte teórico para a reflexão sobre Literatura e Sociedade, baseamo-nos
nas observações de Rildo Cosson (2006) e Antonio Candido (2008). No tocante ao
aspecto social da memória, estudamos o pensamento de Ecléa Bosi (1994) e Miryan dos
Santos (2003). No que concerne aos estudos sobre o envelhecimento, utilizamos os
estudos de Simone de Beauvoir (1990) e Sueli Freire e Marineia Resende (2001).
Os textos teóricos que serviram de base para a análise das letras das canções, a
partir da aproximação com a poesia, compreendem as considerações de Domício
Proença Filho (1987), Fernando Paixão (1991), Angélica Soares (1989), Fernanda
Falcão (2004) e Nelson Barros da Costa (2002), que observam a aproximação estrutural
e composicional entre o texto poético e o gênero canção.
A partir da análise proposta, tentaremos estabelecer a relação inerente entre
textos literários, sociedade, memória e velhice, bem como a relação dessas noções com
o caráter subjetivo e emocional dos textos literários.

2. Considerações teóricas

Discutiremos, nesse tópico, alguns dos aportes teóricos que orientarão a análise
proposta nesse trabalho.
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2.1. Literatura, Sociedade, Memória e velhice: algumas particularidades no


estudo do texto literário

Ao abordar as particularidades do texto literário, Rildo Cosson (2006) afirma


que “na leitura e na escritura do texto literário encontramos o senso de nós mesmos e da
comunidade a que pertencemos” (COSSON, 2006, p. 17), isso porque a literatura nasce
no seio da sociedade e sempre nos comunica uma experiência ou uma ideologia
particular do seu escritor, em relação ao seu tempo.
Nesse sentido, é inegável a relação que existe entre Literatura e Sociedade. Essa
relação é percebida, desde a década de 60, pelo crítico literário Antonio Candido.
Segundo observa o autor,

Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota


de uma confidência, um esforço de pensamento, um assomo de
intuição, tornando-se uma ‘expressão’. A literatura, porém, é coletiva
no momento em que requer uma certa comunhão de meios expressivos
( a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que
congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a
uma ‘comunicação’. (grifos do autor) (CANDIDO, 2008, p. 147).

A partir dessa perspectiva, compreende-se que imbricado a característica pessoal


de cada obra literária, há também um alicerce social, de caráter ideológico, que quer
comunicar, pôr em crise ou sedimentar o pensamento dominante na sociedade. A
literatura, nesse sentido, além de servir ao prazer estético e ao deleite dos momentos de
lazer, possui um caráter histórico-literário, no sentido de possuir a sociedade como
constituinte da estrutura interna nas temáticas das obras. É a partir dessa percepção que
Cosson (2006) afirma que “a literatura é plena de saberes sobre o homem e o mundo”
(COSSON, 2006, p. 16). Esse conhecimento não é proporcionado de forma objetiva, ao
contrário, nos mobiliza a partir das emoções, do trabalho diferenciado com a linguagem,
com a nossa subjetividade. Por isso, Cosson (2006) acredita que a literatura é uma
experiência a ser realizada.
O conhecimento que o texto literário proporciona, não é um saber escolarizado.
Segundo Rildo Cosson (2006), a literatura
É mais que um conhecimento a ser reelaborado. Ela é a incorporação
do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade. No
exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os
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outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa


experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos (...). A experiência
literária não só nos permite saber da vida por meio da experiência do
outro, como também vivenciar essa experiência. Ou seja, a ficção feita
palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos
formativos tanto da linguagem quanto do leitor e do escritor. Uma e
outra permitem que se diga o que não sabemos expressar e nos falam
de maneira mais precisa o que queremos dizer ao mundo, assim como
nos dizer a nós mesmos (COSSON, 2006, p. 17).

Assim, a literatura é uma experiência humanizadora, capaz de exercitar a nossa


sensibilização e a nossa capacidade de sermos humanos. Dessa forma, Literatura e
Sociedade estão alinhavadas numa relação mútua de construir e resignificar a sociedade,
o passado, o presente e o futuro.
A linha mestra desse alinhavar é a memória. Citando Goethe, Ecléa Bosi (1994)
propõe que a memória possui um caráter pessoal, familiar, grupal e social, pois ela é
psicossocial. Apesar disso, podemos conceber, como sugere Myrian dos Santos (2003),
que as recordações são diferentes entre os indivíduos porque as experiências de vida são
individuais e as combinações com os quadros sociais são diferenciadas entre os
indivíduos.
Para Ecléa Bosi (1994) os idosos são guardiães da memória social, pois
atravessaram vários momentos históricos e vivenciaram o avançar das décadas,
acompanhando a evolução do tempo e do pensamento. Para os idosos, o ato de
rememorar, antes de uma atividade mental, é um exercício de viver.
Sueli Freire e Marineia Resende (2001) afirmam que viver e envelhecer em
nossa sociedade atual “ao lado da incerteza do dia-a-dia, tem sido uma experiência
difícil para muitas pessoas” (FREIRE e RESENDE, 2001, p. 73), sobretudo pela rapidez
com que ocorrem as mudanças e com as “faltas” que vão ficando no lugar da pressa do
tempo; essas faltas, por sua vez, tendem a levar os indivíduos a se questionarem a
respeito do sentido de suas vidas. Esse questionamento se acentua na velhice, pois,
como observa Simone de Beauvoir (1990), o idoso é “um indivíduo que tem uma longa
vida por trás de si, e diante de si uma expectativa de sobrevida muito limitada”
(BEAUVOIR, 1990, p. 445), por isso, como comenta a autora, muitos idosos se
prendem ao passado, como forma de sobrevivência.
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O passado, que é retomado pelo ato de rememorar, pode não ser um elemento de
fuga da velhice, mas um momento para repensar os rumos da vida e refletir a respeito
do futuro. Simone de Beauvoir (1990) afirma que “há na lembrança uma espécie de
magia à qual somos sensíveis em qualquer idade” (BEAUVOIR, 1990, p. 445), mas que
na velhice esse resgate da lembrança se torna mais significativo e freqüente, tendo em
vista que o passado faz com que o idoso não perca a sua identidade e a sua construção
individual e social. E todas essas problemáticas podem ser tratadas pelos textos
literários.

2.2. A canção e a poesia: aproximações e reflexões

A poesia é uma das sete artes tradicionais e a sua história, na Língua Portuguesa,
teve início, segundo Lígia Cademartori (2003), com as composições poéticas reunidas
em cancioneiros escritos do século XII ao XIV. As denominadas “Cantigas” eram
produzidas para serem cantadas ao público ouvinte e eram classificadas como: cantigas
d´amor, cantigas d´amigo e cantigas de escárnio.
Entretanto, essa ligação da poesia com a música se deu antes desse período.
Fernando Paixão (1991) afirma que a linguagem poética é empregada desde os
primórdios da civilização, quando os homens, tentando explicar a ocorrência dos
fenômenos da natureza, criaram os mitos, originando assim, a mitologia grega. Além
desse contato com a religião, a linguagem poética mantinha, na Grécia, uma estreita
relação com a cultura do povo. (PAIXÄO, 1991, p. 09).
Angélica Soares (1989) observa que durante a Antigüidade surgiu a poesia lírica,
que era executada tendo a flauta ou a lira como acompanhamento e consiste em uma
forma poética de expressões de sentimentos mais individualizados. Essas produções
poéticas, segundo a autora, “já em suas origens, vinham marcados pela emoção, pela
musicalidade e pela eliminação do distanciamento entre o eu poético e o objeto
cantado” (SOARES, 1989, p. 24). Como aponta Rogel Samuel (2005), o gênero lírico é
mais subjetivo, musical e introspectivo que os demais gêneros literários.
Com o passar do tempo, a poesia lírica passou da forma cantada para a forma
escrita. Mesmo com essa migração, ela conservou alguns elementos que mantiveram
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relação de proximidade entre música e poesia. Dentre esses elementos, Angélica Soares
(1989) cita: “a repetição de estrofes, de ritmos, de versos (refrão), de palavras, de
sílabas, de fonemas responsáveis não só pela criação das rimas, mas de todas as
imagens que põem em tensão o som e o sentido das palavras”. (SOARES, 1989, p. 24).
Domício Proença Filho (1987) comenta que as manifestações em versos podem
ter alguns elementos interdependentes: a metrificação, o ritmo, a rima e as formas fixas.
A metrificação é técnica de contagem dos sons dos versos. Na Língua Portuguesa, essa
medida é realizada a partir da tonicidade das palavras; o ritmo é uma alternação
uniforme de sílabas tônicas e não-tônicas em cada verso de uma composição poética; a
rima é um dos elementos do verso, mas não é essencial ou obrigatório, pois o poeta só
lança mão desse recurso se quiser dar ritmo a um verso; no âmbito das formas fixas, o
autor cita a estrofe que é “a sucessão de dois ou mais versos” e que, a partir da
combinação dessas estrofes, se originam as formas fixas, como o soneto. (FILHO, 1987,
p. 40).
Visto que a canção e a poesia são manifestações em versos, os elementos citados
acima são comuns aos dois gêneros em questão, mantendo-os, assim, bastante
próximos. Além dessa aproximação estrutural, a poesia e a canção também se
aproximam quanto à “literariedade”.
“Literariedade”, termo utilizados pelos formalistas, diz respeito à capacidade que
a obra de arte tem de dizer, sugerindo; de através da subjetividade, expressar o que não
pode ser dito facilmente; de dizer, mesmo que não esteja dito objetivamente. Noutras
palavras, é o que faz com que o texto seja considerado arte literária.
A literatura possui esse poder de literariedade, pois sempre nos oferece uma
apreensão subjetiva da realidade, transmitida através do uso de uma linguagem poética
que expressa a visão de mundo do eu - lírico. Assim, o trabalho do poeta consiste em
“armar símbolos, oferecer caminhos imaginários sobre a página” e mais do que isso,
propiciar ao leitor a sensação de “intimidade das palavras, o enredamento caloroso
dentro delas”. (PAIXÃO, 1991, p. 33)
Esse trabalho tão cuidadoso e especial com a linguagem é o que diferencia a
linguagem poética da jornalística, na qual todo o conteúdo é tão objetivo e temporal; na
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poesia, a linguagem ganha vida e interage diretamente com o leitor, dando-lhe a


oportunidade de encontrar-se com o texto e no texto.
Ao perder o seu caráter documental e mítico, segundo Fernando Paixão (1991), a
poesia começou a ser utilizada como expressão dos sentimentos dos poetas em relação
ao seu tempo, representando não só a voz do poeta, como também, a voz da
coletividade. Essa representação, em forma de texto poético, se realiza através da
utilização da linguagem de forma inusitada, atribuindo às palavras uma forte “carga
simbólica”, transmitindo algo que vai além do racional e do consciente. Carga simbólica
é aqui compreendida segundo o pensamento de Fernando Paixão (1991), quando afirma:
“uma palavra ou imagem é simbólica sempre que representa algo mais do que seu
significado imediato e óbvio”. (PAIXÃO, 1991, p.32).
Para Rogel Samuel (2005), a lírica existe hoje como forma de resistência à
funcionalidade do mundo. Para o autor, o lírico, apesar de não revolucionar através de
seu canto, nos resgata da aspereza cotidiana para nos transportar a um mundo de
recordações e emoções, ainda que solitário. Para o autor, “a poesia pode comunicar-se
na sua musicalidade, mais sentida do que compreendida, pois na música está o seu
elemento significativo essencial”. (SAMUEL, 2005, p. 43).
Mergulhando na história da poesia, encontramos uma ligação desta com a
música, até que, com o surgimento da imprensa, no século XVI, como salienta Joaquim
Aguiar (2001), as diferenças entre música e poesia vieram a se acentuar, passando,
então, a poesia cantada a dar espaço à poesia escrita.
Desde então, música e poesia têm caminhado em estradas diferentes, mas
separadas por canteiros muito tênues e, no trecho em que esses caminhos se encontram,
surge o gênero canção, que segundo José Miguel Wisnik (2004), Nelson Barros da
Costa (2002) e Fernanda Scopel Falcão (2004), é um gênero artístico, resultado da união
entre música e a poesia ou das linguagens verbal e musical.
No campo estrutural da poesia, o termo Canção, como salienta Angélica Soares
(1989), é uma forma lírica fixa e é definida como sendo, genericamente, “toda a
composição poética destinada ao canto” (SOARES, 1989, p. 31). É nessa perspectiva
que nos apoiamos para aproximar canção e poesia, a fim de realizarmos a nossa análise.
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3. A memória e a construção do futuro em “o velho e o moço”

Simone de Beauvoir, citando Sartre, afirma: “É o futuro que decide se o passado


está vivo ou não” (BEAUVOIR, 1990, p. 446). Essa relação entre o passado e o futuro
está bastante presente no processo de envelhecimento dos indivíduos.
Entretanto, as canções analisadas neste tópico não retomam o caminho do
passado. Nelas, o rumo que se toma é em relação ao futuro, ainda que se reconheçam as
limitações físicas e que se olhe para o passado com admiração.
Olhar para o presente e refletir sobre as escolhas que frutificarão o futuro...
Olhar para o passado e rever as decisões que moldaram o hoje... Esse é o percurso
realizado pelo eu - lírico de “O velho e o moço”, composição de Rodrigo Amarante e
interpretada pelo grupo Los Hermanos, no álbum Ventura, do ano de 2003. No
itinerário que leva “o velho” a deslocar-se para o passado e encontrar-se “moço” é
possível ouvir a voz sábia de alguém que é o que escolheu ser.
A canção é formada por dez estrofes irregulares, em sua maioria, tercetos. “O
velho e o moço” é a viagem do eu - lírico através do tempo indistinto nas suas três
estações: a do presente, a do passado e a que leva para o futuro:

Deixo tudo assim.


Não me1importo em ver a idade em mim,
ouço o que convém. Eu gosto é do gasto

Sei do incômodo
2 e ela tem razão
quando vem dizer que eu preciso sim
de todo o cuidado.

E se eu fosse o primeiro a voltar


3 o que eu fiz,
pra mudar
quem então agora eu seria?

Tanto faz que o que não foi não é.


4
Eu sei que ainda vou voltar...
mas eu quem será?

Deixo tudo
5 assim,não me acanho em ver
vaidade em mim. Eu digo o que condiz.
Eu gosto é do estrago.
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Sei do escândalo e eles têm razão


quando6vêm dizer que eu não sei medir
nem tempo e nem medo.

E se eu7for o primeiro a prever


e poder desistir do que for dar errado?

Ah,ora,8 se não sou eu quem mais vai decidir o que é bom pra mim?
Dispenso a previsão!

Ah, se9o que eu sou é também


o que eu escolhi ser, aceito a condição.

Vou levando assim


que o10
acaso é amigo do meu coração
quando fala comigo, quando eu sei ouvir...

A estação do presente nos é apresentada nas quatro primeiras estrofes. No


momento delimitado pelo tempo presente, o “velho” fala sobre si e reflete sobre suas
escolhas presentes e futuras. Na apresentação que o eu - lírico se faz, ouve-se a sua voz
declamando: “Não me importo em ver a idade em mim / ouço o que convém. Eu gosto é
do gasto”. A maneira como o “velho” se apresenta denota sua forte personalidade que
inclui ouvir apenas o que é conveniente e admitir que gosta do “gasto”.
Esse gostar do que é “gasto” aproxima o eu - lírico da experiência da velhice,
visto que os idosos tendem a valorizar, comumente, aquilo que os remetem aos tempos
idos; ao que foi “gasto” pelo tempo ou pelas recordações. A experiência da velhice
parece não inquietar o eu - lírico, que diz: “Não me importo em ver a idade em mim”
A apresentação que “o velho” faz sobre si prossegue na segunda estrofe, quando
o eu - lírico diz: “eu preciso sim / de todo cuidado”. Aparece também, nesta estrofe,
alguém, denominada pelo eu - lírico apenas como “ela”, que “vem dizer” para o “velho”
dos desvelos que devem ser desdobrados a ele.
Outro elemento que aparece nesta estrofe é o “incômodo”. Mário Souto Maior
(1997) comenta que, com a chegada da velhice, o idoso experimenta da companhia de
suas enfermidades, encontrando-se então na impossibilidade de viver sozinho. Essa
dependência que passa a ser experimentada pelos idosos constitui-se, sob seus olhares
cansados, um incômodo para os que vão dispensar-lhes os cuidados necessários.
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A partir da exposição que o eu - lírico faz sobre si (e, possivelmente, para si),
surge um instante de questionamento que é exposto na terceira estrofe. O
questionamento do “velho” se fundamenta na possibilidade de “agora” ser outro
alguém, caso fosse capaz de “voltar / pra mudar” o que fez. Há um “se” condicional, no
primeiro verso, acompanhado de um verbo no pretérito imperfeito do modo subjuntivo
que, juntos, dão ênfase ao tom reflexivo da terceira estrofe.
Ecléa Bosi ressalta a importância de valorizar esse olhar para o passado - olhar
que observa que tudo o que se passou é parte importante na formação do hoje - que
motiva o questionamento feito pelo eu - lírico na terceira estrofe: “o que foi não é uma
coisa revista por nosso olhar, nem é uma idéia inspecionada por nosso espírito – é
alargamento das fronteiras do presente, lembranças de promessas não cumpridas”
(BOSI, 2006, p.18).
Apesar da memória do eu - lírico possuir um caráter individual, visto que refere-
se a experiências por ele vivenciadas, há nesse gesto de lembrar um caráter social. Isso é
observado por Myrian Santos (2003), quando, esclarecendo a teoria da memória,
proposta por Halbwacs, a autora afirma que “quaisquer que sejam as lembranças do
passado que possamos ter – por mais que pareçam resultado de sentimentos,
pensamentos e experiências exclusivamente pessoais- elas só podem existir a partir dos
quadros sociais da memória (SANTOS, 2003, p. 70), pois o convívio e a construção das
experiências estão num plano coletivo, portanto, social.
Ao questionamento que “o velho” se faz, ele mesmo responde, no primeiro verso
da quarta estrofe: “Tanto faz que o que não foi não é”. A impressão de que haveria um
arrependimento em relação ao passado não se confirma, mas o que se percebe é uma
preocupação com quem ele se tornará no futuro: “mas eu quem será?”. Essa
preocupação, possivelmente, está relacionada às escolhas, que feitas hoje, refletirão no
futuro. O eu - lírico afirma: “eu sei que ainda vou voltar” e, voltando ao que hoje é o
presente, ele verá as escolhas que o levaram a se tornar naquilo que o futuro o “será”.
Esse questionamento finda a quarta estrofe e a estadia na estação do presente.
Ao contrário do percurso habitual, que nos transportaria do presente para o
futuro e nos levaria a encontrar um “velho” ainda mais velho, a viagem nos leva à
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estação do passado e nos deparamos com um “moço”. Estaremos na companhia desse


“moço” nas estrofes de 05 a 08.
É notável o paralelismo entre as quatro primeiras estrofes e as quatro transcritas
acima. Os verbos que encontramos nas duas primeiras estrofes e na quinta e sexta
estrofes estão no tempo presente, indicando que apesar de agora estarmos tratando do
passado, visitamo-lo no agora.
O que primeiramente nos conta “o moço” é: “não me acanho em ver / vaidade
em mim. Eu digo que condiz. / E gosto é do estrago”. “Vaidade” aparece nesse
momento, em contraposição à “idade”, mencionada na primeira estrofe. “O velho” que
ouve o que convém e que gosta do gasto é um jovem que fala “o que condiz” e que
gosta “do estrago”.
“O velho” que sabia do incômodo, enquanto “moço” sabe “do escândalo” e não
sabe “medir / nem tempo e nem medo”, como expressa a sexta estrofe. Há, assim como
na segunda estrofe, um sujeito determinado apenas pelo pronome (na segunda estrofe, o
pronome feminino singular “ela” e agora o pronome masculino plural “eles”). Esses
personagens expressos pelo pronome “eles” aconselham o eu - lírico sobre o seu
temperamento destemido, repetindo o comportamento da outra voz, ao aconselhar o
“velho-moço” a seguir os modelos tradicionalmente reconhecidos socialmente.
Na sétima estrofe, “o moço” se questiona sobre o futuro. Preocupa-se em
“prever / e poder desistir do que for dar errado”. O “se” condicional, unido ao verbo
“for” (futuro simples do modo subjuntivo), indica a possibilidade quista pelo eu - lírico
de cometer menos erros.
Diante dessa possibilidade questionada pelo “moço”, há na oitava estrofe uma
constatação que é propiciada a partir da reflexão declamada pelo próprio eu - lírico:
“Ah, ora, se não sou eu quem mais vai decidir o que é bom pra mim?”. E diante da
possibilidade cogitada pelo “moço” de prever o futuro, ele mesmo responde: “Dispenso
a previsão!”.
Dispensando a previsão, “o moço” embarca rumo ao futuro e “o velho” o recebe
na estação do presente: essa fusão do passado e do futuro, do “moço” e do “velho”
ocorre na nona estrofe.
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Nessa estrofe, passado: “escolhi” e presente: “sou” se encontram e o eu - lírico


percebe que ele se tornou aquilo que escolheu, que ele é o fruto de suas próprias
escolhas. Escolhas que foram tomadas sem previsão. O eu - lírico, olhando-se e
percebendo quem é, aceita a condição de continuar dispensando a previsão. Aceitando
essa condição, “o velho e o moço”, unificados pelas suas escolhas e uno pelas suas
vidas, tomam o transporte para o futuro, na última estrofe.
O eu - lírico não chega a desembarcar na estação do futuro, mas ele vai
“levando” da mesma forma como chegara até o presente: tendo o acaso como amigo e,
sobretudo, ouvindo a voz que emana do seu próprio coração.
Mesmo sem termos um retrato do futuro do eu - lírico, possivelmente, teríamos
mais uma vez alguém que se constitui através das opções feitas por si próprio e se
satisfaz com as decisões que tomou.
O ritmo da canção é bem marcado, principalmente nas estrofes 1, 2, 5 e 6,
redondilhas menores, com acentuação 1-3-5 nos quatro primeiros versos e 2-5 no
último. Esta forma popular de composição e a semelhança estrutural dos pares 1-5 e 2-
6, além de reforçar o tom confessional, já exposto pela linguagem coloquial, aproxima
semanticamente o que o eu - lírico expressa nos dois momentos da sua vida.
As estrofes 3, 4, 7 e 8, que também apresentam semelhanças, quebram a
regularidade das estrofes que as antecedem, e é nelas que se encontram os
questionamentos que criam a expectativa de mudança de atitude – expressa
graficamente pelo uso da interrogação nas estrofes 3 e 7 -, que na realidade não se
configuram quando o eu - lírico apresenta as respostas – estrofes 4 e 8. Em toda a letra
da canção, o vocabulário coloquial, aliado ao uso marcante de verbos e à assonância do
“e” e do “o” conferem unidade às estrofes.
“O velho e o moço” é a expressão de uma voz sábia que reflete sobre si, através
do processo de rememoração, e que também nos leva a refletir sobre nossas escolhas. A
memória, nesse sentido, é uma ferramenta de reflexão e ponderação que permite ao eu -
lírico delinear os seus passos rumo ao futuro. A voz desse eu - lírico, que exala
maturidade e sabedoria, nos desperta para a profundidade de construir o hoje.

Considerações finais
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Na canção “O velho e o moço”, analisada no tópico acima, temos posta a


atividade da memória como construção para o futuro do eu - lírico. Esse eu - lírico idoso
problematiza o envelhecimento e a perspectiva de futuro, através da lembrança e da
reflexão entre passado e futuro. Numa sociedade em que o velho é desprivilegiado e
impedido de lembrar, como defende Ecléa Bosi (1994), trazer como temática central da
canção a necessidade de lembrar e a redenção da memória para o idoso, é discutir essa
problemática social que vem ganhando espaço nos estudos acadêmicos, é reconstruir,
resignificar o papel do senil da sociedade.
No estudo literário dessa canção, unimos Literatura, Sociedade e Memória, a fim
de colocar em tensão a inserção das temáticas sociais na literatura e da capacidade que a
literatura possui de confrontar a realidade social e reconstruí-la, de modo a mobilizar,
nos leitores, a sensibilidade e olhar subjetivo para a experiência do outro social, exposto
nas obras literárias.
Dessa forma, concebemos o texto literário como uma expressão artística
recoberta de significado e com uma inegável relação com a sociedade. Reconhecer isso
é devolver ao texto poético a sua função mais essencial que é humanizar o homem.

Referências

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(Coleção Margens do Texto).
BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Tradução de Maria Helena Franco Monteiro. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

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Companhia das Letras, 2006.

CADEMARTORI, Lígia. Períodos Literários. 9ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2003.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria literária. 10 ed. Rio de


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DIONISIO, Angela P.; MACHADO, Ana Rachel; BEZERRA, Auxiliadora (org.).
Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p 107-121.
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COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

FALCÃO, Fernanda Scopel. O poema e a canção: uma aproximação intergêneros. In:


Anais do IV Congresso De Estudos Literários Multiteorias: Correntes Críticas,
Culturalismo, Transdisciplinaridade, nº 4, 2004, Espírito Santo. Anais eletrônicos.
Espírito Santo: UFES. Disponível em: <http://www.ufes.br/%7Emlb/multiteorias/>

FILHO, Domício Proença. A linguagem literária. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1987.
(Série Princípios).

FREIRE, Sueli A.; RESENDE, Marineia C. Sentido de vida e envelhecimento. In:


NERI, Anita Liberalesso (org). Maturidade e Velhice: Trajetórias individuais e
socioculturais. Campinas, SP: Papirus, 2001. p.71 - 98. (Coleção Vivaidade).

MAIOR, Mário Souto. Solidão, Velhice & Folclore. In: Boletim da Comissão
Catarinense de Folclore. v. 33, n. 49, Florianópolis, dez. 1997.

PAIXÃO, Fernando. O que é poesia. 6ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
(Coleção Primeiros Passos).

SAMUEL, Rogel. Novo manual de teoria literária. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória Coletiva & Teoria Social. São Paulo:
Annablume, 2003.

SOARES, Angélica. Gêneros Literários. São Paulo: Editora Ática, 1989. (Série
Princípios).

WISNISK, José Miguel. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.
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O MERCADO MATRIMONIAL EM SENHORA

Andréia Cristina de Souza (PG/UNIOESTE/CAPES)

Introdução

O presente artigo objetiva analisar o romance “Senhora”, de José de Alencar,


verificando como o autor faz uma crítica à sociedade burguesa da época, apresentando
um perfil de mulher mais independente em relação aos homens, criticando também o
casamento somente por interesse, prática comum àquela sociedade. No entanto, mesmo
trazendo esse novo modelo de mulher, o romance mostra, ao final, uma mulher
novamente subjugada ao homem, por amor.
A família patriarcal foi a forma privilegiada de organização social no Brasil durante a
colonização. Os romances urbanos, como Senhora, de José de Alencar descrevem os
costumes e os papéis de homens e mulheres em seus relacionamentos, assim como a
vivência do primeiro amor, trazendo, ainda, a temática do casamento como primeiro e
principal objetivo da mulher inserida no sistema patriarcal. Senhora, além de descrever
esses costumes burgueses, mostra as mulheres independentes e superiores aos homens,
como uma crítica à ordem social burguesa.
No romance em questão, Aurélia, a protagonista, mostra-se segura e determinada,
independente e superior (ou, ao menos, no mesmo patamar) aos homens, em relação aos
cálculos e finanças, fazendo o trabalho em lugar de seu irmão e sabendo controlar suas
finanças, as quais eram de responsabilidade de seu tio e tutor, Sr Lemos.
Sobre essa suposta superioridade masculina, pode-se trazer Freyre (2000, p.138) ao
explicar sobre a existência de diferenças mentais entre homens e mulheres, sendo que a
mulher revelou-se “sempre mais fraca que o homem na criatividade abstrata: a
composição musical, a filosofia, o drama, a ciência teórica ou imaginativa, a alta
matemática”, comparando tais diferenças com as existentes entre as raças.
O casamento no período patriarcal ocorria, geralmente, pelo interesse da família, de
acordo com o que as decisões do patriarca, as quais eram normalmente direcionadas por
acordos comerciais e familiares.
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Senhora mostra uma situação na qual não é mais a decisão do patriarca o motivo pelo
qual o matrimônio efetiva-se, sendo que, neste contexto, as relações afetivas também,
ainda que não somente, determinam a escolha do par, apesar da presença sempre latente
do dinheiro.
No romance, pode ser notada a presença de uma dualidade entre o amor e o dinheiro,
considerando que questões financeiras influenciaram diretamente no casamento entre
Aurélia e Seixas. Apesar da existência do amor entre os dois, foi o dinheiro o fator
determinante para a ocorrência do casamento entre eles. Esta dualidade entre o amor e o
dinheiro é entremeada, ainda, pelas questões de honra, visto que uma das razões que
levara Aurélia a “comprar” o marido, fora a vingança por ele ter deixado-a, enquanto
pobre, em troca de um dote, o que ela não poderia oferecer.
Assim, Alencar retrata a sociedade da época, mostrando essa dualidade, juntamente
com as questões de honra, fato recorrente em romances urbanos:

Romances de intriga, de entretenimento, de namoro adolescente,


giram em torno do conflito entre duas forças poderosas: o amor e o
dinheiro. Não raro, o lastro de moralidade comum à mundividência
romântica compele o romancista a inserir no binômio um termo
decorrente ou paralelo: a honra (MOISES, 1989, p. 91).

Dessa forma, Senhora apresenta-se como uma crítica à sociedade patriarcal da época,
a qual valorizava os relacionamentos de conveniência e arranjados, valorizando a
possibilidade de opção aos jovens na escolha de seus pares, considerando, assim, não
somente os interesses familiares, mas também os sentimentos.
O romance Senhora foi publicado no ano de 1975, podendo ser considerado uma das
obras-primas de Alencar, sendo que este escritor pode ser considerado, segundo Moisés
(1989, p. 89), “o nosso mais importante ficcionista do Romantismo, pelo volume da
obra produzida, pela variedade dos temas versados e o estilo grandiloquentemente
brasileiro e espontâneo”.
O enredo do romance mostra o casamento baseado no interesse financeiro e a
sociedade burguesa corrompida pelo dinheiro. Conforme Bosi, Alencar mostra-se
satisfeito ao descrever o passado, como em seus romances indianistas, no entanto:
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É sempre com menoscabo ou surda irritação que olha o presente, o


progresso, a vida em sociedade; e quando se detém no juízo da
civilização, é para deplorar a pouquidade das relações cortesãs,
sujeitas ao Moloc do dinheiro. Daí o mormente das suas melhores
páginas dedicadas aos costumes burgueses em Senhora e Lucíola
(BOSI, 1993, p. 151).

Apesar desse desprezo voltado à sociedade burguesa, Alencar apresenta uma opção
para esta sociedade, ao trazer o amor como redenção de um homem corrompido pelo
poder do dinheiro.

1 Perfil de mulher

Quando o sistema patriarcal brasileiro veio dos engenhos para o sobrado, foi ainda
mais difícil para a mulher, ser frágil e delicado, o livre acesso à rua, ao espaço externo à
casa, sendo que o pater familia conservava-a, o máximo possível, trancada no interior
do sobrado, sob seu jugo “protetor” (FREYRE, 2000, p. 65). Para Freyre (2000, p. 130),
“o homem patriarcal se roça pela mulher macia, frágil, fingindo adorá-la, mas na
verdade para sentir-se mais sexo forte, sexo nobre, mais sexo dominador”.
O espaço da rua só era permitido aos homens e às prostitutas, assim era possível aos
homens o revezamento entre a proteção de seu lar e a aventura da rua, incluindo-se aí as
traições, sendo essa uma das razões pela qual interessava ao homem manter a mulher
trancada. Freyre ainda afirma que

Da mulher-esposa, quando vivo ou ativo o marido, não se queria ouvir


a voz na sala, entre conversas de homem, a não ser pedindo vestido
novo [...] quase nunca metendo-se em assuntos de homem (FREYRE,
2000, p.140).

Os romances urbanos de Alencar apresentam uma mulher inteligente, mais


independente em relação aos homens e, por esta razão, eram considerados má leitura
para as mulheres da sociedade patriarcal, visto que não era do interesse dessa sociedade
que suas mulheres se espelhassem nesses exemplos, aproximando-se do perfil
masculino e fugindo de seu jugo. No entanto, nem mesmo os romances “moralistas”
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impediram a emancipação da mulher em relação ao poder do pai ou do marido


(FREYRE, 2000, p.163).
Aurélia rompe com o estereótipo da mulher da época, mostrando-se senhora de si,
com opiniões e vontades próprias. Além disso, é válido ressaltar o fato de que a
protagonista não participava de uma família patriarcal comum à época, na qual o espaço
da mulher é restrito à casa, obediente ao patriarca, mas, apesar disso, tinha tutores para
manter as “aparências”:

Mas esta parenta não passava de mãe de encomenda, para


condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele
tempo não tinha admitido certa emanipação feminina.
Guardando com a viúva as deferências devidas à idade, a môça não
declinava um instante do firme propósito de governar sua casa e
dirigir suas ações como entendesse (ALENCAR, 1971, p. 10).

Nesse mesmo sentido, para preservar essas aparências necessárias à época, mesmo
compreendendo suas finanças, foi preciso que Aurélia se apoiasse em seu tutor, Sr.
Lemos, e ainda que fazendo o trabalho de seu irmão, não pôde sair para trabalhar,
guardando-se por essas “aparências” que a sociedade exigia da mulher burguesa.
A protagonista agia em relação ao dinheiro com desprezo e acreditava que seus
pretendentes aproximavam-se dela apenas por seu poder financeiro, ao que ela devolvia
na mesma moeda, cotando cada pretendente de acordo com seu poder monetário.
Quando Aurélia dirige-se ao tio e tutor, Sr. Lemos, comunicando-o que desejava
casar-se, o mesmo diz que uma moça órfã e jovem como ela, sem o pai para escolher
um bom noivo, deveria esperar a maioridade, imaginando que Aurélia quisesse uma
indicação. Ao afirmar que já escolheu seu noivo, o tio imagina que a mesma esperava
sua aprovação, descrevendo claramente os costumes da época, em que uma mulher não
tinha o direito de escolher seu esposo.
No entanto, a jovem quer casar por amor, com seu escolhido, mesmo que tenha que
abrir mão de todo seu dinheiro. O amor e o dinheiro não podem estar juntos nessa
união, visto que Aurélia, após o casamento, explica seu desprezo pelo marido que se
havia vendido e, só torna a amá-lo, quando o mesmo devolve o dinheiro de seu dote.
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2 O mercado matrimonial

O romance inicia com a apresentação de um dos costumes da época: a aparição


diante da sociedade quando a mulher estava em idade de casar. Tal hábito, comum às
moças ricas e com dotes, era necessário para que elas ficassem conhecidas e surgissem
pretendentes dentre os quais seria escolhido o que mais se adequasse aos interesses da
família.
Segundo Costa (1989, p.215), eram os pais ou tutores quem decidiam os enlaces
contraídos por seus filhos, “considerando apenas os benefícios econômicos e sociais do
grupo familiar”, sendo que o amor ou a atração física não fazia diferença na escolha dos
pares e sem que os filhos tivessem o direito de expressar opinião sobre a união. O
casamento servia apenas enquanto um “intercâmbio de riquezas”, resultando, muitas
vezes, em uniões entre casais de idades discrepantes:

Certas práticas sociais a ele ligada, como o dote, confirmam essa


interpretação. Pelo dote, a mulher transferia ao marido parte dos bens
de sua família de origem. A natureza eminentemente econômica da
transação matrimonial tornou essa cláusula um requisito indispensável
à sua efetivação. Sem dote, a mulher estava voltada ao celibato
(COSTA, 1989, p.216).

Seixas, moço de família sem posses, apaixonara-se por Aurélia quando ela ainda era
pobre, abandonando-a por medo da estagnação social, visto que ele não poderia manter
a ele e a Aurélia no alto círculo social. Assim, além do dinheiro, o amor era “sufocado
por interesses sociais e raciais” (FREYRE, 1984, p.216).
Ao contrário de Aurélia, Seixas deixa-se conduzir pelos interesses sociais da época.
Funcionário públ ico, o mesmo entrevê no círculo da alta sociedade uma oportunidade
de subir de nível social, através do casamento. Tanto que Seixas, mesmo apaixonado
por Aurélia, a deixa por um dote de 30 mil réis, trocando esse dote por um mais alto,
sem mesmo conhecer a noiva.
Alencar reproduz claramente o mercado matrimonial, comum à sociedade da época,
mostrando, ainda, que a mulher, mesmo como Aurélia, senhora de si, necessitava de um
marido perante a sociedade:
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Vendido, sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou
milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres
honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem
contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo,
tôda a minha riqueza por êste momento. (ALENCAR, 1971, p.74).

Nas famílias sem posses, apesar do casamento ser visto como necessidade social
principalmente para a mulher (as solteironas eram consideradas um aleijão social), eram
os próprios noivos quem decidiam se casar, cabendo às famílias apenas o
consentimento.
D´Incao (2004, p. 234) afirma que a literatura mostra que as mulheres de classes
baixas tiveram maior liberdade em escolher seus pares entre os de sua condição social,
sendo que se esse amor se tornasse uma união matrimonial, “não comprometeria as
pressões de interesses políticos e econômicos”.
No entanto, os valores patriarcais permaneciam, mesmo que o dinheiro não estivesse
diretamente envolvido na negociação, como quando a mãe de Seixas vem informar-lhe
e pedir consentimento para o casamento da filha mais nova, considerando que o noivo
“já é dono de uma lojinha” (ALENCAR, 1971, p. 51-52).

3 A redenção pelo amor

O Romantismo vem mostrar para a sociedade burguesa que duas pessoas somente
podem ser felizes numa união matrimonial quando podem escolher seu par. Segundo
D´Incao (2004, p. 234), a escolha do par, no entanto, “é feita dentro do quadro de
proibições da época, à distância e sem os beliscões”.
Alencar mostra, através do romance, que não é possível que duas pessoas sejam
felizes numa união baseada somente no interesse financeiro. Da mesma maneira que
Aurélia fora deixada por Seixas, em uma troca por um dote no valor de 30 mil réis,
Adelaide também fora abandonada por ele, numa barganha por um dote maior, mesmo
sem que o noivo tivesse conhecimento de quem seria sua futura esposa, pensando,
novamente, apenas em seu bem estar e preocupando-se, uma vez definido o dote a ser
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recebido, unicamente, com os dotes físicos da noiva, por medo de que esta apresentasse
algum problema físico.
No momento em que Seixas conheceu sua noiva, ficou feliz por esta ser Aurélia, pois
apesar de estar corrompido pelo dinheiro e costumes burgueses, nutria sentimentos por
ela. Imaginou que poderia unir o interesse financeiro e social ao amor que sentia por
Aurélia.
No entanto, Aurélia prova a ele o quanto o dinheiro poderia transformar as pessoas
em objetos, fazendo questão de dizer todo o tempo a Seixas que ele era apenas um
objeto passível de compra e venda.
Na noite de núpcias, quando Aurélia revela a Seixas seus reais objetivos, ele esmaga
o sentimento que sentia por ela e sentindo-se humilhado, resolve deixar de lado todos os
benefícios materiais que o casamento lhe proporcionaria.
O amor entre eles só torna-se possível quando Seixas se reeduca, supostamente
reavaliando seus conceitos e redefinindo seus objetivos. A partir disso, ele decide
comprar sua liberdade e honra, devolvendo o valor do dote à Aurélia. Ela, ao ver o
moço com sua honra restituída e com novos conceitos em relação ao dinheiro, coloca-se
aos pés de Seixas, oferecendo seu amor.
D´Incao confirma o papel dos romances que trazem o amor como função redentora
de uma sociedade dominada pelo poder monetário:

As pessoas que amam aparecem nas novelas como possuidoras de


uma força capaz de recuperar o caráter moral perdido, como no caso
de Seixas no romance Senhora, de José de Alencar. O amor é sempre
vitorioso: Aurélia, em Senhora, vence porque tinha um bom motivo: o
amor. O amor dos romances vence sobretudo o interesse econômico
no casamento. No mundo dos livros, os heróis sempre amam
(D´INCAO, 2004, p. 234).

Alencar mostra, assim, que a força do sentimento pode redimir um homem


corrompido pelo dinheiro e pela sociedade burguesa.
No entanto, além da redenção do homem, é relevante ressaltar a situação
feminina ao final do romance. Este final mostra-se extremamente tradicional e
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patriarcal, ao trazer a mulher novamente sob o jugo do homem, por amor, ainda que por
vontade própria, ao colocar-se a seus pés.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, J. Senhora. São Paulo: Ática, 1971.


BASSANEZI, C. Mulheres dos anos dourados. In: Priore, M. D. (org.) História das
mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004. p. 606-639.
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1993.
COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. 3. Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1989.
D´INCAO, M. A. Mulher e família burguesa. In: Priore, M. D. (org.) História das
mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004. p. 223-240.
DAMATTA, R. A casa & a rua. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991.
FREYRE, G. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.
_________. Sobrados e mucambos. 12. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
MOISES, M. História da literatura brasileira. 2. ed. v. 2. São Paulo: Cultrix, 1989.
PERROT, M. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
_________. As mulheres e os silêncios da História. Bauru: Edusc, 2005.
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VIDEOPOESIA: A VISUALIDADE NA LITERATURA E A


LITERATURA VISUAL

Andreia da Silva Santos (PG-UEPB)


asjornalista@yahoo.com.br

Ao inserir uma discussão sobre a literatura contemporânea em diálogo com as novas


tecnologias pretende-se observar de que modo o uso destas se traduz em inovações
estéticas nas narrativas atuais, ou seja, como se dá a transição entre a página e a tela. O
artigo tem como corpus de analise o projeto multimídia Nome (1993) de autoria do
cantor, compositor e poeta Arnaldo Antunes, a obra é composta por livro, Compact Disc
(CD) e Digital Vídeo Disc (DVD). O foco da pesquisa recai sobre o suporte DVD, que
contém 30 videopoemas. O objetivo da discussão é o debate sobre as textualidades no
mundo contemporâneo e a criação de novos procedimentos expressivos, observando
dessa forma, os usos da literatura para além de um plano estritamente literário, o que
remete à leitura dos diferentes tipos de signos e a forma como eles se integram em
novos suportes. A pesquisa sobre os videopoemas é fundamental para se criar novos
paradigmas de abordagem destes objetos que, dialogam com a literatura, vão além dela
e exigem uma visão interdisciplinar, que dê conta tanto da mídia, quanto das novas
ancoragens semióticas que a escrita no vídeo comporta. Para empreender uma discussão
sobre tal temática o embasamento teórico se deu a partir das proposituras de Machado
(1998, 2007), Santaella (2005) e Plaza (1987).

Palavras-chave: videopoesia, literatura, Nome

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LITERATURA VISUAL

Andreia da Silva Santos (PG)

01. Introdução

O trabalho foi desenvolvimento a partir da análise do projeto multimídia Nome


(1993) de autoria do cantor, compositor, poeta, ex-membro da banda de rock Titãs,
Arnaldo Antunes, a obra foi produzida em três suportes distintos: livro, Compact Disc
(CD) e Digital Vídeo Disc (DVD). O foco do estudo incidiu sobre o aparato DVD que
contém 30 videopoemas.
Ao propor uma discussão sobre videopoesia e literatura é importante evocar
alguns conceitos sobre poesia, para então compreender de que forma os videopoemas
surgem no contexto literário.
A poesia, ou gênero lírico, é uma das artes através da qual a linguagem é
utilizada com fins estéticos. A poesia, no seu sentido mais restrito, parte da linguagem
verbal e, através de uma atitude criativa, transfigura-a da sua forma mais corrente e
usual, ao usar determinados recursos formais. Em termos gerais, a poesia é
predominantemente oral - mesmo quando aparece escrita, a oralidade aparece sempre
como referência quase obrigatória, aproximando muitas vezes esta arte da música.
(PIGNATARI, 1987).
Bosi (2006), por sua vez, afirma que a poesia faz o signo sair do estado de poço
do dicionário para ser movimentado num dis(curso) original, numa construção magistral
que é ampliada a cada onda que a linguagem polissêmica propicia.
A poesia age sobre a subjetividade individual, o mundo poético do
conhecimento mostra o significado da subjetividade de massa em ação em todos os
fenômenos que constituem a vida social. (MAFFESOLI, 1998).
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Vídeopoesia na concepção de Plaza (1999) é uma relação interdisciplinar entre a


literatura, o código verbal e a linguagem das mídias. Para Machado (2007) videopoemas
são objetos híbridos que unem som, imagem e palavras e podem ser veiculadas em
suportes como vídeo-cassete, DVD ou computador, apresentam na tela desses aparelhos
eletrônicos o fazer poético.
Ainda segundo Machado, a artemídia abrange quaisquer experiências artísticas
que utilizem os recursos tecnológicos recentemente desenvolvidos, sobretudo nos
campos da eletrônica, informática e engenharia. Machado explica que se toda arte
sempre foi produzida com os meios de seu tempo, as artes midiáticas representam a
expressão mais avançada da criação artística atual e aquela que melhor exprime
sensibilidades e saberes do homem do início do terceiro milênio.
Plaza aborda a questão da literatura e dos meios de comunicação eletrônicos
afirmando que as relações entre arte e tecnologia se pautam por duas atitudes: “a
tecnologia como arte, que reflete uma postura quantitativa e conservadora; a “arte como
tecnologia”, que tem um caráter qualitativo e inovador”. (PLAZA, 1998, p. 29).

2. Nome: percursos entre poesia e videopoesia

A obra Nome contém temas provocantes sobre poesia, mídia contemporânea,


memória e espaço urbano, além de temas mais específicos da literatura, como as
relações tensas e criativas entre escrita e voz, entre imagem e som.
Plaza (1998) define Nome como resultado do diálogo entre diversas linguagens.
O autor afirma que este trabalho realizado por Antunes, resulta da interação entre
distintos códigos que, simultaneamente, articulam-se em um só produto. A música, o
vídeo e a poesia convivem nesta perspectiva de revelar uma obra intermidiática.

Nome propõe-se como descoberta ou invenção criativa instituída a partir de


um fazer onde está implícita uma tendência à gratuidade e à curiosidade. O
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artista busca alcançar o possível, ou mesmo vencer os constrangimentos


tecnológicos, atingindo a qualidade por intermédio de experimentações
criativas. A intenção de Antunes não está única e necessariamente na obra
acabada, mas sim no processo que é realizado direta e concomitante ao
próprio ato de criação, numa atitude por fazer sobressair o caráter de
inovação. É evidente o domínio sobre a complexidade tecnológica, sem o
qual seria impossível a realização de tais experimentos. “Nome” impõe-se
pela qualidade estética; destaca-se como uma experiência criativa, resultado
de um trabalho de sinergia entre o artista e os meios. (PLAZA, 1998, p. 191).

Deste modo, Nome estimula as discussões sobre as textualidades no mundo


contemporâneo, como também a criação de novos métodos expressivos e ainda como a
literatura adquire novos planos, não somente aqueles literários e sim outros propostos
pelos diferentes tipos de signos.
Para entender qual a posição dos videopoemas no contexto literário é necessário
compreender que depois de dois séculos de vertiginoso letramento e estabelecimento da
cultura letrada no ocidente, explorados principalmente por McLuhan (1971) e Ong
(1998), há uma tendência dominante na literatura e nos hábitos de percepção que
condicionam as intervenções dos agentes do discurso que, em certo sentido, têm na
literatura o espaço maior e, talvez mais influente da cultura letrada.
Para alguns desses críticos “procurar palavras e a incômoda ausência delas é
condição da influência desse período orientado pelo letramento que condiciona o
intérprete à linearidade dos livros” (PIGNATARI, 1987, p. 47).
Por isso, não é de estranhar que esses membros da literatura se sintam
incomodados ao verem na tela somente sons. Embora Antunes utilize bastante a palavra
em seus videopoemas, inclusive sob a forma escrita, a condição da palavra em sua
poesia não é tanto de ausência, mas de intersemiose.
Para analisar a videopoesia, é preciso libertar-se de definições pré-estabelecidas
de que informação é única e exclusivamente feita através dos livros, pois a significação
se produz na e para além da escrita e da palavra. Ao que se percebe em Nome a
literatura pode e se relaciona de forma harmônica com as novas tecnologias, e, através
do objeto em estudo percebe-se que o autor se utiliza de ferramentas digitais para
complementar e enriquecer sua obra.
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Dessa forma, fica evidente que o vídeo necessita de novas formas de abordagens
tanto da literatura quanto da escrita como um todo, além de trazer consigo uma nova
relação interpretativa e um novo horizonte de recepção.
Partindo desses pressupostos, levanta-se o seguinte questionamento: Como se
dão as relações entre a literatura e os meios de comunicação eletrônicos?
O exame de Nome mostra como a poesia e a literatura podem dialogar de forma
fecunda com as diversas formas digitais que estão à disposição do poeta e/ou escritor
contemporâneo, sem que isso proporcione uma perda ou um nivelamento da prática
artística ao consumo, como sugerem alguns, muitas vezes sem sequer observar em
profundidade um videopoema.
Videopoemas são em sua essência ferramentas literárias, partindo dessa
premissa, procura-se observar o processo de tradução intersemiótica, ou seja, meio este
em que se ligam outras linguagens, outros códigos e outros recursos. É importante
compreender que a poesia talvez como nunca antes, converge intensamente como o
cinema, a música, as artes plásticas, o teatro e em alguns casos com todas essas
linguagens juntas.
É necessário, para qualquer abordagem séria das práticas culturais, observar os
meios em suas multiplicidades de usos e funções, deixando de lado toda e qualquer
preconceito, pois é preciso não confundir potencial do meio com seu uso. O vídeo
serve, e Nome como vem sendo apresentado neste ensaio, de paradigma crítico contra o
uso consumista e superficial da TV.
Entendendo que a escrita veiculada em um suporte eletrônico é uma
característica da arte contemporânea, recorre-se às teorias de Plaza (1987), mais
precisamente em sua obra intitulada Tradução Intersemiótica, na qual abordada a
hibridação das tecnologias. Sobre a relação entre meios eletrônicos e artes Plaza afirma
que o “caráter tátil-sensorial, inclusivo e abrangente das formas eletrônicas permite
dialogar em ritmo intervisual, intertextual e intersensorial com vários códigos da
informação” (idem, p. 97).
Nome, dessa forma, consegue exprimir sua forma poética utilizando o processo
de imbricação dos meios, ou seja, som, imagem e palavra. Para compreender como se
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dão os processos tecnológicos dos videopoemas, observamos as proposições teóricas de


Machado (1980), ao afirmar que a partir do momento em que a palavra está inserida na
tela movimentando-se ou se transformando em algo que colabora para o dinamismo
cromático ou gramatical, as relações de interpretação e de sentido se tornam outra.
“Uma de suas características mais marcantes é a sua intensa mistura de linguagens e
gêneros. Signos sonoros, visuais, verbais, táteis, cinéticos que transformam o visor do
vídeo num espaço sensório”. (ibidem, idem, p. 50).
O texto em movimento é a principal contribuição que a linguagem do vídeo
estendeu à poesia. A dialética arte/vídeo, explorando sua mobilidade e sua
multifuncionalidade, cria mais que uma expressão artística, uma teia delas: videoarte,
videoescultura, videoinstalação, videoteatro, videoclipe, videocarta, videotexto,
videopoesia.
No entanto, apesar de todo o potencial conseguido entre os meios eletrônicos e a
literatura, há ainda certa resistência quanto à utilização positiva do vídeo. Para Lucas
(2005), os poemas feitos em vídeo não passam de videoclipes, ou seja, textos visuais
sem costura lógica. Ele argumenta que o minimalismo associado à colagem gera um
mosaico improdutivo e caótico no qual poetas e escritores se exprimem numa
descontínua e fragmentada assimetria.

A embriaguez da velocidade não deve abalar as nossas convicções políticas,


filosóficas e mesmo literárias. Ademais, o saber enciclopédico posto a
serviço do consumidor não traduz necessariamente a sua plena apreensão
pelo usuário de informática. O lastro cultural não será jamais produto de uma
iluminação com o fulgor e a intensidade de um relâmpago. O tempo da
produção literária sempre se coaduna com a velocidade de acesso às matrizes
do saber. O vagar da reflexão e da elaboração artesanal da obra se choca com
a fugacidade das impressões da era da imagem. Uma coisa é o prazer da
demorada leitura de um texto literário, sua fruição estética; outra coisa o
deleite vertiginoso de um videoclipe. A literatura necessita de pausas
enquanto a linguagem da publicidade vive do bombardeio ininterrupto de
mensagens sobre o consumidor potencial aturdido (LUCAS, op. cit, 51).

As afirmativas de Lucas mostram-se equivocadas, pois confunde cinetismo com


velocidade, como se não fosse possível para a poesia no vídeo uma rítmica diferente do
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consumismo contemporâneo. Se contrapondo ao pensamento de Lucas, Machado


(2007), explica que um verdadeiro criador é aquele que em vez de simplesmente
submeter-se às determinações do aparato técnico, é subverter continuamente a função da
máquina ou do programa que ele utiliza, é manejá-lo no sentido contrário de sua
produtividade programada.
Machado, afirma ainda que a apropriação da arte faz do aparato tecnológico que
lhe é contemporâneo diferente daquela feita por outros setores da sociedade, como a
indústrias dos bens de consumo. O autor traz para a discussão o termo máquinas
semióticas para definir a arte concebida dentro de um “princípio de produtividade
industrial, de automação dos procedimentos para a produção de larga escala, mas nunca
para a produção dos objetos singulares, singelos, sublimes (MACHADO, op. cit, 10).

3- VÍDEO E VIDEOARTE

Ao abordar a temática vídeo parte-se da definição de Jameson quando o afirma


que “o vídeo é a dominante cultural de uma nova conjuntura econômica e social; o mais
rico dos veículos alegóricos e hermenêuticos de uma nova descrição do próprio sistema”
(JAMESON, 1996, p, 93).
Para Dubois (2004) o vídeo parece ter sido visto como um modo de passagem
menor entre dois estados maiores da imagem, ou seja, uma espécie de parênteses entre,
de um lado, a grande imagem do cinema, emblema do século XX, que o precedeu e que
construiu um imaginário insuperável, uma imagem dotada de corpo, uma linguagem,
uma forma, uma arte, e, de outro, a imagem do computador, que veio depois e ocupou
todo o terreno, ameaçando se tornar, numa reviravolta, a imagem do século XXI
(DUBOIS, 2004, p 99).
Ainda segundo o autor é preciso pensar o vídeo não como uma imagem é preciso
não somente vê-lo, mas acima de tudo “concebê-lo, recebê-lo ou percebê-lo”. Dubois
enfatiza a necessidade de definir o vídeo como um pensamento, um estado e não
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somente como um objeto.


O vídeo tornou-se dominante na década de 1960 e logo os artistas reconheceram
no veículo eletrônico um grande aliado na criação de objetos artísticos novos. Por volta
de 1963 Naum June Paik, um coreano estudante de música eletrônica, teve a idéia de
inverter os circuitos de um aparelho receptor de tevê para perturbar a constituição das
imagens.
Ao fazê-lo certamente não podia imaginar que não apenas estava dando a linha
diretriz de todo o posterior desenvolvimento da arte do vídeo como também provocava
uma reversão no sistema de expectativas figurativas do mundo da imagem técnica.
O artista foi um dos precursores nas intervenções técnicas e poéticas com o
vídeo que ficaram conhecidas como videoarte. Com o recurso de feedback, modificou
os circuitos internos de um aparelho televisivo e distorceu as imagens do tubo catódico,
instrumento responsável pela produção e reprodução da imagem eletrônica, com a
utilização de imãs gigantes, interferindo no sinal modulado da corrente elétrica para
deformar a informação ali codificada, transformando a televisão em vídeoarte. Vale
salientar que esta ação do estudante foi anterior à disponibilidade do videotape.
Paik foi além da mera observação de como são produzidas as imagens, analisou
ainda como se constituem suas estratégias de consumo, e de que modo isso não afeta
exclusivamente a arte do vídeo, pois sendo o dispositivo-vídeo verbi-voco-visual, a
radicalidade de Paik trouxe novas possibilidades para os usos da imagem, da escrita e
do som, através de uma espécie de demonstração tácita do vídeo como ferramenta
semiótica plural. É o que explica Machado sobre a videoarte:

A partir de Paik a associação entre impulsos eletrônicos e estéticos ganhou


forma e conteúdo, instituindo um segmento novo da produção intelectual. A
noção de videoarte dentro destes parâmetros é ampla e pode atender a
infinitas variações dentro dos setores de tecnologia e conceito. O tempo,
porém, encarregou-se de organizar esse conjunto tendo como referencial o
seu próprio desdobramento histórico. (MACHADO, 1980, p. 117)

Vê-se que a videoarte protagonizou a concretização de outras obras em suportes


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eletrônicos. Além de questões técnicas, ou relativas ao cânone literário, outro aspecto


que pode-se abordar sobre os videopoemas é o modo de recepção dos leitores-
telespectadores, baseados na definição de Santaella (1996), de que o leitor da
videopoesia é aquele que nasceu com o surgimento do jornal e das multidões nos
conglomerados urbanos repletos de signos. É o leitor apressado de linguagens
efêmeras, híbridas, misturadas, testemunhas do cotidiano fadado a durar o tempo exato
daquilo que noticia, o leitor fugaz, novidadeiro, de memória curta, mas ágil. “Um leitor
que precisa esquecer, pelo excesso de estímulos, e na falta de tempo de retê-los. Um
leitor de fragmentos, leitor de tiras de jornal e fatias da realidade”. (SANTAELLA,
1996, p. 148).
Na obra Nome podemos encontrar este leitor, pois é aquele que lê fatias, que não
possui tempo de prender-se, de parar para contemplar. É um leitor que cresceu com o
advento da televisão e em seguida do computador, aqueles a que podemos chamar de
leitor das imagens, ou leitor-espectador.
Ao longo da obra Nome, Antunes apresenta o espaço urbano, a velocidade e a
identidade do homem em meio ao turbilhão de informação e de signos. Com isso,
podemos perceber que os “textos na tela” podem apresentar várias formas de criação e
recepção. O “videopoeta” pode utilizar o som, o silêncio, a palavra e a imagem ou
todas essas possibilidades ao mesmo tempo, pode criar novos vocábulos e “brincar com
os que já existem”, pode fazer usos de outros gêneros literários.
A pesquisa sobre os videopoemas de Antunes é essencial para formar novos
paradigmas de abordagem destes objetos que, dialogam com a literatura, vão além dela
e exigem uma visão interdisciplinar, que dê conta tanto da mídia, quanto das novas
ancoragens semióticas que a escrita no vídeo comporta.
Por isso, é preciso des-hierarquizar e des-essencializar a literatura, acabar com a
priori que leva respeitados críticos da literatura a defenderem argumentos frágeis contra
a união entre literatura e meios de comunicação, sobretudo os aqueles conhecidos como
de massa. Se a poesia e a literatura avançaram a passos largos, a crítica literária e o
pensamento que se faz sobre a literatura nem tanto. Ao que se pode observar Arnaldo
Antunes se propõe a fazer uma poesia inter-relacional, em que diferentes meios
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dialogam, questionam e expandem a literatura e a poesia.


Após o exame dos videopoemas contidos na obra Nome, pode-se perceber que a
literatura pode e se relaciona de forma harmônica com as novas tecnologias. E através
do objeto em estudo observa-se que o autor se utiliza de ferramentas digitais para
complementar e enriquecer sua produção pode concluir dessa forma, que não há perda
no fazer poético, pois o autor ao utilizar de tais suportes desfaz a antiga tradição que
poesia só pode ser pensada e produzida a partir do suporte livresco. Visto que o vídeo é
um espaço privilegiado para a poesia e para a prosa, esta, sobretudo na forma digital, o
computador.
O estudo dos videopoemas é de relevância por tentar elucidar as possibilidades
comunicativas da poesia em um veículo eletrônico. Sabendo que essa temática vem
conquistando espaço nos debates e pesquisas nas áreas de Literatura, Arte Mídia,
Comunicação Social e outras áreas afins.
Observa-se assim, que o vídeo necessita de novas formas de abordagem tanto da
literatura quanto da escrita como um todo, além de trazer consigo uma nova relação
interpretativa e um novo horizonte de recepção.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Arnaldo. Palavra desordem. São Paulo: Iluminuras, 2002.

_____. 40 escritos. São Paulo: Iluminuras, 2000.

_____. Tudos. São Paulo: Iluminuras, 1990.

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BOSI. Alfredo. O ser e o tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. 2. ed.
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Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

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2001.

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_____. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. Coleção Arte Mais.

MENEZES, Philadelpho. Poética e visualidade: uma trajetória da poesia


contemporânea; Campinas, São Paulo: Unicamp, 1991.

NOME. Dvd realizado por Arnaldo Antunes, Célia Catunda, Kiko Mistrorigo e Zaba
Moreau. Contém 30 videopoemas (49min59s). Produzido e distribuído no pólo
Industrial de Manaus por Sonopress Rimo da Amazônia Indústria e Comércio
Fonográfico Ltda. Sob licença da Sony BMG Music Enterteininment (Brasil).

ONG. Walter. Oralidade e cultura escrita. São Paulo: Papirus, 1998.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. São Paulo: Brasiliense, 1987.

PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. 3. ed. São Paulo: Experimento, 1996.

_____. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus,
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2005.

site: www.arnaldoantunes.com.br
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UMA REFLEXÃO SOBRE PRÁTICAS DE LEITURA NO ACERVO DO PNBE-


2009

Andréia de Oliveira Alencar Iguma (PG/ UFGD)


Célia Regina Delácio Fernandes (UFGD)

Introdução

O trabalho que se desenrola nestas linhas, se encontra em fase de desenvolvimento,


para a concretização deste será preciso percorrer um processo composto por quatro
fases. A primeira compõe o levantamento das obras selecionadas para compra e
distribuição nas escolas públicas pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)
no ano de 2009 e a localização do acervo nas escolas de Dourados no estado de Mato
Grosso do Sul, que consiste no estudo sistematizado do corpus teórico. A segunda etapa
será o mapeamento dos critérios de seleção julgados como relevantes na escolha das
obras literárias a serem compradas pelo governo e enviadas para as escolas, verificando
a composição dos acervos, seguindo o regulamento do programa. A terceira etapa será o
fichamento das obras que têm representações de leitura, para seguir com a análise dos
dados e problematização, recebendo contribuições de pesquisadores como: Alberto
Manguel, Roger Chartier, Marisa Lajolo; Regina Zilberman; Renata Junqueira de
Souza; Rildo Cosson; Ezequiel Theodoro Silva; Marta Morais Costa; Célia Regina
Delácio Fernandes entre outros, nomes esses que têm desenvolvidos pesquisas
importantes para a área da história da leitura e formação de leitores. Ao término dessas,
a quarta etapa consistirá na escrita da dissertação.
Os objetos de análise da pesquisa são os critérios de seleção para as compras do
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) em seu décimo segundo ano de
atividade (2009), as representações de leitura, os autores e as editoras contemplados
neste acervo. Almeja-se verificar o espaço que a leitura ocupa entre as obras, buscando
abarcar um corpus que torne possível a percepção entre a produção literária infanto-

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juvenil comprada pelo governo e distribuída às escolas públicas de todo o Brasil no ano
de 2009.
Com o resultado desta pesquisa, é esperado que se tenha claro a presença da
representação de leituras e leitores nas obras de literatura infanto-juvenil selecionadas
para a compra do acervo de 2009 do PNBE, a fim de contribuir no processo de
formação de leitores.

1. O PNBE no centro da escola

Aprender a ler e ser leitor são práticas


sociais que medeiam e transformam as
relações humanas.(COSSON, 2006a, p.40).

Com o objetivo de incentivar a descoberta de novos mundos e culturas por meio da


leitura, instituiu-se no ano de 1.997, pela Portaria Ministerial nº 584, do Ministério da
Educação, o Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE. Para operacionalizá-lo, a
Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC) é responsável
pela definição das diretrizes e seleção dos títulos integrantes dos acervos e o Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) pela aquisição e distribuição dos
acervos para as escolas. Esse programa está apoiado no artigo 208 inciso VII da
Constituição Federal, que preconiza o “atendimento ao educando, no ensino
fundamental, através de programas suplementares de material didático escolar”
(BRASIL, 2009, p.114).
Desde sua gênese, o PNBE tem se mantido como o maior programa de incentivo à
leitura no Brasil, país este de raras e precárias bibliotecas públicas. Nas palavras de
Soares (2004, p. 21), “país de livros caros para uma população em sua maioria pobre”.
Nesse sentido, Fernandes (2007a) defende a importância dos programas governamentais
para a formação de leitores, visto que a carência de uma grande parte da população
impossibilita o acesso a livros.
Embora a Constituição garanta que o acesso à educação seja direito adquirido de toda
a população, e sabendo da relevância que a leitura ocupa dentro de uma sociedade, o
Brasil ainda vive uma realidade insatisfatória no quesito de formar leitores. Com base

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no texto de Silva (2005a), corrobora-se que 15 milhões de pessoas ainda permanecem


no estágio do analfabetismo e há 45 milhões de analfabetos funcionais. Como se vê, o
Brasil fica muito longe de ser um país de cidadãos letrados. De modo evidente, o livro é
um dos bens culturais pelo qual o indivíduo adquire conhecimento, sendo necessário
que a população tenha acesso a ele através de escolas e bibliotecas públicas, pois não é
possível formar leitores sem livros. É importante destacar que mesmo com o acesso à
tecnologia, “a informatização não substituiu a imprensa, ou o texto escrito, para o
registro e a disseminação do livro” (RIBEIRO, 2008, p.61).
Com efeito, para transformar o Brasil em um país de leitores, a escola deve investir
na qualidade da leitura porque é o lugar principal onde se aprende a ler e escrever. A
escola precisa planejar e desenvolver atividades específicas de leitura ao longo de todo
o ano letivo, acompanhadas de motivação. As escolas, bibliotecas, livros e professores
desempenham um papel fundamental na formação de leitores, visto que nos dias atuais,
“saber ler e escrever tornou-se condição básica de participação na vida social, política,
econômica e cultural do país” (FERNANDES, 2007b, p.14). Sabe-se que aprender a ler
não é uma atividade natural, para aproximar livros e leitores é preciso da presença de
um mediador.
Em vista disso, Maciel (2008, p.7) cita o poema de Drummond para enfatizar a
importância que os livros ocupam no contexto escolar no processo de formação de
leitores e a responsabilidade que os professores desempenham perante o educando. É
possível afirmar que um livro mal indicado pode comprometer todo este processo como
nos mostra o poema “iniciação literária”:

Leituras! Leituras!
Como quem diz: Navios... sair pelo mundo
voando na capa vermelha de Júlio Verne.

Mas por que me deram para livro escolar


A Cultura dos Campos de Assis Brasil?
O mundo é só fosfatos - lotes de 25 hectares
- soja - fumo - alfafa - batata-doce - mandioca -
pastos de cria - pastos de engorda.

Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto


condenando este Assis a ler a sua obra

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(ANDRADE, Carlos Drummond de, 1973)

Frente ao exposto, nos deparamos com realidades insatisfatórias no processo de


formar leitores, visto que a leitura ocupa dentro de muitas escolas uma função de
obrigação, extraindo toda a beleza e essência do ler. No poema, Drummond revela o
gosto pela leitura da obra de Júlio Verne em contraposição ao desprazer causado pela
leitura do livro escolar, mostrando a frustração do pequeno leitor. Observa-se que uma
leitura mal orientada pode comprometer toda a formação de uma criança.
Dialogando com Maciel, Soares (2006) defende que para se formar um leitor a escola
precisa contar com o auxílio de três instâncias de escolarização: a biblioteca, a leitura e
o estudo de livros de literatura. É preciso, no entanto, investigar como isto tem
acontecido dentro das instituições brasileiras. Uma maneira encontrada foi a de verificar
as imagens de leitura presentes no acervo do PNBE 2009, que buscou selecionar obras
com temáticas diversificadas, contemplando diferentes contextos sociais, históricos e
culturais, a fim de ativar o interesse pela leitura e o desenvolvimento da percepção
estética dos leitores.

2. A leitura no coração do aluno

A leitura se ensinada, aprendida e praticada de


maneira crítica, pode constituir uma janela
para o mundo, uma luz no túnel, um passaporte
para a racionalidade (...), uma navegação
geradora de descobertas (SILVA, 2005b, p.50).

Entendemos que o trabalho com a leitura precisa ser ativo e contínuo nas escolas,
possibilitando uma interação entre o aluno e a literatura. Segundo Lajolo (2005), para a
leitura poder exercer seu papel na vida dos alunos, a escola não pode ter como padrão
uma leitura mecânica e desestimulante. Ao contrário, a escola pode e precisa tornar seus
alunos capazes de uma leitura abrangente, crítica e inventiva. Somente assim, os livros
farão sentido na vida deles e, dessa forma, a escola estará ensinando seus alunos a
usarem leitura e livros para viverem melhores.

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Desse modo, é necessário investir na formação de leitores. De acordo com Costa


(2007, p.95), este processo “é atribuição primordial, prioritária e indiscutível da escola,
à qual cabe muito maior responsabilidade do que cabem às outras instituições sociais,
como a igreja e a família”. A escola é a responsável por abrir as portas do
conhecimento, permitindo o encontro da “Leitura e da Literatura”, e, portanto, contribui
de forma significativa na formação do caráter do indivíduo, tendo por sua vez o papel de
mediar o encontro do aluno com o saber.
Para o argentino Alberto Manguel (1997a, p.20) “uma sociedade pode existir –
existem muitas, de fato – sem escrever, mas nenhuma sociedade pode existir sem ler”.
Ainda relata em sua história de leitura que aprendeu a ler três anos antes de aprender a
escrever, e que viveria sem a escrita, mas jamais sem a leitura. Exposta assim, a leitura
pode ser entendida como necessidade básica perante a sociedade. Entretanto, ressalta-se
que um dos mais eficientes sistemas de exclusão do mundo contemporâneo localiza-se
nos baixos níveis de leitura e escrita (SILVA, 2005c, p.48).
Esse sistema de exclusão pode ser visto nos regimes totalitários, os quais exigem que
sejamos alienados de toda cultura e informatização, de fato, o regime citado sabe que a
leitura é capaz de acrescentar e transformar (MANGUEL, 1997b, p.36). É possível
afirmar que a leitura é a responsável pela igualdade entre todos indiferente de etnias,
classes sociais, religião, e é a escola a responsável por atribuir essa formação, a fim da
existência de leitores críticos que possam exercer seu direito enquanto cidadão.
Nota-se, então, que a leitura é muito mais do que decodificação de códigos, ela se faz
presente no cotidiano da maioria das pessoas, e se tornou requisito indispensável para a
participação na sociedade. Para o filósofo francês Chartier, a leitura é:

Apropriação, invenção, produção de significados. Segundo a bela imagem


de Michel de Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras alheias.
Apreendido pela leitura, o texto não tem de modo algum – ou ao menos
totalmente – o sentido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus
comentadores. Toda história da leitura supõe, em seu princípio, esta
liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende
impor.
Mas esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por
limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que
caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura. Os gestos mudam
segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas
atitudes são inventadas, outras se extinguem.

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Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico,


várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. Elas
colocam em jogo a relação entre o corpo e o livro, os possíveis usos da
escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua compreensão.
(CHARTIER, 1999a, p.77.)

Chartier (1999b, p.77) afirma que ler é apropriar-se do inventar e produzir


significados, reforçando a ideia de que ler não é repetir, traduzir, memorizar e/ou copiar
ideias transmitidas pelos diferentes tipos de textos, mas que a leitura pode propiciar ao
leitor através de seus diferentes gêneros uma localização cultural, contribuindo de
maneira única para a formação de um leitor crítico e competente ao articular o mundo
das palavras com o seu eu mais profundo e a comunidade onde ele se insere.
Entretanto, a recognição dessa particularidade da literatura na formação de qualquer
leitor tem levado os professores, a escola e o governo a se preocuparem com a
constituição de bibliotecas escolares, direcionando assim o foco desta pesquisa (EM em
andamento)em identificar no acervo do PNBE de 2009, imagens de leituras e suas
práticas, propondo um diálogo entre o mundo ficcional e o mundo social. A relevância
acadêmica do tema se deve não apenas à importância das políticas públicas de compra e
distribuição de livros para a formação de leitores na sociedade, mas sim a possível
contribuição que o PNBE tem ofertado aos alunos das escolas públicas, sendo este o
passaporte mais acessível entre alunos e livros.

3.Dados parciais, porém relevantes

“Oh! Bendito o que semeia Livros... livros à


mão cheia, E manda o povo pensar!”
(Castro Alves, s/d)

Nascido com a finalidade de semear livros, o PNBE tem desempenhado sua função
anualmente, no entanto, a dúvida que segue é até que ponto tem mandado o “povo
pensar”. Como nos mostra os dados estatísticos do PNBE no período de 1998 a 2009, o

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governo tenta resolver o problema investindo na construção de acervos, permitindo que


haja o encontro entre livro e leitor.

PROGRAMA/ANO DISTRIBUIÇÃO QUANTIDADE VALORES


(ACERVOS,
OBRAS E
COLEÇÕES)

PNBE/98 (Acervos) 1999 20.000 17.447.760,00

PNBE/99 (Acervos) 2000 36.000 23.422.678,99

PNBE/2000 (Obras) 2001 577.400 15.179.101,00

PNBE/2001 (Coleções) 2002 12.184.787 50.302.864,88

PNBE/2002 (Coleções) 2003 4.216.576 19.523.388,68

PNBE/2003 (Coleções) 2003 8.169.082 36.208.019,30

PNBE/2003 (Acervos– 2004 41.608 6.246.212,00


Casa de Leitura)
PNBE/2003 (Acervos– 2004 22.219 44.619.529,00
Biblioteca Escolar)
PNBE/2003 (Obras– 2004 1.448.475 13.769.873,00
para professores
PNBE/2005 (Acervos) 2005/2006 306.078 47.273.736,61
PNBE/2006 (Acervos) 2007 96.440 46.300.000,00
acervos/7.233.075
livros
PNBE/2007 (Acervos 2008 97.407 9.044.930,30
Educação Infantil)
PNBE/2007 (Acervos 2008 160.830 17.336.024,72
Educação Fundamental)
PNBE/2007 (Acervos 2008 24728 38.902.804,00
Ensino Médio)
PNBE/2008 (Acervos 2009 Livros em distribuição. ND
Ensino Fundamental) Dados não concluídos.
PNBE/2008 (Acervos 2009 Livros em distribuição. ND
Ensino Médio) Dados não concluídos.
TOTAL DO PERÍODO 385.576.922,48

Fonte: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/pnbe.pdf

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Embora esta atitude seja louvável, é preciso ir além. De modo evidente é necessário
investir e capacitar os professores, visto que são esses os que intervêm no processo de
aquisição da leitura e da escrita, e que pode contribuir de forma ímpar na formação de
leitores críticos e inventivos.
Com relação a composição do acervo do PNBE no ano de 2009, o edital apresenta
uma diversidade de gêneros, entre eles: poema; conto, crônica, teatro; texto de tradição
popular; romance; memória; diário; biografia; ensaio; obras clássicas e histórias em
quadrinho. O que propicia uma instigação maior nos alunos, contemplado diversos
gostos e permitindo que o professor esteja amparado de materiais de boa qualidade para
enriquecer suas aulas.
Neste ano (2009), um dos requisitos para a formação do acervo, foi excluir obras
selecionadas e adquiridas nas edições de 2006 e 2008 do PNBE. E para cumprir os
critérios de atendimento, ficou determinado que as escolas com até 250 alunos
recebessem 100 títulos; com 251 a 500 estudantes, 200 obras; acima de 501 estudantes,
300 títulos.
Tendo em vista que esta pesquisa se encontra dando os primeiros passos, ainda tem
um longo percurso a ser trilhado. De tal modo, almeja-se abarcar um corpus que permita
um diálogo entre o social e o ficcional, a fim de ratificar quais processos tem
contribuído ou deixado a desejar no processo de formar leitores e quais representações
de leitura são apresentadas. Acreditando veemente que o Brasil possa ser tornar um país
de leitores, não questionando se é sonho ou loucura essa busca, pois como Monteiro
Lobato(1956, p.178) um dia escreveu “Loucura? Sonho? Tudo é loucura ou sonho no
começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira, mas tantos
sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum”.

Referências

ALVES, Antônio Frederico de Castro. Espumas flutuantes. São Paulo: Klikc, s/d.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Menino antigo. Rio de Janeiro: José Olympio,
1973.

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CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução de


Reginaldo de Moraes. São Paulo: UNESP, 1999.

BRASIL. Código Civil e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2009.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

COSTA, Marta Morais da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba:


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FERNANDES, Célia Regina Delácio. Leitura, literatura infanto-juvenil e educação.


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LAJOLO, Marisa. Meus alunos não gostam de ler... Campinas: Cefiel/IEL/Unicamp,


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MONTEIRO, Lobato. Miscelâneas. São Paulo: Brasiliense. 1956. 7ª. Edição

PROGRAMA NACIONAL BIBLIOTECA DA ESCOLA: análise descritiva e crítica


de uma política de formação de leitores, disponível em
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_________. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, Aracy


Alves Martins; BRANDÃO, Maria Brina; MACHADO, Maria Zélia Versiani Machado
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CHICO BUARQUE: A ESCRITA FICCIONAL COMO DESCAMAÇÃO IDENTITÁRIA

Andréia Delmaschio (IFES)

É fundamental relembrar aqui algumas importantes afirmações já feitas acerca da


questão autoral, especialmente as de Michel Foucault e Roland Barthes. As colocações
de Foucault acerca da “costura enigmática da obra e do autor” foram desenvolvidas na
proposta de aprofundamento da análise da função autoral nos discursos, apresentada em
comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia em 1969. Na ocasião, o pensador
expõe, entre outras idéias, a de que a noção que temos de autor (as aderências históricas
que ela aceita, condicionadas sempre, é claro, a determinada cultura) é reflexo da noção
que fazemos de obra. Inicialmente, indica que a noção de autor constitui o momento
forte da individuação na história do conhecimento, autor e obra sobrepondo-se a
unidades como as de gênero (literário) e conceito ou tipo (de filosofia). Foucault opta
por não enveredar pela análise histórico-social do personagem “autor” e de seu
surgimento, e sim pelo estudo das relações do texto com o autor, observando como o
texto aponta para esta figura que lhe parece anterior e exterior. Destaca então duas
noções que tendem a substituir-se ao privilégio do autor e que acabam por apagar o que
deveriam evidenciar: a noção de obra e a noção de escrita.

Já Roland Barthes, em “A morte do autor”, ensaio de 1968, principia da novela Sarrasine,


de Balzac, para tecer suas considerações acerca do que (não) seria o autor. O semioticista
considera que
(...) o autor é um personagem moderno, produzido sem dúvida pela
nossa sociedade, na medida em que, ao terminar a Idade Média,
com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da
Reforma, ela descobriu o prestígio pessoal do indivíduo, ou como se
diz mais nobremente, da ‘pessoa humana’. É pois lógico que, em
matéria de literatura, tenha sido o positivismo, resumo e desfecho
da ideologia capitalista, a conceder a maior importância à ‘pessoa’
do autor (BARTHES, 1988, p. 49).

Suas considerações, mais radicais que as de Foucault no que respeita à “desimportância”


do autor diante do que seria, modernamente, a escrita, ecoam inclusive na ocasião da
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comunicação do filósofo francês, posterior em um ano à publicação do curto e contundente


ensaio de Barthes. Alguns dos questionamentos postos a Foucault pelos interlocutores após
sua comunicação parecem inclusive basear-se antes nas afirmações do semiólogo sobre “a
morte do autor”.
Roland Barthes aponta a junção forçada que faz a crítica entre autor e obra a partir do
“diário íntimo” do escritor como uma necessidade de destacar tiranicamente a pessoa do
autor, conferindo a seus gostos, suas paixões e histórias a importância que deveria ser dada à
escrita: “a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se,
através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só
e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua ‘confidência’” (BARTHES, 1988, p. 50) 1.
Barthes defende que se dê à linguagem a importância que tem. É ela quem fala, e não o autor,
graças a uma “impessoalidade prévia” que – fará questão de ressaltar – não se confunde com a
pretensão de objetividade dos escritores realistas, por exemplo. Para Barthes, suprimir o autor
em proveito da escrita é restituir ao leitor o seu lugar.
Mediante o conjunto de questões que cercam a função autoral, não basta realizar o
féretro do personagem autor, é preciso refletir hoje sobre a força do seu espectro. Nesse
sentido, a análise de Michel Foucault parece adiantar-se à de Roland Barthes. Ao contrário do
que entenderam alguns dos interlocutores de Foucault na ocasião de sua fala, o que o
pensador anuncia não é a morte do autor, e sim a necessidade de que se pense o estatuto que
cerca o conceito de autoria em cada contexto, lembrando que “a ‘função autor’ é, assim,
característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no
interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 1992, p. 46). A tentativa é de localizar a lacuna
deixada pelo desaparecimento do autor. Que aberturas ele deixa a descoberto? O que é um

1
Apesar de parecer, a partir de uma engenhosa descrição feita por Jorge Luís Borges, que ocorre
justamente o contrário, quando se trata da função autoral somos comparáveis aos habitantes de Tlön,
um lugar descoberto pela imaginação do escritor argentino, em que: “Nos hábitos literários é também
todo-poderosa a idéia de um sujeito único. É raro que os livros estejam assinados. Não existe o conceito
de plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra de um só autor, que é intemporal e é anônimo. A
crítica costuma inventar autores: escolhe duas obras dissímiles – o “Tao Te King” e as “1001 Noites”,
digamos – confere-as a um mesmo escritor e logo determina com probidade a psicologia desse
interessante homme de lettres” (BORGES, 2001, p. 12-13). A criação borgeana diz do modo como
procedemos, com as diferenças de que não assumimos que estamos inventando um “autor” e de que
ainda não superamos de todo o conceito de plágio, valorizando, contrariamente, a assinatura dos
textos. Assemelhamo-nos a eles, contudo, no que toca à “invenção” de autores (BORGES, 2001, p. 31).
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nome de autor? Como funciona? A sua proposta não é pela indiferenciação, é antes pelo
encaminhamento no sentido de uma possível teoria da obra, inexistente, e, de modo mais
amplo, conforme já propusera em outras ocasiões, de uma história dos discursos.
Algo mais é preciso deixar claro: desde o momento histórico em que o autor passou a
poder ser penalizado é que os textos começaram efetivamente a ter autores. A partir disso,
deve-se ter em mente que a assunção da função autoral denota poder e que o poder nunca se
retira deixando simplesmente um vácuo atrás de si. Antes, a retirada de um vetor de força
abre espaço para a intromissão imediata de um outro. Portanto, se por não os assinar, José
Costa, o ghost-writer de Budapeste, está livre de responder pelos seus textos e pelas idéias
que veiculam, por outro lado persegue-o a ameaça da denúncia por falsidade ideológica que
cerca o seu trabalho e devido à qual pode ser, inclusive, criminalizado e punido, como sói
acontecer a colegas seus de profissão: “Prestavam-se homenagens a companheiros ausentes,
falecidos no abandono ou internados em asilos para esquizofrênicos, ou ainda delatados,
identificados publicamente, alguns até perseguidos e condenados em seus países por delito de
opinião, profissionais que por princípio opinião não têm” (BUARQUE, 2003, p. 25).
Mudando-se do Brasil para a Hungria e aprendendo o idioma magiar com perfeição, o
ghost writer reinicia lá o trabalho de que vivia no Brasil. E com a mesma competência. A
diferença será que em português José Costa era um bom prosador, enquanto em magiar Zsoze
Kósta é um grande poeta. Na verdade, essa voz desdobrável se revela uma “função especial” a
descobrir para si os melhores modos de expressão em cada um dos idiomas, o que ressalta a
condição de “pesquisador” do escritor em geral e enfatiza a dedicação necessária ao trabalho
da escrita, afastando a idéia de um dom originário, costumeiramente ligado à pessoa do
autor 2.
Todas as reflexões acerca da função autoral suscitadas pela leitura de Budapeste fazem
crer que, de vários modos, e diferentemente do que ocorre na sociedade imaginada por
Foucault, ainda importa quem fala. A idéia de autoria, como vimos pensando, passa por
injunções complexas, e mesmo paradoxais. O caso (de) Chico Buarque, entre tantos outros,

2
Enquanto diversas religiões professam ainda hoje o “dom de línguas”, fenômeno em que, como por
milagre ou dom divino, um membro da igreja principia a falar idioma que nunca estudou (Conferir
FERREIRA, 1999, p. 992, verbete glossolalia), José Costa, reconhecendo embora a curiosidade e a
facilidade que desde a infância o encaminharam para o aprendizado de outras línguas, investe trabalho
e pesquisa para a apreensão, ao final irrepreensível, do difícil magiar.
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acusa mesmo um movimento mais geral de criação e auto-criação enquanto personagem,


tendo em conta o trabalho de sua vasta escritura em mais de um campo da arte. Parece
inclusive bastante lúcido que o autor evite prestar declarações acerca de sua criação literária,
omissão que previne, em parte, de relações forçosas entre vida e obra e das corriqueiras
confusões que os comentários de alguns escritores acerca de seu próprio trabalho por vezes
inadvertidamente estimulam, sendo recebidos não como uma exegese entre outras, mas sim
como a crítica Todo-autorizada, algo como a Palavra de deus sobre a Criação, eco, por um
lado, do hábito de considerar indubitável o registro de fatos “da vida” na ficção, e, por outro,
resquício daquela tradição lítero-teológica apontada por Foucault.
Tendo em mente essas armadilhas críticas e ficcionais, é preciso parar de submeter todo
escrito nomeado “Chico Buarque” direta e irrevogavelmente à figura que alimentamos
diuturnamente em nosso fosso imaginário. Trata-se de uma operação de que temos, contudo,
necessidade, porque é na viagem identificatória – como a que já foi vastamente desenvolvida
pela crítica dita “impressionista” ao longo da história da literatura – que encontramos as
possibilidades de um encontro com aquele (ou aquilo, pois pode ser nisto que o
transformamos, em nosso desejo de apreensão do “autor”) pelo qual, de algum modo,
procuramos. A busca pelo autor pode se transformar, aliás, na perda da apreciação de ambos,
dele-isto e do próprio texto que temos em mãos.
A procura dessa figura mítica mediante a obra se assemelha, sem dúvida, à insurgência do
paradoxal desejo de deus. No caso de Chico Buarque talvez se entenda, no galope mitificador,
que a pessoa que deambula pelas ruas do Rio de Janeiro seja mesmo a potencialidade, a fonte
secreta – secreta e “muda”, enquanto não dá a ler outro romance – de onde brotam as
palavras. É o que se apresenta no tom de vários textos sobre ele. É preciso considerar que,
entendendo-se assim (como scriptor full time) a figura ali presente, também se supõe, na
mesma linha, que o transeunte que com ele cruzar pelas calçadas, ou com quem porventura
trave um diálogo, já seja um personagem potencial, o que pode e não pode ser verdade, mas
cuja “verdade” só é apreciável no contato com a ficção. É sobre ela que deve o crítico se
debruçar, ainda que em busca de respostas a perguntas sobre a função autor.
Do mesmo modo como a diversidade de nomes dados a deus cria as divergências acerca
de sua essência, a aparentemente simples possibilidade de assunção de um segundo nome –
como o é o nome artístico – não deve ser ignorada na sua contestação da identidade a si em
geral. Qual seria o conceito de identidade numa sociedade em que as pessoas tivessem por
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hábito trocar de nome quando bem lhes conviesse? E para onde sinaliza o mal-estar que
sentimos quando, em ocasião corriqueira, nos trocam o nome? Será o incômodo proveniente
de sabermos, de modo intuitivo, que “quando um nome vem, rapidamente diz mais que o
nome...” (DERRIDA, 1995a, p. 9)? Similarmente ao que ocorre com o criador, que nada tem,
porque é ele quem cria, “o dom do nome dá aquilo que ele não tem, aquilo em que consiste
talvez, antes de mais nada, a essência, isto é, para além do ser, a inessência do dom”
(DERRIDA, 1995b, p. 76). Dar o que não (se) tem e o que o outro também não possuirá. E como
afirma o próprio Chico Buarque em Benjamim: “as pessoas têm um nome que lhes antecede,
depois ganham a cara do nome que têm” (BUARQUE, 2004, p. 116).
Nesse mesmo sentido vale a pena observar que, dos trabalhos críticos mais
representativos escritos acerca da produção musical e literária de Chico Buarque, a maior
parte leva como título o nome do próprio compositor-escritor – às vezes somente seu nome
próprio, como se fosse índice suficiente para o conteúdo do livro (e na maior parte das vezes o
é, já que se trata, de um modo geral, da retomada de fatos biográficos, recontados ao sabor e
ao estilo do novo biógrafo). Em grande parte desses ensaios há um obscurecimento do
trabalho crítico de atrito com os textos, minguado pelo magnetismo exercido pelo “senhor”
autor e, quase que completamente, pela sua inevitável griffe, reforçada ao longo de décadas
de trabalho como compositor e intérprete. Apesar da importância reconhecida, ainda que por
vezes altamente polemizada, do conjunto de sua produção musical, não raro a discussão da
obra foi lamentavelmente apagada pelo carisma do criador, ou ao menos com ele dividiu as
atenções – o que não é incomum quando se trata de ídolos da MPB, mas que nesse caso
específico sobressai 3.

3
Gilberto de Carvalho foi um que dos que declararam dedicar seu trabalho à obra, e não ao compositor,
desviando-se da chicolatria que outros estudiosos alimentaram, o que afirma fazer na contramão do
hábito e sabendo contudo que os vários depoimentos e dados sobre a vida do compositor de que dispõe
“seriam imensos atrativos para aumentar as vendas deste livro” (CARVALHO, 1982, p. 13). Carvalho
anuncia sua “decepção” com a pessoa ou artista Chico Buarque, declarando, a partir de então, a
exclusividade do seu interesse pela obra – sem interrogar, no entanto, o que de mitológico há na
relação autor-obra, nem o provável gérmen mitificador que o guiou a anotar as declarações de Chico
Buarque e a pesquisar sobre sua vida pessoal, impulso sem cuja existência não se justificaria sua
“decepção”. Buscando direcionar-se na contramão da crítica mitômana, Carvalho segue o mesmo
caminho daquela, a partir do momento em que aponta a sua desistência de desenvolver as questões
biográficas como resultado do desapontamento com o artista. Talvez o jornalista acreditasse que, ao
acrescentar pontos que pensa serem desabonadores da personalidade de Chico Buarque, estivesse de
fato se afastando da atitude idólatra, comportamento que, ao contrário, reafirma a força do mito, já que
mostra a busca por um ser previamente idealizado, procura a que se acrescentam, depois de uma certa
aproximação, a desilusão e o ressentimento, passando a parecer que, ao contrário do que afirma na
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Ir em busca do autor é reconhecer, a cada instante, a impalpabilidade de sua existência


para além do nome; ainda uma vez: “salvo o nome” – apenas para não deixar de dar crédito à
pesquisa de Jacques Derrida acerca da teologia apofática, que embasa parte de nosso
pensamento sobre a obra de Chico Buarque, tendo sido subtraída deste texto por questão de
tempo. O nome, por sua vez, tem de ser reconhecido, ele próprio, na sua indecidibilidade. É
preciso ao menos viver a sensação do abandono, a experiência da ausência, ainda que
momentânea, do pai do lógos, do outro lado da escrita.
Ao prender o autor nas teias do nosso desejo ou à caça da intencionalidade, corremos o
risco de ler no seu texto, paradoxalmente, apenas e tão somente o que já sabemos, o nosso
mesmo desejo redundante incorrendo num tipo de cegueira – ou pior: de gagueira. Melhor
dizendo: fazemos daquele outro um outro eu, deparando-nos continuamente, na linha
seguinte do texto em leitura, com o que esperamos, com o desejado para suprir os anseios
deste leitor-deão, ainda que por vezes sob a máscara da descrença. Nesse ponto a escrita
passa a não mais fazer vicejarem significados, e sim a espelhar o que se pretende que seja a
“imagem” existente ao lado de lá. O texto não é um espelho, essa metáfora não lhe serve, a
não ser que, para além da idéia de reflexo autobiográfico, a imagem queira significar, entre
outras coisas, uma reflexão sobre a idéia e o nome do autor, por exemplo.
O nosso próprio texto chega o mais próximo possível da armadilha do mito autoral. É um
exercício de questionamento das possibilidades de alcance da linguagem e do fenômeno
paradoxal da nomeação. O autor é aquilo que na e pela palavra procuramos, sabendo contudo
que está sempre para além dela. Como tudo o mais que existe – e que não existe. Como deus,
em seus muitos nomes.
A experiência dessa multiplicidade, em que diferentes subjetividades se acoplam ou
convivem sob um mesmo nome, inicia-se ou se define primordialmente pela assunção do
chamado nome artístico. Ele substitui, suplanta, obscurece, suplementa ou contradiz
caracteres que estariam ligados ao nome “original”, que acompanha a pessoa desde o seu

introdução do livro, a obra é que é uma justificativa para falar – ainda que de modo negativo – do
artista: “As perplexidades boas eram progressivas à medida que pesquisava exclusivamente a obra; no
estudo do artista, deparei com algumas surpresas não tão boas. Optei por fazer deste livro uma análise
quase que exclusivamente de sua obra musical, e não de Chico Buarque, a pessoa ou o artista”
(CARVALHO, 1982, p. 13). Sua tentativa de desfazer a criticada mistura entre artista e obra se frustra
devido a sua própria confusão artista-obra.
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nascimento. O nome artístico, além de acarretar grande responsabilidade pelos ganhos e


perdas que representa, em se tratando do marketing na indústria cultural, carreia ainda, em
cada caso, inúmeras questões psicológicas, sociais e econômicas para aquele que a um tempo
aciona e sofre a mudança.
O nome com que fomos “presenteados” no registro de nascimento, em cada contexto pelo
qual o desfilamos, desde a infância até a morte, agrega a si um conjunto de disposições,
próprias e alheias, que percebemos como mais, ou menos favoráveis. É algo que, por vezes
inconscientemente, vamos, ao longo da vida, sobrecarregando de significações. É como um
ímã com que, em volta, recolhemos fragmentos (pelas ressonâncias que tem, a princípio no
nível fonético; pelas associações que são feitas por nós e por outrem de aspectos semânticos
de seus componentes lingüísticos; pelas analogias encorajadas por coincidências com nomes
de outras pessoas, célebres ou não; pela homenagem muitas vezes implícita – outras nem
tanto – que sabemos ou imaginamos constituir; pelos apelidos que lhe fazem derivar e mesmo
pela leitura que esses apelidos fazem – ou pensam fazer – de nossa personalidade). Ainda:
pela relação de parentesco que na nossa cultura o sobrenome atualiza; pela força com que nos
faz relembrar – a cada vez que somos chamados ou nomeados por escrito – aquilo de que
somos “herdeiros” (ou mesmo que fomos “deserdados”), aclarando a nossa relação com a
paternidade e os seus supostos bens de herança moral, intelectual ou material, de conduta, de
origem, de casta, de raça etc 4.

4
Num exemplo da força do nome, no limite contraditório da obstinação por aceitação e da auto-
rejeição identitária, o personagem judeu Alex Portnoy, de Philip Roth, lembra que, certa vez, em sua
juventude, ao tentar se aproximar normalmente de uma shikse (garota gentia, não judia) na pista de
gelo em que ela patinava, sendo traído contudo por sua aparência, especialmente pelo “nariz judeu”, a
primeira coisa que faz é inventar um nome americano para si, numa submissão identitária irônica e sem
auto-complacência: “Então, quando já a perdi seguramente de vista, começo a patinar loucamente atrás
dela. ‘Desculpe-me’, direi, ‘mas será que me permite acompanhá-la até em casa?’ ‘Acompanhá-la’ ou
‘que eu a acompanhasse’? – como seria mais correto? Pois a minha linguagem tem de ser
absolutamente perfeita, sem nenhuma mistura de judeu. ‘Aceitaria talvez um chocolate quente? Pode
me dar o seu número, para que eu lhe telefone uma noite dessas? O meu nome? Chamo-me Alton
Peterson’ – um nome que eu pegara para mim do distrito de Montclair, do catálogo de telefones de
Essex County – inteiramente goy, tinha a certeza, e ainda de quebra soando como Hans Christian
Andersen. Que golpe! Treinara para escrever ‘Alton Peterson’ durante todo o inverno, em folhas de
papel que pesteriormente arrancava do meu caderno de pontos, depois da escola, e queimava, para não
ter de dar explicações a ninguém em casa. Sou Alton Peterson, sou Alton Peterson – Alton Christian
Peterson? Ou será que é ir um pouco longe demais? Alton C. Peterson? E fico tão preocupado em não
esquecer quem gostaria de ser agora, tão ansioso em chegar à garagem de barcos, enquanto ela ainda
estivesse tirando os patins – imaginando também o que direi quando ela indagar sobre o que aconteceu
com o meio da minha cara (antigo ferimento de hóquei? Queda do cavalo, enquanto jogava pólo numa
manhã de domingo – salsichas demais no desjejum, ah ah ah!) –, que atinjo a margem do lago com a
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A assunção de um nome artístico alivia o peso da carga que nos foi imputada
independentemente da nossa vontade, dando início a um novo processo de imantação e
recolha de novos significados. A idéia que fazemos do que sejamos, nossa identidade, passa,
obviamente, pelo nome. A partir do nome é que sabemos ou julgamos saber quem somos,
criamos e reforçamos a nossa identidade. A partir dele, o outro nos identifica. Não é por outra
razão que, em qualquer formulário que tenhamos de preencher, o primeiro item é o nosso
nome, e a palavra que o solicita é identificação.
Consideremos a afirmação de Derrida, já bastante referida, sobre a intraduzibilidade do
nome próprio, o que não permitiria que se considerasse o seu pertencimento, como o das
outras palavras, ao sistema da língua (DERRIDA, 2002b, p. 21). Lembremos depois que, quando
José Costa chega a Budapeste, parece ter seu nome “traduzido” para o magiar. Na verdade o
que se dá é não uma tradução, mas uma transcrição fonética, por parte do próprio Costa, da
forma como ouve seu nome ser pronunciado. Como nome próprio e como nome de autor, ele
está além – até certo ponto a salvo da corredeira comum das palavras de uma língua – ou de
qualquer língua. Algo acontece ali, porque a partir de agora, e notando-se depois com que
rapidez e mestria ele aprende a falar e escrever em magiar, vê-se (o que se dá sempre a
posteriori) que o ghost writer brasileiro é, ele próprio, apenas adentrado em território
estrangeiro, transformado em Zsose Kósta, uma “versão” daquele outro, num jogo de
tradução recíproca em que o traduzido se torna, a posteriori, um original, novamente
traduzível. É desse modo que José Costa e Zsoze Kósta, suas vidas e seus livros se retraduzem
constantemente entre o Brasil e a Hungria, por detrás de nomes “intraduzíveis” e de escritos
não assumidos.
Nesse sentido, a própria assinatura, dada como promessa e garantia no contrato, parece
uma brincadeira ou armadilha em que os envolvidos procuram se ludibriar mutuamente, ao
solicitarem, do nome grafado, “plena singularidade”. Como, perguntamos, se a sua marca
principal é justamente poder ser repetida infinitamente pelo assinante? É o seu paradoxo. Por
outro lado, o fator que geraria autenticidade (a saber, a imitabilidade, a repetição pelo
signatário) constitui, ele próprio, a possibilidade de imitação por um outro (ou mesmo por uma

ponta de um patim um pouco antes do que pretendera e precipito-me sobre o solo queimado pelo frio,
lascando um dente da frente e despedaçando a protuberância óssea da parte superior da tíbia” (ROTH,
1982, p. 132).
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máquina) e, contraditoriamente, a falsificação: autenticidade e falsificação nascem assim do


mesmo ninho; o que seria a marca da identidade, já no nascedouro é inseminado pela
alteridade ou pela assinatura do outro. Na situação específica do contrato entre autor e editor,
o jogo enganoso atinge um ápice quando pensamos que o único destino certo e o mais
desejado é que a assinatura perca toda a marca de pessoalidade e que a manuscritura,
doravante reproduzida em tipos mecânicos, se multiplique nas capas dos livros, alcançando
quiçá o status de griffe. De acordo com Geoffrey Bennington:

O fato de minha assinatura, para ser uma assinatura, ter de ser


repetível ou imitável por mim mesmo ou por uma máquina, gera
também, necessariamente, a possibilidade de sua imitação por um
outro, por exemplo um falsário. (...) Deve-se então repensar a leitura
como uma relação de assinatura e de contra-assinatura, o que
permite pensar no que um texto permanece essencialmente aberto
ao outro (à leitura). A assinatura do texto reclama a contra-
assinatura do leitor, como acontece com toda assinatura: vê-se
melhor, agora, que a contra-assinatura que ela reclama é
essencialmente a contra-assinatura do outro, ainda que seja eu
mesmo. (...) E se voltarmos ao começo da demonstração,
verificaremos, mais uma vez, a alteridade que, só ela, permite a
constituição de alguma coisa como um sujeito. (...) O que era
pensado mais acima como uma leitura que acompanhava toda
escritura, e até mesmo a precedia, ‘soprava-a’ (ED, 253-92), pensa-
se agora como um jogo de assinaturas se contra-assinando, e, logo,
engajando-se mutuamente (BENNINGTON, 1996, p.117).

Assim como, ao receberem de José Costa os livros encomendados, os clientes não fazem
menção de lê-los, como vimos, do mesmo modo, curiosamente, nenhum deles lhe assina um
cheque, sendo o pagamento feito sempre em moeda, ou seja, não desponta a leitura como
contra-assinatura, do mesmo modo que, sintomaticamente, a falsa assinatura que Costa lhes
permite pôr no livro não aceita a ironia de uma devolução, uma outra espécie de contra ou
falsa assinatura.
Em comum, a assinatura e o autógrafo trazem a ilusão da presença do assinante
(ignorando, entre outras, a questão do retardo temporal, o espaçamento que afasta aquela
possibilidade), no entanto não se solicita um autógrafo num documento (a não ser por gosto
da anedota), nem se pede, de modo algum, a um artista encontrado ao acaso, uma assinatura.
Forte relatividade de origem afetiva atua de modo paradoxal nessa distinção: embora não
baste ao admirador o abraço ou o aperto de mão do ídolo (o que torna o gesto dispensável), a
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semelhança entre a grafia do nome traçada para ele naquele instante e as outras já conhecidas
também não é de suma relevância, porque a suposta plenitude do momento, singular e
efêmero, vale como garantia de autenticidade, já que se considera que a presença,
posteriormente relatável (tanto quanto pode ser mostrado o autógrafo conseguido, do qual,
mais uma vez de um modo paradoxal, raramente se cobra o valor de autenticidade), é o mais
importante. A não ser que o autógrafo do ídolo em questão seja plenamente divulgado e
conhecido, tendo alcançado já o valor de griffe sobreposta a produtos: a griffe dispensa assim
o autógrafo, a assinatura e a presença.
A questão do direito (escritura e direito historicamente atados) também retorna:
contraditoriamente, a grafia do autógrafo parece interessar menos que a da assinatura, mas é
de fundamental importância que ela exista, não bastando ao fã, como se disse, o gesto ou a
presença memorável do ídolo. Diria mesmo que o afã do autógrafo ofusca ou elimina a
presença do artista. Porém, assim que se transforma em griffe, o que pode ocorrer num
momento posterior a sua aquisição como “mera” assinatura, o que um dia teria sido um
autógrafo passa a ter valor de mercado e, a depender das situações em que se envolva a
celebridade em questão, pode chegar inclusive à condição de instrumento legal de reporte ao
passado.
Há portanto uma hierarquia móvel, de estágios reversíveis, que situaria numa escala
ilusória ou fantasmática, apenas aprioristicamente aplicável, o nome próprio, a assinatura, o
autógrafo e a griffe. Não se trata de afirmar uma indiferença, mas de perceber a aura nebulosa
que cerca essa hierarquização e a óbvia liquidez dos valores que a sustentam. Como afirma
Bennington, “Assim como a assinatura só é constituída como promessa de contra-assinatura, o
momento presente da voz, ou de qualquer experiência que seja, só existe como função de
uma ‘promessa’ de memória, logo de repetição” (BENNINGTON, 1996, p.115).
Caso seja transformado em griffe e remeta, nesses casos, a objetos, antes que a
determinada pessoa, o nome próprio estará comprometido com o devir comum de todo e
qualquer nome, pervertendo a hierarquia que se iniciaria com o nome comum, passando pela
assinatura, depois pelo autógrafo, e chegando até a griffe. Nesse ponto de chegada, a griffe
retorna à nomeação dos objetos ou produtos (a exemplo do livro), ou seja, ela se transforma
em nome comum.
O jogo presente em Budapeste passa por aí: é ao final dos desdobramentos em diferentes
nomes de personagens autores que surge, como um último, o nome de autor “Chico Buarque”,
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que se assina fora da instância propriamente narrativa, mas ainda dentro do livro considerado
como objeto: em sua capa 5. Portanto, a um tempo ainda no livro e já fora, mas sempre dentro
e fora dele, forçando as questões internas à narrativa para além do ficcional.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. Tradução António
Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 49-53.
BENNINGTON, Geoffrey. Jacques Derrida. Tradução Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1996.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 2001.
BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
DERRIDA, Jacques. Khôra. Tradução Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1995a.
DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Tradução Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1995b.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução António F. Cascais e Edmundo Cordeiro.
Lisboa: Vega, 1992.
ROTH, Philip. Complexo de Portnoy. Tradução Cezar Tozzi. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque: análise poético-musical. Rio de Janeiro: Codecri, 1982.

5
A capa é um território de fronteira? Uma passagem entre o ficcional e o seu exterior? E o que seria o
exterior da ficção? Onde estariam os seus limites? Pode a existência da ficção estabelecer o que seja o
exterior? A capa é esse sim e não à questão da fronteira ficcional. É onde figura o nome do autor, nome
também de um cidadão que, espera-se isso dele, escape às malhas da ficção; para isso ele dispõe de
seus personagens, de sua criação, através da qual pode se expor, no limite, omitindo-se contudo. É
também onde comparece, primeiramente, o nome do texto, que já é uma entrada (ou saída) para a
ficção. É ali, nesse lugar de passagem, que o nome Chico Buarque se inscreve, dividindo a instância
autoral com aquele outro, provindo mais diretamente do universo ficcional, que é José Costa, com seu
duplo Zsoze Kósta. Resta ao leitor decidir sobre as quotas (na verdade indecidíveis) de ficção e de
“autoridade” que infestam esse nome – Chico Buarque. As flutuações que o envolvem se lançam
primeiramente em torno de uma série de possibilidades de escrita e de não-assunção da autoria, nos
meandros do romance.
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MACHADO DE ASSIS E ADAPTAÇÃO: MISSA DO GALO

Andressa Fajardo (G - UEM)


Alice Áurea Penteado Martha (UEM)

Introdução

Nos últimos tempos, com a demanda da produção editorial voltada para o público
infanto-juvenil, diversas pesquisas sobre a produção literária para crianças e jovens têm
demonstrado dentro do cenário nacional resultados valiosos seja para a compreensão do
gênero como arte, seja para o preparo de futuros professores que deverão atuar na
formação de leitores. Entretanto, diante da produção editorial sempre crescente, é
preciso que novos projetos sejam desenvolvidos tanto para o simples cadastramento por
gênero como para a crítica qualitativa das obras que esse mercado tem produzido.
O mercado editorial brasileiro, no que se refere à literatura para crianças e jovens,
tem publicado cada vez mais obras que refletem aspectos da cultura nacional, buscando
em fontes histórico-culturais diversas, motivos e temas para a renovação de sua
produção. Não tem sido diferente o tratamento dispensado por esse mercado aos autores
canônicos, normalmente considerados “autores para adultos” como Machado de Assis,
Lima Barreto, José de Alencar, Aluísio de Azevedo, entre outros. Naturalmente, um dos
fatores que pesam na decisão de publicar as obras desses escritores é a questão de
domínio público. Não há necessidade de pagamento de direitos autorais a esses autores.
É fato também que toda manifestação cultural produz mercadorias (o livro infantil é
uma das mais valiosas e rentáveis do momento), encaminhando tais produtos para as
gerações mais novas. E isso começa a ocorrer de modo mais sistemático com as
manifestações da cultura canônica, que têm migrado para a produção dirigida à
literatura para infância e juventude, gênero bastante permeável a esse material por sua
ligação mais estreita com aspectos do projeto gráfico-editorial.
Para que esse material publicado possa chegar ao leitor almejado - a criança e o
adolescente - as editoras procuram alcançar os mediadores mais qualificados, no caso,
os professores, que são, ao lado de pais e bibliotecários, os grandes responsáveis pela
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aquisição dos textos para leitura. Para tanto se valem de “sites” na web, muito atraentes
e facilitadores tanto para aquisição das obras como para a proposição de atividades de
leitura na escola, bem como dos catálogos, verdadeiras vitrines com produtos bem
apresentados para o mercado. Assim como professores e pais usam esses instrumentos
para atuarem como promotores de leitura entre crianças e jovens, também pensando na
mediação entre texto e leitor, este artigo trabalha com corpus selecionado, no caso, o
conto Missa do galo (Escala Educacional, 2008), de Machado de Assis, adaptado em
2008, com o objetivo de analisar o projeto gráfico-editorial bem como os elementos da
narrativa (narrador, focalizador e personagens) e ressaltar o modo como a literatura
infanto-juvenil se apropria de temas e imagens presentes na produção de Machado de
Assis.

1. Adaptação literária para o público infanto-juvenil

As adaptações literárias direcionadas ao público infanto-juvenil surgem justamente


com o início da literatura infanto-juvenil. Segundo Cony (2002), tudo começou na
Inglaterra:

Os irmãos Lamb fizeram uma versão em prosa das peças de


Shakespeare. Para o jovem de fala inglesa, o primeiro contato com os
textos mais sagrados da literatura teatral foi feito nessas adaptações,
hoje consideradas igualmente clássicas. Em nada prejudicaram o
valor, conteúdo e forma da obra Shakespereana, pelo contrário, a
valorizaram, pois habituam o estudante, desde cedo, a conhecer os
dramas e comédias que integram a prateleira mais nobre da literatura
universal (CONY, 2002, p. 02).

O trabalho de Lamb consistia, basicamente, em uma interpretação livre da forma das


obras de Shakespeare. O autor relata acontecimentos em casa uma das peças teatrais
com prosa leve, linguagem acessível e simples. A fórmula do trabalho mostrou-se
produtiva e, dois anos depois, em 1809, os irmãos Lamb começaram a reescrever outras
obras, como Adventures of Ulisses, recriando a Odisséia para o público jovem. A partir
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daí, não pararam mais. E é incrível que durante a maior parte do século XIX, as obras
adaptadas pelos irmãos Lamb eram consideradas leitura obrigatória nas escolas do
Império Britânico (MONTEIRO, 2006).
Já no Brasil, o processo de tradução e adaptação para o público infanto-juvenil está
relacionado ao desenvolvimento da literatura escolar. Segundo Carvalho (2006),

[...] com o desenvolvimento da literatura escolar, a tradução e a


adaptação assumem papel importante à medida que ainda não se tinha
uma literatura nacional e é preciso alfabetizar uma parcela
privilegiada da sociedade da época, conforme os preceitos da
educação moral vigente. Inserido nessa condição está o famoso livro
de Edmundo Amicis, Coração, que sofre dupla tradução e uma
adaptação, sendo que essa consta do livro Leituras para meus filhos,
de Alexandre Sarsfield. Destacam-se como editores e livreiros que
publicam obras dessa natureza, no período, Baptiste Louis e Hypolite
Garnier, E & H. Laemmert e Pedro da Silva Quaresma (CARVALHO,
2006, p. 32).

A primeira literatura para o público-mirim brasileiro era portuguesa, logo, havia


alguma afinidade tanto linguística quanto temática entre as obras e a realidade desse
público, tornando a obra pertinente ao seu universo. Como forma de aproximar os
leitores infantis das obras literárias, a editora Quaresma encomenda a Figueiredo
Pimentel uma biblioteca destinada ao público em questão e Pimentel traduziu e adaptou
uma série de textos do Cancioneiro Universal (CARVALHO, 2006), trabalho também
considerado como uma das primeiras iniciativas para a nacionalização da literatura
infantil brasileira.
Outros trabalhos seguiram a esteira da editora Quaresma. A livraria Garnier, segundo
Arroyo (apud CARVALHO), começa a convocar tradutores brasileiros para se
dedicarem à literatura infantil, produzindo, por exemplo, a Biblioteca Juvenil. Também
a Editora Melhoramentos, em 1915, lança a Biblioteca Infantil, chegando a publicar
mais de cem títulos na série, sob os cuidados de Arnaldo de Oliveira Barreto.
Posteriormente, na década de 1930, quem começa a se dedicar fielmente aos
processos de tradução e adaptação para o público infanto-juvenil é Monteiro Lobato
(MONTEIRO, 2006). Segundo o pesquisador,
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Lobato era um autor “antenado”, “plugado” no mundo moderno e


atento às novidades da comunidade de massa, principalmente às
geradas pelos sucessos do cinema norte-americano. O estilo lobatiano
de criar ou recriar tinha como constante a sintonia com o “gosto do
momento” (MONTEIRO, 2006, p. 46).
E continua,

não se pode esquecer de outra característica marcante, muito mais


lembrada pelos especialistas e que foi fundamental para a canonização
de Monteiro Lobato: o nacionalismo exacerbado, ainda que ingênuo.
Pois Lobato não trouxe o americano Popeye para o Sítio do Pica-pau
Amarelo apenas para surrar piratas e marujos ingleses. Claro que não.
Trouxe-o para ser ludibriado por Emília, que trocou o seu espinafre
por couve; artimanha que tornou possível ao nosso pequeno herói
Pedrinho vencer o incrível fortão (MONTEIRO, 2006, p. 46).

Entretanto, para Chatier (1990) a obra literária adaptada consegue também,


aproximar a obra ao horizonte de expectativas do leitor infanto-juvenil o que nos mostra
que um
texto não atua sobre o leitor por si só, mas através de uma
materialidade, um formato, imagens, uma capa, uma distribuição e
outros elementos que vão contribuir no processo de construção de
sentido no leitor e assim, aumentar ou diminuir o grau do horizonte de
expectativas. Se continuarmos a ignorar outras formas materiais, que
implicam formas de entendimento de texto estaríamos corroborando a
autoridade imposta pelo texto de que ele só tem uma forma de ser lido,
ignorando a relação que se estabelece entre a leitura, o, leitor e sua
materialidade de que faz uso no momento de sua produção cultural.
[...] (CHARTIER, 1990, p. 36).

Assim, é importante frisar que as noções levantadas por Chatier (1990) são pautadas,
por sua vez, nos estudos feitos por Jauss (1994) a respeito da posição que o leitor toma
em relação ao texto. Ou seja,

a distância entre o horizonte de expectativa e a obra de arte, entre o já


conhecido da experiência estética anterior e a ‘mudança de horizonte’
exigida pela acolhida à nova obra, determina, do ponto de vista
estética da recepção, o caráter artístico de uma obra literária. À
medida que essa distância se reduz, que não se demanda da
consciência receptora nenhuma guinada rumo ao horizonte da
expectativa ainda desconhecida, a obra se aproxima da esfera da arte
‘culinária’ ou ligeira (JAUSS, 1994, p. 31-32).
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Neste sentido, a obra literária não é apenas um objeto que existe por si só, mas sim,
oferece a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um
monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes, como uma
“partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, liberando o texto da
matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual” (JAUSS, 1994, p. 25). Para o
teórico, portanto, o leitor é o responsável pela atualização dos textos, que garante a
historicidade das obras literárias que permite a ampliação de uma nova perspectiva da
realidade e, consequentemente, do campo de percepção.
Na década de 1960, a editora Tecnoprint, hoje conhecida como Ediouro, lançou uma
coleção de clássicos estrangeiros adaptados. Foram convidados, entre outros, Carlos
Heitor Cony, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, entre outros
para fazer parte da equipe de escritores que trabalhariam com obras adaptadas. Como a
iniciativa deu certo, muitas outras editoras passaram a investir no mesmo ramo. Logo
depois, houve aprovação, dessas obras, por parte de pais, alunos e professores.
Monteiro nos mostra como ocorreu a inovação no campo das adaptações no final da
década de 1990,

[...] foi em 1997, entretanto, que ocorreu a grande ruptura na tradição


brasileira de adaptações: a editora paulista Scipione anunciou ao
mercado-escola, por meio de catálogos, folhetos e cartazes, o
lançamento de uma série de clássicos nacionais adaptados. Os dois
primeiros títulos foram: O Ateneu, de Raul Pompéia, adaptado por
Carlos Heitor Cony, e Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, adaptado por José Louzeiro. O impacto do novo
foi violento. Editoras, críticos, professores, escritores e alunos se
dividiram a respeito da novidade. Muitos críticos continuam em
estado de choque, não acreditam na audácia. Os escritores convidados
para adaptar os clássicos nacionais defendem a legitimidade de se
reescrever os textos canônicos de domínio público já incorporados ao
patrimônio cultural brasileiro; os não-convidados contestam. Há
professores que não percebem nenhuma utilidade pedagógica nas
adaptações. Outros preferem nem tocar no assunto (MONTEIRO,
2006, p. 07).
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A partir daí, as adaptações, e não apenas de caráter literário, não pararam mais. Hoje,
muitas obras de nosso acervo brasileiro são adaptadas para diferentes suportes,
conquistando o seu espaço no cenário da literatura nacional.

Missa do galo: projeto gráfico-editorial

Segundo estudos realizados por Oliveira (2008), vivemos em uma época de


vulgarização da palavra, acrescida da massificação mercantilista e ideológica da
imagem. Por isso, o livro continua sendo um elemento de afirmação da individualidade
que trabalha de forma consciente e participativa a palavra e a imagem como ato de
resistência cultural e social. Logo, denomina-se a palavra como espírito, e a imagem
como, seu corpo cabendo a elas uma união indissociável que possibilitará à criança ou
ao jovem considerar em uma mesma obra os aspectos formais e táteis.
No século XX, diversos movimentos artísticos influenciaram diretamente as artes
gráficas, como o cubismo, o dadaísmo, o construtivismo russo e o neoplasticismo. Esses
movimentos ofereceram ao homem uma nova possibilidade de pensar visualmente e
também, de solucionar os espaços de forma harmoniosa. Entretanto, a atenção
direcionada aos aspectos plásticos de um livro não se justifica apenas “no auxílio à
competência e à concorrência, como se o livro fosse um mero produto de prateleira”
(OLIVEIRA, 2008, p. 45).
Os aspectos plásticos de um livro ganharam sua verdadeira importância nas últimas
décadas, devido à vontade dos artistas de inserir suas obras na eternidade e
contemporaneidade. A preocupação com a imagem, com a configuração gráfica e
editorial de um livro, não deve apenas ser compreendida como um “recurso estetizante
apoiado em questões mercadológicas ou na utilização maneirista e superficial da
computação gráfica” (OLIVEIRA, 2008, p. 45). Segundo ainda Oliveira, a imagem de
um livro no inconsciente de uma criança pode desenvolver e produzir efeitos por toda a
vida adulta. Por isso, é fundamental que essa seja criada muito mais pregnante do que
qualquer palavra. Assim, os ilustradores e os projetistas gráficos possuem uma grande
responsabilidade: a de construir não apenas a memória e o passado visual de seus
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leitores, mas sim, de tudo que possa auxiliar durante o processo de formação e educação
do olhar.
Nos últimos anos, o mercado editorial colocou em campo toda sua competência no
projeto gráfico-editorial, muitas vezes ousado, criativo e diferenciado, para homenagear
o escritor Machado de Assis. Ainda que sem um levantamento exaustivo dos modos
como o mercado prestigiou a efeméride, procuramos apontar através de uma análise,
peculiaridades do projeto gráfico-editorial da obra Missa do galo, de Machado de Assis,
publicada em 2008 pela Escala Educacional, voltada aos jovens leitores.
O público não possui, normalmente, percepção da influência de aspectos que
configuram o projeto gráfico-editorial de um livro - como qualidade do papel, tamanho
e formato da letra, encadernação, quantidade de texto e de ilustração em cada página,
bem como do conteúdo e realização de paratextos - no processo de leitura de cada leitor.
Em razão disso, pretendemos enfatizar neste texto, a partir da apresentação da obra, a
importância desse olhar para as escolhas que definem o corpo e a alma do livro, como
resume Odilon Moraes:

[...] o projeto gráfico nos indica uma idéia de ler, isto é, uma idéia de
um tempo para se olhar cada página, de um ritmo de leitura por meio
do conjunto de páginas, de um balanço entre texto escrito e a imagem,
para que, juntos, componham e conduzam a narrativa (In: OLIVEIRA,
2008, p. 49-50).

Ao analisar o processo de adaptação sofrido pela obra que considera alguns


procedimentos como a adaptação do meio, da forma, do assunto e da linguagem,
notamos que em Missa do galo o texto da narrativa não sofreu qualquer tipo de
adequação ou alteração, ou seja, o conto se manteve o mesmo do início até o fim. O
leitor jovem deve ser capturado pelo projeto gráfico-editorial. A capa, por exemplo, é
ricamente ilustrada com uma imagem de época com destaque a uma igreja. As cores em
tons ocres utilizadas pelo ilustrador para colorir o retrato da cidade dão contraste ao
fundo escuro e o título do conto é grafado em letras douradas, que ao mesmo tempo
revelam a leitura do artista e possibilita uma nova incursão do leitor no texto verbal.
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O ilustrador, Fernando Vilela, explica, no paratexto O ilustrador e seu processo de


criação (s/n), que procurou mostrar um clima de espaços públicos vazios, característica
do século XIX e que o tom sépia utilizado resulta da inspiração em fotografias antigas

para fazer este livro, pesquisei fotografias antigas da época e consultei


livros de móveis e antiguidades do século XIX para ambientar as
ilustrações. Inspirei-me em algumas fotografias urbanas do Rio de
Janeiro, de Marc Ferrez, além de referências de roupas, móveis,
porcelanas e lustres da época que me inspiraram a desenhar as cenas
interiores. (VILELA, In: Machado de Assis, 2008, s/n)

Vilela relata também como desenvolveu o projeto gráfico em estreita ligação com a
época de publicação da obra de Machado de Assis, de modo que o livro ficasse com
aparência de antigo, inclusive, com o papel com aparência de infestação de fungos:

[...] o fundo de todas as páginas foi tirado de um livro de 1890 e as


duas famílias tipográficas utilizadas na coleção – a Monotype Old
Style 7, escolhida para o título do livro, e a Old Style 7, empregada no
corpo do texto – tiveram sua origem no século 19 e trazem
características desse período. (VILELA, In: MACHADO, 2008, s/n)

Para Oliveira (2008), o que se espera de um livro para crianças é que as imagens
contenham arte, isto é, que sejam feitas por um verdadeiro artista. O poder simbólico de
uma ilustração em um livro voltado ao público juvenil e sua capacidade de se perpetuar
na memória estão muito além de uma simples nomeação, ou seja, como nos outros
gêneros literários entre eles a poesia e a prosa, as palavras vão muito além de seus
significados. Neste sentido, a “sonoridade que as palavras provocam, o mesmo ocorre
com a ilustração, que, apesar de seu aspecto figurativo concreto, também possui um
som, um gênero de ressonância visual” (OLIVEIRA, 2008, p. 41). Assim, ao analisar a
obra adaptada Missa do galo verificamos que, no miolo, as ilustrações valorizam os
espaços vazios já mencionados e ocupam totalmente as páginas e até duas inteiras. O
texto é distribuído, predominantemente, em metade das páginas ocupadas pela
ilustração, o que favorece e estimula a leitura dos leitores mais jovens.
Outro aspecto relevante na obra de arte ilustrada é a sua significativa relação com as
artes visuais e também, com a construção do projeto editorial. Este trabalho em
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conjunto possibilita que a criança e o jovem ao se verem diante de uma obra ilustrada e
com um projeto acessível a eles consigam despertar as suas experiências visuais ocultas
que não foram ainda conscientemente vividas. Logo, o Glossário, o projeto editorial e
as ilustrações do conto adaptado Missa do galo, de Machado de Assis são paratextos
que contribuem para a adequação da obra à faixa etária pretendida, uma vez que
fornecem informações a respeito de termos e expressões distantes dos leitores bem
como sobre o autor e detalhes das fotografias que motivaram o trabalho do ilustrador,
aspectos importantes para despertar o senso estético dos leitores.

Considerações finais

A análise da adaptação do conto Missa do galo de Machado de Assis bem como a


verificação do processo gráfico-editorial possibilitou levantar alguns procedimentos
empregados, dentre eles, o assunto, a forma, o estilo e o meio para que a obra se
aproxime ao máximo do grau de interesse e compreensão do público ao qual ela é
destinada. Além disso, outro aspecto verificado na adaptação em pauta diz respeito ao
modo como foi realizado o projeto gráfico-editorial, em relação ao entendimento e
identificação do público infanto-juvenil com a narrativa renovada. Por isso, as
ilustrações e a forma com que se organiza o livro, ou seja, da elaboração do glossário à
escolha das cores para as imagens, são elementos marcantes que auxiliam a promover o
encantamento nos leitores jovens.
Como as adaptações constituem um exercício efetivo de leitura entre os leitores
infantis e juvenis devem ser consideradas formas literárias legítimas, uma vez que a
reescrita do texto leva em conta elementos como ilustração, distribuição do texto na
página, ou mesmo o ajuste linguístico às potencialidades de um público diferenciado.
Deste modo, considerando esses elementos, a adaptação pode ser tida como uma
unidade de sentido legítimo e deve ser reconhecida como um gênero literário, pois a
apropriação do discurso do outro durante o processo de adaptação é explícita e integral
quando faz uso da ideia geral da obra sobre a qual está sendo construído o novo sentido
do texto adaptado.
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Em outras palavras, conceber a importância das versões adaptadas que circulam em


nosso país é reconstituir os espaços possíveis de cada indivíduo ou de uma “comunidade
de leitores” que constrói suas próprias formas de ler, e mais: é conceder o papel
fundamental que desempenha a história dos suportes dos textos, da leitura e dos leitores
na literatura. No entanto, é importante ressaltar que muitas adaptações são produzidas
em nosso país com o intuito de atingir um público diversificado, dados os diferentes
formatos, diferenciados preços e múltiplas reescrituras. Esses aspectos comprovam que
o estudo sobre adaptações realizados em todo o país tende a se desenvolver e a se
propagar, pois cada vez mais tem se tornado um suporte literário que atrai leitores, de
diferentes épocas, idades e categorias.

Referências

ASSIS, Machado. Missa do galo. São Paulo: Escala Educacional, 2008.

CARVALHO, Diógenes Buenos Aires de. A adaptação literária para crianças e


jovens: Robinson Crusoe no Brasil. Tese (Doutorado em Letras) - PPGL, PUCRS,
2006.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria


M. Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.

CONY, Carlos Heitor. As adaptações dos clássicos e a voz do Senhor. São Paulo:
Scipione, 2002. Disponível em < http: / / www.scipione.com.br/scipioneeducação >
Acesso em 11 de janeiro de 2009.

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria da


Literatura. São Paulo, Ática, 1994.

MARTHA, A. A. P. Mercado editorial e efeméride: Machado de Assis para jovens


leitores. Rio de Janeiro: Revista Buriti, 2010.
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MONTEIRO, Mario Feijó Borges. Permanência e mutações: O desafio de escrever


adaptações escolares baseadas em clássicos da literatura. Tese (Doutorado em Letras)
- PPGL, PUCRJ, 2006.

OLIVEIRA, Rui. Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para
crianças. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Anexos

Capa da obra adaptada Ilustração de abertura da adaptação


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A CONFLUÊNCIA DE IMAGEM E TEXTO EM “MINHA MÃE MORRENDO”,


DE VALÊNCIO XAVIER

Ângela Maranhão Gandier (PG-UFPE)

Introdução

O autor de que este artigo se ocupa se dedicou a uma criação literária surpreendente e
exemplar do aspecto vetorial das artes visuais na escrita literária. A escolha de Valêncio
Xavier (1933-2008) para o encaminhamento do tema se deve ao fato de Xavier ter
criado uma obra que lhe confere as marcas de originalidade inconfundíveis. Além desse
mérito indiscutível, o romance “Minha mãe morrendo e o menino mentido” torna
evidente que a literatura pode mobilizar em seu proveito a permeabilidade de assimilar
outras formas de expressão e de comunicação, atuando como eixo relacional aberto a
interações com as artes visuais como a pintura, a fotografia, o cinema, a arte gráfica.
Em “Minha mãe morrendo e o menino mentido”, as imagens provenientes de vários
contextos atuam como princípio formal e são responsáveis tanto pela coerência
estrutural como pela originalidade da obra. Daí resulta a força singular deste álbum
memorialista, de natureza autobiográfica, uma espécie de romance de formação, gênero
clássico no qual são narradas as experiências fundadoras do personagem central.
Responsável pelo arranjo geral e pelo projeto gráfico do livro, Xavier apostou na
estética da colagem e da fragmentação, submetendo esse gênero literário a uma
configuração de texto e imagem. Artesanato cuidadoso e original, o álbum-bricoleur
resulta da mescla texto, desenhos, antigos reclames do século passado, fotografias,
fotogramas, mapas, ilustrações, enfim, todos esses materiais polissêmicos foram
retirados, principalmente dos produtos e emblemas da cultura de massa, e foram ali
reunidos e ordenados de modo a expressar as experiências afetivas do personagem-
narrador, o Menino mentido.
Há outro aspecto da maior relevância a destacar: em Xavier, a memória possui um
estatuto fundador. O movimento oscilante entre experiência, memória e ficção fica
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assegurado na narrativa pela interferência do fluxo da subjetividade, da memória


mobilizada pelos signos sensíveis, quando o escritor desdobra-se no seu outro – o
personagem. Os limites entre realidade e ficção perdem curiosamente seus contornos,
graças à interferência da memória involuntária, criadora, capaz de construir essa textura
de imagens de que a memória é formada. Este é um dos motivos da bricolagem servir
como moldura de criação, revelando-se um procedimento formal adequado à expressão
da memória, que surge menos das lembranças conscientes do que pela rememoração
que muitas vezes acontece em flashes desordenados e indefinidos, lampejos súbitos que
não foram antecedidos por um trabalho mental consciente. Por outro lado, a própria
justaposição crítica do variado material que reúne imagens, gêneros e vozes literárias
díspares põe em questão a própria obra e seus constituintes específicos.
Portanto, o álbum memorialista de Xavier pode ser iluminado sob diferentes pontos
de vista. Meu propósito é examinar a primeira novela, “Minha mãe morrendo”,
buscando um lastro teórico que possibilite uma melhor compreensão desta obra, no
sentido de assinalar determinadas matrizes estéticas da literatura modernista que o autor
incorpora, e ao mesmo tempo desloca e redefine, re-significando-as, sem deixar de
assimilar as suas linhas essenciais.
“Minha mãe morrendo e o menino mentido” é composto de três novelas dispostas
numa linearidade cronológica, intituladas “Minha mãe morrendo”, “Menino mentido:
topologia da cidade por ele habitada” e “Menino mentido”. A avaliação crítica da
primeira novela do romance, portanto, será orientada pela permanência da estética
modernista na literatura contemporânea, pelo estatuto singular que as imagens conferem
à narrativa e pela tematização da memória configurada como uma Escrita de si.

1. Configuração de texto & imagem

A novela “Minha mãe morrendo” é atravessada por um viés melancólico, adensador


das experiências-limite que conduzem à realidade inapelável da finitude humana. As
relações da imagem com a palavra são encadeamentos sobre o nascimento e a morte,
retomados por caminhos diferentes, mas sempre convergentes para a expressão da
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experiência traumática da morte materna.


Salta aos olhos que a imagem feminina integrada ao texto remete ao Nascimento de
Vênus, tela renascentista de Sandro Botticelli, cuja imagem está reproduzida para efeito
de comparação. O trecho que acompanha a imagem da Vênus dessacralizada de Xavier,
releva a reciprocidade entre as imagens:

(XAVIER, 2001, p. 11) 1 (Nascimento de Vênus, Sandro Botticelli, 1480)

minha mãe nua/ corpo grande firme branco/ que nem


folha de papel/ sem pelos/ nos braços nas coxas
lisas/ mais lisas mais brancas/ainda que os azulejos/
água transparente alfombra/ na branca banheira
branca/flutuantes cabelos soltos longos/ ruivos quase
ruivos. (XAVIER, 2001, p.10).

Essa imagem carrega em si as significações dos símbolos da mãe, da água e de


Vênus (ou Afrodite) ligados aos mitos da criação. A respeito da água, Jean Chevalier
assinala, que na língua francesa, “o simbolismo da mãe (mère) está ligado ao do mar
(mer) na medida em que são, ambos, receptáculos e matrizes da vida. O mar e a terra
são símbolos do corpo materno.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p.14). A água
1
Assumimos a responsabilidade pela reprodução das imagens no presente artigo, que estão devidamente
referenciadas segundo as normas da ABNT.
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é um símbolo cambiante e possui múltiplas significações, simbolizando, em primeiro


lugar, a origem da vida.
As correspondências entre as imagens passam por uma leitura irônica do Nascimento
de Vênus, através da qual foram eliminados alguns dos seus elementos simbólicos
fundamentais. Os “flutuantes cabelos soltos longos” com que Vênus cobre o sexo é uma
clara menção à tela renascentista, pois na figura feminina de Xavier os cabelos são
curtos. Ao compararmos as duas imagens, vemos que a concha foi eliminada; ela é um
importante elemento simbólico associado à fecundidade. Sua forma e sua profundidade
simbolizam o órgão sexual feminino. A imagem de Xavier exibe o corpo feminino
totalmente exposto, dela foram retirados os elementos sacralizantes com que o tema da
concepção é tratado na representação renascentista.
Em Xavier, entretanto, a imagética da água desdobra-se em duas direções, sendo ao
mesmo tempo fonte de vida e de morte. O tema recorrente dessa novela gira
fundamentalmente em torno da simbologia do mar associado ao corpo feminino, e nos
remete ao contraponto fértil explorado por Ângela Maria Dias. Referindo-se à analise
de Georges Didi-Huberman sobre as belas páginas iniciais de Ulisses 2 de James Joyce,
a ensaísta observa que ressoa na narrativa de “Minha mãe morrendo” as imagens que
fundem o mar e o corpo da mãe, como é descrito no paradoxo vivido por Stephen
Dedalus no leito de morte da mãe. O corpo materno – como é, evidentemente, o de
todas as mães – impõe-se ao mesmo tempo como fonte de vida e de morte. Para Dias:

Da mesma forma, Joyce, a partir da experiência do seu


personagem, nos fala da “inelutável modalidade do visível”, em
decorrência da cisão entre o que vemos e o que nos olha, ou seja,
o paradoxo irredutível em que algo latente ou indicialmente
presente, como um vazio subjacente ao visível, nos paralisa ou
fascina. (DIAS, 2005, p.16).
2
Em Joyce, o que adensa esta experiência é que a simbologia da água como fonte de vida cede a vez às
imagens nada apaziguadoras do mar. Pelo contrário, o arco de correspondências que o personagem
estende entre o mar e o corpo da mãe é feito de imagens marcadas com o selo da morte: a água do mar
esverdeada pelo sargaço (cuja cor é descrita como um snotgreen, verde-muco) é uma remissão às
secreções de bile eliminadas pela enferma, o avanço das ondas remete aos violentos acessos de vômito
que a acometia. Enfim, ao evocar a cena em que a mãe fecha os olhos para sempre, as imagens que
fundem mar e mãe retornam em sugestiva imagética da morte. (DIDI-HUBERMAN, 1998).
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Entretanto, o mar como a imensa superfície ao mesmo tempo fascinante e aterradora,


com suas tempestades e marés, suas potencialidades e força incontrolável sofre em
“Minha mãe morrendo” uma leitura igualmente irônica: trata-se de uma prosaica
banheira o lugar de onde surge uma Vênus asséptica como um corpo que vai ser
preparado para uma cirurgia. Com efeito, no trecho que relata a cirurgia, a imagem é
retomada em nova e inquietante configuração. Mais uma vez sua aura sacralizante é
retirada, agora seu corpo é dissecado, suas vísceras são expostas:

não sei por que/ me fizeram olhar/ pelo vidro redondo/ da sala de
operações/ eu era pequeno/ tive que me erguer/ para ver o que vi/que
não queria ver/ costelas cortadas/ de sangue cobertas/ dobradas para
fora/ do campo cirúrgico/ quadrado de carne/ no pano branco/corpo
envolvente (XAVIER, 2001, p. 25-28).

Por um lado, na ambigüidade dos sentimentos do personagem-narrador, esse trecho


representa um desnudamento de um filho cujas memórias expressam as relações
dolorosas com uma mãe distante e fria, assombrada pela morte. Por outro lado, não
podemos perder de vista que o plano formal é de fundamental importância para o efeito
lúdico que pode ser extraído do arranjo gráfico. No livro, os desenhos não estão juntos
como estão aqui reproduzidos. Cada um deles ocupa uma página, as imagens
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permanecem sobrepostas quando o livro está em repouso, têm a mesma dimensão e


disposição no retângulo branco da página. O efeito lúdico pode ser experimentado pelo
leitor, mediante movimentos rápidos e ritmados das páginas, acionando-se, desta
maneira, o princípio do desenho animado.
Por essa razão, é interessante ressaltar a alternância de climas, movimentos de tensão
e distensão que coexistem na narrativa e que derivam, também, do persistente ludismo
de todo o romance. Nesse sentido, a narrativa ora se adensa na expressão da inquietação
existencial, quando o texto é perpassado por um tom melancólico, ora assume uma
configuração irônico-paródica como na sequência do banho, em que figura a
embalagem do sabonete Maderas do Oriente. O banho da mãe é sacralizado pela
presença de essências aromáticas usadas em rituais sagrados: o nardo, o benjoim e o
incenso; o incenso está ligado ao simbolismo da fumaça e do perfume como meio de
purificação; o ato de incensamento tem “o valor simbólico de associar o homem à
divindade, o finito ao infinito, o mortal ao imortal.” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2002. p. 503). Xavier, no entanto, não sustenta o tom solene e cerimonioso com que o
tema é tratado e o rebaixa, ao introduzir termos chulos como a “punheta no banheiro
pelas coxas de Maria Montez” e a piada do jeca.

Nardo Canela Mirra/ Sândalo Almíscar Incenso/ Maderas do Oriente/


Bálsamo de minha mãe nua/ recostada no banho/ Perfume
inebriante/como esperma/ nardo benjoins/cravos jasmins/e água pura/
eu/ punheta no banheiro/ pelas coxas de Maria Montez/ deitada em
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alfombras douradas/ vista a cores no cinema/ anedota ouvida na escola/


Um jeca vai para o quarto/ e beija a puta na boca:/ tua boca tem aroma
de Madeiras do Oriente/ deve ser porque acabo de/ chupar o pau dum
japonês (risos). (XAVIER, 2001, p. 20-21). 3

Este gosto pela provocação, fruto da aproximação de elementos insólitos e díspares,


diz respeito à assimilação de determinadas matrizes estéticas da arte modernista que,
pelo visto, não esgotaram a capacidade de influir na literatura contemporânea. José
Guilherme Merquior chama a atenção para a chamada mescla estilística, termo criado
por Erich Auerbach para designar “o tratamento parodístico dos sentimentos e situações,
ao introduzir o vulgar cotidiano a poemas de tom sério e problemático.” (MERQUIOR,
1974, p. 82). Através da sátira e da paródia, escreve Merquior, “o processo artístico
consiste em brincar com seus temas, mesmo e, sobretudo, quando os leva terrivelmente
a sério.” (MERQUIOR, 1974, p. 82). O rebaixamento conduzido pela pauta paródica
deriva da tendência anti-trágica do estilo literário moderno, proveniente do humor
grotesco. Este humor é, sobretudo, crítico e provoca

a grave preocupação ou o sorriso instável porque sua comicidade


não é quase nunca a da sátira, repousada na certeza de ideais, e
sim a triste comicidade do grotesco, semitrágica, por natureza
insegura do significado e do valor da existência. (MERQUIOR,
1981, p. 90).

A instabilidade das referências confunde a natureza dos relatos, embaralhando


realidade e ficção, fazendo com que o contorno entre as duas instâncias se dilua. Assim,
vagando no itinerário instável e na errância que o ato de rememorar o instala, e instala
igualmente a nós, leitores, o personagem-narrador assim conclui a novela: “Este livro é
dedicado ao menino que morreu.” (XAVIER, 2001, p. 38).

3
Interessa observar que, no livro, este trecho do poema forma um caligrama, semelhante a uma flor.
Graças ao persistente ludismo, este é mais um componente da narrativa relacionado à memória sensitiva
que também participa do jogo de correspondências.
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2. A fotografia como imagem-memória

Destacar a fotografia do conjunto de imagens do romance valenciano significa


acentuar que elas são superfícies textuais impregnadas de memória, se assim podermos
nos referir à imagem fotográfica e ao ato de leitura que ela solicita do espectador, caso haja
a intenção de vê-la além das aparências. Como assinala Philippe Dubois, “o melhor
revelador da fotografia deve provavelmente ser encontrado fora dela mesma.”
(DUBOIS, 1995, p. 66). A constituição das imagens da memória pressupõe um olhar
auto-reflexivo. Esta modalidade de narrativa se constitui como uma Escrita de si, uma
postura enunciadora peculiar em que o ‘’sujeito não tem outra exterioridade a não ser a
de encenar-se, consequentemente de tornar presentes suas próprias condições de
existência enquanto imagem.” (DUBOIS, 1995, p. 65).
De que forma, então, a imagem fotográfica é integrada à narrativa, no sentido de
exprimir as experiências fundadoras do personagem-narrador? De duas formas distintas.
Em primeiro lugar, o autor faz com que as fotografias cumpram a função de se
sucederem amparadas pela objetividade do discurso que a elas confere significação e
destino. Em segundo, ele compõe em torno das imagens fotográficas a já referida
moldura imaginária dos contos e lendas do Oriente, em função do que as fotos mostram,
ou seja, o autor e a mãe fantasiados para o carnaval.
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a do meio é a Babá/ pobre babá/ o de cossaco é meu irmão


Gricha/meu pai era russo/ já separado de minha mãe/ o da
esquerda sou eu/ Aladim Sinbad Saladino/ Maktub (XAVIER,
2001, p. 24-25)

Impressas nas páginas ímpares do livro, a cada uma das fotografias corresponde uma
seqüência narrativa que nos aproxima de sua significação, porque a fotografia nada nos
diria sem a presença da palavra do autor. Sua significação continuaria enigmática para
nós, a não ser que sejamos “participantes da situação de enunciação de onde a imagem
provém.” (DUBOIS, 1993, p. 52).
Recolhida do álbum de família, a fotografia atualiza um instante singular do tempo
da vida do personagem-narrador que a câmera captou. O menino, com a babá e o irmão
mais velho, é revelado após a designação do autor – “o da esquerda sou eu”. Ele
identifica-se, entretanto, assumindo os nomes de Aladim, Sinbad, o ladrão de Bagdad,
personagens lendários dos contos e lendas das “Mil e uma noites”, lidos nos livros ou
vistos nas telas do cinema. Em algumas passagens como essa, a fotografia propicia a
construção de paisagens imaginárias. Entrelaçada com a fotografia, a narrativa é
envolvida no arco de correspondências com os mistérios do Oriente, e, por esse
caminho, abre-se espaço para a emergência do imaginário, para o mundo dos sonhos. A
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fotografia como imagem-memória ajusta-se bem a esse papel, pois é uma imagem
assombrada pelos jogos de desejo e de morte.
Dessa impressão luminosa é sempre realçada uma presença íntima de algo, dos seres,
das coisas e lugares, daí a sua transformação em objetos de culto, verdadeiros relicários.
Walter Benjamin chega a se referir à fotografia como um objeto aurático, especialmente
o rosto humano das antigas fotos, como o “refúgio derradeiro do valor de culto que foi o
culto da saudade consagrado aos amores ausentes ou mortos.” (BENJAMIN, 1985, p.
201).. Suas análises lúcidas permanecem como guias incomparáveis porque Benjamin
percebeu, antecipadamente, que a fotografia pode ser colocada na ordem explícita da
subjetividade quando diz que “a natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao
olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente
pelo homem,um espaço que ele percorre inconscientemente.” (BENJAMIN, 1985, p.
94).
Para Dubois, entretanto, a questão pragmática se impõe: a fotografia como índice
“designa com força o objeto real, único e singular, ao qual sua gênese a vincula
fisicamente, e atesta a existência desse objeto num momento e num lugar
determinados.” (DUBOIS, 2005, p. 83). Ambos, Benjamin e Dubois, são unânimes em
afirmar que a fotografia participa da memória como um objeto de crença, graças ao
estatuto de índice do signo fotográfico.
Não é outro o pensamento de Roland Barthes a esse respeito. Apesar de partir de
uma interpretação muito pessoal no seu ensaio dedicado à fotografia, Barthes
compartilha de idéias semelhantes às de Benjamin e Dubois. Ao fim de uma longa
digressão mobilizada por uma fotografia especial de sua mãe quando criança, A
Fotografia do Jardim de Inverno, ele enfim, “compreendera que doravante seria preciso
interrogar a evidência da Fotografia, não do ponto de vista do prazer, mas em relação ao
que chamaríamos romanticamente de amor e morte.” (BARTHES, 1984. p. 110).
Os sentidos atribuídos à fotografia, portanto, são da ordem do culto e as fotos da
galeria familiar são marcadas com o selo do desejo e do luto. O trecho seguinte expressa
essa postura enunciadora peculiar à qual imagem fotográfica está ligada. Nele, não há
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abertura para que a imaginação interfira e a narrativa assume um tom decididamente


confessional.

minha mãe/ é aquela da esquerda/na foto a mais magra/ odalisca


de turbante/ sofria/ de uma grave/ doença/ dos pulmões/ na época
sem cura/ morreu quando eu/ tinha treze anos/ acho que nuca me
amou/ nunca/seu filho/ aquele que se chama Valêncio/ acho que a
foto/ foi tirado numa fazendola/ no Rio Grande do Sul/ Soledade/
Tristeza/ Encruzilhada (XAVIER, p.18-19).

As fotografias cumprem, pois, o papel de restituir o percurso do personagem-


narrador marcado pelas imagens da infância. Nesse sentido, a fotografia pode ser
colocada na ordem explícita da subjetividade e dos processos de memória, pois elas não
são objetos despojados de vínculo afetivo com as experiências humanas. Pelo contrário,
vimos que Xavier as utiliza como verdadeiras superfícies textuais, cujos sentidos podem
ser apreendidos em função da narrativa que as acompanha.

Conclusão

A exposição esquemática da obra em questão não abrange, evidentemente, a


complexidade que a narrativa intersemiótica do nosso autor requer. Entretanto, fazendo
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minhas as palavras de J. G. Merquior, “o esquemático não é necessariamente incorreto,


nem a impossibilidade de dizer tudo significa que não se possa transmitir pelo menos
alguma coisa.” (MERQUIOR, 1981, p. 159).
“Minha mãe morrendo” exibe uma abertura para as virtualidades de sentido, pelas
suas heterogeneidades – a mescla de gêneros literários, o entrecruzamento de superfícies
textuais e plásticas, a interpenetração de vários referentes – assimilando dessa forma os
princípios constitutivos da literatura modernista, sobretudo, a inquietação experimental
da estética vanguardista.
Nesse sentido, a criação de um novo conceito de livro foi uma preocupação constante
dos autores que pretenderam romper com a convenção, com a limitação da linguagem e
até mesmo com a limitação do próprio suporte físico, destituindo assim o livro de
invólucro exclusivo da palavra escrita. Embora mantendo uma estrutura própria,
doravante o texto literário será cada vez mais permeado por tudo que lhe parece externo.
Não é decerto outra a motivação de Décio Pignatari ao dedicar uma seção de seu
livro de reflexões e memórias a V. Xavier, dando relevo especial à prosa do autor como
inauguradora “de códigos escritos e visuais – mais prosísticos, mais fotografáveis – de
generosos leques, que se abrem de Élio Vittorini a Picasso, de Borges a Carlos Zéfiro –
monta diagramas narrativos verbovisuais que vão dando um passo além da chamada
literatura. (PIGNATARI, 2000, p.131).
O que resulta, portanto, do laboratório de criação de Valêncio Xavier é a invenção
de uma linguagem literária que estimula o leitor a ficar atento aos movimentos
significativos da obra.
Desta forma, Xavier trouxe um sopro de renovação à literatura contemporânea. Isto
nos leva a pensar que a arte literária ainda luta bravamente para afirmar-se frente à
hegemonia dos meios audiovisuais e da indústria cultural, que exercem um indiscutível
domínio sobre as formas tradicionais de arte. Estas há muito tempo deixaram de ocupar
o centro das preocupações culturais.
“Minha mãe morrendo” impõe novas exigências para a crítica que não pode
prescindir nem do exame mais atento sobre a imagem – para além da interação mais
evidente entre arte e tecnologia –, nem da reflexão sobre as relações transversais da arte
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literária com outras artes, sendo a literatura assumida como um ponto de mediação, um
entre-lugar dos sentidos quando o livre jogo das formas resulta na criação de novos
estilos.

Referências

BARTHES, Roland. A câmara clara. Traduzido por: Júlio Castañon Guimarães. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Obras escolhidas, v.1: magia
e técnica, arte e política. In: Obras escolhidas, v.1: magia e técnica, arte e política.
Traduzido por: Sérgio Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985.

CHEVALIER, Jean/ GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

DIAS, Ângela Maria. Valêncio Xavier e o aprendizado do olhar como perda. Revista da
ANPOLL, Campinas, SP, n.19, p.11-31, jul./dez., 2005.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Traduzido por: Paulo
Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Traduzido por: Marina Appenzeller. 7 ed.


Campinas, SP: Papirus, 2003. (Série Ofício de Arte e Forma).

_______. A foto-autobiografia: a fotografia como imagem-memória no cinema


documental moderno. Imagens, Campinas, SP, n.4, p. 64-76, jul., 1995.

JOYCE, James. Ulisses. Traduzido por: Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Record, 1982.

MERQUIOR, José Guilherme. As idéias e as formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


1981.

_______. Formalismo & tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. Rio
de Janeiro: Forense Universitária; São Paulo: EDUSP, 1974.

PIGNATARI, Décio. Errâncias. São Paulo: Editora SENAC, 2000.

XAVIER, Valêncio. Minha mãe morrendo e o menino mentido. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
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HILDA HILST, LYA LUFT E MÁRCIA DENSER: TRÊS VOZES FEMININAS


SOBRE O TABU DO INCESTO NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA

Anna Giovanna Rocha Bezerra (PG-UEPB)

Iniciemos o presente artigo com um posicionamento de Moisés (1982) acerca do


texto literário:
O texto literário? O texto literário encerra um tipo de conhecimento da
realidade, diverso dos outros à medida que, como sabemos, exprime
os conteúdos da imaginação ou da ficção. Se o processo de captura da
realidade se inicia com a percepção sensorial e se esta pressupõe um
pensamento, a imaginação, no sentido de faculdade de representação
(“imagem”) e de multiplicação de imagens, trabalha não só com o real
determinado mas também, e sobretudo, com os possíveis do real.
(MOISÉS, 1982, p. 24).

É por meio da literatura que temos a possibilidade de recriar o real ou até mesmo de
modificá-lo de acordo com aquilo que melhor nos satisfaça. E um tipo determinado de
literatura que vem abrindo espaço cada vez mais em nossa sociedade e que nos conduz
de maneira ainda mais intensa, quer através de sua sensibilidade mais aguçada, quer
através de seus numerosos silêncios compostos de relações especiais entre as palavras, é
a literatura feita por mulheres.
Falar de uma literatura especificamente feminina é falar de uma literatura mais
sensorial, mais metafórica, repleta de subentendidos que vão se revelando à medida que
os significados se multiplicam no texto. As infinitas possibilidades de leitura de uma
obra literária não se limitam somente ao campo da literatura feita por mulheres, é claro,
mas não há como negar que a percepção de um “olhar” feminino, sobretudo quando os
temas tratados dizem respeito a este universo em particular, deixa transparecer como
que uma compreensão a mais em relação àquilo sobre o que se está falando.
A escrita feminina é marcada pelo viés da subjetividade, pelo profundo desejo de se
revelar sem, no entanto, se expor em demasia, e tudo isso acaba por desaguar na
maneira como as escritoras femininas compõem os seus textos.
Este artigo tem como objetivo realizar uma leitura da temática do incesto tomando
como pano de fundo três obras de três autoras brasileiras; Cartas de um Sedutor, de
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Hilda Hilst, O Quarto Fechado, de Lya Luft, e Caim, Sagrados Laços Frouxos, de
Márcia Denser.
Mauro Rosso (2006) diz que
apesar das (para alguns incontornáveis) dificuldades para definição
precisa do que seja uma escrita feminina, eu particularmente entendo
existir uma ‘literatura feminina’ com elementos, valores e vetores
próprios – que só fazem acrescentar e enriquecer a literatura (e a
Cultura em geral). Fácil identificar entre escritoras brasileiras e
estrangeiras contemporâneas uma escrita nitidamente feminina com
suas obras carregadas de suas características específicas. (ROSSO,
2006, P. 12).

A literatura feminina/feminista feita no Brasil, se comparada a outras nações, ainda é


muito tímida. Isso pode ocorrer por variados motivos, dentre eles a falta de espaço
destinado às mulheres ou até mesmo uma cultura marcadamente falocêntrica parece
exaltar os textos de escritores homens em detrimento aos de escritoras mulheres.
Tratamos aqui de um recorte mais contemporâneo, que vai especificamente analisar
autoras do século XX que produziram até quase o início do século XIX, como é o caso
de Hilda Hilst, ou então que produzem até a atualidade, como Márcia Denser e Lya
Luft.
De acordo com Süssekind (2003),
A pesquisa sobre a mulher na literatura no Brasil constitui-se, de
forma muito nítida, a partir da experiência de pesquisadoras que
passaram algum tempo no exterior com bolsas de estudo ou em função
de exílio político próprio ou de seus maridos. (...) O que está em jogo
aqui é o fato de que a maior parte dos estudos literários feministas
concentra-se nos departamentos de inglês e de francês, lidando com
suas respectivas literaturas. A produção feminista relativa à literatura
brasileira é ainda minoritária e mostra-se inexplicavelmente tímida.
(SUSSEKIND, 2003, p.21).

Sem dúvida, a abordagem dada acima pela analista literária aplica-se mais
especificamente à crítica feminista, contudo, ao relacioná-la aos estudos feitos no Brasil
sobre a escrita feminina feita por mulheres, considerando a contemporaneidade,
perceberemos que há ainda um hiato no âmbito dos estudos literários quando o assunto
é a especificidade da linguagem feminina nos textos modernos.
Citando Brandão (2004)
A personagem feminina, construída e produzida no registro do
masculino, não coincide com a mulher. Não é sua réplica fiel, como
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muitas vezes crê o leitor ingênuo. É, antes de tudo, produto de um


sonho alheio e aí ela circula, nesse espaço privilegiado que a ficção
torna possível. (BRANDÃO, 2004, p. 11)

As três autoras aqui estudadas apresentam particularidades que as tornam únicas e


originais ao mesmo tempo em que as colocam lado a lado no que diz respeito à questão
da literatura como veículo de experimentalismo e inovação. Não teremos aqui uma
literatura açucarada, com heroínas sofrendo por bons moços, nem donas de casa
cuidando de filhos e marido. Nas obras analisadas, além de um atento e meticuloso
trabalho com a linguagem – condição sine qua non para serem consideradas como
produtoras de Literatura – vamos nos deparar com a abordagem de temas bastante
complexos, como é o caso do incesto. Calvino (1990), afirma ser a leveza um dos
pressupostos fundamentais para que um texto possa ser considerado literário.
Neste ponto devemos recordar que se a ideia de um mundo constituído
de átomos sem peso nos impressiona é porque temos experiência do
peso das coisas; assim como não podemos admirar a leveza da
linguagem se não soubermos admirar igualmente a linguagem dotada
de peso. (CALVINO, 1990, p. 27)

Tanto Hilda, quanto Luft e Denser apresentam textos em que alternâncias entre a
leveza e o peso da linguagem se fazem perceber. Ora elas suavizam certos
acontecimentos – procedimento mais comum à Luft, ora “carregam” mais tanto na
temática quanto na linguagem – mais comum em Hilst e Denser.
Para facilitar o acompanhamento da análise que faremos, faz-se pertinente elaborar
um rápido resumo das obras.

1. Hilst, Lutf e Denser: Narrativas Modernas

O romance “Cartas de um Sedutor”, 1992, de Hilda Hilst faz parte de sua trilogia
obscena 1 e nos coloca diante de uma inusitada estrutura narrativa: num primeiro
momento, conhecemos o narrador/personagem Stamatius, um escritor fracassado que
renuncia a uma vida de relativo conforto, com emprego, família, amigos, para se dedicar
exclusivamente a arte da escrita. Dentro da narrativa de Stamatius surge Karl, o

1
Fazem parte da “trilogia obscena” de Hilst as obras O Caderno Rosa de Lori Lamby,1990, Contos
D’escárnio – textos grotescos,1992, e Cartas de um Sedutor,1991.
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exemplo de escritor de sucesso no Brasil, justamente por dedicar-se à literatura


pornográfica. São através das cartas de Karl à irmã Cordélia – cartas que constituem a
maior parte do livro – que vamos desvendando o estranho comportamento de sua
família. Karl teve um relacionamento afetivo-sexual com a própria irmã, que por sua
vez também o teve com o pai de ambos, gerando, dessa relação incestuosa, um filho,
Iohanes.
Hilda é reconhecidamente uma escritora bastante erudita, e, ao se propor
intencionalmente a criar literatura pornográfica seu objetivo era alcançar um público
leitor que dizia não compreendê-la. Mesmo escrevendo obras relativamente distantes de
tudo o que escrevera até então, a autora não consegue abandonar as influências que
recebera, sobretudo da Filosofia, e Cartas de um Sedutor termina sendo um fracasso,
enquanto literatura pornográfica, entretanto, no que diz respeito à criação de gêneros
humanos e as suas relações interpessoais no âmbito moderno, é um romance rico e
original. A intertextualidade que mantém com a obra do filósofo e teólogo dinamarquês
Sören Kierkegaard “Diário de um Sedutor” ultrapassa a mera relação entre os títulos.
No romance de Hilst, além de predominar o gênero epistolar, modo como se estrutura a
narrativa de Diário de um Sedutor, vemos a repetição dos nomes dos personagens
centrais da obra de Kierkegaard: Iohanes e Cordélia.
Mais precisamente o que vamos observar aqui é a relação incestuosa entre Karl e
Cordélia e como a autora desenvolve esse tema ao longo da narrativa, para pudermos
comparar com as outras duas autoras aqui analisadas.
O Quarto Fechado, 1984, de Lya Luft é uma obra em que observamos uma das
principais características da autora gaúcha, os conflitos familiares, se desenvolver. O
enredo gira em torno de um casal que se reencontra diante do caixão do filho morto. A
partir daí, reflexões familiares vem à tona e a relação entre os gêmeos Camilo e
Carolina – uma relação marcada pela estranha cumplicidade entre ambos – transforma-
se em eixo central da narrativa. Nessa obra, as personagens são complexas e
profundamente simbólicas, conduzindo o leitor a uma trama na qual a convivência
familiar sempre é colocada em evidência revelando seus aspectos mais obscuros e
inusitados.
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Lya Luft afirma ser uma constatação precária dizer que ela escreve sobre mulheres.
Mulheres não são seus personagens exclusivos. “Escrevo sobre o que me assombra”,
observa. E nisso está a infância. O importante é o compromisso com a dignidade. Toda
a sua obra poderia ser resumida — como afirma — num livro de indagações.
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Aqui, nos deteremos apenas à análise da relação incestuosa entre Martim e Ella a fim
de perceber como a questão do desejo pelo outro rompe as barreiras do tabu familiar e
também como todo o núcleo parental vem a ser penalizado com a “proibição” do
envolvimento entre os dois personagens por Mamãe, personagem da obra, mãe de Ella.
Márcia Denser é o que se convenciona chamar de escritora contemporânea marginal.
Muito embora ela tenha tido vários de seus livros traduzidos e publicados em diversos
países, o Brasil ainda não a reconhece como uma autora de destaque no cenário da
literatura feminina nacional. Denser publicou seu primeiro livro de contos, Tango
Fantasma, na década de 70 aos 23 anos, e já nessa obra percebe-se a marca original de
sua escrita que é precisa, forte, direta e marcadamente inovadora. A autora prefere
ambientar seus contos e romances no subúrbio paulista, cidade onde nasceu e onde vive
até hoje. Grande parte de seus textos são atravessados por um viés erótico, que instiga a
imaginação do leitor sem, contudo, perder a grande qualidade literária que possui. Caim
– sagrados laços frouxos, é um romance em terceira pessoa que tem como tema central
a família, seus conflitos e imperfeições. Estamos diante de duas irmãs, Júlia e Amanda
Hehl, que às vésperas do parto desta, resolvem desvendar a história da família a fim de
que o filho de Amanda não carregue consigo a maldição que atinge os Hehl.
Denser faz uso de uma forma completamente surrealista de escrita: em sua narrativa,
os personagens entram e saem, as suas falas se sobrepõem e ela se utiliza de um recurso
literário que consiste em não “revelar” totalmente os fatos do enredo: o leitor infere a
partir do desenrolar da trama, como se muito mais existisse para ser dito e a autora
optasse por não narrar, por deixar por conta do leitor que sua imaginação conclua. Ela
“brinca” com o leitor na medida em que o confunde. De certo modo, se utiliza dos
mesmos procedimentos de Hilst: faz do leitor seu cúmplice. Mais: cúmplice dotado de
conhecimentos intralingüísticos e intertextuais que, para as autoras, são perfeitamente
capazes de recuperar todo o discurso que compõem.
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Márcia, sobre sua obra, diz:


Sou escritora e a cidade é meu campo de ação, meu altar de
sacrifícios, minha entidade mais secreta. E também a mais pública.
Desde tempos imemoriais, a cidade é um símbolo feminino, é mulher,
então compreende-se porque as estátuas de deusas-mãe, como a Diana
de Éfeso, ostentam coroas em formas de muros. Assim, minha
personagem Diana Marini é uma representação de São Paulo. Na
novela Welcome to Diana ela dá boas vindas ao leitor (em inglês,
posto ser cosmopolita), seu lema é seduzi-lo – para melhor devorá-lo!
Meu último romance Caim é uma história de São Paulo, é a saga de
uma família diaspórica e a crônica de uma cicatriz.

Caim traz à tona antigos segredos de uma família que durante muito tempo preferiu
esconder-se de si mesma. Julia e Amanda são descendentes de um avô que, para resistir
ao desejo que sentia pela própria irmã, foge de sua terra natal, a Alemanha, e vem para o
Brasil, como se o deslocamento físico também pudesse aplacar a fúria de seu sangue.
Chegando ao Brasil, casa-se com Ana Duarte de Sá, que depois da morte do marido,
resolve apagar os rastros deste da face da terra em virtude do “interdito” que ele
cometera desejando a própria irmã. Meses depois, Ana Duarte morre e seus filhos, que
são oito, ficam sob custódia dos tios maternos, que para manter o controle sobre a
fortuna dos moços Hehl, os casam com as primas-irmãs.
No romance de Denser fica evidente que o incesto é “aceito” em decorrência de um
arranjo familiar. Diferentemente dos outros dois romances aqui analisados, a ligação
incestuosa em Caim é vista com bons olhos pelas famílias e até por quem a pratica.
Entretanto, o caráter punitivo se repete, revelando assim, ponto de contato entre as três
obras:
Fora-lhes interdita na condição de sobrinha da Virago. De forma que
estas saíram piores do que os pais, e uma vez que também não tinham
coração para dar um paradeiro ou direção às ações ou detê-las após a
geração do primeiro da série de aleijões com olhos de coelho nos
quais reincidiam, parindo indiferentes como rãs. Que ao menos
tivessem gerado um bastardos sãos, nem que fosse pelo prazer ou pelo
triunfo de enfim gerarem um herdeiro, que os palermas dos maridos
nem teriam notado, fosse negra ou amarela ou vermelha a cor do
pirralho. (CSLF, p. 42)

2. Contato e contraste entre Hilst, Luft e Denser


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Para Nitrini (1997) um dos filósofos que se sobressaem na literatura comparada


tradicional é Cionarescu. De acordo com esse autor o conceito de influência possui duas
acepções diferentes, a mais corrente é a que indica a soma de relações de contato de
qualquer espécie, que se pode estabelecer entre um emissor e um receptor. A segunda
acepção é de caráter qualitativo. Influência seria o resultado artístico autônomo de uma
relação de contato. A expressão “resultado autônomo” refere-se a uma obra literária
produzida com a mesma independência e com os mesmos procedimentos difíceis de
analisar, mas fáceis de reconhecer intuitivamente, da obra literária em geral, ostentando
personalidade própria, representando a arte literária e as demais características próprias
de seu autor, mas na qual se reconhecem, ao mesmo tempo, num grau que pode variar
consideravelmente, os indícios de contato entre seu autor e um outro, ou vários outros.
Sob esse aspecto é que podemos estabelecer um contato entre as três obras
analisadas. Hilst, Luft e Denser são escritoras de momentos diferentes da literatura
contemporânea, e abordam também temáticas diversas, entretanto criam personagens
bastante significativos do ponto de vista da literatura universal. As personagens aqui
descritas apresentam um tipo de relacionamento que muito revelam acerca do conceito
relações interpessoais para a Literatura Comparada.
Ao tratar a questão do incesto, as autoras se utilizam de diferentes enfoques, que
oscilam do mais tradicional – aquele em que o tabu é levado às últimas conseqüências,
como no caso de Lutf – ao mais carnavalizado, como se dá com Hilda.
O que pretendemos aqui é comparar as determinadas passagens das citadas obras nas
quais se deflagram as cenas de incesto a fim de perceber como o olhar feminino capta e
compõem o cenário. Se, por se tratar de uma literatura feminina, a abordagem torna-se
mais sutil, mais metafórica, sem as marcas típicas do universo masculino que tendem a
punir a figura feminina, ou não, se as autoras tendem a repetir o modelo já utilizado
anteriormente.

3. Incesto e a literatura brasileira contemporânea

O incesto é um tema fascinante e complexo, pertence à história de cada homem, em


particular, e da humanidade, como um todo. Em suas diferentes formas, concreta ou
simbólica, provoca as reações mais diversas: medo, angústia, atração, curiosidade...
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Como fenômeno arquetípico, em seus aspectos criativos ou estagnantes, o incesto


inscreve-se na psique de cada um de nós. (Biscaro, 2003).
Como a vida imita a arte, o tema do incesto tem fascinado muitos autores através dos
tempos, e aqui, particularmente vamos tentar perceber como se estabelece esse “olhar”
literário frente a um assunto tão polêmico para o ser humano.
Na literatura brasileira contemporânea, a temática do incesto tem se presentificado
através de grandes obras, apenas para citar algumas num vasto universo, temos Dois
Irmãos de Millton Hatoum, Lavoura Arcaica, de Raduam Nassar, Somos Pedras que se
Consomem, do pernambucano Raimundo Carrero, Liv e Tatziu de Roberto Freire, entre
outras. Todas essas obras, compostas por escritores homens, são marcadas pela tragédia
típica – predominantemente com a mulher - que envolve assunto tão polêmico.
Em Cartas de um Sedutor, a personagem Karl tenta convencer a irmã a voltar a se
reencontrar com ele e retomarem seu relacionamento afetivo:
Irmã amantíssima: gostaria de tocar-te. Mas se isso é impossível,
gostaria que nos escrevêssemos novamente.(...) Sabes o quanto nos
amávamos, tu e eu, o quanto te fiz feliz. (...) Não ignoras o quanto fui
competente fazendo o impossível para que tu pensasses (quando
estavas comigo) que na realidade fodias com nosso querido pai. (CS,
p. 21).

No romance de Hilst a temática do incesto é colocada de maneira carnavalizada. Há


uma despreocupação da autora com qualquer tipo de trauma que tal tipo de relação
possa vir a causar. É como se num mundo moderno, todo tipo de envolvimento sexual,
afetivo, possa ser encarado de maneira “natural” – sem sobressaltos – pelos indivíduos.
Karl é o arquétipo de um homem extremamente hedonista que vislumbra apenas única e
exclusivamente o seu prazer. Uma vez que esse prazer está diretamente associado à
irmã, ao que o contato físico com ela lhe proporciona, Karl não hesita nem por um
instante em buscá-lo.
A linguagem utilizada por Hilst é permeada por termos escatológicos o que tornam o
texto muitas vezes grotesco e risível, contudo, por mais que procure enveredar por uma
literatura pornográfica, ainda percebemos na escrita de Hilda traços marcadamente
poéticos e repletos de alusões míticas:
OS LILASES, O CHUMBO, o verde-rã das águas, tuas blusinhas,
amada, cheirando a maçãs, tuas axilas negras, polpudas como rãs
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pretas pequeninas, estou confuso igual e Talleyrand diante de um


cesto cheio de cabeças. Então, Cordélia-Mirra, Iohanis é teu filho e
nosso irmão. Embriagaste o pai numa noite de águas, junto às baias. E
por isso te vi pálida na manhã seguinte arrumando valises e malas...
Nunca compreendi por que te foste. Agora sim. Vinte e quatro anos e
apaixonada. E grávida do pai. (CS, p. 88).

Ao confrontarmos a abordagem temática do incesto em Hilst, na obra em estudo,


com Luft em O Quarto Fechado, percebemos que esta se prende muito mais aos seus
aspectos geradores de conflitos:
Ella: quem teria escolhido para a menina sem pai o nome ambíguo,
profético, de meia humanidade, meia ausência?
O amor se frustara porque, para Mamãe, para parentes e amigos, os
dois eram irmãos; criados juntos desde tão pequenos, era como se
estivessem nascido do mesmo ventre. Desde que lembravam fora
assim. Eram irmãos.
Quando na adolescência ardores mais intensos os haviam lançado
um para o outro, a severa proibição de Mamãe, ao descobrir, os fizera
duvidar: era realmente permitido, era normal, aquele amor? Incesto: a
palavra pesava, doía. Não queriam magoar Mamãe, isto é, Martim não
queria: sentia-se seu devedor. (QF, p. 46).

Embora não sendo irmãos de “sangue” Ella e Martim foram criados juntos e, para a
sua família esta união se caracteriza como um incesto.
Para Razon (2007) a questão do incesto abala nossas referências, já que ele faz passar
do outro lado do interdito, no avesso das palavras. A palavra “incesto” ressoa de
diferentes maneiras, tanto para quem o pratica como para quem o observa. No entanto,
da mesma forma que a morte, ela faz parte de um léxico que remete cada um de nós ao
registro do inominável e do impensável. Se a própria palavra é tabu, é por conter em seu
sentido mais profundo a noção de impureza. Como se pronunciá-la de certo modo
significasse realizá-la.
Mesmo não sendo irmãos de fato, apenas Ella é filha legítima de Mamãe, os laços
afetivos que ligam Martim e Ella, reforçados pelo estigma imposto por Mamãe, acabam
por minar a relação entre ambos. E eles próprios, ao se confrontarem com a palavra
“incesto”, recuam em seu propósito: o de viverem juntos a sua história de amor.
Entretanto, no romance de Luft há um predomínio do desejo que se faz mais intenso e
Martim e Ella, durante anos, se encontram às escondidas, até que, surpreendidos por
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Mamãe, resolvem fugir. No dia marcado para a fuga, Ella sofre um pequeno acidente,
mas que marcará sua vida para sempre, tornando-a inválida e inconsciente.
Ella esperara, sentada na cerca. Talvez, acossada pelo amor, tivesse
chegado cedo demais; talvez Martim se houvesse atrasado. De
qualquer modo o destino chegara em tempo: derrubara a moça da
cerca, uma queda pequena mas fatal. Martim só voltara a vê-la dias
depois, paralisada numa cama, mal o reconhecendo: Ella iniciara uma
viagem sem retorno para longe dele, que só a podia contemplar do
lado de cá. (QF. p. 47).

Interessante observar que tanto em Hilst quanto em Luft, as personagens femininas


carregam o peso do castigo pela relação incestuosa. Em Cartas de Um Sedutor, Cordélia
foge, se isola tomada pelo remorso e pela culpa de ter cedido aos impulsos sexuais que a
impeliram para o irmão e para o pai e no romance de Luft, Ella sofre um acidente que a
imobiliza e a prende para sempre em cima de uma cama. Por sua vez, os personagens
masculinos, ou conseguem levar uma vida relativamente normal – como é o caso de
Martim, que chega a se casar – ou simplesmente nem compreendem o porquê de tanta
culpa, como ocorre com Karl.
É no romance de Denser que essa “fatalidade” parece fugir um pouco à regra: em
Caim as mulheres manipulam a cena incestuosa e mesmo sendo vitimadas pela situação,
não são penalizadas pela autora. Ao contrário, A fim de manter a herança no eixo da
própria família, são as mulheres que buscam os primos-irmãos para casarem, mesmo
gerando dessa união consangüínea, filhos defeituosos:
Mal puderam refazer-se e já vinha o segundo, o terceiro, o quarto
ramalhete da rendição incondicional às primas, suas filhas, os óbolos
propiciatórios sacrificados ao têmeno de Geia, portal da vida e da
morte destinado a abrir-lhes o Paraíso. Então exultaram porque a
disputa se consumara em arranjo, uma grinalda magnífica enfeixando
indelevelmente sangue e terras. (CSLF, p. 40).

Embora, na história da humanidade, existam variações quanto ao grau de proibição


conforme as épocas e história de cada civilização, por toda parte encontramos uma
constância do interdito. Em geral, tal interdito é universalmente colocado entre pai-mãe
e filhos. Por outro lado, certas sociedades, embora proíbam o incesto, toleram e até
estimulam a união incestuosa dos membros de certas classes sociais. Normalmente, se
trata de união no interior de famílias de príncipes ou famílias aristocráticas.
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Em Caim fica evidente que as relações incestuosas, diferentemente das que se


apresentam nas duas outras obras analisadas, não são tão fortemente penalizadas. Ao
contrário. Embora sofram discriminações pela sociedade, os Hehl e as Duarte de Sá,
casam-se e têm filhos – mesmo defeituosos- a fim de assegurar a unicidade familiar.

Conclusão

A literatura é um terreno no qual os mais diversificados temas podem se encontrar.


No campo ficcional, a imaginação do escritor/escritora recria o real de maneira que até
as mais absurdas relações são possíveis de acontecerem.
A modernidade muito tem propiciado a fim de que o ser humano não se surpreenda
frente às mais inusitadas mudanças pelas quais a sociedade tem passado. Se antes, certas
relações interpessoais eram consideradas “indecentes”, hoje, já não são mais e a
literatura, ao abordar temas polêmicos, como é o caso do incesto, nos permite perceber,
ainda que seja no âmbito ficcional, como se processam tais temáticas.
As três autoras aqui apresentadas revelam diferentes posições frente ao tabu do
incesto. Enquanto Hilst parece “brincar” de certa forma com as conseqüências que esse
tipo de relação pode deixar, Luft vai mais a fundo no preconceito gerado no seio da
própria sociedade que “proíbe” até mesmo o relacionamento entre duas pessoas que não
são de fato irmãos, mas que foram apenas criados juntos. Márcia Denser nos dá um
panorama menos trágico da relação incestuosa quando “une” os moços Hehl às Duarte
de Sá, primos-irmãos, que perpetuam a “tara de sangue” herdada do avô alemão,
Maximilian Hehl. Embora os frutos dessa união sejam filhos defeituosos.
O que pudemos perceber através da leitura dessas três obras é que a temática do
incesto ainda (e com certeza será por muito tempo) é fortemente marcada pela dor, pelo
preconceito, pelo interdito; Embora os diretamente envolvidos demonstrem desejo e
vontade próprias de permanecerem unidos.
Mesmo sendo escrita por mulheres, esse tipo de abordagem não escapa muito à regra
do trágico, revelando assim que o tabu do incesto é algo marcadamente forte em nossa
sociedade, até para a literatura.

Referências
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BISCARO, Regina Álvares. Incesto: um fenômeno arquetípico. São Paulo: Zouk, 2003.
BRANCO, Lucia Castello. BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de
Janeiro: Lamparina Editora, 2004.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, 1998.
DENSER, Márcia. Caim: Sagrados Laços Frouxos. Rio de Janeiro: Record, 2006.
HILST, Hilda. Cartas de um Sedutor. São Paulo: Globo, 2002.
KIERKEGAARD, Sören. Diário de um Sedutor. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin
Claret, 2006.
LUFT, Lya. O Quarto Fechado. 4 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
MOISÉS, Massaud. Literatura: mundo e forma. São Paulo: Cultrix: Ed. Da
Universidade de São Paulo, 1982.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1997.
RAZON, Laure. Enigma do incesto: da fantasia à realidade. Trad. Procópio Abreu. Rio
de Janeiro: Cia de Freud, 2007.
www.releituras.com.br <acesso em 20 de dezembro de 2009>
ROSSO, Mauro. Quem tem medo da literatura feminina/feminista? in:
http://www.germinaliteratura.com.br/literatura_mar2006.htm
SÜSSEKIND, DIAS, AZEVEDO. Flora, Tânia, Carlito (orgs) Vozes Femininas:
gênero, mediações e práticas da escrita. Rio de Janeiro: 7letras: Fundação Casa de Rui
Barbosa, 2003.
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O MESTIÇO QUE É NEGRO. CULTURA E RESISTÊNCIA EM TENDA DOS


MILAGRES

Antônio Carlos Monteiro Teixeira Sobrinho (PG – UNEB)

Introdução

Há uma tendência, entre os meios acadêmicos e políticos nos quais se discute a


questão racial atualmente no Brasil, a abandonar a noção de mestiço em prol de uma
categorização bipolar entre brancos e negros, a exemplo do que acontece nos Estados
Unidos. Supõe-se, de forma geral nesses estudos, o mestiço como algo que coaduna
uma perspectiva ideológica racista de combate à população negra através do
branqueamento de seus pares e do sistemático apagamento de suas características
ancestrais africanas, sejam físicas ou culturais.
Por conta disso, discutir mestiçagem é, antes de tudo, entrar em um campo
problemático, polêmico, repleto de reviravoltas, afirmações e negações; paixões e
identidades. Um campo no qual cada palavra pode ter – e tem – mais de um sentido, às
vezes plenamente antagônicos, a contar primeiro pela própria palavra em si,
mestiçagem, e, principalmente, por quem a usa.
Deste modo, é importante que se frise, desde cedo, que não é intenção deste trabalho
retomar as concepções raciais freyrianas. Não há, aqui, defesa alguma da mestiçagem
como um porto seguro em que fora possível, algum dia em tempos idos, pacificar as
realidades raciais em nosso país. Entretanto, não cairemos no reverso da moeda de
obliterá-la. Entendemo-la como uma importante realidade histórica – em que lhe pesem
todas as violências e todos os abusos que lhe deram suporte durante os séculos de
formação – com sérias implicações políticas e identitárias, assim como desdobramentos
os mais diversos.
É, pois, objeto de nossa análise, no âmbito restrito deste trabalho, um destes
desdobramentos, a saber: os usos da noção de mestiçagem por Jorge Amado em Tenda
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dos Milagres (1969) e as relações identitárias que deles decorrem a partir de duas
vertentes: a cultura e a resistência.
Entendemos que a identidade se dá por critérios outros que não os raciais, se vistos
isoladamente. Sua base é muito mais da ordem do cultural, dos processos de
socialização a priori do indivíduo, dentro de um determinado grupo mais ou menos
homogêneo e restrito no qual ele é criado, e de interação com o seu entorno complexo e
heterogêneo – a sociedade de forma ampla e global na qual ele se inscreve. Nesta
mesma linha, a identidade mantém um diálogo íntímo com a sociedade e, quando
afirmada em oposição aos conflitos subjacentes à própria dinâmica social, traz em seu
bojo uma atitude política 1, geralmente de contestação do status quo. Assim, nos é
permitido afirmar que a identidade possui um caráter de resistência e luta diante de um
contexto que lhe é desfavorável.
Compreendendo, pois, a mestiçagem como um processo histórico que, para o bem ou
para o mal – se é que podemos ser tão maniqueístas assim – faz parte da realidade
brasileira e da qual não podemos fingir sua inexistência e a identidade como um
constructo cultural e político de afirmação de uma resistência, analisamos, neste
trabalho, o personagem Pedro Archanjo, do romance amadiano Tenda dos Milagres,
buscando evidenciar que em sua mestiçagem não há branqueamento posto que sua
identidade é, acima de tudo, negra.

2 A mestiçagem de Pedro Archanjo.

O que se coloca em jogo quando a discussão gira em torno de questões raciais não é
o genótipo de quem sofre o preconceito, mas o olhar de quem o comete. Pouco importa
a origem do sangue que corre entre as veias, se africano, europeu ou mestiço; a cor da
pele é distintivo mais loquaz. Assim, se é verdade que o brasileiro, em seu sentido
histórico, se formou através de um intenso processo de miscigenação, embora nem

1
Por atitude política entenda-se um processo de auto-afirmação social, de contestação, de resistência
ideológica, mas não necessariamente partidária
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sempre pacífica, é igualmente verdade que este fato, por si, não conseguiu amainar a
mentalidade racista sobre a qual a estrutura do estado brasileiro se ergueu.
O mito da democracia racial “acolheu” a todos sob si. Construiu uma ideologia em
torno do mestiço como aquele que integraria as raças no país; prova material, pulsante
da ausência de racismo. Entretanto, o mestiço que se destaca no interior deste mito não
contempla a porção negra em que nele há, mas tão somente uma aproximação forçada
ao máximo do padrão europeu, seja na pele clara ou na cor da cultura. Em outras
palavras, a idéia de uma plena e já instaurada democracia racial no Brasil apresentou-se
politicamente como uma estratégia de apagamento do negro.
Nesse sentido, emblemático que Pedro Archanjo, personagem central de Tenda dos
Milagres, defina a si mesmo como mestiço. O que poderia propor uma continuidade dos
processos de produção de não-existência social do negro, em Jorge Amado, no entanto,
cumpre o papel oposto e lhe representa. Acaso mestiço no dizer sobre si, Archanjo é
identitariamente negro.
Ao chegar a esta afirmação, aparentemente contraditória, é importante que se situe de
forma exata o que esta noção de ser mestiço significa na obra em análise e, por
extensão, neste trabalho já que muitos dos que criticam a obra amadiana por conta de
sua visão racial não percebem o contexto a partir do qual a mestiçagem aparece em seus
textos, deixando-se levar apenas pela noção de branqueamento que lhe seria
invariavelmente subjacente. Seixas (2006, p. 3) vai ao ponto quando escreve

Nos anos setenta, esta obra [de Jorge Amado] conheceu verdadeiro
massacre, tanto do ponto de vista político quanto cultural. No Brasil, a
exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos, setores envolvidos com
questões raciais apontaram a valorização da mestiçagem no universo
de Jorge Amado como mistura impura, ou como apagamento da
pureza racial negra. [...] De um lado e do outro, o mito da pureza
étnica gera segregações. Não é exagero afirmar que a obra de Jorge
Amado chegou a ser rejeitada por duas razões contrárias: de um lado,
os feitores da pureza africana desconfiavam da construção romanesca
de uma civilização negro-mestiça (vendo na mestiçagem o
embranquecimento); do outro lado, arianos e quase-brancos não
toleravam a elevação do negro e do mestiço à categoria mítica de
herói incondicional (vendo na exaltação da mestiçagem a apologia de
raças até então ocupantes de espaços exclusivamente periféricos).
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Ao enfocar o mestiço, a literatura amadiana não o faz com o propósito de


desreferenciar a sua ancestralidade negra ou, muito menos, de negar a existência de
preconceitos raciais na sociedade brasileira. Risério (2007a, p. 65-6) nos ajuda a lançar
luz sobre a questão ao posicionar-se sobre a temática da mestiçagem.

Quando falo de mestiçagem, aqui, estou me referindo a um processo


biológico e ao reconhecimento social e cultural da existência e dos
produtos deste mesmo processo [...]. Porque mestiçagem, como disse,
não é sinônimo de congraçamento ou de harmonia. Mestiçagem não
significa abolição de diferenças, contradições, conflitos, confrontos,
antagonismos. Mestiçagem não implica fim do racismo, da violência,
da crueldade. E melhor prova disso é o Brasil. [....] País onde há
momentos em que o apartheid se sobrepõe brutalmente ao padê. Mas
constatar essas coisas não é o mesmo que fazer de conta que a
mestiçagem não existe.

Se tomarmos, em conjunto com a citação de Risério, Pinho (2004, p. 107) como


referência, para quem “é necessário lembrar que o que une os negros
transnacionalmente é a experiência do racismo e da opressão”, temos que não há
contrasenso imanente algum entre a mestiçagem, por si própria, e uma identidade negra
que funde no sujeito uma consciência dos processos de opressão aos quais é submetido
cotidianamente. Desta forma, o que possibilita que esta aparente contradição não o seja
é o fato de Archanjo compreender-se mestiço, se tomado como um exemplo da
realidade histórico-racial de formação do povo brasileiro; mas negro, em atitude
resistente de luta, dentro de uma sociedade que oprime sua identidade e os referentes
simbólicos que a constituem, como fica evidente na fala do próprio Archanjo.

- Sou um mestiço, tenho do negro e do branco, sou branco e negro ao


mesmo tempo. Nasci no candomblé, cresci com os orixás e ainda
moço assumi um alto posto no terreiro. Sabe o que significa Ojuobá?
Sou os olhos de Xangô, meu ilustre professor. Tenho um
compromisso, uma responsabilidade. (AMADO, 1971, p. 316).

Compromisso, responsabilidade. Percebemos, através destas duas palavras proferidas


por Archanjo a sua relação com o candomblé, arcabouço simbólico de uma
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ancestralidade africana recriada na Bahia, base de formação de uma identidade negra no


Brasil. Braga (1992, p. 14) é elucidativo nesta questão.

[...] o candomblé não representa tão somente um complexo sistema de


crenças alimentador do comportamento religioso de seus membros.
Ele constitui, na essência, uma comunidade detentora de uma
diversificada herança cultural africana que pela sua dinâmica interna é
geradora permanente de valores éticos e comportamentais que
enriquecem, particularizam e imprimem sua marca no patrimônio
cultural do país. E, diferentemente de outras formações religiosas,o
candomblé é uma fonte permanente de gestação de valores e de
promoção sócio-cultural que se sobrepõe à dimensão cultural-religiosa
strictu sensu, plasmando os contornos da identidade do negro no
Brasil.

Pedro Archanjo entende a si mesmo a partir do candomblé, pois, como já o escreveu


Luz (2003, p. 92), “os princípios e valores religiosos perpassam a vida do africano 2 de
tal modo que ele vive em estado de constante tensão dialética entre o mundo imanente e
o transcendente”. Neste sentido, o fato de Mestre Pedro ser filho de Exu (AMADO,
1971, p. 98) e também o de ser Ojuobá da casa de Xangô, como visto em sua fala
supracitada, põem em evidência que, não obstante declarar-se mestiço, Archanjo sabe-
se antes negro, posto que negra é a sua cultura, a sua base, o local do qual ele veio e a
partir do qual se reconhece e afirma. Este saber-se negro antes de qualquer outra
denominação reflete-se na responsabilidade da qual Pedro Archanjo se vê revestido,
posto que Ojuobá, os olhos do rei Xangô.
Como Ojuobá, é papel de Archanjo ser o primeiro a ver, perceber e saber. No
entanto, ter o conhecimento de algo e guardá-lo em um relicário só para si, sem usá-lo
em prol de sua comuidade, de seu povo, é o mesmo que não o ter. Ver e se calar, “Não é
para isso que tu é Ojuobá”, diz a Iyalorixá Majé Bassã (AMADO, 1971, p. 163) a um
Archanjo em submissão respeitosa à sua autoridade e sabedoria incontestes. Escolhido
pelo rei de Oyó para ser os seus olhos no aiyê 3 e, por isso, defensor de sua casa e de seu

2
Sendo o candomblé uma recriação do modo de ser no e compreender o mundo tipicamente africano de
base jeje-nagô, pode-se inferir que a mesma relação que o africano tem em relação à sua prática religiosa,
manteve-se no Brasil no adepto ao candomblé.
3
Mundo material
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povo, Ojuobá não foge ao seu destino e se faz presente em todas as instâncias de luta
por uma resistência física e cultural negra. É nesse sentido a sua afirmação

- Estamos numa luta, cruel e dura. Veja com que violência querem
destruir tudo que nós, negros e mulatos, possuímos, nossos bens,
nossa fisionomia. Ainda há pouco tempo, com o delegado Pedrito, ir a
um candomblé era o maior perigo, o cidadão arriscava a liberdade e
até a vida. O senhor sabe disso, já conversamos a respeito. Mas, sabe
quantos morreram? Sabe por acaso por que essa violência diminuiu?
Não acabou, diminuiu. (AMADO, 1971, p. 317).

Pedro Archanjo não é apenas portador de uma cultura, mas é um agente de


resistência desta mesma cultura, heroi do povo negromestiço soteropolitano, presente
em todos os raios de ação em que este povo busque justiça. Esta relação entre cultura e
resistência fica melhor explicitada ao analisarmos a cena em que Pedrito Gordo 4 é
expulso do terreiro de Procópio 5 ao qual tinha ido com a intenção de destruí-lo.
Por indispensável à sobrevivência de padrões culturais africanos em solo brasileiro,
assim como para uma identidade negra, é sintomático que o confronto final entre
Pedrito Gordo, terror dos negros da cidade, e a população negromestiça se dê em um
terreiro de candomblé. O toque dos atabaques conduzia a dança de Oxóssi, o caçador,
quando à chegada do delegado auxiliar e seus capangas. Ameaças de um lado,
resistência do outro. O delegado auxiliar, então, decide-se, sem muito pensar, pela
violência. Zé Alma Grande, o maior dos assassinos da escolta de Pedrito Gordo é o
primeiro a avançar contra os poucos presentes no Axé 6.

Contam que, nessa hora exata, Exu, de volta do horizonte penetrou na


sala. Ojuobá disse: Laroyê, Exu! Foi tudo muito rápido. Quando Zé
Alma Grande deu mais um passo em direção a Oxóssi, encontrou pela
frente Pedro Archanjo. Pedro Archanjo, Ojuobá, ou o próprio Exu

4
Referência a Pedro Gordilho, delegado auxiliar que entre os anos de 1920 a 1926 promoveu uma intensa
perseguição aos candomblés soteropolitanos.
5
Pai – de – santo real e de extrema importância na vida de Jorge Amado, sendo o primeiro a lhe dar um
título, ogã. “O citado babalorixá destacou-se na resistência contra a perseguição aos terreiros de
Candomblé da Bahia e, no romance Tenda dos Milagres, recebeu justa homenagem” (LEITE, 2008, p.
21).
6
Usado aqui como sinônimo para terreiro, em uma adaptação do termo Ilê Axé.
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conforme a opinião de muitos. A voz se abriu imperativa no anátema


terrível, na objurgatória fatal!
- Ogun kapê dan meji, dan pelu oniban! [...]
Quando Zé Alma Grande, cão de fila, assassino às ordens, homem de
toda confiança, virou Ogun e partiu para o delegado, Pedrito
necessitou do orgulho inteiro para erguer a bengala na última tentativa
de se impor. De nada serviu. Os pedaços do junco estalaram nos dedos
do encantado – cabeças de serpentes dirigidas contra o comandante da
cruzada bendita, da guerra santa. Não coube a Pedrito Gordo outro
recurso senão correr vergonhosamente, em pânico, gritando por
socorro, em direção ao automóvel veloz que o levaria para longe
daquele inferno de orixás desatados em milagres. (AMADO, 1971, p.
309 – 11). 7

A cena transcrita acima em dois recortes é, sem sombra de dúvidas, extremamente


rica para o contexto estudado. Ela simboliza a vitória do povo negromestiço contra a
violência institucional racista, representada pelo delegado auxiliar Pedrito Gordo,
viabilizada pela resistência heróica do candomblé, com atuação decisiva de Archanjo.
No dizer de Santana (2009, p. 40)

[...] é em Tenda dos milagres que Jorge Amado retoma, com novo
vigor, o tema da perseguição policial aos candomblés da Bahia e nele
realiza um feito surpreendente de catarse literária: o escritor vinga o
insulto do opressor e através de seus personagens [Archanjo em
destaque] promove um ato de justiça com força sobrenatural, em favor
do povo oprimido dos candomblés, ao sentenciar publicamente o seu
algoz, Pedrito Gordo, com as palavras mágicas com forte poder de
transformação [...].

Temos dois pontos a marcar na cena descrita acima. O primeiro diz respeito ao
sortilégio de ofó (SANTANA, 2009, p. 30), através do qual Archanjo faz com que Zé
Alma Grande vire no santo. Fragmento de um oriki ao orixá Ogun (SANTANA, 2009,
p. 40) ele representa uma sutileza fundamental na tessitura do contexto em que se dá a
vitória da cultura negromestiça sobre Pedrito Gordo. Ele, por si só, já é prova da força

7
Lühning (1995-1996, p. 197) em sua pesquisa sobre Pedro Gordilho escreve: “Jorge Amado, que aborda
o ‘reinado’ de Pedrito no seu romance Tenda dos Milagres, descreve uma cena (pp. 308-11) em que um
dos acompanhantes de Pedrito, na ocasião da batida, teria “dado santo” na casa de Procópio, e até
atentado contra o próprio delegado, o que teria levado ao já mencionado pedido de demissão. Outras
informações pessoais já contam que o próprio delegado teria “dado santo”, ou na casa de Procópio ou de
uma mãe-de-santo de nome ignorado”.
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de um saber que, atravessando tempos e mares ou enfrentando ameaças constantes de


extermínio, resistiu incólume em sua capacidade de encantamento oral. A resistência e,
por consequência, a vitória não ocorrem, nesta situação, por algo exterior à cultura que
resiste como, por exemplo, a produção científica, portanto escrita, de Archanjo, mas
por aquilo que há de mais seu, por aquilo que a pode identificar: o poder da palavra
expressa pela própria voz de quem o faz.
O segundo ponto a ser sublinhado nesta mesma passagem é a incorporação de Ogun,
orixá guerreiro, voltando-se contra as injustiças cometidas por Pedrito Gordo e a ele
declarando guerra, perseguindo e expulsando do Axé de Procópio, repleto de “orixás
desatados em milagres”. O narrado aí remonta à fala do próprio Pedrito Gordo quando
disse nunca ter visto milagre de orixá e que, no dia que o visse, suspenderia suas ações
contra o candomblé (AMADO, 1971, p. 306). Ogun é, em si, a representação deste
“milagre” que o delegado auxiliar tanto ansiava por ver e, este milagre é, em si, a
própria resistência de Ogun e de todos os outros orixás que, desatados em abundância
de milagres, dançavam vitoriosos ao som dos atabaques àquela noite.
Pela cultura a partir da qual Pedro Archanjo se define como sujeito de si e, ato
contínuo, por sua atuação fundamental, em frente ampla, pela resistência desta mesma
cultura, como lhe negar, então, uma identidade negra apenas pelo fato dele se dizer
mestiço?
André (2008, p. 127-8) aponta que “a ideologia do branqueamento é um
acontecimento que exigiu do negro uma negação de suas raízes africanas [...]”. Na
mesma linha, Munanga (2008, p. 75) coloca

A elite “pensante” do País tinha clara consciência de que o processo


de miscigenação, ao anular a superioridade numérica do negro e ao
alienar seus descendentes mestiços graças à ideologia de
branqueamento, ia evitar os prováveis conflitos raciais conhecidos em
outros países, de um lado, e, por outro, garantir o comando do País ao
segmento branco, evitando a sua “haitinização”.

Não é o caso aqui de citarmos os estudiosos acima para, em seguida, lhes negar
verdade naquilo que dizem, até mesmo porque concordamos com ambos. Sem dúvida,
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houve um projeto de branqueamento da população brasileira, pensado pelas elites


representadas em instituições oficiais do estado, que se daria através de um uso
ideológico do fato consumado da mestiçagem. Entretanto, o que tentamos evidenciar ao
longo de todo este texto – e também agora – é que a mestiçagem não traz,
necessariamente, em seu âmago a noção vexatória de produção de não-existências.
A primeira citação, de Maria da Consolação André, sobre uma instância da
mestiçagem, o branqueamento, é perfeitamente detectável em Tadeu Canhoto, filho-
afilhado de Pedro Archanjo que, dada a sua ascensão social, paulatinamente vai
reelaborando sua história e, ato contínuo, embotando as reminiscências dos tempos da
tenda dos milagres, de Pedro e Lídio, de sua gente negromestiça, como se embarcando
na não-existência promovida pelo passing as white 8 estadunidense. Entretanto, seria
forçoso ao extremo aplicá-lo a Pedro Archanjo, por tudo quanto já dito neste texto.
Kabengele Munanga, segunda citação, além de supor uma certa ingenuidade da elite
branca do país ao imaginar a supressão de conflitos através da mestiçagem – afinal não
há como dar outro nome senão ingenuidade, posto que a ideia de branqueamento pelo
viés da miscigenação é anterior à própria concepção da mestiçagem como ideologia das
elites 9 e, não obstante isso, não cessaram de ocorrer conflitos raciais no Brasil – coloca
como fato consumado a relação entre miscigenação e branqueamento. Caímos, portanto,
novamente, no mesmo problema da concepção supracitada de Maria da Consolação
André. Se esta relação entre mestiçagem e branqueamento é assim tão imanente, como
explicar Pedro Archanjo?
Evidentemente, pode ser usado contra nossa argumentação o fato de estarmos
tratando de uma obra de ficção, na qual a realidade pode ser manipulável, enquanto

8
“O passing as white é um fenômeno unicamente norte-americano. A pessoa tem que fingir que é branca.
E o faz às escondidas. Se descobrirem um ponto preto em sua genealogia, é desmascarada. Retorna ao
outro lado da linha de cor. Por isso, quem faz o passing é muitas vezes obrigado a desaparecer da vida de
sua família. A se afastar das pessoas e do lugar onde nasceu”. (RISÉRIO, 2007b, p. 108)
9
“Essa é uma parte da história. No entanto, é possível mostrar que o ideário do branqueamento já estava
socialmente bastante consolidado na formação social do país, ou seja, bem antes do momento em que os
governantes resolveram investir em programas de imigração européia. As raízes dessa concepção
ideológica remontam, no fundo, a um discurso religioso medieval” (HOFBAUER, 2007, p. 157)
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tanto André quanto Munanga estariam voltados para o objeto “verídico”, a realidade
inconteste do cotidiano brasileiro. Entretanto, este seria um artifício de deslocamento da
discussão para um outro campo com o objetivo de questionar a própria possibilidade da
literatura como um fator de entendimento da realidade social do país em todos os seus
meandros e em todas as suas reentrâncias. A literatura, porém, assim como documentos
históricos ou discursos políticos – ou até mais que estes – é representação, mesmo que
ficcional ou metafórica, de um tempo, de uma sociedade e, como tal, pode servir, sim,
como chave para compreendê-los. Neste sentido, acreditamos possível contruibuirmos
de algum modo para a discussão racial no Brasil, principalmente no tocante à questão da
mestiçagem, a partir da literatura amadiana; neste caso, em especial, Tenda dos
Milagres.

Conclusão

Hofbauer (2007, p. 184) diz que “não há consenso entre os especialistas sobre
constituir a democracia racial como um valor a ser preservado ou uma mentira a ser
denunciada”. Acreditamos que ambas, a preservação e a denúncia, devem se constituir
como fator do pensamento racial brasileiro. Há a necessidade sempre presente e
indiscutível de se questionar toda a produção de discurso que se baseie no mito como
uma realidade táctil, contribuindo assim para a consciência da opressão racial ainda
vigente, tanto no oprimido quanto no opressor. Problematizar o racismo ainda é uma
urgência nossa. Entretanto, é importante também guardarmos, não o mito, mas a
democracia racial como um sonho e um projeto de futuro, desta vez sem
branqueamentos ou opressões, como forma de construção de uma sociedade sem
barreiras raciais de quaisquer espécies. No nosso entender, se assim não o fizermos
estaremos concorrendo para uma sociedade sempre em conflito, segmentada.
Nesse sentido, Pedro Archanjo é a própria tradução do modo como pensamos esta
questão. Sua cultura, seus valores, sua religião, seu povo... enfim, sua identidade está
preservada, não obstante mestiço. Para Bacelar (2001, p. 120)
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Embora sobre a premissa da miscigenação harmonizadora, outra é a


perspectiva de Jorge Amado: são os dominados (o povo negro-
mestiço) que delineiam a correnteza da vida social da Bahia. Eles são
a bússola de navegação social dos sobrados e ruas da velha cidade. A
sua democracia racial, afirmadora do negro como principal e
preeminente personagem na construção do nosso processo
civilizatório aparece como desejo, vontade, premonição na busca de
uma sociedade igualitária e sem conflitos.

Entendemos Pedro Archanjo de forma dupla: tanto como um homem ao seu


tempo, portanto em necessidade constante de luta e resistência para manter as suas
tradições, agarrando-se em sua identidade como atitude política; mas, principalmente,
como um protótipo de um tempo futuro, embora algo ainda distante, um sonho de uma
sociedade em que as identidades já não mais precisem de quem as defenda, por
reconhecidas respeitosamente entre tantas e tantas outras que também seriam
respeitosamente reconhecidas, afinal, como já escrevera Jorge Amado (1971, p. 362)
“há de nascer, crescer e se misturar”.

Referências

AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. 7.ed. São Paulo: Editora Martins, 1971.

ANDRÉ, Maria da Consolação. O Ser negro: a construção da subjetividade em afro-


brasileiros. Brasília: LGE editora, 2008.

BACELAR, Jeferson. A hierarquia das raças: negros e brancos em Salvador.Rio de


Janeiro: Pallas, 2001.

BRAGA, Júlio. Candomblé: força e resistência. Revista Afro-Ásia. n. 15. p. 13-17.


1992.

HOFBAUER, Andreas. Branqueamento e democracia racial – sobre as entranhas do


racismo no Brasil. In: ANINI, Maria Catarina Chitolina (org). Por que “raça”? Breves
reflexões sobre a “questão racial” no cinema e na antropologia. Santa Maria: UFSM,
2007. p. 151-188.
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LEITE, Gildeci de Oliveira. Jorge Amado: ancestralidade à representação dos orixás.


Salvador: Quarteto Editora, 2008.

LÜHNING, Ângela. “Acabe com esse santo, Pedrito vem aí...” Mito e realidade da
perseguição ao candomblé baiano entre 1920 a 1942. Revista USP. n. 28. p. 194-220.
1995-1996.

LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. 2.ed.


Salvador: EDUFBA, 2000.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional


versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume,


2004.

RISÉRIO, Antonio. Mestiçagem em questão. In: ______. A utopia brasileira e os


movimentos negros. São Paulo: Ed. 34, 2007a. p. 39-68.

RISÉRIO, Antonio. Em busca de ambos os dois. In: ______. A utopia brasileira e os


movimentos negros. São Paulo: Ed. 34, 2007b. p. 91-122.

SANTANA, Marcos Roberto. Jorge Amado e os ritos de baianidade: um estudo em


Tenda dos milagres. Salvador: Aramefá, 2009.

SEIXAS, Cid. Jorge Amado e o jeito de ser mestiço. Seara Revista Virtual, Seabra, v. 1,
n. 1, p. 1-9, jan, 2006, disponível em < http://www.uneb.br/seara/antigo.htm> Acesso
em: 20.jan.2010
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MEMÓRIA E IMAGINÁRIO EM VIRGÍNIA VENDRAMINI: O SENTIDO DA


ARTE E O PROJETO POÉTICO-PLÁSTICO

Antonio Donizeti da Cruz (UNIOESTE)

Para o poeta Octavio Paz, a poesia é a Memória feito imagem e convertida em outra
voz. A poesia é sempre a “outra voz”, porque “é a voz das paixões e das visões; é de outro
mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade sem datas” (1993, p.
140). No dizer de Paz, os poetas têm sido a memória de seus povos, pois “cada poeta é uma
pulsão no rio da tradição, um momento da linguagem. Às vezes os poetas negam sua
tradição mas só para inventar outra” (1993, p. 108-109). A invenção lírica se projeta do
presente para o futuro. O poeta é ciente de sua tarefa: ser elo da corrente, uma ponte entre
o ontem e o amanhã. Entretanto, no findar do século XX, ele “descobre que essa ponte está
suspensa entre dois abismos: o do passado que se afasta e o do futuro que se arrebenta. O
poeta se sente perdido no tempo” (PAZ, 1982. p. 69). Nesse sentido, ao recriar sua
experiência, leva avante um passado que é um futuro. O tempo possui uma direção, um
sentido, ou seja, “ele deixa de ser medida abstrata e retorna ao que é: concretude e dotado
de direção. O tempo é um constante transcender” (PAZ, 1982. p. 69).
A função essencial do tempo na estruturação da imagem do mundo reside, conforme
Octavio Paz, no fato de que o homem, dotado de uma direção e apontando para um fim, faz
parte de um processo intencional (1991, p. 97). Os atos e as palavras dos homens são feitos
de tempo. Assim, a cronologia está fundamentada na própria crítica. Já a poesia é tempo
revelado, isto é, o enigma do mundo que se transforma em “enigmática transparência”. O
poeta diz o que diz o tempo, até quando o contradiz, pois ele é capaz de nomear o
transcorrer, e ainda, “torna palavra a sucessão” (PAZ, 1991, p. 98).
A poesia é potência capaz de dar sentido à vida. Ao buscar a essência da linguagem,
o artista realiza o poder mágico através das palavras enquanto mediação, comunicação e
exercício de construção de sentidos.
Para o filósofo Gaston Bachelard, o homem sonha através de uma personalidade de
uma memória muito antiga. Ele mira-se em seu passado, pois toda imagem para ele é
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lembrança. “As verdadeiras imagens são gravuras. A imaginação grava-as em nossa


memória. Elas aprofundam lembranças vividas, deslocam-nas para que se tornem
lembranças da imaginação” (1993, p. 181, p. 13. Grifo do autor). Nesse sentido, memória
e imaginação não se deixam dissociar, ou seja, ambas trabalham para o aprofundamento
mútuo. Elas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem.
“Uma memória imemorial trabalha numa retaguarda do mundo. Os sonhos, os
pensamentos, as lembranças formam um único tecido. A alma sonha e pensa, e depois
imagina” (BACHELARD, 1993, p. 181).
Conforme Bachelard, os poetas ordenam suas impressões associando-as a uma
tradição. O mundo é um espelho do nosso tempo e também a reação das nossas forças, isto
é, “se o mundo é a minha vontade, é também o meu adversário” (1989a, p. 165-166).
Resulta desse embate a compreensão do mundo mediante a surpresa das próprias forças
incisivas, nas quais consistem as renovações, pois é através da imaginação que o homem se
situa frente ao “mundo novo”, cujos detalhes predominam sobre o panorama, decorrendo
daí a expressão: “uma simples imagem, se for nova, abre o mundo” (1993, p. 143).
Gilbert Durand salienta que a memória tem “o caráter fundamental do imaginário,
que é ser eufemismo, ela é também, por isso mesmo, antidestino que se ergue contra o
tempo” (1997, p. 405. Grifo nosso.). É ainda “poder de organização de um todo a partir de
um fragmento vivido”. Essa potência “reflexógena” é “o poder da vida”, que por sua vez, é
capacidade de reação, de regresso. A organização que faz com que uma parte se torne
“dominante” em relação a um todo é a negação da capacidade de equivalência irreversível
que é o tempo. Por isso, a memória – bem como a imagem – é a magia dupla “pela qual um
fragmento existencial pode resumir e simbolizar a totalidade do tempo reencontrado”
(1997, p. 403). O ato reflexo é ontologicamente esboço da recusa fundamental da morte.
Longe de estar do lado do tempo, “a memória, como o imaginário, ergue-se contra as
faces do tempo e assegura ao ser, contra a dissolução do devir, a continuidade da
consciência e a possibilidade de regressar, de regredir, para além das necessidades do
destino” (DURAND, 1997, p. 403).
Para Gilbert Durand, “a memória, longe de ser intuição do tempo, escapa-lhe no
triunfo de um tempo ‘reencontrado’, logo negado. [...]. Longe de estar às ordens do tempo,
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a memória permite um redobramento dos instantes e um desdobramento do presente”


(1997, p. 401-402. Grifo do autor). Assim, ela tem o poder de dar “espessura inusitada ao
monótono e fatal escoamento do devir, e assegura nas flutuações do destino a sobrevivência
e a perenidade de uma substância” (1997, p. 402).
Ao realizar uma comparação entre a nostalgia da experiência infantil e a nostalgia do
ser, Gilbert Durand afirma que,

A memória pertence de fato ao domínio do fantástico, dado que organiza


esteticamente a recordação. É nisso que reside a ‘aura’ estética que nimba
a infância; a infância é sempre e universalmente recordação da infância, é
arquétipo do ser eufêmico, ignorante da morte, porque cada um de nós foi
criança antes de ser homem... Mesmo a infância objetivamente infeliz ou
triste de um Gorki ou de um Stendhal não pode subtrair-se ao
encantamento eufemizante da função fantástica. A nostalgia da
experiência infantil é consubstancial à nostalgia do ser. [...] qualquer
recordação da de infância, graças ao duplo poder de prestígio da
despreocupação primordial, por um lado, e, por outro, da memória, é de
imediato obra de arte. (DURAND, 1997, p. 402)

Essa afirmativa de Durand pode ser verificada nos textos de Virgínia Vendramini,
quando aborda a temática da infância enquanto fator não só de (re)memorização nostálgica
do passado, mas também como desdobramento de imagens que convergem para esse
período da vida, pois os elementos catalisadores – infância e memória – dão formas
estéticas à relação e confluências com e na própria obra de arte literária.
Frente às “faces do tempo” e à cristalização da “memória”, o homem se vê isolado,
ilhado, mesmo estando rodeado por uma multidão. Mergulhado em um mundo de imagens e
realidades que dão uma configuração à própria vida, ele é sabedor da sua condição
existencial: a solidão habita a sua vida. Ou seja, ela é experiência viva que se concretiza não
só enquanto recolhimento, mas, acima da tudo, como sentimento intrínseco frente à
sensação de isolamento e vazio vivenciado pelo sujeito humano.
Em Amor, poesia, sabedoria, o filósofo Edgar Morin define a poesia como amor,
estética, gozo, prazer, participação e, principalmente, vida (1998, p. 59). Ela é, igualmente,
a manifestação de possibilidades infinitas da indeterminação humana. Já a criação poética
tem o poder de reativar os conceitos analógicos e mágicos do mundo e, também, despertar
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as forças adormecidas do espírito, com o intuito de reencontrar os mitos esquecidos. Para o


filósofo, a poesia não é somente um modo de “expressão literária”, mas um “estado
segundo” vivenciado pelo sujeito e que deriva da participação, da exaltação, embriaguez e,
acima de tudo, “do amor, que contém em si todas as expressões desse estado segundo. A
poesia é liberada do mito e da razão, mas contém em si sua união” (MORIN, 1998, p. 9).
Essas duas forças são capazes de realizar a grande transformação vital, quer dizer, o amor
se liga à “poesia da vida”. O filósofo ainda complementa:

A vida é um tecido mesclado ou alternativo de prosa e poesia. Pode-se


chamar de prosa as atividades práticas, técnicas e materiais que são
necessárias à existência. Pode-se chamar de poesia aquilo que nos coloca
num estado segundo: primeiramente, a poesia em si mesma, depois a
música, a dança, o gozo e, é claro, o amor. (MORIN, 1998, 59-60)

Em relação à figura do poeta, Morin destaca que este é portador de uma


competência plena, “multidimensional”, pois sua mensagem poética tem a capacidade de
reanimar a “generalidade adormecida”, ao mesmo tempo em que “reivindica uma harmonia
profunda, nova, uma relação verdadeira entre o homem e o mundo” (1998, p. 158).
A linguagem poética é por natureza diálogo. É social porque envolve quem fala e
quem ouve. A palavra que o poeta inventa é a de “todos os dias” e faz parte de nosso ser,
quer dizer, “são nosso próprio ser. E por fazerem parte de nós, são alheias, são dos
outros: são uma das formas de nossa ‘outridade’ constitutiva. [...] A palavra poética é a
revelação de nossa condição original porque por ela o homem, na realidade, se nomeia
outro, e assim ele é ao mesmo tempo este e aquele, ele mesmo e o outro” (PAZ, 1982, p.
217).
Memória e imaginação poética estão interligadas na obra de Virgínia Vendramini.
Com suas voz lírica singular, a poeta elabora seus textos/poemas dando-lhes sentidos,
formas e um colorido singular, que exprimem um “sentimento do mundo”, em que fica
evidente a temática social edificada no poder das palavras e na força da linguagem poética.

A Artista da Palavra e das Cores


Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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A artista-poeta Virgínia Vendramini nasceu em Presidente Prudente (SP). Foi para o


Rio de Janeiro aos dezesseis anos, para estudar no Instituto Benajamin Constant, escolar
especializada na educação de Portadores de Necessidades Especiais (cegueira). Cursou, em
seguida, Português e Literatura na Universidade Gama Filho. Tem quatro livros publicados:
Rosas não (1995); Primavera urbana (1997); Hora do arco-íris (1998), que recebeu o
Prêmio Murilo Mendes no Concurso Livros Inéditos. Em 1999 publica Matizes. Escreve
desde a juventude e preocupa-se mais com a expressão do sentimento do que com os
aspectos da métrica e da rima. Cria e confecciona tapetes que expõe em mostras coletivas e
individuais. Seu trabalho com cores e formas está baseado na memória que guarda dos anos
de infância, quando ainda tinha um “pequeno resíduo de visão” (in Matizes, 1999).

Redes de imagens poéticas: palavra e memória lírica

Memória e imaginação poética são as forças que movimentam os poemas, as


pinturas e as imagens dos tapetes confeccionados por Virgínia Vendramini, pois através das
reminiscências, o sujeito lírico recorda o tempo da infância, no qual centra as suas
aspirações mais ternas. No texto, memória e imaginário são forças mediadoras e potências
capazes de interligar os fatos, as pessoas e suas ações e as coisas do mundo.
Os poemas de Virgínia Vendramini registram as sutilezas de um fazer poético
embasado na força da linguagem, na memória e na concretização de um dizer que aponta
para imagens visuais, claras, momentos de observação atenta de um eu em sintonia com o
mundo circundante.
Virgínia Vendramini, no poema “Gula”, do livro Matizes, faz um contraponto entre
passado e presente, em que o eu lírico rememora o tempo distante, das coisas mais ternas e
“doces” da infância:

Ainda guardo na boca


O gosto de fruta verde
Comida quente do sol.
Não havia defensivos...
Apenas um pouco de pó...
Bicadas de passarinhos...
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Ainda guardo a cobiça


Pelas mangas e goiabas
Distantes de minha gula.
Belas, nos galhos mais altos...
E guardo no corpo inteiro
Fome e sede insaciáveis
Das coisas doces da infância,
Delícias que são saudades.
(VENDRAMINI, 1999, p. 14)

A memória é a tônica que movimenta o poema, pois através das reminiscências, o


sujeito lírico recorda o tempo da infância, no qual centra as suas aspirações mais ternas. No
texto, o tempo e a memória são forças mediadoras e potências capazes de interligar os
fatos, as pessoas e suas ações, bem como as coisas do mundo.
O texto “Fósforos de cor” apresenta o tema da infância e das reminiscências, em que
as palavras ganham um colorido marcante mediante à memória lírica do sujeito da
enunciação:

Na sombra amiga da noite fria


Pequena chama verde-azulada,
Cintilações vermelho-douradas.
E chuva de estrelinhas de prata.

Um palito riscado... um outro...


Segundos de cor e claridade,
Luminosos cenários de sonhos
Depressa desfazendo-se em nada.

Ficava tão diferente o mundo


À luz dos fósforos coloridos...
Mas o tempo mudou os brinquedos,
Deixou as sombras, levou os sonhos...
(VENDRAMINI, 1999, p. 12)

Através das reminiscências, o sujeito lírico recorda o tempo da infância, no qual


centra as suas aspirações mais ternas em contraponto ao momento de reflexão sobre o
passado. O tempo e a memória são forças capazes de interligar os fatos, as pessoas e as
aspirações do eu-lírico em relação às mudanças vividas e as experiências pessoais. O tempo,
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nos versos de Vendramini, aparece de maneiras distintas: tempo existencial e tempo da


memória. Ao historicizar e (re)presentificar o tempo vivido, o sujeito poético mostra que,
enquanto processo de transição, a temporalidade e a historicidade dos fatos e
acontecimentos são matérias de preocupação embasadas nas circunstâncias da vida concreta
e do mundo imaginário.
No poema intitulado “Em tom menor”, evidencia-se o tema da memória relacionado
à imagem do piano antigo, que ficou gravado somente na memória. Ao contrapor o tempo
passado com o momento presente, o eu-lírico relembra com nostalgia as canções de
outrora:

No silêncio do piano antigo


Que perdura apenas na memória
A saudade se exercita em notas tristes
Nas escalas em tom menor.

Depois a melodia simples


Dedilhada devagar, ao acaso,
Entre pausas e compassos de espera,
Busca harmonia na perfeição do acorde.

E no silêncio do piano antigo


Que só ressoa na memória
A saudade repete incessante
Suas canções prediletas...
Amor – seu eterno tema.
(VENDRAMINI, 1999, p. 32)

O ato de recordar é elemento inerente ao fazer poético. Ao descrever


acontecimentos vivenciados em um tempo pretérito, o sujeito lírico rememora os
acontecimentos que ficaram distanciados, mas que no momento presente o sujeito da
enunciação reaviva na memória o conhecimento anterior e vivências de um tempo que faz o
eu lírico sentir saudade das coisas e acontecimentos que ficaram distante no tempo, ao
relembrar as canções prediletas ouvidas no piano. O “tom menor” aponta para as notas
tristes e para o silêncio do piano.
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A imagem do piano “sempre calado”, também aparece nos versos do poema


“Móveis e utensílios”, em que privilegia-se as imagens do tempo e as reminiscências do
sujeito lírico:

Sala de jantar em madeira escura


Com flores e com frutas entalhadas,
Cristaleira plena de porcelanas
Para serem vistas, jamais usadas.

Havia um piano sempre calado


E muitos álbuns de fotografia...
Nas estantes quantos livros fechados,
Com leitura que a Igreja proibia...

Havia bibelôs, estatuetas,


Um carrilhão que nunca se calava,
Anunciando nos quartos de hora
Que o tempo urgia, que a vida passava...

Minhas lembranças passeiam incautas


E tropeçando em vasos de saudade,
No corredor escuro da memória
Vou derramando em versos minha história...

História simples de uma casa antiga


Que abrigou sonhos, mágoas e brinquedos...
Casa velha que se perdeu no outrora,
Mas que dentro de mim vive em segredo.
(VENDRAMINI, 1999, p. 47)

As imagens presentes no poema – mediante as múltiplas categorias de percepção do


mundo – instauram uma operacionalização que remetem para uma (re)memorização dos
acontecimentos passados. As imagens da casa antiga, com seus móveis e utensílios, se
justapõem às lembranças do momento presente, vivenciadas pelo eu lírico, que constrói sua
história a partir das sensações que afloram mediante as lembranças que “passeiam incautas”
e tropeçam em “vasos de saudades, como diz o sujeito da enunciação. O olhar que se volta
para as rememorações vividas anteriormente acentua o poder das imagens e seu poder de
simbolização, pois no dizer de Jean Davallon, “a imagem é antes de tudo um dispositivo
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que pertence a uma estratégia de comunicação: dispositivo que tem a capacidade, por
exemplo, de regular o tempo e as modalidades de recepção da imagem em seu conjunto ou
a emergência da significação” (DAVALLON. In: PAPEL da memória, 1999, p. 30. Grifo
do autor). Constata-se, que as afirmações do autor vão ao encontro das correspondências
imagéticas que aparecem no texto de Vendramini. As imagens, presentes no texto, têm o
poder de (re)configurar os acontecimentos a partir de uma observação atenta do sujeito
poético, que registra o seu “estar no mundo” ao “rememorar o passado”. Daí a força da
imagem enquanto “um operador de memória no seio de nossa cultura” (1999, p. 30), como
afirma Davallon.
Na criação literária a poeta Virgínia Vendrami (re)inventa mundos e dá sentido à
vida através das palavras. Assim, a palavra-memória é uma força que impulsiona a poeta a
atingir seus sonhos, objetivos e realizações.
Palavra poética e memória são elementos basilares na poesia de Virgínia
Vendramini. Ao elaborar uma poiesis alicerçada em um mundo de (re)significações, a poeta
realiza um fazer poético direcionado à condição humana e ao sentido de transitoriedade.
Os textos de Virgínia Vendramini – lapidados no cinzel da memória – instauram um
procedimento poético em que a palavra poética tem o poder de despertar no leitor uma
atenção voltada para as coisas mais simples, sensíveis, pois a linguagem é sinal de vida e
permanência.

Referências

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. São


Paulo: Martins fontes, 1989a.
BACHELARD, Gaston. A chama de uma vela. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989b.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
BOSI, Ecléa (1994) Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia
das Letras.
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DAVALLON, Jean. A imagem, uma arte da memória? In: PAPEL da memória / Pierre
Achard... [et al.]; tradução e introdução de José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à
arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Ensino
Superior).
MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Trad. Edgard de Assis Carvalho. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1998.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982
(Coleção Logos).
PAZ, Octavio. Convergências: ensaios sobre arte e literatura. Trad. Moacir Werneck de
Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo. Siciliano, 1993.
ROSA, António Ramos. O conceito de criação na poesia moderna. COLÓQUIO/LETRAS,
Lisboa, n. 56, julho, 1980.
VENDRAMINI, Virgínia. Matizes. Maricá, RJ: Blocos, 1999.
_____. Primavera urbana. Rio de Janeiro: Blocos, 1997.
_____. Rosas não. Rio de Janeiro, 1995.

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O SERTÃO GLOBALIZADO EM GALILEIA, DE RONALDO CORREIA DE


BRITO

Antônio Fernando de Araújo Sá (UFS)

“O sertão a gente traz nos olhos, no sangue, nos cromossomos.


É uma doença sem cura”
Ronaldo Correia de Brito (2008a, p. 19)

Pensar o sertão na contemporaneidade faz-nos retomar a tradição intelectual dos


séculos XIX e XX, que o coloca como síntese do diverso histórico, geográfico,
simbólico, natural e cultural. Considerada como uma expressão da brasilidade, a noção
de sertão é, ao mesmo tempo, realidade e metáfora; é abrangente e circunscrita.
Abrangente pela largueza de possibilidades, circunscrita porque pertence à cultura
brasileira (SHIAVO, 2007, p. 41-44). Como uno e múltiplo, o sertão atravessa a
literatura e a história brasileiras, reaparecendo todas as vezes que há uma crise profunda
da nossa vida nacional, voltando-se à alma coletiva como uma agulha imantada para o
polo magnético (CRUZ COSTA, 1967, p. 34).
Neste início do século XXI não foi diferente. O sertão está presente nas diversas
imagens cinematográficas e representações literárias como um topos do imaginário
social, tornando-se uma experiência que compõe um sistema literário, iconográfico e
sonoro, composto tanto pela dramaticidade das relações com a natureza, quanto pela
carga dramática dos episódios históricos ali ocorridos (XAVIER, 2002).
Ao lado da revitalização de estudos históricos, sociológicos e antropológicos, é
perceptível uma vigorosa releitura literária do sertão. Ainda que, nos últimos tempos, a
literatura brasileira tenha adquirido, cada vez mais, um cunho acentuadamente urbano e
até metropolitano, com a conseqüente retirada do regionalismo literário do centro da
cena, há uma representativa tendência de reescritura da tradição literária do sertão,
oriunda dos trabalhos seminais de Os Sertões, de Euclides da Cunha, Grande Sertão:
Veredas, de Guimarães Rosa e Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Uma das principais
preocupações dos novos escritores é demonstrar que é possível trilhar, dialogando com
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a escrita rosiana, “o caminho da literatura ambientada no campo e nas pequenas


cidades” como “legítimo fundador da nossa contemporaneidade” (DANTAS, 2002, p.
392).
É dessa metamorfose transcendente da matéria do sertão, misturada à secura da
escrita, que encontramos a obra romanesca de Ronaldo Correia de Brito, Galiléia
(2008a). Nossa proposta é estudar, por meio deste livro, a revitalização da temática
sertaneja na atual produção cultural, estabelecendo um diálogo com o mundo
globalizado, em que a luta constante entre a tradição e a modernidade transborda no
cotidiano citadino do sertão nordestino.
Percebe-se, exemplarmente, neste texto literário a dificuldade de se determinar o
sertão hoje, quando as identidades que o definem encontram-se diluídas e os postulados
culturais são atualizados, nas releituras da tradição literária do sertão. Como noção que
se atualiza na contemporaneidade, o sertão dialoga com “categorias de uma cultura
historicamente diferenciada (e que se diferencia historicamente a cada dia) mediante
estruturas sociopolíticas e econômicas” (VICENTINI, 2007, p. 187-196).
Nascido no sertão dos Inhamuns, Ronaldo Correia de Brito dialoga com as
características identificatórias do discurso sobre o nordeste brasileiro - seca, migração e
misticismo -, trilhando um caminho desmistificador, questionando as permanências e as
mudanças culturais no sertão nordestino. Segundo o narrador, sua viagem ao sertão o
faz rever dois mitos sertanejos: o do vaqueiro macho, encourado, e o cavalo das
histórias de heróis, quando se puxavam bois pelo rabo. No sertão contemporâneo, ele
encontra uma mulher guiando uma motocicleta, com uma velha na garupa e tangendo
três vacas magras (BRITO, 2008a, p. 8).
Em sua narrativa, os personagens são complexamente urbanos num sertão sem
endereço certo, que pode estar em qualquer lugar. De certa forma, o escritor recoloca,
em outras bases, a metáfora de Guimarães Rosa de que o sertão está em toda parte. Por
outro lado, como o Rosa da novela Dãolalalão (MENESES, 2008, p. 255-272), Brito
constrói seu romance em diálogo com o “grande código” da literatura ocidental, a
Bíblia, moldando personagens que habitam um sertão mítico e, ao mesmo tempo, atual,
cujas vidas seguem trajetórias próximas as dos personagens bíblicos citados nos livros
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de Jó, Davi e Esaú. Em determinada passagem do livro, Adonias, o personagem-


narrador do romance, coaduna esta assertiva, afirmando que sua avó nunca o perdoou
por levar tão a sério a imitação das Escrituras (BRITO, 2008a, p. 222).
Fato e ficção entremeados, o sertão imemorial, fusão entre Oriente e Ocidente, é
representado muito mais próximo do mito do que da história. Contudo, por meio da
realidade mítica sertaneja, podemos identificar a própria organização social brasileira,
em que o sertanejo vive sua tragédia histórica e cotidiana. Como lembra Victor
Leonardi, muitas vezes as narrativas sertanejas revelam aos pesquisadores, por meio da
ficção, “aspectos da história política e cultural do Brasil que outras formas de
‘aproximação do real’ ainda não haviam possibilitado” (LEONARDI, 1996, p. 309).
Como a história e a literatura nascem do labirinto da criatividade e da invenção, o que é
necessário evitar é o reducionismo simbólico tão comum nas análises idealistas da
história cultural.
No romance em questão, notamos a intervenção da história na literatura, quando o
narrador combina, criativamente, fato e ficção na trajetória da família Rego Castro no
sertão do Inhamuns. Essa leitura, sem determinar fronteiras entre literatura e história, o
aproxima do romance pós-moderno brasileiro. Vemos aqui a presença marcante da
intertextualidade, isto é, do diálogo ou cruzamento de vários textos, aproveitando-se
intencionalmente de obras do passado. Às vezes, o romance se aproxima do relato
jornalístico em que a descrição denunciadora da realidade sertaneja contemporânea se
sobrepõe à poética literária. Ao mesmo tempo, a literatura dita pós-moderna preocupa-
se com o presente, sem projeção no futuro, um presente marcado pela negatividade.
Também associada ao universo fragmentado do mundo contemporâneo, é perceptível
nessa literatura uma montagem narrativa próxima do cinema, em que o leitor chega ao
sentido do conjunto, associando traços semânticos comuns aos fragmentos (PROENÇA
FILHO, 1988).
Imerso no debate literário contemporâneo sobre o regionalismo literário, Adonias se
posiciona, de forma crítica, ao personagem Salomão, que encarna o colecionador de
tudo o que se refere ao mundo sertanejo, folclore e cultura popular. Este personagem
tem orgulho de conhecer a heráldica sertaneja, os brasões, ferros de marcar boi, histórias
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familiares. Tais coisas têm pouco valor para Adonias, pois ele vaga “numa terra de
ninguém, um espaço mal definido entre campo e cidade” (BRITO, 2008a, p. 160), ou
seja, sente-se estrangeiro no sertão ou na cidade.
Como “estrangeiro na própria terra”, Adonias experimenta a idéia de entre-lugar,
que é a busca de uma terceira margem, um caminho do meio, consistindo no
procedimento do deslocamento, do nomadismo, em que o projeto identitário possa
nascer da tensão entre o apelo pelo enraizamento e a tentação da errância (HANCIAU,
2005). “Sou instável”, afirma o personagem-narrador, “vario ao sabor do Aracati, o
vento que muda do lugar tudo o que existe. Não teria coragem de viver como o tio,
cavando a terra seca, semeando na pedra e esperando a colheita” (BRITO, 2008a,
p.171).
Paradoxalmente, há certa condescendência do personagem-narrador para com o tio
Salomão, de reconhecer sua erudição solitária e seu esforço em busca do que é
permanente ante ao furor das mudanças, de admirá-lo por tentar estabelecer no presente
um caminho para ele e para o seu mundo sertanejo. Entretanto, a personagem se afirma
como “intelectual pós-modernista desconfiado da cartilha do tio, temeroso de que ele
me [o] transformasse em mais um talibã sertanejo, desses que escrevem genealogias
familiares e contam causos engraçados” (BRITO, 2008a, p. 162-163).
Contudo, ao assumir uma postura pós-modernista, Adonias também não quer voltar
ao Recife, prefere o espaço neutro, “um caminho que me leve a lugar nenhum”
(BRITO, 2008a, p. 228). É nessa condição pós-moderna que o romance termina, quando
o personagem, ao viver a Festa de São Gonçalo, em Russas, no Ceará, entre bebedeira e
motos, encontra-se sozinho na praça e o mundo perde o significado por completo.
Sintomaticamente, Adonias recorre sempre ao seu celular para falar com sua família
em Recife, mas durante sua permanência em Galiléia ele não funciona. Sua desconexão
com o mundo urbano, num primeiro momento, torna-o ansioso e o leva a tomar
tranquilizantes, mas, depois, parece que se adapta às questões familiares, ainda que de
modo crítico e, às vezes, mordaz.
Como aponta Homi Bhabha (2003, p. 68), o Terceiro Espaço, “que embora em si
irrepresentável, constitui as condições discursivas de enunciação que garantem que o
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significado e os símbolos da cultura não tenham unidade ou fixidez primordial e que até
os mesmos signos possam ser apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro
modo”. Pensamos que Ronaldo Correia de Brito explicita essa postura, quando afirma
que, em sua narrativa, o “sertão é o espaço de memória confundido com o urbano. É o
melhor lugar para acessar a internet, porque as lan houses cobram apenas cinquenta
centavos por hora”. A partir de impressões visuais, o escritor tematiza o mundo
suburbano chamado sertão, tão real ou abstrato como o tempo (BRITO, 2008b, p. 10).
A escrita labiríntica de Brito busca, assim, superar a dicotomia campo-cidade tão
marcante na tradição literária sobre o sertão, aproximando-se da proposta de
“desconstrução” efetuada por Jacques Derrida, no sentido de questionar os dualismos
hierárquicos, numa atitude de crítica permanente (PERRONE-MOISÉS, 2001).
Não seria aqui uma crítica ao trabalho intelectual dos movimentos regionalistas e
armoriais, com sua proposta essencialista de fetichização dos traços culturais
nordestinos? Certamente. A representação quase medieval e feudal da sociedade e da
cultura nordestinas tem tido um forte poder de permanência, atravessando desde a
historiografia, a obra literária e teatral de Ariano Suassuna, a cultura popular, com a
literatura de cordel, até chegar à cultura de massa, através da história em quadrinhos de
Jô Oliveira e da música do Cordel do Fogo Encantado, inspirada nos poetas populares.
Essa associação do nordeste ao passado medieval da Península Ibérica se faz presente
no romance, quando tio Salomão formula as lendas da família Rego Castro, que
remetem ao passado ibérico e holandês, do criptojudaísmo português. A postura crítica
de Adonias diante da imagem do sertão medieval o coloca contra a sobrevivência
simbólica das oligarquias nordestinas postas em xeque desde os anos 1930 (ZAIDAN
FILHO, 2001, p. 11-24).
Contudo, paradoxalmente, o romance não deixa de retomar a valorização do passado
do sertão, entendido como tradição, na busca de uma identidade que nos una, a partir da
autenticidade dos valores culturais sertanejos, como podemos ver nesse trecho:

O sertão é o Brasil profundo, misterioso, como o oceano que os argonautas


temiam navegar. Chega-se a ele acompanhando o curso dos rios, perdendo
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a memória do litoral. Os ingleses chamam-no backlands, terras de trás


(BRITO, 2008a, p. 225).

Essas críticas de Adonias ao tio Salomão parecem ceder, noutro momento, ao peso
histórico da cultura sertaneja, como registrado neste trecho do romance:

Depois de viver em outras sociedades, de reconhecer o esforço que


elas fizeram para se diferenciar do que nós somos, voltamos à
barbárie e praticamos os mesmos atos de sempre (BRITO, 2008a, p.
143).

A literatura brasileira contemporânea tem incorporado personagens marginais da


história brasileira em suas narrativas, trazendo à tona múltiplos atores e identidades
sociais. Como nas obras de Francisco Dantas, as vozes marginais dos sertanejos
aparecem no romance em análise. Apropriando-se, criticamente, da tradição literária
nordestina, Brito inclui a presença indígena em sua narrativa, partindo da imagem do
caboclo integrado à sociedade sertaneja, destituído de sua cultura e de seus valores
morais. Ao mesmo tempo, as marcas identitárias que identificam o personagem Ismael,
oriundo de Barra do Corda, no Maranhão, tornam-se um peso na sua vida errante. Filho
bastardo de Natan, o avô o traz para viver na fazenda Galiléia como filho. Emigrado
para a Noruega, convidado por um casal de catequistas, Ismael identifica naquele povo
semelhanças com os sertanejos, que se aproxima, paradoxalmente, dos atributos
essencialistas presentes na caracterização do sertanejo no discurso regionalista:

A Noruega é um sertão a menos trinta graus. As pessoas de lá também


são silenciosas, hospitaleiras e falam manso. Habituaram-se aos
desertos de gelos, como nós à caatinga. A comparação parece sem
sentido, mas eles também olham as extensões geladas, como olhamos
as pedras (BRITO, 2008a, p. 73).

Igualmente, o livro traz uma epifania do feminino dentro do mundo marcadamente


masculino do sertão, onde a hierarquia da masculinidade e o patriarcalismo revelam a
permanência do arcaísmo sertanejo. O encontro de Adonias com a fotografia de sua avó
de pés descalços revela essa força feminina subterrânea presente no romance. Essa
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percepção do narrador pós-moderno sobre os novos tempos pode ser percebida pela
emergência da mulher no cenário sertanejo, como é o caso de “Duas mulheres [que]
tangem o gado numa motocicleta. (...) O poder masculino cede lugar ao feminino”
(BRITO, 2008a, p. 127). Os tempos são outros e a antiga ordem patriarcal é
questionada, quando homens e mulheres se ocupam dos mesmos afazeres.
Ao mesmo tempo, o personagem Davi assume frente a Adonias sua condição de
homossexual, numa carta em que descreve suas aventuras em Nova Iorque e Paris. O
modo de vida cosmopolita se choca com os antigos valores sertanejos. Isto é perceptível
na aversão de Adonias ante os trechos sobre Guilherme, estudante de jornalismo com
quem Davi manteve uma “relação amorosa que por sorte não terminou em assassinato”
(BRITO, 2008a, p. 185).
A superação do silêncio sobre a homossexualidade no sertão por parte da literatura
de Brito pode ser considerada um sintoma da reelaboração discursiva do nordestino,
definido como o macho por excelência, homem viril, forte, destemido e violento. Davi é
a antítese dessa representação; frágil, ele representa a crise da masculinidade tradicional
no seio da família patriarcal dos sertões do Inhamuns (ALBUQUERQUE JR., 2008).
Segundo o narrador, a nova geração de contadores de histórias, ao invés da épica
sertaneja, se pauta agora na pornografia, como nas cartas de Davi. Talvez a resistência
do avô Raimundo Caetano em morrer fosse motivada pela não aceitação às
transformações do modo de vida sertanejo.
O sertão como espaço do “reino do fantástico e do mítico” (CRISTÓVÃO, 1993-
1994, p. 43) aparece no diálogo entre Adonias e Donana, esposa assassinada do seu tio
Domísio. A presença das almas penadas compõe o conjunto de crenças sertanejas que se
manifestam mesmo no personagem criado numa cultura cosmopolita, como é o caso do
médico Adonias.
A mitologia presente na história da família Rego Castro é moldada pela tradição oral,
contrapondo-se à perspectiva iconoclasta da historiografia: “não somos historiadores, e
sim fabuladores” (BRITO, 2008a, p. 27). Aqui vemos a importância da dimensão das
“memórias partilhadas” para a produção de narrativas faladas ou escritas sobre o
passado, em que a tradição oral é tomada como patrimônio cultural, pois é pela palavra
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falada e cantada que se transmite de geração a geração a soma de conhecimentos sobre a


natureza e a vida, os valores morais da sociedade, a concepção religiosa do mundo, o
relato dos eventos passados ou contemporâneos, a lenda, a poesia. Nas conversas
familiares, misturam-se “as falas, nunca sabemos se alguém sopra em nossos ouvidos o
que vamos dizer” (BRITO, 2008a, p. 115). Entretanto, Adonias interpela, ao longo do
romance, essa própria tradição oral, numa postura iconoclasta que o aproxima do
distanciamento do historiador, quando tio Salomão, com base na análise documental,
negou qualquer traço judaico à família Rego Castro.
Por fim, também em diálogo com tradição intelectual sobre o sertão, a narrativa de
Ronaldo Correia de Brito exalta a transitoriedade do sertão, onde seres e coisas
sertanejos podem transformar-se, subitamente, em seus próprios opostos. Um exemplo
notório desse discurso é o filme de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964), e o provérbio popular “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. A
historiografia também ajudou a compor essa mitologia do sertão, através do livro Os
Sertões (1902), de Euclides da Cunha, quando viu-se forçado a matizar as teorias
racistas e positivistas então em voga, tratando o sertanejo não como degenerado, mas
como um forte. Desse modo, “o sertão de Euclides também é o das inversões colossais,
onde pacíficos sertanejos podem se transformar em facínoras perigosos, e vice-versa”
(AMADO, 1995, p. 65).
Ponto de partida para qualquer ideia sobre o sertão, a visão euclidiana acaba por
colocá-lo como

(...) tudo aquilo que está fora da escrita, da história e do espaço da


civilização: terra de ninguém, lugar da inversão de valores, da
barbárie e da incultura. São territórios misteriosos, fora da história e
da geografia, que não foram mapeados de forma sistemática. São
regiões à margem da empresa escritural e discursiva (VENTURA,
1998, p. 135).

A imagem da transfiguração do sertão presente na obra euclidiana reaparece no texto


de Brito, como na passagem em que se registra que os “matos ficam verdes de repente”
(BRITO, 2008a, p. 226). Contudo, a plantação de maconha substituiu o algodão e a
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violência permanece agora com “bandidos armados de rifles, em camionetas


importadas” (BRITO, 2008a, p. 9).
Como visto, o romance de Ronaldo Correia de Brito nos proporciona debater como a
literatura reconstrói a memória regional em tempos pós-modernos. O caráter
performativo de sua escrita mostra como o diálogo com o passado do sertão precisa ser
continuamente recriado para que se possa dar um sentido à ordem presente. Revisitar o
sertão em tempos de globalização traz reflexões sobre as permanências culturais do
arcaísmo patriarcal, bem como a proeminência do grande código da literatura ocidental,
a Bíblia, para se escrever as tragédias sertanejas. Apesar das transformações culturais
que tentam superar o patriarcalismo ainda hegemônico, o livro demonstra que a
violência como código de honra ainda se mantém neste sertão pós-moderno, como se
observa no trágico assassinato de Ismael.
Neste momento em que a compressão do espaço-tempo torna-se uma característica
marcante da modernidade tardia ou pós-modernidade, o que vemos na representação do
sertão contemporâneo é que a tese euclidiana sobre o suposto isolamento cultural para
se pensar o sertão encontra-se, definitivamente, ultrapassada pela diluição entre as
fronteiras entre cidade e campo e a marcante presença das novas tecnologias nos rincões
sertanejos. É o que nos conta este narrador em constante mobilidade, entre notebooks,
celulares, lan-houses e carros de boi e paus-de-arara nos sertões dos Inhamuns.

Referências

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identidade regional. Recife: Edições Bagaço, 2008.
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PIMENTEL, S. V. & AMADO, J. (orgs.). Passado dos limites. Goiânia: Editora da
UFG, 1995.
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GONÇALVES, G. R. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
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desconheço. In: Pernambuco: Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado. Recife:
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Brasil. Brasília: Editora da UnB/Paralelo 15, 1996, p. 309.
MENESES, Adélia Bezerra de. “Dãolalalão”de Guimarães Rosa ou o “Cântico dos
Cânticos” do sertão: um sino e seu badaladal. In: Estudos Avançados. Universidade de
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PERRONE-MOISÉS, Leyla. Desconstruindo os Estudos Culturais. IV Congresso
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História, Ciências, Saúde: Manguinhos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz,
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XAVIER, Ismail. Microcosmo em celulóide. In: Folha de São Paulo. Mais! São Paulo,
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LITERATURA DE CORDEL NO ESPAÇO VIRTUAL

Arinélio Lacerda dos Santos Júnior (G-PIBIC/CNPq - UFCG)


arineliolacerda@hotmail.com
José Hélder Pinheiro Alves (UFCG)
helderpin@uol.com.br

INTRODUÇÃO

A Literatura de Cordel, nos últimos anos, vive mudanças expressivas tanto em


seu domínio estético, quanto no que se refere à recepção por parte dos leitores. Essas
mudanças estão ligadas às diversas formas de influências sofridas pela sociedade
brasileira e, mais detidamente, pela sociedade nordestina em seu âmbito social, político,
econômico, bem como no tecnológico.
Hoje, mesmo encontrados em bancas de revistas, livrarias e mercados de
artesanato, observando mais detidamente, identificamos que o Cordel utiliza-se de um
novo suporte de divulgação. Antes, os cordéis eram encontrados nas feiras, praças, em
folhas volantes, com a divulgação feita oralmente pelos vendedores, hoje, apresentam-
se ao público leitor/comprador com o auxilio do espaço virtual, que, como sabemos, é o
meio interativo de maior alcance do mundo e o mais democrático, com inserções de
diversas faixas etárias e classes sociais, o que facilita a promoção dos folhetos, o
desenvolvimento de novos autores e a revitalização de antigos distribuidores
Tendo em vista as mudanças ocorridas nas últimas décadas envolvendo a
Literatura de Cordel, nos deparamos com alguns questionamentos no que tange aos
níveis de criação e recepção dos folhetos: os sites e os blogs são subsídios que
dificultam a “preservação” de elementos tidos como essenciais para a Literatura de
Cordel? Este tipo de suporte pode ser considerado ferramenta importante na propagação
literária popular? Quem são estes novos leitores do espaço virtual e o que os
caracteriza? Para tentarmos responde a estes questionamentos, buscamos respostas a
partir da análise inicial do blog do poeta Varneci Nascimento, autor da nova geração da
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Literatura de Cordel e do site de José Medeiros Lacerda, poeta cuja produção inicia-se
na década de 80 do século passado.
Fundamentamo-nos nas reflexões teóricas de Abreu (1999), no que se refere à
história da Literatura de Cordel no Nordeste brasileiro, assim como suas adequações
estéticas e em Galvão (2001), que investigou a recepção dos folhetos por parte dos
leitores/ouvintes nos primeiros 50 anos do século passado.
Para o desenvolvimento deste artigo utilizamos parte da pesquisa realizada para
o projeto Literatura de Cordel: novos temas, novos leitores vinculada ao PIBIC/CNPq -
UFCG e que ainda encontra-se em andamento.

1. LITERATURA DE CORDEL: UM POUCO DA HISTÓRIA

Devido à semelhança dos folhetos brasileiros com os encontrados em Portugal,


nos séculos XVI, XVII e XVIII, os estudiosos e pesquisadores da área adotaram e
difundiram a denominação “Literatura de Cordel” por entenderem, de acordo com
Abreu (1999), que as características físicas aliadas à maneira de vendê-los eram
semelhantes com as encontradas em Portugal. Por isso, a denominação “cordel”
impregnou-se como termo comum à literatura popular, antes reconhecida, no meio
popular, pelo menos até a década de sessenta do século passado, como “folhetos”,
“livrinho de feira”, “romance”, “folhinhas”, “poesias populares”, entre outras
denominações. A denominação Literatura de cordel vem, portanto, a posteriori e não faz
parte da experiência popular.
Segundo Galvão (2001), em muitos lugares do Brasil, sobretudo no Nordeste, a
venda dos folhetos acontecia de maneira semelhante com a registrada em Portugal,
principalmente, nas feiras, quando os folheteiros vendiam seus folhetos dentro de uma
mala, expostos no chão sobre um pano ou em cima de uma banca para facilitar a fuga
caso os vendedores tivessem dificuldades com a fiscalização. Sabe-se que essa
manifestação popular já acontecia na poesia oral, como por exemplo, nas cantorias e
pelejas, e que o desenvolvimento do impresso se deu tempos depois.
De acordo com Saraiva (2004), os primeiros folhetos impressos no Brasil
surgiram antes de 1890 – ano em que afirmam ter surgido o primeiro “cordel”, cuja
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autoria pertence a Leandro Gomes de Barros – com um folheto de autoria anônima,


descoberto por Orígenes Lessa, intitulado Testamento que Faz um Macaco,
especificando suas Gentilezas, Gaiatices, Sagacidade, etc., impresso em 1865 no
Recife.

Estas referências obrigam a abandonar a idéia bem comum de que os


folhetos de cordel brasileiros só aparecem na década de 1890 – porque
começam a aparecer na primeira metade do séc. XIX. O que se pode dizer é
que só nos finais do século, e com o grande poeta – pela qualidade e
quantidade Leandro Gomes de Barros, a literatura de cordel “assume foros
de nacionalidade brasileira e expressão, tipicamente, nordestina”.
(SARAIVA, 2004, p. 131)

No Nordeste brasileiro, a Literatura de Cordel atingiu seus maiores êxitos,


talvez, por causa das possibilidades temáticas ilimitadas. Tal êxito deve-se a
receptividade, o enraizamento e a familiaridade da literatura com o povo nordestino, que
devido à ausência da comunicação entre eles favoreceram este processo de
massificação.

No Nordeste [...], por condições sociais e culturais peculiares, foi possível o


surgimento da literatura de cordel, da maneira como se tornou hoje em dia
característica da própria fisionomia cultural da região. Fatores de formação
social contribuíram para isso; a organização da sociedade patriarcal, o
surgimento de manifestações messiânicas, o aparecimento de bandos de
cangaceiros ou bandidos, as secas periódicas provocando desequilíbrios
econômicos e sociais, as lutas de família deram oportunidade, entre outros
fatores, para que se verificasse o surgimento de grupos de cantadores como
instrumentos do pensamento coletivo, das manifestações da memória
popular. (DIÉGUES JR, 1986 apud GALVÃO, 2001, p. 31).

Contudo, devido à formação de novas mídias, como o rádio, no início da década


de 30 e a televisão, a partir dos anos 60, a Literatura de Cordel viveu uma crise de
competitividade junto a estes novos meios de interação o que deflagrou uma escassez do
surgimento de novos autores e, consequentemente, a ausência de novos folhetos, crise
esta também provocada pela falta de interesse da sociedade na compra dos folhetos e o
encarecimento do papel e dos custos de produção. O interesse na Literatura de Cordel
voltou a ganhar notoriedade perante a população após pesquisadores universitários e
estudiosos tomarem os folhetos como objeto de pesquisa e de ensino.
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Já a xilogravura se tornou marca registrada da Literatura de Cordel por ser talvez


a forma mais próxima de se ilustrar o folheto, quase sempre condizendo ao que é
proposto pelo tema abordado pelo autor. Essa arte esteve inicialmente muito associada
ao artesanato das sociedades rurais, bem como à produção de folhetos, talvez, por isso o
desejo de implantá-la nas capas dos folhetos ao invés dos antigos clichês, tendo, hoje,
despertado o interesse de um público constituído por pesquisadores, turistas e
estudantes (GALVÃO, 2001).

2. A INTERNET COMO SUPORTE

Atentos a estas percepções no que dizem respeito ao percurso histórico da


Literatura de Cordel, da recepção dos folhetos e das adequações estéticas, passamos a
observar como o folheto apresenta-se inserido no suporte da internet. E para tanto,
observaremos o site do poeta José Medeiros e o blog do poeta Varneci.

2.1. Os Cordéis de José Lacerda na Internet

José Medeiros Lacerda, natural de Santa Luzia, Paraíba, se formou no curso de


Letras na cidade de Patos, pela antiga FFP, hoje FIP – Faculdade Integradas de Patos.
Aos 08 anos de idade já escrevia suas primeiras histórias, como “O Aventureiro” que
narrava aventuras de um garoto, na Fazenda da Passagem do Meio. No teatro foi autor,
dançarino e coreógrafo; hoje, com mais de 60 anos de idade, é professor de Português e
cordelista com um considerável número de títulos publicados.
A participação em projetos de incentivo à cultura contribuiu para que seus
cordéis estivessem presentes nas bibliotecas das Universidades Federais e Estaduais da
Paraíba (UFPB, UFCG e UEPB), assim como na Fundação Ernani Sátiro e Faculdades
Integradas de Patos, além de algumas escolas estaduais de Esperança, Santa Luzia e
Sumé e tantas outras.
Alvo de nossa pesquisa, o cordelista José Medeiros mantém o site
www.cordelnarua.recantodasletras.com.br, no qual reúne vários autores de diferentes
regiões do país que procuram expressar e dividir, com os frequentadores, seus textos e
tantas outras expressões artísticas. Segundo o poeta, o site, lançado ao público há algum
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tempo, foi criado com uma finalidade de propagar a cultura popular do Nordeste, em
especial a Literatura de Cordel.
No site, o poeta utiliza alguns mecanismos de comunicação que viabilizam a
aproximação de seus leitores com a sua obra, como os álbuns de fotografias que
documentam a produção de cordel e também do grupo de teatro do qual o próprio autor
participa, a exemplo, temos a exposição de fotos de seus folhetos, fotos dos seus
revendedores, do grupo de teatro ao qual está inserido e até de certificados que
comprovam a participação do autor em eventos. Além disso, o site dispõe de outros
elementos de navegação, tais como: capa, no qual o autor apresenta uma mensagem
convidando os usuários a visitar o site; existe também um diário, no qual o autor exibe
fotos com reportagens históricas sobre tipos de danças populares descrevendo a origem
e as principais características dessas manifestações, cujo caráter é informativo-
pedagógico, entre outros elementos.
Nesta pesquisa podemos comprovar que o site do cordelista José Lacerda é
visitado por pessoas de idades distintas, também observamos que o grau de instrução
não é motivo de barreira para a interação entre o autor e o leitor, uma vez que o portal
de apresenta com depoimentos de pessoas com formação do ensino básico até o ensino
acadêmico universitário.

Oi eu tenho 11 anos e gosto muito de literatura de cordel antes qd eu tinha 9


anos eu tinha 5 cordéis: meu filho e uma gostoza, a intriga do cachorro e o
gato,a vinda de osama binladen ao Brasil e os outro eu me esqueci. [...] A
professora de português (erika) pediu q cada aluno levasse 5 cordéis pois
estamos estudando cordel pra na hora da amostra escrever cordéis de são
João, minha mãe comprou hoje(04/05/2009) e todos são muito bons já li
todos e todos eles são do autor : José M. Lacerda. serie caçadores agora eu
vou falar os meus novos 5 cordéis desse autor fantástico que escreve cordeis
incríveis: Um vaqueiro caçador Manoel de bia - cordel 2 A cangaceira dada,
3 dona zefa da espingarda, 4 Rio preto cangaceiro tarado são esses depois de
muito tempo percebi que esse site e o de Jose M. Lacerda e quero dizer q
gosto muito de seus cordéis. (MATHEUS, Hugo – 04/05/2010 – 17h05m)

Através do depoimento de Hugo Matheus, com 11 anos, 7º ano do ensino


fundamental, conseguimos constatar a descentralização do nível de escolaridade em
suportes de mídias que abrigam a divulgação da produção de autores de folhetos de
cordel.
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Outro depoimento ao qual obtivemos acesso no site foi do usuário Geraldo


Anísio que comprova que a internet se faz presente entre os diversos grupos sociais:

Olá meu caro Zé, grande expoente da literatura de cordel. O cordel precisa
muitíssimo de você, ao saber de sua total dedicação a arte de escrever e
divulgar aos estudantes e o povo em geral, histórias encantadoras de um
mundo real. Prossiga continuamente em sua escalada literária, até que possa
enchesse por completo, o manuseio dessa arte popular tão fácil e
compreensível de entender que é a literatura de cordel. Parabéns. (ANISIO,
Geraldo. Caicó, RN – 10/01/2009 – 21h43m)

Em alguns folhetos surgiram sugestões de palavras a fim de melhorar as rimas, o


que corrobora nossas afirmações que existe interação entre o autor e o leitor de seus
poemas, mesmo que de forma genérica.

Adorei, mas se trocar ‘estuprada’ por ‘violada’ ficará melhor... (sem autor –
01/02/2010 – 22h35m)

Ao final de tais observações, percebemos que os leitores em alguns depoimentos


comentam determinados poemas por motivos caracterizados como sentimentais e não
por motivos interpretativos ou técnicos, tornando-se os chamados comentários
‘genéricos’.

2.2. Os Cordéis de Varneci Nascimento na Internet

O poeta Varneci Nascimento nasceu em Banzaê, no interior da Bahia. Formado


em História pela Universidade Estadual da Paraíba, o cordelista Varneci Nascimento
contribuiu para a publicação de mais de 200 folhetos de Cordel ao ser escolhido como
selecionador de textos da Luzeiro, uma das mais tradicionais editoras de cordéis do
Brasil. Em 2001, na cidade de São Paulo, o poeta teve seu primeiro trabalho publicado
e, além de se dedicar a escrita dos cordéis, promove palestras no intuito de destacar a
importância da Literatura de Cordel em “universidades, associações, escolas,
bibliotecas e casas de cultura”.
Pela editora Luzeiro, Nascimento lançou alguns folhetos como O Massacre de
Canudos, A Morte e a Justiça, Cangaço: um movimento social, Dez Mandamentos do
Preguiçoso, a Peleja de Aloncio com Dezinho, entre outros trabalhos e foi classificado
em dois concursos nacionais, sendo, o primeiro, em São Paulo e, o segundo, na Bahia.
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Assim como o poeta José Medeiros, o cordelista Varneci Nascimento também


mantém espaços midiáticos nos quais promovem o intercâmbio entre estudantes,
educadores, poetas, leitores e admiradores. Entre os quais, destaca-se o fotoblog
http://fotolog.terra.com.br/varnecicordel.
O espaço midiático adotado pelo cordelista Varneci Nascimento não apresenta
tantos mecanismos de interação, diferentemente dos dispostos no site do poeta José
Medeiros, descrito anteriormente. O Fotoblog ou fotolog são blogs que se apresentam,
em sua maioria, com grande número de fotos, ou seja, mídias que permitem o autor
expor na Internet com certa facilidade e rapidez.
Através destes meios, a interatividade passa a ser uma medida de potencial
habilidade que permiti ao usuário exercer uma influência sobre o conteúdo ou a forma
da comunicação mediada como, por exemplo, por meio de uma barra de ferramentas,
apresentada na parte lateral do fotolog, reconhecida como favoritos que permite tanto ao
poeta quanto aos usuários visualizarem as recentes atualizações de outros blogs tidos
como preferidos do autor. Tais atualizações ganharam destaques no instante em que o
número de acessos aumentarem. Além disso, observamos que as fotos se apresentam em
ordem cronológica com legendas que retratam os momentos vivenciados pelo autor, de
forma que os usuários reconheçam as datas e participem de forma mais ativa através da
possibilidade do mecanismo comentários. Em sua maioria, as fotografias presentes
registram imagens não só das capas dos folhetos de Varneci Nascimento, como também
das palestras e viagens que o autor faz.
O poeta passou a utilizar o fotolog como ferramenta de trabalho a partir do
momento que percebeu no espaço virtual um importante aliado na divulgação de seus
trabalhos e na busca por leitores de cordel.

Ocorreu em 2008, daí criei um fotolog e um blog e passei a divulgar todas as


minhas atividades ligadas ao cordel nesse espaço, tanto palestras, eventos
quanto as novas publicações. O objetivo é tornar o cordel cada vez mais
conhecido é tanto que através da net se digitam meu nome no google
aparecem muitas citações. (NASCIMENTO, Varneci. São Paulo – SP –
18/04/2010 – 04h: 04m)

Em nossa pesquisa, podemos observar que os comentários dos usuários do


fotolog de Varneci se apresentam bem mais técnicos, diferentemente do que acontece
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no site do poeta José Medeiros, ou seja, o público leitor tece opiniões sabendo do que se
trata, uma vez que mesmo direcionados com a intencionalidade de elogiar, muitos
comentários apresentam-se bem rimados e até com certa simetria.

Obrigado Varneci
Por toda a divulgação
Que você faz dessa arte,
Lhe tenho como um irmão
Você tem caráter e rima
E boa imaginação.
(VIANA, Klévisson – 31/01/2009 – 13h: 41m)

Como podemos observar, o espaço virtual não exclui ninguém e todos podem,
inclusive outros cordelistas, ter conhecimento de qualquer obra lançada através dos
diversos meios midiáticos. A Literatura de Cordel conseguiu através do suporte da
internet atrair novos leitores e abranger seu espaço perante a sociedade adaptando-se as
várias concorrências midiáticas.
Hoje, tanto novos autores, quanto os tradicionais expõem na internet suas
produções, e as mesmas são acompanhadas, lidas e discutidas por leitores de diferentes
segmentos sociais, econômicos e culturais facilitando, assim, o processo de vendas
através da interatividade disponibilizada por este suporte.

2.3. O Cordel: mudanças e questionamentos

Diversos fatores fazem com que estudiosos afirmem que o cordel apenas
sobrevive pelos esforços dos estudiosos, e de poetas, e não mais dos apreciadores
comuns; fatores como “a influência da televisão, a censura, a falta de interesse das
autoridades pela cultura popular e as transformações na sociedade em geral, cada vez
mais urbana e industrializada” (GALVÃO, 2001, p. 35) compõem este complexo
quadro. Para Ayala,

A ampliação dos meios de transportes (ferrovias, rodovias etc.) e das


escolas, a urbanização e a expansão dos meios de comunicação de massa,
segundo esse ponto de vista, quebrariam o isolamento das populações
“atrasadas”. (AYALA e AYALA, 1987, p. 18)

No entanto, é necessário compreendermos que nos primeiros anos do século


passado existiam apenas os jornais como único meio de comunicação da população,
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predominantemente humilde e, talvez, por isso, os folhetos tivessem tanta popularidade


junto à sociedade. Além do fascínio que os poetas proporcionavam aos leitores com as
temáticas, a fantasia, as aventuras e as histórias de amor. Nos últimos cinquenta anos do
mesmo século, os folhetos tiveram que dividir a atenção de uma sociedade ansiosa por
novas tecnologias, agora não apenas pelos jornais impressos, mas pela popularização
dos rádios, dos televisores, e, no final do século, do espaço virtual.
Ayala (2003) evidencia que “as noções e sentidos de tempo surgidos em tipos de
sociedade diferentes podem se alternar ou se mesclar, a ponto de coexistirem ou darem
lugar a hibridizações” (p. 104). A autora evidencia que não podemos achar que a
tradição de se fazer literatura popular se encontra “morta” ou “adormecida”, tampouco
tentar resgatar algo que se encontra no passado ou persistir em uma herança cultural,
isso porque a literatura popular vive em constantes transformações e essas
transformações são boas a partir do momento em que o individuo passa essa experiência
para a sociedade em que está inserido.
Daí surge à necessidade de evidenciarmos o nosso primeiro questionamento: os
sites e os blogs são subsídios que dificultam a “preservação” de elementos tidos
como essenciais para a Literatura de Cordel? Obviamente, que esta é uma discussão que
requer cuidado, uma vez que percebemos que a Literatura de Cordel, bem como outras
práticas culturais, teve que se adequar a uma nova sociedade, mais urbana, que surgia
com a globalização e, por isso, com a inclusão da Literatura popular na internet, alguns
hábitos tiveram que ser alterados.
Hoje, com a utilização da internet como suporte, o cordelista passa a não ter
mais um contato direto com os seus leitores, como no passado quando ele mesmo
recitava e muitas vezes até dramatizava os seus folhetos no intuito de promover uma
maior vendagem. Já através da internet, os sites e blogs apresentam-se muito mais como
espaço privilegiado para divulgação e venda dos títulos de cordel.
O que devemos considerar seja talvez que não existem perdas ou dificuldades na
“preservação” de elementos tidos como essenciais da Literatura de Cordel no espaço
virtual. Isto porque são suportes diferentes utilizados por autores cuja finalidade é expor
seus folhetos.
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A segunda questão a ser discutida diz respeito ao valor do suporte virtual


enquanto ferramenta de propagação da literatura popular. Hoje, mesmo que ainda
disponíveis nestes ambientes, é o espaço virtual que, para alguns poetas, concretiza-se
como maior promovedor dos folhetos. Restando as tipografias, não raramente, o papel
de apenas editar. Mas, por outro lado, há poetas que publicam seus folhetos em casa,
como por exemplo, o poeta e xilogravurista pernambucano Marcelo Soares. Muitos
poetas souberam utilizar a internet a seu favor e com esta inserção a Literatura de
Cordel conquistou novos espaços, dando oportunidades a novos autores de mostrar seus
poemas, intensificando a divulgação dos folhetos e outras produções não apenas em
uma região, mas em todo território nacional, já que essa ‘troca’ de conhecimento entre
poetas e leitores que a internet proporciona consegue chegar a locais antes inacessíveis
pelos cordelistas.
O poeta popular encontrou na internet um espaço para produzir e divulgar tanto,
gratuitamente, nos blogs e portais de relacionamentos, quanto, de forma paga, como nos
sites particulares, e com o público em crescimento a comercialização de folhetos de
cordel se torna cada vez mais viável.
Outra inferência que podemos evidenciar na importância da internet como
ferramenta de propagação da Literatura de Cordel, é a expansão do público almejado
pelo autor presentes nesse espaço virtual. O público do Cordel se expandiu entre
diferentes segmentos sociais: médias ou populares, urbanos ou rurais, intelectuais e
pesquisadores. O novo leitor é o internauta de diversos níveis de aprendizado. É o
estudante, o pesquisador, o universitário, o professor, a dona de casa, a criança etc., isto
porque a internet está acessível a todos os públicos de maneira indistintamente e o autor
pode publicar a quantidade que desejar, com temáticas que atraiam o interesse de
diferentes leitores.
Devemos entender que ao passo que evolui a tecnologia chegam também aos
leitores, colocados “à margem” – problemas como o analfabetismo, a pobreza, a idade –
da sociedade, novas oportunidades de socialização através de programas institucionais
criados pelos governos e órgãos não-governamentais. Os leitores que são interessados
em conhecer mais sobre essa manifestação popular utilizam-se muitas vezes dessa mídia
para buscar informações que, talvez, não são encontradas com facilidade em livros ou
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outros materiais impressos, como uma biografia completa de determinado autor,


folhetos históricos, que por vezes se desfazem com o tempo e só há acesso a eles nas
grandes metrópoles – onde é marcante a presença da população nordestina – ou nas
cidades berços dessas produções.
Vimos que o espaço virtual não dificulta a preservação de elementos tidos como
essenciais pela Literatura de Cordel, uma vez que entendemos que os folhetos
apresentam-se em suportes distintos. Observamos também que este tipo de suporte pode
ser considerado ferramenta importante na propagação da literária popular, já que atinge
diversos segmentos sociais, ajuda na criação de novos títulos e de novos autores. Agora,
em nosso terceiro questionamento, iremos discutir quem são estes novos leitores e o que
lhes caracterizam do leitor tradicional.
Na busca de respostas, utilizaremos analises parciais do espaço virtual mantido
pelo cordelista José Medeiros Lacerda, poeta cuja produção inicia-se na década de 80 do
século passado e do espaço virtual criado pelo cordelista Varneci Nascimento, poeta da
nova geração de autores da Literatura de Cordel cuja produção iniciou-se em meados do
ano 2000. Destacamos da internet estes espaços virtuais em que os autores utilizam para
divulgar, comercializar, ou até mesmo interagir com seu público leitor/comprador de
folhetos de cordel e por questões didáticas desenvolveremos nossas inferências a
respeito de ambos em sequências separadas.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como pôde ser observado, o espaço midiático adotado pelos poetas como
suporte para a Literatura de Cordel, na maioria das vezes, se torna além de uma vitrine
(durante 24 horas por dia), um canal de comunicação direta e interação com o usuário
ou visitante. São essas particularidades, que tornam os sites e os blogs diferentes das
demais mídias, como o rádio, a televisão e o próprio jornal impresso.
Vimos que o cordel, com os anos, foi lançando novos modos de apresentação
perante o seu público comprador. Primeiramente, em sua forma oral, nas feiras e
mercados públicos, no qual os vendedores além de cantar, muitas vezes dramatizavam
as histórias dos folhetos no intuito de melhor cativar o interesse do leitor pretendido.
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Em seguida, expostos em tipografias, livrarias e bancas de revistas para um público


mais intelectual e por sua vez eram espaços de frequência habitual entre as camadas
médias da população das cidades, além dos conhecidos ‘sebos’. Por fim, temos a
presença da internet, que, talvez, ao contrário dos dois modos de apresentação
anteriormente mencionados, privilegia não apenas uma ou duas parcelas da população
local, mas sim, engloba todo o mundo, unindo as pessoas, ultrapassando os limites do
possível, através de diversos elementos virtuais.
Assim, percebemos nitidamente uma mudança do leitor. O leitor não é mais o
pobre, analfabeto ou semi-alfabetizado que encontrava-se nas cidades interioranas e
zonas rurais. Tampouco o leitor letrado em conhecimentos de ensino superior. Se o
conhecimento da obra do autor se dá através do meio eletrônico, pressupõe-se um leitor
letrado de conhecimentos virtuais.
Outro aspecto importante a ser observado, consequência da mudança do espaço,
é a impossibilidade da leitura oral feita pelo vendedor nos antigos espaços de vendas, no
momento da comercialização dos folhetos, que determinavam as boas e más histórias
que seriam compradas pelo público comprador.
Esse aspecto tão importante na divulgação na literatura de folhetos está
praticamente desaparecendo. Não há, por exemplo, a presença seja no blog do poeta
Varneci Nascimento ou no site do poeta José Medeiros, nenhuma gravação deles lendo
ou dramatizando seus folhetos. Ou seja, a oralidade, tão importante na literatura de
cordel tradicional, fica um tanto afastada na produção contemporânea, embora os
folhetos tragam traços fortes de fala. Do ponto de vista formal, praticamente não há
mudanças. O suporte conserva as preferências dos autores pelas versificações em
sextilhas, setilhas e décimas e, quase sempre, um tom bem humorado.
Cabe aqui ressaltar que hoje tanto novos autores, quanto os tradicionais expõem
na internet suas produções, e as mesmas são acompanhadas, lidas e discutidas por
leitores de diferentes segmentos sociais, econômicos e culturais facilitando, assim, o
processo de vendas através da interatividade disponibilizada por este suporte.

Referências
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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado as Letras, 1999.

AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura Popular no Brasil. São Paulo:
Ática, 1987.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Cordel: leitores e ouvintes. Belo Horizonte:


Autêntica, 2001.

___. Folhetos de cordel: experiências de leitores/ouvintes (1930-1950). In: PAIVA,


Aparecida et. al. (org.). Literatura e letramento: espaço, suportes e interfaces – jogo do
livro. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 87-98.

SARAIVA, Arnaldo. O inicio da Literatura de Cordel brasileira. In: BORGES,


Francisca Neuma Fechine et. al. (org.). Estudos em Literatura Popular. João Pessoa:
Universitária, 2004, p. 127-133.
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TERRA E ÁGUA EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE GUIMARÃES


ROSA, E PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO

Beatriz Pazini Ferreira (G-UEM)


Evely Vânia Libanori (UEM)

Na América Latina, o ambiente regional tem oferecido material para a literatura


desde a época romântica com sua intenção de fixar a identidade latinoamericana por
meio do enfoque em espaços e costumes específicos. A independência política,
conquistada pela maioria dos países da América Latina, torna a descrição das paisagens
carregada de intenções políticas. O enfoque das situações específicas desse ou daquele
país servia a um propósito de fixar a cultura latinoamericana como sendo independente
da cultura europeia, a quem esteve subordinada por centenas de anos de colonização.
Rosa e Rulfo se assemelham aos escritores regionalistas porque mostram um espaço
regional, afastado dos centros urbanos, com seus costumes e hábitos específicos. O
tratamento estético com a linguagem também é semelhante porque os dois escritores se
apropriam de um falar regional com suas expressões e palavras peculiares. No entanto,
esse falar regional é alvo do tratamento estético dos autores e disso resulta uma
linguagem que, ao mesmo tempo em que está ligada à comunicação de um povo,
também expressa dimensões amplas e universais. O uso de palavras simbólicas é um
dos recursos para alcançar o plano metafísico. Em Rosa, a fábula se passa nos sertões
de Minas Gerais, interior do norte do Brasil; em Rulfo, se passa nos páramos de Jalisco,
interior do sudoeste do México. Entretanto, nenhum dos autores pretendeu, com isso,
um propósito de verossimilhança que inscrevesse a fábula nas coordenadas do realismo.
O universo regional é apenas um dos suportes do propósito estético dos escritores que
superaram as amarras autóctones. Os ambientes regionais distanciam-se da estrutura
histórico-social das regiões enfocadas, dados os recursos estilísticos utilizados pelos
autores na apresentação de temas comuns ligados à nossa identidade, à nossa presença
na vida. Os temas comuns a ambos são a relação com o outro, o amor, a solidão, o
tempo, a vida, e a morte.
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Dessa forma, as relações entre o ser e a vida/morte são constantes em Grande


sertão: veredas e Pedro páramo, ou seja, o confronto interno do homem consigo
mesmo e com os seres e coisas à sua volta está fortemente presente. Ocorre, nas duas
obras, inquietações internas do ser, como, por exemplo, questões referentes à vida e a
morte. As "veredas", de Grande sertão: veredas e os "páramos", de Pedro Páramo
simbolizam o próprio universo habitado por homens que sentem as mesmas
inquietações em qualquer lugar. Riobaldo, de Grande sertão: veredas, afirma: "O
senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os
campos-gerais a fora a dentro, eles dizem. O sertão está em toda a parte." (ROSA, 2006,
p.08), isto é, o sertão de Guimarães Rosa é o universo do homem interior e
exteriormente, que está repleto de inquietações e quer um sentido para vida.
Juan Preciado também afirma que Contla é uma região de onde vêm pessoas de
todos os lugares: “- Há uma quantidade de caminhos. Há um que vai para Contla, outro
que vem de lá. E há outro que dá direto na serra. Este que se vê daqui, não sei para onde
vai (...) - E este aqui passa pela Media Luna. E há mais outro que atravessava a terra
inteira e é o que vai mais longe (RULFO, s.d, p. 46). Observa-se que o narrador afirma
que na cidade de Contla vêm pessoas de todos os lugares e que há vários caminhos.
Assim, infere-se que os habitantes da cidade citada não dizem respeito apenas à região
específica, mas sim aos vários caminhos que o homem busca seguir. Trata-se de um
espaço simbólico, uma vez que o sentido prático e utilitário do "caminho" está desfeito,
o que fica evidenciado na existência de um caminho que vai até Contla e um caminho
que vem de lá. Para fins de deslocamento, um mesmo caminho faria a função de ir e vir.
Diferentemente de Rosa, o sobrenatural é marca forte nas obras de Rulfo, pois as
personagens dialogam com seres que já morreram, o que confere um tom sombrio e
misterioso à narrativa. Nesse sertão e nesse páramo, o sertanejo e o mexicano são o
homem que se defronta com problemas eternos, como a vida, a morte e o pós-morte.
Nesse cenário de transcendência, o leitor deverá entender as entrelinhas da narrativa, e
então, precisa compreender os sentidos dos "símbolos". Os significados simbólicos
permitem a expansão dos sentidos do texto, uma vez que se refere a um conteúdo
primitivo e, muitas vezes, ligados aos mitos.
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Em Grande sertão: veredas, o pacto entre Riobaldo e o Diabo refere-se ao mito


do Fausto que foi o protagonista de um acordo com o demônio. Trata-se do mito do Dr.
Johannes Georg Faust (1480-1540), médico, mágico e alquimista alemão. Com a
intenção de superar os conhecimentos de sua época, Fausto evoca espíritos e o Diabo,
ou inimigo da luz, como foi chamado na época, com o qual negocia viver por vinte e
quatro anos sem envelhecer. Depois desse tempo, conforme o contrato assinado com
seu próprio sangue, serviria ao Diabo, em troca da sua alma.
Levando em consideração o mito Faustino, infere-se que Riobaldo evoca o
Diabo com a intenção de destruir seu rival Hermógenes. Depois do pacto, a personagem
fica estranha e aceita o posto de chefe concedido a ele pelos outros jagunços, que antes
lhe negavam. Assim passa a ser chamado de Urutu-Branco e não mais de Riobaldo. Isso
mostra que sua identidade passa a ser outra depois do pacto com o demônio, como
acontece no mito de Fausto. O sobrenatural é demonstrado como sinônimo de força, ou
seja, só com a força sobrenatural é que Riobaldo seria capaz de vencer a luta contra
Hermógenes. O homem sendo um ser repleto de fraquezas e imperfeições só poderá
ganhar força ao entrar em contato com seres sobrenaturais, aqui no caso, o Diabo, o
deus cristão da vingança: “Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de
achar melhor morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E
em troca eu cedia às arras, tudo emu, tudo o mais - alma e palma, e desalma... Deus e o
Demo! – Acabar com o Hermógenes! Reduzir aquele homem!...” (ROSA, 2006, p. 421).
Em Pedro Páramo, as personagens vivas conversam com os mortos para
possíveis esclarecimentos. Juan Preciado vê os mortos e dialoga com eles. No diálogo
de Juan Preciado e Dona Eduviges, ele pergunta o que se passa na cidade e ela diz que o
cavalo de Miguel Páramo estava galopando a caminho de Media Luna à procura do
mesmo depois de sua morte (RULFO, s.d, p. 23). No decorrer da narrativa Juan
Preciado ao perguntar sobre as coisas descobre que conversa com mortos. Ao dialogar
com Dona Damiana descobre que está conversando com uma morta. “- A senhora está
viva, Dona Damiana? Diga, Dona Damiana! E me encontrei de repente sozinho
naquelas ruas vazia. As janelas das casas abertas para o céu, deixando aparecer as
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varetas secas do mato. Esteiras esburacadas, que mostravam os tijolos gastos./ -


Damiana!- gritei. / - Damiana Cisneros!/ Respondeu o eco” (RULFO, s.d, p. 39).
Assim, em Pedro Páramo, a questão sobrenatural e o mito do além-túmulo estão
fortemente presentes. A todo momento as personagens conversam com os mortos, na
tentativa de buscar respostas para o seu destino, como se pode constatar nesse excerto:

E na minha casa erámos dezesseis filhos, de modo que você pode


calcular há quanto tempo já está morta. E veja só, ainda está vagando
por este mundo. De modo que não se assuste se ouvir ecos mais
recentes (...) - E a sua alma? Aonde acha que ela foi?/ - Deve estar
vagando pela terra como tantas outras, procurando viventes que rezem
por ela (RULFO, s.d, p. 39 e 59).

Na antiguidade, os fenícios acreditavam na vida após a morte. A alma humana


separada do corpo levava uma vida sem prazeres e nas sombras. Os gregos antigos
tinham uma lenda para simbolizar o ciclo de vida-morte. Trata-se da história de
Perséfone, filha de Deméter, deusa da fertilidade. Perséfone foi raptada por Hades, que
a levou para o mundo infernal. Deméter experimenta uma tristeza profunda a tal ponto
que toda a terra se torna infértil. Zeus, então, permite que Perséfone volte à terra. No
entanto, ela havia se alimentado no mundo dos infernos, o que foi entendido como o seu
consentimento em viver lá e, portanto, ela passara a fazer parte dos infernos. A
conciliação encontrada foi fazer a deusa passar metade do ano nos infernos e metade do
ano na terra. A lenda simboliza o ciclo de vida-morte, ciclo esse que se sucede e é
eterno. Hoje, o Cristianismo apregoa a eternidade da existência pós-morte no Paraíso ou
no Inferno. As personagens mortas de Pedro Páramo se encontram em vários estados:
algumas são uma consciência no túmulo, outras parecem fantasmas na terra, outras são
viajantes no espaço-tempo. O que há em comum entre todas é que todas se lembram da
vida miserável que viveram e ninguém encontrou salvação.
No mito de Higino, um pedaço de barro é encontrado por Júpiter e modelado
como uma criatura humana. Logo depois, o deus chamado Cuidado sopra o espírito na
criatura. A Terra aparece e quer conferir o seu nome ao ser recém-criado. Saturno, o
deus mais sábio, tomou a decisão e disse que a criatura deveria ser chamada de
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"homem" porque é feita de húmus, que significa "terra fértil". Há ainda o mito bíblico
da criação do homem. A gênese bíblica mostra que o homem foi feito de barro ou terra
fértil é um aproveitamento da fábula de Higino em que o húmus é convocado para
compor a criatura humana: "Então Jeová Deus modelou o homem com a argila do solo,
insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente”
(GÊNESIS 2: 06). Em Platão e Higino não só a terra tem função preponderante para a
formação do homem, mas todos os elementos. Sobre a origem da Terra, que dá e tira o
alimento dos seres humanos, há muitos; entre eles o mito grego. No mito grego, Terra é
chamada de Gaia. Seu surgimento se dá através da escuridão do nada (Caos), na qual
vai surgindo à imagem da divindade Gaia (Terra), que coberta por alvos mantos vai
dançando e rodopiando. Com os rodopios seu corpo vai se solidificando e se
transformando em montanhas e vales; seu suor transforma-se em mares e rios; seus
braços alongam-se e a envolvem em proteção, formando o firmamento à sua volta. A
união da Terra e do firmamento gerou condições para o surgimento e manutenção da
vida vegetal e animal. Sabe-se que a terra é dotada de seres animais e vegetais, como,
por exemplo, as árvores, os animais, o homem, as moradias entre outros. Nas obras
poéticas, esses elementos que compõem a terra podem ter vários significados, ou seja,
os “indivíduos” que comportam a terra podem ser representados por símbolos, cada qual
com sua particularidade.
Em relação ao elemento água, há várias divindades, como por exemplo, a deusa
Tétis, que vem do grego “ama, nutriz” ou “a que nutre”, ou seja, as águas têm o poder
de nutrir os seres. Sobre o mito grego, o oceano é representado por um velho sentado
sobre as ondas, empunhando uma lança numa das mãos e, na outra, segurando uma urna
da qual despeja água. A Hídros/água passa a fazer parte dos deuses do Olimpo e é
representada por Poseidon, o deus dos rios e mares. Ele faz tremer e oscilar a terra e as
marés, como também faz nascer sobre a terra plantas nutritivas para todas as espécies
(CHEVALIER, 2009).
Na antiguidade, a água servia para a purificação, depois de guerras, lutas e
mortes. Os gregos se banhavam em rios para se purificar de algum ato desprezível que
cometessem. Para a cultura grega, a água sempre foi muito importante, um elemento
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fortíssimo, venerado e respeitado. Entre os símbolos que compõem a água estão:


criaturas que estão no mar/rio e o próprio rio. Assim, a água é um elemento que
comunga força. Aliás, na gênese bíblica, Deus trouxe o dilúvio para destruir muitos dos
homens. Tamanha é a força da água. Ela pode destruir como também dar vida nutrindo
as plantas, os animais e o próprio homem.
Diante dos elementos que foram aqui explicitados, terra e água, há alguns
símbolos que os compõem. Para o elemento terra, o cavalo está expresso como criatura
da mesma e o elemento água pode ser representado pela simbologia dos rios. Em
Grande sertão: veredas e Pedro Páramo, o cavalo e o rio têm grande importância por
revelar, através de seus símbolos, a transcendência do mundo concreto. Em relação ao
elemento Terra, temos como símbolo o cavalo. Ao ler sem buscar os símbolos, o cavalo
pode ser apenas animal de montaria nas duas obras, mas em uma investigação vemos
que o cavalo pode conduzir o seu dono a caminhos sobrenaturais. Além disso, na crença
dos povos antigos o cavalo está associado às trevas e à luz, à morte e à vida. O cavalo é
presságio de morte e conhece o caminho subterrâneo por onde as almas percorrem e é
inseparável do destino do homem (GHEERBRANT, 2009, p. 206).
Sabe-se que, com a morte de Miguel Páramo, o cavalo continua à sua procura.
Isso porque conhece o caminho pós-morte e pensa poder reencontrar seu dono: “Um
cavalo passou a galope onde a rua principal cruza com o caminho que vai a Contla.
Ninguém viu. Mas uma mulher que esperava nas proximidades do povoado contou que
vira o cavalo correndo, com as pernas dobradas como se fosse cair de bruços.
Reconheceu o alazão de Miguel Páramo (RULFO, s.d, p. 28). O cavalo de Miguel
Páramo percorre a cidade à procura de seu dono, constantemente. Em Grande sertão:
veredas, Riobaldo vê Joca Ramiro sentado em um cavalo branco, logo depois, vem a
notícia de que Joca Ramiro havia morrido. Quando Joca Ramiro estava sentado no
cavalo branco ele estava anunciando sua própria morte (FERREIRA, TOFALINI,
2009). Na Antiguidade grega até a Idade Média, principalmente nas lendas alemãs, os
cavalos eram chamados de pressagiadores da morte e quando esses cavalos são
chamados de brancos deve-se entender que a brancura refere-se à frieza, à ausência de
vida e pode ser comparado com fantasmas. Sua brancura está próxima da cor negra, que
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quer dizer luto. Assim, pode-se inferir que ao estar sentado em um cavalo branco, Joca
Ramiro estava pré-dizendo que iria morrer: “Montado no cavalo branco, Joca Ramiro
deu uma despedida” (Rosa, 1974, p. 191).
Outro símbolo do cavalo que pode se associar a Joca Ramiro sentado no cavalo
branco é a representação de líder. Segundo Gheerbrant (2009, p. 211) o cavalo é
também símbolo de majestade. Na maioria das vezes, ele é montado por aquele a quem
a Bíblia se refere como fiel e verdadeiro. Joca Ramiro é visto como o líder
incomparável no bando dos jagunços. Riobaldo, em vários momentos da narrativa, não
aceita a condição de chefe por receio de não conseguir chegar ao mesmo patamar que
Joca Ramiro chegou: a de melhor chefe, pois só um verdadeiro e fiel chefe poderia estar
montado em um cavalo branco. Além disso, depois da morte de Joca Ramiro, Diadorim
quer vingar-se a todo o custo do causador da morte de seu pai, não apenas pela condição
paterna, mas também pelo chefe exemplar que era.
Em Pedro Páramo o cavalo de Miguel Páramo está em contato com o mundo
natural-terra e o sobrenatural-além-túmulo, ou seja, permanece atormentado pela não-
existência do seu dono na superfície da Terra e, ao atravessar os limites dela, o cavalo
pode reencontrá-lo. O cavalo de Miguel Páramo está atormentado pelo fato do seu dono
não estar presente: “ele e o cavalo se gostavam e estou quase achando que o animal está
sofrendo mais que Dom Pedro. Não comeu nem dormiu e não faz outra coisa senão
andar pra cima e pra baixo. Como se sentisse despedaçado e carcomido por dentro”
(RULFO, s.d, p. 23). Andar de um lado para o outro buscando seu dono é uma forma de
tentar achar o caminho do sobrenatural, para onde Miguel Páramo foi levado. De acordo
com Gheerbrant (2009, p. 213), “o cavalo também representa a face humanizada”, isto é
sente as dores dos que se foram, no caso o cavalo sente a dor da perda de Miguel
Páramo.
Outro símbolo presente nas duas obras é em relação às águas. O rio é o grande
referente que se liga à água. Em Grande sertão: veredas, o rio vai desencadear a
narrativa. O Rio São Francisco é uma via natural de entrada para o sertão. Na obra, é
por meio desse rio que Reinaldo/Diadorim e Riobaldo se conhecem. Conhecer
Reinaldo/Diadorim e ter atravessado com ele o Rio São Francisco muda para sempre o
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destino de Riobaldo. O simbolismo do rio está ligado à renovação e representa a


existência humana e o curso da vida, com a sucessão de desejos, sentimentos e
intenções (GHEERBRANT, 2009). Assim, ao atravessar o rio São Francisco com
Reinaldo/Diadorim, Riobaldo iria conhecer outras facetas da vida, como, por exemplo,
o pacto com o Diabo, o ser chefe e indagações sobre seus próprios sentimentos. Depois
de conhecer Reinaldo, Riobaldo fica repleto de inquietações sobre seus sentimentos.
Sua vida passa por grandes mudanças depois de atravessar o Rio São Francisco com
Reinaldo:

(...) Mas, com pouco, chegávamos no do – Chico. O senhor surja: é de


repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade (...)Depois,
foi entrando no do-Chico, na beirada (..) enxerguei os confins do rio,
do outro lado (...) O que até hoje, minha vida, avistei, de maior., foi
aquele rio (...) (ROSA, 2006, p. 108).

Para Riobaldo o que aconteceu de melhor em sua vida foi conhecer Reinaldo e
com ele atravessar o rio. Atravessar o rio é seguir para outro estágio, ou seja, Riobaldo
nunca mais foi o mesmo depois dessa ação. Os banhos são comuns em Grande sertão:
veredas. Os jagunços aproveitam os rios para se banhar. Simbolicamente banhos nos
rios são atos de purificação e regeneração. Pode-se dizer que o banho é o primeiro dos
ritos que sancionam grandes etapas da vida, como, por exemplo, o nascimento (batismo)
e a morte (lavar o corpo para ser enterrado), isto é, o banho, em especial no rio,
converge para diferentes períodos da vida e o homem purifica-se para passar de um
plano a outro. Riobaldo ao não banhar-se com Reinaldo no Rio das Velhas estava
negando sua possível homossexualidade, ou seja, a etapa de mudar seus outros
interesses sexuais não aconteceria. Por mais dúvidas, medos e desejos que Riobaldo
pudesse ter em relação aos seus sentimentos para com Diadorim, a sua
heterossexualidade permaneceria, conforme segue a narrativa de Grande sertão:
veredas:

Depois, o Reinaldo disse: eu fosse lavar o corpo no rio (...) Mas o


Reinaldo me instruiu aquilo, e me deixou na beira da praia, alegrias do
ar em meu pensamento. Cheguei a encarar a água, o Rio das Velhas
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passando seu muito, um rio é sempre sem antiguidade. Cheguei a tirar


a roupa. Mas então notei que estava contente demais de lavar meu
corpo porque Reinaldo mandasse, e era um prazer fofo e perturbado
(...) Destapei raivas. Tornei a me vestir (ROSA, 2006, p. 145-146).

Segundo a simbologia, os banhos têm relações com o sagrado e o profano, ou


seja, banhar-se para purificar-se ou para libertar-se da purificação e adentrar para outro
modo de vida, ou renunciar de alguma responsabilidade. Além disso, na Idade Média,
os "banhos públicos" tinham a reputação de serem lugares de libertinagem, por esse
motivo foram proibidos pelos cristãos. Levando em consideração os símbolos do banho,
pode-se inferir que, ao banhar-se no rio com Diadorim, Riobaldo estava adentrando a
outro modo de vida e por isso decidiu não se banhar com ele. O simbolismo do rio e do
fluir de suas águas é, ao mesmo tempo, o da possibilidade universal e o da fluidez das
formas, o da fertilidade e da morte. O mar é o grande responsável pelo dinamismo da
vida, pois tudo que sai do mar retorna a ele. Além disso, é lugar de transformações. Por
isso, o mar é, ao mesmo tempo, a imagem da vida e da morte. No mito grego, o deus
dos mares é chamado de Poseidon, como já dissemos. Ele teve muitas relações
amorosas com deusas e mortais e, por isso, representa a fecundidade. Nas mitologias
egípcias, o nascimento da terra e da vida era concebido como uma emersão do oceano,
por isso o simbolismo do oceano está relacionado com a origem da vida. Sobre o mito
grego, em relação à origem de Afrodite, Urano (Céu) derramou o sêmen no mar, após a
castração do Céu por seu filho Cronos, ou seja, Afrodite nasceu das espumas do mar e
representa as forças da fecundidade em relação aos possíveis desejos e sexualidade
(GHEERBRANT, 2009).
Em Pedro Páramo, a personagem Suzana San Juan faz referências ao mar, com
aspectos de possíveis desejos carnais, conforme a narrativa:

Meu corpo sentia bem o calor da areia. Tinha os olhos fechados, os


braços abertos, as pernas estendidas para a brisa do mar. E o mar ali
na frente, distante, mal deixando uns restos de espuma nos meus pés
com o subir da maré.
- Agora sim é ela que está falando, Juan Preciado. Não se esqueça de
me dizer o que ela está dizendo.
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Era cedo. O mar corria e descia em ondas. Desprendia-se da sua


espuma e ia embora, limpo, com sua água verde, em ondas
silenciosas.
No mar eu só podia tomar banho nua, disse a ele. E ele foi comigo no
primeiro dia, nu também fosforescente ao sair do mar (...) o mar
molha os meus tornozelos e vai embora; molha os meus joelhos, as
minhas coxas; rodeia a minha cintura com o seu braço suave; dá a
volta sobre os meus seios, abraça-se ao meu pescoço; aperta-me os
ombros. Então me fundo com ele, inteira. Entrego-me a ele no seu
quebrar forte, na sua posse suave, sem deixar sombras. E no dia
seguinte estava outra vez no mar, me purificando. Entregando-me às
suas ondas (RULFO, s.d, p. 84).

A personagem ao dizer que “mal deixando uns restos de espuma nos meus pés com o
subir da maré” pode estar fazendo referência à sexualidade, visto que a deusa Afrodite,
deusa da fecundidade, nasceu da espuma do mar. Além disso, o deus dos mares,
Poseidon, teve muitas relações amorosas com mulheres e, por isso, pode-se entender
que, ao se referir ao mar, a personagem faz alusão aos desejos carnais.
Observa-se também, que a personagem diz que, ao se ao entregar ao mar, este a
purificaria. A simbologia diz que uma das características do mar é a purificação. Ao
mesmo tempo em que faz ligações com os prazeres, também purifica, “o mar se situa
entre Deus e nós” (GHEERBRANT, 2009, p. 593). Ao querer banhar-se no mar a
personagem tem a intenção de purificar-se, conforme a simbologia da palavra "mar".
Além disso, tal interpretação pode ter duas facetas. A palavra ‘purificar’ pode
conter ironias, em relação ao seu sentido de santificar, ou seja, se o mar se situa entre
Deus e os humanos, de acordo com a simbologia, ele faz referências ao pecado dos
homens, porque este comete pecados. Nota-se que as palavras da personagem estão
repletas de sensações carnais próprias dos seres humanos, o que se pode inferir como
pecado segundo a tradição cristã. Sobre “se situar em Deus”, ou seja, santificar-se, a
personagem diz que vai até o mar para se purificar, ou seja, para limpar-se dos possíveis
pecados cometidos.
Diante do exposto, interpretar os símbolos é uma forma de entender as obras
poéticas, pois há conteúdos que estão implícitos e ao investigar o conteúdo simbólico a
narrativa amplia seu poder de comunicação. A obra poética é uma espécie de diálogo
entre texto-leitor. Bakhtin diz que o “diálogo não é apenas a comunicação em voz alta,
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mas toda a comunicação verbal, inclusive o livro impresso, que é feito para ser
estudado, comentado e criticado de maneira ativa pelo leitor” (BAKHTIN apud
COSTA, 1998, p. 25). Assim, levantar e interpretar os símbolos nas obras: Grande
sertão: veredas e Pedro Páramo é uma maneira de recuperar as formas de pensamento
primitivas para entendimento das mesmas.
O estudo dos símbolos permite que se entenda o que há de conteúdo para além
daquilo que se vê. Estudar seus sentidos é tomar contato com outros significados para
além do significado imediato. Coutinho (2001) explica que Guimarães Rosa, nas suas
obras, envolve o estado das personagens, ambientes, episódios, situações e a ação
simbólica, nos temas, idéias, ideário, ideologia- contexto mágico de arte e religião, e o
mundo dos símbolos (...); assim, se serviu não como quem explora uma paisagem,
porém como quem manipula um ingrediente simbólico (COUTINHO, 2001, p. 518).
Em Pedro Páramo “o símbolo e o mito aparecem enfaticamente, reforçando -
portanto - os anseios humanos de eternidade (...) a obra está repleta de significado que
só por meio da totalidade dos componentes míticos será possível sua interpretação”
(EUZÉBIO, 2009, p. 10 e 66). Assim, as duas obras contêm elementos simbólicos que
precisam de interpretação para que o leitor possa fazer suas próprias leituras. Conforme
afirma Benoist (1975, p. 10) “na ordem das idéias um símbolo é igualmente um
elemento de ligação plena de intervenção e une o que é contraditório, pois não podemos
compreender nada, nem comunicar nada, sem a sua participação”. Assim, colocar a
análise dos símbolos nas obras poéticas é deixar a significação dos símbolos
participarem da interpretação das mesmas. Dessa forma, neste estudo, buscou-se
conhecer os símbolos: “cavalo” e “rio” nas obras Grande sertão: veredas de Guimarães
Rosa e Pedro Páramo de Juan Rulfo, dois escritores de diferentes nações, mas que
buscaram algo em comum: fazer literatura regional com peso universal.

Referências
BENOIST, Luc. Signos, símbolos e mitos. Lisboa: LDA, 1975.
COSTA, Lígia Militz da. Representação e Teoria da Literatura: dos gregos ao pós
moderno. Cruz alta: UNICRUZ, 1998.
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COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6ª edição. Rev. atual. São Paulo: Global,
2001.
GÊNESIS: In: A Bíblia: de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo:
Paulus, 2002.
EUZÉBIO, Vilmar Machado. A morte e as mortes na obra de Juan Rulfo. Florianópolis:
UFSC, 2008. Disponível em:
<http://www.tede.ufsc.br/tedesimplificado/tde_arquivos/48/TDE-2008-06-0T121019Z-
273/Publico/VILMARTRAB04.pdf > Acesso em: 07/04/2010.
FERREIRA, Beatriz Pazini; TOFALINI, Luzia Aparecida Berloffa. Simbologia em
Grande sertão: veredas. Cascavel: Unioeste, 2009.
GHEERBRANT, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 13. ed. Trad.
Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
RULFO, Juan. Pedro Páramo. São Paulo: Círculo do livro, s.d.
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A LINGUAGEM METAFÓRICA EM VIGILIA DEL ALMIRANTE DE ROA


BASTOS

Bernardo Antonio Gasparotto (PG – UNIOESTE)

Ao propor-se trabalhar com questões que envolvem a metáfora e a metonímia é


preciso ter em mente a dificuldade da “conceituação verbal”, como chama a atenção
Joan Cowan e Joyce Feucht-Haviar em prefácio à obra Da metáfora organizada por
Sacks Sheldon (1992).

A metáfora é um conceito altamente sujeito a especulação e definição


(embora essencialmente controverso e polêmico); permeia todas as
áreas da atividade linguística, possuindo uma rica história intelectual;
goza de importância sem precedentes no pensamento contemporâneo,
tendo deixado a periferia ornamental do discurso para ocupar um lugar
de destaque no processo de entendimento da própria compreensão
humana. (COWAN; JOYCE, 1992, p. 7).

Os estudiosos refletem como a metáfora pode ser descrita em diferentes áreas de


atividades e neste sentido remete a outro pesquisador importante sobre o assunto, Paul
Ricoeur (1975), cuja reflexão incide sobre como incorporar uma descrição da metáfora
em teorias mais gerais sobre a linguagem ou significação. Ricoeur observa que, não é
porque, de maneira geral, a metáfora e a metonímia produzem efeitos semelhantes, que
ambas sejam iguais. “A metáfora não nomeia, mas caracteriza o que já foi nomeado.”
(RICOEUR, 1975, p. 97).
Ao iniciar o estudo da metonímia, observa-se que sua origem vem do grego,
conforme lembra Citelli:

Do grego meta onoma (troca de nome; no latim denominatio –


nomear, dar nome). Indica a utilização de um termo em lugar de outro,
desde que entre eles haja uma relação de contigüidade. A metonímia
nasce, ao contrário da metáfora, de uma relação objetiva entre o plano
de base e o plano simbólico do termo. (CITELLI, 2006, p. 22, grifos
nossos).
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O autor toma a definição clássica para a metonímia como figura produzida por uma
relação de contiguidade existente entre palavras. Neste sentido, difere-se da metáfora,
cuja essência consiste na substituição de um termo ou expressão por outro, havendo,
contudo, traços semânticos comuns entre eles, possibilitando, desse modo, uma
aproximação de sentidos.
Outro autor que buscou refletir sobre o emprego da figura de linguagem da
metonímia é Humberto Eco, ao manifestar-se da seguinte forma:

[...] a metonímia torna-se a substituição de um semema por um de


seus semas (/Tomar uma garrafa/ por ‘tomar vinho’, porque a garrafa
será registrada entre os destinos finais do vinho) ou de um sema pelo
semema a que pertence (/Chora ó Jerusalém/ por ‘chore o povo de
Israel’, porque entre as propriedades enciclopédicas de Jerusalém deve
existir aquela pela qual é a cidade santa dos hebreus). (ECO, 1991, p.
176).

Além desta espécie de ocorrência da metonímia existem outras projeções pelas quais
ela pode se realizar, pela substituição da causa pelo efeito, do efeito pela causa, do
produtor pelo produto, do produto pelo produtor, do signo pela coisa significada, do
abstrato pelo concreto, do concreto pelo abstrato, entre outras, segundo Othon M.
Garcia (1992).
Em Vigilia del Almirante (1992), de Augusto Roa Bastos, pode-se observar a
ocorrência de uma metonímia na “parte V” da obra. Tal capítulo tem como título “Los
pájaros profetas”, cujo sentido, a princípio, pode parecer como sendo o uso de uma
metáfora, mas que, em realidade, trata-se de uma metonímia. Tal leitura é possível para
aqueles que compreendem algo do mundo marítimo, principalmente daquele mais
antigo quando ainda não existiam as avançadas tecnologias que permitem hoje viajar
com segurança, uma vez que o pássaro, que em “alto mar” é visto trazendo ramas em
seu bico ou em suas garras, serve como um sinal de que já se está próximo da “terra
firme”. Desta forma, tais sinais de vegetação que são levados pelas aves são
considerados como um símbolo de esperança pelos navegantes, conforme se pode
perceber nas palavras do narrador no romance de Roa Bastos:
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El mar, el mar, siempre recomenzando, dijo un gran poeta de la


antigüedad. […] verlo mañana cubierto por un techo de palomas que
hagan honor a mi apellido. Pero yo busco otros techos cubiertos con
tejas de oro. Salvo que las palomas posadas en los alminares también
sean de oro puro. 1 (ROA BASTOS, 1992, p. 41).

Em “Los pájaros profetas”, se possibilita a compreensão de que, pelo fato de a


tripulação avistar aves que carregam em seus bicos ou patas ramos de vegetação, há
sinais de terra firme nas proximidades. Nesse sentido, toma-se um símbolo (vegetação)
por um sinal de “bom” agouro, “de terra à vista” e a palavra “profetas”, que qualifica as
aves, refere-se ao fato de que estas, como os verdadeiros profetas do Velho Testamento,
estariam trazendo notícias, no caso do romance em questão, notícias da presença da
costa. Para realizar tal leitura, cabe ainda salientar que para diversas culturas antigas a
presença e as ações dos pássaros são vistos como sinais, como bons ou maus presságios,
conforme Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2001).2
Observa-se que a metonímia empregada por Roa Bastos acaba por não produzir um
sentido distinto do já concebido pela sociedade, em relação às palavras “palomas” e
“profetas” que servem como representações para “presságios” e “esperança”. Mas
também não se trata de algo óbvio e direto, via de regra, a produção de sentido
perpetuada pela metonímia somente se dá para um leitor atento, que deve identificá-la
em uma realidade extra-linguística, relacionada com o mundo exterior.
Ao voltar-se para a metáfora, pode-se observar que o primeiro estudioso a tratar
deste tema (ao menos foi o mais antigo dos que nossa civilização pode ter acesso) foi
Aristóteles que, em sua obra Arte Retórica e Arte Poética informa:

1
“O mar, o mar, sempre recomeçando, disse um grande poeta da antiguidade. [...] vê-lo pela manhã
coberto por um trecho de pombas que façam honras ao meu nome. Porem eu busco outros trechos
cobertos com telhas de ouro. Salvo se as pombas pousadas nas torres também sejam de ouro puro.”
(Tradução livre)
2
“O vôo dos pássaros os predispõe, é claro, a servir de símbolos às relações entre o céu e a terra. Em
grego, a própria palavra foi sinônimo de presságio e de mensagem do céu. [...] Os documentos mais
antigos entre os textos védicos mostram que o pássaro ou ave (em geral, sem especificações
particulares) era tido como um símbolo da amizade dos deuses para com os homens”. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2001, p. 687).
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7. A metáfora é a transposição do nome de uma coisa para outra,


transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou
de uma espécie para outra, por analogia. 8. Quando digo do gênero
para a espécie, é, por exemplo, ‘minha nau aqui se deteve’, pois lançar
ferro é uma maneira de ‘deter-se’; 9. da espécie ao gênero:
‘certamente Ulisses levou a feito milhares e milhares de belas ações’,
porque ‘milhares e milhares’ está por ‘muitas’, e a expressão é aqui
empregada em lugar de ‘muitas’; 10. da espécie para a espécie:
‘tendo-lhe esgotado a vida com o bronze’ e ‘de cinco fontes cortando
com o duro bronze’; aqui, ‘esgotar’ equivale a ‘cortar’ e ‘cortar’
equivale a ‘esgotar’; são duas maneiras de tirar. 11. Digo haver
analogia quando o segundo termo está para o primeiro, na proporção
em que o quarto está para o terceiro, pois, neste caso, empregar-se-á o
quarto em vez do segundo e o segundo em lugar do quarto.
(ARISTÓTELES, s/d, p. 274).

Além desses exemplos acima trazidos, o autor prossegue em seu raciocínio ao citar
uma série de exemplos a fim de continuar com a pontuação realizada acerca das formas
como a metáfora se pode materializar.

12. Às vezes também se acrescenta o termo ao qual se refere à palavra


substituída pela metáfora. Se disser que a taça é para Dionísio assim
como o escudo é para Ares, chamar-se-á taça o escudo de Dionísio e
ao escudo, a taça de Ares. 13. O que a velhice é para a vida, a tarde é
para o dia. Diremos pois que a tarde é a velhice do dia, e a velhice é a
tarde da vida, ou, com Empédocles, o ocaso da vida. Em alguns casos
de analogia não existe o termo correspondente ao primeiro; 14. porém
mesmo assim nada impede que se empregue a metáfora. O ato de
‘lançar a semente à terra’ chama-se ‘semear’; mas não existe termo
próprio para designar o ato de o sol deixar cair sobre nós sua luz;
contudo existe a mesma relação entre este ato e a luz, que entre
semear e a semente; pelo que se diz: ‘semeando uma luz divina’. 15.
Há outra maneira de empregar este gênero de metáfora, dando a uma
coisa um nome que pertence a outra e negando uma das propriedades
desta, como se, por exemplo, se denominasse o escudo, não a taça de
Ares, mas a taça sem vinho. 16. O nome forjado é o que não foi
empregado neste sentido por ninguém, mas que o poeta, por sua
própria autoridade, atribui a uma coisa. (ARISTÓTELES, s/d, p.274-
275).

Ao observar essas palavras de Aristóteles pode-se perceber que se trata de um jogo


lógico, que pode ser estendido à análise de Vigilia del Almirante (1992). Um exemplo
claro consta na passagem: “Susurro de una vasta batalla en las inmensidones del Mar de
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Tinieblas. 3” (ROA BASTOS, 1992, p. 39). A expressão “Trevas” carrega consigo a


tonalidade de algo maléfico e opressivo, sentido posto para o Oceano Atlântico, que era
considerado como “Mar tenebroso”, no qual os marinheiros tinham medo de navegar,
pelos perigos a ele reputados à época das grandes navegações. Desta forma confere-se à
adjetivação “Trevas” a um Oceano desconhecido, devido às características que
aproximam as expressões.
Neste sentido, Jacques Lacan afirma que “um signo faz sentido retroativamente na
medida em que a significação de uma mensagem só advém ao final de sua própria
articulação significante.” (LACAN, 1985, p. 256). Assim, o significante serve para
direcionar e possibilitar uma organização linguística, sendo necessário para seu
entendimento que se observe a “dissolução do vínculo da significação intencional com o
aparelho do significante [...] e a dissolução do vínculo interno do significante.”
(LACAN, 1985, p. 256). Observa-se que Roman Jakobson (1988) explica a metáfora a
partir de relações de similaridade e a metonímia a partir das relações de contiguidade.
Lacan, utilizando-se deste ponto de partida, considera que a primeira se dá por
substituição e a segunda por combinação.
Para uma reflexão sobre a linguagem metafórica em Vigilia del Almirante leva-se em
consideração a concepção de Roman Jakobson (1988), cuja compreensão é de que a
metáfora se materializa mediante uma relação de substituição por similaridade, ao passo
que a metonímia se dá numa relação de contiguidade, conforme já exposto.
Especificamente, para o presente estudo, toma-se a passagem da narrativa referente ao
momento em que o personagem Colombo encontra-se com suas naus encalhadas em
uma grande massa de algas. Uma leitura metafórica possibilita a compreensão de que as
experiências vividas pelos navegantes, tais como o sentimento de impotência e
estagnação são possíveis de serem estendidas ao que experimentaram os povos
autóctones quando da chegada dos europeus à América, conforme reflexões de Bella
Jozef (1989) sobre a nova consciência do escritor latino-americano. Observa-se esta
afirmação no seguinte trecho:

3
“Sussurro de uma vasta batalha nas imensidões do Mar de Trevas.” (Tradução livre).
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Toda la tarde se oyeron pasar pájaros. Se los oía gritar roncamente


entre los jirones de niebla. Contra la mancha roja del poniente se los
podía ver entreverados en oscuro remolino volando hacia atrás para
engañar el viento. Cruzan nubes bajas cargadas de agua, oliendo a
muela podrida de mal tiempo. El mar de hojas color de oro verde
cantárida se espesa en torno a tres cascarones desvelados y los empuja
hacia atrás, a contracorriente. 4 (ROA BASTOS, 1992, p.15).

Especificamente no trecho “El mar de hojas color de oro verde cantárida se espesa
en torno a tres cascarones desvelados” pode-se relacionar ao sentido metafórico de
encalhar/estagnar, ficar impossibilitado de prosseguir viagem. Tem-se ai, a imagem de
uma situação na qual a tripulação, amedrontada e acuada fica estagnada, imóvel, presa
ao mar de algas como ficariam, mais tarde, os povos autóctones impotentes diante do
poderio bélico e do temor incutido pelas novas tecnologias trazidas pelo conquistador.
A imagem das algas no contexto da narrativa assume uma conotação de um poder
ameaçador. Tal relação é similar a dos espanhóis que se apresentaram para os povos
autóctones, quando de sua triunfal chegada, com as mesmas características que são
observáveis nas algas que se fixam nos cascos das embarcações.
Ainda em relação à citação acima se tem “[...] y los empuja hacia atrás, a
contracorriente”, esse retrocesso é o mesmo que sofreram os três grandes impérios que
aqui se encontravam quando do “descobrimento” (Incas, Maias e Astecas), sendo
forçados a estagnar seu desenvolvimento cultural, apenas limitando-se a recuarem e a
defenderem-se, conforme estudos de Fuente (1996). Aqui se pode substituir “o mar de
algas” pelos espanhóis e as “três naus européias” que são empurradas para trás como os
três grandes impérios pré-colombianos (Incas, Maias e Astecas) que acabam em um
retrocesso civilizatório.
O segundo trecho que se traz da obra Vigilia del Almirante e que ainda contempla a
mesma cena que remete à metáfora do “encalhar” é o seguinte:

4
“Toda a tarde se ouviu passar pássaros. Os ouvia ressonar entre os amontoados de névoas. Contra a
marcha vermelha do poente era possível de vê-los desordenados no escuro redemoinho voando até atrás
para enganar o vento. Cruzam nuvens baixas carregadas de água sentindo o odor podre do mal tempo. O
mar de folhas cor de ouro verde brilhante se espessa ao longo de três cascos imóveis e os empurra para
trás, a contracorrente.” (Tradução livre).
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El mar se mueve apenas bajo el pesado mar de hierbas. Ni una brizna


de viento y las naves al garete desde hace tres días, varadas en medio
del oscuro colchón de vegetales en putrefacción. El mar en su calma
mortal se ha convertido en estercolero de plantas acuáticas. Nadie
puede calcular la extensión, la densidad, la profundidad de esta
inmensa capa fósil de materia viviente. La fatalidad ha levantado este
segundo mar encima del otro para cortarnos dos veces el camino 5.
(ROA BASTOS, 1992, p.15).

Este é um ponto em que o narrador se vale de diferentes figuras de linguagem, entre


elas as metáforas para representar, pelo simbolismo da linguagem, as frotas espanholas
que chegavam ao novo continente em suas embarcações para aí se fixarem, porém ficam
presas no “oscuro colchón”, que substitui a “massa de algas”. Desse modo pode se ler
nessa passagem que os europeus permaneceram estagnados no “oscuro colchón” (ou
seja, no Oceano Atlântico que se transforma num “mar de algas”), como ficariam as
grandes civilizações pré-colombianas e suas culturas assim que os europeus atingissem
o seu objetivo, conforme Fuente (1996).
Esta interpretação é viável, pois, com a invasão européia, os povos autóctones pouco
puderam fazer, mantendo-se imobilizados, impotentes, e muitas de suas tribos
perderam-se ao domínio estrangeiro e aos massacres por eles perpetrados. Ou seja, o
que proporciona a relação de similaridade entre as naus encalhadas na “massa de algas”
e os grandes impérios pré-colombianos é o fato de ambos restarem estagnados,
impedidos de progredir. A influência direta do elemento externo – massa que faz
encalhar e a presença da civilização européia na América – possibilita uma relação do
“mar de algas” com a figura dos conquistadores europeus.
Outro fragmento da citação de Vigilia del Almirante à qual se reporta essa reflexão é
“Nadie puede calcular la extensión, la densidad, la profundidad de esta inmensa capa

5
“O mar se move apenas abaixo do pesado mar de ervas. Nem uma brisa de vento e as naves sem
governo já a três dias, estagnadas no meio do escuro colchão de vegetais em putrefação. O mar em sua
calma mortal se converteu em um depósito de esterco de plantas aquáticas. Ninguém pode calcular a
extensão, a densidade, a profundidade desta imensa capa fóssil de matéria vivente. A fatalidade levantou
este segundo mar sobre o outro para dobrar nossa viagem.” (Tradução livre).
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fósil de materia viviente” 6. Neste caso o narrador substitui novamente o “mar de algas”
por “imensa capa fóssil de matéria vivente”, intensifica, assim, o sentido metafórico da
ação de encalhar observada no texto, inclusive pela expressão antitética de “capa fóssil”
e “matéria vivente”, referindo-se sempre ao Oceano Atlântico. Nesse sentido pode-se
propor uma leitura simbólica da passagem. A “capa fóssil” poderia ser relacionada, por
similaridade, com a cultura dos europeus que encobriu as manifestações culturais dos
Impérios pré-colombianos que, por estarem em seu próprio universo, eram muito mais
vivas e significantes nesse contexto que aquelas trazidas do outro lado do Atlântico,
mas que foram aqui impostas.
Na passagem narrativa que trata do “encalhar” das naus espanholas são apresentadas
as características da tripulação e a forma como os marinheiros são vistos pelo narrador,
cuja focalização encontra-se fixada em Cristóvão Colombo:

No es gente del mar. En su mayor parte es carne de presidio, frutos de


horca caídos fuera de lugar, fuera de estación. Lloran como niños
cuando se sienten destetados de lo conocido. Hay que engañarlos para
su bien con la leche del buen juicio 7. (ROA BASTOS, 1992, p. 16).

As relações metafóricas que podem ser observadas na citação acima referem-se às


relações que se estabelecem entre os termos “carne de presídio”, para pessoas de
conduta moral questionável; “frutos da forca caídos fora do lugar”, para condenados a
morte que tiveram sua sentença comutada; e “o leite do bom juízo”, para as anotações
falsificadas de Colombo sobre a distância que os separava da Espanha. As duas
primeiras servem para qualificar os homens que faziam parte da tripulação e a última
para tratar das informações falsas que Cristovão Colombo passava aos marinheiros que
estavam sob seu comando sobre o número de milhas navegado a cada dia e a
consequente distância que os separava da costa, conforme a narrativa em Vigilia del
Almirante. Isso remete ao aspecto perturbador da ordem entre os marinheiros e que se

6
“Ninguém pode calcular a extensão, a densidade, a profundidade desta imensa capa fóssil de matéria
vivente.” (Tradução livre).
7
“Não é gente do mar. Em sua maior parte é carne de presídio, frutos de forca caídos fora do lugar, fora
da estação. Choram como crianças quando se sentem afastados do conhecido. Tem-se que os enganar
para seu bem, com o leite do bom juízo.” (Tradução livre).
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co-relacionava com o tempo que ainda demorariam para chegar até o destino esperado.
Essas falsas medidas apaziguavam ânimos e controlavam possíveis motins. Tais
metáforas são formas de expressar, por substituição vocabular, o caráter e a origem dos
primeiros europeus que pisariam o solo americano, revelando o contexto marginal do
qual eles procediam.
Por fim, encerra-se a reflexão desta passagem narrativa de Vigilia del Almirante com
a averiguação das metáforas contidas no trecho que segue:

Estamos entrando en el futuro de espaldas, a reculones. Y así nos va.


En los últimos tres días no hemos hecho más que veinte leguas en un
día natural y otro artificial. Desde que topamos con el infinito prado
maloliente, hemos retrocedido otras diez leguas en diez días
artificiales contados de sol a sol y otros diez días naturales contados
de mediodía a mediodía. Hay que sumar a ellos los siete días y noches
naturales en los que las naves están clavadas en su propia sombra
sobre el pudriero. 8 (ROA BASTOS, 1992, p. 17-18).

As relações metafóricas que podem ser explicitadas na passagem dizem respeito à


substituição dos termos “prado maloliente” e “pudriero” por “mar de algas” que
proporciona o atolamento das naus. Ao observar as diversas possibilidades de
substituições de palavras, como as que até agora foram trazidas, percebe-se a
fecundidade da obra e de todo o Novo Romance Histórico Latinoamericano, quando da
utilização de sentidos metafóricos que possibilitam uma variedade de leituras.
Compreende-se isto pelo profundo trabalho com a linguagem que é realizado neste
gênero literário segundo Bella Jozef (2006). Assim o que se pode observar é que existe
uma vasta possibilidade de substituição de palavras, representando a mesma ação de
encalhar no mar de algas, possibilitando diversas criações ou deslocamentos de sentido
para o texto.
Observa-se no fragmento narrativo da obra Vigilia del Almirante, selecionado para
estudo, que as substituições vão se multiplicando e, dessa forma, amplia-se não somente
8
“Estamos entrando no futuro de costas, aos trancos. E assim vamos. Nos últimos três dias não fizemos
mais que vinte léguas em um dia natural e outro artificial. Desde que topamos com o infinito prado mal
cheiroso, temos retrocedido outras dez léguas em dez dias artificiais contados de sol a sol e outros dez
dias contados de meio dia a meio dia. Há que somar a eles os sete dias e noites naturais nos quais as
naves estão cravadas em sua própria sombra sobre a podridão.” (Tradução livre).
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o universo interpretativo, como o próprio universo linguístico que remete ao termo


primeiro: “mar de algas”, atribuindo-lhe, a cada nova substituição, uma ampliação de
seu próprio campo semântico. Os constantes movimentos de partida e retorno presentes
na última citação de Vigilia del Almirante, propiciados pelo atolamento no “mar de
algas”, que permite que avancem durante o dia, mas impele ao retrocesso em outro
período, representa a circularidade temporal com que se trabalha no Novo Romance
Histórico Latino Americano. A idéia do “outro” e do tempo cronológico no fragmento
do romance em análise, passa às margens das embarcações, mas para os tripulantes nada
muda; eles continuam sendo os mesmos, vivendo o mesmo momento de estagnação que
se mantém mesmo quando chegam à América e aqui impõe seus costumes a um povo
pacífico. Ao invés de buscar manter relações amistosas e civilizadas com os habitantes
locais, os europeus atuaram como bárbaros, na contramão do avanço moral, destruindo
qualquer representação cultural existente nas novas terras e tomando para si tudo que
era possível. A expressão “estamos entrando en el futuro de espaldas, a reculones”, que
acompanha a metáfora “prado maloliente”, denuncia que as relações estabelecidas pelos
europeus com os nativos eram de caráter retrógrado, dando-se aos solavancos, que
impulsionavam para trás, para a manutenção de velhos hábitos e costumes da Espanha
que se mantinha ainda bastante medieval mesmo numa época em que a Europa vivia o
Renascimento. Diante disto compreende-se que o “avanço” europeu no mar pode ser
estendido por similaridade ao seu avanço nas terras americanas, pois ambos os
processos se dão de maneira conturbada.

Conclusões

No presente estudo, centralizado na reflexão sobre as figuras de significação, a


metáfora e a metonímia observou-se que existem diferenças entre as mesmas. Ao operar
no mesmo campo semântico, a metonímia não gera uma figura de segundo grau, como
ocorre com a metáfora que aproxima duas realidades distantes.
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Especificamente sobre a metáfora salienta-se que as palavras podem se unir por


similaridades, mas também representar características de natureza oposta, como
menciona Eco:

A metáfora, porém, põe em jogo não só a semelhança, mas também as


oposições. A taça e o escudo são semelhantes no que diz respeito à
forma (redonda e côncava), mas opostos no que diz respeito à função
(paz x guerra), assim como Ares e Dionísio são semelhantes enquanto
deuses, mas opostos quanto aos objetivos que perseguem e aos
instrumentos que utilizam. (ECO, 1991, p. 176).

Essa possibilidade de revitalizar o campo semântico de um termo é largamente


explorado por Roa Bastos ao longo de todo o seu romance Vigilia del Almirante. Na
passagem narrativa destacada para este estudo, isso ocorre quando, num jogo
metafórico, o narrador aproxima opostos como morte e vida, nas expressões “capa fósil
de matéria viviente” e sentidos de direção, em “volando hacia atrás”. Em relação à obra
literária Vigilia del Almirante, o que se pode observar é a rica possibilidade de análises e
interpretações, produções de sentido, gerados pelas diversas metáforas apresentadas no
decorrer da obra. Essa ocorrência está diretamente vinculada ao experimentalismo
linguístico que caracterizou grande parte das produções narrativas pertencentes ao
período literário denominado boom da literatura hispanoamericana no qual surge
também o gênero Novo Romance Histórico Latino Americano. Na análise desenvolvida
observou-se que o narrador atua de forma irônica quando trata da descrição da cena em
que as naus espanholas se atolam no mar de algas, realizando, pelo emprego da
metáfora, uma crítica à colonização das terras do Novo Mundo e uma defesa ao pouco
que restou da cultura das grandes civilizações pré-colombianas.
Os apontamentos aqui realizados acerca das figuras de linguagem dizem respeito
apenas a uma pequena parcela daquelas que a narrativa apresenta, sendo que a
concentração deste estudo privilegiou apenas a passagem que remete ao momento em
que as embarcações espanholas encalham numa massa de algas existente no Atlântico.
Mostrou-se, pois, o potencial da metáfora para representar, por substituição, o
elemento “massa de algas do Atlântico” por uma vasta gama de outras expressões que
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possibilitaram a remissão a esse elemento que operou a estagnação das embarcações em


pleno mar. O emprego dessa figura de linguagem possibilita também, como se viu, uma
grande possibilidade de perspectivas de leitura para essa passagem narrativa.
A obra mostra todo seu potencial para um estudo sobre a linguagem e processo
criativo do autor quando se toma consciência de que o que se estudou aqui, está
resumido a apenas quatro páginas da obra, que apresenta tão somente uma cena. Esse
fato serve como indício claro de que muito há no romance Vigilia del Almirante (1992)
para a realização de um estudo profundo tanto dos aspectos estruturais da obra, como
linguístico, por toda riqueza que se revela na forma artística com que esta é utilizada
pelo romancista paraguaio.

Referências

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. Rio de
Janeiro: Ediouro, s/d.
CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 16 ed. rev. e atual. São Paulo: Ática, 2006.
CHEVALIER, J.; GHERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e
Silva e outros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
ECO, Humberto. Semiótica e filosofia da linguagem. Trad. Mariarosaria Fabris e José
Luiz Fiorin. São Paulo: Ática, 1991.
FUENTE, Luiz José de La. La nueva novela hispanoamericana. Salamanca:
Universidad de Valladolid, 1996.
GARCIA M. , Othon. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Fundação
Getulio Vargas, 1992.
JAKOBSON, Roman. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasias. In:
Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1988.
JOZEF, Bella. História da Literatura Hispano Americana. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1986.
____. A máscara e o enigma. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2006.
LACAN, Jacques. O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
ROA BASTOS, Augusto. Vigilia del Almirante. Assunção: RP Ediciones, 1992.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições
Loyola, 1975.
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_____. Tempo e narrativa. Trad. Constança Marcondes Cesar. Tomo I. São Paulo:
Papirus, 1994.
SACKS, Sheldon (Org.). Da metáfora. Trad. Francisco W. A. M. van de Wiel e outros.
São Paulo: Pontes/EDUC/PUC, 1992.
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VIGÍLIA DA SUBMISSÃO

Bernardo Antonio Gasparotto (PG-UNIOESTE)

Em meados do século XV a Europa como um todo, mas principalmente a Espanha,


vinha passando por uma série de “transformações”, uma destas pode ser considerada a
“expulsão definitiva” dos mouros do território espanhol, como bem observa Jacques
Heers (1981, p. 334):

Este último reino, entretanto, é somente um longínquo herdeiro do


grande califado de Códova e um eco enfraquecido de sua civilização.
Nessa região isolada, aonde afluem os refugiados, protegida por uma
zona fronteiriça cercada de fortalezas, nesse reduto do Islã, espécie de
gueto, conserva-se apenas uma vida espiritual e artística, refinada, é
verdade, às vezes suntuosa, mas de um brilho artificial, sem esforço de
renovação, sem inspirações criadoras. A arte de Granada, cujo
Alhambra – o palácio vermelho – oferece ainda um maravilhoso
exemplo, parece ‘votada às expedições fastidiosas, aos jogos
complicados e sutis, a exercícios de estilo, cujo brilho excepcional, o
espantoso virtuosismo, nem sempre escondem uma certa pobreza’.

Nesta mesma linha manifestam-se Jules Isaac e André Alba (1967, p. 153) ao
afirmarem “Sabemos que ainda existia na Espanha um pequeno Estado muçulmano, o
reino de Granada. Foi ocupado em 1492 e incorporado a Castela”.
Outro fato que marcou profundamente a história européia foi o casamento de Isabel e
Fernando, unindo os dois maiores e mais poderosos reinos existentes no atual território
espanhol (Aragão e Castela), não vendo outra alternativa os demais reinos da região
acabaram por se unir (submeter) ao poder dos novos reis, isto marcou o inicio da união
política e territorial da Espanha. Com a expulsão do último “reino mouro” em território
Espanhol, os “reis católicos” tiveram toda liberdade para obrigar todos os que não eram
católicos a converterem-se ou a expulsá-los do território (ISAAC; ALBA, 1967, p. 153).
A Espanha nessa época ainda padecia de outro grave problema, a população fugia do
campo e dirigia-se para a beira das estradas e para as cidades, buscando escapar da
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miséria e das doenças, procurando uma nova e melhor vida, uma oportunidade, isto
acaba por causar uma crise agrária, e a população sofre ainda mais devido a escassez de
alimentos (HEERS, 1981:204).
Devido ao ambiente hostil que existia no mediterrâneo provocado pelo conflito com
os mouros, a Espanha se obriga a buscar novas rotas para chegar até as índias e a demais
mercados de especiarias, isso leva a realizarem-se novas incursões pelo Oceano
Atlântico (HEERS, 1981, p. 334).
Assim, pode-se perceber que o contexto social de onde partiam os navegantes é um
ambiente radical e totalitário, dominado pela Igreja Católica, isto posto percebe-se que
muitos tripulantes de frotas que se aventuravam em busca de fama e riquezas eram
judeus e mouros (muitas vezes exilados, e que viam uma chance de mudar de vida), ou,
no mais das vezes, população cristianizada, sem educação e miserável, que mal
poderiam subsistir no seio da sociedade em que estavam inseridos.
O contato inesperado de Colombo com a ilha de Guanahaní, no Caribe, na
madrugada de 12 de outubro de 1492, com sua natureza exuberante em espécies de
fauna e flora e seus habitantes vivendo em estado natural, quando imaginava haver
atingido seu grande objetivo de chegar a Cipango ou Cathay, foi, seguramente, marcado
pelo signo dos equívocos. Equívocos que se multiplicaram em uma escala binária, uma
vez que os nativos, da mesma forma como os europeus, passaram a ver os estranhos
seres vindos do mar sob configurações distanciadas da realidade, confundindo-os com
divindades presentes em suas tradições culturais milenares. Esses equívocos chegaram
ao ponto de nomear estas terras, anexadas à coroa espanhola pelos atos de tomada de
posse executados por Colombo, de América. Homenagem a outro navegante italiano,
Américo Vespúcio, que, supostamente, teria sido o primeiro a dar-se conta de que as
terras encontradas por Colombo, em 1492, constituíam um continente.
Estas impressões equivocadas de um e outro acabaram se perpetrando sob diferentes
formas e gerando novas incoerências na percepção do outro: Colombo registra as suas
em seu Diário de bordo – escrito durante todo o trajeto de travessia e retorno, bem como
em uma extensa carta redigida logo de sua chegada à Europa, endereçada aos Reis
Católicos. Esta carta foi impressa em 1493 e se espalhou pelos reinos europeus. Assim,
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Colombo torna-se o primeiro Cronista das Índias. Foi ele, deste modo, o responsável
pela configuração primordial – no imaginário do povo europeu do final do século XV –
das terras e gentes com as quais ele e sua tripulação contataram em sua primeira
travessia ao Atlântico, ou seja, futuro continente americano.
O descobrimento da América constitui um tema recorrente nas literaturas hispânicas.
Já se havia manifestado o crítico Lasso de la Vega (1890), ao lamentar que a grande
façanha do Almirante Cristóvão Colombo, não tenha tido na literatura espanhola dos
séculos XV e XVI um poeta como Camões para celebrar quadros tão dramáticos que,
certamente, sua aventura poderia inspirar. Menéndez Pelayo faz, entretanto, algumas
conjecturas sobre as possíveis causas que possam ter limitado o alcance poético do tema
que envolve as realizações do Almirante, a quem chama de “el gran poeta”: “[...] el
conflicto fue con la naturaleza y no con los hombres y ese género de luchas no sirven
para el teatro. Pueden reflejarse de algún modo en los raptos y visiones de la poesía
lírica” (MENÉNDEZ PELAYO, 1949, p. 311).
Os romancistas espanhóis, ao abordarem a poética do descobrimento, buscam, na
maioria das vezes, resgatar imagens que enaltecem o lado heróico da empresa, da
importância da participação do Estado Espanhol neste projeto ou a reconstituição de
aspectos sócio-históricos e culturais da vida na Espanha do início do Renascimento,
período no qual este evento está inserido.
Todorov (1993) reforça a idéia de estranheza ocorrida devido ao descobrimento e ao
contato entre autóctones americanos e exploradores europeus, traçando um paralelo com
os outros continentes, Ásia e África poderiam ter costumes totalmente diferentes, mas
sua existência sempre foi certa, o que ocorrera no novo mundo foi o contato com algo
que até o momento para os europeus era totalmente novo, inexistente:

Na ‘descoberta’ dos outros continentes e dos outros homens não


existe, realmente, este sentimento radical de estranheza. Os europeus
nunca ignoraram totalmente a existência da África, ou Índia, ou da
China, sua lembrança esteve sempre presente, desde as origens. A Lua
é mais longe do que a América, é verdade, mas hoje sabemos que aí
não há encontro, que está descoberta não guarda surpresas da mesma
espécie. (TODOROV, 1939, p. 4).
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O autor supra mencionado prossegue dizendo que Colombo mantinha-se afastado


sentimentalmente dos nativos, considerando-os apenas como “especiarias” de uma terra
distante: “Colombo fala dos homens que vê unicamente porque estes, afinal, também
fazem parte da paisagem. Suas menções aos habitantes das ilhas aparecem sempre no
meio de anotações sobre a Natureza, em algum lugar entre os pássaros e as árvores.”
(TODOROV, 1939, p. 33).
Criatividade e imaginação são, neste caso, aspectos imprescindíveis para a arte
poética, uma vez que a história oficial não dispõe de fontes que possam recriar o que
aconteceu na ilha durante a ausência do Almirante. O que aparece registrado no Diário
de bordo de Cristóvão Colombo sobre este evento, revela apenas alguns nomes que
integravam o grupo, destacando as funções de mando de seus homens de confiança, os
encargos que esperava que em sua ausência desempenhassem e as provisões que na ilha
lhes deixava. Na Relación del Segundo Viaje, Colombo aponta que, ao retornar à ilha,
foi informado por um dos homens do cacique Ocanaguarí de que os fatos que aí
ocorreram culminaram na morte de todos os espanhóis. O almirante registra:

Este me dixo [en] cómo la gente que yo avía dexado en la çiudad


ovieron entre sí discordia y uno mató a otro y que Pedro, repostero de
V. Al., se avía ido con una gran parte de jente para otro rey que se
llama Cahonaboa, el cual posee tierra en que ay mucho oro; y un
vizcaíno, que se llama Chacho, se avía ido con otros vizcaínos y
moços; solamente avía quedado Diego de Arana de Córdoba con
honze; y que unos tres se avían muerto de dolencia, qu’ellos mesmos
deçían que era la causa el gran tracto de las mugeres, diziendo que,
cuantos quedaron allí, que cada uno avía tomado <cuatro mugeres>, y
no solamente estas les abastava, que les tomavan las muchachas. Y
deçían qu’el comienço d’esta discordia fue que, luego que yo partí,
cada uno no quiso entrar a obediencia ni apañar oro salvo para sí, sino
Pedro, repostero, y Escobedo – a éste avía yo dexado el cargo de todas
las cosas –. Y que los otros no entendían salvo con mugeres y
moravan en casa d’ellas, y que Pedro Y Escobedo mataron uno que se
llamaba Jácome, y después se fueron con sus mugeres a este
Cahonaboa; y dende a çierto tiempo bino este Cahonaboa y de noche
puso fuego en la villa, la cual quemó toda que no quedó nada […]
(VARELA, 1997, p. 243).
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O discurso empregado busca revelar uma nova faceta do encontro entre os dois
mundos, ou seja, a percepção do “outro”. Se Cristóvão Colombo, conforme registra
Todorov (1983, p. 47), em toda sua experiência de descoberta não chegou a dar-se conta
da existência do “outro”, já que “Colombo descobriu a América, mas não os
americanos”.
Como exemplo de viajante que inspirou a aventura de Colombo podemos mencionar
Marco Polo. Este se aventurou a conhecer outras culturas, a sair de um determinado
lugar – de sua cidade – e, andando em princípio sem roteiro prévio, permitiu se
defrontar com o desconhecido. Nesse percurso, o que encontrou, mais do que a
diferença, foi a si mesmo, até então não estranhado e, portanto, desconhecido. Isto posto
poderíamos pensar então nos outros lugares como não somente circunscritos a espaços
geográficos, mas também a tudo que nos cerca e do qual nos diferenciamos,
caracterizando-se assim como referência para o próprio reconhecimento. (ZANELLA,
2005).
Isto posto percebe-se a íntima relação desenvolvida com o posicionamento,
levantado por Ítalo Calvino (apud. ZANELLA, 2005), de que “os outros lugares são
espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que
não teve e o que não terá”.
A partir daí podemos observar claramente a presença da alteridade, do se ver no
outro, se conhecer a partir do estranhamento, do sou o que sou porque não sou, mas em
última análise um igual. Conceito que fora melhor desenvolvido entre 1918 e 1924,
Bakhtin escreve diversos ensaios cujo tema central é a relação entre o eu e os outros. O
eu só existe em diálogo com os outros, sem os quais não se poderá definir. O processo
de auto-compreensão só se pode realizar através da alteridade, isto é, pela aceitação e
percepção dos valores do Outro (CEIA, 1997).
Compreensão esta que não se manifestou quando da chegada dos europeus às terras
americanas. Ainda que de maneira um tanto primitiva, é possível que se observe alguns
germens da teoria de Durkheim, quando refere-se a necessidade de agrupar sociedades
em tipos sociais, partindo de suas semelhanças, sendo que em se tratando de sociedades
caracterizadas como de solidariedade orgânica acaba-se por exigir que ocorra uma
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divisão do trabalho social. Tal divisão pode ser vista no seio da própria sociedade
européia em que a hierarquia das classes até a Revolução Francesa estavam muito bem
marcadas e que foram transportadas para as novas terras logo de sua descoberta. Os
autóctones logo foram relegados a um status de sub-raça, sendo vistos apenas como
meio através do qual fosse possível alcançar interesses outros da classe dominante
(européia).
E foi sobre a perspectiva de uma sociedade retrograda moralmente e perpetuada pelo
signo da dominação bélica que os colonizadores espanhóis vilipendiaram uma série de
civilizações e culturas, em nome de um Deus intolerante e de uma pretensa ordem social
e moral imposta pela monarquia.
Como foi mencionado anteriormente a historiografia oficial enaltece a importância e
a nobreza de Colombo quando da chegada ao novo continente, sendo que as literaturas,
principalmente as européias, até meados da década de 90 do século XX cantam as
proezas e as maravilhas da empresa realizada por Colombo e seus homens.
A reação a esta espécie de tradição literária se deu através da literatura hispano-
americana com o Novo Romance Histórico Latino Americano que possibilitou a
exploração de outras perspectivas em relação a fatos históricos postos pela
historiografia oficial. Desta forma possibilita-se que a história seja contada pelo
perdedor, oprimido ou pelas minorias, e que mediante o pacto realizado com o leitor,
que é embasado na confiança, este possa desenvolver uma consciência crítica acerca das
possibilidades que o fato histórico possui e não somente a perspectiva defendida pelo
historiador, ainda que este se baseie em registros e faça de sua profissão uma “ciência”.
É sobre a égide do Novo Romance Histórico Latino Americano que surge a obra
Vigilia del Almirante (1992) de Augusto Roa Bastos, que mediante o uso de estratégias
narrativas próprias desta espécie de produção literária como a paródia, o dialogismo, a
carnavalização e a polifonia, trabalha de forma distinta a chegada de Colombo à
América, bem como toda a sua figura de herói histórico.
Mediante sua obra Roa Bastos se torna um dos porta-vozes da população da América
Latina, que realiza uma tentativa de recuperação de valores e repúdio a princípios
enaltecidos pela sociedade européia, questionando fatos postos pela história tradicional,
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dando voz ao explorado, reforçando a idéia defendida pela Nova História, que tem
como principal defensor Jacques Le Goff.
O uso da estilística para trabalhar uma nova perspectiva do fato histórico pode ser
observada pela constante utilização de quebras de raciocínio existentes na obra, restando
claro que assim como os fatos que são narrados acerca dos europeus são confusos senão
desconexos, assim também se manifestavam seus pensamentos, princípios e ações à
época do descobrimento.
Uma das principais características que a população nativa possuía era a tradição oral,
que foi quase que totalmente suprimida pela tradição escrita imposta pela sociedade
“cientifica” européia. Mas mesmo com toda a pressão, tanto sócio política quanto
econômica, imposta pela cultura ocidental, a tradição oral manteve-se e pode muito bem
ser observada quando da apropriação de alguns termos e da utilização da linguagem oral
na escrita. Esta sobrevivência pode ser vista durante parte da obra Vigilia del Almirante
(1992), como é o caso da referência a tradição medieval seguinte: “La cantaban por los
pueblos los trovadores” (BASTOS, 1992, p. 38), ou em momentos como nos títulos de
várias partes do livro como o VIII (“Cuentan los cronistas”, em que existe um referência
muito presente em relação às lendas da tradição autóctone), X (“Cuenta el narrador”),
XXIII (“Cuenta el narrador”), XXVII (“Cuenta el Almirante”), XLV (Cuenta el
Narrador”). Há o enaltecimento da tradição oral e a comprovação de sua supremacia
quando um dos narradores trata das lendas: “La leyenda pasó por fin al dominio común.
Lo que confirma el natural y simple hecho de que la tradición oral es la única
comunicación que no se puede saquear, robar ni borrar” (BASTOS, 1992, p. 65),
comentário que pode ser estendido por analogia a tantas outras características da cultura
nativa que foram destruídas, roubadas, maculadas e apagadas pela sociedade alienígena.
Outra referência a este assunto pode ser visto a seguir: “El habla y la escritura son
siempre, inevitablemente, tomadas en préstamo de la palabra oral, a un hablante en
trance de convertir su pensamiento en sonidos articulados. No nos podemos comunicar
sino sobre este suelo arcaico” (BASTOS, 1992, p. 123). Mantendo o foco sobre a
importância da tradição oral e abordando em conjunto relações de perspectiva e verdade
em contradição a palavra escrita temos: “La palabra viva dice siempre la verdad aunque
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no la diga; la dice con una manera de decir que dice por la manera. Vuela libre. La letra
se ha hecho para mentir. Cristaliza en la tinta la parte oscura de la verdad […]”
(BASTOS, 1992, p. 168). Isto posto, a tradição escrita que visa materializar e garantir a
perpetuação de valores não tem em sua natureza as características da imortalidade, mas
tão somente a legitimação de interesses de indivíduos ou classes, estando, em verdade,
fadada à destruição, ou na melhor das hipóteses à caducidade.
Na obra em análise a dialogia, que se manifesta principalmente devido a
intertextualidade que pode ser inferida por um bom leitor, pode ser observada em
diversos pontos, as principais obras que mantêm um dialogo com a Vigilia del
Almirante são El arpa y la sombra, El ultimo crímen de Colón, Viaje a la semilla, todos
Novos Romances Históricos Latino Americanos que buscam trabalhar com uma
perspectiva referente ao descobrimento da América diversa da constante na
historiografia oficial.
E nesta idéia de trabalhar as questões que envolvem Literatura e História, a obra
também se manifesta, sendo isto possível pelas características existentes no Novo
Romance Histórico, sendo a que mais possibilita este tipo de raciocínio a metaficção.
Em relação à questão que fora mencionada pode-se observar:

¿Cómo optar entre hechos imaginados y hechos documentados? ¿No


se complementan acaso en sus oposiciones y contradicciones, en sus
respectivas y opuestas naturalezas? ¿Se excluyen y anulan el rigor
científico y la imaginación simbólica o alegórica? No, sino que son
dos caminos diferentes, dos maneras distintas de concebir el mundo y
expresarlo. Ambas polinizan y fecundan a su modo —para decirlo en
lenguaje botánico— la mente y la sensibilidad del lector, verdadero
autor de una obra que él la reescribe leyendo, en el supuesto de que
lectura y escritura, ciencia e intuición, realidad e imaginación, se
valen inversamente de los mismos signos (BASTOS, 1992, p. 55).

A existência de um narrador que se caracteriza como historiador (Parte IX) auxilia no


processo de conferir veracidade ao relato com o qual se está trabalhando. E levando-se
em consideração que, em última análise, tanto o historiador quanto o romancista
trabalham com perspectivas, difícil se torna acreditar piamente ou independente de um
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raciocínio crítico sobre qualquer uma destas produções. E sobre essa concepção ainda é
possível observar a seguinte passagem da obra de Roa Bastos (1992, p. 84):

Los libros de ciencia, cosmografía, astronomía y demás, ¿no son


acaso, todos, simples relatos de viajeros que han visto las mismas
estrellas desde lugares diferentes, las mismas verdades científicas, las
mismas fábulas imaginarias que son el revés de la realidad más
común?

Outra característica que possibilita a observação e materialização da multiplicidade


de perspectivas sobre um mesmo fato, se manifesta por meio da existência de três focos
narrativos, um em que existe o posicionamento de historiadores (cronistas), outro que
em apenas uma parte da obra (XLVIII) ocorre a manifestação de um Ermitão, e ainda
um em que o próprio almirante Cristóvão Colombo conta a história.
Colombo na última página do livro realiza uma súplica em seu leito de morte, deixa
em seu testamento todas as terras por ele conquistadas aos seus habitantes de origem e
pede perdão pelos pecados que direta e indiretamente cometeu: “Los grandes daños y el
holocausto de los indios deben ser reparados material y espiritualmente en sus
descendientes y sobrevivientes” (BASTOS, 1992, p. 298). Mesmo em se tratando de
uma obra literária o leitor deve perceber a densidade existente em tal trecho,
desenvolvendo um olhar crítico sobre o fato histórico ocorrido, mas com uma idéia
diversa da posta pela historiografia oficial, daquela defendida pelos vencedores ou por
uma determinada classe que visa tão somente a manutenção de seus interesses,
conferindo atenção a perspectiva dos derrotados, no mundo das possibilidades.
A atuação desse último narrador assume todas as características do que Wayne Booth
chama de autor-implícito. Ele está imbuído de uma enorme complexidade, capaz de
assumir, nesse sentido, diferentes perspectivas. Em suas atuações, percebe-se a
incorporação, não só dos pressupostos da construção do romance, mencionados por Roa
Bastos no prólogo, como também de várias das proposições da nova história, por meio
de seus discursos de múltiplas vozes, num intrincado jogo de perspectivas e funções,
conduzindo, ordenando e reordenando a estrutura da narrativa, sempre num processo
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dúbio de construção e desconstrução das imagens de Colombo, as quais são


contrapostas às versões da lenda do Piloto Anônimo.
A atuação desta voz, que remete à figura do autor implícito, imprime à obra as
premissas de uma metaficção historiográfica, segundo o que aponta Linda Hutcheon ao
afirmar que “a ficção pós-moderna sugere que reescrever o passado na ficção e na
história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e
teleológico” (1991, p.147). À medida que este narrador/autor-implícito questiona,
corrige, interrompe, completa ou ironiza os relatos memorialísticos do universo
diegético do descobrimento da América do outro eixo condutor da narrativa – as
memórias de Colombo –, confere à obra o seu caráter crítico e desestabiliza a
possibilidade da “verdade” única. Os dois fios condutores da narrativa podem, também,
em certos momentos, fundir-se, imbricar-se, confundir-se, eliminado fronteiras espaciais
e temporais que separam, a princípio, a atuação dos distintos narradores com suas
diferentes perspectivas.
A repercussão que o novo romance histórico hispano-americano alcançou ao
promover leituras críticas da história, amparadas na visão dos excluídos, não é
totalmente desaprovada pela história em suas posições mais contemporâneas. O registro
de fatos históricos sob visões que não sejam exclusivamente aquelas consideradas
tradicionais é uma das características da “nova história” mencionadas por Peter Burke
(1992) e institui um marco de aproximação entre a literatura e a nova história. Este
aspecto está presente no romance de Roa Bastos por meio da instituição de diferentes
focos narrativos para se ler o passado, considerando-se, nesse processo, a revisão da
visão monológica sob a qual a história da América foi, a princípio, registrada.

Referências

BASTOS, Augusto Roa. Vigília del Almirante. Paraguai: RP ediciones, 1992.

BURKE, P. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São
Paulo: Editora da UNESP, 1992.
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CEIA, Carlos. De Punho Cerrado: Ensaios de Hermenêutica Dialéctica da Literatura


Portuguesa Contemporânea. 1997. Disponível em:
<http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/ A/alteridade.htm>. Acesso em: 29 de Set. de
2008.

HEERS, Jacques. História Medieval. 3ª ed. São Paulo: DIFEL, 1981.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro:


Imago, 1991.

ISAAC, Jules; ALBA, André. História universal: Idade Média. 1° ed. São Paulo:
EDITORA MESTRE JOU, 1967.

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Claret, 2002.

MENENDÉZ PELAYO, M. Estudios sobre el teatro de Lope de Vega. In: GONZÁLEZ


PALENCIA, A. (dir.)- Edición Nacional de las obras completas de Menéndez Pelayo.
Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1949.

TODOROV, T. A conquista da América. A questão do outro. Trad. Beatriz Perrone


Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

VARELA, C. Cristóbal Colón: Los cuatro viajes. Testamento. Madrid: Alianza, 1986.

ZANELLA, Andréa Vieira. Sujeito e alteridade: reflexões a partir da psicologia


histórico-cultural. IN.: Psicologia & Sociedade. n° 17, p. 99-104; mai/ago.2005.
A CRÔNICA COMO PROTAGONISTA NA INTRODUÇÃO DA LITERATURA
NO ENSINO MÉDIO

Bianca Cristina Buse (PG-UFSC)

Há bastante tempo é possível observar que o ensino de literatura na escola não é algo
estimulante, pelo contrário, é frustrante. Frustrante para o aluno que, ao entrar no ensino
médio, é massacrado com uma tonelada de informações superficiais sobre
características de escolas literárias. E mais frustrante ainda para o professor que, por ter
que cumprir a grade de conteúdos da série e tendo que se ajustar às cobranças
pedagógicas da escola, principalmente com foco no vestibular, acaba por fracassar na
tentativa de formar novos leitores ávidos e apaixonados pela literatura.
O desinteresse pela leitura de literatura por esses jovens alunos não é um ato de
rebeldia ou de puro desprezo, mas é fruto de uma série de fatores que propiciaram a
fertilização dessa obstinada apatia pelo estudo de textos literários.
Ainda que possamos elencar muitos desses fatores, é incerto dizer que a mera
identificação das falhas pode acarretar numa mudança positiva e significativa no atual
processo de ensino-aprendizagem de literatura. É necessário voar mais alto. É preciso ir
além do reconhecimento da necessidade de mudanças e das conjecturas. É
imprescindível agir.
As aulas de literatura com o propósito de memorização das características de estilos
de época e nomes de autores com suas respectivas obras, ou ainda como pretexto para
exercícios de análise gramatical dos textos literários, não atendem mais as necessidades
educativas dos jovens. E a simples imposição de leituras, sem um critério muito bem
definido e plausível com uma nova proposta de prática educacional, via de regra, traz
resultados danosos ao desenvolvimento desse novo leitor, que entende literatura como
sinônimo de trabalho inútil. Conforme nos aponta Luzia de Maria, em seu livro O clube
do livro: ser leitor – que diferença faz? a escola hoje, muitas vezes, deixa de lado a
leitura da literatura em si para trabalhar aspectos pontuais do texto:

Em lugar do contato direto e saboroso com a literatura, em lugar de


narrativas arrebatadoras, capazes de fisgar o leitor para sempre,
entram os estudos literários, a história da literatura, a obra escolhida
para exemplificar o estilo de uma época, dados para sempre
memorizados e devolvidos nas provas, análises de aspectos
linguísticos e outros. (MARIA, 2009, p.46)

Além disso, o despreparo do professor para uma nova concepção de trabalho de


leitura é algo também assustador. A grande maioria ainda se vê presa ao livro didático
para o desenvolvimento de uma construção de sentidos através da leitura. Entretanto,
esse material, na maioria das vezes, apresenta uma visão bastante tradicional de leitura,
o que não possibilita a abertura para a sondagem da pluralidade de sentidos que se pode
extrair de um texto literário. Resultado: leituras fechadas, interpretações únicas,
reflexões bitoladas e nada que se possa caracterizar como fonte motivadora para o
progresso do aluno, que poderia vir a ser um leitor em potencial.
Os parâmetros curriculares nacionais (PCNs) trouxeram uma nova oxigenação de
possibilidades processuais de ensino, na medida em que apresentam uma seleção de
conteúdos baseadas em eixos estruturadores que se desdobram em competências e
habilidades. Em se tratando de literatura, o objetivo deve ser propiciar ao aluno o
desenvolvimento da visão crítica do mundo e habilidade de leitor proficiente dos
diversos gêneros representativos de nossa cultura. Porém, apesar de abrir novos
horizontes, estimulando a formação crítico-participativa dos alunos, as propostas dos
PCNs vão de encontro ao vestibular que ainda, em algumas instituições, num sistema
incoerente ao processo de aprendizagem, cobra a memorização de muitos dados (que
não garantem, em absoluto, a efetiva aprendizagem).
E no meio dessa disputa acirrada de atenção, o professor, muitas vezes, não sabe qual
caminho deve seguir. E aqueles que optam por uma trilha diferenciada, na tentativa de
abarcar os dois lados, podem não atender bem a nenhum dos dois e prejudicar ainda
mais o aluno.
Diante dessa imensidão de fatores que, direta ou indiretamente, afetam o processo de
desenvolvimento da leitura de literatura no ensino médio, é que se formata esta proposta
de estudo das possíveis causas desse alienamento cultural – no qual o jovem estudante
figura como protagonista.
Neste estudo, a análise de algumas práticas que promovem o desinteresse pela leitura
de textos literários apresenta-se com o propósito de, em contrapartida, favorecer uma
ação focada no estímulo da leitura. Tendo em mente a busca de um meio que
proporcione essa ponte entre o jovem e a leitura da literatura, sugere-se, aqui, o trabalho
com o gênero textual crônica – como eixo de motivação para inserção dos alunos no
universo da literatura.
A opção do gênero crônica, como sustentáculo de desenvolvimento do processo de
leitura, não foi por mero acaso. Com o estudo do gênero é possível averiguar que muitas
de suas características atraem o leitor (e também o jovem aluno) por apresentarem
brevidade, temas relacionados ao cotidiano, efemeridade, simplicidade, despretensão
entre outras. Entretanto, o que o leitor pode não perceber é que, ao mesmo tempo em
que a crônica se mostra como um texto de leitura mais fácil, ela pressupõe um leitor de
competências de leitura mais apuradas, detentor de um vasto conhecimento de mundo,
tal qual o autor, capaz de manusear, com propriedade, temas diversos.
Mas como isso não se nota ao iniciar o processo de leitura, o leitor vai se enredando
nesse mundo literário, fazendo relações e inferências, dialogando com outros textos e
com seu prévio conhecimento de mundo, sem ao menos perceber.
Além dessa facilidade de envolvimento do aluno com um texto literário, na
expectativa de não haver uma recusa inicial – normalmente apresentada pelos
estudantes -, a crônica ainda traz mais uma peculiaridade muito conveniente para uma
estratégia bastante adequada ao trabalho com a leitura de literatura, a saber: é um gênero
que apresenta diferentes tendências e marcas de épocas literárias, permitindo assim, o
desenvolvimento de um processo de sequência didática muito apropriado como
introdutório ao estudo da literatura e aos demais gêneros.
O intuito inicial é instigar no aluno o gosto pela leitura de textos literários,
priorizando o fenômeno artístico do mesmo, para que se possa desencadear discussões
das várias interpretações possíveis – já que a literatura permite pluralidade de sentidos –
promovendo o crescimento intelectual do estudante.
Opta-se aqui por não definir um único escritor para esse trabalho com as crônicas, até
porque temos um leque muito grande e riquíssimo de opções para o desenvolvimento do
mesmo. Dentre os autores renomados, podemos destacar alguns como Carlos Heitor
Cony, Ignácio de Loyola Brandão, Luis Fernando Verissimo, Mario Prata, Martha
Medeiros, Moacyr Scliar, Nelson Rodrigues, Rubem Braga. Não se trata, entretanto, da
exclusão de outros escritores, mas apenas de uma escolha para uma abordagem inicial
desse gênero, e também pela facilidade de localização dos textos desses autores, tendo
em vista a publicação de suas crônicas em conceituados jornais (versão impressa e
online) e em outros diversos meios (revistas, blog, homepage etc.) assim como também
a grande quantidade de publicações existentes de suas crônicas em livros.
Acreditando neste trabalho e nos seus frutos, a sucessão natural provém da maior
intimidade com o texto literário, habilitando o aluno ao desenvolvimento do processo de
ensino-aprendizagem da literatura, inserida num contexto histórico-social.
O referencial teórico que serviu como alicerce para o desenvolvimento dessa temática de
estudo está focado, principalmente, nas formas de concepção de leitura e estética da recepção;
no conceito de literatura enquanto um meio de interação social que possibilita a troca de
experiências estéticas e interpretações de mundo; no processo de ensino da leitura como base
para o desenvolvimento crítico do jovem como cidadão e nas crônicas de vários escritores.
A leitura, como estratégia de ensino, não deve privilegiar uma única leitura autorizada,
segundo Kleiman (2007). Isso se valida, pois o texto literário não é estagnado, fechado em sim
mesmo; é produto de uma leitura, da construção de sentidos pelo leitor, o que possibilita uma
pluralidade de interpretações.
Antonio Candido reflete muito bem essa relação entre obra literária e leitor ao dizer que:

A literatura é pois [sic] um sistema vivo de obras, agindo umas sobre


as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes as
vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é um
produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo,
homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos
que atuam um sobre o outro, (CANDIDO, 1985, p.74).

Assim, o leitor é visto como agente ativo que participa na construção do sentido. Da
mesma forma, para Jauss (1994), a leitura é produto de um diálogo de interação entre
obra e leitor e, em Iser (1996) é fácil perceber que “a estrutura do texto e o papel do
leitor estão intimamente unidos”.
A literatura tem um importante papel na sociedade, conforme nos aponta Rildo
Cosson:

A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar


o mundo por nós mesmos [...] é uma experiência a ser realizada [...]
ela é a incorporação de outro em mim sem renúncia da minha própria
identidade. No exercício da literatura, podemos ser outros, podemos
viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do
espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos. [...]
É por possuir essa função maior de tornar o mundo compreensível
transformando sua materialidade em palavras de cores, odores,
sabores e formas intensamente humanas que a literatura tem e precisa
manter um lugar especial na escola. (COSSON, 2007, p.17).

Portanto, não se pode imaginar a leitura da literatura no ensino médio como cartas
marcadas, como apenas o cumprimento, página após página, do conteúdo programático
apresentado pelo livro didático. Ao contrário, o estímulo à leitura deve ser uma
constante, e sempre de forma a possibilitar que não seja um exercício de análise da
mensagem subentendida, mas sim um passaporte para a viagem metafísica que o leitor
tem direito a fazer (escolhendo o meio de transporte, a classe, a duração e sem destino
predefinido).
A aventura da leitura não deve se fixar apenas numa tentativa de adivinhação do
sentido que o autor imaginou e a pura aceitação deste, conforme nos aponta Marisa
Lajolo:

Ler não é decifrar, como um jogo de adivinhações, o sentido de um


texto. É, a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significação,
conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada
um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e dono da
própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela,
propondo outra não prevista. (LAJOLO, 2009, p. 101).

E, para desmistificar o ensino da literatura como sendo exclusivamente a apreciação


das características de escolas literárias ou o uso do texto literário como pretexto para o
trabalho de análise linguística, o presente estudo propõe a análise do gênero discursivo
crônica como estratégia de motivação da leitura e introdução ao estudo da literatura.
A crônica, conforme Tonelli (2004, p. 10), “é um gênero que chega ao leitor com a
força da linguagem coloquial e, por isso, registra a vida em seu movimento e nos seus
fazeres”. Isso, aliado a sua brevidade e ao seu dinamismo, prende a atenção do leitor, e
por ser um texto aberto, permite uma pluralidade de significações gigante, tramadas na
interação entre leitor, texto e autor.
Essas características da crônica e sua grande proximidade com a linguagem oral a
torna um texto mais acessível, o que acaba aumentando o interesse do leitor,
principalmente do leitor inicial, pela facilidade que terá nessa leitura.
José Luís Jobim aposta numa espécie de “gradação textual” como método de
inserção da literatura na vida escolar, de forma a fazer com que o aluno se sinta mais a
vontade com os textos e possa, gradativamente, ir aperfeiçoando e alargando seu
horizonte de leituras:

A introdução do texto literário em classe deve sempre ter em conta o


universo dos seus receptores, estabelecendo, se for o caso, uma
“gradação textual” para trazer ao público estudantil primeiramente o
que for mais fácil para ele, para depois, paulatinamente, chegar ao
mais difícil [...] a partir do momento que despertamos a atenção do
educando para a Literatura, a partir de textos mais “fáceis”,
poderemos, com melhor efeito, introduzi-lo no mundo das linguagens
mais “difíceis” (por exemplo, a do Barroco), ou no mundo dos temas
que não fazem parte (ainda) de seu universo. (JOBIM, 2009, p. 117).

O incentivo e motivação à leitura através de textos que, aparentemente, são de fácil


leitura para o aluno e, dentro de sua temática, o atraem, pode incitar o jovem a se
permitir, cada vez mais, a ter essa relação com a literatura, através da busca de mais
possibilidades de leituras para o mesmo texto, ou do contato com novos textos literários.
É nessa perspectiva que se enquadra a proposta de trabalho deste estudo que visa ao
incentivo da leitura de crônicas, como meio de inserção do aluno do ensino médio na
cultura literária. Partindo da leitura e análise das crônicas de escritores diversos como
motivação para o maior interesse pela literatura (tendo em vista que esses textos são
mais próximos da realidade dos alunos e, portanto, estabelecem um maior contato com
os mesmos e, consequentemente, maior aceitação), busca-se uma maior integração
desses estudantes com esse mundo da arte das palavras.
Depois desse primeiro contato literário, pressupondo uma maior aproximação do
aluno com a literatura, sem os bloqueios causados pela tentativa enfadonha e maçante
de iniciar esse estudo pela mera apresentação de informações da periodização literária,
acredita-se que o aluno terá maior receptividade com outros textos literários, uma vez
que já terá uma certa intimidade e saberá identificar, após os estudos necessários,
características próprias dos textos; assim como também, após o trabalho com crônicas –
que estabelecem um diálogo com o leitor, promovendo reflexões sobre o cotidiano – o
discente poderá desenvolver um grau mais elevado de análise da literatura e da
sociedade.
E por que não dizer que esse iniciante na arte literária pode vir a perceber que o texto
envia sinais e, a partir deste momento, conforme Umberto Eco (2002), ele pode deixar
de ser um leitor-empírico e se interessar em observar as estratégias usadas pelo autor-
modelo, para descobrir as regras do jogo e se tornar então um leitor-modelo.
A partir desse momento de amadurecimento como leitor, o aluno já terá condições de
ler, compreender e apreciar outras obras literárias, consideradas por ele, a princípio,
mais complexas e, dessa maneira, estabelecer as relações necessárias para o
entendimento da história da literatura, verificando que não existe uma separação,
propriamente dita, da obra, do autor e do contexto histórico-social, tendo em vista que
eles se complementam na análise literária.
Todas essas mudanças são válidas e possíveis, entretanto exigem um repensar geral
no ensino da leitura da literatura. Regina Zilberman (1988) mostra que a escola tem
poder para promover essas mudanças e fazer da leitura um instrumento de libertação
dos leitores.

REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7. ed.
São Paulo: Ed. Nacional, 1985. P. 74.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2007. P.
17.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: 34, 1996.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São
Paulo: Ática, 1994.

JOBIM, José Luís. A literatura no ensino médio: um modo de ver e usar. In:
ZILBERMAN, Regina; ROSING, Tania M. K. (Orgs.). Escola e leitura: velha crise,
novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. p. 117.

KLEIMAN, Angela . Oficina de leitura: teoria e prática. São Paulo: Pontes,


2007.

LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. Será que não é mesmo? In: ZILBERMAN,
Regina; ROSING, Tania M. K. (Orgs.). Escola e leitura: velha crise, novas
alternativas. São Paulo: Global, 2009.p. 101.

MARIA, Luzia de. O clube do livro: ser leitor – que diferença faz? São Paulo: Globo,
2009, p. 46.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: área


de linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: Secretaria de Educação Média e
Tecnológica / MEC, 1999.
TONELLI, Regina de Oliveira. A desfronteirização do gênero crônica na comunicação
contemporânea. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio
de Janeiro, 2004. p. 10

ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1988.


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DISCUSSÕES SOCIAIS E POLÍTICAS EM “A VOLTA DO MARIDO


PRÓDIGO”

Brenda de Sena Maués (PG/UFPA)


Rosalina Albuquerque Henrique (PG/UFPA)

Livro de estreia do escritor mineiro João Guimarães Rosa no universo literário,


Sagarana, escrito em 1937, composto a priori por doze contos, concorreu, em 1938,
sob o título provisório de Sezão, que foi substituído por Contos, ao prêmio Humberto de
Campos, promovido pela livraria José Olympio. A obra ficou em segundo lugar,
perdendo por três votos a dois para Maria Perigosa de Luís Jardim. Sobre o momento
em que Sagarana foi escrito, Rosa revela:

quando chegou a hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito.


Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das
minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele
poderia embarcar, inteira, no momento, a minha concepção-do-
mundo. [...] Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o
que ela para mim representava, como corpo e como alma; como um
daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno,
principalmente. (Grifo do autor). (ROSA, 2001, p. 23-24)

Em 1945, o criador de Riobaldo retoma os originais de Sagarana e refaz o livro


suprimindo três histórias: “Questões de família”, “Uma história de amor” e “Bicho
mau”, esta última aparecendo, posteriormente, em Estas Estórias. O volume, então com
nove contos, é publicado em 1946 pela Editora Universal e foi considerado pela crítica
“como uma das mais importantes obras de ficção aparecidas no Brasil contemporâneo”
(PEREZ, 1968, p. 31). Antonio Candido, num dos seus trabalhos sobre a obra, conclui
seu parecer afirmando:

Não penso que Sagarana seja um bloco unido, nem que o Sr.
Guimarães Rosa tenha sabido, sempre, escapar a certo pendor
verboso, a certa difusão de escrita e composição. Sei, porém, que,
construindo em termos brasileiros certas experiências de uma altura
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encontrada geralmente apenas nas grandes literaturas estrangeiras,


criando uma vivência poderosamente nossa e ao mesmo tempo
universal, que valoriza e eleva a nossa arte, escrevendo contos como
“Duelo”, “Lalino Salãthiel”, “O burrinho pedrês” e [...] “Augusto
Matraga” — sei que por tudo isso o Sr. Guimarães Rosa vai reto para
a linha dos nossos grandes escritores. (CANDIDO, 1991, p. 247).

Desde então, tal coletânea de contos vem sendo estudada pela crítica brasileira, sob
diversas perspectivas: cultural, filosófica, linguística, entre outras. Estudiosos como
Oswaldino Marques, Cavalcanti Proença, Paulo Rónai, Wilson Martin, Antonio
Candido e muitos outros, reconheceram a singularidade da arte do autor de Grande
sertão: veredas e se dedicaram a desvendar os sertões rosianos.
Pode-se afirmar que os contos de Sagarana, de um modo geral, apresentam temas
recorrentes, é o caso, por exemplo, de questões de ordem política e social, delineadas,
seja explícita ou implicitamente, em todas as narrativas dessa coletânea de contos. Nildo
Benedetti, em sua tese (2008, p. 4), defende a ideia de que o tema central da obra seria o
de uma representação do Brasil da Primeira República. Ademais, as próprias epígrafes
possibilitam leituras no sentido de que o livro seria uma observação, uma constatação
do cenário que se desenhava no Brasil do século passado.
A primeira delas, “Lá em cima daquela serra, passa boi, passa boiada, passa gente
ruim e bôa, passa a minha namorada” (ROSA, 1946, p. 7), nos faz pensar em alguém
apontando, direcionando o olhar de outra pessoa, isso pode ser verificado por meio dos
vocábulos “lá” e “daquela”, não se trata de qualquer serra, mas sim “lá [...] em cima
daquela serra”, portanto, o interlocutor é conduzido a contemplar um cenário, é
chamado a atentar a algo. Na segunda epígrafe “‘For a walk and back again’, said the
fox. ‘Will you come with me? I’ll take you on my back. For a walk and back again.’” 1
(ROSA, 1946, p. 7), a raposa convida a um passeio, que pode ser figurativamente
encarado como um convite a um passeio pelo próprio texto, onde nos serão mostrados
paisagens, lugares, pessoas, animais e relações conflituosas, cabendo ao leitor desvendar

1
“‘Para um passeio’, Disse a Raposa. ‘Você vem comigo? Eu o levo nas minhas costas. Para um
passeio’” (Tradução nossa).
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cada história. A palavra “passeio” pode remeter, igualmente, a “observação”, como se a


raposa, tomando o interlocutor em suas costas, fosse guiá-lo, levando-o a ver e conhecer
coisas que até então não havia percebido.
No que se refere “A volta do marido pródigo”, o jornalista Paulo Duarte, notando
traços realistas, chegou a afirmar, em artigo publicado na revista Anhembi, em 1952,
que a narrativa em questão poderia ser chamada de “retrato do Brasil”, pois o contista
teria abordado de forma implícita e bastante sutil a forma com que questões sociais e
políticas se materializaram no Brasil do século passado, como o chamado pensamento
social brasileiro, que tem em Oliveira Vianna, Paulo Prado, Gilberto Freyre e Sérgio
Buarque de Holanda seus representantes mais significativos.

Vejam “A volta do marido pródigo”, por exemplo. Este conto quase


poder-se-ia chamar retrato do Brasil. Nem Paulo Prado nem Tejo o
traçaram mais realista. Se Guimarães Rosa não fosse diplomata, teria
dado talvez este nome ao conto; porém, como é diplomata, continua
obrigado a não dizer o que pensa ou a tirar o retrato e não pôr nada
embaixo, como os retratistas de verdade. (DUARTE, apud
RONCARI, 2004, p. 28).

A partir de agora, passaremos a investigar o motivo de tal afirmação. A priori,


entretanto, é importante ressaltar que o texto rosiano dialoga com outras narrativas. No
segundo conto de Sagarana, objeto de nossa análise, encontramos, por exemplo, a
presença de uma narrativa encaixada, a fábula esópica do Cágado e do sapo. É possível
verificar, ainda, uma paródia que se realiza da parábola do filho pródigo, bastando, para
isso, que se lembre do título da narrativa rosiana. É por meio desses diálogos que o
autor de Corpo de baile tece uma malha metafórica em que afirma e contradiz supostas
verdades, levando o leitor a uma atitude de inquietação, de questionamento.
Em “A volta do marido pródigo” são representadas as artimanhas de Lalino de Souza
Salãthiel, conhecido como “Seu Laio”. Essa personagem confirma boa parte dos
estereótipos produzidos sobre o mulato pela literatura naturalista. São suscitadas,
portanto, algumas reflexões sobre questões raciais, o que não é de se estranhar, pois, na
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época em que Sezão foi escrito se realizavam acaloradas discussões sobre essa temática
e muitos autores se preocuparam em traçar diagnósticos do Brasil, atribuindo a cada
uma das raças que configuram a população brasileira pesos e qualidades variáveis na
nossa formação social. Oliveira Vianna, em seu livro Populações meridionais do Brasil,
representa o pensamento do Brasil no início do século XX:

Os mestiços de branco e negro, os mulatos idiossincráticos, tendem,


[...] a voltar ao tipo inferior, aproximando-se dele mais e mais pela
índole e pelo físico. O seu caráter, entretanto, não pode atingir nunca a
pureza e a integridade da raça primitiva, a que regressam. Tendo de
harmonizar as duas tendências étnicas, que colidem na sua natureza,
acabam sempre por se revelar uns desorganizados morais, uns
desarmônicos psicológicos, uns desequilibrados funcionais.
(VIANNA, 1938, p. 134).

O nosso protagonista não burla esses estereótipos, pelo contrário, confirma-os. Suas
atitudes ratificam as características apresentadas por Oliveira Vianna. Lembre-se que na
época esse pensamento era apresentado como verdade científica. Lalino, portanto, não
destoa, surpreende ou desmente essa visão e isso ocorre porque, de acordo com Luiz
Roncari, o personagem principal é “tipo” (RONCARI, 2004, p. 32), isso significa dizer
que seus traços, ao invés de o particularizarem, generalizam-no, transformando-o em
um representante de um grupo. Deste modo, Eulálio Salãthiel é um mestiço, típico
representante de uma esfera carente e marginalizada da sociedade brasileira; ele é
descrito como um mulato preguiçoso, astuto, sem caráter, imaginativo, que conversa
muito e faz pouco ou nada, levando muitas vezes os outros a trabalharem por ele, é
mestre em tirar proveito das situações, reconhecendo as forças e as fraquezas alheias e
lançando mão da cordialidade e amabilidade em sua fala, características importantes no
traçado malandro do protagonista e que serão investigados mais detalhadamente a
posteriori.
Sabe-se, pelo trecho supracitado de Oliveira Vianna, que o mulato era considerado
inferior ao branco, entretanto, ao contrário de O cortiço, em que a baiana Rita pretere o
mulato Firmo em função do português, no conto rosiano Maria Rita, mulher de Lalino,
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prefere o macho da “raça” inferior ao invés do italiano, de “raça”, assim considerada,


superior. Desse modo, ao mesmo tempo em que esses estereótipos são ratificados eles
são também contraditos, o que caracteriza um jogo de ideias bastante presente nas obras
de Rosa, o paradoxo. O autor de Grande Sertão: Veredas segue em diversos de seus
escritos uma linha temática de construção paradoxal, tecendo uma malha de
contradições em seus textos, a fim de afirmar que tudo que é ao mesmo tempo não é,
pois as coisas, o mundo, as pessoas estão em constante processo de mudança, e como já
dizia Marx “tudo que era estável e sólido desmancha no ar; tudo o que era sagrado é
profanado” (MARX; ANGELS, 2002, p. 29). Rosa, desse modo, alerta que é preciso
cuidado com verdades e certezas prontas. Não esqueçamos todas as características
atribuídas à “raça” do mulato e tidas como verdade científica no Brasil do século XIX e
início do século passado, hoje, sabe-se que foram totalmente ultrapassadas, se
desmancharam no ar.
Segundo Nildo Benedetti, em “A volta do marido pródigo” são mostrados quatro
tipos de representação do Brasil: a forma do exercício da política partidária na
República Velha, as relações familiares, a prática da cordialidade brasileira e a questão
racial. Para o referido pesquisador, a cordialidade é a temática central do conto, pois
emerge em todas as atividades do protagonista.
Gilberto Freyre no capítulo “Em torno de uma sistemática da miscigenação do Brasil
patriarcal e semipatriarcal”, que aparece apenas na segunda edição de Sobrados e
mucambos, de 1951, portanto, depois da publicação de Sagarana, reconhece a
cordialidade como uma característica determinista do mulato:

A simpatia à brasileira — o homem simpático de que tanto se fala


entre nós, o homem “feio, sim, mas simpático” e até “ruim ou safado,
é verdade, mas muito simpático”; [...] — essa simpatia e essa
cordialidade transbordam principalmente do mulato [...] Ninguém
como ele é tão amável; nem tem um riso tão bom [...] O próprio
Conde de Gobineau que todo o tempo se sentiu contrafeito ou mal
entre os súditos de Pedro II, vendo em todos uns decadentes por efeito
da miscegenação, reconheceu no brasileiro, o supremo homem
cordial. (FREYRE, 1951, p. 1059-60).
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Luiz Roncari (2004, p. 33), nessa linha de pensamento, busca a acepção etimológica
do termo, que viria do latim cor, cordis, significando coração, homens movidos pelo
coração, como o nosso protagonista, que age muito mais movido pelas particularidades,
ou seja, pelas emoções e desejos, do que pela universalidade, racionalidade, que lhe
permitiria levar em consideração princípios morais, por isso, representa um ser raso em
reflexões.
O protagonista, portanto, na condição de mulato e sendo classificado como um
personagem tipo, conforme dito anteriormente, é avaliado pela pesquisadora Ivone
Minaes como um malandro nos moldes definido por Candido em A dialética da
malandragem e, ao encarnar a malandragem, Lalino apresenta amabilidade,
cordialidade, “— Olá, Batista! Bastião, bom dia! Essa fôrça como vai?!/ — Ei, Túlio,
cada vez mais, bem?/ — Bom dia, seu Marrinha! Como passou de ontem?” (ROSA,
1946, p. 69); riso fácil, “Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente [...] E logo
comenta, risonho e burlão” (ROSA, 1946, p. 69-70); possui, ainda, aderência aos fatos,
que podem ser observados, sobretudo pela capacidade de nosso herói de se adequar aos
momentos. Ele não reflete, age impulsivamente, guiado pelos desejos mais imediatos,
sem ponderar as consequências, simplesmente ajustando-se aos resultados produzidos
por suas atitudes, vivendo, desse modo, “ao sabor da sorte”, utilizando uma quarta
característica, a astúcia, para reverter uma situação adversa a seu favor.
Notadamente, a linguagem é o elemento principal da Malandragem presente no
comportamento do personagem principal, e não somente a verbal, mas também a
gestual. Essa hipótese já vem indicada no nome do protagonista, tendo em vista que,
Eulálio constitui-se em um nome composto que indica dois radicais de origem grega:
eu=, advérbio cujo significado é “bem”, e lalein de “falar”. Eulálio significa, pois,
aquele que fala bem, que é bom orador. A linguagem gestual, assim como a verbal,
tende a assumir relativa importância no traçado malandro de Lalino. Diversas passagens
no livro contribuem a fim de indicar um destaque desse tipo de comunicação
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Mas, lá detrás, escorregando dos sacos [...], dependura o corpo para


fora, oscila e pula, maneiro, Lalino Salãthiel [...] Lalino Salãthiel vem
bamboleando [...] Mas Lalino não sabe sumir-se sem executar o seu
sestro, o volta-face gaiato [...] E Lalino fazia um gesto vago [...]
Lalino Salãthiel gesticulava e modulava (ROSA, 1946, passim).

Nesse sentido, nosso herói persuade pessoas à sua volta por meio da comunicação
adequada a cada interlocutor; a quarta característica já anteriormente mencionada da
malandragem de Lalino, a astúcia, pode ser inclusive evidenciada pela utilização da
linguagem que opera o convencimento e faz dominar a situação; a cordialidade e a
simpatia de que vem carregada a comunicação do personagem faz com que ele se saia
bem dos mais adversos momentos em que se encontra, levando todos, como se diz
popularmente, “no bico”. Portanto, ao contrário da fábula citada na epígrafe, a tagarelice
de Lalino não lhe põe em más situações, mas sim lhe tira delas.
Kathrin Rosenfield afirma que o relato conversacional trata-se de um costume
poderoso e o hábito de “puxar conversa”, no meio do trabalho ou no caminho, é
tipicamente brasileiro. É importante levar em consideração que a autora dessa afirmação
é uma pesquisadora alemã, já vivendo no Brasil há, aproximadamente, oito anos.

Em intermináveis conversas “conversas fiadas” misturam-se vida


privada e pública, curiosidade à toa e interesses, amabilidade
espontânea e obrigação social, pois “conversar”, no Brasil, não é
apenas um passatempo privado ou um lazer pessoal, é quase uma
secreta confirmação de que o laço social está intacto, de que a
cordialidade está funcionando. (Grifo nosso). (ROSENFIELD, 2006,
p. 38).

Vale ressaltar, ainda, o interesse de nosso protagonista pelo teatro, lembre-se, por
exemplo, que ele estava responsável pela organização da peça do Visconde sedutor, no
qual se estabelece uma relação indissociável entre gesto e palavra. É ratificado, deste
modo, o fato de que pela associação da linguagem verbal à mímica é caracterizada a
sedução malandra do personagem principal.
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Assim, se por um lado o personagem principal é sedutor como o visconde da peça


que organiza, por meio da aplicação de uma linguagem adequada a cada interlocutor,
por outro lado ele demonstra falta de caráter, pois é obrigado constantemente a utilizar
essa sedução verbal para fugir de suas obrigações. Percebe-se, assim, o relaxamento
moral da personalidade do protagonista, consequência da sua evidente procedência
folclórica. Ele não tinha nenhum escrúpulo em iludir o chefe, prejudicar os
companheiros ou vender sua mulher como se fosse um objeto para levar uma vida
devassa no Rio de Janeiro; esse comportamento torpe é compensado pela amabilidade e
cordialidade, fruto de sua condição de híbrido.
Essa habilidade comunicativa de Lalino é instrumentalizada dentro da narrativa pelos
representantes do poder; eles se valem disso a fim obter sucesso eleitoral. Bastante
comum naquela época e ainda hoje, o lítigio político se pauta pela defesa de interesses
pessoais, tendo em vista que os personagens envolvidos nessa lide não emitem sequer
uma vez algum discurso que demonstre o mínimo de interesse público. Não é por acaso
que depois de demonstrada a falta de caráter e de escrúpulo de Lalino ele ingresse na
política.
Nesse sentido, Guimarães Rosa, põe em xeque verdades que são discutíveis do ponto
de vista moral e hoje científico; ao mesmo tempo em que denuncia práticas políticas do
início do século passado, que se nos apresentam de forma bastante atual, ainda hoje.
Assim, podemos lembrar que em entrevista a Gunther Lorenz (ROSA, apud
COUTINHO, 1991, p. 77), o autor de Primeiras Estórias declara abertamente que vê a
política como uma atividade desumana, que não dá valor ao homem e por isso deveria
ser abolida.
“A volta do marido pródigo” não foge à regra do texto rosiano. Sempre nos trazendo
mais inquietações do que respostas, as obras do diplomata nos transmitem que o mais
importante é se auto-interrogar, não aceitar facilmente as certezas que nos são
oferecidas. Portanto, o leitor é convidado, diga-se de passagem, a um questionamento
do qual o escritor mineiro Guimarães Rosa nos propõe a uma atitude de reflexão frente
à sociedade. Entretanto, isso não significa dizer que Guimarães Rosa pinte um mero
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retrato estático e perfeitamente definido de uma época pela qual o Brasil passou, isso
significaria negar a própria poeticidade da obra e as ilimitadas possibilidades de leitura
e interpretação do texto literário enquanto objeto estético.

Referências

BENEDETTI, Nildo Maximo. Sagarana: o Brasil de Guimarães Rosa São Paulo, 2008.
291 p. Tese de Doutorado em Letras (Literatura Brasileira), Universidade de São Paulo.

CANDIDO, Antonio. Sagarana. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa.


2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 243-247.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.
400 p.

LORENZ, Günter W. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F.


(Org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 62-97.

MARX, Karl; ANGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Trad. Sueli


Tomazzini Barros. Porto Alegre: L&PM, 2002. 132 p.

RONCARI, Luiz. O Brasil de Rosa. São Paulo: UNESP, 2004. 348 p.

ROSA, João Guimarães. Sagarana. 2. ed. Rio de Janeiro: Universal, 1946. 336 p.

ROSA, João Guimarães. Carta de João Guimarães Rosa a João Condé revelando
segredos de Sagarana. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 23-28.

VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. 4. ed. São Paulo: Companhia


Editora Nacional, 1938. v. 1. 422 p.
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EDUCAÇÃO INCLUSIVA: IMPLICAÇÕES NO ENSINO DE LITERATURAS


DE LÍNGUA INGLESA

Brigite Teichrieb de Castro (G - UEM)


Vera Helena Gomes Wielewicki (UEM)

Introdução

O Ministério da Educação tem desenvolvido uma política de educação inclusiva,


que pressupõe que a educação especial não mais ocorra de forma separada do ensino
regular. Porém, o tema direitos humanos e diversidade não é apenas um conteúdo que
possa ser sistematizado em currículos e manuais de professores, mas algo que somente
pode ser sentido na prática. Não basta falar a respeito por meio de um texto, precisa ser
vivido na prática. Nem tão pouco pode ser assegurado por conhecimento apenas. Regras
que devem ser seguidas literalmente não garantem justiça em sala de aula. Como eu,
professor, respondo aos meus alunos, o meu grau de sensibilidade e flexibilidade me
permite tomar decisões que serão consideradas corretas frente à multiplicidade e à
diversidade. Eu decido, avalio, comparo e priorizo com base nas minhas obrigações
com relação ao Outro. Não é o sofrimento do Outro que nos faz agir, mas nossa
sensibilidade para com o pleito do Outro é o que nos faz responder responsavelmente.
Isto não significa que haja uma pluralidade de respostas corretas, mas uma resposta
correta às pluralidades. No entanto, para que isto ocorra, é preciso introduzir
conhecimentos que possam fundamentar professores na reorientação das suas práticas
pedagógicas, bem como formar novos profissionais da educação. O que o professor
precisa saber e quais estratégias adotar ao se deparar com o desafio de um grupo
heterogêneo de estudantes composto por ouvintes e surdos? Como desenvolver uma
educação inclusiva para a pessoa surda de forma efetiva, possibilitando processos de
letramento crítico a esse grupo específico de educandos?
Para tentar responder a estas indagações, o presente artigo apresenta resultados
iniciais de uma Pesquisa de Iniciação Científica em andamento intitulada “Letramento
Crítico e Literaturas de Língua Inglesa no Ensino de Pessoas com Surdez”, a qual está
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inserida no Grupo de Pesquisa Produção, Circulação e Recepção de Textos Literários


alocado no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de
Maringá - Paraná.
Neste recorte, examinam-se fundamentos de letramento crítico e da educação
especial, bem como tendências e métodos no ensino de pessoas com surdez e no ensino
de literaturas em língua inglesa e suas implicações na inserção de conteúdos e na
metodologia adotada em aulas inclusivas de literaturas de língua inglesa. Discutem-se,
ainda, de forma incipiente, as possibilidades de contato do aluno surdo com literaturas
estrangeiras em salas de aula inclusivas diante de situações envolvendo línguas e modos
de ler diversos, além da escassez de textos adaptados e traduzidos para surdos. Aponta-
se, também, para a responsabilidade e o papel dos professores na criação das condições
para intermediar este encontro, identificando alguns dilemas enfrentados ao se planejar
uma aula de literatura de língua inglesa para contextos heterogêneos, constando de
alunos surdos e ouvintes.

1. Metodologia

Realiza-se, atualmente, uma pesquisa de Iniciação Científica, que se iniciou em


1º. de agosto de 2009 e deverá ser concluída em 31 de julho de 2010. Propõe-se a
levantar materiais de literaturas de língua inglesa para surdos por meios bibliográficos,
digitais e eletrônicos e analisar a aplicabilidade destes materiais na educação para
surdos em face de propostas de letramento crítico e sob a perspectiva de uma educação
inclusiva. Primeiramente, examinou-se bibliografia sobre fundamentos de letramento
crítico e sobre educação especial, mais especificamente a educação de surdos, bem
como de métodos de ensino para surdos e de ensino de literatura em língua inglesa. A
seguir, fez-se uma pesquisa pela internet e em livrarias, editoras e outros órgãos
especializados, como a Deaf Library, a Editora Arara Azul, a FENEIS – Federação
Nacional de Educação e Integração dos Surdos, o INES – Instituto Nacional de
Educação de Surdos, a página do MEC e a Gallaudet University para levantar materiais
de literaturas de/em língua inglesa. Depois, foram enviados e-mails para professores e
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coordenadores de cursos de educação especial e de grupos de estudos surdos de


universidades brasileiras para uma sondagem sobre possíveis materiais adotados e de
conhecimento destes profissionais. Ao final deste levantamento, chegou-se a cinco
materiais, dos quais um é apresentado a título de exemplificação neste artigo,
juntamente com um recorte da teoria examinada.

2. Fundamentação teórica

Para iniciar a discussão sobre letramento crítico e literaturas de língua inglesa


no ensino de pessoas com surdez faz-se necessário, em primeiro lugar, situar o leitor
sobre as atuais políticas públicas para a educação envolvendo as pessoas com
necessidades especiais e, mais especificamente, as pessoas com surdez.
O decreto n° 5.626, de 22 de dezembro de 2005 regulamenta o reconhecimento da
Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, o qual ocorreu em abril de 2002. Esta
legislação representa um verdadeiro avanço e direciona toda a educação voltada para as
pessoas com surdez. Prevê a organização de turmas bilíngues, constituídas por alunos
surdos e ouvintes onde as duas línguas, LIBRAS e língua portuguesa, são utilizadas no
mesmo espaço educacional. Também define que para os alunos com surdez a primeira
língua é a LIBRAS e a segunda é a língua portuguesa na modalidade escrita, além de
orientar para a formação inicial e continuada de professores e para a formação de
intérpretes para a tradução e interpretação da LIBRAS e da língua portuguesa.
Levando-se em consideração as diferenças entre a língua portuguesa e a língua
brasileira de sinais, a questão da língua adotada em sala de aula é, sem dúvida
nenhuma, prioritária. Gunther Kress (2007), em seu livro Literacy in the New Media
Age, aponta para a crescente substituição da escrita pela imagem e reflete sobre os
efeitos disto não somente na comunicação e nas questões de letramento, como também
nas relações de poder. Segundo Kress (2007, p. 1), a escrita e a imagem são regidas por
lógicas distintas. A escrita se baseia nas lógicas da fala, do som e é regida pela lógica
do tempo e da sequência de seus elementos no tempo. A imagem, ao contrário, é regida
pela lógica do espaço e por uma lógica simultânea de seus elementos visuais em
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contextos espacialmente organizados. É, portanto, importante o modo escolhido para


se transmitir significado e sentido.
No entanto, garantir o acesso à educação em uma sala de aula do ensino regular
e assegurar o uso de uma língua visual-espacial não é o bastante. O aluno surdo deve
ser trazido para dentro da sala de aula como alguém que tem algo a dizer. Um currículo
ouvintista e metodologias que eliminam diferenças e descartam o individual
representam um grande obstáculo na vida pessoal e acadêmica de qualquer aluno, quiçá
do aluno surdo. Além disso, a LIBRAS poderá ser utilizada apenas como ferramenta
para se ensinar a língua dominante, que é o português, e reproduzir uma ideologia de
assimilação e uma prática orientada para o monolinguismo (SKLIAR, 1998, p. 10).
Ainda segundo Skliar (1998, p. 27),

A surdez é uma experiência visual e isso significa que todos os


mecanismos de processamento da informação, e todas as formas
de compreender o universo em seu entorno, se constroem como
experiência visual. Não é possível aceitar, de forma alguma, o
visual da língua de sinais e disciplinar a mente e o corpo das
crianças surdas como sujeitos que vivem uma experiência
auditiva.

Pergunta-se, então, como o ensino de literatura da língua inglesa pode ser um


instrumento na formação de indivíduos surdos conscientes da importância de seu papel
em todas as esferas da sociedade.
Antonio Candido, em A Literatura e a formação do homem (1972), afirma que a
literatura pode formar, não segundo a pedagogia oficial, mas educando como a vida,
com altos e baixos, luzes e sombras. Ainda aborda o problema da função da literatura
como representação de uma dada realidade social e humana, que faculta maior
inteligibilidade com relação a esta realidade. A obra ainda é acrescida de novos
sentidos, que não os do autor, mas dos leitores com os quais ela entra em contato na
sociedade.
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Sánches (1991, apud ALMEIDA s/d, p. 26) destaca a importância da língua escrita
no estabelecimento de um intercâmbio entre a comunidade dos surdos e a dos ouvintes,
pois ela se constitui no instrumento que possibilitará ao surdo ser efetivamente bilíngüe.
Segundo Ramos (2004),

Enquanto o surdo não puder se apropriar adequadamente da


cultura ouvinte, isso significando não só exercer plenamente
seus direitos de cidadão, mas poder circular livremente por todas
as instâncias sociais – o que inclui necessariamente a língua
escrita e a tradição literária, ele continuará a ser tutelado por
alguém ou por alguma instituição. A mãe, o professor, o
intérprete, todos esses personagens exercem funções
absolutamente necessárias em momentos específicos da vida do
surdo. Mas o surdo só será pleno quando puder estar sozinho em
alguns momentos. A literatura, a possibilidade de compreender e
fazer literatura, talvez seja sua possibilidade de exercer a
solidão, sua possibilidade de se fazer inteiro, como acredito.
(p.123).

À luz das considerações apresentadas, interessa-nos saber quais modos de ler e


que tipos de texto estão sendo usados com os alunos surdos. Em seu livro intitulado
Linguagem e letramento na educação dos surdos, Paula Botelho (2002) faz um relato
de suas pesquisas sobre a leitura e a escrita de surdos. Ela narra o fato de que surdos
oralizados investigados em sua pesquisa apresentaram melhores resultados na leitura e
na escrita, não pelo fato de serem oralizados, mas pelo fato de terem um maior acesso a
jornais, revistas e a outros textos pela sua condição social. Já os surdos não-oralizados,
de classes sociais mais pobres e que não mantinham práticas de leitura e escrita dentro e
fora das escolas, tiveram resultados inferiores.
Botelho aponta para a metodologia de ensino pautada no ensino de palavras
adotada com alunos surdos, resultando em um letramento ineficiente, pois não
ultrapassa as habilidades de codificação e decodificação de signos escritos.
Outra dificuldade que os surdos têm com relação à leitura é nas atividades de
generalização e de abstração. Isto, no entanto, não se deve a uma deficiência cognitiva,
mas à aquisição tardia da linguagem. A maioria dos surdos tem pais ouvintes, o que
dificulta a comunicação tão importante em todas as fases do desenvolvimento. Uma boa
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comunicação com os pais por meio da língua de sinais também faz com que surdos
filhos de pais surdos se tornem mais abertos ao aprendizado de uma segunda língua.
(p.106).
Existe, ainda, a questão da coerência e coesão do texto. A língua de sinais não
utiliza artigos, preposições, conjunções, porque estão implícitos no próprio sinal, e os
modos e tempos verbais, os sufixos e os prefixos são produzidos por movimentos das
mãos no espaço, em várias palavras.
A professora de Português de uma das surdas que participou da pesquisa
também se referiu ao fato da aluna surda não conseguir participar das discussões em
grupo. Sánchez (2005, p. 135), em estudo sobre uma educação inclusiva, vem mostrar a
importância dos pares no processo de aprendizagem. A aprendizagem com os pares,
bem conduzida, revela-se uma estratégia quase indispensável numa escola que se quer
de todos e para todos, onde todos possam aprender com os instrumentos que se têm,
onde todos devem poder ir o mais longe possível, utilizando o seu perfil de
aprendizagem, que pode ser igual ou diferente do seu colega e mesmo do professor.
Isto posto, a inclusão da problemática específica dos alunos com necessidades
especiais em todos os níveis da educação é um desafio que requer reflexão crítica sobre
o papel do interlocutor na utilização de estratégias e práticas pedagógicas eficazes
aliadas ao uso adequado de recursos, a importância de uma intervenção curricular
adequada e de ações imediatas.
O desenvolvimento de práticas que possibilitem ao aluno surdo vivenciar
experiências significativas com a leitura e a escrita urge frente a concepções de
linguagem subjacentes às práticas de letramento escolares que reproduzem estratégias
metodológicas voltadas a falantes nativos da língua portuguesa.
Ellsworth (2001) aplica o termo endereçamento usado em cinema à educação e
pergunta:

Pode a mudança social ou mudanças individuais nas formas


como alguém compreende o mundo começar – e ser estimulada
– pelas formas como os estudantes e as estudantes são
endereçados pelo currículo e pela pedagogia? Podem os
professores e as professoras fazer uma diferença em termos de
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poder, conhecimento e desejo não apenas por aquilo que eles e


elas ensinam, mas pela forma como eles e elas endereçam seus
alunos e suas alunas? (p. 41).

Com a mudança cada vez mais crescente do modo escrito para o imagético e de
livros para telas, tende-se a favorecer o letramento crítico dos surdos. Quadros e Stumpf
(2008) também enfatizam a importância do uso de tecnologias avançadas na Pedagogia
Surda.
Assim sendo, quais modos de ler e que tipos de texto podem ser usados com os
alunos surdos no ensino de literaturas de língua inglesa? Apresenta-se, a seguir, um dos
materiais analisados na Pesquisa de Iniciação Científica. Trata-se do conto de fadas
Goldilocks & The Three Bears.

3. Goldilocks & The Three Bears para a educação de surdos

Goldilocks & The Three Bears é um livro escrito em inglês e na ASL –


American Sign Language utilizando-se do Sign Writing, que é um sistema de escrita
gestual ou de sinais com o qual se pode registrar qualquer língua de sinais do mundo
sem passar pela tradução da língua falada. A SignWriting expressa os movimentos da
forma das mãos, o movimento e os pontos de articulação. A autora do livro é Darline
Clark Gunsauls. Ela é graduada pela Gallaudet University e diretora da DAC - Deaf
Action Committee For SignWriting.
Segundo Stumpf (2004, p. 158), a aprendizagem do SignWriting pelos
estudantes surdos permite uma mudança radical de atitude frente à escrita e ocorre de
forma bastante rápida.
Stumpf (2002, p. 62) descreve a importância da escrita de sinais para o surdo:

A criança ouvinte, quando vai para a escola, já conhece o


significado das palavras. Quando ela aprende a ler, sabe o que as
palavras significam, pois o português escrito apresenta
características da fala, assim como se fosse um retrato. Quando
aprende a ler, a criança ouvinte vê esse retrato e o reconhece.
Por outro lado, a criança surda não ouve a fala da família. Então,
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ela vai para a escola, aprende a ler, mas não consegue entender o
que as palavras representam, ela não consegue reconhecer o
retrato porque antes não ouviu a palavra associada à ação ou ao
objeto. Por isso, o surdo parece que sabe ler mas não entende o
significado. Nós, surdos, precisamos de uma escrita que
represente os sinais visuais-espaciais com os quais nos
comunicamos, não podemos aprender bem uma escrita que
reproduz os sons que não conseguimos ouvir.

Referindo-se ao programa SignWriter, com o qual os surdos podem interagir


como os ouvintes interagem com o Microsoft Word, Stumpf diz:

Acontecem agora situações diferentes e nós surdos estamos


podendo tomar decisões conforme nossos pensamentos e
sentimentos na escolha dos sinais. Com o português sempre há
muita insegurança. Precisamos receber a aprovação para saber
com certeza o significado das palavras e é ainda mais difícil
organizar as frases. Esta é uma tarefa impossível para a quase
totalidade dos surdos. (2002, p. 69).

Existe a tradução para o português escrito e para o SignWriting da língua


brasileira de sinais. É o livro Cachos Dourados, um dos livros infantis que compõem o
kit Libras é Legal, distribuído gratuitamente pela FENEIS Rio Grande do Sul. É editado
pelo Grupo de Informática na Educação Surda – GIS/PUCRS.
Stumpf (2002, p. 66) descreve o trabalho com a tradução para o SignWriting da
língua brasileira de sinais:

Um trabalho de transcrição que concluímos em sala de aula com


alunos surdos foi a tradução de uma história infantil intitulada
Cachos Dourados, escrita em SignWriting da American Sing
Language (ASL) para o SignWriting da língua de sinais
brasileira. Nessa época, não existia um dicionário de
SignWriting brasileiro. Então os alunos usaram o dicionário de
Sutton para a ASL e um dicionário inglês-português para
esclarecer as dúvidas. As duas línguas de sinais são parecidas,
então o trabalho foi rápido e interessante.
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Diante dos depoimentos de Stumpf transcritos anteriormente, constata-se a


aceitação deste material pelo público surdo. Vários são os pontos positivos
mencionados: a escrita dos sinais, as semelhanças entre a American Sign Language e a
LIBRAS, a possibilidade de expressão e a atribuição de significado ao que se lê. Este
material é composto do livro de estórias e do livro de exercícios e atividades para
colorir. Além de disso, é disponibilizado em vários níveis de dificuldade. Considerando-
se, ainda, uma sala de aula heterogênea, pode-se citar o fato de que esse material pode
ser usado por ouvintes e surdos simultaneamente, uma vez que também apresenta a
história na língua inglesa escrita. Existe também a possibilidade de se trabalhar com
tradução, já que existe o livro em língua portuguesa e na escrita da língua de sinais
brasileira.
O livro Goldilocks and The Three Little Bears apresenta, ainda, outro traço
característico positivo. Refere-se ao fato de ser um conto infantil. Segundo a psicóloga
Morkazell (2004, p. 126-127), que se baseia em Jung, os Contos de Fadas são
significativos para a criança que ainda não consegue compreender o sentido dos
conceitos éticos abstratos e lidam com os problemas humanos universais, transmitindo a
mensagem de que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte
intrínseca da existência humana, mas com firmeza ela poderá dominar os obstáculos e
se tornar vitoriosa.

Conclusão

A partir das reflexões constantes neste artigo, constata-se que o verdadeiro


potencial para a construção de uma realidade inclusivista está na capacidade de se
resistir ao status quo e de se dar uma resposta correta às pluralidades imbuída de
respeito às idiosincrasias concernentes à linguagem e à cultura dos alunos. Isto implica
em resistência e na recusa à submissão a currículos, conteúdos e práticas pedagógicas
que comprometam relações humanas. Isto implica em se perguntar a cada planejamento
de aula: A quem a minha prática em sala de aula serve? Isto implica em considerar a
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aprendizagem por meio de um ambiente não homogeneizador e competitivo, porém


potencializador da capacidade individual de cada aluno.
As possibilidades serão ilimitadas quando professores se derem a oportunidade
de começarem seus planejamentos de aula a partir do diferente, ao invés de negá-lo ou
repudiá-lo e, finalmente, adaptarem suas aulas ouvintistas. Desta forma, todos serão
educados para se tornarem cidadãos melhores, mais responsáveis moralmente, pessoas
que conseguem viver e trabalhar em meio a diferenças sociais. Qual não seria o impacto
deste tipo de relacionamento na vida dos alunos surdos e ouvintes?
Nada mais pertinente do que uma sala de aula de língua estrangeira para se
transmitir estes valores e para se dar a oportunidade deste contato de línguas e culturas
diferentes. Isto fará de todos os envolvidos no processo pessoas com um grau de
sensibilidade muito maior e mais atentas ao Outro.
Finalizo este artigo com as palavras de Quadros (1997, p.119 apud QUADROS,
2005, p. 15) “(...) Permita-se ouvir essas mãos, pois somente assim será possível
mostrar aos surdos como eles podem ouvir o silêncio da palavra escrita.“

Referências

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Marianne Rossi Stumpf.
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HAGIOGRAFIA: UMA REVISITAÇÃO DO GÊNERO POR EÇA DE


QUEIRÓS E TEIXEIRA DE PASCOAES

Bruna Giro (PG-UNESP/Araraquara)

A hagiografia é classificada tradicionalmente pelas histórias literárias como sendo


um subgênero da historiografia, e sua fertilidade literária compreende o período
histórico da Idade Média – uma época influenciada pela religião, sobretudo a Igreja
Católica. Segundo Andre Jolles (1976), a legenda, sinônimo de hagiografia, era quase
que a única literatura existente no período medieval.
As hagiografias tinham como objetivo central a catequese. O santo é o herói
semideus que passa por uma imensurável bateria de provações e supera a todas elas.
Como recompensa, ele recebe a salvação divina.
Nessas narrativas a presença do elemento fantástico, ligado ao mistério e ao
sobrenatural, é uma constante. O santo tem o dom de se comunicar com a natureza,
operar milagres e sua morte é sempre um mistério – o arrebatamento é um episódio
recorrente nessas narrativas.
Os relatos sobre a vida dos santos atendiam ao apelo que a Igreja fazia para
arrebanhar novos cristãos. Assim, essas biografias serviam como exemplo a quem
almejasse a salvação divina.
No entanto, o período que marca seu surgimento – a Idade Média – não considera a
hagiografia como sendo parte de uma produção literária, pois sua função na época era a
de catequizar; mostrar através dos feitos dos santos a maneira correta de viver, sempre
de acordo com os dogmas da Igreja Católica.
Os textos sem dúvida objetivavam a evangelização, mas nem por isso deve-se
desprezar seu valor estético. Sobre a hagiografia Maria Clara de Almeida Lucas (1984)
se posiciona da seguinte maneira:

Será ele de fato um discurso literário com todas as características que


lhe podemos atribuir, a sua literatura alegórica ou simplesmente
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simbólica, polissêmica, polimorfa, carregada de sentidos escondidos e


esquecidos, ou não passará de um texto essencialmente didáctico,
informação pura, qual a lição que se oferece a um público colegial que
se pretende catequizar (...). (p. 13)

Esse questionamento é interessante ao se pensar que desde a Idade Média já havia


por parte dos biógrafos de santos uma preocupação literária num texto que serviria, a
princípio, apenas com uma finalidade didática, na intenção de converter os heréticos ao
cristianismo.
Apesar de seu ápice literário centrar-se no período medieval, as hagiografias
curiosamente aparecem na literatura portuguesa moderna, com os autores portugueses
Eça de Queirós, em Ultimas Páginas (1899),que contém as narrativas São Cristóvão,
Santo Onofre e São Frei Gil; e Teixeira de Pascoaes, de quem se destacam as narrativas
São Paulo (1934) e São Jerónimo e a trovoada (1936). As obras escolhidas para este
trabalho de pesquisa foram São Jerónimo e a trovoada, de Pascoaes, e São Cristóvão,
de Eça.
É interessante investigar a retomada do gênero ao longo da história literária. Ao fazer
um levantamento dos autores que recuperaram as hagiografias dos tempos remotos da
Idade das Trevas, poderá se perceber uma quantidade considerável de autores que o
fizeram.

Sinônimo de “hagiologia”,designa os textos destinados a relatar a vida


dos santos. Comum desde a Idade Média nos países católicos ou que
receberam influência da Igreja, a hagiografia ostentou caráter literário
até o século XVIII, quando passou a incorporar as preocupações
cientificizantes despertados na ciência historiográfica do tempo. Com
o Romantismo, as vidas de santos inspiraram poetas e dramaturgos.
Praticamente desconhecida em nossa produção literária, a hagiografia
constitui rico e persistente filão da Literatura portuguesa, que começa
nos textos medievais recolhidos por Alexandre Herculano no
Portugale Monumenta Historica , volume Scriptores (1856-1873), e
termina, por exememplo, com as hagiografias de Teixeira de Pascoaes
(São Paulo, 1934; São Jerónimo, 1936; Santo Agostinho, 1946),
passando pelo Hagiólogo Lusitano (1652-1666), de Jorge Cardoso, e
pelas admiráveis vidas de santos escritas por Eça de Queirós e
reunidas no volume Ultimas Páginas (1912). (MOISÉS,1974,p.268)
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É evidente que os textos hagiográficos modernos já não exercem mais a influência


que tinham na Idade Média. Sua retomada ao longo da história literária mostra que de
caráter catequético, as hagiografias se transfiguraram em pura literatura. Prova disso é
que autores consagrados pela crítica retomaram esse gênero e lhe deram uma nova
roupagem, cada um à sua maneira e incutindo nesses textos sua ideologia e seus
projetos estético- literários. Assim escreve Massaud Moisés (1974) a respeito das
hagiógrafas:

Sinônimo de “hagiologia”,designa os textos destinados a relatar a vida


dos santos. Comum desde a Idade Média nos países católicos ou que
receberam influência da Igreja, a hagiografia ostentou caráter literário
até o século XVIII, quando passou a incorporar as preocupações
cientificizantes despertados na ciência historiográfica do tempo. Com
o Romantismo, as vidas de santos inspiraram poetas e dramaturgos.
Praticamente desconhecida em nossa produção literária, a hagiografia
constitui rico e persistente filão da Literatura portuguesa, que começa
nos textos medievais recolhidos por Alexandre Herculano no
Portugale Monumenta Historica , volume Scriptores (1856-1873), e
termina, por exememplo, com as hagiografias de Teixeira de Pascoaes
(São Paulo, 1934; São Jerónimo, 1936; Santo Agostinho, 1946),
passando pelo Hagiólogo Lusitano (1652-1666), de Jorge Cardoso, e
pelas admiráveis vidas de santos escritas por Eça de Queirós e
reunidas no volume Ultimas Páginas (1912).

Os textos de Eça de Queirós (1900) e Teixeira de Pascoaes (1936) recuperam a


atmosfera medieval sob outra roupagem. Narrar acontecimentos já não é o objetivo
central das obras. Nesses autores tem-se por meio da vida do santo a discussão da
condição humana e a proposição de um projeto ideológico, estético e literário com
vistas a uma verdadeira Revolução Cultural dentro da sociedade portuguesa e talvez da
humanidade, assuntos que a seguir serão tratados com mais cuidado.
A hagiografia, com o passar do tempo, perde seu potencial catequético e passa a se
firmar como gênero literário, vinculada à historiografia. Autores renomados como Eça
de Queirós e Teixeira de Pascoaes, os escolhidos para a realização de uma análise mais
detalhada, dedicam seu engenho na elaboração dessas narrativas, fazendo uma biografia
de santos que existiram efetivamente e cujas biografias já são de conhecimento público
há muito tempo.
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Os autores elaboram as narrativas defendendo, por intermédio de seus protagonistas,


um projeto mais universalista, embora ambos dediquem-se preponderantemente a uma
autognose de Portugal, seja pela apurada ironia de Eça ou pelo projeto saudosista de
Teixeira de Pascoaes.
A relação temática entre o realista Eça e o saudosista Pascoaes parece colocá-los
muito próximos, mesmo que abordada de maneiras diferentes pelos autores. O primeiro
era um crítico ferrenho de seu tempo, participante ativo das Conferências do Casino e
pertencente à não menos crítica Geração de 70. Eça desvela a sociedade portuguesa
através de cenas cotidianas, com exemplos de degradação moral da burguesia lusitana,
como o adultério ou a corrupção do clero. Essas críticas tinham o objetivo de mudar a
mentalidade portuguesa, de despertar para a real condição da sociedade lusitana, com a
tão sonhada Revolução Cultural.
Eça de Queirós é considerado pela crítica literária um dos escritores que formam o
cânone da literatura portuguesa. Suas narrativas carregam uma refinada ironia que se
projeta sobre a sociedade portuguesa, essencialmente o clero e a burguesia. Entretanto,
o que muitos não conhecem é uma faceta da produção literária de sua fase final como
escritor: as hagiografias. O autor trabalha nas Vidas de Santos sua “tese-cúpula”, como
o dirá o estudioso António Sérgio (1980), desenvolvendo nessas narrativas a solução
para os problemas que afligiam a sociedade portuguesa - sociedade esta que tanto
criticou. O escritor veicula, por meio da imagem do santo, a idéia de que as boas ações e
o sentimento de altruísmo seriam a solução para os problemas que afetavam Portugal e
que causavam sua estagnação, sejam eles de ordem moral, cultural ou ideológica.
São nessas narrativas que Eça atinge o amadurecimento de sua produção literária,
mostrando por meio de suas linhas uma proposta mais ponderada e reflexiva a respeito
da sociedade.
Segundo Eça, os grandes males da civilização seriam o tédio e o ócio. Tais “falhas”
do caráter humano seriam a causa central da decadência e degradação da sociedade, em
especial a lusitana, a qual Eça tanto amou e antagonicamente detestou, de acordo com
Eduardo Lourenço (1992). O grande problema seria a falta da percepção crítica dos
portugueses em relação à sua condição enquanto reduto medieval da Europa, pois estes
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viviam como se ainda habitassem na terra os grandes navegadores, Dom Sebastião e o


poeta expoente da literatura lusitana, Camões.
A solução para esta problemática estaria vinculada à idéia de ação humanitária. Para
Eça, a sociedade só evoluiria social e culturalmente através de uma transformação nas
relações humanas e, para essa radical mudança, nada melhor do que se pautar nas vidas
de santos, a fim de tê-las como modelo de vida sublime. É, portanto, através das boas
ações do ser humano que a sociedade conseguiria desatolar-se de se estado deplorável
de estagnação sócio-cultural.

(...) À sua volta Eça de Queirós só via escombros. Foi então que das
suas largas permanências em meios estranhos, da muita leitura e do
aproximar-se dos cinqüenta anos que lhe veio o desejo de afirmar e
construir, depois de tanto negar e demolir. (FIGUEIREDO, 1960,p.
430)

Nesse momento, há uma ampliação da projeção dada por Eça em suas obras; o autor
deixa de ter seu foco em solo português e no século XIX e passa a popor um projeto
mais universalista, desenraizado e preocupado com a condição não apenas da sociedade,
mas do indivíduo:

O seu espírito, ansiando por novos horizontes, vai-se libertando da


constrangedora disciplina do naturalismo e amplia sua sensibilidade e
as suas curiosidades. Em vez da vida, tal como haviam feito o
liberalismo, a literatura romântica e a educação, é a vida humana, são
os problemas e tipos gerais que o preocupam. (FIGUEIREDO,1960,p.
427)

Assim, através da imagem do santo, Eça de Queirós apregoava que a transformação


de uma sociedade viria através da mudança individual, provocada pelas boas ações de
cada um.
Nesse efervescente contexto devemos entender as Vidas de santos, inseridas na
antologia Últimas Páginas (1961), cuja publicação data de 1900. Constituem-se de três
narrativas: “São Cristóvão”, “Santo Onofre” e a inacabada “São Frei Gil”.
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Esses manuscritos incompletos, esquecidos, de póstuma publicação –


os manuscritos das vidas dos santos permanecerão sempre um
mistério dentro da obra de Eça de Queirós. Impossível precisar se se
trata de um novo exercício literário, se se trata de uma nova aventura
do espírito através dos caminhos misteriosos da santidade. (LINS,
1959, p.137)

Eça passa a escrever em tom mais moderado e meditativo. As biografias de santos


vêm mostrar esse viés mais introspectivo do autor. Nessas biografias, Eça veicula
segundo António Sérgio (1961, p.05) sua “Tese-Cúpula”, na qual a ação humanitária,
através da imagem do santo, é fundamental para que haja uma mudança de postura dos
portugueses e uma evolução e reestruturação da sociedade lusitana.
Já Teixeira de Pascoaes é reconhecido como tendo sido o mentor do movimento
literário conhecido como Saudosismo. O autor defende a necessidade de reviver os
tempos áureos de uma Portugal dos tempos das Grandes Navegações, saindo da
estagnação cultural e econômica na qual Portugal se encontrava já no início do século
XX. Assim, a partir desse ideário, Pascoaes trabalha essas questões em suas obras,
que vão desde poesia, romances e biografias.
A obra de Pascoaes, ainda que norteada pelos princípios do Saudosismo é repleta de
dicotomias, sejam elas em relação à temática ou à própria constituição do fazer literário.
O autor preocupa-se com temas como a existência humana e sociedade portuguesa.
Estes são trabalhados sempre de maneira dual – a relação entre os assuntos abordados se
formam por meio de antíteses como luz e sombra, paganismo e cristianismo, vida e
morte, pois Pascoaes cria que a essência do povo português vinha justamente dessas
oposições.
Com relação ao seu fazer literário, Pascoaes é considerado um caso à parte da
literatura portuguesa por trabalhar ao mesmo tempo com aspectos da tradição e da
modernidade, além de fazer parte de um movimento literário unicamente português.

(...) situado entre um romantismo que tanto exala na poesia escrita


inicialmente por Pascoaes e um nascente sentido de modernidade em
relação ao qual, no entanto, se manteve geralmente afastado.
(GUIMARÃES, 1988, p.51)
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O Saudosismo, concebido no início do século XX por Pascoaes, tinha como intuito


algo muito semelhante ao pretendido por Eça – uma reestruturação cultural e estética na
sociedade portuguesa. De acordo com o projeto saudosista, a Lusitânia ainda voltaria a
viver seus dias dourados, como nos tempos de Dom Sebastião (rei português morto na
batalha de Alcácer-Quibir), mas para isso haveria de ser feita em Portugal uma
reformulação de valores estéticos, culturais e literários.
Tanto Pascoaes quanto Eça veiculam o desejo e a necessidade em se rever os valores
da sociedade portuguesa. Ambos os autores defendem que Portugal deve primeiramente
reconhecer-se como nação estagnada e passar por uma verdadeira Revolução Cultural,
para que um dia o país possa reviver seus tempos de glória.
Outra correlação entre os autores é que ambos produzem suas hagiografias nas fases
finais de suas produções literárias; ambos adquirem uma visão mais universalista
abandonando o provincianismo lusitano moderadamente e tratando não mais a respeito
apenas da casa lusitana, mas principalmente da condição humana e sua existência.
Além disso, é interessante observar em ambas narrativas a recorrência do elemento
fantástico através das imagens religiosas em ambas narrativas. Os santos passam por
experiências de cunho sobrenatural, passam por situações em que o fantástico toma
conta do ambiente narrativo.
Em São Cristóvão, por exemplo, o santo termina tentando salvar a vida de um
menino, ao atravessá-lo por um rio. O narrador nos faz conhecer a real identidade da
criança – era o menino Jesus, que o arrebata magicamente para o céu, livrando o santo
do jugo da morte.
Em São Jerónimo, a presença do fantástico vem por meio da atmosfera misteriosa
que se cria. Os sonhos de Jerónimo estão repletos de imagens fantásticas como sombras
que criam vida e a presença do demoníaco, representada pela figura da mulher, por
exemplo, que procura o santo nos sonhos para tentar-lhe.
Assim, pretendeu-se através desse breve trabalho, mostrar um pouco das
hagiografias, assim como e, principalmente, narrativas de Eça de Queirós e Teixeira de
Pascoaes, a fim de mostrar em que medida os autores estão afinados tematicamente,
sobretudo unidos pela mitologia da saudade, elemento, segundo Eduardo Lourenço
(1992), recorrente na cultura e literatura portuguesa desde Camões.
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LINS, Álvaro de B. História literária de Eça de Queirós. 2 ed. Lisboa: Livraria
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LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER DO PERÍODO COLONIAL EM INÉS DEL


ALMA MÍA, DE ISABEL ALLENDE

Bruna Otani Ribeiro (G-UNIOESTE/Cascavel) ∗


Gilmei Francisco Fleck (UNIOESTE/Cascavel) ∗

Introdução

No atual contexto de novas aproximações entre diferentes nações, a literatura, como


meio de conhecer, explorar, aproximar-se do outro, assume um papel ainda mais forte e
importante. Primeiro, porque auxilia a integração e a participação no processo e,
segundo, porque é um dos meios mais sólidos de se estabelecer vínculos, aproximar
distintas culturas, de adquirir conhecimentos que possibilitam ao indivíduo adaptar-se a
uma nova realidade e conhecer o passado do qual, hoje, ele vive as consequências. Essa
importância da literatura tem-se mostrado em especial fecunda também no tocante às
questões da posição da mulher e suas representações neste mundo que, até a pouco
tempo, não lhe oferecia espaços de atuação. Fato que fez surgir os primeiros
movimentos feministas também nesta área do conhecimento, numa tentativa, entre
outros aspectos, de evidenciar as representações da mulher, condenada a uma existência
confinada ao mundo doméstico, na arte masculina, assim como de resgatar as poucas
obras escritas por mulheres em períodos ainda dominados pela quase totalidade de
escritas masculinas.
Quando tal produção escrita por mulheres envolver aspectos referentes ao modo
como, em sociedades cujos valores são, em sua maioria, patriarcais, a literatura efetiva a


Bruna Otani Ribeiro- Acadêmica do Terceiro ano da Graduação do curso de Letras
Português/Espanhol da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE/Cascavel). Participante
do curso de extensão “O Narrador – visão e voz na narrativa”, ação do Projeto “Estudos das teorias
contemporâneas de análise literária”, vinculado ao programa de extensão PELCA: Programa de Ensino de
Literatura e Cultura.
∗ ∗
Gilmei Francisco Fleck - Professor Adjunto da UNIOESTE/Cascavel nas áreas de Literatura e
Cultura Hispânicas. Doutor em Letras pela UNESP/Assis. Vice-líder do grupo de pesquisa “Confluências
da Ficção, História e Memória na Literatura”. Coordenador do PELCA: Programa de Ensino de Literatura
e Cultura. E-mails: bruna_otani@hotmail.com;chicofleck@yahoo.com.br
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representação da mulher, das questões de gênero, da valorização e reconhecimento das


produções das mulheres neste campo da cultura dominado, por muito tempo, quase
exclusivamente pelos homens, seus reflexos e efeitos serão, certamente, ainda mais
abrangentes, podendo servir de elo de contato, aproximação e respeito entre homens e
mulheres, assim como entre distintos povos, aproximando-se, assim, o momento, da luta
feminista, segundo defende Oliveira (1999, p. 18), de “inaugurar relações humanas em
que a aceitação da diferença sem desigualdade reconcilie homens e mulheres e ponha
fim ao desencontro das mulheres consigo mesmas”.
Por outro lado cabe destacar o fato de que a literatura não foi o único espaço no qual
a mulher foi excluída por muito tempo. Para isto basta pensar na própria história – um
território que, uma vez desvinculado da arte, tornou-se ainda mais inacessível à
participação feminina. É nesse espaço que as escritas híbridas de história e ficção
ganham um relevo ainda mais acentuado, já que se possibilita às mulheres, por meio do
romance histórico, não apenas resgatar a história de mulheres e suas condições ao longo
dos séculos, mas também de reivindicar seu valor e participação nos eventos cujas
representações sempre as excluíram. Essa representação atinge não só a historicidade da
luta da mulher por uma integração igualitária à sociedade patriarcal que a mantinha
enclausurada, confinada à vida doméstica, como pode revelar a participação ativa, e
muitas vezes decisiva, de certas mulheres em eventos históricos marcantes em cujos
registros oficiais destaca-se e louva-se apenas a participação de homens imortalizados
pela bravura e coragem por meio do discurso historiográfico hegemônico.
O caso da América latina nesse contexto é singular. Entre as tantas vozes masculinas
latinoamericanas que ganharam projeção mundial com os efeitos do boom dessa
literatura a partir da década de 60 do século XX, encontra-se, desde o princípio, uma
voz feminina: Isabel Allende. De sua vasta produção, que na contemporaneidade gera as
mais diversas críticas, queremos nos fixar naquelas que se voltam às leituras da história
pela ficção, já que nelas há a possibilidade de se reler o passado por meio das visões
excluídas do discurso oficial.
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É característica deste período de internacionalização da literatura latinoamericana a


confluência entre a ficção e a história em narrativas inovadora que priorizam, a princípio,
o experimentalismo formal e linguístico, e, num segundo momento, a junção de modelos
mais tradicionais com aqueles altamente desconstrucionistas instituídos pelo novo
romance histórico latinoamericano e as metaficções historiográficas. Diversas produções
romanescas da América se utilizam dessa confluência com a finalidade de reler a união
entre os povos nativos do nosso continente e os europeus que aqui chegaram. O
processo de colonização, registrado na história oficial apenas pela visão européia
(masculina, claro!), é ficcionalmente recriado, por diversos escritores, revelando o
ponto de vista dos excluídos, marginalizados pela história, sendo alguns deles:
mulheres, nativos e negros. Inserida nos dois grandes contextos dessa produção, boom e
o pós-boom, a escritora Isabel Allende ganhou o mundo com suas narrativas que
colocam a mulher como grande protagonista de eventos históricos no qual os homens
são, segundo a ótica do discurso historiográfico, os grandes heróis.

1) Sobre a autora e a obra escolhida

De nacionalidade chilena, porém, nascida em 1942 na capital peruana, Lima, Isabel


Allende, ao publicar, em 1982, a obra Casa de los espíritus, passa a ser considerada um
dos grandes nomes da literatura hispanoamericana. Trabalhou como jornalista, desde os
dezessete anos, em periódicos, em revistas femininas e na televisão antes de publicar
seus livros. Durante a ditadura militar a autora obrigou-se a abandonar o Chile,
partindo para o exílio com a família. Atualmente vive na Califórnia e é considerada a
mais famosa romancista contemporânea da América Latina.
Entre a sua vasta produção, escolhemos como objeto de estudo seu romance Inés del
alma mía. Este foi publicada em 2006, podendo ser considerado, segundo os estudos de
Fleck (2007, p. 161), um exemplo de romance histórico contemporânea de mediação, já
que nele encontramos algumas das características marcantes dos romances históricos
tradicionais, relacionadas por Márquez Rodríguez (1991, p. 22), aliadas às
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características típicas dos novos romances históricos latinoamericanos, apontadas por


Aínsa (1991) e Menton (1993).
O fato de Isabel Allende produzir romances por encomenda, como exemplo a obra El
Zorro - comienza Ia leyenda (2005), faz com que, não raras vezes, seja suscitada a
polêmica em torno da classificação de suas obras, postas entre a arte e o mercado, pois
enquanto alguns as julgam meros produtos para o mercado de consumo, outros as
consideram como sendo de fato literatura por problematizarem questões sociais e com
isso fazer com que o leitor reflita sobre sua condição humana. Deixando a polêmica de
lado, passaremos efetivamente ao estudo da obra Inés del alma mía, que a nosso ver
possui, de fato, valor literário, justamente por abordar questões sociais, as quais levam
o homem a rever a forma como a história da América foi escrita, omitindo-se nela toda
visão não européia e, na narrativa do corpus em especial, a participação das mulheres
em momentos históricos de grande conflito e impacto para a formação das atuais
sociedades americanas.

2) Inés del alma mía (2006): uma mulher no universo colonial hispanoamericano

A obra escolhida como objeto de estudo divide-se em seis partes: 1- Europa, 1500-
1537 (trata basicamente da vida de Inés Suárez antes de partir ao Novo Mundo.) 2-
América, 1537-1540 (narra os primeiros anos dos espanhois no continente americano.)
3- Viaje a Chile, 1540-1541 (relata a dificuldade de atravessar o deserto para chegar ao
sul.) 4- Santiago de la Nueva Extremadura, 1541-1543 (versa sobre a fundação da
cidade de Santiago.) 5- Los años trágicos, 1543-1549 (conta como sobreviveram à
escassez generalizada de alimentos.) 6- La guerra de Chile (refere-se o período de
maior conflito entre os espanhois e os índios do sul.)
Inés del alma mía, estrutura-se como sendo o relato das memórias da personagem
Inés Suárez, configurando-se numa narrativa autodiegética, associando-se, pois, às
narrativas de extração histórica. Com relação às escritas autobiográficas, no âmbito da
história, Alberti (1991, p. 75-78), ao apoiar-se nos pressupostos teóricos de Philippe
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Lejeune (1975), registra que a autobiografia “é principalmente uma narrativa, com


perspectiva retrospectiva e cujo tratado é a vida individual; e implica necessariamente
a identidade entre autor, narrador e personagem”. A adoção de tal perspectiva no texto
ficcional implica também na busca por um pacto especial de leitura.
Segundo García Gual (2002, p. 30), o romancista tem liberdade de dar a voz a
qualquer um de seus personagens; porém, ao optar pela ótica do protagonista –
registrando uma narrativa em primeira pessoa, explorando a intimidade e a memória da
personagem – os dados históricos passam por um exercício de imaginação, contudo o
pacto de leitura é assegurado pela voz enunciadora de quem supostamente tenha vivido
a matéria narrada, buscando “la confianza necesaria para lograr que el oyente se
sienta implicado en la fantástica historia” (GARCÍA GUAL, 2002, p. 30). Para o
caráter subversivo do romance histórico contemporâneo, romper com as diferenças
entre os limites do discurso autobiográfico histórico e o ficcional é um dos desafios
mais recorrentes; um exercício de releituras da história pela ficção.
Assim, o romance relata, em primeira pessoa, as memórias que a personagem Inés
escreveu aos 70 anos. Essas, segundo o discurso da voz enunciadora, foram destinadas
a sua filha de criação, Isabel de Quiroga, para que sua significativa participação na
conquista do Chile não fosse jamais esquecida. Nesse sentido, a protagonista
menciona: “[...] debo relatar mi versión de lo acontecido para dejar memoria de los
trabajos que las mujeres hemos pasado en Chile y que suelen escapar a los cronistas,
por diestros que sean”. (ALLENDE, 2008, p. 80). Vemos, pois, que o discurso
ficcional enfrenta-se com o historiográfico, evidenciando a visão tendenciosa deste de
apenas registrar a participação do homem na história, excluindo a mulher dos relatos
oficiais. Cabe, pois, ao discurso ficcional a tarefa de explorar outras perspectivas sob
as quais o passado também possa ser imaginado e registrado.
Ao longo da obra, o relato autobiográfico da protagonista organiza-se de acordo
com a ordem cronológica dos fatos e de acordo com a seleção feita por sua memória.
Assim, ela busca na cronologia a fidelidade aos acontecimentos e afirma: “En este
relato, escrito muchos años despúes de los hechos, deseo ser lo más fiel a la verdad
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posible, pero la memoria es siempre caprichosa, fruto de lo vivido, lo deseado y la


fantasia.” (ALLENDE, 2008, p. 55). Tal afirmação realça o fato de que o que chega do
passado até nossos dias, segundo defende Hutcheon (1991), é apenas uma construção
discursiva sobre os eventos ocorridos, e reforça o pacto de leitura. Sob esta visão, tanto
o discurso historiográfico como o ficcional são produtos de linguagem, frutos da
organização peculiar que um sujeito faz da linguagem, conhecendo o poder de
representação dos signos linguísticos.
A personagem Inés, nas lembranças que registra à filha, mostra-nos que foi uma
mulher guerreira que rompeu com diversos paradigmas de sua época por ser
aventureira e possuir ideais libertários. Contrariamente às normas impostas pela
sociedade, a protagonista relata que ela perdeu sua virgindade antes do casamento,
mesmo sendo católica. A construção da personagem mostra que ela busca liberdade e
autonomia ao economizar dinheiro e partir para o Novo Mundo. Não vê o sexo como
um ato pecaminoso, mas sim uma forma de obter prazer, por isso ensina seus homens a
satisfazê-la durante o ato sexual. Aprende a ler e a escrever. Possui participação na
política ao administrar, como governadora, a cidade de Santiago. É valente e consegue
defender-se dos ataques de soldados que a queriam como objeto sexual, o que
demonstra sua não submissão. Aprende a lutar como os soldados para sobreviver e
pede um homem, Rodrigo de Quiroga, em casamento.
Possivelmente, todos esses fatos não ocorreram na vida real, exatamente como a
Inés ficcionalizada de Isabel Allende nos conta. Mesmo assim, somente o fato de uma
mulher ter vindo ao Novo Mundo (prática comum apenas entre homens), faz com que
ela seja considerada uma mulher a frente de sua época. Segundo o discurso da
narrativa, vemos que Inés, antes de partir à América, já era inconformada: “[…] vivia
rabiosa conmigo y con el mundo por haber nascido mujer y estar condenada a la
prisión de las costumbres.” (ALLENDE, 2008, p. 28).
Nesse discurso ficcional, por romper com diversos costumes e tradições, Inés foi,
não raras vezes, vítima de preconceitos e diversas passagens da obra ilustram isso. No
entanto, a personagem não se limita a aceitar os fatos como lhes são postos, ela luta
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para modificá-los, porta-se como um sujeito ativo que transforma a realidade, o que
não era comum às mulheres da época, pois estas eram em sua grande maioria
submissas e resignadas aos homens. Dessa forma, a construção discursiva de Inés faz
com que ela se destaque como sendo uma figura de relevo em sua história por agir e
não simplesmente aceitar os fatos como eles deveriam ser. Segundo a análise de
Canello (2009, p. 109), pode-se depreender da leitura que Inés Suaréz representa a luta
de “muitas mulheres na conquista de um espaço para sobreviver e libertar-se de muitos
tabus e preconceitos que marcaram toda uma história, regida por verdades estabelecidas
em poderes instituídos e tradicionalmente firmados em uma sociedade patriarcal”.
Tal afirmação vem ao encontro de nosso raciocínio, contudo, há que se atentar para
o fato de que os supostos preconceitos sofridos por Inés de Suárez, figura histórica,
eram atitudes comuns e naturais para a civilização da época, uma vez que se vivia,
então, sob os moldes de uma sociedade patriarcalista. Estranho seria se o preconceito
não tivesse existido. Inés, como personagem histórica, foi uma figura importante
encontrada pelas pesquisas feitas por Allende pelo fato de que, já no século XV, não
aceitou com resignação uma vida de mulher obediente e isso serviu, obviamente, como
motivo de assombro, já que não era comum existirem, no período colonial, mulheres de
fortes personalidades, determinadas a lutarem por seus objetivos. Diante de uma
existência minimamente documentada de uma mulher com tais traços, a pena
imaginativa de Allende consegue desenvolver os mais relevantes traços de ideal
feminino e de luta igualitária dessa mulher ao lado dos grandes homens da época da
conquista da América, dando-lhe o devido destaque que a história nunca lhe atribuiria.
No romance de Allende, a personagem Inés Suárez ganha voz para contar sua
versão dos fatos acontecidos na conquista do Chile, pois não deseja que seja esquecida
a importância das mulheres neste processo. Deste modo, a personagem declara:
“Puedo apuntar mis recuerdos y pensamientos con tinta y papel gracias al clérigo
González de Marmolejo, quien se dio tiempo, entre su trabajo de evangelizar salvajes
y consolar cristianos, para enseñarme a leer.” (ALLENDE, 2008, p. 17). O aprender a
ler e escrever já caracteriza a não passividade de Inés, pois a detenção da escrita e da
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leitura, ou seja, do conhecimento, não pertencia às mulheres, todavia, ela ultrapassa os


limites do que era comum e apropria-se do conhecimento da linguagem. Sem exceção,
as personagens femininas marcantes das narrativas de Allende possuem esse traço em
comum: apropriar-se do conhecimento da leitura e da escrita para, a partir desse
instrumento, torna-se livres da amarras de sua situação de submissão. Isso ocorre, por
exemplo, com a personagem Eva Luna, com Elisa Sommer, de Hija de la fortuna, com
Belisa Crepusculario, de “Dos palabras” e com Inés Suárez, entre outras personagens
de relevo do universo ficcional de Allende.
Pedro de Valdivia, que conquistou os territórios ao sul do Chile e fundou a cidade
de Santiago, sendo por longo período governador desta, é ficcionalizado em Inés del
alma mía e vive, com Inés Suárez, uma intensa história de amor. Nessa configuração,
espanta-se quando ela o ensina como agir para satisfazê-la durante o ato sexual. “Una
vez que Pedro comprendió que a puerta cerrada mandaba yo y que no había deshonor
en ello, se dispuso a obedecerme de excelente humor. Eso demoró algún tiempo, […]
porque él creía que la entrega corresponde a la hembra y la dominación al macho,
[…].” (ALLENDE, 2008, p. 111). Enquanto a maioria das mulheres praticava o ato
sexual com indiferença, simplesmente por ter sido ensinada a ser subordinada aos
homens, Inés, na configuração que lhe atribuiu Allende, não via o sexo como
obrigação, por isso, não se submetia a ter relações que não a satisfizessem.
No decorrer da narrativa, vê-se que os conquistadores espanhois poderiam ter as
nativas que quisessem, mas sentiam falta de ouvir palavras carinhosas sussurradas em
castelhano. Desse modo, como Inés foi, por muito tempo, a única espanhola no Chile,
alguns soldados sentiram-se atraídos por ela e chegaram a tentar violentá-la. O
romance projeta essa possibilidade ao narrar que o jovem soldado Escobar foi um
desses infelizes e devido à tentativa feita é condenado por Valdivia, governador de
Santiago e amante de Inés, a forca. Por ser jovem e atraente, Inés é vista então como a
mulher tentadora, uma espécie de Eva que induz aos homens a transgredirem as
normas. Diante dessa situação, a personagem relata: “A los ojos de los soldados, la
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culpa fue mía: yo tenté al inocente muchacho, lo seduje, lo saqué de quicio y lo llevé a
la muerte. Yo, la impúdica concubina.” (ALLENDE, 2008, p. 169).
No entanto, ao se questionar se seria ela a verdadeira culpada pelos ataques dos
soldados, a protagonista reflete: “No encuentro falta en mi, salvo ser mujer, pero eso
parece ser crimen suficiente. A nosotras nos culpan de la lujuria de los hombres,
[…].” (ALLENDE, 2008, p. 160). O discurso da narrativa revela, pois, que o simples
fato de Inés ser uma bela mulher faz com ela seja, injustamente, vista como uma figura
demoníaca, por seduzir, tentar e induzir os homens a pecarem. Diante das diversas
tentativas dos soldados de possuírem a Inés, ela passa a ser considerada, até mesmo por
Valdivia um objeto sexual, como se pode observar na passagem abaixo:

Nunca habíamos hecho el amor con esa violencia, me dejaba


magullada e pretendía que me gustara. Quiso que gimiera de dolor,
en vista de que ya no gemía de placer. […] Aguanté el maltrato hasta
donde me fue posible, […] pero a semana me acabó la paciencia y,
en vez de obedecerle cuando quise hacer conmigo como los perros, le
di una sonora bofetada en la cara. No supe como sucedió, la mano
me fue sola. (ALLENDE, 2008, p. 169-170)

A atitude da personagem Inés ao defender-se de seu poderoso amante Valdivia, bem


como de tantos outros soldados, mostra, mais uma vez, que da forma como está
configurada essa mulher, mesmo que tentasse, não conseguiria obedecer aos homens,
como faziam as outras mulheres, pelo simples fato de estes serem considerados na
época, superiores a elas. A Inés configurada por Allende se rebela e luta para que os
homens tenham respeito por ela. Sob essa criação artística, os capitães espanhois
também se chocavam quando Inés sentava-se à mesa para jantar com eles ou
participava das reuniões que deliberavam sobre a condenação dos bandidos. “A
menudo venían los capitanes a cenar y solían llevarse la desagradable sorpresa de que
Valdivia me invitaba a sentarme con ellos a la mesa. Es posible que ninguno hubiese
comido con una mujer en la vida, eso no se usa en España, […].” (ALLENDE, 2008,
p. 149) e quanto ao conselho que decidia o julgamento dos prisioneiros, os capitães
“[...] jamás habían visto a una mujer en un consejo de guerra.” (ALLENDE, 2008, p.
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156). Nas tintas de Allende, Inés desfaz o estereótipo de que a mulher não teve
participação na administração política no período colonial, pois mesmo manifestando
sua opinião de forma velada, Inés mantinha poder político sobre a cidade de Santiago.
O romance faz questão de mostrar o embate entre o posicionamento dos homens e o
papel desempenhado pelas mulheres para que estes obtivessem o sucesso pelo qual
foram imortalizados na história. Um dos exemplos disso na narrativa ocorre quando
Valdivia, ao querer conquistar e fundar muitas cidades, é alertado por Inés sobre a falta
de condições para defender e proteger tanto as antigas como as possíveis novas
cidades. Ante tais comentários o conquistador menciona: “Las mujeres no pueden
pensar en grande, no imaginan el futuro, carecen del sentido de la Historia, sólo se
ocupan de lo doméstico y lo inmediato” (ALLENDE, 2008, p. 214). Tais palavras
revelam não o pensamento do amante acerca da mulher amada, mas da própria história
com relação aos feitos realizados pelas mulheres. Na ficção contanto, cujo objetivo é
justamente revelar o oposto, o conquistador retrata-se diante de Inés, após ela relatar
todas as ações que fizera para tornar Santiago uma cidade digna de se viver:

[...] he creado hospitales, iglesias, conventos, ermitas, santuarios,


pueblos enteros […]. Los hombres sólo construyen pueblos
provisorios para dejarnos allí con los hijos, mientras ellos continúan
sin cesar la guerra contra los indígenas […]. Puse a las mujeres y a
los cincuenta yanaconas […] a producir mesas, sillas, camas
colchones, hornos, telares, vajillas de barro cocido, utensilios de
cocina, corrales, gallineros, ropa, manteles, mantas y lo
indispensable para una vida civilizada. Con el fin de ahorrar
esfuerzo y víveres, establecí al principio un sistema para que nadie
se quedara sin comer. (ALLENDE, 2008, p. 186).

Revelar, no universo ficcional, essas ações de Inés e das mulheres em geral no que
tange ao êxito no processo de colonização – ações jamais mencionadas nos
compêndios da história –, é reivindicar pela arte literária que as mulheres conhecem
sim o sentido da História, que lutam pela sobrevivência de todo um povo, não se
restringindo às preocupações imediatas. Diferentemente dos homens, que se
preocupam com a guerra, o que não raras vezes é sinônimo de silenciamento, de morte,
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as mulheres preocupam-se com a manutenção da vida, com a existência digna, com o


futuro e não apenas com o imediato como é acusada a personagem no romance.
O romance não deixa de mencionar também o fato histórico de que no combate
entre espanhois e mupuches, bravos índios da região sul do Chile, que levou a cidade
de Santiago a destruição quase total, Inés, contém o conflito assassinando sete caciques
que eram reféns de Valdivia. Ao ver a miséria da sua cidade, a personagem vê-se,
como boa parte dos espanhois, diante do fim do sonho da construção de um novo reino.
Mesmo configurada como sendo a representação da força de um povo, Inés desanima e
chora nos braços de Valdivia: “Pedro nunca me había visto llorar, no soy mujer de
lágrima fácil, […]” (ALLENDE, 2008, p. 231). Inés, a heroína que até então
manifestara toda a sua fortaleza, demonstra nesse trecho seu aspecto humano, sua
fraqueza, sua fragilidade, sua sensibilidade e assim, representa a ambiguidade do
sujeito feminino, um ser mormente guerreiro, corajoso e bravo e ao mesmo tempo
frágil e sensível.
Percebe-se que a personagem Inés Suárez, assim como outras grandes personagens do
universo ficcional de Allende, compartilha das mesmas ideologias de sua criadora. Tal
personagem é, novamente, o reflexo dos pensamentos de quem lhe deu existência. Isabel
Allende teve seu próprio discurso silenciado no período da ditadura militar e, ao ser
exilada, lutou para que os fatos bárbaros acontecidos no período ditatorial no Chile não
fossem esquecidos. A autora assumiu um compromisso para com a história e em boa
parte de suas obras literárias manifesta aquilo que, a priori, o discurso histórico almeja
que seja esquecido. Assim, agem também as suas heroínas, como as mulheres da saga de
Casa dos Espíritos, as vendedoras de palavras, como Elisa Sommers e Belisa
Crepusculario, e tantas outras personagens já imortalizadas na mente de milhões de
leitores ao redor do mundo. Elas são em grande parte auto-retratos da autora.

Conclusão: sobre o papel da mulher na literatura


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Ao refletir sobre o papel da mulher na sociedade, vemos que por muito tempo
coube-lhe apenas o papel de educadora e reprodutora. Tal sistema, portanto, afastava a
mulher do acesso ao mundo exterior. Assim, ela foi instalada em uma condição de
isolamento e reclusão que vedou-lhe o acesso a qualquer esfera do poder, das
possibilidades de reflexão e atuação na história. De acordo com Lucía Guerra, “dentro
de una estructura patriarcal que la limita al único papel de madre y esposa, la mujer,
sin alternativas en el mundo de afuera, depende económicamente del hombre,
dependencia que se extiende a la esfera de lo legal y lo emocional. (GUERRA, 2007,
p. 15). Uma situação bem diferenciada daquela dos homens que ocupavam o espaço
público e nele construíam sua imagem de dominação.
Em um período de poucas décadas, os debates envolvendo questões sobre sujeito,
alteridade e construção de identidade começam a ganhar considerável visibilidade
devido à manifestação de novas forças políticas emergentes. Tais forças são
constituídas pelos grupos historicamente excluídos e marginalizados da sociedade
sendo alguns deles, mulheres, negros e índios.
Ao longo da história, o discurso do sujeito feminino foi silenciado e segundo Borges
Teixeira,

[...] a exclusão histórica da autoria feminina no campo institucional


da literatura é o resultado de práticas políticas no campo do saber que
privilegiam a enunciação do sujeito dominante da cultura, o sujeito
declinado no masculino. A produção de autoria de mulheres sempre
colocou os críticos do passado na defensiva, por várias razões, e
dentre elas, o puro preconceito de uma sociedade atrelada a valores
patriarcais, para não dizer machistas, que reservam à mulher o papel
mais edificante e, a propósito, visto como mais condizente com suas
capacidades mentais, ou seja, a de reprodutora da espécie. Assim, a
criação cultural da mulher sempre foi avaliada como deficitária em
relação à norma de realização estética instituída, obviamente, do
ponto de vista masculino. (BORGES-TEIXEIRA, 2008, p. 40).

Devido ao maior engajamento político das mulheres na contemporaneidade, as


obras produzidas por elas ganham maior visibilidade e ocorrem transformações no que
tange à crítica referente às produções femininas. Neste sentido, questiona-se qual seria
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o papel da mulher ao produzir uma literatura sobre a mulher e como resposta a crítica
considera o papel da mulher seria o de uma revolucionária, devido ao fato de romper
com as características convencionais e opressivas do pensamento masculino
materializado na linguagem literária anterior às produções femininas.
A literatura produzida pelo sujeito feminino constitui-se, hoje, como sendo um
“processo de reconstrução da categoria “mulher” enquanto questão de sentido e lugar
privilegiado para a reconstrução do feminino e para a recuperação de experiências
emudecidas pela tradição cultural dominante.” (BORGES-TEIXEIRA, 2008, p. 46).
Percebe-se, então, que tanto a personagem do romance, Inés Suárez, quanto a sua
criadora, Isabel Allende, ou seja, tanto a obra literária como a sua produtora contribuem
para o reconhecimento da mulher na sociedade. O fazer literário feminino promove uma
reflexão sobre a condição humana e sobre o conceito de identidade da mulher.

Referências

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BORGES-TEIXEIRA. Escrita de Mulheres e a (des)construção do cânone literário na
pós-modernidade:cenas paranaenses. Guarapuava: Editora Universitária, 2008.
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América. Gragoatá, Niterói, n. 23, p. 149-167, jul./dez. 2007.
GARCÍA GUAL, C. Apología de la novela histórica y otros ensayos. Barcelona:
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GUERRA, L. Mujer y escritura: Fundamentos teóricos de la crítica feminista. México,


D. F. Universidade Autónoma de México, 2007.
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro:
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MÁRQUEZ RODRÍGUEZ, A. Historia y ficción en la novela venezolana. Caracas:
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MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina – 1979-1992. México
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OLIVEIRA. R. D. Elogio da Diferença: o feminino emergente. São Paulo: Brasiliense,
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NARRATIVA JUVENIL E IDENTIDADE: O RAPAZ QUE NÃO ERA DE


LIVERPOOL, DE CAIO RITER

Camila de Souza Fernandes

Introdução

A juventude é uma fase da vida repleta de mudanças, descobertas, conflitos e


questionamentos acerca da vida e de como o indivíduo se encontra no mundo.
Concordamos com Erikson (1976) quando esclarece que a identidade é um processo de
ajuste do mundo interior da pessoa e daquilo que lhe é externo, ou seja, o social,
permitindo-lhe localizar-se no espaço em que está inserida. Isso quer dizer que os
fatores políticos, culturais, dentre tantos outros, influenciam sobremaneira o
desenvolvimento psicológico, tendo em vista que a identidade é formada a partir de três
pontos: um “eu” ativo, o meio ambiente externo a esse “eu” e um mecanismo que
permite o ajuste do “eu” com o externo.
Se a identidade de uma pessoa não está ligada exclusivamente ao seu interior, então,
ela engloba o social e o cultural:

Revela-se-nos, pois, que a identidade de uma pessoa ou grupo pode


ser relativa à de outras pessoas ou grupos e que o orgulho de
conquistar uma forte identidade pode significar uma emancipação
interior da identidade de um grupo mais dominante, como o da
“maioria compacta”. (ERIKSON, 1976, p. 20)

A identidade está intimamente ligada àquilo que o indivíduo pensa sobre ele e àquilo
que ele acha que os outros pensam sobre ele. Esse é um processo, na maioria das vezes,
inconsciente. Ainda segundo Erikson (1976), as mudanças sociais profundas são
grandes influenciadoras da modificação da identidade humana.
Nesse contexto, a literatura pode se apresentar como elemento fundamental durante
um processo de grandes mudanças, pois jovens leitores podem, a partir da leitura,
desvelar o sentido da realidade que os cerca. Os textos literários, dessa forma,
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proporcionam o contato com as grandes tensões do pensamento humano, como afirma


Candido (1972). Assim, a literatura se coloca como força humanizadora, atuando na
formação do homem. A ficção, então, é um elemento indispensável para a satisfação de
suas necessidades básicas.
Levando em conta tais aspectos, esse artigo tem por foco O rapaz que não era de
Liverpool, de Caio Riter, autor que vem obtendo destaque no contexto editorial do
Brasil em razão da qualidade de seus textos. O livro em questão aborda a relação
familiar, separação dos pais, adoção, amor e amadurecimento; narra a história de um
jovem que vê suas “verdades” ruirem quando descobre que foi adotado. São questões
que, trazendo para o livro dificuldades conhecidas, tratadas de forma sensível, falam de
perto aos adolescentes. Assim, com a leitura da obra pretendemos examinar a
construção da narrativa, levantando os temas abordados e os possíveis resultados
estéticos proporcionados aos leitores, notadamente, a partir do estudo de elementos
como narrador e ponto de vista, personagens, ambientação e linguagem.

1. O rapaz que não era e Liverpool: por uma análise

Caio Riter, autor do texto, nasceu em Porto Alegre, em dezembro de 1962. É


Bacharel em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo, pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, e licenciado em Letras; é Mestre
e Doutor em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É
professor de Língua Portuguesa no Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, em Porto
Alegre. Ministra oficinas literárias de narrativa no SINTRAJUFE-RS, desde 1999. Tem
26 livros publicados, além de participações em antologias. Recebeu diversos prêmios
literários. O rapaz que não era de Liverpool ganhou Prêmio Orígenes Lessa - FNLIJ –
2007, Altamente recomendável - FNLIJ – 2007, White Ravens - Alemanha – 2007,
Catálogo de Bolonha - Itália - FNLIJ – 2007, finalista do Prêmio AGES-Livro do Ano-
2007, Prêmio Açorianos de Literatura – 2006 e 1º Prêmio Barco a Vapor - Edições SM
– 2005.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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O livro que deu origem a esse trabalho narra a história de Marcelo, um jovem de
quinze anos que descobre durante a aula de biologia não ser filho de seus pais. Além
dessa revelação, a vida do jovem também é abalada pela separação dos pais, sua vida
sofre uma grande reviravolta. Tantas novidades geram no rapaz um sentimento de
desajuste no mundo, começam, então, seus questionamentos a respeito das “verdades”
que até pouco tempo lhe traziam tanta segurança. Agora Marcelo precisa enfrentar esse
momento difícil e redescobrir sua identidade. Para tanto, conta com o apoio da
namorada DJ, o respeito a sua dor e carinho dos pais (Inês e Pedro Paulo) e seu irmão
(Ramiro). Não deixando de lado a irmã, Maria, que mesmo não concordando com a
postura de Marcelo o ama.
A leitura do livro remete considerações a fatos muito presentes na vida de
adolescentes, pais e até professores, que precisam lidar com uma nova realidade de
estrutura familiar e com outros eventos que estão intimamente ligados a formação da
identidade dos jovens.
Ao tratar de temas tão delicados como amor, adoção, família, separação de pais; Caio
Riter o faz de forma sensível, respeitando possíveis sentimentos e emoções que venham
gerar em seus leitores, visto que dá ao seu personagem central o tempo necessário para
refletir e um grande espaço para expor suas angústias.
O texto narrado em primeira pessoa, pelo protagonista, transmite com maior
intensidade esse processo de redescoberta de si mesmo, permitindo que o leitor tenha a
sensação de estar em contato direto com o Marcelo, já que é dele a maior parte do ponto
de vista da história:

Passo os olhos pelo quarto: as paredes na cor que escolhi, as miniaturas de


automóveis acumuladas nesses quinze anos de vida de mentira, meus livros,
meus CDs, os quatro garotos de Liverpool, que no quadro feito por mim
viraram cinco. Tudo e nada.
Sou nada. (RITER, 2005,p. 11)

Essa busca por compreensão de sua história de vida e o conflito interno pelo qual
Marcelo passa, podem ser vistos já nas primeiras páginas do livro, pois ao mesmo
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tempo em que está profundamente magoado com tudo o que lhe vem acontecendo, o
rapaz não deixa de nutrir pela mãe o sentimento de amor e reconhecimento da dor
alheia, o que dá um caráter maior de humanidade ao personagem:

Não abro. Você mentiu. Me enganou. Não sou seu filho.(...)


Dói saber que ela está ali, que ela está sofrendo. Sento na cama. Eu sofro
também. Não posso abrir, não quero, não agora. Ela insiste. Bate. Chama de
meu filho. (RITER, 2005, p.11)

Porém, essa perspectiva de Marcelo sobre os fatos é logo quebrada quando os


diálogos são travados com a irmã, Maria. Há o confronto de pontos de vista, a menina
tenta mostrar ao irmão que as coisas podem ser vistas sob outro ângulo e que sua
adoção talvez não seja algo totalmente ruim:

(...) os meus olhos se enchem de lágrimas. Os deles também. Só o de Maria


me fita, firme, um certo lampejo de indignação, oi de raiva, sei lá, no olhar.
- Não diga besteira, Marcelo – diz ela.
- Maria! Pedro Paulo repreende.
- Olha aqui, Marcelo, vou dizer uma coisa: você tem que agradecer todos os
dias o fato de terem adotado você. Você podia estar numa pior, cara.
(RITER, 2005, pg. 44)

Já a namorada aparece na narrativa como porto seguro para o jovem, alguém para
quem ele pode chorar, mostrar seus sentimentos de maneira mais aberta, o consolo para
seus problemas:

- Não chore.
A voz rouca pede. Pede mas não consegue fazer. Chora ela também, lá
longe, num bairro bem distante do meu. Chora, minha linda. Choramos
juntos, por muito tempo. Longo tempo. (RITER, 2005, p. 25)

Dessa forma, o confronto de ideias com a irmã, o conforto por parte da namorada e o
respeito por parte dos pais não permitem que a narrativa tenha um ponto de vista
unilateral, mas oportuniza a fala de todos aqueles que estão envolvidos no assunto, o
que dá seriedade ao tema abordado tratando com dignidade o leitor, já que evita a voz
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autoritária e permite maior espaço para interpretação do público por meio de outras
perspectivas.
A organização da narrativa também se vale de recursos que chamam a atenção do
jovem leitor e até colaboram no momento da leitura. Logo na primeira página há uma
explicação, em nota de rodapé, de como são dados os títulos dos capítulos: “versos das
canções dos Beatles, títulos das canções ou título dos CDs”; facilitando a compreensão
das partes do livro.
Todos os capítulos, assim, são iniciados por versos em inglês e que estão
intimamente ligados ao conteúdo / sentimento do personagem principal. A exemplo
disso o primeiro “Just look into my eyes...” (Apenas olho nos meus olhos), trata-se do
capítulo em que os pais contam para Marcelo a verdade sobre sua adoção: “- Não
Marcelo, você não nasceu de mim”. (RITER, 2005, p. 09)
Essa relação estabelecida com as músicas dos Beatles, paixão do adolescente, oferece
abertura para a intertextualidade. Tal jogo também é dado por meio de diversas citações
de trechos de livros (Os Lusíadas: Quem sabe não embarcar nele e permitir que me leve
por “mares nunca dantes navegados?”) ou por fazer alusão a outras obras “Dom
Quixote” (pg 28), “Sherlock Holmes”, “Maigret – personagem do Georges Simenon”
(pg 126), “Robinson Crusoé” (pg 53), “Affonso Romano de Sant’ Anna” (pg 21), a
personagem “Ana Terra” de Érico Veríssimo (pg. 66) e tantas outras. Todas essas
referências abrem margem para futuras leituras, instigam o leitor a buscar novos
horizontes.
Outro recurso narrativo interessante é o uso do flashback. A narrativa no presente é
interrompida por cenas da memória de Marcelo que recupera fatos já acontecidos e dá
uma visão mais ampla dos eventos para o leitor. Constitui a oportunidade de o público
participar do texto fazendo movimentos entre o presente e o passado. Exige um leitor
que seja capaz de acompanhar esses saltos no tempo e no espaço já que ele não é
avisado quando um flashback termina ou começa.
Essas idas e vindas frequentes da narrativa também podem ser simbólicas e
representar a própria confusão sentimental e de identidade por qual passa o narrador-
protagonista, já que suas lembranças que estão sendo relatadas.
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Podemos notar parte desse caos sentimental quando após um longo flashback,
relembrando o período em que esteve doente com catapora, Marcelo é traído pelo
carinho:

O dia passou, sei que Inês ligou para saber como eu estava, se tinha chegado
bem. Sei que, certamente, ela se deu conta de que o que a dinda tinha dito
era uma desculpa qualquer, perdida por mim, que não estava disposto a falar
com ela. (...) Minha mãe, quer dizer, Inês, soube da mentira, tanto que não
pediu que eu lhe ligasse ao voltar. Sabia. E respeitava. (RITER, 2005, p.
103)

Essa desordem e rigidez de Marcelo também podem afetar o tipo de linguagem do


livro, com pontuação seca e frases geralmente mais curtas. Ao mesmo tempo, esse tipo
de construção sintática, o uso de diálogos e expressões ligadas a faixa etária a quem o
livro é destinado tornam a leitura mais dinâmica: “Xeguei. Vc demora?” (pg 71), “To
pertu. Naum fog. T amu” (pg 71), a abreviação de nomes “Dj”, “Celo” ou ainda em “Se
desarma, sora.” (pg. 58).
Dessa maneira, a temática apresentada pelo livro, a linguagem empregada, o conflito
dos personagens, tudo somado, pode conduzir o cumprimento da função catártica
(JAUSS, 1979), experiência comunicativa da arte, que por muito tempo foi concebida
como algo utilitários, e que hoje é concebida também como fruição:

[...] a experiência estética não se esgota em um ver cognoscitivo (aisthesis)


e um reconhecimento perceptivo (anamnesis): o expectador pode ser
afetado pelo que se representa, identificar-se com as pessoas em ação, dar
assim livre curso às próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por
sua descarga prazerosa, como se participasse de uma cura (katharsis).
(JAUSS, 1979, p. 65)

Assim, a recepção literária está pautada no diálogo entre o texto e o leitor, na troca,
em trazer sua bagagem de mundo, suas vivências e as compartilhar com o material que
está sendo lido. Afinal, a qualidade da leitura da obra literária não reside apenas em
descrever qual o tipo de rima de um poema, em que período literário se encaixa e quais
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características desse período ela pode apresentar, mas envolve também os efeitos que a
sua recepção suscita.
O livro de Caio Riter provoca essa troca entre público e texto, o preenchimento de
lacunas, principalmente quando se trata dos temas polêmicos como a adoção, separação
de pais e o conflito em casa. São temas atuais e carregados de força ideológica. No
primeiro capítulo o leitor é colocado diante de tais situações, os filhos recebendo a
notícia da separação, dialogando com os pais a respeito disso:

– Olha – era eu de novo, na obrigação de falar, afinal era o filho mais velho.
– Não sei direito o que vocês esperam da gente. Compreensão? Aprovação?
A gente nunca percebeu nada de errado. Vocês perceberam? – A pergunta
era para meus irmãos, que me olharam e nada responderam. Minha mãe
buscou refúgio nos olhos do meu pai. Ele permaneceu com os dele fixos em
mim. Prossegui. – Vocês, como o pai bem disse no início desta conversa, já
decidiram. Portanto, este encontro é só para comunicar. O que eu, a Maria ou
o Ramiro pensamos desta separação não fará a mínima diferença (RITER,
2005, p. 15 - 16).

Além de despertar a reflexão, o livro também convida o leitor a participar do mundo


da simbologia. A paixão de Marcelo pelos Beatles está intimamente ligada ao laço
familiar, já que nasceu de um presente dado por seu pai e que antes havia sido de seu
avô. Uma espécie de herança, passada de geração em geração.
Assim, a célebre foto dos Beatles na faixa de pedestre ganha uma nova roupagem
quando Marcelo coloca os rostos de seus familiares (Pedro Paulo, Inês, Marcelo, Maria
e Ramiro) e se torna uma foto com cinco pessoas. No entanto, com a descoberta da
adoção ele retira sua foto e logo a imagem fica como a do grupo inglês original, quatro
pessoas:

Pego a pequena tesoura e amputo um dos Paul McCartney da foto. Retiro


aquele que no passado foi colocado ali de forma falsa. Aquele que estampa
minha expressão feliz. O estranho. O estrangeiro. O rapaz que não era de
Liverpool” (RITER, 2005, p. 35).

E agora o caminhar pela faixa de pedestre, um ato de segurança, já não é mais


confiável para Marcelo, afinal de contas ele “não é” mais um membro daquela família,
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não faz parte do grupo original e traça a seguinte comparação: “toda banda terá sua
Yoko” (pg 30). Esses elementos ao serem retomados e compreendidos que fazem os
leitores perceberem a origem do título do livro: O rapaz que não era de Liverpool.
O percurso de Marcelo pela busca de suas respostas e pelo encontro consigo mesmo
não se encerra facilmente. A superação desse momento de crise só se dá na solidão
parcial, na reflexão acerca de sua própria vida, nas palavras sábias da tia que o acolhe,
no retornar para dentro de si mesmo. E o garoto sai dessa fase mais forte, já que:

Não me importa mais que eles tenham olhos azuis. Nem que a namorada do
meu pai fique sem ele mais um fim de semana. Ou que as ervilhas amarelas
só produzam ervilhas amarelas.
Mendel que se exploda com suas leis.
Somos cinco. (RITER, 2005, pg. 127)

O jovem em crise reconhece seu lugar junto à família e percebe que ter o mesmo
sangue não significa muita coisa quando a família é unida pelo sentimento do respeito,
apoio e amor.

Conclusão

Tendo em vista alguns elementos relativos à leitura de O rapaz que não era de
Liverpool podemos afirmar que o livro oferece contribuições fundamentais na formação
de jovens leitores, já que traz elementos que dialogam com seu público e o faz refletir.
Candido (1995) concebe a literatura como um bem inegável, cujo caráter humanizador
satisfaz a necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade, ajudando o sujeito a
tomar posição face aos acontecimentos da vida. Nessa perspectiva, a temática abordada
no livro, os elementos simbólicos, a linguagem, dentre outros, fazem com que a
narrativa tenha uma alta qualidade estética.
Tudo isso leva ao desenvolvimento da parcela de humanidade, uma vez que abre
caminhos e pretende colocar o sujeito como cidadão no mundo em que está inserido.
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Isso sem negar que os efeitos do texto literário podem atuar tanto para o bem quanto
para o mal, reforçando ou destruindo crenças, uma vez que ensina como a vida.
Além disso, se a formação da identidade está ligada tanto a fatores internos quanto a
fatores externos, como apontados por Erikson 1976, podemos afirmar que a literatura
proporciona um desses momentos de encontro com a reflexão sobre assuntos difíceis e
que na adolescência parecem ter um caráter maior devido a essa fase de transição nem
sempre fácil entre juventude e vida adulta.
Com isso não pretendemos uma discussão que se encerre aqui, mas que seja apenas
mais uma contribuição no trabalho com o texto infanto juvenil, o qual durante tanto
tempo esteve ligado a objetivos pedagógicos, mas que hoje parece ter ultrapassado essas
barreiras e se tornado uma literatura questionadora, realista e com qualidade estética.

Referências

CANDIDO. A. A literatura e a formação do homem. In: Ciência e cultura. São Paulo,


v. 24, n. 9, set. 1972, p. 803-809.

______. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

ERIKSON, Erik H. Identidade, juventude e crise. Trad. Álvaro Cabral. 2. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1976.

JAUSS, Hans Robert. O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis,


aisthesis e katharsis. In: LIMA, L. C. A literatura e o leitor: textos da estética da
recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979b.

RITER, Caio. O rapaz que não era de Liverpool. São Paulo: Edições SM, 2005.
(Coleção Barco a vapor).
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ABORDAGEM DO TEMA DA MORTE NO ROMANCE “A HORA DA


ESTRELA”, DE CLARICE LISPECTOR

Camila Del Tregio Esteves (G-UEPG)


Silvana Oliveira (UEPG)

Introdução

A literatura, tida como expressão artística por meio da palavra, se ocupa das questões
significativas relacionadas à condição humana. Grandes obras da literatura universal
versam sobre os conflitos humanos, igualmente universais. Consideram-se conflitos
humanos universais aqueles que independem de localização geográfica, época, condição
econômica ou social. Ou seja, que concernem às implicações da condição de ser
humano.
Considera-se o tema da finitude como uma das grandes questões à qual a
humanidade está submetida. Por finitude humana, entende-se o estatuto de “ser” mortal
atribuído aos homens. O homem se sabe mortal, e tal saber é acompanhado pela
angústia e pelo questionamento de tal condição – decorrem daí as questões sobre o que
é a vida e o que é a morte.
Ao localizar a questão da finitude humana como significativa no que se refere aos
conflitos humanos, espera-se que a mesma esteja presente nas obras literárias, o que
efetivamente sucedeu ao longo da história universal da literatura. Para fins de recorte,
este trabalho se deterá na análise de uma obra pertencente ao século XX, “A hora da
Estrela” (1977), de Clarice Lispector.
Nesta obra, a autora aborda, à sua maneira e com características ficcionais próprias,
a problemática da morte. O intuito deste trabalho é justamente tecer uma análise sobre a
abordagem particular da obra sobre o tema.
Inicialmente, o trabalho se deterá na tentativa de situar a problemática da morte a
partir de algumas correntes de pensamento do século XX, quais sejam, psicanálise e
sociologia.
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Em seguida, tratará da explanação acerca da obra de Lispector, suas características,


as estratégias literárias utilizadas, sua linguagem.
Finalmente, situará a maneira como a temática da morte pode ser observada na obra,
proporcionando ao leitor uma abertura para a reflexão sobre o tema.

1. A morte:

A consciência da morte está no centro das preocupações humanas, assim, a


problemática da finitude certamente aparece nas contribuições realizadas por grandes
correntes de pensamento que se propõem a estudar a condição humana. Este trabalho se
limita a recorrer a algumas dessas contribuições para maior um esclarecimento sobre o
tema, todas contemporâneas à obra literária em questão.
A psicanálise, surgida no início do século XX, a partir dos estudos do psiquiatra
austríaco Sigmund Freud, tem grande relevância para o direcionamento do pensamento
ocidental desenvolvido após o seu aparecimento. Isto devido à grande revolução, e
polêmica, causada pela nova descoberta da disciplina: o inconsciente. Tal hipótese
relativizou tudo o que se conhecia até então tomando como base a consciência como
senhora de si.
Inicialmente, Freud considerava em sua teoria os instintos do EU e os instintos de
vida, ou sexuais, como condutores da vida psíquica. No entanto, com suas observações
realizadas no decorrer do desenvolvimento da teoria, percebeu que estes dois instintos,
tais como concebidos inicialmente, eram insuficientes para dar conta da totalidade dos
fenômenos psíquicos. Os fatos relativos à obsessão de repetição observados por Freud
apontavam para uma outra direção no que se refere à teoria dos instintos.
Em seu texto “Mais além do princípio do prazer” (FREUD, 1959), escrito em 1920, o
autor inicia sua discussão sobre a existência não da oposição instinto do EU e instinto
de vida, mas da oposição instinto de vida e instinto de morte. Freud recorre ao substrato
orgânico do ser vivo para localizar a possível origem do instinto de morte. Seguindo
este direcionamento do estudo da vida orgânica, Freud observa que um instinto seria
uma tendência do próprio organismo vivo à reconstrução de um estado anterior.
Partindo da idéia de que o inanimado era anterior à existência da matéria animada, o
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instinto de morte seria uma tendência de retorno ao estado inanimado. Ou seja, seguindo
os princípios da natureza, a meta de toda vida seria a morte.
A oposição entre instinto de vida e de morte na vida psíquica seria, para Freud, a
origem de sua teoria das neuroses. No mesmo texto, Freud ainda observa que a crença
da morte natural não estava presente entre os povos primitivos, que atribuíam a morte à
influência de inimigos ou espíritos maus; assim, pondera que a nossa crença na
regularidade da morte talvez seja uma ilusão criada para suportamos o sacrifício de
viver.
Outro teórico que traz importantes contribuições para a problemática ora abordada, é
o sociólogo de origem polonesa Zymunt Bauman. Em sua obra “O mal-estar da pós-
modernidade”, cujo texto original é de 1977, Bauman faz referência direta a um texto
escrito em 1929, “O mal-estar na civilização”, pelo já citado Sigmund Freud. Cabe
salientar que ambos refletem, cada um à sua maneira e sob o seu ponto de vista (o
primeiro sob o ponto de vista da sociologia, e o segundo sob o ponto de vista da
psicanálise), questões significativas que concernem ao homem em sociedade.
BAUMAN (1998), ao problematizar, no texto mencionado, sobre a imortalidade e a
mortalidade, chega a uma discussão sobre as conseqüências deste dilema para a vida do
homem. Citando um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges, “O imortal”, o
autor chega à conclusão de que a vida humana apenas tem sentido porque o homem tem
consciência de que é mortal. No conto, o personagem Joseph, após longa jornada a fim
de escapar à própria e temida morte, chega à Cidade dos Imortais, e o que lá encontra é
completamente sem sentido. Após o desencanto inicial, Joseph compreende:

Ser imortal é coisa comum. Com exceção do homem, todas as


criaturas são imortais, pois ignoram a morte. O que é divino,
incompreensível, é saber que se é imortal. (...) Tudo, dentre os
mortais, tem o valor do irrecuperável e do perigoso. Dentre os
Imortais, de outro lado, todo ato (e todo pensamento) é o eco de outros
que o precederam no passado, sem nenhum início visível, ou o
constante presságio de outros que, no futuro, o repetirão a um grau
vertiginoso. (...) Nada pode acontecer apenas uma vez, nada é
preciosamente precário. (BORGES, cit. BAUMAN, 1998).
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O autor segue concluindo que tudo o que os homens se empenham em fazer, o fazem
para dar sentido às suas vidas absurdamente breves. Toda a cultura humana (artes,
política, relações humanas, ciência, tecnologia) fora concebida no ponto trágico do
encontro entre o período finito da existência física humana e a infinitude da vida
espiritual humana (BAUMAN, 1998).
Bauman aponta ainda que a implacável realidade da morte torna a imortalidade um
sonho para os humanos, que tentam alcançá-la a partir de duas estratégias principais:
uma coletiva, por meio das totalidades humanas das quais fazem parte (Igreja, Nação,
Partido, Causa), que viverão muito mais do que qualquer um de seus membros, e isto
graças ao esforço de cada um deles, que lhes asseguram a vida eterna à custa da própria
vida individual; e a outra estratégia individual, pois considerando que todos os
indivíduos devem morrer, alguns, por sua importância, devem permanecer na memória
de seus sucessores. Esta espécie de imortalidade se refere aos governantes e líderes dos
homens, por suas realizações, e aos autores (filósofos, poetas, artistas), por seus
empreendimentos (BAUMAN, 1998).

2. A obra:

“A hora da estrela”, de Clarice Lispector é considerada não um romance de amor,


mas um romance introspectivo, de reflexão. Trata-se de uma obra que discute o estatuto
do ser, sob a perspectiva de seu narrador, Rodrigo, que por sua vez escreve um
romance, contando a história de Macabéa, sua personagem principal. Há nesta obra duas
histórias: a história do romance sendo escrito, e a história de Macabéa.
Lispector inicia o romance, já na primeira página, introduzindo a questão que
norteará todo o desenrolar do trabalho: a questão sobre o que é a vida, o que é a morte, o
que é o ser. Inicia o texto desta maneira, ainda que logo anteriormente a isto, no final da
Dedicatória do autor, já tenha adiantado ao leitor que o livro que se segue está
inacabado, porque lhe falta a resposta. Ou seja, o livro trata do que é o sentido da vida e
da morte, e não traz respostas a isto, apenas, e é isto que o torna uma grande obra
literária, questionamentos que impulsionam o leitor a se inquietar e se questionar
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também. Ainda na primeira página, Rodrigo, o narrador, diz: “Enquanto eu tiver


perguntas e não houver resposta continuarei a escrever” (LISPECTOR, 1998, p 11).
A obra se desenvolve mesclando passagens metalingüísticas, ou seja, passagens que
se ocupam da reflexão sobre o que é escrever um romance, com passagens que tratam
da história da personagem Macabéa. Há o cruzamento destas duas histórias.
Rodrigo, na obra, é ao mesmo tempo narrador e personagem. É o narrador pois é ele
quem conta a história, trata-se de um narrador em primeira pessoa. Ele inclusive se
identifica: “Eu, Rodrigo S. M.” (LISPECTOR, 1998, p.13). É também personagem pois
desempenha uma ação – a ação de escrever um livro. Esta estratégia do narrador é
fundamental no romance, uma vez que possibilita o exercício da metalinguagem. A
autora não tem a intenção de apenas escrever um romance, ela intenta, além disto,
refletir sobre a função de sua escrita, e sobre a maneira como deve escrever.
O processo de criação realizado por Rodrigo, de invenção da história de Macabéa, é
explicitado pelo narrador. Isto se configura como uma característica dos romances
modernos, em que não há a preocupação com a estratégia da verossimilhança, o
narrador deixa claro ao leitor que a história que conta foi inventada, neste caso, foi
inventada pelo próprio narrador, que é também personagem.
Macabéa é uma nordestina miserável e caracterizada, principalmente, pela ausência
de consciência. Ela é alheia a tudo, até mesmo ao fato de que existe. Muda-se com a tia
para o Rio de Janeiro, não se sabe o porquê. Após a morte da tia, que era seu único
vínculo com o mundo, se hospeda em uma pensão, dividindo o quarto com outras
moças, e segue a vida em um emprego de datilógrafa, que executa com mediocridade,
pois não sabe escrever bem. É uma moça, como muitas outras que apenas vivem por aí,
que “não faz falta a ninguém” (LISPECTOR, 1998, p 13).
O narrador utiliza uma linguagem simples e dura para construir a narrativa, assim
como o é a personagem que cria. Macabéa é simples demais, até simplória, não pode ser
descrita com palavras rebuscadas. Macabéa não pensa, não se questiona, e tampouco
desperta o interesse de qualquer pessoa, ela é “café frio” (LISPECTOR, 1998, p. 27).
Ela apenas vivia e não se perguntava por que vivia.
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Num mês de maio, mês das noivas, Macabéa encontra o homem que seria seu
namorado: Olímpico de Jesus, também nordestino, operário que se autodenominava
metalúrgico, ganancioso, briguento, oportunista. As conversas entre os dois giravam em
torno das lembranças do nordeste, e do incômodo de Olímpico com as bobagens de
Macabéa. Os dois mais pareciam irmãos, não havia o calor da paixão.
Macabéa sonhava se casar com Olímpico, mas ele a trocou por Glória, sua colega de
trabalho, pois viu nesta um melhor partido.
Um dia, seguindo um conselho de Glória, Macabéa procura uma cartomante, e
quando esta lhe põe as cartas, vislumbra pela primeira vez que tem um destino, um
futuro. A cartomante lhe diz que ao sair de sua casa, terá uma mudança total de vida,
que tudo dará certo e que haverá alegria.
A moça, também pela primeira vez, sente esperança, se apaixona, treme de medo, de
alegria e anseia pela vida nova. Ao sair da casa da cartomante, Macabéa é atropelada e
morre, sendo este o momento de sua hora de estrela.

3.1 O tempo e a morte em “A Hora da Estrela”:

O narrador Rodrigo revela, ao longo da construção da personagem Macabéa, uma


consciência muito vívida sobre o passar do tempo e a proximidade da morte.
Esta consciência é vivida como uma dor. Uma espécie de dor do tempo; na
construção de Macabéa, Rodrigo luta por tirar-lhe esta consciência e fazê-la, segundo
ele, livre do tempo e da iminência da morte. Ainda segundo Rodrigo, não há em
Macabéa a miséria humana, não há o sofrimento da busca pelo sentido da vida.
Macabéa vive como um cachorro, ou seja, não tem consciência do tempo, vive um
presente eterno em que as sensações tem mais importância do que o porvir.
A história de Macabéa, no entanto, como qualquer história humana, estará marcada
pela tomada de consciência de que existe futuro e nesse futuro humano está a morte
individual.
Quando Macabéa decide seguir o conselho de Glória e procurar a cartomante, pela
primeira vez em sua vida está “ousando”, pois para ela, que nunca havia pensado em
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nada, desejar saber algo sobre o que estava para lhe acontecer era ousar. Neste momento
já se percebe um vislumbramento tímido pela persoangem de que há um futuro, e a
emergência estrondosa deste futuro se dá no transcorrer do encontro com a cartomante.
No início do encontro, Macabéa ainda se mantém em sua postura inicial, apenas
ouvindo as peripécias vividas pela cartomante, que as contava com entusiasmo. Eram
experiências de vida que não faziam parte do contexto de Macabéa, eram palavras que
inclusive assustavam a moça, pois estavam cheias de vida em excesso, tudo era demais
e incompreensível para a infeliz.
Em determinado momento, a cartomante finalmente pede a Macabéa que corte as
cartas, e isto a aterroriza, pois é o que lhe indica que ela tem um futuro. Este é o ponto
máximo da vida de Macabéa, é o ponto a partir do qual tudo se transforma, uma vez que
é depois disto que começa a mudança em sua vida.
A partir deste momento, a cartomante começa a desfilar para a moça uma seqüência
de infelicidades, de infortúnios, com os quais Macabéa se identifica, pois afinal, nunca
havia tido uma felicidade genuína, ainda que nunca tivesse pensado sobre isto. Até
então Macabéa até acreditava que tinha alguma alegriazinha.
Então chega o momento da revelação: a cartomante diz à moça que algo maravilhoso
está para acontecer e que sua vida mudará completamente. Provando o poder das
palavras, Macabéa toma as palavras da cartomante como verdade, e a iminência do
futuro passa a ser real para ela. Agora Macabéa tem futuro.
Macabéa se sente viva e deseja ardentemente o futuro. Ela se posiciona no tempo e
deixa de viver como um cachorro. Tomando para si as palavras da cartomante, Macabéa
se insere no mundo da linguagem, o mundo propriamente humano. Assim há uma
quebra na construção que Rodrigo vinha desenvolvendo para Macabéa, mantendo-a
afastada da dor de existir. Nesta hora, ao invés de Rodrigo aproximar-se do mundo de
Macabéa, desejando não pensar e apenas agir, é ela quem se aproxima do mundo dele,
tomando consciência de si e do tempo, e consequentemente da morte.
A moça passa a temer a felicidade, que era algo que nunca lhe ocorrera até então: a
felicidade, a grande felicidade, era para os outros, este “luxo” não cabia em sua vida.
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Saindo da casa da cartomante, Macabéa, aos tropeços pelo atordoamento causado


pelas novas, é atropelada. Macabéa agora era uma outra pessoa, ela existia e tinha um
futuro, e este é o momento da hora da estrela, é aí que se justifica o título do livro,
escolhido entre outros. É o atropelamento que confere o sentido da vida de Macabéa.
Era o destino falando à Macabéa que sua hora havia chegado.
Nestes instantes entre o atropelamento e a morte propriamente dita, Macabéa viu se
concretizarem as predições da cartomante. Ela encontrou o sentido de sua vida. Naquele
exato momento em que aguardava a morte, caída no chão e sangrando, Macabéa sentiu-
se nascendo: conheceu a esperança e teve a consciência de si.
Não só Macabéa passou a existir para si mesma, mas também passou a existir para os
outros. Na iminência de sua morte, um bando de pessoas juntou-se para olhá-la. As
pessoas a viram, perceberam que ela estava ali, e pela primeira vez em sua vida a sua
presença modificou algo no mundo. Ela tinha uma existência.
Quanto mais Macabéa se aproximava da morte, mais se sentia próxima à si mesma.
Quando praticamente não havia mais tempo, Macabéa teve a consciência que nunca lhe
havia ocorrido em vida: “... eu sou, eu sou, eu sou...” (LISPECTOR, 1998, p. 84).
Por fim, Rodrigo anuncia o momento exato da morte como se estivesse anunciando
um momento brilhante de salvação: “Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo
de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso.
Estrela de mil pontas” (LISPECTOR, 1998, p. 85).

Considerações finais:

Rodrigo, no final do romance, quando reluta em colocar em palavras que Macabéa


efetivamente morreu, termina por concluir que a morte é uma necessidade. Se a vida
não caminha para um fim, é como se não tivesse razão de ser. Mas ainda assim Rodrigo
reluta. Acredita que dizer de uma vez que a moça morreu seria o mais fácil, mas ele não
o quer, ainda reflete que o que é mais difícil é viver: “A vida é um soco no estômago”
(LISPECTOR, 1998, p. 83).
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Macabéa encontra seu sentido pelas palavras da cartomante, ao mesmo tempo em


que Rodrigo tenta encontrar o seu próprio sentido por meio das palavras que escreve.
Pode-se antever, com isto, que o livro define a linguagem como a única possibilidade de
salvação do ser humano, na medida em que a morte é sempre certa.
Apesar deste apontamento para o qual o livro nos direciona, sobre a salvação por
meio da linguagem, fica evidente ainda que a obra, como bem explicitado pela autora no
início de seu texto, e bem lembrado no início do estudo da obra neste trabalho, não se
propõe a encontrar respostas, e sim a suscitar perguntas.
Se as palavras do romance, deste ou de outros, não são as respostas para a dor de
existir, são talvez o seu consolo.
Há as pessoas, que como Macabéa, ainda que não atinjam seu extremo, apenas
vivem, agem e sentem as coisas de seu cotidiano. E há as que pensam sobre a sua
condição, se inquietam, se questionam e questionam o mundo. A estas últimas, talvez os
romances de reflexão tenham mais a dizer, e façam mais sentido. O que é certo é que
Clarice Lispector já disse muita coisa a muitos leitores, e isto a torna uma grande
escritora, em qualquer época.

Referências

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia


Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Trad. C. Magalhães de Freitas e Isaac


Izecksohn. Rio de Janeiro: Delta Ed., 1959.

GUIDIN, Marcia Ligia. Roteiro de leitura para o romance A Hora da Estrela, de


Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1998.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.


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COMPANHIA DO LATÃO: UMA EXPERIÊNCIA COM TEATRO


DIALÉTICO NO BRASIL

Camila Hespanhol Peruchi (G-UEM)


Alexandre Villibor Flory (UEM)

Introdução
Este artigo está ligado a um projeto de PIC, que estuda a montagem da peça “O
círculo de giz caucasiano”, pela Companhia do Latão em 2006, incluindo um estudo
sobre a história do grupo e sua estética. No presente trabalho o foco será a peça “Ensaio
sobre o Latão” como ponto de articulação entre a formação do grupo, o contexto
histórico e a estrutura da própria peça. Apesar do caráter de formação do grupo, a peça
escolhida não foi “Ensaio para Danton”, de Büchner, primeira encenação, mas a
segunda montagem da Companhia, “Ensaio sobre o Latão”, para manter o enfoque na
recepção produtiva da obra de Brecht. A experiência do pensamento artístico do
dramaturgo alemão, vivenciada através do processo de criação, montagem e encenação
de “Ensaio sobre o Latão”, foi decisiva a ponto de se materializar no nome do grupo, tal
a força desse exercício de processo teatral, que envolveu a leitura de textos teóricos da
“Compra do Latão” e a tentativa de levar ao palco esse processo de busca. Mesmo a
denominação de ensaio não se refere unicamente ao ensaio teatral, mas ao ensaio como
forma, que preconiza a busca e o processo de conhecimento, num dos inúmeros
procedimentos pelos quais essa montagem procura quebrar a ilusão cênica.
Ao falar de formação do grupo, não é possível deixar de comentar o momento
histórico pelo qual o país então passava. No final dos 80 e início dos 90 se viu uma nova
investida em procura formal, inclusive na formação de um novo público. Para tal
iniciativa, que tateia um novo plano formal e temático, contribui diretamente a crise que
surge após a queda do muro de Berlim, e que se instala no lugar da orgia do capital e do
liberalismo que, supostamente, haviam vencido a batalha (KURZ, 1993). A crise aponta
para o aumento da exclusão social e da desigualdade que, conseqüentemente, ganham
expressão nas manifestações artísticas anticapitalistas dos anos 90. Num Brasil que
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continuamente repõe sua modernização conservadora, esse quadro se torna ainda mais
incisivo. Depois de 68, um movimento social, político e artístico, que ganhava corpo e
penetração, foi interrompido como projeto amplo. A partir dos anos 90 o teatro volta a
ser espaço para novos desenvolvimentos estéticos e sociais interessantes, à margem das
montagens meramente comerciais ou de um experimentalismo autocentrado. (COSTA,
1996)
Esse é o contexto no qual surge um grupo como o Latão, voltado para a discussão
teórica e prática, concebendo a forma artística como mediação entre literatura e
sociedade, na qual querem intervir. A retomada da discussão sobre o teatro épico-
dialético de Brecht, bem como de outros autores como Büchner, aliado à valorização do
grupo, do processo de trabalho e da participação/ativação do público, profundamente
ancorado no Brasil de hoje e suas questões, é o ponto de partida da Cia do Latão.
Importa notar que eles se tornam representativos de uma nova visada que não se esgota
neles, mas ganha força em todo o Brasil, o que vale a pena estudar. Julgamos que a
escolha do texto dramático de Ensaio sobre o Latão para análise consegue jogar luzes
em todas as direções apontadas: 1) uma preocupação com o Brasil, com nossos
espectros socialmente descartáveis no centro da cidade; 2) com a formação de um novo
público, que é instado a participar e a refletir ao longo da apresentação e depois dela, e a
agir; 3) a discussão sobre a atualidade e a apropriação do teatro brechtiano, o que
também remonta à história do teatro brasileiro e de palcos como o Arena, projeto esse
retomado no Brasil. Devido às limitações de uma comunicação, iremos nos ater à
discussão sobre alguns elementos dessa montagem, sem o objetivo de esgotar qualquer
possibilidade analítica, mas de apontar caminhos pertinentes para a investigação sobre a
relação entre literatura e sociedade.

1. Estética do grupo e perspectiva política


Segundo Carvalho (2009), a base em pesquisa de linguagem fez com que o grupo,
desde o início, criasse a partir do conhecimento de que a linguagem não é neutra e,
portanto, carrega sempre significados prévios e um discurso pronto. A Cia do Latão
iniciou as suas pesquisas com Brecht como meio de encontrar formas críticas novas de
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representar a sociedade e tratar, com isso, de assuntos sociais em uma sociedade na


qual, com Marx, os pensamentos dominantes de uma época são aqueles de sua classe
dominante. É inevitável que essa dinâmica social se estenda às apreciações artísticas, às
ideologias e às visões de mundo de determinada sociedade.
Nesse ponto, Brecht torna-se fundamental, pois formaliza uma estética em que a
crítica não enfoca apenas os conteúdos, mas a própria formalização da representação,
unindo interesse social, político e experimentação formal. A forma épica consegue
concretizar esses três pontos à medida que supera o individualismo do ser e traz às
cenas um ser social em que as forças são sempre determinadas por forças sociais
maiores que fogem da sua autonomia. Nesse contexto, desmascara-se pela arte, através
da exibição das diferenças históricas a que todos os sujeitos estão submetidos, a
existência de um sujeito livre e a idéia da mobilidade social ao alcance de todos. Por
outro lado, quando a Companhia do Latão faz o púbico de hoje se deparar com essa
realidade, não tem a intenção de incitar uma conformação ou imobilidade através do
pensamento de que somos apenas determinados pelos acontecimentos e já estamos
diante de uma catástrofe consumada. O que se pretende, quando se pratica essa arte é,
pelo contrário, trabalhar esses dois extremos tão impregnados na sociedade: a mentira
do sujeito livre para agir e a impossibilidade total de agir. Submetendo ambos à crítica.
(CARVALHO, 2009). E é, por esse viés, que o teatro épico trabalha através da prática
transformadora que vai contra a aceitação do processo de naturalização, muitas vezes já
assimilado pelos sujeitos. Esse é, falando de modo genérico, o ponto de partida para se
entender a concepção de arte e de realidade da Cia do Latão.

Ao trabalhar o teatro épico, sob a base da dialética e do materialismo histórico,


procura discutir as relações sociais que permeiam toda a situação representacional (e,
portanto, também real). É dessa forma que a arte expressa a realidade e não apenas se
comporta como uma reflexo dela, umas vez que não funciona apenas como um espelho
que, portanto, não tem nada além do social para mostrar. Quando expressa, recria e
inova e, por isso, tem uma dimensão criativa e reflexiva que reflui sobre a realidade
social e a pode transformar. Não se trata, nesse caso, de uma aplicação direta dos
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recursos fornecidos teoricamente pelo teatro épico, mas fazer com que todas estas
técnicas adquiram uma forma diante da realidade situacional que expressam. É através
de uma perspectiva anti-ideológica e da crítica dialética e política das formas que se
encontra o desmascaramento ideológico, do discurso e do conceito de forma.

2. “Ensaio sobre o Latão”: um experimento cênico inspirado no pensamento


artístico de Bertolt Brecht
No fim de 1997, depois da encenação de “Ensaio para Danton”, a Companhia do
Latão inicia o seu processo de formação e se dedica a um projeto chamado Pesquisa em
Teatro Dialético. Ainda durante a montagem de “Ensaio para Danton”, primeira
experiência de encenação autoral do então diretor da Companhia, Sérgio de Carvalho,
tratando com a narrativa e outros recursos totalmente anti-ilusionistas no autor alemão,
já houve uma suspeita da necessidade de estudar a obra de Brecht para obter uma
reflexão no sentido de encontrar, através dos materiais da ficção, uma forma crítica
atual de representação. Ao ocupar o Teatro de Arena, a companhia se dedicou a uma
pesquisa intensa que se voltou ao estudo da dialética de Brecht e, portanto, ao marxismo
e a cidade dos dias de hoje. O enfoque foram experimentos teatrais com a teoria de
Brecht, principalmente, através dos fragmentos de “A compra do Latão”, que consiste
em uma súmula do pensamento artístico do dramaturgo e reúne diálogos, artigos e
fragmentos, escritos desde 1939 até 1955 à luz do conceito de Teatro Épico,
explicitando um conceito de teatro a serviço dos homens que pretendem determinar o
seu próprio destino. “Ensaio sobre o Latão” é o resultado desse estudo que, ao pensar a
função atual da arte na sociedade, a partir de um dramaturgo alemão, faz também um
exercício de reinventar a poética de Brecht.
Em “Ensaio sobre o Latão”, estão em cena o Dramaturgista, o Diretor, o Ator-
Hamlet, a Atriz-Ofélia, o Ator-Polônio, o Assistente de Televisão, o Iluminador e
Sandra. A encenação caminha no mesmo sentido do texto original de Brecht. O único
que não fala é o Iluminador, que trabalha enquanto todos conversam. Assim como em
“A Compra do Latão”, as divergências entre os personagens são sempre enfatizadas e o
debate sempre aumenta. No entanto, o interesse não é, de maneira alguma, defender este
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ou aquele ponto de vista e levar o público a um posicionamento dogmático entre


concordo ou discordo. O que se pretende é o movimento da reflexão e os diferentes
caminhos que ela toma ao longo da discussão, o que acaba provando ao espectador que
não existe verdade imutável diante dos pontos de vistas contraditórios que a peça
explora (MARCIANO, 1997). Desde o início da peça os personagens já são definidos e
as suas diferenças explicitadas.
Fica claro que alguns personagens do “Ensaio sobre o Latão” sempre tem,
paralelamente, um personagem respectivo na “Compra do Latão”. O Diretor, por
exemplo, surge como o personagem Filósofo da outra obra e, para ele, o teatro deve
proporcionar um retrato fiel das relações sociais entre os homens, não através de uma
simples tese do espelhamento, mas com intuito de, a partir da explicitação das relações
sociais, influir sob o público e incitá-lo a agir.
Já o Ator-Hamlet deseja sempre expressar-se e não esconde seu real desejo de ser
sempre admirado. O Ator-Polônio não consegue compreender a função de uma arte que
não seja capaz de retirar o indivíduo do seu cotidiano. O Dramaturgo atua como uma
espécie de mediador no debate entre todos os personagens. E o Assistente de Vídeo é
um funcionário do capital, porque não lhe ensinaram outra coisa.
A peça funciona como o mais puro metateatro. O sentido, entretanto, não é apenas
uma arte que fala da arte, mas uma arte que vai abordar o processo de produção dela
mesma a partir da consciência que adquire enquanto obra de arte, não mais com um fim
em si mesma. Não corre o risco de descambar para a arte pela arte: eles pisam o chão
social a todo momento, ponto de fuga da montagem. Esse caráter é relevante ao se
pensar em “Ensaio sobre o Latão”, uma vez que a pretensão é mais que abordar a
função artística de cada um dos personagens dentro do teatro e a produção da peça em
si. A abordagem enfoca os personagens, principalmente, enquanto seres humanos
fazendo arte e por isso, trabalha com os interesses individuais de cada um dentro de um
fazer artístico comum que, a princípio, não leva em conta sequer a existência de um
público. É nítido que esse interesse individual que ronda toda a situação exposta na
peça, seja a do próprio ensaio, das improvisações ou do grau de aceitação de cada
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personagem diante das propostas de um teatro materialista-dialético, é norteado pelas


relações sociais que “formam” cada um desses indivíduos e seu posicionamento. A peça
não fala apenas de um processo comum de construção de uma peça, mas é inovadora à
medida que, ao ser metateatro, revela um caráter de consciência enorme sob ela mesma
visando uma maneira específica de se fazer teatro.
A peça, norteada por essa característica metateatral, se passa em quatro dias de
ensaio e exercícios para a estréia da peça clássica Hamlet. Inicia-se com um prólogo que
se passa no saguão do teatro, em que o Dramaturgo avisa ao Diretor que os novos atores
chegaram. O que se passa daí por diante, são experimentos que envolvem diversos
exercícios teatrais, que variam entre a peça clássica “Hamlet” e o teatro realista,
entremeados pela discussão constante sobre o que é a arte e para quê representar. A
primeira cena a ser “ensaiada” (e encenada) é de Hamlet, a cena do espectro do rei
morto.
A peça, tomando como base o teatro épico-dialético que se preocupa em
desmontar cada uma das engrenagens do teatro tradicional, o faz magistralmente na sua
própria estrutura que, propondo, em uma peça, o ensaio de outra, se mostra totalmente
fragmentária. Sob o signo do fragmento, cabe lembrar que nenhuma cena chega ao final,
sendo comentada, interrompida, obstruída antes disso. Essa fragmentação alegórica é
também um modo de impedir a ilusão da obra de arte orgânica. A partir daí, a cada novo
exercício proposto e a cada encenação deste, outro é logo iniciado por um personagem
que, deslocado da sua função de interpretação, narra e explica qual será o próximo
exercício. Este fluxo entre narrador-personagem, personagem-narrador é um dos
recursos do teatro épico que permeia toda a construção da peça enquanto ensaio, e é
essencial à medida que colabora para que o ensaio enquanto forma, no caso dessa peça,
seja sempre explicitado. Como se trata, em alguns momentos, de uma narração do que
irá acontecer, o ator se coloca em uma posição em que sua função é mais do que viver
um personagem. Daí o fato de sua interpretação não se limitar à forma tradicional de
atuação. A peça prossegue com vários tipos de estruturas laterais e, no fundo, sem
conflitos dramáticos intersubjetivos, no sentido tradicional, mas com todos os conflitos
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envolvidos com a função social da arte, dos próprios artistas, na discussão sobre a
instituição teatro e qual o seu papel na sociedade, no que é o clássico Hamlet
contraposto à realidade social brasileira de então.
Essa contraposição, inclusive, merece destaque quando, em determinado
momento da peça, o exercício que estava ocorrendo a partir da peça clássica é
interrompido por um exercício de observação. O Dramaturgista passa a relatar um
experimento de observação feito no centro da cidade de São Paulo em que, de uma
escada, observa no canto escuro de uma praça um catador de latas que mais ninguém
via. O Dramaturgista começa a interpretar o próprio catador de latas, agora convertido
em espectro e questionando por Hamlet:

HAMLET: Fala: o que significa vires aqui revirar os restos, tornando


a noite pavorosa e sacudindo nossa mente com pensamentos que a
alma não atinge? Fala: porque isso? Com que fim. (CARVALHO,
2009, p. 275)

O exercício é interrompido. É interessante perceber a relação entre o espectro do


pai de Hamlet e o mendigo que revira o lixo no centro de São Paulo, como o ser
socialmente invisível, mas que fala das verdades mais profundas dessa sociedade, seu
descaso e a enorme desigualdade social. É em nome desse espectro, que não deveria ser
invisível, que eles trabalham. E formalizam como um ensaio, que mostra que esse
trabalho depende de uma reflexão – o ensaio não dá nada pronto, não é conclusivo, ele
aponta e argumenta com conceitos; sendo aberto, cobra a participação do espectador.
Daí um ensaio, pois se a peça for pensada em termos de intersubjetividades, está fadada
a soçobrar ideologicamente. É essa a intenção da peça como um todo, quando tem a
tentativa de levar ao público o processo de busca por um teatro materialista, em todos os
sentidos: a atitude coletivista do trabalho (o que também é mostrado na peça com a
participação de todos); a politização do ensaio que contagia a forma do espetáculo e
abre uma nova perspectiva de recepção crítica; a desmistificação da imagem artística; e
a necessidade de não alienar uma obra artística a favor de sua pura circulação negando a
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possibilidade de, através dela, obter-se um efeito (prático). (CARVALHO;


MARCIANO, 2010)
No exercício seguinte o Dramaturgista, enquanto narrador, anuncia a chegada do
Assistente de Vídeo, que funciona como um dos pontos centrais na peça à medida que
explicita a diferença de interesses entre a arte do teatro épico-dialético e a arte
comercial. Ele trabalha numa grande emissora e está a procura de tipos que representem
o padrão nacional e realizará testes com os artistas através de cenas que serão gravadas
pelo seu vídeo imaginário. Todas as encenações que representaram a cena do teste são
interrompidas pelo Assistente, que ora pede um ritmo mais acelerado da fala (o que
representa uma diferença formal entre o teatro e a televisão comercial, que necessita de
ações e rapidez para não fugir das características as quais o público consumidor já está
acostumado), ora repara em aspectos mais essenciais para a sua obra que, como um
produto, tem fins puramente comerciais e se interessa, então, pelo sotaque regional do
Diretor e seus dentes brancos, pela mudança do perfil do artista na hora de focá-lo na
câmera, pelo tórax e o cabelo do Ator-Hamlet e pela beleza da Atriz-Ofélia.
O mais interessante é que, quando a Companhia do Latão realizava seu estudo
acerca dos textos teóricos da “Compra do Latão”, os atores do grupo foram realmente
convidados a realizar testes para integrar o elenco de um filme. Segundo Sérgio de
Carvalho, os testes revelavam a diferença entre o interesse funcional da equipe de
cinema e o esforço artístico de atores que mostravam cenas de peças antigas. Esse
descompasso passou a integrar o conjunto de cenas de “Ensaio sobre o Latão”, na figura
do Assistente de Vídeo.
Quando a quarta noite de ensaio é anunciada pelo Ator-Hamlet, agora como
narrador, a última cena a ser ensaiada é, obviamente, a cena final de Hamlet, da luta e
do envenenamento. Porém, esta cena ganha um novo integrante que é o mesmo ator que
fazia o Assistente de Vídeo e que, nesta, assume o papel do Iluminador da cena, como
parte da improvisação. Durante esta cena, o Iluminador, enquanto personagem, leva um
choque e causa um black-out no teatro. Neste momento de black-out, inicia-se uma
conversa no escuro do teatro, onde cada ator assume livremente a fala de dois outros
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personagens, encenando uma conversa entre uma prostituta e um homem. A estrutura e


o ritmo da cena é assim composto: antes de falar qualquer coisa, cada ator comenta o
contexto em que foi proferida para, em seguida, assumir a personagem.
É justamente deste modo que a peça precisa do espectador ativo e reflexivo,
pretendendo, inclusive, formá-lo. Os atores são, a cada momento, um e outro, partindo
dos exercícios teatrais propostos, o que demanda atenção e interesse do público, que
precisa acompanhar e entender a estrutura da peça e suas quebras. Muitos diálogos são
estruturados com cada personagem falando ao público o que vai dizer depois da fala do
outro. Ou seja, o personagem fala com o público, narra para ele explicando
determinadas situações. Os comentários partem, ora de um exercício de observação, ora
da peça clássica, e se relacionam, de modo a colocar lado a lado representação e crítica,
atuação e comentário, o Brasil atual frente a Inglaterra do século XVI, os atores diante
do público (os novos atores), e assim por diante. Esses recursos cênicos ridicularizam os
momentos em que poderia irromper a ilusão cênica e cobram algo mais do público do
que a mera identificação. O que se exige é a participação intensa do espectador, que
deixa de ser passivo diante da arte. Ao invés de se deparar, no teatro, com algo pronto,
típico da produção cultural na sociedade capitalista, em que a arte se explica pela
própria arte, o espectador ganha autonomia para participar dela e continuá-la através do
pensamento crítico despertado, porém jamais concluído. Trata-se, portanto, de uma
transformação do espectador em sujeito ativo na arte, agora concebida como
incompleta. Desta forma, a dialética inserida nos textos e cenas permite a desconfiança
do espectador diante da narrativa e provoca o processo reflexivo do espectador, quando
este passa a ser produtivo dentro da própria obra de arte, resultando numa dinâmica
estendida e concretizada além do teatro.
Retornando ao enredo da peça, o Dramaturgista anuncia, então, a noite da estréia e
afirma que o Diretor propõe a modificação de uma cena. A cena seria a representação da
passagem do exército de Fortimbrás, com estilo heroico. O Diretor interrompe a cena e
muda tudo: os soldados deveriam ser vistos como “sem-leis, dispostos a cumprir
qualquer empreitada a troco de um naco de pão e um gole de vinho”. Nesse momento,
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“os atores que compunham o exército assumem feições menos idealizadas”. O Ator-
Hamlet se dirige então ao Iluminador como se ele agora fosse o próprio Hamlet e
afirma:
Ator-Hamlet: Ei, Hamlet veja ali o exército de Fortimbrás, ele está
indo para a Polônia, são vinte mil homens que vão lutar por um
pedaço da casca do ovo da Polônia e você Hamlet, que nasceu para
mais do que comer e dormir, você que teve a sorte de sair deste país
atrasado para estudar filosofia em Wittemberg, veja ali: são vinte mil
homens que vão morrer por um pedaço da casca do ovo da Polônia,
Hamlet.(CARVALHO, 2009, p.299)

Nesse momento, alcança-se enfim uma nova arte de representar, uma arte que se
propunha como útil à transformação de uma época sombria e melancólica como a atual.
(MARCIANO, 1997) O Diretor, ao mostrar-se satisfeito com o alcance dessa nova arte
e a apreensão dela pelos artistas, conclui: “Eu proponho que nós nos levantemos para
melhor fixar essa descoberta na nossa memória. [Todos ficam de pé]. E agora que
estamos de pé, eu proponho que aproveitemos a ocasião para dar uma boa mijada.”
(CARVALHO, 2009, p.300)
A figura do iluminador merece uma consideração à parte nesta altura da análise.
Assim como todos os outros elementos aparentemente externos ao palco, ele contribui
para a quebra da expectativa nos momentos mais próprios para o efeito catártico,
mostrando claramente seus mecanismos de encobrimento. Daí a importância do
iluminador como um dos pontos centrais da peça uma vez que, durante todo o decorrer
dela, o Diretor sempre interrompe a cena com luz de penumbra e rompe, assim, com a
ilusão. É através também da interferência da luz sob o palco que se alcança este ou
aquele objetivo, seja por uma arte ilusionista ou por um teatro materialista. Noutro
momento ainda o Iluminador se torna Hamlet.
A música é um dos elementos-chave para o teatro dialético. “Ensaio sobre o
Latão” é um grande exemplo disso quando, durante o decorrer da peça, há interrupções
de determinadas encenações clássicas em que fica nítido o papel da música enquanto
quebra da expectativa. Essa quebra é decisiva, devido à carga emocional e à entrega
subjetiva que a música pode produzir. O cinema comercial evidencia esse processo, e a
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música já nos predispõe e nos carrega a uma determinada recepção prevista pela obra,
esteja em primeiro plano o amor, a farsa, o suspense, a ironia, a euforia, o heroísmo, a
pátria. Trabalha, por assim dizer, por trás de nosso juízo consciente. Daí ser um prato
cheio para o teatro dialético. Quando o Ator-Hamlet, por exemplo, se posiciona a fim de
recitar um monólogo clássico, comicamente ele começa a cantar a música “Xô, xô
barata”. É importante perceber que, aqui, a música exerce a função atribuída a ela no
teatro épico, fraturando o fluxo da cena, rompendo com a continuidade da ação, o que
impede a identificação do público com a cena e, conseqüentemente, da ilusão cênica.
Além de lembrar ao público que o personagem não é uma imitação do real, mas uma
simulação, um objeto fictício. Quando a arte caminha por esse viés, nas palavras de
Sérgio de Carvalho, existe a busca por andar na contramão da lógica mercantil,
desconstruir a própria instituição teatral e contrariar o ambiente burguês com o qual
dialoga.
Não custa lembrar que outros elementos aparentemente secundários como
sonoplastia, figurinos e palco, são também formais no teatro, e dizem sem dizer. Mas
ainda assim, e justamente por isso, são discursos potentes. Mesmo a divisão entre palco
iluminado e platéia no escuro, assim isoladas mesmo fisicamente, já é forma e diz muito
sobre a autonomia forjada da obra de arte. Esses elementos formais são traiçoeiros
porque trabalham por trás e, por isso, não se pensa sobre eles. Mas, são imprescindíveis
para o entendimento da peça. Por isso dizer que o teatro épico-dialético, ao escancarar
em cena até o inteligível cultural da obra de arte, desmonta e explicita, através dessas
experiências formais, cada uma de suas engrenagens.

3. O ensaio como forma


Ao denominar e tomar todo o processo de encenação de “Ensaio sobre o Latão”
como “ensaio”, a peça deixa de lado o método tradicional. Ensaio é tanto o exercício
preparatório (etapa preliminar e processual) de uma encenação, mas também uma forma
de crítica. Nesta acepção, ela se configura como um modo marcado pela abertura
metodológica, escrito por sujeitos históricos situados politicamente, sem aspirar à
esgotar um determinado assunto, nem mesmo se vê infalível. Procura se aproximar e
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discutir seu objeto, de modo fragmentário e inconcluso, numa busca marcada estética e
eticamente.
A peça estudada, que recebe a denominação de peça teórica, é ensaística nas duas
acepções, prática teatral e teoria crítica, almejando uma práxis muito afeita A forma
teatral, que tem sempre em vista uma encenação pública. O final da peça é um claro
exemplo disso, pois ela poderia seguir adiante, pois não há um final que resolva algum
conflito previamente apresentado e desenvolvido Não importa como será o Hamlet na
estréia, mas o processo formativo dos ensaios e dos bastidores. A pretensão de se fazer
um ensaio e denominar assim muitas das peças encenadas já conferem um caráter não
terminado e, por isso, ainda sob a luz de novas idéias e possíveis mudanças. Adorno
(2003) diferencia o ensaio da arte a medida que aquele se propõe à uma autonomia em
relação à arte ao pretender a verdade desprovida de aparência estética; e afirma, ainda,
que os dois únicos critérios desse procedimento são a compatibilidade com o texto e
com a própria interpretação, e a capacidade de dar voz ao conjunto de elementos do
objeto. O ensaio interrompe o conceito tradicional de método, que reduz o objeto a uma
outra coisa, antepondo-se a ele com critérios pré-definidos de análise e julgamento.

Se a técnica torna-se um absoluto na obra de arte; se a construção


torna-se total, erradicando a expressão, que é seu motivo e seu oposto;
se a arte pretende-se tornar-se imediatamente ciência, adequando-se
aos parâmetros científicos, então ela sanciona a manipulação pré-
artística da matéria (...).(ADORNO, 2003)

Além disso, essa condição “mutável” que o ensaio proporciona oferece a


oportunidade de superação, reflexão e (re) criação constantes. A Companhia, ao
trabalhar com a crise da própria representação, tenta enfrentar a dimensão ideológica do
ato de representar e encenar, por isso, apóia-se no conceito de eonsaio para nomear seus
projetos. (CARVALHO, 2009)

Considerações finais
Aqui se procurou, tendo por base os conceitos de teatro épico, e sua atualização
para o Brasil de hoje, analisar a formação teórica e prática da Cia do Latão, a partir de
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um estudo sobre a montagem de Ensaio sobre o latão. Fundamentais para esse percurso
são o personagem enquanto narrador, o recurso metateatral, o papel do espectador ativo
e reflexivo na obra de arte, a discussão da função da arte na sociedade e o ensaio como
forma.
A peça termina com uma frase que sintetiza tudo, de modo magistral: “Diretor:
Iluminador, um pouco mais de luz sobre o palco. Nós precisamos de espectadores
despertos. Faça-os sonhar em pleno dia.” (CARVALHO, 2009, p. 300) Noutras
palavras, acordar do sono profundo do mito da ilusão capitalista, que se diz
iluminadora, mas é ideologia pura. Espectadores despertos, que sonham em pleno dia,
ou seja, sonham acordados, lembra a divisa benjaminiana de querer, pela crítica da obra
de arte, acordar as pessoas dos sonhos em que a mitologia da modernidade capitalista se
apoia. Sonhar com algo melhor não pela penumbra que inebria e cria um mundo
próprio, à parte do existente, mas, pelo contrário, pela crítica materialista e vida da
realidade em que vivemos. Essa uma mensagem urgente e importante para os dias de
hoje, em especial no Brasil.

Referências

ADORNO, Theodor W. Ensaio como forma. In: Notas de literatura I. Tradução de


Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2003.

CARVALHO, Sérgio. (org.) Introdução ao teatro dialético. SP: Expressão Popular,


2009.

CARVALHO, S; MARCIANO, M. Por um teatro materialista, disponível em: <


http://www.companhiadolatao.com.br/html/manifestos/index.htm#3>. Acesso em 25 de
abril de 2010.

COSTA, Iná C. Na confusão de Santa Cecília. In: Revista Literatura e Sociedade nº 6.


São Paulo: USP/FFLCH/DTLLC, 1996, p. 186-199.

KURZ, Robert. O Calapso da Modernização. São Paulo: Paz e Terra, 1993.


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MARCIANO, Márcio. Sobre a Compra do Latão. In: Revista Vintém. nº 0. São Paulo:
HUCITEC, 1997, p. 39.
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O ANJO VINGADOR E A MULHER FATAL: DUAS REPRESENTAÇÕES


FEMININAS DA VINGANÇA EM CIRANDA DE PEDRA

Carina Bertozzi de Lima (PG - UEL)

Partindo das teorias de René Girard acerca do sacrifício e da vingança, e de Mario


Praz, sobre a figura da mulher fatal, este trabalho propõe-se a analisar na obra Ciranda
de pedra, de Lygia Fagundes Telles, as figurações do anjo vingador e da mulher fatal,
personificadas em Virgínia, protagonista do romance. Aparentemente antagônicas, as
duas entidades se complementam no processo de vingança que a personagem
empreende contra os membros do círculo social ao qual deseja desesperadamente
pertencer, porém é rejeitada.
Publicada em 1954, a obra é considerada pela própria autora como sua primeira obra
totalmente madura, e tem acolhida bastante favorável pela crítica na ocasião de seu
lançamento. A trama, também ambientada na São Paulo da década de 50, passa-se em
dois núcleos distintos de personagens, e sua divisão temporal é também definida em
dois momentos, que correspondem ao período da infância da protagonista, e após seu
retorno do internato, já adulta. Filha ilegítima de Laura, que abandona o marido frio e
dominador para unir-se a Daniel, da qual a protagonista só descobre ser filha depois que
este comete suicídio, Virgínia é constantemente rejeitada pelo círculo social a que
pertencem Bruna e Otávia, suas irmãs, além de Conrado, seu grande amor, e Afonso e
Letícia, irmãos e vizinhos de Bruna e Otávia. Além disso, a doença mental da mãe se
agrava cada vez mais, causando sua morte, e Daniel suicida-se. A personagem é levada
para morar com Natércio, ex-marido de Laura, e percebe-se totalmente solitária e
deslocada, apesar do luxo e confortos da casa, rejeitada em função do estigma de ser
fruto do adultério cometido pela mãe. Desiludida da suposta felicidade que teria acesso
ao morar com as irmãs, Virgínia pede a Natércio para permanecer em um internato. Há
no romance então uma elipse de vários anos, e a segunda parte da obra inicia-se com
seu retorno, já adulta. A partir de então, ela entrelaça os personagens em uma trama de
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vingança que tece ao redor de todos. Desejada por todos os membros da ciranda, com
exceção talvez de Otávia, sempre blasé, a personagem utiliza todo o poder de sedução
que agora possui para destruir um a um os integrantes do grupo. Apenas Conrado fica a
salvo da vingança, pois ela ainda o ama. A vingança que a personagem lança sobre
todos os personagens do enredo desestrutura a aparente harmonia da vida dos
integrantes da ciranda de personagens. Mas Virgínia também está ferida: “- Então
pensei que pudesse arrasá-los. E só me arrasei a mim mesma” (TELLES, 1996, p. 178).
Ela anuncia a Natércio que irá fazer uma longa viagem, sem destino definido e sem data
de retorno.
Para René Girard, o sacrifício seria um ato de violência destinado a desviar a
agressividade inicialmente dirigida a um semelhante que se quer proteger, idéia à qual o
autor nomeia de hipótese de substituição (GIRAED, 1990, p. 14). O ritual do sacrifício
teria, além disso, a função de manter a sociedade funcionando em perfeita ordem,
inclusive no plano material, pois ele direciona a violência para si, evitando que a
comunidade seja afetada pelos efeitos das desavenças entre os homens: “os grandes
textos chineses atribuem ao sacrifício a função aqui proposta. Graças a ele, as
populações permanecem serenas e não se agitam. Ele reforça a unidade da nação”
(GIRARD, 1990, p. 20). Girard não faz distinção entre vítimas sacrificiais animais e
humanas, já que o princípio da substituição se aplicaria a uma vítima semelhante, que
tanto pode ser animal como humana. Ele nos traz como exemplo a história de Medéia,
que ao sacrificar seus filhos, direciona a eles o ódio que sente de Jasão, praticando a
substituição em vítimas humanas. “O sacrifício procura controlar e canalizar para a
‘boa’ direção os deslocamentos e substituições espontâneos que ocorrem nesse
momento” (GIRARD, 1990, p. 22). Quando o sacrifício não consegue mais conter a
violência em seu interior, ocorre a chamada crise sacrificial. Girard define no trecho
seguinte em quê ela consiste:

A crise sacrificial, ou seja, a perda do sacrifício, é a perda da


diferença entre a violência impura e a violência purificadora. Quando
se perde esta diferença não há mais purificação possível e a violência
impura, contagiosa, ou seja, recíproca, alastra-se pela comunidade
(GIRARD, 1990, p. 67).
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O autor afirma que a crise do sacrifício pode ocorrer tanto em decorrência do excesso
como da insuficiência do sacrifício. Qualquer desequilíbrio, por menor que seja,
provoca a quebra do delicado mecanismo que cerceia a violência e a mantém restrita ao
ato sacrificial. Quando isso ocorre, a violência, não mais circunscrita no terreno do
sacrifício, expande-se sem controle:

O sacrifício não é mais capaz de cumprir sua tarefa; ele aumenta a


torrente de violência impura que não consegue mais canalizar. O
mecanismo das substituições enlouquece, e as criaturas que deveriam
ser protegidas pelo sacrifício tornam-se suas vítimas (GIRARD 1990,
p. 57).

Já a vingança parece ter sempre existido desde os primórdios da raça humana na


terra. Prova disso são os diversos registros literários que mostram este tipo de
manifestação. Desde o texto bíblico que sobre o assassinato de Abel até nossos dias,
este tema sempre esteve presente, ainda que de forma sutil. Na mitologia grega, as
Erínias, também conhecidas por Fúrias, personificam a vingança no mundo dos deuses
gregos, e figuram em inúmeras tragédias, sempre buscando vingar os inocentes e
perseguir os assassinos sem descanso. Segundo P. Commelin, em Mitologia grega e
romana, as Fúrias mais conhecidas eram as irmãs Tisífone, Megera e Alecto
(COMMELIN, 1993, p. 201), que garantiam, com a violência de suas perseguições, que
a ordem da sociedade fosse mantida.
No universo bíblico, em especial nos livros do velho testamento, a vingança aparece
constantemente como causa de guerras entre tribos, e por vezes é apoiada pelo próprio
Deus, em atenção a uma ou outra tribo em especial. A primeira vingança da Bíblia é
impetrada por Deus contra Caim, que havia matado o irmão Abel por ciúmes de Deus, o
qual parecia agradar-se mais com os sacrifícios animais de Abel que com as oferendas
de sua lavoura. No livro de Êxodo, vemos de forma bastante clara a vingança conforme
as leis acerca da violência: “Quem ferir a outro, de modo que este morra, também será
morto” (Ex, 21, p. 12). E mais adiante, o tão conhecido versículo “olho por olho, dente
por dente, mão por mão, pé por pé” (Ex, 21, p. 24). Nos salmos também vemos a
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exaltação da vingança divina frente aos que ousam desafiar seus seguidores: “Alegrar-
se-á o justo quando vir a vingança; banhará os pés no sangue do ímpio. Então se dirá:
Na verdade, há recompensa para o justo; há um Deus, com efeito, que julga na terra”
(Sl, 58, p. 10-11). E ainda, de forma mais explícita: “Ó senhor Deus das vinganças, ó
Deus das vinganças, resplandece. Exalta-te, ó juiz da terra; dá pago aos soberbos” (Sl,
94, p. 01-02, grifo em itálico nosso).
Para René Girard, em A violência e o sagrado, a vingança é estritamente proibida na
maioria das culturas por constituir um processo interminável:

Quando a violência surge em um ponto qualquer da comunidade,


tende a se alastrar e a ganhar a totalidade do corpo social, ameaçando
desencadear uma verdadeira reação em cadeia, com conseqüências
rapidamente fatais em uma sociedade de dimensões reduzidas
(GIRARD, 1990, p. 25).
Existe, na opinião do autor, um círculo vicioso no processo de vingança, que nas
sociedades ditas primitivas era personificado pela vingança do sangue ou blood feud.
Diante do sangue derramado de um familiar, a única resposta possível seria derramar
também o sangue do inimigo:

Não há diferença nítida entre o ato que a vingança pune e a própria


vingança. Ela é concebida como uma represália, e cada represália
invoca uma outra. Muito raramente o crime punido pela vingança é
visto como o primeiro: ele é considerado como a vingança de um
crime mais original (GIRARD, 1990, p. 25).

Face às idéias de Girard, podemos então refletir sobre as formas de vingança,


personificadas em duas figuras distintas: o anjo vingador e a figura quase universal da
mulher fatal. Ambos desempenham a missão de perpetrar a vingança, porém, em pólos
bastante distintos. Partindo das idéias de Girard, pode-se vislumbrar no anjo vingador a
persona do sistema judiciário, onde o anjo é o cumpridor da sentença imposta por deus,
que no universo bíblico seria representado como o juiz máximo. Ao contrário, a mulher
fatal impõe pela sedução a vingança pessoal, não circunscrita nos limites do sistema
judiciário, uma vingança que pode tomar perspectivas grandiosas e ilimitadas. Embora
em lugares diametralmente opostos na ordem das histórias de vingança, os dois
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personagens cumprem a seu modo suas missões, ainda que à custa do caos em que são
transformados os lugares e pessoas envolvidas no processo.
A figura do anjo vingador é citada inúmeras vezes na Bíblia. Algumas vezes,
confunde-se com o próprio Deus, mas na maioria das vezes é bastante destacado das
demais entidades do universo bíblico. Sua primeira aparição dá-se no quarto capítulo
do Gênesis, quando expulsa Adão e Eva do paraíso. No Êxodo, ele surge de forma mais
explícita e visceral, quando é narrada a saga da saída de Moisés do Egito. O anjo
vingador, denominado então de Destruidor, cumpre a determinação divina e mata todos
os primogênitos em cuja casa não ostentasse na porta o sangue de um cordeiro morto
em sacrifício: “Porque o Senhor passará para ferir os egípcios; quando vir, porém, o
sangue na verga da porta e em ambas as ombreiras, passará o Senhor aquela porta e não
permitirá que o Destruidor entre e, vossas casas, para vos ferir” (Ex, 12, p. 23, grifo em
itálico nosso).
O livro, porém, em que a figura do anjo vingador mais aparece em todo seu
esplendor e fúria é o Apocalipse. Representantes da cólera divina, sete anjos vingadores
lançam sobre a humanidade as sete pragas apocalípticas, causando grande destruição.
Apesar da enorme violência derramada sobre os homens, as ações do anjo vingador não
são questionadas, visto que são executadas a mando da justiça divina, e em decorrência
da própria iniqüidade dos homens, segundo as leis bíblicas. A vingança é infligida com
o aval de Deus, que no universo bíblico representa a justiça suprema, e, portanto,
inquestionável.
Se na figura do anjo vingador encontramos a violência justificada pelo cumprimento
das ordens divinas, na mulher fatal a vingança e o poder estão a serviço de seus próprios
interesses. Poderosas e sedutoras, estas mulheres dificilmente passam pelo universo
literário sem alterar todo o ambiente ao seu redor.
Em A carne, a morte e o diabo na literatura romântica, Mario Praz traça um
panorama bastante completo da mulher fatal na literatura européia dos séculos XVIII e
XIX, e como se formou, a partir destas aparições, um tipo, ou clichê, desta figura tão
singular. O autor diz ainda que as mulheres incendiárias e altamente erotizadas, como é
o caso da Carmen de Mérimée, não constituem, por si sós, o tipo da mulher fatal. É
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necessária também uma carga do que ele chama de estetismo e exotismo para que se
perceba a recorrência do clichê. Praz aponta Théophile Gautier como o “fundador do
estetismo erótico” (PRAZ, 1996, P. 190), com sua Cleópatra ardente e cruel, que manda
assassinar os amantes com os quais passou a noite. A personagem traz em si uma aura
de exotismo e perversidade, bastante em voga no período romântico na Europa, segundo
o autor. Gautier continua sua busca pela mulher fatal, agora na imagem de Clarimonde,
a bela vampira por quem um jovem padre se apaixona, e cujo fim é a desgraça e a
loucura. A imagem da mulher-vampira, por sinal, parece ser a que melhor abrange os
ideais da mulher fatal, segundo a perspectiva dos românticos. Praz afirma ainda que foi
na Inglaterra que este tipo de mulher fatal encontra “sua fórmula mais acabada” (PRAZ,
1996, p. 199) na obra de Charles Swinburne: “O homem, na obra do poeta, aspira ser ‘a
vítima impotente da raiva furiosa de uma linda mulher’”( PRAZ, 1996, p. 202).
Recuando no tempo, podemos também vislumbrar a mulher fatal, embora com
figurações bastante diferentes das do romantismo, nas tragédias gregas e até mesmo nos
textos bíblicos. Em Maneiras trágicas de matar uma mulher, Nicole Loraux fala sobre o
silêncio imposto às mulheres respeitáveis da Grécia: “Morto o marido, resta às mulheres
não dar aos homens assunto para falarem dela, que no tom de censura quer no de elogio.
A glória das mulheres é não terem glória” (LORAUX, 1988, p. 23 grifo em itálico
nosso). Em uma sociedade onde as mulheres devem ser invisíveis, a mulher fatal surge
como uma espécie de aberração, uma figura demoníaca que subverte os conceitos de
boa conduta, e contra a qual os homens têm poucas defesas. Sua vingança é justamente
a de, mesmo por meio de sua morte, não passar despercebida na história, e saber que
seus feitos serão lembrados muito tempo depois que ela se for.
As figuras de Helena de Tróia, Circe e até mesmo a horripilante Medusa perfazem o
séquito de mulheres fatais da tragédia. A personagem, porém, que melhor personifique
o arquétipo da mulher fatal deste período seja mesmo Medéia, eternizada na obra de
Eurípides. Estrangeira, casa-se com Jasão, indispondo-se com a própria família, e vai
com ele para terras distantes, exilando-se. Abandonada pelo marido, que se casa com a
filha do rei Creonte, Medéia vinga-se premeditando a morte da noiva de Jasão e
matando os próprios filhos. Apesar da imensa dor causada pela idéia de matar a própria
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cria, Medéia permanece firme em seu propósito de vingança, mostrando a frieza e


determinação características à mulheres fatais:

Não volto atrás em minhas decisões, amigas; sem perder tempo


matarei minhas crianças e fugirei daqui. Não quero, demorando,
oferecer meus filhos aos golpes mortíferos de mãos ainda mais hostis.
De qualquer modo eles devem morrer e, se é inevitável, eu mesma,
que os dei à luz, os matarei (EURÍPIDES, 1998, p. 67).

No livro de Reis, vemos também uma das figura que mais nos remetem ao tipo
romântico da mulher fatal por seu poder e violência: Jezabel. Filha do rei Etbaal, ela se
casa com Acabe, rei de Israel. Praticante do culto a Baal, desperta a ira do profeta
cristão Elias, que trava uma luta ferrenha contra a rainha. Jezabel mostra-se nos textos
bíblicos como personagem de grande poder e influência sobre o marido. Corajosa,
desafia o poder masculino, ordena mortes e escaramuças contra os aliados de Elias, e
demonstra ousadia até mesmo no momento de sua morte. Morto o rei Acabe em batalha,
é substituído por Jeú. Ao saber de sua chegada à cidade, Jezabel pinta os olhos e o
desafia de uma janela, chamando-o assassino, em uma atitude temerária, bem
característica do modelo da mulher fatal. Insultado, Jeú ordena sua morte, e que seu
corpo seja lançado aos cães. Embora a rígida moral cristã tenha imputado a Jezabel a
alcunha de ardilosa e desonesta, usando-a como exemplo do triste fim destinado às
mulheres que ousavam fugir ao padrão submisso exigido, ainda assim a Bíblia teve que
lhe dedicar um importante espaço em suas páginas, tamanha a relevância desta mulher
fatal no universo judaico-cristão.
Tomando-se então como base as idéias expostas acerca do sacrifício, da violência e
da vingança, pode-se vislumbrar na segunda parte de Ciranda de Pedra como estes
elementos marcam o enredo do romance. Ao retornar do internato, a personagem parece
ainda não ter intenções de vingança contra os membros da ciranda, ao contrário, ainda
sente a insegurança dos seus dias de infância triste. Mas as atenções que todos lhe
dispensam fazem com que Virgínia perceba o poder adquirido durante os anos de
ausência, e parece crescer naturalmente em seu íntimo a ardilosa vingança em que vai
envolvendo Bruna, Otávia, Afonso e Letícia. O primeiro indício da mudança ocorrida
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na personagem diz respeito à sua aparência física. Ela agora percebe a própria beleza:
“O tempo incumbira-se de suavizar-lhe os traços e agora ali estava refletida no espelho
a delicada imagem de uma moça sorrindo de si mesma na tentativa de reconstituir a
antiga expressão da meninice (TELLES, 1996, p. 106). Os membros da casa de Natércio
também percebem a transformação da menina em uma bela mulher. O primeiro a se
manifestar é Afonso: “A voz ficou mais estridente: - E que bonita você está! Meu Deus,
parece até um milagre!” (TELLES, 1996, p. 112). Todos ficam seduzidos por Virgínia,
e tentam se aproximar e mostrar suas qualidades: “Virgínia, Virgínia, a verdade é que
no fundo, todos nós estamos posando para impressioná-la” (TELLES, 1996, p. 115). E
ela se aproveita do poder recentemente adquirido para envolvê-los e desnudá-los
cruelmente.
Conforme a teoria de Girard acerca da função do sacrifício, podemos inferir que, em
sua infância, Virgínia poderia ser enxergada como a vítima sacrificial, imolada para que
o restante da tribo pudesse permanecer em harmonia. Ela funciona neste contexto como
o cordeiro sacrificial, fruto do adultério, separada dos demais membros da família para
que o restante do grupo pudesse continuar desempenhando as funções sociais esperadas
de uma família respeitável. A personagem principal seria então a vítima “sacrificável”,
apaziguando a sede de violência desta sociedade, que a direciona toda a Virgínia, a
Laura e a Daniel.
Já na segunda parte do romance, o que se vê então é uma configuração totalmente
diferente. Percebe-se claramente que existem duas faces distintas do sacrifício
envolvidas nas relações entre Virgínia e os membros da ciranda. Em um primeiro
momento vemos Virgínia se oferecer em sacrifício, entregando-se a Letícia, a Rogério,
amante de Bruna, e deixando-se seduzir por Afonso: “Virgínia deixou-se beijar no
rosto. Lúcida, gelada, sentiu agora os lábios gulosos deslizarem pelas suas mãos”
(TELLES, 1996, p. 138). A personagem, entretanto, usa a persona da mulher fatal para
deixar todos os personagens a seus pés. Ela agora é a deusa sacrificial, a quem os
suplicantes deixam oferendas. Simulando ser uma vítima dócil, ela parece estar
dominada pela luxúria de cada personagem que tenta seduzí-la. A verdade, porém é que
ela os manipula, enredando-os em sua teia. Cada integrante da ciranda oferece o que
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tem de melhor na tentativa de conquistá-la: “Afonso queria mostrar-lhe os poemas.


Letícia, os discos. Rogério, as taças. ‘Cada qual mostra o que tem...’” (TELLES, 1996,
p. 155). E após ter dominado todos, ela se vinga, criando a discórdia no grupo tão unido
de sua infância. Ocorre então o que Girard chama de crise sacrificial. Ao dar início a
uma seqüência de vinganças, Virgínia abre as comportas de um mundo contido por
frágeis convenções sociais, e que rui no momento em que ela retorna. A violência, antes
contida pelo sacrifício da criança Virgínia, agora não mais pode ser circunscrita no
terreno sagrado do sacrifício, gerando uma crise insustentável no círculo social dos
personagens. Os membros da ciranda não estão mais protegidos pelo sacrifício, e
tornam-se, eles mesmos, vítimas.
A figura da mulher fatal é delineada nas atitudes da personagem, mas de maneira
sutil. Sua própria chegada à casa é marcada pela sutileza com que chama a atenção dos
outros personagens, vestindo ainda o uniforme do internato, insinuando ao mesmo
tempo inocência e sedução: “ Mas suas meias também são belíssimas – retrucou ele. –
Olha aí, meias pretas. Não pode haver nada de tão excitante, ligas pretas, meias pretas...
As freiras não podiam inventar um toque mais erótico...” (TELLES, 1996, p. 113).
Virgínia, ao contrário das belas damas vampiras do romantismo europeu,
notadamente cruéis, assemelha-se mais com Jezabel, ardilosa, ou ainda Medéia, com
sua crueldade justificada pelo abandono de Jasão. Ela assemelha-se ainda à allumeuse,
figura que Mario Praz denomina como a mulher fatal que não cede à luxúria, não por
pudor ou castidade, mas como forma de sadismo. A personagem Madame Livitinof, da
obra Très Russe, de Jean Lorrain, faz-nos lembrar Virgínia, ao seduzir e repelir Afonso,
conforme o trecho seguinte: “Ela será ao mesmo tempo a Tentação e a Castidade, triste
e melancólica como um pudor, cansada, pura, adorável e desejável como a própria
encarnação do Pudor” (LORRAIN apud PRAZ, 1996, p. 308). Assim como Madame
Livitinof, Virgínia se diverte em aguçar o desejo de Afonso, sem, no entanto,
concretizar o ato sexual. E se ela se entrega a Letícia e Rogério, é tão somente por saber
que ferirá mais agudamente os membros da ciranda.
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A persona da mulher fatal assumida pela personagem é vislumbrada em sua


intenção de provocar o descontentamento máximo em Bruna, sem contanto ceder ao
assédio de Afonso conforme o trecho abaixo:

Ela sorriu veladamente. “Lindo!” Seria bem divertido dar-lhe toda a


corda e no momento propício, quando ele estivesse no auge, lá no alto,
cortar o fio, delicadamente, tique... Cantaria em seguida a cantiguinha
de Otávia, ‘adeus, querido, adeus! Te escreverei talvez, oh, sim,
talvez... (TELLES, 1996, p. 139)

Virgínia desfere seu golpe fatal durante a ceia de natal. Flertando abertamente com
Rogério, amante de Bruna, ela ataca todos de uma só vez: a irmã, que com sua Bíblia
marcada de trechos em vermelho condenou a mãe ao inferno, e agora comete o mesmo
pecado; Letícia, por sentir-se traída após Virgínia trocá-la por Rogério, e Conrado por
nada poder fazer para tomar Virgínia para si. Afonso também está enfurecido por não
ter sido ele a conquistá-la. A única que parece imune à vingança da irmã é Otávia,
sempre distante. Impotentes, todos a observam sem nada poder fazer, enquanto ela
saboreia sua vingança:

Você está bem, Virgínia ? – Tinha uma expressão angustiada. – Você


está bem ? – Claro que sim – murmurou ela aconchegando-se a
Rogério. Analisava os próprios gestos como se estivesse desdobrada
em duas e agora assistisse à parte que cabia à outra. – Convidei
Rogério para sair comigo, vamos nos divertir por aí. Há algum
impedimento ? Conrado baixou os olhos. – Não... não há impedimento
algum. (TELLES, 1996, p. 171)

Ao envolver todos os personagens em sua vingança, Virgínia expõe as mazelas e


pecados de cada um, trazendo-os à luz impiedosamente, desfazendo a aura de perfeição
que circundava os membros do círculo social da casa de Natércio:

E então, já descobriu muita coisa ? – Seu tom de voz agora era


sombrio, com um timbre de desafio. – Por exemplo, que é que você
sabe de nós ? Que Letícia gosta de mulher ? Que Bruna tem um
amante ? Que Afonso é um pobre-diabo Que Conrado é virgem ? Que
eu... Há mais coisas ainda, querida. Mas não, não fique agora
pensando que somos monstros, não vá querer descobrir cadáveres
dentro de nenhuma arca (TELLES, 1996, p. 186).
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Ao desnudar todos os personagens em seus segredos mais íntimos, ao iluminar todos


os pecados ocultos sob o verniz da moral, vemos a figura do anjo vingador nas ações da
personagem principal. Mesmo utilizando-se da persona da mulher fatal para atingir os
outros personagens, Virgínia não age apenas para ferí-los sem motivo. A personagem
reveste-se da figura bíblica ao agir em nome daquilo que acredita ser a justiça contra os
que a feriram, que condenaram sua mãe, que a distanciaram de seu pai, Daniel. Assim
como o anjo que derrama a cólera de Deus sobre os infiéis, Virgínia fere aqueles que
acredita serem culpados, até mesmo dos mesmos crimes da qual sua mãe foi acusada:

“O adúltero e a adúltera morrerão e o mal será arrancado do seio de


Israel”, não era assim que Bruna falava ?, e ei-la agora bebendo da
mesma água. Como justificaria a si mesma aquele amante ? “Comigo
é diferente”, devia pensar. “Tudo que se faz com amor verdadeiro é
reto e amor verdadeiro é o meu”. Amor verdadeiro... E a mãe ? Bem,
mas esta sim, esta transgrediu a lei dos sagrados deveres, ao se
amparar naquele amor, pecou ao confessar que era aquele o homem
amado. “Comigo é diferente”(TELLES, 1996, p. 159).

Virgínia, entretanto, não escapa de também ter o seu quinhão de sofrimento na


vingança que empreende. Ao ferir profundamente os membros da ciranda, ela se entrega
igualmente a um processo de abertura de suas próprias feridas: “- Então pensei que
pudesse arrasá-los. E só arrasei a mim mesma” (TELLES, 1996, p. 178). No entanto,
enquanto a ciranda está irremediavelmente desfeita, ela ainda consegue se manter de pé,
confirmando as palavras de Conrado: “- Ela é incontaminável” (TELLES, 1996, p. 117).
O próprio nome da personagem, Virgínia, insinua a matéria de que é feita, pura,
virginal, incorruptível, e, ainda assim, mulher fatal. Assim como o deus sacrificado, do
qual falam Hubert e Mauss (2005, p. 83) renasce após cada sacrifício, Virgínia também
renasce de sua destrutiva vingança e se prepara para partir. Como verdadeira mulher
fatal, ela emerge do caos criado por sua presença, e se lança, ilesa, a outras terras. Desta
forma, o final do romance, isento de punição à protagonista, subverte a tradição moral
da época em que a obra é escrita e retratada, segundo a qual nenhuma mulher pode
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permanecer impune depois de alterar de forma tão extrema as regras de boa conduta
determinadas ao seu sexo.

REFERÊNCIAS

COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo:


Martins Fontes, 1993.
EURÍPIDES. Medéia; Hipólito; As Troianas. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini. São Paulo:
Ed. Universidade Estadual Paulista, 1990.
LORAUX, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher: Imaginário da Grécia
antiga. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. Trad. Paulo Neves. São Paulo:
Cosac Naify, 2005.
PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Trad. Philadelpho
Menezes. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
TELLES, Lygia Fagundes Telles. Ciranda de pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1996.
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JANE AUSTEN REVISITADA: ALÉM DE HISTÓRIAS DE AMOR E


CASAMENTO

Carla Alexandra Ferreira (UFSCar)

Introdução

Popular desde seus primeiros romances, Jane Austen, escritora inglesa do período da
Regência, aparece como uma das autoras canônicas mais conhecidas pelo público atual.
Esta popularidade deve-se, principalmente, à proliferação, ocorrida a partir dos anos 70,
de adaptações de seus romances para o cinema e televisão. Greenfield (TROOST e
GREENFIELD, 2001, p. 2) propõe que a tecnologia global e o trabalho de marketing
dessas leituras para outras mídias muito têm contribuído para a popularização da obra
da autora.
Defensores da democratização dos textos ficcionais de Austen argumentam que sua
obra, hoje, se encontra acessível a um maior número de leitores/espectadores, o que
concorre para uma educação para a leitura, principalmente de textos fundamentais da
literatura ocidental. Discutem ainda que a interação entre artes torna-se elemento
fundamental nesse processo.
Neste artigo, propomos que, a constante revisitação do trabalho ficcional e sua
aceitação pela maioria do público atual de Jane Austen devem-se também, em grande
escala, a uma leitura de superfície e, por vezes, equivocada dos romances da autora, na
qual os elementos ‘amor’ e ‘casamento’ são entendidos de modo descontextualizados,
desconexos do projeto literário de Jane Austen, sendo, a partir de sua relativização,
supervalorizados. Na transposição de seus romances para a grande ou pequena tela e
para outros romances, a questão de gênero como categoria historicamente construída,
que esta no cerne do debate intelectual de Austen, tem sido omitida, modificada e
desvalorizada. De fato, essas leituras da obra de Austen têm levado esse novo público
leitor/espectador a ver seus romances somente como “histórias de amor e casamento”;
nas palavras de Kaplan (TROOST e GREENFIELD, 2001) ao fenômeno de
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Harlequinization. Nosso objetivo, neste contexto, é apontar para a necessidade do


resgate das questões apresentadas nos romances de Austen, que vêm envolvidas na
temática do amor e do casamento e que se concentram na apresentação das mulheres na
sociedade patriarcal inglesa do século XVIII e sua luta contra a invisibilidade as elas
conferida, contida na redefinição de papéis para homens e mulheres. Por meio do estudo
das mudanças, preferências e omissões, que ocorrem nas leituras pautadas no conteúdo
manifesto do texto literário, pretende-se alertar para a necessidade de uma leitura a
contrapelo, que traga a questão de gênero para o debate.

1. Jane Austen: uma voz feminina no universo masculino

Cheril Nixon e Rebecca Dickson (TROOST e GREENFIELD, 2001, pp.22-43;


44-57) argumentam que a maioria das adaptações dos romances de Austen não se
concentra nas diferenças temporais entre o público e os textos, o que contribui para o
apagamento de questões centrais propostas pela autora. Dickson (TROOST e
GREENFIELD, 2001, pp.45-46) diz, por exemplo, que “se não entendermos o papel das
mulheres daquele tempo, podemos não compreender as conquistas do movimento
feminista” iniciado no século XIX.
De fato, é necessário para a leitura dos romances de Jane Austen compreender que a
autora escrevia num contexto patriarcal que herdara do Iluminismo a naturalização da
categoria de gênero e que tinha no casamento e no amor a tentativa de perpetuação
desse poder e da nova classe social que surgia.
O século XIX (e final do XVIII) foi um período de mudanças fundamentais na
ordem social britânica: a aristocracia cedeu lugar à nova classe em ascensão que tinha o
capital proveniente das atividades comerciais e industriais e das colônias, e não mais
propriedades e herança, como suporte a sua supremacia. Nesse período de transição, a
classe média tentou sua consolidação por meio do dinheiro, do poder e também da
hegemonia cultural. Os escritos sociológicos, antropológicos, médicos e literários
veicularam um conjunto de idéias que assegurava a perpetuação da nova classe. Neste
sentido, os papéis sociais foram construídos e definidos e novas relações entre homens e
mulheres surgiram para a consolidação da burguesia.
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A categoria de gênero foi, de fato, umas das mais trabalhadas na produção escrita do
período, pois se via a mulher como a responsável pela manutenção de sua classe,
concentrada na família. Eram consideradas seres domésticos, reprodutores e maternais,
responsáveis pelo avanço da civilização e perpetuação de sua classe. Mesmo as que
trabalhassem, mais no final do século, deveriam desempenhar funções maternais tais
como professora, enfermeira e governanta. Tentar agir de modo diverso levaria à
anarquia e à destruição de sua classe. Disseminou-se, então, a ideologia da ‘Rainha do
Lar’ (The Angel in the House) para circunscrever o ser mulher, rotulando de monstros e
loucas aquelas que se desviavam do estabelecido. Seriam seres doentes e pervertidos
como as mulheres da classe trabalhadora, que não viviam essa posição dual.
Na literatura, “arautos da ideologia do amor romântico, os romances passaram a
exercer um papel fundamental na educação das jovens, inculcando princípios,
reforçando atitudes desejáveis e realçando a virtude como a principal qualidade a que
elas deviam aspirar.” (VASCONCELOS, 1995, p.89)
O romance, assim como nosso modo atual de pensá-lo, foi legado de um corpo de
idéias que remontam ao Iluminismo. Naquele momento, as categorias de gênero e raça
(não podemos ainda falar de classe, pois apareceria no século XIX com a emergência da
burguesia na Europa) podiam ser claramente detectadas. Por meio de um discurso de
liberdade, individualismo, civilização e igualdade, os filósofos do movimento definiram
a mulher assim como o não-europeu e as crianças como seres não intelectuais.
Argumentava-se que eram guiados pela natureza e deveriam, portanto, receber cuidados
de seu contrário: homens, adultos e brancos. Ao fazer uma grande parcela da sociedade
parecer invisível, esses homens definiam a si mesmos como aqueles que detinham o
poder intelectual, na ideologia que estavam produzindo.
O século seguinte ao período do Iluminismo apresentou algumas mudanças sociais.
Um novo conjunto de valores e conceitos morais foi necessário a essas modificações.
Uma nova concepção de casamento foi difundida – o casamento por amor. Esse
sentimento aliado à fidelidade foi muito importante para a nova postura na relação
conjugal, diferente da propagada pela aristocracia. O casamento passou a se configurar a
instituição basilar à classe burguesa emergente. Deste modo, o papel da esposa tornou-
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se fundamental para a constituição da família. As mulheres de um ranking social mais


alto deveriam ser fiéis, castas e submissas. Impedidas de trabalhar – o que era possível
às moças da classe inferior – ou de ter sua própria renda, o casamento era seu único
recurso. Mais uma vez, eram consideradas dependentes, incapazes, e invisíveis. De fato,
neste contexto ideológico de domesticidade, o gênero feminino foi naturalizado; as
mulheres eram seres cuja essência era imutável.
Embora, nesse momento, o romance reproduzisse o contexto histórico-social
britânico no qual fora criado, também se apresentou como um meio para a produção de
alternativas, de novos valores em relação a esse meio. Frederick Karl escreve que
“como documento social, estrutura moral e obra de arte, o romance desde Defoe,
Fielding e Richardson passando por Jane Austen e Hardy geram um tipo de realismo
que cria o mundo que ele reflete e reflete o mundo que ele cria.” (KARL, 1972, p.4) De
fato, esse é o paradoxo da arte que ao mesmo tempo em que reproduz seu contexto,
produz um conjunto de novas idéias para a resistência, que deve ser levado em conta,
principalmente quando se lida com a literatura inglesa do século XIX que tem o
romance como o perpetuador de uma classe social.
É nesse viés da arte como interventora que Jane Austen escreveu e passou a fazer
parte do cânone de sua literatura nacional e da literatura ocidental. Foi uma escritora
que, por meio do romance, gênero literário que desde seu surgimento “trouxe para
primeiro plano a figura da mulher como protagonista” e “demonstrou um interesse sem
precedentes pela natureza e posição da mulher” (VASCONCELOS, p.86), contestou
(mesmo que por muitas vezes reproduzindo a ideologia de seu tempo), com sua vida e
obra, a condição de invisibilidade conferida as suas iguais ou, pelo menos, produziu
uma posição emergente sobre a questão de gênero.
Ainda sob influência das idéias de Richardson, e do neoclassicismo na literatura,
Jane Austen, que ocupa “uma posição embaraçadora na história literária – embaraçadora
porque por nenhum instante ela se acomoda às generalizações feitas sobre seus
contemporâneos” (WRIGHT, 1962, p.14), apresentou em sua obra um novo tipo de
herói, um novo papel para o homem, para a mulher e uma nova concepção de
casamento no qual o elemento amor é acrescentado. Na esfera do doméstico, mundo que
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ela bem conheceu, Jane Austen apresentou visões alternativas para suas heroínas e
dramatizou a situação da mulher em seus romances. Apresentou os conflitos de uma
comunidade de mulheres que viviam nesse contexto histórico de transição da
aristocracia decadente para burguesia em ascensão.
Na esfera do doméstico, Austen apresenta uma comunidade de mulheres ligadas pelo
laço do feminino e seus conflitos numa sociedade em tempos de mudança. É bem
verdade, que esses aspectos locais de sua ficção atingem a esfera do universal,
principalmente no que se refere aos temas dos romances. Contudo, é na vida familiar,
nos lares de seu tempo que as relações sociais aconteciam e podiam ser visualizadas e
investigadas pelo leitor. Esta característica de sua obra, se considerada, pode refutar
argumentos de que sua ficção fica, de certo modo, desqualificada por não conter
engajamento ou “preocupações históricas e sociais” importantes. De fato, não é essa
idéia de literatura como reflexo e produção da realidade, que vem do pressuposto de
uma arte engajada, a aqui aceita e necessária a compreensão do trabalho ficcional de
Jane Austen. Terry Eagleton nos ensina que o engajamento não é condição necessária na
produção de grandes obras de arte. (EAGLETON, 1997, p.57)
Assim, além do prazer estético que seus romances proporcionam ao leitor,
principalmente pelo domínio do uso da ironia, sua ficção oferece ao leitor a
oportunidade de reflexão crítica sobre o contexto no qual surgem. No subtexto de sua
obra - uma aparente história de amor, sofrimento, rebelião e humor - está a questão da
construção da categoria de gênero naquela sociedade patriarcal.
É, ainda, num contexto de dificuldades e preconceitos para com a autoria feminina
em que "para uma artista o processo essencial de auto-definição é complicado por todas
aquelas definições patriarcais que aparecem entre elas e elas mesmas" (GUBAR e
GILBERT, 1979, p.17) que Austen escreveu. É bem verdade que teve antecessoras tais
como Aphra Behn e Mary Wollstonecraft. Contudo, teve também toda uma tradição
masculina antes dela e um discurso naturalizador para a categoria de gênero e do papel
da mulher na sociedade.

2. Relendo Austen
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Uma leitura séria e comprometida dos romances de Austen demanda de seu leitor um
avanço além do conteúdo manifesto de seus textos ficcionais, e a consideração de seus
contextos de produção e a periodização do casamento e do amor.
A maioria das adaptações desses textos têm se concentrado, contudo, tão somente no
romance entre os protagonistas, acrescentando, como no caso da adaptação de 2005 de
Orgulho e Preconceito, dirigida por Joe Wright, por exemplo, o elemento da paixão e
do desejo nessa relação e a humanização das personagens masculinas. De fato, esses
temas aparecerão aproximadamente um século adiante na literatura inglesa em obras
como O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Brontë.
Em vez de uma intensificação dos sentimentos e da celebração do amor, Austen
estava interessada nas mudanças pessoais e de conduta (refletidas em suas relações
sociais) pela qual seus protagonistas deveriam passar, na tentativa de mostrar que
homens e mulheres poderiam ser moralmente semelhantes. Na proposta por esse novo
tipo de homem estava a busca pela igualdade, pelo respeito mútuo entre homens e
mulheres e por uma nova organização social. Raymond Williams (1970, p.21) escreve
que Austen não pretendeu enfatizar o romance em seus livros, mas o comportamento
pessoal em contextos reais que apresentavam pessoas tentando se conformar a regras
sociais numa sociedade em mutação. Subjacente a uma história de amor, envolta em
dor, rebelião e humor, havia um discurso de construção de gênero.
Apresentar essas questões pode, na maioria dos casos, não ser tão agradável como
gostariam os leitores e como desejamos quando vamos ao cinema buscar nesse passado
nostálgico alívio para nossas insatisfações presentes. Queremos mesmo ver os
protagonistas Elizabeth e Darcy, por exemplo, depois de tantas desavenças, felizes no
final. Desejamos mais, que haja entre eles um beijo apaixonado que na versão de Joe
Wright não acontece no desfecho do romance, embora fique sugerido. Em Becoming
Jane, filme sobre a biografia da autora, esperamos encontrar na vida de Jane Austen
identificação com os romances vivido por suas heroínas, principalmente por Elizabeth
Bennet. Embora no filme isso não aconteça, temos uma ficcionalização de sua vida e a
sugestão de que Austen escreveu do modo que escreveu por ter um romance frustrado.
Ver e entender a realidade apresentada nos romances e até mesmo nos filmes não parece
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ser o caminho mais adequado para, num primeiro momento, sentir prazer. Não porque
como feito por Jane Austen isso não ocorra, mas exatamente porque a concepção atual
de prazer deva ser, como propõe Joshua Miller, “recalibrada”.
Embora a versão mais atual, por exemplo, de Orgulho e Preconceito para o cinema
apresente um cenário revelador das diferenças sociais e a necessidade que as mulheres
tinham de fazerem bons casamentos para sua segurança financeira e também a de sua
família, a incursão do desejo e a valorização do romance do casal protagonista em
detrimento de outros aspectos da composição do romance colocam em risco essa
discussão sobre as relações sociais e de gênero. Debora Kaplan (TROOST e
GREENFIELD, 2001, p.178) argumenta que algumas alterações mudam o valor dos
romances, afetam o nível de conscientização social que os romances suscitam. Essas
personagens são, no romance, a proposta de Austen de um novo homem e uma nova
mulher. A maneira que Darcy e Elizabeth veem um ao outro e lidam com suas
diferenças foi o modo encontrado para retratar aquela sociedade e propor alternativas
para o que Austen via.
A crítica sobre adaptações dos romances de Jane Austen (TROOST e
GREENFIELD, 2001, p.7) concorda que “os filmes elevam e celebram o romance” num
nível muito superior ao apresentado nos livros da autora. Em Orgulho e Preconceito
(2005), essa postura é intensificada no diálogo final entre Darcy e Elizabeth. Há para o
final da versão norte-americana do filme um colóquio apaixonado entre eles, num
momento de intimidade, sugerido pelas roupas de Darcy, seus pés descalços e o cabelo
solto de Lizzie, no qual é omitida a declaração de Darcy de que se apaixonara por ela
pela vivacidade de sua inteligência. Essa proclamação a contrapelo encerra o resultado
de toda a transformação pela qual Darcy precisou passar para se tornar um novo
homem: de aristocrata, preconceituoso e retrato do homem de sua época àquele que
respeitava em nível de igualdade o outro, a mulher.
A omissão dessa declaração e sua suplantação por uma cena romântica
comprometem o entendimento desse processo de reforma e relativiza os tópicos postos
pelo diálogo entre os protagonistas, que no livro, se apresenta como o resumo da
proposta de superação de um conjunto de conceitos e idéias validadas desde o
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Iluminismo. Essa declaração menos atraente do que a do filme não é uma simples fala de um
homem apaixonado; ela encerra o conflito daquele que teve que deixar de lado um conjunto de
juízos que ditavam o que deveria ser um homem da aristocracia e, uma deles era encontrar uma
companheira de seu nível social, que tocasse piano, pintasse, dançasse e acima de tudo tivesse
decoro, a discrição e a subserviência ao marido como principais virtudes. O desempenho
intelectual caberia aos homens, pois para ser uma boa esposa esse atributo era desnecessário.
Darcy, contudo, diz-se apaixonar exatamente por essa “qualidade” em Elizabeth, uma mulher
fora dos padrões de sua época e imprópria para o casamento com ele. Por atitudes semelhantes
às dela, muitas mulheres no século XIX foram trancadas em manicômios com diagnóstico de
loucura.
A escolha de Darcy por um novo caminho e o processo de transformação por que tem que
passar para trilhá-lo estão contidos nessa sentença, improvável para um homem de sua época,
mas possível num texto literário que propõe novos papéis sociais para ambos os sexos, mesmo
tendo o casamento como certo no final. A opção por não apresentar a afirmação de Darcy
funciona como o apagamento dessa proposta ousada e camuflada no romance. Optar por não
apresentá-la é negar o que vinha sendo desenvolvido nas cenas anteriores.
De fato, o desfecho escolhido pode agradar mais ao espectador desavisado ou que entra em
contato com o texto de Austen pela primeira vez. Mas, a descontextualizarão da questão pode
ter conseqüências sérias para a reflexão sobre a obra de Jane Austen. Ademais, mesmo sabendo
da existência desse tipo de união em nossos dias, o tema poderia ser adequado, principalmente
no que diz respeito à diferença. Desse modo não há espaço para a reflexão, mas o reforço de que
Austen escreve “histórias de amor e casamento” com final feliz. No conflito real sobre a
possibilidade de amor e paixão caminharem juntos, herdado por um lado “da ortodoxia
religiosa” e por outro da heresia cortês (ROUGEMONT, 2003, p.372) leituras desse tipo
parecem resolver essa tensão. A sedução do público atual vem por meio da possibilidade de
felicidade individual, da sensação de comando desse sentimento. Esse entendimento da obra de
Austen parece refutar a idéia de que a “felicidade é uma Eurídice: nós a perdemos a partir do
momento em que pretendemos alcançá-la” (ROUGEMONT, 2003, p. 376). Saímos das salas do
cinema, por exemplo, com essa solução para conflitos de nosso tempo.
A caracterização das personagens masculinas como homens mais sensíveis e humanos é
outro desdobramento da leitura que não percebe a importância da questão de gênero para Jane
Austen. A apresentação de um Darcy atormentado por seus sentimentos, mais sensível e
emocional (processo iniciado com na versão da BBC de 1995 e reforçado pelo filme de 2005),
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do desastrado, espontâneo e doce Edward, interpretado por Hugh Grant, em Razão e


Sensibilidade de Emma Thompson, agrada ao público de nosso século e se adéqua ao tipo
1
übersexual do século XXI.
Se por um lado esse recurso possa funcionar como uma leitura dos homens de nosso tempo,
por outro, tem relativizado a questão da (re)definição dos papéis para homens e mulheres na
Regência bem como no debate atual sobre o assunto. Esse tipo de caracterização tem
funcionado tão somente como um elemento de sedução do público por meio da personagem
masculina, sem espaço para a reflexão. O apelo é tão forte, que o mesmo ator que interpretou
Darcy para a BBC em 1995, Colin Firth, foi convidado a interpretar outro personagem, de
mesmo nome, para a versão para o cinema de O Diário de Bridget Jones, que tem como fonte o
romance Orgulho e Preconceito de Austen.

Conclusão

A investigação aqui proposta não pretende se configurar juízo de valor e atestar a


qualidade das adaptações dos romances de Austen para outras linguagens. Sabemos que
alterações devem ser feitas de um meio de apresentação para o outro; que do livro para
o cinema o verbal é traduzido para o visual. Temos conhecimento da necessidade da
propaganda que se faz dos filmes para atingir um grande público. É sabido que em
muitas salas de aula, os filmes de adaptação dos romances de Jane Austen funcionam
como mediadores entre momentos históricos diferentes, o dos alunos e o da autora. Em
muitos casos são usadas as versões modernas de romances de Austen tais como O
Diário de Bridget Jones (Bridget Jones’Diary) e As Patricinhas de Berverly Hills
(Clueless) para trabalho com alunos não acostumados com a leitura dos textos de
Austen .( TROOST e GREENFIELD, 2001, pp. 140-147).
Nossa intenção é a de alertar para a necessidade de periodização do trabalho de
Austen, que o casamento, o amor, o ser homem e ser mulher podem e devem ser
pensados historicamente. É fundamental para um entendimento maior da obra da autora
e de nosso próprio momento, resgatar a questão de gênero que aparece em seus textos e

1
Termo criado por Salzman, Malathia e O’Reilly, autores do livro The Future of Men (O Futuro dos
Homens) para descreve o homem do século XXI, que se apresenta mais atratente, masculino, decidido,
atencioso para com o mundo a seu redor e que reconhece que precisa da mulher em sua caminhada.
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em seu projeto literário. Levar o público à reflexão do processo de representação e de


como isso é construído ou discutido por meio dos textos de Jane Austen é importante
mesmo que para isso tenhamos que re-significar o prazer e correr riscos.

Referências

AUSTEN, Jane. Pride and Prejudice. New York, Gramercy Books, 1981.
______. Sense and Sensibility. New York, Gramercy Books, 1981.
DICKSON, Rebecca. Misrepresenting Jane Austen’s Ladies. Revising Texts (and
History) to Sell Films. . In:TROOST, Linda et. al. (eds.) Jane Austen in Holywood. The
University press of Kentucky. 2001, pp. 22-43.
EAGLETON, Terry . Marxism and Literary Criticism. London, Routledge, 1997.
GILBERT, Sandra M. and GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic: The woman
Writer and the Nineteenth-Century Literary Imagination. New Haven, Yale University
Press, 1979.
KAPLAN, Debora. Mass Marketing Jane Austen. In:TROOST, Linda et. al. (eds.) Jane
Austen in Holywood. The University press of Kentucky. 2001, p.178.
KARL, Frederick R. A Reader’s Guide to the Ninetenth Century British Novel. 1972.
NIXON, Cheril. Balancing the Courtship Hero: Masculine Emotional Display in Film
Adaptations of Austen’s Novels. In:TROOST, Linda et. al. (eds.) Jane Austen in
Holywood. The University press of Kentucky. 2001, pp. 22-43.
TROOST, Linda e GREENFIELD, Sayre. (eds.) Jane Austen in Holywood. The
University press of Kentucky. 2001, p.1-12; 140-147.
ROUGEMONT, Denis de. História do Amor Ocidental. Trad. BRANDI, Paulo e
BRANDI, Ethel. São Paulo. Ediouro, 2003.
VASCONCELOS, Sandra G. T. “Construções do feminino no romance inglês do século
XVIII”. In: Polifonia. Cuiabá, EduFMT, 2, p.86; 89, 1995.
WILLIAMS, Raymond. The English Novel from Dickens to Lawrence. 1970.
WRIGHT, Andrew H. Jane Austen’s novels. UK, Penguin Books,1962.
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CAPOEIRA ANGOLA E LITERATURA: DIÁLOGOS DA TRADIÇÃO ORAL


AFRO-BRASILEIRA

Carla Alves de Carvalho Yahn ( PG – UNESP)

A Capoeira Angola é uma manifestação cultural de origem africana que se


desenvolveu no Brasil. Fora trazida pelos negros escravos principalmente vindos da
região de Angola. Sua origem é incerta, porém acredita-se que sua raiz está ligada ao
N’golo, dança ritualística da região sul de Angola conhecida também como Mufico,
Efico ou Efundula, é um ritual que marca a passagem das meninas à vida adulta, nesse
ritual festivo consome-se bastante Macau, bebida derivada do cereal conhecido como
massambala. No N’golo ou “dança da zebra” dois jogadores tentam atingir o rosto do
adversário com o pé, o que condiz com os objetivos do jogo da Capoeira. Pode-se
pensar que os africanos trouxeram consigo seus rituais religiosos, suas festas e danças
de umbigada que até hoje sobrevivem em nosso território, podemos também aceitar a
idéia de que trouxeram para cá seus jogos de combate e suas artes marciais.
O primeiro estudioso a publicar teses que defendem a origem da Capoeira no N’golo
foi Câmara Cascudo, em seu livro Folclore do Brasil. Albano Neves explicou ao
folclorista em grande carta, suas idéias em relação à origem da Capoeira Angola; nessa
carta descreve com profundidade o ritual da “dança da zebra”, onde o vencedor da luta
tem o direito de escolher sua noiva entre as meninas que participam do ritual sem pagar
dote. Pelo fato do N’golo ser uma luta de mãos abertas, ter o uso de golpes com os pés,
enquanto as mãos estão no chão, ter o jogo de corpo com base na cintura, como nos
deixa transparecer as pinturas de Albano, é impossível negar a semelhança que ele tem
com a Capoeira, e, Cascudo apresenta na obra Folclore do Brasil a trajetória do N’golo
até se transformar em Capoeira.
Se formos tomar por base as teorias que, ao contrário da exposta acima, acreditam
que a Capoeira surgiu nos quilombos, podemos afirmar que os negros trazidos
principalmente da costa ocidental africana, em sua maioria de grupos Bantos e
Sudaneses, pela situação em que se encontravam desenvolveram técnicas e meios de
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resistência ao sistema opressor escravagista. Um desses meios de resistência foi a fuga
para os quilombos. Podemos destacar o quilombo de Palmares, liderado por Zumbi,
figura mítica da Capoeira, como o mais significativo, pois perdurou cerca de cem anos e
resistiu a inúmeros ataques, tanto de capitães do mato, quanto de feitores. No período
colonial, as torturas aos negros africanos eram extremamente perversas e desumanas,
havia desde mutilações, nos chamados castigos exemplos, até queimaduras, furos em
seios, chibatadas, etc., e, como se sabe, desde o transporte nos navios negreiros, até a
sua chegada e instalação em solo brasileiro, o negro já sofria ingratas torturas.
Assim como no Brasil Imperial, a Capoeira foi severamente perseguida no período
de instalação do governo republicano, sendo um dos principais alvos de repressão
policial no início da República, tanto que no Código de 1890, por meio do Decreto Nº.
847, sob o título “Dos Vadios e Capoeiras”, teve a seguinte sanção:

Art. 402 Fazer nas ruas ou praças públicas exercícios de destreza e


agilidade corporal conhecido pela denominação de capoeiragem.
Pena de 2 a 6 meses de reclusão.Parágrafo Único: É considerado
circunstância agravante pertencer o capoeira à alguma banda ou
malta. Aos chefes ou cabeças impor-se-á pena em dobro.

Mesmo com sua proibição a capoeira não acabou. Ela continuou acontecendo de forma
clandestina e marginalizada principalmente nas cidades de Salvador, Recife e Rio de
Janeiro. Era grandemente perseguida pela polícia, e, era comum a deportação de
capoeiristas para ilhas-presídios.
Os capoeiristas então inventaram alguns meios de burlar a repressão policial, como a
criação do toque do berimbau chamado de cavalaria, que funcionava como um sinal de
alerta indicando a vinda dos policiais. Quando o toque de cavalaria era tocado, os
capoeiristas saiam em disparada para não serem detidos. Outro mecanismo de defesa contra
o poder policial adotado pelos capoeiristas foi a criação de codinomes de capoeira, pois
assim ficaria mais difícil para a polícia identificar quem fazia parte da “vadiagem”.
Ao mesmo tempo em que a perseguição e a proibição eram constantes, a capoeira foi
ganhando espaços dentro da sociedade, principalmente nos meios militares e intelectuais,
que na voz de Letícia Reis “estavam preocupados com a própria viabilidade da nação
brasileira e informados pelos princípios da medicina higienista, que propugnava a ginástica
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como meio profilático para a regeneração da raça.” A partir disso, a capoeira começou a ser
vista com certa aceitação, pois era um “esporte” que poderia ser considerado genuinamente
brasileiro, porque, como defendem alguns estudiosos, foi criada em solo brasileiro pelos
negros vindos da África.
É apenas no ano de 1930 que a capoeira vai ser legalizada. Por mais que as tentativas de
legalização tenham sido mais marcantes no Rio de Janeiro, é na Bahia que o fato se sucede
primeiro, talvez pela imagem que a capoeira carioca tinha ligada a malandragem, ao ócio e
à violência promovida pelas maltas. O caráter esportivo da capoeira possibilitou sua
descriminalização, e, por conseguinte seu embranquecimento. É nesse momento que surge a
importante figura do mestre Bimba, Manoel dos Reis Machado (1899-1974), que realizou
grandes mudanças na Capoeira.
Basicamente a Capoeira Angola é uma luta brasileira de origem africana que se
caracteriza principalmente por sua teatralidade, por sua mandinga, por sua oralidade
(cânticos, mitos e ensinamentos) e por sua aparência lúdica, que camufla na dança e na
acrobacia diversos movimentos que podem ser mortais, se executados. A Capoeira Angola
resiste em suas raízes culturais e em seus fundamentos tradicionais, por isso é considerada
muito mais do que uma mera modalidade esportiva, e como o próprio Mestre Pastinha
falava, “pratico a verdadeira capoeira de angola e aqui os homens aprendem a ser leais e
justos. A lei de Angola, que herdei de meus avós, é a lei da liberdade” (Escola de Capoeira
“Os Angoleiros do Sertão”)
A Capoeira Angola que chegou a ser considerada quase extinta na década de 1970,
mediante a grande difusão da Capoeira Regional, foi resgatada e grandemente difundida
depois da morte de Mestre Pastinha na década de 1980. A partir de 1982, o Mestre Moraes
(Pedro Moraes Trindade, 1950) criou o grupo de Capoeira Angola Pelourinho – GCAP
revigorando e fortalecendo o estilo em uma missão árdua e gratificante e, assim como o
Mestre Cobra Mansa (Cinésio Feliciano Peçanha, 1960), viajou a diversos lugares do
mundo, percorreu grandes rodas mostrando o valor e a eficiência da Capoeira Angola.
Mestre Moraes teve por objetivo resgatar a ancestralidade da Capoeira e manter seus
fundamentos já estabelecidos, ou seja, de raiz. Não é por menos que adotou as listras da
zebra como símbolo do seu grupo, símbolo que faz referência ao N’golo.
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A Capoeira Angola hoje se disseminou por todo o país, já estando totalmente fundida e
enraizada na cultura nacional, ela mantém as suas raízes culturais e seus fundamentos
tradicionais, como a poesia, a musicalidade, a mandinga, a teatralidade, o ritmo, a memória,
a ginga, o respeito mútuo entre os homens e as mulheres tanto no ritual da roda como na
roda da vida.
Neste trabalho faremos uma breve leitura de um conto africano e compará-lo-emos a um
cântico de Capoeira Angola, uma ladainha de domínio público cantada pelo mestre
Waldemar Rodrigues da Paixão (1916-1990), conhecido como mestre Waldemar do Pero
Vaz. Segue abaixo o conto que foi recolhido da obra Literatura oral no Brasil de Câmara
Cascudo:

Um caçador ia pelo mato. Encontrou uma velha caveira humana. O


caçador perguntou: - O que te trouxe aqui? A caveira respondeu: - A
língua me trouxe aqui! O caçador foi-se embora. Procurou o rei.
Disse ao rei: - Encontrei uma velha caveira humana no mato. Falou
como se fosse pai e mãe. O rei disse: - Nunca desde que minha mãe
me suportava, ouvi dizer que uma caveira falasse. O rei intimou a
Alkali, o Saba e o Degi e lhes perguntou se tinham ouvido falar no
assunto. Nenhum homem prudente havia sabido e o rei decidiu
mandar uma guarda com o caçador para o mato e verificar se o caso
era verdadeiro, conforme fosse a razão. A guarda acompanhou o
caçador ao mato com ordem d matá-lo no lugar onde ele tivesse
mentido. A guarda e o caçador encontraram a caveira. O caçador
dirigiu-se à caveira: - Caveira, fala! A caveira ficou silenciosa. O
caçador perguntou depois: - Quem te trouxe para aqui? A caveira não
quis responder. Durante todo longo dia o caçador rogou que a caveira
falasse sem que esta respondesse. A tarde a guarda disse ao caçador
que conseguisse a caveira falar e quando nada foi possível, matou-o
de acordo com as ordens do rei. Quando a guarda se foi embora, a
caveira abriu a boca e perguntou à cabeça recém-decepada do
caçador: - Quem te trouxe para aqui? A cabeça do caçador respondeu:
- A língua me conduziu para aqui!... (CASCUDO, 1978, p. 159-
160)

Episódio conhecidíssimo em toda a África, A caveira é um conto oral de origem


africana que revela a forma de narrar que é essencialmente expressa na voz do negro
africano, contador de estórias que são passadas de geração a geração e possuem um
fundo de sabedoria ou ensinamento. Como é possível notar no texto acima, a maneira
simples e abreviada da narrativa expressa o interesse do narrador pelo enredo.
Deparamo-nos com as vozes do narrador (em terceira pessoa), e dos personagens. Não
se deve esquecer que como esse texto é de essência oral, por trás dele há um contador,
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um gesticulador, e quem sabe, um griot dando à obra um caráter vocálico. É importante
frisar que assim como a grande maioria das obras orais de origem africana, esse texto
privilegia o enredo em detrimento das descrições e detalhes alheios a ele.
A partir de uma breve leitura do conto podemos destacar seu fundo moral e trágico.
Moral quando tenta educar seus ouvintes em relação à língua – entende-se em relação à
palavra – e ao perigo que essa pode apresentar; e trágico por conta do desfecho
acarretado pela ação do falar. Esse tema não é nem um pouco novo e já foi tratado até
mesmo na bíblia Sagrada, no livro de João, onde ele fala do verbo. Em outras passagens
temos expressa a idéia da força das palavras e do perigo das mesmas. Aqui nesse conto
a temática é tratada por um ângulo um pouco diferente, o narrador mostra através de seu
personagem “um caçador” que a língua pode levar à morte.
A estética do texto é simples e rica, sem muita cerimônia o narrador relata de
maneira sucinta, e sem muito recurso formal um dia inteiro de um caçador que se
deixou levar pela língua e pela emoção. Quis mostrar serviço ao rei revelando-lhe a
existência de uma caveira que falava e acabou se tornando vitima de sua própria voz.
Como o texto é oral, o narrador busca na entonação da voz, na gesticulação do contador,
em sua forma de articular os sons, os efeitos estéticos e de verdade. Por isso
reafirmamos a importância da noção de oralidade dos textos apresentados nesse
trabalho. Assim como o conto citado acima, segue abaixo uma ladainha de Capoeira
Angola que já se tornou de domínio público cantada pelo mestre Waldemar:

Eu não sei como se vive

Eu não sei como se vive, ô meu bem


Nesse mundo enganador

Fala muito é falador


Se fala pouco é manhoso

Come muito é guloso


Come pouco é suvina 1

Se bater é desordeiro, ô meu bem


Se apanha ele é mufino 2

1
Sovina: avaro.
2
Mofino: desgraçado; covarde; enfermiço.
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Trabalho tem [o] marimbondo [de]


Fazer casa no capim

Vem um vento, leva ela, ô iaiá


Marimbondo leva fim

Caveira, quem te matou, ô meu bem?


Foi a língua minha, sinhô

Eu te dava conselho
Pensava ser ruim

E eu sempre te dizendo
Inveja matou Caim

Camaradinho

Aquinderreis

Iê aquinderreis, camará

Assim como o conto africano, a ladainha de Capoeira Angola cantada pelo mestre
Waldemar da Paixão trata do tema da língua – do falar demais humano – como algo
perigoso e traiçoeiro, em que o próprio falante cai numa armadilha ou emboscada criada
por ele mesmo. Desta maneira, deparamo-nos com um diálogo intertextual que se
estabelece entre a cantiga de Capoeira e o conto africano. Mais do que ressaltar o poder
da palavra, a ladainha transita por diversos outros temas que acabam por desencadear
um grande tema: os extremos da vida, o nunca estar bom quando em abundância. Talvez
possamos interpretar que o cantador sugira um equilíbrio pleno, algo difícil e quase
impossível. Porém não podemos descartar a possibilidade de uma revolta diante do
mundo: o nunca estar bom. Além disso, o capoeirista fala do trabalho em vão, do muito
trabalhar e por fim perder tudo, fala do homem efêmero através da metáfora do
marimbondo até chegar à parte de uma estória de um conto de origem africana e oral e é
exatamente neste ponto em que vamos nos deter.
A principio consta-nos destacar o poder locomotivo da Literatura Oral, ela viaja no
tempo e no espaço, cria diversas variantes e mantém a tradição. Podemos imaginar
como um conto popular da África Negra veio parar nas vozes dos cantadores de
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Capoeira Angola no Brasil, Resistindo ao tempo e à distância espacial? Talvez uma das
respostas seja: por meio da tradição oral.
Poderíamos tratar aqui neste trabalho somente a questão do diálogo interartístico que
se estabelece entre Literatura Oral e Capoeira Angola, porém vamos nos limitar a
explanar apenas as questões intervocálicas que ocorrem entre esses dois textos.
Começando pelas dessemelhanças, pode-se notar que o primeiro texto, a princípio,
não conta com instrumentos musicais para acompanhá-lo. Já o segundo é um texto
essencialmente musical, geralmente acompanhado por uma bateria de oito instrumentos
musicais (três berimbaus, dois pandeiros, um reco-reco, um agogô e um tambor) e é
cantado e não contado como ocorre com o texto de origem africana. Além dessa
diferença fundamental não podemos esquecer que a ladainha cantada pelo mestre de
Capoeira já apresenta alguns traços da influência portuguesa, como, por exemplo, a
menção à passagem bíblica dos irmãos Abel e Caim.
Se no conto o narrador–contador se apóia na gesticulação e na entoação da voz, na
ladainha o narrador-cantador se apóia na cadência de seus sons e no auxilio musical.
Não podemos perder de vista que ambos os textos apresentam um ritmo bastante
marcado pela oralidade, ou seja, depende também de seus ouvintes e se constrói
segundo suas necessidades. Quando um texto oral é transmitido, diferentemente de um
texto escrito, ele pode ser moldado e ecoado segundo fisionomia de seus interlocutores,
assim, a essencial necessidade de se atentar para o caráter primário dos textos.
O ambiente onde o conto geralmente era contado é aquele da noite, ao pé da
fogueira, depois de um dia cheio de trabalhos, já o ambiente em que a ladainha é ecoada
é o da rua, geralmente ao domingo, onde os capoeiras se juntavam para “vadiar”.
As semelhanças observadas entre os dois textos propostos para leitura são inúmeras.
Podemos começar por observar que ambos tratam em determinado momento de um
mesmo tema: o perigo em falar demais. Além da intertextualidade temática, podemos
assemelhá-los pela origem oral, ambos foram produzidos para serem ditos pela voz, um
através do contar e o outro através do cantar. Mais do que essa origem oral, ambos são
textos de origem popular, o primeiro sem paradeiro preciso, conto popularizado em
grande parte da África Negra segundo Câmara Cascudo (1978, p. 178-179), a ladainha
já é considerada de domínio público nas rodas de Capoeira, é cantada por muitos, o que
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só comprova seu caráter popular. E para completar esse ciclo de semelhanças não
poderíamos deixar de destacar a forte presença da tradição que aflora nos dois textos.
Essa tradição pode ser confirmada através da resistência dos textos e da manutenção dos
mesmos, mesmo que em contextos distintos dos de sua origem.
Com essa breve e sucinta leitura desembocamos na reflexão do poder da Literatura
de Tradição Oral e Popular, no que se refere à resistência temporal, espacial e histórica
(desprestigio mediante o surgimento da imprensa e das novas tecnologias), e ao
caminhar contínuo, às vezes oscilante no decorrer de sua existência. São inúmeros os
textos da chamada “Alta Literatura” que podem ser comparados às cantigas e texto de
origem oral afro-brasileiros, sem contar com o decorrente e claro diálogo que se
estabelece entre essas cantigas e inúmeros textos de origem africana, popular (literatura
de cordel) e da tradição oral.
Neste trabalho ficou apenas um pequeno pedaço da proposta de pesquisa elaborada a
partir dos cânticos de Capoeira Angola, acredita-se que essas cantigas (ladainhas,
quadras, corridos, louvações) podem ser um farto corpus para o estudo da Literatura
Oral Afro-brasileira, e para outras diversas vertentes dos estudos acadêmicos.

Referências

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2ª edição, Rio de Janeiro: Olympio;
Brasília: INL, 1978.
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Dicionário básico da língua portuguesa. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
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AS LADAINHAS DE CAPOEIRA ANGOLA COMO CANTO DE LIBERDADE

Carla Alves de Carvalho Yahn (PG/UNESP/Assis)

As cantigas de capoeira fornecem valiosos elementos para o estudo


da vida brasileira, em suas várias manifestações, os quais podem ser
examinados sob o ponto de vista lingüístico, folclórico, etnográfico e
sócio-histórico. (REGO, 1968, 126)

A Capoeira Angola é uma manifestação cultural que foi trazida da África para o
Brasil por meio dos negros vindos principalmente de Angola. Por mais que boa parte da
tradição oral desses negros ficava em sua terra mãe, pois os homens e mulheres mais
velhos, os contadores das histórias de seus avós, que eram passadas de geração à
geração por meio da oralidade, se mantinham em sua terra pelo fato do comércio
negreiro privilegiar apenas o tráfico de homens e mulheres relativamente jovens.
Mesmo deixando boa parte de sua ancestralidade, de suas origens e costumes na terra
natal, os negros conseguiram manter parte de tudo o que ficou do outro lado do atlântico
aqui no Brasil. Isso pode ser constatado quando analisamos as cantigas de Capoeira
Angola, que são expressas oralmente e tratam de temas diversos.

Na roda de Capoeira Angola existem vários fundamentos, como a formação da


bateria, que funciona como o coração do ritual, ela é formada pelo conjunto de músicos
e cantadores, que são regidos pelo ritmo, aspecto que pode ser considerado o mais
importante na manifestação da capoeira, assim como o é na vida humana, esse ritmo
pode ser diverso, fluido como um pássaro que se deixa levar pelo vento, ou lento como
um peixe que nada contra a correnteza de águas fortes. O importante é ressaltar que este
ritmo sempre estará presente na capoeira, ele geralmente caminha em direção à
transcendência e tem o poder de depositar toda energia necessária à roda, seja ela
positiva ou negativa. Como diz Octavio Paz:
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O ritmo é inseparável de nossa condição [...] é a manifestação mais


simples, permanente e antiga do fato decisivo que nos torna homens:
seres temporais, seres mortais e lançados sempre para algo, para o
outro: a morte, Deus, a amada, nossos semelhantes. (PAZ, 1982,
73)
A bateria é composta por três berimbaus (gunga, médio e viola) cada um desses
três berimbaus tem sua função sonora e prática específica, o primeiro de timbre grave
comanda a roda, geralmente é tocado por um mestre mais velho e detentor de mais
conhecimento, o segundo possui timbre intermediário, e sua função também é de
intermediar entre gunga e viola, e o terceiro é de timbre mais agudo, sua função é
repicar; dois pandeiros, antiqüíssimo instrumento musical da velha Índia que foi
introduzido pelos portugueses no Brasil; um reco-reco ou ganzá, instrumento de origem
supostamente indígena, geralmente é feito de bambu; um agogô, palavra de origem
nagô, que traduzida significa sino, é um instrumento musical feito de ferro ou castanha
do Pará; e um tambor (atabaque), de paradeiros semelhantes aos do pandeiro e assim
como ele foi introduzido no Brasil pelos portugueses. Ambos os vocábulos, pandeiro e
atabaque, estão presentes na Literatura de Gil Vicente e no Cancioneiro da Ajuda. Para
uma boa roda acontecer é imprescindível uma boa bateria, ela é um fundamento básico
na Capoeira Angola.

Enquanto a roda está acontecendo o cantador narra diversos fatos ou lendas dos
mais variados assuntos. Ele faz crítica social, fala de política, da situação do negro no
Brasil, de amor, de lendas como Besouro, Riachão, Pedro Cem, Zumbi. As cantigas de
Capoeira Angola é um verdadeiro manancial para estudiosos das mais diversas
disciplinas da atualidade, e, como acrescenta Lopes:

Existe a cantoria sobre temas históricos, românticos, de valentia,


religiosos, reivindicatórios e tantos outros. Temos, portanto, um
prato cheio que ainda não foi servido nas mesas de discussão.
Algumas dezenas, talvez centenas de Festivais de Cantos de
Capoeira já foram realizados, mas nenhum deles com a preocupação
de refletir e fazer refletir sobre as funções da cantoria na Capoeira.
(LOPES, 2006, p. 1)
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Aqui, olhar-se-á essas cantigas com um foco mais literário, pois como é sabido,
a Capoeira Angola não se resume em Literatura, ela possui toda uma característica
performática, que inclui o gesto, a voz e sua entonação, os corpos dos jogadores e seus
movimentos teatralizados, a bateria (conjunto de músicos), o espaço e o tempo onde se
desenrola o ritual da roda, como Carybé tenta demonstrar em seu desenho:
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(desenho de Carybé – domínio público – recolhido em: HEIBESEN, 1951, p. 21)

Seu caráter performático é fundamental mas nesse texto será tratado de maneira
mais superficial. Ter-se-á por base neste texto a Oratura (Literatura Oral) para poder-se
enfocar o caráter literário da cantiga de Capoeira, e, no caso desse texto, da ladainha,
um dos subgêneros dos cânticos de Capoeira Angola. Procurar-se-á relacioná-la com
um poema contemporâneo afro-brasileiro para demonstrar seu caráter literário e
estético.

As cantigas de Capoeira Angola são em sua maioria cantadas em língua


portuguesa, porém, há uma parte relativamente considerável de cantigas em línguas de
origem africana, como nagô e ioruba, sem contar que diversas palavras já enraizadas em
nossa língua portuguesa do Brasil são de origem africana, mas totalmente já absorvida
no nosso linguajar atual. As cantigas de Capoeira Angola podem ser divididas em
quatro gêneros principais: a ladainha, que geralmente é mais longa que os outros
cânticos, ela pode ter diversas funções, pode ser um apelo, uma vocação, uma sátira,
tratar de temas de amor ou heróicos, pode ser uma narrativa histórica, uma denúncia
social, um agradecimento e muito mais; a louvação, que é um momento de exaltação,
nela pode-se exaltar Deus, uma determinada terra, uma determinada pessoa, uma ação,
alguns instrumentos como a faca de ponta, por exemplo; o corrido, que é o sinal verde
para o jogo da Capoeira, quando eles são cantados os capoeiristas podem “vadiar”, são
cânticos que assim como a ladainha tratam de temas diversos, podem ser de domínio
público, espontâneos e improvisados ou anteriormente elaborados e trabalhados; e, por
fim as quadras, que são versos rimados que tratam de temas infindáveis e podem ser
improvisadas ou engenhadas. Dentro de tudo isso, pode-se encontrar vários tipos de
cantigas, como as de mal dizer e escárnio, as de amor, as de devoção, as hagiológicas
(que se referem com detalhes a santos católicos ou personagens bíblicas), as de sotaque
e desafio, as geográficas e de louvação.

O Banzo, ou, de maneira simplista, a saudade da terra será o tema escolhido para
iniciar-se a leitura de uma cantiga de Capoeira Angola relacionando-a com um poema
afro-brasileiro da atualidade, isso pelo fato desse tema ter sido tão comum entre os
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negros trazidos como escravos ao Brasil, e repercutir até hoje entre muitos de seus
descendentes. A caráter comparativo segue abaixo uma ladainha (um subgênero do
gênero cantigas de Capoeira Angola) cantada pelo mestre Marrom no Rio de Janeiro em
maio de 2007, e em seguida um poema afro-brasileiro:

Iê...

Chora meu cativeiro, deixa a tristeza entrar


O meu pai falava muito, não esquecerei jamais...

Negro era transportado pelo navio negreiro


Com promessas de trabalho, de ganhar algum dinheiro.

Negro trabalha tanto, só recebia chicotada.


Foi aí que foram ver, que vida amargurada...

Negro trabalhava tanto, morriam muito de doença


Uma delas era o Banzo, a doença da tristeza.

No dia treze de maio apareceu uma mulher


Não libertou todos escravos, princesa Isabel...

Chora meu cativeiro, quanta tristeza guardou


O meu pai falava sempre tudo aquilo que herdou:

Menino tome cuidado com a magia do saber


Praticar a Capoeira pra poder se defender!

****

Banzo

Ainda aquela solidão.


O aperto gigante interminável acelera o coração.
Uma lágrima negra fugitiva
embaça os contornos da realidade.

Ainda a mesma sensação de asfixia,


a mesma ansiedade...
Os mesmos impulsos destrutivos incontroláveis.

Quem enxergará meu sofrimento escuro?


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Onde estão meus irmãos?


Onde tu, mãe companheira?

Ainda permaneço aqui


enquanto tudo que mais amo,
tudo o que mais prezo,
continua distante, inconquistável, inacessível...

Até mesmo invisível consigo ser


neste país que eu julgava tão negro quanto eu.

Tragam, por favor, os meus tambores, o meu acarajé.


Deixem-me aqui na minha cubata escura,
sentindo esse cheiro de azeite de dendê.
Deixem-me, sentido esse cheiro de morte,
esse cheiro de sorte...
Na noite em que me encontrarei
Com os meus ancestrais.
(SOBRAL, 2006, p. 54,55)

Os dois textos citados acima apresentam como tema o banzo, que é uma espécie
de sentimento, um sentimento de dor que se pode traduzir como saudade da terra, das
origens, da ancestralidade do negro que fora trazido da África como escravo às terras
brasileiras. Os textos tentam transmitir o sofrimento dos que se viram obrigados a
deixar toda sua tradição para recomeçar uma nova história, um novo modo de vida. As
imagens “chora meu cativeiro” ou “lágrima negra” revelam o quanto esses homens e
mulheres derramaram seus prantos. Os poemas ainda mostram o quanto a
ancestralidade, a tradição oral e o apego pela terra natal se fazem presente: “o meu pai
falava muito/não esquecerei jamais” ou, como aparece na segunda poesia: “tudo que
mais amo/tudo o que mais prezo/continua distante, inconquistável, inacessível...” esses
versos revelam como o eu-poético dos dois textos valorizam aquilo tudo que herdaram,
e que por ordem do ingrato destino tiveram a infelicidade de não vivenciar por mais
tempo.
Os textos ainda fazem uma crítica social, o primeiro quando trata da princesa
Isabel e o segundo quando se refere ao preconceito social: “No dia treze de maio,
apareceu uma mulher/não libertou todos os escravos, princesa Isabel” e “Até mesmo
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invisível consigo ser/neste país que eu julgava tão negro quanto eu”. Nessas passagens
fica bem clara a crítica ao que é estudado nas escolas, e que muitos ainda acreditam ser
verdade: a questão da libertação dos escravos pela princesa Isabel, uma grande mentira;
e a denúncia ao preconceito num país que foi construído em grande parte por mãos
negras.
A partir de uma análise mais estilística e literária pode-se destacar que no
primeiro poema, na ladainha apresentada acima, depara-se com um texto de forma fixa
e com esquema de rima elaborado na forma: a/b, c/c, d/d, e/e, f/g, h/h, i/i, j/j. o que
contribui grandemente para o bom andamento do canto, temos nesse poema de
decassílabos uma cadência ritmada por estrofes divididas em dois versos cada.
O segundo poema proposto possui forma livre e guarda mais em suas imagens
do que em sua sonoridade sua riqueza estética. É repleto de metáforas e ambigüidades,
como “sofrimento escuro”, por exemplo. Apresenta palavras de origem africana como
forma de resistência cultural e para demonstrar a influência lingüística dos africanos:
“acarajé”, “cubata” e “dendê”.
Mesmo com temática condizente, os textos revelam em si estilos diferentes. O
primeiro que foi elaborado para ser cantado, revela sua cadência no ritmo que se
estabelece numa junção de corpos, vozes, sons e ouvidos. Já o segundo, apresenta,
mesmo com grande efeito de sonoridade, seu caráter de texto que foi produzido para ser
lido, sem esquema rímico sistematizado, com versos e estrofes livres, desprendida de
qualquer forma fixa de poema, com inúmeros pontos finais, pausas internas e
reticências que sugerem uma maior reflexão do seu leitor, momentos de silêncio, que no
primeiro texto são preenchidos pelos sons dos instrumentos musicais. Não se pode
perder de vista essas dessemelhanças essenciais desses textos, por mais que em relação
a temática que ambos apresentam nota-se um claro diálogo estabelecido. Em relação à
ladainha é importante frisar-se que esta que foi apresentada acima possui certa
elaboração estética que revela que o seu compositor teve um trabalho anterior à voz de
criação, essa observação é válida no sentido em que muitas das cantigas de Capoeira
Angola são improvisadas de acordo com o contexto da roda, mas também se podem
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encontrar produções elaboradas e pensadas de forma não espontânea. Mas mesmo com
essa observação não se pode esquecer que, segundo o suíço Paul Zumthor:

[...] o texto de destinação vocal é, por natureza, menos apropriável


do que o é o texto que se propõe à leitura. Mais do que este, ele
resiste a identificar-se com a palavra do seu autor; tende a se
instituir como um bem comum do grupo, no corpo do qual funciona.
(ZUMTHOR,1993, p. 190)

O que comprava a diferença essencial dos textos propostos nesse trabalho, mas levando
em consideração o evidente dialogo temático que se dá entre eles.

Conclusão

Busca-se explorar nesse trabalho o universo expresso nas cantigas de Capoeira


Angola relacionando-o e comparando-o ao universo expresso na Literatura Afro -
brasileira Contemporânea. Em outros momentos também se usa como material de
comparação e análise textos da Literatura de Cordel, olha-se tanto os contos rimados
que essa arte apresenta como seus poemas cantados como forma de intertexto quando
comparadas à diversas cantigas de roda de Capoeira Angola, faze-se ainda comparações
demonstrando as semelhanças e dessemelhanças entre textos da chamada “Alta
Literatura” (Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Jorge de Lima) em relações a textos
vocalizados e de tradição oral da Capoeira Angola. Aqui ficou apenas um pequeno
demonstrativo de parte da pesquisa que se encontra em processo de desenvolvimento.

Referências

HEIBESEN, Paulo (org.). Desenhos de Carybé. Salvador: Beneditina, 1951.

LOPES, André Luis Lace. “Capoeira na Literatura de Cordel”. Disponível em:


http://www.jornalexpress.com.br/noticias/detalhes.php?id_jornal=13170&id_noticia=46
5 acesso em 25 maio 2009 (2006) p. 01.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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REGO, Waldeloir. Capoeira Angola/ Ensaio Sócio-Etinografico. Bahia: Itapoá, 1968.


SOBRAL, Cristiane. Banzo. In: Cadernos negros. Volume: 29. São Paulo:
Quilombhoje, 2006.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Tradução de Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira.
São Paulo: Companhia das letras, 1993.
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MULHERES, POESIA E A INVENÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO

Carla Ramos (TV Escola-MEC) 1

“Eu acho que qualquer escritor, qualquer poeta, o que vai na alma de um poeta é o respirar de um
país. Não digo que as obras, na sua maioria seriam auto-biográficas, não! Mas a vivência do
autor, o ambiente que o circunda, o seu dia a dia, tudo aquilo que é preocupação daquelas
pessoas que não têm voz vai ser a voz do poeta, vai ser a voz do escritor.” Odete Semedo

“Como eu disse, o meu país foi primeiro um lugar na literatura, para depois ser uma realidade na
geopolítica. O meu país foi inventado por poetas como Alda Lara, com Antônio Jacinto, como
Antônio Cardoso. O meu país existiu em forma de verso antes da proclamação da independência
no dia 11 de novembro de 1975”. Ana Paula Tavares

Esse artigo teve uma origem pouco comum dentro do ambiente de pesquisa pautado
por metodologias características das ciências sociais. Isso se deve muito ao fato de a
minha inserção profissional ser, ela mesma, pouco comum entre os meus colegas de
formação, sejam eles antropólogos, sociólogos ou cientistas políticos. Eu trabalho num
programa de televisão, o Salto para o Futuro, da TV Escola, canal do Ministério da
Educação. A minha atuação está ligada diretamente ao que diz respeito aos conteúdos
que são veiculados em cada série de programas. No final de 2007, decidimos aproveitar
um evento de literatura que acontecia na Faculdade de Letras da UFRJ para entrevistar
três escritoras africanas.
A nossa intenção foi reunir depoimentos para utilizá-los mais tarde. O problema é
que não tínhamos um programa previsto, cujos temas já estivessem definidos. Isso nos
levou a elaborar uma pauta com perguntas mais gerais, sem deixar de pontuar certos
assuntos considerados relevantes para uma discussão sobre História da África, a partir
de um recorte de gênero.
Ressalto, no entanto, que a dinâmica da entrevista obedeceu aos critérios e urgências
ditados por um fazer televisivo comprometido sobremaneira com a realização técnica do
vídeo. Isso pode acarretar, muitas vezes, uma sobrevalorização de toda a composição da
imagem com os seus detalhes de luz e som em detrimento da entrevista propriamente
dita. Então, muito embora as perguntas fossem geradoras de respostas e reflexões mais
demoradas, o “tempo” definido como o “tempo da televisão” foi um fator limitador no
1
Mestre em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ). Analista Educacional do Programa Salto para o
Futuro/TV Escola, canal do Ministério da Educação (MEC).
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transcorrer de cada depoimento. As entrevistas orientadoras desse texto foram realizadas


nessas condições.
Desde aquele encontro, na cobertura de um hotel, em Copacabana, com Odete
Semedo, Ana Paula Tavares e Conceição Lima, eu já havia me impressionado com a
força de suas percepções acerca da história recente dos seus respectivos países. Mas o
grande fascínio aconteceu quando as ouvi contar sobre como a literatura esteve presenta
na constituição dos Estados nacionais, na Guiné-Bissau, em Angola e em São Tomé 2. E
como que no interior desse processo artesanal, promotor de símbolos de identificação
daquelas populações, estavam as mulheres a falar, a refletir e a agir na política do
cotidiano.
Um fator de conexão emblemático entre as narrativas históricas das lutas pela
descolonização, tanto na Guiné-Bissau quanto em Angola, é a presença de poetas
assumindo o papel de destaque na liderança de movimentos em oposição à colonização.
De um lado, Amílcar Cabral (engenheiro agrônomo) foi dos fundadores do Partido
Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC); de outro,
Agostinho Neto, foi o primeiro presidente da recém-emancipada Angola.
Nesses contextos, foi a elite intelectual que assumiu os postos de comando nos
novos Estados-nacionais. O lugar ocupado por esse grupo confirma a variante salientada
por Anderson (2008), quando verifica o campo de atuação das elites bilíngues, educadas
sob os auspícios da administração colonial, que terminava por colocá-las em contato e
em circulação com e por diferentes culturas, geografias e línguas.

(…) Os líderes do nascente movimento nacionalista finlandês eram


“pessoas cuja profissão consistia em larga medida no manuseio da
língua: escritores, professores, pastores e advogados (ANDERSON,
2008, p.116).

(…) Costuma-se concordar também que o papel de vanguarda dos


intelectuais provinha da alfabetização bilíngue ou, melhor, de sua
alfabetização e de seu bilinguismo. O bilinguismo significava o
acesso, através da língua oficial europeia, à cultura ocidental moderna
no sentido mais amplo e, em particular, aos modelos de nacionalismos,

2
Optei por trabalhar neste artigo somente com as entrevistas de Ana Paula Tavares e Odete Semedo,
visando me deter mais especificamente em dois contextos sócio-históricos. A entrevista com a escritora
Conceição Lima foi igualmente inspiradora.
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condição nacional [nation-ness] e Estado nacional criados em outros


lugares no decorrer do século XIX (Anderson, 2008, p.167).

A literatura, quando somada à força da oralidade 3, constituiu um espaço discursivo


fundamental para a “imaginação” da condição nacional 4, tanto na Guiné-Bissau quanto
em Angola. A primeira frase da entrevista com Ana Paula Tavares tem uma força
explicativa incrível, ao condensar a centralidade da poesia na fundação da Angola pós-
colonial: “eu sou de um país que foi inventado primeiro na literatura e só depois na
política”. Da mesma maneira, Odete Semedo lembra: “o que eu posso dizer sobre isso é
que a política e a literatura nos primórdios da Guiné-Bissau andaram de braços dados”.
Este artigo segue as pistas deixadas por três argumentos. O primeiro deles é a
conhecida tese de Benedict Anderson acerca do conceito de nação como uma
comunidade política imaginada. Tomando as variantes que este autor leva em
consideração para definir o modo pelo qual a nação é imaginada como limitada,
soberana e como uma comunidade; em certa medida, os depoimentos das poetas
revelam a articulação entre a condição nacional e a literatura, o que fomenta um senso
de pertencimento comum e fortemente coletivo.
O segundo é a abordagem feita por Stuart Hall, partindo também da tese das
“comunidades imaginadas”. O autor considera que as identidades nacionais têm sido
deslocadas pelos processos de globalização. Isso é um fator pertinente em nossa
discussão, principalmente porque estamos olhando para dois Estados nacionais que, ao
modo como colocou Anderson, fazem parte da “última onda de nacionalismos”, na
esteira dos modelos 5 gestados a partir do século XVIII em diversas partes do mundo,
inclusive, como bem demonstrou Anderson, muito além da Europa ocidental.

3
(…) A literatura oral ou oratura, acervo transmitido apenas pela voz e pela memória, constituído pelas
histórias tradicionais, provérbios, adivinhas, cantigas, manancial de saber e de criatividade populares, de
filosofia e sabedoria (Augel, 2007, p. 30).
4
Vai ser constante a referência a Benedict Anderson e sua obra: Comunidades Imaginadas (2008).
5
(...) No entanto, depois de criados, esses produtos se tornaram “modulares”, capazes de serem
transplantados com diversos graus de autoconsciência para uma grande variedade de terrenos sociais, para
incorporarem e serem incorporados a uma variedade igualmente grande de constelações políticas e
ideológicas (Anderson, 2008, p. 30).
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Por último, mas não menos importante, faço um esforço de compreensão da proposta
teórica e metodológica de investigação baseada na noção de “histórias conectadas”,
desenvolvida na obra do historiador Sanjay Subrahmanyam. Quem me chamou a
atenção para essa perspectiva foi o antropólogo Fernando Rosa Ribeiro, em seu artigo:
“Histórias Conectadas: Uma Proposta Teórica e Metodológica a Partir da Índia”. Nesse
artigo, ele apresenta, de maneira resumida, as bases teóricas e metodológicas de um
trabalho, cuja contribuição tem sido a de ampliar os horizontes da pesquisa buscando os
fluxos de “ideias e práticas culturais”; ultrapassando uma historiografia desde os
Estados-nacionais, conectando e perpassando diferentes dimensões do mundo social.
Tendo visto isso, ainda havia um aspecto metodológico bastante inspirador: a
oportunidade de observar os contextos conectados e não compará-los, como
costumeiramente é feito. Então, em lugar de partir do pressuposto da diferença,
portanto, da comparação, busca-se o itinerário das conexões entre as histórias.

(...) (Gilberto Freyre e Geoffrey Cronjé) em ambos os casos os


respectivos ideários e projetos tentaram construir a nação a partir de
um campo comum e conectado de ideias e noções. Assim, apesar de
um autor ser lusófono, e outro de língua afrikaans, de um estar na
América do Sul e o outro na África do Sul, de um ter estudado nos
Estados Unidos, o outro nos Países Baixos, os dois se encontram num
campo social e discursivo comum, ainda que, claro, em loci diferentes
desse campo (RIBEIRO, 2008, p. 34).

Dessa feita, a Guiné-Bissau submerge inteiramente na Senegâmbia e, para efeito


deste artigo, conecta-se à Angola num “campo discursivo comum” de formação
nacional e das inquietações próprias da condição de gênero, no período chamado de
pós-colonialismo. Ainda sob o argumento da “África conectada”, é bom lembrar que a
ideia de um continente “isolado” é um discurso marcadamente europeu ocidental,
forjado em acordo com a perspectiva subalternizante orientalista e – por que não dizer –,
racialista.

(...) Samir Amin, em seu prefácio no livro de Boubacar Barry (1984),


afirma que a imagem de uma África isolada e fechada em si mesma
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não possui bases científicas, tratando-se de uma teoria defendida pelos


europeus que, na realidade, revelava um certo tipo de racismo 6. O
autor afirma ainda que o período pré-mercantil estende-se de suas
origens até o século XVII e que, durante este vasto período, sempre
houve intercâmbios e transações comerciais, tecnológicas e culturais
entre a chamada África Negra e o Mundo Antigo, ou seja, do Saara até
o Mar Vermelho via o Mediterrâneo. O comércio de longas distâncias
colocava em contato povos que não se conheciam, técnicas, línguas,
práticas culturais e ideias diferentes, assim como boa parte dos seus
produtos. Foi este comércio milenar trans-saariano que possibilitou ao
Mundo Antigo, ao Mediterrâneo, ao mundo árabe e, mais tarde (século
XV), ao mundo europeu ter acesso ao ouro dos impérios do Mali e de
Gana. (ALAIN, 2008, p. 266).

Trabalhar na perspectiva das “histórias conectadas”, tendo o continente africano


como desafio para a compreensão, exige do pesquisador uma “vontade de pesquisa” em
consonância com o recente debate sobre a questão racial no Brasil e as questões de
identidade no mundo. No Brasil, temos a Lei n. 10.639 7, que tornou ainda mais
pertinente a produção e a disponibilização de conteúdos programáticos em que estejam
incluídas a história e a cultura afro-brasileira e o estudo da história da África e dos
africanos.

1 - Representações: Odete Semedo e Ana Paula Tavares

A Guiné-Bissau declarou independência de Portugal em 1973, depois de anos de luta


contra o poder colonial. Não obstante essa batalha de tanto tempo e que custou milhares
de vidas, a instabilidade política da República da Guiné-Bissau condena o processo de
consolidação nacional e torna latentes inúmeras tensões envolvendo disputas entre as
sociedades que compõem o espectro do seu território.
A literatura foi uma das ferramentas que engendrou ligadura, forjou alianças e abriu
espaço de expressão para as muitas línguas e modos de ver o mundo dos Balanta, Fula,

6
Continuar defendendo o isolamento da África era um dos meios encontrados para legitimar não somente
a colonização com seus corolários, mas também justificar a sua não contribuição na civilização universal.
7
A lei foi modificada para a introdução da questão indígena. Agora, na Lei n. 11.645, lê-se: “nos
estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o
estudo da história e da cultura afro-brasileira e indígena.”
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Mandinga, Mandjaco, Pepel e Mancanha. Há certa controvérsia quando a tarefa é


determinar quantos “grupos étnicos” vivem na Guiné-Bissau. Muito surpreendente é ter
em conta que a maior parte deles circula e se estende por toda a Senegâmbia, não
respeitando propriamente os limites das fronteiras nacionais estabelecidas 8.
Odete Semedo atesta a forte relação entre a política e a literatura, chamando a
atenção para o impacto da luta colonial na produção literária local. O resultado disso é
uma literatura realizada muito em função da luta pela independência, a partir da qual,
por exemplo, foi possível divulgar a difícil condição sociopolítica da região. A literatura
operou no duplo registro, tanto na esfera internacional, denunciando os crimes
cometidos no regime de dominação colonial, quanto no interior da própria Guiné-
Bissau, tal qual um ponto de união e conclamação/comunhão à luta de todos pela
independência e autoafirmação nacional.

(…) todos estes autores que levaram a voz da terra, como eu costumo
dizer, para outros campos do universo, eles deram a conhecer a
situação política do país através dos seus versos, através dos seus
escritos. (SEMEDO)

No mesmo compasso histórico, a década de 1970 foi de grande efervescência


política nas colônias portuguesas que se opunham duramente ao regime colonial. É
necessário dizer que os embates crescentes foram demasiadamente alimentados por
ocasião da Guerra Fria. Nessa conjuntura superficialmente repartida entre nações
comunistas e nações capitalistas, entre a União Soviética e os Estados Unidos, os
movimentos sociais das ex-colônias portuguesas no continente africano estavam
alinhados dentro dessa perspectiva ideológica 9.
Angola esteve implicada nessa complexa trama política. Ana Paula Tavares nos
disse que a literatura estabeleceu uma relação muito forte com a afirmação da identidade
naquele momento, simultâneo, de conformação do Estado nacional angolano e de lutas

8
(...) Apesar da pequena extensão do território, ali vivem dezenas de grupos e subgrupos étnicos muito
heterogêneos, com suas culturas próprias, suas línguas, em grande parte muito diferentes umas das outras.
Luigi Scantamburlo refere-se a 27 grupos étnicos, mas os autores não são unânimes nessa quantificação, e
isso porque há grupos, subgrupos, e os critérios variam bastante (AUGEL, 2007, p. 76).
9
Guiné-Bissau (1973), São Tomé e Príncipe (1975), Angola (1975), Moçambique (1975) e Cabo Verde
(1975).
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pela libertação nacional. Ou seja, mais uma vez Anderson coloca pistas importantes
acerca da influência da literatura e o seu papel na formação de um imaginário
comunitário que desemboca no esboço da condição nacional. Há uma profunda
coincidência ligando a produção literária à busca de certa identidade nacional apta a
disputar, com o poder colonial, um território independente e soberano.
Quando o tema passa a ser a condição da mulher como partícipe nesse concerto
histórico e político, a maneira como ela percebe esse lugar dá indícios de como certas
dimensões da vida social têm sido delineadas no Estado-nação guineense e angolano. O
cimentamento da condição nacional não deixa de expor a presença de questões tão
globais quanto as desigualdades de gênero. Um efeito direto desse estado de coisas é a
precarização da vida das mulheres guineenses; nas palavras de Odete Semedo:

(…) Bom, eu acho que as mulheres, no meu país, eu costumo dizer


que é uma situação lamentável porque apesar de sermos 52% da
população, apesar de serem as mulheres pertencentes a um grupo pilar
familiar; a mulher é que através das suas atividades geradoras de
rendimentos, através do seu trabalho no campo, do cuidar da família, é
a mulher que toma conta da casa. Durante a luta de libertação a
mulher foi cozinheira, lavadeira, foi combatente, fez parte do
Conselho superior de luta. Mesmo assim, e com as leis que nos
mostram que uma cidadã e um cidadão têm os mesmos direitos, a
mulher vai encontrar outros aspectos que vão lhe dificultar a vida,
como, por exemplo, o direito costumeiro, o direito coletivo em que a
mulher não herda dos maridos, em que as filhas não herdam dos pais,
são os sobrinhos que herdam, mesmo sendo da linhagem materna, mas
é a mulher que vai ser prejudicada.
Então, a situação da mulher vai ser qualquer coisa como um
contra verbo, ao mesmo tempo em que ela é pilar, ela também é posta
de lado. Nas esferas de decisão, vamos contar um número ínfimo de
mulheres, portanto, ao nível das letras, como a mulher também ao
nível de educação, ela é empurrada para o segundo lugar. (SEMEDO).

Embora tenha esse status subalternizado por razões que perpassam os costumes e a
tradição e encontram um terreno fértil para a reprodução das desigualdades nos
interstícios do capitalismo tardio, as mulheres da Guiné-Bissau e de Angola foram
sujeitos basilares, aparecendo em diferentes frentes de atuação e combate pela
independência dos territórios ocupados por Portugal. Partindo da reflexão de Ana Paula
Tavares, podemos constatar esse papel da mulher:
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Desde cedo eu me habituei a olhar a volta e notar que o país, a região


local dependia dessa força enorme, dessa energia enorme das
mulheres. São elas que inventam a água, são elas que fazem as
comidas, são elas que sustentaram um país que, como vocês sabem,
durante tantos anos, esteve na guerra. Os homens estavam a fazer a
guerra, eram as mulheres que faziam com que o país funcionasse, com
que o país se reproduzisse. Eram elas que cuidavam dos vivos e dos
mortos. (TAVARES)

Mas o fato de terem à sua frente inúmeras barreiras que as impedem de chegar “às
letras”, como apontou Odete Semedo, não foram silenciadas, muito pelo contrário 10.
Nessas circunstâncias, o espaço de fala da mulher (africana) ocorre, sobretudo, no
âmbito das tradições orais onde também se passam as ações espetaculares, tais como o
canto e a dança. Na verdade, é um espaço largo de representação, criação e fruição
estética. Simultaneamente a isso, aconteceu a dimensão institucionalizada da língua
impressa, campo fortemente controlado que, não à toa, faz parte do elenco de elementos
relevantes na constituição da “condição nacional”, como foi proposto nas investigações
de Anderson (2008).
A tradição oral guineense eu costumo dizer que é uma das matrizes da
moderna poesia guineense e das canções guineenses. Nós vamos
encontrar mulheres que não sabem ler nem escrever, mas que criam
cantigas da coletividade feminina que são maravilhosas. Portanto, são
mulheres que não sabiam e não sabem escrever nem ler, mas que
declamam nos seus encontros, nas suas danças, portanto, esta mulher
está presente nas letras guineenses e no meu trabalho a mulher está
presente, a vida social está presente, a política, como não podia deixar
de ser, está presente, porque é ela que gera a vida da população, quer
queiramos, quer não. (SEMEDO).

A ideia de nação pós-colonial, tal como está em destaque, não traz garantias de
supressão da dissonância existente entre uma proposta de liberdade e comunhão,
normalmente ancorada a normas constitucionais desses novos Estados nacionais, o que
está atrelado a um conjunto de circunstâncias de reprodução de desigualdade de
diferentes tipos. Stuart Hall defende o argumento de que muito mais do que um “ponto

10
Boubacar Barry (2000) nos faz atentar para formas de “expressividades” que são imprescindíveis no
contexto africano.
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de lealdade, união e identificação simbólica”, a cultura nacional “é também uma


estrutura de poder cultural” (HALL, 2006, p. 59-60). O nacionalismo guineense, ou o
angolano, em suas formas particulares de expressão/imaginação, guardam esse traço
processual de domínio, de imposição e negociação constantes em função da
homogenização e de unificação nacional. Ainda com Hall: “as nações são sempre
compostas de diferentes classes sociais e diferentes grupos étnicos e de gênero” (HALL,
2006, p. 60). As autoras reivindicam, ao seu modo, e as perguntas que elaboramos para
as entrevistas partem desse pressuposto, o espaço característico da sua identidade de
gênero e, dessa maneira, falam sobre a sua forma de estarem inseridas no local/nação e,
ao mesmo tempo, em escala global.
As mesmas mulheres que estão distantes do acesso formal à língua oficial do
colonizador mantêm em pleno movimento as línguas faladas nas sociedades que
partilham aqueles territórios. Grande parte dos Estados-nacionais pós-coloniais, ou do
segundo pós-guerra, assim classificado por Anderson (2008), tiveram línguas oficiais
europeias. Compreende-se que o “nacionalismo colonial” – nos casos em questão –
caminhou no sentido da resistência levada a cabo pela manutenção do intercurso das
diversas línguas faladas em Angola e na Guiné-Bissau.

(...) E a língua portuguesa funcionou como língua de opressão durante


a era colonial e durante a luta de libertação colonial, ou seja, o líder
político que liderou a luta de libertação nacional, ele usou a língua
guineense, o crioulo, como uma arma de revolução. Foi em crioulo
que nós nos comunicamos, foi em crioulo que os combatentes foram
buscados; entre os camponeses que falavam as várias línguas
guineenses é que nós vamos nos concentrar e, vamos nos unir para o
grito de pedido de busca de liberdade (SEMEDO).

(...) É curioso porque eu vou dizer mais uma vez: foi em português que
eu falei dessas mesmas línguas, mas há todo um patrimônio da
tradição oral e mesmo fixado em português que foi importante para eu
chegar ao conhecimento dos locais, das regiões, do meu país em suma.
Eu penso que toda a gente é de um lugar, como é de uma infância,
como é de uma determinada região, e aí, essas mesmas línguas
silenciadas durante todo o processo colonial, elas foram só
aparentemente silenciadas, porque elas estavam lá, o meu trabalho
nem sequer foi muito grande, foi apenas ouvir, ficar atenta.
(TAVARES).
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Durante o período da colonização, as línguas nativas foram proibidas, inclusive o


crioulo 11, que é uma ponte de comunicação ligando sociedades multilíngües,
consequência da expansão do colonialismo europeu (AUGEL, 20087, p. 82). A disputa
política em torno da língua foi mais um aspecto importante na imaginação da condição
nacional. Infelizmente, não há espaço neste artigo para uma discussão de maior fôlego.
Mas longe de ser uma justificativa simpática e comum, gostaria de marcar a minha
posição em busca de aprendizagens que remetam ao continente africano e que possam
contribuir para a complexificação das imagens “congeladas” e folclorizadas daquele
continente, algo tão incidente no Brasil. Ter conversado com Odete Semedo, e também
com Ana Paula Tavares só fez aumentar o desejo de seguir pelos circuitos abertos por
essas histórias conectadas.

Referências

ANDERSON, Benedict R. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a


difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
AUGEL, Moema Parente. O Desafio do Escombro: nação, identidades e pós-
colonialismo na literatura da Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed; 2001.
BARRY, Boubacar. Senegâmbia: O desafio da história regional. SEPHIS-Centro de
Estudos Afro-Asiáticos, Universidade Cândido Mendes. Amsterdan/Brasil, 2000.
HALL, Stuart. A identidade cultura na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HURSTON, Zora Neale. Seus Olhos viam Deus. Rio de Janeiro: Record, 2002.

11
(…) Os linguistas definem o crioulo como um sistema linguístico em que o léxico é tomado na sua
maioria de empréstimos da língua base, a língua do dominador, e as estruturas são resultantes dos
substratos das línguas africanas (AUGEL, 2007, p. 84).
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KALY, Alain Pascal . "O Islã e os poderes políticos. Das administrações francesas ao
Senegal pós-colonial". In: MACAGNO, Lorenzo; RIBEIRO, Fernando Rosa;
SCHERMANN, Patrícia. (Orgs.). Histórias conecatadas e dinâmicas pós-coloniais.
Curitiba: Fundação Araucária, 2008, p. 265-305.
WESSELING, L. Dividir para dominar: a partilha da África (1880-1914). Rio de
Janeiro: Editora UFRJ; Editora Revan, 1998.
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TRAÇOS CÉTICOS EM SINGULAR OCORRÊNCIA DE MACHADO DE


ASSIS
Carolina Natale Toti (PG-UEL)
“Não somente acho difícil ligar nossos atos uns aos outros,
mas ainda encontrar a qualidade essencial de cada um (...)”
Montaigne (1972, p. 487).
INTRODUÇÃO
Permitindo as mais diversas leituras em tempos e lugares distintos, a obra de
Machado de Assis transborda sentidos, sendo capaz de comportar mesmo as
interpretações mais antagônicas. Para levantar uma abordagem possível a respeito do
conto Singular Ocorrência – publicado no livro Histórias sem data (1884), três anos
depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas – consideramos a proposição de que a
chamada segunda fase de Machado – a qual pertence o conto referido – pode se
caracterizar por um “(...) desenvolvimento em direção ao pirronismo (...)” (MAIA
NETO, 2007, p. 22). Buscamos perceber em que medida Singular Ocorrência pode ser
compreendido a partir das considerações críticas do ponto de vista cético.
1 O pensamento cético1

Sexto Empírico considera o ceticismo enquanto uma análise anti-dogmática, um


exame de princípios estabilizados, de proposições que se querem verdadeiras sobre a
natureza ou essência das coisas. Não se trata de um conjunto de normas que regem a
disposição do cético. Para Sexto, o cético não adere nem mesmo ao próprio argumento,
“(...) devido a equipolência dos objetos e razões assim contrapostas (...)” (apud NETO,
2007, p.15). Considera que tanto o argumento que refuta quanto o que é refutado são
persuasivos, e por isso os abandona, não alcançando nenhuma espécie de conclusão –
nem que afirme certezas e nem que desminta certezas:
A trajetória do pirrônico difere da do dogmático pelo fato de sua
investigação (zetesis) não levá-lo a uma doutrina, mas a uma

1
* Em meados do século V a. C. já se elaborava, entre os gregos e os romanos, os traços principais do
ceticismo. Mas é no período helenístico Pirro de Elis faz do pensamento cético uma escola filosófica. O
radicalismo de Pirro rejeitava qualquer possibilidade do conhecimento alcançar conclusões inalteráveis.
Já nos séculos II e III, o pirronismo reaparece na Grécia com Enesidemo e Sexto Empírico. A obra deste
último, publicada no século XVI, em muito influenciou o pensamento renascentista e moderno –
destacando-se Montaigne e Pascal – escritores a partir dos quais “Machado de Assis travou contato com o
ceticismo (...)” (MAIA NETO, 2007, p. 20).
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equipolência. Incapaz de escolher entre uma doutrina e sua contrária,


o pirrônico suspende o juízo (epoche) e inesperadamente alcança a
tranqüilidade (ataraxia) que inicialmente pensava encontrar na
descoberta da verdade. (NETO, 2007, p. 16)
Dos vários argumentos céticos de Enesidemo, apresentados na obra de Sexto,
ressaltamos os mais pertinentes ao propósito deste artigo: o pirrônico enfatiza a
suscetibilidade dos órgãos sensoriais – estes variam não somente conforme as distinções
naturais de cada indivíduo, mas também conforme as diferentes situações em que se
encontram, as oscilações de temperamento, a idade, a disposição física e intelectual.
Outro argumento refere-se à transformação de tudo o que existe conforme épocas e
culturas distintas, sejam dogmas, costumes, ou estruturas sociais. A identidade das
coisas parece se caracterizar precisamente pela variação, pela incerteza: “(...) nada de
certo se pode estabelecer entre nós mesmos e o que se situa fora de nós, estando tanto o
juiz como o julgado em perpétua transformação e movimento.” (MONTAIGNE, 1972,
p. 281). Essa transformação permanente de todas as coisas invalida o estabelecimento
de princípios estáveis, de quaisquer juízos fixos e tampouco verdadeiros: “Nossa razão é
sempre iludida pela inconstância das aparências (...)” (PASCAL, 1999, p. 47). Estas
considerações não implicam uma suspensão generalizada do juízo. O cético não pode
negar a percepção de seus sentidos, as aparências das coisas, mas salienta os limites
sensoriais dos homens quando, pretensiosamente, tentam desvelar a essência dos seres.
Compreende que quaisquer afirmações não expressam um conhecimento sobre a
realidade, mas apenas constituem uma descrição das aparências – levando-se em conta a
falibilidade dos sentidos para essa descrição.
2 O narrador-personagem

Tudo o que o leitor sabe sobre o ocorrido é contado a partir de um único ponto de
vista: o do narrador que, num diálogo informal dado ao acaso numa esquina com um
amigo, resolve contar-lhe “uma coisa interessante” – um evento acontecido há mais de
uma década, recordado naquele momento pela passagem de Marocas. A narrativa é uma
rememoração de um fato já refletido. O foco restritivo do narrador, em primeira pessoa,
inserido num diálogo, enredado na estória que relembra, é o suficiente para condicionar
a versão do caso, apresentando uma perspectiva parcial e limitada, implicando
inevitavelmente “(...) uma relação problemática com a verdade.” (MAIA NETO, 2007,
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p. 27). Este dado é importante porque, se considerarmos que os problemas que


estruturam o conto tratam da impossibilidade de se explicar um fato, o foco restrito,
condicionado e enviesado do narrador é fundamental para a constituição desta
problemática. Tudo na estória parece arranjado para acentuar a opacidade do fato, para
recrudescer as condições que impossibilitam o conhecimento objetivo da situação,
restando apenas pontos de vista subjetivos, relativos à disposição momentânea de cada
um, como numa representação das restrições cognitivas humanas. Observaremos os
obstáculos que impedem o alcance de uma suposta verdade objetiva. O narrador conta
um caso de um amigo seu, o Andrade, num relacionamento extraconjugal com Marocas.
Interessado na circunstância que considera inexplicável, o narrador induz o leitor a
endossar seu ponto de vista.
2.1 “Maria de tal” e “Meio advogado, meio político”

O contato que o leitor tem com Marocas é extremamente precário, filtrado pela visão
do narrador que traça o perfil da moça. É interessante observar o rodeio de palavras
usado para apontar uma determinada condição que, uma vez considerada interdita pelo
narrador, assim como por toda a sociedade, necessita por isso mesmo de algum
circunlóquio: “Deve chamar-se hoje D. Maria de tal. Em 1860 florescia com o nome
familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá
excluindo as profissões e lá chegará.” (ASSIS, 2007, p. 204). Ele evita chamá-la de
prostituta. Usa de uma delicadeza um tanto irônica para se referir ao apelido que
normalmente as prostitutas adotam no trabalho; e ainda supõe o nome atual, que não
chega a ser um nome, mas antes a falta dele, próprio de uma mulher ordinária, de
família desconhecida.
O status social de Andrade é radicalmente distinto do de Marocas. Nascido em
Alagoas, de família abastada, chegou já casado ao Rio de Janeiro, em 1859. O narrador
conta que certo dia Andrade estava parado em frente a uma loja e, ao ver uma bela
mulher, se alvoroçou “(...) porque ele tinha em alto grau a paixão das mulheres.”
(ASSIS, 2007, p. 205). Essa moça era Marocas; ela se aproximou de Andrade e, sendo
analfabeta, “(...) envergonhada e a medo (...)” (ASSIS, 2007, p. 205) pediu a este que
lhe indicasse o local informado no papel que trazia consigo. Ele a orientou, ela
agradeceu e se foi. Na mesma noite, estavam no mesmo Ginásio para ver a Dama das
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Camélias: “Não lhe digo nada; no fim de quinze dias amavam-se loucamente.” (ASSIS,
2007, p. 205). Marocas passou a viver exclusivamente para o Andrade; abandonou os
clientes, só se interessava pelo amante e por mais nada. Este a ensinou a ler. Ao juízo do
narrador, ela aprendeu rápido, dentre outros motivos pelo “(...) gosto de obedecer a um
desejo dele, de lhe ser agradável...” (ASSIS, 2007, p. 206). Esta passagem, enfatizando
o prazer na submissão, além de deixar claro “(...) o próprio discurso estruturado nas
entranhas da classe social (...)” (RONCARI, 2000, p. 145), faz recordar as Memórias
Póstumas de Brás Cubas, mais precisamente o capítulo “Orgulho da Servilidade”, no
qual Quincas Borba explica, conforme sua filosofia humanitista, que os criados se
glorificam em servir ao senhor.
No dia de São João, Andrade se retira durante dois dias à Gávea para comemorar a
festa com sua família. Marocas ficará sozinha, como ela mesma disse, jantando com um
retrato de Andrade, relembrando a situação de Dama das Camélias. A esta imagem
especialmente deprimente traçada pela moça, segue-se outra muito significativa. Após
falar do comentário desolado de Marocas sobre o jantar com um retrato, o narrador
continua:
– Este dito ia-lhe rendendo um beijo; o Andrade chegou a inclinar-se;
ela, porém, vendo que eu estava ali, afastou-o delicadamente com a
mão./ – Gosto desse gesto./ – Ele não gostou menos. Pegou-lhe na
cabeça com ambas as mãos, e, paternalmente, pingou-lhe o beijo na
testa. Seguimos para a Gávea. (ASSIS, 2007, p. 206)
A admiração e o deleite sentidos pelos homens diante do pudor e do recato feminino
envolvem relações tradicionais de poder. O interlocutor afirma seu gosto pelo gesto
pudico da mulher antes mesmo que o narrador comente que Andrade também gostou. O
beijo paternal que se segue reforça a posição de domínio; e a saída imediata para a
Gávea, seguida pela conversa entusiasmada de Andrade com o narrador, deixa ver a
disparidade entre as situações dos amantes; ela, solitária, submissa e pobre, vendo o
homem por quem se apaixonou relegando-a para um plano inferior e saindo para
festejar e se fartar sossegadamente com a família oficial, gozando de seu status, de sua
esposa, filha e amigos. Decerto, o que Andrade esperava de Marocas era nada menos do
que resignação.
Dão-se os festejos; Andrade retorna e já no escritório, aparece Leandro, um homem
definido como “(...) reles e vadio. Vivia a explorar os amigos do antigo patrão.”
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(ASSIS, 2007, p. 207). Leandro queria dinheiro; o advogado lhe dá e, percebendo um


entusiasmo incomum no primeiro, pergunta o motivo. “O Leandro piscou os olhos e
lambeu os beiços: o Andrade, que dava o cavaco por anedotas eróticas, perguntou-lhe se
eram amores.” (ASSIS, 2007, p. 207). O primeiro confirma e começa a contar o que se
passou: na noite de São João, encontrou na rua uma moça que se aproximou dele e o
olhou “(...) com tal instância, que ele chegou a atrever-se um pouco; ela atreveu-se o
resto...” (ASSIS, 2007, p. 207). Ele faz comentários elogiosos sobre a moça e sua casa,
incentivando Andrade a conhecê-las. O Andrade demonstra indiferença e, diante disso,
Leandro insiste e lhe diz o endereço da casa. Tratava-se de Marocas.
2.2 “Tão atordoado, que muita coisa lhe escapou”

Andrade perde a razão, ficando completamente desnorteado “(...) não soube o que
fez nem o que disse durante os primeiros minutos, nem o que pensou nem o que sentiu.”
(ASSIS, 2007, p. 208). Até que consegue perguntar se Leandro dizia a verdade, “(...)
mas o outro advertiu que não tinha nenhuma necessidade de inventar semelhante coisa;
vendo, porém, o alvoroço do Andrade, pediu-lhe segredo, dizendo que ele, pela sua
parte, era discreto.” (ASSIS, 2007, p. 208). Será mesmo que Leandro “não tinha
necessidade de inventar”, essa “anedota erótica”? Não se poderia imaginar que o relato
não passou de algumas fantasias de um “pobre diabo”? O amante propõe então vinte
mil-réis a Leandro, para que este o acompanhe até a casa da moça e confesse diante dela
o que acabara de contar. Este aceita a proposta; ambos vão até a casa de Marocas;
Andrade percebe que ela empalidece ao ver o outro. “– ‘É esta senhora?’ perguntou ele.
– ‘Sim, senhor’, murmurou o Leandro (...)” (ASSIS, 2007, p. 208). O amante paga
imediatamente o “pobre diabo” e o manda sair.
A cena que se seguiu, foi breve, mas dramática. Não a soube
inteiramente, porque o próprio Andrade é que me contou tudo, e,
naturalmente, estava tão atordoado, que muita coisa lhe escapou. Ela
não confessou nada; mas estava fora de si (...). (ASSIS, 2007, p. 208)
Após esta “(...) verdade comprada por ‘vinte mil-réis’” (RONCARI, 2000, p. 150);
ao leitor é impossível saber o que realmente se passou. O narrador mesmo afirma não
saber, admite seu ponto de vista restrito, uma vez que nem o próprio Andrade soube,
“tão atordoado” que estava, “muita coisa lhe escapou”; e de Marocas, tão “fora de si”
quanto o amante, o leitor sabe apenas que “não confessou nada”. Este momento remete
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diretamente a um dos problemas levantados pelos céticos: a intervenção do


temperamento na capacidade dos sentidos. Como o juízo se forma somente a partir da
apreensão dos órgãos sensoriais, uma vez que a capacidade dos sentidos tem um limite,
e que a disposição destes varia e se conturba conforme os diversos estados físicos e
subjetivos, resulta daí que não há conhecimento objetivo sobre as coisas; há antes
representações relativas. Nesta passagem do conto, os estados subjetivos de Andrade e
Marocas são de tal forma levados ao limite, que a situação acaba por escapar até mesmo
à memória. É um momento em que tudo foge à razão; ninguém sabe o que se passou e
não há modos de sabê-lo. As opiniões acabam relativizadas. “Sexto Empírico observa
que o juízo varia em função de predisposições tais como ‘ódio ou amor... confiança ou
medo, tristeza ou alegria’” (MAIA NETO, 2007, p. 154). O narrador diz que Andrade
insultou Marocas e saiu, enquanto esta se atirou ao chão ameaçando se matar. Essa
atitude de Andrade supõe que ele estava convicto da traição. Mas ele não dispunha de
provas concretas do fato; apenas deixou-se guiar pela aparência pálida da amante
quando ela viu o Leandro, além é claro, da confissão deste. Este consentimento nas
aparências é outra das questões colocadas pelo ceticismo: o cético não nega o que seus
sentidos percebem, mas considera que os limites destes inviabilizam qualquer
conhecimento verdadeiro, seja sobre a aparência, seja especialmente sobre a essência.
Andrade viu Marocas empalidecer – a aparência indica uma hipótese, mas nada prova,
tanto que a perturbação do amante não termina aí; ele permanece conjeturando diversas
possibilidades que ora afirmam, ora negam o fato.
O narrador acredita na traição de Marocas: “(...) como duvidar, se ele tivera a
precaução de levar a prova até a evidência?” (ASSIS, 2007, p. 209). Enquanto que
Andrade se martiriza, insatisfeito com as aparências, tentando ultrapassá-las, na
expectativa de descobrir a verdade, hesitando transtornado entre inúmeras
possibilidades imagináveis. Esta agitação é o ponto de partida da trajetória pirrônica
(zetesis) – algo vivenciado também pelo dogmático, com a diferença de que o primeiro
não chega à verdade, enquanto o segundo julga encontrá-la, sendo por isto mesmo
chamado dogmático. (MAIA NETO, 2007, p. 16).
Do furor passou à duvida; chegou a imaginar que Marocas, com o fim
de o experimentar, inventara o artifício e pagara ao Leandro para vir
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dizer-lhe aquilo (...). E agarrado a esta inverossimilhança, tentava


fugir à realidade (...). (ASSIS, 2007, p. 209)
O que o narrador chama de realidade é apenas sua opinião. O que ele concebe como
“inverossimilhança”, é, nesse momento, a realidade de Andrade. As perspectivas
permanecem relativizadas. O narrador “cogitava na aventura, sem atinar com a
explicação.” (ASSIS, 2007, p. 209). O interlocutor interpreta o ato como “nostalgia da
lama”. Esta última explicação pressupõe uma noção tradicional de identidade, baseada
na constância, na permanência. Andrade havia regenerado Marocas, eximindo-a da
prostituição e do analfabetismo. Tudo parecia convergir para uma reabilitação moral: o
recato, a paixão sincera pelo amante, a resignação normal das mulheres; nada
presumiria uma traição, “(...) a não ser a comprovação mais uma vez da determinação
férrea de uma crença arcaica que fundava o preconceito: a de que ninguém foge à sua
origem (...)” (RONCARI, 2000, p. 148). É interessante perceber que o narrador, que
somente “cogitava na aventura, sem atinar com a explicação”, discorda da “nostalgia da
lama”. Voltaremos a isto.
Marocas, desolada, desaparece. Sua criada, apreensiva, procura Andrade para tentar
encontrar a moça. Muito se procurou, mas nenhum vestígio apareceu. A última
referência do narrador às conjeturas perturbadas (zetesis) de Andrade, não indica que o
amante chegou a alguma conclusão, mas sim que as opiniões variavam conforme o
estado emocional: “(...) depois tornava a afirmar a aventura, e provava-me que era
verdadeira, com o mesmo ardor que na véspera tentara provar que era falsa; o que ele
queria era acomodar a realidade ao sentimento da ocasião.” (ASSIS, 2007, p. 210). Aqui
o narrador afirma, do mesmo modo que o ceticismo, a debilidade da razão ante as
variações do temperamento, percebendo o quanto o estado subjetivo do amante estava
preponderando sobre qualquer tentativa de julgamento objetivo. Os sentimentos
controlavam a realidade – conforme eles se alteravam, a realidade assumia uma nova
feição. Não há realidade, as perspectivas sobre uma mesma situação se relativizam não
somente de pessoa para pessoa, mas, como no caso de Andrade, de sentimento para
sentimento.
Após receberem notícias sobre o possível paradeiro de Marocas, Andrade e o
narrador a descobrem em uma hospedaria. O interlocutor pergunta se houve explicação;
o narrador diz: “– Coisa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um
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naufrágio, não quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique. A


reconciliação fez-se depressa.” (ASSIS, 2007, p. 210). Talvez seja possível conjeturar
que Andrade sofre aqui uma crise cética, pois parece percorrer ao menos um esboço da
trajetória pirrônica: primeiro fica perturbado entre várias hipóteses (zetesis); depois, sem
chegar a nenhuma conclusão, encontra Marocas e suspende todas as conjeturas
(epoche), abandonando suas aflições (ataraxia).
Andrade comprou uma casa para Marocas e teve um filho com a moça. A criança
“(...) morreu de dois anos” (ASSIS, 2007, p. 210) e o pai faleceu depois. A mãe por sua
vez se reputou viúva. O narrador indaga a opinião do interlocutor sobre o fato. Este,
assumindo uma opinião comum, preconceituosa e dogmática, aposta na “nostalgia da
lama”. O narrador discorda, afirmando que “(...) nunca a Marocas descera até os
Leandros.” (ASSIS, 2007, p. 211). O outro lhe pergunta então por que ela o fizera
naquela noite. A explicação do narrador se refere precisamente ao porque ter acontecido
logo com o Leandro: “Era um homem que ela supunha separado, por um abismo, de
todas as suas relações pessoais; daí a confiança (...)” (ASSIS, 2007, p. 211). Mas em
relação à causa, à razão do ato, ele segue cogitando “na aventura, sem atinar com a
explicação”. Deste modo, pode-se dizer que o narrador, apesar de acreditar na traição de
Marocas, parece traçar alguns contornos gerais do pensamento cético: primeiro porque
ele se limita a cogitar, a refletir, a imaginar que se trata de uma “aventura”, sem
“atinar”, isto é, sem encontrar pelo conhecimento, pelo juízo, alguma “explicação”,
deixando desta forma de julgar. Depois porque afirma os limites cognitivos de Andrade,
percebendo como este construía a realidade conforme as oscilações dos sentimentos.
Assim, ele não só reconhece os limites do próprio conhecimento, abdicando do juízo e
se limitando a cogitar, como também problematiza a objetividade do julgamento de
Andrade (sujeito), da mesma forma que a inteligibilidade de Marocas (objeto).
Marocas parece representar sobretudo a condição de que “(...) o que há de mais
profundo em nós é no fim de contas a opinião dos outros (...)” (CANDIDO, 1970, p. 27)
– sendo esta mais uma das considerações céticas, uma vez que aponta para o problema
da percepção subjetiva “dos outros” e da opacidade do “que há de mais profundo em
nós”. A subjetividade da percepção de Andrade somada à opacidade de Marocas, resulta
na redução da moça a uma mera opinião. Marocas traiu o Andrade? Se sim, por quê? O
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que pensava naquele momento? O que sentia? Quem sabe a verdade sobre a atitude de
Marocas? Andrade, que até perdeu o rumo e não chegou a nenhuma conclusão? Leandro
que foi pago para confirmar? O narrador que cogitava na aventura? O interlocutor que
acreditava na “nostalgia da lama”? Trata-se da intricada discussão, também levantada
pelos céticos, sobre a impossibilidade de se ultrapassar as aparências, de se arrancar as
máscaras e alcançar a face, a essência. Estes problemas que buscam descobrir a verdade
sobre o que aconteceu, a essência do ato de Marocas, se acham cercados pelos limites
do conhecimento.
Podemos talvez conjeturar que, em Singular Ocorrência, o estranhamento dos
personagens diante do ato de Marocas decorre antes de uma moral patriarcal que
percebe seus costumes desestabilizados – esperava-se naturalmente a resignação da
moça; mas ela não se resignou – aparece assim uma fenda, uma quebra no que até então
era considerado natural (resignação). De súbito percebe-se que o natural, ou mais
precisamente, o que é concebido como natural, não passa de um costume, sujeito a
transgressões, desvios e variações. Esse conto parece mostrar que, uma vez rompido um
dogma – a moral patriarcal estabelecida – o que se suscita é uma gestação, um esboço
de uma reflexão cética, pois é justamente com a variação dos dogmas que o ceticismo se
preocupa. O problema da natureza enquanto costume remete ao pensamento anti-
dogmático de Pascal: “Temo que tal natureza não seja ela própria nada além de um
primeiro hábito (...)” (PASCAL, 1999, p. 57). Se a natureza é um hábito, se o que se
acreditava permanente se mostra incerto e volúvel, percebemos, assim como Montaigne,
a instabilidade, a incerteza, a falta de fundamento fixo ou o vazio próprio da existência:
“(...) nada de certo se pode estabelecer entre nós mesmos e o que se situa fora de nós,
estando tanto o juiz como o julgado em perpétua transformação e movimento.” (grifo
nosso), o que mais uma vez afirma os limites do conhecimento: “Nossa razão é sempre
iludida pela inconstância das aparências (...)”. O ato de Marocas não se deixa alcançar
para qualquer explicação, do mesmo modo que toda a existência, em sua instabilidade,
nos escapa e não se deixa fixar para qualquer apreensão.
2.3 Uma possibilidade

O conto nos mostra uma perspectiva dogmática que, vendo suas verdades
estilhaçadas, fica perplexa, não consegue explicar e estranha a situação. Poderíamos
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aqui, muito brevemente – apenas para suscitar um problema que se aprofundado


renderia outro artigo – conjeturar uma possível perspectiva anti-dogmática sobre o ato
de Marocas, tendo por base o pensamento de Montaigne.
Ante de tudo, é preciso ter em mente a compreensão de Montaigne sobre a falta de
fundamento, o vazio da existência, dada sua instabilidade e indeterminação. Pelo
narrador sabemos muito pouco sobre a condição da Marocas, mas o suficiente para
perceber que se tratava da escória da sociedade: pobre, analfabeta, prostituída, sozinha,
sem família. O que certamente não faltava em sua vida era a instabilidade, a ausência, o
nada, o vazio, “(...) vazio que o quadro do amante na parede não preenchia.”
(RONCARI, 2000, p. 152). Marocas nada possuía além de seu próprio corpo. Ora, se
ela de fato, naquela noite em que o nada predominava, estando absolutamente só,
inquieta e insatisfeita, entregou-se a um homem qualquer, não fez nada além do que fala
Starobinski, referindo-se ao pensamento de Montaigne:
Esse nada é ao menos nosso; é nosso corpo, atravessado de prazeres e
de alegrias, atacado de doenças e de dores. Sabores se oferecem a nós
continuamente, e seríamos tolos se não os aceitássemos e não os
experimentássemos. (...). O consentimento ao nada da existência nos
permite gozar de toda presença que nos aparece (...) (STAROBINSKI,
1992, p. 86).
Se não podemos estabilizar, apreender e controlar o curso da existência – se este nos
escapa a todo instante e nada nos deixa, indiferente às nossas necessidades, o melhor a
fazer é nos entregarmos ao que temos: o corpo, o sensível, o aparente. “A lição do
ceticismo, para ele [Montaigne], é precisamente o retorno às aparências.”
(STAROBINSKI, 1992, p. 86). Se Marocas realmente traiu, ela tinha bons motivos para
isso. Essa moça vivenciava todas as desgraças de ser mulher e pobre, inserida numa
sociedade patriarcal, com tudo o que isto acarreta de vulnerabilidade, de instabilidade e
de vazio; e, sobretudo, nada possuía além do próprio corpo. Se “O consentimento ao
nada da existência nos permite gozar de toda presença que nos aparece (...)”, podemos
supor que talvez Marocas tenha consentido em sua própria nulidade, entregando-se ao
deleite do que lhe apareceu. E afinal, por que não poderia ter ela “em alto grau a
paixão” dos homens?
A admissão de que se dispõe unicamente da aparência, ligada ao abandono de toda
pretensão de alcançar a essência, culmina, em Montaigne, nesta “lição” da entrega às
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aparências. Deste modo, deixa-se de buscar uma face atrás da máscara, ou melhor, as
noções de máscara/face se perdem, já que se admite que o que temos é somente a
aparência:
(...) uma das grandes novidades do Machado de Assis é a ausência de
uma cara atrás da máscara. (...) as aparências satisfazem. Isso conta na
questão da referência aos moralistas dos séculos XVII e XVIII. (...)
No limite, a máscara poderia desaparecer, e apareceria a verdade. Em
Machado de Assis, não. Existem relações mais sofridas ou mais
felizes com as aparências, mas estas não se suprimem. Em lugar do
desmascaramento, uma contabilidade imparcial dos prazeres e
desprazeres das diferentes relações com as aparências, o que era e é
moderníssimo.” (SCHWARZ, 1982, p. 334-5).
Desta perspectiva, um pensamento cético certamente não se preocuparia em
desmascarar Marocas, porque não presume nenhuma verdade encoberta passível de
revelação. Talvez apenas admitisse o aparente: um corpo entregue às vãs possibilidades
de si mesmo. É possível que o ceticismo seja percebido nesse conto enquanto uma
reflexão anti-dogmática, uma demonstração da falência e da insuficiência das
pretensões dos dogmas de uma moral, além de uma representação dos limites do
conhecimento e da vanidade da nossa condição.

REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural,
1978.
______. Singular Ocorrência. In:______50 contos de Machado de Assis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In:______Vários escritos. São
Paulo: duas cidades, 1970.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
MAIA NETO, José Raimundo. O Ceticismo na Obra de Machado de Assis. São Paulo:
Annablume, 2007.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Abril Cultural, 1999.
RONCARI, Luiz. Ficção e história: o espelho transparente de Machado de Assis. In:
Teresa: revista de Literatura Brasileira, [1/1]; São Paulo, p.139-154, 2000.
SCHWARZ, Roberto. Mesa-redonda. In: BOSI, Alfredo (Org.). Machado de Assis. São
Paulo: Ática, 1982. (Coleção Escritores Brasileiros: Antologia e Estudos, 1).
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STAROBINSKI, Jean. Montaigne em Movimento. São Paulo: Companhia das Letras,


1992.
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O DISCURSO AUTOBIOGRÁFICO DE AGATHA CHRISTIE

Caroline Wilt Araújo (G-UEPG)


Fábio Augusto Steyer (UEPG)

Introdução

Este trabalho é parte de um projeto de pesquisa e extensão que pretende,


entre outros estudos, analisar as marcas de Agatha Christie.
Quando pensamos em mulheres que conseguiram conquistar o espaço da
literatura policial, com toda certeza nos vem em mente o nome da incrível Rainha
do Crime, Agatha Christie. Ela ficou conhecida mundialmente por sua perspicácia
e genialidade na criação de livros com alto nível de mistério, tramas intrigantes
que levam os leitores, desde os mais jovens até os seguidores fanáticos, a cogitar
inúmeras possibilidades para desvendar os tão bem elaborados crimes de seus
romances.
Ela, mais do que qualquer outra mulher, ganhou muito dinheiro com o
crime. Seus editores perderam as contas da vendagem de seus livros, tamanho foi
seu sucesso. Além das obras publicadas com o sobrenome usual Christie,
produziu ainda peças com o pseudônimo de Mary Westmacott, além de escrever
narrativas sobre suas inúmeras viagens com o nome de casada, Agatha Christie
Mallowan.
Em geral os críticos são indiferentes aos romances de Mary
Westmacott. Na verdade, se ela fosse uma novelista romântica, o
mundo nunca teria ouvido falar de Agatha Christie. Mas quanto a
esses livros, Dame Agatha acentuou: “não são em absoluto
trabalho”, e não são considerados como parte de seu assunto mais
sério: assassinato (FEINMAN, 1975, p.127).

1. Memória anunciada
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Não somente suas obras de caráter policial, algumas peças de teatro, mas
também outra obra não menos importante, tomou tempo e dedicação desta famosa
romancista: sua autobiografia. Foram aproximadamente quinze anos (1950 –
1975) de dedicação às suas memórias, que incluem desde momentos importantes
de sua infância, sua relação com seus pais, detalhes sobre o comportamento das
empregadas que trabalhavam na casa em que vivia até a separação do seu
primeiro marido. Demorou todos esses anos, razão que ela mesma explica:
“parece o momento certo de terminar. Porque, no que diz respeito à vida, não
existe nada mais a dizer” (CHRISTIE, 1979, p.9).
Sobre a escolha de suas memórias, Agatha diz que “são apenas momentos
que nos chegam do passado – e entre eles imensos espaços vazios, de meses ou
até de anos” (CHRISTIE, 1979, p. 13).
Agatha May Clarissa Miller, nome de solteira. conhecida mundialmente
como Agatha Christie, nasceu em 15 de setembro de 1890, em Torquay, no sul da
Inglaterra. Por muitos anos suas lembranças decorrem do tempo em que viveu em
Ashfield. Lá foi onde sua vida começou, como a própria autora comenta ao final
da obra:
Sempre, na minha memória , volto a Ashfield.
“Ó ma chére maison, mon vid, mon gîte
Le passé l’abite… Ó, ma chère maison...” 1
Quanto Ashfield significa para mim! Quase nunca sonho com
Greenway nem com Winterbrook. É sempre com Ashfield, o velho
cenário familiar, onde nossa vida primeiro decorreu, mesmo que
nos sonhos as pessoas sejam do presente (CHRISTIE, 1979,
p.557).

Agatha, nesta obra, conta alguns momentos marcantes de sua vida. No


entanto, não se sente na obrigação de contar exatamente todos. Algumas
passagens que com certeza os seus leitores esperavam como o fato de seu
desaparecimento, por exemplo, não são citadas.

1
Minha querida casa, meu ninho, meu abrigo
O passado a habita... minha querida casa! (Em francês no texto).
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A autora conta-nos vários gostos seus, sendo alguns presentes somente na


infância, outros que a acompanharam durante toda sua vida, como, por exemplo, o
fato de ser apaixonada por casas. Durante seu segundo casamento, ela e o marido
Max Mallowan compartilharam dessa paixão.
Estávamos sempre escolhendo lugares para casas. Isso, devido
principalmente a mim, porque sempre tive paixão pelas casas –
houve até uma altura de minha vida, não muito distante do início
da Segunda Guerra Mundial, em que eu era orgulhosa proprietária
de oito casas. Viciara-me encontrar espeluncas meio arruinadas,
em Londres, e em fazer alterações estruturais, decorações e
acabamentos nessas casas, que depois mobiliava. (...)Fora um
passatempo gostoso enquanto durou, e ainda gosto de passar junto
de qualquer das minhas casas para ver como estão conservadas e
para imaginar que espécie de gente mora nelas (CHRISTIE, 1979,
p.446).

Apesar de conhecer a forma como tradicionalmente um livro de memórias é


escrito, recusa-se ser regida sistematicamente pela cronologia. Interrompe e
desloca-se pelo tempo, fazendo mais uma vez o que a tornou famosa: surpreender
na construção de textos. “Não fui limitada nem pelo tempo, nem pelo espaço. Fui
capaz de demorar onde queria, de pular para frente e para trás, conforme
desejasse” (CHRISTIE, 1979, p.556).
No decorrer da obra, Agatha comenta sobre algumas de suas construções
literárias, como exemplo, a obra O Assassinato de Roger Ackroyd. Não poderia
deixar esse aspecto de lado, afinal o que mais seus leitores procuram é entender e
penetrar mais e mais na sua atmosfera de criação.
É claro que muita gente diz que O Assassinato de Roger Ackroyd é
trapaceado; se lerem com atenção, porém, verão que estão
enganados. Pequenos lapsos de tempo, que tem que existir, estão
habilmente escondidos numa frase ambígua, e o Dr. Sheppard, ao
escrever a história, comprazeu-se em contar a verdade, se bem que
não toda a verdade (CHRISTIE, 1979, p.357).

Em certo ponto da vida de Agatha, as situações se complicaram um pouco,


perdera sua mãe, que fora sua grande amiga, seu 1º marido, Archie a deixará por
estar interessado em outra e ainda tinham juntos uma filha, o que tornava a
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situação ainda mais delicada. Em meio às dificuldades financeiras, e crise de


depressão, seu cunhado, Campbell Christie, sugeriu que ela reunisse 12 histórias
que tivessem sido publicadas no The Sketch, para formar um livro. Foi então
lançado Os Quatro Grandes, em 1927, livro que se tornou muito popular. O livro
foi um cano de escape para o turbilhão de acontecimentos em que se encontrava.
Pode-se dizer, de maneira geral, que esta autobiografia é uma exaltação à
vida, um reconhecimento agradável sobre todas as pessoas que passaram por sua
história e uma demonstração de gratidão por ter passado tudo o que passou. Na
sua retrospectiva analisa tanto os eventos bons quanto os ruins como uma incrível
forma de aprendizagem, de experiência, de evolução. Nesse período da sua vida e
de sua carreira, ela, que sempre foi muito reservada e evitou inúmeras vezes falar
de sua vida pessoal, decide revelar mais de si ao seu público.

2. Condição autobiográfica

A palavra ‘autobiografia’ foi importada da Inglaterra no início do


século XIX e empregada em dois sentidos próximos, mas mesmo
assim diferentes. O primeiro sentido (o que escolhi) foi proposto
por Larousse em 1886: ‘Vida de um indivíduo escrito por ele
mesmo (LEJUENE, 2008, p.53).

A autobiografia se dá quando o “eu” do narrador pronuncia-se na obra


identificando-se com o protagonista da história. Surge aí a narrativa de memórias,
de confissão. Na obra em questão, ocorre o devassamento da subjetividade da
escritora, uma vez que é ela quem narra todos os acontecimentos e se mostra, se
desnuda de si mesma. Essa abertura quanto aos momentos de sua história gera
uma relação de certa cumplicidade entre ela e o leitor. É na criação dessa obra que
a autora viaja em suas memórias e confessa ao leitor suas experiências, seus
medos, suas frustrações, explora sentimentos talvez há muito esquecidos.
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Portanto, aqui estamos todas nós, a pequena Agatha Miller e a


Agatha Miller já crescida e a Agatha Christie e a Agatha
Mallowan, seguindo nosso caminho – para onde?Isso nós não
sabemos – o que, no entanto, torna a vida bastante interessante
(CHRISTIE, 1979, p.13).

Philippe Lejeune, em seu livro O pacto autobiográfico (2008), expõe a


questão do pacto que se estabelece entre o autor, o narrador e o personagem. É a
afirmação de identidade que se expressa no texto, identidade conferida através da
fala do ‘eu’. Em nenhum momento, Agatha esconde a condição biográfica de sua
escrita. “O pacto autobiográfico é a afirmação, no texto, dessa identidade,
remetendo, em última instancia, ao nome do autor, escrito na capa do livro”
(LEJEUNE, 2008, p.26).
Em seu trabalho, também esclarece que a “primeira pessoa” sempre se define
em dois níveis de articulação, o da referência e o do enunciado. O primeiro
caracterizado pelos pronomes pessoais (eu/tu) que possuem referência somente no
ato de enunciação. Já o segundo, tendo os pronomes pessoais como encarregados
de marcar a primeira pessoa não somente em identidade do sujeito da enunciação
como também do sujeito do enunciado.
Dominique Maingueneau é outro nome que favorece na pesquisa quanto à
análise do discurso autobiográfico da Agatha Christie, pois quando se trata de
discurso literário ele assinala vários pontos sobre como o discurso se dá. Um
desses pontos é a questão sobre a pessoa, o escritor e o inscritor, que, segundo os
apontamentos de Maingueneau:
A denominação ‘a pessoa’ refere-se a um indivíduo dotado de um
estado civil, de uma vida privada.’O escritor’ designa o autor que
define uma trajetória na instituição literária. Quanto ao neologismo
‘inscritor’, ele submerge ao mesmo tempo as formas de
subjetividade enunciativa da cena de fala implicada pelo texto
(aquilo que vamos chamar adiante de ‘cenografia’) e a cena
imposta pelo gênero do discurso: romancista, dramaturgo,
contista... o ‘inscritor’ é, com efeito, tanto enunciador de um texto
específico como, queira ou não, o ministro da instituição literária,
que confere sentido aos contratos implicados pelas cenas genéricas
e que delas se faz o garante (MAINGUENEAU, 2006, p. 136).
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O autor esclarece que estes três elementos não aparecem de forma


hierarquizada, nem rigidamente seguem uma ordem cronológica. Garante que
nenhuma delas vem primeiro, como um pivô. São elementos que caminham
juntos, indissociáveis, sustentam-se mutuamente.
O texto de Agatha coloca em cena a pessoa, mas de qualquer forma não oculta
a escritora nem muito menos o inscritor, pois demonstra suas capacidades em
matéria de construção literária. Essa junção entre os três elementos garante,
segundo Maingueneau, “ a condição de todo pacto autobiográfico”
(MAINGUENEAU, 2006, p.139). Ela não somente relata passagens de sua vida,
como também expõe seus sentimentos, suas impressões, reflexões sobre vários
assuntos, citações de vários escritores que a influenciaram, como o famosíssimo
romancista inglês Charles Dickens.
Levando mais adiante suas análises, Maingueneau observa dois tipos de
regime dentro da literatura: delocutivo e elocutivo, no primeiro, “o autor se oculta
diante dos mundos que instaura” (p.139), e no segundo, “‘o inscritor’, ‘o escritor’
e ‘a pessoa’, conjuntamente mobilizados deslizam uns nos outros”
(MAINGUENEAU, 2006, p.139).
Certamente sabe-se que não existe discurso sem que haja interação. A
interação pode ocorrer de várias formas dentro da autobiografia. Seja através de
cartas, de um diário, ou como, neste caso, na forma de relatos de memória.
Possenti traz a reflexão sobre essa forma de interação. “Não há certamente,
discurso sem interação. O que pode variar são as marcas dessa interação, a
depender de coisas como o canal utilizado (telefone ou carta, por exemplo), a
modalidade de (escrita ou oral), o assunto (um problema pessoal ou um ensaio
sobre semântica), etc” (POSSENTI, 1988, p. 80). No caso, a interação se dá através
da escrita das memórias da autora.
Yves Reuter, em seu livro, A análise da narrativa – O texto, a ficção e a
narração, propõe a definição de narrador autodiegético e a da perspectiva
passando pelo narrador. Caracteriza essa relação como típica das autobiografias,
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dos relatos, das confissões. O narrador conta sua vida, revela-se


retrospectivamente. Fica claro que possui um conhecimento muito profundo sobre
passagens anteriores de sua vida “e pode, portanto, prever quando fala dos seus
cinco, dez ou quinze anos, o que acontecerá mais tarde” (REUTER, 2002, p.81).

Em compensação, essa instância narrativa não nos permite saber


com certeza aquilo que se passa (e que se passou) na cabeça de
outras personagens e restringe as mudanças de lugares ao trajeto de
vida da personagem narrada (REUTER, 2002, p.82).

3. Limitação nas percepções

A autobiografia é a busca pelo tempo perdido e a escrita nesse momento se


faz de suma importância pelo fato de conseguir estabelecer as devidas conexões,
tornando essa busca orientada.
Na autobiografia, os eventos acabam ficando limitados, pois tudo que
acontece fica somente sob a perspectiva de quem narra, da personagem principal.
As visões dos acontecimentos ficam limitadas para o leitor. Não se sabe quais são
as posições das personagens a não ser pela única forma declarada. O narrador na
autobiografia, diferentemente de outros modelos de narrador, não consegue
penetrar nas percepções dos demais personagens.
O gênero memória, entre os gêneros autobiográficos, é o que mais permite a
liberdade imaginativa. Lejeune observa que os limites são imprecisos, muito
subjetivos, pois o que esta sendo narrado é a história de uma personalidade. O ‘eu’
ao se descrever, falando de suas percepções acaba por fazer uma leitura de
mundo.
Logo no início, de acordo com o prefácio e com a introdução, tem-se a
sensação da narração ocorrida em tempo presente, data de 2 de abril de 1950. Em
alguns trechos o leitor sente-se próximo do instante em que essa autobiografia
começa a ser escrita. Agatha descreve a casa onde se encontra, em Nimrud,
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Iraque. Consegue transmitir a atmosfera do ambiente em que suas idéias começam


a fluir.
Estou sentada diante de uma mesa de madeira razoavelmente firme
e ao meu lado tenho uma caixa de lata, pintada em cores alegres,
que os árabes costumam levar consigo quando viajam. É dentro
dela que me proponho guardar minhas páginas datilografadas à
medida que meu trabalho progredir (CHRISTIE, 1979, p. 12).

No ensaio Autobiografias e diários (1997), Marcello D. Mathias aborda a


construção autobiográfica, memórias, diários. Importando aqui a autobiografia,
são válidas algumas das características propostas por ele a esse gênero, como o
fato de que uma obra nesse estilo procura estabelecer a linha visível de tempo –
começo, meio e fim. Ressalta que o fechamento desta se dá por meio de uma
conclusão, um balanceamento de todos os fatos ocorridos durante a trajetória
descrita. A obra se constrói de forma retrospectiva, através de uma profunda
viagem ao passado, da reconstituição de fatos esquecidos, somente existindo de
forma significativa a partir do momento em que há um leitor.
No epílogo, Agatha ciente dessas questões acerca da construção
autobiográfica expõe sua forma de encarar essa produção:
Escrevendo-a, é como se viajasse. Não tanto uma viagem
retrospectiva através do passado, mas uma viagem para o futuro -
começando no princípio de tudo, a partir do Eu que inicia sua
viagem para diante, através do tempo (CHRSITIE, 1979, p. 556).

Conclusão
Agatha Christie é um incrível fenômeno, sem dúvidas, dona de uma das
mentes femininas mais incríveis que já existiram. Muito dela foi criticado,
rebaixado. Porém, mesmo depois de sua morte, com todos esses anos após o
lançamento de seu primeiro livro, ela ainda é digna de pesquisa e investigação,
pois ainda surpreende e encanta os leitores há várias décadas.
A escritora Margery Allingham observa:

A impressão que nos deixa é a de que ela é uma mulher de


extraordinária habilidade, que poderia ter feito bem qualquer coisa
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que escolhesse. O que fez foi divertir mais pessoas durante mais
horas e ao mesmo tempo, do que qualquer outro escritor de sua
geração. De uma forma geral, hoje, nessa época é difícil pensar em
outra obra que possa ter sido mais útil (FEINMAN, 1975, p.128).

Com essa obra ela completa o ciclo de suas criações. Pode-se dizer que ela
cumpriu tudo o que uma autora do seu nível poderia cumprir.
Lendo sua autobiografia, fica-se com a sensação de uma autora completa. O
leitor penetra na atmosfera do seu mundo, compreende a personalidade da autora.
É um pacto de aproximação. Cumpre com êxito a exposição de suas memórias,
que mesmo fugindo totalmente daquilo pela qual ficou famosa, o crime, consegue
envolver quem a lê.
Fica claro que ela não tentou, nesta obra, ficcionalizar a experiência vivida.
Exercitou muito bem sua autoconsciência, realizando o desejo de construir sua
história de vida a partir das suas experiências vividas.
Outro elemento que confere maior veracidade na narrativa de suas memórias
é o uso de imagens. Conforme a autora relata suas vivências e vai descrevendo as
personagens que compuseram sua história de vida, aparecem ao longo da obra
retratos destas, desde o cachorro de seu irmão Monty, até o retrato de seus pais, de
seus irmãos, de sua casa em Bagdá, entre outras. Essas imagens garantem ao leitor
uma proximidade muito maior com as histórias contadas. É de fato uma exposição
intensa da autora, pois milhares de leitores podem dessa forma conferir parte de
sua existência.
A análise permite afirmar que a obra tem sim caráter autobiográfico,
apresentando várias marcas que a definem como tal.
A obra termina com um tom de despedida, uma afirmação de consciência
sobre o curso da vida.

Estou pronta, agora, a aceitar a morte. Fui singularmente feliz.


Tenho junto de mim meu marido, minha filha, meu neto, meu
bondoso genro – as pessoas que constituem meu mundo. Ainda não
atingi completamente o momento em que serei um embaraço total
para todos eles (CHRISTIE, 1979, p. 556).
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E ainda em algumas de suas reflexões finalizadoras:


Até lá, enquanto ainda espero confortavelmente na antecâmara da
Morte, divirto-me. Apesar de cada ano que passa eu ter que cortar
algo da lista de prazeres que me restam. Terminaram já meus
longos passeios e, infelizmente também, meus banhos de mar;
terminaram os filés, as maçãs e as amoras (dificuldades dentárias)
e ler letra miúda (CHRISTIE, 1979, p.557).

Referências

CHRISTIE, Agatha. Autobiografia. Trad. TRIGUEIROS, Maria Helena.


Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1979.
FEINMAN, Jefrey. O mundo misterioso de Agatha Christie. Trad. SANTOS, Eneida
Vieira. Rio de Janeiro. Record, 1975..
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Trad. Jovita M.
G. Noronha e Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008. Org. Jovita M.
G. Noronha.
MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. Trad. SOBRAL, Adail
São Paulo: Contexto, 2006.
MATHIAS, Marcello Duarte. Autobiografias e diários. In: Revista Colóquio/Letras.
Ensaio, n.º 43/144, Jan. 1997, p. 41-62.
POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo. Martins Fontes, 1988.
REUTER, Yves. A análise da narrativa – O texto, a ficção e a narração. Trad.
PONTES, Mario. São Paulo. Difel, 2002.
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O ROMANCE NATURALISTA BRASILEIRO: ENTRE O FOLHETIM E A CIÊNCIA

Cassio Dandoro Castilho Ferreira (PG-UFPR)

“Vamos à História dos subúrbios.” (Dom Casmurro, Machado de Assis, Capítulo CXLVIII)

Esta frase, proferida quando Bento Santiago termina o seu relato em Dom Casmurro
(1899), de Machado de Assis, aponta para um embate entre duas vertentes da ficção brasileira
daquele período. Ora uma narração voltada para o Realismo, tal qual a praticada com maestria
por Machado de Assis; ora para o Naturalismo, a tal história dos subúrbios apontada como outro
caminho por Bento Santiago. Apesar de alguns críticos insistirem erroneamente em apontar que
tal divisão (Realismo/ Naturalismo) não existe dentro de nossa prosa de ficção, o que nos cabe
aqui notar é que enquanto esteve vigente na literatura brasileira, o Naturalismo não foi a única
escola a reinar soberana dentro do inóspito terreno de nossa prosa ficcional.
Nosso Naturalismo 1 vai, grosso modo, de 1881, com a publicação de O Mulato, de
Aluísio Azevedo, até aproximadamente 1902, com a publicação de Canaan, de Graça Aranha 2.
De todos os romancistas do período, poucos sobrevivem até os nossos dias. Nomes como os de
Antônio de Oliveira, Farias Neves Sobrinho, Rodolfo Teófilo, Marques de Carvalho, Horácio de
Carvalho, Pardal Mallet e Valentim Magalhães passam despercebidos para o leitor atual, e
muitas vezes nem são mencionados nas histórias da literatura 3. Permanecem em nossas letras:

1
Neste artigo, o termo Naturalismo refere-se unicamente a escola vigente em nossas letras no final do século XIX.
Não serão aqui considerados os seus “eternos retornos”, tal e qual proposto por Flora Sussekind em Tal Brasil, qual
romance? (1984).
2
É claro que essas datas são apenas demonstrativas. Uso aqui as datas propostas por Lúcia Miguel-Pereira, em seu
Prosa de Ficção. A própria crítica chega a apontar outras datas, como por exemplo, o surgimento da escola em
1879, com O Coronel Sangrado, de Inglês de Sousa, e o surgimento de um livro tipicamente naturalista em 1911, A
Luta, de Carmen Dolores.
3
Apenas como dado demonstrativo, em História concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, apenas o nome
de quatro destes autores citados são mencionados: Horácio de Carvalho, Rodolfo Teófilo, Valentim Magalhães e
Pardal Mallet. Horácio de Carvalho aparece em uma nota de rodapé, Valentim Magalhães tem seu nome
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Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha e Júlio Ribeiro. Este último, inclusive, por apenas um
romance naturalista, A Carne (1888).
É difícil precisar o porquê desse apagamento de nossas páginas de história literária desses
autores e obras, porém em alguns casos isto se deve em partes a serem eles naturalistas puros.
Basta lembrarmo-nos de Rodolfo Teófilo, e seu A Fome (1890), no qual, segundo Lúcia Miguel-
Pereira, seus “excessos delirantes” e “a preocupação científica ou pseudo-científica representou
um pesado fator anti-artístico.” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, 133). Ou seja, falhou, pois seguiu
muito a risca a receita naturalista, o que em certo sentido gerou um excesso prejudicial para sua
obra. Outros, é claro, tem seus nomes apagados, possivelmente por não apresentarem romance de
fôlego. Pardal Mallet, por exemplo, falha sensivelmente em seu O Hóspede (1887). Como já
apontou Massaud Moisés:

Ao proibir que os protagonistas consumassem os desejos acalentados desde que


Marcondes entrou na casa de Pedro, Pardal Mallet procurava fugir ao lugar-comum
naturalista. O desvio, se atesta conscientemente autonomia perante o clichê, um empenho
de avistar ângulos novos de equação burguesa em face do casamento, – frustra o leitor,
menos pela ausência de cenas eróticas, repetidas ad nauseam nos romances da época, do
que pelo fato de o clímax, cuidadosamente preparado, a fim de torná-lo efeito de uma
causa, não deflagrar: como um tiro que negasse, deixa a impressão de um ficcionista a
querer escapar, a todo o transe, do modismo, mas a culminar num vazio que beira o
ridículo. (MOISÉS, 1996, 135).

Apenas por esse excerto da crítica feita por Massaud Moisés podemos perceber o quanto
os romances naturalistas, e principalmente os de menor fôlego, permanecem até hoje relegados a
um segundo plano dentro de nossa literatura. O que talvez boa parte da crítica não percebeu
durante todo esse tempo é o fato de que em nosso país o Naturalismo teria que se modificar caso
quisesse frutificar. E foi este justamente o seu erro: tentando inovar, trazendo para nossas letras
as ideias de Emile Zola e de seu discípulo português Eça de Queiroz, viram-se os romancistas
brasileiros aferrados a muitos dos ideais da escola anterior, e só aí encontravam uma base para
sua produção naturalista. Por outra chave, segundo Lúcia Miguel-Pereira: “No fundo, eram

mencionado de relance e devido a sua carreira como poeta e crítico literário, e Pardal Mallet é mencionado, por ser
um dos personagens ficcionalizados em A Conquista (1898), de Coelho Netto.
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românticos que se ignoravam, mas que nem por isso deformavam menos a realidade. Uns
românticos mais pedantes, sem a ingenuidade dos outros.” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, 126).
Neste artigo pretendo, ainda que preliminarmente, analisar como se deu a presença de
muitas das características típicas do romance romântico, e principalmente o de caráter
folhetinesco, dentro dos romances naturalistas publicados no Brasil no século XIX. Será dada
maior atenção ao romance O Mulato (1881), de Aluísio Azevedo, devido à importância do autor
para o nosso romance naturalista e por ser esse o romance que inaugura a escola em nossas
letras. Servirá este estudo preliminar como base para um estudo de maior fôlego, ainda em fase
de produção.

1. “É uma escrava que chora a teus pés”: o romântico folhetinesco em O Mulato, de Aluísio
Azevedo.

No final da década de 1880, quando Aluísio Azevedo vende os direitos de publicação de


suas obras para a Livraria Garnier, seu segundo romance, O Mulato (1881), passa por um
processo de reescrita que muda completamente boa parte do texto original. Nessa reescrita,
Aluísio consegue retirar parte dos elementos folhetinescos presentes na primeira versão, em uma
tentativa clara de enquadrar seu romance dentro da concepção estética do Naturalismo. Porém,
como vamos perceber, essa eliminação não é total. A própria crítica afirma que basta
recordarmos a estrutura do romance para perceber que ele é muito menos naturalista do que se
supõe. Lúcia Miguel-Pereira, por exemplo, afirma que “lido hoje, deixa claramente à mostra, sob
os arremates naturalistas, o arcabouço romântico. O escritor, que publicara pouco antes Uma
lágrima de mulher, cheio do mais desbragado pieguismo, traia ainda com a antiga a nova escola
que desposava.” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, 140).
Um dos elementos da estrutura onde podemos perceber a presença desse “arcabouço
romântico” é o fato de Raimundo praticamente desconhecer suas origens. Apenas após insistir
muito a seu tio que conte o porquê não lhe concede a mão da filha, é informado que é filho de
uma escrava, a louca que o atacou em São Braz. O desconhecimento das origens era um fato que
já vinha sendo trabalhado em muitos dos romances folhetins, como por exemplo, em O Filho do
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Pescador (1843), de Teixeira e Souza 4. Não só temos essa questão de origens como também
temos a questão da orfandade. Tal e qual aparecera em seu primeiro romance, Uma Lágrima de
Mulher (1879), onde Rosalina perde a mãe e é praticamente criada pelo pai e pela boa e religiosa
criada Ângela, em O Mulato, a coitadinha Ana Rosa (para utilizar um adjetivo do próprio
romance) é criada pelo pai e pela avó Dona Maria Bárbara, que ao contrário de Ângela, que era a
favor do romance de Rosalina com Miguel, se colocará contra o relacionamento da neta com o
mulato Raimundo.
Outro ponto que aparece em O Mulato, e que também podemos perceber com frequência
no Romantismo, é a personificação da natureza 5. Em uma das cenas, Raimundo se depara com
um canto misterioso que não consegue identificar, pensando se tratar de uma mulher que canta.
Porém, descobre que o triste canto que escuta é o de um pássaro cantando sobre uma árvore
fronteira a casa. Pássaro negro que acabara de aparecer no seu sonho, cantando a finados, e que
não o deixava dormir.
Mais adiante, em outra cena, surge outro elemento constantemente presente em folhetins:
o sobrenatural. Raimundo depara-se com um espectro em frente à rede onde repousa e resolve
segui-lo. Descobre que se trata de uma “preta alta, cadavérica, andrajosa e esquelética”, segue o
fantasma, mas acaba por perdê-la de vista. Só mais adiante somos informados por Cancela,
morador da fazenda, que se trata de uma escrava fugida, como muitas que perambulavam por lá.
E só em alguns capítulos adiante volta a aparecer o espectro, dessa vez impedindo que Raimundo
deixe as ruínas da casa onde viveu na infância. A identidade dela é revelada apenas quando
Manuel Pescada informa que Raimundo é filho de uma escrava. Apesar de o narrador tentar criar
um falso clima de mistério, a identidade da figura cadavérica já pode ser percebida muito antes.
Quando se agarra em seu pescoço e impede-o de sair, podemos facilmente perceber que se trata
de sua mãe, que já sabíamos que havia sido abandonada pelo pai de Raimundo e desaparecido.

4
No capítulo 18 de O Filho do pescador (1843), de Teixeira e Sousa, é quebrado o mistério das origens de
Emiliano: “- Teu filho, que ainda vive, cujo primeiro nome fora Hilano, e mudado no crisma para Emiliano, aqui o
tens...
Isto mostrando-lhe o jovem caçador.
- Meu filho!
- Minha mãe! ...” (SOUSA, 1997, 124).
5
Todos os dois capítulos iniciais de Inocência (1872), de Visconde de Taunay são emblemáticos neste sentido.
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A cena em que surge a figura cadavérica de Domingas faz-nos lembrar de muitas das
passagens de Vicentina (1853), romance de Joaquim Manoel de Macedo. Neste, uma figura
semelhante habita uma ermida abandonada no Rio de Janeiro. O narrador assim descreve a
personagem:

A figura da mísera doida tinha alguma cousa de fantástico e de romanesco, observada


principalmente naquela hora do crepúsculo e naquela solidão da montanha: alta, toda
vestida de branco, o seu vestido largo, sem enfeites e apenas levemente apertado na
cintura, assemelhava-se a uma mortalha; seus braços nús caiam esquecidamente e como
paralíticos; seus cabelos negros, bastos e ondeantes, soltos ao acaso, desciam como uma
nuvem sinistra até quase chegar-lhe aos pés; (...).” (MACEDO, 1944, 18).

O falso clima de mistério aparece também em outros pontos de O Mulato. No final do


capítulo IV, quando Raimundo chega ao seu quarto, somos informados que “a pouca distância
d’ali, alguem velava, pensando nelle." (AZEVEDO, 1909, 103). Fica óbvio para o leitor que se
trata de Ana Rosa. Porém, o autor suspende essa informação e encerra o capítulo, retomando a
história apenas no início do capítulo seguinte, mantendo o interesse do leitor pela mesma.
Encontramos o mesmo clima de aparente mistério em A Moreninha (1844), de Joaquim Manoel
de Macedo. No momento em que Augusto revela à dona Ana a história dos breves, sente-se
sendo vigiado por duas ocasiões, interrompendo seu relato:

Augusto ia respirar um instante, quando pela segunda vez lhe pareceu ouvir ruído na
porta da gruta.
- Alguém nos escuta, disse ele, como da outra vez.
- É talvez uma nova ilusão... respondeu a digna hóspeda.
- Não, minha senhora; eu ouvi distintamente a bulha de uma pessoa que corre, tornou
Augusto, dirigindo-se à entrada da gruta e observando ao derredor dela.” (MACEDO,
1987, 65-66).

Fica claro para o leitor que é Carolina quem escuta a conversa de Augusto e Ana, porém,
isso só será revelado pelo narrador próximo ao desfecho do romance.
As cenas excessivamente românticas também estão presentes em O Mulato. Uma das
mais notáveis acontece quando Raimundo vai se despedir de Ana Rosa pela última vez, e ela
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convida-o para que entre em seu quarto. Vamos retomar a cena, para depois fazermos algumas
considerações:

E Raymundo procurava arrancar-se das mãos de Anna Rosa. Ella prendeu-se-lhe ao


pescoço, e, com a cabeça derreada para traz, os cabelos soltos e dependurados,
perguntou-lhe, cravando-lhe de perto o olhar:
- O que ha de sincero na tua carta?
- Tudo, meu amor, mas por que a leste antes de eu ter partido?
- Então, sou tua! Olha, saiamos d’aqui! já! fujamos! Leve-me para onde quizeres! Faze de
mim o que entenderes!
E deixou cahir o rosto sobre o peito delle, e abraçou-o estreitamente.(...)
E Anna Rosa cahio de joelhos, sem se desgarrar do corpo delle.
- E’ uma escrava que chora a teus pés! é uma desgraçada que precisa da tua compaixão!
Sou tua! aqui me tens, meu senhor, ama-me! Não me abandones!
E soluçou, espalmando o rosto com as mãos. (...)
Ana Rosa bebeu-lhe, bocca a bocca, estas ultimas palavras.
- Entretanto... proseguio elle, vencido de todo, já não tenho coragem para deixar-te!... - E
abraçavam-se – Como poderei, de hoje em diante, viver sem ti, minha amiga, minha
esposa, minha vida? ... Dize! falla! aconselha-me por piedade, porque eu já não sei
pensar!...
Um novo assovio de bordo veio interrompel-o.
- Não ouves, Anna Rosa? ... O vapor está chamando...
- Deixa-o ir, meu bem! tu ficas...
E os dous estreitaram-se, fechados nos braços um do outro, unidos os labios em mudo e
nupcial delirio de um primeiro amor. (AZEVEDO, 1909, 290-295).

Acredito que apenas a leitura desta cena serviria para apontar o quanto de romântico
existe em O Mulato. Cabe colocar aqui a afirmação de Araripe Júnior, importante crítico do
século XIX e que acompanhou de perto o surgimento do Naturalismo no Brasil, a respeito do
romance O Mulato: “Ali há páginas tão suaves, tão doces, tão cheias de claridade rosicler,
alencariana, que sou levado a crer que o mergulho dado pelo poeta nas águas encapeladas do
Estige da nova escola foi apenas à superfície.” (ARARIPE JÚNIOR, 1958, 120).
A caracterização das personagens também é bastante romântica, e Raimundo é o melhor
exemplo disso. Lúcia Miguel-Pereira afirma ironicamente que “Joaquim Manoel de Macedo não
pôs maiores requintes na descrição dos seus ternos mancebos.” (MIGUEL-PEREIRA, 1950,
142). Na descrição da personagem presente no capítulo III do romance, podemos ver as fortes
tintas românticas utilizadas por Aluísio Azevedo para compô-lo:
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Raymundo tinha vinte e seis annos, e seria um typo acabado de brasileiro, se não foram
os grandes olhos azues, que puxara do pae. Cabellos muito pretos, lustrosos e crespos; tez
morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode;
estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais
caracteristica da sua physionomia eram os olhos – grandes, ramalhudos, cheios de
sombras azues; pestanas ericadas e negras, palpebras de um roxo vaporoso e humido; as
sombrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nankim, faziam sobresahir a frescura
da epiderme, que, no logar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de
uma aquarella sobre papel de arroz. (AZEVEDO, 1909, 48).

Descrição excessivamente romântica, que rompe o limite da caracterização física e se


exacerba nos atos da personagem no decorrer do romance. Características romântico-
folhetinescas como essas brevemente enumeradas aqui não são uma exclusividade de O Mulato.
Toda a prosa naturalista do século XIX concentra em sua estrutura uma grande carga de
romantismo, muitas vezes disfarçados com cenas naturalistas, exageradas de cientificismo.
Passemos agora a analisar como aparece o romântico-folhetinesco em outros romances do nosso
Naturalismo.

2. “A melodia duma harpa eólia tangida por mãos de serafins” 6: o romântico romance
naturalista brasileiro

Grande parte das características romântico-folhetinescas, apontadas no romance O


Mulato, não são exclusivas dele em nossa prosa naturalista. Muitas reaparecem diluídas em meio
a cenas onde abundam um cientificismo exagerado. Porém, penso que seria interessante
verificarmos passagens de outros romances naturalistas nos quais surgem diferentes
características românticas. Fato curioso de ser percebido é que muitas vezes esses romances
apresentam características românticas e depois quebram com as impressões do leitor, inserindo
as características mais naturalistas. Exemplo disso está em A Normalista (1893), de Adolfo
Caminha. Zuza, por quem Maria do Carmo é perdidamente apaixonada, envia uma carta para ela,
com ares extremamente românticos:

6
CAMINHA, 1952, 45.
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“Minha senhora” dizia o futuro bacharel, muito respeitoso. “Tomo a liberdade de me


dirigir a V. Exa. confiado na sua infinita bondade, nessa bondade que se revela em seus
esplêndidos olhos de madona e na brandura meiga de sua voz cujo timbre faz-me lembrar
tôda a melodia duma harpa eólia tangida por mãos de serafins... Tomo esta liberdade para
dizer-lhe simplesmente que a amo! e que êste amor só podia ser inspirado pela
incomparável luz de seu olhar e pela música sentimental de sua voz... Amo-a deveras...
Só me resta esperar que V. Exa. aceite êste amor como tributo sincero de um coração
avassalado por sua beleza encantadora, e então serei o mais feliz dos homens.
(CAMINHA, 1952, 44-45).

Maria do Carmo logo se encanta pelo jovem estudante e encena na mente sua vida de
casada. Desenha-se o ideal da vida romântica:

Imaginava-se ao lado do Zuza, numa casinha muito bem mobiliada, com cortinas de
cretone e sala de jantar e um viveiro de pássaros. – Êle, de chambre e gorro sentado na
escrivaninha a fazer versos, feliz, despreocupado; ela com um robe-de-chambre todo
branco, fitinhas na frente de alto a baixo, cabelo solto, a ler o último romance da moda,
recostada na espreguiçadeira, sem filhos... Que vida! (CAMINHA, 1952, 46).

Porém, o romantismo aparente e a paixão que Zuza sente por Maria do Carmo quebram-
se repentinamente em um único capítulo da narrativa. Passa assim o herói a ser quase um vilão,
mais interessado em seu bem-estar pessoal e em sua posição frente à sociedade, do que em casar-
se com a normalista:

Depois veio-lhe à mente a normalista, a cearense do Trilho do Ferro. Muito bonitinha, é


verdade, mas uma tôla que não sabia tratar com rapazes educados. Lá por ser pobre não;
mas parecia-lhe tão atrasadinha, assim como apalermada, indiferente a tudo. Além disto
um nome de matuta – Maria do Carmo. Ainda se fosse Maria Luiza, mas Maria do
Carmo!... (CAMINHA, 1952, 102).

Seus ideais sobre o casamento são outros, bastante diversos dos de Maria do Carmo. Para
ele, casamento está intimamente relacionado com uma convenção social, que fornece um status,
uma figuração perante a sociedade:
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Quanto às mulheres de vida alegre, detestava-as; tinha gasto muito dinheiro, precisava
casar, mas casar com uma menina ingênua e pobre, porque é nas classes pobres que se
encontra mais vergonha e menos bandalheira. Ora, Maria do Carmo parecia-lhe uma
criatura simples, sem essa tendência fatal das mulheres modernas para o adultério, uma
menina que até chorava na aula simplesmente por não ter respondido a uma pergunta do
professor! Uma rapariga assim era um caso esporádico, uma verdadeira exceção no meio
de uma sociedade roída por quanto vício há no mundo. Ia concluir o curso, e, quando
voltasse ao Ceará, pensaria seriamente no caso. A Maria do Carmo estava mesmo a
calhar: pobrezinha, mas inocente... (CAMINHA, 1952, 96).

Maria do Carmo é na realidade para Zuza um tipo de mulher com a qual deseja se casar,
não uma mulher pela qual está perdidamente apaixonado. Quando seu possível caso com a
normalista ganha as páginas da imprensa local, e passa a ser assunto central das discussões e
fofocas feitas pela sociedade cearense, Zuza decide ir embora. E conclui:

É verdade que o seu amor não era lá para que se fizesse um amor extraordinário, uma
dessas paixões incendiárias que decidem do futuro de um cristão, mas, tinha a sua
simpatia por âqueles olhinhos ternos como os de uma santa, lá isso tinha... (...) Com que
facilidade a Maria do Carmo, aliás, uma das mais comportadas, entregava-lhe a face para
beijar e escrevia-lhe cartinhas perfumadas, cheias de juras e protestos de amor! Se fôsse
outro, até já podia ter feito uma asneira... Arrependia-se agora de não ter aproveitado os
melhores momentos... Grandíssimo calouro! podia ter desfrutado a valer. (CAMINHA,
1952, 182).

Desiste Zuza da normalista e quem irá se aproveitar da situação é o padrinho da moça,


João da Mata, consumando um fato que já vinha se insinuando ao leitor desde o início da
narrativa. Começa o martírio de Maria do Carmo que, apesar de todo o sofrimento, termina o
romance enquadrando-se na sociedade cearense, casando-se com o alferes Coutinho. Início
bastante romântico, final naturalista.
O romance de Júlio Ribeiro, A Carne (1888), também apresenta algo bastante semelhante
ao visto em A Normalista. Porém, o sentido aqui é inverso: um longo romance naturalista, com
um final bastante romântico. Após longos capítulos de um cientificismo puro, regados com fortes
cenas naturalistas, o romance se aproxima de seu final com a partida de Lenita para São Paulo. A
heroína da história está grávida de Manuel Barbosa, sua grande paixão, por quem cedeu aos
impulsos da carne. Mas termina por casar-se com um tipo que lhe parecia odioso, tal como a Ana
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Rosa de O Mulato, e se insere desta maneira na alta sociedade paulista. Porém, o par romântico
Lenita e Manuel Barbosa permanece na fazenda onde vivia sua paixão com ela. Desolado e
abandonado por seu grande amor, passa a fazer uso de injeções de morfina para conseguir
dormir. Até a natureza parece perder a vivacidade de outrora: “Parecia-lhe morta a natureza: a
paisagem figurava-se-lhe um cadáver, vasto, enorme.” (RIBEIRO, 1972, 168). Não se alimenta
mais direito, sente vontade de chorar: “Queria chorar; o pranto, julgava, far-lhe-ia bem, seria um
desabafo: impossível. Um ardor seco, febril, queimava-lhe os olhos.” (RIBEIRO, 1972, 168). Por
fim, envenena-se com curare. Suicida-se, pois “sem ela a vida se lhe tornara impossível...”
(RIBEIRO, 1972, 180). Morre assim o herói, e a ideia final que nos parece deixar o romance é
justamente a de que sem amor não há vida, tal como constatado por Manuel Barbosa.

Conclusão

Carece o Naturalismo, sem dúvida alguma, de uma avaliação mais abrangente dentro de
nossa literatura. Quase sempre é avaliado tendo em vista a ideia da importação de ideias e fica
assim perdido entre duas ideias contrárias: ou é louvado pelo que tem de semelhante aos
romances de Zola e de Eça de Queirós, ou combatido pelo que tem de diferente. Como afirmado
no início deste artigo, não percebe boa parte da crítica que entre nós o Naturalismo teria que se
modificar caso quisesse sobreviver. Um crítico de excelente visão, como Araripe Júnior, já havia
percebido isso em 1888. Apontava o quanto teria que se modificar o Naturalismo, opondo um
naturalismo quente (o brasileiro), a um naturalismo decadente (francês). E ironiza: “Emigrando
para o Brasil, o naturalismo não podia deixar de passar por uma modificação profunda. Zola,
neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para adaptar-se ao
sentimento do real, aqui.” (ARARIPE JÚNIOR, 1978, 126).
Mesmo nosso maior crítico literário, Antonio Candido, não consegue avaliar
positivamente essa mudança pela qual o Naturalismo teve que passar em nossas letras:

Daí a dupla fidelidade dos nossos romancistas – atentos por um lado à realidade local, por
outro à moda francesa e portuguesa. Fidelidade dilacerada, por isso mesmo difícil, que
poderia ter prejudicado a constituição de uma verdadeira continuidade literária entre nós,
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já que cada escritor e cada geração tendiam a recomeçar a experiência por conta
própria, sob o influxo da última novidade ultramarina, como se viu principalmente no
caso do Naturalismo.
Significativa, com efeito, é a circunstância do romance post-romântico haver renegado o
trabalho admirável de Alencar, não falando nas duas excelentes realizações isoladas que
foram as Memórias de um Sargento de Milícias e Inocência, para inspirar-se em Zola e
Eça de Queirós. A conseqüência foi que os nossos naturalistas, com a exceção de Raul
Pompéia e Adolfo Caminha, caíram nos mesmos erros dos românticos (sobretudo Aluísio
Azevedo) sem aproveitar a sua lição. (CANDIDO, 1981, 117). (Grifos meus).

Antonio Candido ao afirmar que cada geração tende a recomeçar por conta própria uma
escola, parece isolar o Naturalismo de nosso Romantismo, afirmação confirmada ao colocar que
nossos naturalistas renegaram o trabalho de José de Alencar. Como vimos ao longo deste artigo,
nosso Naturalismo foi sim devedor da escola anterior. Como aponta Nelson Werneck Sodré:

É interessante reler qualquer dos poucos livros que o naturalismo nos deixou e verificar,
quase página a página, como o licor romântico escorre de quase tôdas, como está presente
na forma e no conteúdo, como se apresenta congraçado ao naturalismo, como lhe disfarça
as arestas, como ameniza os seus contôrnos. (SODRÉ, 1965, 230).

Mesmo que Nelson Werneck Sodré, no mesmo parágrafo, avalie como um atraso de
nossa literatura esta dependência romântica do Naturalismo, e como sendo o Romantismo a
escola que “atendia às parcas exigências artísticas de nossa gente” (SODRÉ, 1965, 230), parece
interessante apontar o excerto anterior como um primeiro passo na percepção de como se deu o
Naturalismo entre nós. Mesmo que brevemente, foi esta a tentativa ao longo deste artigo.
Pensando a tradição de nosso romance naturalista a partir de nomes menores e maiores, podemos
avaliar com mais clareza a importância desta escola no Brasil. Escola que permanece como algo
recorrente em nossas letras, chegando até a ficção dos anos 30 e os romances dos anos 70. Que
esse artigo tenha sido uma primeira e frutificante tentativa de se pensar de outra maneira o
Naturalismo dentro da literatura brasileira.

Referências

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1977.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Araripe Júnior: teoria, crítica e história literária. Rio de
Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978.
AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro Editor, 1909.
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Adolfo. Tentação. No país dos ianques. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza: Academia
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CAMINHA, Adolfo. A Normalista. São Paulo: Jornal dos Livros, 1952.
CAMINHA, Adolfo. Tentação. No país dos ianques. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza:
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MACEDO, Joaquim Manoel de. A Moreninha. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
MACEDO, Joaquim Manoel de. Vicentina. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1944.
MALLET, Pardal. Hóspede. São Paulo: Editora Três, 1974.
MIGUEL- PEREIRA, Lúcia. História da Literatura Brasileira- Volume XII, Prosa de Ficção (de
1870 a 1920). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1950.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira – Realismo. São Paulo: Cultrix, 1983.
PACHECO, João. O Realismo. A Literatura Brasileira. Volume III. São Paulo: Cultrix, 1971.
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SODRÉ, Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual Romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
TAUNAY, Visconde de. Innocencia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1915.
TEÓFILO, Rodolfo. A fome. Violação. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza: Academia
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A (AUTO) BIOGRAFIA NO LIVRO VIDA-VIDA: MEMÓRIAS, DE


MARIA HELENA CARDOSO

Catarina Cristina Laboure da Silva (G-UFSJ)


Suely da Fonseca Quintana (UFSJ)

Lançado em 1973, Vida-vida: memórias é o segundo livro de Maria Helena


Cardoso. Nascida em Diamantina, ela é irmã do escritor Lúcio Cardoso. Seu primeiro
livro, Por onde andou meu coração, é uma narrativa me memórias tradicional em que
Maria Helena rememora a infância e juventude em Minas até chegar a sua vida adulta.
Em Vida-vida, a autora constrói uma narrativa carregada de subjetividade em que a
solidão e a morte são temas centrais. Isso porque ela narra a partir da convivência que
teve com o irmão doente, Lúcio Cardoso, que sofrera um acidente vascular cerebral e
faleceu depois de alguns anos aos cuidados da irmã.
Dividido em duas partes, a narrativa se organiza de forma desordenada: a
narradora intercala entre alguns fatos de sua vida, a história de saúde frágil do irmão e
algumas reflexões filosóficas em parágrafos aparentemente desconexos. Como se as
lembranças lhe viessem à mente e ela colocasse no papel sem preocupação com a
linearidade temporal ou a ligação de um assunto ao outro, uma espécie de diário não
datado.
O presente trabalho surge na tentativa de compreender, a partir da marcante
presença do irmão na vida da autora, de que maneira os gêneros biografia e
autobiografia se cruzam na medida em que há um entrelaçamento das vidas de ambos na
narrativa.
Ao se pensar em biografia e autobiografia nos vem à mente as clássicas
definições de dicionário. Para Aurélio Buarque de Holanda Ferreira a primeira é “a
história de uma vida”, enquanto a última é a “vida de um indivíduo escrita por ele
mesmo”. Estes são conceitos simples e práticos em termos de classificação genérica.
Contudo, o que a primeira vista parece bem resolvido se complica ao adentrarmos no
plano narrativo. Há uma linha tênue na distinção desses dois gêneros tão fronteiriços.
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O crítico francês Philippe Lejeune, em seu livro O pacto autobiográfico, se


empenha na tentativa de definir o termo autobiografia e esmiuçar, esclarecendo ou não,
a “problemática do gênero”. Ele define a autobiografia como: “narrativa retrospectiva
em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história
individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14).
Narrativa esta que é hierárquica, pois deve focar principalmente a história de uma
pessoa, mas não exclui que outros indivíduos, a história e política tenham espaço.
O ponto principal do pensamento do estudioso, e que ele vai desenvolver ao
longo de suas reflexões até constituir o pacto, é a relação identitária entre autor,
narrador e personagem que é obrigatória quando se trata de autobiografia. A pessoa que
fala deve ser a mesma de quem se fala. Para tanto, o nome próprio é de fundamental
importância, uma vez que quem enuncia um discurso tem de se identificar, o enunciador
deve ter um nome. De acordo com Lejeune:
É nesse nome que se resume toda a existência do que chamamos de
autor: única marca no texto de uma realidade extratextual
indubitável, remetendo a uma pessoa real, que solicita, dessa forma,
que lhe seja, em última instância, atribuída a responsabilidade da
enunciação de todo texto escrito.[...] Inscrito, a um só tempo, no
texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles (LEJEUNE,
2008, p.23).
É a partir dessa noção de identidade que Lejeune tenta distinguir biografia de
autobiografia. Primeiramente, ele atenta para o fato de que os dois gêneros são
referenciais. Ambos se propõem a dizer a verdade e podem ser submetidos a uma
verificação. Dessa assertiva, o crítico fala sobre a “semelhança” – relação entre o
modelo (extratextual) e o personagem. Ela está ligada à fidelidade, à veracidade do fato
narrado com o vivido. Todavia, se um texto aparenta ser sobre o autor, mas este não
assume a identidade ou não a confirma não temos uma autobiografia (seria um romance
autobiográfico). Diante disso, vemos que o primeiro aspecto que vai ajudar na
classificação das memórias ou autobiografias, segundo Lejeune, é a identidade assumida
entre autor, narrador e personagem.
Na biografia há uma relação de identidade entre o modelo e o personagem,
guiada pela semelhança entre ambos. Essa semelhança é que vai “fundamentar a
identidade” do protagonista com o seu modelo real. Neste gênero, portanto, o aspecto
primordial é a semelhança.
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É claro que Lejeune não exclui a semelhança da autobiografia, afinal trata-se de


um texto referente a uma realidade. Contudo, não seria obrigatório alcançar a
semelhança em seu todo. Na autobiografia, consistiria na tentativa de:
Restringir a verdade ao possível (a verdade tal qual me parece,
levando-se em conta os inevitáveis esquecimentos, erros, deformações
involuntárias etc.) e em demarcar explicitamente o campo ao qual o
juramento se aplica (a verdade sobre tal aspecto de minha vida, sem
me comprometer sobre tal outro aspecto) (LEJEUNE, 2008, p.37).
A natureza referencial de busca da verdade aproxima muito os dois gêneros. Há,
entretanto, uma hierarquização: na biografia a semelhança vem em primeiro lugar ao
passo que na autobiografia a identidade é primordial e a semelhança fica em segundo
plano. Essa é a oposição fundamental entre os dois gêneros para Lejeune.
Essa identidade primordial é que vai constituir a natureza do pacto
autobiográfico. Para o estudioso francês, a relação identitária entre autor, narrador e
personagem – que se organiza através de um nome próprio comum entre ambos – vai
gerar um contrato de leitura. Isso porque o autor se compromete com o leitor ao
informá-lo de que se trata de uma autobiografia – o que vai engendrar um certo tipo de
leitura específico.
Diferentemente de Lejeune, Bakhtin (1992) não faz uma distinção tão categórica
entre biografia e autobiografia. Para ele, há evidentemente uma diferença, porém “não
se situa no plano de valores da orientação da consciência” (BAKHTIN, 1992, p.165).
Esta deve ser ultrapassada pelo biógrafo; os dados biográficos são apenas informações
que tem de ser agrupadas de modo que a construção narrativa ganhe caráter de arte. Por
isso, tanto na biografia como na autobiografia é necessário que se transcenda à
consciência para a criação artística. Desse modo, Bakhtin coloca que: “entendo por
biografia ou autobiografia (narrativa de uma vida) uma forma tão imediata quanto possível, e
que me seja transcendente, mediante a qual posso objetivar meu eu e minha vida num plano
artístico” (BALHTIN, 1992, p.165).
Para o crítico russo, diferente da relação de nome a que se refere Lejeune, ainda
quando há a coincidência de que biógrafo e biografado sejam a mesma pessoa, dentro
do todo artístico se mantém a distinção entre autor e herói. Teríamos então duas
perguntas nessa relação: “Quem sou?” “Como me represento a mim mesmo?”
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(BAKHTIN, 1992, p 165). O primeiro questionamento cabe ao autor/narrador, enquanto o


segundo ao personagem/herói.
Diante disso, Bakhtin acredita que o biógrafo é
o outro possível, cujo domínio sobre mim na vida admito com a maior
boa vontade, que se encontra ao meu lado quando me olho no espelho,
quando sonho com a glória, quando reconstruo uma vida exterior para
mim; é o outro possível que penetrou em minha consciência e que
com freqüência me governa a conduta, o juízo de valor e que, na
visão que tenho de mim, vem colocar-se ao lado de meu eu-para-
mim; é o outro instalado em minha consciência (BAKHTIN, 1992,
p.166).
Este outro dentro da consciência pode ser as vozes de personagens da minha
vida que me contaram histórias sobre mim, e estas se internalizaram de tal modo que se
alojaram em mim como sendo minhas memórias. Contudo, este outro pode ser também
o narrador ou o personagem. Isso porque numa autobiografia o narrador tem certo
distanciamento dos fatos vividos. Aquele sobre quem ele fala já não é o mesmo que
fala, é a representação de um “eu” que já não é. Por essa razão, há dentro do todo
artístico, mesmo que se trate de autobiografia ou memórias, uma distinção entre o
autor/narrador e o herói.
O narrador é esse outro que conduz a vida do herói, contando sua história, mas
também lhe aplicando seu juízo de valores. O narrador tem “autoridade” sobre o
personagem.
O herói, entretanto, não está só. Ele participa do mundo dos outros. Está inserido
em uma família, uma sociedade. Bakhtin atenta que o narrador para ganhar o status de
herói deve tomar parte na própria vida em que os outros são personagens-heróis.
Este herói dentro de uma família nos remete ao tipo de biografia que Bakhtin
nomeia sócio-doméstica. Neste tipo biográfico, o herói não é como os heróis
românticos, grandes homens da história. O herói aqui é situado num meio social. Não há
aventuras, o que predomina “é o elemento descritivo – o apego às coisas e pessoas
comuns que valorizam a uniformidade da vida de dão-lhe conteúdo” (BAKHTIN, 1992,
p.175). A biografia é então a narrativa do cotidiano. O narrador é mais interiorizado e
basicamente ama, observa e narra sem participar de grandes acontecimentos. Quanto à
atuação do herói, Bakhtin pontua que
O próprio herói-narrador é representado do interior, de um modo igual
ao que vivemos o mundo de nosso devaneio e de nossas recordações,
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onde figuramos como herói, um herói pouco assimilado aos outros


que o rodeiam, com a diferença de que o narrador (distinguindo-se
nisto do outro) está situado num plano interior – ainda que a distinção
dos planos seja normalmente muito nítida -, parece situar-se bem na
fronteira da narração: ora ele está incorporado a ela representando o
herói biográfico, ora tende a coincidir com o autor (o portador da
forma), ora aproxima-se do sujeito da confissão (BAKHTIN, 1992,
p.176).
Percebemos então como Lejeune e Bakhtin tratam a questão dos gêneros
biográficos de forma diferenciada. Ainda vale ressaltar como o estudioso russo entende
a relação autor/herói:
O autor, claro, como um elemento constitutivo da obra de arte, jamais
coincide com o herói:eles são dois, sem entrar todavia numa relação
de oposição, já que o contextode seus respectivos valores é da mesma
natureza; o portador da unidade da vida – o herói -, e o portador da
unidade da forma – o autor –pertencem ambos a um mesmo mundo de
valores. O autor, como portador da unidade formal acabada, não tem
de superar a resistência do herói no nível do sentido da vida (ético-
cognitivo), o herói em sua vida encontra-se sob o domínio do autor -
outro potencial (BAKHTIN, 1992, p.178).
Daí, na biografia ou autobiografia o todo artístico de Bakhtin se diferenciar da
relação identitária que propõe Lejeune. Este mais preocupado com o texto e o que o
constitui como gênero biográfico; enquanto o primeiro tenta dar conta de como o “eu”
ou os vários “eus” se apresentam e representam no texto, a partir da criação artística
estabelecida pela relação autor/narrador e herói.
As duas formas como esses estudiosos entendem o gênero biográfico são
importantes na nossa tentativa de compreender como se desenvolve o livro de Maria
Helena Cardoso nesse sentido. Intitulado Vida-vida: memória, a autora narra suas
lembranças a partir da convivência com o irmão doente. Além disso, com a velhice ela
apresenta, e, às vezes, reflete seus anseios com relação à solidão e à morte – temas que a
perseguem durante toda narrativa. Isso intercalando entre momentos introspectivos em
que questiona a sim mesma e as suas crenças, e as lembranças de alguns passeios,
viagens ou encontro com amigos.
Partimos, então, da hipótese de que há um entrelaçamento de autobiografia e
biografia em Vida-vida. Mas, primeiro, por que autobiografia?
Entendemos e chamamos memórias e autobiografia neste trabalho como sendo a
mesma coisa, uma vez que acreditamos que a primeira seja um dos vários tipos
autobiográficos.
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O termo também se aplica tanto no sentido que Lejeune propôs quanto no


bakhtiniano. Quanto ao primeiro, há a relação identitária obrigatória que o crítico
francês acredita que o gênero implica. Temos, e isso é confirmado pelo nome na capa
do livro, uma autora que assume a responsabilidade do que ali está escrito. Uma autora
que ao mesmo tempo narra e é “herói” – entre aspas devido à possível troca de papéis
em alguns pontos da narrativa (retomaremos isso posteriormente). A tríade que
identificamos também através do nome próprio juntamente com a prova na capa do
livro caracterizam o contrato de leitura que a autora propõe. O pacto autobiográfico
está, no sentido de Lejeune, selado.
Chamamos ainda de autobiografia pois, como compreende Bakhtin, trata-se da
construção narrativa de uma vida.Narrativa esta em que autor, narrador e personagem
têm papéis distintos, em que essa relação é a base para a representação de um eu dentro
do todo artístico. Desse modo, temos a autora Maria Helena Cardoso, a pessoa real que
é a “portadora da forma”. A mulher reflexiva, angustiada, a irmã que amou o irmão
como a si mesma no papel de narradora. Esta escolhe o que contar, conduz sua narrativa
de forma madura, com valores, sentimentos e interpretações atuais sobre Lelena – a
heroína – e outros personagens de sua história. Autobiografia no sentido de biógrafa de
si mesma, sobre esse outro que resolvo contar a história de vida ou parte dela, é o “outro
possível”, o “meu eu-para-mim” (BAKHTIN, 1992, p. 166).
A possibilidade de entrelaçamento dos gêneros se dá devido ao espaço que o
irmão ocupa na narrativa de Maria Helena Cardoso. Ela conta praticamente todo o
caminho tortuoso do irmão desde o acidente vascular cerebral, passando por sua
recuperação até seu falecimento. O livro já se inicia mostrando a saudade que ela tem do
irmão, descrevendo alguns de seus hábitos:
Foi ontem que ele morreu, foi há tanto tempo, tanto tempo. Na parede
o seu retrato de vivo já começa a ser retrato de morto, longe, cada vez
mais longe. Se eu pudesse ter agarrado sua figura de vivo, andando na
rua descalço, de short de brim branco, do seu para o meu apartamento,
virando a esquina rápido, saltando o muro que dividia os dois
edifícios, tomando café na cozinha, entrando em casa acompanhado
de amigos, brigando comigo, abrindo com a espátula páginas e
páginas de livros que vinha de comprar, debruçado à janela do seu
apartamento, as mangas da camisa arregaçadas, o peito à mostra,
olhando a lagoa, mais tarde no período longo de doente, que hoje sei
curto, curto, ensaiando os primeiros passos dentro do quarto, com o
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correr dos meses andando na calçada da rua, devagarinho, até atingir a


volta inteira do quarteirão, apoiado na bengala que foi de Vito,
sentado na poltrona vendo televisão, mudando os quadros de lugar,
conversando, rindo, triste, desenhando os primeiros pastéis coloridos,
a primeira exposição na Goeldi, o meu susto, o terror nos seus olhos
por qualquer alteração de saúde (CARDOSO, 1973, p.5).
Logo em seguida, começa-se a narração de um evento na casa deles, ainda
quando a mãe era viva, em que Lúcio ( Nonô) é a personagem central – ainda saudável.
Maria Helena se coloca nessa história como uma personagem da vida do irmão, uma
observadora
Era um tempo difícil. Sem emprego, mal vestido, quase sempre
barbado, descalço muitas vezes, Nonô passava a maior parte do tempo
em casa, escrevendo. Tinha apenas a mocidade fascinante. Morava
conosco por falta de meios, pois bem que ansiava pela sua casa, pela
liberdade de trabalhar longe do barulho do nosso apartamento
pequeno, das discussões de mamãe com Sebastiana (CARDOSO,
1973, p.6).
É apenas neste início da narrativa, entretanto, que Nonô é mais visado na
primeira parte do livro. Depois disso, Maria Helena começa a falar de seus medos, da
solidão, da presença da morte em sua vida, sobre algumas amizades. Por isso, apesar de
iniciar falando da saudade que tem do irmão, nessa primeira parte ainda pensamos que o
livro será somente algumas divagações e pequenos acontecimentos da vida da autora. O
contrato de leitura ainda está sendo mantido.
Contudo, este contrato de uma autobiografia simples se quebra a partir da
segunda parte do livro. Isso porque o pacto não dá conta do imbricamento de biografia
com autobiografia como acontece nesse segundo momento da narrativa. A partir daí,
Maria Helena narra toda a história da doença do irmão desde seu segundo derrame.
Depois disso ele passa a viver com ela e toda aflição, sofrimento e amor que Lelena
sente pelo irmão nos são passados através da narrativa.
Ainda há nessa segunda parte alguns momentos de divagação da autora e outras
pequenas histórias sobre sua vida em parágrafos distintos. Contudo, a maior parte da
narração é dedicada a sua convivência com o irmão doente. Desde a terrível noite de seu
derrame
Já com a língua meio enrolada, pronunciou um nome que ainda
consegui entender: Roger. Sem indagar mais nada, tirei o fone do
gancho na extensão e disquei. A expressão de aflição em meu rosto
devia ser tal que por um gesto me recomendou calma, não me
afobasse. Enquanto eu falava ao telefone, acompanhava com os olhos
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ainda inteligentes tudo que transmitia a Roger a respeito do seu estado


e a uma pergunta que me foi feita do outro lado da linha e que eu
repeti em voz alta, pegou com a mão esquerda o braço direito,
mostrando que estava inteiramente paralítico daquele lado. Foi um
choque tremendo para mim (CARDOSO, 1973, p.82)

E cada passo de sua recuperação:


Nonô fez hoje a primeira frase com o verbo: ‘quero 1 livro”. A minha
alegria com essa frase pequenina foi a maior do que se tivesse escrito
páginas e páginas de beleza, em que as palavras cintilassem como
pedras preciosas (CARDOSO, 1973, p.132-133).

Diante disso, há uma alternância de heróis. Lelena é a personagem central de sua


narrativa, mas às vezes coloca o irmão como o herói. O modo como Nonô é apresentado
nos confirma isso: um artista que sempre trouxe vida aos amigos, uma pessoa sorridente
mesmo na doença, que não guardou seu talento para si – como não conseguia escrever,
começou a pintar.
Lúcio é, então, o herói de Lelena, já que ela lhe atribui muitas qualidades.
Encontramos não só Maria Helena falando bem de Lúcio. A narradora utiliza do
discurso de amigos para construir essa imagem positiva e heróica do irmão. A propósito
da visita de uma amiga dele, Judith, ao hospital
O silêncio permaneceu por uns instantes. De repente desandou a falar
dos seus primeiros tempos de conhecimento, como o vira pela
primeira vez, como tudo mudara para ela a partir de então. Trouxera à
sua vida vazia e triste alguma coisa de novo. Tudo se transformara
como num sonho, passando a viver o que nunca tinha tido antes: os
passeios juntos, as conversas às mesas de bar com ele e outros amigos
alegres,, os jantares requintados que oferecia em sua casa a ele, a seus
amigos. Sua casa antes silenciosa e triste transformou-se em um
recanto de luz, festas e alegrias (CARDOSO, 1973, p.89).
Bakhtin pontua que “se estou narrado a minha vida cujos heróis são outros para mim,
encaixo-me pouco a pouco na estrutura formal da vida (não sou herói da minha vida,
apenas tomo parte nela) e alcanço o estatuto de herói, anexando-me à minha narrativa”
(BAKHTIN, 1992, p. 168). É desse modo que Lelena se afirma como heroína. Como
uma (auto) biografia contemporânea sócio-doméstica, ela é a heroína do cotidiano, que
se faz presente neste momento da vida do irmão e cuida dele. Que ama, observa, se
preocupa com sua relação com os amigos. Que está inserida na vida de Lúcio e ele na
dela.
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Além da narrativa em si, outros elementos nos apontam para uma leitura
diferenciada dessa (auto) biografia. O próprio título nos remete ao duplo: Vida-vida. A
vida de Maria Helena e de Lúcio? A vida de Maria Helena e a vida dela com o irmão
doente? São duas vidas juntas.
O prefácio também já anuncia a forte presença que Lúcio Cardoso vai ter na
narrativa. O texto é de Clarice Lispector, grande amiga do escritor mineiro e foi
publicado inicialmente no jornal do Brasil em 1969. Clarice fala das duas saudades
tristes que teve do amigo para no fim dirigir-se à Maria Helena:
Helena Cardoso, você que é uma escritora fina e que sabe pegar numa
asa de borboleta sem quebrá-la, você que é irmã de Lúcio para todo o
sempre, porque não escreve um livro sobre Lúcio? Você contaria de
seus anseios e alegrias, de suas angústias profundas, de sua luta com
Deus, de suas fugas para o humano, para os caminhos do Bem e do
Mal. Você, Helena, sofreu com Lúcio e por isso mesmo mais o amou
(CARDOSO, 1973, p.ix).
Vimos que o pacto proposto por Lejeune não resolve toda questão
autobiográfica. A quase junção desses dois gêneros poderia ser explicada devido à
característica marcante que é a alteridade. Há o outro que é o próprio biografado – em
relação ao biógrafo (autor). Aquele de quem se fala que, mesmo se tratando da mesma
pessoa, é diferente de quem fala. Há os outros dentro da história – e neste caso o outro
que mais se evidencia é o irmão. Há, por último, o leitor. Este a quem a fala de um eu se
dirige, mas um eu que tem o controle do que expor e do que silenciar.
Diante disso, percebemos nas memórias de Maria Helena Cardoso parte da vida
de Lúcio. Em certo momento da narrativa ela diz: “É bom reagir, dizer comigo mesma
que devo viver a minha vida, mas como? As nossas se acham de tal modo entrelaçadas
que não consigo separar a minha para vivê-la sozinha” (CARDOSO, 1973, p.102-103).
É importante salientar que não se trata aqui de autobiografia e biografia, mas
sim desta última dento da primeira. Maria Helena Cardoso não para a narrativa de sua
própria história para contar a do irmão. Parte da vida deste é que está inserida nas
memórias dela. Esse entrelaçamento de biografia e autobiografia poderia ser afirmado a
partir da importância que esse irmão ocupa na vida e na narrativa de Lelena que conta
suas memórias. A fronteira entre os gêneros neste caso torna-se, portanto, ainda mais
tênue na medida que um outro se insere significativamente no espaço de um eu.
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Referências
BAKHTIN, Mikhail. O todo significante do herói. In: Estética da criação verbal. São
Paulo, Martin Fontes, 1992, p. 153-200.
CARDOSO, Maria Helena. Vida-vida: memórias. Prefácio de Clarice Lispector. Rio de
Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1973.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI: o minidicionário de
língua portuguesa. 5ª ed. rev. ampliada – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita M.
G. Noronha. Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
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ADAPTAÇÕES DOS CLÁSSICOS PARA JOVENS: DE LOBATO A BANDEIRA

Catia Toledo Mendonça (PUCPR)

Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo dos
de lança em cabido, adarga antiga e galgo corredor.
Cervantes
― Ché! ― exclamou Emília. ― Se o livro inteiroé nessa perfeição de língua, até logo! Vou
brincar de esconder com o Quindim. “Lança em cabido, adarga antiga, galgo corredor”… Não
entendo essas viscondadas, não…
― Pois eu entendo ― disse Pedrinho. ― Lan ça em cabido quer dizer lança pendurada em
cabido; galgo corredor é cachorro magro que corre e adarga antiga é... é...
Monteiro Lobato

Para começo de conversa

A validade da leitura dos clássicos nas escolas, no Brasil, tem suscitado discussão há
muito, mas ainda não se esgotou.
Tradicionalmente associados à alta cultura, os clássicos são aqueles que servem de
modelo, que são paradigmas para escritores e críticos, mas também “são livros que
exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também
quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo
ou individual” (CALVINO, 2007, p.10). Ou seja, a leitura dos clássicos contribui para a
formação do indivíduo. É a partir dessa certeza que se discute a leitura dessas obras por
crianças e a pertinência das adaptações que são feitas, com a intenção de facilitar a
leitura.
Neste artigo pretende-se apresentar algumas das releituras dos clássicos feitas por
dois escritores brasileiros- Monteiro Lobato e Pedro Bandeira-, procurando discutir a
validade da leitura dessas obras em sala de aula.
O texto se constrói a partir dos pressupostos da Estética da Recepção, envolvendo
principalmente os conceitos de horizonte de expectativa e de repertório, como suporte
para as discussões sobre a validade das adaptações.
Serão discutidas as obras Dom Quixote das crianças e A marca de uma lágrima e
Agora estou sozinha, a primeira uma adaptação da obra de Cervantes, feita por
Monteiro Lobato, a segunda, uma releitura de Cyrano de Bergerac, de Edmond
Rostand, e a terceira, uma releitura de Hamlet, ambas feitas por Pedro Bandeira.
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1- As adaptações no Brasil de Monteiro Lobato

Por volta de 1880, Carl Jensen, jornalista e professor, um alemão que se mudou para
o Brasil ainda jovem, traduziu obras como Robson Crusoé, As Aventuras de Gulliver,
As aventuras do celebérrimo barão de Münchhausen e Dom Quixote, destinando-as aos
jovens leitores. Naquela época, a facilitação da vida do leitor não era o foco principal
dos autores, como indicam os textos escritos por Olavo Bilac, Coelho Neto ou Júlia
Lopes de Almeida, alguns dos nomes pioneiros na produção de livros infantis no Brasil.
Isso provavelmente se deve ao fato de que o conceito de leitor, assim como o de criança,
no início do século XX, eram vistos de forma completamente diferente da como são
vistos hoje.
Cerca de cinqüenta anos depois das traduções de Jensen, em 1936, Monteiro Lobato
lançou uma adaptação da obra de Cervantes: Dom Quixote das crianças. O projeto era
antigo, pois em carta a seu amigo Rangel, em 1925, Lobato já falava em uma possível
tradução da obra.
Para Lobato, a tradução não devia ser ao pé da letra, antes, o tradutor deveria ter a
“liberdade de melhorar o original” (ALMEIDA PRADO, in LAJOLO &
CECCANTINI, 2008, p. 328), por isso, Dom Quixote das crianças se constrói numa
linguagem abrasileirada, facilitada para a compreensão infantil. Na história, o livro
antigo é encontrado por Emília, que solicita a leitura. Mas, quando Dona Benta começa
a ler, a reação da boneca ao estilo da tradução feita em Portugal, há muitos anos, pelos
Viscondes de Castilho e de Azevedo, leva a senhora a optar pela adaptação:

- Meus filhos- disse Dona Benta- esta obra está escrita em alto estilo,
rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se
tornou clássica. Mas como vocês não tem a necessária cultura para
compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a
história com palavras minhas. (LOBATO, 1968, p.12)

Desse modo, Dona Benta passa ser a narradora das histórias de Dom Quixote, que
causa reações nos ouvintes. Recepção e obra se alternam com os acontecimentos
vividos no Sítio e, durante a leitura, Dona Benta, procurando facilitar a compreensão
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das crianças, associa ao texto informações sobre o momento em que a obra foi escrita,
referências a outros escritores, tudo isso em linguagem bem acessível.
A obra de Cervantes está contida no texto lobateano, com o qual se mistura. Os
episódios são selecionados, dando-se preferência aos aspectos cômicos da obra, que
além de estar em linguagem simples, é resumida e, portanto, mais adequada ao leitor
infantil que aqueles dois grossos volumes citados por Emília. Trata-se, pois, de uma
obra que pretende seduzir o leitor e que pode ser vista como parte do projeto lobateano
de formação de leitores.
Durante a contação, quando uma das crianças não entende alguma palavra, dirige-se
a Dona Benta, que a explica:

- Que é viseira?- perguntou Narizinho.


- Viseira é a parte da armadura que recobre o rosto do cavaleiro. Uma
parte móvel, que se ergue quando o enlatado deseja mostrar a cara,
falar ou comer. Ergueu a viseira e disse: (LOBATO, 1968, p.20)

Nota-se que Dona Benta para por instantes a história para explicar à neta o
significado da palavra, mas logo depois a continua, emendando o enredo de Cervantes
com as curiosidades infantis. Nesse sentido é que a obra se torna antropofágica, como
afirma Almeida Prado, no texto contido no livro Monteiro lobato livro a livro,
organizado por Marisa Lajolo e João Ceccantini, pois os textos se misturaram, não é um
Dom Quixote de Cervantes nem de Lobato, tornar-se um outro, o das crianças, que
participam da construção, com perguntas, comentários, reflexões.
Ao permitir que as crianças façam perguntas e tenham as respostas, Lobato valoriza a
criação de um repertório que permita ao leitor a compreensão do texto. Narizinho,
Pedrinho e Emília são os leitores que necessitam de um mediador para que
compreendam o texto.
O repertório de um leitor é composto por suas experiências anteriores, incluindo seus
conhecimentos variados, como o literário e o de mundo. É ele que permite às pessoas
leituras diferentes de um mesmo texto, pois cada um, na hora de ler, irá buscar em seu
repertório as informações de que dispõe e que o ajudarão a dar sentido ao que leu.
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Como cada sujeito tem experiências diferentes, os espaços em branco do texto darão a
possibilidade de que cada um o complete de uma forma.
Ao introduzir na narrativa as informações fornecidas aos netos de Dona Benta,
Lobato as estende também aos leitores mirins de seu tempo, que, assim como os
personagens do Sítio, não teriam condições de entender a obra de Cervantes sem a
mediação de um adulto. Não se pode esquecer que Dom Quixote, já naquela época, fora
escrito há séculos e, como sabemos, a leitura de uma obra num tempo muito distante de
sua produção pode levar o leitor a fazer uma leitura muito diferente daquela feita à
época em que o texto foi escrito. Além disso, o leitor modelo do texto de Cervantes não
era, certamente, a criança, para a qual o Lobato e Jansen endereçavam seus textos. Sem
as explicações dadas por Dona Benta o texto seria apenas parcialmente compreendido
pelos leitores, tanto os do Sítio quanto os leitores de Lobato.
Apesar de, a princípio, escrever para a Escola, Lobato tinha uma concepção de escola
que passava pelo prazer e foi por causa dessa concepção que ele procurou dar a seus
livros um formato mais acessível ao leitor de seu tempo, mesmo contrariando as
tendências vigentes.
Ao assumir essa atitude, Lobato interferiu no horizonte de expectativas de sua época.
O horizonte de expectativas é responsável pela primeira reação do leitor à obra, pois se
encontra na consciência individual como um saber construído socialmente e de acordo
com o código de normas estéticas e ideológicas de uma época. Naquela época, as obras
escritas para crianças eram muito diferentes das que ele escreveu, por isso seus livros
causaram reações diversas, que foram da aceitação e adoção em escolas de alguns
estados até a proposta da queima de livros, como ocorreu em São Paulo, com a edição
de Peter Pan, outra adaptação feita pelo escritor.
A proposta de Lobato, a despeito das reações negativas, solidificou-se e transformou-
se num novo paradigma. Segundo as teses desenvolvidas por Jauss em sua conferência
de 1969, que são consideradas o marco inicial da Estética da Recepção, as grandes obras
serão aquelas que conseguirem provocar o leitor de todas as épocas, permitindo novas
leituras em cada momento histórico. Foi exatamente o que fez Lobato, ao aproximar o
texto clássico do público infantil, pois sua obra, ainda hoje, pode ser lida, compreendida
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e admirada pela criança brasileira, que também se beneficiará das informações dadas
por Dona Benta. Além disso, as adaptações de obras clássicas para crianças, no Brasil,
tornaram-se uma opção das editoras, que investem, cada vez mais, em releituras e
adaptações livres dos clássicos, tanto para crianças quanto para jovens. Nesse contexto
dialógico entre o texto clássico e o juvenil é que se destaca o nome de Pedro Bandeira, o
outro autor cuja obra serve de reflexão sobre a validade ou não da leitura das adaptações
em sala de aula.
2- Os clássicos no final do século XX

A leitura dos clássicos, a cada dia, perde espaço entre jovens e crianças. Embora se
reconheça a importância do contato com esses textos, a Escola de hoje, preocupada com
a criação do gosto pela leitura, cai na armadilha editorial de, cotidianamente, apresentar
textos mais fáceis, que pouco exigem do leitor, para que se crie um tal “hábito de
leitura”.
Além de concordar com estudiosos da leitura de que os hábitos são atitudes
mecânicas e que ler não pode ser visto assim, acredito que essa ditadura da facilidade
está interferindo muito no processo de formação de nossos alunos, cujo repertório de
leitura se limita, quase que totalmente, a coleções pertinentes à literatura de
entretenimento. Nada contra a literatura de entretenimento, desde que ela seja parte do
processo e não a finalidade dele, como vem acontecendo em nossas escolas.
Em 1971, quando a Lei de Diretrizes e Bases 5692 decretou a leitura obrigatória, nas
escolas, de autores brasileiros, ocorreu aquilo que costumamos chamar de o “boom” da
literatura infantil no Brasil. Surgiram muitos autores que viram na Escola um meio de
ganhar dinheiro com a literatura e, nesse total, várias foram as tendências que surgiram,
umas voltadas para o estético, outras marcadas por textos utilitários, umas mais
pedagógicas que outras; em quase todas , a proposta da facilitação da leitura.
No rastro da Escola e de suas necessidades, as editoras passaram a publicar séries,
que pudessem ser “adotadas” na Escola. Então, em 1973 a Ática criou a Série
Vagalume, composta, a princípio, pelos textos já consagrados pela crítica, como A ilha
perdida, de Maria José Dupré, O escaravelho do diabo, de Lúcia Machado de Almeida,
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Cem noites tapuias, de Ofélia e Narbal Fontes , e vários outros que, na primeira década
de existência da série, foram resgatados e lançados para os leitores juvenis.Somente na
década de 80 seriam criados textos especificamente para a coleção.
Seguindo a tendência de livros para jovens, em 1984, a Scipione criou a série de
paradidáticos denominada Reencontro,que, como afirma a própria editora, é “formada
pelos maiores clássicos da literatura universal recontados por escritores de talento, numa
linguagem acessível e agradável”
(http://www.scipione.com.br/conhecendoascipione.asp?bt=1Acesso em 1 de abril de
2010) .
Hoje, a série tem mais de setenta títulos, adaptações feitas por autores renomados,
como Ana Maria Machado, Carlos Heitor Cony e outros tantos. As obras originais são
lidas e adaptadas para uma linguagem acessível aos jovens brasileiros do século XX,
sempre em prosa. Dessa maneira, Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare, ganha
versão em prosa, como acontece também com Otelo, tragédia do mesmo autor inglês.
São mantidos, além do título, personagens e enredo, trazendo ao jovem leitor a
impressão de que ele está, realmente, lendo a obra dos grandes escritores, quando na
verdade o texto lido não é mais que uma paráfrase do original, onde as idéias principais
do texto são mantidas, embora se modifique a linguagem, embora as palavras sejam
outras. Um cotejo cuidadoso, entre o original e o novo texto revela que a facilitação tão
explícita na linguagem deixa também de lado elementos culturais, marcas da época em
que o texto foi escrito, e que o tornaram “clássico”, já que os temas se repetem na
literatura das várias épocas, sem que seja garantia de permanência. Isso acontece porque
a proposta inicial da série não é traduzir o original, mas parafraseá-lo, de modo a torná-
lo acessível ao leitor jovem.
Essa coleção foi estendida também para o público infantil e hoje já existe a
Reencontro Infantil, em que a ilustração acompanha o texto adaptado para o público a
que se destina, ou seja, crianças a partir dos 9 anos, como nos indica a contracapa.
Depois da Scipione, outras editoras lançaram adaptações dos clássicos para jovens,
como a Ática, que criou a coleção Descobrindo os clássicos. Nessa coleção, os autores
não fazem apenas uma releitura da obra clássica; antes, criam uma história que serve de
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moldura para a leitura dos clássicos, principalmente os de língua portuguesa. Assim,


Álvaro Cardoso Gomes cria a narrativa Por mares há muitos navegados, que já traz no
título o diálogo com a obra de Camões e, em seu interior, trechos de Os lusíadas. Os
dois textos são apresentados separadamente, alternando-se, o que traz ao leitor a
possibilidade de ter contato com o original e com a paráfrase, que explica ao leitor do
século XXI aquilo que seu repertório não lhe permite entender.
Seguindo o rastro de Lobato, nessa coleção há sempre um narrador que conta a
história para alguém, que faz comentários sobre o texto original, inclusive sobre a
compreensão e o desenvolvimento do enredo. Mas, ao contrário do que ocorre nas
adaptações de Lobato, o texto original não é simplificado, mas transposto na íntegra.
Nota-se a preocupação com a formação do leitor que, aos poucos, terá contato com o
texto clássico, sem que lhe seja penosa a leitura. Seu repertório é trabalhado, sem que se
dê conta, pois são fornecidas informações para que ele compreenda a leitura, como
contextualização, significação das palavras, informações sobre o gênero e sobre o autor.
Ele não fica com a sensação de que leu a obra clássica na íntegra, pois o novo texto traz
os recortes bem claros, inclusive com mudança de fonte para o itálico, quando é
apresentado o texto clássico.
Essa leitura, se trabalhada por um professor que funcione como mediador de leitura,
nas séries finais do ensino médio, pode ser uma porta de entrada para a leitura dos
clássicos na íntegra, já que permite um primeiro contato com o texto integral, que será
entendido pelo leitor. Uma pesquisa rápida feita na Internet, no entanto, mostra que a
leitura dessas obras tem sido feita por alunos do Ensino Médio, ou seja, a coleção passa
a ser lida no lugar dos clássicos. Nota-se que, mais uma vez, a ditadura da facilidade
vem interferir no processo de formação de nossos leitores, que parecem estar destinados
a ler só adaptações.
Ana Maria Machado, em sua obra Como e por que ler os clássicos desde cedo,
defende a leitura das adaptações como uma porta de entrada para a leitura do texto
integral. Enfatiza a importância da leitura dos clássicos e, citando sua própria
experiência com a leitura de Dom Quixote das crianças, afirma :
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...não é necessário que a primeira leitura seja um mergulho nos textos


originais. Talvez seja até desejável que não o seja, dependendo da
idade e da maturidade do leitor. Mas creio que se deve propiciar é a
oportunidade de um primeiro encontro. Na esperança de que possa ser
sedutor, atraente, tentador. (...) possa equivaler a um convite para a
posterior exploração de um território muito rico, já então na fase das
leituras por conta própria. (MACHADO, 2002, p.12/13)

Observe-se que a proposta da autora parece ser semelhante à de Lobato e das editoras
aqui relacionadas: a intenção final é a leitura do texto original, não a substituição pela
adaptação. Seria necessário que essa idéia fosse difundida entre os professores e que o
estigma de texto clássico como texto “chato” fosse deixada de lado. Infelizmente,
muitos são os professores que concordam com o senso comum, embora devessem
desempenhar o papel de mediadores de leitura.
Há ainda propostas de adaptações do texto clássico para os quadrinhos, como faz a
Jorge Zahar Editor, em cujo catálogo se podem encontrar obras como Em busca do
tempo perdido, de Marcel Proust, adaptadas por Stéphanr Heut, encarregada do texto e
das ilustrações.

3- Enfim, Pedro Bandeira

Uma outra possibilidade de contato do leitor juvenil com os clássicos é aquela que
tem sido desenvolvida por Pedro Bandeira. Ao publicar, em 1985, o livro A marca de
uma lágrima, Bandeira traz a proposta da releitura de um clássico, em que o diálogo
entre as obras só é desvendado pelo paratexto, em forma de posfácio, intitulado Autor e
Obra, em que se lê:

Cyrano de Bergerac! A história do espadachim feio e narigudo que


escreve cartas de amor para sua amada Roxane em nome do seu rival,
o lindo Cristiano, me impressiona desde a adolescência, em Santos
(...) Em São Paulo, desde 1961, durante meus anos como ator de
teatro, eu pensava na montagem da peça de Edmond Rostand, mas
sentia que a linguagfem rebuscada do autor impediria que toda a
punjança do enredo fosse compreendida pelas platéias brasileiras.
Desde então, a idéia de adaptar Cyrano de Bergerac me acompanhou.
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(...) Decidi então que esta história de amor seria a adaptação moderna
e brasileira de Cyrano de Bergerac. E o meu Cyrano transformou-se
em Isabel, uma menina de 14 anos, criativa, inteligente, maravilhosa,
mas cheia de problemas. (BANDEIRA, 1986, p.95)

Embora Pedro Bandeira fale em adaptação, somente se o leitor procurar, no final do


livro, essa explicação, fará alguma relação com o texto de Ronstand.
O enredo da peça é transportado para os dias atuais e os papeis são invertidos. Ou
seja, a menina é aquela que escreve poesia e que tem problemas de autoestima. O nome,
como se viu nas palavras de Bandeira, é alterado, pois ela poderia se chamar Cristina,
mas é adotado o nome de Isabel, distanciando ainda mais a menina do protagonista
inicial, embora os nomes de Cristiano e Roxana se mantenham, em outros personagens.
Além disso, há um caso de suspense, pois ocorre uma morte na Escola, onde a narrativa
se passa, e as crianças são envolvidas nessa nova trama.
Ou seja, Pedro Bandeira se apropria da idéia inicial da peça para criar uma obra
totalmente diferente, que obedece aos moldes das narrativas juvenis, onde o romance se
mistura ao mistério, em que os fatos ocorrem no ambiente comum ao leitor- nesse caso,
a escola- e o final traz o encontro entre os jovens, e esses não são o mesmo casal da obra
de Rostand, pois Isabel acaba com Fernando, que não havia entrado na história de
Cyrano de Bergerac.
Se bem que pese o sucesso da obra – em 1986 já estava na 65ª edição – e o fato de
ser uma narrativa atraente para os jovens, a proposta de leitura como ponte para o
clássico não se realiza em A marca de uma lágrima. Para que isso aconteça, é
necessária, mais do que nunca, a interferência do professor, que deverá fazer a ponte
com o clássico, trazendo-o para o diálogo com a obra de Bandeira. Os alunos, de modo
geral, não lêem o paratexto, acham que só a leitura do texto principal importa. Como
não têm em seu repertório a leitura do clássico, sozinhos não chegarão ao texto gerador.
O mesmo acontece com outro livro de Bandeira: Agora estou sozinha, em que o
autor, também no paratexto, explica que o nome da protagonista- Telmah- é o nome do
personagem de Shakespeare, Hamlet, e que ele resolveu “recriar este tema emocionante
e fantasmagórico, desta vez não com um príncipe, mas com uma menina, a minha
Telmah, meu Hamlet às avessas”. (BANDEIRA, 1987, p.87).
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O termo recriação mostra-se mais adequado ao processo de criação desse escritor


que, como se pode notar, optou por destacar as personagens femininas em seu texto,
talvez pela situação que o feminino ocupe no novo contexto, em que se insere sua obra.
Do mesmo modo, o encontro de Hamlet com o espírito de seu pai é substituído pela
“brincadeira do copo”, que esteve tão em moda na década de oitenta, entre os jovens.
Assim, é o copo que soletra:

- Devo chamá-la de quê? Espírito? Fantasma? Mãe?


OUVE
TELMAH
VINGANÇA
Uma espécie de torpor começou em suas pernas e subiu pelo corpo da
menina.
- Vingança? O que é isso? O que quer dizer com isso?
PRECISO
DESCANSAR
- Diga! Oh, vamos, diga! Que vingança é essa?
FUI
ASSASSINADA (BANDEIRA, 1987, p.19)

A escolha da fonte em caixa alta funciona como um diferencial para as vozes e


destaca o movimento do copo, que parece soletrar as palavras. Por isso também a
escolha de colocá-las em níveis diferentes, mesmo aquelas que formam frases.
São inseridas, também, outras alterações, como o fato de Telmah ter um namorado,
Tiago, que fica a seu lado durante toda sua investigação e que, ao contrário de Ofélia,
permanece vivo.
Ao final, a madrasta de Telmah morre envenenada, também com vinho, como
acontece com Cláudio, em Hamlet, mas a menina e o pai sobrevivem. Nota-se, pois, que
o autor faz alterações que agradem ao público juvenil, que, como se sabe, dá preferência
ao final feliz e à presença do romance sentimental, mesclado ao mistério.
Dessa forma, Pedro Bandeira necessita da intervenção do professor, mais uma vez,
para que se estabeleça o diálogo entre os dois textos, sem o que sua releitura será lida
sem que se perceba a intertextualidade e sem que se cumpra a proposta de incentivo à
leitura dos clássicos, tamanha a independência que deu a sua obra.
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Não há, na obra de Bandeira, a preocupação com a formação do repertório do leitor,


que ao final da leitura continuará a ignorar a existência do texto clássico. Também no
que diz respeito ao horizonte de expectativas, o texto de Pedro Bandeira apenas
confirma o que já existe, sem propor nada de novo, sem promover, no leitor, mudanças
de paradigma, já que se adéqua aos modelos vigentes.

Considerações Finais

A discussão sobre a validade da adaptação dos clássicos para crianças está longe de
acabar. Em escolas, cursos, palestras basta tocar no assunto para que a discussão se
inflame entre os grupos dos prós e dos contra.
O fato é que o tema deve ser tratado com atenção. Se a intenção é, como quer Ana
Maria Machado, fazer da leitura das adaptações uma ponte para a leitura dos clássicos, a
figura do professor como mediador de leitura torna-se indispensável.
Parece claro que, sozinhos, poucos serão os alunos que buscarão o texto original para
o cotejo, na época em que estão fazendo a leitura da adaptação. Esta terá, então, a
finalidade de “plantar” o texto na memória de leitura da criança que, quando adulto, já
mais preparado para o contato com o original, poderá realizar-se enquanto leitor crítico,
capaz de entrar nos bosques clássicos.
Também ficou claro, no percurso deste artigo, que há grandes diferenças entre as
obras que se propõem a adaptar os clássicos. Cabe, portanto, mais uma vez, ao
professor, a escolha da abordagem que fará, do trabalho que desenvolverá com os
alunos, a partir do texto escolhido.
Nesse sentido, a coleção Descobrindo os Clássicos, hoje, parece ser a que mais
propicia o cotejo entre o original e a adaptação, garantindo que o leitor tenha acesso ao
texto original.
Percebe-se que a proposta de Lobato como ponto de partida e a introdução do texto
original como a perspectiva de uma leitura escolarizada, que terá jovens como leitores,
não mais crianças.
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Constatou-se também que a proposta de Lobato de adaptar as obras clássicas para o


público infanto-juvenil deu sementes no Brasil, onde há várias propostas diferentes, que
fazem a ligação entre o texto juvenil e o clássico.
Finalmente, a obra de Pedro Bandeira merece atenção especial, se vista como ponte
com o texto clássico. Lidas por si só, as obras desse autor tem sucesso garantido dentre
os jovens, como indicam as inúmeras comunidades encontradas no Orkut, onde jovens
declaram sua preferência pelos livros desse autor, além das inúmeras edições de seus
títulos.
Vistas como ligação com o texto clássico, as obras de Bandeira são as que mais
exigem o empenho do professor, que deverá trazer o texto original para sala, seja
fisicamente, seja em outra linguagem, como o filme, mas será sua a responsabilidade de
apresentar o clássico ao aluno, que se deixado só no caminho, não passará da leitura de
entretenimento proposta por Pedro Bandeira.

Referências

ALMEIDA PRADO, Amaya O. Dom Quixote das crianças e de Lobato. In: Lajolo,
Marisa & Ceccantini, João. Monteiro Lobato livro a livro: Obra infantil. São Paulo: Ed
UNESP, 2008.p. 325- 338.

BANDEIRA, Pedro. A marca de uma lágrima. São Paulo: Moderna, 1986.


BANDEIRA, Pedro. Agora estou sozinha. São Paulo: Moderna, 1987.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Molin. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.

LOBATO, Monteiro. Dom Quixote das crianças. São Paulo: Ed Brasiliense, 1968.

MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos desde cedo. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2002.

http://www.scipione.com.br/conhecendoascipione.asp?bt=1- Acesso em 1 de abril de


2010 .
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UMA LEITURA DO DUPLO EM A DOCE CANÇÃO DE CAETANA

Cecil Jeanine Albert Zinani (UCS)

Introdução

Este mundo aqui, que em si mesmo não tem nenhum


sentido, recebe a sua significação e o seu ser de um
outro mundo que o duplica, ou melhor, do qual este
mundo aqui é apenas um sucedâneo enganador.
Clément Rosset

A espetacularização de aspectos da vida tem-se constituído numa característica


cultural expressiva neste limiar do segundo milênio, de tal sorte que os limites entre
realidade e representação tornaram-se difusos, esgarçando fronteiras e fragmentando
identidades. Uma explicação para essa tendência contemporânea pode fundamentar-se
na dificuldade de o ser humano lidar com uma realidade desagradável e na solução a
que recorre, substituindo o real pela ilusão. O mundo da televisão, da internet e de
outros aparatos tecnológicos comprovam essa tendência que se afirma cada vez mais e
que encontra nos reality shows, talvez, a sua melhor comprovação. A necessidade de
integrar essa espetacularização indica uma tendência que ultrapassa a simples diversão,
afetando os paradigmas culturais e transformado-se em possibilidade de
autorreconhecimento e autorreferenciação.
O simulacro e a persona convertem-se nos elementos-chave, na medida em que a
replicação evidencia a cisão entre real e ilusão, promovendo o espelhamento,
consequentemente, a falsidade dessa representação. Nessa perspectiva, a presente
reflexão se organiza sobre a teatralidade do texto de Piñon que coloca em evidência,
entre outros aspectos, o simulacro como modalidade de existência, em oposição ao real
que se torna fugidio, dissolvendo-se nas brumas das lembranças, na tentativa de
recuperar o tempo passado.
Ambientada em uma pequena cidade do interior, Trindade, desenvolve-se o romance
A doce canção de Caetana, cuja personagem título é uma atriz de circo mambembe que
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se apresenta em vilarejos miseráveis. Depois de vinte anos de estrada, Caetana resolve


retornar a Trindade, onde vivera momentos de glória, a fim de realizar o sonho que
sempre perseguira e jamais concretizara: encenar uma ópera de Verdi. A relação da obra
com um espetáculo teatral é elaborada por Eliane Campelo (2003, p. 196) que considera
a diegese como o palco da atriz Caetana Toledo, distribuindo a narrativa em três
conjuntos cênicos “à espera de Caetana, o retorno de Caetana e a performance de
Caetana”. A perspectiva representacional torna-se relevante para examinar o evento em
torno do qual se organiza a narrativa, engendrando uma possibilidade de leitura através
do exame do duplo, uma vez que se orienta a partir do simulacro, base da teatralidade,
expresso no espaço, no tempo, nas personagens e nas ações.

Simulacro e real

O duplo, como categoria analítica, é analisado por Clément Rosset (1998) na


perspectiva filosófica, fundamentando-se na dificuldade enfrentada pelo ser humano
para aceitar a realidade. O espaço cultural que então se descortina faculta o estudo de
fenômenos que ocorrem quando a realidade é demasiado desagradável, promovendo um
desvio no entendimento dos fatos. Muito embora a percepção de determinado evento
pelo sujeito seja adequada à situação proposta, o resultado afasta-se da proposição
inicial, gerando uma conclusão absurda, cujo produto, a ilusão, constitui a essência do
duplo. Rosset (1998, p. 14) enfatiza: “Na ilusão [...], na forma mais corrente do
afastamento do real, não se observa uma recusa propriamente dita. Nela a coisa não é
negada: mas apenas deslocada, colocada em outro lugar”. Essa percepção tem o caráter
de ilusão, sendo, portanto, completamente inútil, visto que é impossível negar o real. A
percepção do outro configura-se em relação ao espaço, à temporalidade, aos eventos e
às ações narrativas, elementos que se organizam na tentativa de reviver um período que
fora significativo tanto para a cidade como para as personagens.
A temporalidade da narrativa desdobra-se em tempo presente, início dos anos setenta
do século XX, e tempo passado, vinte anos atrás, 1950, quando Caetana esteve em
Trindade. O tempo presente é bastante marcado por dois acontecimentos significativos:
o governo militar de Emílio Médici e a conquista pelo Brasil do tricampeonato mundial
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de futebol no México. As imagens de Médici e Pelé se fundem, produzindo um clima de


ufanismo desmedido em que não somente são questionadas, como também negadas, as
ressonâncias que ali chegam de perseguições políticas, torturas e desmandos do regime
político no poder. Esse posicionamento revela a não admissão da própria realidade do
país. Essa negação da realidade é denominada por Rosset (1998, p. 49) de ilusão
metafísica: “Segundo esta estrutura metafísica, o real imediato só é admitido e
compreendido na medida em que pode ser considerado a expressão de um outro real, o
único que lhe confere o seu sentido e a sua realidade”. Associando uma paixão nacional
– o futebol – ao surto desenvolvimentista que acompanhou o início da década de 1970,
organiza-se o cenário ideal para a grande farsa, cujo clímax será a performance de
Caetana. O tempo passado é constituído pela estada de Caetana em Trindade. Esse
período marcou uma espécie de apogeu da cidade: o hotel Palace era novo, e as
personagens eram jovens, repletas de vitalidade e de perspectivas, desenhando-se um
cenário de ascensão e prosperidade. Grande parte das ações narrativas são orientadas na
tentativa de recuperação desse tempo passado.
O espaço é constituído por uma cidadezinha do interior com suas personagens típicas
pontificadas por Polidoro, grande latifundiário, dono de fazendas e rebanhos e também
de propriedades na cidade, inclusive o hotel. Em Trindade, parece que o tempo parou há
vinte anos, quando Caetana abandonou a cidade, ou, mesmo, retrocedeu, visto que nem
mais o trem passa, agora, pela estação abandonada. Os espaços sociais são claramente
delimitados, de um lado o mundo privilegiado de Polidoro e seus amigos, o
farmacêutico Ernesto, o professor Virgílio, o delegado Narciso; de outro, o universo
subalterno dominado pelas Três Graças – Diana, Sebastiana e Palmira – e Gioconda,
prostitutas da Casa da Estação. Configura-se, portanto, um universo hegemonicamente
masculino, cabendo às mulheres a inferioridade e a exploração, ao menos,
provisoriamente. A subalternidade do espaço feminino materializa-se na designação das
prostitutas que remete à mitologia – deusas ligadas à música e à dança e companheiras
de Afrodite – de que elas constituem uma triste paródia, da mesma maneira que
Gioconda é assim denominada por Caetana em homenagem a uma ópera de Verdi.
A ilusão oracular, latente há vinte anos, presentifica-se, marcada por vários
presságios, no dia em que chega a carta de Caetana. Polidoro “pressentiu então que
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aquela segunda-feira, com manchas quase amarelas no céu, ameaçava espalhar a


discórdia por onde quer que fosse” (p. 5) 1; “o vento desta manhã trazia maus
presságios” (p. 26); a esposa de Ernesto sonhara com “uma mulher que levava asas nas
costas e cuspia moedas de ouro”. (p. 27).
A tentativa de recuperação do tempo passado fica evidente nos termos da carta em
que Caetana anuncia o seu regresso a Trindade: “Retorno, pois, neste mês de junho, e
pelo mesmo trem que me levou. Escolhi sexta-feira para ter a ilusão de que não se
passaram vinte anos”. (p. 55). Não somente Polidoro, mas toda a cidade vive das
lembranças de Caetana que, agora, pretende, com seu retorno, reatar o fio do tempo,
disseminando, entre seus amigos, o mesmo desejo. Isso implica a transformação de um
sonho em realidade, com a carga de desilusão e desesperança que essa mudança
acarretará, como pressentido pelo professor Virgílio, “até ontem à noite, nos iludíamos
com a felicidade. A partir desta carta será mais difícil, não é?” (p. 55). A notícia do
retorno de Caetana, tão aguardada quanto temida, instaura o domínio do simulacro,
expressão de um real substituto que empresta sentido à vida que se desenrola em
Trindade, envolvendo seus habitantes. A ilusão oracular referida por Rosset é enunciada
por Caetana em sua carta quando escreve: “Quanto ao resto é aguardar. A vida é quem
nos dá o recado no canto do ouvido.” (p. 55).
O processo de reconstrução do passado inicia quando Polidoro solicita os favores de
Gioconda, dona do bordel Casa da Estação, para, através de sua influência junto a um
dirigente da companhia ferroviária, desviar o trem para o ramal da cidade, abandonado
há sete anos, o que desperta as reminiscências de Gioconda e das Três Graças que
também resolvem ir à estação esperar por Caetana.
O decadente hotel Palace tem a suíte do quinto andar restaurada, inclusive, os
antigos móveis são resgatados do depósito para guarnecer o local, procurando recriar o
ambiente que servira de palco aos amores de Polidoro e Caetana. A fidelidade à
decoração tem o duplo propósito de enganar tanto Caetana quanto Polidoro, de maneira
que ela “jamais suspeitasse de haver abandonado Trindade, o tempo suspenso
induzindo-os a crer que eram vinte anos mais jovens.”(p. 67-68). Os fantasmas que

1
Todas as citações referem-se a esta edição: PIÑON, Nélida. A doce canção de Caetana. Rio de
Janeiro: Record, 1997, sendo indicadas apenas pelo número da página entre parênteses.
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povoam o porão do hotel provocam delírios, tornando mais intenso o desejo de Polidoro
de reconstruir, aos sessenta anos, uma paixão que dominara seus anos dourados.
A busca pelo colchão que estava na suíte do quinto andar, há vinte anos, torna-se o
símbolo mais expressivo do processo de mistificação que recobre o retorno de Caetana.
Há que reconhecer, numa pilha enorme, o colchão autêntico que estava sobre a cama da
suíte. As reminiscências evocadas por Virgílio desencadeiam o desalento, e Polidoro
recobra a consciência da passagem do tempo: “Aos poucos desvanecia-se sua exaltação.
Nenhuma voz interior ditava-lhe sentimentos capazes de substituir os antigos, quando
tinha quarenta anos”. (p.79).
A memória privilegiada de historiador confere a Virgílio um papel central na
reconstituição da suíte, recompondo detalhes como o jarro com flores amarelas e o
baralho de cartas. O denodo do professor eleva-o ao primeiro plano da encenação,
transformando-o em figura principal no cenário que está sendo construído, ofuscando a
presença de Polidoro, derrotado pela inclemente passagem dos anos.
A mistificação também envolve a preparação para a chegada do trem a Trindade,
revestida de toda a discrição, sem apitos e muito rapidamente, a fim de que os possíveis
curiosos se acreditassem vítimas de uma ilusão. Rosset (1998), ao discutir a ilusão
oracular, chama a atenção para essa modalidade de engano, enquanto a atenção é
desviada para um lado, a ação ocorre exatamente no oposto. Ou ainda, essa ilusão
refere-se a um artifício através do qual é burlada a consciência do enganado. Resultado
de uma ilusão, o afastamento do real não domina apenas Polidoro e Caetana, mas as
demais personagens que circundam o casal – as prostitutas da Casa da Estação e os
amigos de Polidoro – todos engajados na reconstrução de uma réplica que elida a
passagem dos anos.
Rosset considera essa ilusão como produto de uma percepção inútil, ainda que a
realidade esteja posta, o iludido insiste em não vê-la, ou, se a vê, percebe-a de maneira
deformada, uma vez que reconhece apenas os elementos que se identificam com o seu
desejo. O ocultamento de propriedades da realidade produz no sujeito a negação das
consequências dessa realidade ou, ainda, como considera o autor, a percepção se
subdivide em dois aspectos, um teórico, que consiste naquilo que é visto, e um prático,
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aquilo que é feito. Dessa maneira, não há relação entre a situação e as ações dela
derivadas.
Depois de grande expectativa, a chegada de Caetana Toledo impõe o fim de vinte
anos de ilusões. Aparece na boléia de um caminhão, frustrando a comitiva que fora
recebê-la na estação ferroviária. Essa foi a primeira de uma série de desilusões,
constituindo, também, o desmantelamento de um mundo inventado no qual a artista
reinava soberana. A idealização presente no imaginário de cada um não suporta a
realidade que se instaura a partir dos projetos de Caetana, por isso o pequeno universo
reunido no Hotel Palace recorre à fantasia. A simulação envolve os amigos do
latifundiário, os funcionários do hotel, a dona da Casa da Estação e as Três Graças os
quais, conduzidos por Virgílio e Gioconda, inventam um enredo envolvendo Polidoro e
Caetana, a fim de satisfazer a necessidade de que a ilusão, acalentada por tanto tempo,
seja mantida. Polidoro, que a tudo assiste, sai sem revelar detalhes de seu encontro com
Caetana, o que, certamente, decepcionaria a todos, dimensionando a grande distância
existente entre devaneio e realidade. Novamente a questão do duplo se faz presente,
através da cisão entre realidade e fantasia: de um lado, o projeto de Caetana, de outro, a
permanência da ilusão dos amigos de Polidoro.
O sonho de Caetana tipifica um duplo de personagem, de acordo com suas palavras:
“Quero ser a Callas ao menos uma vez na vida. [...] maldita grega que há anos não me
deixa dormir. Por ela me consumo de inveja”. (p. 190). Essa revelação, verdadeiro
motivo de seu retorno a Trindade, consegue destruir os vinte anos de ilusão cultivados
por Polidoro. A recusa do pudim feito com duas dúzias de gemas evidencia sua
desesperança: “O que faremos de nossas vidas depois do pudim? disse ele, desolado,
sabendo de antemão que nenhuma resposta o ajudaria a manter vivo o sonho que se
alimentara com vinte anos de espera.” (p. 191).
Ainda que a realidade se mostre evidente, o iludido insiste em ver outra coisa em seu
lugar. É o caso de Polidoro que, não obstante a revelação de Caetana sobre o seu desejo
de interpretar uma ópera de Verdi, como se fosse a Callas, e precisasse dele apenas para
financiar o seu projeto, insiste em se ver como o macho ideal para ela: “Caetana veio do
Recife exclusivamente para me fazer uma declaração de amor. Ela quer ter certeza de
que não escolheu o homem errado para viver o grande amor de sua vida. O desafio que
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me lança agora é para macho só como eu”. (p. 205). Esse fragmento ilustra a tese de
Rosset (1998, p. 11), quando afirma “nada mais frágil do que a faculdade humana de
admitir a realidade, de aceitar sem reservas a imperiosa prerrogativa do real”. Embora
Polidoro não tivesse obtido do encontro na suíte do quinto andar do Palace Hotel mais
do que ficar com os cabelos desgrenhados e ter sido arranhado pelo gato de Caetana,
não hesita em colocar seu dinheiro e sua influência para cumprir os desígnios da diva,
sob a égide de uma cosmogonia mitológica eivada de equívocos e lugares comuns, que
possibilita a superposição da história do Brasil com da Rússia, identificadas no episódio
da cidade fantasma construída por Potenkin para ser vista e admirada pela rainha
Catarina.
O duplo de acontecimento é preparado com a pintura de painéis gigantescos os quais
devem ocultar o decadente cinema Íris, transformando-o em um opulento teatro grego
onde se apresentará Caetana Toledo, única e verdadeira artista de Trindade, naquele
que, talvez, “fosse o único local da terra que guardava dela a memória de um estrelato
alimentado a cada pôr-do-sol pelo amor de Polidoro”. (p. 209). A idéia de simulacro
materializa-se em um teatro de mentira, que ilude, especialmente, Polidoro, enquanto os
demais, em busca de uma última quimera, mergulham numa fantasia coletiva, sem
prevenir-se dos ardis do destino que se produzirá não obstante os esforços para frustrá-
lo.
Muito embora Caetana seja a mentora dessa farsa, também é sua maior vítima. Ao
mesmo tempo, a artista é aquela que ela é (Caetana, artista de um circo mambembe) e
aquela outra a quem ela busca (a Callas, cantora lírica), configurando um duplo
predestinado à derrota. A frustração por não ter sido ensinada a cantar e por ter
fracassado ao apresentar-se em um programa de calouros na Rádio Nacional, quando
ainda era criança, marcaram sua vida, por isso ela, no crepúsculo de seus dias, decide,
numa cartada decisiva (as cartas de baralho têm grande valor alegórico tanto para ela
quanto para Polidoro), montar um espetáculo lírico. Ainda que mentirosa, a
representação consistiria na materialização de um sonho acalentado desde menina pelas
fantasia de tio Vespasiano que a criara e lhe ensinara as artes do circo.
O simulacro então montado em Trindade tem a possibilidade de evidenciar o
trabalho artístico de Caetana que transforma em arte o espaço vulgar da cidadezinha,
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duplicando bordel e teatro como lugares de encenação, carnavalizando a paixão erótica


de Polidoro e o amor incondicional de Gioconda, fundamento de sua performance de
atriz. O grego Venieris, encarregado de transformar o velho cinema em imponente
teatro, por meio da pintura de gigantescos painéis simulando um teatro grego, que
encobririam as paredes mofadas do decadente Íris, reforça a ilusão, trazendo de sua casa
um espelho bizantino e um biombo. Enquanto o biombo tem a propriedade de ocultar, o
espelho caracteriza-se por desvendar, prestando-se para refletir não somente as imagens,
mas também conteúdos da percepção, dos valores, dos sentimentos. Nesse espelho,
duplicam-se as imagens de Gioconda e das Três Graças, travestidas de atrizes, tentando
tornar-se personagens de suas próprias vidas, a fim de esquecer a tristeza da decadência
advinda com a idade que avança e a miséria que se aproxima. A espera pela encenação
alterna sentimentos de alegria, pela comunhão que se instaura entre os parceiros de
Caetana, e de desesperança pela solidão que os acomete quando as individualidades
emergem, sensibilizadas pela arte.
Os sentimentos têm valor, para Caetana, somente quando são enunciados por meio de
falas teatrais, já que a única realidade existente é a representação. A verdade só passa a
existir quando referendada pelo outro, fonte de toda a emoção. Na realidade, Caetana
não é mais ela, é outra, ou seja, como ser humano não existe mais, despersonalizou-se
para representar o papel de Caetana, a atriz. Esta, por sua vez, tenta mimetizar Maria
Callas, objeto de culto desde a época em que o tio vaticinava-lhe um grande futuro no
teatro Municipal do Rio de Janeiro. A imitação não se limite à performance, uma vez
que aparece para o ensaio, no teatro, depois da meia-noite, vestindo uma capa vermelha
com lantejoulas, no mesmo modelo usado pela cantora lírica na montagem da ópera
Tosca.
O recurso da duplicidade está presente também em Narciso, lembrando o mito grego
revestido de uma simbologia negativa, como uma tendência que o acomete, permitindo-
lhe deformar a realidade. Narciso, cuja família está no Rio de Janeiro, é o delegado de
polícia de Trindade. Recebe suborno de Polidoro, insuficiente, porém, para comprar um
apartamento em Copacabana e reaver o afeto da família. Pusilânime, acovarda-se diante
dos poderosos, adotando uma posição subserviente, enquanto se consome de rancor, por
estar sozinho numa cidade pequena, sem perspectiva alguma de sair dali. Duplicam-se,
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nessa personagem, essência – detesta a cidade, somente desejando voltar à cidade de


origem – e aparência – cultiva boas relações com os poderosos, a fim de auferir alguns
ganhos –, evidenciando a infelicidade pela situação em que se encontra.
Dois fatores conspiram para o fracasso do projeto artístico de Caetana, a ambição de
Narciso e o ciúme de Dodô. Dodô, esposa de Polidoro, procura espezinhar o marido em
todas as oportunidades, numa inútil tentativa de vingança contra Caetana a quem atribui
o naufrágio de seu casamento. Polidoro sempre temeu os recursos secretos de que sua
mulher poderia utilizar para obter o que desejasse. Em contrapartida, o maior receio de
Dodô é que a paixão doentia de Polidoro conduza a família à miséria. Entre os seus
artifícios, está a capacidade de subornar auxiliares do marido e utilizar a influência
política de que dispõe. Dodô coloca em ação essas estratégias a fim de promover o maior
desastre de Trindade, a derrocada de Caetana, revelando a fraude na encenação da ópera
La traviatta.
Desmascarado o ardil utilizado – a dublagem da ópera –, resta o desconsolo e a
amargura pelo desvanecimento da esperança de todo grupo envolvido com a
representação de tornar-se parte de um espetáculo artístico, mesmo que isso não passasse
de um mero reflexo. Caetana, diante da impossibilidade de realizar seu sonho de ser a
Callas por uma noite, experimenta mais uma frustração e parte novamente, anunciando
que somente retornará passados mais vinte anos. Na realidade, o verdadeiro, o vivo era o
duplo, pois, quando o simulacro foi destruído, restaram apenas as sombras. Muito
embora os atores fossem falsos e a representação um mera pantomima, enquanto as
prostitutas e os amigos de Polidoro se imaginavam em cena, um ar renovado dotou de
novo alento aqueles seres de poucas perspectivas. No entanto, a artista, interessada
unicamente em realizar seu projeto, não se preocupa com seus coadjuvantes. O retorno à
realidade, com o final da fantasia, mergulha-os na desesperança, numa situação mais
desalentada ainda do que quando sonhavam com a epifania coletiva que seria produzida
no dia em que Caetana voltasse a Trindade.

Conclusão
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O duplo, como categoria analítica, possibilita o mapeamento da relação dialética entre


ilusão e realidade, na medida em que o 'outro', mais do que uma possibilidade ou uma
alternativa viável, sofre uma hipertrofia, sobrepujando o 'eu' e esvaziando a identidade. A
máscara assumida por Caetana impregna-a com tal intensidade que o ser, por trás do
artefato, desaparece para dar espaço ao outro, no caso, Maria Callas, rediviva na
adoração da artista circense que a presentifica no Hotel Palace e depois no Íris. Como
todo o simulacro é irreal e não se sustenta, o mundo imaginado pela atriz também
sucumbe ao impacto da realidade, representada pelas ações de Dodô e Narciso.
O duplo de acontecimento preconiza que o destino é inelutável. Caetana jamais
poderia ser Maria Callas, muito embora Polidoro empenhasse um esforço desmedido e
uma significativa para construir o aparato que transformasse o decadente cinema num
teatro lírico. Rosset (1998) enfatiza que a tentativa de burlar o destino é infrutífera, pois a
própria burla pode consistir no instrumento para a realização do fado. A ilusão do duplo
é destruída quando a vitrola de tio Vespasiano se cala, e a realidade irrompe com sua
carga de tristeza e desalento, destruindo a fantasia e reconduzindo cada personagem à sua
solidão e ao cotidiano medíocre de Trindade.

REFERÊNCIAS
CAMPELLO, Eliane T. A. O Künstlerroman de autoria feminina: a poética da artista
em Atwood, Tyler, Piñon e Valenzuela. Rio Grande, RS: Ed. da Furg, 2003.
PIÑON, Nélida. A doce canção de Caetana.. Rio de Janeiro: Record, 1997.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Apres. e trad. BRUM,
José Thomaz. Porto Alegre: L&PM, 1998.
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A HOSTILIDADE DO RACISMO VELADO EM FRUIT OF THE LEMON (1999)


DE ANDREA LEVY

Celia Regina Lessa Aleixo (PG – UEM)


Thomas Bonnici (UEM)

Introdução

Embora as teorias raciais tenham perdido força, pela comprovada falta de


embasamento científico que justifique a superioridade de determinados seres humanos
em detrimento de outros com base em características físicas, o ambivalente termo ‘raça’
ainda permeia os debates acerca da discriminação de grupos em função da cor dérmica.
Na teoria pós-colonial, ‘raça’ e racismo são noções fundamentais para as análises
literárias, haja vista o fato de a divisão dos seres humanos em grupos ‘raciais’
superiores e inferiores ter servido de pretexto para justificar as atrocidades do período
imperial. Apesar de tal hierarquização da humanidade não ter surgido com o
colonialismo, percebe-se que o racismo foi um seu aliado e produto parcial.

As vítimas mais óbvias do racismo são aqueles cujas identidades foram


forjadas no caldeirão colonial: os africanos, os asiáticos e os povos
nativos das Américas, assim como aqueles que foram deslocados pelo
colonialismo, como é o caso dos asiáticos e dos caribenhos na Grã-
Bretanha ou dos árabes na França. A cultura colonialista construiu um
sentimento de superioridade ontológica da Europa em relação às ‘raças
inferiores degradadas’ (SHOHAT, 1994, p. 45).

A distinção dos diferentes grupos humanos de acordo com características físicas e


biológicas, transmitidas geneticamente através das gerações, era a base do conceito de
‘raça’ que imperava no meio científico na época do colonialismo. De acordo com suas
peculiaridades físicas, a humanidade foi dividida em ‘grupos raciais’ distintos e
imutáveis, cujos comportamentos e personalidades também passaram a ser definidos em
função de suas origens.
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O pensamento racista, portanto, é a razão da existência do conceito de ‘raça’, pois


não houvesse o desejo de hierarquização dos homens, o conceito não teria sido criado e
se integrado à nossa sociedade como uma escala de valor classificatória de seres
humanos, incorporando-se ao imaginário cultural como se fosse real. Na
contemporaneidade, assumir-se racista é atitude de natureza grave que pode levar o
agressor a prisão, porém, percebe-se que a exclusão baseada no esquema dérmico ainda
permeia as relações interpessoais, o que rechaça o mito das sociedades multiculturais
que reconhecem os negros como sujeitos. Este recorte mostra o racismo velado que
subjaz as relações sociais entre a protagonista do romance Fruit of the Lemon (1999), da
autora britânica Andrea Levy, e as pessoas que fazem parte e seu círculo de amizades.
Ambientado na Londres da década de 1980, Fruit of the Lemon se abre discussão do
racismo velado, como estratégia de objetificação do negro na contemporaneidade, bem
como as tensões raciais que emergem nas relações de amizade entre negros e brancos,
através da análise de dois episódios do romance. A partir da perspectiva da teoria pós-
colonial, analisa-se o modo como o racismo, escondido sob o véu da aceitação, afeta a
subjetividade da protagonista do romance.

1. Raça e racismo – mito e realidade

O conceito de ‘raça’, pilar de sustentação do Imperialismo, serviu de justificativa


para a exploração colonial, pois ambos pautavam-se na divisão binária e hierarquizante
da sociedade em seres ‘civilizados’ e ‘primitivos’. Segundo Ashcroft (1998, p. 199), a
lógica do pensamento racista “considera que as características físicas imutáveis de um
grupo estão ligadas de forma direta e causal às suas características psicológicas e
intelectuais [...]”.
A transição do pensamento teológico para o pensamento científico foi fundamental
para a perpetuação da ideologia racista e para o entendimento de como os homens
brancos passaram a crer na inferioridade dos homens negros. Segundo Myrdal (2009, p.
120): “tão logo se espalhou a ideia de que o homem pertencia a um universo biológico,
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a conclusão de que o homem negro era biologicamente inferior passou a ser natural”. A
descoberta do pertencimento do homem ao universo biológico foi subvertida, levando a
dedução errônea de que a inferioridade do homem negro era de natureza biológica. Essa
visão de mundo através de lentes raciais se impregnou de tal forma no imaginário
popular que chegamos a pensar que todas as sociedades de todos os tempos também o
fizeram. Contudo, as diferenças detectadas entre as variedades de tipos humanos nem
sempre foi fator de exclusão. As diferentes concepções do mundo ao longo da história
atribuíram valores diversos as variadas características fenotípicas humanas. Os gregos,
por exemplo, apesar de reconhecerem a óbvia variedade de peculiaridades físicas entre
as populações, não as viam como diferenças raciais. A distinção preponderante na
sociedade grega era entre ‘civilizados’ e ‘bárbaros’, e sua concepção acerca de política e
civilidade baseava-se no pertencimento a sociedade grega e no domínio da língua grega.
A Idade Média, período pautado pelos dogmas religiosos cristãos que dividiam a
realidade no binarismo ‘bem’ e ‘mal’, via no pertencimento ou não a religião cristã fator
de inclusão ou exclusão dos homens, sendo que a cor dérmica não tinha nenhuma carga
depreciativa.
As conquistas territoriais empreendidas nos séculos XV e XVI e o contato com os
habitantes do continente africano constituem-se em marcos da percepção da cor da pele
como fator de distinção entre europeus e africanos. A época das grandes viagens,
portanto, “inaugura um momento específico na história ocidental, quando a percepção
da diferença entre os homens torna-se tema constante de debate e reflexão”
(SCHWARCZ, 1993, p. 44). As narrativas de viagem aliavam fantasia e realidade, haja
vista as descrições dos ‘nativos’ como possuidores de costume e natureza diversos,
sendo o centro europeu o parâmetro de comparação. As transformações políticas e
econômicas ao longo do tempo aproximaram o critério de cor dérmica com a categoria
de raça, culminando com a valorização das características biológicas que ocorreria no
decorrer do século XIX.

O debate científico acerca da causa das diferenças entre os povos provocou


questionamentos que levaram a diferentes teses – afinal, seriam todos os homens
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descendentes de uma única ‘matriz’, diferenciada ao longo das gerações por influência
climática e por diferentes respostas ao que seu ambiente lhe impunha ou, ao contrário,
seriam as diferenças explicadas pela origem a partir de várias ‘matrizes’? A grande
questão a ser respondida era como poderiam todos os seres humanos possuir uma
natureza comum, se eram tão diversos nos aspectos físicos, sociais, culturais e
intelectuais.

De um lado, a visão humanista herdeira da Revolução Francesa, que


naturalizava a igualdade humana; de outro, uma reflexão, ainda tímida,
sobre as diferenças básicas existentes entre os homens. A partir do
século XIX, será a segunda postura a mais influente, estabelecendo-se
correlações rígidas entre patrimônio genético, aptidões intelectuais e
inclinações morais (SCHWARCZ, 1993, p. 47).

No século XIX, a ideia de ‘raça’ se desenvolveu como uma forma de explicar a


persistência das desigualdades numa sociedade que se dizia igualitária – essa
naturalização das desigualdades via o destino dos diferentes grupos moldado por
características intrínsecas que seriam explicadas em termos científicos.
As várias teorias raciais que surgiram no século XIX, cada qual com suas
peculiaridades e excentricidades, tinham em comum o fato de usarem argumentos das
ciências naturais para explicarem fenômenos sociais, encarando a ordem social vigente
como fruto de leis naturalmente impostas. O racismo científico corroborou a afirmação
da suposta aptidão dos homens brancos em dominarem os negros em nome da ciência e
do progresso. O Imperialismo Europeu, assegurado pela ciência, se baseou na
degradação das ‘raças inferiores’ e na idealização de sua empreitada, cuja ‘missão
civilizadora’ tiraria os povos colonizados da escuridão, dando-lhes acesso as ‘benesses’
da metrópole. Com o respaldo da ‘inquestionável’ ciência, construiu-se um discurso
colonial alicerçado na imagem dos negros como indivíduos fisicamente mais fortes,
primitivos e submissos, cuja mão-de-obra barata, após a abolição da escravatura, se
adequava aos empreendimentos coloniais.
Uma complexa rede de acontecimentos sociais e políticos ocorridos na primeira
metade do século XX, entre eles, a revolta no interior das colônias e o enfraquecimento
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do domínio europeu, deram início ao questionamento do poder das teorias raciais. Para
os antropólogos do século XX, costumes, rituais e hábitos das diferentes populações
humanas passam a adquirir importância em sua diferenciação dos demais. Apesar da
perda de crédito das teorias raciais, o pensamento racista ainda se mantinha arraigado,
haja vista a permanência da ‘diferença’ como parâmetro de divisão de indivíduos, como
se parâmetros culturais tivessem substituído os parâmetros biológicos. Para os
chamados antropólogos culturais,

A humanidade era composta de uma multiplicidade de pessoas, cada


qual habitando seu mundo simbólico e social. Despossuídos da fé no
progresso evolutivo, a nova raça de antropólogos via a sociedade, e as
diferenças sociais, de forma relativamente estática. Porém ainda o
faziam com base na diferença. O império da cultura, ao contrário do
império da raça, não era hierarquicamente ordenado, mas a diferença
ainda ocupava o trono (MALIK, 2008, p. 169).

Nos anos 1970 e 1980 a noção de etnicidade ganhou força no debate acadêmico
sobre as diferenças, embora essa mudança de foco pareça não ter se refletido no
pensamento popular, ou seja, o conceito biológico de raça continuou arraigado no
pensamento das pessoas. Enquanto a noção de etnicidade está fundada em elementos
culturais, historicamente determinados como religião e a língua, o conceito de ‘raça’,
por ser geneticamente determinado, parece ser uma idéia mais facilmente identificável,
daí sua permanência tão fortemente arraigada no imaginário popular, através do
discurso racista.
Portanto, mesmo que se digam inclusivas, a suposta convivência pacífica, bem como a
igualdade de direitos entre negros e brancos nas sociedades ditas multiculturais, como a
sociedade inglesa, contexto em que a obra de Levy é ambientada, é ilusória e a suposta
igualdade só funciona no mundo ideal, pois no mundo dos homens a cor dérmica continua
sendo fator de discriminação.

2. O racismo velado em Fruit of the Lemon


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Fruit of the Lemon, o terceiro livro de Andrea Levy, publicado em 1999, aborda a
dificuldade enfrentada pelos negros britânicos, descendentes das ex-colônias em terem
sua identidade inglesa reconhecida numa sociedade racista que ainda tem dificuldade
em reconhecer, como parte de sua mítica identidade, seus filhos que fogem do
estereótipo do europeu branco.
Ambientado em Londres e na Jamaica, na década de 1980, o romance é narrado pela
voz da protagonista Faith, jovem negra, cujos pais, Mildred e Wade, deixaram a
Jamaica em busca de melhores perspectivas de vida na Inglaterra. Faith e o irmão Carl
foram educados em Londres sem que os pais lhes informassem a respeito das
motivações que os levaram a migrar para a pátria-mãe, nem sobre o que destino do
restante da família que permanecera na Jamaica, com os quais o único fio de ligação era
uma caixa de presentes que chegava à casa todo Natal.
Contrariando as expectativas dos pais que sonharam para a filha um casamento com
um noivo jamaicano, Faith deixa a casa da família para morar com os amigos Marion,
Mick e Simon, todos eles de pele clara, como pondera o pai na primeira visita a filha em
sua nova casa. No relacionamento com os colegas e seus familiares, temos indícios do
racismo velado que permeia as relações sociais naquele contexto, através de
comentários racistas, logo corrigidos, toda vez que se dão conta da presença de Faith.
Um dos indícios de racismo velado é retratado no episódio da ida de Faith, Mick,
Marion e seu pai a uma apresentação de Simon, seu colega de apartamento, em um pub
em Londres. Após uma série de performances, a última apresentação da noite fica por
conta de um poeta negro, de sotaque jamaicano que, ao subir ao palco, faz Faith
perceber que ambos são os únicos negros presentes no local. Ao anunciar o último
poema, o jovem é insultado pelo pai de Marion que se pronuncia em voz alta,
mostrando o quanto o fato de o artista ser negro o incomodava, deixando todos
constrangidos.

‘Este é o último’, disse o poeta, e o pai de Marion disse, ‘Bom’, alto


suficiente para que as pessoas próximas olhassem para nossa mesa. Ele
estava recostado no encosto da cadeira com seus braços cruzados e um
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sorriso de desdém que me fez lembrar o olhar dos meus professores da


escola a espera de que as crianças bagunceiras fizessem silêncio.

‘This is me last one’, the poet said and Marion’s dad said, ‘Good’, loud
enough for people around to look over our table. He was sitting back
with his arms folded and a smirk on his face that I recognized from
teachers at school when they were waiting for the cheeky kids to be
quiet (LEVY, 1999, p. 92).

Ao final da apresentação, percebendo que Faith ficara chateada com o


comportamento do pai, Marion tenta justificar-se dizendo que às vezes ele era ‘meio
racista’, fato que em sua opinião era algo culturalmente impresso em seu modo de
enxergar o mundo.

Eu disse a ele, ‘como acha que Faith se sente?‘ – ele é tão insensível.
Ele simplesmente disse, como sempre, ‘Oh, Faith é diferente’. E eu
disse, ‘Não, ela não é. Faith é minha melhor amiga e ela é negra’. Mas
sabe, isso é cultural … eles gostam de você Faith. É uma questão de
educá-los […] eu estou sempre lutando com eles. Mas eles cresceram
assim.

I said to him, ‘how do you think it makes Faith’? – I mean, he’s so


insensitive. He just said, as usual, ‘Oh, Faith’s different’. And I said,
‘No she isn’t. Faith is my best friend and she is black’. But you see it is
a cultural thing … they like you Faith. It’s a matter of educating them
[…] I am forever battling with them. But they’ve just grown up
like this’ (LEVY, 1999, p. 92).

Mesmo que poucos admitam abertamente sua rejeição aos negros e mesmo que
ataques ostensivos contra afro-descendentes e outras minorias sejam rechaçados e
expostos pela mídia, esse episódio representa o quanto essa prática continua permeando
as relações sociais através de humilhações sutis, através da negação aos mesmos direitos
dos cidadãos brancos, através de uma série de atitudes racistas que Shohat (1994, p. 49)
chama de “multiformes, fragmentadas e esquizofrênicas”.
Shohat (1994) utiliza a seguinte terminologia para distinguir os variados ‘tipos’ de
racismo: racismos exclusivos, ou de extermínio e inclusivos de exploração; entre
racismo explícito, expresso em atitudes hostis, e encoberto, no qual a hostilidade não é
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óbvia e direta; racismo inferencial, quando eventos que envolvem proposições racistas
são percebidos como inquestionavelmente naturais; e por fim a clássica divisão entre
racismo individual e institucionalizado, divisão problemática na opinião da autora, visto
o racismo não poder ser reduzido a
[...] uma simples questão de atitude, mas de um aparelho institucional e
discursivo construído historicamente através da desigualdade drástica
de distribuição de recursos e oportunidades, da divisão injusta da
justiça, da riqueza, do prazer e da dor. É mais um abuso de poder do
que um erro de lógica, mais uma destruição de esperanças e de vidas do
que de ‘atitudes’ incorretas (SHOHAT, 1994, p. 52).

Ao dizer que o pai ‘às vezes é um pouco racista’, atribuindo seu comportamento à
educação que recebera, Marion expõe além da questão de seu ‘racismo encoberto’ o
quão institucionalizado tais comportamentos individuais são, sua atitude não representa
um ato racista isolado, mas um comportamento tão arraigado no imaginário popular que
para pessoas que dividem seu modo de pensar passa a ser natural.
A viagem de Faith e Simon para um fim de semana na casa dos pais do rapaz é um
episódio que, além de demonstrar o racismo encoberto, também traz à tona ligações
entre Inglaterra contemporânea e o passado de exploração do Império. A imponência da
mansão da família é reflexo de sua descendência aristocrática: “Havia muitos cômodos
na casa dos pais de Simon. A casa era decorada com antiguidades [...] porta-retratos
pintados [...] Eles costumavam usar marfim para confecção desses porta-retratos, mas
hoje é proibido”. “There were lots of rooms in Simon’s parents’ house [...] The house
was also furnished with antiques […] painted portraits […] They used to use ivory for
these sort of portraits but you can’t nowadays” (LEVY, 1999, 121). A observação do
amigo acerca da proibição do uso de marfim na confecção de artefatos decorativos é
seguida por um intervalo de silêncio, consequência da lembrança da ligação entre o
passado colonial de exploração de terras de África, ou seja, dos ancestrais de Simon e os
de Faith. Naquele momento, a “presença de Faith é o elo entre o Império e a sociedade
inglesa, ainda ‘racializada’, da contemporaneidade” (BONNICI, 2009).
O encontro da protagonista, Simon e sua mãe com Andrew Bunyan, advogado amigo
da família, em um pub do vilarejo, naquele mesmo final de semana, é emblemático do
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racismo encoberto. A conversa é permeada por marcadores de racismo desde o


momento em que os dois são apresentados:

‘De onde você é, Faith?’ ‘De Londres, eu disse’. O homem riu. ‘ Eu


quero dizer de que país você vem?’ Eu nem me esforcei para dizer que
havia nascido na Inglaterra, que eu era inglesa, porque eu sabia que não
era isso que ele queria ouvir. ‘Meus pais são da Jamaica.’ ‘Bem, sabe,
eu achei mesmo’, ele começou. ‘Logo que você entrou eu pensei aposto
que ela é da Jamaica’.

‘Whereabouts are you from, Faith?’ ‘London, I said’. The man laughed
a little. ‘I meant more what country are you from?’ I didn’t bother to
say I was born in England, that I was English, because I knew that was
not what he wanted to hear. ‘My parents are from Jamaica.’ ‘Well, you
see, I thought that’, he began. ‘As soon as you walked in I thought I bet
she’s from Jamaica.’ (LEVY, 1999, p. 130)

O embaraço da situação se estende com o comentário feito por Bunyan a respeito de


sua viagem a Jamaica e o encontro que teve com um negro jamaicano que tinha o
mesmo sobrenome que ele:

‘Eu estava na Jamaica e encontrei esse cara […] cabelo rastafári [...] e
negro ... negro! […] mais negro que você […] seu nome era Winston
Bunyan, acredita nisso?’ Eu disse , ‘Bem, [...] Sua família
provavelmente tinha posse sobre esse homem e a família dele’ [...]
‘Não! Minha família nunca teve conexões como essa na Jamaica.
Minha família não tinha esse tipo de negócio.’

‘I was in Jamaica and there is this chap [...] dreadlocks […] And black
… black!’[…] ‘Darker than you […] His name was Winston Bunyan
Can you believe it? […] I said, ‘Well, […] Your family probably owned
his family once.’[…] ‘No! My family never had connections like that in
Jamaica. My family were not in that sort of business.’ (LEVY, 1999,
p.130-131)
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A atitude de Bunyan revela dois pontos importantes e contraditórios no


comportamento dos cidadãos ingleses brancos na contemporaneidade: primeiramente,
sua insistência em querer saber a origem de Faith demonstra a força que a cor dérmica
tem na noção de identidade britânica, uma forma de racismo que oprime o negro
sobremaneira, como pondera Fanon:

[...] Os cientistas, após muitas reticências, admitiram que o preto era um


ser humano; in vivo e in vitro o preto tinha-se revelado análogo ao
branco [...] No plano das idéias, estávamos de acordo: o negro é um ser
humano [...] Mas o branco, em determinadas questões, continuava
irredutível. Por nenhum preço ele queria intimidade entre as raças [...]
(FANON, 2008, p. 111).

Por outro lado, a dificuldade de Bunyan em reconhecer a conexão de seus familiares


com as atrocidades do tráfico de escravos, o coloca numa atitude defensiva, eximindo-o
da culpa de seus ancestrais que, mesmo que ele não perceba, ainda respingam em sua
vida presente através de uma noção mesquinha de ‘inglesidade’.

No Reino Unido, por exemplo, a atitude defensiva produziu uma


‘inglesidade’ (englishness) reformada, um ‘inglesismo’ mesquinho e
agressivo e um recuo ao absolutismo étnico, numa tentativa de escorar a
nação e reconstruir ‘uma identidade que seja una, unificada, e que filtre
as ameaças da experiência social’(SENNET, 1971 apud HALL, 2006, p.
85).

Essa dificuldade em aceitar a identidade britânica de uma pessoa negra não poderia
ser explicada pela lógica, pois se sabe que a relação entre caribenhos e ingleses não
começou com os imigrantes que navegaram no SS Empire Windrush, mas muito antes,
com o tráfico de escravos que enriqueceu muitas famílias aristocráticas inglesas e que
financiou a construção de cidades como Bristol e Liverpool. Essa ligação da história da
Inglaterra com o tráfico de escravos, certamente revelaria, em qualquer pesquisa da
genealogia familiar, ancestrais brancos em famílias negras e vice-versa, o que torna a
questão de identidade bastante complicada.
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3. As tensões raciais persistem

Os episódios analisados retratam, na ficção, tensões raciais presentes na sociedade


inglesa, revelando que a cor dérmica ainda é fator de discriminação que, mesmo que
velado, ainda permeia as relações sociais na contemporaneidade. O fato de ser uma
atitude encoberta sob o véu da aceitação, não torna a estratégia menos agressiva,
deixando claro que a igualdade de direitos entre os cidadãos é bastante limitada, até
ilusória, pois

[...] desconsidera as especificidades étnicas, históricas, identitárias – em


suma – a diferença – que torna o espaço social heterogêneo. Cega a
estas diferenças, esta igualdade é, na verdade discriminatória. [...]
aplicando-se somente a um cidadão ideal e não a indivíduos reais
(SEMPRINI, 1999, p.93)

Ao negar a relevância e o respeito às diferenças para o entendimento da diversidade,


prega-se uma suposta igualdade que só funciona no mundo ideal, pois no mundo dos
homens, a cor dérmica continua sendo fator discriminatório que, juntamente com a
etnia, classe e religião impedem o negro de se afirmar como sujeito agente nas
sociedades que, a exemplo da Londres contextualizada no romance, fingem ser
democráticas e inclusivas.
Os episódios analisados demonstram que, embora as teorias raciais tenham perdido
terreno ao longo dos anos, o termo ‘raça’ ainda tem força, haja vista os comentários
preconceituosos por parte do pai de Marion e do amigo de Simon. O fenômeno do
racismo, apesar de por muitos considerado um discurso, exerce opressão real sobre
aqueles que têm na pele a diferença da cor com relação ao europeu branco, através de
estratégias que tem se modificado ao longo dos tempos:
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Hoje na Europa, a Nova Direita - os grupos que costumeiramente


chamados de ‘racistas’ (‘neonazistas’, ‘skinheads’, na França,
Alemanha, Áustria) – já não recorrem ao conceito de ‘raça’. Estes
grupos incorporaram um discurso (‘uma linguagem’) mais ‘moderno’ e
defendem agora a preservação da ‘cultura’ ou da ‘identidade nacional’.
E baseados nesse discurso de autodefesa, exigem medidas políticas que
visem a favorecer o seu grupo em detrimento de outro(s) (que,
normalmente, são ‘imigrantes’) (HOFBAUER, 2003, p. 55).

Percebe-se, portanto, que declarar-se multicultural e inclusivo, não significa sê-lo de


fato. Por baixo desse fino véu, emergem atitudes preconceituosas que, ainda, rotulam
seres humanos com base em sua cor dérmica. Nesse sentido, a escrita de Levy surge
como uma forma de luta ao denunciar que a discriminação não se refere apenas aos
ataques violentos explícitos noticiados esporadicamente nos jornais, mas também as
humilhações diárias sofridas pelos cidadãos negros.

Referências
ASHCROFT, B. et al. Key concepts in Post-Colonial Studies. London: Routledge, 1998.
BONNICI, T. Levy’s Fruit of the Lemon (1999) and the construction of identity.
Línguas e Letras, Cascavel, v. 10, n.18, 2009.
FANON, F. Pele Negra Máscaras Brancas. Trad. SILVEIRA, Renato da. Salvador:
EDUFBA, 2008.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2006.
HOFBAUER, A. Raça, cultura e identidade e o “racismo à brasileira”. In: BARBOSA,
L.M.(Org.). De preto a afro descendente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura
negra e relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos: EdUFSCAR, 2003.
LEVY, A. Fruit of the Lemon. New York: Picador, 1999.
MALIK, K. Strange Fruit: Why both sides are wrong in the race debate. Oxford:
Oneworld, 2008.
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MYRDAL, G. Racial Beliefs in America. In: LES BACK; SOLOMOS, J. Theories of


Race and Racism. New York, 2009.
SEMPRINI, A. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999.
SCHWARCZ, L.M. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SHOHAT, E.; STAM R. Crítica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify,
1994.
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CORPO SÍGNICO: TRABALHO EM TEATRO COM BASE NA TÉCNICA


KLAUSS VIANNA

Ceres Vittori (UEL)

Introdução: Técnica Klauss Vianna

O tema central deste texto compõe-se a partir dos paradigmas de construção de uma
técnica corporal que dialoga com a arte do século XXI. O ponto de partida é o trabalho
de ator, entendendo-o como objeto de conhecimento e enquanto processo de
comunicação. Uma dinâmica sustentada pela vivência e reflexão sobre a questão do
corpo do ator como seu instrumento fundamental de trabalho e esse corpo como
elemento expressivo. Aqui se pretende ampliar o conhecimento sobre a obra deste que
foi um divisor de águas para o trabalho de percepção e expressão corporal no teatro
brasileiro: Klauss Vianna. Tomar esse corpo consciente, de forma a sistematizar e
aprofundar os estudos em teatro embasados por esse trabalho corporal, sob a perspectiva
da metodologia do trabalho do ator contemporâneo, principalmente no que concerne ao
treinamento.
Klauss Vianna (1928-1992) foi bailarino, criador de uma técnica de princípios e
domínio do movimento. Apesar de seguir sistemas de regras e códigos da dança, sua
técnica transcende a arte para ser entendida como um caminho de autoconhecimento
para a expressão do homem no mundo. Nascido em Belo Horizonte, estudou dança e
desde pequeno se interessou pelo teatro. Dedicou quarenta anos de sua vida para a
pesquisa e o ensino do movimento corporal, contribuindo para a evolução da dança e do
teatro no Brasil. Estudou e trabalhou em São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, Rio de
Janeiro e por onde passou revolucionou a técnica e a linguagem da dança. Coreografou,
entre outros, espetáculos como Roda Viva, Hoje é dia de Rock, Mão na Luva, Clara
Crocodilo, Dadá Corpo, Bolero e foi preparador corporal de grandes nomes do teatro
brasileiro tais como Marília Pêra e Marco Nanini. Dirigiu a Escola Oficial de Teatro
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Martins Penna, no Rio de Janeiro, o Instituto Estadual das Escolas de Arte (INEARTE)
e a Escola de Bailados do Teatro Municipal de São Paulo. Recebeu vários prêmios,
dentre eles o Molière como melhor coreógrafo de teatro, na peça O Arquiteto e o
imperador da Assíria.
Klauss Vianna utilizou seus preceitos técnicos, criando uma vertente que se
disseminou na dança e no teatro brasileiro. Sua influência é resultado de seus estudos
que, por sua vez, direcionaram a sua metodologia como preparador corporal, ator,
diretor, coreógrafo e diretor de técnica corporal, impulsionando o advento da profissão
de preparador corporal no teatro brasileiro. Sempre se preocupou em mostrar que a
dança sai da sala de aula para a vida e talvez tenha sido o único a sistematizar uma
técnica de dança que se preocupasse com a anatomia do brasileiro e valorizasse suas
formas próprias de expressão. É fundamental ressaltar a importância de seu sistema de
idéias, consideradas radicais naquela época, mas que mostram sintonia com a
contemporaneidade. A análise de sua obra à luz de novas propostas teóricas nos ajuda
na compreensão e contextualização de sua prática.
Esse processo evolutivo proposto por Klauss é individual, mas o entendimento
alcançado por ele vai muito além da técnica, em direção aos processos de comunicação
do corpo. Estende-se por uma visão de mundo, paradigmas, conceitos, procedimentos,
exercícios, objetivos, estruturas, entre outros elementos, alcançando o nível de sistema,
aberto e dinâmico, generoso o suficiente para que outros sigam perseguindo a
criatividade e a expressividade compreendidas em sua pesquisa. É nesse sentido que a
dança se desenvolve no trabalho de Klauss: como expressão total de um corpo, num
dado momento, em relação com o ambiente, por meio de suas mudanças de estado
(NEVES, 2008: p.126). Sua experiência nos incita a ampliar as questões para além do
nível técnico, ampliando novas possibilidades criativas de movimento, sem perder de
vista as necessidades de cada novo ser que se propõe a perceber e compreender os
processos evolutivos da “dança que está em cada um de nós”, segundo fala do próprio
Klauss. A individualidade contida nos conceitos da técnica faz com que cada intérprete
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possa registrá-la em seu corpo na forma de movimento expressivo, sendo essa dança, o
próprio ser que a executa.
Pensar uma obra teatral a partir deste olhar permite-me trazer à tona os estudos e a
vivência sobre a consciência do movimento, desenvolvidos junto aos Vianna, de forma
a associá-los a novas descobertas que virão compor este novo trabalho, a fim de traçar
mapas corporais para uma nova e mais complexa estrutura cênica. “Se trabalho
enriquecendo minhas possibilidades musculares, eu sou o movimento e não apenas me
movo” (VIANNA, 1990: p. 87).O eterno espiral desenhado com o corpo em aulas de
descoberta reaparece agora, abrindo canais de percepção e de troca, escultura viva em
movimento, que, graças à coerência das partes do sistema, pode dar ao ator autonomia
para a amplificação do corpo cênico.
Assim, o olhar da pesquisa se dirige aos processos teatrais já desenvolvidos sob as
bases da técnica, resgatando sua história e lançando-os em forma de diálogo para novos
trabalhos que busquem um corpo expressivo, que seja intérprete de sua própria história.
Entendendo que as bases teóricas propostas por Klauss influenciaram largamente a
dança e o teatro no Brasil, ampliar a visão dos conceitos desta técnica, lançando-os ao
patamar de sistema aberto, tal como o corpo do ator, ora confundindo-se com ele, ora
codificando o trabalho de criação cênica é significativo principalmente no que tange ao
próprio trabalho de ator.

1 - O Trabalho de Ator

Este artigo é uma reflexão advinda em conseqüência de estudos em teatro sobre o


trabalho de ator na Técnica Klauss Vianna. A pesquisa teve início em uma ação do
Programa de Formação Complementar de Pesquisa em Ensino de Graduação
denominada “Práticas de Encenação”, no curso de Artes Cênicas da Universidade
Estadual de Londrina. O projeto vem sendo desenvolvido desde 2007, na UEL e se
iniciou com uma cuidadosa análise, entendida como uma espécie de resenha teórico-
prática, do livro A Dança, escrito por Klauss. O contexto no qual se desenvolve a
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pesquisa, atualmente, conta com a participação de dez estudantes do Curso de Artes


Cênicas que participam do Programa de Formação Complementar. No início do
primeiro semestre deste ano o grupo ampliou os estudos na técnica Klauss Vianna,
fundamentando a criação de uma dramaturgia cênica a partir do texto teatral A Mulher
de 27 Filhos, de Ludmila Bollow. O direcionamento da técnica para a elaboração de um
trabalho que incluísse determinado texto e relatos dos integrantes do grupo resultou em
uma experiência cênica, realizada ao ar livre e denominada O Círculo Mágico.
O trabalho teve suas bases calcadas, principalmente, em alguns conceitos específicos
da técnica: peso, apoios e oposição. A idéia de memória muscular, muito presente em
minha trajetória na formação na técnica também foi trazida para a pesquisa. O
delineamento dessa memória corporal deu-se a partir de lembranças pessoais dos
componentes do grupo, traduzidas na forma de textos corporais. Essa linguagem pessoal
subsidiou o entendimento dos parâmetros de troca contidos em um sistema. Possibilitou
ainda, a ressignificação do texto escrito a partir das impressões do grupo sobre seu
próprio mapa corporal e sua autonomia. As associações entre as referidas linguagens se
deram no nível da relação entre o texto escolhido e meus estudos na técnica junto aos
Vianna, e na retomada destes estudos para o desenvolvimento da dramaturgia corporal
dos atores envolvidos. O resultado do trabalho foi apresentado pela primeira vez no
encerramento do 1º. semestre letivo.

2 - Análise Reflexiva

Um quadro geral da prática e do ensino das técnicas de movimento e dança,


contemporaneamente, poderia ser resumido, grosso modo, por um acúmulo de teorias
diversas que se diluem através de aulas desarticuladas. Muitas das técnicas atuais de
movimento no Brasil são em função de um “capitalismo corporal”. Trata-se de uma
produção maquinal, onde o indivíduo não percebe a si mesmo, apenas acumula
informações e formas de treinamento despejadas que massificam a arte e o trabalho
individual. Além disso, em ampla maioria das vezes, visam a uma forma ou resultado
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antecipado às próprias possibilidades e vivências dos intérpretes responsáveis pela


apresentação dos referidos resultados. Ou seja, interessa menos as particularidades
constituintes do processo e mais o modelo de ação pré-estabelecido e homogêneo.
Em contrapartida, técnicas embasadas no movimento espontâneo são, muitas vezes,
usadas sem sistematização, redundando também, contraditoriamente, num entrave à
criação, já que não instrumentalizam o sujeito para a produção de trabalho consciente. A
partir de suas observações e estudos sobre o corpo, Klauss desenvolveu uma técnica que
busca aprofundar a consciência do corpo e do movimento em função de ampliar as
possibilidades de movimento e expressão. O intuito dessa consciência corporal é a
sensibilização de cada parte do mapa corporal, estimulando a propriocepção. Ele
pretendia a busca de bases reais, apoios no corpo e no espaço, que se projetam no nível
emocional tanto quanto no físico. Dizia que não se pode dançar se não se tem um corpo.
Os paradigmas que Klauss apresenta em seu trabalho propõem que o “ser livre” não
se traduz em estádios alterados da consciência ou uso inconsciente de movimentos; ao
contrário, a criação de movimentos individuais e liberados demanda trabalho.
(Grotowski, 1993) se refere ao ator de teatro como produto de um trabalho disciplinar
rigoroso que resulta numa espontaneidade expressiva. Klauss Vianna aparece como
alternativa nesse contexto, trazendo para a academia um trabalho de autoconhecimento
corporal. Assim, articular teatro e dança de forma consciente e evolutiva, a partir de
trabalho tão sério e significativo, garante sólidas bases às pesquisas em dramaturgia
corporal. Levando em consideração o desenvolvimento de um corpo expressivo que
busca comunicar a realização semiótica pretendida e que avança no sentido de construir
uma linguagem própria, ligando a prática diária a uma reflexão teórica consistente.
Sua técnica de consciência de movimento se propõe a ser utilizada para descobrir
uma dança “que já está na pessoa”. Percebe-se em suas palavras um entendimento de
que o corpo não produz nenhum instrumento senão suas próprias possibilidades de
movimentação e significação nesta mesma movimentação, e não na forma de nenhum
outro produto resultante, evidenciando em seus conceitos, os paradigmas do teatro
contemporâneo. Ao mesmo tempo, suas descobertas vêm impregnadas por uma
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pesquisa desenvolvida ao longo de quarenta anos, muito bem embasada e que traz
consigo conceitos da cinesiologia, anatomia, física, psicologia, entre outras. Na tentativa
de entender o mecanismo de funcionamento e movimentação dos corpos, Klauss se
utilizou da literatura, música, artes plásticas e pensou a dança através de linhas, volumes
e pontos de fuga, da mesma forma que os artistas que o influenciaram.
Seu trabalho é engendrado a partir da percepção das individualidades, com o
posterior enfrentamento de limites pessoais que, ao invés de se transformarem em
impedimentos, passam a construir subsídios importantes para a construção de uma
imagem corporal real. A localização exata destes limites e as possíveis formas de
trabalhar determinado músculo ou osso são propostas para este autoconhecimento, e não
desvincula, em nenhum momento, o psíquico do físico. Ao contrário, quando se fala na
percepção de individualidades e no enfrentamento de limites, isso se refere
profundamente a um ser global que se espelha em seu corpo para conhecer-se e
trabalhar com sua auto-imagem e auto-estima na busca do desenvolvimento dos
processos cognitivos no corpo. Essa proposição define um corpo liberto e, ao mesmo
tempo, consciente de suas capacidades significativas.
Conhecer as razões do funcionamento do corpo é imprescindível para se descobrir as
intenções deste e distribuir equilibradamente seu tônus. Para a construção de um corpo
que busque a significação pessoal e expressividade é imprescindível a disciplina e a
auto-organização. Para tornar orgânica a fluência do gesto é necessário alcançar o
domínio das articulações e possibilidades de movimento. Domínio esse, fundamental
para a expressão da liberdade do impulso criativo. Um bom entendimento deste
funcionamento pode resultar em um sistema de treinamento corporal, pode colaborar
para um processo psicoterapêutico, pode servir na investigação de novos elementos
artísticos, arquitetônicos e estéticos, tanto quanto pode simplesmente orientar uma
pessoa na sua recolocação postural. Esse processo evolutivo é individual e, portanto,
permite que seja utilizado nas mais vastas intenções do ser humano, possibilitando que
aquele que utiliza a técnica projete em seu corpo o seu desejo, como ele é concebido.
Em teatro podemos conceber a dramaturgia corporal a partir de seus preceitos e
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perceber que o “como” fazer proposto por Klauss pode subsidiar distintas ações e
intenções contidas em diferentes processos cênicos. No trabalho de ator vai permitir que
aquele que utiliza a técnica projete seu desejo exatamente como ele é concebido. No
caso do trabalho cênico vai possibilitar ao ator e a atriz a precisa expressão de suas
intenções e a caracterização exclusiva. Neste momento é fundamental que o intérprete
se veja e perceba que seu movimento não terá vida se não vier embasado por uma
técnica que alavanque o sentido, a motivação de partes do corpo. A criação nasce do
entendimento no corpo, de uma imagem corporal plena de significados. Essa harmonia
gera uma força ativa, receptiva, compreendida tanto por quem executa como por quem
assiste. Cúmplices, ambos os lados são atingidos por um signo que mobiliza tanto
intérprete quanto platéia, em um único processo criativo.
A “Técnica Klauss Vianna” é um instrumento para a expressividade, não um fim.
Está conectada com o indivíduo e com o tempo em que se insere. Num primeiro
momento, observar-se sem crítica é o início do domínio da técnica. Isso se dá quando se
abdica do controle do corpo, passando apenas à escuta do mesmo, do parar sem se
ausentar. Não é sair de si, mas entrar em contato consigo mesmo. Somente após o
contato com essa referência interna, pode-se aprender a reconhecer o movimento e
organizar melhor o discurso sobre as relações corpóreas envolvidas, em sua plenitude.
Este, talvez, seja o momento mais difícil da técnica. Romper uma barreira de alienação
e parar para se observar: parte por parte, apoio por apoio, até verificar exatamente que
corpo é esse que se vem carregando anos a fio, sem tempo para ele, apesar do mesmo
ser o executor de todos nossos desejos e pensamentos. Sem ele, não existimos. Mas é
sem ele que vamos vivendo.
Esta didática se propõe a perceber e compreender o processo evolutivo do corpo. O
homem consciente ocupa espaços conscientes. Você projeta o que você é. Uma pessoa
alienada projeta alienação, por isso é necessária uma imagem real do nosso corpo. Esse
processo do conhecimento das intenções e desenvolvimento da memória muscular se
traduz em tônus, o qual, frequentemente, é esquecido e/ou compensado erradamente em
forma de tensões. Klauss propõe um método de trabalho a partir das percepções dos
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espaços internos do corpo, construindo uma imagem interna. Sua dança surge das
oposições entre esses espaços. Do conflito surge uma nova imagem, uma nova forma de
expressão, um novo movimento. Essa imagem tende a se tornar real em todos os
sentidos, enquanto se amplia e se define a partir do corpo e nele gera um espaço de vida,
de significação.
Sabidamente a pele é um dos elementos mais importantes do nosso corpo e Klauss
sempre solicitava, em aula, que se espreguiçasse como que “alargando uma roupa
apertada”, a fim de que a pele captasse nossos sinais internos e os projetasse para fora,
distendendo os entraves musculares, respirando. Essa liberação dava a noção de nossos
limites, delineando uma imagem corporal real. Se a imagem que se projeta é
equivocada, o que se pretende comunicar também tomará outro sentido. Se um signo
tenta representar o corpo, ou parte ao menos, ele assim o fará mesmo que falsamente. A
transformação que pode ocorrer na imagem corporal se reflete, ou, só ocorre, quando há
transformação na imagem total que o indivíduo projeta de si mesmo.
“Todo resultado de uma ação provém do espaço existente entre a oposição de dois
conceitos. Seu gerador é sempre par, ainda que essa ligação se faça através de um
aparente distanciamento. É a lei da harmônica incoerência da vida: todo trabalho
corporal, se analisado sob um só ângulo, é incoerente. Mas unido ao todo surge a
harmonia.” (VIANNA,1990: p.78). O início do trabalho no chão é primordial. Nele
pode-se perceber mais facilmente os pontos de apoio do corpo e o peso de cada parte
que toca e também aquelas que não tocam o chão. O apoio do chão permite a
observação das alavancas que acionam o movimento, a partir da troca de apoios. “Só
quando descubro a gravidade, o chão, abre-se espaço para que o movimento crie raízes,
seja mais profundo...” (VIANNA, 1990: p.78). Assim, o chão que me acolhe é também
o que me impele, gerando oposições que criam conseqüências e movimentos cada vez
mais ampliados em sua complexidade. A consciência destes espaços permite a
percepção da musculatura e a conseqüente reação que provoca tanto em quem atua
como em quem assiste. Essa provocação parece fundamental a esses estudos desde a
evolução em complexidade solicitada ao ator, em seu trabalho, até os questionamentos
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que pode trazer à platéia, tanto quanto a interface que se estabelece na relação entre
ambos.
O método resultante se baseia nas oposições de vetores. O uso dos apoios como
alavancas permite que o desenho do trajeto dos movimentos seja cada vez mais claro.
Buscando-se os planos do corpo no espaço, a partir do chão, constrói-se pelas oposições
dos ossos, um indivíduo real, um corpo com espaços. A cada vez que se vivencia o
apoio do chão na forma de um suporte ativo capaz de gerar movimentos, esses tendem a
se ampliar como um caminho que se percorre e do qual se lembra, bastando acionar os
apoios de forma ativa. O uso das articulações permite a execução dos movimentos de
forma consciente, ampliando-se as possibilidades individuais e conseqüentemente,
melhorando a auto-imagem, quando esse processo descrito é resultado de um trabalho
consciente. É um processo muito amplo, como sempre foi o trabalho de Klauss. E tem
que sair da sala de ensaio para a vida, como sempre postulou o criador deste sistema de
consciência de movimento, e que embasa este trabalho.
A partir deste sistema denominado corpo humano, que está inserido em um contexto
e com ele conectado, (IMPARATO, 1999: p.186), estabelecendo relações de vínculo e
compartilhando propriedades entre seus elementos, é possível elaborar uma imagem
futura, que tem seus pés no passado e no presente. O corpo inteiro animado pela
memória muscular torna-se um instrumento sensitivo que responde com sabedoria,
“excedendo ao raciocínio do homem ou ao controle consciente” (VIANNA, 1990: p.91).
Conectar a memória do corpo a informações que levarão a uma autonomia criativa.
Vários sistemas trabalhando em uníssono, onde o verbo precedeu o substantivo, o fazer
foi experimentado antes da coisa feita (VIANNA, 1990: p.91). Um espiral evolutivo no
tempo e no espaço, tendo o corpo consciente como sistema complexo, aberto, capaz de
gerar um produto artístico necessário, fruto de uma relação dinâmica e orgânica.
Tal entendimento faz com que as oposições necessárias utilizadas para encontrar
tensões sejam geradoras de novos elementos cênicos cada vez mais complexos e
resultem em um estudo cênico também mais orgânico e coerente. A realidade
manifestando-se em níveis crescentes de complexidade. A partir de suas observações e
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estudos sobre o corpo, Klauss desenvolveu o que se assume aqui como um sistema que
busca aprofundar a consciência do corpo e do movimento em função de ampliar as
possibilidades de movimento e expressão. A transformação sígnica que pode ocorrer na
imagem corporal se amplia e se define a partir do corpo e em direção à investigação de
novos elementos artísticos e estéticos. Sobretudo, destaca-se por salientar uma
dramaturgia no corpo do intérprete que se mostra como dramaturgia de cena.

Conclusão

Klauss fundamentalmente respeita os limites e possibilidades individuais,


possibilitando ao intérprete, através das direções ósseas, um sentido ao movimento
desenvolvido por cada um de forma única e espontânea. Assim é construída a “casa
corporal” desde o pé fundamental à cabeça pensante. Portanto, quando se assimila a
técnica, não há diferença entre utilizá-la na dança, no teatro ou no dia-a-dia, pois a
técnica não impõe um estilo ou determina uma série de gestos. Ela se dirige ao ser
humano global e por ele deve ser encontrada e processada, pois é impossível separar
uma sala de aula, da vida. Delinear uma arquitetura corporal que seja plena e atuante
durante o processo de criação teatral; explicitar que tal arquitetura é também descrever
um processo metodológico que entende o trabalho de criação do ator como um sistema
aberto. Utilizar uma abordagem sistêmica a fim de registrar e disseminar os conceitos de
Klauss Vianna aplicados ao teatro amplia os objetivos deste artigo lembrando que ele
sempre frisava que não se pode dançar se não se tem um corpo e que buscava
instrumentalizar seus alunos para a vida, não só para a dança.
Burnier (2001), Ferracini (2002) e Bonfitto (2002) são exemplos de estudos sobre
questões que envolvem o trabalho do ator, tais como o treinamento e a técnica de
representação, aprofundando e sistematizando uma metodologia do trabalho de ator a
partir de inúmeras referências tais como Stanslavski e Grotowski. Um estudo sobre o
corpo do ator, tendo como referência o percurso da obra de Klauss, sob a perspectiva da
elaboração e da sistematização apresentada por estes autores, é uma lacuna na
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bibliografia para teatro e que esta pesquisa pretende lançar luzes. A “Técnica Klauss
Vianna” é resultado de um dos mais importantes estudos sobre o corpo e a dança no
Brasil, no entanto é ainda carente de mais registros sobre sua evolução e sistematização
aplicadas ao teatro especificamente e, ainda mais, se levarmos em conta a amplitude
dessa aplicabilidade e a relevância de seus conceitos junto às Artes Cênicas no país.
E, finalizando essa reflexão com argumentos que justifiquem esse intuito é
imprescindível que a Técnica Klauss Vianna seja vista a partir de suas bases e não só
como uma série de exercícios. Estudada em seus elementos únicos, seu
desenvolvimento histórico e sua possibilidade de generalização. A justificada
necessidade de sistematizar os princípios da técnica Klauss Vianna não pretende em
nenhum momento engessá-la dentro de padrões fixos e imutáveis, mesmo porque os
paradigmas da técnica a impedem de ser aprisionada. Ao contrário, de acordo com as
necessidades de cada novo ser que se propõe a perceber e compreender os processos
evolutivos do corpo que dança, a pesquisa pretende ser uma pequena troca de apoios,
fragmento do grande Movimento Klauss Vianna.

Referências

BONFITTO, Matteo. O Ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislávski a


Barba. São Paulo: Perspectiva, 2002.
BURNIER, Luis O. A Arte de Ator: da técnica à representação. Campinas: Ed.
Unicamp, 2001.
FERRACINI, Renato. A Arte de Não Interpretar como Poesia Corpórea do Ator.
Campinas: Ed. da UNICAMP, 2002.
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GROTOWSKI, Jerzy. De la compañia teatral a el arte como vehículo. Máscara:


cuaderno iberoamericano de reflexion sobre escenologia. Cidade do México:
Escenologia A. C. Ano3, nos 11-12, janeiro de 1993.
IMPARATO, Gabriela. Danc&ar. In: SANTAELLA, Lucia, PINHEIRO, A. e
IAZZETA, F. (orgs.). FACE - Caos e Ordem na linguagem e na arte. São Paulo:
EDUC, 1988. (p.182-191)
NEVES, Neide. A Técnica Klauss Vianna Vista Como Sistema. In: CALAZANS,
Julieta, CASTILHO, Jacyan, GOMES, Simone (orgs.). Dança e Educação em
Movimento. São Paulo: Cortez, 2008. (p. 123-134)
VIANNA, Klauss. A Dança. São Paulo: Siciliano, 1990.
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DESEJO SACIADO? CORPO DEGRADADO

Cinara Leite Guimarães (PG - UFPB)

Introdução

Aos nos depararmos com os textos escritos por mulheres no final do século XX,
percebemos a presença da sexualidade e do erotismo de forma mais marcante, o que
pode ser explicado, pelo menos parcialmente, pelo momento histórico vivido. A década
de 70 se presta como marco da liberação sexual, o que mudará a forma como o feminino
lida com questões relativas à sexualidade e o ato sexual propriamente dito. Esse novo
posicionamento pode ser percebido na representação, na literatura, das relações das
personagens com seu corpo e o uso que fazem deste: os contos de autoras que publicam
nos anos 80 revelam mulheres que se arriscam mais, seduzem e se permitem viver a
sexualidade de forma mais liberta.
Os contos sobre os quais tecerei algumas considerações – Flor de cerrado, de Maria
Amélia Mello, e Hell’s angels, de Márcia Denser – são representantes dessa prosa
marcada pelo sexual, possibilitando uma leitura das relações entre sexualidade e
feminilidade. Narrando o ato sexual em si, caracterizam este como meras relações
efêmeras, e estas nada acrescentam aos serem incompletos que demonstram ser. Assim,
o sexo como resposta ao desamparo e solidão vem apenas corroborar a falta, a sede,
pois se apresenta como um acontecimento instantâneo que sequer gera o prazer
esperado.

1. Os corpos na literatura

No amplo campo de estudos da crítica literária feminista, a temática da representação


do corpo feminino em obras escritas por mulheres tem despertado grande interesse.
Diferentemente da proposta que visava a estabelecer diferenças entre homens e
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mulheres com base apenas em características biológicas, é possível dizer que a


representação do corpo feminino evoluiu a medida que a literatura de autoria feminina
sofreu alterações e modificou as formas de representação da mulher na sociedade,
perfazendo um histórico de corpos silenciados, inicialmente, até a representação da
liberação do corpo feminino em escritos mais contemporâneos.
Podemos perceber, ao longo da história, o papel subalterno destinado ao corpo,
principalmente quando falamos do corpo da mulher. Na Grécia, por exemplo, filósofos
como Platão já apresentavam a dualidade corpo versus alma/razão/mente, uma vez que
este as aprisionava. A dualidade grega foi atualizada pela tradição cristã, que via o
corpo como inferior, já que mortal, enquanto a alma estaria mais próxima de Deus.
No que concerne ao corpo feminino, este era visto como meramente reprodutivo,
sendo dotado de uma inferioridade nata, pois mais frágil e sujeito as mudanças trazidas
pela menstruação e menopausa.

As representações do corpo feminino, tais como as desenvolve a


filosofia grega por exemplo, assimilam-no a uma terra fria, seca, a
uma zona passiva, que se submete, reproduz, mas não cria; que não
nem acontecimento nem história e do qual, consequentemente, não há
nada a dizer. O princípio da vida, da ação, é o corpo masculino, o falo,
o esperma que gera, o pneuma, o sopro criador (PERROT, 2003, p.
20).

O corpo, de modo geral, é caracterizado como matéria pecaminosa e lasciva, o que


possibilitou, durante muito tempo, a associação deste com o feminino, uma vez que
mulher detém, desde a Bíblia, o arquétipo aquela que introduz o pecado no mundo. Isto
serviu como justificativa à opressão imposta à mulher pois

“a vinculação da feminilidade ao corpo e da masculinidade à mente


restringe o campo de ação das mulheres, que acabam confinadas às
exigências biológicas da reprodução, deixando aos homens o campo
do conhecimento e do saber.” (XAVIER, 2007, p. 20).
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Com o surgimento do feminismo, teóricas como Irigaray, Spivak e Butler passam a


ver o corpo como um objeto cultural, um lugar de contestação, de lutas econômicas,
políticas, sexuais e intelectuais, recusando o dualismo mente/corpo (XAVIER, 2007).
Assim sendo, as representações literárias incorporam esta nova concepção e as forças
liberadas desde os anos 60 encontraram, na literatura publicada nos anos 80, o seu
momento de clímax e crise.

A geração que fez a revolução sexual agora coloca no papel suas


histórias. Explode o erotismo feminino. As grandes metrópoles
fornecem cenários para as aventuras do corpo. (...) Mas a década que
começou eufórica termina crítica e deprimida por causa da AIDS e da
crise dos ideais coletivistas. Sensações de fracasso e vazio parecem
anunciar um fim de século melancólico (MORRICONI, 2001, p. 391).

As narrativas de Márcia Denser e Maria Amélia Mello apresentam


protagonistas/narradoras mulheres que vivem a liberdade da escolha quanto à sua
sexualidade, fazendo uso do corpo de modo a satisfazerem seus desejos. Uma análise
superficial poderia facilmente classificar estes corpos como liberados ou erotizados,
categorias estabelecidas por Xavier (2007), mas a forma como lidam com sua
incompletude e a falta de compreensão acerca de quem são nos leva a classificá-los
como corpos degradados.
Xavier classifica os corpos liberados como as representações que surgem na
literatura a partir dos anos 90, “apresentando protagonistas mulheres que passam a ser
sujeitos da própria história, conduzindo suas vidas conforme valores redescobertos
através de um processo de autoconhecimento” (2007, p. 169), opondo-se aquelas que
ainda se encontram enredadas nas próprias dúvidas existenciais. Por outro viés, o corpo
erotizado é apresentado como aquele que “vive sua sensualidade plenamente e que
busca usufruir desse prazer, passando ao leitor, através de um discurso pleno de
sensações, a vivência de uma experiência erótica” (2007, p. 157). Nesta categoria,
temos um registro positivo da sexualidade, o que não ocorre nas narrativas em análise.
De modo contrário, as protagonistas de Hell’s Angels e Flor de Cerrado são
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apresentadas em relações sexuais efêmeras, conquistadas por meio de uma sedução


débil com um tom de suborno/compra/venda. Poderíamos dizer que tais personagens
ainda se encontram no início do processo de autoconhecimento mencionado, o que as
leva a embarcar em relações de poder, onde para ganhar, se submetem ao homem.

2. Feminilidade e Sexualidade

Ao longo dos estudos psicanalíticos acerca da sexualidade, muito foi dito e


questionado sobre a oposição macho versus fêmea, que se delineava na tão propalada
imagem do falo e consequente inveja feminina. Disso tínhamos que aquele que possuía
o falo acreditava em sua superioridade, enquanto o outro se acreditava inferiorizado em
seu ser, o que estabelecia uma espécie de hierarquia ontológica entre os sexos, com uma
série de conseqüências psíquicas, sociais e culturais. A mulher era, então, representada
por meio da falta e da sujeição ao poder expresso pela posse do órgão sexual masculino.
No entanto, embora inicialmente tenha-se atribuído um valor negativo ao feminino,
aos poucos essa visão de base meramente biológica é deixada de lado e ocorre um
direcionamento para a positivação do conceito de feminilidade, o qual teria como
critério definidor a inexistência do falo como eixo de construção do sujeito. A
feminilidade se apresentava, assim, como uma forma de ultrapassar a lógica fálica, uma
vez que remetia a algo presente tanto no homem como na mulher.
Joel Birman (1999) proporciona uma leitura mais clara da feminilidade por meio de
uma análise da personagem operística de Carmem. Nesta está presente a sedução, sem
que se possa, no entanto, conectá-la à negativa imagem de femme fatale. O ser desejante
de Carmem se permite viver a paixão de forma plena e se entregar a esta, consciente que
é da necessidade do outro. Portanto, não se trata para Carmem de se vingar dos homens,
sujeitando estes a um jogo de sedução que não chega a se concretizar, mas de restaurar
o ser da mulher no registro do desejo.
Temos que Freud estabelece a feminilidade como o eixo fundamental do erotismo,
dotado de um valor positivo, já que é o reconhecimento pelo sujeito de seu desamparo
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em face de seu corpo e de seu mundo. Por meio do desejo, o indivíduo busca a
completude inexistente em si, tentando atingi-la através do ato sexual. Porém, o
momento do orgasmo se revela como fugaz e logo a falta se faz presente, o que
demanda uma nova busca.

(...) indico que a feminilidade é a forma crucial de ser do sujeito, pois


sem a ancoragem nas miragens da completude fálica e da onipotência
narcísica, a fragilidade e a incompletude humanas são as formas
primordiais de ser do sujeito. Justamente por isso que o sujeito seria
desejante. O que nos move no erotismo é a certeza de nossa
incompletude, por um lado, e a crença na completude a ser oferecida
pelo gozo, por outro (BIRMAN, 1999, p. 53,54).

Desse modo, é comum lermos na literatura de final do século XX personagens que


buscam a completude por meio de relações sexuais casuais, o que apenas reforça a
realidade de seu desamparo. A diferença entre estas e as novas leituras de Carmem,
apresentadas por Birman, é que a incompletude não é aceita naturalmente ou
compreendida. Nas narrativas apresentadas, a dor do desamparo faz com que as
personagens se submetam a relações sexuais degradantes com desconhecidos,
ressaltando a descontinuidade de relações que não geram o resultado esperado.
Finalmente, o sexo, que prometia oferecer a realização por meio da saciedade que o
prazer traria, se transforma no início de uma nova busca, como podemos ver nas
narrativas em questão. Ambas se separam dos parceiros sem se sentirem completas,
plenas, mas solitárias e, uma vez mais, desamparadas.

3. Diana, a caça, e o caçador

É preciso me remeter à mitologia, uma vez que o livro Diana caçadora (1986), de
Márcia Denser, é composto por narrativas individuais que trazem como mesma
protagonista uma mulher chamada Diana Marini. Contudo, em que medida esta Diana,
jornalista de trinta anos, se presta a uma comparação com a filha de Júpiter é algo que
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merece ser mencionado.


Na narrativa mítica, Diana é uma jovem que opta por manter sua castidade, obtendo
do pai a permissão para não se casar. Diana recebe deste um arco e flechas, bem como
um cortejo de ninfas, sendo considerada a partir deste momento a deusa da bosques e da
caça. Percebemos que, além da diferença fundamental no que consiste ao
posicionamento das personagens frente à sexualidade, Diana Marini também se
apresenta como caçadora, mas de homens.
Como se não bastasse o fraco elo existente entre estas mulheres, uma análise mais
precisa de Hell’s Angels nos mostra que sua Diana, embora busque se envolver com
homens diversos, sem que deseje qualquer relacionamento duradouro com estes, não
mantém a posição de caçadora por muito tempo, já que, durante o ato, se submete às
vontades do homem, sendo possuída por este. Xavier estabelece, então, uma relação de
oposição entre as duas ao dizer que a Diana da mitologia “até certo ponto, representa o
avesso da nossa protagonista, uma vez que, nos contos, ela acaba sempre caçada e
destruída.” (2007, p. 141).
Na narrativa em questão, a protagonista relata mais uma das tantas caçadas, que
desta vez envolve Robi, um jovem motoqueiro de dezenove anos que a persegue pelo
trânsito da cidade grande. A relação desenvolve-se com base em diferenças nítidas,
tanto no que concerne à idade quanto à maturidade. O sentimento de superioridade
intelectual se mescla ao de inferioridade física e, desse modo, a protagonista o
caracteriza Robi como algo monstruoso, pois adolescente, trazendo consigo o
característico aleijão psíquico da idade.
A juventude de Robi é uma afronta à sua potencial velhice - “rapazinho que
perturbava meus pensamentos, minha solidão, minha maturidade” (DENSER, 2001, p.
427) - e o corpo rígido e pulsante é caracterizado por Diana como esta outra metade de
si, lembrando-lhe que também foi jovem e da inércia da natureza, que parece imutável,
a contrastar com o seu envelhecimento. Robi, sendo o oposto perfeito, provoca um certo
pavor, como aquele de quem se depara com o espelho e enxerga, pela primeira vez em
anos, o seu rosto.
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E agora? O olhar dele desceu agudo, filhote de falcão de campina,


sobre minhas pernas cruzadas. Senti-me desconfortável. (...) Não
queria ver aqueles olhos, não queria ver aquele rosto, não queria ver
aquela expressão especialmente perversa, infantilmente perversa, não
queria me sentir velha demais, o outro lado do espelho desse rosto
cuja expressão também já fora minha, e sabia que ele pressentia haver
lago de errado comigo essa minha pretensa segurança, pretensa
maturidade, um vago movimento de mendicância, e que, por exemplo,
nem ao menos eu gostava de mim, senão não prosseguiria por tempos
imemoriais caçando aves implumes na orla do pântano. Se não
estivesse ferida, estaria voando (DENSER, 2001, p. 430).

Da citação acima percebemos a real fragilidade de nossa suposta caçadora, a qual se


posiciona em um lugar de inferioridade em relação ao jovem viril. Muito embora esta
inferioridade seja contrabalanceada pela maturidade e capacidade intelectual superior
que demonstra, essa maturidade, conjugada à solidão e falsa segurança que a caracteriza
acabam por adquirir uma marca negativa.
O ferimento de que nos fala Diana pode ser entendido como a sensação de
incompletude que Birman menciona, provocando o desamparo característico da
feminilidade. No entanto, não ocorre aí a aceitação desta condição, pelo contrário, a
personagem continua sua busca infrutífera, em meio a uma busca por si mesma. Nas
palavras de Xavier, “é como se fosse a libertação de um vida reprimida; mas, de fato,
vem a ser o início de uma trajetória decadente” (XAVIER, 2007, p. 137), o que
podemos perceber no questionamento da protagonista: “Então era assim que eu
sobrevivia?” (DENSER, 2001, p. 428). A diferença essencial entre Diana e a
representação da figura sedutora de Carmem reside neste sentimento de frustração a
cada ato concretizado. Enquanto Carmem se relaciona com sua feminilidade de forma
positiva, aceitando a necessidade do outro, Diana não estabelece qualquer
relacionamento que vá além da simples troca de caricias e da penetração, não obtendo
sequer o prazer desejado com ato sexual. Além disso, as características do espaço em
que o ato ocorre e dos homens com quem se envolve, ao longo das várias narrativas,
constroem um universo degradante.
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Robi é inferiorizado não apenas por ser um adolescente mas em suas características
físicas. A narradora tece comentários a respeito de sua imaturidade, claramente
percebida no discurso que faz acerca da diferença entre o bem e mal, quando, então,
Diana passa a se referir a ele como neném, em um tom que se assemelha a
condescendência da mãe para com o filho, aqui acrescido de um valor irônico.
Como não há uma pretensão de realização amorosa, as diferenças são relevadas e
diluídas na hora do ato, quando os corpos nus estão lado a lado na cama e podem ser
vistos pelo espelho do teto. Ali, há apenas um homem e uma mulher, ilusão que é
quebrada assim que o despreparo sexual de Robi se faz evidente.

A coisa funciona soda cintura para baixo, como um vibrador elétrico,


mas é bom, pensei, deixando-me penetrar rijamente pelas costas,
usando, por assim dizer, só uma parte do meu corpo, como se o resto
estivesse paralisado, ou morto, como se ninguém suportasse um
dramático relacionamento frontal, com beijos, orifícios, acidentes e
cicatrizes, com um rosto, um nome, uma biografia (DENSER, 2001,
p. 432).

O que Diana busca é a sensação de completude que o ato sexual fornece por meros
segundos, a volta ao estado de quietude inicial que caracteriza o orgasmo como uma
pequena morte e dá vazão à correlativa pulsão presente em cada indivíduo. Todavia, a
relação sexual se demonstra tipicamente mecânica, polarizada que é pelo poder
instituído do falo, concretizado na fala da protagonista, na qual Robi é o “caçador nato”
que a possui para, depois de conseguir a ejaculação, adormecer ao seu lado. Resta a
Diana ir embora, se valendo, por último, do ato debochado de deixar a boneca na
portaria, para que lhe seja entregue ao acordar.
A narrativa se inicia com Diana indo ao analista e termina com outra referência
também a este, como aquele que responderia seus questionamentos, provendo soluções
para as armadilhas de sua mente. Essa visão apenas corrobora a caracterização de uma
mulher que não consegue viver plenamente sua sexualidade porque não se entende
enquanto indivíduo.
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4. O jogo das trocas

No conto Flor de cerrado, a narrativa tem início em meio a um assalto, o qual se


transforma em uma relação sexual que se desenrola em meio a uma rua deserta e mal
iluminada. De início há o medo, mas as ameaças do jovem assaltante vão gradualmente
perdendo força com as investidas da narradora que, ao demonstrar interesse pelo rapaz,
vai deixando-o confuso. Ela vê o medo em seu olhar e, a partir daí, passa a usar a
vantagem que tinha para questioná-lo ainda mais.
O jogo da sedução se estabelece em meio à violência e à possibilidade concreta de
morte, enquanto os protagonistas medem forças. De um lado, a juventude, pobreza e
arma na mão do rapaz, de outro, a sede, solidão e pobreza da madame. E, assim, o
dinheiro é pouco, a bolsa é atirada ao chão e ele se esquece até de levar o relógio,
fugindo da situação e abandonando a personagem após o ato sexual, sob novas ameaças.
A flor de cerrado, que dá nome ao conto, é representativa da secura do terreno,
dificultando o surgimento da vida. As noções de aridez e infertilidade se mesclam à da
resistência da flor, que persiste, mesmo em condições desfavoráveis, como a da falta de
água. Estas são estendíveis ao desejo e vida da personagem cuja fome “estava
aprisionada e gritava no cerrado. Depois de tanta água, tanto sal, a seca rachando a terra,
flor enfiada no meio do barro, resistindo sabe-se lá o quê.” (MELLO, 2001, p. 467).
Embora acredite intimamente que controla a situação, o que poderia presumir pelos
atos falhos do jovem e dos olhares que ele direcionava a seu corpo, as imagens que
proliferam na narrativa falam de mútuas necessidades, embora diferentes, que acabam
por se equalizarem. E assim, o mar, simbolizando a possibilidade de se perder na
amplitude sem limites da vida, aparece em momentos diversos da narrativa: o menino
parecia um rio em busca do mar; os dois eram bóias luminosas no alto-mar; os dois
estavam desaguando no meio do mar; eram náufragos de uma solidão ao contrário; ele
era um náufrago se debatendo para não morrer enquanto ela queria naufragar de vez
numa ressaca e tragar a força dele.
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O menino mergulha em seu corpo, demonstrando uma fome incrível, e os


personagens se envolvem no que acaba por ser uma troca de confissões: “Ele, me
roubando, revelava sua miséria e sua dor. Sem falar no espanto que percorria sua cara,
os olhos livres, as mãos prontas. E eu, inerte, lhe confessava as sobras, o supérfluo, as
cadeiras vazias reverenciando a mesa.” (MELLO, 2001, p. 467). De nada importava a
perda de objetos materiais, uma vez que sua vida se abria para o nada. Logo, era um
preço pequeno a pagar por aquele momento de possível completude.
Contudo, uma vez mais, percebemos que o ato sexual em si evidencia o poder do
macho em relação à fêmea, ela se submetendo aos desejos do outro, não pelo perigo de
morte, que se apresenta até mesmo como desejável, mas em um largar-se e expor-se,
esperando ser saqueada em sua vida, que esta fosse alterada completamente por aquela
violência e, depois, preenchida. Uma série de imagens tentam explicar, trazer à mente
do leitor a real situação através de todas as ações que o menino realiza e que só vem a
destruir, desmontar, mexer com a vida na narradora. No entanto, não há indício algum
que demonstre uma mudança significativa.
A narrativa repete os mesmos dados degradantes da anteriormente analisada. A
relação sexual tem lugar numa rua, à noite, quando a protagonista volta para casa,
“garganta vazada de vodka” (p. 466), e com um estranho, inferior a ela pois miserável e
jovem.

(...) a cara dele estava toda marcada, desenhada a traço de navalha,


podia ser de canivete, gilete, essas alegorias da sobrevivência. Os
cabelo escorriam até o ombro e não estavam sujos. Aliás, ele não
parecia um pivete, nem tampouco um adolescente. Era um naufrago.
Molhado, suado, debatendo-se para não morrer (MELLO, 2001, p.
468).

O ato em si representa, naquele momento, a forma que a autora encontra de se


redimir, mas quando este finalmente termina, ela se veste e recolhe o que é seu, indo
embora sem a certeza de ter sido conseguido o que pretendia: tirar dele a força para
continuar vivendo. Assim, ao final do conto, o vazio de sua existência se torna claro na
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equação que pretende igualar morte a salvação: “A primeira coisa que ele fez foi olhar
para o meu sapato. Ele podia ter me matado, eu sei. Ele bem que podia ter me salvado.”
(MELLO, 2001, p. 470).

Conclusão

No curto percurso dos anos 70 até hoje, podemos verificar uma exposição cada vez
maior do sexo – boca, mamilos, coxas, bundas, suspiros e ruídos – na mídia, como a
propagar uma imagem deste ligada à saúde mental e física, o que vem gerando uma
crescente submissão dos corpos aos imperativos da sexualidade. Esta se constituiu,
assim, como “um imperativo identitário e uma necessidade, tão urgente quanto comer
ou beber, fonte de um prazer considerado inefável” (SWAIN, ano, p. 296).
A liberação sexual feminina permitiu às mulheres uma maior liberdade na escolha de
seus parceiros e dos tipos de relacionamento que desejavam ter, contudo isso não
garantiu que a lógica fálica fosse, nem de longe, ultrapassada totalmente. Pelo contrário,
nas narrativas escritas por mulheres e publicadas nos anos 80, o imperativo sexual se
apresenta como a salvação, como se os problemas de toda uma vida pudessem ser
resolvidos e/ou explicados por meio da entrega ao sexo.. Com isso, a confusão
identitária é apresentada por meio da presença constante de personagens mulheres que
continuadamente se envolvem em relacionamentos casuais, que expõem seus
questionamentos, deixando clara a situação de desamparo e solidão que vivenciam.
É crucial entender que estas mulheres ainda se encontram em processo, e portanto
ainda não conseguem aceitar a feminilidade enquanto condição essencial de qualquer
ser humano. Elas não se entregam à paixão de forma positiva, mas seus relacionamentos
acontecem em um universo degradado, promovendo uma maior sujeição da mulher a
lógica dual dominante, na qual o homem é o sujeito e a mulher, apenas o outro. Nas
narrativas em questão, percebemos um desejo de emancipação , uma tentativa de
destruir as normas impostas, contudo isto só será efetivado em representações literárias
mais contemporâneas.
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Referências

BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. São Paulo: Ed. 34, 1999.


DENSER, Márcia. Hell’s Angels. In: MORRICONI, Ítalo. (Org.) Os cem melhores
contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. pp. 426-433.
MELLO, Maria Amélia. Flor de Cerrado. In: MORRICONI, Ítalo. (Org.) Os cem
melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. pp. 466-470.
MORRICONI, Ítalo. (Org.) Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
SWAIN, Tania N.. Entre a vida e a morte, o sexo. In: STEVENS, Cristina M. T. &
_________. A construção dos corpos: perspectivas feministas.
XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis:
Ed. Mulheres, 2007.
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REFLEXÃO SOBRE O ESCRITOR E O MERCADO EDITORIAL EM


QUE FAREI COM ESTE LIVRO? DE JOSÉ SARAMAGO

Cínthia Renata Gatto Silva (PG – UEL)1

Introdução

O retorno de Camões das Índias após dezessete anos de afastamento e a conturbada


publicação de Os Lusíadas é o enredo escolhido por José Saramago para a peça Que
farei com este livro?. Da Índia, “trouxe papéis com versos, é tudo quanto tenho
(SARAMAGO, 1998, p.44), declara o poeta; “não temos mais que sardinhas cozidas”
(SARAMAGO, 1998, p.31), se queixa a mãe, e declara:“Luís de Camões é pobre. O
maior poeta português é pobre, o meu filho quase não tem o que comer”
(SARAMAGO, 1998, p.68). “Que desvairamento é este, que reino temos? Nunca em
Portugal se escreveu um livro assim, e ninguém o agradece (SARAMAGO, 1998, p.51),
diz indignado Diogo do Couto, e pelo teor das palavras já é possível perceber a força
dramática deste texto de José Saramago.
A peça marca o distanciamento do monumento Camões – cuja boca de bronze
não é capaz de pronunciar palavras – para dirigir o leitor/espectador ao Camões
humano. O homem que hoje é estátua pomposa e imponente viveu e morreu na penúria,
mas deixou versos, pois era tudo quanto tinha. Dedicou sua vida às palavras e o prêmio
recebido bem expresso está nesta estrofe de Os Lusíadas:

E ainda, ninfas minhas, não bastava


Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava
tal prêmio de meus versos me tornassem:
a troco dos descansos que esperava,
das capelas de louro que me honrassem,
trabalhos nunca usados me inventaram,
com que em tão duro estado me deitaram! (CAMÕES, 1993, p.211).

1 Pesquisa de Mestrado desenvolvida com financiamento da CAPES e sob orientação da Profa. Dra.
Sonia Aparecida Vido Pascolati.
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Em 1922 nasce José Saramago. Não foi fácil para o escritor adentrar no mundo
literário. Escreve o primeiro romance em 1947, não obtém êxito. Dedica-se à poesia, à
crônica, contos, traduções, crítica literária. O primeiro romance de sucesso é publicado
em 1980, ano em que Que farei com este livro? também vem a público. Desta data em
diante, Saramago não é mais um desconhecido: Portugal e o mundo se abre para sua
literatura inconformada e lúcida. Inconformada porque não teme discutir assuntos
“intocáveis”, atacar o “sagrado” através do manejo magnífico das palavras; lúcido
sempre, pois sua literatura não é um desvario. É a reflexão que não se exaure diante do
que não está explicado. Assim, cria-se um mundo,

Por vezes sombrio e amargo, céptico e desencantado, onde se cruzam


questões axiais, como a necessidade de revermos a História e nela
redescobrirmos novos e injustiçados heróis; ou a indagação da nossa
condição portuguesa, no espaço ibérico e no espaço europeu; ou a
revisão de mitos, crenças e valores fundamentais da cultura ocidental;
ou a ponderação de egoísmos e crueldades que assolam um mundo de
onde, por vezes, a esperança parece ter sido abolida. (REIS, 1998,
p.124).

Percorremos este mundo sombrio e amargo junto a Camões, e os obstáculos para


a publicação do livro parecem intermináveis. O drama avança e gera expectativas na
medida em que a luta de Camões pela publicação de seu livro se intensifica, obstáculos
são superados e novos obstáculos surgem. O espectador, concentrado na ação dramática
devido a este tema principal, é levado a participar de uma envolvente discussão
metaliterária. O caminho de uma obra literária até o público não é retilíneo; ondulante,
termina por cair no último e mais irremediável dos obstáculos, que é simultaneamente o
objetivo único da literatura: Que leitura farão da obra? Que farão com este livro?.
Neste trabalho, nos concentramos na discussão sobre as relações da literatura e
do mercado editorial, buscando refletir, através da peça de Saramago, sobre inevitáveis
perguntas: O mercado é capaz de transformar significantemente a constituição da
literatura? Os best-sellers são realmente do agrado do público, ou este não teve o direito
de conhecer outro tipo de literatura? O valor literário de uma obra se perde quando as
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obras são comercializadas?


O Camões saramaguiano ironicamente antecipa uma resposta à última pergunta:
“Sei o que a experiência me ensinou. Que assim como se diz que não há dinheiro que
pague o talento e o engenho, também se deveria dizer que por isso mesmo ninguém os
quer pagar (SARAMAGO, 1998, p.69).

1. Literatura e juízos de valor

Camões retorna a Lisboa após dezessete anos, e a primeira imagem que seus
olhos encontram corresponde à “cidade fechada, atribulada de doença e em tão grande
mortandade...” (SARAMAGO, 1999, p.32). Tal fato é o primeiro a entristecer o poeta,
pois tal reencontro, que parecia glorioso, se torna lutuoso. Em mãos, nada mais que
papéis e a esperança de publicá-los, mas não somente para seu sustento. Se assim fosse,
Camões não seria poeta, tantos trabalhos deviam haver, se ele quisesse apenas comer e
vestir-se bem, poderia desempenhar qualquer outra função. O impulso pela literatura e a
dedicação exclusiva vão além de uma escolha aleatória, e os séculos seguintes
reconheceriam o poeta como um mártir, que tudo sofreu pela literatura. Toda sua vida a
ela foi dedicada, e em troca penúrias e misérias, tristeza e desesperança.
Não é somente a peste enquanto doença corpórea que desola Portugal, a pátria
morre de tristeza porque “falta a Portugal espírito livre, sobeja espírito derrubado. Falta
a Portugal alegria, sobejam lágrimas. Falta a Portugal tolerância, sobeja prepotência
(SARAMAGO, 1998, p.51). Lembremos que, no século XVI, período que foi palco dos
acontecimentos retomados pela peça, Portugal oscilou do Auge ao declínio, da riqueza à
miséria, da grande expansão marítima à derrocada fatal (perda de independência)
quando D. Sebastião é derrotado na batalha de Alcácer-Quibir e o reino fica sem
herdeiro legítimo e passa aos domínios de Castela.
Poucos anos antes de toda esta fatalidade, Camões luta para publicar Os
Lusíadas: Inquisição e censura fortemente instauradas, desolação e morte pela peste,
mais a peste moral que derrota o espírito lusitano não poderiam ser um bom momento
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para a fruição da arte. Os obstáculos que Camões encontra vão progressivamente


fazendo com que este perca a ingenuidade e esperança, e levando-o cada vez mais ao
declínio conjunto com a pátria.
Entretanto, Saramago reflete sobre o que poderia haver além dessa figura
heróica, isto é, a sua dimensão humana: se a história não é capaz de explicar
completamente essa multiplicidade de forças e sentidos que é a existência humana, é
capaz de proporcionar uma perspectiva, e aqui se encerra sua importância, que não é
pequena. O mesmo se poderia dizer a respeito da literatura: se esta não pode superar a
história porque se alimenta dela, não se pode dizer que seu relato tenha menos poder,
menos força. Todos os textos, portanto, contribuem de alguma forma para que as nossas
relações com o outro sejam mais vastas.
Assim, são diversas as perspectivas de reflexão trazidas pela peça. Damião de
Gois 2 alerta Camões: “o que trouxestes da Índia, Luís Vaz, foi a história do antigo
Portugal, mais a grande navegação. Tudo isso que acrescentastes são casos dos nossos
dias de agora, destes tempo que não sabemos para onde Portugal vai”. (SARAMAGO,
1998, p.54). Assim, devido ao contexto, o poeta é obrigado a alterar significantemente
os rumos de sua escrita. A peça nos leva a refletir o quanto os textos escritos estão,
inevitavelmente, relacionados profundamente com sua época.
De igual forma, o contexto em que a obra é recebida interfere diretamente na
leitura. A captação do significado de uma obra literária está diretamente relacionada
com o contexto no qual é lida. Como os interesses políticos de Portugal são divergentes,
a publicação da obra depende de um direcionamento político. Diogo do Couto resume
sucintamente a situação da pátria nos seguintes termos:

El-rei rodeia-se de frades e privados, não quer saber doutros


conselhos, e Deus sabe que estes não são bons. Todo o seu sonho é

2 Na peça, Góis representa um elo entre o pensamento português e o da Europa culta do século XVI,
pois foi um dos homens mais críticos de sua época, uma das maiores inteligências do Portugal do
século XVI. Não obstante, perseguido pela inquisição, teve um trágico fim, que a peça não deixa de
ressaltar para demonstrar o quanto Portugal, tendo se favorecido imensamente com o saber propiciado
pelo Renascimento, passa a perseguir o pensamento livre retrocedendo exatamente no momento em
que havia alcançado o apogeu.
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conquistar Marrocos, vencer o Turco, libertar os Santos Lugares. A


rainha inclina-se para Castela, está-lhe no sangue, o cardeal opõe-se,
mas ninguém sabe ao certo o que quer o cardeal. Na Índia não
pensávamos que o reino fosse essa barca sem leme nem mastro
(SARAMAGO, 1998, p. 33).

Damião de Góis explica que a obra de Camões só seria publicada quando uma
dessas posições fosse privilegiada. Percebe que a obra seria usada segundo as
conveniências da época; embora Camões afirme “eu sei o que escrevi” (SARAMAGO,
1998, p.55), a obra reflete sobre a noção de que o sentido que o público tomará para si
não poderá ser determinado somente pelo que o escritor quis dizer, entrando em jogo
outras questões que envolvem a recepção da arte na sociedade. A obra, nessa
perspectiva, será lida de diferentes maneiras, embora em sua materialidade, não se
altere. “A diferença estará nos olhos que o lerem. E a parte que ficar vencedora dará que
seja o livro lido com os olhos que mais lhe convierem.” (SARAMAGO, 1998, p.55),
enquanto a parte vencida esperará o momento em que poderá “ler e fazer ler doutra
maneira” (SARAMAGO, 1998, p.55).
Neste contexto de censura, é muito mais descomplicado perceber a maneira
como os vencedores conseguirão fazer com que o público leia de determinada maneira.
Embora saibamos que o público não é passivo, e interage com a leitura de formas
particulares, o sentido que o leitor atribui ao texto literário é apenas parcialmente
construído por ele. A igreja, associada à censura tenta impor uma verdade universal, e
embora, claramente existam pessoas que pensam de maneiras diferentes, as leis não são
coniventes com elas: livros fogueiras, prisões e mortes impedem que, efetivamente, se
possa ler e publicar de forma autônoma. Há um veto à liberdade de expressão.
Mas a censura inquisitorial agia de modo ambíguo, buscando o apoio da
população. Por isso, nem sempre é perceptível ao público a manipulação imposta por
algum tipo de poder. Outro exemplo é a ditadura brasileira, que apóia as manifestações
populares favoráveis, enquanto proíbe certas manifestações artísticas. Contudo, a
produção cultural do Brasil aumenta nesse período, e por isso, para a população, pode
ser difícil perceber esse veto em um primeiro momento.
Na contemporaneidade, atribui-se principalmente à mídia o papel de uma das
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maiores responsáveis pelas mudanças na percepção das pessoas. Ela transforma a


natureza do conhecimento, agora traduzido em quantidade de informação transmitida,
geralmente por meio de imagens. “Desse modo, altera-se a sensibilidade perspectiva,
não mais atenta à realidade concreta circundante, mas à sua reprodução nas imagens”
(PELLEGRINI, 1999, p.189). Contudo, a essência do poder da imagem é a sua presença
aparentemente não imposta na realidade das pessoas. Mantém-se a ilusão de liberdade
de escolha. Tem-se uma infinidade de opções, uma porção de canais que, contudo,
exibem sempre a mesma coisa. “Não se percebia que a prisão continuaria a mesma, só
que com outros nomes; ela aumentou suas dimensões e invadiu todos os espaços da casa
e do planeta: trata-se do espetáculo, que transformaria o “lar” e o mundo num
“complexo de videocomunicações” (PELLEGRINI, 1999, p.192).
Assim, a relação entre o leitor e o livro envolve vários aspectos concernentes à
organização da sociedade em geral. Não é uma simples questão de escolha, gosto ou
competência. Os juízos de valor que norteiam as ações humanas são dificilmente
identificadas de forma neutra, já que nenhum homem pode escapar a ideologia em suas
decisões. Aqui se torna problemático exigir do leitor um certo tipo de atitude diante de
um livro, e se torna especialmente conflitivo julgar certos posicionamentos melhores do
que outros, e isso porque até hoje a visão dos dominantes tem sido privilegiada em
detrimento a dos dominados. Sempre tem sido contada a história dos vencedores, a sua
voz tem sido sempre elevada. No entanto, como lembra Harold Bloom (2005), seria a
literatura o lugar adequado para que se devolva aos oprimidos o direito à cidadania?
Segundo o crítico, a literatura não tem a função de reparar ou denunciar injustiças
sociais, e possui valor estético autônomo.
Assim, a existência de um cânone parece que nunca poderá ser consensual. Até
hoje, não existe unanimidade em relação ao valor da literatura. O julgamento estético é
subjetivo, e por isso sempre que houver um cânone haverá, do outro lado, críticos que
contestam sua validade. Entretanto, assumir um relativismo ao julgamento do gosto gera
o ceticismo quanto ao valor literário, o que é, de toda forma, também problemático.
Mas, “o valor da literatura não pode ser fundamentado teoricamente: é um limite da
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teoria, não da literatura” (COMPAGNON, 1999, p.255).


Devemos deixar de lado toda rigidez ao pensar o cânone: não é porque não
existe um cânone imutável, que ele necessariamente deve ser compreendido como
totalmente arbitrário. “O cânone não é fixo, mas também não é aleatório e, sobretudo,
não se move constantemente”. (COMPAGNON, 1999, p.254).

3. Profissão: escritor

De semideus à insignificância, a condição do autor é uma das mais


controvertidas. Ele cria a obra, mas não é inteiramente dono dela, ou seja, não tem o
poder de lhe atribuir um sentido unívoco. A obra só se completa nas mãos do leitor, que
não encontra o livro pronto senão em sua materialidade. O percurso do sentido das
palavras independe, de certo modo, da intenção do autor, de acordo com o que podemos
visualizar na peça estudada. Conforme diz Damião de Góis, há uma maneira de fazer-se
ler as coisas, e também de deturpar os sentidos: “Faz o carpinteiro uma nau, não tarda
que lhe venham dizer que é caravela” (SARAMAGO, 1998, p.55). Contudo, não se
deve confundir o pluralismo da linguagem literária com a absoluta anarquia, a ponto de
fazer com que as obras digam aquilo que desejamos que digam.
A discussão da peça também se centra na vida prática dos escritores e dos
inúmeros obstáculos que eles enfrentam para viver de sua arte. O primeiro a ser
apontado é a impossibilidade de que o autor chegue a saber o quanto vale,
financeiramente falando, a sua dedicação à literatura: “Todas as coisas do mundo têm o
seu preço” (SARAMAGO, 1998, p.85), diz Camões, mas ele não pode saber exatamente
quanto vale o seu trabalho.
Com o relativismo em relação ao gosto, o subjetivismo das preferências e a falta
de características que definam consensualmente a literatura, qualquer juízo de valor
pode ser polêmico: “Todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusão. Dizer
que um texto é literário subentende-se sempre que um outro não é (COMPAGNON,
1999, p.33).
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O valor comercial do livro está ligado, na maioria das vezes, à sua condição
material. Ele é visto como uma mercadoria comum, sujeita às leis socioeconômicas,
como o trecho seguinte evidencia:

LUÍS DE CAMÕES: Para vender, é preciso ter o quê. E eu, por


enquanto, o que tenho é saber que haverei de pagar quarenta mil réis,
se quiser que tantos anos gastos a compor o meu livro dêem frutos em
obra impressa.
ANTONIO GONÇALVES: É este o costume. Não podemos mudar o
mundo. Eu não posso. Vossa mercê traz-me o livro para imprimir,
paga-me a minha despesa e meu ganho, e eu imprimo. É como ir
comprar sardinhas À Ribeira. Dinheiro nesta mão, pescado na outra.
(SARAMAGO, 1998, p.85)

Camões questiona se o seu esforço intelectual não haveria de ser recompensado.


Deve-se refletir que o livro é simultaneamente uma mercadoria comum e um bem
simbólico. O objeto livro, que podemos comprar e colocar na estante, se não for lido,
não passará de qualquer coisa ordinária que adquirimos. Somente no ato da leitura
entramos verdadeiramente em contato com o bem simbólico, é a imaterialidade do livro
que nos interessa, embora os escritores não recebam, necessariamente, o dinheiro
equivalente ao esforço intelectual. No casamento entre mídia e mercado, outras leis são
imperiosas:

É muito difícil, dentro das facilidades que o mercado oferece e da


pressa que impõe, manter uma constante reflexão sobre a própria obra.
Daí o risco dos descuidos, das mesmices, chulices e obviedades que
vêm permeado a literatura contemporânea. Para se relacionar melhor
com os virtuais leitores, roubando-lhes algumas horas de televisão e
inclusive tentando competir com o seu código estético, marcadamente
realista, o escritor tem muitas vezes optado pelo gosto padrão: um
texto que poderia ser de boa qualidade, porém muitas vezes escrito
apressadamente, para um leitor também apressado, não consegue mais
escapar das redundâncias e clichês, e muitas vezes até de erros
gramaticais (PELLEGRINI, 1999, p.172).

A profissão do escritor é, portanto, totalmente atravessada pelas leis do mercado.


Nunca a imagem dos autores foi tão importante: é essencial que este apareça na mídia e
concilie os interesses do mercado com os seus, para que um público maior saiba de sua
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existência. Separar o joio do trigo, nessas condições, não é tarefa simples, mas
polêmica.
No presente contexto, o escritor encontra dificuldades para conseguir com que a
sua obra chegue a público. Ele não passa por um censor como passou Camões, mas tem
de lidar com a censura meticulosa de nossos tempos. Ele não precisa de um documento
que o autorize a publicar, mas nem por isso um escritor competente consegue publicar
com facilidade. Trata-de de até mesmo buscar repensar quais podem ser considerados os
“competentes”, já que para o mercado a única competência é a alta vendagem.
Enfim, mesmo que o escritor contemporâneo não sofra exatamente as mesmas
restrições que sofreu Camões – o que seria de fato, inusitado por já termos avançado
cerca de cinco séculos daquela longinqua data –, ele sofre outras e diversas dificuldades
para viver da arte, e são poucos os que exercem apenas essa profissão; a peça de
Saramago vem nos trazer esse impasse e questionar a nossa certeza na “evolução” da
sociedade. Se muitos avanços são incontestáveis, por que eles ainda não curaram feridas
antigas? Embora tanto tenha sido criado, muitas mudanças significativas necessárias
para que fossemos, realmente, uma sociedade justa, não foram nem parcialmente
solucionados.

4. A literatura vista sob a perspectiva do mercado

A lei do mercado é o lucro, e assim sendo, o livro está inevitavelmente sujeito às


leis socioeconômicas. Se assim é, o mercado tem o poder de alterar substancialmente a
constituição da literatura, já que os escritores precisam de dinheiro para sobreviver,
podem, certamente, tentar o caminho mais rápido e fácil do espetáculo e da banalização
da literatura a fim de obter uma rápida vendagem.
O mercado se interessa principalmente pelos nomes consagrados que garantam
altas vendagens: os leitores, apressados, recorrem às listas de livros mais vendidos,
tendo pouca oportunidade de entrar em contato com obras que não figuram nos meios
midiáticos. Assim, se vai criando um ambiente pouco propício tanto ao escritor, quanto
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ao leitor, e conseqüentemente, à literatura.


A literatura vista sob a perspectiva do mercado dificilmente supera o estatuto de
produto, sujeito às leis do consumo e visando ao lucro. O bem simbólico que traz
consigo é negligenciado em privilégio do lucro. Essa característica é capaz de alterar
significantemente os rumos da literatura. Na peça, discute-se essa interferência do
mercado quando Camões precisa imprimir o livro e não tem dinheiro para fazê-lo. Ele
questiona as regras do jogo, indagando se acaso ele não deveria receber algo pelo seu
trabalho intelectual, e por dedicar-se inteiramente à literatura.
Camões começa a negociar com Antônio Gonçalves a impressão do livro. Faz-
lhe a proposta: “Não tenho com que vos pagar. Podereis esperar até que o livro se
publique e venda? Tudo quanto dele se apurar até ao montante da minha dúvida será
vosso...” (SARAMAGO, 1998, p.86). Mas as coisas não são simples porque o impressor
investiria um dinheiro que talvez ele só recuperaria em meses ou anos. Para cobrar a
dívida, portanto, além da espera ele correria o risco de perder dinheiro caso os livros
não tivessem alta vendagem. Camões insiste e dias depois propõe novamente: “Quereis
comprar o meu privilégio, compor e imprimir o livro, e vendê-lo em vosso proveito?
Declarando eu que nada mais tenho que receber de vós senão o que tivermos ajustado
pela venda do privilégio e pela primeira tiragem?” (SARAMAGO, 1998, p.87). Nesse
sentido, a impressão do livro só se dá porque Camões se esforça por negociar através da
inteligência e da sinceridade:

ANTÓNIO GONÇALVES: Esperai, esperai. Que é isso que propõe


Vossa Mercê? Que eu lhe compre o privilégio e fique com a
propriedade do livro pelos dez anos que no alvará se dizem?
LUÍS DE CAMÕES: Sim.
ANTÓNIO GONÇALVES: Se o vosso livro se vender...
LUÍS DE CAMÕES: Não fareis mau negócio.
ANTÓNIO GONÇALVES: Mas, se não se vender?
LUÍS DE CAMÕES: Fá-lo-eis péssimo.
ANTÓNIO GONÇALVES: Agradeço-vos a franqueza.
LUÍS DE CAMÕES: É o que tenho para dar (SARAMAGO, 1998,
p.87).

Percebe-se o tom irônico quando Camões menciona que é só a franqueza que


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ele tem para dar, já que outros bens ele não possuía. A peça deixa claro, principalmente
no trecho que será exposto a seguir, a constituição do artista enquanto homem que
efetivamente admira as letras e por elas vive, mas que precisa de dinheiro para viver, ou
seja, precisa ser recompensado financeiramente pelo trabalho que exerce:

Mestre Antônio Gonçalves, não há porta nenhuma a que eu possa


bater. Esta é a única. Poderia dar-vos mesmo o meu livro, apenas com
a condição de que o imprimísseis. Mas preciso de comer, precisamos,
minha mãe e eu. Dai-me cinqüenta mil réis e eu entrego-vos o meu
privilégio, fazei do livro o que quiserdes, vendei o que puderdes.
Haverá decerto quem o leia, e se ele vale tanto quanto de mim pus
nele, talvez o futuro vos conheça por terdes composto, letra por letra,
página por página, os Lusíadas de Luís de Camões. (Pausa). Perdoai a
vaidade do autor (SARAMAGO, 1998, p.88).

Assim, Camões consegue convencer o tipógrafo a imprimir o livro. Ao final, o


poeta encerra o drama se perguntando e nos perguntando: “Que farei com este livro?
Que fareis com este livro?” (SARAMAGO, 1998, p.92), nos levando a refletir sobre o
que, afinal, a cultura ocidental fez com a arte e o que continuará fazendo.

Considerações finais

A peça de Saramago Que farei com este livro? retorna ao século XVI, para
denunciar as mazelas da época. Camões se encontra em meio a uma complexa rede de
intrigas e conluios que une os poderes políticos, religiosos e os interesses da nobreza.
Claro está que Saramago não retornou àquele período para denunciá-lo, ou
considerá-lo um modelo para a civilização atual. Trata-se de uma leitura dos fatos
passados, à luz do presente, que visa atingir ao próprio presente.
A primeira questão que buscamos responder: O mercado é capaz de transformar
significantemente a constituição da literatura?, é respondida pela peça. Não tendo o
dinheiro necessário para imprimir sua obra, e não sendo reconhecido por seus
conterrâneos, Camões se vê impedido de imprimir a obra. Os leitores de hoje só podem
contar com a maior epopeia portuguesa porque Camões driblou esse obstáculo,
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Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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propondo ao tipógrafo um outro tipo de negócio, mas essa afirmação, seguramente, só é


plausível no âmbito ficcional, pois não temos dados históricos suficientes para afirmar
categoricamente que as coisas tenham sido assim.
Na atualidade, o mercado ainda embaralha sobremaneira a constituição da
literatura. A lei mais preponderante do mercado é o lucro, e por isso ele aposta em
autores cuja vendagem é garantida. O escritor dificilmente escapa ao jogo
mercadológico, e muitas vezes vai pelo caminho mais fácil, escrevendo livros ao gosto
do público apressado, muitas vezes deixando de lado a reflexão sobre sua obra.
Perguntamos também se os best-sellers são realmente do agrado do público, ou
este não teve o direito de conhecer outro tipo de literatura, e se o valor literário de uma
obra se perde quando as obras são comercializadas. Concluímos que o leitor não
escolhe, caprichosamente, gostar disso ou daquilo. Não é apenas por ignorância ou falta
de competência que o leitor aprecia uma obra ou não. Os sentidos advindos das leituras,
tampouco são inteiramente de responsabilidade dos leitores, porque eles não podem
escapar da ideologia nas quais estão inseridos.
Mas, os best-sellers, que não podem ser, de forma alguma, generalizados e
tachados de baixa literatura, ocupam um espaço importante nas estantes dos
consumidores. Quanto mais vendidos, mais o mercado os expõe, tornando-os mais
facilmente acessíveis à população. Portanto, não podemos dizer que o leitor tem total
liberdade de escolha. Para que assim fosse, todos deveriam ter acesso irrestrito à
cultura, o que não ocorre no Brasil.
A literatura é um fenômeno social, e o escritor um produtor cultural que precisa
vender o objeto por ele produzido. Seria inviável dizer, nessa altura do campeonato, que
o mercado sozinho é quem decide tudo, pois não podemos esquecer que há um diálogo
entre produtor e consumidor. A lei da oferta está relacionada profundamente com a lei
da procura, não obstante, a leitura de um livro não corresponde exatamente ao consumo
deste. Existem os livros objetos, comprados apenas para adorno de estantes.
Portanto, o livro é uma obra de arte inserida em uma rede de de circunstâncias
sociais. Através dele, ocorre um diálogo entre escritor e leitor, este, não é um elemento
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passível, mas um produtor de sentido do texto.


O livro existe, assim, tanto em sua materialidade quanto em sua imaterialidade.
Ele se torna um bem simbólico quando o leitor entra em contato com sua imaterialidade.
Por isso, ele não nos parece uma mercadoria comum, afinal, quantas leituras diferentes
podem ser realizadas com um só livro? Quantos mundos diferentes podem ser
experimentados por meio de um mesmo exemplar? E quando se desgasta a parte
material do livro, e suas páginas se deterioram, o que perdemos? Nada, o livro não está
no papel, está em um outro lugar.

Referências

BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Os livros e a escola do tempo. Tradução Marcos


Santarrita. Rio de Janeiro: objetiva, 1995.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Cultrix, 1993.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de
Cleonice Paes Barreto Mourão – Belo Horizonte: Ed. UFMG,1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra
– São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PELLEGRINI, Tania. A imagem e a letra: aspectos da ficção contemporânea.
Campinas: Mercado de Letras/Fapesp, 1999.
REIS, Carlos – Diálogos com José Saramago, Lisboa, Caminho, 1998.
SARAMAGO, José. Que farei com este livro?. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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LIMA BARRETO: ENTRE A MÁGOA E A ESCRITA

Clara Asperti Nogueira (PG – UNESP/Assis)

Lima Barreto viveu em período significativo da história nacional. Presencia a


Abolição da escravatura e a Proclamação da República, apesar de jovem. Acompanha o
apogeu da Belle Époque nacional, a chegada das novas tecnologias tais como a
fotografia, o cinematógrafo, aviões, carros e os abomináveis sky-scrapers, tema
constante na combativa literatura barretiana (RESENDE, 2004, p.19); assiste estarrecido
o início e também o fim da Primeira Grande Guerra e vem a falecer no emblemático ano
de 1922. Deste modo, sua escrita não ficaria livre das influências dos grandes
acontecimentos nacionais e estrangeiros, ainda mais se lembrarmos que sua literatura
era publicada nos periódicos da época, principalmente nos jornais e hebdomadários
preocupados em denunciar desigualdades e abordar questões sociais tais como O Malho
ou A.B.C. Sua escrita, muita atenta aos acontecimentos de seu tempo, retrata e também
analisa de modo bem particular a história desse momento. Através das crônicas, que
publica, principalmente a partir dos primeiros anos do século XX, em periódicos de
menor circulação, Lima Barreto faz a representação da sociedade da ocasião, mas faz
também a representação da sua memória pessoal.
Os textos publicados no periodismo nas primeiras décadas do século XX serviam-lhe
como sua válvula de escape. O escritor, estigmatizado pela cor, pela pobreza e pelo
álcool, por meio do jornalismo, que, na realidade, não lhe abria portas, mas frestas,
torna público não só a memória de um tempo, mas toda a sua mágoa e ressentimento
pessoal. Em textos ferozes e, muitas vezes, oscilando entre a crítica e o desabafo, Lima
traça um painel crítico de uma sociedade em transformação, de um povo que se queria
civilizado, de um país recentemente republicano que se queria ver como nação e,
principalmente, de uma literatura que se queria superior, contudo ainda mostrava-se
intransigente e passadista.
Anti-republicano convicto, uma das marcas das produções de Lima Barreto era a
crítica constante ao novo regime democrático. Enquanto as elites intelectuais defendem
a República, movimento amplamente burguês, como a verdadeira afirmação da
identidade brasileira e passaporte para a formação de um Brasil moderno, Lima enxerga
na consolidação do regime o agravamento da segregação e da exclusão social, tão
sentidas por ele, ale, da ampliação da marginalização daqueles que nunca tirariam
proveito da proclamação: a baixa classe média e o operariado, ou seja, a população
carente. Em crônica publicada originalmente no Correio da Noite, em janeiro de 1915,
Lima, entre o desabafo e a crítica, denuncia sua clara opinião sobre a República
tupiniquim:

Sempre fui contra a república.


[...]
Sem ser monarquista, não amo a república.
[...]
O nosso regímen atual é da mais brutal plutocracia, da mais intensa
adulação aos elementos estranhos, aos capitalistas internacionais, aos
agentes de negócios, aos charlatães tintos com uma sabedoria de
pacotilha.
[...]
Eu, há mais de vinte anos, vi a implantação do regímen. Vi-a com o
desgosto e creio que tive razão (BARRETO, 2004, vol.1, p.174).

A intensa colaboração de Lima Barreto no periodismo carioca começa bem cedo,


ainda quando o autor tenta terminar, em vão, seus estudos na Politécnica. Nesse
período, já percebemos nascer a verve satírica e irônica de Barreto, futuramente marca
indispensável às suas produções jornalísticas, através da publicação de críticas à vida
acadêmica em jornais universitários, como n’A lanterna. Desse período resultam as
primeiras manifestações autobiográficas que posteriormente acompanharão grande parte
da produção limana. De acordo com Beatriz Resende:

Enquanto não tinha acesso de forma mais profissional à imprensa,


registrava em seu Diário Íntimo as primeiras impressões que lhe
causavam os acontecimentos políticos, como a Revolta da Vacina, em
1904, e praticando já um formato adequado à crônica anotava suas
visões da cidade que o fascina e que será a maior paixão de sua vida: o
Rio de Janeiro (RESENDE, 2004, p.9).
Através das anotações no Diário Íntimo1 Lima começa a lapidar sua marca
registrada: a linguagem inovadora, sem subterfúgios eruditos, clara, direta e próxima ao
falar cotidiano, no entanto, já ácida e ferina. É também pelo Diário que notamos os
rancores pessoais que marcarão toda a vida e obra do escritor e, de certo modo, também
inspirarão a escrita do cronista:

Último dia do mês em que, com certa regularidade, venho tomando


notas diárias da minha vida, que a quero grande, nobre, plena de força
e de elevação. É um modo do meu “bovarismo” que, para realizá-lo,
sobra-me a crítica, e tenho alguma energia. Levá-la-ei ao fim, movido
por esse ideal interessado e, se as circunstâncias exteriores não me
forem adversas, tenho em mim que cumprir-me-ei (BARRETO,
1956a, p.96).

Tal material é de grande relevância sob dois aspectos. Em primeiro plano, podemos
notar através desses recortes costurados por Lima fragmentos de sua vida íntima e o
exercício de sua escrita. Por outro lado, mesmo altamente contaminados pelo
subjetivismo próprio dos registros pessoais, através desses retalhos podemos notar a
presença do homem engajado, que testemunhou ao seu tempo, as dificuldades de seu
cotidiano. Esses primeiros lampejos militantes de Lima trabalhados no Diário Íntimo
são a prova de como a sua vida pessoal irá interferir fortemente em grande parte de sua
produção literária, tanto nos romances, como nas crônicas, nas críticas, nos escritos
políticos, nos contos.
Lima Barreto nasceu livre em 1881, todavia ainda sob o peso de uma nação que há
pouco deixava de ser escravocrata: “Nasci sem dinheiro, mulato e livre” (BARRETO,
1956b, p.139).
Mulato e órfão de mãe aos sete anos, o escritor viu o pai enlouquecer ainda quando
jovem. Como filho mais velho entre outros três irmãos, tratou de tornar-se o chefe da
família. O sonho de João Henriques, pai de Lima, de o ver formado e com canudo de
doutor, virou poeira quando o escritor abandona no último ano o curso de engenharia na
Politécnica, ao ser inúmeras vezes reprovado na cadeira de Mecânica. O estigma da cor
começa a pesar-lhe sobre os ombros:

1
O título Diário Íntimo foi dado por Francisco de Assis Barbosa, principal biógrafo de Lima Barreto.
FAB recolheu essas anotações, dispersas em cadernos e folhas soltas deixadas pelo escritor. Publicou,
parcialmente, esses recortes deixados por Lima Barreto juntamente com os outros 16 volumes que
formam as Obras Completas de Lima Barreto publicadas pela Editora Brasiliense em 1956. Os escritos
originais permanecem atualmente na Seção de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
A sociedade brasileira do início do século, porém, racista e
preconceituosa, em um país que somente aboliu a escravidão quando
nosso autor já tinha sete anos, não estava disposta a permitir que
aquele mulato, neto de escravos, tivesse acesso à elite intelectual,
formando-se engenheiro em uma das mais prestigiadas escolas do país
(RESENDE, 2004, p.10).

Seria descaso não atentar para o fato de que é evidente como a história pessoal e
familiar de Lima Barreto influenciou sua escrita. A questão da cor, da falta de um
sobrenome tradicional e, futuramente, os problemas causados pelo excesso do álcool
irão transparecer constantemente em sua produção e afetá-lo pessoalmente.
Ao abandonar definitivamente a universidade e tendo que ingressar, por concurso em
1903, no serviço público, como amanuense da Secretária de Guerra, Lima faz disso
mote constante de suas crônicas. A repulsa pelos “doutores”, aqueles que através do
diploma conquistavam status, poder e prestígio social, torna-se tema muito próprio do
seu cotidiano:

Os exames, os doutores, bacharéis, os médicos, toda essa nobreza


doutoral que nos domina e apóia os negocistas, é o maior flagelo desta
terra que os utopistas querem seja o paraíso terrestre (BARRETO,
2004, vol. 1, p.176).

Essa birra do “doutor” não é só minha, mas poucos têm a coragem de


manifestá-la (BARRETO, 2004, vol. 1, p.344).

Nesses excertos percebemos não só a escrita combativa de Lima frente ao que ele
denomina “donos da vida”, ou seja, aqueles que pelo estudo tradicional, ou pelo
dinheiro ou mesmo pela tradição familiar constroem reputação intelectual sem
realmente merecê-la. Contudo, notamos também a dor de alguém que não conquistou o
diploma por perseguição pessoal e preconceituosa. A caça aos “doutores”, à
intelectualidade forjada da época, será um dos alvos barretianos.
Outra questão pessoal que se mistura e influencia a escrita corrosiva de Lima é o
tema dos apadrinhamentos políticos. Por ser amigo de seu pai, o senador Afonso Celso
de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, apadrinha Lima ao nascer e, em
homenagem ao protetor aristocrata, Lima recebe o mesmo prenome. Porém, o contato
com o padrinho nunca se estendeu além de uma breve visita de cerimônia na infância.
Deste modo, a figura de protetor passa a repugná-lo, como podemos notar em mais um
desabafo no seu Diário Íntimo: “Os protetores são os piores tiranos” (BARRETO,
1956a, p. 34).

E, repetidas vezes, ao comentar seu ingresso no serviço público, frisava que este se
deu exclusivamente por concurso, sem a influência de padrinhos, protetores, ou melhor,
de “donos da vida”, como a eles preferia se referir.
É até irônico, mas representativo, lembrarmos a data de nascimento do escritor: 13 de
maio. Lima, acuado por seus contemporâneos por ser mulato em uma sociedade que
desejava uma população branca aos moldes europeus, em crônica comemorativa do
aniversário da abolição nos revela toda a sua crítica e mágoa pessoal:

Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data


áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar
no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura
no Largo do Paço.
[...]
Havia uma imensa multidão ansiosa... Afinal a lei foi assinada...
[...]
Jamais, na minha vida, vi tanta alegria (BARRETO, 2004, vol. 1,
p.77).

Notamos neste fragmento o claro uso da escrita da memória, Lima lança mão de sua
história de vida para lembrar um aspecto importante da sociedade não só carioca como
brasileira. Entretanto, a crônica de 4 de maio de 1911, publicada originalmente na
Gazeta da Tarde do Rio de Janeiro, não fica restrita as reminiscências do autor:

Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe


imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo,
nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na
cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento
direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos
hediondos (BARRETO, 2004, vol. 1, p.77).

A escrita autobiográfica foi recurso retórico eficiente para Lima Barreto. Nesta
última passagem já percebemos que a crônica deixa de ser mero exercício de lembrança
infantil do autor e passa a ser uma crítica clara aos horrores da escravidão há tão pouco
tempo extinta. Notamos um movimento crescente na fala barretiana, seu discurso passa
da simples rememoração para o julgamento severo do episódio. E a crônica vai além:

Quando fui para o colégio [...], a alegria entre a criançada era grande.
Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria do ambiente nos
tinha tomado (BARRETO, 2004, vol. 1, p.77).
A professora [...], uma senhora muito inteligente [...], creio que nos
explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de
criança, só uma coisa me ficou: livre! Livre!
Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos...
[...]
Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos
enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis! (BARRETO,
2004, vol. 1, p.77).

Para concluir o assunto, Lima junto à lembrança infantil combina crítica social contra
a falsa liberdade aos negros, que após a Abolição deixaram de ser escravos e, entretanto,
encorparam o grupo de desempregados do país, que crescia vertiginosamente no
período, e denuncia, ainda que sutilmente, as redes burocráticas e sociais que
amarravam e amordaçavam a sociedade menos favorecida da época.
Este texto é um registro representativo da literatura barretiana, que por meio de sua
ideologia, de sua escrita militante, de sua voz de denúncia e por meio do recurso que lhe
torna marco de uma época - a sua linguagem simples, porém inovadora -, Lima Barreto
trabalhou em prol dos necessitados, usando sua imagem pública, ofendido pelo desprezo
dispensado a ele pelos seus pares, aliou escrita, mágoa, revolta e engajamento para
tentar dar voz aos excluídos, tais como ele próprio. A sua história pessoal, assinalada
pela exclusão social, pela inadaptação aos padrões literários, econômicos, políticos e
sociais da época e por sua cor, serão armas potentes de combate.
Lima Barreto reverteu a sua amargura, por meio da linguagem, em denúncia contra a
arbitrariedade de um sistema político, social e principalmente literário que
marginalizava e excluía aqueles que não condiziam com o modelo burguês que
dominava o fim da Belle Époque nacional. A linguagem, instrumento de denúncia e de
revelação, foi a principal ferramenta de combate empunhada por Lima. De denúncia,
enquanto sua produção desnuda e acusa os desmandos daqueles que detêm o poder. De
revelação, enquanto se propõe a mostrar para os que não sabem, embora sintam os
mecanismos de que se servem os “donos do poder” para nele se manter. (CURY, 1981,
p.193)
Lima usou problemas pessoais, histórias íntimas e o jornalismo para lutar ao lado
daqueles que não tinham voz. Com plena consciência do fazer literário, partícipe
militante, engajado e preocupado em tornar público, por meio da sua literatura, as
questões políticas e sociais que assolavam o país e principalmente o Rio de Janeiro,
Lima Barreto se pôs inteiramente a disposição de uma literatura de inconformismo.

Ainda que Lima Barreto não tenha tido grande repercussão entre as
camadas populares de sua época, uma vez que a essas era vetado o
acesso à literatura, foi um escritor importante para a sua expressão
(CURY, 1981, p.21).

Sem jamais perder o estilo crítico e aceitando o estereótipo de escritor maldito


(FANTINATI, 1978, p.42), Lima, por meio dos romances, escritos autobiográficos,
crônicas e críticas e de uma linguagem direta, fluente e inquisitiva que chocava os
mandarins literários da época, os detentores do poder cultural instituído, dá voz às ruas,
aos excluídos desse campo intelectual predominante e opressor. A imagem de escritor
marginal, estigmatizado pela cor e pelo alcoolismo, e, principalmente, pela linguagem
cáustica, irreverente e irônica acabaram por se tornar o escudo de Lima. Através da
exclusão social que lhe foi imposta pela elite burguesa intelectual do período, Lima
Barreto optou pela libertação dos moldes literários tradicionais, aceitou a liberdade pela
linguagem esteticamente revolucionária para os padrões validados da época; e de figura
estranha e estigmatizada, outsider e exilado em uma literatura que se propunha ser o
sorriso da sociedade, optou pelo enfrentamento social. Usou os jornais e as revistas que
lhe davam acesso para dizer “toda a verdade aos poderosos (a sua verdade, pelo
menos)” (BARBOSA, 2002, p.329) e, com “o velho hábito de fazer memórias”
(BARBOSA, 2002, p.347) por meio da literatura, Lima atuou como o verdadeiro
intelectual, contestando o sistema vigente.

Para um artista militante, sua função não é exclusivamente produzir


uma obra de arte esteticamente válida, mas, e, sobretudo, realizar uma
obra que contenha um sentido revolucionário do ponto de vista social
(FANTINATI, 1978, p.3).

A crônica era o seu canal de comunicação direta com os leitores. Os jornais, aqueles
que lhe deram mais espaço como o A.B.C. e a revista Careta, eram o palco privilegiado
para divulgar não somente sua mágoa pessoal contra os “donos do poder”, mas também
como observatório para acompanhar o que ocorria nas ruas centrais e suburbanas
cariocas. Pela imprensa, sua literatura de enfrentamento social, de contestação ao
sistema intelectual dominante, de denúncia das arbitrariedades cometidas contra negros,
e carentes poderia ser mais facilmente ouvida.

O que o intelectual militante busca com o objeto artístico, criado


linguisticamente, é, em primeira instância, que o receptor descubra sua
própria identidade, ou melhor, seu nível de consciência sobre o meio
social. Para reformar a sociedade é necessário reformar o leitor, a fim
de que tome consciência de si e do mundo, e passe, graças ao efeito da
obra, da condição de ajustado na sociedade alienante à de oponente à
ela (FANTINATI, 1978, p. 5).

Entretanto, outros detentores do poder na cidade das letras serão não somente alvo da
crítica direta de Lima Barreto como também objeto e motivo constantes de suas mágoas
pessoais, como a ABL e Coelho Neto, representantes máximos da literatura estetizante e
ultrapassada. Em outra crônica, Lima mostra seu temperamento contraditório. É fato
notório a permanência de Lima à margem dos grupos literários que constituíam a ABL.
Os mandarins literários eram alvos certeiros e constantes das publicações barretianas,
nunca o aceitariam entre seus pares. A linguagem prolixa e vazia dos membros da
Academia tornava-se piada nas crônicas de Lima, no entanto, o escritor não deixou de
tentar por três vezes se eleger membro imortal da casa:

Vou escrever um artigo perfeitamente pessoal; e é preciso. Sou


candidato à Academia de Letras, na vaga do Senhor Paulo Barreto.
Não há nada mais justo e justificável. Além de produções avulsas em
jornais e revistas, sou autor de cinco volumes, muito bem-recebidos
pelos maiores homens de inteligência de meu país. Nunca lhes
solicitei semelhantes favores; nunca mendiguei elogios. Portanto,
creio que a minha candidatura é perfeitamente legítima, não tem nada
de indecente (BARRETO, 2004, vol.2, p.402).

Novamente inserindo desabafo pessoal ao texto jornalístico, Lima Barreto deixa


claro o seu desejo de assumir uma poltrona na ABL. Isso nunca acontecerá. Tempos
depois, alegando questões pessoais, o escritor retira a candidatura. Mas não se curva aos
favores políticos nem se tenta a pedi-los.

... o artista militante renega e repudia a busca da consagração pela


concessão às pressões externas. Seu intuito é adquiri-la justamente
pela contestação da arte triunfante, utilizando para isto recursos
críticos [...] e formas outras de destruição (FANTINATI, 1978, p.7).

Contudo, na mesma crônica, Lima não deixaria de destilar sua ironia e censura para
aqueles que, lançando mão do prestígio dos grandes jornais e da afamada reputação de
homens de letras, tinham vantagens no pleito para imortal:

Mas... chegam certos sujeitos absolutamente desleais, que não


confiam nos seus próprios méritos, que têm títulos literários equívocos
e vão para os jornais e abrem uma subscrição em favor de suas
pretensões acadêmicas.
Que eles sejam candidatos, é muito justo; mas que procurem
desmerecer os seus concorrentes, é coisa contra a qual eu protesto.
Se não disponho do Correio da Manhã ou do O Jornal, para me
estamparem o nome e o retrato, sou alguma coisa nas letras brasileiras
e ocultarem o meu nome ou o desmerecerem, é uma injustiça contra a
qual eu me levanto com todas as armas ao meu alcance (BARRETO,
2004, vol.2, p.402).

Além do nítido apelo angustiado que emana do texto, outras características


peculiares da produção barretiana podem ser notadas. O texto é fundamentalmente uma
defesa de si mesmo e de sua literatura. Lima lança mão de vocábulos contundentes para
se fazer ouvir, como por exemplo, protesto, injustiça, armas, dentre outras locuções de
impacto. O texto torna-se abertamente um panfleto denunciador. Mas ao mesmo passo
que notamos a forte presença do Lima Barreto questionador, ao lado dos excluídos e
marginalizados representados pela sua própria figura, percebemos também a dor de se
saber preterido e desmerecido. A última passagem da crônica nos evidencia isto:

Eu sou escritor e, seja grande ou pequeno, tenho direito a pleitear as


recompensas que o Brasil dá aos que se distinguem na sua literatura.
Apesar de não ser menino, não estou disposto a sofrer injúrias nem a
me deixar aniquilar pelas gritarias de jornais (BARRETO, 2004, vol.2,
p.402).

Para um escritor que como Lima Barreto defendia intransigentemente a função


transformadora da literatura, Coelho Neto, e indiretamente seus pares, representava tudo
o que era falso e raso na arte literária: a superficialidade de conteúdo em prol das “belas
letras”. Através das constantes críticas à Coelho Neto, Lima alcançava toda a literatura
enclausurada na “torre de marfim”.
O Senhor Neto quer fazer constar ao público brasileiro que literatura é
escrever bonito, fazer brindes de sobremesa, para satisfação dos
ricaços.
Ele não quer que o público brasileiro veja no movimento literário uma
atividade tão forte que possa exigir o desprendimento total da pessoa
humana que a ele se dedique.
[...]
A missão da literatura é fazer comunicar umas almas as outras, é dar-
lhes um mais perfeito entendimento entre elas, é ligá-las mais
fortemente, reforçando desse modo a solidariedade humana, tornando
os homens mais capazes para a conquista do planeta e se entenderem
melhor, no único intuito de sua felicidade (BARRETO, 2004, vol.1,
p.318).

Além da intenção de julgar o posicionamento intelectual e literário de Coelho Neto e


consequentemente de todos os que lhe eram solidários, esta crônica, de 1918, serve
como claro manifesto da opinião engajada de Lima Barreto: a literatura como
ferramenta de persuasão e de, principalmente, transformação da sociedade; mas também
nos serve como evidente profissão de fé e manifestação de amor à literatura declarada
pelo escritor. Lima Barreto atribui à arte o status de instrumento de militância. Nas
palavras do próprio autor, presentes em Impressões de leitura: “... a arte tem como
destino revelar uma almas às outras, restabelecer entre elas uma ligação necessária ao
mútuo entendimento dos homens” (BARRETO, 1956c, p.72).
No volume Impressões de leitura (BARRETO, 1956), espécie de manual literário
barretiano, através dos textos “O destino da Literatura” e “Literatura Militante”, um
inventário crítico é proposto por Lima, no qual o escritor elenca, com paixão, os
propósitos da verdadeira literatura: a arte como fenômeno social que não se resume ao
simples encanto plástico. Nestes escritos críticos de Lima Barreto, observamos
perfeitamente seu ideário social de se fazer da arte, principalmente da literatura, não
somente um veículo de exteriorização do belo, mas, fundamentalmente, forma de se
externar um pensamento de interesse humano.
Pelos seus romances e, sobretudo, pelas crônicas publicadas principalmente entre
1920 e 1922, período mais intenso de sua produção, notamos perfeitamente este sentido
de missão dado por Lima à escrita. Para tanto, principalmente a literatura não ficcional
limana, arma poderosa contra os detentores do poder à época, tenta reafirmar a função
social da literatura de transformar, pela escrita, o homem e a sociedade.
Lima Barreto, artista militante contra sistema opressor intelectual do momento,
observador atento e coerente da realidade, por meio da linguagem simples muito própria
de sua produção literária e jornalística, foge da mesmice prolixa e verborrágica visitada
pelos escritores das “belas letras” do período. Em crônica publicada em O Debate, Lima
mais uma vez questiona o papel público do literato-jornalista que, muitas vezes apenas
por fama, opina em assunto que não lhe cabe:

O mais curioso, neste nosso jornalismo moderno, é que, como muitas


de todas as outras coisas da nossa atividade mental, sejam chamados a
falar de certos assuntos homens que não tiveram a educação e a
instrução para isto, mas que, simplesmente com uma instrução de
meros guarda-livros e auxílio do dinheiro de argentários, se arrogam o
direito de falar sobre questões sociais e políticas (BARRETO, 2004,
vol.1, p.281).

Por críticas indiretas, mas certeiras como esta representada pela crônica acima e,
consequentemente, banido dos principais esquemas de articulação de poder,
representados principalmente pela elite literária e pela grande imprensa, o autor
mantém-se livre das amarras opressoras das instâncias consagradoras do poder e à
vontade para interpretar e traduzir, por meio de seus textos, as questões literárias e
sociais brasileiras que o frustravam.
Se, por um lado, os grandes periódicos o exilaram pela sua irônica e direta crítica ao
poder, por outro, a postura outsider possibilitou-lhe a liberdade de expressão pouco
notada em outro autor contemporâneo. E, a partir do momento em que se aposenta do
serviço público em 1918, as últimas amarras que o prendiam são desfeitas. Ao não ter
mais vínculo com o funcionalismo, Lima aceita inteiramente a arte participante, não
plástica e meramente contemplativa. Os anos entre 1920 e 1922 representam o momento
de aposentadoria e liberdade, e também período mais fértil e ferino de sua escrita.
Já que a Lima não coube participar do discurso legitimador da literatura oficial à sua
época, coube-lhe tarefa um tanto mais árdua: a arte da denúncia e da crítica ao status
quo vigente. Nas palavras de Jean-Paul Sartre, a função do escritor é “fazer com que
ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (1989, p. 21), e
Lima Barreto, intelectual questionador, oprimido e estigmatizado por uma biografia que
sempre o influenciaria, antecipou, pelas suas crônicas, o pensamento crítico e engajado
que seria proposto durante o século XX.
Entretanto, a postura engajada de Lima trouxe-lhe dificuldades muito perceptíveis. A
crítica literária oficial agiu duramente sobre a obra barretiana, não lhe poupando certo
ostracismo e esquecimento; tampouco estereótipos marcantes. Em vida, as produções
barretianas receberam poucos aplausos. Se as Recordações do escrivão Isaías Caminha
mereceu a “crítica do silêncio” pelos jornais e críticos do início do século XX, não
muito diferente se manteve o julgamento estético de sua obra durante o resto de sua
carreira literária.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Notas de revisão de Beatriz


Resende. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
BARRETO, Lima. Diário Íntimo (a). São Paulo: Brasiliense, 1956.
BARRETO, Lima. Vida Urbana (b). São Paulo: Brasiliense, 1956.
BARRETO, Lima. Impressões de Leitura (c): crítica. São Paulo: Brasiliense, 1956.
BARRETO, Lima. Toda Crônica. Apresentação e notas Beatriz Resende. Organização
Rachel Valença. Rio de Janeiro: Agir, 2004.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Um mulato no reino de Jambom: as classes sociais na
obra de Lima Barreto. São Paulo: Cortez, 1981.
FANTINATI, Carlos Erivany. O profeta e o escrivão: estudo sobre Lima Barreto. Assis:
ILPHA – HUCITEC, 1978.
SARTRE, Jean Paul. Que é Literatura? São Paulo: Ática, 1989.
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ROMANCE DE FORMAÇÃO E LITERATURA JUVENIL BRASILEIRA

Clarice Lottermann (UNIOESTE)

Introdução

Na literatura juvenil brasileira contemporânea, tal como nos contos de fadas


tradicionais e mitos, o herói precisa ultrapassar determinado estágio e superar “monstros
e dragões” no decurso de seu crescimento como indivíduo. Os monstros e dragões
atuais podem aparecer metaforizados sob várias formas: drogas, violência física,
gravidez, dificuldades de relacionamento com os pais, AIDS... Buscando averiguar
como se comporta o herói/heroína nessas narrativas, o propósito deste estudo é analisar
as obras O sofá estampado e Retratos de Carolina, de Lygia Bojunga, a partir do
conceito de romance de formação (Bildungsroman). Pretende-se analisar como as
personagens Vítor e Carolina, das obras ficcionais em destaque, são caracterizadas no
que diz respeito à sua trajetória existencial: como, ao focalizar suas vivências decisivas
no percurso de autoconhecimento, isto é, seu processo de aprendizagem e
amadurecimento, a narrativa recupera o gênero romance de formação. Para
fundamentação teórica recorreu-se, sobretudo, às obras O cânone mínino: o
Bildungsroman na história da literatura, de Wilma Mass, O Bildungsroman feminino:
quatro exemplos brasileiros, de Cristina F. Pinto e O sagrado e o profano, de Mircea
Eliade.

1. Romance de formação

Segundo Cristina Ferreira Pinto, “O termo alemão ‘Bildung’ tem o sentido de


formação, educação, cultura ou processo de civilização, e em português Bildungsroman
seria traduzido como ‘romance de aprendizagem’, ‘de formação’, ou ‘de
desenvolvimento’.” (1990, p.9). O conceito Bildungsroman, cunhado pelo filólogo Karl
Morgenstern e estabelecido por Wilhelm Dilthey, caracteriza obras que mostram
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o devir de um jovem que chega ao mundo, procura almas aparentadas,


encontra amizades e amor, entra em conflito com a realidade do
mundo, amadurece sob a diversidade de suas experiências, encontra a
si mesmo e toma consciência de sua tarefa no mundo. O herói é
rebelde no começo. O realismo ao seu redor se opõe a seu idealismo
ingênuo; sua alma cheia de arroubos bate a cara na porta do mundo
real. Só o amadurecimento permitirá o entendimento final, a
reconciliação e – na melhor das hipóteses – a convivência harmônica
entre o herói e o mundo. (BACKES, 2007, p.49).

Ao comentar a definição de François Jost sobre este gênero, Cristina Ferreira Pinto
(1990, p. 10) destaca que o

“Bildungsroman” apresenta as consequências de eventos externos


sobre o herói, registrando as transformações emocionais, psicológicas
e de caráter que ele sofre. Há uma ênfase, portanto, no
desenvolvimento interior do protagonista como resultado de sua
interação com o mundo exterior.

Além dos aspectos apontados, é importante destacar que o gênero em discussão


também é marcado por uma intenção pedagógica. Cristina Ferreiro Pinto salienta que
Morgenstern e Jost – estudiosos do gênero – definem o Bildungsroman

não só por seus aspectos temáticos mas também por sua função
didática, pela intenção pedagógica da obra de contribuir para a
educação e formação da pessoa que lê. Embora não mencione
explicitamente a função didática que o “Bildungsroman” pode exercer
sobre o público leitor, Jost relaciona seu surgimento na Europa às
preocupações pedagógicas da época. (PINTO, 1990, p. 11).

Em se tratando da literatura infantojuvenil, as intenções pedagógicas de que tratam


os autores supracitados são bastante evidenciadas. Regina Zilberman (1984, p. 3), ao
analisar a origem da literatura infantil, destaca que “sua emergência deveu-se antes de
tudo à sua associação com a pedagogia, já que as histórias eram elaboradas para se
converter em instrumento dela.” Para a pesquisadora (ZILBERMAN, 1984, p. 14), a
duplicidade congênita da literatura infantil, ou seja, seu vínculo inicial com a pedagogia,
a marca de tal forma que, por um lado, quando percebida pela ótica do adulto, revela
sua “participação no processo de dominação do jovem, assumindo um caráter
pedagógico, por transmitir normas e envolver-se com sua formação moral.” Por outro
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lado, “quando se compromete com o interesse da criança, transforma-se num meio de


acesso ao real, na medida em que lhe facilita a ordenação de experiências existenciais,
através do conhecimento de histórias, e a expansão de sue domínio lingüístico”. A
limitação do gênero deve ser entendida, pois, face essa duplicidade que gera
“desprestígio perante o público adulto, já que este não admite o legado doutrinário que
lhe transfere.”

2. A trajetória de Vítor

Na obra O sofá estampado 1 conta-se a história de Vítor, um jovem tatu que, como
presente de formatura, ganha uma viagem para conhecer o mar. A caminho da Bahia,
depara-se, no Rio de Janeiro, com a gata Dalva e resolve ficar por ali mesmo. “Quando
o Vítor chegou no Rio, perguntou daqui e dali onde é que era o mar. Explicaram. Ele foi
indo. Só que não conseguiu chegar na praia: no caminho ele viu a Dalva, e ali mesmo,
na hora, se apaixonou.” (SE, p. 59). Apaixonado, faz tudo para chamar a atenção de
Dalva, uma voraz consumidora de programas de televisão: como Dalva não desgruda do
sofá estampado, chegando a se confundir com o objeto, Vítor passa a fazer propagandas
na televisão e assim consegue fazer-se notar pela gata. Mas Dalva, que recebera
inclusive medalha de maior espectadora porque ficava infindáveis horas diante da
televisão, nunca repara de fato em Vítor, não lê as cartas em que o jovem tatu declara
seu amor e a pede em casamento e ignora solenemente que o faz sofrer. Um dia, ao
descobrir que Dalva sequer abrira muitas das cartas que enviara a ela, Vítor “Cavou até
gastar toda a força e muita mágoa, nem sabia quanto tempo. Cavou tão fundo que foi
dar no tempo que ele era tatu-criança. Vítor voltou pro passado numa terça-feira de
manhã. Ele estava na segunda série, e as férias tinham recém-acabado.” (SE, p. 20-21).

Nessa volta ao passado, a narrativa recupera a história do Vítor criança e


adolescente: suas vivências e relacionamentos na escola, na comunidade e na família;
suas angústias, sonhos e problemas com o pai. Através deste expediente narrativo – a
volta ao passado através do ato de cavar na memória – o leitor tem acesso a uma

1
As citações das obras ficcionais serão referenciadas pelas iniciais do título e páginas correspondentes.
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informação que justifica o ato da personagem: Vítor, desde criança, sofre de um mal:
quando angustiado/nervoso, engasga-se e cava desesperadamente: “Não foi doença,
nem atropelamento, nem batida em árvore; o Vítor já nasceu assim mesmo: com um
talento danado pra se engasgar.” (SE, p. 25-26). O engasgar-se constante de Vítor pode
ser relacionado à expressão popular “engolir sapo”: em sua trajetória existencial, Vítor
terá que aprender a lidar com suas frustrações, ansiedades, confrontos com o pai e com
o meio para superar sua submissão ao desejo alheio, à voz da autoridade paterna, à
exploração econômica.

Considerando-se que uma das características do romance de aprendizagem é


focalizar o protagonista em sua formação escolar e suas vivências juvenis, pode-se
afirmar que, em relação a tal aspecto, a obra em análise recupera marcas do
“Bildungsroman”. Quanto à relação conflituosa com o meio, ela é evidenciada, por um
lado, no relacionamento perturbado de Vítor com o pai e, por outro, na exploração de
Vítor pela agência de propaganda.

Quanto ao primeiro aspecto, ao sair para a viagem de seus sonhos, o pai obriga Vítor
a levar consigo uma carapaça (produzida na fábrica do pai) para vender/fazer
propaganda nos lugares por onde passar. A despedida é marcada por profunda tensão,
na medida em que o jovem tenta convencer o pai de que vender carapaças não faz parte
de suas expectativas em relação à profissão que deseja abraçar. A mãe, mesmo
compreendendo o filho, não consegue fazer com que sua voz – seu ponto de vista – seja
reconhecida pelo marido. O embate entre pai e filho resulta na submissão deste à voz
paterna:

– Mas, papai... escuta... eu... eu já tinha dito que eu não queria ser
vendedor de carapaça... (...) – Não tem que gostar, tem que vender. –
Eu queria fazer uma coisa que eu gosto! – Mas o “que eu gosto” já
não conseguiu mais sair, deu marcha á ré, começou o tal
engarrafamento na garganta do Vítor e tudo que ele queria dizer
acabou ficando pela metade. (SE, p. 55-56).

Além do conflito com o pai e da indefinição de sua vocação profissional, Vítor, na


tentativa de aproximar-se da Dalva através daquilo que ela mais consome, ou seja, de
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propagandas na televisão, também sofre com a exploração a que é submetido por Dona
Popô, a dona de agência para a qual Vítor faz anúncio de xarope, cigarro, queijo, vodka,
cerveja, pasta de dente, aparelho de barba, desodorante, toalha, sabão, sabonete, mala...
Dona Popô “alugou o Vítor pra anunciar em Porto Alegre e Belo Horizonte. Vendeu o
Vítor 15 dias pra Curitiba. Fechou contrato com o Vítor pra Portugal. Emprestou o
Vítor pro governo anunciar que o agricultor brasileiro devia cavar e plantar mais.” (SE,
p. 97). Como resultado dessa pressão, “Vítor foi ficando num tal estado de nervos de ser
tão alugado-vendido-emprestado que já não parava mais de se engasgar.” (SE, p. 97).
Por fim, quando sua imagem saturou por força de tamanha exposição, ele é dispensado
através de um recado: “Quando o Vítor voltou na Z, a Dona Popô mandou um recado:
‘Não tenho mais tempo pra falar com ele. Nem vou ter.’ O Vítor procurou outras
agências: em vez de mandarem ele entrar, mandavam recado: ‘Ele não interessa mais: a
tevê já espremeu tudo que ele podia dar.’” (SE, p. 98).
É interessante observar que Vítor faz propaganda de vários objetos, menos da
carapaça produzida na fábrica paterna. Sequer lembra que levara consigo, a contragosto,
uma amostra. De certa forma, aquilo que tentara, de forma relutante, negar ao pai
(divulgar o produto), transforma-se, pelo evidente exagero a que é submetido, em
tomada de consciência e posicionamento sobre o que deseja em termos profissionais.
Tais circunstâncias revelam outra faceta do romance de formação: a trajetória de Vítor é
marcada por perdas, dúvidas, confrontos e, sem dúvida, crescimento, aprendizagem
acerca do próprio eu. Sobre este aspecto, Cristina Ferreira Pinto (1990, p. 148) afirma
que, no romance de formação, “o herói busca uma filosofia de vida e uma vocação”, e é
o que se depreende do percurso cumprido pelo protagonista da obra em análise. Vítor é
marcado pelos acontecimentos e aprende com eles.
No que diz respeito ao relacionamento amoroso, o evidente desinteresse de Dalva e
a decepção provocada pelo rompimento do namoro fazem com que Vítor resolva voltar
para a floresta. Há, nessa etapa da vida do protagonista, uma conjunção de perdas: do
emprego, da namorada, da saúde física. Tudo aponta para a necessidade de mudança, de
superação e de novas vivências. “Lá pelas tantas o Vítor pensou: quem sabe voltando
pra casa ele esquecia da Dalva? (...) É... quem sabe tinha chegado a hora de voltar? E
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sem saber muito bem se tinha ou não tinha, o Vítor foi indo embora, atravessando rua,
dobrando esquina, deixando a cidade pra trás.” (SE, p.99). Diferentemente do herói que
volta para casa tendo vencido suas batalhas e sendo reconhecido e valorizado em função
disso, Vítor volta para casa sentindo-se derrotado e, a certa altura do caminho, cansado,
deita-se na estrada, adormece e sonha com o pai, que quer obrigá-lo a vender carapaças
de plástico. Vítor se engasga e tosse cinzento, acorda apavorado e, mais do que lembrar
o que sonhou, lembra da rua misteriosa que, em outras ocasiões, encontrara ao cavar. “A
vontade de encontrar de novo a rua foi tão forte que ele saiu correndo. Só querendo
lembrar direito onde é que ia cavar pra achar logo a escada, parou: quem sabe era
melhor já começar a cavar? E cavou.” (SE, p. 100).
Vítor encontrara essa rua, a primeira vez, quando, numa situação em que se vira
angustiado na escola, cavara e chegara a uma escada que levava a essa rua estreita,
deserta, sem árvores, sem carros, com limo nos telhados e, junto às portas de casas
quietas, alguns jasmins. Não havia ninguém, mas havia a impressão de que alguém iria
aparecer. Depois dessa experiência, Vítor tentara, várias vezes, reencontrar o local, mas
não conseguira e acabara esquecendo-se dele. Contudo, ainda criança, ao ser, de forma
abrupta, informado que a avó fora assassinada, desanda a cavar e surpreende-se ao
reparar que chegara àquela mesma rua. Desta vez, além da rua, ele encontra uma
Mulher segurando um “lenço de seda tão fino que mesmo quando o vento parava ele
ficava brincando no ar. Amarelo bem clarinho, todo salpicado de flor: ora era violeta,
ora era margarida, e lá uma vez que outra também tinha um monsenhor” (SE, p.47).
Apesar de assustado, Vítor quer seguir a Mulher: agarra-se ao lenço, mas a Mulher não
quer levá-lo consigo e olha-o de um jeito estranho, “parecendo achar esquisito encontrar
ele ali”: “Ela sacudiu a cabeça com força; puxou o lenço. O Vítor não quis largar. Ela
então tirou a mão do bolso e empurrou o Vítor de um jeito que ele teve que largar o
lenço, e largou também a vontade de seguir com a Mulher. ” (SE, p.47-9).

Nessa ocasião, Vítor consegue resistir ao desejo de acompanhar a Mulher, movido


pela esperança de que a notícia sobre a morte da avó fora equivocada. Quando a
desilusão com Dalva leva-o, novamente, a sentir vontade de morrer, Vítor, cavando,
chega à mesma rua: “E na rua continuava tudo quieto, parado. O mesmo cheiro forte de
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jasmim. O mesmo silêncio. A mesma impressão de que, lá no fim, de repente, alguém ia


aparecer. Só que agora o Vítor sabia que alguém era a Mulher que não tinha rosto, e
dessa vez Ela ia levar ele junto, ah! isso ia.” (SE, p.102). Mas o desejo de Vítor é
novamente frustrado, pois a Mulher/Morte leva consigo outra personagem, revelando
que ainda não era “chegada a hora” de Vítor:

O Vítor parou espantado. O lenço puxou o Inventor. O Inventor quis


voltar; o lenço apertou, foi puxando. O Inventor se virou. O Vítor viu
medo na cara dele: correu pra ajudar. Mas a Mulher já ia dobrando a
esquina – Ela, o lenço, o Inventor. O Vítor chegou logo atrás. Parou
num susto: depois da esquina não tinha mais nada pra olhar. (SE,
p.105).

Mais uma vez, o que traz Vítor de volta – o que possibilita sua saída do túnel – é a
lembrança da avó – suscitada por sua mala que estava de posse do Inventor – , por quem
nutria grande admiração. Para Nelly Novaes Coelho (1995, p. 667) “Dentro da trama, a
maleta surge como símbolo de uma vida criadora, engajada na aventura de viver
descobrindo o mundo. Para Vítor, encontrar a maleta foi como se a própria avó tivesse
voltado.” Ao ler o diário da avó, uma mulher empenhada na luta pela preservação da
vida e da natureza, o jovem é contagiado por sua vontade de lutar pela manutenção da
vida:

Aos poucos, devagarinho, foi dando vontade de começar onde a Vó


tinha parado. E só de pensar que podia encontrar de novo a Mulher e o
lenço de seda, se apavorou; quis ir embora depressa. Atravessou o
túnel correndo. Pra poder sair logo lá fora. (SE, p.105, grifo nosso).

A avó e o que ela representa – ideais, determinação e coragem – fazem com que
Vítor se liberte do desejo de morrer e empurram-no de volta à vida. Sair do buraco – e
da atmosfera fechada e sombria que simboliza a morte – e voltar ao espaço aberto da
floresta, com cheiro de terra e de folha, significa redescobrir o valor da vida.

O fato de ter passado por uma experiência extremamente dolorosa – que o


aproximara da Morte outra vez – e de ter resistido, evidencia o quanto a trajetória do
protagonista é marcada pelos acontecimentos, pelo embate com o meio e com o
sobrenatural. Vítor atinge a maturidade integrando no seu caráter as experiências pelas
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quais vai passando. Nesse sentido, a unha que se aquietou reflete o estado interior de
Vítor: sem a angústia de cavar e sumir, sem tosse e sem engasgo, ele sai do buraco
apaziguado, sem medo de enfrentar o pai e de negar-se a vender carapaças de plástico.
A travessia desse túnel funciona, portanto, como um rito de passagem. Segundo
Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 915-6), transpor o túnel enfatiza a transição entre dois
estágios da vida, pois o túnel, “símbolo de angústia, de espera inquieta, de medo das
dificuldades, de impaciência em satisfazer um desejo (...) é o símbolo de todas as
travessias obscuras, inquietas, dolorosas que podem desembocar em outra vida.”

De acordo com Mircea Eliade (1992, p. 150),

O rito de passagem por excelência é representado pelo início da


puberdade, a passagem de uma faixa de idade a outra (da infância ou
adolescência à juventude). Mas há também ritos de passagem no
nascimento, no casamento e na morte, e pode-se dizer que, em cada
um desses casos, se trata sempre de uma iniciação, pois envolve
sempre uma mudança radical de regime ontológico e estatuto social.

No caso de Vítor, o rito de passagem marca uma radical mudança no seu jeito de ser
e de se relacionar, inaugurando uma nova fase de vida. Além de vencer o medo,
conquista algo mais importante: torna-se consciente da realidade da morte. “Quem sabe
tudo não passava de um sonho? e ele ia acordar. Esperou. Continuou tudo igualzinho.
(...) Mas então, se também não era imaginação, tudo era verdade. Não era, não?” (SE, p.
105).

A experiência de Vítor ao deparar-se com a Morte é similar a um ritual de iniciação,


o que, nas sociedades arcaicas, marcava a transformação e aceitação do jovem na
sociedade adulta. Através desses rituais, além de ser instruído nas tradições míticas e
nos costumes sociais do clã, o jovem também era “formado”, no verdadeiro sentido da
palavra: “o homem das sociedades primitivas não se considera ‘acabado’ tal como se
encontra ao nível natural da existência: para se tornar um homem propriamente dito,
deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para uma vida superior, que é
ao mesmo tempo religiosa e cultural.” (ELIADE, 1992, p.152). Ao ser exposto a uma
série de provas iniciáticas – e confrontado com o poder sobrenatural – que o fazem
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enfrentar o pavor, o sofrimento e a assumir um novo modo de ser, o qual está


condicionado pela “tripla revelação: a do sagrado, a da morte e a da sexualidade”
(ELIADE, 1992, p.153), o jovem morre para a infância, ignorância e irresponsabilidade.
Ao se confrontar com a Mulher/Morte, Vítor vivencia tal aspecto dos ritos iniciáticos.
Superando seu desejo de morrer, voltando à superfície e enfrentando seus problemas, o
herói revela estar apto a assumir um novo modo de ser. Desta forma, ultrapassa sua
condição de ignorância do mundo e passa a fazer parte do universo dos iniciados, pois,
“A criança ignora todas essas experiências; o iniciado as conhece, assume e integra em
sua personalidade.” (ELIADE, 1992, p.153).

A trajetória do protagonista, portanto, contribui para seu processo de formação, de


aprendizagem sobre o mundo e sobre si. É a partir de suas vivências que se opera seu
crescimento pessoal, e Vítor torna-se capaz de tomar em suas mãos as rédeas da própria
vida. Voltar para casa, nesse sentido, não deve ser visto como fracasso, pois tal volta
não representa retomar valores e se submeter às condições anteriores à saída. O Vítor
que volta não é o mesmo que saiu pelo mundo, que teve experiências boas e frustrantes
e que aprendeu sobre o mundo e sobre si mesmo. Não se submete mais aos desejos
paternos e vai tomando coragem para assumir sua vocação profissional, claramente
espelhado nos exemplos da avó. “Aos poucos, o Vítor foi se esquecendo da Dalva, do
sofá, da agência Z. A hora de seguir o caminho da Vó foi ficando cada vez mais perto;
um dia ele arrumou a mala e foi pra Amazônia.” (SE, p. 107). Para Nelly Novaes
Coelho (1995, p. 667), “Aí temos o novo apelo do viver: não mais voltar para casa,
depois da aventura e ali permanecer seguro e parado até o fim dos dias, como o ideal de
ontem; mas sim, enfrentar o mundo lá fora, a cada etapa renovando a vida.”
O término da narrativa é bastante positivo e aponta para a aprendizagem/maturidade
de Vítor, o que se configura pela escolha de uma profissão e rejeição do padrão de
comportamento ditado pelo pai. Ao compreender que é possível rejeitar modelos de
comportamento inadequados e insatisfatórios para suas aspirações pessoais, Vítor
envereda por caminhos desconhecidos, por onde deverá seguir experimentando,
vivendo, perdendo e ganhando, o que aponta para mais uma característica frequente no
“Bildungsroman”, o fato de o destino da personagem permanecer indeterminado ao
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final da narrativa. (PINTO, 1990, p. 87).

3. Retratos de perdas e ganhos

Em Retratos de Carolina, a personagem que dá título à obra é focalizada em vários


momentos de sua vida. Os pequenos capítulos produzem o efeito de retratos num álbum,
cuja seqüência forma um todo e através dos quais o leitor reconstrói a trajetória de
Carolina, captada pela lente do narrador. Tais “instantâneos” da personagem permitem
associar a narrativa de Lygia Bojunga a um tipo especial de texto: o “novel of
awakening”. Segundo Cristina Ferreira Pinto (1990, p. 90), “a característica principal do
“novel of awakening” seria o fato de que o desenvolvimento da protagonista não se dá
dentro de uma continuidade cronológica mas sim em breves momentos epifânicos”. Já
Susan J. Rosowski (apud PINTO, 1990, p. 90) sugere que o “novel of awakening” seria
o correspondente feminino do “Bildungsroman” masculino. Assim, a narrativa de Lygia
Bojunga pode ser associada a esse tipo particular de gênero literário.
No primeiro capítulo, intitulado Carolina aos seis anos, o leitor depara-se com
“Carolina [que] ia atravessando os seis anos quando conheceu a Priscilla.” ( RC, p. 9).
A menina encanta-se com Priscilla, mas também sofre uma grande decepção na festa de
sete anos da amiga. A trapaça de Priscilla na brincadeira promovida por sua mãe
(caroços de ameixa premiados no bolo de aniversário) leva a um profundo desencanto.
Assim como nos demais retratos, este tem a marca da decepção. Mas também deixa
evidente a profunda amizade, proximidade e identificação de Carolina com seu pai. O
Pai (que não aparece nominado) é apresentado como seu mentor, seu guia, aquele com
quem a menina, ainda que silenciosamente, tem os melhores momentos de afetividade,
crescimento intelectual e emocional.
Carolina tem mais proximidade com o Pai do que com a Mãe: a Mãe é limitada e o
Pai tem uma compreensão mais ampla do que aflige a filha, deseja que a filha supere as
limitações sociais e culturais (que a esposa tanto preza), espera que a filha seja feliz
exercendo uma atividade profissional (o que a Mãe acha desnecessário pois o marido é
que deve sustentar a esposa). Constata-se, portanto, mais uma marca do
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“Bildungsroman” feminino pois, de acordo com Cristina Ferreira Pinto (1990, p. 148),
“Enquanto no “romance de aprendizagem” masculino o conflito da personagem é
normalmente com o pai, o conflito da protagonista feminina envolve a figura materna,
em geral física e/ou emocionalmente ausente, distante da filha.”
Aos 15 anos, Carolina viaja com os pais para a Europa e apaixona-se por Londres e
por um vestido que vê numa vitrine na noite anterior ao regresso ao Brasil. Impedida de
comprar o objeto da paixão (a loja fechara), Carolina vive nova frustração: “– Perdido.
Perdido pra sempre. Pra nunca mais. – Foi se distanciando devagar da loja. Agora eram
duas perdas pra sofrer: Londres e o vestido. (RC, p. 61). Mal sabe ela que reencontraria o
vestido da forma mais inesperada.
Num novo retrato – aos vinte anos – Carolina está cursando faculdade de arquitetura
e, através da amiga Bianca, conhece o Homem Certo e reencontra o vestido pelo qual se
apaixonara aos 15 anos no guarda-roupa de Eduarda, a ex-mulher do Homem Certo. O
capítulo encerra com Bianca, insegura, dando um “chega pra lá” na amiga. E, para
surpresa do leitor, o retrato seguinte inicia desta forma: “Até o dia de se casar com o
Homem Certo, Carolina viveu numa casa antiga, de um pavimento só, numa das
ladeiras de Santa Teresa, no Rio.” (p. 81). Ao longo desse capítulo, o narrador mostra
Carolina e sua paixão descontrolada pelo Homem Certo. Em uma conversa com o pai,
Carolina revela que está cega de paixão: “eu me sinto arrastada por ele, confundida por
ele, cegada por ele, ah, pai: paixão”. (RC, p. 89).
Para desconsolo do Pai – que a aconselha a viver a paixão até que esta desapareça,
se consuma – Carolina se casa com o Homem Certo e logo vê sua liberdade cerceada:
no retrato dos vinte e dois anos, o leitor encontra Carolina passando por uma fase de
crise no casamento e numa conversa com o Pai, revela que abandonara os estudos. Por
fim, depois de algum tempo, Carolina se dá conta de que, para o Homem Certo, ela não
passa de um instrumento para ele evocar a memória/lembrança da Eduarda. Violentada
pelo marido, opta por abortar o feto. O pai compreende sua atitude, mas a mãe e o
marido a acusam de assassina. Tomado pelo câncer, o pai morre e Carolina se separa.
Antes de morrer, o Pai conversa com a filha e de certa forma tranquiliza-se por sentir
que Carolina estava retomando as rédeas da própria vida. “Ah! que bom que o Pai tinha
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visto no olho dela a certeza, nascida naquele justo momento; a certeza que varria longe
o medo, varria a culpa, varria a dúvida; a certeza de que eram mesmo poucos dias que
separavam ela... dela mesma.” (RC, p. 136-37).
Observa-se, portanto, como a trajetória da personagem e marcada por perdas,
dúvidas, confrontos e, sem dúvida, crescimento, aprendizagem acerca do próprio eu.
Estabelecendo distinção entre o romance de formação masculino e o romance de
aprendizagem feminino, Cristina Ferreira Pinto (1990, p. 148) afirma que “Enquanto o
herói busca uma filosofia de vida e uma vocação, a mulher procura uma identidade, a
realização a afirmação do EU em seus próprios termos.”
O último retrato mostra Carolina aos 25 anos, num pequeno apartamento, tentando
refazer sua vida. A saudade do pai, o medo e a solidão a levam à “velha imagem do
túnel que a gente tem que atravessar...” (RC, p.153). Carolina dorme e a imagem do
túnel vira sonho: “de dentro do túnel vem um canto de pássaro. Carolina se surpreende.
Avança pra escuridão” (RC, p.155). O canto de um pássaro faz com que se lembre do
pássaro que ganhara na festa de Priscilla e da decepção com a amiga que trapaceara.
Tateando no escuro, depara com o vestido que tanto desejara aos 15 anos; encontra,
também, o sapato que o pai usava em casa. Tanto o pássaro quanto o vestido e o sapato
são elementos importantes na vida de Carolina: os três estão relacionados a
acontecimentos que marcaram a vida da personagem, desde a infância. Uma luz feérica
ilumina o sonho de Carolina e deixa entrever um pedaço de céu. A importância desta
luz, para a personagem, reside no fato de que ela ilumina o passado e, desta forma,
permite que Carolina veja a gaiola do pássaro que ganhara na festa de aniversário da
Priscilla e, sobretudo, que sua mão abrira a gaiola para libertar a ave: “Mas a mão tinha
feito a coisa certa: tinha aberto a porta da gaiola pro Pet ir s´embora, voar, ser livre”
(RC, p.157). Dar-se conta de que libertara o pássaro desperta, em Carolina, um
sentimento renovado de energia e vontade de ser livre: “- Ser dona da minha vida...
Com essa minha mão aqui... eu vou fazer.” (RC, p.158-9). O que Carolina encontra, no
final do túnel, é a consciência de que a mão fora capaz de libertar o pássaro. Esse
processo de tomada de consciência é essencial uma vez que, depois de ter iluminado
esse episódio do seu passado, Carolina é capaz de tomar em suas mãos as rédeas da
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própria vida.

Considerações finais
Dentre as características que convencionalmente definem o “Bildungsroman”,
Cristina Ferreira Pinto destaca a focalização na infância da personagem, o conflito de
gerações, provincianismo ou limitação do meio de origem, a auto-educação, alienação,
problemas amorosos e a “busca de uma vocação e uma filosofia de trabalho que podem
levar a personagem a abandonar seu ambiente de origem e tentar uma vida
independente” (1990, p. 14). Acompanhando os diferentes momentos da trajetória de
Vítor e Carolina, o leitor toma conhecimento do desenvolvimento emocional e
intelectual e do processo de formação de suas personalidades. Desta forma, é possível
relacionar essas obras a toda uma tradição de romances de formação, bem como a outras
narrativas voltadas para o público juvenil em que se põe em questão o processo de
formação das personagens.

Referências

BACKES, M. Os anos de aprendizagem. Entrelivros. São Paulo, ano 3, n. 28, p. 48-51,


ago. 2007.
BOJUNGA, Ligia. O sofá estampado. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
_____. Retratos de Carolina. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2002.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. SILVA,
Vera da Costa e et. al.. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad.
FERNANDES, Rogério. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
KOVÁCS, Maria Júlia. Morte, separação, perdas e o processo de luto. In: KOVÁCS,
M. J. (Coord.). Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992,
MAAS, Wilma P. M. D. O cânone mínino: o Bildungsroman na história da literatura.
São Paulo: UNESP, 2000.
PINTO, Cristina F. O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros. São Paulo:
Perspectiva, 1990. (Coleção Debates)
ZILBERMAN, Regina. O estatuto da literatura infantil. In: ZILBERMAN, Regina e
MAGALHÃES, Ligia C. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 2.ed. São
Paulo: Ática, 1984.
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CONTRIBUIÇÕES BAKHTINIANAS PARA A AMPLIAÇÃO DA EDUCAÇÃO


LITERÁRIA

Cláudia Lopes Nascimento Saito (UNICENTRO)


Nubiane kailer kava dos Santos (PG-UNICENTRO)

Introdução

Em nossa caminhada pelo magistério do Ensino Básico, a leitura literária tem sido
alvo constante de críticas. Especialistas e pesquisadores são pródigos tanto na denúncia
como na condenação de procedimentos pedagógicos inadequados, como também nas
propostas de práticas desejáveis. Contudo, limitam-se a isso e não se arriscam a dar
sugestões práticas para o trabalho pedagógico com a leitura do texto literário,
temerosos, talvez, tanto do caráter reducionista de qualquer receita pronta, quanto do
mau uso que se possa fazer dela.
Os professores de língua portuguesa são culpabilizados por "leituras ingênuas e
superficiais", "leitura de decodificação", "práticas reducionista", “por ficarem presos
somente à linha do tempo da historiografia” enfim, responsabilizados pelo desinteresse
e desmotivação do aluno em relação à leitura literária.
A verdade é que os professores têm consciência da importância de uma educação
literária na vida do aluno como “arte que transforma e humaniza” (CANDIDO, 1972).
Assim, como reconhecem a sua responsabilidade por despertar o gosto pela leitura e
pela formação do leitor proficiente.
Entretanto, quando decidem por mãos à obra e tentar reverter a tão conhecida "lei-
dura", como se refere Silva (1993, p.23) ao falar da situação de crise em que se encontra
a leitura no Brasil, ficam perplexos diante das condições tão avessas ao seu trabalho.
Entre as interferências no processo de ensino de leitura literária, o desinteresse pelo ato
de ler é um grande empecilho provocado muitas vezes pelas desfavoráveis condições de
produção da leitura (livros caros, falta de estímulos, falta de identificação com os textos
que a escola propõe para ler, etc.) que, evidentemente, prejudicam a efetivação desse
aprendizado.
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O poder de sedução do livro ou do texto escolar ainda continua baixo para o aluno,
sobretudo porque ainda se mantém o abismo que separa o texto da experiência histórica
em que está inserido o aprendiz. As leituras escolares pouco acrescentam. Em outras
palavras, o ensino de leitura ficaria facilitado se o texto ou o livro a ser lido se
encaixasse no seu universo de interesse, expressando os temas e os valores que dizem
respeito a ele.
Na verdade, para instaurar no aluno o prazer da leitura literária, não seria preciso
promover uma substituição dos textos lidos, mas uma mudança de olhar. Operando com
textos literários (clássicos) ou não literários (literatura de mercado) professor pode atuar
no sentido de promover alterações no olhar do leitor, cabe-lhe um importante papel de
substituir a prática de leitura monológica pela da compreensão ativa de bases dialógicas.
A leitura de qualquer texto entendida enquanto ato de compreensão ativa, leva o
leitor a perceber as vozes que falam no seu interior, a que formação ideológica elas se
vinculam e a que tipos de interesses elas servem. Nessa perspectiva, qualquer discurso -
dada a sua natureza essencialmente dialógica - não é nunca a manifestação de uma só
voz, mas um conceito polifônico que revela a pluralidade de formações discursivas
presentes no texto, inclusive a do próprio leitor.
Todavia, para isso o professor deve estar preparado, pois apenas por meio da
instrumentalização do aprendiz que a mudança de ponto de vista ocorrerá, o que nos
remete a algo imprescindível nesse processo: o professor ter um aparato teórico
orientado para o aprendizado da leitura.
Na prática pedagógica concreta com o texto literário, não é raro o aluno, maravilhado
diante de tantos significados que o professor levou-o a perceber no texto, revelar-se,
todavia, incapaz de, por si só, chegar aos mesmos resultados. E a sua indagação é quase
sempre a mesma: o que é que eu devo saber para conseguir uma leitura similar.
Esse tipo de questão tem recebido diferentes respostas: é preciso ler incansavelmente
o texto, grifar as partes principais, levar em conta todos os dados pertinentes que estão
presentes no texto, etc. Mas quantas vezes o aluno não se sente desencorajado diante de
um texto que, do ponto de vista da estrutura linguística interna, não traz nenhuma
dificuldade e, apesar disso, revela-se indecifrável.
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Não se quer dizer com isso que o saber necessário para a elaboração de uma leitura
proficiente não dependa também de fatores determinantes que extrapolam os limites da
escola e que, portanto, fogem ao controle do professor de Língua Portuguesa.
Imaginemos, por exemplo, o repertório que se impõe como necessário para que o
aluno depreenda as relações intertextuais ou interdisciplinares implicadas num processo
de leitura. O professor de língua portuguesa pode alegar que a aquisição desse saber
foge completamente ao seu controle e que a curto prazo, ele pouco pode fazer para
alterar esse estado.
Entretanto, faz parte de seu papel esclarecer o aluno sobre a necessidade da aquisição
desse saber para que ele progrida na sua escalada de aprendizado de leitura. Se não é
possível ao professor de imediato suprir tal dificuldade, está ao seu alcance revelar ao
aluno a causa desse inconveniente e apontar-lhe as pistas para superá-lo a médio e longo
prazo.
O aluno irá, com isso, familiarizando-se com a idéia de que não é apenas ao léxico
dos dicionários que ele deve recorrer para descobrir significados que lhe escapam, mas a
todo o acervo cultural assentado nas enciclopédias, nos livros, enfim, nas publicações
todas que guardam o saber coletivo.

1. Leitura monológica versus leitura dialógica

Na literatura especializada sobre o ensino da leitura, tem sido citada com frequência
uma obra de Bakhtin, em que o autor dirige severas críticas contra um certo modo de
ensinar a ler, valorizando o papel relevante de uma leitura baseada na "compreensão
ativa do texto". Para ele, só a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a
evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo evolutivo
(BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1979, p. 117)
Soares (2001, p.1) declarando explicitamente sua filiação a Bakhtin, também assume
posição contra uma concepção de leitura que coloca o leitor passivamente frente ao
texto como se este fosse uma peça isolada, um monólogo sem relação com qualquer
contexto. A autora afirma que a leitura não é um ato solitário que afasta o mundo e do
mundo, tendo só o leitor e o texto.
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Segundo Geraldi (1996, p. 80), "o texto somente se completa com o ato de leitura ao
ser utilizado, operado linguística e tematicamente pelo leitor". Assim, de acordo com o
autor, uma leitura ativa supõe uma atitude produtiva, ou seja, pela mobilização dos
"fios" com que o texto foi tecido mais os "fios" que o leitor traz de sua história, um
"novo bordado” surge.
Dessa experiência de leitura, o leitor sairá modificado ou porque adere ou porque
modifica os pontos de vista em face do diálogo mantido. Em síntese, o leitor é levado a
fazer - refletir sobre o texto para que ele possa assim fazer - agir através dele.
A leitura passiva opõe-se à leitura ativa, que pode ser caracterizada como a negação
da leitura monológica e a afirmação do "caráter dialógico constitutivo da linguagem".
(BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1979, p. 149).
Quanto à afirmação do dialogismo, seu fundamento está no pressuposto de que todo
texto emerge como o pronunciamento de um enunciador dentro de um processo de
interação verbal. O enunciador constrói seu texto como um dos interlocutores desse
diálogo. Nesse processo, o leitor não é passivo, mas é agente que busca significações,
ou seja, tem uma “atitude responsiva ativa” em relação ao enunciado (BAKHTIN, 1992,
P.353).
Nesse quadro, fica evidente que, ao definir-se por uma determinada prática
pedagógica em detrimento da outra, a escola e o professor de língua portuguesa não
podem se deixar levar pela ingenuidade de acreditar que se trata de uma opção
indiferente. O processo de leitura ativa pressupõe certas posições ideológicas; o de
leitura passiva, outras. Um pretende formar o aluno para atuar como agente
transformador da história; outro almeja uma forma de atuação oposta.
A escola decidida a comprometer-se com as mudanças da organização social e com a
afetiva formação do aluno como agente dessas mudanças, não pode sujeitar-se a práticas
pedagógicas em que o aluno exercita a leitura literária como decodificação, seguindo as
questões sobre o texto com as respostas em sequência, o que Kleiman (1995, p. 20)
classifica como sendo "uma tarefa de mapeamento entre a informação gráfica da
pergunta e sua forma repetida no texto, e que no livro didático é chamado de
interpretação”.
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2.O letramento literário

O letramento literário se apresenta como uma proposta de iniciação e ampliação da


educação literária cujo objetivo fundamental é o de formar comunidades de leitores que
se iniciam nas práticas de leitura do texto literário na escola, mas que irão além dela,
porque oportunizarão aos alunos uma maneira própria de “ver e viver o mundo”.
Também as representações que os textos literários criam, guardam uma
especificidade, pois “criariam um mundo sobreposto ao mundo ordinário”, e por isso,
permitem a emergência de conteúdos vividos que não encontrariam meios de realização
nas atividades cotidianas (ÉRNICA, 2006, p.98).
Confirmando, assim, o que nos diz Candido (1995, p. 249) em relação ao conceito
de literatura como sendo um fator de humanização, na medida em que coloca a
literatura como agenciador do amadurecimento sensível do aluno.
Soares (1996), a partir da investigação no âmbito dos estudos sobre letramento,
chama a atenção para a inevitável escolarização da literatura. Para autora, “a escola
deve conduzir o aluno à análise do texto e à explicitação e sua compreensão e
interpretação”.
Ocasião também em que critica os exercícios escolares propostos aos alunos e faz a
seguinte proposta: “uma escolarização adequada da literatura será aquela que se
fundamente em respostas também adequadas às perguntas. Por que e para que ‘estudar’
um texto literário? O que é que se deve ‘estudar’ num texto literário?”
Mello( 1996), na discussão das finalidades pedagógicas da leitura do texto literário,
considera duas vertentes fundamentais: uma formativa e outra informativa. Segundo a
autora, a vertente formativa diz respeito a aspectos da formação do leitor e de
significados que se investem nessa formação e a importância das práticas de leitura na
escola para a formação do gosto de ler e dos investimentos formativos ao nível retórico-
discursivo, enfatiza o quanto o ensino da literatura pode abrir a senda para o
desenvolvimento do pensamento crítico e problematizante dos sujeitos. Já a vertente
informativa, presente, sobretudo quando se pensa na dimensão cognitiva da leitura
literária, de acordo com a modelização estética dos textos.
Sabemos que o lugar da literatura no ensino, na educação, diz respeito a valores
culturais, identitários e patrimoniais de que é portadora de valores que devem permear o
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imaginário simbólico das novas gerações, fazer parte inalienável dos saberes a serem
transmitidos/adquiridos pelas crianças e jovens em formação escolar, por isso temos que
desenvolver atividades de ensino/aprendizagem com os gêneros discursivos dessa esfera
que sejam significativas e levem nossos alunos a uma prática ativa de leitura.

Nessa perspectiva, consideramos que o enfoque didático dos textos literários


fundamentado na teoria da enunciação e na noção de gênero discursivo da vertente
bakhtiniana podem contribuir para potencializar o diálogo entre práticas e textos que
devem ser objetos de estudo em eventos de letramento, permitindo a entrada, na escola,
da cultura literária valorizada e dominante, mas também das culturas locais e populares,
tornando-as vozes de um diálogo que se torna objeto de estudo e de reflexão crítica
(BAKHTIN, 1932/1998).

3. O trabalho com gêneros discursivos

Estudiosos da linguagem têm apontado limitações descritivas, analíticas e


interpretativas de teorias que subsumiam a dicotomia saussureana língua/fala e têm
buscado a ruptura com esses modelos e a superação desta divisão inicial, passando a
considerar aspectos de ordem textual, contextual, cognitiva, subjetiva, interativa, social,
histórica, cultura, ideológica etc., com ênfase em recortes variados, dependendo da
teoria em questão.
Se, num primeiro momento, as descrições estruturais e as várias classificações
tipológicas de textos – retomadas da tradição e/ou criadas, juntamente com o suporte de
teorias psicológicas que davam pistas a respeito dos suportes cognitivos inerentes à
compreensão e à produção de textos escritos foram aceitos e incorporados às várias
ações de formação e “atualização” de professores e aos materiais didáticos; aos poucos,
essa hegemonia tem se desfeito, na medida em que se constata a falta das dimensões
cultural e social nas descrições textuais propostas.
Em resposta a essas ausências e como um processo no curso do desenvolvimento de
uma área do conhecimento, surgiram modelos teóricos que tentavam dar conta dessas
dimensões, alguns se limitando ao contexto comunicativo, outros indo além, em direção
às condições de produção. Como muitas dessas (re) formulações teóricas não
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incorporaram, de fato, a dimensão social e histórica, metodologicamente, elas


continuaram a propor uma descrição estrutural dos textos e, depois de tê-la feito,
acrescentavam considerações sobre a relação entre os interlocutores, suas intenções etc.
Dessa forma, o trabalho com gêneros discursivos passa a ser fundamental na escola,
pois eles são utilizados como meio de articulação entre as práticas sociais e os objetos
escolares, tanto no domínio do ensino da produção de textos orais e escritos, quanto na
leitura e no trabalho com os conhecimentos linguísticos.
Desde a publicação dos PCNs de Ensino Fundamental I e II (1998) e do Médio
(1999; 2006), uma gama de pesquisas no cenário acadêmico passaram a apontar para o
ensino de gêneros discursivos como uma alternativa para ultrapassar práticas
pedagógicas vistas como “tradicionais” (ROJO, 2000; DIONÍSIO, MACHADO e
BEZERRA, 2002); vários livros didáticos que, diante dos critérios adotados pelo PNLD
(Programa Nacional do Livro Didático) que avaliam as coleções didáticas pelo viés da
teoria da enunciação bakhtiniana, têm legitimado e divulgado um ensino de língua
materna com base em gêneros discursivos (CEREJA e MAGALHÃES, 1999;
CAGLIARDI e AMARAL, 2001; SOARES, 2002; BRAIT e ROJO, 2003); alguns
cursos de formação continuada 1 que utilizam pressupostos da teoria de gêneros para
discutir o ensino de língua materna (NASCIMENTO e SAITO 2, 2004a; 2004b; 2005a;
2005b; 2006), entre outras formas de legitimação e divulgação.

3.1. A noção bakhtiniana de gênero do discurso

1
O Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Básica (SEB), criou a Rede
Nacional de Formação Continuada de Professores. O objetivo é institucionalizar a formação continuada
de profissionais da Educação. No Paraná, surgiu um consórcio de IES - formado pela UEL, UEPG, UFPR
e UNIOSTE que passaram a integrar a Rede Nacional, constituindo um dos 5 Centros de Alfabetização e
Linguagem espalhados pelo Brasil.
2
Em nosso trabalho na Rede, como uma das autoras de materiais didáticos – fascículos, vídeos e
Cd Rom, que constituem o curso de Gêneros Textuais – uma abordagem para o ensino de LP, temos
sentido que é preciso auxiliar o professor na sua intervenção didática com os gêneros textuais midiáticos
fornecendo aos professores, em formação ou em serviço, instrumentos teóricos e metodológicos que
possam ser utilizados quando se fizerem pertinentes e eficazes, sempre adaptados aos objetivos nos
diferentes contextos de ensino.
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Abordando a origem e o desenvolvimento da linguagem, Bakhtin / Voloshinov


(1992) observam que esta deve ser buscada no campo das relações sociais, pois a sua
origem e desenvolvimento se encontram na organização econômica e sócio - política da
sociedade.
A linguagem, para os pensadores russos, é o resultado, o “produto” da atividade
humana coletiva, fundada nas necessidades de comunicação social, sendo, portanto, de
natureza social. As atividades (de linguagem) organizam e, ao mesmo tempo, são
organizadas por meio de enunciados que são tão variados, heterogêneos e complexos
quanto às próprias atividades do homem. De acordo com Bakhtin:

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados [...] cada


esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis
de enunciados, sendo isso o que denominamos gêneros de discurso...
A riqueza e a variedade dos gêneros de discurso são infinitas, pois a
variedade virtual da atividade humana é inesgotável (BAKHTIN,
1972, p. 173).

Para ele, é na interação verbal e no enunciado que encontramos a “verdadeira


substância da língua”. Por isso é que a enunciação (ato de enunciar ou produzir
enunciados) vista como produto das interações sociais, constitui a unidade de estudo da
língua, que ocorrem tanto em contextos sociais mais simples como mais amplos e
complexos. A enunciação se dá em uma determinada situação de produção por meio de
enunciados – gêneros discursivos – que, exercendo a função de signo ideológico,
acompanham os atos de compreensão e de interpretação da vida humana.
Situando-nos no quadro do pensamento bakhtiniano, podemos considerar que em
cada domínio das trocas verbais, o homem, nas inúmeras situações sociais de exercício
da cidadania, responde às exigências da comunicação social adequando seus enunciados
às características próprias de diferentes gêneros (orais ou escritos) que foram criados
pelas gerações que o precederam, o que significa que os gêneros discursivos são
artefatos semióticos sócio-culturais, pois já estão circulando na sociedade antes que ele
faça uso desse instrumento.
Os gêneros discursivos são construções sociais históricas, como tudo o que é criado
pelo homem e que, apesar de configurarem as ações humanas em qualquer contexto/
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discurso, “não são instrumentos estanques, enrijecedores da ação criativa do homem,


são maleáveis, dinâmicos, transformam-se e se adaptam às necessidades e atividades
sociais e culturais” (BAKHTIN, idem).

3.2.O gênero um megainstrumento de ensino

As formulações de Bronckart (2003) e de Dolz & Schneuwly (2004) têm sido um


referencial teórico e metodológico de grande aceitação no Brasil nos cursos de formação
de professores de língua materna, por relacionarem estudos da enunciação da fonte
bakhtiniana aos postulados de Vygotsky (2003), dos gêneros discursivos/ textuais e das
ferramentas didáticas e têm contribuído para a implementação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais.
Os pesquisadores afiliados ao Grupo de Genebra (BRONCKART, DOLZ,
SCHNEUWLY e outros) e os inúmeros afiliados no Brasil (MACHADO, 2005;
CRISTOVÃO, 2007; NASCIMENTO, 2009) propõem a utilização dos gêneros como
instrumento, como ponto de partida para o ensino. Bronckart (2003), ao tratar dos
procedimentos metodológicos na utilização de gêneros em sala de aula, destaca a sua
diversidade ilimitada, a nebulosa que os caracterizam e a sua variabilidade concreta,
acarretando, por isso, determinados problemas metodológicos, entre eles a
classificação, a identificação das características centrais do gênero.
Assim, os gêneros textuais como instrumentos ensináveis atuam no processo do
ensino e aprendizagem do aluno, fazendo com que a acepção e o desenvolvimento de
capacidades linguístico-comunicativas sejam mais eficientes do que o ensino
tradicionalmente estrutural da linguagem. Além de proporcionar o comportamento de
leitores e escritores, os gêneros discursivos/ textuais, segundo explica Scheneuwly,
constituem para os aprendizes:

um ponto de comparação que situa as práticas de linguagem. Eles


abrem uma porta de entrada para estas últimas que evita que delas se
tenha uma imagem fragmentária no momento da sua apropriação. (...)
Os gêneros textuais, por seu caráter genérico, são um termo de
referência intermediário para a aprendizagem. Do ponto de vista do
uso e da aprendizagem, o gênero pode, assim, ser considerado como
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um mega-instrumento que fornece um suporte para a atividade, nas


situações de comunicação, e como uma referência para os aprendizes
(...) não é mais instrumento de comunicação somente, mas é, ao
mesmo tempo, objeto de ensino/aprendizagem.
(SCHENEUWLY,1997, p. 4-6)

Conclusão

Em nossos contatos com professores do ensino fundamental temos observado que, tal
como no ensino médio, a ênfase no ensino/ aprendizagem de leitura literária continua a
recair sobre a organização interna do texto, numa abordagem de cunho formal de
decodificação, à procura de informações objetivas.

Concordamos que faltam a eles condições materiais, decorrentes da carência dos


recursos de que padece a grande maioria das escolas brasileiras; condições favoráveis de
caráter cultural e ideológico, decorrentes de um sistema político e econômico em que a
educação não é prioridade; faltam-lhes, por fim, condições instrumentais, obra de uma
formação acadêmica deficiente que não os proveu de aparato teórico para o exercício
competente de seu trabalho.
Diante de tais circunstâncias, é muito comum (ainda que não justificável) que os
professores fiquem tentados a lançar mão de soluções redutoras e até dissimuladas que
lhes dão a impressão de estarem desempenhando satisfatoriamente seu papel. Soluções
que os levam a reduzir o ensino da leitura literária a atividades tortuosas e infrutíferas,
que transformam as aulas de leitura em verdadeiros palcos, onde professores fingem
ensinar e os alunos fingem aprender. Esquecendo-se do lugar e da importância da de
uma educação literária na vida dos alunos, uma vez que a literatura “humaniza em
sentido profundo, porque faz viver” (CANDIDO, 1972, p.806). Só a literatura permite
ao aluno criar um mundo sobreposto ao mundo ordinário, a ter acesso a conteúdos
vividos que não encontraria nas atividades cotidianas.
Contudo, a questão do despreparo do professor para saltar de uma abordagem
monológica de ensino de leitura literária, para uma abordagem dialógica constitui um
dos problemas que impõem medidas urgentes nas políticas educacionais do país, na
organização dos currículos e programas, na formação dos futuros professores em
formação nos cursos de Letras e de professores em serviço.
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REFERÊNCIAS
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Paulo: Hucitec, 1979.
__________. Gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martim
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ENTRE UMA PRÁTICA E OUTRA: CAMINHOS PARA O REENCONTRO


COM A PALAVRA POÉTICA NA ESCOLA

Claudine Faleiro Gill (PG – UFG)


Solange Fiuza Cardoso Yokozawa (UFG)

A distância que separa a literatura escolar da


literatura viva é um assunto tradicional de troça ou
de escândalo
Robert Escarpit.

Ao desenvolver um projeto de formação de leitores de poesia em duas escolas da


rede pública de ensino de Goiânia, percebemos diferentes perspectivas de recepção
devido ao trabalho de mediação de leitura que era desenvolvido nesses ambientes
escolares 1. Em uma das escolas o trabalho foi bem recebido e na outra houve um
estranhamento por parte dos alunos com os exercícios de leitura de poesia. Acreditando
ser possível a transformação de realidades como as da segunda experiência aqui
descrita, temos desenvolvido uma pesquisa de mestrado 2 em uma escola pública de
Goiânia como forma de aprofundar a investigação sobre quais são as causas de tal
comportamento.

Nossas dúvidas ao término da primeira pesquisa citada anteriormente se


transformaram nas perguntas que movem este estudo atual: Como é o caminho
percorrido pelo aluno na escola até que entre em contato com o texto poético na
segunda fase do Ensino Fundamental? O que pode facilitar o acesso à palavra poética
pelo aluno? Por outro lado, quais são os obstáculos encontrados? Como esse caminho
interfere na formação do gosto do aluno pela poesia? Em síntese, como a escola e seus
personagens interferem (mediam) na interação entre o aluno (leitor) e a poesia
(literatura)?

1
Trata-se de um projeto de estágio intitulado Formação de alunos leitores de poesia: duas
perspectivas de recepção, que foi realizado para fins avaliativos do curso de Licenciatura em Língua
Portuguesa da Universidade Federal de Goiás em 2008.
2
Pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Goiás.
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A partir das indagações expostas, a pesquisa visa compreender como acontece a


interação entre o aluno do Ensino Fundamental de segunda fase com a palavra poética,
investigando quais são os fatores que geram uma aproximação entre esses dois
elementos, assim como os que os afastam um do outro dentro da escola. Com base nas
reflexões formuladas a partir desse processo investigativo, serão elaboradas estratégias
de (trans)formação de leitores de poesia, que terão como objetivo aproximar autores
canônicos da poesia brasileira moderna do ambiente escolar, principalmente de alunos e
professores, promovendo a fruição da arte e da literatura.

Assim, a pesquisa é composta de duas partes, sendo a primeira dedicada à


investigação sobre como ocorre a interação entre o aluno e o texto poético na escola e
quais são os fatores positivos e negativos que interferem nesse processo e a segunda à
elaboração de estratégias de formação de leitores da poesia brasileira moderna, a qual,
segundo João Cabral de Melo Neto, reflete o estado de espírito do homem moderno,
mas não estabelece por si só interação com o sujeito moderno. É necessário mediar a
comunicação entre esses dois pólos, oferecendo ao leitor a possibilidade de receber a
poesia brasileira moderna. De acordo com o poeta e crítico, há entre o poeta moderno e
o leitor um abismo que precisa ser transposto para que a poesia sobreviva (1998).

À luz das teorias da recepção e da sociologia da leitura, neste artigo buscaremos


discutir tanto a relação direta entre o leitor e o texto quanto as problemáticas extrínsecas
ao ato de ler, especificamente as relativas aos mediadores sociais envolvidos no espaço
escolar e sua interferência nesse diálogo, o que concerne e embasa a primeira parte de
nossa pesquisa.

Recorreremos à estética da recepção de Hans Robert Jauss (1994) para compreender


o conceito de interação que envolve o leitor e a obra literária, nesse caso, o texto
poético. Usaremos ainda os estudos sobre a sociologia da literatura, de Robert Escarpit
(1970), Barker e Escarpit (1975) e Arnold Hauser (1977) para compreender o público
leitor num determinado contexto social, especificamente, o escolar. Assim será possível
analisar como o meio escolar interfere no contato entre o aluno e a poesia, identificando
os mediadores sociais e a eficácia ou não de seu trabalho.
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Para a elaboração das estratégias de formação de leitores a partir dos dados obtidos
sobre a ação dos mediadores de leitura, tomaremos a voz de Antonio Candido (1972,
1995), Ana Maria Lisboa de Mello (1995) e Ligia Chiappini (2005) para reforçar a
importância da literatura na formação do homem, de Melo Neto (1998) para justificar a
necessidade de formar leitores da lírica brasileira moderna, de Nunes (1996) para
endossar o auto-conhecimento promovido pela leitura de poesia, de Umberto Eco
(2004) para compreender o espaço do leitor-modelo dentro do texto e de Johan
Huizinga (2000) para elaborar as estratégias de leitura de poesia enquanto jogo com a
linguagem. Vejamos quais são os pontos de referência para a elaboração do mapa de
nosso caminho.

1. Elaborando o mapa do caminho

A estética da recepção, assim como a sociologia da leitura, tem como foco de suas
investigações o leitor no que condiz ao fenômeno da leitura. No entanto, os estudos de
Jauss embasam a investigação sobre a relação direta entre o leitor e o texto, já os de
Escarpit estão relacionados às problemáticas extrínsecas do ato de ler, aos mediadores
sociais e sua interferência nesse diálogo.

Os estudos da Escola de Constança trazem para discussão no meio literário a figura


do leitor enquanto elemento constitutivo da obra literária. Essa abordagem centrada no
leitor considera o texto literário não só por sua dimensão estética, mas também por sua
interface com o social. O literário, então, não é tomado como a obra fechada e finda em
si, mas sim como um processo dinâmico de produção, recepção e comunicação, que
envolve de forma interativa autor, obra e leitor (JAUSS, 1994, p.24). No entanto,
veremos adiante que a relação entre esses elementos não se faz de forma direta, sendo
necessária a atuação de um mediador.

Deste modo, buscamos perceber como a escola interfere na interação entre os dois
últimos componentes dessa tríade, a recepção da obra e a comunicação entre ela e o
aluno da segunda fase do Ensino Fundamental. A natureza desse diálogo entre literatura
e leitor é um dos focos de nossa investigação.
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Nossa primeira pergunta de pesquisa visa a investigação sobre como o aluno da


segunda fase do Ensino Fundamental tem acesso à poesia na escola, ou seja, como
acontece a interação entre o leitor e a palavra poética. Essa interação é entendida aqui
como elemento fundamental para constituição do literário, pois ele só existe quando há
o diálogo com o receptor de acordo com a teoria da estética da recepção. Ela é o
“experimentar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores”, o que, segundo
Jauss, concretiza o fenômeno literário (1994, p. 25).

A sociologia da leitura analisa o literário de acordo com três etapas, que são a
produção, a circulação e o consumo. A produção envolve os fatores que interferem na
elaboração do livro, tais como as influências sofridas pelo autor. A circulação diz
respeito à publicação e à distribuição da obra literária, como, por exemplo, o trabalho de
editores e críticos literários, assim como o de bibliotecas e bancas de revistas. O
consumo, parte que mais nos interessa, condiz com a análise dos diferentes tipos de
público leitor e ainda na formação desses públicos. Essa formação é investigada a partir
do contexto social em que está inserido o indivíduo observado, sendo assim, possível
analisar as interferências que esse processo sofre, sejam elas positivas ou negativas
(ESCARPIT, 1970, p.32).

Além dessas etapas envolvendo o fenômeno literário, há ainda uma preocupação da


sociologia da literatura com os mediadores sociais da leitura, com o papel que esses
exercem na formação de leitores e do gosto pelo literário. Segundo Hauser (1977, p.
551), não há comunicação direta entre o artista e seu público e para que haja esse
contato é necessária a interferência de um mediador que promova a interação entre
ambas as partes. A obra de arte não é completa em si mesma, mas sim quando em sua
recepção por um público. No caso da literatura, a aproximação entre a obra literária e o
leitor depende da mediação efetiva promovida por elementos como bibliotecas, editoras,
escolas, livrarias, entre outras instituições que possibilitam o consumo do livro. “Como
toda leitura é em certa medida ativa, ninguém lê se não quiser”, é o que afirmam Barker
e Escarpit (1975, p.124) sobre a importância do trabalho de divulgação e promoção do
livro feito pelos mediadores sociais para a formação de leitores.
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Portanto, nossa segunda pergunta busca investigar se a interação existente na escola


entre o aluno e o texto poético promove ou dificulta a formação desse aluno enquanto
leitor de poesia, ou seja, como acontece o trabalho dos mediadores de leitura, aqueles
que devem viabilizar o acesso do leitor ao livro. Tais personagens são peças
imprescindíveis na formação do gosto pela leitura, pois são eles que promovem ou não
uma relação de proximidade entre o leitor e a obra literária (AGUIAR, 1993). Segundo
Barker e Escarpit (1975, p. 143), “o mediador social de leitura mais importante é a
escola, pois é onde há a possibilidade de a criança perceber o livro não como recurso
didático somente, mas como caminho para o conhecimento de ‘si e do mundo’”. Por
essa razão faz-se necessário compreender como têm agido os mediadores sociais de
leitura na escola e refletir sobre essas ações, se elas têm sido úteis ou alienadoras, já que
nesse ambiente ocorre a manipulação do livro de forma natural em busca do
conhecimento.

De acordo com a última edição da pesquisa Retratos da leitura no Brasil, promovida


pelo Instituto Pró-Livro, a escola figura entre os principais motivadores de leitura dos
brasileiros, o que confirma o importante papel desse espaço enquanto mediador da
prática leitora. A pesquisa revela uma perspectiva otimista em relação ao futuro da
leitura, uma vez que o número de leitores e o consumo de livros têm aumentado de
forma significante. Infelizmente, como aponta Zilberman (2009), é crescente o consumo
de livros, mas não o é a formação de leitores efetivos, já que 50% da população é
funcionalmente analfabeta no país.

Acreditamos que a perspectiva didática que o texto poético assume na escola


necessita ser transformada, uma vez que à palavra poética cabe um posto mais
importante, que é de ferramenta humanizadora, usando a expressão de Candido (1995).
Segundo o autor, a literatura tem poder humanizador, pois motiva a “reflexão, a
aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a
capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor” (Ibidem, p.249). Além de
humanizar o leitor para o mundo, a literatura também se propõe a colaborar para a
formação interior desse leitor. Como afirma Proust, a leitura literária é uma “iniciadora
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cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não
saberíamos penetrar” e ainda que ela “nos desperta para a vida pessoal do espírito”
(1989, p. 35).

Sabemos ainda que a linguagem da criança e a sua percepção do mundo se aproxima


sobremaneira da linguagem e da visão do poeta. A linguagem poética é própria da
criança quando essa ingressa na escola. É comum na fala infantil o uso de rimas, ritmo e
imagens. Mesmo com essa intimidade entre criança e poesia não temos visto essa
relação se consolidar dentro da escola. Caberia à escola desenvolver e refinar o gosto da
criança pela leitura do texto poético. O trabalho da escola nesse estágio e nos seguintes
é o de apresentar a poesia literária à criança, aproveitando a similaridade linguística para
criar o gosto pela leitura (MELLO, 1995, p.172). Entretanto, sabemos que não é isso o
que acontece na maioria das vezes. Como aponta Lajolo (2000, p.51), a escola tem
prestado um “desserviço” à poesia, uma vez que a prática com esse gênero literário tem
envolvido aspectos exteriores e secundários, abandonando a interação possível entre o
leitor e a palavra poética, afastando esses dois elementos tão próximo nos anos da
infância. O que tem acontecido na escola é uma espécie de ruptura, que priva o aluno do
contato com a poesia.

Entretanto, mesmo com essa perspectiva negativa, o texto poético está entre os
gêneros preferidos de leitores de 11 a 17 anos segundo a pesquisa já citada, Retratos da
leitura no Brasil. Diante de dados como esses, observamos na escola como é a interação
para que possamos propor estratégias de (trans)formação desses alunos em “leitores
modelos”, ou seja, que mostrem a eles como seu trabalho de leitura é importante para a
realização do texto e como esse elemento é “um mecanismo preguiçoso (ou econômico)
que vive da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu” (ECO, 2004, p.37).
Cabe ressaltar que não buscamos formular um receituário de leitura de poesia, mas sim,
realizar práticas adequadas de leitura da palavra poética e refletir sobre elas.

No entanto, só será possível desenvolver esse potencial humanizador se o gênero


lírico estiver ao alcance do aluno, não só no livro didático, mas também no livro de
poesia diretamente. É necessário ainda guiar esse caminho, abrindo as portas do texto
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poético para que o aluno se envolva em seus inúmeros sentidos e imagens e se perceba
dentro dele ou compreenda seus reflexos.

Ao vivenciar uma experiência em que os alunos buscaram se defender do trabalho


com o texto poético, algo novo e por isso estranho ao grupo, ao invés de se envolverem
com ele, percebemos que esses jovens têm sido privados de um direito, o “direito à
literatura”, conforme analisa Candido (1995). É por essa razão que se propomos??? uma
pesquisa de campo que diagnostique quais são os obstáculos existentes entre aluno e
literatura para que sejam elaboradas práticas que possam modificar esse quadro,
promovendo na escola a fruição da arte e da literatura através da poesia brasileira
moderna enquanto “direito inalienável”, formando, desse modo, o gosto pela palavra
poética.

É preciso que a escola perceba o valor da literatura na formação de seus alunos


enquanto indivíduos sociais. Antonio Candido (1972) aponta algumas funções para a
literatura e, segundo o autor, ela satisfaz a necessidade universal de fantasia, contribui
para a formação da personalidade e faculta uma maior compreensão da realidade. Assim
também acredita Chiappini (2005, p.258), que apresenta a literatura como ferramenta
para evitar a estagnação crítica da sociedade, pois ela funciona como antídoto contra “a
demagogia e a ignorância, a mesmice e a chatice deste mundo em que todos falam a
mesma coisa”. Em consonância com Candido e Chiappini, Nunes (1996) afirma que a
leitura da palavra poética tem efeito estético e catártico, o que, segundo ele, funciona
como exercício de conhecimento ético do próprio leitor e da sociedade à sua volta.

Alguns de nossos desafios serão encontrar e praticar novos meios de trabalhar com a
poesia na sala de aula, de modo que isso seja significativo para os alunos e tenha um
sentido concreto para suas experiências de vida. Acreditamos, assim como Barker e
Escarpit (1975, p.143), que “o ensino da literatura deve ser uma espécie de viagem de
exploração que levará a criança a descobrir por si mesma o que, na literatura antiga ou
moderna, corresponde melhor aos anseios adormecidos nela, e cuja realização, uma vez
conscientizados esses desejos, ela buscará pelo resto de sua vida através da leitura”.
Para isso, as estratégias serão criadas com base em Huizinga (2000), que aponta a
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origem da poesia no jogo e, por isso, envolvida com elementos lúdicos: “o que a
linguagem poética faz é essencialmente jogar com as palavras. Ordena-as de maneira
harmoniosa, e injeta mistério em cada uma delas, de modo que cada imagem passa a
encerrar a solução de um enigma” (p. 149). Ainda segundo o autor, “as escolas líricas
modernas (...) que gostam de envolver o sentido numa palavra enigmática permanecem
fiéis à essência de sua arte” (Ibidem, p. 150).

2. Seguindo as trilhas do mapa

Tendo iniciado o estudo dos referenciais para traçar o mapa do caminho, resta-nos
agora perfazer o caminho propriamente dito, analisando e resolvendo seus obstáculos
em busca de um tesouro que foi perdido pelo aluno na escola: o contato com a palavra
poética. Nossa missão é construir pontes, abrir passagens e iluminar caminhos, enfim,
restituir o direito à palavra poética ao aluno.

Esperamos que esta pesquisa e a proposta de (trans)formação de leitores da palavra


poética possam se unir a outros trabalhos movidos pela mesma preocupação e concorrer
para a transformação da realidade no que concerne à leitura de poesia na escola.

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A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA NAS PERSONAGENS DE


O OLHO MAIS AZUL

Cleideni Alves do Nascimento (PG-UEPG)


Marly Catarina Soares (PG-UEPG)

Introdução

O romance proposto para análise é O Olho Mais Azul (The Bluest Eye) da escritora
norte-americana Toni Morrison, publicado em 1970. A autora retrata o cotidiano de uma
família negra muito pobre nos Estados Unidos na década de 40, época ainda marcada por
forte racismo naquele país. No entanto, ela não usa diretamente o racismo como tema
central do seu enredo. O centro está na subjetividade, as personagens são negras e
predominantemente mulheres. Portanto, temos a visão do indivíduo negro daquela época
pela ótica feminina, como ele se via, se valorizava, se sentia, e como era influenciado
pelo meio em que vivia.
O foco desse estudo se concentra na questão da identidade das personagens principais
e de como o contexto social no qual elas estão inseridas influencia na constituição de
suas identidades. Contudo, nos deteremos com mais atenção a uma personagem: a
pequena e frágil Pecola, personagem central do enredo.
O objetivo da análise desse romance é investigar a forma como se processa a
constituição da identidade da personagem principal - Pecola. Se somos seres sociais e
históricos, logo somos produto de tal meio. No entanto, a identidade de Pecola ao invés
de ser construída, passa por um processo inverso. A pobre menina negra é levada pelas
circunstâncias e pelo meio à reduzida condição de um não-ser. Sua identidade é anulada,
quando deveria ser construída.
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A autora buscou através da literatura desenvolver em nós o senso de humanidade, para


nos tornarmos mais compreensivos e abertos para aceitarmos o novo e o diferente. A
literatura tem um importantíssimo papel social, que é o de ajudar as pessoas a
compreender a si próprias, suas comunidades e seu mundo. Mas mesmo quando não for
possível compreendê-los, ela nos fará, pelo menos, nos questionar.

1- Breve histórico do preconceito racial

A sociedade como um todo, sempre buscou desde os tempos mais remotos a divisão
de classes. A classificação dos grupos era determinada basicamente pelas noções de
homogeneidade e heterogeneidade. O agrupamento em classe se dá pela proximidade
daqueles que são semelhantes. Aqueles que destoavam dessa classe eram classificados
em outra.
Na verdade, essa classificação não buscava apenas formar grupos sociais diferentes.
Seu intuito maior era e continua sendo criar uma ordem hierárquica na qual uma classe
se sobreponha à outra. Entra em questão o jogo de poder que define quem é diferente
como inferior. Dessa forma, o diferente pode ser subjugado ao domínio da classe dita
superior.
As divisões em classes se baseiam predominantemente nas diferenças físicas, o que
envolve mais precisamente o gênero (masculino/feminino) e a raça. Seguido pelas
divisões religiosas e econômicas. O enfoque desse trabalho se deterá à questão do
gênero e da raça.
A estratificação da humanidade em raças é um constructo fundamentalmente social.
De acordo com Magnoli (2009),
A biologia reconhece espécies monotípicas, nas quais todos os
indivíduos fazem parte da mesma raça, e espécies politípicas, nas
quais é possível identificar raças distintas. A espécie humana é
monotípica daí a impossibilidade, experimentada historicamente, de se
alcançar uma classificação racial consensual. (Magnoli, 2009, p.21)
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Em outras palavras não existem raças humanas diferentes, há apenas uma única raça. Seria
impossível dimensionar o impacto social e psicológico que a discriminação teve sobre
os grupos sociais marginalizados. Que identidade foi construída no meio hostil em que
eles viviam? Que visão eles tinham deles mesmos? Até que ponto foi possível suportar
a pressão do grupo dominante e tentar escapar dela? Enfim, muitas são as perguntas.
Quando falamos em identidade de um grupo, parece que se está falando de algo
uniforme e único para todos. Mas sabemos que cada sujeito é único. Por outro lado esse
sujeito não se realiza por si mesmo. “Toda subjetividade configura-se, portanto, a partir
do, com o e no universo do grupo e/ou classe. E esse universo se plasma no existir do
outro, em confronto ou complementação.” (BACCEGA, 2007, p.24)
Não podemos esquecer que estes grupos fazem parte de um grande grupo que é a
nação. Todos os grupos coabitam em um mesmo meio no qual circula uma cultura
nacional. Para Hall (2006, p.51), “As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre ‘a
nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades.”
Por outro lado o mesmo autor argumenta, “... não importa quão diferentes seus
membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca
unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à
mesma e grande família nacional” (HALL, 2006, p.59). Isso dá também uma falsa idéia
de igualdade, coisa que na prática nem sempre funciona dessa forma.
Pela cultura nacional perpassa um fortíssimo discurso ideológico proveniente do
grupo que possui o poder. De acordo com a definição do Penguin Dictionary of
Sociology, “uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que
influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmo.”
(HALL, 2006, p.50).
Como os integrantes dos grupos marginalizados se viam se a visão da cultura
nacional não privilegiava a diferença? Ter uma nacionalidade não corresponde a ter uma
identidade nacional. Hall (2006) argumenta que as identidades nacionais não são coisas
com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da
representação.
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A forma como alguém representa sua individualidade se efetiva pela influência


exterior, a única referência possível é aquela que está fora do individuo. Podemos,
então, dizer que a identidade é construída socialmente. Empiricamente, acompanhar,
explicar e definir um processo de identificação é impossível, já que esse é um processo
subjetivo e constante.
Por outro lado, a literatura tem prestado um importante serviço oferecendo uma
variedade de modelos implícitos de como a identidade é formada. Segundo Culler,
(1997, p.110), "The explosion of recent theorizing about race, gender, and sexuality in
the field of literary studies owes much to the fact that literature provides rich materials
for complicating political and sociological accounts of the role of such factors in the
construction of identity.” 1
O mesmo autor ainda acrescenta, “In theoretical writings, arguments about social
identity tend to focus, though on group identities: what is to be a woman? To be black?”
(CULLER, 1997, p.111) 2 A modernidade e a pós-modernidade trouxeram novos
conceitos de identidade para esses grupos. Com o advento da globalização, não só
fronteiras físicas, mas também sociais e ideológicas foram rompidas. No entanto, essas
mudanças foram conquistadas a partir de muita luta e persistência.

2- A autora e a autoria feminina

Toni Morrison consegue mostrar perfeitamente como as identidades de suas


personagens são formadas no romance “O Olho Mais Azul”. Ela rompe com um silêncio
que vela e esconde verdades que a sociedade não quer que sejam ditas nem ouvidas. A
autora nos revela o que é ser mulher e ser negra na sociedade machista e racista nos
EUA na década de 40.
A produção literária da mulher começou a encontrar algum espaço somente no

1
“A explosão de teorias recentes sobre raça, gênero, e sexualidade no campo dos estudos literários deve
muito ao fato da literatura fornecer materiais ricos para complicadas descrições políticas e sociológicas do
papel de tais fatores na construção da identidade.” (Tradução minha)
2
“Nos escritos teóricos, os argumentos sobre a identidade social tendem a focar, ainda nas identidades de
grupo: o que é ser mulher? Ser negro?” (Tradução minha)
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século XX. Antes disso, ela foi tratada com indiferença. O cânone literário era
masculino, produzido e selecionado por homens. A representação da mulher a partir do
ponto de vista do romancista era sempre de uma posição marginal ao homem, o homem
era o centro.
A literatura da mulher era vista como literatura menor ou marginal, não por ter uma
qualidade literária inferior, mas por ser pouco conhecida da história e da crítica literária
e por parte do grande público leitor. O acesso à educação foi determinante para que as
mulheres começassem a produzir literatura. A construção da imagem da mulher em um
romance a partir do olhar de uma mulher muda completamente o foco e a valorização
dessa imagem. Diferente do homem que por mais que tente se distanciar de seu gênero,
ele sempre falará da mulher a partir da sua posição de homem.
Toni Morrison falou a partir da sua posição de mulher e de negra. Ela possui a
experiência real da identidade desse grupo. Sua obra de ficção se apóia em um contexto
histórico presenciado por ela. Tanto que sua inspiração vem de um fato marcante
vivenciado na sua infância. A história de O Olho Mais Azul surgiu de um desejo de uma
menina que a autora Toni Morrison ouviu quando criança. A menina, negra, disse que
queria ter olhos azuis. Esse desejo ecoou em sua mente por mais de vinte anos. A autora
se questionava de onde vinha aquela aversão a si mesma, de origem racial, que a menina
sentia.
Toni Morrison queria saber onde se aprende isso, quem disse isso a menina, que
olhares a fizeram desejar ser diferente. Quando ela decide escrever esse romance, é uma
busca dos relances dos olhares que condenou a menina. A autora tenta dramatizar a
devastação que o desprezo racial, mesmo casual, pode causar. Para isso, ela escolhe o
membro mais vulnerável e delicado da sociedade: uma mulher, uma criança.

3- A construção do corpo interior pelo olhar exterior

Para analisar a relação autor/personagem, nos deteremos ao aspecto literário,


tomando por base os capítulos O Autor e a Personagem e A Forma Espacial da
Personagem do livro A Estética da Criação Verbal de Mikhail Bakhtin. A autora e a
personagem tem uma relação muito íntima. Para Bakhtin (2003, p.04) “A luta dos
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artistas por uma imagem definida da personagem é, em um grau considerável, uma luta
dele consigo mesmo.”
Toni Morrison submete Pecola, sua personagem principal, a um processo de
destruição de identidade, alimentado pelos olhares das outras personagens. No entanto,
ela faz isso sem desumanizar as personagens que a destruíram. A autora se mostrou
cuidadosamente preocupada com os objetivos que ela pretendia alcançar através da
criação de suas personagens. Elas não deviam ser vistas como boas ou más, e sim como
pessoas que trazem no seu histórico fortes marcas de uma realidade dura e cruel.
O mundo criado pelo autor com base no princípio da verossimilhança nos dá a
conhecer um todo que o mundo real só nos permite conhecer parcialmente. A obra de
arte traz em si uma unicidade e completude que dispensa explicações adicionais.
Bakhtin explica essa questão da seguinte forma:
O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em
particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem, como
enxerga e conhece mais que elas, e nesse excedente de visão e
conhecimento do autor , sempre determinado e estável em relação a
cada personagem, é que se encontram todos os elementos do
acabamento do todo, quer das personagens, quer do acontecimento
conjunto de suas vidas, isto é, do todo da obra. (BAKHTIN, 2003,
p.11).

Em O Olho Mais Azul, a autora denuncia o impacto que o desprezo racial tem na
vida das pessoas. Mas em nenhum momento ela fala sobre isso ou dá explicações.
Conhecemos e compreendemos do que se trata através das ações e das falas de suas
personagens. Ela não fala sobre a demonização do negro, ela cria um contexto social no
qual ele é demonizado. Sabemos disso pelo todo da obra.
Temos consciência daquilo que nem mesmo as personagens enxergam através do
excedente de visão dado pelo autor. A consciência da personagem é dominada pela
consciência do autor. Contudo, o autor precisa manter certa distância da personagem
para que ele possa enxergá-la exteriormente.
Toni Morrison esclarece no posfácio do seu romance que seu objetivo era levar o
leitor a se fazer perguntas sobre o esmagamento social de Pecola e não levá-lo a sentir
pena dela. Ela pretendia que o leitor dialogasse com a obra, que ele fosse instigado e
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não simplesmente tocado. O modo como ela criou suas personagens foi uma tentativa
de evitar que isso acontecesse.
Suas personagens tiveram suas identidades construídas a partir da visão do outro,
pois a imagem externa apenas o outro tem de nós, o corpo interior não vivencia a
imagem externa. Para Bakhtin (2003), o eu interior (essência) não existe, ele é
construído a partir do diálogo com o outro, ou seja, é o outro que me diz.
O mesmo autor acrescenta que se pode dizer que o homem tem uma necessidade
estética absoluta do outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o
único capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada; tal
personalidade não existe se o outro não a cria.
A partir de uma comparação entre Pecola a personagem principal de O Olho Mais
Azul e Claudia a narradora-personagem do romance, analisaremos como cada uma delas
responde aos olhares exteriores para formar seu eu interior, exemplificando através de
algumas passagens do romance.
Começaremos por Claudia, uma garota negra de 9 anos de idade que participa e narra
a triste história de Pecola. Ao narrar a história ela já não é mais uma criança, mas nos
diálogos diretos a autora usa a linguagem infantil para dar mais autenticidade à fala das
personagens infantis. Claudia é uma figura emblemática que mistura inocência e revolta
diante de situações de discriminação racial. Ela demonstra um aguçado senso de
orgulho e consciência do seu valor. Esta personagem é tida como o alter-ego da autora
Toni Morrison.
Claudia vive em uma casa velha com sua irmã Frieda (10 anos), seu pai e sua mãe.
Naquela época as crianças não deveriam dirigir a palavra aos adultos a não ser que
fossem questionadas. As meninas recebem um tratamento frio e distante de seus pais.
Não existia diálogo e interação entre a família.
Claudia relata o episódio em que ela ficou doente, dando detalhes de como era a
relação familiar. Sua mãe, a sra. MacTeer a trata com impaciência e frieza, como se
estivesse com raiva. Sua mãe diz, Por que foi que você vomitou na roupa de cama? Não
podia ter tido o bom senso de esticar a cabeça para fora da cama? Olhe o que você fez.
Acha que eu tenho tempo sobrando para lavar o seu vômito? (MORRISON, 2003, p.15)
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Embora as palavras da mãe sejam duras e não demonstrem carinho, Claudia percebe
que os cuidados dela mostram que ela se importa com a filha. Claudia guarda isso na
lembrança, Assim quando penso em outono, penso em alguém que tem mãos e que não
quer que eu morra. (MORRISON, 2003, p.16)
Fora do círculo familiar, veremos como Claudia enxerga e reage ao convívio social.
Ela é contundente quando fala da sua repulsa por garotas brancas, a quem ela diz odiar.
No entanto, sua raiva não está diretamente ligada às meninas, mas ao que faz com que
as pessoas tratem enternecidamente essas meninas e não a ela. Quando ela conta da
boneca que ganhou de presente de Natal, uma boneca grande de olhos azuis, seu único
desejo era desmembrá-la para descobrir o que havia de tão encantador nela.
Claudia não conseguia entender o segredo das garotinhas brancas e se questionava:
O que é que fazia as pessoas olhar para elas e dizer “Aaaaahhhhhh”, mas não para
mim? (MORRISON, 2003, p.26). Apesar de tudo Claudia e Frieda sentiam orgulho do
que eram. Claudia diz, Sentiámo-nos bem em nossa pele, saboreávamos as notícias que
nossos sentidos nos transmitiam, admirávamos nossa sujeira, cultivávamos nossas
cicatrizes, e não conseguíamos compreender essa falta de valor. (MORRISON, 2003,
p.78)
Outra coisa que irritava Claudia era a falta de reação de Pecola diante das
humilhações que ela sofria, ela não compreendia a inércia de Pecola Claudia: O
sofrimento dela me contrariou. Tive vontade de abri-la toda, afiar-lhe as garras, enfiar
um pau naquela espinha arqueada e murcha, forçá-la a se pôr ereta e a cuspir o
sofrimento na rua. (MORRISON, 2003, p.77)
Enfim, Claudia trava batalhas constantes contra as forças externas do preconceito
racial que tentam aniquilá-la. Mas por confrontar com essas forças, ela consegue vencer
a pressão do meio. Dentro do romance ela é a voz que clama por respeito e
reconhecimento.
Trataremos agora de Pecola, personagem central do romance, uma garota de 11 anos
que anseia por ser amada. Ao contrário de Claudia, Pecola jamais questiona ou se
defende diante das humilhações sofridas.
Pecola tem uma história bem mais trágica do que Claudia, pois além da violência
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simbólica ela sofre também violência sexual do próprio pai. Seu ardente desejo por ter
olhos azuis mostra a profunda aversão que sente por ela mesma. Mas de onde vem isso?
Quem a fez acreditar que tendo olhos azuis, ela seria amada? Ela jamais reclama,
questiona ou briga. A única pergunta que ela busca ingenuamente por resposta é o que
fazer para ser amada.
Uma identidade em formação como a de Pecola requer a presença de amor. Segundo
Bakhtin (2003, p.47),
Esse amor de mãe e das outras pessoas, que desde a infância forma o
homem de fora ao longo de toda a sua vida, dá consistência ao seu
corpo interior. É verdade que não lhe proporciona uma imagem
intuitivamente evidente do seu valor externo, mas lhe faculta um valor
potencial desse corpo, valor que só pode ser realizado por outra
pessoa.

Pecola ao longo de sua existência não recebe nem o amor de mãe ou de qualquer
outra pessoa. Assim, seu corpo interior não adquire o que Bakhtin chamou de
consistência e seu corpo não tem valor algum em si mesmo. Vejamos alguns exemplos
de situações que contribuíram para levar Pecola a essa condição de não-ser.
No capítulo Outono em que ocorre a primeira menstruação de Pecola, Frieda diz a
ela que agora ela já pode ter um bebê. Pecola na sua ingenuidade pergunta como. Frieda
responde que alguém tem que amá-la. Pecola pensa um pouco e ainda sem entender faz
outra pergunta, Como é que se faz isso? Quero dizer, como é que a gente faz alguém
amar a gente? (MORRISON, 2003, p.36). Para essa pergunta, ela nunca encontrou
resposta.
Pecola morava com sua mãe, a quem chamava de sra Breedlove o que mostra o
distanciamento que existe entre mãe e filha, seu pai Cholly e seu irmão Sammy. Essa
família não construiu nenhum laço afetivo, não formaram um lar apesar de dividir a
mesma casa. A descrição física da casa reflete como são as pessoas que lá habitam. O
narrador onisciente sintetiza a casa dos Breedloves da seguinte forma: A única coisa
viva na casa dos Breedloves era o fogareiro a carvão, que tinha vida independente de
tudo e de todos. (MORRISON, 2003, p.41)
De acordo com a descrição física, os Breedloves eram donos de um feiúra exclusiva.
No entanto, mais do que fisicamente sua feiúra era alimentada por sua própria crença
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nela. Ninguém teria conseguido convencê-los de que não eram implacável e


agressivamente feios. (MORRISON, 2003, p.42). Pecola acreditava que por ser feia
teria que conviver com a frieza e a violência de sua família, como se isso fosse um
castigo pela sua feiúra. Assim como ela acreditava que todas as outras pessoas a
ignoravam pelo mesmo motivo.
Pecola torna-se invisível pelo desprezo alheio. Na escola era a única que sentava
sozinha numa carteira dupla e era tanto desprezada pelos colegas quanto pelos
professores. Seu nome era motivo de chacota entre as crianças da escola. Diante de tanta
discriminação, a menina pensou que se ela tivesse olhos bonitos as pessoas a tratariam
de outra forma. E a partir desse momento ela toma isso como o único objetivo de sua
vida. Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava
fervorosamente. (MORRISON, 2003, p.50).
Há um episódio em que Pecola vai comprar doce que explicita a crueldade do
preconceito racial. O comerciante branco sente repulsa por ter que tocar a mão da
menina. Ela lhe estende o dinheiro. Ele hesita, não querendo tocar sua mão. (...) Lá
fora, Pecola sente a inexplicável onda de vergonha. (MORRISON, 2003, p.53). Que
impacto esse gesto deve ter tido na formação do corpo interior dessa criança?
Certamente, o impacto foi de natureza nociva e devastadora.
De todos os tratamentos, o mais revoltante é o que Pecola recebe de sua própria mãe.
Um dia quando ela vai até a casa da patroa de sua mãe para buscar roupas para estender,
ela sofre um grande golpe. Claudia narra o fato que ela e Frieda presenciaram. Claudia
com seu senso crítico se revolta quando ouve a menina branca filha da patroa chamar a
mãe de Pecola de Polly, quando Pecola que era filha tinha que chamá-la de sra.
Breedlove.
Acidentalmente, Pecola derruba uma torta quente que a sra. Breedlove tinha acabado
de fazer, ela se queima. No entanto, sua mãe não se importa com isso, bate nela e a
expulsa de lá. Ela se mostra mais preocupada com a sujeira e com a garotinha que
chorava diante da cena que assistiu do que com sua filha. Quando a garota pergunta
quem eram, a sra. Breedlove responde: Não se preocupe. Ninguém meu bem.
(MORRISON, 2003, p.111).
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Para a sua mãe, a pessoa que mais deveria amá-la, Pecola era ninguém. Isso deve ter
sido determinante para a desconstrução de sua identidade. Muitas e ainda mais
aterrorizantes são as outras situações pelas quais Pecola passou. Mas os exemplos dados
já servem para perceber o impacto que o outro externo tem na formação do seu corpo
interior.

Conclusão

O que podemos concluir é que ainda que entre a história de Claudia e Pecola haja
muitas diferenças, o que é determinante na construção de suas identidades é o
dialogismo. Claudia dialoga com os estímulos externos, seja para refutá-los, questioná-
los ou negá-los. Seu corpo interior é construído através do debate com o outro exterior.
Pecola por sua vez não dialoga, não responde nunca aos estímulos recebidos. Ela não
expressa raiva, indignação ou revolta. Recebe e aceita tudo sem nenhum
questionamento sequer. Todas as impressões negativas do mundo exterior são
internalizadas. E por ela não existir para o outro, ela acaba por não existir para ela
mesma. Isso a leva a um profundo estado de alienação psicológica, no qual ela cria um
outro eu, um eu imaginário. Ela perde sua identidade, ela realmente se torna ninguém.
Curiosamente, no posfácio escrito pela autora ela compara a história do seu romance
com a vida de Pecola. Toni Morrison diz que a primeira publicação de sua obra foi
desprezada, trivializada e mal interpretada assim como Pecola. E foram necessários
vinte e cinco anos para que a obra recebesse o respeito que ela merecia. A própria
autora também foi vítima do preconceito racial e da intolerância social.

Referências

BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso: história e literatura. São Paulo:


Ática, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. O Autor e a Personagem. In: ______. Estética da Criação Verbal.
Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.3-20ª
BAKHTIN, Mikhail. A Forma Espacial da Personagem. In: ______. Estética da
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Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.21-85b.
CULLER, Jonathan. Literary Theory: a very short introduction. Great Britain: Oxford,
1997.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da
Silva, Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue: história do pensamento racial. São Paulo:
Contexto, 2009.
MORRISON, Toni. O Olho Mais Azul. Trad. Manuel Paulo Ferreira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
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FELICIDADE CLANDESTINA: A DIALÉTICA DA FELICIDADE

Conceição da Silva Zacheu Russo (PUC/SP-UniABC)

Introdução

A apreensão do conceito de felicidade em Clarice Lispector partiu da observação de


um questionamento constante sobre a felicidade em textos clariceanos. Desde as
primeiras publicações da autora, como em Perto do coração selvagem, encontramos
uma indagação sobre a praticidade da felicidade - “E depois que se é feliz, o que
acontece?” (LISPECTOR, 1990, p. 30) - que aparece claramente ou nas entrelinhas de
algumas obras, cuja resposta nos remete a contos sem happy end.
Sobre a escritura de Clarice Lispector, Olga de Sá (1993, p.259) afirma que “o
paradoxo é uma das chaves deste estilo, que mimetiza as contradições do ser e da
linguagem”. Essas contradições serão observadas para investigar como se constrói a
felicidade em contos de Lispector, já que o happy end é impensável. Buscamos,
também, indagar se o conceito de felicidade está ligado ao de epifania, tendo em vista
que ambos referem-se às sensações e aos momentos de revelação dos sentimentos mais
íntimos do ser humano.
O momento epifânico, nos textos de Clarice Lispector, traz à tona questões
filosóficas profundas. De acordo com Affonso Romano de Sant’Anna, em Análise
estrutural de romances brasileiros (1974), a verdade e a condição humana podem ser
despertadas a partir de um fato aparentemente banal e jorradas como um produto
incontrolável do fluxo da consciência. A epifania apresenta-se como um momento de
lucidez que ocorre às vezes em frações de segundos.
Perguntamo-nos, então, se a felicidade ocorre, também, em tão curto espaço de
tempo, se a felicidade pode ser associada a um momento de lucidez, de entendimento do
próprio “eu”, sendo a revelação de um momento de prazer e se a felicidade pode ser
associada a um momento de epifania. Enfim, como a felicidade é construída no texto?
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Se considerarmos que a ficção reflete a realidade, por que a felicidade nunca ocorre
plenamente no discurso literário da autora?
Para tentar responder à problemática da felicidade em Clarice Lispector,
consideraremos as hipóteses: a felicidade está associada ao processo da escritura, sendo
o paradoxo uma das chaves desse processo; a constante busca da construção da
felicidade reflete a união das alegrias e agonias do ser humano e a metáfora da
felicidade revela o processo para se chegar à epifania.
A fim de aprofundarmos nossos estudos sobre a construção da felicidade em
Lispector, escolhemos o conto “Felicidade clandestina”, no qual a personagem central
possui um desejo difícil de ser alcançado e quando a felicidade surge, não é plena.
Para investigar o método utilizado por Lispector na tessitura de seu texto,
fundamentamos nossos estudos para a análise de seu conto, no tocante, principalmente,
à epifania, nos estudos de Benedito Nunes, Affonso Romano de Sant’Anna e Olga de
Sá. No que diz respeito à gênese dos estudos sobre a felicidade, recorremos a Aristóteles
e Epicuro. Com relação à felicidade, a bibliografia é diversificada e relaciona-se à
filosofia, à psicologia, dentre outras.
A dialética da felicidade busca averiguar nossa hipótese de que o paradoxo,
encontrado nos textos clariceanos, mimetiza as contradições do ser e da linguagem.
Apresenta, ainda, considerações acerca da epifania, a fim de extrair o conceito de
felicidade para a autora.

1. A estrutura do conto

O conto “Felicidade clandestina” foi escrito e publicado, primeiramente, como


crônica, no caderno B do Jornal do Brasil, em 02 de setembro de 1967, com o título
“Tortura e glória”. Em 1971, foi publicado como conto, com o título “Felicidade
clandestina”, na coletânea do livro que recebe o mesmo nome. Mais tarde, foi
publicado como crônica, com o antigo título de “Tortura e glória”, no livro A
descoberta do mundo (1999), que reuniu as crônicas publicadas no Jornal do Brasil.
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A respeito dos títulos atribuídos ao conto-crônica, observamos que há em comum o


paradoxo, que nos fornece pistas para a construção da felicidade na escritura clariceana.
Se considerarmos a escolha do primeiro título, “Tortura e glória”, a palavra “tortura”
nos remete a um sofrimento lento e prolongado, que pode ser associado tanto à dor
física, como psicológica. Já a palavra “glória” nos remete ao êxtase. Após uma batalha
sofrida, obtém-se os louros da glória, típica dos vencedores. Como as palavras estão
unidas pela conjunção aditiva “e”, que sugere soma, união, nesse título, sofrimento e
júbilo estão interligados de maneira indissociável, sugerindo uma felicidade composta
por elementos antagônicos que se unem. A respeito do título “Felicidade clandestina”,
se considerarmos que a felicidade é exteriorizada de maneira espontânea e, em
contrapartida, a clandestinidade busca esconder-se, pois foge às normas da sociedade,
da junção desses dois vocábulos, o que podemos obter é o paradoxo da clandestinidade
dessa felicidade.
Com relação à estrutura do conto clariceano, subdividiremos o enredo em quatro
etapas, de acordo com a proposta sugerida por Affonso Romano de Santa’Ana (1982, p.
5). Na primeira etapa, a personagem encontra-se em determinada situação. No caso, a
narradora-personagem vai diariamente à casa de uma colega de escola, filha de um
livreiro, em busca do empréstimo do livro Reinações de Narizinho, que é sempre
adiado. Na segunda etapa, um evento ou incidente é discretamente pressentido. Em
“Felicidade clandestina”, a narradora é humilhada pela colega e, aparentemente, não se
importa com isso, mas, ao narrar o fato, reflete sobre a felicidade, que é sempre adiada
para o dia seguinte, ao longo de sua vida. “A felicidade sempre iria ser clandestina para
mim”. Na terceira etapa, há, de fato, a ocorrência do incidente ou evento, quando nos
deparamos com a epifania. A mãe da colega descobre horrorizada a filha que tem -
invejosa e sádica - e a narradora descobre que a colega queria vingar-se por ela ser
bonita e inteligente. Na quarta e última etapa, quando ocorre o desfecho, há um relato
sobre a vida da personagem após o evento ou incidente. Em nosso conto, a narradora-
personagem torna-se “amante” do livro. Cria situações de encontros e desencontros,
para esticar ao máximo os momentos de prazer, revelando o tipo de felicidade que é
possível.
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Essa estrutura, de acordo com Nádia Gotlib (1995, pp. 269/270), é uma aparente
estrutura clássica, organizada segundo princípios de obediência à ordem de início, meio
e fim. Entretanto, não é suficiente para explicitar a sua construção, já que junto a esta
aparente coexiste outra, mais subterrânea, que praticamente questiona e desmonta a
primeira, sob o disfarce de outros elementos de composição, que instauram a desordem,
o desequilíbrio, o caos.
Há, portanto, uma narrativa oculta, escrita nas entrelinhas, que só o leitor atento é
capaz de encontrá-la e decifrá-la. A esse respeito, Ricardo Piglia (2004, p. 105) defende
a ideia de que o conto é construído para revelar artificialmente algo que está oculto. Há
um sentido cifrado e, no fundo, “a trama de um relato esconde sempre a esperança de
uma epifania. Espera-se algo inesperado, e isso vale também para quem escreve a
história”. O que, aparentemente, é uma narrativa simples e despretensiosa, quando
desvendada, adquire peso material, pois remete o leitor a uma reflexão sobre verdades
universais.
O conto “Felicidade clandestina” é classificado por Nádia Gotlib (1995) como parte
dos contos de memória, que contam as histórias da infância de Clarice Lispector, na
cidade de Recife. A respeito desse conto, Marina Colasanti (1998, pág?//) afirma que
“sua irmã Tânia ainda se lembra da menina, filha do livreiro, que encontramos em
‘Felicidade clandestina’, atormentando Clarice por conta do empréstimo de um livro”.
Ligia Chiappini, em O Foco Narrativo, utiliza o conceito de Wayne Booth, em A
retórica da ficção, para explicitar a existência de um autor implícito numa narrativa:

O autor não desaparece, mas se mascara constantemente, atrás de uma


personagem ou de uma voz narrativa que representa. A ele devemos à
categoria de autor implícito, extremamente útil para dar conta do
eterno recuo do narrador e do jogo de máscaras que se trava entre os
vários níveis da narração (CHIAPPINI, 1991, p. 18).

Em “Felicidade clandestina”, há momentos em que o narrador se distancia e outros


em que se aproxima do acontecimento narrado. Encontramos, algumas vezes, o uso do
discurso indireto, como na passagem: “Olhando bem para meus olhos, disse-me que
havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-
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lo” (FC, 1998, p. 10) e, em algumas passagens, sentimos a presença do autor implícito,
que nos fala afetuosamente: “Como contar o que se seguiu?” (FC, 1998, p. 11).

O autor implícito mistura-se à voz da personagem quando pergunta: “Entendem?”


(FC, 1998, p. 11). A tessitura do texto que caminha em dois planos revela, por meio
desse questionamento, o cruzamento dos planos. No primeiro plano, o narrador-
personagem pergunta se é possível entendermos o que representava a obtenção do tão
cobiçado livro, enquanto, no segundo plano, o autor implícito alerta-nos para que
observemos uma passagem importante do texto, pois prepara o leitor para um momento
epifânico, em que a personagem obtém a posse do livro e sente-se “estonteada”. O leitor
insere-se na narrativa, sendo capturado, sem que o perceba. O autor implícito faz a
pergunta ao leitor implícito e imagina-o ao responder: “Não, não saí pulando como
sempre” (FC, 1998, p. 12).

A personagem se confunde com o narrador e com o autor implícito, causando uma


ambiguidade que leva o leitor mais desatento a se enganar e cair nas armadilhas do
discurso, como na passagem: “Mas que talento tinha para a crueldade” (FC, 1998, p. 9).
Essa oração, que inicia o terceiro parágrafo do conto, cria uma ambiguidade, pois, à
primeira vista, não conseguimos identificar, com precisão, de quem é a voz, se do autor
implícito, do narrador ou da personagem. É o que Borges chama de “duplo”, quando
define o narrador-personagem:

Trata-se, na verdade, de uma figura ambígua, pois não só é a


personagem que fala na primeira pessoa num livro escrito por outrem,
mas ainda aparece como o homem que escreveu fisicamente aquilo
que estamos lendo (...) ou, se preferirem, o autor-modelo fala através
dele (BORGES apud ECO, 2004, p.34).

Torna-se mais difícil a identificação da voz se acrescentarmos a essas informações o


fato de sabermos que se trata de um conto autobiográfico. Gotlib (1995, p. 400) afirma
que “Felicidade clandestina” conta “o clandestino prazer da menina pobre Clarice diante
da posse do livro, como se fosse ele um homem”.
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O autor implícito pensa a partir do efeito que deseja causar. Sendo assim, na oração:
“O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico” (FC, 1998, p.
10), o paradoxo “tranquilo e diabólico” evidencia a “tortura chinesa”, sugerida
anteriormente. É o que podemos confirmar nas palavras de Edgar Allan Poe:

Só tendo o epílogo constantemente em vista poderemos dar a um


enredo seu aspecto indispensável de consequência, ou causalidade,
fazendo com que os incidentes e, especialmente o tom da obra tendam
para o desenvolvimento de sua intenção (POE,1965, p. 911).

No conto, o enredo é elaborado a partir do epílogo e segue uma causalidade. No


epílogo, descobrimos que a antagonista é sádica e, ao longo da narrativa, vamos
seguindo as pistas deixadas pelo narrador-personagem para descobrir a causa de seu
sadismo. A narradora era pobre, mas possuía algo que a antagonista não tinha. Os
cabelos da narradora eram “livres” e tinha prazer em ler, coisa que a antagonista não
possuía, apesar de ser filha do dono de uma livraria. Por outro lado, a filha do livreiro
possuía o que a narradora não tinha condições de possuir: livros. Embora não tivessem
grande importância para aquela, eram objetos de desejo para a narradora: “na minha
ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia” (FC, 1998, p. 9). Nesse trecho,
descobrimos uma narradora voraz por detrás da narrativa.

2. A dialética da felicidade

A expectativa pela posse do objeto de desejo capacitava a menina a superar qualquer


obstáculo. Epicuro cita várias modalidades de desejo e a necessidade de controlá-lo,
para alcançar a saúde do corpo e do espírito, que passam a ser uma forma de prazer. O
filósofo acredita que “de fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela
sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir”
(EPICURO, 1997, p.37).
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Dor e prazer estão, portanto, intimamente ligados, de acordo com esse pensamento.
O prazer passa a delimitar o início e o fim de uma vida feliz. Às vezes, é necessário
passar por um período de sofrimento para se alcançar um prazer maior, ao passo que se
não passarmos por momentos de sofrimento, não sentiremos necessidade de prazer ou
não nos sentiremos plenamente satisfeitos com o prazer alcançado.
Embora, aparentemente, todo tipo de prazer constitua um bem por natureza, é
necessário medir prazer e dor, de acordo com os critérios dos benefícios e dos danos.

O prazer, como bem principal inato, não é algo que deva ser buscado
a todo custo e indiscriminadamente, já que às vezes pode resultar em
dor. Do mesmo modo, uma dor nem sempre deve ser evitada, já que
pode resultar em prazer (EPICURO, 1997, p.16).

Para Epicuro, o prazer é constituído pela “ausência de sofrimentos físicos e de


perturbações da alma”. A prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é
mais preciosa do que a própria filosofia, pois nos ensina que não existe vida feliz sem
prudência, beleza e justiça. Ensina-nos, também, que as virtudes estão intimamente
ligadas à felicidade.
O desejo pelo livro torna-se tão intenso que a personagem personifica-o, no quinto
parágrafo: “Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele,
comendo-o, dormindo-o” (FC, p.10), como se fosse possível absorver o que ele
representa, comparando o objeto de desejo a um ser humano. A narradora ainda
acrescenta: “completamente acima de minhas posses”, mostrando-nos, novamente, o
quão importante era para ela “possuir” aquele livro e que vai se tornando, aos poucos,
uma busca incessante.

Averiguamos que a felicidade, encontrada na escritura de Clarice Lispector, tem


pontos em comum com o pensamento aristotélico. O conceito de “viver bem” com a
posse de objetos materiais pode ser encontrado em “Felicidade clandestina”, como
verificamos.
A felicidade, segundo Aristóteles, consiste numa atividade da alma e tem abrigo no
próprio indivíduo. Realiza-se por meio de suas ações e de acordo com suas virtudes. A
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felicidade é construída por meio de um exercício diário para a atualização das potências
da alma; não pode ser conseguida de uma só vez, nem em um só dia, mas consiste em
uma ação que se prolonga pela vida inteira.
O bem material representado pela posse do livro poderia ser a materialização de todo
o imaginário que o objeto representa. O livro a conduziria a reinos encantados e
permitiria um questionamento sobre as verdades existenciais.
As sensações da personagem, representadas no discurso por meio de uma sequência
de paradoxos, revelam como a felicidade é construída. As angústias e pequenas alegrias
que a narradora sente, ao longo do texto, evidenciam o próprio fazer literário. Cortázar,
em Valise de cronópio (2004, p. 122), diz que, em um conto, o ambiente, o espaço, o
tempo e a narração se unem para formar o acontecimento único. Em “Felicidade
clandestina”, o acontecimento único é a própria linguagem do texto que materializa o
prazer da leitura.

No tempo presente, ela rememoriza um tempo passado e ao mesmo tempo projeta


um tempo futuro, por meio do recurso denominado flashforwards, por Umberto Eco
(2004, p. 35). Por meio dele, o narrador antecipa ou prevê um acontecimento: “Mal
sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do ‘dia seguinte’ com ela ia se
repetir...” (FC, 1998, p.10). A narradora-personagem nos antecipa que aquela sensação
de angústia se repetiria em outros momentos de sua vida.

Ao tentar unir as extremidades do tempo presente e futuro em busca da


materialização do momento epifânico, há a revelação de sua própria identidade. O fato
ocorre em um piscar de olhos, em um momento de relance, e sem que perceba, retoma
ao seu cotidiano banal, tentando criar artificialmente o prolongamento desse encontro
que causa prazer.

O tempo parece nos mostrar que a felicidade é sempre adiada para o “dia seguinte”,
expressão esta que aparece pelo menos nove vezes durante a narrativa. Enquanto a
personagem está sendo “torturada”, o ritmo da narrativa é mais lento, a fim de nos
mostrar o quanto essa situação era angustiante e parecia interminável. “Quanto tempo?
Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo do seu
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corpo grosso” (FC, 1998, p. 10). A personagem sempre se perguntava até quando tudo
aquilo duraria, mas a resposta sempre era adiada para o dia seguinte, em insistente
repetição.

De repente, há uma quebra na sequência repetitiva do tempo, com a introdução da


preposição: “Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e
silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe” (FC, 1998, p. 11). Nesse instante, a narrativa
sofre uma aceleração quando a mãe da menina descobre o que está acontecendo e dá o
livro à narradora: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Após esse
momento, a narrativa volta a se tornar lenta, quando a narradora passa a possuir o livro.
Ao encontrar a felicidade, o tempo torna-se indefinido, pois poderia ficar com o livro
por quanto tempo quisesse. “Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco
importa”.

Sobre o tempo no conto, é interessante ressaltar que em narrativas autobiográficas


frequentemente há a união do tempo passado ao presente. Outro artifício utilizado por
Clarice Lispector é a repetição, para nos sugerir algo que está por vir, pois, segundo
Piglia (2004, p. 94), “o conto é construído para revelar artificialmente algo que estava
oculto”.

3. Contradições do ser e da linguagem

O momento epifânico une a surpresa da mãe com a surpresa da personagem e a


surpresa do próprio leitor, ao descobrir o sadismo da menina que sentia prazer com o
sofrimento da colega. De acordo com a narrativa, a mãe “espiava em silêncio” o
encontro das meninas e estranhava a “aparição muda” da colega que não faltava um dia
sequer à porta de sua casa.

A mãe, em frações de segundos, descobre “a potência de perversidade de sua filha


desconhecida” e, logo a seguir, tentando refazer o mal, diz à filha para que dê o livro à
narradora “por quanto tempo quiser”. O tempo, que passava vagarosamente ao longo da
narrativa, perpetuando o sofrimento pela espera, passa por um momento indefinido,
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quando a menina recebe o livro. Transforma-se em infinito, pois o empréstimo do livro


por tempo ilimitado valia muito mais do que se a mãe lhe tivesse doado, tendo em vista
que o controle do tempo, agora, é da narradora e a devolução do livro dar-se-ia somente
quando ela quisesse.

Tem-se, então, uma troca: agora, é a protagonista quem possui o objeto de desejo que
representa a felicidade que tanto procurava: o contato com a literatura. A posse do livro,
no 13º parágrafo, é retratada por meio da gradação: “recebi o livro”, “peguei o livro” ,
“segurava o livro”. O livro passa a ser o objeto que representa a relação de um ser
humano com a literatura: a alegria no instante em que se abre um livro e que se
perpetua em cada página, com novas descobertas e revelações. Há, portanto, uma
metalinguagem presente no conto: é uma literatura falando de literatura, ou ainda, que
serve simultaneamente de espelho temático e formal do texto.

O momento epifânico do encontro com o objeto desejado, que se personifica, permite


que a menina caminhe para seu próprio interior, em busca de sua própria identidade, por
meio das reflexões que faz. A sinestesia provocada pelo encontro acontece em um
momento de relance, que poderia ser traduzida como o encontro da própria felicidade,
que se materializa em um instante, quando a narradora faz sua própria descrição como
“a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife” (FC, 1998, p.11).
É esse o momento em que as máscaras das personagens caem por terra. Ao mesmo
tempo em que a mãe da menina descobre o que há por detrás da máscara de sua filha, a
própria narradora se confessa exausta daquela situação que, no entanto, transforma todo
o sofrimento na efemeridade do vento das ruas de Recife.

A felicidade passa a ser clandestina, pois chega inesperadamente e embora


aparentemente a menina não saiba ao certo o que fazer com ela, tem a certeza de que é
efêmera e passageira, como as ondas mencionadas no conto, que vão e voltam em
instantes e se desmancham em seguida. Enquanto aguardava pelo empréstimo do livro,
a esperança de alegria lhe transportava devagar para um mar suave, onde “as ondas me
levavam e me traziam”. Era essa a única forma de prazer que conhecia e, talvez por
isso, buscava reproduzir estes momentos de idas e vindas por meio do paradoxo, quando
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escondia o livro e “fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter” (FC, 1998,
p. 12).

A narradora define a felicidade da seguinte maneira: “Criava as mais falsas


dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria
ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia” (FC, 1998, p. 12).

A felicidade plena, portanto, não existe nesse contexto. Ela é obtida a custo de muito
sofrimento e quando alcançada é passageira. Assim como o livro poderia ficar com a
narradora por tempo indefinido, a materialidade dessa felicidade é questionável, pois o
fato de o objeto de desejo não pertencer à narradora, esse pode ser devolvido ao seu
legítimo dono a qualquer momento. Não é por acaso que o conto termina com a frase:
“Não era uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”. A imagem do
amante personificando o objeto-livro promove a clandestinidade e nos remete a
analogias que materializam o prazer da leitura, com encontros furtivos, misteriosos, com
momentos de buscas e de encontros. Promove também o prolongamento desse prazer,
que é sempre adiado, para “o dia seguinte”, para que não se chegue ao fim do encontro,
ao final do livro.

No começo do conto, ela “não vivia”, agora, ela “vivia no ar”. Descobrimos,
portanto, a revelação que esta experiência trouxe à narradora-personagem, pois “no
fundo, a trama de um relato esconde sempre a esperança de uma epifania. Espera-se
algo inesperado, e isso vale também para quem escreve a história” (PIGLIA, 2004, p.
105).

A epifania que emerge da tensão conflitiva, de acordo com Benedito Nunes (1999,
p.87), aguça a percepção visual de forma penetrante, trazendo a nu toda uma existência
contida e revelada de maneira impulsiva e caótica. “Momento privilegiado sob o
aspecto de descortínio da existência, maldição e fatalidade sob o aspecto da ruptura,
esse instante assinala o clímax do desenvolvimento da narrativa”.

A intensidade, a condensação, o ritmo, o tempo, tudo contribui para gerar o efeito


pretendido em um conto, como é o caso de “Felicidade clandestina”.
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O momento epifânico do texto, quando as verdades universais vêm à tona,


impregnadas de paradoxos, materializam as contradições do ser e da linguagem. Clarice
Lispector provoca uma aguçamento da percepção da realidade que está a nossa volta.
No conto analisado, mais do que aguçar a nossa percepção, a narrativa nos remete a
uma reflexão sobre a linha tênue que separa o indivíduo da linguagem. A necessidade
de dizer coisas indizíveis, que se manifestam sob a forma de silêncio, que pode ser
encontrada nas diversas manifestações do ser humano, tenha ela caráter artístico e,
portanto, estético, ou não.

Conclusão

Quando iniciamos nosso artigo, perguntamo-nos se a felicidade poderia ser associada


a um momento de epifania. Buscamos na construção do discurso da felicidade de
Clarice Lispector as respostas ao nosso questionamento. Descobrimos um texto repleto
de paradoxos que mimetizavam as contradições do próprio ser humano. No meio dessas
contradições, encontramos momentos epifânicos, que revelam em frações de segundos
verdades existenciais que se questionam o tempo todo, infinitamente.
A trajetória da felicidade é feita de maneira dolorosa, mas necessária, para se chegar
à epifania, ao êxtase. E não devemos nos iludir, pois ela ocorre em frações de segundos
e se não formos rápidos, passaremos por esse instante despercebidamente.
Se lançarmos nosso olhar cético sobre a felicidade e, como Lispector, perguntarmos:
“E depois que se é feliz, o que acontece?”, somos forçosamente conduzidos a uma
resposta sem happy end, como no conto clariceano.
A construção do conto, como a construção da vida, é feita com paradoxos do ser e da
linguagem. Esses encontros e desencontros nos remetem ao discurso clariceano sobre a
felicidade, que nos revela uma apreensão da realidade sobre o sentido da vida.
Se considerarmos que a epifania, em nosso dia a dia, surge em momentos
inesperados e nos revela questões filosóficas profundas, não podemos deixar de associá-
la à ideia de felicidade promovida por Lispector.
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Concluímos, portanto, que as narrativas clariceanas ocorrem sem happy end, pois
epifanicamente revelam o ser humano, com suas indagações e sua constante tentativa de
comunhão com o cosmos.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, Série: Os Pensadores,


1979.
COLASANTI, Marina. In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998.
CORTÁZAR, Júlio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. São Paulo: Perspectiva,
2004.
CHIAPPINI, Lígia Leite M. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1991.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
letras, 2004.
EPICURO. Carta a Meneceu. (Álvaro Lorencini, Enzo Del Carratore). São Paulo:
UNESP, 1997.
GOTLIB, Nádia Battella. CLARICE, Uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
_________. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_________. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1990.NUNES, Benedito. O Drama da Linguagem. São Paulo: Ática, 1989.
PIGLIA, Ricardo. “Teses sobre o conto” e “Novas teses sobre o conto”. In: Formas
Breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
POE, Edgar Allan. “Filosofia da composição”. In: Ficção completa, poesia & ensaios.
Rio de janeiro: Companhia Aguilar, 1965.
SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Vozes, 1979.
SANT’ANNA, Afonso Romano de. Análise estrutural de romances brasileiros. Rio de
Janeiro: Vozes, 1974.
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SANT’ANNA, Afonso Romano de. “Clarice: a epifania da escrita”. In: A legião


estrangeira. 3ª Ed. São Paulo: Ática, 1982.
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A DESCONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL NO ROMANCE


PONCIÁ VICÊNCIO

Cristiane Montarroyos Santos Umbelino (PG/UFPE)

Introdução: identidade nacional, um discurso ideológico

Dentre tantas definições atribuídas à identidade nacional, como, por exemplo, a de


Benedict Anderson (1983) de que “a identidade nacional é uma ‘comunidade
imaginada’” (ANDERSON apud HALL, 2006, p. 51), ou seja, só é possível no âmbito
das ideias; a partir desta ideia possível, ela também pode ser definida como um
mecanismo ideológico que tenciona apagar as diferenças étnico-culturais estabelecidas
pela sociedade. Segundo Stuart Hall (2006, p. 59):

[...] não importa quão diferentes [os membros de uma nação] possam
ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca
unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como
pertencendo à mesma e grande família nacional.

Nesse sentido, no livro Cultura Brasileira e Identidade Nacional (1998),


especificamente, no capítulo “Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional”, Renato
Ortiz começa citando Florestan Fernandes (1972) para apontar que, para este, as
questões raciais “são obscurecidas pela ideologia da democracia racial”, pois “o
brasileiro tem o preconceito de não ter preconceito.” (ORTIZ, 1998, p.36). Dessa
maneira, a identidade nacional estava vinculada às relações raciais. Segundo Ortiz
(1998, p. 36), “até a Abolição, o negro não existia enquanto cidadão”, pois não fazia
parte dos textos literários. O negro era excluído e, enquanto escravo, era visto como
objeto e não como sujeito.
Contudo, “o movimento romântico tentou construir um modelo de Ser nacional; no
entanto, faltaram-lhe condições sociais que lhe possibilitassem discutir de forma mais
abrangente a problemática proposta.” (ORTIZ, 1998, p.37). E, ao citar o Guarani, ele
afirma que “é um livro restritivo”, pois embora tente “desvendar os fundamentos da
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brasilidade”, aborda, apenas, a “fusão do índio (idealizado) com o branco” (ORTIZ,


1998, p. 37), deixando o negro à margem, uma vez que ele representava, unicamente, a
mão de obra escrava: “Somente com o movimento abolicionista e as transformações
profundas por que passa a sociedade é que o negro é integrado às preocupações
nacionais.” (ORTIZ, 1998, p. 38).
Desse modo, após a abolição nasceu o que Ortiz chama de “ideologia do Brasil-
cadinho”, ou seja, “a epopéia das três raças [branca, negra e índia] que se fundem nos
laboratórios das selvas tropicais.” (ORTIZ, 1998, p. 38). Todavia, “o mito da
mestiçagem” não podia se realizar diante do contexto sociocultural e político do Brasil
no século XIX. Somente no início do século XX, com as mudanças sociais
desencadeadas pela Revolução de 30, que o Estado procurou “consolidar o próprio
desenvolvimento social.” (ORTIZ, 1998, p. 39-40).
Nessa perspectiva, “o trabalho de Gilberto Freyre [Casa Grande e Senzala] vem
atender a esta ‘demanda social’.” (ORTIZ, 1998, p. 40). Ao tratar as questões raciais a
partir do conceito de cultura, em detrimento do de raça, Freyre “elimina uma série de
dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço.”
(ORTIZ, 1998, p. 41). Ele “transforma a negatividade do mestiço em positividade, o
que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito
vinha sendo desenhada.” (ORTIZ, 1998, p. 41). Assim, diante do novo contexto social,
o “mito das três raças” já pode ser “ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou
nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional.”
(ORTIZ, 1998, p. 41).
Em vista disso, para Ortiz (1998, p. 43), “a construção de uma identidade nacional
mestiça deixa ainda mais difícil o discernimento entre as fronteiras de cor”, ou seja, a
identidade nacional fundiu as diferentes etnias existentes no país e apagou os traços
específicos das diversas manifestações étnico-culturais. Assim, diante da “dificuldade
de se definir o que é o negro no Brasil” (ORTIZ, 1998, p. 43), o romance de Conceição
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Evaristo 1, Ponciá Vicêncio, problematiza a questão identitária da protagonista em prol


de reafirmar a identidade negra.

1. O conflito identitário de Ponciá Vicêncio

Ponciá Vicêncio nasceu do ventre livre, porém, é escrava da condição de vida


relegada aos filhos da Abolição. Desde menina, sentia-se desconfortável com o próprio
nome: “Uma noite ela passou todo o tempo diante do espelho chamando por ela mesma.
Chamava, chamava e não respondia.” (EVARISTO, 2003, p. 19). O nome foi-lhe
atribuído por outrem, a identidade era um estigma cuja ferida continuava a sangrar.
Como reconhecer-se? “Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor, de um
tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos
das terras e dos homens.” (EVARISTO, 2003, p. 29).
Além disso, a menina sabia que o avô tinha deixado uma herança para ela, pois
escutou quando o pai falou com a mãe sobre isso; Ponciá ainda era criança de colo, mas
lembrava. O que seria a herança de Vô Vicêncio? Qual seria a relação entre o legado do
avô e sua crise identitária? Segundo Flora Sussekind (1982, p.16), “Seja no plano da sua
representação ficcional, seja no que diz respeito às suas possibilidades concretas de
ação, a identidade do negro vem sendo construída pela fala daqueles que o dominam.”
Diante disso, a personagem transitava entre o passado e o presente em busca da origem
perdida e apagada pelo sobrenome que lhe foi imposto. Nessa perspectiva, Roland
Walter (2009, p. 78) afirma:

A marca do senhor, portanto, apaga as raízes familiares e étnicas de


Ponciá, transformando sua existência numa não-existência dentro de
um processo histórico de subalternização que continua escrevendo
novos capítulos sem fim.

1
Mineira radicada no Rio de Janeiro desde 1973, Conceição Evaristo é graduada em Letras pela UFRJ, é
Mestre em Literatura Brasileira pela PUC/RJ e doutoranda em Letras (Literatura Comparada) pela UFF.
Autora dos romances Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006), também publicou Poemas de
recordação e outros movimentos (2008), além de contos e poemas na série Cadernos Negros.
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Por isso, ao procurar a própria identidade, a protagonista também tentava


reencontrar, por meio das lembranças, as raízes de seu povo. Entretanto, ela não sabia
que o que buscava estava dentro dela mesma, na herança que carregava consigo, cujo
significado era-lhe desconhecido: “Ela gastava todo o tempo com o pensar, com o
recordar. Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem
inventava nada para o futuro.” (EVARISTO, 2003, p. 19). Nesse sentido, a memória é o
eixo central do texto e, através de digressões, a narradora constrói um discurso não
linear; a divisão do romance não é feita por capítulos, mas pela sequência de
recordações.
Enquanto o pai e o irmão trabalhavam durante dias e mais dias nas fazendas dos
senhores, Ponciá e a mãe ficavam em casa produzindo “panelas, potes e bichinhos de
barro” (EVARISTO, 2003, p. 21) com a argila que a menina ia buscar nas margens do
rio. Quando eles voltavam, a mãe “enrolava as vasilhas de barro em folha de bananeira
e palhas secas, apontavam as que eram para vender e estipulava preço. Das que eram
para dar de presente, nomeava quem seria o dono.” (EVARISTO, 2003, p. 27). No
entanto, “se eram livres, por que continuavam ali? Por que, então, tantos e tantas negras
na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos?”
(EVARISTO, 2003, p. 17). Porque, uma vez sequestrados da sociedade 2, diante da
violência, da condição de objeto e da ausência de identidade, o que lhes restava senão
continuar trabalhando para o homem branco, afinal, eles iriam viver de quê, se só
aprenderam a ser escravos? Porém, independente disso, Ponciá decidiu abandonar
aquela vila e aquela vida, pois “estava cansada de tudo ali”:

De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e


voltar de mãos vazias. De ver as terras dos negros coberta de

2
A ideia do termo sequestrados da sociedade está presente no romance Senhora, de José de Alencar, e
faz referência ao diálogo entre os personagens Fernando e Aurélia: “Então entende que depois de privar-
se um homem de sua liberdade, de o rebaixar ante a própria consciência, de o haver transformado em um
instrumento, é lícito, a pretexto de alforria, abandonar essa criatura a quem sequestraram da sociedade?”
(ALENCAR apud SUSSEKIND, 1982, p. 28)
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plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens


gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior
parte das colheitas ser entregue aos coronéis. Cansada da luta insana,
sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais
pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se todo o dia.
(EVARISTO, 2003, p. 33).

Diante disso, é importante fazer os seguintes questionamentos: o que significava ser


livre quando os filhos do ventre livre continuavam trabalhando “nas terras dos
brancos”? Como ficou estabelecida a hierarquia entre ex-senhor e ex-escravo após a Lei
Áurea? A escravidão acabou ou desapareceu do dia para a noite? Não. Mas para
reconstruir a identidade negra, a narradora contemporânea precisava denunciar o que
ficou encoberto na literatura do século XIX. Nesse sentido, Flora Sussekind (1982, p.
27) observa:

Quando se trata de personagens escravos as referências ao


escravismo se revestem de uma adjetivação atenuante de sua própria
condição servil. Fala-se de senhores “bondosos”, “santos”, enquanto
as ordens senhoriais vão sendo cumpridas à risca e sem discussão.
Escravo passivo e mudo, senhor bonzinho e paternal: esse é o par
com que se costuma representar as relações de trabalho no
escravismo brasileiro.

Em vista disso, a pseudocordialidade étnica sugerida pela ideologia dominante e


encontrada em obras literárias como, por exemplo, O que é o casamento? e Senhora de
José de Alencar, é desvelada na narrativa de Conceição Evaristo:

Filho de ex-escravos, [o pai de Ponciá] crescera na fazenda levando a


mesma vida dos pais. Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação
de brincar com ele. Era o cavalo onde o mocinho galopava sonhando
conhecer todas as terras do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o
coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro.
O pajem abriu. A urina do outro caía escorrendo quente por sua goela
e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava e não sabia
o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o sabor de
suas lágrimas. (EVARISTO, 2003, p. 17)
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Nessa perspectiva, Ponciá se recusava a seguir o mesmo destino do avô e do pai.


Quando saiu do povoado, pouco depois da morte deste, tinha o desejo de mudar a
trajetória de sua vida. E, durante a viagem, ela “trazia a esperança como bilhete de
passagem” (EVARISTO, 2003, p. 36). Iria trabalhar para ganhar dinheiro e reunir
novamente a família, pois perdera o contato com a mãe e o irmão. Então, ao chegar à
cidade, ela “havia tecido uma rede de sonhos” (EVARISTO, 2003, p. 26), mas tudo o
que conseguiu foi trabalhar como empregada doméstica, cujo esforço só foi suficiente
para comprar um barraco na favela; conhecer um homem; se apaixonar por ele e passar
a viver com ele no barraco. Ela até sabia ler, aprendera com os missionários, mas “de
que valia ler? [...] No tempo em que vivia na roça, pensava que, quando viesse para a
cidade, a leitura lhe abriria meio mundo ou até o mundo inteiro.” (EVARISTO, 2003, p.
91). Todavia, na cidade, enquanto empregada, a leitura não tinha serventia. Ela lia,
apenas, notícia do tipo: “Menino morre afogado na fossa” ou “Pedreiro mata a mulher
com quinze facadas”. Além de tudo isso, teve sete filhos, no entanto, todos nasceram
mortos.
Assim, Ponciá não alcançou seu objetivo, não tinha dinheiro, não reencontrou os
entes queridos, nem mesmo quando voltou ao povoado, pois o irmão também tinha
migrado para a cidade e a mãe vivia a divagar de povoado em povoado desde que os
filhos foram embora: “Ponciá Vicêncio teve a impressão de que havia ali um pulso de
ferro a segurar o tempo. Uma soberana mão que eternizava uma condição antiga.”
(EVARISTO, 2003, p. 49). Logo, da rede de sonhos que ela havia tecido, “agora via um
por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande buraco, um grande
vazio.” (EVARISTO, 2003, p. 26). A partir desse momento, a herança começava a se
manifestar, mas Ponciá não sabia e continua se perguntando: o que havia acontecido
com a herança que Vô Vicêncio lhe deixara? Que herança era essa?

O canavial crescia dando prosperidade ao dono. Os engenhos de


açúcar enriqueciam e fortaleciam o senhor. Sangue e garapa podiam
ser um líquido só. Vô Vicêncio com a mulher e os filhos viviam anos
e anos nessa lida. Três ou quatro dos seus, nascidos do “ventre livre”,
entretanto, como muitos outros, tinham sido vendidos. Numa noite, o
desespero venceu. Vô Vicêncio matou a mulher e tentou acabar com
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a própria vida. Armado com a mesma foice que lançara contra a


mulher, começou a se autoflagelar decepando a mão. Acudido, é
impedido de continuar o intento. Estava louco, chorando e rindo.
(EVARISTO, 2003, p. 51).

2. A reconstrução da identidade negra

Quando Ponciá desceu do colo da mãe e andou pela primeira vez, era como ver Vô
Vicêncio caminhando: “Andava com um dos braços escondido às costas e tinha a
mãozinha fechada como se fosse cotó.” (EVARISTO, 2003, p. 16). E quando aprendeu
a trabalhar com a argila fez um “homem-barro” igual ao avô: “A boca ensaia sorrisos,
mas no rosto, a expressão era de dor.” (EVARISTO, 2003, p. 22). Ela parecia com ele
em tudo, até na maneira de olhar o vazio, inclusive, o próprio vazio. E, assim, ela
passava dias e noites olhando o para vazio da vida e de si mesma: “Nas primeiras vezes
que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si, ficou atordoada. O
que havia acontecido? Quanto tempo tinha ficado naquele estado?” (EVARISTO, 2003,
p. 45). No início ela sentia medo, mas depois começou a gostar das ausências, cada vez
mais frequentes. Ela parou de trabalhar e passava o dia inteiro sentada num banco
olhando a rua, ora perdida dentro de si, ora lembrando-se do passado. Enquanto isso,
seu companheiro trabalhava na construção ou demolição de algum lugar, efetuando um
trabalho braçal e pesado. Em muitos momentos, parecia que a identidade de Ponciá
estava “flutuando”, ela precisava da mãe, Maria Vicêncio, e do irmão, Luandi José
Vicêncio, para recuperá-la, senão corria o risco de perdê-la de vez. De acordo com
Zygmunt Bauman (2005, p. 19):

As “identidades” flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha,


mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é
preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em
relação às últimas. Há uma ampla probabilidade de desentendimento,
e o resultado da negociação permanece eternamente pendente.

Luandi José Vicêncio trabalhava “nas terras dos brancos” com pai, como já foi
mencionado anteriormente. Enquanto o pai estava vivo, os dois passavam quase todo
tempo lá, pode-se afirmar que continuavam na condição de escravos. Certo dia, em
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busca da irmã e de uma vida melhor, assim como ela, ele também migrou da roça para a
cidade. Entretanto, o que uma sociedade constituída por classes poderia reservar para
eles? Ponciá, empregada doméstica; Luandi, auxiliar de limpeza. Nasceram na pobreza,
cresceram na pobreza e agora? Este dormia de favor na delegacia onde trabalhava,
aquela trabalhou durante anos para conseguir comprar um barraco na favela:

De que adiantara a coragem de muitos em escolher a fuga, de


viverem o ideal quilombola? [...] O que adiantara? A vida escrava
continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava
de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da
falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de
organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida.
(EVARISTO, 2003, p. 83)

Porém, Luandi pensava ao contrário da irmã, ele queria ser soldado e com a ajuda
do Soldado Nestor, também negro e vindo da roça, ele aprendeu a ler, porque para
trabalhar nessa profissão tinha de saber ler e assinar o próprio nome. Mas, na verdade,
ele queria mesmo era mandar, bater e assumir a máscara branca que lhe foi imposta: “É
na obediência e na reprodução do olhar e da fala do senhor que o negro vai construindo
seu autoconceito. Construção que se transforma em travestimento, em aquisição de uma
máscara branca que se cola ao rosto, ao corpo e à fala do negro.” (SUSSEKIND, 1982,
p. 17).
Assim como Ponciá, Luandi também voltou ao povoado, sabia que seria soldado e
queria reencontrar a mãe, levá-la para morar com ele. Contudo, a casa estava vazia, a
mãe estava peregrinando, se preparando para partir de vez rumo à cidade – ela relutou
muito, mas sabia que tinha de encarar a cidade em nome dos filhos, principalmente da
filha, pois a lei estava se cumprindo, o Vô Vicêncio da menina. Luandi voltou para a
cidade, mas deixou um bilhete com o endereço da delegacia onde trabalhava com
Nêngua Kainda, a velha que guiava, como uma orientadora da vida, todos os moradores
do povoado.
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Então, quando Maria Vicêncio voltou às “terras dos negros” antes de ir ao encontro
dos filhos, pegou o endereço com a velha e percebeu que a hora certa de partir havia
chegado. Ao descer do trem, ela encontrou o Soldado Nestor, que trabalhava na estação,
e “emocionada e desamparada caminhou em direção a ele. A vida inteira, na roça, ela só
tinha visto negros trabalhando para brancos, sempre sob as ordens de um senhor que
estivesse perto ou não.” (EVARISTO, 2003, p. 116). Ele a levou ao encontro do filho e
a alegria de rever a mãe somou-se a chegada dos documentos que fariam dele soldado,
realizariam seu desejo de “ter voz de mando”. Porém, a narradora ressalta a importância
de identidade negra ao questionar: “[...] mas de que valeria mandar tanto, se sozinho? Se
a voz de Luandi não fosse o eco encompridado de outras vozes-irmãs sofridas, a fala
dele nem no deserto cairia.” (EVARISTO, 2003, p. 94).
Apesar disso, o mais importante naquela hora era encontrar Ponciá, mas o momento
não tardou. Ela “estava muito perturbada naqueles dias. [...] Falava muito sozinha, ora
chorava, ora ria. Pedia barro, queria voltar ao rio.” (EVARISTO, 2003, p. 120). Depois
de muitos anos vivendo como “uma morta-viva dentro de casa”, Ponciá decidiu ir à
estação de trem e voltar ao povoado, ir ao encontro das raízes, no rio. Nesse dia, o
Soldado Luandi José Vicêncio iria trabalhar pela primeira vez fora da delegacia, na
estação. O local estava vazio, foi então que ele viu “a imagem de uma mulher que ia e
vinha, num caminhar sem nexo, quase em círculo, no lado oposto em que ele se
encontrava.” (EVARISTO, 2003, p. 123). Ponciá Vicêncio voltara para a família,
poderia cumprir sem medo a herança que o avô lhe deixou:

Luandi José Vicêncio olhava o rosto conturbado da irmã, que


caminhava em círculos. [...] Um dia ele voltaria ao povoado e tentaria
recolher alguns trabalhos dela e da mãe. Eram trabalhos que contava
parte de uma história. A história dos negros talvez. A irmã tinha os
traços e os modos de Vô Vicêncio. Não estranhou a semelhança que
se fazia cada vez maior. Bom que ela se fizesse reveladora, se fizesse
herdeira de uma história tão sofrida, porque enquanto o sofrimento
estivesse vivo na memória de todos, quem sabe não procurariam, nem
que fosse pela força do desejo, a criação de um outro destino.
(EVARISTO, 2003, p. 126).

Conclusão
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Portanto, visto que a sociedade contemporânea é formada por várias etnias, mas
forjada pela ideologia da identidade nacional, a autora dessa narrativa mnemônica
buscou na tradição cultural africana a matéria-prima para construir sua prosa poética e
reafirmar a identidade negra. Tal aspecto, problematizado neste artigo, está evidente ao
longo do romance e, principalmente, no seguinte trecho, quando a narradora destaca a
importância da oralidade:

[Luandi] cantou alto uma cantiga que aprendera com o pai, quando
eles trabalhavam na terra dos brancos. Era uma canção que os negros
mais velhos ensinavam aos mais novos. Eles diziam ser uma cantiga
de voltar que os homens, lá na África, entoavam sempre quando
estavam regressando da pesca, da caça ou de algum lugar. [...] Luandi
não entendia as palavras do canto, sabia, porém, que era uma língua
que alguns negros falavam ainda, principalmente os velhos.
(EVARISTO, 2003, p. 87)

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto


Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva,
Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006.
ORTIZ, Renato. Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional. In: ORTIZ, Renato.
Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1998, pp. 36-44.
SUSSEKIND, Flora. O negro como Arlequim: teatro & discriminação. Rio de Janeiro:
Achiamé / Socii, 1982.
WALTER, Roland. Afro-América: diálogos literários na diáspora negra das Américas.
Recife: Bagaço, 2009.
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OLHAR DO ESTRANGEIRO NA LITERATURA BRASILEIRA – UMA LEITURA DO


CONTO “MISS EDITH E SEU TIO” DE LIMA BARRETO - PROBLEMA
NACIONALISTA? 1

Cristiano Mello de Oliveira (PG-UFSC)

ALGUNS PRESSUPOSTOS

Dizem que D. João VI quando chegou à Bahia em 1808 foi


2
logo mandando iluminar a cidade: era “para o inglês ver”.

A expressão destacada na epígrafe visa a lembrar a cerimônia feita por nossas


autoridades, tendo em vista a chegada de uma visita distinta e requintada, e remonta
uma questão peculiar respeitosa ao tratamento privilegiado ofertado ao homem
estrangeiro. O olhar cristalizado do cidadão brasileiro para o homem vindo de fora foi
sempre sinônimo de admiração e consagração. Tamanho privilégio dado a esses
estrangeiros continua sendo a forma de cordialidade e ao mesmo tempo subalternidade
aos interesses alheios. Estendemos de tapete vermelho para nossas visitas caminharem,
porém escondemos por baixo as sujeiras daquilo que causa má impressão. É como se
vivêssemos somente por uma aparência temporária. Isto é: podemos andar com um traje
bonito e elegante, porém as peças debaixo podem ficar rasgadas e gastas. Guiada pelo
mote sugerido por Gilberto Freyre, iremos iniciar o nosso ensaio e será esse o nosso fio
condutor para tal perspectiva.

Para tanto, focalizamos aqui algumas indagações pertinentes que irão permear a
nossa evolução ensaística ao longo desse trabalho: por que agimos diferentemente
estabelecendo privilégios no trato com estrangeiros que visitam nosso país? Por que
acreditamos que somos incapazes de melhorar o cenário do Brasil no exterior? Até
quando iremos manter a práxis de uma postura alienada aos centros capitalistas e
ponderarmos tais situações? Por qual motivo outorgamos tal raciocínio e esse tipo de
comportamento? Quais foram às razões ideológicas e filosóficas que fizeram tantos
escritores da nossa literatura abordar tal tema? Como nossa matriz histórica-sociológica
tem se modificado ao longo do tempo? Como se formula o escopo do conto “Miss Edith

1
Gostaria de agradecer as devidas leituras e sugestões de minha orientadora Dra Patrícia Pertele - UFSC
2
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Record, 1990. p. 308
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e seu Tio” 3e o que sua leitura possui de emblemática a esses fatores já questionados? O
argumento abaixo enfatiza ainda mais o questionamento proposto nesse trabalho.
Antonio Candido apresenta assim:

Por outro lado, se aceitarmos a realidade na minúcia completa


das suas discordâncias e singularidades, sem querer mutilar a
impressão vigorosa que deixa, temos de renunciar à ordem,
indispensável em toda investigação intelectual. (CANDIDO,
1981, p. 30) Grifo nossos

Renunciar aquilo que já está pronto seria desconstruir a particularidade feita


sobre tal assunto e construí-la novamente. Tal assertiva possui algo muito peculiar ao
que desejamos realizar aqui nesse trabalho. E mais ainda poderíamos aqui citar por um
outro viés o que diz Walter Benjamin no seu clássico ensaio sobra a obra de Nikolai
Leskov: “O historiador é obrigado a explicar de uma outra maneira os episódios com
que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da
história do mundo”( BENJAMIN, p. 209). Ou seja, devemos sim questionar os modelos
britânicos implantados na nação brasileira. Tanto pensando como Candido, tanto como
Benjamin. Adiante veremos melhor o alcance desse argumento. Assim o povo
brasileiro foi educado, a reservar devoção à figura do estrangeiro, como alguém superior
e melhor aos seus modelos, valorizando sempre a cultura exterior como mais rica e
vantajosa.

O historiador Caio Prado Junior na sua obra Formação do Brasil


Contemporâneo, já abordava que não iremos ser uma nação independente apenas pelo
Grito do Ipiranga, enquanto não corrigirmos as deformações que sistematizaram o nosso
legado colonial. Em suma: pode-se definir através desses postulados que, de fato, tais
acontecimentos estão embutidos no próprio psicologismo da escravidão e da
colonização.

De volta à epígrafe-título, percebemos que: se arrumar a casa era necessário na


época de D. João VI, quanto mais à pensão de propriedade da personagem Madame

3
Durante as citações do conto “Miss Edith e seu Tio” que serão extraídas ao longo do nosso ensaio.
Enfatizamos que iremos adotar preferencialmente o respectivo número da página citada.
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Barbosa, onde acomodaria os novos hóspedes estrangeiros, principalmente, pois acima


de tudo agradá-los seria responsabilidade credora da proprietária. A expressão “para o
inglês ver” também se tornara comum e fora praticada na sociedade brasileira, a partir
daquela época. Essa expressão se clarificará à medida que iremos avançando nesse
trabalho, mas, por hora, desejamos apenas sublinhar e entrelaçar aspectos introdutórios.

Ao optar pela junção entre ficção e história, o escritor carioca, recupera idéias
sobre a História do Brasil, especificamente do caso dos grandes empréstimos que nosso
célebre Barão de Mauá 4 contraiu nos fins do século XIX. Os banqueiros ingleses
Rothschilds 5 emprestaram uma quantidade significativa de dinheiro para financiar boa
parte das obras nacionais. Justifica o estudioso Marins: “A habilidade de Lima Barreto
em trabalhar com dados históricos é admirável. Em poucas linhas ele situa o leitor em
uma realidade histórica rica que se esconde por trás de toda a atmosfera de mistificação
que envolve o conto.” (MARINS, 2004, p. 226). Todavia, o escritor carioca conseguiu
empreender tal mescla, utilizando o pano de fundo histórico como cenário persuasivo
realístico para aclimatar sua tessitura romanesca.

Lima Barreto era contra qualquer cultura de privilégios a todos os tipos de


pessoas. Inclusive, cabe aqui relatar, a existência, da sua parte, desde o começo de sua
carreira uma perseguição aos doutores: “Para a massa total dos brasileiros, o doutor é
mais inteligente do que outro qualquer, e só ele é inteligente; é sábio [...]” (BARRETO,
p. 329). É notável, verificarmos ao longo de seus trabalhos certa aversão para aquilo que
chegava do exterior, assim como a cultura letrada, baseada nos moldes da universidade.
Na visão de Lima o nosso poderia tentar reduzir ao longo do texto ‘nosso’ Brasil
deveria ser uma nação justa sob vários desses aspectos, e, para continuar exercendo o
seu ofício com destreza precisaria fazer da sua arte literária, uma espécie de militância e
denúncia social sobre os variados problemas que observava nas elites cariocas.

4
Para um maior aprofundamento sobre tal questão, recomendamos a leitura da obra Mauá, Empresário
do Império, Jorge Caldeira, Cia das Letras. São Paulo, 1995.
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Ressalvamos que, no dialogar com tais correntes teóricas e ideológicas, não será
intenção e objetivo de legitimar nenhum discurso e sim refletirmos e levantarmos
hipóteses necessárias, postulando consequentemente à compreensão de tais questões. A
leitura do conto “Miss Edith e seu tio”, no entanto, não pode ser feita de forma ingênua,
é necessário desmembrar os processos de denúncia social, sem outorgarmos um caráter
negativo. Para isso esboçaremos as diferentes perspectivas teóricas de alguns estudiosos
sobre o assunto. Movimento que tentaremos investigar a seguir.

1.1 O estrangeiro visto de outra forma

É por isso que o Brasil não vai para adiante. O


brasileiro é o maior inimigo de sua pátria. 6

Em diversas manifestações artísticas e culturais, aqui buscando contracenar com


o cinema contemporâneo. Podemos verificar o grau de respeito e submissão ao homem
estrangeiro. Notável exemplo desse diálogo seria o filme “Turistas 7”, que fora estreado
e rodado em nosso território nacional. O filme chegara a ser proibido pela própria
Empresa Brasileira de Turismo, porém como as coisas não costumam vigorar por muito
tempo em nosso país, logo foi liberado para apresentação pública. Ensaiando o
desenrolar do próprio filme, a estória narra à aventura de um grupo de jovens
estrangeiros, que ao chegarem ao Brasil são roubados e caem na mão de um médico,
traficante de órgãos, e líder negativo de uma quadrilha especializada nesse assunto.
Grosso modo, o filme demonstra a oposição do tratamento refinado dado aos
estrangeiros e a desconsideração atribuída às nossas regras morais e éticas,
consequentemente alguns imprevistos hostis acabam ocorrendo em relação aos
estrangeiros durante a evolução dos variados episódios.

Esse tratamento diferenciado entre brasileiros e estrangeiros também pode ser


muito bem detalhado nesse relato longo e refinado, ao qual se identifica o privilégio
concebido ao inglês que chegasse a terras brasileiras. Percebemos o fino trato ao

6
BARRETO, Lima. Conto: “O número da sepultura.” In: Histórias e sonhos. Rio de Janeiro,
7
Filme: “Turistas”, Paris Filmes, 2006.
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estrangeiro e a eterna desconfiança em relação ao nosso povo pelo estrangeiro.


Mediocridade e mesquinharia perpassam nessa reflexão e a experiência do imigrante
que enxerga no ar, as indiferenças entre o comportamento social e o alheio. A
indagação que permanece no final da citação também não é nada gratuita, pois tenta
verificar e questionar o verdadeiro engodo que a alfândega brasileira representa para
situações corriqueiras com os imigrantes recém chegados. Podemos verificar os detalhes
no trecho:

Assim sendo, tais indivíduos eram chamados e deixavam as


filas, mesmo quando tinha nos seus empregos e ocupações uma
posição menos importante que a de muitas pessoas que
continuavam nas filas. Observei, continuaria ele, que ser
estrangeiro dava direito imediato a um melhor tratamento
do que ser um nativo. De fato, evitando maiores delongas
junto ao funcionário que manipulava um moderníssimo
computador cujo banco de dados fica à disposição da polícia.
‘Curioso’, concluiria novamente o nosso imaginário e perplexo
Aléxis de Tocqueville, ‘que num país tão pobre de recursos os
bancos de dados ultramodernos tenham sido implantados
primeiro para o controle policial dos cidadãos do país e até hoje
a pesquisa científica vegete em busca de verbas para essas
máquinas. Será que o liberalismo brasileiro tem uma bela teoria
de igualdade, mas na prática tudo é diferente?’ ( DAMATTA,
1979, p. 74) Grifo nossos

Ora, o divisor das águas, representado pela alfândega brasileira, acaba cedendo
notável tratamento diferenciado ofertado em caráter de respeito e uma nítida submissão
para com os estrangeiros. Cabem aqui três indagações que completam a problemática no
final da citação acima: qual seria o tipo de controle e grau de acuidade realizado pela
nossa imigração? Até quando se pode tolerar esse tipo de situação discrepante em nossa
nação? Será que nos países europeus o tratamento também funciona dessa maneira?
Possivelmente a resposta perde-se nos montantes de papéis burocráticos e no sistema
fálico do direito internacional. Volvemos agora o nosso olhar para examinar os aspectos
preponderantes no conto “Miss Edith e seu Tio”, nos parágrafos que seguem.
Recapitulando: é a partir dessa etapa que a nossa epígrafe inicial do artigo volta a fazer
efeito.
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1.2 O aspecto “preponderante” - do conto “Miss Edith e seu Tio”

O conto “Miss Edith e seu Tio” publicado no ano de 1914 representa os variados
aspectos e os distintos significados para os amantes da literatura barretiana. É notável
dizer que Lima evoca nesse conto a nostalgia dos efeitos da nossa colonização e da
celebração ao tratamento especial ofertado aos ingleses. O conto posteriormente fora
selecionado e republicado por Francisco de Assis Barbosa na edição denominada Feiras
e Mafuás no ano de 1953. Possivelmente, o leitor mais atento a esse conto irá verificar o
desabafo militante do escritor Lima Barreto em relação ao grau de submissão e respeito
dos brasileiros em relação aos ingleses.
O cenário do conto “Miss Edith e seu Tio” é representado por uma edificação
antiga e forte, construída no ano de 1855. Suponhamos esta data, pois o conto fora
publicado no ano de 1914, e a narrativa insinua nossa postulação, vejamos os detalhes:
“A construção devia datar de cerca de sessenta anos atrás [...]” (p. 01) Em detalhes: A
construção era por sinal bem ampla em vários aspectos. Uma casa que subdivide em
quartos. O terreno foi fracionado para a ocupação de prédios novos e distintos
(modernos). A casa (pensão Boa Vista) encontra-se no centro de uma chácara robusta e
ampla. Isso de certa forma caracterizava o processo de transformação e modernização
da cidade do Rio de Janeiro. (praia do flamengo). A era forte e resistente, construída
com materiais de longa duração. O escritor Lima Barreto também utiliza alegorias para
compor o seu vocabulário e ilustrar diversas passagens que remeterão aos
desencadeamentos narrativos do próprio enredo. Alguns detalhes desse cenário:
A pensão familiar "Boa Vista" ocupava uma grande casa da
praia do Flamengo, muito feia de fachada, com dous
pavimentos, possuindo bons quartos, uns nascidos com o
prédio e outros que a adaptação ao seu novo destino fizera
surgir com a divisão de antigas salas e a amputação de outros
aposentos. ( p. 01)

O estilo narrado abaixo não poderia ser mais ao rés-do-chão, prosa básica à
moda barreteana, diria-se, e, no entanto, ampla de sugestões nas entrelinhas e nos
discursos intertextuais. Tais caracteres textuais detalham a arquitetura externa e interna
do prédio e irá representar toda uma estrutura regada de tradição e vulnerabilidade da
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duração e ao mesmo tempo adaptação ao novo, ou seja, transformação à qual Lima já


previa, mas ao mesmo tempo ficava indignado. Elementos textuais que mais adiante
serão detalhados aparecem anunciados nesse punhado de frases, em que nada se pode
jogar fora, pois todos esses dados lingüísticos possuem ampla significação para análise
pormenorizada. É daí que se aproxima, diante de cada passagem ou trecho do conto o
momento de abertura e chegada dos forasteiros ingleses, que posteriormente irão
desencadear toda a trama do conto. Vejamos os detalhes dessa chegada inusitada e um
tanto arrogante:

Não tardou que a campainha soasse outra vez e desta,


imperiosa e autoritária, forte e rude, dando a entender que
falava por ela a própria alma impaciente e voluntariosa da
pessoa que a tocava.

Prontificou-se em abrir a porta envidraçada e logo encontrou


um casal de aparência estrangeira. Sem mais preâmbulos, o
cavalheiro foi dizendo com voz breve e de comando:

— Mim quer quarto. ( p. 02) Grifo nossos

A transparência do vidro acabou contribuindo para Madame Barbosa observar


seus ilustres hóspedes. É durante essa sua observação que já irá preparar todo o decoro e
homenagem para receber os dois ingleses. A oportunidade estava pronta agora precisava
apenas estampar o sorriso na cara e ser bastante educada e agradável. É daí que se
verifica o uso das palavras “imperiosa”, “autoritária”, “forte” e “rude”, que todas
conotam desencadeadamente o mesmo sentido: ordem. Educada por sua parte, mas
pelos ingleses o pedido era de ordem e de forma autoritária, mesmo com a falta de
domínio da língua portuguesa, podemos observar que propositalmente a voz e a fala é
significativa impositiva.

Percebeu Mme. Barbosa que lidava com ingleses e, com essa


descoberta, muito se alegrou porque, como todos nós, ela tinha
também a imprecisa e parva admiração que os ingleses, com a
sua arrogância e língua pouco compreendida, souberam nos
inspirar. (p. 02 ) Grifo nossos
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Inevitável, dizer que o narrador em terceira pessoa quando adota os dois


adjetivos “imprecisa” e “parva” ; coloca o leitor diante de duas situações extremamente
necessárias de discuti-las aqui – a primeira gerava a desconfiança e a segunda era de
vontade e ganância de ganhar dinheiro. A todo o momento o conto irá oscilar dentro
dessa temática. Ou seja, ora o confiar desconfiando desses “ilustres forasteiros” que
chegavam na pensão, ora a motivação para angariar alguns trocados que pudessem
elevar o aspecto pecuniário de Madame Barbosa. A ganância está direcionada aos
valores pecuniários existentes entre o jogo de interesses pela proprietária Madame
Barbosa e sua filha Dona Irene. Ambas desejavam um futuro promissor para enriquecer
em curto prazo. Já a desconfiança irá reinar no processo dos hóspedes ficarem
submissos aos interesses britânicos. É particularmente sobre esses dois aspectos que o
conto “Miss Edith e seu Tio” irá se evolucionar ao longo da narrativa e diálogos.

Evolucionar de que forma e como? Sim o segundo aspecto, o dinheiro, já estava


aparecendo como o grau maior de interesse e cordialidade no trato com os estrangeiros.
O aspecto monetário dos ingleses funcionava como regra preliminar para que a dona da
pensão excluísse sua desconfiança e creditasse todos os valores morais possíveis nesses
estranhos. Madame Barbosa precisava receber hóspedes de boa condição financeira que
colocassem sua pensão para frente. Para isso, quando ficou sabendo que eram
estrangeiros, o tratamento foi logo diferenciado, querendo ganhar confiança para com
que os hóspedes ficassem uns grandes números de dias hospedados. A mola capitalista
seduzia Madame Barbosa de tal forma que ela mesma esquecia todos os problemas.

De resto, os ingleses têm fama de dispor de muito dinheiro e


ganhem duzentos, trezentos, quinhentos mil-réis por mês, todos
nós logo os supomos dispondo dos milhões dos Rothschilds.
(p. 02) Grifo nossos

O impulso pecuniário que Madame Barbosa já observava como uma cartomante


que realiza algumas profecias. As postulações hipotéticas certeiras são basicamente
transcritas pela expressão “perspectivas” que simulará o acúmulo de diárias na pensão e
os ganhos posteriores. Já no trecho abaixo se observa a linguagem metonímica
(Rothschilds) utilizada pelo narrador barretiano para representar os banqueiros ingleses.
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Estava na mentalidade de todos que fora também eles, que investiram milhões na feitura
de grandes empreendimentos na cidade do Rio de Janeiro, ou seja, daí ficava
subentendido que no trato com os ingleses era de tamanha importância uma dose de
amabilidade. Aliás, o crédito era valioso para valorizar os hóspedes abastados e fazia
crer que mereciam total dignidade. Daí o sorriso grande e amável da dona da pensão
Madame Barbosa. Já com os outros hóspedes não realizava o mesmo tratamento.
Vejamos alguns detalhes:

Mme. Barbosa alegrou-se, portanto, com a distinção social de


tais hóspedes e com a perspectiva dos extraordinários lucros,
que certamente lhe daria a riqueza deles. Apressou-se em ir
pessoalmente mostrar a tão nobres personagens os cômodos
que havia vagos. (p. 02 ) Grifo nossos.

É notável verificar que a posição ambígua da dona da pensão, Madame Barbosa:


separada de seus hóspedes pela sua condição de pequena proprietária, está intimamente
ligada a eles, especificamente os ingleses, ao nível das relações pessoais. Sua maior
proximidade era de puro interesse financeiro e não por vontade própria ou aspecto de
solidariedade e carinho. Brilhava nos seus olhos a cor do dinheiro que os ingleses iriam
deixar para ela. É nítido também afirmarmos que o grau de submissão fora
condicionado naturalmente na cabeça de seus funcionários. A frase aqui faz efeito: faz
o que eu digo e faz o que eu faço. A visão da jovem empregada negra é restritiva ao
diálogo e atua como se fosse subalterna aos interesses de sua patroa.

A preta olhou-os demorada e fixamente, com espanto e


respeito; parou extática, como em face de uma visão radiante. (
p. 02 ) Grifo nossos

Durante a estada na pensão de Madame Barbosa, os ingleses irão percorrer os


variados ambientes. É daí que acabam topando com os demais empregados da pensão.
No trecho supracitado fica claro um sentimento de inferioridade, respeito e
principalmente falta de diálogo, pois a criada Angélica de personalidade rústica e
praticamente sem instrução, não falava o idioma de seus hóspedes. Podemos também
verificar que sua visão tímida e quieta para com os hóspedes favorecia o seu olhar
recuado e ao mesmo tempo subordinado. Obviamente, sua rusticidade iria ser o aspecto
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de distanciamento para com os ingleses. A seguir, diante de outro momento sua patroa
Madame Barbosa irá aguardar a decisão, quase que unânime do regresso dos hóspedes
que:

Prometeram mandar as malas no dia seguinte e a dona da


pensão, tão comovida e honrada com a futura presença de tão
soberbos hóspedes, que nem lhes falou no pagamento
adiantado ou fiança. (p. 02) Grifo nossos

Mesmo demonstrando total confiança e crédito aos ilustres hóspedes. Madame


Barbosa irá conferir a saída dos britânicos através da porta de sua pensão. Irá realizar
esse movimento como se fosse um cão protetor de sua comida. Observará e irá desejar
que logo regressem trazendo as respectivas malas, pois terá certeza que gostaram de sua
propriedade. Após a recepção e a apresentação da Pensão Boa Vista pela proprietária
Madame Barbosa, fica nítido sua admiração e interesse pecuniário exarcebado, ao
observar a entrada imperiosa dos ingleses no bonde. Transporte que os próprios
britânicos inventaram e utilizaram durante longo tempo nas grandes metrópoles:

Na porta da rua, ainda madame se deixou ficar embevecida,


contemplando os ingleses. Viu-os entrar no bonde; admirou-
lhes o império verdadeiramente britânico com que
ordenaram a parada do veículo e a segurança com que se
colocaram nele [...] ( p. 03) Grifo nossos

Desconfiança no pagamento? Receio de não pagarem a diária antecipada? Creio


que essa preocupação não existia perante a boa fama e a tradição de honestidade dos
ingleses. A expressão “soberbos hóspedes” deixa nítido e evidente isso no discurso.
Talvez, seja durante essa cena que a própria Madame Barbosa alimentará a condição de
distância e subalternidade em relação aos estrangeiros britânicos. Será que esse
tratamento seria distinto para com os brasileiros? Postulamos que Madame Barbosa já
teria certeza do cálculo premeditado e por isso já conseguia também realizar planos para
melhorias da própria pensão.

Já que a confiança e auto-estima era tanta pela proprietária Madame Barbosa, em


contrapartida caberia realizar a reserva da mesa o melhor local para os novos hóspedes
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tomarem café, já que dali poderia ter a melhor vista da cidade maravilhosa, junto à
geografia dos morros e as variadas paisagens que comportam a orla do Flamengo. O
empregado Pedro já calculava que precisava redobrar a atenção para os ilustres
hóspedes, por isso, nem pensou duas vezes, já fora imediatamente arrumando o local do
café, assim como desejando para o outro dia uma agradável manha de sol e brisa fresca
para que os estrangeiros pudessem deslumbrar as paisagens. Vejamos nos trechos:

E, pensando nessa homenagem aos seus novos fregueses, de


pé na sala, encostada ao imenso étagère, foi que Mme. Barbosa
recomendou ao copeiro em voz alta:

— Pedro, amanhã reserve a "mesa das janelas" para os novos


hóspedes. ( p. 03 ) Grifo nossos

Compartilhar essa plenitude de respeito e crédito seria depositar nossa


cordialidade e submissão a esses forasteiros. Por quais motivos poderíamos exercer esse
excesso de crédito? Existia é claro e evidente uma necessidade em angariar homens
estrangeiros que pudessem subsidiar nossas necessidades básicas, mas não era tão
necessário um esforço tão sacrificante e um servilismo tão desclassificado para agradá-
los forçadamente. Raspar o tacho de afetividade pecuniária visando o interesse alheio
talvez não fosse a melhor saída, já que os hóspedes estrangeiros precisavam de somente
um local para posar. Tanto que a arrumação da pensão, assim como o privilégio de
sentar no melhor lugar para admirarem o encanto da paisagem já fazia parte das
condecorações.

— Não diga tal, Dona Sofia. O que nós precisamos é de


estrangeiros... Que venham... Demais, os ingleses são, por
todos os títulos, credores da nossa admiração. ( p. 03) Grifo
nossos

A admiração irá perpetuar também pelo vestuário e sensação de dominação e


audácia imperiosa dos ingleses. Os tipos de aparência imperiosa e o estilo das roupas
provocam um sentimento de engrandecimento sobre os demais componentes da pensão.
É no decorrer desse episódio que possivelmente irá causar alguns sentimentos receosos
por parte dos restantes hóspedes. Os adereços custavam caro e o sentimento de
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superioridade era visível para com os outros que estavam condicionados a ficarem na
mesma pensão. Talvez o homem britânico estivesse fazendo isso na inocência e
ingenuidade, porém na cabeça dos outros o pensamento acaba não sendo o mesmo. Será
algum tipo de problemática cultural?

O inglês era outra coisa: brutal de modos e fisionomia. Posava


sempre de Lord Nelson ou Duque de Wellington; olhava todos
com desdém e superioridade esmagadora e realçava essa sua
superioridade não usando ceroulas, ou vestindo blusas de
jogadores de golf ou bebendo cerveja com rum. ( p. 04) Grifo
nossos

Essa passagem parece sugerir que o jogo de especulações admirativas invade o


pensamento dos hóspedes. Entretanto, as projeções hipotéticas sobre a origem e a
profissão dos ingleses são articuladas mentalmente como um “jogo de advinhas”
progressivo. Consideravelmente, é notável que os hóspedes simpatizantes aos modelos
britânicos gostassem muito de compreender e ao mesmo tempo sentir na pele a tamanha
admiração e grandeza dos ingleses. A única hóspede que deixará sua opinião na dúvida
será Dona Sofia, porém não irá demorar muito para revogar seu pensamento e agir
conforme a imaginação e atitude de todos. É daí que sua força de personalidade irá
voltar para as opiniões coletivas.

Todo o tempo em que estiveram na pensão, o sentimento, que a


respeito deles dominava os seus companheiros de casa, não se
modificou. Até em alguns cresceu, solidificou-se, cristalizou-se
em uma admiração beata e a própria Dona Sofia, vendo que a
sua consideração na casa não diminuía, partilhou a
admiração geral. (p. 04) Grifo nossos

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ampliando, deliberadamente, os limites do tema proposto, nosso objetivo aqui


foi apontar as contradições da nossa respeitosa cordialidade em relação aos ingleses.
Assim como remontar de forma profícua, aprofundando como foi o legado deixado
pelos britânicos para a nossa nação. Investigar esse legado significa compreender as
nossas influências recebidas e o nosso atraso intelectual. Tais inquietações teóricas,
diretamente aplicadas às ciências humanas, com o viés especificamente sociológico e
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histórico, a respeito dessas disparidades sociais são frutos do nosso excesso de


submissão às posturas dogmáticas estrangeiras.

É dentro desse panorama cultural que podemos perceber o amplo diálogo do


escritor Lima Barreto. O escritor carioca faz uma crítica severa para alguns aspectos da
nossa subalternidade em relação aos ingleses, levando-nos a uma reflexão mediada de
orgulho de nação, mesmo sendo credores dos banqueiros que patrocinaram a nossa
independência econômica e industrial. Foi através dessa opção, a partir de uma
experiência íntima e pessoal, usando sua narrativa para expressar a denúncia, o protesto
angustiado desde uma perspectiva de homem negro e pobre, na luta pela defesa dos
marginalizados e oprimidos, assim como uma nação que tentava mostrar sua própria
identidade.

Referências

BARRETO, Lima. “Miss Edith e seu Tio” In: Feiras e Mafuás, São Paulo: Mérito, 1953.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira, Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.

DAMATTA, Roberto. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 1979.

FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil, Rio de Janeiro,: MEC, 1977.

JUNIOR, Prado Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2004.

MARINS, Álvaro. Machado de Assis e Lima Barreto: da ironia à sátira. Rio de Janeiro:
Utópos, 2004.
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NOTAS SOBRE A RECEPÇÃO CRÍTICA DO TEATRO DE HILDA HILST

Cristyane Batista Leal (PG/UFG)


Solange Fiúza Cardoso Yokozawa (UFG)

Introdução

Este artigo apresenta considerações sobre os parcos estudos da dramaturgia de


Hilda Hilst (1930-2004), bem como tenta pensar alguns fatores que teriam concorrido
para limitar a recepção crítica desse teatro. A autora, mais conhecida como poeta, atuou
em alto nível nos três gêneros literários. Os textos dramáticos foram escritos em um
período intermediário, situadas entre a lírica já consolidada e as posteriores
experimentações narrativas.
A escrita das oito peças compreendeu os anos de 1967 a 1969. São elas: Empresa ou
A possessa: estória de austeridade e exceção (1967); O rato no muro (1967); O
visitante (1968); Auto da barca de Camiri ou Estória, muito notória, de uma ação
declaratória (1968); As aves da noite (1968); O novo sistema (1968); O verdugo
(1968); A morte do patriarca (1969).
O imediato desconhecimento desse tipo de escrita no Brasil, bem como as
dificuldades mostradas diante desse novo estilo e a posterior falta de engrenagem nas
adaptações das peças parece ter concorrido para marginalizar o teatro de Hilda Hilst.
Em feliz compensação, há uma linha de pensamento comum entre aqueles que se
pronunciaram sobre a autora: o teatro de Hilda Hilst é uma nova voz da dramaturgia
brasileira 1.

1. O prólogo

1
Vale ressaltar que as referências críticas deste artigo são reiteradas, já que um número pequeno de
estudiosos se manifestou sobre os textos teatrais em questão.
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Anatol Rosenfeld, em tom de reverência e profecia, declarou, por mais de uma vez,
certo acolhimento que as peças de Hilda Hilst ainda receberia das companhias teatrais,
destacando e antecipando seu valor para a dramaturgia do Brasil. Em artigo publicado
em 1969, sob o título O teatro brasileiro atual, o autor faz um breve comentário sobre
as temáticas e os estilos abordados nos dramas hilstianos, destacando a qualidade
literária de seus textos, bem como apostando nas montagens que viriam a ocorrer a
partir da década de mil novecentos e setenta:
Embora peças suas já tenham sido encenadas com êxito por grupos
amadores (O rato no muro, O visitante, O novo sistema), uma delas na
Colômbia, por ocasião de um festival, sua obra ainda não encontrou o
acolhimento das companhias profissionais. Estas certamente se
interessarão mais pela sua dramaturgia depois de ela ter sido
distinguida com o Prêmio Anchieta de 1969, pela sua peça O
Verdugo, focalização dramática de problemas religiosos, morais e
políticos do nosso e de todos os tempos. (ROSENFELD, 2000, p. 168)

Prefaciando a primeira edição em prosa de Hilda Hilst, Fluxo-Floema, publicada um


ano após a escrita da última peça, Anatol Rosenfeld retoma o valor da obra dramática de
Hilda e a crença na recepção dos profissionais de teatro:
Mais cedo ou mais tarde, [o teatro profissional] descubra o valor desta
obra cênica, marcante pela qualidade literária por introduzir uma voz
inteiramente nova e original na dramaturgia brasileira moderna,
raramente beneficiada pela colaboração criativa dos poetas.
(ROSENFELD, 1970, p. 11)

De fato, os anos que se seguiram foram presenteados por estréias das peças nas
regiões do sudeste e do sul do país. De 1968 até a década de 80, Claudio Willer,
Macksen Luiz ou mesmo Rosenfeld assinam as críticas publicadas nos jornais da época,
conforme as montagens que ora estreavam. A última montagem data de 1991, com a
peça A morte do Patriarca 2. Entretanto, ao contrário do que esperava Rosenfeld, a
quantidade de montagens não atingiu a expectativa de tantas apostas precedentes. Os
registros contam meras oito apresentações.

2
A informação é de Renata Pallotini (2008), já que a cronologia de Hilda (2008) registra a apresentação
da peça O rato no muro, como a última a ser encenada, ainda 1984.
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2. A peripécia

A partir da década de 90, a obra lírica e narrativa de Hilda começou a encontrar com
os palcos, em quantidade que superou a adaptação dramática. Concomitantemente, a
produção crítica desses dois gêneros também era bastante intensa nos espaços
acadêmicos, com inúmeras dissertações e teses. Basta ver a seleção de títulos dispostos
na série de obras de Hilda Hilst, publicadas pela editora Globo. Com as várias
traduções para outras línguas, a literatura de Hilda também conquistou campos de
estudo em várias instâncias de pesquisa pelo mundo.
A comparação entre as versões cênicas de Hilst não está ligada a qualquer defesa de
supremacia do texto em estrutura de drama. O palco não impõe nenhuma exclusividade
ao texto dramático, tanto quanto a criação dramática não obriga sua circulação apenas
pela montagem cênica. Conforme atesta Staiger,
O dramático não tem que ser compreendido a partir de sua adaptação
ao palco e sim que a instituição histórica do palco decorre da essência
do estilo dramático? Um enfoque fenomenológico só permite esta
interpretação. O palco foi, realmente, criado segundo o espírito da
obra dramática, como único instrumento que se adaptava ao novo
gênero poético. Mas uma vez existente esse mesmo instrumento pode
servir a outras formas de criação e tem sido utilizado das maneiras
mais diversas através dos tempos. (STAIGER, 1997, p 119)

Portanto, o tablado mantém sua liberdade de ferramentas e estilos, fato que culmina
em uma infinidade de possibilidades de criação da linguagem cênica.
As recentes adaptações da obra lírica e narrativa da autora em questão e a intensa
produção crítica sobre essas espécies literárias, em detrimento dos estudos dos dramas
levam à clássica discussão da relação entre produção literária, crítica especializada e
público. Haveria relações entre as adaptações para o palco, o interesse de estudo por
parte de pesquisadores acadêmicos e apreciação do público?
A escassez de bibliografia sobre a obra dramática hilstiana foi reconhecida
primeiramente por Elza Vincenzo e justificada por dois fatores: a estranheza dos
encenadores diante de uma forma desconhecida nacionalmente e a ausência de imediata
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referência ao contexto político, efervescente nos teatros da época. A autora repara ainda
a discrepância entre quantidade de estudos já existentes e pesquisas posteriores da lírica
e da narrativa de Hilda. Mais tarde, Renata Pallottini, em posfácio ao Teatro Completo,
observa que
São muito poucos os textos que tratam do teatro de Hilda. Sabe-se de
alguns artigos e ensaios de Anatol Rosenfeld, algumas entrevistas e
críticas e, acima de tudo, o capítulo em que Elza Cunha se debruça
sobre estes textos e, amorosamente, procura desvendá-los.
(PALLOTINI, 2008, p. 500).

Para a questão levantada anteriormente, Vincenzo traz uma justificativa, ao aliar o


diferencial estético das peças hilstianas com a raridade de montagens para o palco: “No
caso de textos teatrais é a apresentação no palco o que leva, normalmente, ao maior
número de análises, dada a falta de tradição de publicação dessa espécie de textos entre
nós. (VINCENZO, 1992, p. 35)
A publicação de Elza Vincenzo, em 1992, talvez seja o estudo mais pormenorizado
que a obra dramática de Hilda recebeu. Intitulado “O teatro de Hilda Hilst”, o segundo
capítulo de Um teatro da mulher consiste em um primeiro debruçamento crítico dos
dramas hilstianos, ainda manuscritos, depois da tímida recepção desde o fim da década
de 60 até meados de oitenta. Naquela época, a recepção crítica surgia concomitante às
estréias e montagens, voltadas para a análise do drama que ora se via adaptado para o
palco. Somente em 2000, pela editora Nankin, o Teatro Reunido de Hilda é publicado,
contemplando quatro peças: A empresa (1967);, O rato no muro (1967); O visitante
(1968); Auto da barca de Camiri (1968);. 34 Em 2008, é finalmente publicada a edição
do Teatro completo, com as outras peças e acompanhada por notas do organizador de
Alcir Pécora e pelo posfácio de Renata Palottini.

3
Há uma comunicação de Eder Rodrigues da Silva, cujo texto fora publicado nos anais do V Congresso
da Abrace, para quem o teatro de Hilda é estudado sob os pressupostos teóricos da performance: “A
literatura dramática de Hilst investe num terreno movediço que encontra melhor diálogo e interpretações
junto às concepções performáticas.” (RODRIGUES, 2008, p. 2 )
4
Clark, em 2002, publica um artigo sobre O Rato no Muro, na Revista Hispânica de Cultura y Literatura,
na University of Northern Colorado.
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3. Os nós sem densenlaces

A experiência de escrita de teatro foi motivada por uma necessidade maior de


comunicação de Hilda 5. Entretanto, o seu teatro permaneceu obscuro ao público, já que
o que se testemunhou naquela época foi, ironicamente, a ausência de compreensão
diante dos textos.
Uma vez apresentadas as lacunas críticas da literatura dramática hilstiana, faremos
adiante uma tentativa de entendimento destes vazios. Nesse sentido, podemos elencar
três possíveis pontos causadores do problema da escassez de estudos sobre os dramas de
Hilda Hilst. O primeiro deve-se à imediata falta de diálogo entre encenadores, público e
peças, devido ao aspecto diferenciado de escrita hilstiana. Elza (1992) e Rosenfeld
(1969) concordam que os textos diferenciados de Hilst são, em um distraído olhar,
difíceis. Essa dificuldade se dá pela distância da forma tradicional de escrita dramática,
elevando-se para uma forma original, livre e complexa. A poesia parece subsidiar a
estrutura do texto, que dificilmente se condiciona pelo clássico esquema de uma ação
que apresenta um conflito e seu desenlace. São peças com gradativos níveis de
obscuridade, que dispensam clímax e apresentam desfechos reticentes. Outro fator,
talvez consequente ao primeiro, é que as peças foram pouco encenadas, e conforme
adverte Vincenzo anteriormente, no caso de peças teatrais, as análises são concomitante
às montagens, dada a falta de costume em publicar textos teatrais no Brasil. Esses dois
fatores justificam a constatação de Elza Cunha de que, enquanto autora de teatro, Hilda
permaneceu na marginalidade. (VICENZO, 1992, p. 33). O terceiro fator, ainda em uma
linha conseqüente aos primeiros, deve-se à tardia publicação das peças. Apenas o texto
premiado O verdugo (1970) foi publicado em vida da autora. Esse último aspecto
impõe-se como um agravante geral para os estudos dramáticos, já que a análise de um

5
Em reportagem ao Correio da Manhã, em Dezembro de 1969, após ter recebido o Prêmio Anchieta,
Hilda declara que só poesia não era suficiente para nutrir a necessidade urgente e terrível de comunicação
e por isso teria procurado o teatro. Tal necessidade de comunicação pelo teatro fora reiterada por Moura
Fuentes em entrevista
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texto literário, seja de que natureza for, não é plausível apenas por uma mostragem ou
exposição. A atividade de análise crítica exige releituras incontáveis, que a encenação
reiterada ou a reprodução audiovisual não são capazes de oferecer, dado caráter único e
exclusivo de cada apresentação.
Para que esses textos sejam introduzidos em universos de estudo, faz-se, portanto,
imprescindível a circulação que independa da montagem cênica. A dificuldade de
leitura e aprofundamento teórico de textos dramáticos se dá pela pouca circulação de
peças em livro 6, especialmente os da produção contemporânea. Tal impasse não é tão
observável em publicações de romances e poemas que, com a ascensão burguesa desde
o século XVIII, atinge proporções massificadoras 7.

Tanto Rosenfeld (1970) quanto Alcir Pécora (2008) legam o reconhecimento do


valor artístico dos textos de Hilda aos montadores de teatro. Tal fato sugere que a
realização estética desses dramas emergiria somente nos palcos. Entretanto, um gênero
textual é antes um texto que possui lacunas, criações estéticas, um autor e um leitor.
Aristóteles (1997), em sua Poética, afirma que o texto dramático basta a si mesmo:

É mister, com efeito, arranjar a fábula de maneira tal que, mesmo sem
assistir, quem ouvir contar as ocorrências sinta arrepios e compaixão
em conseqüência dos fatos; é o que experimentaria quem ouvisse a
estória de Édipo. Obter esse efeito por meio do espetáculo é menos
artístico e requer apenas recursos cênicos. (ARISTÓTELES, 1997, p.
33)

E Jean-Pierre Ryngaert diz que

6
Conforme já notificado por Elza Cunha (1992)
7
A preocupação com a pesquisa literária no campo da dramaturgia é digna de investigação. Caso
ainda não haja, faz-se necessário um estudo comparativo e percentual de gêneros literários publicados,
para fundamentarmos este problema. A difusão literária, seja pelo mercado impresso, seja pelas
agilidades da internet, ou ainda por mecanismos independentes encontra-se em atual efervescência, apesar
dos restritos índices de seu acesso e leitura.
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um bom texto de teatro é um formidável potencial de representação.


Esse potencial existe independentemente da representação e antes dela
[...] Ler texto de teatro é uma operação que se basta a si mesma, fora
de qualquer representação efetiva, estando entendido que ela não se
realiza independente da construção de um palco imaginário e da
ativação de processos mentais como em qualquer prática de leitura
(...). (RYNGAERT, 1996, p. 25)

Apesar de participarem de épocas distintas e consequentemente experiências


históricas diferenciadas quanto ao texto teatral, os dois autores, um clássico e um
contemporâneo, concordam que o texto dramático nem sempre é texto em cena. No caso
do drama lírico, a presença da poesia eleva o pragmatismo de ações objetivas a cantos
subjetivos. As rubricas, as marcas de cena e os diálogos cedem lugar à criação pela
linguagem verbal. Assim, a relevância artística do teatro de Hilda Hilst é passível de ser
observada pela leitura crítica de seu texto, com adaptação ou não aos palcos. Porém,
tanto a ausência de montagens quanto a inexistente publicação dos textos obnubilaram
por décadas as motivações de estudo da dramaturga.

Considerações finais

A categoria desconhecida começa a enxergar suas sombras, depois de um silêncio


deslocado e injusto que a literatura dramática de Hilda recebeu. Uma voz cênica, lírica e
complexa, condolente e ávida com a existência do outro, talvez fechasse um ciclo de
meras latências para alcançar a intensidade extrema, atravessando tablado, cortina, para
finalmente chegar ao demasiado humano e por isso poético.
O problema da pouca circulação impressa dos textos dramáticos e a rara encenação
das peças de fato freia os olhares analíticos e impossibilita a simples apreciação leitora.
No caso da Hilda Hilst, tal fator pode ter sido adicionado a alguma indisposta
comunicação diante da novidade, que se atualiza como um contratempo sintomático,
ritualizado pelas grandes obras artísticas.
A publicação do Teatro completo representa um passo muito importante para a
difusão e recepção crítica dessa obra. As motivações desse trabalho de pesquisa, por
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exemplo, apresenta-se como fruto direto da recepção que a dramaturga Hilda Hilst
começa a reunir.

Referências

ARISTÓTELES, HORÁRIO E LONGINO. Poética. Trad. BRUNA, Jaime. São Paulo:


Cultrix, 1997.
PALLOTTINI, Renata. Do teatro In: HILST, Hilda. Teatro completo. São Paulo: Globo,
2008.
PÉCORA, Alcir. Nota do Organizador In: HILST, Hilda. Teatro completo. São Paulo:
Globo, 2008.
ROSENFELD, Anatol. O Teatro Brasileiro Atual In: ___________ Prismas do teatro. São
Paulo: Perspectiva, 2000.
ROSENFELD, Anatol. Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga. In: HILST, Hilda. Fluxo –
floema. São Paulo: Perspectiva, 1970.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro trad. NEVES, Paulo. São
Paulo: Martins Fontes,1996.
SILVA, Eder Rodrigues da. O teatro performático de Hilda Hilst. Disponível em
<http://www.portalabrace.org/vcongresso/textos/dramaturgia/Eder%20Rodrigues%20da%20Sil
va%20-%20O%20teatro%20performatico%20de%20Hilda%20Hilst.pdf> Acesso em 20 de mar
de 2010.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da Poética. Trad. GALEÃO, Celeste Aída.
RJ: Edições Tempo Brasileiro, 1997.
VINCENZO, Elza Cunha de. O teatro de Hilda Hilst. In: __________. Um teatro da mulher.
São Paulo: Perspectiva, 1992.
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LEITURA LITERÁRIA NO ENSINO MÉDIO: UMA EXPERIÊNCIA DE


FORMAÇÃO DE LEITORES A PARTIR DE UM TRABALHO COM CONTOS

Daiane da Silva Lourenço (PG - UEM)

Introdução

A preocupação crescente em relação ao ensino de literatura brasileira nas escolas


regulares tem resultado em diversas pesquisas que enfatizam a importância de suscitar
nos alunos o interesse por textos literários e de discutir a respeito das obras lidas. Este
artigo surge desta preocupação e de um estudo realizado durante o estágio
supervisionado de Língua Portuguesa, no qual procuramos perceber a opinião e
interesse dos alunos em obras literárias e propusemos aulas de interpretação 1 de contos
do escritor Murilo Rubião.
A periodização da literatura ainda é constante nas escolas, visto que há alguns
motivos que apontam para este caminho, como os livros didáticos utilizados e o
vestibular. Em contrapartida, o desinteresse por textos literários tem crescido entre os
alunos, que buscam outras formas de leitura (revistas, gibis, best-sellers, etc). O estudo
de caso que realizamos em um primeiro ano do Ensino Médio de uma escola pública
mostrou que o fato de os alunos se recusarem a ler obras literárias resulta de sua
canonização, ou seja, são vistas como obras inacessíveis aos iniciantes na leitura. Os
resultados obtidos demonstraram que a dificuldade em compreender os textos que a
escola indica é o principal obstáculo encontrado pelos alunos. Como pesquisadores, em
regência na turma, o trabalho de leitura e interpretação que realizamos constituiu-se de
uma retomada das categorias da narrativa e a importância de cada uma na obra e a
diferenciação entre uma leitura superficial, leitura como análise e leitura como
interpretação.
Apesar de haver a ideia de que literatura não se ensina, os resultados apontaram para
uma necessidade de se “ensinar” os alunos a lerem literatura, tendo o professor o papel

1
Interpretação é vista aqui como o último nível alcançado pelo leitor de um texto, após passar
pela leitura superficial, a associação com a sua realidade e a análise (FRANCO JUNIOR, 1996). Esse
nível requer um posicionamento crítico do leitor sobre o texto lido.
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de mediador entre o texto literário e os alunos, estabelecendo uma ponte entre eles. As
observações de aula, período de regência e dados coletados ocorreram no ano de 2009,
em uma turma de primeiro ano do Ensino Médio de Campo Mourão. As atividades de
interpretação ocorreram duram dez aulas, com trinta e dois alunos.

1. O ensino de literatura no Ensino Médio e a tensão entre professores e


adolescentes

As aulas de Língua Portuguesa nas escolas têm focado o ensino gramatical, a leitura
e produção de textos, quando existe tal prática, e outros pontos da língua considerados
significativos, e renegado a literatura a simples periodização presente no livro didático,
a fim de que os alunos conheçam características das escolas literárias, seus principais
escritores e o título ou fragmentos de suas principais obras. Tal posicionamento faz com
que os textos literários sejam desvalorizados e considerados sem importância para a
formação dos alunos. Diante das situações descritas, Cosson (2006, p. 23) afirma que
estamos adiante da falência do ensino da literatura, pois “a literatura não está sendo
ensinada para garantir a função essencial de construir e reconstruir a palavra que nos
humaniza”.
As observações de aula realizadas em um primeiro ano do Ensino Médio de uma
escola pública nos permitiram constatar que não há o trabalho com textos literários,
apesar de os alunos terem contato com eles. Ocorre que são direcionados a observar
características dos textos ou localizar informações precisas, sem que o todo do texto seja
abordado. O trabalho do professor segue o livro didático, que oferece, muitas vezes,
apenas fragmentos das obras. A leitura literária é vista como tarefa de casa, ou seja,
momento de entretenimento que deve ocorrer fora da sala de aula.
Uma prática com contos observada em sala nos instigou a tomá-los como foco de
nossa pesquisa. Os contos, ricos em conteúdo por aproximarem-se muito de nossa
realidade cotidiana, foram lidos como pretexto para apontar características desse gênero
textual, contrapondo-o com a crônica, e ocasionar a produção de novos contos. A falta
de uma preocupação com a literariedade do texto, o não questionamento do que estava
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sendo apresentado na narrativa chamou-nos a atenção para a forma como a literatura


tem sido explorada nas aulas de Língua Portuguesa.
O desinteresse dos alunos adolescentes pelos textos literários apontados como
leituras importantes e, muitas vezes, obrigatórias pela escola tem aumentado cada vez
mais, devido ao crescimento dos meios de comunicação, principalmente a Internet e a
televisão, e por causa do acesso cada vez mais facilitado a outras formas de leitura,
como gibis, revistas e obras consideradas não-canônicas.
A tensão entre o que é considerado leitura interessante pelos professores e pelos
adolescentes é constante, visto que os textos mais procurados pelos leitores adolescentes
são deixados “à revelia da escola” (MAFRA, 2003). Segundo Mafra (2003, p.3), ao se
usar o termo literatura, tende-se a associá-lo, imediata e exatamente, às obras que
marcaram, os chamados clássicos. Enquanto isso, os jovens procuram outros tipos de
leitura, como a literatura de massa, e a literatura mais elaborada lhes é cada vez mais
estranha. Isso ocorre, em nosso ponto de vista, pelo fato de não entenderem os textos
literários indicados pela escola, pois uma mediação do professor para a sua
interpretação mudaria a visão de literatura dos adolescentes pesquisados: uma estrutura,
um gênero com características delimitadas (como o conto), uma forma de aprender a ler
e escrever corretamente, devido à linguagem elaborada.

2. A literatura e a formação do leitor

A literatura não tem seu lugar na escola, é parte da disciplina de Língua Portuguesa,
sendo trabalhada pouco ou muito de acordo com o livro didático ou a vontade do
professor. Cosson (2006), ao tratar da literatura na escola, afirma que é considerada por
muitos um saber desnecessário. Os fatores que ocasionam tal posicionamento das
pessoas decorreriam do fato de no ensino fundamental a literatura ser relegada a simples
leitura e no ensino médio ser transformada em historicidade. Além disso, aparece pouco
nas aulas e a biblioteca é, muitas vezes, considerada um depósito de livros.
Para Cosson (2006), as pessoas que não percebem o valor do texto literário,
acreditam que ler é apenas uma atividade de prazer que possibilita apenas o reforço das
habilidades linguísticas. No entanto, o texto literário reserva ao leitor mais do que um
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momento de leitura prazerosa, pois a literatura é, utilizando uma expressão de Candido


(1972), humanizadora.
A função humanizadora da literatura é apresentada por Candido (1972) a fim de
mostrar as pessoas quanto um texto literário pode contribuir em suas vidas. Isso porque,
permite ao homem se expressar, o escritor, e atua na própria formação do homem, nesse
caso o leitor. A leitura de um texto nos influencia de uma maneira que não percebemos,
da mesma forma como somos influenciados pela mídia, a família, a escola. A influência
do texto literário ocorrerá de acordo com o nosso gosto pela leitura. Por isso, o
professor deve ensinar aos alunos como ler textos literários, para que adquiram o gosto
pela sua leitura, e a leitura não seja vista apenas como um momento prazeroso. A leitura
literária deve ser ensinada na escola como forma de conhecimento, de uma maneira que
os alunos aprendam a explorar os sentidos do texto.
Ao ler uma obra literária, o leitor aprende e reflete sobre a realidade por meio do
mundo presente na obra. Para Candido (1972), é por ser tão complexa que a literatura é,
muitas vezes, abandonada pelos educadores. No entanto, essa função de humanizar é
muito significativa para a formação do aluno e não pode ser deixada de lado, pois

É por possuir essa função maior de tornar o mundo compreensível


transformando sua materialidade em palavras de cores, odores,
sabores e formas intensamente humanas que a literatura tem e precisa
manter um lugar especial nas escolas. Todavia, para que a literatura
cumpra seu papel humanizador, precisamos mudar os rumos da sua
escolarização (...) (COSSON, 2006).

O ensino da literatura nas escolas é muito relevante para a formação do aluno, ao


escolhermos o gênero literário conto para ser trabalhado em sala de aula e como parte
de nossa pesquisa, pensamos que poderia ser trabalhado na íntegra e discutido com os
alunos durante a aula. Ao aprender a ler e interpretar um conto o aluno está aprendendo
a explorar o mundo e a realidade ao seu redor, amplificando sua visão de mundo.

3. A preocupação com a situação da sociedade moderna nos contos de Murilo


Rubião
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Murilo Rubião, escritor mineiro do século XX, dedicou-se inteiramente a contos


fantásticos. Em suas narrativas, apresenta fatos insólitos que causam dúvida no leitor. A
realidade que conhecemos é transfigurada nos contos por elementos insólitos, ou seja,
que não podem ser explicados pelas normas do mundo real. O resultado é a presença
mútua da realidade e do sobrenatural, suscitando a hesitação, a dúvida no leitor, o
questionamento da verossimilhança.
A mistura do real e do irreal tem a intenção de fazer o leitor ultrapassar a leitura
ingênua do texto. O fantástico tem uma função nos contos, “o elemento extraordinário
não se limita apenas a uma experiência de leitura prazerosa para efeitos de distração do
leitor, mas assume uma função eminentemente crítica” (SCHWARTZ, 1982). É um
artifício para tratar de problemas da nossa realidade. Segundo Hohlfeldt (1981, p. 104),
o sobrenatural cria uma sensação de ‘estranhamento’ por meio do exagero das situações
e faz com que o leitor descubra aquilo que, embora à frente de seus olhos, até então não
reparara. O sobrenatural que irrompe nos enredos, portanto, não é mero recurso
narrativo. Os contos fantásticos do escritor Murilo Rubião mostram os fatos
sobrenaturais como forma de instigar o leitor a ir além da linguagem denotativa. Como
afirma Candido (1985), “nada mais importante para chamar a atenção sobre uma
verdade do que exagerá-la”.
A narrativa rubiana, partindo de problemas de nosso cotidiano, possibilita ao leitor
refletir sobre o meio em que vive “na preocupação de mostrar realidades subentendidas,
que não se explicitam automaticamente” (GOULART, 1995, p. 51). Ao analisar as
narrativas do escritor, Schwartz (1981) considera o texto do escritor ideológico, com
uma linguagem que adquire funções que se projetam além do texto ficcional abordando
três temas principais: o cristão, o social e o existencial. Os temas encontrados nos
contos rubianos os tornam universais e levam o leitor a refletir sobre questões sociais
para as quais, talvez, ainda não havia olhado com seriedade, propondo uma visão mais
profunda do real.
Goulart (1995), ao abordar a função do fantástico, o considera um mecanismo que
sacode o leitor, questionando a validade de conceitos tidos e havidos como definitivos.
A realidade conhecida na verdade é uma máscara social e o sobrenatural possibilita a
reflexão sobre uma situação de vida que tomamos como normal durante um longo
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período, sem questionamentos. Por essa razão, Schwartz (1988) afirma que o texto
fantástico rubiano mascara a mais realista das literaturas. O mundo presente nos contos,
no entanto, não é considerado absurdo pela intersecção de realidades incompatíveis ou
inverossímeis, mas é absurdo pela própria condição humana. Os contos rubianos
abordam as dúvidas existenciais do homem contemporâneo que são, na verdade, muito
reais, apesar dos fatos estranhos que ocorrem.

4. Leitura e interpretação de contos rubianos em um primeiro ano do Ensino


Médio
A partir da pesquisa que realizamos previamente sobre o gênero fantástico, os contos
de Murilo Rubião e a importância do trabalho com a literatura em sala de aula, no
sentido de sua importância para a formação do aluno, escolhemos alguns contos e
propusemos sua leitura e interpretação em uma turma de primeiro ano do Ensino Médio,
composta por trinta e dois alunos, de uma escola estadual de Campo Mourão. A Cidade,
Teleco, o coelhinho e Os Dragões foram selecionados a fim de perceber como seriam
lidos e recebidos pelos alunos antes e após a mediação do professor, neste caso o
pesquisador.
Adotando a teoria da estética da recepção como norteadora de nosso trabalho em
sala, realizamos a leitura do conto A Cidade com os alunos. De acordo com essa teoria,
o leitor nunca é passivo diante de um texto, pois a obra só fica completa após sua
leitura. Para Lima (1979), o efeito de um texto depende da expectativa do leitor, ou seja,
seus valores e experiências de vida. Sendo assim, não é possível afirmar a existência de
uma interpretação correta, mas sim a possibilidade de várias interpretações.
A primeira leitura de A Cidade foi seguida de um pequeno questionário:
1. Você considera o conto interessante? Por quê?
2. Acredita que o conto pode contribuir para sua formação? Explique.
3. A história traz algo importante para discutir em sala de aula?
4. A leitura de textos literários, como os contos, é importante?
O questionário apresentado nos permitiu perceber a recepção do texto pelos alunos,
na forma escrita, antes da mediação do professor. Em A Cidade, a personagem principal
é Cariba, um passageiro de um trem que parou “indefinidamente na antepenúltima
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estação”. Ao questionar um funcionário sobre o ocorrido, este apenas limita-se a apontar


um morro, para o qual Cariba seguiu e avistou um povoado. Dirigindo-se até o local, foi
preso por questionar os moradores sobre a cidade, pois ele era o único ali que fazia
perguntas.
Durante a aula, vinte e nove alunos estavam presentes, apenas quatro disseram não se
interessar pelo texto e o fato que ocasionou tal reação foi o estranhamento dos fatos
sobrenaturais presentes no conto. Como na seguinte resposta as perguntas feitas: “Não.
Porque é um conto sem sentido, porque começa falar de uma coisa, não pode pergunta
nada porque pode ser preso. Sim. Sim, porque é uma cidade com regras. É importante
porque sabemos diferenciar os textos 2”.
O aluno considerou o conto desinteressante e sem sentido. Isso pelo fato de não ter
conseguido entender a narrativa. No entanto, afirma que a narrativa traz algo relevante
para discutir em sala de aula. Em sua última resposta, percebemos que na leitura de
textos literários o mais importante para ele é a forma do texto, o fato de saber
diferenciar um gênero do outro, como a crônica e o conto.
Os outros alunos, ao contrário, se interessam pelos fatos sobrenaturais, o estranho do
texto lhes chamou a atenção, no entanto, julgaram o texto como distante de sua
realidade. E muitos afirmaram a importância da leitura de textos literários, mas não para
suscitar discussões em sala de aula, muitas vezes para melhorar a leitura e escrita, ou
conhecer a estrutura do texto, entendida por eles como gênero:

“Sim, porque Cariba foi preso só porque perguntou os lugares da


cidade. É importante porque faz com que a gente possa entender mais
o que o texto quer dizer”.
“Sim, pois por causa da curiosidade de um homem ele acabou sendo
preso e visto como um bandido. Sim, pois conta a história de uma
cidade desconhecida. Sim, o tratamento rígido das pessoas. Sim, pois
é uma maneira de a gente aprender melhor as palavras”.
“Interessante, porque realmente acontece quando nós vamos viajar.
Não ficamos sem perguntar sobre a cidade ou estado, enfim. Só que
não vamos presos. Sim, com essa formação nós aprendemos um pouco
sobre o que realmente acontece. Se fala demais, só que não ocorre o

2
Para que fique clara a opinião do aluno em relação ao texto, procuramos manter a forma como a
resposta foi escrita, sem alterações ou correções.
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caso de ir para a prisão. Sim, todos os tipos de textos são


importantes”.
“Sim. Porque nesta cidade as pessoas não podem perguntar e nem dá
opinião. Sim. Sim porque é uma cidade “estranha”, muito diferente da
nossa. Sim, porque aprendemos a comparar um conto com uma
crônica”.

Diante disso, percebemos que há o interesse dos alunos por textos literários, no
entanto, como não conseguem interpretá-los, os consideram distantes do mundo real. O
conto A Cidade, por exemplo, traz a prisão de Cariba por fazer perguntas como forma
de chamar a atenção do leitor para a opressão ainda existente na sociedade. Para que os
alunos consigam estabelecer uma ligação entre o texto e a sua vida real, o professor
deve ser o mediador, ajudando o aluno a estabelecer a relação entre o texto literário e a
realidade.
Este conto foi lido novamente e discutido com os alunos que, então, puderam
perceber ou confirmar que a intenção do conto é fazer uma crítica.
O conto Teleco, o coelhinho foi lido e discutido com os alunos, considerando o que
entenderam na primeira leitura, a relação com o cotidiano dos alunos, os elementos da
narrativa e, por fim, pedindo o posicionamento crítico dos alunos. Neste conto, o coelho
Teleco, personagem principal, pode ser comparados aos alunos, pois na fase da
adolescência há uma grande preocupação com a aparência, como ocorre com o coelho.
A fim de percebermos se o trabalho com esses dois contos havia modificado de
alguma maneira a visão de leitura e interpretação de textos literários dos alunos,
realizamos a leitura do conto Os Dragões com a turma e requisitamos que os alunos
fizessem sua interpretação a partir de uma atividade direcionada com perguntas sobre a
leitura superficial, a relação com a realidade, a análise da estrutura narrativa e a
interpretação profunda o texto.
Nessa fase do trabalho, a recepção dos contos fantásticos já havia mudado e não
havia o estranhamento por parte dos leitores. Os alunos também já haviam
compreendido que não existe um modelo de leitor, que um texto pode ter diversos
sentidos e que suas experiências de vida são importantes na leitura, pois os textos são
“enunciados com vazios, que exigem do leitor o seu preenchimento” (LIMA, 1979).
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A atividade proposta demonstrou uma relação diferente entre os alunos e o texto


literário. Ao buscar associar o texto ao seu cotidiano, os estudantes falaram sobre sua
fase como adolescentes. Os que falaram abertamente sobre o assunto revelaram que
sentiram muitas mudanças físicas e psicológicas na passagem da infância para a
adolescência, a busca por grupos com que se identificassem, a vontade de sair com os
amigos, e haviam se identificado com os dragões do conto, pois agiam de forma
semelhante. Tais considerações foram importantes para que os alunos percebessem que
o texto literário não está distante da nossa realidade e discute fatos de nossa vida. A
maioria percebeu isso e mostrou que assim como João e Odorico, personagens
principais do conto, mudaram muito enquanto adolescentes. Na narrativa, João e
Odorico são dragões, mas foi um artifício utilizado pelo escritor para, na verdade,
referir-se ao que ocorre com o ser humano na vida real.
A análise, que prevê que o leitor entenda a organização da narrativa, incluindo
narrador, espaço, personagem, tempo e enredo, não foi identificado e entendido por
todos. Isso nos fez perceber que esses elementos da narrativa não fazem parte das aulas
de literatura e que precisariam ser mais trabalhados, pois a importância da escolha do
narrador, por exemplo, e suas implicações não são percebidas.
A tentativa de interpretação mais profunda do conto mostrou que alguns alunos
conseguiram se desprender da narrativa em si e voltar-se para seu mundo e suas
experiências de vida. Ao pensar sobre a relação existente entre os dragões do conto e as
pessoas e comportamentos da sociedade, as interpretações foram diversas. Dentre elas, a
escravidão, um momento histórico de nosso país, foi relembrada e comparada à atitude
da sociedade atual, em que as pessoas tentam se destacar se aproveitando do trabalho de
outras; o julgamento das pessoas pela aparência; as pessoas que são consideradas
diferentes por terem alguma deficiência física ou mental; o descaso com as pessoas
pobres; os analfabetos excluídos socialmente; o preconceito em suas diversas formas,
entre outros.
O trabalho em sala de aula com a interpretação de contos fantásticos possibilitou aos
alunos uma nova visão do texto literário e um maior interesse, visto que seu
entendimento do texto aumentou e sua importância social foi compreendida. Ainda
constatamos que a literatura realmente pode ser ensinada na escola, por meio da
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mediação do professor, e, além de estar presente no currículo escolar, pode contribuir


para a formação do aluno.

Conclusões

A literatura é composta por obras complexas, que propõem reflexões acerca da vida,
do mundo, de questões sociais. A literatura fantástica, por sua vez, por meio do
emprego do sobrenatural, chama a atenção do leitor para fatos reais, como ocorre nos
contos do escritor Murilo Rubião.
A pesquisa apresentada nos mostra que o trabalho com o texto literário é importante
para que os alunos aprendam a explorar o texto, a interpretá-lo. Assim, este trabalhou
apresentou uma proposta de como é possível explorar a literatura em sala de aula e
apontou que resultados positivos foram conseguidos, visto que houve a participação dos
alunos e suas tentativas de interpretar os contos.
Os dados coletados, os quais não foram todos inseridos neste trabalho, além de
contribuírem para nos mostrar que é possível suscitar nos alunos o interesse por textos
literários, nos mostrou também a visão que têm de literatura. O primeiro questionário
aplicado demonstrou que, em geral, para os alunos a importância da literatura na escola
decorre do fato de estar ligada ao aprender a ler e aprender a escrever “corretamente”.
Provavelmente ao dizerem isso se lembram da literatura clássica, considerada modelo
para os falantes da Língua Portuguesa. Diante disso, os textos literários servem como
modelo para dizer ao aluno o que é certo ou errado. Outros alunos afirmaram que a
leitura de contos é importante para que consigam diferenciar os textos, como contos e
crônicas. Isso porque haviam estudado, com a professora regente da turma, a diferença
entre contos e crônicas, sem explorar os textos em si, apenas o gênero. A impressão que
ficou nos alunos é de que o conto serve para saber a diferença entre esse e a crônica.
A mesma pesquisa ainda possibilitou que percebêssemos a dificuldade dos alunos em
estabelecer uma relação entre o texto e sua realidade, como se o texto fosse isolado da
sociedade, não tivesse relação. No entanto, relacionar a literatura com a vida do aluno e
da sociedade é fundamental para que ele perceba qual é a função da literatura e porque
estudá-la.
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Ainda há muito a ser estudado e pesquisado para mudar a visão que a sociedade
possui sobre a literatura, por isso acreditamos que a pesquisa apresentada possa trazer
alguma contribuição nesta caminhada. A maior luta, pelo que percebemos, é fazer com
que os alunos e, por fim, a sociedade entendam as contribuições que o texto literário
pode trazer para as pessoas em diversos aspectos: psicológico, social, cultural,
contribuições para a formação do ser humano.

REFERÊNCIAS

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Paulo, v. 24, n. 9, p. 803-809, set. 1972.

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Paulo: Ed. Nacional, 1985.

COSSON, Rildo. Letramento literário na escola. São Paulo: Contexto, 2006.

FRANCO JUNIOR, Arnaldo. Níveis de leitura: teoria e prática. Maringá:


Apontamentos, 1996.
GOULART, Audemaro Taranto. O conto fantástico de Murilo Rubião. Belo Horizonte,
MG: Lê, 1995.
HOHLFELDT, Antonio Carlos. O conto alegórico. Conto brasileiro contemporâneo.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981. p. 102-115.
LIMA, Luiz Costa. Prefácio. In: JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor:
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MAFRA, Núbio Delanne Ferraz. Leituras à revelia da escola. Londrina: Eduel, 2003.
SCHWARTZ, Jorge. (Org.). Murilo Rubião. São Paulo: Abril Educação, 1982.
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A RECEPÇÃO CRÍTICA DA OBRA A AMÉRICA LATINA: MALES DE


ORIGEM, DE MANOEL BOMFIM, AO LONGO DO SÉCULO XX

Davi Siqueira Santos (PG-UNESP/FAPESP)


bastantear@yahoo.com.br

Manoel Bomfim (1868-1932), ainda nos primeiros anos do século XX, reúne e
divulga seus estudos sobre a formação dos países latino-americanos e suas relações com
a Europa, antigo centro promotor e divulgador do conhecimento humano, bem como
frente aos Estados Unidos, mais novo espaço ativador de êxitos econômicos na esfera
ocidental. Em sua primeira obra de investigação social, A América Latina: males de
origem (1905), muitos assuntos são abordados: exploração social em termos
metafóricos de “parasitismo social”; raça e miscigenação; estado e democracia;
educação; entre outros. Diante desse amplo leque de reflexões, muitos foram os críticos
e comentadores da obra de Bomfim. O presente texto busca mapear algumas das leituras
mais significativas visando, em última análise, a uma organização geral de sua recepção
crítica.
O primeiro grande leitor dos primeiros estudos de Manoel Bomfim foi seu
conterrâneo Silvio Romero (1851-1914). Este escreve um conjunto de 25 artigos,
publicando-os no semanário Os Annaes, de Domingos Olímpio, sob o título geral de
Uma suposta teoria nova da história latino-americana, com o objetivo de refutar os
posicionamentos críticos de Bomfim. No ano seguinte, Romero reúne todos esses
escritos em um só volume e está pronta sua A América Latina (Analyse do livro de igual
titulo do Dr. M. BOMFIM) (1906), uma obra resposta, mais volumosa que a de
Bomfim, criticando em vários aspectos a perspectiva analítica adotada pelo jovem e
promissor intelectual.
Ao longo da leitura da obra de Romero, tem-se a impressão de se estar em uma arena
de gladiadores, em meio a um combate sangrento, em que o grande vitorioso será o
possuidor da coroa disputada dentro do campo de poder intelectual. No decorrer de suas
argumentações, Romero procura, a cada momento, demonstrar seu alto nível de
erudição, sua capacidade de organizar e correlacionar informações enquanto expõe seu
vasto conhecimento teórico, permeado por citações de pensadores europeus e norte-
americanos. Deseja, em muitos instantes, por meio de construções textuais que chamam
diretamente a pessoa de Bomfim para a luta, questionar o médico sergipano no que
concerne à autenticidade de suas teorias. Provoca o adversário chamando-o de
‘professorzinho’, de ‘mestiço ibero-americano’, de ‘trapalhão’, de membro de um
‘bando de malfeitores do bom senso e bom gosto’, de ‘manoelzinho que nos surge com
essas novidades de leituras mal digeridas’, entre outras formas de destrato.
Sua crítica é pautada pela emoção, pelo Silvio ‘turbilhão’ tão bem percebido por
Antonio Candido, quando pensando no movimento crítico característico de sua
escritura, que, ora assumia um caráter duro de ataque dilacerante, ora recuava
arrependido e desfazendo toda a antiga posição. Essa habitual oscilação imprimiu um
ritmo forte e, ao mesmo tempo, inconstante nos posicionamentos de Romero, capaz de
fazê-lo arrastar consigo um conjunto de ideias e paixões sem ponderá-las devidamente.
Candido, observando essa agitação turbilhonar, entende a razão do não espanto, entre os
homens de letras contemporâneos a Silvio, frente a um crítico contraditório, que bem
cedo se revelou: “impaciente, injusto, mais apto para a generalização do que para a
análise” (CANDIDO, 1978, p IX).
No entanto, após essa polêmica, mas sem dúvida importante recepção realizada por
Romero, a obra de Bomfim se oculta no cipoal da produção crítica de uma
intelectualidade nacional em expansão. O fato de o autor ter permanecido por mais de
duas décadas sem produzir um trabalho de peso no campo do ensaísmo e da
historiografia, uma vez que a trilogia: O Brasil na América (1929), O Brasil na História
(1930) e O Brasil Nação (1931) só virá a público no findar da década de 20, início de
30, pode ser um fator a mais que explique o possível arrefecimento das leituras deste
pensador social em meio à produção intelectual das primeiras décadas do século.
Porém, o ano de 1935, marca uma retomada no interesse pelas obras de Bomfim. Seu
maior divulgador dessa vez será o jornalista Carlos Maul, que organizará uma coletânea
intitulada O Brasil, contendo os excertos mais nacionalistas resultantes da pena de
Bomfim. Para essa organização, Maul lança mão de fragmentos presentes na trilogia
mencionada acima, organizando-os de maneira tão comprometedora que chega a levar
alguns analistas dessa antologia, como Alfredo Bosi, em sua História concisa da
literatura brasileira, a considerarem Bomfim um pensador fascista, situando-o ao lado
de um Oliveira Vianna e de um Alberto Torres 1.
A nosso ver, na medida em que Maul não seleciona nenhum texto pertencente à
primeira obra de Bomfim, A América Latina, para compor sua coletânea, esta deixa de
fornecer maior repercussão à obra que ora analisamos, servindo apenas para divulgação
do posicionamento crítico do autor em sua última fase, quando já se concentra mais em
um estudo focado na perspectiva brasileira, se afastando de um olhar mais amplo, capaz
de abranger toda a América Latina.
Em 1938, é preparada uma segunda edição de A América Latina, prefaciada por
Azevedo Amaral, que acredita viver um momento histórico muito apropriado para o
entendimento das discussões levantadas por Bomfim no início do século. No que se
refere ao público leitor e ao ato de ler, objeto de nossas preocupações neste estudo,
Amaral dirá:

Ao nosso público inteligente e culto, aos que entre nós sabem ler
livros deste calibre, não preciso recomendar a obra de Manoel
Bomfim. Os que já a conhecem de outras edições vão relê-la, certos de
que há livros em que cada nova leitura nos traz mais alguns
ensinamentos. Aos mais moços, a que porventura A América Latina
seja apenas conhecida pela sua fama, esta reedição é uma dádiva que
saberão devidamente apreciar. (AMARAL, 2005, p. 33).

A década de 40, dentro de uma análise da repercussão crítica da obra de Bomfim,


pode ser considerada como sua “Idade Média”, no que esta teve de esmorecimento do
conhecimento artístico-científico, pois, ao longo desse decênio, a divulgação do
pensamento do autor foi mínima, não se sabendo muito sobre uma significativa
repercussão de sua obra.
O “renascimento” desta se fará em meados de 50, quando Dante Moreira Leite, em
tese de doutorado defendida em 1954, e reescrita apenas em 1968 para publicação,
reservará parte de um capítulo de seu livro a Bomfim. Lançando-se na busca pelas

1
Oliveira Viana (1883-1951) foi jurista, professor, etnólogo, historiador e sociólogo. Seu pensamento
sociológico serviu de referencial teórico para Getúlio Vargas na elaboração de uma proposta
modernizadora do Estado e da sociedade brasileira, ao longo da década de 30 do século XX.
Alberto Torres (1865-1917) foi político, jornalista e bacharel em direito. Refutou as teses socialistas
como incompatíveis à realidade nacional. Procurou conhecer e entender objetivamente a sociedade
brasileira com o intuito de propor mudanças pragmáticas. Acreditava que o país mudaria de sorte se
apresentasse uma unidade nacional dominada por um Estado forte.
razões que explicassem a parca divulgação da obra do sergipano, até seu presente
momento, Moreira Leite as encontrará acreditando no fato de Bomfim “estar adiantado
com relação aos intelectuais de seu tempo, ou no fato de ser capaz de propor uma
perspectiva para a qual estes intelectuais não estavam preparados”. (LEITE, 1976, p.
251).
Antonio Candido, por meio de estudo redigido no ano de 1956, mas somente
publicado em 59, na Enciclopédia Delta-Larousse 2, elabora sua primeira contribuição à
obra de Manoel Bomfim, ajudando a dissipar, ainda que levemente, as brumas ao redor
do incompreendido autor. Em seu texto, Candido revela um ponto de vista ainda em
processo, visto que será repensado anos depois. Por essa razão, ao longo das décadas de
70 a 90, Antonio Candido se volta, ao menos por três vezes, às obras de Manoel
3
Bomfim. Primeiramente em “Literatura e Subdesenvolvimento” onde situa Bomfim
em um período de ‘Consciência Amena de Atraso’, na medida em que este professava
uma ‘ideologia ilustrada’, na qual a instrução traria automaticamente todas as melhorias
capazes de elevar o homem e dinamizar o progresso da sociedade.
Em “Os brasileiros e nossa América”, ensaio em que Candido procura traçar um
painel de intelectuais brasileiros no período que se estende do final do Império ao
amadurecimento da República (1880-1920), Bomfim é recebido como um contraponto
em relação aos demais pensadores nacionais:

Pensemos agora naqueles que enfrentaram o problema do


“americanismo” sem paixão nacionalista, de um ângulo que procura
superar a visão unilateral das elites e das versões convencionais. Foi o
caso raro de Manoel Bonfim (sic), que publicou em 1905 A América
Latina, livro duro para com os preconceitos do tempo, que ficou
esquecido e nunca teve o merecido apreço (CANDIDO, 1993, p. 136-
137).

2
Enciclopédia Delta-Larousse (Rio de Janeiro, Delta, p. 2216-2232; 2. ed. 1964, tomo IV, p. 2107-2123.
Esse texto recebeu nova publicação em sua forma integral passado meio século de sua produção na
Revista de Sociologia da USP: Tempo Social, v.18, n.1, 2006. Em nota ao artigo publicado, Candido
afirma ter cometido grave erro ao fazer uma avaliação deficiente da obra de Manoel Bomfim, “cuja
importância e verdadeiro significado só mais tarde compreendi” (CANDIDO, 2006, p. 272).
3
Publicado primeiramente no primeiro número da Revista Argumento, no ano de 1973, e somente em
1987, este ensaio histórico passa a compor o livro A educação pela noite. São Paulo: Ática, p.140-162.
No entanto, a contribuição de Candido mais destacada a Manoel Bomfim está no
artigo “Radicalismos” 4, onde investiga sucessivamente as ideias de Joaquim Nabuco,
Manoel Bomfim e Sérgio Buarque de Holanda. No que se refere a Bomfim, acredita que
este foi um radical permanente, analisando com dureza as bases da sociedade brasileira.
Quando preocupado em investigar a insuficiente recepção de sua obra pelos leitores
brasileiros dirá:

(...) como não tinha a personalidade fulgurante nem a escrita


admirável de um Nabuco, foi fácil deixá-lo em segundo plano. E deve
ter contribuído para isso o fato de haver sido contestado com
abundante (e falaciosa) veemência por Silvio Romero, cuja palavra
tinha força naquele tempo. O fato é que ficou na sombra até bem
pouco (...). (CANDIDO, 1995, p. 276).

Definido o quadro de atuações críticas de Antonio Candido, ao longo das sucessivas


décadas, sobre a obra de Manoel Bomfim, retornemos aos anos 60, pois nesse período
Vamireh Chacon formulou aquela que foi, talvez, a indagação mais repetida pelos
diversos estudiosos da obra do autor de A América Latina: “Por que não se fala neste
Manoel Bomfim?” A resposta de Chacon para o aludido silêncio se constrói medindo o
nível de periculosidade da obra e constatando que os assuntos trabalhados por Bomfim
não eram oportunos à elite pensante de seu momento.
A fonte desse perigo estava na denúncia, por parte de Bomfim, de uma história tida
como oficial quando, na realidade, nada mais era do que um ponto de vista assumido
por historiadores de tipo colonialista, preocupados apenas em subjugar e condenar ao
perpétuo atraso, nacionalidades sedentas por mudanças, como as latino-americanas.
Bomfim, segundo Chacon, escrevia tomado por um viés oposto ao oficial, em prol de
uma história infra-estrutural, subterrânea, popular e por isso, forte.
Após um novo período de relativo silêncio em relação ao pensamento de Manoel
Bomfim, período que coincide com o momento mais repressivo de ditadura militar, sua
obra tem uma curiosa retomada no ano de 1979. O sociólogo Aluízio Alves Filho
publica O pensamento político no Brasil: Manoel Bomfim um ensaísta esquecido,
enquanto, Flora Süssekind e Roberto Ventura divulgam um estudo em versão

4
Texto inicialmente para uma palestra de 1988, publicado em 1990 na revista Estudos Avançados, v. 4, n.
8, e recolhido em livro intitulado Vários Escritos, cuja 4ª ed., pela Editora Ouro sobre Azul, Rio de
Janeiro, é de 2004.
mimeografada intitulado “Uma teoria biológica da mais-valia?” que, posteriormente, em
1984, mais especificamente, assumirá maior visibilidade quando lançado como ensaio
de abertura para uma antologia de textos de Manoel Bomfim.
Esta nova antologia, com alguns excertos de Bomfim, é ideologicamente distinta da
publicada por Carlos Maul. O objetivo dos autores não é em momento algum alimentar
um Bomfim nacionalista, pelo contrário, procuram aproximá-lo mais à idéia do rebelde
e inconformado que ficou muito bem registrado no tom de seu discurso em A América
Latina, porém é bom lembrarmos que a antologia privilegia toda a obra, contudo realça
sempre o Bomfim mais contestador e inconformado.
Na medida em que os autores elaboram um estudo mais voltado para o discurso
metafórico presente nos textos de Bomfim, a análise da recepção de sua obra não
poderia escapar das questões postas pela linguagem, como podemos observar na citação
a seguir:

Dizer que Bomfim estava além da “bela metáfora” (Chacon), ou


adiantado com relação ao seu tempo (Moreira Leite), não nos parece
explicação suficiente para seu atual desconhecimento. Ambas as
razões dariam conta de uma possível não-repercussão quando da
publicação de suas obras. No caso de A América Latina, houve, ao
contrário, repercussão, suscitando até a elaboração do livro-resposta
de Silvio Romero. O alegado “adiantamento” levaria também a se
esperar uma futura recepção de seu texto, com o arrolamento deste na
ilustre galeria dos “precursores”, das “exceções”, o que não se
realizou tampouco. Se historicamente esta recepção ocorreu de forma
inversa às expectativas geradas pelas hipóteses de Chacon e Moreira
Leite, deve-se então procurar em outro lugar as razões de seu atual
mutismo. Acreditamos que este lugar deve ser escavado na metáfora,
terreno privilegiado no discurso de Bomfim. (SÜSSEKIND &
VENTURA, 1984, p.23-24)

No ano de publicação desta antologia, organizada pelos então jovens professores de


letras Süssekind e Ventura, o antropólogo Darcy Ribeiro 5 escreve um importante e
apaixonado texto em defesa de Manoel Bomfim. Nesta oportunidade Darcy, acreditando
caber à antropologia da civilização a tarefa de indagar como um povo surgiu e como
veio a ser o que ele é, e, percebendo que o pensamento de Bomfim se volta
intensamente a este fim, o eleva a categoria de “fundador da antropologia do Brasil e

5
Este ensaio intitulado “Manoel Bomfim antropólogo” foi primeiramente publicado na Revista do Brasil,
N.2, seguido de uma pequena seleção de trechos do autor. Somente em 1993, ele passa a ser um prefácio
da 3.ed. de A América Latina, publicada pela editora Topbook.
dos brasileiros” (RIBEIRO, 2005, p.20). Aproveita ainda a oportunidade de analisar a
obra de Bomfim para criticar a recepção inicial feita por Silvio Romero:

Por que esta obra extraordinária não serviu de cimento na construção


de nossas consciências nacionais? Por que, tendo em mãos todo
aquele cimento forte e tanta pedra de cantaria, nossos pensadores
ficaram catando cacos, escavando cáries, para exibir leiturinhas
européias? Nem se pode dizer que a obra de Manoel Bomfim não foi
vista. Pouco depois de publicada, ela foi objeto de todo um livro de
contestação do genioso Silvio Romero. Nesta polêmica Silvio desanca
Manoel Bomfim, procurando demonstrar que ele é um completo
idiota. Idiota era Silvio, coitado. Tão diligente no esforço de
compreender o Brasil, mas tão habitado pelos pensadores europeus em
moda que só sabia papagaiá-los. (RIBEIRO, 2005, P.14-15)

Do final dos anos 80 aos dias atuais, a obra de Bomfim tem passado por uma fase de
extrema difusão nos meios acadêmicos, haja vista o número de pesquisas realizadas nas
mais diferentes áreas do conhecimento, tornando-se objeto de estudo em geografia, com
a tese de doutorado de Terezinha Alves de Oliva (1999) “Pensamento Geográfico em
Manoel Bomfim”, em sociologia com “O Batismo da instrução: atraso, educação e
modernidade em Manoel Bomfim”, dissertação de mestrado de André Pereira Botelho
(1997), e em história “Manoel Bomfim (1868-1932) e O Brasil na história”, dissertação
de mestrado de Rebeca Gontijo (2001).
Estes são só alguns dos muitos trabalhos que o pensamento de Bomfim vem
inspirando. Além destes novos leitores de Bomfim, outros mais antigos, privilegiados
em nossa análise, continuaram, e continuam, por muito tempo a escrever e pensar sobre
as contribuições de Manoel Bomfim, como foi o caso do ilustre Roberto Ventura, como
é o caso de Flora Süssekind e Aluízio Alves Filho. Acreditamos que o não abandono
destes críticos em relação às discussões do sergipano seja um índice revelador do
quanto sua obra é perene e profunda.
Outro termômetro que nos ajuda a perceber que, contemporaneamente, passamos por
um período de intensas releituras e reflexões sobre os pensamentos de Bomfim, está nas
sucessivas reedições de suas obras. Em 1993, sua A América Latina recebeu uma
terceira edição pela Topbooks, e em 2005 foi impressa, pela mesma editora, uma edição
comemorativa do centenário da obra. Historicamente estas duas últimas edições foram
as que ocorreram mais próximas uma da outra, apenas 12 anos de diferença, o que é
uma grande mudança se pensarmos nos 55 anos que separam a 2ª (1938) da 3ª edição
(1993).
Nosso objetivo ao traçarmos essa linha do tempo tendo como objeto central a
recepção da obra A América Latina de Manoel Bomfim foi demonstrar de forma sucinta
como oscilaram as relações entre leitor e obra ao longo do tempo. É claro que não
pretendemos dar por encerrada as observações das repercussões aqui esboçadas, até
mesmo porque como o título desta monografia já revela, procuramos apenas nos pautar
em alguns pontos altos da recepção desta obra tão importante. Estamos cientes que
outros grandes intérpretes de Bomfim ficaram de fora, como, por exemplo, Renato Ortiz
com sua análise da identidade nacional e miscigenação social, Ronaldo Conde Aguiar e
sua monumental biografia sobre Manoel Bomfim, José Carlos Reis que vê Bomfim
como um pensador que “escova a história do Brasil a contrapelo”, além de muitos
outros que produziram ou estão produzindo, mas ainda não temos a leitura de seus
trabalhos.
Para concluirmos, trazemos novamente à baila a tão reiterada pergunta formulada por
Vamireh Chacon nos anos 60: “Por que não se fala neste Manoel Bomfim?”. No entanto
agora, percorrido todo esse percurso de recepção crítica de sua obra, parece meio
ilógico continuarmos propagando esta indagação, pois, o pensamento de Bomfim, tem
sido muito estudado e nos parece que contemporaneamente, tem recebido seu justo
valor. A pergunta agora, talvez, se transforme em “Como se tem falado deste Manoel
Bomfim?” ou “De qual Manoel Bomfim falamos?”, haja vista que tem ficado mais
nítida uma transformação de seu pensamento ao longo de sua vida. Esperamos que as
futuras gerações de receptores deste singular autor mantenham o alto nível de leitura e
interpretação que os críticos bomfinianos ao longo do século XX demonstraram ter.

Referências

AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel


Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
ALVES FILHO, Aluizio. Pensamento politico no Brasil – Manoel Bomfim: um ensaísta
esquecido. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979.
ALVES FILHO, Aluizio. Manoel Bomfim: combate ao racismo, educação popular e
democracia racial. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
AZEVEDO, Amaral. Prefácio à 2ª edição. In: BOMFIM, Manoel. A América Latina:
males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005, p. 31-34.
BOMFIM. Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks,
2005.
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite. São
Paulo: Ática, 1987, p.140-162.
CANDIDO, Antonio. Os brasileiros e nossa América. In: Recortes. São Paulo:
Companhia das letras, 1993, p.130-139.
CANDIDO, Antonio. Radicalismos. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas cidades,
1995. 3 ed. rev. e ampl. p. 265-291.
CHACON, Vamireh. A encruzilhada do nacionalismo. In: História das idéias
socialistas no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.
LEITE, Dante Moreira. Prenúncios de libertação. In: O caráter nacional brasileiro:
história de uma ideologia. São Paulo: Pioneira, 1976, p. 250-255.
MAUL, Carlos (Org.). O Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1935.
ORTIZ, Renato. Memória coletiva e sincretismo científico: as teorias raciais do século
XIX. In: Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2005. 5. ed.
p. 13-35.
REIS, José Carlos. Manoel Bomfim e a identidade nacional brasileira. In: LOPES,
Marco Antônio (Org.). Grandes Nomes da História Intelectual. São Paulo: Contexto,
2003, p. 493-505.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil 2: De Calmon a Bomfim: A favor do
Brasil: direita ou esquerda? Rio de Janeiro: FGV, 2006.
RIBEIRO, Darcy. Manoel Bomfim, antropólogo. In: BOMFIM, Manoel. A América
Latina – males de origem. Rio de Janeiro: Toopbooks, 2005, p. 11-22.
ROMERO, Sílvio. A América Latina: análise do livro de igual título do Dr. Manoel
Bomfim. Porto: Chadron, 1906.
SÜSSEKIND, Flora. A América Latina. In: SANTIAGO, Silviano (Org.). Intérpretes
dos Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, 2. ed. 3 v. p. 607-621.
SUSSEKIND, Flora & VENTURA, Roberto. História e dependência. São Paulo:
Editora Moderna, 1984.
VENTURA, Roberto. A América Latina: males de origem. In: MOTA, Lourenço
Dantas (Org.). Introdução ao Brasil: Um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 2000.
p. 239-258.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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NOMEAÇÃO EM BIOGRAFIAS

David Inácio Nascimento (PG-UFSJ)


Dylia Lysardo-Dias (UFSJ)

Sócrates - O nome, por conseguinte, instrumento para


informar a respeito das coisas e para separá-las, tal como
a lançadeira separa os fios da teia. (Platão in Crátilo)

Introdução

A pesquisa, que realizamos nesse artigo, aborda a biografia em uma revista, ou


seja, fora do gênero literário. Essa observação é imprescindível para que se faça jus a
esta prática (biografar) que é, e não de forma menor, praticado por jornalistas,
historiadores e cineastas. Este trabalho surgiu como forma de questionamento dos
limites da biografia ao discutir os aspectos linguísticos, historiográficos, literários, entre
outros, que compõem a biografia a partir do processo de nomeação.

Como sabido, a biografia não é criação única da literatura. Foi diante de uma
releitura da seção "Quem Foi", encontrada na revista Super Interessante, que nos
pusemos a questionar a elaboração de textos biográficos em mídias de circulação
nacional e a possibilidade de análises dessas mídias.

A revista Super Interessante, de publicação mensal e circulação nacional, tem


parte das suas seções voltadas para matérias sobre curiosidades, variedades e
comportamento, mas seu enfoque principal é tecnologia, inovações e ciências. A sessão
"Quem foi" foi publicada pela primeira vez na edição nº 155 - agosto/2000 e teve sua
última publicação pela última vez, em agosto/2009 na edição nº 268.

Nossa proposta é tecer análises sobre as biografias a partir da linguagem e da


nomeação que pode ser encontrada nos textos biográficos publicados por esta revista.
Faremos análises dos textos: "Hailé Selassié" 1, escrito por Otávio Rodrigues e

1
Os textos analisados neste artigo se encontram em: RODRIGUES, Otávio. Hailé Selassié. Revista Super
Interessante. edição 193. outubro de 2003. São Paulo, Editora Abril. p. 30. também disponível em:

1
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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publicado na edição nº193, em outubro de 2003; e o texto "O guerreiro do pop", escrito
por João Paulo Gomes, publicado na edição nº 203, em agosto de 2004.

Para tanto, trabalharemos com autores que nos possibilitem traçar posições a
cerca da nomeação (FEDATTO, 2009); (WITTGENSTEIN, 1989); (BOURDIEU,
1998); (FOUCAULT, 2007); e que nos auxiliem no entendimento sobre a construção
biográfica (BAKHTIN, 1992); (BOURDIEU, 1998); (VILAS BOAS, 2008). Vemos
também a necessidade de fazer as devidas apresentações dos biografados que terão suas
biografias analisadas:

Tafari Makonnen nasceu em 1892 na Eiópia, sendo de família nobre, aos 12 anos
torna-se governador de uma província. Casa-se com a filha do rei e não muito depois
troca sua esposa pela cunhada para, então, ser nomeado regente. Parte de sua vida gira
em torno de seu nome, pois, após se tornar regente, Tafari Makonnen muda seu nome
para Hailé Selassié I. Enquanto imperador, Selassié traça planos de modernização para a
Etiópia e participa da Segunda Guerra Mundial, sendo responsável por resistir às tropas
de Mussolini. Diante de alguns títulos recebidos em seu país (Rei dos Reis, Leão da
Tribo de Judá...), a fama de Selassié chega até a Jamaica, onde o povo passa acreditar
que ele era o messias que os judeus esperavam. Tafari Makonnen muda seu nome;
torna-se imperador; e, a partir de títulos e da interpretação bíblica feita pelos
jamaicanos, torna-se, também, Deus.

Fela Anikulapo Ransome Kuti nasceu em 1938 na Nigéria. Com uma


personalidade forte e influenciado por americanos como Malcom X e pelos ideais dos
Panteras Negras, Fela Kuti revoltou-se contra o regime militar que governava a Nigéria.
Torna-se cantor engajado e extravagante, misturando ritmos americanos com ritmos
tribais cria o afrobeat e passa usar sua música para angariar seguidores e fundar a
República de Kalakuta. Fela, para completar, casa-se com 27 mulheres de uma só vez.
Em 18 de fevereiro de 1977, os militares invadem a República de Kalakuta, espancam

<http://super.abril.com.br/historia/haile-selassie-444192.shtml>. Acesso em: 04 Mai. 2010. e GOMES,


João Paulo. Revista Super Interessante. edição 203. agosto de 2004. São Paulo, Editora Abril. p. 35.
também disponível em: <http://super.abril.com.br/cultura/fela-kuti-guerreiro-pop-444627.shtml>. Acesso
em: 04 Mai. 2010.

2
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os homens e estupram as mulheres. Assim, Fela Kuti é exilado em Gana voltando anos
depois para Nigéria, onde é preso algumas vezes e morre de AIDS em 1997.

Comparamos o papel do biógrafo ao papel do crítico de arte e embasamos nossa


crença no que diz Vilas Boas, para ele, o papel do biógrafo e do crítico de arte é
idêntico (2008, p. 27). Decorre em sua explicação que o fazer biografia e crítica da arte é
um se perfazer. É fazendo a crítica, ou a arte, que também nos fazemos. Assim como o
crítico, o biógrafo, ao fazer uma investigação sobre aquele que será biografado (através
de documentos e relatos de terceiros), passará pelo processo da busca da
verossimilhança sobre quem foi o biografado, em outras palavras, neste caso, o biógrafo
terá que interpretar a documentação encontrada.

Analisamos a biografia com viés derridiano (DERRIDA, 2005) como uma


história, grosso modo, que, ao se deparar com lacunas, dá ao biógrafo três opões: I - não
ser contada; II - ser contada com suas lacunas; III - ser contada e ter suas lacunas
preenchidas pela percepção possível da interpretação do contexto que o biógrafo pode
construir a partir das informações que encontra sobre o biografado. Diante do que é
apresentado por Bakhtin, ainda é possível observar o papel leitor:

O leitor crítico percebe a biografia como um material quase bruto


suscetível de receber a forma e o acabamento artístico. Tal percepção
compensa a lacunosidade das posições do autor e pode levar à
exotopia completa, introduzindo na obra elementos que lhes são
transcendentes e lhes asseguram o acabamento (BAKHTIN, 1992, p.
180).

Trata-se, verdadeiramente, de uma concepção aberta da biografia. A biografia é


fruto, neste caso, de um tripé que contempla biógrafo, biografado e leitor. Quanto à vida
do biografado, ainda que possa ser preenchida com a percepção possível feita pelo
biógrafo, é possível, ou ainda necessário, pensá-la com uma forma complexa. Villas
Boas, ao editar sua tese e publicá-la sobre a forma de livro, "Biografismo - Reflexões
sobre as escritas da vida", levanta considerações acerca da vivência dos biografados:
descendência, fatalismo e superlativações. Tais considerações, entre outras, explicam

3
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Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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como se daria o trajeto da vida de um biografado a partir da visão do biógrafo. Nosso


trabalho, por outro lado, trata da articulação existente entre o biografar e nomear.

Dois nomes e uma vida: Tafari Makonnen e/ou Hailé Selassié

Entendemos que uma biografia, ainda que possa ser escrita ipsis litteris (como
transcrição exata dos acontecimentos de uma vida), não é substituta da vida. O mesmo
podemos empregar ao nome, pois, sendo o nome uma palavra que representa, neste
caso, o biografado, ele apenas é uma parcela representativa e não o todo. Concebemos o
nome como um paralelo ao biografado, suas existências, com certa frequência, se
confundem, mas um não é o outro. De outra forma, entendemos que “o mundo empírico
não significa por si só, a linguagem é fundamental na demarcação das fronteiras do
sentido” (FEDATTO, 2009, p. 30) e, por isso, o nome é necessário para que uma pessoa
possa ter referência e significação no mundo.

Biografar e nomear, diante da representação possibilitada pela linguagem,


podem clarificar um ao outro nas pesquisas referentes sobre a escrita biográfica ou
sobre o processo de nomeação: analisar a nomeação pode trazer luz na interpretação
sobre quem foi uma determinada pessoa e, da mesma forma, buscar a interpretação
sobre a construção da biografia pode contribuir com estudos da linguística sobre o ato
de nomear.

O nome nas biografias surge como possuidor de uma existência própria, que vai
além do biografado, o ser-no-mundo2. Desta forma, o processo de nomeação, nomear,
não é uma ação aleatória que ocorre do nada. É possível analisar o nome e a elaboração
da biografia como construções paralelas, que se completam e elucidam.

Segundo Wittgenstein 3, “um nome designa uma coisa, e é dado um nome a uma
coisa. - ser-nos-á frequentemente útil se dissermos quando filosofamos: denominar algo

2
Expressão traduzida do alemão "Dasein", cujo conceito original é encontrado na Filosofia existencialista
do filósofo alemão Martin Heidegger.
3
Nascido na Áustria, Wittgenstein foi um filósofo com contribuições relevantes para a Filosofia analítica,
Filosofia da Linguagem, Lógica e Filosofia da Mente.

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é semelhante a colocar uma etiqueta numa coisa” (1989, p.14). O processo de nomear é
complexo se entendermos que, para “colocar uma etiqueta” como se referiu
Wittgenstein, passamos por um processo, também, de classificação daquilo que nos
colocamos a etiquetar. Além disso, segundo o que pode ser interpretado, ao denominar
alguém, nos colocamos, por consequência, a por rótulo àquele que recebe a
denominação.

Seria possível observar certa consciência do biografado para com seu nome e
para o que ele designa? Sem que nos coloquemos a indagar o complexo conceito de
consciência, observamos a construção da biografia de "Hailé Selassié" e de como surge
a problemática em torno de seu(s) nome(s):

Os pais o chamaram de Tafari Makonnen (daí Ras Tafari, que é o


"príncipe Tafari" em Etíope). (...) mancomunou-se com a cunhada, a
imperatriz Zauditu, e nomeou-se regente - 14 anos depois viraria
imperador. A bordo de um novo nome, Hailé Selassié I revelou-se
centralizador, que escolhia pessoalmente todos os funcionários, dos
mais graúdos aos criados. (RODRIGUES 2003, p. 30)

Chamamos atenção para as formas como é apresentado o nome nesta biografia:


Primeiramente, é possível observar a mudança do nome "Tafari Makonnen" para "Hailé
Selassié", isso remete ao rompimento de uma etiqueta, como se fosse exposta a
necessidade de rompimento com classificações que, então, seu antigo nome lhe dava;
Em um segundo momento, é importante dar-se conta da semântica da expressão
"nomeou-se regente", neste caso, o nome está estritamente ligado a uma questão de
poder, status; finalmente, a partir de outra expressão, vemos o nome como local no qual
escolhe se realizar, uma vez que a expressão diz de Hailé "a bordo de um novo nome".

Em ambos os casos apontados, é possível observar que a renomeação deve ser


problematizada buscando as motivações que fizeram com que o biografado assim
mudasse. Segundo Bourdieu, pela singularidade do nome próprio “instituiu-se uma
identidade social constante e durável, que garante a identidade do indivíduo biológico
em todos os campos possíveis onde ele intervém como agente” (1998, p. 186). Em

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parte, e diante do que se refere Bourdieu, exprime-se a possibilidade do rompimento de


uma identidade a partir do processo de renomeação.

Pelo que podemos observar na expressão "a bordo de um novo nome", Hailé, como fora
escrito em sua biografia, constrói um novo significado para a sua vida, entendendo vida,
ainda segundo Bourdieu, como “um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e
deve ser apreendido como expressão unitária de uma "intenção" subjetiva e objetiva, de
um projeto” (1998, p. 184). É necessária a observação da constituição existencialista
disso que Bourdieu, ao remontar ao que Sartre chama de "projeto original" 4 como uma
forma de escrita feita pelo biógrafo que dá ao biografado o controle de grande parte de
suas ações, nesse caso, projetadas (nas quais se projetam).

De qualquer forma, esse conceito de vida apresenta a aceitação de um projeto


com uma determinada "intenção" por parte de quem se autobiografa. Em outras
palavras, a partir da mudança do nome, Hailé, ao que parece, se põe a "escrever" uma
vida na qual o seu nome, não aquele que seus pais lhe deram, seja associado a um novo
sujeito: um sujeito que se assume um novo nome e passa ser centralizador.

Ainda sobre a renomeação, segundo Fedatto, “as mudanças na nomeação


apontaram que há também uma movimentação nos memoráveis desses nomes: ao
nomear diferente, recorta-se o mundo de outra maneira” (2009, p. 45) e, por isso, torna-
se, como podemos observar, uma forma de rompimento com parte da história que
caracterizava aquele ser, agora não o mesmo, diante da renomeação. Por outro lado,
“diz-se que morre o portador do nome, e não morre a significação do nome”
(WITTGENSTEIN, 1989, p. 27). Partilhamos das referências de Fedatto e Wittgenstein:
a mudança de nome, por parte Selassié, exprime seu desejo de se recortar no mundo e
construir uma nova significação para sua pessoa a partir do novo nome.

4
O "projeto original" é trabalhado por Sartre em seu texto "O existencialismo é um humanismo". Nas
biografias, a noção de projeto, segundo aponta Bourdieu a partir de Sartre, poderia ser encontrada nas
biografias que abordam o biografado como aquele que "desde pequeno", "sempre", etc. tinha um projeto a
ser realizado. O que pode remeter, de certa forma, a consciência do biografado ou ao fatalismo.

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O surgimento de um novo sujeito, a partir de uma renomeação, deve ser uma


possibilidade da qual não podemos nos privar. Podemos adentrar a questões ideológicas:
até que ponto o nome, conferido pelos pais, não pode ser percebido como uma
interpelação ideológica daquilo que Louis Althusser chamou de Aparelho Ideológico de
Estado (AIE)? Althusser, em uma nota de rodapé de seu livro, diz que:

A família desempenha manifestamente outras funções para além das


de um AIE. Intervém na reprodução da força de trabalho. E, segundo
os modos de produção, unidade de produção e (ou) unidade de
consumo (ALTHUSSER, 1980, p. 44) .

Atentando a essa possibilidade, a mudança de nome simboliza a mudança


paradigmática de determinados “conjuntos de crenças”. Romper com o nome dado pelos
pais significaria, além do rompimento com as marcas que lhe são próprias até então, o
rompimento com as condições (materiais e culturais) herdadas por Hailé de seus pais e
dos seus “modos de produção” da família na qual estava inserido.

Vilas Boas argumenta que “um biógrafo capacitado sabe que a lógica dos
desejos individuais possuem deformações e perversidades” (2008, p. 163) e, se assim
for, realçamos essa “lógica dos desejos individuais” como uma forma consciente que faz
um sujeito tomar atitudes que venham a romper com parte do foi sua vida. Trata-se,
contudo, de uma discussão, sabemos, longa e complexa na qual o plano das crenças
ideológicas revela-se, ainda que diante da correta descrição dos Aparelhos Ideológicos
de Estado feita por Althusser, não determinista, o que, de certa forma, ampara as
discussões acerca dos fatalismos e descendências nas biografias: um biografado não
seria, ou não seria apenas, o resultado dos acontecimentos que o antecederam e nem do
que fora sua família.

No decorrer do texto de Hailé, Otávio Rodrigues, que o assina como "Otávio


'Doctor Reggae' Rodrigues" (mais um exemplo do espaço no qual se insere a
nomeação), aborda a profundidade de seu biografado: “eis um personagem sobre o qual
há que se escrever duas biografias”. Rodrigues separa em seu texto: "o primeiro
Selassié" e o "'outro' Selassié". O primeiro nascido sobre o nome de Tafari Makonnen e

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o segundo nascido, se assim podemos compreender, a partir de sua renomeação e, para


além disso, da crença dos jamaicanos fervorosos na crença que nasceria na África um
rei negro. Os jamaicanos, diante do que ouviram, acreditavam ser Selassié, o então
imperador etíope, o tal deus:

Ávidos leitores da Bíblia, eles se reconheceram na história de


perseguição aos judeus, na busca da terra prometida (no caso deles, a
África) e passaram a esperar por um messias. (...) Aí Selassié tornou-
se imperador, adornando seu novo nome com títulos não de todo
improváveis numa monarquia cristã como a etíope - Reis dos Reis,
Leão das Tribos de Judá... já era tarde: os jamaicanos o tomaram por
Deus. Ou Jah. (RODRIGUES, 2003.. p. 30).

Não distante da expressão "abordo de um novo nome" surge, então, a expressão


"adornando seu novo nome". Ora, o que pode ser percebido neste texto é o nome tomar
um corpo próprio ao ponto em que passa a receber títulos evocados por, ainda,
designações: Reis dos Reis, Leão das Tribos de Judá, Deus e Jah. Segundo Foucault, “a
palavra designa, o que quer dizer que, em sua natureza, é nome. Nome próprio, pois que
aponta para tal representação e mais nenhuma” (2007, p. 135). Estamos, então, diante de
um processo que, ao trazer ao conhecimento a vida de Selassié, passa, também, a inferir
outros nomes e entendimentos sobre sua pessoa como, por exemplo, a crença dos
jamaicanos que tomaram Selassié por Deus.

Se defendemos a possibilidade de Hailé Selassié I desligar-se, conscientemente,


de seu antigo nome para assumir novo posto, o de imperador, observamos que o mesmo
processo o faz ser tomado por Deus. Diante dos títulos/designações então recebidos, os
novos nomes o credenciam a ser o Deus esperado por aquele povo da Jamaica. A
diferença é que tal processo ocorre independente da vontade de Selassié. Isso pode ser
observado no texto biográfico a partir da referência sobre a biografia de Hailé como: "A
história do imperador que, sem perceber, virou o Deus dos rastafáris". A mudança de
Tafari para Hailé (imperador) e a mudança do imperador para deus configuram-se da
mesma forma: pelo processo de nomeação.

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Postulamos, por isso, que nomear é dar existência, criar, dar vida a uma partícula
(nome) que existe paralelamente ao biografado e/ou pessoas secundárias abordadas pela
biografia. Entendemos, assim, que o biografado e seu nome existem paralelamente um
ao outro, que se justificam e se evidenciam, se explicam. Não é usado um nome sem, ao
menos, ser evidenciado por algum tipo de explicação: como recebeu esse nome ou,
ainda, a imagem que evoca a partir do nome. Wittgenstein pergunta qual a relação entre
nome e denominado, em suas palavras:

...esta relação pode, entre muitas coisas, também consistir no fato de


que o ouvir um nome evoca-nos a imagem do denominado perante a
alma, e consiste entre outras coisas também no fato de que o nome
está escrito sobre o denominado, ou que o nome é pronunciado ao se
apontar para o denominado (WITTGENSTEIN, 1989, p. 25).

Esta relação ou processo em que se nomeia ostensivamente, “apontar para o


denominado”, no qual existe um acordo entre pessoas, em que uma diz e a outra
entende, para Wittgenstein, enquanto “processo do uso de palavras” com o intuito de
servir para o entendimento, trataria de questões encontradas em uma “linguagem
primitiva” 5. Na realidade, essa é uma crítica erigida por Wittgenstein ao uso da
linguagem como se ela fosse descrita como um sistema de comunicação, “pois esse
sistema não é tudo o que chamamos de linguagem”. Em outras palavras, a linguagem é
algo complexo, sendo comparada, por Wittgenstein, a uma cidade na qual existem
prédios diferentes e de diferentes épocas (Cf. 1989, p. 15).

De certa forma, como parte do processo linguístico, a nomeação, assim como


postulamos desde o início, trata-se de uma ação complexa. Biografar e nomear têm,
ambos, a possibilidade de trazer esclarecimentos sobre estes atos: a nomeação para o
processo de biografar e o biografar para o processo de nomear. Em algumas biografias,

5
"Pensemos numa linguagem para a qual a descrição dada por Santo Agostinho seja correta: A linguagem
deve servir para o entendimento de um construtor A com um ajudante B. A executa a construção de um
edifício com pedras apropriadas; estão à mão cubos, colunas, lajotas e vigas. B passa-lhes as pedras, e na
sequência em que A precisa delas. Para esta finalidade, servem-se de uma linguagem constituída das
palavras 'cubo', 'colunas, 'lajotas', 'vigas'. A grita essas palavras; - B traz as pedras que aprendeu a trazer
ao ouvir esse chamado. - Conceba isso como linguagem totalmente primitiva" (WITTGENSTEIN, 1989,
p. 10).

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como é o caso da biografia de Selassié, a nomeação, ao ser evidenciada, passa a receber


maior atenção e possibilitar estudos sobre este tema.

Guerreiro e pop: a reconstrução de significados

O texto "O Guerreiro Pop", ainda que não tenha tanta materialidade para
examinar quanto "Hailé Selassié", nos apresenta um material considerável a ser
analisado. Além disso, uma vez estabelecida nossa proposta, pesquisar o processo de
nomeação na biografia e a biografia no processo de nomeação, não seria adequado
deixar de fazer as análises pelo material não apresentar determinada constância. É claro
que "Hailé Selassié" seria a proposta ideal de texto biográfico para ser analisado a partir
da nomeação, pois muito dele se constitui em torno da discussão do(s) nome(s) daquele
biografado. Contudo, examinar o "O Guerreiro Pop", dentro de suas limitações, nos
permite assegurar nossa proposta de pesquisa das biografias a partir da nomeação dos
biografados e, em alguns casos, dos extrabiografados.

No caso de "O Guerreiro Pop", já no índice da revista Super Interessante,


encontramos a páginação das colunas e seus títulos, chamadas, para as reportagens.
Desta forma, nos deparamos com: "Quem Foi? O roqueiro que fundou uma república".
Notadamente, é possível observar a substituição do nome biografado, Fela Kuti, por "O
roqueiro que fundou uma república". A observação dessas substituições nos enunciados
é algo a se atentar. Segundo Foucault:

Se o discurso se apropria do adjetivo que designa uma modificação e


fá-lo valer no interior da frase como a substância mesma da
proposição, então o adjetivo torna-se substantivo; o nome, ao
contrário, que se comporta na frase como um acidente, torna-se, por
seu turno, adjetivo, mesmo designado, como que pelo passado,
substâncias (FOUCAULT, 2007, p. 138,itálico do autor).

Diante do que expõe Foucault, é necessário que as análises esboçadas acerca da


nomeação levem em consideração o comportamento do nome nas biografias e, de igual

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forma, à mudança funcional apontada, para com o adjetivo. Qualificar por meio de
adjetivos ou pelo nome, enquanto acidente, faz inserir o biografado em uma
circunscrição na qual ele se situará por algum traço que toca a história de sua existência.

No percorrer do texto biográfico sobre Fela Kuti, podemos encontrar: adjetivos


que se inserem, durante a qualificação, como a nomear Fela; e nomes que, por serem
usados de modo a construir comparações, acabam por adjetivar o biografado. Trata-se
de uma mudança de função no interior da linguagem: o guerreiro do pop; o maior
popstar africano; comprometimento político de Bob Dylan; a extravagância de Mick
Jagger; herói nacional.

Se entendermos que o denominar seja algo “análogo a pregar uma etiqueta numa
coisa” (WITTGENSTEIN, 1989, p. 20) entenderemos o paralelo estabelecido entre o
qualificar e o nomear. Nesse caso, nomes como Bob Dylan e Mick Jagger se tornam
"lugar" circunscrito, no qual outras personalidades podem se situar diante de determinas
práticas e, por isso, serem qualificadas, por consequência, pelos adjetivos que são
conferidos a essas pessoas (Bob Dylan e Mick Jagger).

De igual forma, é instituído seu valor como "herói" situado em um lugar, a partir
do adjetivo nacional tratando de dar o efeito de representatividade daquele país diante
das palavras: Fela Kuti "herói nacional" (herói da Nigéria, ou dos nigerianos). Já em "o
guerreiro pop", vemos o emprego de guerreiro (aqui enquanto substantivo) qualificado
pelo adjetivo "pop", por isso trata de qualificar e dar outros sentidos para a vida de Fela,
uma vez que a concepção do pop dissocia-se da concepção daquilo que podemos
entender como guerreiro. É dado para Fela, na forma como é escrita sua biografia, uma
nova forma de se inserir como pop (cantor) e guerreiro (ativista), constituindo
reconstruções de significados.

Quanto a sua biografia, Fela Kuti tem sua vida marcada pelo comprometimento
político a partir de sua posição como músico. Encontram-se, entre suas músicas, títulos
como "Vagabundos no Poder". Além disso, a criação de uma república (esboçado no
chapéu da coluna como "A saga de Fela Kuti, músico que fundou sua própria república

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e virou herói nacional") remonta um agir maior. Na realidade, um agir que parte do
biógrafo para o biografado, afinal, é do autor a descrição que se fará daquele de quem a
biografia irá falar, como irá falar e/ou o que irá ressaltar, é, em grande parte, se não de
todo, uma escolha feita pelo biógrafo. Vemos isso na percepção de Bakhtin:

O mundo da biografia não é fechado nem concluído, e o princípio de


fronteiras firmes não o isola no interior do acontecimento da
existência. A biografia, decerto, participa do acontecimento, mas é só
pela tangente, pois sua participação direta ocorre o mais perto possível
do mundo da família, da nação, da cultural (BAKHTIN, 1992, p.179).

A biografia, diante do que remete Bakhtin, é uma construção aberta e sempre


apta a se remodelar e receber novas elaborações, ainda que elas sejam provenientes da
participação do leitor, o que acaba reforçando nossa proposta de abordar a biografia
pelo uso da representação proporcionada no processo de nomeação. A biografia está
aberta a novas interpretações e ao preenchimento de suas lacunas, da mesma forma
como está aberta para ser tema de estudos de diversas áreas de conhecimento.

Considerações finais

A elaboração biográfica é trabalho complexo, requer do biógrafo atenção devida


e um lançar-se na vida daquele que será biografado. Ainda que a vida do biografado se
apresente como uma variada torrente de enunciados, será o biógrafo o responsável por
decidir qual aspecto da história será enfatizado. Por isso, reforçamos que a biografia é
construída por biógrafo, biografado e leitor.

O processo de nomeação, como abordamos no decorrer de nosso trabalho, pode


ser fundamental para o esclarecimento de pormenores da história da vida de um
biografado. Tanto Hailé Selassié I quanto Fela Kuti têm suas histórias tangidas por
temas que envolvem a nomeação. Quando, de alguma forma, o biógrafo busca
informações sobre a constituição de um nome ou renomeação, tem, também, a
possibilidade de encontrar informações que dão ao nome um valor único e, por isso,

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possível de ser analisado pela linguagem e, de outra forma, fazer parte das questões
relativas à escrita biográfica.

O caráter representativo do nome, que advém do fato de ele ser parte da


linguagem, prepara a escrita e o leitor para se depararem com alguém que possui
determinados valores e, por isso, único. Essa constatação independe da grandiosidade
do biografado e permite que as biografias apresentem, cada vez mais, histórias de
pessoas desconhecidas. São desconhecidas, mas não por isso insignificantes.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa: Presença,


1980.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. IN: FERREIRA, M. e AMADO, J. Usos e
abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.
FEDATTO, Carolina Padilha. Os sentidos da língua na cidade: ideias e nomes. Revistas
da Anpoll, n. 1. São Paulo p. 17-48. Nº 26, B, jul/dez 2009.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
(Coleção Tópicos).
RODRIGUES, Otávio. Hailé Selassié. Super Interessante, edição 193, setembro de 2003. São
Paulo, Editora Abril. p. 30
VILAS BOAS, Sérgio. Biografismo - Reflexões sobre as escritas da vida. São Paulo:
UNESP, 2008.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

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LITERATURA E CINEMA: NOTAS SOBRE FABULAÇÃO, ARTE E


FILOSOFIA

Davina Marques (PG-USP)

É caminho natural, na pesquisa em estudos comparados entre literatura e cinema,


pensar sobre a arte, de maneira geral. Neste caso, para realizar o estudo de “Campo
Geral”, de João Guimarães Rosa, em relação com o filme “Mutum”, de Sandra Kogut,
nós encontramos, na filosofia contemporânea francesa, de Gilles Deleuze e Félix
Guattari, conceitos que movimentam o pensamento sobre a arte, a literatura e o cinema.
Estes autores (DELEUZE & GUATTARI, 2007) consideram que há três potências
no pensamento: a filosofia, a arte e a ciência. A primeira é aquela que funciona para a
criação de conceitos; a segunda, cria formas de nos afectar; a terceira, cria proposições.
A filosofia seria o eu penso; a arte, eu sinto; a ciência, eu funciono. Neste artigo
defendemos que o pensar filosófico nos ajuda a entender o eu sinto da arte.
Dividimos este texto em três partes. Primeiramente discutiremos o que se entende
por arte, nesta perspectiva filosófica, para apresentar o conceito de monumento. Em
seguida, ofereceremos aos leitores a ideia de fabulação, também apoiada na filosofia.
Em um terceiro momento, veremos de que maneira esses conceitos nos ajudam a
estabelecer relações entre o texto literário e a filme, buscando uma visão ampliada,
contemporânea, das duas obras.

1. Monumento
Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari (2007) nos ensinam sobre as potências
do pensamento. Discutiremos brevemente duas delas: a filosofia e a arte. A filosofia,
aqui, é a ação de criar conceitos. Para esta criação o filósofo faz uso daquilo que os
autores chamam de plano de imanência (estabelecimento de zonas de vizinhança, de
coordenadas intensivas, um recorte no caos potência do pensamento) para criar um
personagem conceitual e um conceito, o conceito filosófico. Por exemplo, para criar o
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conceito de Ideia, Platão cria um plano de imanência (o Mundo Ideal) e Sócrates,


personagem conceitual, aquele que expõe os conceitos platônicos.
No caso da arte, existe também um recorte, o chamado plano de composição, e
figuras estéticas, como personagens literários ou fílmicos. O que a arte cria é um bloco
de sensações, de afectos e perceptos:
Os perceptos não são percepções, são conjuntos de sensações e de
relações que sobrevivem àqueles que as experimentam. Os afetos não
são sentimentos, são estes devires que desbordam o que passa por eles
(ele torna-se outro). (DELEUZE, 1991, p.11)
Tudo isso se dá porque a arte constrói um monumento, a obra que se conserva, que se
mantém em pé sozinha.
O jovem sorri na tela enquanto ela dura. O sangue lateja sob a pele
deste rosto de mulher, e o vento agita um ramo, um grupo de homens
se apressa em partir. Num romance ou num filme, o jovem deixa de
sorrir, mas começará outra vez, se voltarmos a tal página ou a tal
momento. A arte conserva, e é a única coisa no mundo que se
conserva. Conserva e se conserva em si (quid juris?), embora, de fato,
não dure mais que seu suporte e seus materiais (quid facti?), pedra,
tela, cor química, etc. A moça guarda a pose que tinha há cinco mil
anos, gesto que não depende mais daquela que o fez. O ar guarda a
agitação, o sopro e a luz que tinha, tal dia do ano passado, e não
depende mais de quem o respirava naquela manhã. Se a arte conserva,
não é a maneira da indústria, que acrescenta uma substância para fazer
durar a coisa. A coisa tornou-se, desde o início, independente de seu
"modelo", mas ela é independente também de outros personagens
eventuais, que são eles próprios coisas-artistas, personagens de pintura
respirando este ar de pintura. E ela não é dependente do espectador ou
do auditor atuais, que se limitam a experimentá-la, num segundo
momento, se têm força suficiente. E o criador, então? Ela é
independente do criador, pela auto-posição do criado, que se conserva
em si. O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de
sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos. (...) A obra de
arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si. (DELEUZE
& GUATTARI, 2007, p.213)
Para se fazer filosofia, a imanência deve ser traçada, personagens conceituais devem
ser inventados, e o conceito deve ser criado. Não sendo assim, não há filosofia. Para
fazer arte, há que se traçar um plano de composição, inventar personagens estéticos, e
criar um monumento. Não sendo assim, não há arte.
Guardemos essa ideia de monumento, criação da arte, por um momento.
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2. Fabulação
O professor Ronald Bogue (2010) publicou recentemente um livro em que discute o
conceito de fabulação como um instrumento prático para a análise da narrativa literária.
Apesar de Deleuze e de Guattari não terem se dedicado à sua elaboração em si, em
vários momentos de sua obra há pistas de como esse conceito pode ser relacionado ao
conceito de literatura menor, este amplamente desenvolvido, principalmente no livro
Kafka, por uma literatura menor (DELEUZE & GUATTARI, 1977). Pretende-se aqui,
estender a fabulação não apenas à literatura, mas também à análise fílmica, a partir da
afirmação do próprio Deleuze em seu livro A imagem-tempo:
O que Kafka (...) sugere para a literatura vale ainda mais para o
cinema, na medida em que este reúne, enquanto tal, condições
coletivas. (...) O diretor de cinema se vê perante um povo duplamente
colonizado, do ponto de vista da cultura: colonizado por histórias
vindas de outros lugares, mas também por seus próprios mitos, que se
tornaram entidades impessoais a serviço do colonizador. O autor não
deve portanto fazer-se de etnólogo do povo, tampouco inventar ele
próprio uma ficção que ainda seria história privada: pois qualquer
ficção pessoal, como qualquer mito impessoal, está do lado dos
“senhores”. (...) Resta (...) a possibilidade de se dar “intercessores”,
isto é, de tomar personagens reais e não ficcionais, mas colocando-as
em condição de “ficcionar” por si próprias, de “criar lendas”,
“fabular”. O autor dá um passo no rumo de suas personagens, mas as
personagens dão um passo rumo ao autor: duplo devir. A fabulação
não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma
palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca pára de
atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e
produz, ela própria, enunciados coletivos. (DELEUZE, 2007, p.264)
O filósofo discute, em seguida a esse trecho, entre outras coisas, a obra de Glauber
Rocha, Deus e o diabo na terra do sol, lembrando-nos que a fabulação coloca a terra
em transe, movimenta-nos entre passagens.
Mas o que seria a fabulação?
Segundo Bogue (2010), cinco elementos fazem parte da fabulação: o devir, a
experimentação no real, o mito, a invenção de um povo por vir, a desterritorialização da
linguagem. Devir é este estar entre categorias, estar em passagem ou modos de
existência. O devir não leva a uma conclusão, a um encerramento, mas tem relação com
o movimento que nunca chega a ser, está sempre em via de se tornar. O devir tem a ver
com elementos estáveis em desequilíbrio, em metamorfose. A fabulação funciona como
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uma máquina plugada no ambiente social, político, institucional, material, por isso se
diz que se trata de uma experimentação no real. De certa forma, a experimentação no
real se dá através da crítica de forças, de acontecimentos, de memórias, de documentos
e em articulação com o não dito, com aquilo que de alguma forma se apagou ou se
esqueceu. O elemento mito diz respeito ao tratamento de personagens e de suas ações.
As personagens em fabulação se organizam de forma sociopolítica e levam-nos à
construção de um povo por vir. Este povo por vir funciona como um coletivo que,
inexistente, é criado como integrante de uma sociedade que não existe e que, no entanto,
vibra, está lá. Trata-se de uma espécie de enunciado coletivo de expressão.
Reconhecemo-nos ali, mas aquilo não é representação da realidade. Isto se ajusta muito
bem com o último elemento, a desterritorialização da língua. Na linguagem que é fruto
de desterritorialização “não há linha reta”, lembram Deleuze e Guattari, a língua tem
que alcançar desvios para “revelar a vida nas coisas” (DELEUZE & GUATTARI,
1997, p.12). A língua torna-se então:
uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem
um dialeto regional descoberto, mas um devir-outro da língua, uma
minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de
feitiçaria que foge ao sistema dominante. (...) opera uma
decomposição ou uma destruição da língua materna, mas também (...)
opera a invenção de uma nova língua. (DELEUZE & GUATTARI,
1997, p.15)
Além disso, há um elemento temporal na fabulação, que não remete apenas ao tempo
cronológico, de Cronos, mas ao tempo aiônico, de Aion, o tempo flutuante do infinito,
destacado pelos estóicos. Por isso podemos afirmar que a fabulação está em outro
espaço, diferente da narrativa, que é marcada pelo fluxo de um tempo para outro. Bogue
(2010), citando Jay Lampert, lembra que o desafio de uma narrativa significativa é
reconciliar a sucessão e a simultaneidade do tempo.
Bogue (2010) ainda destaca as três sínteses do tempo em Deleuze. A primeira síntese
do tempo parte do presente do tempo cronológico, do senso comum, mas um presente
que carrega dentro dele a contração de momentos que poderíamos chamar de
politemporais (cone invertido de Bérgson). Cada presente é síntese porque carrega em si
uma contração contínua de tempos passados-presentes-futuros. Deleuze afirma que os
presentes são múltiplos, coexistentes. A segunda síntese do tempo é o passado virtual,
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aquele que nunca foi presente. Mais do que uma reminiscência, o passado virtual é
envolvimento e está relacionado à ideia de unidades múltiplas em desenvolvimento, que
nunca chegaram a ser. É uma espécie de espaço-memória no qual as histórias se
organizam em blocos de sucessão. A terceira síntese é a do futuro, a forma vazia do
tempo, espaço de possível cesura, de um possível antes e depois. A fabulação
deleuziana, segundo Bogue, é o ato narrativo que envolve todas as formas de sucessão e
simultaneidade temporais, a fim de inaugurar um processo de devir, de experimentação
no real, de mito, de invenção de um povo por vir, de desterritorialização da linguagem.
De certa maneira, a fabulação se relaciona a histórias que não sucumbem ao fluxo
temporal, mas que articulam um contínuo de Cronos a Aion capaz de fazer funcionarem
forças sociopolíticas a partir do mundo material.
De que maneira essas ideias nos ajudam a pensar a literatura em relação ao cinema?
É o que veremos a seguir.

3. No entremeio
A literatura de João Guimarães Rosa é marcada por um processo cuidadoso com a
linguagem. Quando Deleuze e Guattari (1977) analisaram a obra de Kafka, em Kafka,
por uma literatura menor, eles destacaram o deslocamento lingüístico do alemão
kafkaniano, um alemão que caracterizaram como desterritorializado. O alemão era a
língua oficial em Praga, a língua de uma minoria opressiva, distante dos personagens de
Kafka. O alemão kafkaniano é, portanto, “uma língua dissecada, misturada com tcheco
e iídiche” (DELEUZE & GUATTARI, 1977, p.32). Em sua escrita, Kafka carrega a
linguagem de tensores, perverte a sintaxe, cria uma “língua intensiva ou o uso intensivo
do alemão”, uma língua em experimentação. Como Rosa, que também cria uma língua
que parece se afastar do português. É como se aquele português não fosse o nosso,
sendo, ao mesmo tempo, tão próximo e familiar. Entre os inúmeros estudiosos que se
dedicaram à escrita rosiana, citaremos Bolle (2004). Em estudo sobre Grande sertão:
veredas, a partir de declarações do próprio Rosa em entrevista a Günter W. Lorenz, o
estudioso enfatiza a ativação das energias de formação da língua, a fusão de elementos
lingüísticos multiculturais e heteroculturais, e o mergulho tanto no material coletado nas
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cadernetas de campo quanto no trabalho construtivo em cima deste material, de dentro


para fora (BOLLE, 2004, p.404 e 410).
Deleuze também afirma que um escritor é alguém que viu e ouviu coisas demasiado
grandes, fortes, irrespiráveis, que mergulha em um caos potência do pensamento e
regressa de olhos vermelhos e com os tímpanos perfurados (DELEUZE, 2008, p.14).
Construindo seu monumento, o escritor exerce uma função de cura coletiva. A obra de
Guimarães Rosa parece se encaixar nessa descrição. Ele até se formou mesmo como
médico, trabalhou em um hospício em Barbacena, mas abandonou a medicina e
dedicou-se à atividade intelectual, foi diplomata e escritor. Viu, sentiu, leu muito,
experimentou. Para nós, criou o que Deleuze chama de povo menor, povo bastardo,
inferior, sempre inacabado, em devir. Criou um povo que faltava: os anômalos no
sertão. Aliás, o sertão, esse espaço virtual que Rosa chama de mundo, é o plano de
composição onde surge, a cada escrito seu, um universo inteiro a nos encantar. Neste
sentido, Rosa desenvolve a função de saúde da literatura, também apontada por
Deleuze, pois sua obra invoca a raça oprimida de um povo. Rosa-médico-escritor
concretizou-a com seus loucos, seus jagunços, suas crianças, seus animais, suas plantas.
Na língua desterritorializada de Rosa, há uma multidão, não uma somatória de sujeitos,
mas o fragmentado, o nômade do território brasileiro: “grupos minoritários, ou
oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições
reconhecidas(...).” (DELEUZE & GUATTARI, 2002, p.30).
A desterritorialização da linguagem, em Sandra Kogut (2007), não se dá no nível
lingüístico, por mais contraditório que isto possa ser, mas na forma com decidiu
trabalhar com os não atores no filme Mutum. Com um roteiro preparado a cada dia, as
falas eram passadas para os atores que não as decoravam, mas falavam do seu jeito, com
suas próprias palavras 1. A diretora entendeu que seria artificial fazer personagens não
atores memorizarem falas que dificilmente sairiam daquelas bocas, com impacto
negativo para a história que pretendia contar. Além disso, o filme em si é
desterritorializado, pois escapa à lógica comercial de entretenimento e constrói para nós

1
Sandra Kogut critica o equívoco de algumas adaptações da obra de Rosa, em que se tenta colocar na fala
dos atores uma linguagem literária, que é forte, mas é de outro espaço artístico em sua opinião (veja na
audioentrevista com a diretora, no DVD do filme Mutum).
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um monumento, no sentido deleuziano, assim como “Campo Geral” funciona também


um monumento, a inspirar outras obras.
Não cabe, no espaço deste artigo, uma discussão de como cada um dos monumentos
já citados podem ser explorados em sua completude em relação ao conceito de
fabulação. Vamos explorar uma cena do filme e do livro pra ver como isso se dá.
A cena escolhida é a do momento em que o menino Miguilim percebe a violência do
pai contra a mãe de maneira mais forte e decide se colocar entre os dois.
Rosa constrói “Campo Geral” atravessando o texto com canções e pela repetição de
um refrão, a ideia da alegria. É preciso estar sempre alegre, sempre alegre. Entretanto, a
primeira canção que atravessa o texto é a do Menino Triste, que chorava a perda de sua
cuca: “Minha Cuca, cadê minha Cuca?/Minha Cuca, cadê minha Cuca?!/Ai, minha
Cuca/que o mato me deu!...” (ROSA, 1984, p.21).
Miguilim estava pensando em Pingo-de-Ouro, uma cachorra “pertencida de ninguém,
mas que gostava mais era dele mesmo” (ROSA, 1984, p.20). A cachorra estava doente
e tinha acabado de ter filhotes. Apenas um deles tinha sobrevivido e Pingo-de-Ouro
estava feliz com o cachorrinho que se parecia tanto com ela 2.
Uns tropeiros tinham passado pelo Mutum, lugar onde viviam, e Pai lhes dera os
dois: cachorra e filhote. O menino sofrera muito, “cumpriu tristeza” (ROSA, 1984,
p.21).
Observe-se, neste trecho, as camadas de tempo impactando o presente. O narrador já
havia anunciado um descompasso na relação entre Miguilim e seu pai. O mal-estar tinha
sido porque, na ânsia de comentar com Mãe que o Mutum – o lugar onde moravam –
era bonito, Miguilim se esquecera de pedir-lhe a benção. Os costumes. Pai ralhou e
queixou-se muito dele. Anunciara também um descompasso entre Pai e Mãe: “No
começo de tudo, tinha um erro – Miguilim conhecia, pouco entendendo” (ROSA, 1984,
p.15). Os adultos não se entendiam. O menino não sabia ainda por quê.
Existe o momento da canção, mas, como no cone invertido de Bergson, há neste

2
Miguilim, por sua vez, se parece com a Mãe: “— Dito, eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que
eu não sei o que é, nem de donde, me afrontando...” “— Deve de não, Miguilim, descarece. Fica todo
olhando para a tristeza não, você parece Mãe.” (ROSA, 1984, p.61).
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presente muitas outras coisas agindo. Esse movimento do tempo, Rosa o explora com
maestria.
Miguilim estava pensando, sentindo essas coisas quando o irmão lhe avisou que os
pais estavam brigando. Ele, repentinamente, decidiu impedir que Pai batesse em Mãe.
Acabou apanhando também e foi colocado de castigo. Distanciava-se do Pai.
Aproximava-se da Mãe. Ele era mais parecido com a Mãe. Juntos ficariam mais felizes,
como Pingo-de-Ouro e seu filhote. Os animais estariam felizes em um passado virtual,
ou em um futuro ainda por vir. Seria assim com ele e sua mãe?
Rosa explora essa intensividade do tempo aiônico, não cronológico. Os
acontecimentos vêm em camadas, em imanência, simultâneos.
O cinema vai precisar explorar isso de outra maneira, com imagens. A diretora sabe
que os apaixonados por Guimarães Rosa vão se aproximar das adaptações para o
cinema divididos entre o desejo de “ver” aquilo que os movimenta na arte literária e o
temor de que qualquer desses projetos possa fracassar. Porém, se nos ativermos ao
conceito de monumento, será possível perceber as duas obras de maneira distinta, e
ainda estabelecer relações entre as duas, a partir das forças que articulam, a partir das
potências de cada uma.
Que afectos e perceptos ressoam em nós? Como cada uma trabalha seu plano de
composição?
Da cena literária descrita anteriormente, Sandra Kogut poderia ter optado por um
registro bastante próximo, já que Rosa constrói quase que um roteiro em sua obra. Seria
possível, com o recurso do flashback, contar todas essas histórias do passado de
Miguilim, enquanto se construía a narrativa fílmica. Mas não foi assim que a diretora
decidiu construir sua obra. Ela faz outras escolhas, e vamos comentar algumas delas.
Primeiro, registremos que o filme tem poucos atores profissionais 3. As crianças
foram escolhidas no interior do estado de Minas Gerais 4. São crianças mineiras que

3
“No elenco, apenas o pai, a mãe, o tio, seu Deográcias e o doutor da cidade são atores profissionais”
(MARTINS COSTA, 2010, p.04).
4
Para conhecer o olhar da diretora, outras duas possibilidades de fácil acesso: ler uma entrevista no site
oficial o filme, www.mutumofilme.com.br, ou a entrevista online, feita por Aristeu Araújo e João Paulo
Gondim, da Revista Moviola, no endereço http://www.revistamoviola.com/2007/12/20/sandra-kogut/.
Arquivos visitados em 13 de março de 2009.
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vivem em condições físicas parecidas com aquelas em que vive a personagem rosiana,
Miguilim. Kogut, em audioentrevista no próprio DVD do filme, conta que decidiu
manter o nome verdadeiro das pessoas, também para evitar artificialidade no filme.
Depois de escolhidas as personagens e os locais de filmagens, eles conviveram por
cerca de dois meses antes de começarem a filmar. O papel da personagem principal
rosiana foi assumido por um jovem sem experiência de atuação e muito menos
experiência com cinema chamado Thiago, um menino de olhos grandes e profundos,
que nos encantam e que nos arrastam por sua expressividade, por sua intensividade. Não
é fácil ficarmos indiferentes a seu olhar nas telas. Ele nos envolve com sensibilidade,
com forças que fazem com que nos identifiquemos com a criança que ali se encontra e
que remete a tantas outras em tantos outros lugares.
A cena que escolhemos trabalhar na relação com a obra literária dura cerca de oito
minutos e começa com Thiago, tentando preparar uma arapuca para pegar passarinhos.
Ele está sozinho. De repente chega seu irmão, Felipe (Dito, no livro), e avisa que Pai
está batendo em Mãe. Thiago corre e grita que o pai precisa parar. Uma porta se fecha
atrás do menino. Felipe chega e vê a porta fechada. Ouvem-se os gritos do pai, da mãe e
do menino Thiago, mas o close está no rosto de Felipe, do lado de fora, de olhos baixos.
Corta-se a cena. Duas mulheres, a avó e uma ajudante da família conversam na cozinha.
Novo corte. A avó olha pela janela da cozinha e vê Thiago de castigo. Ela critica a
maneira como estão tratando o menino. Felipe traz água para o irmão e comenta que é
melhor não contarem para o tio – motivo da briga – o que tinha acontecido. Ele sai
correndo e deixa Thiago sozinho. Thiago sentadinho em um banco, só. Ele cutuca a
madeira da parede. O nosso olhar é dirigido para os seus dedos. Um novo corte ainda
sobre ele: de cima, a câmera destaca os seus cílios, que parecem úmidos de lágrimas.
Novo corte. A mão surge agora perseguindo uma saúva que sobe pelo mesmo caminho
da madeira que ele antes cutucava. Surge uma nova personagem, o seu tio querido, que
brinca com o menino e fala para ele sair do castigo. Thiago nada diz nem se move. O
homem entra e sai. Pergunta a Thiago sobre sua mãe. O menino permanece em silêncio.
É a avó que vem e despacha o garoto. Novo close em Thiago: por detrás da parede,
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ouve a avó pedindo que tio Terêz, o seu próprio filho, vá embora. Havia risco de morte.
Ele devia partir imediatamente, sem se despedir. Ouve-se o início de um temporal. Uma
tempestade de vento começa a levantar poeira em volta da casa. Thiago entra e vai se
encolher à porta do quarto da mãe, que continua fechada. Novo corte. Thiago faz
perguntas a Rosa, a ajudante de cozinha, sobre a mãe e o seu irmão. Ela não responde
nada. Volta o temporal, agora com chuva. Todos correm tentando apanhar a roupa,
fechando janelas. O tio aparece partindo, puxando um cavalo, levando pouca coisa.
Nova cena de Thiago vendo o tio querido ir embora, debaixo de chuva. Thiago aparece
novamente à porta do quarto da mãe, onde agora se deita. Depois de novo corte, ele
aparece em seu colo. Ela está ainda desconsolada. Anoitece. Ainda chove. Eles
deveriam rezar, mas Felipe diz para Thiago que Deus estava com raiva deles por causa
de Pai, Mãe e Tio Terêz.
Kogut faz cinema. Explora o menino em closes. Como Rosa, busca contar a história
acompanhando o olhar da criança. Thiago olha para cima com seriedade, tenta
compreender as pessoas que o cercam. Em silêncio, transita pelo mundo dos adultos,
senta-se e olha para cima, como se pedindo ajuda. Faz perguntas, mas pouco lhe dizem.
As cenas parecem fotografia. Há um jogo de luz e de sombra que a fotografia
captura. Esse jogo faz parte daquele território onde vive a família. Há submissão no
olhar desse menino, submissão às regras da família, à autoridade do pai, aos castigos, às
portas que se trancam a sua frente. Ao mesmo tempo, o universo infantil é de entrega. A
criança se entrega a seus pais, às regras dos mais velhos, mas precisa aprender a
sobreviver, a lidar com as arbitrariedades. Thiago olha na direção da luz, mas carrega
consigo uma sombra.
A alegria, que destacamos como elemento refrão na literatura, não parece ser o que
se repete no filme. Neste caso, a captura de certas imagens que a diretora soube fazer é
que podemos ver funcionar como refrão, aquilo que se repete de maneira sempre nova:
a cena da porta do quarto dos pais. No trecho que descrevemos, surge a porta fechada,
guardando a mãe, atravessada pela violência do pai, mostrando a angústia de Thiago;
surge a porta fechada diante de Felipe, isolando-o da cena mais violenta do filme. Aliás,
há uma intensificação da violência não exposta, não revelada, escondida atrás da porta,
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que surge apenas em sons de gritos e choro, da surra que o pai dá no menino que se
coloca entre ele e sua esposa.
A imagem do menino diante da porta, encolhido primeiro, depois deitado ali,
mobiliza em nós a sensação de desamparo. Conhecemos o drama de Miguilim, de
Thiago. Gostaríamos de poder ajudá-lo. Sabemos que a vida nos envolve com
dificuldades. Gostaríamos de poupar as crianças que conhecemos. Quanta gente, em
quantos lugares, não estará enfrentando algo parecido com isso neste momento? Kogut
joga com estas e muitas outras sensações nas escolhas que faz. A porta que, por
princípio, indica saída, abertura, pode estar fechada, impedindo-nos de agir, de sair, de
entrar.
No jogo de luz e sombra, essa imagem fica registrada em nossa mente e se remete ao
drama que aquele grupo de indivíduos sofre e suporta, com dores, alegrias e fé.
Destacamos novamente a fotografia do filme: detalhes da casa, da fazenda, o cutucar
da madeira... A cadência do cotidiano. O filme não é acompanhado por trilha sonora,
não há músicas de fundo, mas foi feita uma trilha que a roteirista Ana Luíza Martins
Costa e a diretora chamam de acústica, com apenas sons do lugar. É um filme para se
ouvir também.
Assim, mais do que a uma região geográfica, as imagens de Mutum parecem nos
remeter a um bloco de sensações, a uma condição de infância, de memória, de realidade,
existe aqui a invenção de um povo por vir. Aqui as duas obras se encontram. Mutum
conta a história de Miguilim, de “Campo Geral”, e esses dois monumentos, o filme e o
texto, contam a história de muitos outros meninos, brasileiros ou não, vivendo nas
mesmas condições sociais e, acima de tudo, experimentando as mesmas dores e alegrias
das brincadeiras, dos afetos, das incertezas. Aquilo que é local, que é forte presença na
vida do homem, e que salta, é o plano de composição de João Guimarães Rosa e o plano
de composição de Sandra Kogut, e é neste aspecto que os dois se aproximam. Se o
sertão de Rosa é o mundo, as chapadas de Minas onde Kogut filmou são também o
mundo. Um mundo onde há tristezas, mas que é bonito, definitivamente bonito. O um
Miguilim-Thiago torna-se um um multidão conectado a cada um de nós, um
agenciamento maquínico, construído artisticamente, via fabulação, em cada uma das
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obras.

Referências
BOGUE, Ronald. Deleuzian Fabulation and the Scars on History. Edinburgh University
Press: Edimburgo, 2010.
BOLLE, Willi. Grandesertao.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas
Cidades; Ed.34, 2004.
DELEUZE, Gilles. “Signos e Acontecimento”. In ESCOBAR, Carlos Enririque de
(Org). Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991.
_____. Crítica e Clínica. Trad. PELBART, Peter Pál. São Paulo: Ed.34, 3ª reimpressão
– 2008.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad.
GUIMARÃES, Julio Castañon. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
_____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 4. Trad. ROLNIK, Sueli. São
Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002.
_____. O que é a Filosofia? Trad. PRADO JR., Bento; MUNÕZ, Alberto Alonso. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 3ª reimpressão – 2007.
KOGUT, Sandra. Mutum. Brasil, 2007. 95 min.
MARTINS COSTA, Ana Luiza Borralho. “Miguilim no cinema: da novela Campo
Geral ao filme Mutum”. In: CHIAPPINI, Lígia; VEJMELKA, Marcel. (orgs.). Espaços
e caminhos de João Guimarães Rosa: dimensões regionais e universalidade. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 11ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984.
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A MULHER DIANTE DA REALIDADE COLONIAL E DO ATRIARCALISMO:


LITERATURA E REPRESENTAÇÃO

Débora Maria Borba (PG – UEM)

É inegável que ainda hoje vivemos em uma sociedade machista e patriarcal, na


qual o homem apresenta-se como figura que centraliza o poder ou ao menos ocupa uma
posição privilegiada no que se refere à valoração atribuída ao par binário
homem/mulher.
O construto histórico da mulher como um “outro” é marcadamente opressivo e
excludente. Nesta compreensão, a mulher forma uma figura marginal em relação ao
“centro” que é o homem e esta posição é reforçada constantemente pelas palavras, pelas
ações e estereótipos que constituem um perverso ‘senso comum’ para referir-se às
mulheres.
O conceito de gênero também é uma construção dentro do universo simbólico. A
oposição masculino/feminino nas designações tão comuns da vida social é reflexo de
um sistema sexo-gênero, uma construção sociocultural que atribui significados a
indivíduos dentro da sociedade. De acordo com Lauretis (1994) o conceito de gênero
como diferença sexual e seus conceitos derivados – a cultura da mulher, a maternidade,
a escrita feminina, a feminilidade, etc. – acabaram por se tornar uma limitação, como
que uma deficiência do pensamento feminista. As implicações dessa construção
sociocultural, que é designada pela autora como “tecnologia do gênero”, são
observáveis em qualquer dimensão, onde qualquer pessoa é antes “homem” ou
“mulher” do que “indivíduo” ou “ser humano”.
Há ainda outras dificuldades que são ressaltadas por diversos teóricos: a
construção e imposição do gênero podem aparentar uma forma de reconhecimento de
uma nova identidade para a mulher, mas ainda perpetua fatores que a limitam e
excluem. Também é problemática a designação englobante que a palavra Mulher
apresenta. De acordo com Lauretis, observa-se uma generalização através do uso da
designação Mulher para definir o gênero e prendê-las nessa representação, de forma
ideológica, quando o mais adequado seria a utilização de mulheres, respeitando as
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diferenças e a inserção em contextos sociais reais, valendo-se do papel de sujeitos


históricos designado às mulheres. É impossível afirmar que a luta e as exigências de
uma mulher branca, cristã, europeia são as mesmas de uma mulher árabe, ou de uma
mulher negra caribenha. Segundo a autora, o feminismo deve “desenvolver uma teoria
radical e uma prática de transformação sociocultural” (LAURETIS, 1994, p. 230),
atentando-se inclusive aos usos de termos.
As dificuldades existentes revelam que temas como gênero e feminismo também
se relacionam às questões de raça e classe, pois estão ligados a fatores mais complexos.
A mera proposição de um feminismo “branco”, “de classe média”, “europeu” e
“heterossexual” pressupõe exclusões. O reconhecimento das limitações impostas por
todo um construto social é importante para desenvolver uma crítica mais lúcida, que
aponte verdadeiramente para caminhos de uma representação teórica e histórica mais
consistente e prenhe de possibilidades.
Segundo Bourdieu, há algumas estruturas que legitimam a dominação exercida
pelos homens sobre as mulheres e destaca entre elas a família, especialmente por seu
caráter psicossocial; a igreja, pelo caráter misógino, estabelecido pela interpretação
aristotélica e pelos textos sagrados que reforçam o patriarcalismo; pela escola, que
embora laica, endossa pressupostos patriarcalistas; e pelo Estado, fundado sob um
patriarcalismo público. (BOURDIEU, 1999, p. 105).
A condição submissa a que foi submetida a mulher na maior parte da história da
humanidade tem aspectos perversos diante da realidade de colonização, em que o
instinto de sobrevivência sobrepõe-se a todas as outras dimensões humanas. Também é
comum na realidade colonial a dupla colonização a que as mulheres são submetidas. A
primeira colonização é a que acontece pela condição imposta pelo colonizador, e que é
comum a todos os indivíduos presentes na colônia. A segunda colonização é a que
ocorre especificamente pela condição de ser mulher.

A dupla colonização é a subjugação da mulher nas colônias, objeto


do poder imperial em geral e da opressão patriarcal colonial e
doméstica. O fim do colonialismo e o entrelaçamento deste com o
patriarcalismo durante a era colonial não aboliram a opressão da
mulher nas ex-colônias. A literatura pós-colonial mostra como as
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mulheres continuam sendo estereotipadas e marginalizadas até por


autores pós-coloniais. (BONNICI, 2007, p. 67).

O modelo de representação de personagens femininas na literatura encerra


diversas possibilidades, mas quando se presta a oferecer um modelo submetido e sem
voz há um exemplo de opressão que pode servir para a compreensão dos mecanismos de
dominação. Cabe à crítica feminista localizar o posicionamento dos textos e possibilitar
uma leitura que conduza a reflexões coerentes.
A opressão é definida como uma sujeição imposta pela força ou por algum tipo
de autoridade. De acordo com a teoria literária feminista, é algo que se relaciona às
relações de poder. Valendo-se especialmente da linguagem e da ideologia, constrói-se
uma situação que permite ao poder patriarcal dominar e subjugar as mulheres:

A opressão feminina é o resultado de uma estruturação de poder pela


qual a ideologia masculinista e a Weltanschauung masculina dominam
a totalidade da sociedade humana, deixando a mulher hierarquizada e
restrita a funções societárias estritamente ligadas à sua biologia.
(BONNICI, 2007, p. 194).

Diante da falta de percepção e clareza sobre sua condição, muitas mulheres


submetem-se às imposições e violências da opressão e, sendo a literatura muitas vezes
um reflexo da vida social, ela apresenta com frequência estas situações.
Mas ao falar sobre opressão, é comum imaginar-se os extremos, como a
violência física, os abusos e as situações impostas por sociedades fundamentalmente
patriarcais, mas essa opressão acontece também em sutilezas, em situações
naturalizadas e em preconceitos comuns e usuais. É comum observar-se mulheres que
impõem a si restrições que encerram opressão como se fosse uma condição natural.
O romance Lembrando Babilônia (1993), do australiano David Malouf, retrata
os momentos iniciais da colonização na Austrália, em meados do século XIX, a partir
de diversos olhares. O olhar que recebe destaque neste trabalho é o de Janet McIvor, a
jovem de 14 anos, filha de um casal de colonos escoceses.
A garota vive com seus pais, a irmã caçula e um primo dois anos mais jovem,
que tinha vindo há pouco tempo da terra natal de seus pais, a Escócia. Esse fator já
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representava uma vantagem ao garoto, que além de supervalorizar a terra de onde viera,
desdenhava a terra de suas primas e considerava-se superior.
Alguns fragmentos do romance ajudam a caracterizar a garota Janet e a
compreendê-la: “Janet era cheia de carinho [...] era magricela e sardenta [...] e havia
nela uma imensa sede de beleza” (MALOUF, 2000, p. 76). “...ela era uma criança de
espírito prático, e cética com relação a meros sentimentos” (MALOUF, 2000, p. 79).
Opondo-se ao garoto Lachlan, que era sempre muito vaidoso e queria receber
todos os olhares e toda a atenção que pudesse capturar para mostrar que possuía poder,
Janet não se manifestava. Assim explica o narrador: “O poder da menina era
inteiramente dela. Não precisava de testemunhas para o seu poder” (MALOUF, 2000,
p. 50).
A condição das mulheres na colônia era assinalada por algumas situações
negativas, tais como a submissão, a repressão e até mesmo a imposição concreta e
subjetiva do papel a ser cumprido: esposas, mães, donas de casa, com todas as
implicações que tais funções reclamam. As mulheres na colônia precisavam trabalhar
tanto quanto os homens, mas sabiam que não haveria muitas oportunidades para elas.
Em dado momento, Janet contrai amizade com uma vizinha, chamada Sra.
Hutchence, e aprende com ela o ofício de cuidar de abelhas. O que num primeiro
momento não ganha tanta relevância, passa depois a ser o fato mais importante na vida
da garota. São as abelhas e o exemplo de organização delas que permitem que ela
conheça a si mesma e as pessoas à sua volta. São ainda as abelhas que trazem a
ocupação futura de Janet.
A personagem focalizada no romance, que evidencia a condição das mulheres na
colônia, é também digna de nota pois a narrativa, no que se refere a essa personagem,
permite uma rica observação dos sentimentos, pensamentos e ações da jovem. Janet
McIvor tem seus pensamentos e sentimentos expressos através da narrativa e o leitor
pode perceber o quão oprimida ela se sente, especialmente quando comparada a seu
primo Lachlan, tal como é observado no excerto a seguir:

(Janet) ressentia-se amargamente da vantagem que Lachlan


desfrutava por ser menino, no que se refere a poder se mostrar e agir.
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Ele não tinha a menor necessidade de se afligir e se preocupar; era só


ser paciente, deixar-se crescer e preencher as linhas que já haviam
deixado traçadas e prontas para ele. (MALOUF, 2000, p. 77).

Janet era apenas dois anos mais velha que o primo e no período que é
apresentado na narrativa, ainda tinha a inútil vantagem de ser um pouco mais alta do
que ele, mesmo sabendo que logo seria ultrapassada. Janet percebe que a vida do garoto,
por contar com a certeza de crescer e se tornar um homem, já estava traçada.
“Ressentia-se amargamente da vantagem que Lachlan desfrutava por ser menino, no que
se refere a poder se mostrar e agir.” (MALOUF, 2000, p. 77). Por mais difícil que fosse
a vida na colônia, muitas ações já eram permitidas a ele e muitas outras viriam com o
passar do tempo. Enquanto isso a garota

não tinha nenhuma visão desse tipo quanto ao seu futuro. Tudo o que
via preparado para ela era o que sua mãe apresentava, um orgulho
rude da sua capacidade de trabalho, da perseverança e de não criar
caso por bobagens. Janet admirava a mãe, mas a estreiteza desse
futuro era aterradora para ela. (MALOUF, 2000, p. 78).

A perspectiva que a garota tinha, em sua condição de mulher na colônia, era


exatamente a mesma que sua mãe e ela não conseguia agradar-se de tal, pois desejava
mais, queria que o mundo pudesse ser diferente.
Observa-se através desses fragmentos que a opressão feminina realiza-se através
da imposição de um papel a ser cumprido, papel estritamente ligado à condição
biológica de gerar a vida (maternidade) e de submeter-se a todos os afazeres
domésticos. Subentende-se dessa forma ainda a necessidade de cumprir o papel de
serviçal do homem, de ser a cuidadora do lar e da casa, a responsável pelo âmbito
doméstico e das necessidades da família.
A personagem do romance de David Malouf é ainda representada como alguém
que busca alternativas e não se submete à condição que lhe é imposta. Se externamente
não há sinais de rebeldia, de alguma forma ela busca mudanças:

Janet devorava livros, tudo aquilo em que pudesse pôr as mãos e


significasse alguma esperança de que o mundo era mais vasto, mais
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empolgante, mais cruel – até isso seria um consolo – do que aquele


ao qual estava presa. (MALOUF, 2000, p. 78).

A busca de Janet evidencia que a passividade não a dominou e a procura por


alternativas se faz uma realidade. A utilização dos livros como ferramenta de busca de
algo diferente é muito interessante, pois remete ao conhecimento e à sabedoria. Através
dos livros a garota sabe que pode vislumbrar algo maior e melhor do que está
acostumada a conviver e talvez exista até mesmo a solução para libertar-se do jugo
opressor da colônia para com as mulheres.
O romance não pormenoriza o que ocorre com o passar do tempo, mas no final
apresenta um recorte sobre a condição de Janet: muitos anos depois ela tornou-se a irmã
Mônica, religiosa de alguma congregação católica, em uma Austrália já melhor
estruturada.
Neste momento ela é apresentada como a responsável pelo cuidado com as
abelhas no convento, aquela que faz cruzamentos e cria variedades de abelhas. Tal
atividade remonta a uma função científica, de pesquisadora. Mesmo no recolhimento e
silêncio do convento, ela consegue fazer algo que já havia feito na adolescência, mas
agora de maneira mais autônoma, madura e produtiva.
Tornar-se uma religiosa, inicialmente, pode remeter a uma conotação pejorativa,
como uma submissão maior ainda, uma mulher que abdicou da ‘liberdade’ da vida em
sociedade, optando por uma vida de serviço à igreja, aos pobres e de oração; seria essa
uma repercussão da condição submissa da mulher. Porém, uma observação mais atenta
nos leva a compreender que a função de Janet (agora irmã Mônica) é algo libertador: ela
não se submeteu aos planos inicialmente traçados para sua vida, impostos por sua
família. Embora não tenha sido claramente expresso, era compreensível que ele deveria
cumprir o mesmo papel de sua mãe: ser esposa, mãe, dona-de-casa, trabalhadora e
sofredora. A mudança de Janet, através da opção pela vida religiosa quebra essa
construção de ‘destino imposto’ e abre uma nova perspectiva em sua vida.
É muito interessante observar que ela se torna uma pesquisadora, que faz
cruzamentos com as abelhas e conhece em detalhes toda a vida desses pequenos insetos.
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O momento final do romance mostra o encontro da irmã Mônica com seu primo
Lachlan, que agora é ministro da coroa britânica na Austrália. Ambos têm suas
identidades e papéis bem definidos, ambos passam por conflitos e acabam sendo unidos
por esses conflitos, mas percebe-se acima de tudo a conciliação de ambos, superada a
condição da infância e da adolescência que tanto os afastou. Os dois estão maduros e a
segurança de Janet, em sua função e papel, é muito evidente, de forma que, mesmo sem
contar com um final otimista no romance, é possível salientar o caráter positivo da
condição da personagem feminina na colônia.
Conclui-se que a mulher ainda vive situações de opressão em uma sociedade
patriarcal e que tal submissão remonta a uma trajetória ampla e antiga, na qual à mulher
era relegado um papel inferior.
A condição de colônia reforça o papel de submissão aplicado às mulheres e o
reproduz de maneira enfática, de forma que os resquícios de tal comportamento ainda
estão presentes nas sociedades que formavam colônias no passado.
Ter clareza sobre tais estratégias de dominação é um primeiro passo para romper
com as atitudes, pensamentos e discursos carregados de preconceito. O conhecimento
sobre a condição leva ao passo seguinte, que é superar tudo que colabora para a
opressão. Deve-se levar em conta que a colonização, tanto dos indivíduos em geral, e
das mulheres em especial, não existe apenas na condição visível e material, mas existe
nas mentes. Por tal razão é extremamente importante realizar uma descolonização das
mentes.
O mais importante é reconhecer, valorizar e propiciar algo que vem se tornando
uma realidade: os estudos de crítica literária pós-colonial e feminista têm avançado em
reflexões e propostas de superação do preconceito e da condição de subalternidade
relegada às mulheres.

Referências

BONNICI, Thomas. Teoria e Crítica Literária Feminista Conceitos e Tendências.


Maringá: EDUEM, 2007.
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BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 4 ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa B. de.


Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

MALOUF, David. Lembrando Babilônia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2000.
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IMAGENS DE BRASÍLIA ENTRE CIVITAS E URBS

Débora Soares de Araújo (PG-UFPR)

A cidade de Brasília completa 50 anos e está hoje firmada no imaginário brasileiro.


Seus monumentos arquitetônicos, como o Palácio da Alvorada, o Congresso Nacional e
a Praça dos Três Poderes, articulam-se à vastidão do horizonte no Planalto Central, onde
se estabelece a relação (muitas vezes conturbada) entre a natureza, a cidade construída e
as pessoas. As imagens de Brasília abrem-se em duas vias: uma visível, outra invisível.
Na cidade há um mundo dado e construído, e um mundo percebido e experimentado.
Como nos esclarece Northrop Frye: “junto com o mundo dado, está ou pode estar
presente um modelo invisível de algo não-existente” (FRYE, 2000, p.167). – Essa, é a
visão do que não é. Nesse sentido, será mais melhor dizer que as imagens de Brasília
abrem-se em dois eixos, e aqui a palavra “eixo” serve como adequada associação ao
Eixão de Brasília, ponto zero da cidade (o cruzamento do eixo monumental com o eixo
rodoviário) inventada por Lúcio Costa - que de forma sintomática parece incrustado na
cidade como marca inegável da dualidade que a permeia.
De certo que as dualidades em tensão marcam todo o percurso da modernidade (em
suas diversas fases) e conseqüentemente, se encontram nos processos de urbanização,
porém Brasília possui especificidades marcantes. A história da cidade é mais velha do
que ela própria e marca de forma incisiva a ruptura com o Brasil antigo, agrário e
tradicional, desenvolvido ao longo de mais de 400 anos predominantemente ao longo do
litoral. É preciso deixar a civilização “banhada pelo Oceano Atlântico com pessoas ‘
arranhando ao longo do mar como caranguejos”, como disse Frei Vicente do Salvador
(SALVADOR apud ALTMAN, 2009a, p.29) e entrar no sertão caipira para criar a nova
imagem do país, ou seja, para inventar nossa modernidade. Para criar a nova cara do
país é preciso se desvencilhar do passado e planejar, executar e implantar a nova capital
- foi isso que o presidente Juscelino Kubistchek, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer fizeram
– contando sempre com a presença e o trabalho de homens preparados e corajosos,
como por exemplo o calculista (poeta) Joaquim Cardoso, responsável por colocar de pé
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as idéias de Niemeyer. O desejo por uma nova imagem nacional requeria, além de uma
nova capital, um novo brasileiro. JK queria por fim ao brasileiro à La Macunaíma,
herdeiro direto do processo histórico brasileiro, e inaugurar um novo homem, mais
próximo do modelo americano, com base no pioneirismo. Aliás, o presidente fazia
questão de frisar a diferença entre pioneiro e bandeirante: ambos desbravadores, o
bandeirante descobre a terra e vai adiante, já o pioneiro descobre e finca raízes,
procurando melhorar a todo custo a sua terra. O caráter implantado dessa nova imagem
do Brasil percebível e dessa forma, é possível perceber que: “A capital do país do
futebol não tem campo nem time de futebol. (Os estádios onde jogam o Brasiliense e o
Gama ficam fora do Plano Piloto). E a capital do país do carnaval não tem carnaval de
rua. (As aparições anuais de alguns blocos apenas realçam a inexistência de escolas de
samba), (NUNES, 2009, p.182). As ruas da capital não têm nome, o domínio da cidade
é o das siglas e dos números. Além disso, Brasília foi proibida de envelhecer. A cidade-
projeto do modernismo brasileiro foi tombada em 1990, embora ações que visavam a
“conservação” estivessem presentes desde o Plano Piloto de Lúcio Costa. A capital
parece imprimir as marcas do tempo nas cidades periféricas, que funcionam como uma
espécie de duplo distorcido. Brasília fez nascerem outras cidades, a chamada cidade
livre (Núcleo Bandeirante) é mais velha e agregou os brasileiros vindos de todas as
regiões para a construção da capital federal. Lá havia improviso, comércio livre (sem
impostos) e diversão para os trabalhadores (especialmente a prostituição, atividade
importante no processo de construção de Brasília). Assim que a capital do país foi
inaugurada quiseram destruir a cidade livre, não conseguiram. Mais tarde surgiram as
cidades-satélites, para onde o povo (também sem nome) volta depois de terminada a
jornada de trabalho no Plano Piloto. “Lá se tem ruas com nomes comuns e carências
comuns” (NUNES, 2009, p.182). O certo é que se deve às cidades periféricas a
manutenção da “ordem” no Plano Piloto; as cidades se complementam, mas nem
sempre de forma pacífica. Em uma crônica, a escritora Clarice Lispector1 percebe e
sintetiza o Espírito de Brasília ao nos dizer que:

1
. A crônica de Clarice Lispector chama-se: Nos primeiros começos de Brasília e sua referência completa
encontra-se no final deste texto.
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Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão


artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o
mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para
aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à
liberdade de Deus.
Talvez o homem de Brasília ainda não exista, ou quem sabe, ainda esteja sendo
criado, o certo é que se (ou quando) ele surgir, deverá ser capaz de lidar com muitas
dualidades em tensão.
O novo urbanismo científico, nascido do confronto entre mitos progressistas e a
miséria operária, materializa o imaginário da emancipação brasileira, mas é bom
ressaltar que sua base continua posta na dissimulação das relações sociais e na
dominação dos trabalhadores. Esse tipo de urbanismo instaura o conflito entre ordem e
desordem, noções facilmente percebidas e respectivamente associadas às classes sociais:
os pobres são os desordeiros, ou a multidão perigosa (os trabalhadores braçais
responsáveis pela construção de Brasília) e os funcionários da burocracia-modelo que
deveriam permanecer no Plano Piloto, são os homens da ordem. A capital nasceu sob o
signo da dualidade. Os dois eixos da cidade (seu ponto zero) não se descruzam nunca,
mas também não se misturam - parecem sempre justapostos. Brasília se divide em duas:
a civitas, cidade-símbolo da brasilidade, onde os pioneiros construíram a ordem, o
moderno, a centralidade e a permanência; e a urbs, cidade do cotidiano, do vivido, da
não-ordem, da influência de tradições populares (trazidas por brasileiros vindos de todas
as regiões do país), incluindo aqui a formação urbanística não planejada e sem rígido
controle, pautada na dispersão,no movimento e na transformação (maneira de ser da
maioria das cidades brasileiras). Na capital federal a relação entre civitas e urbs sempre
foi contraditória e a “ordem” foi obtida pela separação de ambas. A separação entre a
cidade-simbólica e a cidade do cotidiano nos leva a observar três principais tipos de
conflitos, que marcam todo trajeto da cidade.
O primeiro conflito está posto na tensão entre o moderno e o tradicional. De forma
simples, é possível dizer que o moderno está identificado como o novo (o que vem
substituir) e sua repetida busca é herança da valorização do conhecimento científico e
das conquistas tecnológicas advindas do pensamento iluminista, que se contrapôs à
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cultura e aos valores ancestrais. Progressivamente desvalorizado, o conhecimento


tradicional manteve-se vivo e se contrapôs de diversas formas aos valores emergentes.
Se transportarmos o conflito entre o moderno e o tradicional para os processos urbanos,
vemos que o urbanismo de maior destaque no Brasil foi o progressista, que embora
tenha tido inicialmente pretensões críticas, acabou se adequando aos processos do
fordismo e dos valores da sociedade emergente. Para visualizarmos melhor a questão
sob a ótica urbanística, basta que pensemos no contraste entre a cidade característica do
século XIX, aquela onde impera o caos, a desordem, a transformação e a dispersão,
cidade do “Homem das multidões” de Edgar Alan Poe e a cidade ordenada, repetitiva,
monótona e rigidamente controlada da Metrópolis, de Fritz Lang. O curioso é notar que
a capital-federal, inventada para ser símbolo da definitiva entrada do país na
modernidade, nasce de um gesto tradicional como declara o próprio Lúcio Costa:
“Brasília nasce do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse – dois
eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz.” (ALTMAN, 2009b,
p.77).
O segundo conflito está diante da questão da centralidade e da dispersão. É bom
ressaltar, que centralidade e dispersão são processos espaciais atuantes em qualquer
metrópole, e em Brasília podem ser percebidos facilmente. A convergência espacial das
atividades da Administração Pública e das atividades que derivam direta ou
indiretamente dela, encontram-se centralizadas no Plano Piloto. Já a dispersão
caracteriza-se especialmente pela “transferência” da população para a periferia. Após a
jornada de trabalho, grande parte do povo que trabalha e transita pelo Plano Piloto
retorna para as babéis periféricas. Diante desse movimento entre o Plano Piloto e as
cidades periféricas, cada vez mais se desenvolvem subcentros que, para facilitar a vida
da população, buscam uma dose possível de autonomia. Embora o conflito permaneça,
pois a centralidade de empregos e atividades continua e parte considerável da população
tem que se deslocar para suas casas, nas cidades periféricas. Dessa forma, a capital
federal e as cidades ao seu redor possuem processos espaciais complementares, sendo
estas últimas também responsáveis pela manutenção das condições que permitem ao
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Plano Piloto manter a civitas em ordem, embora na urbs essa ordem não prevaleça.
Neste ponto vale esclarecer um pouco mais sobre a noção de ordem:

Ordem, permitam-me explicar, significa monotonia, regularidade e


previsibilidade, dizemos que uma situação esta “em ordem” se e
somente se alguns eventos têm maior probabilidade de acontecer do
que suas alternativas, enquanto outros eventos são altamente
improváveis ou estão inteiramente fora de questão. Isso significa que
em algum lugar alguém (um Ser Supremo pessoal ou impessoal) deve
interferir nas probabilidades, manipulá-las e viciar os dados,
garantindo que os eventos não ocorram aleatoriamente. (BAUMAN,
2000, p.66).

No caso de Brasília o Ser Supremo responsável por viciar os dados é ser híbrido
composto por camadas legais, que visa barrar a ação transformadora do tempo-
movimento, elemento que age de forma mais livre em outras cidades.
O terceiro conflito vem da relação entre permanência e transformação:

Os processos vividos na cidade compreendem uma convivência


conjunta de múltiplas intensidades entre conflitos e transformações,
resistências e ambigüidades, desordem e organização, em várias
escalas e contextos em ritmo e velocidade estonteantes.
(HAESBAERT, 2002, p.80):

Então o que ocorre quando esse movimento intenso e característico das cidades é
controlado e restringido? Neste caso, uma das formas de se garantir a permanência da
civitas é usar a tutela do Estado, em detrimento da urbs. Brasília sempre foi protegida
por camadas legais e de forma extremada, em 1990, a cidade foi tombada. A busca é
pela cristalização das imagens visíveis de Brasília, que tal como uma obra de arte ficará
exposta em um museu a céu aberto. Porém, uma obra de arte também possui o peso da
imagem invisível. Por outro lado, as transformações nas cidades periféricas - sem a
tutela rígida do estado, corre seu curso normal - o movimento estonteante a que se
referiu Haesbaert. Aqui vale ressaltar que esse movimento parece se colocar como uma
ameaça à ordem de permanência perseguida pela civitas e de forma simplificada, é
possível dizer que a civitas busca, a todo custo, manter-se inalterada, ao passo que a
urbs (aqui direcionada para as cidades periféricas) se transforma como um organismo
vivo (nasce, cresce e envelhece). A relação entre Brasília e a cidade periférica pode ser
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vista através do espelho (uma reflete a imagem inversa da outra), ou através da


constatação da existência de um pacto antienvelhecimento.
Buscar comparar Brasília com Metrópolis nos pareceu uma boa opção para marcar a
relação entre a cidade visível e a invisível. Metrópolis, cidade-obra planejada por Fritz
Lang tem muito pontos em comum com a cidade de Brasília, imaginada por Lúcio
Costa. E aqui a troca das palavras planejada e imaginada serve para marcar a relação
delicada entre realidade e ficção. Brasília por vezes parece saída de uma obra de ficção.
O próprio Lúcio Costa, dizia: “Brasília, cidade inventada”, ou ainda, “Brasília, a cidade
que inventei”. Ao passo que Fritz Lang, com percepção histórica construiu uma cidade
tão plausível e viva que parece materializada de fato. Mesmo que por processos
diferentes, ambas as cidades fazem a mediação entre o que se apresenta diante de nossos
olhos com o contexto que representam. A duas cidades são frutos de imagens animadas
(com anima) que se instalaram no campo de um imaginário coletivo. Metrópolis, assim
como Brasília, é fruto de um plano urbano progressista, mas que não abandona antigas
relações sociais e a influência da tradição (o que foi substituído pelo novo). Lúcio Costa
declarava ter influência da arquitetura tradicional e não gostava de ser chamado de
modernista, preferia o termo moderno. Como esclareceu o arquiteto Jeferson Tavares, o
projeto de Lúcio Costa “era um olhar antropofágico, como fora o olhar da semana de
Arte de 1922”. (ALTMAN, 2009b, p.77). Em Metrópolis, a marca da tradição pode ser
vista em vários pontos. A casa de Rotwang, o cientista, possui forte vinculo com a
tradição. Sua arquitetura é antiga e contrasta com a cidade planejada, lá reinam as
sombras e símbolos da tradição religiosa e pagã. Lá estão as catacumbas, ponto de
ligação com os mortos e com tudo que criaram. O verdadeiro mentor de Metrópolis,
aquele para quem a memória permanece inalterada está posto em uma casa anacrônica
e intocável. Ainda sobre o aspecto da tradição, ambas as cidades retomam, em sua
gênese, aos aspectos religiosos. Metrópolis com seu Jardim do Éden, refugio feito pelos
pais para proteger e isolar seus os filhos e Brasília - com o sinal da cruz de Lúcio
Costa. Para as duas cidades, o deus Moloch, está vivo e a exigir constantes sacrifícios
humanos (mesmo que na cidade brasileira, Moloch seja uma metáfora da relação de
exploração dos trabalhadores, ou ainda uma referência a um dos mitos da construção de
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Brasília - o crime, que matou vários operários da construtora Pacheco Fernandes,


cometido supostamente (em uma das versões apresentadas na época) pela Guarda
Especial de Brasília para barrar reivindicações por melhores condições de vida e
trabalho (COUTO, 2009, p.115). As duas cidades são segmentadas e setorizadas, a
arquitetura com estética moderna e racional trabalha por escalas, que visam separar a
civitas da urbs. Assim, em Metrópolis temos, por exemplo, a Cidade dos Operários e o
Klub der Söhne, destinado à elite. Em Brasília a setorização e a segmentação vêm desde
o início, já expressas no Plano Piloto, tendo elas dado uma pausa apenas para um
momento de sonho, como declarou Oscar Niemeyer: “de Brasília guardo sobretudo a
sensação de ter vivido uma utopia igualitária, morando nas mesmas casas geminadas
dos operários e comendo ao lado deles no mesmo restaurante , como uma grande
família, sem preconceitos nem desigualdades”. (RODRIGUES, 2009, p.52). Pronta a
cidade, o arquiteto registrou em Minha Experiência... sua decepção com o fim do sonho
(RODRIGUES, 2009, p.52).
O tempo é visto de forma análoga nas duas cidades. Sobre a questão do tempo
Norbert Elias nos esclarece que:

A enorme internalização das restrições sociais relativas ao


tempo é, com efeito, um exemplo paradigmático de um tipo de
cerceamento ligado à civilização, que encontramos com
freqüência nas sociedades desenvolvidas.
(ELIAS, 1998, p.30).

Em Metrópolis e em Brasília, o cerceamento regulado pelo tempo está pautado na


execução do trabalho. As sofridas trocas de turnos em Metrópolis e a presença de
relógios (que mais parecem instrumentos de tortura) parecem cenas de um pesadelo. Em
Brasília o tempo parece aprisionado pelo espaço, que deseja permanecer intocado,
porém a dispersão da população do Plano Piloto para as cidades periféricas é regulada
pelo fim do expediente. Outro aspecto a se observar é que, em ambas as cidades, o
nacionalismo, incentivado pelo aspecto político atuante (a República de Weimar na
Alemanha e o governo dos 50 anos em 5, de Juscelino Kubistchek) ganha aspecto de
religião, e é usado para manter o domínio da ordem , especialmente o opressivo
domínio do espaço sobre os homens. Clarice Lispector novamente na crônica “Nos
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primeiros começos de Brasília”, sintetiza a opressão sentida na cidade: “ Prenderam-me


na liberdade. Mas liberdade é só o que se conquista. Quando me dão, estão me
mandando ser livre”.
De maneira geral e simplificada, existem várias semelhanças entre as duas cidades,
porém existem também diferenças importantes. Na cidade imaginada por Fritz Lang,
há mediação, que é feita pela personagem Maria (representante da classe trabalhadora -
misto de santa e revolucionária) que antecederá e possibilitará outra mediação a ser feita
(esta sim, mote do filme) pelo personagem Freder (filho do ordenador de Metrópolis),
que será o responsável por realizar o epigrama de Metrópolis: “a mediação entre as
mãos e a cabeça, deve ser feita pelo coração”. Embora o filme não revele nada a cerca
do futuro, ficam, pelo menos, duas sugestões: a de que a mediação, concretizada após o
aperto de mão entre Grott e J.Fredersen (mãos e cabeça) possibilitará a integração entre
as classes , entre as forças dicotômicas que sustentam a cidade. Freder , com sua
mediação, pode possibilitar o nascimento de uma nova cidade, de uma nova nação,
inclusive com outra forma arquitetônica, já que Metrópolis veio a baixo, depois que a
máquina M foi destruída. A segunda sugestão é a de que cidade terá um novo
ordenador- provavelmente Freder, filho direto das relações sociais anteriores e de seus
ordenamentos. Esta filiação nos dá pistas de que o novo pode não surgir de uma brusca
ruptura, mas sim de um desenvolvimento mais orgânico , ou ainda que o novo estará
comprometido com o poder-dever de ordenar. Neste caso, fica a constatação de que
pouco efetivamente mudará na nova cidade. Em Brasília, nenhuma reivindição de
filiação popular teve êxito efetivo na mediação entre civitas e urbs. O amparato legal do
Estado sempre conseguiu proteger a cidade-símbolo das transformações típicas
ocorridas em outras cidades brasileiras. Na capital, o do domínio do espaço sobre o
homem ainda é a ordem. Talvez Brasília precise de um homem próprio (talvez um filho-
mediador?) como nos lembra Clarice Lispector:

Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem


especialmente para aquele mundo[...] Não sabemos como
seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar e depois
o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não
tem o homem de Brasília.
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Ainda sobre o homem de Brasília, Augusto Nunes (NUNES, 2009, p. 184) nos
lembra que: “Dez anos depois os cearenses continuavam cearenses, os gaúchos
continuavam gaúchos, todas as peças escancaravam na estampa e no sotaque o local de
fabricação”. Mesmo depois de muito tempo o homem de Brasília pode ainda não existir,
ou se existe, ainda não realizou nenhuma mediação efetiva, que possa tentar outro
relacionamento entre civitas e urbs. Aqui vale ressaltar que, tanto o mediador quanto a
mediação, não seriam do mesmo tipo para as duas cidades, já que tempo e contexto são
outros. Tal como Metrópolis, o futuro de Brasília (e é claro, não só dela) também parece
se abrir em dois eixos. As imagens, mesmo que sejam uma projeção, parecem estar
sempre diante da inelutável cisão do ver. Assim, tanto Brasília quanto Metrópolis são
cidades que vemos e que nos olham.

Referências

ALTMAN, Fábio. A redescoberta do Brasil.. Veja. Brasília 50 anos. Ed.Especial (2138),


ano 42, p.28-37, nov/2009.
______. Era um rabisco e pulsava. Veja. Brasília 50 anos. Ed.Especial (2138), ano 42,
p.72-80, nov/2009.

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editor, 2001.

COUTO, Ronaldo Costa. A saga da construção. Veja. Brasília 50 anos. Ed.Especial


(2138), ano 42, p.102-119, nov/2009.

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro,
Zahar, 1998.

FRYE, Northrop. Fábulas de Identidade. Trad. Sandra Vasconcelos. Estudos de


mitologia poética. São Paulo: Nova Alexandria, 2000.

HAESBAERT, Rogério. Territórios alternativos. Niterói: EdUFF e São Paulo:


Contexto, 2002.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. Trad. Adail U. Sobral e Maria S. Gonçalves


São Paulo: Ed. Loyola, 1998.
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LANG, Fritz. Metrópolis. Alemanha: Universum Film,1927. Dist. Brasil: Continental,


90 min.

LISPECTOR, Clarice. Nos primeiros começos de Brasília. Disponível em:


<http://web.brasiliapoetica.blog.br/site/index.php?option=com_content&task=view&id
=431&Itemid=44>, acesso em: 19 fev, 2010.

NUNES, Augusto. O cenário infinito baniu a multidão. Veja. Brasília 50 anos.


Ed.Especial (2138), ano 42, p.182-185, nov/2009.

RODRIGUES, Sérgio. O presente contínuo de Oscar. Veja. Brasília 50 anos.


Ed.Especial (2138), ano 42, p.50-56, nov/2009.

SANTOS, Milton. Metamorfose do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1994.


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O FAZER POÉTICO DE EDGAR ALLAN POE E FERNANDO PESSOA 1

Dhandara Soares de Lima (G–UNIOESTE)


José Carlos Aissa (UNIOESTE)

Não são poucos os autores literários que falaram sobre poesia ou sobre o trabalho de
fazer poesia – para citar apenas alguns nomes, poderíamos dizer Pablo Neruda,
Archibald MacLeish, T. S. Eliot, Alexander Pope, Ezra Pound, Marianne Moore, Sylvia
Plath, Affonso Romano de Sant’Anna, Mario de Andrade, Vinícius de Moraes, Mario
de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto. Esse fator
sozinho pode nos levar a pensar como criar poesia e pensar poesia são instâncias
diferentes, mas interligadas, principalmente na escrita poética. Os próprios poetas
escolhidos neste trabalho, Edgar Allan Poe e Fernando Pessoa, escreveram outros
poemas e ensaios sobre a criação literária e, principalmente, a poética. O que
apresentamos aqui, portanto, é um recorte de um campo vasto e não tem a intenção de
ser definitivo em relação à poesia de nenhum dos autores nem, muito menos, à poesia
em geral. A teorização da arte poética também é um assunto bastante abordado e, para
que este trabalho, foram selecionados alguns autores específicos para guiar nossos
estudos.
O critério para a escolha de quais poetas analisar foi simples e, a partir das premissas
determinadas, poderia ter significado outras obras e, até mesmo, outros autores. Os
poetas, ambos muito influentes na Literatura que lhes sucedeu, não apenas escrevam
poesia, mas escreveram sobre poesia e composição poética. Portanto, suas criações e
suas escolhas eram conscientes. O ensaio “The Philosophy of Composition” e o poema
“Autopsicografia” foram escolhidos para este estudo por serem amplamente conhecidos
e por apresentarem fortes características do trabalho de ambos os autores como um todo
– sendo destes dois, propõe-se a contribuir com o crescimento da ciência que investiga
os processos poéticos e a percepção desse processo e de seu resultado.

1
Trabalho vinculado ao projeto de iniciação científica voluntário “A imagem ‘melangótica’ da morte em
alguns poemas de Edgar Allan Poe e de Augusto dos Anjos”
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1. Poesia, linguagem poética, fazer poético

Como já problematizado por vários autores, é muito complexo o conjunto de fatores


que torna algo “literatura” ou não. Terry Eagleton (2003) exemplifica que, mesmo em
um contexto “não-literário” podem ocorrer momentos em que alguma enunciação
pareça “poética” aos interlocutores – ainda que não seja esse estranhamento a essência
definitiva da literatura. Como a poesia tem como instrumento a linguagem, e a
linguagem seja um instrumento cotidiano tão comum e tão amplamento utilizado, é
compreensível que exista uma dificuldade em delimitar exatamente o que constitui uma
poesia, uma vez que, dada uma fórmula, tantos contra-exemplos ainda poderiam ser
encontrados.
Contudo, como afirma Jean Cohen (1987), se existe a palavra “poesia” existe um
objeto que corresponda ao sentido que ela evoca e, entre os membros que pertencem ao
grupo de “poesia” existem características subjacentes que os determinam como poéticos
– “é à descoberta dessa ou dessas invariantes que se dedica a poética como ciência” (p.
7). Porém, assim como também enuncia Cohen, em certos momentos é necessário que
alguns pontos sejam abstraídos para que se possa realizar alguma outra investigação.
Diz ele que “nenhuma ciência começa por definir o seu objeto. Se a biologia tivesse
começado a procurar um critério seguro do que é a vida, estaria ainda a pôr-se essa
questão” (Id., 1987, p. 8). Neste momento de definições terminológicas, nos dedicamos
mais à compreensão do que é a “essência” da poesia, o que quer dizer-se através da
poesia – e, de certo modo, a razão de sua existência – do que à “forma” daquilo que é
poético.
Inicialmente, portanto, é preciso investigar o que é o fenômeno poético – a essência
“bruta” daquilo que é poético e, portanto, da poesia. Mikel Dufrenne inicia um de seus
estudos acerca do poético com a afirmação de que “a poesia quer ser poética: ela quer
realizar-se” (1969, p. 9). Existe, portanto, poesia latente no mundo que o humano
percebe – note-se que este não é, necessariamente, o mundo em que este “vive” – e que
não é um elemento passivo na relação com o humano: “para cada um a poesia é uma
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exigência, mas esta exigência é apêlo e não pressão, define uma vocação e não uma
opressão” (idem, p. 9). Para o autor,

se queremos especificar o poético como categoria estética, é preciso


invocar então a humanidade do aparecer: o poético reside a uma só
vez na generosidade e na benevolência do sensível. (idem, p. 251)

Não existe poesia, portanto, sem que haja sensibilidade e, mesmo que, como dito, o
poético “imponha-se”, ao mesmo tempo o fenômeno poético se dá a todo aquele que
quiser lhe ser sensível.
Isso concorda com as arfimações de Cohen (1987) quando este declara que a leitura
de um poema é uma experiência, não a aquisição de um conhecimento. Para o teórico, é
isso que faz com que, cada vez que leiamos um poema, este possa nos parecer diferente,
refletindo as nossas próprias mudanças. Assim, o fenômeno poético nos toca através do
poema, sendo parte do trabalho do poeta provocar em seu leitor essa experiência – “a
poesia é presença e toda presença não dura mais do que o presente” (1987, p. 256).
E como o poema é experiência, daí justifica-se o fenômeno poético estar relacionado
mais ao mundo percebido do que ao factual, o “real” – ainda que tal conceito seja
filosoficamente discutível.

2. Linguagem poética

Anchyses Jobim Lopes (1995) relaciona a poesia ao início da linguagem e afirma que
a linguagem é “uma dimensão essencial da existência humana” (idem, p. 69) e que a
linguagem poética está “mais próxima da essência da linguagem que a prosa” (idem, p.
81) – isso, talvez, porque a linguagem poética reflita mais a experiência do que o
conhecimento.
Para Lopes (1995), a poesia invoca imagens de forma mais intensa que a prosa e,
para ele, quanto maior o número de imagens formadas pelo poema, maior a intensidade
deste. Para Cohen, “o traço pertinente da poeticidade é a intensidade” (1987, p. 256).
Essa busca por intensidade (ou característica de intensidade) é compreensível uma vez
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que o efeito poético atua de forma próxima à subjetividade humana, enquanto que a
prosa tem um caráter mais referencial – ainda que, obviamente, possa haver trechos
poéticos em um romance e partes referenciais em poemas. Ele nos chama a atenção para
o fato de que, em diversas línguas indo-européias, poesia também significa
“cavalgamento”, “condensação”, ou seja, palavras que refletem o caráter imagístico da
poesia (1995, p. 41).
Pode-se entender essa vontade de representar imagens diferentes a partir do
pressuposto de que o poeta intenciona criar no leitor uma experiência, como já dito, e
não repassar um conhecimento específico. Cohen, a respeito disso, afirma que a poesia
pode nos levar a experimentar algum sentimento ou sensação, mas não ensina a sentir:
temos que saber o que é o “amor” para senti-lo reproduzido na obra (1987). Mesmo que
a produção do objeto estético seja fruto de um labor e que o poeta crie uma realidade
própria, Cohen nos lembra que “a linguagem poética não cria a sua própria poeticidade,
mas a retira de um mundo que descreve” (1987, p. 31).
E, isso tudo, nos leva à questão central desta pesquisa: o fazer poético. Aqui,
entenderemos o “fazer poético” como todo o processo de construção daquilo que
chamamos de poesia, ou seja, a ação do poeta em transformar o lírico, presente no seu
mundo experimentado, em um objeto estético voltado à transmissão dessa percepção
sua a outrem. Como define Dufrenne, poeta é a pessoa que, colocando em ação
“propriedades específicas” da linguagem, recria o estado poético nos outros (1969, p.
101), criando, assim, o efeito poético. Efeito poético, portanto, se diferencia de
fenômeno poético uma vez que o último é o efeito, a sensação, a experiência causada no
leitor da poesia – ou seja, uma consequência do construto humano – e o primeiro é a
origem do poema, a essência latente no mundo que o poeta transporta para o poema que
produz. Também para Cohen (1987) o poeta tem essa característica de criador, uma vez
que, para ele, aqueles sensíveis ao fenômeno poético que não possuam essa capacidade
de recriar (ou perpetuar) tal efeito são apreciadores de poesia, não poetas.
Enquanto criadores de um efeito poético, Dufrenne distingue dois grupos nos quais
os poetas podem se encaixar: o poeta artesão ou o poeta inspirado. O primeiro é o
“artesão da linguagem” (1969, p. 124), que constrói o poema de forma deliberada e
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calculada. O segundo “é menos cioso de seu ato do que propriamente de seu estado”
(idem, p. 219), ou seja, ocupa-se do “estado poético” mais do que da construção do
poema.
Como anteriormente dito, muitos autores, quase inúmeros, falaram, em algum
momento e de alguma forma, sobre o fazer poético. A seguir, analisamos uma pequena
parcela desses trabalhos: “The Philosophy of Composition”, do escritor americano
Edgar Allan Poe; “Autopsicografia”, do português Fernando Pessoa; e, em um segundo
momento, “Liberdade”, também de Pessoa.

3. Poe’s Philosophy

Edgar Allan Poe, escritor americano que viveu entre 1809 e 1849, é há séculos
conhecido por seus contos e poesias. Contudo, Poe viveu de e para as Letras, tendo
afirmado, até mesmo, que este era o único ofício apropriado a um homem: “[…]
Literature is the most noble of professions. In fact, it is about the only one fit for a man.
For my own part, there is no seducing me from the path.” (POE, 1949)
O estilo de Poe, “gênio fantasmagórico”, segundo Carolina Nabuco (1967), carrega
algo de sombrio em si. Vários estudiosos de sua obra atribuem essa característica à sua
biografia, cheia de tragédias pessoas (como a morte dos pais, a separação dos irmãos, a
morte de sua mãe adotiva, a morte de sua esposa, entre outros). Quanto a isso, Aissa
define:

Assim como fez em sua prosa ficcional, Poe se valeu em seus poemas
no mais das vezes de temas góticos e melancólicos: a morte da amada
e a consequente relação necrofílica (quer psíquica quer física),
ambientações bizarras, sufocantes e angustiadoras, animais e objetos
de aspecto sinistro numa nefasta função simbólica de prenúncio de um
destino fatídico. (2006, p. 63)

Deve-se considerar que a obra de Poe é, como ele mesmo definiu, “the results of
matured purpose and very careful elaboration” (POE, 1839, p. 6), portanto, nada deve ser
considerado acidental – “if I have sinned, I have deliberately sinned” (idem). Certamente
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que isso não descredibiliza as análises psicológicas da produção do autor, mas nos
fornecem diferentes ângulos sob os quais analisar o seu trabalho.
Como o próprio Poe, em vários momentos, reitera que suas obras são construções
estéticas meticulosamente planejadas, é importante que também seja estudada pela
crítica e análise literária dessa forma. Tratar seus poemas como simples obras de evasão
e expressão emocionais é simplificar algo complexo.
No ensaio “The Philosophy of Composition”, publicado em abril de 1846 na
“Graham’s Magazine”, revista para a qual Poe escrevia regularmente, o autor volta a
afirmar o caráter laborioso de sua literatura. Neste seu famoso ensaio, Poe descorre
sobre seu também famoso poema “The Raven”. Aissa (2006) aponta como “The Raven”
é um poema que se encaixa no conjunto da obra de Poe:

Os poemas são amiúde narrativos, repletos de conjuntos descritivos,


semelhantes a diapositivos de emoções poeticamente congeladas, que,
entremeados com toques de musicalidade, tendem a criar marca
indelével em nossa memória. (2006, p. 63-4)

A razão da curiosidade despertada por este ensaio foi o fato de que, na época, como a
visão predominante em relação à poesia era a do poeta inspirado, devemos considerar,
portanto, que a amosfera mística (tão ligada à poesia desde seus primórdios – de que
falam Dufrenne, Cohen, Lopes, entre vários outros) ainda pairava sobre a poesia e a
própria produção poética. Até então, falar sobre a produção poética era falar sobre um
estado sobrenatural no qual o poeta era um instrumento do próprio estado poético, como
já discutido.
Poe, logo no início de seu texto, critica diretamente essa visão romântica de poesia,
colocando-se em uma categoria à parte pelo simples fato de negar-se a reproduzir essa
“não-verdade”.

Why such a paper has never been given to the world, I am much at a
loss to say — but, perhaps, the autorial vanity has had more to do
with the omission than any one other cause. Most writers — poets in
especial — prefer having it understood that they compose by a species
of fine frenzy — an ecstatic intuition — and would positively shudder
at letting the public take a peep behind the scenes, at the elaborate and
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vacillating crudities of thought — at the true purposes seized only at


the last moment — at the innumerable glimpses of idea that arrived
not at the maturity of full view — at the fully matured fancies
discarded in despair as unmanageable — at the cautious selections and
rejections — at the painful erasures and interpolations — in a word, at
the wheels and pinions — the tackle for scene-shifting — the step-
ladders and demon-traps — the cock's feathers, the red paint and the
black patches, which, in ninety-nine cases out of the hundred,
constitute the properties of the literary histrio.(POE, 1846, p.
163)(Grifos nossos)

Além disso, mostra-se orgulhoso de sua “capacidade” de “detail, step by step, the
processes by which any one of his compositions attained its ultimate point of
completion” (1846, p. 163), demonstrando novamente o caráter de ofício a que o poeta
artesão se dedida, e complementa seu “autoelogio” dizendo:

I am aware, on the other hand, that the case is by no means common,


in which an author is at all in condition to retrace the steps by which
his conclusions have been attained. In general, suggestions, having
arisen pell-mell, are pursued and forgotten in a similar manner. (idem,
p. 163)

Poe, certamente, tinha razão ao dizer que trabalhos como este são “desideratum”, ou
seja, algo que estava faltando e era preciso, afinal, é um processo de reconstrução do
processo criador de um poema terminado. Tais trabalhos não são comuns – não eram e
continuam não sendo. Ele nos revela, aos poucos, até mesmo o fato de ter calculado o
número de versos do “Raven” antes mesmo de tê-lo iniciado, quebrando ainda mais a
imagem de poesia natural e fruto de inspiração mágica. Esta informação, quase que por
si só, já serviria para classificarmos Poe como um “poeta artesão”.
É por isso que sua produção, principalmente sua produção poética, não pode ser vista
como simlesmente confissão emocional. A própria escolha temática é justificada pelo
autor, para o caso do “Raven”, mas cuja justificativa poderia ser extendida à recorrência
desta em sua obra.
Poe explicita que antes de iniciar o poema, até mesmo antes de escolher o número de
versos, o poeta decide o assunto de que tratará – aqui, vemos um privilégio do conteúdo
sobre a forma que continuará durante todo o ensaio. Para Poe, qualquer estratégia
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utilizada será feita em função do conteúdo. Com isso, a visão de Poe vem ao encontro
da de Lopes, que afirma que “a intencionalidade da obra de arte deve participar
integralmente de todas as suas partes” (LOPES, 1995, p. 97). Para essa escolha de
assunto, o autor relata uma série de critérios, sendo que o primeiro é a escolha de um
efeito: “we commence [...] with this intention” (idem, p. 164), “with the consideration
of an effect” (idem, p. 163). Poe deixa claro que a escolha de seu tema intenciona a
produção de um determinado “vivid effect”, “an impression” em seu leitor.
Outro quesito para a escolha dessa impressão foi que o efeito desejado deveria ser
“universally appreciable” (idem, p. 164). Para o autor, “the sole legitimate province of
the poem” seria a Beleza. Sobre esta Beleza, diz Poe:

That pleasure which is at once the most intense, the most elevating,
and the most pure, is, I believe, found in the contemplation of the
beautiful. When, indeed, men speak of Beauty, they mean, precisely,
not a quality, as is supposed, but an effect — they refer, in short, just
to that intense and pure elevation of soul — not of intellect, or of heart
— upon which I have commented, and which is experienced in
consequence of contemplating "the beautiful." (idem, p. 164) (Grifos
nossos)

Portanto, para o poeta, a essência do poema, a razão de sua existência, é a reprodução


do que ele chama de “Beleza”, mas que, aqui, já conceituamos como efeito poético.
Assim, as reflexões de Poe encontram eco nas definições de Dufrenne, pouco mais de
100 anos depois.
Agora, mostra-se um ponto merecedor de atenção, dado o foco deste trabalho: para
Poe, “Beautiy [...] is the atmosphere and the essence of the poem”, enqaunto que “Truth
[...] [is] far more readily attainable in prose” (idem, p. 164). Talvez nessa passagem
esteja a resposta a um de nossos questionamentos motores: o porquê da escolha de Poe,
um poeta, falar sobre seu ofício em prosa e não em verso. Desta forma, nos é dado mais
um ponto importante da concepção de Poe acerca da forma poética. Mesmo que esta
seja adequada à transmissão de sentimentos – ou “efeitos”, “impressões”, não é a forma
que ele escolhe para transmitir ideias: “not of intellect” (idem, p. 164). Essa ideia de
divisão temática entre o poema e a prosa já podia ser encontrada em A Letter to B——,
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de 1836, e continua através de sua carreira. É importante não deixar de notar que vários
dos pontos aqui discutivos são também encontrados sendo discutidos pelo autor em The
Poetic Principle, o que mostra que a opinião de Poe permaneceu basicamente a mesma
em relação a esses assuntos.
Com a preocupação de ser universal, Poe escolhe o tema da melancolia. Tendo
escolhido o “tone” de seu poema, ele então analisa quais os sons e estratégias escolherá
para levar seu leitor à impressão melancólica que ele intenciona. Quanto aos sons,
escolhe o que de mais “sombrio” lhe parece e, assim, a partir de elaboração cuidadosa,
surge o famoso “nevermore”. A repetição também é uma estratégia deliberada de Poe,
assim como o efeito de intensificação na seriedade das perguntas que o seu eu-lírico faz
ao corvo que lhe visita. Cada palavra, cada verso é tecido singularmente. Notemos, por
fim, que para criar as imagens “universais”, Poe se utiliza do “retorno elementar” de que
fala Dufrenne (1969, p. 237), quando afirma que, desde a escolha do tema, olhou “rather
within” (POE, 1846, p. 163) para buscar o poético.

4. Autopsicografia de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa (1888-1935) é um dos maiores poetas em língua portuguesa que já


viveu. O conjunto de sua poesia é vasto – dividido em seus heteronômios, escreveu por
vários poetas. Até hoje recebe homenagens e tem sua obra lida, analisada e admirada.
Assim como Poe, também foi um “poeta dos avessos”, brincando sempre com os sons
de sua língua, assim como o americano fez e, em seus versos, o português chega a ser
tão sonoro quanto o inglês. A fortuna crítica a seu respeito também é imensa. Ainda que
tenha escrito ensaios acerca de poesia, aqueles publicados a que tivemos acesso não
chegam a ser “completos”, geralmente sem título e até inacabados. E, como escreveu
vários outros poemas sobre a própria poesia, é profícuo comparar as visões que ele
apresenta desta forma.
Outro ponto interessante de se comparar as visões de poesia de Poe e Pessoa é o fato
de o escritor posterior ter demonstrado interesse pelo anterior, tendo se dedicado à
tradução de alguns de seus poemas, entre eles o próprio “Raven”. Curiosamente, ele
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dedica-se a uma tradução mais melódica do que semântica e o nome da amada perdida
nem chega a aparecer. Provavelmente isso seja proveniente, entre outras razões, de sua
crença de que a música era essencial na poesia, concepção esta bastante presente em
seus ensaios acerca de poesia – “musicar um poema é acentuar-lhe a emoção,
reforçando-lhe o ritmo” (PESSOA, s.n., p. 73). Essa é, note-se, uma característica que
Dufrenne aponta para o poeta artesão (1969). Ele também, em assonância com Poe,
critica diretamente o poeta inspirado:

O primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, de


temperamento intenso e emotivo, exprime espontânea ou
refletidamente esse temperamento e essas emoções. É o tipo mais
vulgar do poeta lírico; é também o de menos mérito como tipo. (s.n.,
p. 67)

Tal crítica vai de encontro à opinião expressa por Cohen, quando diz que “só uma
minoria de criações aleatórias é poeticamente interessante” (1987, p. 214)
“Autopsicografia”, poema publicado em 1934, tornou-se um dos poemas mais
conhecidos em língua portuguesa. De autoria de Pessoa, trata exatamente da temática do
fazer poético e do “viver” poesia. No poema, o poeta aparece como um “prisioneiro” de
sua condição de “ser poeta”, um fardo que este carrega em benefício dos outros.
O fazer poético aqui se torna um emaranhado no qual não se pode confiar, uma vez
que o próprio eu-lírico inicia suas declarações descredenciado a si mesmo como fonte
segura de informações.
No poema, o poeta artesão parece existir em função do poeta inspirado, estando toda
a arte poética subordinada ao estado poético do poeta – e este estado poético existir
pelo efeito poético que sua obra deve provocar. Os leitores, neste poema, aparecem
como seres que se aproveitam da existência do poeta. Em um ensaio, Pessoa afirma que
“a sensibilidade é pessoal e instransmissível” (s.n., p. 70), o que pode mostrar um
sentimento de superioridade do poeta em relação aos não-poetas, uma vez que, no caso
do “Autopsicografia”, sua dor verdadeira jamais poderá ser sentida pelos outros.
Afirma, também, que “toda a arte se baseia na sensibilidade” (idem) e que a transmissão
“do que sentimos” – ou seja, a transformação do estado poético em efeito poético – deve
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acontecer através da sensiblidade. Assim, vemos que o primeiro verso do poema


realmente deve ser bastante considerado durante a análise, dado que, durante o poema,
ele desinstitui o leitor como sendo capaz de realmente sentir o poema enquanto que, em
outro momento, mostra a opinião de que a arte só acontece quando se reflete no
humano.
Em um de seus ensaios, o poeta afirma que

a composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da


emoção, mas no momento da recordação dela. Um poema é um
produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem,
evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir
intelectualmente (s.n., p. 72)

Essa valorização do trabalho intelectual no poema classifica Pessoa como um poeta


artesão e mostra que o poeta valorizava um distanciamento entre sua poesia e o
fenômeno poético. Assim, como Poe, portanto, também buscava em si mesmo uma
“lembrança” poética, retirando o fenômeno de seu mundo experimentado e não apenas
“reproduzindo beleza”.
Em “Liberdade”, poema publicado no mesmo ano e na mesma coletânea de
“Autopsicografia”, Pessoa demonstra uma opinião bastante interessante em relação à
poesia. No poema, o eu-lírico parece “libertar-se” de sua condição de poeta e, assim,
pode aproveitar a vida que acontece longe da literatura: “O sol doira sem literatura/ O
rio corre bem ou mal,; sem edição original”. Na realidade, a vida parece melhor sem a
interferência do “estudar”, que podemos, cremos, compreender como “refletir”. “Ler é
maçada,/ estudar é nada”.
Neste poema, o que mais chama a atenção, em contraste com os pontos
problematizados anteriormente neste trabalho, é a forma como, agora, ele desconstrói o
ato de construir um mundo à parte, na Literatura.
Talvez, de certa forma, isso possa ser explicado pelo fato de que, como vimos, o
poeta analisa a questão da criação literária como uma atividade que requer frieza e
distanciamento. Essa se mostra uma tese possível quando contrapomos as imagens de
simplicidade e calor que são colocadas no poema à frieza criativa da poesia, para
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Pessoa. Poderíamos concluir, portanto, que, para o poeta, o efeito poético não se
equipara ao fenômeno poético, presente na vida em si.
Análises mais aprofundadas acerca do ponto que ele levanta, em contraste à sua
concepção de poesia apresentada em seus poemas e ensaios, é um campo profícuo para
estudos posteriores.

Conclusão

Neste estudo, percebemos que várias das concepções de poesia e efeito poético são
compartilhadas por Poe e Pessoa. Como aspecto de maior destaque, podemos apontar a
vontade de transmitir um “efeito” ao leitor através da poesia, o que concluímos
corresponder ao “efeito poético”, assim denominado por teóricos posteriores.
Interessantemente, eles são, por vezes, erroneamente classificados como poetas
“inspirados”, ainda que, a partir de uma leitura mais abrangente de seus escritos e,
então, uma análise aprofundada de seus poemas, mostrem-se claramente poetas artesãos
e, em seus ensaios, valorizem o poeta artesão em detrimento do inspirado. O importante
papel da musicalidade no poema também aproxima esses dois poetas e não pode deixar
de ser considerado. Ambos relatam encontrar sua inspiração em “si mesmos”, ou, em
suas memórias, e distanciam o “estado poético” do momento de construção do objeto
estético – como vimos, o estado pouco influencia suas criações. Eles se mostram,
contudo, sensíveis ao fenômeno e têm a produção do efeito poético em seus leitores
como objetivo primordial de sua poesia. Os dois poetas também diferenciam a prosa e a
poesia como tendo finalidades distintas: uma para transmitir ideias e, a outra,
“sentimentos”.

Referências

AISSA, José Carlos. Analogias e contrastes na poesia de Alphonsus de Guimaraens e


de Edgar Allan Poe. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) - Instituto de
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Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista - São José do Rio
Preto, 2006.
COHEN, Jean. A plenitude da linguagem: teoria da poeticidade. Trad. PEREIRA, José
Carlos Seabra. Coimbra: Livraria Almeida, 1987.
DUFRENNE, Mikel. O poético. Trad. NUNES, Luiz Artur; SOUZA, Reasylvia Kroeff
de. Porto Alegre: Editora Globo, 1969.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. DUTRA, Waltensir.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LOPES, Anchyses Jobim. Estética e poesia: imagem, metamorfose e tempo trágico. Rio
de Janeiro: Sette Letras, 1995.
NABUCO, Carolina. Retrato dos Estados Unidos à luz da sua literatura. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1967.
PESSOA, Fernando. Cancioneiro. 1934. Disponível em: <
http://www.insite.com.br/art/pessoa/cancioneiro/index.html> Acesso em: 17/Mar/2010.
PESSOA, Fernando. Páginas de estética e de teoria e crítica literárias. 2ª Ed. Lisboa:
Editora Ática, s.n.
POE, Edgar Allan. A Letter to B——, Boston, Southern Literary Messenger, Jul. 1836,
p. 501-503.
POE, Edgar Allan. Carta a Frederick W. Thomas. 14/Fev/1849. Disponível em:
<http://www.eapoe.org/works/> Acesso em: 14/Mar/2010.
POE, Edgar Allan. Tales of the Grotesque and Arabesque. In: E. A. Poe Society of
Baltimore. Disponível em: <http://www.eapoe.org/works/editions/tgavolI.htm/> Acesso
em: 17/Mar/2010.
POE, Edgar Allan. The Philosophy of Composition. Graham's Magazine, Boston, vol.
XXVIII, no. 4, Abril 1846, p.163-167. Disponível em:
<http://www.eapoe.org/works/essays/philcomp.htm> Acesso em: 17/Mar/2010.
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DE EBLA A CAMBARA: O ESPAÇO DO FEMININO EM NURUDDIN FARAH

Divanize Carbonieri (UFMT)

Introdução

O escritor somali Nuruddin Farah, radicado na África do Sul, dedicou-se a escrever,


durante toda a sua vida, uma série de romances que mostram momentos específicos da
Somália ou do seu povo. Na verdade, Farah é, até a atualidade, o único romancista
somali a escrever em inglês. Nesse sentido, é o principal responsável por tornar
conhecidos dos leitores ocidentais o seu país e a sua cultura 1. Ele inicia a sua produção
na prosa ficcional com From a crooked rib (1970), uma obra centrada na consciência e
nas aventuras de uma jovem mulher, Ebla, em meio à vida na sociedade tradicional
somali. Em seguida, A naked needle (1976) discute os primeiros anos da ditadura do
General Siad Barre, nos quais os intelectuais do país ainda mantinham a esperança de
que a instalação do socialismo traria a mudança desejada para a Somália. Apesar disso,
o livro foi censurado pelo governo, e seu autor, obrigado a permanecer na Europa, onde
realizava, na época, seus estudos de pós-graduação. 2
No exílio, Farah escreveu sua primeira trilogia, Variations on the theme of an African
dictatorship, que propunha uma reflexão a respeito das conseqüências desastrosas do
autoritarismo de Barre para a Somália e que se compunha dos romances Sweet and sour
milk (1979), Sardines (1981) e Close sesame (1983). Nessa primeira trinca de romances,
Farah retrata as atividades de um movimento organizado de cerca de onze intelectuais

1
Um outro autor somali, Abdourahman A. Waberi, publicou em francês o romance Les pays sans ombre
(1994), com o qual ganhou o Grande Prêmio para novos falantes de francês da Academia Real de Língua
e Literatura Francesa. Duas mulheres somalis escreveram suas biografias recentemente em inglês: Waris
Dirie, com Desert flower (1997), e Ayaan Hirsi Ali, com Infidel (2007).
2
Antes disso, Farah já havia sofrido uma experiência com a censura. Em 1972, a língua somali recebeu
uma ortografia do governo de Barre, transformando-se, junto com o árabe, na língua oficial do país.
Farah, que já havia publicado seu primeiro romance em inglês, sofreu, então, pressões dos grupos mais
nacionalistas para escrever suas obras em somali, às quais logo cedeu, publicando um romance nessa
língua em folhetins num jornal local. Porém, um dos capítulos desagradou os censores e a publicação foi
interrompida. Logo em seguida, veio o exílio, e ele nunca mais se aventurou a escrever em somali,
preferindo traduzir as realidades de sua cultura para um inglês impecável e sofisticado.
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que se opõe ao presidente durante os anos de maior força de seu governo. Mas nada é
mais chocante do que a ineficácia das formas de resistência encontradas. Os heróis
resistentes de todos esses romances não passam de figuras forçadas à imobilização,
neutralizadas de alguma forma pelo aparato repressivo do regime.
Uma segunda trilogia, dessa vez intitulada Blood in the sun, seria escrita, ainda
retratando diversas fases da ditadura. Maps (1986), o primeiro volume dessa série, se
passa no final da década de 1970, no momento da investida bélica de Barre no Ogaden, 3
e termina em meados dos anos oitenta. O livro seguinte, Gifts (1992), se concentra
aproximadamente na segunda metade da década de 1980, com o enfraquecimento
sistemático do poder do General, agravado por sérias dificuldades econômicas e pela
falta de energia elétrica e de combustíveis que assolava o país. Finamente, Secrets
(1998) examina o último ano do governo Barre, no início da década de 1990, quando
grupos milicianos travavam uma guerra contra o presidente e as tropas leais a ele. Mas
dessa vez a situação política serve apenas como pano de fundo em todas essas
narrativas. Uma vez que qualquer ação política parece inútil, Farah se volta agora para a
exploração mais efetiva das vidas psíquicas de seus personagens. Seus protagonistas
continuam, em grande parte, paralisados no plano externo, mas internamente passam
por grandes transformações. Se não podem mudar a realidade de seu país, eles pelo
menos tentam se tornar sujeitos mais plenos.
Os dois últimos romances de Farah, Links (2004) e Knots (2007), se passam num
período mais recente, depois da queda de Barre, com a total desarticulação do governo
federal. Em Links, dois senhores da guerra, chefes de milícias armadas, controlam,
respectivamente, o norte e o sul de Mogadíscio. Em Knots, até mesmo o poderio desses
dois senhores ruiu, deixando a cidade à mercê dos conflitos entre inúmeros grupos
armados chefiados por senhores menos importantes. Nesse momento, os protagonistas
de cada romance, respectivamente um homem e uma mulher, retornam do exterior para
encontrar uma Somália devastada pela luta armada entre clãs rivais. Ambos tentam

3
Região de maioria somali encravada no leste da Etiópia e subordinada politicamente a ela. O Ogaden
serviu de palco para uma disputa entre a Somália, liderada por Barre, e a Etiópia, dando origem a uma
guerra entre 1977 e 1978. Depois de um breve período de triunfo dos somalis, os etíopes retomaram o
domínio da região.
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oferecer seus esforços para a transformação da nação. Jeebleh, o herói masculino de


Links, arquiteta planos violentos para auxiliar seus amigos e livrá-los dos abusos dos
chefes locais. Contudo, Cambara, a heroína de Knots, surge com uma outra proposta: a
mudança através do amor e da paz. É a primeira vez que um protagonista de Farah
parece encontrar um caminho de ação fora da imobilidade a que estavam condenados
seus antecessores. Também nos parece significativo ser esse protagonista uma mulher, a
primeira agente depois de uma série de heróis inativos. Nosso objetivo nesse artigo é
justamente traçar uma linha de desenvolvimento para as personagens femininas de
Farah, desde a primeira, Ebla, até a última, Cambara, mostrando que, entre ambas,
houve um alargamento das suas possibilidades de ação. Essa longa série de mulheres
ficcionais parece ir de um extremo a outro, do papel de vítimas indefesas nas mãos dos
homens até o de sujeitos transformadores da sociedade contemporânea somali. O espaço
que ocupam nos romances também se alarga, e o elemento feminino vai aos poucos
tomando o foco central da narrativa.

1. Ebla, a pioneira
Ao examinar a vida no seio da sociedade tradicional somali em From a crooked rib,
Farah preferiu concentrar o enredo nas ações de um personagem feminino, mostrando
uma posição solidária em relação às mulheres e um questionamento à opressão que elas
enfrentam nesse contexto. Ebla, que vive inicialmente no Ogaden, resolve fugir de sua
aldeia para evitar o casamento que seu avô arranjara para ela com um homem rico, mas
idoso. Na primeira parte de sua jornada, ela busca abrigo na casa de um primo na cidade
de Belet Wene, onde ajuda a esposa dele a dar à luz uma criança. Em seguida, seu primo
vende sua mão em casamento para um agente para poder pagar uma dívida com o
governo. Ebla foge novamente, dessa vez para Mogadíscio, na companhia de Awill, o
sobrinho de uma vizinha. Lá, eles se casam e, depois de uma sofrida noite de núpcias,
em que Ebla é surrada pelo marido (como é o costume tradicional somali) e tem que
enfrentar as intensas dores causadas por ter sido circuncidada aos oito anos de idade,
parece que finalmente as coisas vão mudar para ela, que começa a se sentir feliz no
papel de esposa. Awill recebe, então, uma bolsa do governo para fazer uma viagem de
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estudos à Itália, deixando Ebla em Mogadíscio, sem lhe enviar dinheiro para as
despesas. Sem ter como pagar o aluguel, Ebla aceita a sugestão da senhoria de se casar
com um outro homem em segredo.4 Ao descobrir que está grávida, ela não sabe quem é
o pai de seu filho. Awill retorna para Mogadíscio, e o enredo termina sem que Ebla
tenha decidido se vai contar a ele sobre seu outro marido ou não.
Ebla parece iniciar uma tradição de heroínas negras que fogem da opressão rumo a
um destino melhor e a um lugar onde possam viver com liberdade. Em sua esteira,
enfileiram-se protagonistas como a Sethe de Beloved (1987), da afro-americana Toni
Morrison, e Mazvita de Without a name (1994), da zimbabuense Yvonne Vera. Sethe
foge, na segunda metade do século XIX, da escravidão e violência do sul rural dos
Estados Unidos para Cincinnati, no norte do país, onde esperava viver livre com seus
filhos. Mazvita é uma outra fugitiva, escapando de sua aldeia no Zimbábue depois de
sofrer um estupro em plena guerra civil em 1977 para a capital Harare. Ela ainda passa
por um estágio intermediário em Kadoma, onde conhece o pai de seu filho. Porém, para
essas mulheres a cidade grande não traz a tão sonhada liberdade. Para Ebla, a situação
também não é diferente. Ela sai do deserto para a capital, fazendo, como Mazvita, uma
parada temporária numa cidade menor. Mas em todos esses contextos a repressão
masculina que enfrenta é praticamente a mesma. Na cidade grande, os homens não são
menos opressores, e Ebla é tratada como mercadoria em todos os seus relacionamentos.
De acordo com Florence Stratton (2002 [1985]), a estrutura da sociedade tradicional
somali, no que diz respeito aos costumes relativos ao casamento, faz de todas as
mulheres prostitutas. Isso porque elas são vendidas e compradas, trocadas por cabeças
de gado e camelos. A própria Ebla reconhece que as mulheres são “coisas materiais,

4
Na Somália, como em outros países islâmicos, é comum o costume dos casamentos temporários, em que
um homem, normalmente já casado, firma um contrato de casamento com outra mulher para
determinados fins durante um certo período de tempo. Esse costume é normalmente condenado pelos
líderes religiosos e proibido pelas esferas religiosas oficiais, mas continua a ser realizado pelas pessoas
comuns. Muitas vezes esses casamentos são realizados em segredo, para não incorrer na ira dos
sacerdotes. Como é sabido, nessas sociedades, um homem pode desposar mais de uma mulher. No
entanto, nos casamentos temporários, as obrigações do marido para com a esposa tendem a ser mais
flexíveis e delimitadas a um curto espaço de tempo. Os críticos desse tipo de união afirmam que se trata
apenas de uma forma de prostituição disfarçada.
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exatamente como objetos ou itens na prateleira de uma loja” (FARAH, 2006 [1970], p.
75, tradução minha). São os patriarcas que decidem entre si os preços que serão pagos
por uma noiva. Justamente por isso as mulheres são uma importante fonte de riqueza
nas famílias somalis, mas essa contribuição dificilmente é reconhecida. Apesar de sua
rebeldia inicial, Ebla não consegue escapar dessa realidade, e é obrigada a contrair um
segundo casamento, com um homem já casado, para sobreviver depois que seu primeiro
marido Awill parte para a Europa. Ironicamente, ela parece satisfeita no papel de esposa
– “Eu amo a vida, e amo ser uma esposa, não importa de quem” (FARAH, 2006 [1970],
p. 112, tradução minha). Tal satisfação não parece estranha porque não há realmente
outra alternativa para as mulheres nesse contexto. Fugindo de ser tratada como uma
coisa, Ebla consegue apenas realizar esse destino. Dessa forma, Farah critica, através da
história de Ebla, a menos valia que as mulheres somalis enfrentam em sua sociedade,
desde a organização social tradicional até a atualidade.
Paralelamente a isso, Farah mostra como as mulheres estariam mais próximas de
uma outra percepção da realidade. Ebla também inaugura uma longa linhagem de
sonhadores nos romances de Farah, um autor que insere sonhos em quase todas as suas
narrativas ficcionais. A princípio, são apenas as mulheres que sonham, mas, em Maps,
Secrets e depois Links, são os homens que ocupam a posição de principais sonhadores.
Nesse momento inicial de sua obra, os sonhos parecem se ligar indissoluvelmente aos
mistérios do elemento feminino, algo dificilmente explicado pelo pensamento racional e
distante da experiência dos homens. Os sonhos de Ebla também correspondem a sua
situação na vida de vigília:

She was sitting in the dwelling, just like any other day. (...) Early in
the morning, her grandfather had told her to rise up and clean the milk
vessels. It was the day that her grandfather had given her hand to the
old man. Ebla had refused to go. She said that she was sick and
suffering from stomach-ache. (...)
‘Then may you die,’ he said. (...)
The camels went round and round at first and then ran towards the
huts. Ebla was still lying on the floor, where her grandfather had left
her when she refused to go and clean the milk-vessels. One of the
camels ran into the hut, and walked all over her. (...)
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She was on the brink of death, when two of the camel-herds came into
the hut. Her grandfather was called in to give a final blessing, since
everybody thought she would die, but he refused to.
Thank the Lord, all this was only a dream (FARAH, 2006 [1970], p.
122).

O fato de Ebla sonhar que está sendo pisoteada por um camelo funciona como um
símbolo, por um lado, da comparação entre as mulheres e esses animais na sociedade
somali. Como dissemos, as mulheres são importantes índices de riqueza numa família.
Os camelos, animais indispensáveis para a economia da região, também têm a mesma
função. E é o costume trocar mulheres por camelos, e vice-versa. Contudo, por outro
lado, no sonho de Ebla também se desenha uma perversa hierarquia. Na verdade, as
mulheres parecem valer menos do que os camelos, e essa parece ser a razão de ela se
visualizar sendo esmagada por eles. Numa espécie de relação metonímica, um camelo
também simboliza toda a riqueza de um homem. São os cascos dessa riqueza, do
dinheiro do mundo masculino, que Ebla sente sobre si. Mesmo ela estando à beira da
morte no sonho, seu avô se recusa a lhe dar a benção final, o que indica que também na
vida de vigília qualquer possibilidade de reconciliação é inviável. Sua afronta por não
ter aceitado o marido que ele escolhera para ela é algo imperdoável, até mesmo in
extremis. Acima da felicidade e do bem-estar das mulheres, vem a conveniência dos
homens.
Os sonhos de Ebla a ligam a um personagem feminino posterior, Beydan de Sweet
and sour milk. Nesse livro, que tem como foco principal a história da morte de um
homem, Soyaan, e a busca de seu irmão gêmeo, Layaan, para elucidar esse crime, é
Beydan, mais uma vez uma mulher, a única sonhadora do romance. Casada
anteriormente com um homem que morrera enquanto estava sendo torturado pelo pai
dos gêmeos, Keynaan, na época um inspetor de polícia, ela tem que aceitar o assassino
de seu primeiro marido como esposo, numa espécie de reparação oferecida pelo
governo. Estando no último mês de gravidez, ela sonha que dá à luz um menino que
recebe o nome do irmão morto. Porém, ela estranhamente não aparece em seu próprio
sonho, não estando presente quando seu filho é nomeado. Numa incrível mostra de
sabedoria, Beydan interpreta isso como uma prova de que morrerá no parto, o que de
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fato se efetiva. Farah demonstra, dessa forma, que é justamente o personagem mais
oprimido do romance aquele que tem o maior conhecimento de uma outra realidade.
Além disso, o fato de não figurar em seus sonhos também pode ser interpretado como
um símbolo de que as mulheres somalis não são vistas como sujeitos plenos em sua
sociedade, e até mesmo em suas imagens oníricas parecem ter a sua agência negada.

2. As mulheres enlatadas e o amor


A próxima sonhadora dos romances de Farah é Medina de Sardines, que retrata a
vida das mulheres que compõem o movimento contra o governo. Medina é, antes de
tudo, uma jornalista proibida pela ditadura de continuar publicando. Dessa forma, ela
passa seus dias traduzindo histórias infantis da literatura mundial para o somali para
depois lê-las para sua filha Ubax. Sagal, sua discípula mais promissora, é uma campeã
de natação e está prestes a ganhar do governo uma viagem à Europa como prêmio por
sua vitória numa competição. Ela vê isso como uma oportunidade de tornar o
movimento conhecido pela comunidade internacional. Porém, uma possível gravidez –
que nem se confirma até o final da história – faz com que Sagal desista da viagem. A
resistência que essas mulheres integram não chega a sair das paredes de suas casas,
onde vivem como sardinhas enlatadas, espremidas pela repressão do governo e dos
costumes da sociedade.
Medina também tem sonhos em que se misturam suas esperanças para o futuro e suas
memórias do passado. Num determinado momento, ela sonha que seu marido Samater
mata a mãe que o controla:

Samater, sudden as death in an accident, struck Idil so hard she fell


into the water and was dead instantly. Her corpse floated huge like a
whale. Samater puller her further and further into the deep zones of
the ocean and buried her in the secret womb of the sea. When he
swam back, Ubax had returned to herself and Medina was horny and
hot with lust and they began to make love energetically (FARAH,
1992 [1981], p. 208).
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Coincidentemente ou não, seu sonho também se realiza no final da narrativa.


Samater expulsa sua mãe de casa, ficando livre de sua influência dominadora. Ele
também pede demissão do cargo de ministro de governo e volta para Medina e a filha.
Parece que se desenha, assim, um final feliz para a pequena família de Medina, porém,
sabemos que é uma paz provisória, já que o General ainda está no poder, ameaçando
qualquer felicidade, mesmo na esfera pessoal. O fato de que Medina e Samater
transferem a carga negativa toda para Idil, a mãe de Samater, também sinaliza a sua
dificuldade de lidar com os problemas na esfera política. Toda a ameaça representada
pelo governo repressivo do General é vivenciada de forma muito mais forte na esfera
doméstica. E é apenas aí que é possível alguma resistência efetiva. Externamente,
Medina e Samater estão ambos neutralizados, silenciados pelo regime: ela, através da
cassação de seu direito de trabalhar como jornalista, ele, porque funciona como um
títere do governo no papel de ministro, cargo do qual renuncia posteriormente.
De qualquer forma, parece haver um avanço entre Medina e a Ebla do romance
anterior. Medina consegue ao menos manter um relacionamento mais igualitário com
seu marido. Claro que há problemas. Medina jamais explica exatamente por que decidiu
deixar Samater no início do romance. Sagal cria uma história para isso, afirmando que
foi para salvar Ubax da circuncisão pretendida por sua avó, e Medina toma essa história
para si, como se fosse de fato verdadeira. Mas seus reais motivos não são revelados. O
que transparece é o fato de Samater ser mais fraco do que ela, an incliner of head, a
bender of body (p. 148), de acordo com Fatima, mãe de Medina. Contudo, quando
Sandra conta a Medina que Samater havia sido visto na companhia de uma outra
mulher, a sua resposta é, antes de tudo, uma defesa do relacionamento:

No. It’s your behaviour that puzzles me. Samater and I have a solid
friendship, and a single night’s flirtation with you, Atta or any other
woman wouldn’t upset me. You know better than that. What puzzles
me is why you have to bring the news (FARAH, 1992 [1981], p. 228).

Dessa forma, Medina, que exteriormente está incapacitada de qualquer ação, defende
sua vida doméstica contra a menor ameaça. Ao final, ela é recompensada, com a
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restituição de seu casamento, mas quanto pode durar uma felicidade particular num
cenário em que tudo mais está a ruir?
Duniya, a protagonista de Gifts, é outra heroína do amor. Nesse romance, a Somália
real, em plena ditadura Barre, com seus cortes de energia elétrica e de serviços
essenciais, funciona apenas como pano de fundo para a história do amadurecimento de
uma mulher e do seu despertar para o amor e a vida, numa sociedade de valores bastante
repressores no que tange à independência feminina. Nesse sentido, muito mais
importante do que o espaço público da nação é o espaço interno da personagem,
representado sobretudo por seus sonhos, através dos quais ela vai conquistando aos
poucos os recursos necessários para torná-la um sujeito mais completo. O primeiro
sonho de Duniya é bastante simbólico:

Duniya had been awake for a while, conscious of the approaching


dawn. She had dreamt of a restless butterfly; of a cat waiting
attentively for the fretful insect’s shadow to stay still for an instant so
as to pounce on it. Then the dark room lit up with the brightness of
fireflies, agitated breaths of light, soft, quiet as foam. Faint from heat,
Duniya watched the going-ons, supine. The butterfly flew here and
there, movements mesmeric in its circling rainbow of colours. As if
hypnotized, the cat’s eyes closed slowly, dramatically, and it fell
asleep.
Fully awake, Duniya got out of bed (FARAH, 1999 [1993], p. 3).

A princípio parece difícil traçar um significado para o sonho de Duniya, que se


assemelha a uma descrição de uma pequena cena do cotidiano. Contudo, como o título
mesmo do romance sugere, Gifts é uma obra sobre a natureza dos presentes, trocados no
nível interpessoal, entre nações e principalmente entre um indivíduo e uma esfera
mágica, animista, que se concretiza nas imagens oníricas. Os sonhos de Duniya, nesse
sentido, se constituem em presentes vindos dessa esfera diretamente para ela. A
borboleta e o gato que vemos aqui trazem uma espécie de ajuda mágica porque a partir
daí a vida de Duniya começa a mudar para melhor. Ela inicia um relacionamento novo e
revitalizante com Bosaaso e sua filha traz para casa um bebê enjeitado que também
passa a dar sorte para a família. Essa parece ter sido a saída encontrada por Farah para
fugir da inação reservada aos seus personagens, sobretudo os femininos, em virtude do
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contexto extremamente repressivo em que vivem. Os sonhos acabam se transformando


nos únicos elementos capazes de acarretar alguma transformação.

3. Cambara e a reconstrução
Em Knots, a protagonista Cambara está de volta a Mogadíscio depois de ter vivido
um longo período no Canadá. A guerra entre os senhores do sul e do norte da cidade já
terminou, mas Mogadíscio está tomada por um verdadeiro caos, com uma infinidade de
líderes menores guerreando entre si. O motivo inicial de seu retorno é o desejo de
recuperar uma propriedade de família, em mãos de um desses senhores (Gudcur) desde
a sua partida do país. Na verdade, parece ser apenas um pretexto, pois Cambara deseja
realmente encontrar um caminho para sua vida depois da morte do filho, que se afogou
na piscina da casa da amante de seu marido. Apesar dessa tragédia pessoal, Cambara
age normalmente apenas com amor e energia, conseguindo, assim, empreender grandes
transformações nas vidas das pessoas que encontra. Ela se alia a um grupo de mulheres
que se intitula Women for Peace e que está tentando reconstruir a cidade e instaurar
finalmente a paz. No final, Cambara consegue reaver a casa e dirige nela os ensaios de
uma peça infantil na qual atuam alguns meninos-soldado de Mogadíscio. A principal
idéia expressa nesse romance parece ser a de que a Somália precisa agora da força,
perseverança e talento das mulheres para se recuperar. Basta de meios violentos, é
chegada a hora da transformação pelo amor, um amor voltado dessa vez não apenas
para a esfera pessoal e doméstica, mas principalmente para a coletividade.
Cambara, assim como a Beydan de Sweet and sour milk, interpreta seu próprio
sonho:

With Gudcur gone, his fighters no longer posing a threat to her plans,
and Jiijo out the way and having her baby in hospital (...) Cambara is
convinced she will make headway fast. She interprets her dream at
dawn, in which she saw several hawks overpowering the hyenas
whom they are battling, as meaning that she will outsmart her
opponents, whoever they are and achieve her aim, whatever that turns
out to be (FARAH, 2007, p. 216).
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Mais uma vez como Beydan, sua interpretação se mostra verdadeira. Ela realmente
consegue superar seus oponentes na base da inteligência, sem empregar meios violentos
na maior parte das vezes. É claro que conta com a ajuda de um verdadeiro exército de
amigos, alguns dos quais inclusive portam armas e fazem a segurança enquanto ela está
preocupada em atingir seus objetivos. Mas mesmo assim seu foco principal é na defesa
e não no ataque.
As mudanças que Cambara propõe parecem simples – e, de fato, são. Ela age através
da solidariedade, realizando, por exemplo, a limpeza de alguns ambientes degradados da
cidade e ajudando outras mulheres. Seu maior feito é, contudo, produzir uma peça
infantil, o que, num primeiro momento, poderia parecer algo pueril e ineficaz do ponto
de vista de promover mudanças sociais. Porém, num cenário em que praticamente todos
os horrores já aconteceram, em que o governo central está totalmente desarticulado e os
cidadãos só sabem guerrear entre si, a única saída parece ser mesmo a da simplicidade.
Soluções pequenas efetuadas localmente se tornam muito mais efetivas do que uma
revolução política (aliás, de golpes políticos a Somália parece já ter experimentado o
suficiente). A arte, sobretudo aquela que envolve as crianças, símbolos de um novo
começo, se configura como o principal meio através do qual é possível alguma
reconstrução. Os sonhos da personagem funcionam também como confirmações de que
ela está no caminho certo, suficientemente forte para vencer quaisquer obstáculos e
opositores.

Conclusão
Mesmo tendo deixado de lado em nossa análise personagens femininos importantes
como Misra de Maps e Sholoongo de Secrets, acreditamos que foi possível demonstrar
como Farah vai aos poucos empoderando suas mulheres ficcionais. No início de sua
produção ficcional, ele parecia preocupado apenas em denunciar a situação realmente
desfavorável em que viviam (e vivem) as mulheres somalis, tanto nas aldeias quanto na
capital do país. Ainda não conseguia vislumbrar para elas uma alternativa em meio a
tanta opressão. Com a longa ditadura de Barre, que esteve no poder de 1969 até o início
da década de 1990, essa ausência de alternativas parecia perdurar quase que
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infinitamente. Para escapar de uma realidade que não possibilitava transformações,


Farah investiu no mundo interno de seus personagens, que se transformaram em grandes
sonhadores. As mulheres pareciam a princípio naturalmente dotadas para acessar essa
outra realidade mostrada pelos sonhos. Contudo, logo os homens também se tornaram
produtores de sonhos nos romances de Farah. Dessa forma, essas imagens oníricas
foram lentamente rompendo a barreira da inação, imobilidade e neutralização
vivenciadas por mulheres e homens na Somália. Apenas em seu romance mais recente,
Knots, Farah consegue vislumbrar novamente alguma possibilidade de modificação
também no plano externo. E é uma mulher a responsável por iniciar essa pequena, mas
efetiva revolução.

Referências

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__________ A naked needle. Londres: Heinemann, 1976.
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__________ Sardines. Saint Paul, Minnesota: Graywolf Press, 1992 [1981].
__________ Close sesame. Saint Paul, Minnesota: Graywolf Press, 1992 [1983].
__________ Maps. Londres: Penguin Books, 1999 [1986].
__________ Gifts. Londres: Penguin Books, 1999 [1993].
__________ Secrets. Londres: Penguin Books, 1999 [1998].
__________ Links. Londres: Penguin Books, 2005 [2003].
__________ Knots. Nova Iorque: Riverhead Books, 2007.
MORRISON, Toni. Beloved. Nova Iorque: Plume Books, 1988 [1988].
STRATTON, Florence. The novels of Nuruddin Farah. In: WRIGHT, Derek (ed.).
Emerging perspectives on Nuruddin Farah. Trenton, Asmara: Africa World Press, 2002
[1985].
VERA, Yvonne. Without a name and Under the tongue. Londres: Farrar, Straus and
Giroux, 2002 [1994].
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UM ESTUDO DISCURSIVO DE PERFIS BIOGRÁFICOS

Dylia Lysardo-Dias (UFSJ)

A noção de discurso é uma noção central para o surgimento de uma perspectiva de


estudo da linguagem que se opõe aos modelos estruturais de análise linguística, pois tal
noção traz em si a ideia de funcionamento da linguagem e, dessa forma, focaliza o uso
efetivo da linguagem. Em outros termos, o que está em jogo é a realidade da língua, ou
seja, a ação sociocomunicativa de sujeitos inscritos em certas circunstâncias histórico-
culturais. Efetivamente o termo discurso instaura uma oposição com outros termos, tais
como língua, texto e enunciado já que estes últimos remetem a uma concepção
descontextualizada e, de certa forma, abstrata da linguagem.
Se língua diz respeito a um sistema virtual partilhado pelos membros de uma
comunidade lingüística e se o texto é definido como um conjunto de enunciados que
guardam um relativa unidade de sentido, discurso faz referência à atividade verbal, que, por
sua vez, só pode ser vista enquanto tal se relacionada às circunstâncias históricas e culturais
de emergência, incluindo aí os sujeitos nela envolvidos. Sob esta perspectiva discursiva, um
texto não é tomado apenas como uma “unidade coerente de sentido”, mas seria, como
afirma Bakhtin, um “elo na cadeia verbal de comunicação” (1992, p.320) porque remete
necessariamente a outros enunciados. Abordar o discurso é, portanto, conceber a dimensão
social, supostamente “extralinguística”, como inerente e constitutiva da linguagem.
O contexto vai muito além de um “pano de fundo” que emoldura as realizações
linguísticas e seus sentidos ou daquela circunstância pontual e mais imediata de realização
da interação verbal; o contexto é entendido como uma co-construção resultante da
integração dos elementos de diferentes ordens mobilizados na e pela interação. Como
afirma Kerbrat-Orecchioni (1990), o contexto é redefinido durante todo o processo de
interação sendo algo dinâmico, não um dado a priori que incide sobre a configuração do
discurso: ele compreende os aspectos históricos e culturais inerentes à emergência do dizer.
Desse modo, a historicidade do enunciado passa a ser um elemento fundamental na medida
que ela está diretamente relacionada ao seu valor pragmático; em termos de estudo da
linguagem, a visão de cunho estruturalista de que o situacional é da ordem do externo à
linguagem é substituída pela concepção de que as circunstâncias do dizer lhe são
consitutivas.
Dentro deste entendimento, Bakhtin (1979) afirma que a enunciação é um
acontecimento de natureza social porque ela está indissoluvelmente ligada às condições de
realização da comunicação: ela é a orientação da palavra por uma situação de mundo e por
um contexto específico de interação verbal. A enunciação é um fazer coletivo e o discurso
não pode ser caracterizado como uma atividade individual porque ele se constrói entre pelo
menos dois interlocutores, que são seres sociais. Assim, todo discurso se constitui tendo em
vista um interlocutor presente ou suposto, logo instaura um diálogo ao ser orientado para
um destinatário real ou virtual. Como bem define Bakhtin, “a enunciação é o produto da
interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um locutor
real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o
locutor”(op.cit., p.122). O dialogismo é, portanto, um princípio fundador da atividade de
linguagem
Daí a pertinência de diferenciar, conforme sugere Charaudeau (1999), o sentido da
língua do sentido do discurso: o primeiro resulta da combinação das palavras e
fornece uma visão referencial do mundo, o segundo implica no sentido social e
comunicativo do enunciado, que é visto na sua relação com a situação de interação em
que se desenvolve. Logo, “o signo remete a algum significado, mas este não pode ser
visto a partir de um valor absoluto, pleno e autônomo. Ele atua no discurso apenas
como uma proposição de sentido, como um sentido potencial” (Charaudeau, 1999,
p.31). Neste sentido, uma abordagem discursiva é aquela que privilegia o
funcionamento efetivo da linguagem em uma dada situação de interação verbal,
considerando sua ancoragem social e suas articulações subjetivas porque está baseada
na premissa maior de que o dito e o dizer são inseparáveis.
Em termos metodológicos, uma outra postura analítica emerge já que fenômenos
linguístico-discursivos até então negligenciados passam a merecer uma atenção
especial pelo que eles sinalizam em termos de funcionamento da atividade
enunciativa; a materialidade verbal é focalizada no âmbito do acontecimento

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discursivo do qual faz parte, acontecimento que envolve relações subjetivas, sociais e
cognitivas. A heterogeneidade (c.f. Authier-Revuz, 1982) emerge justamente destas
relações na atividade enunciativa e se revela, às vezes, explicitamente, no enunciado,
às vezes encontra-se implícita no dizer.
É sob essa perspectiva que se desenvolve este trabalho 1: analisar três textos biográficos
na sua discursividade, partindo do postulado de que todo dizer encontra-se inevitavelmente
inscrito em uma rede social de representações e valores culturalmente determinados. Os
textos foram publicados no jornal Folha de São Paulo, e são os seguintes:

Texto 1 :

ANANIAS GOMES DE OLIVERIA PORTO (1929-2009)


Morreu sem saber se era filho de Lampião e Maria Bonita
________________________
TALITA BEDINELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

Ananias era um homem moreno, 1950 para trabalhar como pedreiro em luta para buscar sua verdadeira
baixinho e sem pescoço – o que ajudava São Paulo. identidade. Entrou com um processo na
a encurtar mais o seu 1,65 metro. Em Um burburinho na família dava conta Justiça e fez dois exames de DNA – que ,
meio a características físicas tão de que ele podia ser filho de Lampião de acordo com a filha Deuza, tiveram
peculiares, os filhos achavam estranho o com Maria Bonita, de quem, até então, resultados inconclusivos.
fato de ele ter um irmão gêmeo tão ele achava que fosse irmão. Ananias teria Passou a dizer que queria morrer
diferente: Arlindo era bem mais branco e sido entregue à mãe dela para que o antes de chegar aos 80, pois já tinha
tinha pescoço. casal pudesse continuar no cangaço – “cumprido sua missão”. Queria perguntar
Causava ainda mais estranheza a hipótese também estudada por a Lampião se era realmente seu filho. Na
história que ele costumavam contar: historiadores. terça teve um infarto e morreu, aos 79
Ananias havia nascido três dias depois. Desde então, o pedreiro, que se anos, sem saber o resultado do processo.
O mistério ganhou ainda mais força orgulhava de ter construído grande parte
Deixou quatro filhos, 13 netos e oito
em 2005, quando ele foi à Bahia, de onde dos prédios de Moema (região nobre da
saíra em um pau-de-arara na década de zona sul da capital paulista), travou uma bisnetos.

coluna.obituario@uol.com.br
27 setembro 2009

1
Este trabalho faz parte do projeto integrado de pesquisa, extensão e ensino intitulado “ESCRITAS
(AUTO)BIOGRÁFICAS: ASPECTOS DISCURSIVOS, CULTURAIS E LITERÁRIOS” desenvolvido em conjunto com
os professores Alberto Ferreira da Rocha Júnior e Suely da Fonseca Quintana, da Universidade Federal de São Del-Rei,
Minas Gerais.
Texto 2:

ZULEIKA MARY MAY ZAIDAN (1920-2009)


Os jantares em família de uma dona de casa elegante
__________________________
ESTÊVÃO BERTONI
DA REPORTAGEM LOCAL

Todas as quartas-feiras, a carioca As compras ela costumava fazer aos uma cultura enciclopédica e aproveitou
Zuleika Mary May Zaidan, que viveu 61 sábados, quando o motorista, seu muito as viagens internacionais que fez.
anos em SP sem perder o sotaque, Arnaldo, passava para levá-la no Monza Muito elegante e sempre arrumada,
jantava com os netos e com um dos 88 que ela tinha. Como a qualidade e o ia semanalmente ao cabeleireiro. Sua
filhos. Para cada um dos dois outros preço dos produtos nunca agradavam, preocupação recente era escolher o
filhos, ela reservava o sábado e o ela acrescentou os donos de vestido que usaria no casamento do neto,
domingo. supermercados numa lista sua de em dezembro, do qual seria madrinha.
Dona de casa, cozinhava muito bem, pessoas indesejadas, junto dos políticos Viúva desde 1990, morreu segunda,
conta Eduardo, o filho das quartas. e do pessoal do governo. aos 88, de problemas cardíacos. Deixou
Ultimamente reclamava do cardápio que Além da cozinha, gostava de se três filhos (eram quatro, mas perdera a
oferecia, desejando expandi-lo, pois uma entregar à leitura. Falava três línguas e filha) e sete netos. A missa de sétimo dia
neta não comia peixe, outro era diabético “não havia tragédia grega que não será amanhã, às 9 h, na igreja São José,
e uma outra se convertera ao conhecesse”. Segundo o filho, ela tinha em São Paulo.
vegetarianismo.

coluna.obituario@uol.com.br
04 outubro 2009

Texto 3:

SARAH HORNBLAS (1934-2009)


A filha de poloneses preferiu o Brasil
________________________________
ESTÊVÃO BERTONI
DA REPORTAGEM LOCAL

Pairava a dúvida: ir ou ficar? Sarah empresa de ar-condicionado. Antes, a Fumante inveterada, só abandonou o
Hornblas, filha de imigrantes poloneses moça que perdera a mãe de complicações cigarro há cerca de dois meses. Começou
nascida em São Paulo, chegou a fazer de parto, duas semanas após ter nascido, com o hábito aos 12 anos e consumia um
com o marido um curso preparatório para havia trabalhado numa creche, cuidando maço por dia.
judeus que pretendiam viver e trabalhar de crianças, e depois como vendedora de Há cerca de um ano, quebrou o fêmur
em Israel. No final, decidiram continuar por chocolates da Kopenhagem. e disse que todo que se acidentava
aqui. Como conta a filha Deborah, Sarah era daquele jeito, naquela idade, morria em
O marido, rapaz nascido na Alemanha brava, estilo “sargentona”, mas, no fundo, pouco tempo.
que chegou ao Brasil aos seis anos, tinha o “coração mole”. Ela morreu na sexta, aos 75, mas em
chamava-se Wolfgang Hornblas. Para Muitos anos depois de ter trabalhado
decorrência de um enfisema pulmonar.
facilitar, abrasileirou-se como Alberto, na creche da Unibes (União Brasileiro-
nome que acabou adotando oficialmente. Israelita do Bem-Estar Social), voltou a ser Teve três filhos e cinco netos
Ao casar, Sarah foi cuidar da casa e voluntária de lá, no bazar da instituição.
dos filhos, enquanto o marido tocava a
coluna.obituario@uol.com.br
26 dezembro 2009

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Como se pode notar, os textos acima são relatos curtos que reconstroem de maneira
sintética a vida de alguém que morreu recentemente. Esta nota de falecimento constitui-se
como um perfil biográfico, que registra a vida de cidadãos anônimos, o que tem sido uma
tendência do biografismo atual. Tal tendência direciona-se para o reconhecimento da
participação das pessoas comuns na vida em sociedade, ou seja, “em um momento marcado
pelo culto a celebridades e pelo desejo de fama, retomar a trajetória de vida de um anônimo
aponta para uma outra direção: a valorização de gente simples como parte integrante da
memória de uma coletividade” (Lysardo-Dias, 2010). Sai de cena a exposição pública da
vida íntima, a midiatização das relações humanas e a espetacularização da rotina, tão
comuns nos relatos biográficos de celebridades e pessoas públicas, em favor da
simplicidade da vida nossa de cada dia, do ser humano comum e dos modos e hábitos
rotineiros.
Estes perfis biográficos correspondem a uma forma de escrita de uma vida, como indica
o próprio termo bio-grafia, pois trajetórias individuais são reveladas em termos de
cotidianidade de uma existência, existência cujo interesse advém de alguma peculiaridade
ou pela exemplaridade de um percurso em particular. O jornalista biógrafo Estevão Bertoni
não intenta recuperar todos os momentos e todos os detalhes conferindo ao seu texto um
valor documental e estritamente histórico, mas se atém às significações mais prosaicas e
poéticas de uma vida. Detalhes curiosos e fatos inusitados ganham maior destaque do que a
linearidade informativa do quando e como nasceu, viveu e morreu, como sinaliza o título
destes perfis. No texto 1, o perfil gira em torno do fato de o biografado, um pedreiro que
saiu da Bahia para trabalhar em São Paulo, morrer desconhecendo quem foram seus pais
biológicos, conforme o título Morreu sem saber se era filho de Lampião e Maria Bonita . Há uma grande
probabilidade de que esses pais sejam Lampião e Maria Bonita, figuras lendárias na história
do Brasil devido à forte atuação no cangaço, o que é, de fato, pouco comum. No texto 2, a
biografada é uma dona de casa cuja trajetória é reconstruída a partir dos jantares em família
que oferecia aos filhos; anuncia o título: “Os jantares em família de uma dona de casa
elegante” . O conhecimento intelectual de Zuleika Mary May Zaidan - “falava três línguas”,
“tinha uma cultura enciclopédica” e fez várias viagens internacionais - é lembrado,
completando o perfil de uma dona de casa cuidadosa e de uma mulher elegante. No texto 3,
a biografada é uma filha de poloneses que optou ficar no Brasil, mesmo após fazer “um
curso preparatório para judeus que pretendiam viver e trabalhar em Israel”. O título “A
filha de poloneses preferiu o Brasil” chama a atenção para uma quebra de expectativas em
relação à biografada: tinha outras origens mas optou em permanecer aqui.
Nos três perfis, o título sintetiza o que cada existência aponta de inusitado e/ou
interessante, justificando assim o motivo o que levou aqueles biografados a estarem ali.
Não se trata de artistas, políticos ou intelectuais cuja morte causa um forte impacto na
sociedade, mas de pessoas representativas do que é a vida da maioria da população. Nem
grandes feitos, nem conquistas memoráveis, nem uma descoberta fenomenal, apenas a
cotidianidade daqueles que nunca conheceram a fama e o reconhecimento público e cujo
desaparecimento afeta emocionalmente um núcleo familiar e um círculo de amigos.
Os perfis biográficos em questão inscrevem-se em uma situação de comunicação da
imprensa escrita, mais precisamente de um jornal diário de circulação nacional. Dentro do
mosaico de temas que ele privilegia no seu objetivo primeiro de levar informação ao
público leitor e dentro da pluralidade de gêneros textuais que o compõem devido à
diversidade das realizações discursivas que contempla, o jornal, ao abrir espaço para uma
variante do tradicional obituário, presta um serviço de utilidade pública, ao mesmo tempo
que oferece aos seus leitores um novo gênero. Consideramos estes perfis biográficos como
uma atualização/reformatação dos obituários comuns, já que informam quem morreu, mas
de uma maneira mais criativa, quase poética, privilegiando certos detalhes da vida do
biografado.
Assim como as crônicas publicadas no jornal se contrapõem ao realismo do noticiário
factual, os perfis biográficos representam uma outra textualidade em torno da morte, tema
já banalizado nos textos informativos. O fato de os falecidos serem pessoas mais velhas – O

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Ananias Gomes de Oliveira, texto 1, morreu aos 79 anos, a Zuleika Mary May Zaidan,
texto 2, aos 88 e a Sarah Hornablas, texto 3, aos 75 – diminui o impacto do
desaparecimento definitivo que é a morte. A morte vem ao final do relato: inevitável e
previsível após uma trajetória habilmente reconstruída pelo jornalista biógrafo.O
comunicado da morte tem menos destaque que o obituário convencional, pois o foco maior
é a apresentação de uma individualidade humana.
Em termos de materialidade linguístico-discursiva, os procedimentos descritivos
mobilizam saberes partilhados que favorecem a intercompreensão entre os interlocutores e
articulam várias vozes que ecoam dentro do texto. Longe de ser um mecanismo neutro e
objetivo, ao descrever o biógrafo procede a uma reconfiguração de seres e objetos, fazendo
apelo a diferentes instâncias enunciativas.
No texto 2, o jornalista biógrafo revela a insatisfação da biografada Zuleika Mary May
Zaidan com o cardápio dos seus jantares: ela estaria

desejando expandi-lo, pois uma


neta não comia peixe, outro era
diabético e uma outra se convertera
ao vegetarianismo.

Tem-se ai o retrato de uma modernidade marcada pela diversidade de gostos e a imagem


tradicional da avó, que queria agradar aos netos quando os recebia em casa. O fato mesmo
de receber os filhos e netos, preparar o jantar, fazer as compras para a refeição sinaliza a
típica dona de casa e mãe/avó dedicada. Por meio destas ações, se compõe o lado dona de
casa, modelo de mulher tradicional; o lado elegante, sinalizado no título “Os jantares em
família de uma dona de casa elegante”, fica por conta do trecho

Muito elegante e sempre


arrumada, ia semanalmente
ao cabeleireiro. Sua preocupação
recente era escolher o vestido
que usaria no casamento do
neto, em dezembro, do qual
seria madrinha.

Tem aí a configuração de uma mulher mais moderna, pois vaidosa e “mundana”,


independente da idade. Mas outras formas de agir apresentam uma outra face e atribuem
um terceiro qualificativo para a biografada: era uma mulher culta pois

Além da cozinha, gostava de se


entregar à leitura. Falava três
línguas e “não havia tragédia
grega que não conhecesse”.
Segundo o filho, ela tinha uma
cultura enciclopédica e
aproveitou muito as viagens
internacionais que fez.

As ações atribuídas à Zuleika Mary May Zaidan oferecem uma imagem de uma pessoa
que desempenha diferentes papeis: é a dona de casa, mãe/avó dedicada, é uma mulher que
cuida da sua aparência (o senso comum tende a não associar elegância à figura da dona de
casa) e ainda tem um elevado nível cultural.
Em termos enunciativos, tem-se no trecho acima o depoimento do filho: ao ser
transcrito, ele confere credibilidade e veracidade ao relato do jornalista (como se verá
igualmente no trecho transcrito abaixo do texto 3) e insere literalmente um outro dizer
naquele do jornalista biógrafo.A superfície textual é, assim, heterogênea e comporta a
articulação de diferentes fontes enunciativas.
No texto 3, Estevão Bertoni dá a voz a Deborah, filha de Sarah Hornblas, que descreve a
mãe com dois qualificativos: “sargentona” e “coração mole”. Na sua função de enunciador,
o jornalista biógrafo incorpora dialogicamente esses dizeres:

Como conta a filha Deborah,


Sarah era brava, estilo
“sargentona”, mas, no fundo,
tinha o “coração mole”.

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As aspas sinalizam a ruptura do fio enunciativo, conforme anunciado anteriormente pela


expressão “como conta a filha”. A inserção da adversativa “mas” recupera imagem
estereotipada daquela pessoa dura, mas, ao mesmo tempo sensível, o que é uma imagem
positiva socialmente. O termo “sargentona” é uma versão feminina não da patente
“sargento”, mas de uma característica que o senso comum atribui aos militares devido à
disciplina que demandam suas atividades. A expressão “no fundo” tem a ver com o jogo de
aparências: parecia ser uma coisa (inflexível, insensível), mas era efetivamente outra
(sentimental).
No texto 1, as aspas indicam um dizer do próprio biografado ou seria a referência a um
clichê já consagrado?
Passou a dizer que queria
morrer antes de chegar aos
80, pois já tinha “cumprido sua missão”.

Cumprir a missão é ter finalizado uma tarefa, é realizar aquilo atribuído como obrigação.
Para se referir à vida, é comum a imagem que cada um tem uma “missão a ser cumprida
neste mundo”, pressupondo um sentido para cada existência e a morte como o final
previsível após a consumação de uma dada tarefa.

Considerações finais

A abordagem discursiva representa uma forma de apreensão da linguagem que se institui


na oposição aos modelos de análise centrados na estrutura da frase, já que parte do
pressuposto de que a linguagem é uma prática socialmente situada. Ao se voltar para a
inscrição social e ideológica dos fenômenos lingüísticos, as ciências da linguagem impõem
uma visão crítica voltada para as relações de poder, as representações sociais e a
subjetividade instauradas pelo/no discurso. Há um questionamento dos modelos vigentes, o
que promove uma relativa desnaturalização das percepções até então estabilizadas. Se,
como afirma Santos,“todo pensamento crítico é centrífugo e subversivo na medida em que
visa criar uma desfamiliarização em relação ao que está estabelecido e é
convencionalmente aceite como normal virtual inevitável necessário” (SANTOS, 2007:16),
os estudos discursivos são, por natureza críticos e reflexivos; eles tem o mérito de romper
com uma visão essencialista em favor de uma concepção de que a exterioridade é inerente e
constitutiva da atividade verbal. Desta maneira, se avança em termos de compreensão da
linguagem, pois se incorpora a dimensão politizada do seu estudo.
O que se busca é contemplar é a heterogeneidade da atividade verbal e o caráter sócio-
interacional das práticas de linguagem de forma a refletir sobre o conhecimento que se tem
até então na área das ciências da linguagem. Tal reflexão tem levado a uma preocupação
com o desvelamento das articulações intertextuais e o resgate da historicidade dos dizeres.
Os significados não são fixos nem autônomos, mas resultam dinamicamente da confluência
de certas condições e proposições enunciativas.
Quando se trata de relatos biográficos, o desvelamento dos jogos polifônicos
evidenciam a imagem (ethos, conforme Amossy, 2005) e as percepções que o jornalista
biógrafo deixa entrever de si e do sujeito biografado. Entre a perenização de uma existência
que o relato biográfico efetua e a reconstrução de uma vida que ele tece, há um movimento
de ficcionalização por meio do qual o factual é apresentado/representado. Qualquer relato
biográfico, independente da sua extensão e da sua natureza (jornalístico, literário, histórico
etc) é elaborado a partir de um ponto de vista. Revela-se o biógrafo, o biografado e o
espaço social no qual se inscrevem: são identidades em movimento e subjetividades que se
manifestam muitas vezes por meio do que é silenciado.

Referências

AMOSSY, Ruth (Org). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo:


Contexto, 2005.

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AUTHIER-REVUZ,.Jacqueline. “Hétérogénéité(s) énonciative(s)”. Langages, Paris, nº 73,


p. 98-111, março, 1984.
AUTHIER-REVUZ,Jacqueline. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive:
éléments pour une approche de l’autre dans le discours. DRLAV, Paris, nº 26, p.91-151,
1982.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO,
Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 183-191.
CHARAUDEAU, Patrick. Análise do discurso: controvérsias e perspectivas. In: MARI,
Hugo et alii (Org.) Fundamentos e dimensões da análise do discurso. Belo Horizonte:
Carol Borges.NAD/FALE/UFMG, 1999. p.27-43.
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Les interactions verbales. vol 1, Paris: Armand
Colin, 1990.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
LYSARDO-DIAS, Dylia. Representações Sociais e Ethos: algumas reflexões em torno de
textos biográficos In: GOMES, Maria Carmen Aires et alii (Orgs) Práticas
discursivas:construindo identidades na diversidade.Viçosa, MG: Arca, 2009, p 65-76.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a
política na transição paradigmática. Vol 1, São Paulo: Cortez, 2007.
SCHMIDT, Benito. O biográfico: perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2000.
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DE BRUXA A DOMINATRIX: REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO EM


ROMANCE NEGRO COM ARGENTINOS

Eder Correa (G-UCS)


Cecil Jeanine Albert Zinani (UCS)

A literatura latino-americana, a partir da década de 60, passa pelo que muitos


teóricos chamam de “boom da literatura”. Presenciamos excelentes escritores, entre eles
Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges, Cortázar, sendo reconhecidos e premiados
mundialmente. A partir de então, surge o interesse dos leitores em relação a essa escrita
que mistura o maravilhoso e a crítica social. Entretanto, alguns escritores abandonam
essa faceta do fantástico e alimentam-se de outros temas para a construção de suas
narrativas. É o caso de Luiza Valenzuela, que tem como ponto de inspiração o romance
policial negro. Dessa forma, a autora constrói uma trama que mistura diversos
elementos, produzindo assim um texto ímpar na literatura da América latina.
Romance negro com argentinos (2001) ambienta-se em Nova Iorque. Dois escritores,
Roberta Aguilar (Robert, Bob) que ali vive há cinco anos, e Augustín Palant (Gus,
Magu), recém-chegado e com uma bolsa de doutorado para escrever um romance,
compartilham uma aventura que combina memória e escrita, enquanto vagam pela
cidade em busca de si mesmos. A novela está enquadrada inicialmente no gênero
policial: Agustín comprar uma arma, recebe das mãos de um estranho no Lower East
Side uma entrada para uma peça de teatro, a qual ele comparece e é convidado com o
resto do público para tomar uma sopa que é cozida em cena. Neste momento, conhece
Edwina - a atriz que estava preparando a sopa -, e na saída do teatro resolve acompanhá-
la, e, às vésperas do que parece ser um encontro sexual, ele a mata - ou pensa que mata.
Originalmente, o romance iria chamar-se “El crimen del outro”, mas o título acabou
sendo descartado pela autora. Entretanto, a questão do outro, das duplicidades, sugerida
por esse título, é essencial no texto de Valenzuela (2004). Desde os jogos do duplo, de
uma capital americana, Nova Iorque, utilizada para retomar a capital argentina, Buenos
Aires; da tortura política para a tortura sexual de "plástico" de Ava Taurel; das mulheres
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do Exército da Salvação que lembram as Mães da Praça de Maio; do romance dentro do


romance; e os desdobramentos das personagens em seus escritos, o jogo de máscaras,
figurinos e travestismos, tudo leva a narrativa ao nível mais alto de ambiguidade.
Romance Negro com Argentinos (2001), no entanto, não é necessariamente apenas
uma novela policial, uma vez que seu título encontra-se entre a metáfora e o diálogo
com a história. Dessa maneira, romance negro porque nele a violência é levada a
extremos, deixando o leitor em expectativa; Argentinos porque não há melhor
personagens para habitar uma narrativa dessas do que a de um grupo social que tem a
violência em seu perfil histórico. O crime, a tortura, a morte (real ou imaginária, não
importa) são fatores que nos levam a refletir sobre o domínio, a identidade, e as relações
humanas na narrativa de Valenzuela.
O romance reflete sobre a identidade contemporânea argentina que, mesmo diante de
uma cultura estranha e diferente, carrega consigo as barbáries ocultas existentes na
história da ditadura argentina, e faz com que as personagens se transformem em
reflexos desse passado.
Sylvia Plath afirma que “morrer é uma arte, como tudo o mais”. Se for verdade o que
o verso da poetisa inglesa diz, talvez possamos estendê-lo – e por que não completá-lo –
dizendo que matar também o seja. Pensando assim, é possível dizer que a obra de Luiza
Valenzuela, Romance negro com argentinos (2001), também transforma o ato gratuito
de matar em arte e catalisador para suscitar questões referentes à construção da
identidade humana.
Colocando dois escritores argentinos na Nova Iorque contemporânea, o narrador
inicia a trama obedecendo aos passos típicos da estrutura característica do romance
negro, ou seja, com um crime. As peculiaridades desse gênero perpassam toda a
composição do texto, conforme explicita por Todorov (2003, p. 98):

O romance negro é um romance que funde as duas histórias ou, por


outras palavras, suprime a primeira e dá vida à segunda. Não é mais
um crime anterior ao momento da narrativa que se conta, a narrativa
coincide com a ação. Nenhum romance negro é apresentado sob a
forma de memórias: não há ponto de chegada a partir do qual o
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narrador abranja os acontecimentos passados, não sabemos se ele


chegará vivo ao fim da história. A prospecção substitui a retrospecção.

Assim, no princípio da trama, a personagem Augustín Palant, escritor com bloqueio


criativo, assassina sem motivos a atriz de teatro Edwina Irving, oferecendo o elemento-
chave que encaminhará a narrativa. Se, nesse subtipo do romance policial, a
interrogação é o porquê do assassinato, logo vemos que essa questão não será a que
dominará o livro. A pergunta que norteará a busca por respostas será a transformação da
identidade que as personagens sofrem ao se confrontarem – e viverem – em uma
sociedade diferente da sua, e vendo-se, metaforicamente, como criminosos. Portanto, o
detetive – aqui encarnado por Roberta Aguillar - não procura descobrir o criminoso –
visto que já sabe a identidade do assassino, além de ser, também, cúmplice –, mas sim,
saber respostas sobre eles próprios. Descobrir a si mesmos em um mundo onde se
sentem apátridas, longe de suas raízes, vendo-se perdidos na megalópole estadunidense,
constitui-se a busca empreendida pelas personagens. Assim, o assassinato praticado por
Augustín não representa a morte de outra pessoa, mas sim a morte dos valores
essenciais de sua identidade.
Roberta, a escritora bem sucedida que “escreve com o corpo”, “que cavalga na
própria energia” artística “entra na história de Augustín” como a personagem secundária
que rouba “a cena” e se torna protagonista no momento em que sabemos que Augustín,
ao cometer o assassinato, “atrapalhou o enredo de Roberta”. É ela quem precisa dar a
solução do assassinato. Essa personagem representa, de certa forma, o perfil da mulher
artista que tenta se comunicar com o mundo através da arte, sendo incompreendida por
aqueles que a rodeiam. Roberta, dessa maneira, encarna o papel de Ariadne, que tenta
guiar Augustín dentro do labirinto nova-iorquino, habitado por todos os tipos de
“criaturas” - assassinos, prostitutas, sádicos e masoquistas - onde ambos se sentem
perdidos, e o fio que os conduz é a arte, cujo poder representativo e imaginativo pode
levá-los a encontrar soluções.
O momento de busca pelas respostas dos motivos que levaram a personagem ao
crime, também, é a ocasião em que se deflagra a fragmentação das identidades dos
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escritores. Roberta torna-se Robert, depois Bob; Augustín, Magu depois Gus. A partir
de então, as personagens começam a atuar dentro de um grande palco teatral que se
chama Nova Iorque, até descobrirem qual é seu verdadeiro papel dentro dessa
gigantesca montagem cênica. O filósofo Guy Debord (2003, p. 13), em sua concepção
da sociedade moderna, aborda a questão de transformação de tudo em espetáculo:
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições
de produção se apresenta como uma imensa acumulação de
espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma
representação.

Nesse sentido, podemos observar dentro do romance a transfiguração da realidade


em espetáculo, o jogo que existe entre o real e o imaginado. A incapacidade de a arte
conseguir falar a linguagem da vida opera a transformação e desumanização do
indivíduo, que metamorfoseia o sofrimento humano em espetáculo e matéria para
estéticas artísticas vanguardistas vazias e sem sentido. Como no caso de uma reunião
em que as personagens principais são convidadas para assistir a uma encenação na qual
a atração principal é a morbidez de um velho coreógrafo famoso, demonstrando o
sadismo e a incompreensão existente dentro da realidade vivida pelos protagonistas do
romance.
A representação da cidade de Nova Iorque, a grande cidade do império pós-moderno,
reproduz a imagem simbólica da história de toda América, com seus imigrantes,
trabalhadores e personagens “outsiders”. A cidade da liberdade carrega traços do exílio,
das torturas, e as mais diversas alegorias que remetem às mortes, à repressão e os
horrores do regime militar argentino. A atriz morta por Augustín dentro da “cidade
teatral”, povoada pelo simulacro da liberdade e das oportunidades, revela a face
sangrenta que marcou a história das personagens latino-americanas.
Realidade e fantasia, misturadas, englobam a questão da perda de identidade
evidenciada nas páginas da narrativa como o mistério a ser descoberto, trazendo a velha
pergunta “quem sou eu”. Augustín mata para saber quem ele é, subvertendo, assim, o
argumento básico do romance policial; já Roberta aceita descobrir a verdade do
assassinato, esperando, no fim, encontrar respostas sobre si.
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A perda da pátria representa para as personagens a perda da idéia de comunidade, de


passado. Como se não houvesse lugar algum onde pudessem ir, Augustín conclui que
nenhum ambiente ou país é diferente ou melhor do que aquele de onde saiu:
Deste lado ou do outro, pensou, a imundície é a mesma, sempre os
mesmos grandes sacos de plástico preto, empilhados, cheios de
desperdício, e no meu país em tempos militares os sacos teriam em
vez disso restos de, melhor pensar em outra coisa. (VALENZUELA,
2001, p. 21).

Seguindo esse pensamento, podemos dizer que existe uma tentativa de ruptura com a
identidade nacional dessas personagens. Porém, estar nos Estados Unidos não significa,
tanto para Roberta quanto para Augustín, necessariamente, estar longe dos problemas de
seu país de origem. Afirma Woodwart (2003, p. 9): “a identidade é marcada por
símbolos”. Assim, as personagens “lêem” Nova Iorque através de símbolos que possam
remeter a suas origens. A todo o momento, as lembranças da história argentina são
ativadas através de pequenos signos presentes em Nova Iorque, como os sacos de lixo
preto, o prostíbulo onde há tortura, o exército de salvação e tantos outros. Essa procura
por se reencontrar, corrobora a ideia de Stuart Hall (2005, p. 50) ao argumentar que as
identidades nacionais são socialmente construídas:
As culturas nacionais são compostas não por apenas instituições
culturais, mas também por símbolos e representações. Uma cultura
nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que
influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que
temos de nós mesmos.

Pensando-se assim, podemos dizer que a culpa por se evadirem de seu lar e não
poderem voltar – uma óbvia alusão ao exílio -, que essas personagens carregam,
perpassa os limites territoriais, uma vez que a cultura de um povo, mesmo quando
abandonada, continua presente em atitudes e na personalidade humana, afinal “uma
nação é uma comunidade simbólica” (HALL, 2005, p. 49), que continua mantendo sua
influência e poder coesivo e discursivo, mesmo estando longe de sua localização
geográfica ou em outro momento histórico. Nessa linha, podemos dizer que
as identidades em conflito estão localizadas no interior de mudanças
sociais, políticas e econômicas, mudanças para as quais elas
contribuem. As identidades que são construídas pela cultura são
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contestadas sob formas particulares do mundo contemporâneo.


(WOODWARD, 2000, p.25)

As personagens argentinas do romance tentam, a todo o custo, reconstruir seu


presente e abandonar o passado histórico da ditadura que carregam consigo, numa
tentativa de mudança completa. Desse modo, a cultura norte-americana local entra em
conflito com a identidade latino-americana das personagens, que buscam romper com o
passado obscuro de tirania que ambos sofreram:
Detesto, começou a dizer Augustín, mas não chegou a completar
Os pratos árabes. Soube nesse momento que chegara a hora de
atravessar as fronteiras e se enfiar numa pele nova com gostos novos,
por isso deixou o detesto flutuando entre os dois sem separá-los, como
numa tentativa mínima de auto-afirmação, uma marca do pouco que
lhe restava. Deixara para trás até mesmo seu nome. Não o chamaria
mais Augustín, de agora em diante seria Gus, ou Magu por causa dos
óculos. (VALENZUELA, 2001, p. 52)

Dessa maneira, as personagens tentam quebrar as barreiras que lhes foram impostas
por suas origens étnicas. Pretendem reconstruir sua vida depois do assassinato cometido
por Augustín, ato de “violência gratuita” – menção direta à ditadura argentina –, que
modificou a vida das personagens. É como se existisse uma linha metafórica que
dividisse a história dessas personagens, mas, que ao mesmo tempo, divide toda a
história da Argentina enquanto nação. É a presença do conflito entre uma história
“negra” (um romance negro) que existiu e manchou toda uma pátria – a ditadura – e
essa disputa que existe entre esse passado obscuro, oculto, proibido, doloroso para essas
personagens e o presente histórico que já enterrou seus mortos “na realidade”, mas que
continua ecoando silenciosamente nos ouvidos desses indivíduos. Roberta e Augustín
são, dessa forma, a representação de uma nação inteira que se digladia com o presente
histórico e o passado de explicações vagas que foi a ditadura e, simultaneamente, com a
hegemonia e dominação de uma cultura fortemente influente na América Latina, que é a
nação norte-americana.
A questão da identidade, dentro da obra, é discutida de várias formas. Não apenas a
identidade cultural e étnica, mas também a de gênero. A forma como Augustín
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relaciona-se com Roberta comprova isso. A presença do medo que Roberta provoca em
Augustín manifesta-se a todo instante. Para ele, Roberta representa “a bruxa”, a “vagina
dentada”, que controla e possui segredos que ele – homem – desconhece, deixando
transparecer a pergunta: “o que é a mulher?”. Assim, podemos pensar acerca disso,
diz Freud, diz Jung, dizem antropólogos, não-psicólogos, que parece –
parece – que o problema entre o homem e mulher veio do medo.
Atualmente fala-se vaidade, mas, em seguida, de medo também. Esse
medo de que as forças da vida evidentes na mulher seriam
incontroláveis pelo homem. Lendo Malinowski vemos que, até
recentemente, em ilhas do Pacífico, o homem não sabia que era pai.
Com todos esses dados juntos é provável que o medo, como fruto da
ignorância do varão da reprodução, tenha sido, realmente, a causa de
um sentimento de inferioridade do homem em relação à mulher, e em
seguida o móvel do esforço de dominá-la. (PINTO, 1994, 204)

Dessa forma, Augustín, ao perceber sua companheira como concorrente, ela –


Roberta - passa a significar o lugar do desconhecido, aquela que vem em seu socorro,
aquela que simbolicamente ele mata, mas “com um tiro na cabeça e não no coração”, e
nos leva a pensar que Augustín queria matar não a mulher que ama, mas sim, a mulher
enquanto ser racional e desconhecido, e começa a sentir medo do domínio e mistério
que a mulher contemporânea exerce sobre o homem.
A partir do momento em que Augustín relata seu pesadelo com a mulher que domina
seu pênis, notamos o seu medo diante do poder feminino, o qual na contemporaneidade
já não sofre uma coerção tão forte diante da dominação masculina, como é possível
notar no sonho da personagem:
Por que sonhou que estava amarrado? Sonhou, por acaso? Pés e mãos
amarrados, estendido com os braços em cruz e as pernas totalmente
abertas como mulher no parto, como ele acreditava que fosse uma
mulher na hora do parto, sentindo-se uma mulher no parto, pronto não
para dar à luz, mas para ser esquartejado. Só faltavam os quatro
cavalos para lhe arrancar os membros, mas não se tratava de quatro
cavalos nem de quatro cavaleiros, mas de uma única mulher enorme,
dominando a cena. Mulher assustadora, bruxa primordial, e ele nu no
início e depois já não, usando meia-calça arrastão de mulher e cinta-
liga e um aventalzinho branco de doméstica na cintura, com muitos
babados o aventalzinho, e a mulher poderia ser Roberta, mas não
exatamente era outra Roberta que acariciava seu peito peludo com
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uma expressão que não tinha nada de carícia. (VALENZUELA, 2001,


p. 34)

O medo que Augustin vivencia diante da figura feminina influencia diretamente sua
relação com Roberta. Ela representa implicitamente para essa personagem a forma da
imagem dominadora e castradora. Assim, assume diretamente para Augustín a face da
dualidade, uma vez que é inimiga e amante. Para ele, a mulher representa não apenas a
figura castradora, mas também as identifica como torturadoras, fazendo uma relação
entre os torturadores da ditadura com os torturadores atuais. A partir disso, podemos
acrescentar que,
O terror vivido tanto pelo homem primitivo quanto pelo moderno em
relação à mulher não seria fruto de uma projeção da fantasia
masculina sobre a feminilidade, hipótese a qual Freud poderia
perfeitamente ter recorrido, mas, antes de mais nada, uma reação a
capacidade destrutiva da mulher que, apesar de castrada – e por isso
mesmo -, deseja se tornar agente de castração masculina, privando-o
do pênis desejado. (NUNES, 2000, 162)

Dessa forma, Augustín representa o homem que tem medo de ser castrado. Ava
Taurel, personagem norte-americana que representa a imagem da dominação em todos
os sentidos – cultural e sexual –, mantém em Nova Iorque um local que tem como
princípio dominar homens que exercem altos cargos de confiança. Portanto, a obra
demonstra claramente, nessa espécie de símbolo metafórico de dominação, que é o
prostíbulo de Ava, a configuração da mulher enquanto indivíduo que exerce autoridade
sobre o homem no silêncio e no ocultamento. Nesse sentido, temos o embate entre o
orgulho do pênis provindo de Augustín e o medo da castração/dominação provocado
pelas personagens femininas. Podemos destacar a inversão de papéis que ocorre dentro
da obra, inversão essa que pode ser relacionada aos conceitos de fragmentação da
identidade pós-moderna (HALL, 2003), que rompem com os discursos de ordem da
modernidade, como uma característica desse período da chamada modernidade tardia ou
pós-modernidade.
O domínio das relações de poder é simbolizado pelas figuras femininas que se
relacionam com os homens de forma superior, opondo-se assim à concepção típica da
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ideologia patriarcal onde mulher sempre é dominada pelo sexo masculino por ser
inferior. Simone de Beauvoir (1967, p. 485) ao falar sobre isso considera que:
A mulher, dizem, inveja o pênis do homem e deseja castrá-lo; mas o
desejo infantil do pênis só assume importância na vida da mulher
adulta se ela sente sua feminilidade como uma mutilação; e é então,
por encarnar todos os privilégios da virilidade, que ela almeja
apropriar-se do órgão masculino. Admite-se de bom grado que seu
sonho de castração tem uma significação simbólica: ela quer, pensam,
privar o homem de sua transcendência. Vimos que sua aspiração é
muito mais ambígua: ela quer, de uma maneira contraditória, ter essa
transcendência, o que leva a supor que ela a respeita e a nega ao
mesmo tempo, que entende lançar-se nela e retê-la ao mesmo tempo
em si. (p. 485)

Assim, Romance negro com argentinos subverte a ordem dos papéis. As personagens
femininas, por não “sentirem sua feminilidade como uma mutilação”, exercem o poder
de domínio dentro da narrativa. Ava Taurel impõe aos homens a submissão masoquista:
Entre a multidão de pessoas com copos na mão conversando de grupo
em grupo, vestidos ou não totalmente, com pregos ou anéis genitais e
coleiras de cachorro, alguns estavam concentrados em suas situações
íntimas. Alguma dominadora amarrara um rapaz a cadeira, com o
pinto de fora enrolado que nem um pedaço de carne, o rapaz por sua
vez amarrado com um joelho no chão, em impossível posição de tiro,
espancado, humilhado. Mudo. São prazeres que não se expressam, que
não se deixam ouvir, nem sequer se percebem.

A representação de gênero na obra de Valenzuela (2001) mostra-se de forma


antagônica, uma vez que a figura masculina assume o papel de dominado. A filosofia
aristotélica, que considerava a mulher fria e como um homem incompleto, o raciocínio
medieval que as qualificava como bruxas perversas e símbolos do mal e o pensamento
iluminista de Rousseau, que as descrevia como inaptas para as práticas artística e
racionais são retomados na obra de maneira implícita. Dessa vez, entretanto, tais
conceitos são os que as tornam fortes e superiores aos homens. Roberta, vista como
bruxa e vagina dentada – conceitos da Idade Média -, e Ava Taurel como a grande
dominadora, são formas de representar as mulheres como figuras de poder, dessa vez
retratando esses conceitos antigos dentro de um novo paradigma. Isso se demonstra
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claramente nas relações sexuais onde os homens são torturados por mulheres, e, muitas
vezes, chamados de escravos.
A psicanálise, ao tratar o tema do masoquismo, afirma que todo aquele que se coloca
na posição de submisso exerce o papel do feminino:
Para Freud, a relação estaria no fato de que o masoquista sempre se
coloca numa situação característica da feminilidade, isto é, numa
situação que implica ser castrado ou possuído sexualmente; daí
portanto o nome de masoquismo feminino. A castração ou o
sentimento de culpa também expressam seus traços no conteúdo
manifesto das fantasias, já que os genitais devem permanecer intactos
e o sujeito deve ser dolorosamente castigado por ter infringido algo.
(PEIXOTO, 2003, p. 99)

Portanto, temos a representação da mulher, na obra, com uma nova concepção, dessa
vez, a relação de domínio configura-se mulher-homem. Sendo verdade que aquele que
se coloca numa posição de dominado é considerado como castrado, então é possível
afirmar que a figura de poder dentro da narrativa desmasculiniza a ideia do falo como
figura de autoridade, uma vez que todas as personagens masculinas que ali aparecem,
são criaturas dominadas, ou seja, castradas, portanto, ausentes da concepção ideológica
de falo como poder postulada por Freud em sua obra. Nesse sentido, a relação de poder
entre os sexos procura construir uma imagem pós-moderna de relação entre os
indivíduos. Foucault(1997) pondera que poder, diferente de dominação, nem sempre
significa opressão. Dessa forma, o poder seria algo implícito em todas as relações,
sejam elas de quaisquer natureza. Assim, Foucault (1992, p. 183) destaca:
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali,
nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza
ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nu suas malhas os
indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer
esse poder e de sofrer sua ação, nunca são o alvo inerte ou consentido
do poder, são sempre centros de transmissão.

Portanto, a dominação em Valenzuela (2001) apresenta uma nova máscara. Dessa


vez, colocando o macro poder na mão das figuras femininas. A força criativa que,
segundo o pensamento iluminista pertenceria apenas à natureza masculina, é descrita
aqui de forma contrária. Roberta é quem possui o sucesso de grande escritora que,
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através de sua “energia” e de sua “escrita com o corpo”, consegue produzir arte; o
bloqueio criativo e a incapacidade de escrever fazem parte de Augustín. A literatura
que, na maioria das vezes representou o contrário, na narrativa da autora argentina
apresenta uma nova forma de retratar as relações humanas. As mulheres que, por
séculos, devido às concepções aristotélicas e iluministas, foram descritas como figuras
frágeis, sem força e inteligência, estão expostas aqui como sujeitos capazes de dominar,
pensar e criar.
A relação entre Roberta e Augustín, enquanto relação de gênero homem e mulher,
acaba por fazer com Augustín se afaste de Roberta, devido ao medo e ao poder que essa
exerce sobre ele. Dessa maneira, acaba por encontrar tranqüilidade apenas ao lado de
Hector Bravo, médico uruguaio que, como ele, está radicado em Nova Iorque.
Entretanto, a narrativa demonstra que as relações de gênero seriam apenas possíveis e
livres de dominação para aqueles que conseguem equilibrar tanto o lado masculino
quanto o feminino dentro de sua identidade. É o caso de Bill, norte-americano negro, e
Roberta. Ambas as personagens são descritas dentro de qualidades femininas e
masculinas. Bill por diversas vezes, aparece vestido de mulher, enquanto Roberta corta
os cabelos e apresenta uma imagem andrógena. Assim, o equilíbrio estaria dentro da
fronteira dos signos masculinos e femininos que as personagens conseguem interiorizar
e transvestir para si. A questão da dualidade mostra-se presente o tempo todo, da vítima
assassinada, Edwina, que se torna homem e passa a ser chamado de Vic (the victim),
Nova Iorque que, para os habitantes latino-americanos da narrativa, tem muito da
Argentina, Hector Bravo, médico que salva vidas, mas que tem a descrição dos
torturadores do período da ditadura argentina.
Romance Negro com Argentinos (2001) transgride a forma habitual de narrar e
representar as personagens. Dessa vez, a mulher é o sujeito da história que, mesmo
perdendo a vida nas mãos dos homens, continua impondo à força sua presença, muitas
vezes, causando medo. O passado é a presença maior dentro do enredo, mais importante
do que o tempo presente narrado.
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A identidade, o poder e as relações de gênero tornam-se, portanto, o foco principal


que move essas personagens, tanto na dúvida, quanto no domínio e nas ligações entre as
personagens. No fim, cada um dos argentinos encontra, a sua maneira, uma tentativa de
encontrar respostas. Roberta e Hector Bravo estão dispostos a enfrentar o passado e
tentar compreender o que aconteceu de verdade em suas vidas no período argentino da
ditadura. Augustín ao deparar-se com Hector obriga-se a defrontar-se com a realidade
da qual fugiu e a qual se nega a entendê-la.
Ao fim da narrativa, o que resta são apenas fragmentos da identidade das
personagens. A voz narrativa deixa em aberto o que virá a acontecer com eles,
mostrando que da mesma forma como as personagens, a história está em infindável
processo de construção, e que só poderá vir a ser positiva quando for realmente possível
enterrar seus mortos.

REFERÊNCIAS

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espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
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casa Ruy Barbosa, 2003.
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PINTO, Maria Conceição Correa. Mulher: integração vida-saber. IN: BRANDÃO,


Margarida Luiza Ribeiro; BINGERMER, Maria Clara. (ORG.). Mulher e relações de
gênero. São Paulo: Loyola, 1994.
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LITERATURA E DIREITO: TEIAS DE CONEXÃO

Ediliane Lopes Leite Figueiredo (PG-UEPB)

Em tempos pretéritos, a relação entre Direito e Literatura não passava de um “flerte”


descompromissado dos juristas, que sorviam a graça e a beleza plurissignificativa das
metafóricas do universo literário para impressionar na retórica discursiva. Se as
intersecções entre essas duas searas exploradas, tradicionalmente, prendiam-se ao
caráter superficial, a Literatura tomada pelo adorno formal, reduzida simplesmente ao
estudo de figuras de estilo, ditas retóricas para ornamentar o discurso jurídico;
modernamente, estudos jurídicos e literários ganham contornos de investigação bem
mais profunda. O Direito, reagindo contra o positivismo e as fronteiras conceituais
clássicas, tem se mostrado receptivo às outras funções e faces da Literatura.
À luz da observação conduzida pelo senso comum, a tessitura do texto literário
resistiria, à primeira vista, a um legítimo intercurso com o Direito - o enlace entre esses
dois campos de estudo pode parecer incompatível. No entanto, essa incompatibilidade é
apenas aparente, visto que são nas diferenças que se vincam a compatibilidade e as
diversas formas de relação que se podem estabelecer entre esses dois nichos do saber.
Ost (2005, p. 13), pontua, com autoridade, algumas diferenças que levam à
convergência entre esses dois saberes.
Segundo este autor, a primeira divergência prende-se ao fato de que enquanto a
Literatura liberta as possibilidades, põe em desordem as convenções e suspende nossas
certezas, o Direito codifica a realidade, instituindo-a através de uma rede de
significações convencionais. Em nome da segurança jurídica, o direito decide entre os
interesses em disputa, cumprindo sua função social de estabilizar as expectativas e
tranquilizar as angústias. A Literatura, livre dessas exigências, cria, antes de tudo, a
surpresa; a ela é permitido liberar o tempo das utopias criadoras.
A segunda diferença, decorrente da primeira, consiste na função propriamente
heurística da Literatura: livre para entregar-se às variações imaginativas mais
inesperadas a propósito de um real sempre muito convencionado, seu gosto
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experimental é, ao menos em alguns casos, portador de conhecimentos realmente novos.


Uma terceira e expressiva diferença refere-se ao estatuto dos indivíduos de que fala
cada um dos discursos. Ch. Biet apud Ost, diz que o “Direito produz pessoas, a
Literatura, personagens.” Na encenação que opera a vida social, o Direito impõe aos
indivíduos uma máscara normativa, as pessoas jurídicas são dotadas de um papel
exemplar destinado a servir de referência ao comportamento padrão que os cidadãos
esperam. Já os personagens literários, ambivalentes por natureza, permutam seus
respectivos papéis. Sua identidade é o resultado de sua trajetória experimental em busca
de si mesmo. Enquanto o Direito consagra papéis normatizados, a fábula joga
sistematicamente com as mudanças de escala: a tragédia antiga, por exemplo, testa
permanentemente a justa medida da relação que os homens devem manter com os
deuses e acaba por denunciar a húbris (a desmedida) dos protagonistas. (OST, 2005, p.
16-17).
Seguindo o raciocínio, Ost (2005, p. 18), aponta a quarta diferença entre Direito e
Literatura. Segundo ele, enquanto o Direito se declina no registro da generalidade e da
abstração (a lei, dizem, é geral e abstrata), a Literatura se desdobra no particular e no
concreto. Porém, resta saber se essa imersão no particular não é o caminho mais curto
para chegar ao universal.
No entanto, ainda segundo o próprio Ost, essas divergências ao invés de
denunciarem uma incompatibilidade entre esses dois campos de estudo, corroboram
uma relação dialética imprescindível ao estudo do Direito e da Literatura. Fomentando a
discussão, assim ele se posiciona:
Em vez de um diálogo de surdos entre um direito codificado,
instituído, instalado em sua racionalidade e sua efetividade, e uma
literatura rebelde a toda convenção, ciosa de sua ficcionalidade e de
sua liberdade, o que está em jogo são empréstimos recíprocos e trocas
implícitas. Entre ‘tudo é possível’ da ficção literária e o ‘não deves’
do imperativo jurídico, há, pelo menos tanto interação quanto
conforto. (OST, 2005, p. 23).
Por esse diapasão, (GODOY, 2002, p. 16-36), um dos pioneiros desse campo de
estudo no Brasil, delineia que a Literatura constitui uma espécie de repositório
privilegiado, através do qual se inferem informações e subsídios capazes de contribuir
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diretamente na compreensão das relações humanas que compõem o meio social, isto é,
o caldo de cultura no qual, ao fim e ao cabo, operam o Direito. A Literatura pode servir
como um importante instrumento mediante o qual ocorre o registro – histórico e
temporal, evidentemente – dos valores de um determinado lugar ou época – dentre os
quais se inscreve a representação do sistema jurídico, do poder, da justiça, das leis, das
funções jurisdicionais, etc. – no interior do imaginário coletivo e social. Cabe lembrar,
contudo, que não compete à Literatura a tarefa de explicar propriamente o Direito, ou
quaisquer outros campos da atuação humana. Sua contribuição – embora ligada mais
nitidamente a uma dimensão sociológica e antropológica – se dá no sentido de auxiliar
na compreensão do Direito e seus fenômenos.
Estudos com o propósito de alcançar o Direito na Literatura foram desenvolvidos
originariamente, nos Estados Unidos, por John Henry Wigmore 1 e Benjamim Nathan
Cardoso 2. Outros estudos sobre o tema surgiram tanto no cenário jurídico americano
quanto no europeu durante o quadriênio de décadas seguintes. No entanto, o movimento
ganhou um grande impulso nos anos 70, a partir daí ocorre o enraizamento
epistemológico do estudo Direito e Literatura no interior dos departamentos
universitários e dos centros de pesquisas. Esse progressivo e renovado sucesso dos
estudos e pesquisas passa a ser desenvolvido com base na exigência de uma
reaproximação, através da análise das obras literárias, dos valores humanísticos, fato
que resultou, nos anos 80, a concretização definitiva do Law and Literature Movement.
(TRINDADE; GUBERT; NETO, 2008, p. 13-19).
O movimento Law and Literature, iniciado nos anos 70, nos Estados Unidos, e que
toma corpo durante os anos 80 naquele país, deu impulso aos estudos da Literatura no
Direito, sistematizando e organizando este método de estudo. O movimento surge a
partir da publicação de The Legal Imagination, obra em que James Boyd-White discute
o Direito com base em algumas peças literárias de autores tais como Henry Adams,

1
Especialista em assuntos relacionados às provas judiciais, que lançou em 1908 o ensaio A List of Legal
Novels.
2
Célebre juiz da corte americana que, em 1925, lançou Law and Literature, ensaio voltado para a leitura
e interpretação das sentenças judiciais como exemplos de literatura.
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Ésquilo, Jane Austen, William Blke, Geofrey Chaucer, Marlowe, Helman Meville,
Shakespeare, Shaw, Tolstoy, Mark Twain, entre outros. (SCHWARTZ, 2006, p. 51).
Com o crescimento do interesse pelo Law and Movement, ocorre o surgimento de
inúmeros cursos sobre o tema; a inserção da disciplina Direito e Literatura nos
programas universitários; a inauguração de centros e institutos de pesquisa; e ainda uma
grande difusão em outras áreas do conhecimento, com a criação de novos
departamentos acadêmicos, tendo em vista que objeto de estudo em questão se move em
um campo de investigação interdisciplinar, que transcende os limites do próprio Direito.
(TRINDADE; GUBERT; NETO, 2008, p. 33).
Aqui no Brasil, esse campo de estudo descortina-se gradativamente e vem se
expandindo, através de pesquisas e discussões, à semelhança do que está acontecendo
em Portugal e em outros países da Europa. São considerados precursores da iniciativa
desse estudo no Brasil Eliane Botelho Junqueira 3 e Arnaldo Sampaio de Moraes
Godoy4. Germano Schwartz 5, autor aqui também adotado como um dos referenciais
teóricos, tem trazido grandes reflexões sobre o tema. Outros autores referenciados neste
trabalho, como André Karam Trindade, Roberta Magalhães Gubert e Alfredo Copetti
Neto 6, vêm desenvolvendo estudos, pesquisas e eventos nessas duas áreas. Alguns
congressos promovidos pelos cursos de Direito já definiram espaço para propagar as
produções científicas correlatas a esse campo interdisciplinar 7.

3
Com a publicação de Literatura & Direito: Uma outra leitura do mundo das leis, de 1998.
4
Com a obra intitulada Direito & Literatura - Anatomia de um desencanto: desilusão jurídica em
Monteiro Lobato, publicação de 2003.
5
Autor do livro A Constituição, a Literatura e o Direito, publicação de 2006.
6
Organizadores de Direito & Literatura: reflexões Teóricas, lançado em 2008, primeira obra coletiva,
dedicada ao tema. Lançaram, no mesmo ano, Direito & literatura: ensaios críticos. São membros do
IHJ - Instituto da Hermenêutica Jurídica - associação civil, fundada, em Porto alegre, 2001, por
acadêmicos, juristas e professores de Direito, que promove há três anos os Seminários Direito &
Literatura: Do fato à Ficção, cujo objetivo é instigar as pesquisas entre estudiosos de Letras e de
Direito, resvalando as interfaces entre o Direito e a Literatura.
7
O CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito) está promovendo o XIX
encontro de pesquisadores e estudantes e adotou há quatro anos o eixo temático Direito e Literatura
para apresentação e produção de trabalhos. A Faculdade de Direito Milton Campos - MG- promoveu
recentemente o II Congresso Nacional de Psicanálise Direito & Literatura.
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Conforme Schwartz (2006, p. 52-60), o fato de abarcar abordagens e perspectivas


bastante distintas, o Law and Literature Movement, faz com que esse estudo, via de
regra, apareça em uma divisão tripla: O Direito na Literatura, O Direito como Literatura
e o Direito da Literatura. O Direito na Literatura é o ramo da disciplina através da qual
se analisa as formas sob as quais o Direito é representado na Literatura. O Direito como
Literatura preocupa-se em analisar os dois campos, sob as perspectivas da retórica, da
função da narrativa e da noção de interpretação. O Direito da Literatura é uma linha
que se limita a cuidar das leis e das normas jurídicas que protegem a atividade literária,
tem pouca relevância para os estudos em questão, vez que já se apresenta codificada,
uma observação de segundo grau seria desnecessária.
É sob a perspectiva Direito na Literatura, enfocando o tratamento que o Direito e o
Estado dispensam às minorias ou grupos oprimidos que apresentaremos uma análise da
obra Capitães da Areia, de Jorge Amado.
Dentro do que podemos chamar de paradigma crítico, algumas obras literárias são
atemporais, não têm caráter peremptório, a exemplo desta obra amadiana, publicada em
1937, que traz uma denúncia de um sistema social perverso em relação à população
infanto-juvenil, infelizmente ainda vigente. Capitães da Areia é a obra literária que
trouxe o principal testemunho cultural do impacto exercido pela forte presença das
crianças nas ruas. A leitura e a análise da narrativa remetem a uma reflexão sobre a falta
de um posicionamento mais contundente da sociedade em relação à divisão de classes.
A narrativa é um poema em prosa, lírica e crua, com ações narradas sem literalismo,
constitui-se metaforicamente num documento-denúncia e foi lançada num contexto
político delicado. Fausto (2001, p. 200) afirma que em setembro de 1937, surge o Plano
Cohen, documento político de elucidação controversa, envolvendo a probabilidade de
uma insurreição comunista e diante dela uma reação integralista, cujo objetivo era
aterrorizar a população e justificar um golpe de Estado que permitiria a Getúlio Vargas
uma longa permanência no poder. Em ensaio publicado, em 2004, o professor e crítico
literário, Eduardo de Assis Duarte, assim comenta o lançamento da obra:
Há pouco mais de 60 anos, surgia, na literatura brasileira, um livro
marcado pelo estigma da incineração pública. Censurado e perseguido
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no momento de seu lançamento, Capitães da Areia, de Jorge Amado,


surge às vésperas da decretação do Estado Novo, em 10 de novembro
de 1937. (DUARTE, 2004, p. 40).
A história se desenvolve em torno de situações cotidianas de crianças e adolescentes,
entre nove e dezesseis anos, que moram na rua, ou por que foram abandonadas pelos
pais, ou por que se tornaram órfãos. O fato é que sobrevivem de furtos e assaltos em
Salvador, capital baiana. Os Capitães da Areia vivem em um trapiche, uma espécie de
galpão abandonado. Lá se escondem da polícia e dividem os objetos, conseguidos
através de furtos. Sem família, sem escola, sem valores referenciais, criam suas próprias
leis. A obra retrata o cotidiano do grupo, comandado por Pedro Bala; descreve
epidemias, como a varíola (chamada de bexiga roxa, ou alastrim); relata golpes
aplicados em pessoas e famílias respeitadas na sociedade; bem como a opressão social
sofrida pelo grupo.
No ano de lançamento de Capitães da Areia, Jorge Amado, como membro da
Aliança Nacional Libertadora, frente única de organizações de esquerda, composta de
militares oriundos do tenentismo dos anos 20, profissionais liberais e operários, opôs-se
ao Estado Novo e como decorrência mais de 1.500 exemplares de seus livros foram
incinerados em Salvador, por serem considerados subversivos, dentre eles mais de 800
volumes da obra aqui em análise. O romance só foi reeditado em 1944. Em 1945, no I
Congresso de Escritores, em São Paulo, como chefe da delegação baiana, Jorge Amado
liderou a manifestação contra o Estado Novo, acabou sendo preso e o evento cancelado
(GOLDSTEIN, 2003, p. 36-48). Por mais de uma década, o escritor “obedeceu” aos
cânones do realismo comprometido com a palavra de ordem do partido comunista e as
obras deste período revelam as inclinações político-partidárias do autor.
O ensaísta Waldir Freitas de Oliveira, em 2002, registra percursos de Amado,
sessenta e cinco anos depois, e afirma:
Capitães da Areia é, sem dúvida, um documento valioso para a
compreensão de uma época, na Bahia. Sua elaboração resultou da
vivência intensa do autor nas ruas, becos e ladeiras da cidade e da sua
missão sinceramente assumida de escritor engajado, como foram,
durante algum tempo, chamados os autores de livros como os seus,
numa sociedade que se negava a reconhecer-se injusta, mantidas as
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estruturas que garantiam, somente aos ricos, os privilégios.


(OLIVEIRA, 2002, p. 51).
Na narrativa em foco, os meninos-personagens desempenham diversos papéis. Como
atores do imaginário social, representam um “vazio institucional”. Sem Estado, sem
escola, sem família... Essa ausência de assistência, mostrada, de forma ficcional, mas
politicamente inspirada, alerta-nos para uma reflexão jusliterária sobre o tratamento
destinado às crianças e aos adolescentes na legislação brasileira.
[...] aqueles meninos, moleques de todas as cores e idades as mais
variadas desde os nove aos dezesseis anos, que à noite se estendiam
pelo assoalho e por debaixo da ponte e dormiam indiferentes ao vento
que circundava o casarão uivando, indiferente à chuva que muitas
vezes os lavava [...] (AMADO, 2008, p. 28).
Em Menores e Crianças: Trajetória Legislativa no Brasil, a idéia contemporânea de
infância, como categoria social, emerge com a modernidade. As múltiplas concepções
são construídas, em diferentes períodos históricos, de acordo com o desenvolvimento
social, político e econômico. No Brasil Império, as crianças órfãs e enjeitadas eram
recolhidas na Casa dos Expostos, um dos maiores símbolos do pensamento assistencial
brasileiro. Na época, esse segmento da população despertava ínfima preocupação. As
medidas assistenciais eram essencialmente de caráter religioso e caritativo. Durante
quase três séculos e meio, a iniciativa assistencial em relação à infância no Brasil
encontra-se quase que totalmente vinculada à igreja católica.
No final do século XIX e começo do século XX introduziram-se novos padrões
sociais, culturais e econômicos na sociedade brasileira. Impostos pela modernidade, a
industrialização, a urbanização e a crescente pauperização das camadas populares foram
as principais características. Nesse período, a consciência de que a infância representava
o futuro da nação estava associada à necessidade de manutenção da ordem e da criação
de mecanismos que protegessem a criança dos perigos que pudessem desviá-la do
caminho da disciplina e do trabalho. Assim, era preciso defender a sociedade daqueles
que se entregavam à viciosidade e ameaçavam a paz social. Com base nesse
pensamento, criou-se a cultura da institucionalização em razão de circunstâncias como
orfandade, abandono, e delinquência infanto-juvenil, onde somente os pobres eram
internados em estabelecimentos a eles destinados.
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O atendimento privilegiado no decorrer do século XIX e parte do


século XX era o internato, onde os filhos dos pobres ingressavam
categorizados como desvalidos, abandonados, órfãos, delinqüentes e
outras denominações que vão substituindo as antigas, conforme a
incorporação das novas tendências assistenciais e as construções
ideológicas do momento. (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p. 66).
Como se percebe, até meados do século XX, os olhos da sociedade e do poder
público ainda não enxergavam a criança como sujeito de direitos. Não existia um
programa assistencial adequado às crianças pobres e abandonadas, estas eram tratadas
como um produto da pobreza.
A primeira legislação específica voltada para menores no Brasil foi o Código de
Menores de 1927, também conhecido como Código Mello Mattos – Decreto n.º
17.943A, de 12 de outubro de 1927 (CIESPI). Esse certificado legal marca o início de
um domínio explícito da ação jurídica sobre a infância, é a legislação em vigor na
ocasião do lançamento da obra Capitães da Areia.
No Código de 27, o termo menor tinha um contorno delimitador: era usado apenas
para caracterizar crianças e adolescentes delinquentes, marginalizadas e abandonadas.
Assim, era introduzido o objeto e o fim da lei: “Artigo 1º. O menor, de um ou outro
sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será
submettido pela autoridade competente às medidas de assistencia e protecção contidas
neste codigo.”. (CIESPI, 2008).
O Código Mello Mattos, passou por uma ínfima reforma em 1979, mas teve uma
vigência de cinquenta e dois anos e adotava a doutrina da Situação Irregular. Em âmbito
jurídico, a expressão “irregular” significa patologias sociais, previstas na ordem
jurídica, definidas em oposição à normalidade. As hipóteses legais definidas como tal
revelavam claramente o público alvo: a infância e adolescência pobres e marginalizadas
(BRASIL, 1982, p. 83).
Retomando a discussão para a seara literária, Candido (2004, p. 186) argumenta que
a literatura é uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a
personalidade, porque ao dar forma aos sentimentos e à visão do mundo, ela nos
organiza e nos liberta do caos; portanto, humaniza-nos. Pode ser instrumento de
desmascaramento, por focalizar situações de restrição de direitos ou negação deles.
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Jorge Amado, através da obra Capitães da Areia, exprime o modo de consciência das
personagens e os modos de imersão destes no mundo particular de cada um, artifício
literário importante para a formação de uma consciência coletiva. É essa relação
dialética, defendida por Ost, referenciado anteriormente, que constitui um dos elos
compatíveis ao salutar diálogo entre Direito e Literatura.
Nesta obra amadiana, alguns personagens – atores sociais – ao mesmo tempo em que
representam suas próprias angústias e inquietações surgem, na narrativa, como
representantes de uma classe social, criam suas próprias leis: “Antes de tudo estava a lei
do grupo. Os que a traiam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo...”
(AMADO, 2008, p. 130). “Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o
bem com o bem.” (AMADO, 2008, p. 131). E com um discurso politizado, são porta-
vozes da insatisfação e do inconformismo:
[...] Os pobres não tinham nada. O padre José Pedro dizia que os
pobres um dia iriam para o reino dos céus, onde Deus seria igual para
todos. Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo.
No reino do céu seriam iguais. Mas já tinham sido desiguais na terra, a
balança pendia sempre para um lado. (AMADO, 2008, p. 97).
A narrativa surge como uma nova forma de divulgar os maus tratos da sociedade e a
negligência do poder público em relação ao problema do menor abandonado no Brasil e
propaga também a consequência desse descaso: a configuração da delinquência infanto-
juvenil. A obra foi lançada dois anos após o autor tornar-se bacharel em Direito, pela
Universidade do Rio de Janeiro. Dotado de consciência crítica e conhecedor dos
problemas sociais do seu tempo, Amado, intencionalmente, transformou Capitães da
Areia em um grande documento sócio-literário. Sete anos após o lançamento, o escritor
retoma o tema na elaboração do último capítulo da obra Bahia de Todos os Santos,
fazendo uma ponte intertextual. Assim ele se posiciona:
Não são um bando surgido ao acaso, coisa passageira na vida da
cidade. É um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate
sobre as classes pobres. Aumenta diariamente o número de crianças
abandonadas. (AMADO, 1996, p. 389).
É este autor de múltiplos universos, de múltiplas linguagens, considerado neo-
realista, o criador dos Capitães da Areia, obra lançada na terceira década do século XX,
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mas de uma semântica extremamente contemporânea. Milton Hatoum, no posfácio, da


sexta reimpressão da obra (2008), reverbera:
Este romance de Jorge Amado antecipou de um modo lúcido e
incisivo a vida das crianças que esmolam nas ruas das cidades
brasileiras. E essa é uma das mensagens mais poderosas de Capitães
da Areia. Hoje, a violência urbana tem uma relação estreita com o
tráfico de drogas, enquanto os meninos desta obra de ficção furtam
para sobreviver. (AMADO, 2008, p. 247).
É fato que já se passaram mais de setenta anos da publicação deste documento-
denúncia, o país passou por transformações sociais políticas e culturais. Atualmente,
temos uma legislação específica, pautada, sobretudo, na doutrina da proteção integral,
alicerçada em princípios constitucionais. O ECA (Estatuto da Criança e da
Adolescência), a maior referência sobre os direitos da criança e do adolescente, legisla
sobre adoção, abuso sexual, diversão, alimentação, atos infracionais, dependência de
substâncias tóxicas, liberdade, saúde, enfim, tudo aquilo que determina crianças e
adolescentes como sujeitos de direitos humanos. Essa nova condição jurídica a que
foram alçadas as crianças e os adolescentes coloca-os em posição de igualdade em
relação aos adultos. Agora ambos são vistos como pessoa humana, possuindo direitos
subjetivos que podem ser exigidos judicialmente. É o que assevera expressamente o
artigo 3º do ECA:
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que
trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e
dignidade. (BRASIL, 2007, p. 997).
Sem dúvida, o ECA representa o resultado de manifestações sociais e históricas
ocorridas ao longo do tempo, mas está longe de ser considerado a última etapa para
solucionar este hiato social. A letra fria da lei por si só não é capaz de subsumir este
contundente problema social. “Direito igual para todos” acaba se transformando num
distorcido clichê diante em uma realidade tão díspar e tão complexa no que se refere à
questão da criança e do adolescente pobre e marginalizada na sociedade brasileira.
O romance de Jorge Amado aqui analisado caracteriza-se como uma produção
literária que representa parte constitutiva de um fragmento social e, ao mesmo tempo,
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expressa visões coletivas de determinados grupos, pondo em evidência a realidade


política e social de uma época. O discurso literário, assim como a ciência jurídica, é
produto humano e reflete, indubitavelmente, em maior ou menor escala, as
instabilidades, singularidades e idiossincrasias de seus sujeitos. É nesta singra que
Capitães da Areia insere-se no contexto dos estudos de Direito e Literatura. As
inferências no texto sobre direitos, liberdade e inquietação em ralação à injustiça social
fazem-nos refletir sobre o papel da Literatura, enquanto instrumento de denúncia,
enquanto porta-voz de classes subalternizadas. Configura-se, portanto, como
componente do sistema da arte, usado como veículo para promover transformações
sócio-jurídicas. A ousadia da narrativa poética de Jorge Amado, revelada há tanto
tempo, faz ecoar, ainda hoje, através das vozes dos meninos-personagens, um
melodioso pedido de clemência e de ajuste social.

Referências

AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios. 40. ed. Rio de
Janeiro: Record, 1996.

AMADO, Jorge. Capitães da Areia. Posfácio de Milton Hatoum. 6. ed. reim. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.

BRASIL. Código de menores, lei nº. 6.697/79: comparações, anotações, histórico.


Brasília: Senado Federal, 1982.

______. Vade Mecum. Acadêmico de direito. 4. ed. São Paulo: Rideel, 2007. 1741p.

CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. 4. ed. São Paulo: Duas
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DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: leitura e cidadania. In: Amado, 2004.

FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: EDUNESP, 2001.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito & Literatura. Anatomia de um


desencanto: desilusão jurídica em Monteiro Lobato. Curitiba: Juruá, 2002.

GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. O Brasil best seller de Jorge Amado. São Paulo: SENAC,
2003.

MENORES e Crianças: Trajetória Legislativa no Brasil. Disponível em:


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OLIVEIRA, Waldir Freitas. Os 65 anos de Capitães da Areia. Revista da Cultura da


Bahia, Salvador: Conselho Estadual de Cultura, n. 20, p. 41-53, 2002.

OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário Jurídico: Trad. NEVES, Paulo.
São Leopoldo: Unisinos, 2005.

RIZZINI, Irma; RIZZINI, Irene. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso


histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004.

SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre:


Livraria do Advogado, 2006.

TRINDADE, André Karan; GUBERT, Roberta Magalhães; NETO, Alfredo Copetti.


(org.) Direito & Literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
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OS ROMANCES-FOLHETINS NA BELÉM DO SÉCULO XIX

Edimara Ferreira Santos (PG /UFPA - FAPESPA) 1


mari_marferreira@hotmail.com

Este artigo tem por objetivo apresentar algumas particularidades que envolveram a
circulação dos romances-folhetins na Belém do século XIX. Além disso, mostrar em
que momento histórico Belém estava passando, a então chamada Belle Époque, a qual
trouxe para cidade grandes transformações culturais, intelectual, política, social e
arquitetônica.
Com base nisso, o presente artigo foi estruturado em torno de duas seções. Na
primeira, buscou-se mostrar um rápido panorama do surgimento dos romances-folhetins
e os romancistas que fizeram parte desse momento literário. Na segunda, buscou-se
discutir a influência do gênero – romance-folhetim – na formação da Literatura
Brasileira. Além disso, passou-se a discutir a presença dos romances-folhetins de
autores franceses em Belém do Pará no período oitocentista.

O romance-folhetim na França

O surgimento do folhetim ocorreu na França, no período do século XIX, mas


precisamente em 1836, em um lugar específico do jornal – no rodapé. Nesse espaço do
layout das páginas dos jornais, o interesse direcionado ao público leitor era apenas o do
entretenimento. A publicação de textos nesse espaço possuía um caráter diversificado.
De início era comum a presença de vários tipos de textos como piada, charadas,
acrósticos, anedotas, divulgação dos livros recém-lançados, críticas das últimas peças

1
Graduada e especialista em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestranda em Estudos
Literários pela mesma Instituição. Pesquisadora bolsista junto ao projeto “História da Leitura no Pará
(século XIX)” desenvolvido nesta Instituição, sob coordenação da profa Dra. Germana Maria Araújo
Sales.
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teatrais ou dicas de beleza, entre outros. Era um verdadeiro vale tudo, como adverte
Meyer:

Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas e modalidades de


diversão escrita: nele se contam piadas, se fala de crimes e de
monstros, se propõem charadas, se oferecem receitas de cozinha ou de
beleza; aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças, os
livros recém saídos – o esboço do Caderno B. (MEYER, 1996, p.57-
58)

Esse espaço vale-tudo, com o decorrer do tempo, ganhou uma nova importância e um
novo direcionamento com relação à seleção dos textos que freqüentavam as páginas dos
jornais. Os textos selecionados possuíam um caráter mais específico, mais delimitado e
os seus conteúdos, aos poucos, foram inseridos semanalmente nesse ambiente,
chegando a ter novas classificações: feuilleton dramatique (crítica de teatro), littéraire
(resenha de livros); variétés (variedades) e cosi via (coisa da vida). Isso ocorreu por
conta do barateamento das ilustrações, ocasionado pelas inovações técnicas das
tipografias, expandindo, nesse sentido, a vocação recreativa do folhetim. (MEYER,
1996, p 58).
Diante dessas mudanças e desse novo rumo que o folhetim vinha sofrendo, em 1836,
o jornalista e homem político da França, Émile Gerardin, e seu ex-sócio Ducaqt, ao
perceber o quanto era rentável esse modelo de jornal e, principalmente, esse espaço,
lançaram dois jornais, os quais se chamaram La Presse e Le Siécle. Tais periódicos
foram um verdadeiro sucesso na França e, mais ainda, proporcionaram para o ambiente
do folhetim maior desenvolvimento. Então, percebendo esse sucesso e o lucro que eles
poderiam obter das folhas impressas, trataram, logo, de dar um lugar de destaque ao
feulleton, ampliando o sentido dessa palavra.
Passou-se, desse modo, a serem lançadas e publicadas diariamente nesse espaço do
jornal as tão famosas – ficções em fatias, as quais foram um fenômeno francês que
circularam por todo mundo no período do século XIX. O primeiro romance publicado
nessa nova modalidade de escrita foi o romance espanhol Lazarilho de Torme, o qual
marcou a inauguração das narrativas folhetinescas. Com isso, surgiu uma nova receita–
os romances-folhetins. E, segundo Meyer (1996), essa receita foi aos poucos sendo
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incorporada nos jornais e, por volta do final de 1836, com a fórmula “continua
amanhã”, ela já estava inserida nos hábitos dos franceses, superando qualquer
expectativa.
A idéia repercutiu por toda França e, logo, ganhou lugar de destaque nos jornais
parisienses, “de início, ou seja, começos do século XIX, le feuilleton designa um lugar
preciso do jornal: o rez-de-chaussée – rés-do-chão, rodapé –, geralmente o da primeira
página” (MEYER, 1996, p. 57) . De fato, esse sucesso gerou uma maneira peculiar de
publicação – o de publicar em “fatias seriadas”, recebendo, dessa forma, simpatizantes e
antisimpatizantes desse novo modo de conduzir a escrita literária francesa.
Diante disso, no começo da década de 1840 a “receita está no ponto”, atraindo e
segurando os indispensáveis assinantes de jornais, assim afirma Marlyse Meyer:

Brotou assim, de puras necessidades jornalísticas, uma nova forma de


ficção, um gênero novo de romance: o indigitado, nefando, perigoso,
muito amado, indispensável folhetim “folhetinesco” de Eugène Sue,
Alexandre Dumas pai, Soulié, Paul Féval, Ponson du Terral,
Montépin, etc.etc. (MEYER, 1996, p. 59)

A publicação desse gênero ganhou tamanha proporção que logo começou a fornecer
aos periódicos os infindáveis lucros e, consequentemente, o desenvolvimento da
imprensa, proporcionando acesso maior às páginas impressas por conta do barateamento
dos seus custos de produção e venda. A respeito disso, Yasmim Nadaf comenta:

O resultado foi um grande sucesso. A fórmula ‘continua amanhã’ ou


‘continua num próximo número’ que a ficção em série proporcionava
ao folhetim alimentava paulatinamente o apetite e a curiosidade do
leitor diário do jornal e, obviamente, como resposta, fazia aumentar a
procura por ele, proporcionando-lhe maior tiragem e,
consequentemente, barateando os seus custos. O jornal
democratizava-se junto à burguesia e saia do circulo restrito dos
assinantes ricos. (NADAF, 2002, p. 18)

Tratou-se, portanto, de uma nova maneira de dinamizar a leitura e de popularizar


alguns autores de renomes e outros que ainda não faziam parte do Cânone Literário. De
fato, essa nova maneira de escrita atraiu tanto os jovens escritores quanto os mais
experientes da época, em que passaram a publicar as suas “narrativas recortadas”,
algumas mais curtas e outras mais longas, nos rodapés dos jornais do período
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oitocentista. A forma de publicar em fatias seduziu, principalmente, os autores de


renomes que irão popularizar os seus romances e se tornarão os mais aptos nessa nova
técnica.
O romancista de maior inserção nesse ramo foi o Alexandre Dumas pai (1802-1870),
apesar da desconfiança inicial a essa nova modalidade de escrita, passou a desenvolver
uma grande habilidade em recortar romances já em formato livro e outros que foram
criados exclusivamente para esse espaço. Além desse folhetinesco, como ficaram
conhecidos os autores que escreviam no estilo desse novo gênero, destacaram-se o
conde Ponson du Terrail (1829-1871) com o seu popularíssimo romance-folhetim, O
Rocambole; o Paul Fevál (1816-1887); o Eugéne Sue (1804-1857), o qual publicou
entre 1842 a 1843 no Journal des Débats, Os Mistérios de Paris; o Xavier de Montépin
(1823-1902), em que teve sua obra Os Médicos dos pobres publicada me folhetim de
janeiro a maio de 1861 no jornal Les Veiléens, entre outros. Esses autores alcançaram
com suas obras uma aceitabilidade satisfatória entre o público francês e, com isso,
elevou-se o número de vendas dos jornais franceses.
O romance-folhetim possuía uma particularidade com relação a sua estrutura, pois a
maneira como ele era apresentado ao público nas páginas dos jornais assemelhava-se às
técnicas do teatro popular francês, como lembra Tinhorão:

Quanto à técnica teatral, ela aparecia não apenas na estrutura dos


próprios capítulos do romance (os três atos das peças transformados
nos três momentos básicos de cada folhetim: 1º) descrição da situação
dramática; 2º) agravamento das tensões; 3º) perspectiva de resolução,
mantido o suspense até o capítulo seguinte), mas ainda na própria
concepção por assim dizer visual das histórias. (TINHORÂO, 1994,
p.09)

Eram histórias que sempre envolviam um drama, seja amoroso, seja familiar.
Possuíam certa tensão nos seus capítulos, provocando, conseqüentemente, certo ar de
suspense, instigando a curiosidade do leitor, para que o mesmo pudesse comprar o
exemplar do dia seguinte. Com isso, o romance-folhetim atraiu milhares de leitores com
suas chamadas para o próximo dia e com as suas histórias melodramáticas.
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Assim, passamos para o momento em que esse gênero atravessou oceano e chegou
até o Brasil, atraindo e encantando o público-leitor brasileiro.

O romance-folhetim no Brasil

Com o advento da vinda da família Real para Brasil, a imprensa abre as portas.
Tipografias são abertas e outras são equipadas com as melhores máquinas trazidas da
Europa. Esse acontecimento traz para o Brasil várias vantagens, inclusive à
independência. Mas é para a imprensa que iremos dar o devido destaque.
Com a ajuda do jornalista Hipólito da Costa, circulou no Brasil o primeiro jornal –
chamado Correio Braziliense. Segundo LUSTOSA (2004), o primeiro jornal a circular
no Brasil tinha esse nome por causa dos portugueses que eram nascidos ou
estabelecidos em terras brasileiras e sentiam-se vinculados ao Brasil como à sua
primeira pátria. Sabendo disso, Hipólito da Costa dá ao seu jornal o nome de braziliense
com o intuito de mandar mensagem aos leitores do Brasil.
Além dessa história, o curioso está no formato desse jornal, o qual se assemelhava ao
formato de livro. Visto que, nesse momento o próprio papel da impressa tinha além do
caráter de informar o de educar. Até porque, os jornalistas cumpriram a atitude de
educador, pois nesse contexto era precária a presença de escolas, no entanto, a presença
dos livros já se fazia em grande proporção no país (LUSTOSA, 2004; ABREU, 2008).
Com a transferência da Sede da Coroa para o Rio de Janeiro, funda o primeiro jornal
a ser impresso no Brasil – Gazeta do Rio de Janeiro. Lançada em 10 de setembro de
1808 ao moldes do jornal que circulava em Lisboa, a chamada Gazeta de Lisboa.
Entretanto, o segundo jornal a ser publicado no Brasil foi só em 1813. Assim,
começaram a ser fundados diversos jornais no Brasil, sendo alguns com o intuito de
informar os fatos relacionados à família real; outros de cunho liberal, como é o caso do
Jornal Revérbero Constitucional Fluminense (1821), o primeiro a percorrer pelo Brasil
sem o crivo do censor.
Diante disso, a imprensa passa a dar o seu ar de liberdade, com jornais que
questionavam à Coroa; com a independência do Brasil; e com a outorga da Constituição
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de 1824. Mas essa liberdade não era de total absoluta, uma vez que a atuação dos
jornalistas ainda era limitada. Havia uma preocupação em preservar o Império,
criminalizando as condutas dos jornalistas que viriam a ofender o Imperador e a
propagar idéias contrárias à ordem do Estado.
Entretanto, a imprensa brasileira transgrediu essas regras legais e inúmeros jornais
são fundados no Brasil, abordando, principalmente, temas do cotidiano nacional. Diante
disso, é marcada a presença da influência francesa nos periódicos brasileiros, e o
folhetim, surge com força total, com suas variedades de espécie de textos.
É nesse universo histórico que em 1838 circulou o primeiro romance-folhetim em
um jornal brasileiro, O Capitão Paulo (Capitaine Paul), do aclamado Alexandre Dumas
pai, o qual foi publicado no jornal chamado Jornal do Comércio. “Entre 1839 e 1842
os folhetins-romances são praticamente cotidianos no Jornal do Comércio, embora os
autores ainda não sejam os mais modernos”. (MEYER, 1996, p. 283). A partir de então,
começaram circular os romances-folhetins de outros autores franceses nos periódicos
brasileiros como O Judeu de Errante, de Eugéne Seu; O conde de Monte Cristo
(iniciado em 1845), de Dumas; O Rocambole, de Ponson du Terrail e as obras de Xavier
de Montepin.
As narrativas folhetinescas são bem sucedidas nos jornais nacionais e, logo, os
periódicos brasileiros começaram a ganhar os infindáveis lucros. Até porque, esse
gênero chegou ao Brasil com o mesmo modelo e o mesmo intuito de como se deu na
França – dar aberturas aos jornais e aumentar o público leitor, como adverte Tinhorão:

Os romances-folhetins, ou de folhetim, como passariam a ser


chamados a partir da década de 1840, vinham representar no Brasil –
repetindo o que acontecera na França – uma abertura dos jornais no
sentido da conquista de novas camadas de público, principalmente
feminino, pois o tom da imprensa diária tinha sido, até evidentemente
só interessava a homens das áreas do governo, do capital, do comércio
e da elite intelectual dos profissionais liberais. (TINHORÃO, 1994, p.
13)

E foi assim, em decorrência dessa abertura dos jornais e dessa conquista de novos
públicos, que os autores brasileiros encontraram uma maneira de divulgar as suas obras
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e de inserir ao universo do Cânone Literário Brasileiro. Isso se deu, por exemplo, com o
escritor de O Guarani, José de Alencar, que publicou seu romance em formato folhetim
em 1856, o qual teve uma repercussão por todo o Brasil. Além desse autor, outras
escritas de outros escritores irão aparecer nos periódicos nacionais, como Manuel
Antonio de Almeida, publicou o folhetim Memórias de um Sargento de Milícias, em
1852, entre outros.
O gênero romance-folhetim, também, apareceu nos periódicos brasileiros com
algumas particularidades. Dentre essas particularidades destacamos a maneira como ele
era divulgado e como ele era apresentado nos jornais. Assim como ocorreu na França,
as narrativas fatiadas eram publicadas nas notas de rodapés dos periódicos brasileiros
em uma coluna denominada Folhetim, a qual era no Oitocento o carro-chefe de muitos
jornais, seguido da data, do titulo e do autor, como foram publicados no Folhetim do
Jornal do Comercio, Folhetim do Correio Mercantil, do Diário de Pernambuco, do
Correio Paulistano e, também, nos jornais paraenses como no Folhetim do O Liberal do
Pará, do Diário de Belém, do Província do Pará, entre outros.
As narrativas em fatias publicadas nessa coluna eram algumas longas e outras mais
curtas, conforme o gosto do leitor. Eram os leitores que conduziam a direção dessas
ficções recortadas. Quando não tinham boa aceitabilidade por parte do público-leitor,
elas ficavam logo ausentes das páginas dos periódicos brasileiros.
O gênero folhetinesco influenciou nos estilos e nas técnicas do próprio romance
brasileiro, haja vista que vários historiadores da literatura não demonstraram a devida
importância a esses dados. Como confirma Tinhorão:

De fato, e embora a maioria dos historiadores da literatura brasileira


não chegue a mencionar essa circunstância, é do romance de folhetim
que se originam as principais técnicas do romance no Brasil: a
constante intervenção do autor no desenrolar das histórias (inclusive
dirigindo-se aos leitores em tom de conversa); a extrema complicação
dos enredos, num desdobramento linear de quadros sem preocupação
com a verossimilhança; a finalização de cada capítulo em clima de
suspense; e a surpresa da retomada de personagens e situações
anteriores em conexão inesperada com ações atuais (chegou a ser o
lugar-comum nas histórias românticas os casos de amor impossível,
por descobrirem os amantes – sempre no último capítulo – que eram
irmãos). (TINHORÂO, 1994, p. 28)
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Essa maneira peculiar de conduzir as fatias cotidianas nos jornais brasileiros, de fato,
influenciou a ficção brasileira. Mas, nem sempre os autores nacionais viam essa maneira
de conduzir a escrita literária com bons olhos. Acreditavam que o gênero romance-
folhetim dava um tom popularesco à Literatura Brasileira e, também, consideravam esse
gênero como uma subliteratura, negando à influência do mesmo a formação da
Literatura do Brasil.
Diante disso, é interessante notar que Antônio Candido (1964) ao escrever sobre o
percurso e as características das narrativas do autor Teixeira e Sousa, mostrou o quanto
esse escritor ficou esquecido pelos críticos literários, justamente, por conta de sua
particularidade em escrever no estilo dos chamados folhetinesco. “Ele o representa, com
efeito, todos os traços de forma e conteúdo, em todos os processos e convicções, nos
cacoetes, ridículos, virtude” (CANDIDO, 1964, p. 126-127)2.
Entretanto, estudos e trabalhos recentes vêm cada vez mais apontando que esse novo
gênero contribui para a formação da Literatura Brasileira. De fato, o romance-folhetim
foi, realmente, um grande sucesso nos periódicos brasileiros e, também, nos periódicos
do restante do mundo. No entanto, o que fez sucesso em terra nacional foram as fatias
recortadas dos autores franceses, chegando a permanecer vários meses e até anos nos
jornais brasileiros. Um dos responsáveis pela tradução de vários romances-folhetins de
autores franceses foi o jornalista conservador Justiniano José da Rocha, o qual, também,
foi responsável pela inclusão do novo gênero ao Brasil.
Em decorrência disso, no dia 1º de setembro de 1844, “vem à luz”, no rodapé do
Jornal do Commércio, o tão esperado Mistério de Paris, de Eugéne Sue. Sua tradução
deveu-se ao jornalista Joaquim José da Rocha. Esse romance permaneceu quase um ano
no jornal e todos os dias lá estava Mistério de Paris, ocupando praticamente o
suplemento dominical inteiro. Seu fim chega em 20 de janeiro de 1845.

2
Todas as obras de Teixeira foram publicadas em formato folhetim. Em destaque: O Filho do pescador
(1843), Tardes de um Pintor ou As Intrigas de um Jesuíta (1847), Gonzaga ou A Conjuração de
Tiradentes (1848-1851), Maria ou A Menina Roubada (1852-53), A Providência (1854), e por fim, As
Fatalidades de Dois Jovens (1856).
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Outro francês lido e aclamado pelos leitores brasileiros foi Alexandre Dumas pai.
Em 30 de dezembro de 1858 inicia-se no mesmo jornal – Jornal do Commércio – o
folhetim O horóscopo, o qual irá permanecer até março de 1859. A partir de 1859,
aparece nas notas de rodapés do mesmo jornal o tão famoso, não só na Corte como nas
províncias, O Rocambole, durando até 1880, ano em que as narrativas de Xavier de
Montépin começam a dar o seu “ar da graça” nos jornais brasileiros.
No entanto, as obras desses autores franceses não circularam, somente, nos jornais da
Capital do Brasil no período Oitocentista – Rio de Janeiro. Eles chegaram às províncias
brasileiras. Como foi o caso do Estado do Pará, do Mato-grosso e da Paraíba, em que a
presença dos romances-folhetins desses homens de Letras franceses foi marcante.
No caso do Estado do Pará, à presença desses autores e, também, de outros autores
franceses fora de tamanha proporção nos periódicos paraenses. Tendo, particularmente,
o jornal como suporte de divulgação, a publicação de prosa de ficção dos franceses
apareceram, no período do século XIX, nos jornais paraenses com força total. Até
porque, nesse momento a cidade de Belém do Pará passou por um período de grandes
transformações intelectual, cultural, política e social, a chamada Bellé Époque.
Um dos periódicos a publicar os romances em fatias, sempre na coluna Folhetim, foi
o Liberal do Pará. Um jornal de cunho conservador e noticiosos, o qual passou a
divulgar, no início de 1871, o gênero francês nas suas notas de rodapés. Nesse mesmo
ano, o jornal publicou A Blanche de Beauliou, cujo seu criador é o famoso folhetinesco
Alexandre Dumas pai, tendo como tradutor B. S. Pinto Marques 3. Essa narrativa
permaneceu até 20 de agosto do mesmo ano. Outro romance a circular nesse periódico
foi A fada de D’auteil, do visconde Pierre Alexis Ponson du Terrail, iniciando em 29 de
novembro de 1872 e permanece até 21 de fevereiro de 1873. Por fim, nos dias 23 de
agosto de 1874 a 21 de fevereiro de 1875, surge O Médico dos Pobres, de Xavier de
Montépin, o qual foi considerado o maior romance-folhetim publicado nesse jornal,
cerca de 100 páginas de circulação:
Tabela 01

3
Esse tipo de assinatura era bastante comum nos jornais oitocentistas. Tanto tradutores quanto escritores,
às vezes, assinalavam apenas com as inicias.
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Autor Título do Periódic Data Ano Secção Coluna Página Cidade


Texto o
A. Dumas Blanche de O liberal 29 a 30 de 1871 Folhetim 1,2,3,4 e p.01 Belém
Beaulion do Pará agosto 5
A. Dumas Blanche de O liberal 01 a 20 de 1871 Folhetim 1,2,3,4 e p.01 Belém
Beaulion do Pará setembro 5
Ponson du A fada O liberal 29 a 30 1872 Folhetim 1, 2, 3, 4 p.02 Belém
D'auteil do Pará de e5
Terrai
novembro
Ponson du A fada O liberal 01 a 29 de 1872 Folhetim 1,2,3,4 e p.02 Belém
D'auteil do Pará
Terrai dezembro 5
Ponson du A fada O liberal 03 a 31 de 1873 Folhetim 1,2,3,4 e p.02 Belém
D'auteil do Pará
Terrai janeiro 5
Ponson du A fada O liberal 02 a 21 de 1873 Folhetim 1,2,3,4 e p.02 Belém
D'auteil do Pará
Terrai fevereiro 5
Xavier de O médico O liberal 23 a 30 de 1874 Folhetim 1,2,3,4 e p. 01 Belém
Montépin do Pará
dos pobres agosto 5
Xavier de O médico O liberal 02 a 30 de 1874 Folhetim 1,2,3,4 e p. 01 Belém
Montépin do Pará
dos pobres setembro 5
Xavier de O médico O liberal 02 a 30 de 1874 Folhetim 1,2,3,4 e p. 01 Belém
Montépin do Pará
dos pobres outubro 5
Xavier de O médico O liberal 01 a 29 de 1874 Folhetim 1,2,3,4 e p. 01 Belém
Montépin do Pará
dos pobres novembro 5
Xavier de O médico O liberal 02 a 30 de 1874 Folhetim 1,2,3,4 e p. 01 Belém
Montépin do Pará
dos pobres dezembro 5
Xavier de O médico O liberal 01 a 31 de 1875 Folhetim 1,2,3,4 e p. 01 Belém
Montépin do Pará
dos pobres janeiro 5
Xavier de O médico O liberal 04 a 14 de 1875 Folhetim 1,2,3,4 e p. 01 Belém
Montépin do Pará
dos pobres fevereiro 5
Fonte: Liberal do Pará do acervo da Microfilmagem da biblioteca Arthur Vianna (Centur)

Diante dessas informações, é confirmada a influência e a participação dos romances-


folhetins na criação e na formação da Literatura Brasileira. Até porque, esse novo
gênero formou um público-leitor, o do dezenove, o qual conduziu a leitura, seja em voz
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alta, seja em silêncio, das narrativas folhetinescas. Além disso, como adverte Chartier
(1999), “um texto só existe se houver um leitor para lhe dar significado”.
Assim, a História dos romances-folhetins tanto na França como no Brasil, só se
concretizou de fato, pela existência de uma comunidade de leitores, ou melhor, por
várias comunidades de leitores, que liam essas histórias nas notas de rodapés dos jornais
e, consequentemente, faziam circular idéias não só nas terras francesas como nas terras
brasileiras, construindo, dessa forma, o contexto de uma cultura letrada.

Referências

ABREU, Márcia. Concepções sobre romance. In: Anais do XI Congresso Internacional


da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo, 2008, n/p.

BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e literatura: a imprensa brasileira no


século XIX . Porto Alegre: Nova Prova, 2007.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 2vls. São Paulo: Martins,


1964.

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. 2ª ed. Brasília: Unb, 1999

LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


2004.

MEYER, Marlyse. Folhetim: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das miscelâneas – o folhetim nos jornais de Mato
Grosso (século XIX e XX). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002.
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SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle–Époque (1870 –


1912). Belém: Paka - Tatu, 2000.

TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetins no Brasil: 1830 à atualidade. São


Paulo: Duas Cidades, 1994.
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OS RETRATOS VERBAIS DE PEDRO NAVA

Edina Regina P. Panichi (UEL)

Introdução

Pedro Nava, ao compor os seus personagens, revela uma capacidade de


evocação muito grande. Apresenta-nos retratos admiráveis valendo-se, para isso,
de farta documentação e de desenhos que ele mesmo fazia com o intuito de
reavivar a lembrança de determinados personagens de sua vida. Revive e
ressuscita, com todas as cores, os inúmeros tipos que desfilam por toda a sua obra,
pondo de pé as figuras que evoca. A Crítica Genética permite-nos recuperar os
rastros da criação desde os primeiros esboços até as correções finais feitas pelo
autor. O texto que chega ao leitor nada mais é que o último passo de um longo
percurso que vai do projeto inicial ao resultado final. O crítico genético mostra os
bastidores da criação, a intimidade do gesto criador, ou seja, o processo de
fabricação do texto. Os documentos de processo arquivados por Pedro Nava
oferecem vários exemplos de utilização de linguagens visuais em diálogo com a
página escrita. Nava desenhava as figuras ou arquivava recortes de inúmeras
fontes e, a partir deste material, elaborava o seu texto. Sua capacidade de
reprodução quase fotográfica dos tipos e acontecimentos sustenta um estilo rico
do ponto de vista plástico e imagético. A representação da imagem em Pedro
Nava, ou seja, os retratos elaborados pelo autor são baseados em desenhos,
pinturas, gravuras ou fotografias. Ao descrever um personagem, o memorialista
terá como ponto de partida um destes elementos. A sua grande curiosidade de
inquiridor, (herança do médico), levava-o a descer a minúcias como se desejasse
fazer um diagnóstico, aplicando sua ciência à língua. A atenção aos detalhes foi
aguçada pelos longos anos dedicados à medicina, como ele mesmo revela:
“Aprendi a olhar, a ver como médico. Temos que usar os nossos sentidos de
maneira absoluta, tirar deles tudo o que possam render. Modéstia à parte, sei
observar.”(Werneck, 1983, p. 54)
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Na realidade, a sua obra não deixa de ser obra de médico. Percebe-se o médico
em cada página, na sua experiência de apreciação do ser humano, na sua
capacidade de fixar os traços fisionômicos, as linhas e as formas do corpo dos
personagens retratados. Acrescido a isso, Nava possuía uma fina sensibilidade
para apreender as características psicológicas das pessoas e associá-las ao seu
aspecto físico. A relação do autor com o mundo exterior era intensamente
permeada por seu conhecimento de arte e sua especialidade médica que
direcionavam a sua escrita. O autor tornou-se médico reumatologista grandemente
motivado por sua admiração pela anatomia do corpo humano. Daí o interesse em
fazer certas mediações entre os seus personagens e personagens de telas e
esculturas de artistas renomados. Desse modo, poder-se-ia reforçar que o grande
interesse demonstrado quando ainda estudante, pelo estudo da anatomia e
morfologia humanas aguçou, em Pedro Nava, o senso de observação e de
percepção do corpo – e com isso torna-se um construtor de linguagens. A escolha
da Reumatologia onde se lida com a forma humana, como especialidade médica,
talvez tenha sido pela idéia estética que o autor fazia do corpo, da perfeição, da
melhoria, da influência direta do desenhista.

2. O processo criativo e o objeto estético

Valendo-se do seu conhecimento sobre arte, Pedro Nava aproxima a


personagem Lenora, um amor de juventude, às personagens do quadro Primavera,
de Sandro Botticelli:
O pequeno jardim, o pinheiro em cuja folhagem ela se
encostava para sorrir de dentro do verde macio e ficar que nem
alegoria mito de Dafne árvore mulher, como uma das figuras da
direita da Primavera de Botticelli – a que morde um ramo ou a
de roupas florais se franjando em galhos folhagens ramagens.
(Nava, 1985, p. 257)

Pedro Nava procura extrair de sua matéria verbal tudo quanto esta lhe possa
oferecer de plasticidade, ritmo, harmonia e efeito evocativo. Ao comparar Lenora
com a figura de roupas florais se franjando em galhos folhagens ramagens, omite
a pontuação para alcançar valores expressivos e rítmicos. A supressão das
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vírgulas, elidindo as pausas entre os termos, resulta numa musicalidade evocativa


que se desprende de sua integração no conjunto significativo da frase.

Figura 1. Reprodução do quadro Primavera, de Botticelli, arquivado pelo autor

No sexto volume, O Círio Perfeito, Nava retoma a mesma imagem da figura 1,


numa passagem em que conversa com a amada Lenora:
Queria sair pela porta do lado, a da garagem, e para isto tinham
de passar diante dum dos pinheiros do jardim. Era uma árvore
tofuda e espessa [...]. Ele queria que ela se encostasse no
pinheiro. Empurrou um pouco até que uns galhos começassem a
bordar seu chambre branco. Um fez-lhe cócegas no rosto e
rindo ela tomou seu raminho na boca. Ele recuou dois passos e
pasmou num assombro.
- Meu bem você está igualzinha às duas figuras que Botticelle
pôs na sua Primavera. As duas da direita. E eu agradeço esse
galhinho que entrou na sua boca. Você está uma alegoria da
Terra com suas árvores. Dos seus ombros nascem ramos e
galhos. Até amanhã, Primavera. (Nava, 1983, p. 86)

A Primavera é uma obra de temática mitológica clássica que nos apresenta a


alegoria da chegada da estação. Ao centro encontra-se Vênus, que media toda a
cena. Na tradição clássica, Vênus e o Cupido surgem para avivar os campos,
fustigados pelo inverno, iniciando a primavera ao semear flores, beleza e atração
entre todos os seres. À direita da obra, (referência feita por Pedro Nava),
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encontramos três figuras. O primeiro, um ser esverdeado, Zéfiro, personificação


do vento oeste, abraça a bela ninfa Cloris (vestida de branco, como Lenora
estava), que traz um ramo na boca. Botticelli a representa em sua metamorfose,
quando se transforma em Flora, a figura com vestido florido que cumpre sua
função de adornar o mundo com flores, da mesma forma como o memorialista via
a sua amada, ao chamá-la de Primavera 1.
A razão de incluir essas informações e a ilustração é demonstrar que o autor
possuía um esquema já no nível referencial e que não hesitou em utilizar quando
precisou descrever a amada. Esse efeito só é conseguido na transposição de
formas de linguagem para formas de língua.
Na passagem seguinte, o autor rememora a figura de Leopoldina, outra de suas
paixões. Mas para construí-la em todo o seu esplendor, precisava buscar na
pintura e na escultura elementos que a compusessem tal como ele a via. À maneira
do médico, vai dissecando a personagem por dentro e por fora, não perdendo
nenhum detalhe, pois em Pedro Nava “o verbal se deixa contaminar pelo icônico”
(Bueno, 1977, p. 118). É o que podemos constatar no trecho a seguir:

Como lembro a sua figura sempre a mesma e sempre sucessiva.


Falei antes de seu pescoço firme, um pouco forte. Não acho
outra expressão. Era realmente o segmento que convinha àquela
deusa compacta e delicada – moldada com o decisivo, a
densidade, o ritmo, a proporção, o anforilíneo da Vênus
Cirenaica do Museu Nacional Romano. Esta não tem nem a
cabeça nem os membros superiores mas para compor porinteiro
a linha divina de Leopoldina, eu ia buscar para ela o que lhe
faltava, no galbo, no envasamento, no requinte de acabamento
das terminações dos braços, antebraços, mãos, dedos, falanges
da Afrodite com Eros e Pã do Museu Nacional de Atenas.Corria

1
Disponível em http://www.casthalia.com.br/a_mansao/obras/botticelli_primavera.htm (Acesso em 30
mar. de 2010)1
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mais galerias, achava na Borghese e trazia para completá-la a


cabeça em que Raphaelo Sanzio iluminava a face divina de
Madalena Strozi. (Nava, 1985, p. 67)

Para aproximar Leopoldina às estátuas e quadros famosos da História da


Arte, o autor se baseia em reproduções arquivadas, para captar com maior
precisão os contornos da amada. A descrição do pescoço sustenta-se numa
gravura da Venere di Cirene que está no Museu Nacional Romano. Já os membros
superiores foram buscados na estatuária de Afrodite, Eros e Pã do Museu
Nacional de Atenas. Para completar a figura de Leopoldina, o autor vai pinçar a
cabeça de Madalena Strozi, numa pintura de, como o demonstram as figuras, a
seguir, encontradas nos arquivos do autor:

Figura 2. Vênus Cirenaica Figura 3. Afrodite com Eros e Pã Figura 4. Madalena Strozi

Percebe-se, ainda, uma preocupação estilística do autor quando diz: [...] mas
para compor porinteiro a linha divina de Leopoldina [...] em que a aglutinação
das palavras demonstra o desejo de busca do autor por elementos nobres para
eternizar a amada em sua completude. A coincidência de terminação, ou seja, a
repetição do som nasal, transforma prosa em poesia, que era o que convinha
naquele momento descritivo. A mulher amada é então transformada numa estátua
perfeita, com pedaços retirados dos mais renomados artistas, o quem vem
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confirmar o espírito frankestein de Pedro Nava, amplamente comentado nos


estudos a respeito de sua obra.
O arsenal de figuras arquivadas servem como suporte para as aproximações
que o autor faz entre os retratos de suas memórias e quadros e estátuas famosos da
História da Arte. O retrato de Leopoldina surge, assim, como uma colagem de
partes de corpos femininos, ou seja, fragmentos da estatuária e da pintura, numa
busca da perfeição que ele procura alcançar para representá-la.

3. O pensamento criativo

Ao descrever Leopoldina o autor também se baseia numa anotação


arquivada entre seus documentos de processo. O registro do contorno físico da
amada leva à cunhagem de uma representação mais adequada que a anteriormente
concebida, como se pode observar na anotação que recebeu o número 98:

vaselíneo
preferi criar anforilíneo

Ao se traduzir a forma primeira em outros signos, objetiva-se superar a forma


original em termos informativos, acrescentando-lhe significados implícitos que só
o criador é capaz de perceber. Tal relação entre palavra e imagem vem ao
encontro do que se caracteriza como “experimentação verbalizada” (Salles, 2006,
p. 104). A conversação que o autor mantém consigo mesmo, como demonstra a
ficha em que ele registra a preferência de um termo em detrimento de outro,
demonstra que ele traduz uma forma em outra, direcionando-a para um eu virtual
que é ele próprio. Instaurada a comunicação com este alguém imaginário,
materializa o pensamento numa anotação, estabelecendo a interação com o leitor,
como observa Plaza (2001, p. 19): “Neste caso, o pensamento que já é signo, tem
de ser traduzido numa expressão concreta e material de linguagem que permita a
interação comunicativa.”
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O pensamento criativo desenvolve-se a partir de idéias, informações e fatos


disponíveis. Pedro Nava não perdia a oportunidade de registrar e arquivar
diferentes tipos de informações e justapô-las numa combinação que ultrapassava o
previsível. A sua percepção criativa levava-o a estabelecer conexões entre os
dados coletados estabelecendo analogias e comparações, conforme atesta
Ostrower:

As noções que vamos ganhando da realidade do mundo e de nós


mesmos elaboram-se em nossa mente através de imagens.
Guardemos bem este aspecto fundamental de nossa imaginação:
percebemos, compreendemos, criamos e nos comunicamos,
sempre por intermédio de imagens, formas. (Ostrower, 1999, p.
51)

Para comunicar com precisão as suas idéias, o artista precisa conhecer a fundo
os seus meios de criação. O fazer artístico se desdobra numa constante
exteriorização e interiorização de experiências vividas, condensando a nova
descoberta em termos de linguagem.
Também figuras desprovidas de beleza fornecem modelos para a figuração dos
personagens retratados pelo autor, como se pode observar quando este aproxima o
Esopo, de Velásquez, a Dona Francisca de Oliveira, a Chichica:
Outra dona de cadeira cativa, na platéia, era a Chichica.
Chamava-se com essa familiaridade à grande dama D.
Francisca de Oliveira, irmã do ministro Cândido (Luís Maria)
de Oliveira, um dos exilados de 1889. [...] Sempre de veludo
preto, azul ou cobrindo bem a face. Não se maquilava, antes
caiava-se como um pierrô e empapava os cabelos de negrita. De
traços lembrava, e já o referi, o Esopo de Velásquez, que está
no Museu do Prado. (Nava, 1985, p. 50)
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Figura 5. Reprodução do quadro Esopo, de Velásquez, utilizado pelo autor como recurso de memória.

Conclusão
Quanto maior o conjunto de registros produzidos, maior será o apoio na
organização e na variedade de seleção das formas que serão levadas à composição
do texto escrito. O primeiro passo importante é ser receptivo e apressar-se a
registrar uma idéia ou imagem, quando estas parecem viáveis ou possíveis de
serem usadas, para que não se percam. Sem essa atitude de observador, muitas
idéias que no momento em que apareceram não apresentavam grande potencial de
emprego, num momento posterior se mostram como material extremamente
oportuno. Ao arquivar as reproduções artísticas, Nava pôde utilizá-las, pois “[...]
la percepción visual no es um registro pasivo del material estimulante, sino um
interés activo de la mente” ( Arnheim, 1976, p. 35).
O uso de fontes artísticas na escritura de Pedro Nava demonstra a grande
perspicácia analítica de um escritor tão permeável às influências de toda ordem e,
ao mesmo tempo, de uma originalidade tão marcada, que infundia a seus
personagens um caráter próprio e singular. A escritura é um ato complexo. É
através dos rastros deixados pelo autor, desde a mais breve anotação até as provas
tipográficas revistas ao término de cada obra, que se busca desvendar o processo
de escritura e o percurso criativo seguido pelo autor. Cabe ao geneticista buscar
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compreender a escritura em processo, desvendando os fatores que a influenciam


desde o início até o produto final, considerado acabado pelo autor.

Referências

ARNHEIM, Rudolf. El pensamiento visual. Trad. Rubén Masera. Buenos


Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 1976.
BUENO, Antônio Sérgio. Vísceras da memória: uma leitura da obra de Pedro
Nava. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
___________. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983.
OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro: Elsevier, 1999.
PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva; (Brasília):
CNPQ, 2001.
SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: construção da obra de arte. São
Paulo: Editora Horizonte, 2006.
WERNECK, Humberto e BARBOSA, Ricardo Corrêa. O minerador do tempo. In:
Revista Isto É, São Paulo, 08 jun. 1983, p. 54.
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OS MENSAGEIROS DO DESTINO: ADIVINHAÇÕES, ASSASSINATOS E


MORALIDADE EM CONTOS DE MACHADO DE ASSIS E OSCAR WILDE

Edison Bariani (Faculdade de Itápolis) 1

“Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam”.


Machado de Assis (1982, p. 77).

“... pela primeira vez, tivera consciência do terrível mistério da Sorte,


do medonho significado da palavra Destino”.
Oscar Wilde (1945, p. 66).

Escritos quase simultaneamente, os contos “A cartomante”, de Machado de Assis, 2 e


“O crime de Lord Arthur Savile”, de Oscar Wilde, 3 abordam as consequências das
ações humanas desencadeadas a partir de adivinhações e culminando em assassinatos.
Tanto a cartomante machadiana quanto o quiromante wildeano são os impulsionadores
de uma cadeia de acontecimentos que, no seu ápice, atinge fatalmente alguém, inocente
ou não. Ambos os personagens centrais, influenciados pelas adivinhações, são
arrastados pela dinâmica dos fatos até o desfecho trágico.
Em “A cartomante”, 4 tudo se passa na cidade do Rio de Janeiro, em 1869. No conto,
narrado de modo onisciente e em terceira pessoa, Machado de Assis nos apresenta a
Vilela, Rita e Camilo, os quais formam um triângulo amoroso no qual Vilela e Rita são
casados e esta mantém um romance com o grande amigo do marido, Camilo. Quando
Camilo começa a receber cartas nas quais ameaçam revelar seu caso amoroso com Rita,
esta consulta uma cartomante para se certificar de que ele ainda a ama. Camilo zomba

1
Doutor em Sociologia. Professor da Faculdade de Itápolis-SP (FACITA).
2
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) nasceu no Rio de Janeiro e foi romancista, contista,
dramaturgo, crítico e poeta. Entre suas obras de contos estão: Contos Fluminenses, 1870), Histórias da
meia-noite (1873), Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias histórias (1896), Páginas
recolhidas (1899) e Relíquias da casa velha (1906).
3
Oscar Fingal O'Flahertie Wilde (1854-1900) nasceu em Dublin e foi romancista, poeta, crítico literário e
autor teatral. Entre suas obras estão: O Príncipe Feliz e outras histórias (1888), O retrato de Dorian Gray
(1891), A balada do cárcere de Reading (1898), De profundis (1985) e Salomé (1894).
4
O conto foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1884. Posteriormente,
foi incluído no livro Várias histórias (1896).
dela por sua crendice, entretanto, um dia, recebe uma carta de Vilela chamando-o
urgentemente a sua casa, o que o faz desconfiar de que o amigo tenha descoberto tudo.
Amedrontado, ele consulta a cartomante, que o acalma, dizendo que o romance
continuaria e o traído de nada sabia. Quando, porém, ele chega à casa de Vilela, vê o
corpo de Rita estendido no chão já sem vida e é agarrado pelo marido enraivecido, que
o mata a tiros.
Já no conto “O crime de Lord Arthur Savile”, 5 Oscar Wilde, também por meio de um
narrador onisciente e em terceira pessoa, narra a saga de Lord Arthur, um jovem rico e
nobre (inclusive de caráter) que – numa festa da alta sociedade inglesa do fim do século
XIX, organizada pela irreverente Lady Windermere – conhece um quiromante (Mr.
Septimus R. Podgers) que lhe prediz o destino, anunciando que Lord Arthur será o autor
de um assassinato. A partir de então, o jovem aristocrata vê-se impelido a realizar sua
sina antes de casar-se com sua amada Sybil Merton, bela e jovem dama da alta
sociedade. Após criteriosamente escolher as vítimas (sua tia Lady Clementina e, depois,
seu tio deão de Chichester) e de ver frustradas suas tentativas de eliminá-las, o rapaz,
vagando à noite atordoado, depara-se com o quiromante que lhe apresentou sua sorte e,
de pronto, atira-o no rio, cumprindo assim seu fado e ficando livre para se casar com
Sybil.
No conto machadiano, a cartomante é uma senhora imigrante, pobre e anônima, que
habita uma casa mal conservada para a qual vão os amantes para conhecer sua sorte,
entretanto, como integrantes da ‘classe média’ (de empregados públicos e profissionais
liberais) da sociedade carioca da Corte, não queriam ser vistos em casa de gente pobre e
marginalizada socialmente, como a cartomante. As previsões dessa não são mais que
engodos, pois se aproveita das circunstâncias e da ingenuidade dos clientes para afirmar
o óbvio; quando finalmente se arrisca a uma previsão, erra tragicamente.
Os personagens centrais, Camilo e Rita, são adúlteros, mentirosos e dissimulados. A
seu modo, pensam que o amor justifica moralmente seus atos. Rita trai o marido e
mostra uma fragilidade moral que, não obstante o adultério, guia-se pela idéia de que o
interesse e egoísmo são os motivos essenciais das ações dos indivíduos. Frente ao
trabalho e à insistência (em enviar cartas anônimas) do denunciante do adultério,
interpreta “que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum
5
Publicado originalmente na The Court and Society Review, em 1887. Posteriormente, foi incluído no
livro O crime de Lord Arthur Savile e outras histórias (1891).
pretendente”, já que “a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o
interesse é ativo e pródigo” (ASSIS, 1982, p. 77). Camilo cobiça e envolve-se com a
esposa do amigo, aproveitando-se da proximidade com o casal, que o apóia quando da
morte de sua mãe; despe-se dos escrúpulos, aproveita-se da intimidade, mente e engana
o amigo. “Candura gerou astúcia” (p. 77). Apesar de ser descrente de tudo e ver a
atitude de Rita ao consultar a cartomante como crendice e ingenuidade, Camilo,
oportunista e premido pelas circunstâncias, crê na advinha quando se vê em apuros.
Dissimulado e desconfiado, ao final, “era um ingênuo na vida moral e prática” (p. 76).
Já no conto de Oscar Wilde, o quiromante é um senhor socialmente respeitado, de
aparência confiável (segundo o narrador parecia um médico de família ou um advogado
do interior), que frequenta os salões da alta sociedade inglesa, consultando, divertindo e
impressionando os aristocratas. Mr. Podgers não só dispunha da confiança de todos
como conduzia o seu trabalho de modo exemplar: era profissional, sensível, ético e
competente – em todo o conto ele não erra sequer uma das suas previsões. 6
Crente sinceramente no quiromante, o personagem central, Lord Arthur, é um rapaz
nobre e com um profundo senso de dever, informado de sua sina, prepara
cuidadosamente a realização imediata do fato para que não o desvie de seus projetos
pessoais e encargos sociais, o maior, o casamento com Sybil. Para tanto, era imperativo
que se desvencilhasse de seu “dever” de cometer o assassinato, pois a procrastinação –
segundo ele indício de covardia – poderia prejudicar seriamente sua amada e perturbar a
instituição do casamento. 7 Estava consciente de que “não tinha o direito de casar-se
antes de ter cometido o assassinato” (WILDE, 1945, p. 72). Rapaz de “bom senso”,
segundo o narrador, “não sentiu a menor hesitação em cumprir seu dever”, pois: “Tinha
que escolher entre viver para si mesmo e viver para os outros, e, embora fosse
indubitavelmente terrível a tarefa que sobre ele recaíra, sabia que não devia permitir que
o egoísmo triunfasse sobre o amor” (p. 73).

6
Mr. Podgers apresenta-se com seu cartão, evita divulgar informações constrangedoras na frente de
outras pessoas e as omite quando podem causar danos severos à vida dos consultados. Suas previsões para
os ouvintes são todas confirmadas pelos presentes e, quanto a Lord Arthur, anuncia que é um rapaz
encantador, que fará uma viagem e perderá um parente, bem como será um assassino. Todas se realizam.
7
A noção de dever de Lord Arthur é por demais semelhante à definição de Kant (1986, 2008), visto que
se concretiza como manifestação da vontade como força moral, prova da autonomia humana frente ao
mundo e, ainda, o dever apresenta-se como algo distinto do prazer e da conveniência, sobretudo como
emanação da obrigação moral para consigo e com outrem, imposição da razão sobre as circunstâncias.
De espírito “prático”, o jovem prontamente atendeu às ordens do destino. Meticuloso
ao escolher as vítimas, preocupou-se em não dar vazão a sentimentos mesquinhos e
locupletar-se com a realização do dever, uma vez que “o tempo era inadequado para a
gratificação de qualquer antipatia pessoal, pois era grave e solene a missão a que se
dedicara” (WILDE, 1945, p. 73-4). Do mesmo modo, não queria causar escândalo ou
capitalizar publicidade, não era certo se destacar nos salões pelo fato de cumprir uma
obrigação (p. 74). Também não queria travestir seu dever de idealizações políticas, pois
que era algo “inteiramente particular” (p. 85). Escolheu um modo primeiramente
“seguro” e “discreto”, depois, porém, um tanto transtornado com o fracasso da primeira
investida, tentou ser mais incisivo (e usou de uma bomba) sem deixar de ser meticuloso
(o explosivo estava conectado a um relógio). 8
Finalmente, ao atirar o quiromante no rio, sente-se realizado, mesmo a presença do
guarda que o questiona não o incomoda, uma vez que efetivado o assassinato, sente-se
desincumbido da tarefa e livre para casar, assim, a “consciência de que havia cumprido
o seu dever deu-lhe paz e conforto” (p. 80).
Em ambos os contos os adivinhos dão ensejo a uma série ações que terminam em
mortes. Os personagens, em função das previsões, são levados a situações trágicas – daí
nos dois contos a menção a Hamlet, de Shakespeare. 9 Entretanto, curiosamente, a
despeito dos efeitos de seus atos, o assassino em Wilde é moralmente mais elevado que
as vítimas em Machado: Lord Arthur é movido pela consciência do dever a cumprir e o
desapego ao egoísmo; já Camilo e Rita são basicamente egoístas, tendo total desprezo
pela condição do outro, enganado e ridicularizado (Vilela).
Na visão machadiana, a moralidade difusa e privada da sociedade carioca (da corte)
do séc. XIX é expressa nas ações dos personagens. Esses não se incomodam com a
imoralidade de seus atos desde que não sejam expostos e punidos, ademais, o que os
aflige não é se sentirem moralmente inferiores na falta de escrúpulos que demonstram,
mas o temor da difusão pública e, consequentemente, da vingança, ação privada do

8
O fracasso das duas primeiras tentativas aborrece profundamente o jovem Arthur, “parecia que o próprio
Destino o atraiçoava” (p. 89), todavia, não perde a fé nos desígnios da providência, pois “sentia que o
Destino não podia ser assim tão injusto” (p. 91).
9
A citação de Hamlet por parte de Machado de Assis aborda a questão do inexplicável, do que existe
entre o céu e a terra para além da compreensão. Já Oscar Wilde menciona o sonhador personagem
shakespeariano para contrapô-lo (e elogiar, com ironia) a praticidade de Lord Arthur Savile. Todavia, o
enredo dos contos refere-se tacitamente à tragédia shakespeariana, uma vez que nessa há um anúncio a
respeito do futuro e de um assassinato, bem como nos contos dos autores.
ofendido. Na moralidade difusa dos brasileiros, público e privado se misturam
(FAORO, 1988) numa moralidade flexível e externa, condicionada pelo consenso tácito
de que o que não é visto e sabido não é imoral, imoral sim é ser descoberto.
Na sociedade brasileira, provinciana e pouco racionalizada, Machado de Assis
mostra o misticismo como comédia. No final, porém, dá ensejo à tragédia. A
cartomante, em seu charlatanismo, nesse contexto, serve indireta e não deliberadamente
aos propósitos de punir os adúlteros, pelas mãos vingativas do marido traído; o engodo
da advinha, inadvertidamente, propicia o castigo dos dissimulados amantes. A tragédia
se consuma a despeito dos desejos e previsões, da desfaçatez e esperteza dos amantes,
uma vez que não se engana a sorte; por maior a malícia e a astúcia, não se escapa ao
destino, pois esse é imune e distante às diferenças e privilégios morais e sociais. Não à
toa, a casa da cartomante é descrita como “a morada do indiferente Destino” (ASSIS,
1982, p. 78, grifos nossos).
Por outro lado, para Wilde, a Inglaterra vitoriana, a despeito das preocupações com o
sentido pedagógico da arte (MORAIS, 2010), tinha na sociedade londrina – moralista,
fútil, caprichosa e permeada pela etiqueta – uma moralidade reguladora da vida dos
indivíduos basicamente privada e separada do que é público. Nas concepções de Lord
Arthur, correto e de bom senso, a consciência da obrigação é algo profundo e íntimo,
independente do julgamento e exposição públicos. A moralidade – a consciência do
dever pessoal, privado, inadiável e intransferível – é introjetada pelo personagem, pois
mesmo que ninguém saiba de seu possível futuro como assassino, ele é profundamente
abalado pela situação e fica obcecado pelo cumprimento do dever.
Entretanto, a altivez moral do personagem (Lord Arthur) e seus férreos valores
aristocráticos (dever, voluntarismo, iniciativa, honra, cumprimento da palavra,
compromisso) são já anacrônicos e ridículos na sociedade burguesa, suas atitudes
nobres causam (ou eventualmente causariam, não fosse a ineficácia de suas ações) tanto
mal aos outros que, ao final, o dever, a entrega e a devoção parecem profundamente
egoístas. 10 Wilde percebe na soberba da alta sociedade vitoriana o fundamento
hipócrita, moralista e insensível das atitudes para com os outros, principalmente os de

10
Um indício da transformação burguesa da aristocracia está no seguinte diálogo: “___Economia é uma
coisa muito boa – observou a duquesa [de Paisley]. ___Quando me casei com Paisley ele tinha onze
castelos e nenhuma casa em que se pudesse morar. ___ E agora ele tem doze casas e nem um só castelo –
exclamou Lady Windermere.” (WILDE, 1945, p. 61). A nobreza proprietária se transformava em
especuladora imobiliária.
classe subalterna, como o quiromante, que servia tão fielmente. O misticismo, numa
sociedade altamente regrada e racionalizada, quando tomado seriamente por alguém que
ainda partilha de valores e princípios férreos e não como diversão burguesa, torna-se
tragédia, que vitima o próprio adivinho, porém, frente à implacável seriedade com que a
adivinhação é assumida como dever e destino social, torna-se comédia. Comédia na
qual o destino, no mundo moderno, aparece como sujeito à iniciativa dos homens,
aberto ao voluntarismo dos indivíduos que, apesar disso, no limite, não controlam as
consequências de seus atos. Por mais desencantado que seja o mundo moderno, por
mais que os homens tentem tomar o destino em suas mãos, ironicamente, o destino
social de suas ações sempre lhes escapa por entre os dedos. O dever e a sólida vontade
tentam modelar a vida, mas o imponderável aflui pelas frestas e escapa ao controle da
intencionalidade. Não à toa, Wilde deu ao conto o subtítulo de “um estudo do dever”
(WILDE, 1945, p. 78).
Na visão dos autores, sociedade e moralidade se imbricam de modo a propiciar, por
meio da ironia e humor, uma interpretação crítica da vida social e de seus personagens à
época. No Rio de Janeiro, na corte de Pedro II (1840-1889), a ‘classe média’ carioca
pratica uma moralidade difusa e flexível na qual público e privado se misturam,
emanação espiritual de uma modernização pouco racionalizada ainda um tanto
patrimonialista, na qual a classe dominante dita os padrões culturais e morais e a classe
média, em boa medida, tenta imitá-la. Nessa sociedade, a adivinhação aparece como
crendice e o narrador a apresenta como farsa, todavia, torna-se tragédia, assim como a
modernização capitalista brasileira que, a despeito das características pouco sérias dos
modernizadores, concretiza-se em uma espiral implacável de desigualdade e
imoralidade.
Em Londres, na Inglaterra da corte de Vitória I (1837-1901), a moralidade dessa
fração da classe dominante, aristocrática e aburguesada, mantém traços racionalizantes e
sentimentos de honra e dever que, a despeito de sua nobreza inicial, já parecem ridículos
num mundo no qual a modernidade tornou voláteis e espúr ios valores rígidos e altivos.
Nessa sociedade capitalista (e imperialista) inglesa, a classe dominante, profundamente
orientada para o interesse e o lucro, percebe a adivinhação como um negócio e a
moralidade como cimento social para a ordenação das condutas individuais e
materialistas numa sociedade preocupada com a integração. Entretanto, por meio da
pena de Wilde, a hipocrisia, derivada da incongruência entre as ações e recomendações
dessa classe dominante, exibe como farsa a tragédia da moral num mundo sem valores
autênticos.
Ainda que consideradas as homologias narrativas dos contos, os desfechos e a
percepção moral dos escritos são singularmente condicionados, apropriados e
interpretados com base nas sociedades em questão e seus códigos de conduta moldados
pelas classes dominantes. Isso traz um desafio à teoria, à história e à crítica literárias:
como é possível pensá-las (e as suas asserções) de modo amplo e universal na
atualidade se ainda estamos presos às circunstâncias culturais particulares como
contexto de interpretação?
Existe um ponto arquimediano da interpretação que tornaria passível o deslocamento
dos vários contextos?
Se há tal ponto, a sociologia da literatura deve reelaborar seus conceitos e métodos
ou dar lugar a uma sociologia universal ou a uma verdadeira antropologia (no sentido
geral) da cultura humana, criando novas mediações e superando em novas sínteses as
construções anteriores, o que demandaria uma completa crítica de seus pressupostos
teóricos.
Se não há tal ponto, as pretensões de uma ‘teoria geral’ da interpretação, de
globalidade cultural, de multiculturalismo, assim como a moral kantiana (universal,
racional e obrigatória), devem ceder espaço e ficar em segundo plano para que a
sociologia da literatura reconstrua os contextos de criação e busque nos particulares
pontos de contato/distanciamento entre as sociedades, moralidades e culturas em suas
diversas manifestações.
Ademais, um justo meio, se existe, seria uma reconsideração da história da cultura e
da literatura, na qual o século XX aparecesse como divisor de águas entre um período
no qual a vida social e a criação artística dela derivada se apresentava como algo
contextual e localizado, tendo como fundamento as sociedades nacionais e suas
manifestações, e, por seu turno, outro período no qual a cultura humana atingiu um
patamar verdadeiramente mundial, global, no qual os contextos já não conferem sentido
(ou todo o sentido) à produção e interpretação cultural e literária.
De todo modo, o fenômeno literário é ainda um platô privilegiado para se avistar a
existência social, local ou cosmopolita, mas sempre humana, demasiado humana.
Referências

ASSIS, Machado de. A cartomante. In: ___. Contos. 9ª ed. São Paulo: Ática, 1982. p.
75-80.

FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 3ª ed. Rio de Janeiro:


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f+inglaterra+vitoriana&hl=pt-BR&gl=br&pid=bl&srcid=ADGEESj-
eT9bc5OX5Hxn4Cu_2QnC47LSLiJQRlUHFVFBC8BLpLoOFmzjInCp95Ggrgglkgj9z
Hr9zF2BZpxEqxGRUqlyHYpZ28BU63rzorqgZK2e9xdMm4YxKXQ0R280ubu5_Zn1
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Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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A LICANTROPIA COMO ALEGORIA DO OPRIMIDO SOCIAL EM


HUGUES, O LOBISOMEM, DE SUTHERLAND MENZIES.

Edmar Adolpho Kliemann (Unioeste)*

Introdução

Retendo breves instantes a reflexões acerca do vocábulo licantropia, a primeira


coisa que vem à mente são as fabulosas e grotescas histórias de lobisomens, cujas
metamorfoses e carnificinas sempre trouxeram horror às sociedades, desde suas origens
até a contemporaneidade. O surgimento das características licantropas e a forma com
que as sociedades sempre reagiram a ela pode ser entendida como um fato cultural,
social, podendo ser concebido como uma alegoria, uma alegoria de um fato social.
A licantropia, sendo uma forma de zoomorfização, acompanhada ou não de
metamorfose, é um fato intrínseco à cultura da civilização ocidental, e sempre trouxe
alguma espécie de representavidade social. A sua origem está na mitologia, e, aceitando
o conceito de mito de Mircea Eliade, confirma-se a existência de alegorias da
zoomorfização:

(...) a principal função do mito consiste em revelar os modelos


exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas:
tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a
arte ou a sabedoria. Essa concepção não é destituída de importância
para a compreensão do homem das sociedades arcaicas e tradicionais.
(ELÍADE, 2007, p. 13)

O objetivo deste trabalho é atribuir a representatividade do oprimido social na

história da licantropia, e depois atribuí-las ao conto Hugues, o Lobisomem, da autora

norte-americana Sutherland Menzies. Para isso, são necessárias duas análises

primordiais: as características da licantropia, desde as suas origens na zoomorfização na

mitologia grega, e a sociedade romântica do século XIX, período em que a crítica

*Edmar Adolpho Kliemann é graduado em Letras – Português-Inglês pela Universidade Estadual do


Oeste do Paraná – Unioeste, no ano de 2008.
sociológica se faz presente na obra de Menzies. Depois disso, as características de

ambas serão comparadas: quais pontos têm em comum? Como o fato social da opressão

se relaciona com os licantropos? Essas questões serão discutidas nos tópicos seguintes.

1. Zoomorfização e Licantropia

Entende-se por metamorfose a transformação física de um ser humano em besta, e,


por zoomorfização, o comportamento do indivíduo semelhante ou igual à besta. A
metamorfose pode ocorrer sem que o indivíduo se comporte como o animal
metamorfoseado, ou seja, uma besta com comportamento humano, ou então o inverso,
em que não ocorre transformação física, porém o ser humano se comporta de forma
bestial. O ponto culminante dessas duas características seria o ser humano transformado
fisicamente em besta e comportando-se como tal.
O primeiro contato da sociedade ocidental com a metomorfose e a zoomorfização,
segundo os registros históricos conhecidos até hoje, foi com a mitologia, através das
obras de Homero, como Ilíada e Odisséia, das Metamorfoses, de Ovídio, do Eddas, das
Sagas, entre outros.
Os monstros mitológicos já demonstram sua particularidade metafórica de terem
sido esquecidos por Deus, seres demoníacos e fabulosos que expressam sua agonia, dor
e tristeza. Mary Del Priore trabalhou este tópico de forma exemplar:

Se, na bíblia, Deus anunciara que faria o homem à sua imagem e


semelhança, o monstro significava uma ruptura com esse princípio.
Mais além, o Levítico anunciava que os homens marcados por sinais
físicos não poderiam oferecer serviços a Deus. Nessa lógica, o mudo
revelaria, no silêncio da boca, as marcas de sua intimidade com o
inferno, onde pinças de ferro lhe teriam arrancado a língua. O surdo,
insensível à palavra de Deus, seria sensível unicamente aos rumores
infernais. O cego tivera os olhos queimados pelo calor do inferno. O
aleijado deveria seu desequilíbrio àquele de sua alma. O corcunda
traria o peso de sua maldição às costas, sobre a qual se sentava, de
tempos em tempos, seu mestre,o diabo. (PRIORE, 2000, p. 35.)
É exatamente este o ponto de partida para os estudos alegóricos que seguem acerca
da licantropia: os monstros e monstruosidades mitológicas e a sua representatividade da
dor e da misantropia.
Há quem pergunte a razão de tal monstruosa escolha alegórica, questão que
KAYSER (2003) responde em sua definição de “grotesco”: “O grotesco é uma
estrutura. Poderíamos designar a sua natureza com uma expressão, que já nos insinuou
com bastante freqüência: o grotesco é o mundo alheado.” (KAYSER, 2003, p. 159.)
Logo, os monstros nunca deixaram de fazer parte da sociedade; muito pelo
contrário, eles a representam. É um mundo alheado, mas intrínseco; repudiado, mas
sempre presente. O licantropo começou a se fazer presente na sociedade monstruosa
alegórica entre os séculos XVI e XVIII, perante acontecimentos que facilmente
denunciam a sua constituição horrorosa:

(...) os homens conheceram epidemias, guerras ou fomes com seu


cortejo de ruínas, incêncios, cadáveres corrompendo-se nas ruas e
estradas e aproximando os vivos e os mortos. Nesse mundo que
estava, aparentemente, de ponta-cabeça, os monstros seguiam
multplicando-se. (...) Nesse texto, a Igreja reconhecia legitimamente a
existência de mortos-vivos. Foi o suficiente para que almas do outro
mundo, vampiros e lobisomens invadissem os sonhos e as realidades
dos homens modernos, tornando-se elementos constitutivos de sua
maneira de ser e pensar. (PRIORE, 2000, p. 102)

Essas criaturas continuaram a criar horror e repúdio a diversas sociedades, sempre


obedecendo à alegoria do oprimido. Segundo lendas e tradições que corriam o interior
da Europa, o ser que se metaforseava em lobo estava mergulhado em tristeza profunda,
afastado das tradições religiosas (como na antiga mitologia grega). Como punição, após
sua metamorfose, “(...) tinham de correr por sete freguesias, visitando sete cemitérios,
sete outeiros e sete partidas do mundo.” (PRIORE, 2000, p. 106.)
No Brasil, a licantropia era uma punição a relações incestuosas. Em Portugal, no
século XVIII, o filho mais novo que não tinha o irmão mais velho como padrinho era
metamorfoseado. Observando esses fatos, fica fácil perceber sua relação mítica, citada
anteriormente. Na literatura latina, na obra Metamorfoses, de Ovídio, há talvez o
primeiro caso de licantropia registrado: o mito de Licaón.
Licaón, rei da Licaônia, era um tirano, um ditador supremo, que causou horror aos
deuses do Olimpo quando serviu as cabeças dos filhos de Júpiter ao próprio pai como
refeição. Seu costume canibal, sua necrofagia causou estranhamento aos deuses, que
resolveram puni-lo, transformando-o em lobo, fazendo-o vagar em melancolia eterna
pelo resto de sua existência:
(...) querendo falar, uiva o perverso:
Colhem do coração braveza os dentes,
Co matador costume os volve aos gados:
Inda sangue lhe apraz, com sangue folga.
A veste em pêlo, as mãos em pés se mudam,
É lobo, e do que foi sinais conserva:
As mesmas cãs, a mesma catadura,
E os mesmos olhos a luzir de raiva. (OVÍDIO, 2003, p. 25)

Esse primeiro caso de licantropia certamente influenciou autores ulteriores, devido à


identificação do ódio, da raiva e da melancolia com o ser lupino. O Romantismo do
século XIX talvez tenha sido o período que mais sofreu inspirações desses seres..
A seguir, analisaremos as criaturas lupinas à luz de acontecimentos histórico-sociais
que abrigam o Romantismo.

2. Romantismo e Licantropia

O Romantismo foi um período de grandes transformações sociais, cujas


características influenciaram a constituição do fato social da opressão e do oprimido. As
condições de vida do proletariado do século XIX praticamente se extinguiram com o
trabalho industrial moderno. Certamente, isso não foi uma questão de força, mas de
coerção, fato que imobilizava qualquer tentativa de resistência.
Essa imposição devastadora criou o oprimido social do século XIX, que apresentava
não mais que melancolia, sofrimento, angústia e raiva, raiva quanto à impossibilidade
de qualquer ação perante o poder devastador da coerção social que o dominava. Foram
esses sentimentos que caracterizaram o personagem que a licantropia romântica
representou em sua literatura.
GUISBURG (2005) expõe diversas características da estética do Romantismo em
sua obra O Romantismo, porém quando relaciona literatura e sociedade, a explanação
que mais se destaca é a do paradoxo opressor-oprimido:
Os observadores da vida social também perceberam o paradoxo
criado pela riqueza, de um lado. E a extrema miséria, do outro, de
modo que, em meio da abundância, grassava a fome provocada
muitas vezes por crises decorrentes de um regime de produção
desordenado e anárquico, conceituado pelo liberalismo econômico.
(GUISBURG, 2005, p. 35)

Esses paradoxos de que trata Guisburg influenciaram de forma significativa o

comunismo marxista que, durante esse período, enfatizava de forma inefável a questão
do opressor e do oprimido, do burguês e do proletariado. Tal ênfase teve proporções tão
grandes que acabou por reconstruir o mito escatológico do “Justo redentor”, conhecido
hoje como o proletariado. ELIADE (2007) define esse fato da seguinte forma:

(...) Marx retomou um dos grandes mitos escatológicos do mundo


asiático-mediterrâneo: o papel redentor do Justo (hoje, o
proletariado), cujos sofrimentos são invocados para modificar o
status ontológico do mundo. (...) Marx enriqueceu esse mito
venerável de toda uma ideologia messiânica judaico-cristã: de um
lado, o papel profético e a função soteriológica que atribui ao
proletariado; de outro lado, a luta final entre o Bem e o Mal, que pode
ser facilmente comparada ao conflito apocalíptico entre Cristo e
Anticristo, seguido da vitória definitiva do primeiro. (ELÍADE, 2007,
p. 158)

3. SUTHERLAND MENZIES: Hugues, o Lobisomem, uma análise

narratológica

Diante do proposto neste estudo, levaremos em conta a macroestrutura como objeto


de análise da narrativa, seguindo o preceito de estratégias da narrativa de REIS e
LOPES (1988):

(...) fala-se de estratégia narrativa sempre que se concebe uma


atitude ou conjunto de atitudes organizativas, prevendo determinadas
operações, recorrendo a instrumentos adequados e opções táticas
precisas, com o intuito de se atingir objetivos previamente
estabelecidos. (REIS; LOPES, 1988, p. 109)

A história de Hugues, o Lobisomem, dá-se na Idade Média, num antigo bosque


remanescente de um antigo condado, que leva o nome Kent, correspondendo hoje a
algum local da Grã-Bretanha. Uma família de origem normanda, os Hugues, também
conhecidos como Wulfric, passam a habitar essa região, e, talvez devido a essa mesma
descendência, o restante do distrito criou um violento preconceito contra eles, baseado
na crença de que fossem descendentes de licantropos, o que resultou na miséria,
desolação e na morte de quase todos eles – os pais e duas irmãs mais novas - , restando
apenas o primogênito Hugues. Após esses sofrimentos, prestes a cometer sucídio,
Hugues encontra uma velha fantasia de lobisomem, que pertencia a seu avô. Tomado de
ódio de toda a sociedade, decide abandonar o suicídio e iniciar uma luta contra ela.
Fingindo ser um licantropo, uivando e agindo de forma verdadeiramente demente,
começa um ritual de assustar e ameaçar de morte, durante todas as noites, o açougueiro
da cidade, Willieblud, no momento em que ele transportava carne para a cidade, numa
carroça, obtendo, com isso, sua remessa diária de comida. No meio destes
acontecimentos, Hugues se apaixona por Brenda, filha do açougueiro, sendo
correspondido. Numa das noites, Willieblud decepa uma das mãos de Hugues, que foge
desesperado para casa. Perseguindo-o, o açougueiro começa uma série de galhofas e
insinuações irônicas para com o licantropo, já sem sua fantasia, momento em que pede
para ver ambas as suas mãos. Brenda, porém, havia alcançado Hugues antes de seu pai,
e, estando escondida atrás dele, mostra a sua mão como sendo parte do corpo dele, fato
que leva à fuga Willieblud. Misteriosamente, a mão decepada de Hugues aparece na
casa do açougueiro e, posteriormente, em seu açougue, fatos que o enlouqueceram e o
levaram ao suicídio. Brenda herda o açougue de seu pai, e o casal passa a viver de sua
renda.
No início da narração faz-se uma descrição dos Wulfric, sempre sob uma atmosfera
de caráter melancólico, na qual destaca a miséria em que viviam, sendo possível sua
percepção em diversos pontos, como no trecho inicial em que os Wulfric são
mencionados pela primeira vez: E naquele refúgio silvestre, empenhados no trabalho de
lenhadores, aqueles párias desventurados, pois assim eram por um motivo ou outro,
haviam vivido durante anos uma existência precária e independente. (MENZIES, 2004,
p. 71). Na descrição de sua habitação, o uso de tais proposições de caráter mórbido
continuam: “O casebre primitivo que habitavam era de calcário e barro e provido de um
teto de palha no qual o vento provocara grandes estragos. Era fechado por uma porta de
madeira deteriorada, cheia de buracos enormes.” (MENZIES, 2004, p. 73).
É possível, a partir da caracterização misantrópica e moribunda dessas descrições,
realizar uma alegoria do oprimido social. A forma desumana com que os Wulfric eram
tratados reflete a miséria e as desumanas condições de vida podem ser consideradas
uma representação do contexto do proletariado do século XIX.
Se os lobisomens surgiram entre pestes e miséria, os Hugues surgiram em meio a
doenças e pobreza. O suicídio era uma forma de fuga, e Hugues quase o cometeu. As
descrições aí presentes levam ao cruzamento do discurso narratológico de Menzies com
os conceitos ideológicos e sociais dos oprimidos do século XIX, trazendo os conceitos
ideológicos e sociais da sociedade oprimida do século XIX e o discurso narratológico de
Menzies a se cruzarem. Veja-se REIS e LOPES (1988):

(...) a análise dos procedimentos descritivos adotados terá em conta


as conexões que é possível estabelecer entre o agente que rege a
descrição e o resultado final de tal descrição, em termos de
implicação psicológica e de projeção, sobre o enunciado, de
insinuações temático-ideológicas. (REIS E LOPES, 1988, p. 26)

Uma concretização ainda maior dessa alegoria é feita quando se faz presente a
conexão disto com a própria Sutherland Menzies. Seu nome original era Elizabeth
Stone, porém utilizava o pseudônimo devido ao preconceito com a autoria literária
feminina no contexto norte-americano do século XIX. A situação financeira de sua
família não era das melhores e, aliada ao preconceito anteriormente mencionado, torna-
se evidente a presença dos vocábulos miséria, preconceito, solidão e melancolia na vida
da autora.
A transformação da ambientação, a partir de agora, se torna indispensável para a
dinâmica da formação da alegoria. Do estado de melancolia profunda e de desilusão,
Hugues passa à loucura inóspita e violenta no momento em que encontra a fantasia de
lobismem de seu avô, fato que corresponde ao nó da diegese:

A fome e o desespero contribuíram para impulsioná-lo adiante. (...)


Sentia seus próprios dentes naquela máscara, ávidos para morder.
Experimentou um desejo irresistível de correr. Começou a ulular
como se tivesse praticado a licantropia por toda a vida, e passou a
assumir a aparência e os atributos de sua nova vocação. (...) A
transformação foi devida, ainda, à febre que gerou uma loucura
temporária em seu cérebro congelado. (MENZIES, 2004, p. 79)
A caracterização da narrativa, a partir deste ponto da trama, torna-se um tanto mais
dinâmica. O oprimido e seu cérebro congelado passam a um fulgor temporário, como
alegou o próprio narrador, no momento em que a narração anterior antecipa o vocábulo
temporário, intromendo-se na narração ulterior que, posteriormente, retomará o fato,
instantes após o clímax.
É importante aqui mencionar que não há um domínio completo da dinamicidade
sobre a estaticidade em nenhum ponto da obra. Simbolicamente, a dinamicidade pode
representar a importância que as revoluções tiveram no contexto do Romantismo, desde
o seu pré-surgimento até sua efetivação, como a Revolução Francesa, a Industrial e a
Americana.
Da mesma forma, a presença de adjetivos e advérbios de caráter melancólico, como
foi visto anteriormente, podem representar uma certa estaticidade, conformidade que os
oprimidos revelam ao longo de sua existência, como é possível perceber na obra,
através dos vocábulos cérebro congelado e também através da passividade que os
Hugues apresentaram no início da trama em relação ao preconceito que sofriam, como
vemos no trecho a seguinte: “Essa pobre gente (...) não se empenhava em justificar-se
ou defender-se contra uma acusação tão monstruosa. (...) estavam conscientes de sua
prórpia impotência no sentido de contradizê-las.” (MENZIES, 2004, p. 72 – 73)
É possível encontrar elementos sintáticos na narrativa que mostrem o crescimento
de dinamicidade da obra, como a redução de adjetivos, em sua maior parte mórbidos, e
o considerável aumento de verbos nas estruturas. Salienta-se novamente o vocábulo
aumento, e não predominância. Outro fator que comprova a elevação da dinamicidade a
partir do nó da trama é o início de diálogos. Sua presença é mínima, considerando-se
toda a narrativa, assim como a estaticidade do oprimido supera sua dinamicidade. Veja-
se o trecho seguinte:

- Açougueiro Willieblud – disse, disfarçando a voz e falando na


língua franca da época - , tenho fome: jogue-me duas libras de carne
se não quiser morrer!
- São Williefred, tenha piedade de mim – gritou o açougueiro ,
apavorado. – É você, Hugues Wilfred de Wealdmarsh, o lobisomem?
- Está certo, sou eu.(...) (MENZIES, 2004, p. 80)
Tudo isto mostra simbolicamente que os períodos de resistência do oprimido em
relação ao opressor foram apenas temporários, e suas idéias, talvez, utópicas. Elas
sempre existiram, porém sempre sob a forma de vultos que perseguiam sua vida mísera.
Obervando todo o contexto da licantropia, conforme tratado até aqui, torna-se fácil
reconhecer isso, haja vista a contínua dominação que os opressores sempre impuseram
aos oprimidos, em várias etapas da formação da sociedade humana. Marx apenas
retomou o mito escatológico do “Justo”, substituindo-o por “Proletário”.
No clímax, a dinamicidade se mantém linear, devido à continuidade dos diálogos,
principalmente entre o açougueiro e Hugues, porém há o retorno das proposições
melancólicas e grotescas. É o momento em que o açougueiro corta uma das mãos de
Hugues durante uma de suas tentativas de obter carne, submetendo-o a inefável
sofrimento, como se vê no trecho seguinte:

(...) Willieblud ergueu o cutelo e com um único golpe seco cortou a


pata, que fora apoiada de modo tão apropriado que parecia colocada
sob um cepo. (...) o lobo gritou de dor e desapareceu entre as sombras
da floresta, na qual, graças ao vento, bem rapidamente não se ouviu
mais seu ulular. (MENZIES, 2004, p. 84 – 85)

A partir desta descrição, torna-se possível perceber o retorno à dor e à melancolia de


Hugues, o que pode simbolizar, em sua representatividade social, a fraqueza e
inconstância dos movimentos de ordem revolucionária. Numa de suas primeiras
investidas contra o açougueiro, já fora decepada sua mão. Perante todos os movimentos
revolucionários ocorridos na sociedade, a figura do opressor e do oprimido permanece
estável, ou então predomina a figura brutal do opressor.
O desfecho caracteriza ainda mais esse discurso. Brenda auxilia Hugues a ludibriar
o açougueiro, que acaba enlouquecendo momentos antes de seu suicídio. A ambientação
e as proposições destes trechos mostram a insistência da morbidez no conto: “Oh,
aquela mão! De quem, então, é aquela mão maldita: - gemia continuamente. – É
verdadeiramente a de um demônio ou a de um lobisomem? (MENZIES, 2004, p.86)
Seria possível criar uma hermenêutica de vitória do oprimido sobre o opressor, já
que, no final, o casal permanece unido, herdando o açougue do pai de Brenda:
“Decorrido um ano após esse acontecimento, Hugues...embora destituído de uma mão, e
conseqüentemente lobisomem com certeza, casou-se com Brenda, única herdeira do
estabelecimento comercial e dos bens do falecido açougueiro de Ashford”. (MENZIES,
pág. 87)
Analisando, porém, cuidadosamente a ambientação desse desfecho, é possível
perceber a permanência do lúgubre e do melancólico através de certos elementos do
trecho, como lobisomem com certeza e embora. A ausência de sua mão sempre traria
recordações de seu passado licantropo e de seus sofrimentos morais, ou ainda o
submeteria ao ódio e vergonha moral, condição permanente do oprimido. Embora tudo
isto esteja instrínseco no Wulfric, ele casou-se com Brenda. Casar-se não é sinônimo de
amor, mas de convenção social, e os bens que Hugues, a partir de agora, passava a
possuir, haviam sido adquiridos através de Brenda, filha do opressor. O vocábulo
embora deixa claro o sentimento de pena, aqui, eminente. Talvez apenas através disso
Hugues tenha conseguido uma possível ascensão social. O casamento foi apenas uma
ilusão de uma resistência vitoriosa, pois a mão ausente e a ambientação mórbida
revelam a pesada realidade. DURKHEIM (2007b) aponta: “Somos, então, vítimas de
uma ilusão que nos faz acreditar termos sido nós quem elaborou aquilo que se nos
impôs do exterior.” (DURKHEIM, 2007, p. 34 .)
O fato de ter sido considerado licantropo na situação inicial da narrativa, e que
continua sob esta caracterização no desfecho, atribui a eterna e mísera posição do
oprimido perante o seu opressor. Seria, segundo DURKHEIM (2007b), a doença dentro
do organismo social, uma anomalia, uma monstruosidade eterna:

A palavra doença significa sempre qualquer coisa que tende a destruir


total ou parcialmente o organismo; se não há destruição há cura,
nunca estabilização, como em muitas anomalias. (...) Quanto à
ausência de estabilidade que distinguiria o mórbido, isso seria
esquecer as doenças crônicas e separar radicalmente o teratológico do
patológico. As monstruosidades são fixas. (DURKHEIM, 2007, p.
77).

Perante a sequência analisada neste breve estudo, que partiu desde contextos
históricos da origem da zoomorfização, da licantropia, do Romantismo e do oprimido
social, foi possível estabelecer uma forte alegoria entre estes termos, concretizada
através da análise do conto de Sutherland Menzies.
Considerações Finais

O objetivo de análises sociológicas é realizar alegorias profundas que façam


referência a convenções, costumes, enfim, à cultura de alguma sociedade. Deve-se ter
muita cautela, entretanto, quando se escolhe o cronotopo social e a obra literária em
questão para que não seja feita uma hermenêutica de fato superficial, centrada apenas
nos valores subjetivos da obra, sem a profundidade científica necessária.
Foi a partir disso que o cronotopo em questão, na análise realizada, foi o
Romantismo do século XIX, sem ignorar as suas influências antecedentes, para que uma
consideração mais efetiva dos valores de alegoria do oprimido social a partir da
licantropia fosse feita. Além disso, para que se evitasse a superficialidade, toda esta
questão foi complementada com a análise estrutural da macroestutura do conto questão,
a citar que essa estrutura também é fruto do social. SILVA (2009), baseada em Lukács,
afirma:

Para o autor, (Lukács) a literatura não reflete a realidade social


apenas na descrição dos ambientes, objetos, roupas, gestos etc (ou
seja, num fluxo de detalhes realista), mas também – e principalmente
– na sua essência, na maneira com que a fábula se desenrola, na
articulação dos mecanismos que estruturam um texto. O texto passa a
refletir o todo social, a maneira como a própria sociedade está
montada e organizada. A degradação dos valores humanistas causada
pelo capitalismo está, segundo ele, revelada na literatura. (SILVA,
2009, p. 179.)

Tudo isso pode ser facilmente aplicado em diversas obras românticas que envolvam
o tema licantropia, o que a torna de fato quintessente. Seria também muito apropriado a
continuação desta pesquisa com a análise, por exemplo, do soneto “Melizeu, o menor
entre os nascidos” ou o Senhor dos Lobos, de Alexandre Dumas.
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Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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DA LITERATURA PARA O CINEMA: OS PRESOS DE GRACILIANO RAMOS


E NELSON PEREIRA DOS SANTOS EM MEMÓRIAS DO CÁRCERE

Eduardo Henrique Cirilo Valones (PG - UFPB)

Introdução

Teóricos do estudo do cinema e da literatura, como João Batista B. de Brito,


consideram o cinema uma arte narrativa; como também que foi a literatura que inspirou
tal narratividade. Os planos e os recursos utilizados para enfatizar um dado momento ou
para atingir a tensão/conflito desejado estão bem próximos nas duas artes. Ou seja, as
modalidades de expressão cinematográfica equivalem às modalidades da narratividade,
por consequência, da literatura. Diante disso, temos vários exemplos de livros da
literatura brasileira que foram adaptados para o cinema. Senhora, Lucíola e Iracema, de
José de Alencar; Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro (estes com mais
de uma versão cada um), de Machado de Assis; Menino de engenho, de José Lins do
Rego; O cortiço, de Aluísio de Azevedo; A hora da estrela, de Clarice Lispector;
Macunaíma, de Mário de Andrade são alguns desses exemplos. O livro Memórias do
cárcere, de Graciliano Ramos, também se encaixa nesses casos. Dele temos a versão
cinematográfica homônima, feita por Nelson Pereira dos Santos, a partir de 1982.
Com base nas possibilidades comparativas que podem ser estabelecidas entre a
literatura e as formas de expressão que utilizam a imagem como entidade
plurissignificativa, como é o caso do cinema, e que levam à quebra dos limites rígidos
das diferentes linguagens, nosso objetivo é analisar as representações do filme e do livro
Memórias do cárcere a partir dos personagens encarcerados. Para isso, direcionaremos
nossas investigações para aspectos essenciais presentes na narrativa literária e fílmica
destas obras e que nos permitem vislumbrar a representação de parte da sociedade
brasileira abordada nas obras. Há, evidentemente, e como apontam os críticos das duas
artes, dificuldades que permeiam o estudo da transposição das obras literárias para o
cinema e/ou vice-versa, mas procuraremos nos manter no discurso linear presente nas
duas obras, além de nos apoiarmos, para esta empreitada, no momento histórico e no
contexto político da época.

1 - Memórias do cárcere: o livro e o filme

Graciliano Ramos, escritor pertencente ao segundo momento do Modernismo


brasileiro, foi preso em março de 1936, acusado de ligação com o Partido Comunista.
Encarcerado arbitrariamente, sem um devido processo legal, foi levado, num porão de
navio, para o Rio de Janeiro, onde permaneceu detido por quase um ano. Durante esse
período passou por diversos presídios, até janeiro de 1937, quando foi libertado. Dessa
amarga experiência, Graciliano Ramos escreveu Memórias do cárcere, publicada
postumamente em 1953 e considerada uma alegoria à prepotência que marcou o
governo ditador de Getúlio Vargas. O livro possui dois volumes, divididos em quatro
partes: Viagens e Pavilhão dos Primários compõem o volume I; Colônia Correcional e
Casa de Correção, o volume II. Infelizmente, é uma obra inconclusa, porque Ramos
veio a falecer antes de terminar o capítulo final do segundo volume. Entretanto isso não
a desmerece, pois Memórias do cárcere narra acontecimentos não só da vida de
Graciliano Ramos como de outras pessoas que estiveram presas durante o Estado Novo.
Pode-se pensar inicialmente que o livro de Ramos é apenas uma autobiografia, mas a
visão documental do autor, ao observar que, no conjunto de presos encontravam-se
dissidentes políticos, militares, profissionais liberais, intelectuais, prostitutas e ladrões,
não anula a sua visão literária. No decorrer da narrativa, descreve, com excelência, a
adaptação de sua natureza aos diversos ambientes hostis pelos quais passou. E a riqueza
na descrição dos tipos psicológicos diversos ali encontrados mais a surpreendente
revelação de que já experimentara um cárcere anteriormente àquela trajetória (a
ocupação de seu cargo público em Alagoas e a conflituosa convivência com esposa)
acentuam ainda mais o caráter literário da obra.
Baseado neste livro de Ramos, o cineasta Nelson Pereira dos Santos começa, em
1982, as filmagens de Memórias do cárcere. A etapa de elaboração do roteiro para fazer
a adaptação da linguagem literária do livro à linguagem fílmica contou com três versões
até a definitiva. Em um período de quase dois anos, Santos fundiu os mais de duzentos
personagens originais do livro em cerca de cem, enumerando suas características físicas
e psicológicas, além de resumir os acontecimentos principais de cada capítulo. Ainda
alterou nomes de personagens e a ordem cronológica de alguns acontecimentos. O
cineasta exigia que os atores lessem o capítulo/trecho do romance de origem antes da
gravação das cenas a ele equivalentes. Houve até a necessidade do treinamento dos
figurantes, pois, para compor o universo dos numerosos personagens, eles tinham que
atuar verdadeiramente no filme. As filmagens foram iniciadas em julho de 1983, na
cidade de Maceió, e, depois, transferidas para o Rio de Janeiro, em estúdios
improvisados. Em 1984, o filme de Nelson Pereira dos Santos é lançado, com mais de
três horas de exibição, tendo Carlos Vereza como Graciliano Ramos, Glória Pires como
sua esposa (Heloisa Ramos) e mais um elenco de atores e figurantes, agradando à crítica
nacional e internacional, e, principalmente, ao público.
Em entrevistas Nelson Pereira dos Santos dá a entender que trouxe para a tela de
cinema uma visão alegórica da sociedade brasileira da década de 80. Segundo ele, as
memórias de Graciliano são na verdade “uma metáfora da nossa sociedade” (Apud
SALEM, 1996, p. 357). Assim percebemos o intuito do autor de fazer uma obra também
representativa de seu tempo, e não apenas da época de Graciliano Ramos. Mesmo
datado já em seu início, a amplitude que a obra consegue alcançar se concretiza, no
filme de Santos, alegoricamente, além da época equivalente ao regime Vargas.

2 – Os cárceres das Memórias

Os prisioneiros de Memórias do cárcere, tanto do livro como do filme, podem ser


classificados em vários tipos. Entretanto para simplificá-los, podemos fazer uma dupla
divisão das personagens: os presos políticos e os presos comuns. Na categoria dos
presos políticos, estavam os comunistas e simpatizantes, os militares revoltosos, os
intelectuais, os operários sindicalizados e suas respectivas mulheres. Já na dos presos
comuns, encontravam-se os ladrões, os malandros, os desempregados, os assassinos e
alguns homossexuais. Somente na Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande –
RJ, os presos políticos conviviam diretamente com os presos comuns. Nos outros
presídios pelos quais passou Ramos, esses dois grupos ficavam divididos em espaços
distintos. As mulheres eram encarceradas em celas separadas e precisavam usar de
subterfúgios para comunicar-se com seus maridos e conhecidos.
A narrativa de Santos no filme Memórias do cárcere é linear, assim como no livro. O
início das obras é marcado pelas dificuldades que Graciliano Ramos enfrentava para
desenvolver suas habilidades de escritor em meio às opressões. Além de não conseguir
fazer a revisão de uma obra já pronta para publicação (Angústia), sua esposa o
atormentava com ciúmes sem motivos. Suas atividades profissionais como Diretor da
Instrução Pública de Alagoas também não ajudavam. Enquanto desempenhava esta
função pública, não seguia rigidamente os ditames nacionalistas proclamados pelo
varguismo (patriótico, trabalhador, submetido aos sindicatos controlados pelo governo e
católico). Forneceu roupa e merenda gratuitas às crianças pobres, possibilitando-lhes o
acesso à educação, quando o desejo real dos que detinham o poder era manter o máximo
de crianças longe do mundo das letras, pois “[...] o emburramento era necessário. Sem
ele, como poderiam agüentar políticos safados e generais analfabetos?” (RAMOS,
1985a, p. 41). E ainda se recusou a privilegiar “apadrinhados” dos políticos e dos
“coronéis” alagoanos. Dessa forma, fora demitido por suas atitudes, consideradas
extremistas, como a abolição do hino do estado de Alagoas nas escolas públicas.
Embora não houvesse nenhuma acusação formal nem tenha ido a julgamento,
Graciliano Ramos foi preso e deportado para o Rio de Janeiro, enfrentando a tortura da
viagem no porão de um navio chamado Manaus. E levado ao porto para um embarque
sem definição de destino acentua mais a idéia de repressão que norteia a obra.
Os acontecimentos iniciais do filme são mostrados em aproximados dez minutos de
duração e vão desde os momentos que antecederam a prisão até a cena em que militares
buscam o romancista em sua residência, escoltam-no de automóvel, depois de trem, até
o primeiro cativeiro: o quartel militar. Com a supressão de algumas falas, o filme se
mantém fiel ao livro, mas, antes do início, têm-se uma legenda explicativa que não
consta na obra literária:

Em novembro de 1935, militares filiados à Aliança Nacional Libertadora


revoltaram-se contra o Governo de Getúlio Vargas. A rebelião, facilmente
sufocada pelo Exército, provocou a aplicação de medidas constitucionais de
defesa da ordem política e social que suspendiam as garantias das liberdades
individuais de todos os brasileiros. Graciliano Ramos, um dos mestres da
moderna literatura brasileira, deixou desse episódio o testemunho humano
no qual se inspira este filme. (SANTOS, 1984, 0:00:00-0:00:38)

Chama-nos a atenção, nesses momentos iniciais das duas obras, a caracterização da


sociedade da época frente àqueles chamados presos políticos. A visão deturpada que as
pessoas tinham para quem era apontado como comunista se revela desde os primeiros
parágrafos do livro e também nos minutos iniciais do filme. Na versão de Santos, essa
visão já aparece na visita de uma parenta de Heloísa à casa de Ramos antes da sua
prisão e após sua demissão. No livro essa passagem é apenas citada por Ramos, como
um “caso insignificante”, mas que “exerceu grande influência em minha vida”
(RAMOS, 1985a, p. 44). Mas, no filme, esse trecho ganha dramaticidade, pois as
personagens dialogam e travam uma breve discussão, com acusação, por parte de
Albertina (a parente), de que Graciliano era comunista, o que, na visão dela, era
inadmissível. Ainda nesta discussão a acusadora acredita que sua demissão fora justa,
porque havia proibido o hino nacional nas escolas. Observa-se aqui a liberdade poética
do cineasta em relação a obra escrita, porque, além de ter sido transformada em diálogo
uma passagem apenas descrita no livro, o hino que Ramos queria que não tocasse nas
escolas era o de Alagoas, e não o Nacional. No filme, isso faz com que o suposto crime
cometido por Ramos seja mais pernicioso ainda, pois proibira o hino de sua própria
nação.
Outro momento que reforça esta teoria se dá nas visitas de um oficial à cela que
Ramos dividia com outro preso político, o capitão Mata, ainda em um quartel do
exército, em Recife. Capitão Lobo, o oficial, responsável pelas instruções sobre banhos
e comida aos dois presos, dirigia a Ramos as seguintes palavras: “– Respeito as suas
idéias. Não concordo com elas, mas respeito-as” (RAMOS, 1985a, p. 80) / (SANTOS,
1984, 0:19:20-0:19:30). Nessa passagem observa-se uma ironia típica graciliana, pois o
oficial nunca se referia a que ideal o preso político seguia, gerando, assim, certo
desprezo pelas “idéias” do autor. No filme a ironia é acentuada pelo pedido do
autógrafo de um livro de Graciliano Ramos (São Bernardo) por parte do oficial,
momentos antes da referida passagem.
Na transferência, de trem, de Maceió para Recife, um conhecido do escritor (o
Deputado José da Rocha), ao ver a prisão de Graciliano, “recuou, temendo manchar-se,
exclamou arregalado: – Comunista!” (RAMOS, 1985a, p. 57). Na era Vargas, qualquer
pessoa que fosse suspeita, se proclamasse comunista ou simpatizante, era considerada
um perigo para a saúde de uma sociedade que não tolerava o pluralismo. O espanto do
conhecido do escritor e o medo de “manchar-se” estavam atrelados à idéia de que os
ideais nacionalistas defendidos por Vargas e seus seguidores ficavam ameaçados por
tais pessoas. Nem mesmo os próprios presos estavam isentos da influência dessas
representações. O médico Emanuel Horta, então presidente da Aliança Nacional
Libertadora de Maceió, acabou preso e não era sequer simpatizante do comunismo; era
um “pequeno burguês”, que, nos primeiros momentos após a prisão, comprava comida
no navio Manaus, desfilava de roupão de seda e tinha um auxiliar para carregar suas
malas. Ao sofrer com trabalhos forçados e maus tratos na Colônia Correcional, acabou
desequilibrando-se, questionando Ramos sobre o motivo de sua prisão e lançando esse
desabafo: “– Você, ora essa, você está preso porque é comunista. Sempre foi. [...] Desde
menino, sempre foi [...] eu nunca me meti com vocês, eu nunca li estas coisas.”
(RAMOS, 1985b, p. 174-175) / (SANTOS, 1984, 2:32:22-2:33:19). A sua obnubilação
desviava as atenções de sua pessoa e as concentrava no escritor, num ambiente em que
qualquer um poderia ser um espião e denunciar outro colega de cela às autoridades,
complicando-lhe ainda mais a vida.
Somada a essas visões conspurcadas, a imprensa reacionária ainda piorava a
situação, reforçando a idéia de que os comunistas eram “uns monstros”. Normalmente
as veiculava, com o apoio do governo e por meio de uma linguagem violenta, para
conseguir a credulidade do público e a indiferença para com os destinos dos acusados
trancados nas prisões. Um jornal publicou um retrato de Ramos com a seguinte
legenda: “o bagunceiro de Alagoas”. Segue-se à foto um texto violento e injurioso
arrasando-o, expondo-o “à execração pública num ataque medonho” já que, para um
“desordeiro” como ele, “a prisão era justa” (RAMOS, 1985a, p. 299). Essas e outras
atitudes da imprensa, do governo e da população levavam a centena de prisões sem
julgamentos justos, em que deveria haver, pelo menos, um processo legal.
Como os comunistas não se enquadravam na nação desejada por Getúlio Vargas, o
tratamento a eles dispensado, tanto nos porões dos navios como nas prisões, era o pior
possível. As cenas representativas desse tratamento são descritas de forma enfática,
quando todos estavam misturados, presos políticos e presos comuns, e eram
subelevados à categoria de animais: “Procediam exatamente como se as lançassem num
chiqueiro [...] Era como se fôssemos animais” (RAMOS, 1985a, p.167). Ou ainda:
“estávamos no curral de arame [...] Sem dúvida nos julgavam animais” (RAMOS,
1985b, p. 196). Partindo dessas descrições, Nelson Pereira dos Santos monta as cenas
do filme com extremo realismo, procurando sempre ser o mais fiel possível ao livro.
Para isso, o cineasta se utiliza de imagens fortes, nas quais a comida é servida em pratos
imundos, as moscas voam em volta dos pratos de sopa ou nele pousam etc. Mesmo em
situações desagradáveis como essa, a ironia dos autores não deixa de acontecer. Santos
a realiza quando, na cena da comemoração do aniversário do Dr. Sarmiento, Diretor da
Colônia Correcional, a comida degradante é disfarçada, coberta com folhas de alfaces.
No livro, o episódio das alfaces se dá quando da visita de religiosos ao presídio.
O fato de esconder as péssimas condições com que eram servidos e tratados os
presos, tanto no livro como no filme, só reforça a hipocrisia que imperava nos cárceres
do governo Vargas. Já que o filme pode ser lido como uma visão alegórica da sociedade
atual, depreende-se que esta se tornou uma prática comum dos governos subseqüentes
ao da época de Graciliano Ramos, principalmente os da ditadura militar pós-64.
Como já dissemos, os presos políticos eram constituídos também por mulheres,
esposas dos apenados ou figuras conhecidas. Tanto no livro como no filme, a maioria
delas é caracterizada como mulheres companheiras politizadas e atuantes, destoando da
imagem feminina de “dona do lar”, sem muitos estudos ou participação na vida pública.
Olga Benário Prestes é um exemplo. Alemã, judia, comunista e companheira de Luiz
Carlos Prestes, líder comunista mais conhecido do Brasil, foi detida no Rio de Janeiro.
Esteve presa na Casa de Detenção do Rio de Janeiro ao mesmo tempo em que Ramos lá
se encontrava. Sua situação representava um delicado problema diplomático para
Vargas. Grávida de Prestes, ela não poderia ser legalmente extraditada para a
Alemanha, como era o desejo dos dois governos. A partir de nebulosas manobras legais
o governo a mandou para a Alemanha, em agosto de 1936. A cena dessa representação é
um dos momentos fortes do filme de Santos, pois mostra a solidariedade e depois a
frustração dos seus colegas de cela. Olga morreu no campo de concentração nazista de
Bernburg, em 1942. Curiosamente esses momentos também são retratados em livro e
filme. Uma das biografias sobre a militante é feita por Fernando Moraes e publicada, em
1985. E, em 2004, é lançado o filme Olga, de Jayme Monjardim, baseado na obra
homônima deste escritor.
Outra figura feminina bem trabalhada é a de Heloisa Ramos. De esposa ciumenta e
frágil, Heloisa transforma-se no apoio inabalável do escritor, negociando e
concretizando a publicação de Angústia, percorrendo várias repartições para conseguir
direito de visita, gerenciando os assuntos econômicos do casal e viajando sozinha a fim
de encontrar-se com Ramos. Também se envolve no movimento dos escritores em prol
da libertação dele e ainda funciona como uma conexão entre os presos e a realidade
exterior à prisão, ficando encarregada de levar e trazer a correspondência dos presos ou
ajudá-los com encomendas fora e dentro do presídio. Estas ações punham-na em risco
de ser apanhada e também encarcerada, deixando, dessa forma, de se apresentar apenas
como uma típica “dona do lar”, e caracterizar-se conforme as mulheres que lutaram para
ocupar um espaço maior no contexto da política, da produção intelectual e do mercado
de trabalho.
Os presos políticos, membros ou simpatizantes da esquerda (os apontados como
comunistas) não estavam sozinhos nas prisões varguistas. A convivência com os presos
comuns (marginais, ladrões, vigaristas, estupradores, assassinos, homossexuais, vadios,
desocupados) se dava em alguns momentos. Nota-se, em várias páginas do livro, que,
nas menções aos ladrões, o escritor manifesta simpatia por eles. No filme, apesar da
redução dos diálogos com tais personagens, há muitas cenas em que eles estão próximos
ao romancista. Ramos conviveu mais diretamente com os presos comuns devido ao
precário estado de saúde em que se encontrava, pois, como não era convocado para os
trabalhos forçados, despertava a atenção deles. Outrossim, por ser escritor, todos
queriam, de alguma forma, “aparecer” nas páginas que o escritor rabiscava para ocupar
o seu ócio. Assim, pôde trocar idéia com sujeitos como Cubano e Gaúcho. Cubano,
preso por vadiagem, fazia o papel de “cão de fila” – o responsável pelas “formaturas”
(formação de filas para a contagem dos encarcerados), mas era respeitado por estes, pois
possuía regalias que os outros não tinham, como ter roupas sempre limpas, de boa
qualidade e acesso a artigos difíceis de se conseguir (como o queijo de cabra, que
conseguiu para Graciliano aliviar a fome). Graciliano descreve Cubano como uma “[...]
criatura esquisita, empenhada constantemente em nos prestar algum serviço, obrigando-
nos às vezes a aceitá-lo à força” (RAMOS, 1985b, p.143) e considerava-o como um dos
seus poucos amigos verdadeiros. Cubano alcançou essa posição por ter defendido o
escritor até mesmo dele próprio, impedindo Ramos de morrer de fome e guardando-lhe
os pertences para que os outros presos não roubassem. Gaúcho, ladrão, ajudara Ramos
na suas escrituras surrupiando papéis da Secretaria do Presídio para que o escritor
pudessse dar continuidade a seus livros. Para Gaúcho e outros presos, ajudar o escritor
seria uma forma de aparecer no futuro livro e, assim, garantir uma forma de manterem-
se vivos, perpetuados na memória da sociedade, por meio de uma obra literária. Mesmo
desempenhando papéis considerados de perigo para sociedade, estes indivíduos não
delatavam nem prejudicavam nenhum preso, apenas utilizavam-se de sua malandragem
para sobreviver.
Percebe-se que, mesmo sendo um escritor de atitudes progressistas, modernas, o
alagoano reproduz, em dados momentos, valores agregados de uma sociedade hipócrita.
No filme percebemos essa nuance do escritor quando discute com Soares por causa de
uma cama que havia comprado de Gaúcho, declarando-se como proprietário, categoria
burguesa que Ramos detestava. Na ocasião ele até desiste da cama diante das acusações
de Soares, mas, como estava doente e precisando de um local mais confortável, fez
imperar sua necessidade vital de sobrevivência. Mas não devemos esquecer que
Graciliano Ramos inova ao realizar uma reflexão mais profunda da sociedade. O que
parece absoluto se esvai como areia movediça. Se um ideal era um sonho de vida, a
realidade faz acordar para a íntima necessidade que o homem tem de sobrevivência.
Estas reflexões se acentuam nos momentos em que, nas prisões da era Vargas, “os
indivíduos eram levados a perder todos os contornos de civilidade, assumindo cada vez
mais sua condição animal” (CANCELLI, 1993, p. 193).
Os momentos finais do filme, diferentemente do livro, se dão quando se inicia o
processo de soltura de Ramos da Colônia Correcional de Dois Rios. Depois de
conversar com o Diretor, Ramos chega a conclusão que terá “boas lembranças” dali.
Mas, que na verdade, o Diretor lhe dera um ótimo assunto para um livro. As palavras do
escritor despertam a atenção do diretor para o perigo de serem descobertos todos os
tipos de horrores e torturas ali praticados e que, hipocritamente, eram escondidos da
sociedade. Nelson Pereira dos Santos, ao (re)criar esta cena, fez uso de um certo grau de
liberdade criativa que norteia qualquer adaptação. Construiu uma cena em que os presos
da Colônia salvam os manuscritos de Graciliano Ramos, passando-os de mão em mão e
escondendo-os dentro de suas roupas a fim de evitarem seu confisco pelo chefe dos
guardas, Aguiar. A cena emociona, toca fundo no espectador, porque indica o desejo, ou
a quase certeza, de que cada um reencontrará o escritor no futuro para devolver-lhe as
folhas estrategicamente escondidas, e, assim, possibilitar o cumprimento da promessa
feita ao Diretor da Colônia (construir um livro, salvando do esquecimento os
testemunhos dos presos e o seu próprio). Esta cena, assim como outras, nos fazem
pensar que o cineasta quis apontar para os espaços de resistência e a capacidade de
união frente ao arbítrio, à violência e à intolerância. No livro, esse momento é idêntico,
excetuando-se a guarda dos manuscritos pelos detentos. Em suas Memórias, Ramos
desiste do que já tinha escrito, pois não escaparia à revista. Além disso, após a saída da
Colônia, ele não é imediatamente libertado como sugere o filme. Vai para outro lugar, a
Casa de Correção, também no Rio de Janeiro.
O autor-personagem desfrutou do espaço possível na narrativa para fazer relatos
pessoais, se arrepender por esquecer de citar nomes, valorizar algo que julgar mais
prosaico ou não. Como Graciliano não narrou em ordem natural rígida os feitos
heróicos dos detentos ou companheiros de cela em suas Memórias, Nelson Pereira dos
Santos se sentiu à vontade para também modificar alguns episódios ou a seqüência em
que eles aconteceram. Veja-se, por exemplo, quando, no porão do Navio Manaus, os
presos começam a entoar um canto após a ingestão de cachaça. Santos recria a cena com
a escolha da música O canto da ema (composição de João do Vale e cujo principal
intérprete foi Jackson do Pandeiro), tornando-a um dos pontos máximos do filme. No
livro, o autor faz menção a uma música qualquer, que tinha uma “lengalenga chatíssima
que findava neste pavoroso estribilho: Chenhenhen, chenhenhen, chenhenhen,
chenhenhen.” (RAMOS, 1985a, p.176). E não é após se alcoolizarem que os presos
resolvem cantarolar, e sim após uma baldeação (espécie de limpeza) no porão do navio.
Isso demonstra, mais uma vez, a liberdade poética na transformação do livro em filme.
Além disso, revela-se, assim, a amplitude humana que o cineasta quis dar às
personagens. No livro de Ramos, o alívio pela limpeza do navio logo é acabado como
novas sujeiras produzidas pelos próprios presos. O asco e a impaciência do personagem
então retornam. Já no filme, o personagem até demonstra gostar da música. Santos,
então, transforma uma situação corriqueira e enfadonha para o autor de Memórias do
cárcere em algo novo e atraente. Essa cena também se torna uma forma do diretor
homenagear a cultura popular brasileira.
Conclusão

Nas trajetórias das Memórias do cárcere, tanto na narrativa de Graciliano Ramos


como na do filme de Nelson Pereira dos Santos, tem-se um panorama da história
nacional, com determinado segmento da sociedade amontoado em prisões espalhadas
pelo país, sob o pressuposto de defender modelos de gerenciamentos políticos
contrários aos defendidos pelo governo de Vargas. Percebe-se, nas obras, a construção
de toda uma cadeia de informações acerca dos acontecimentos daquela época, em
minúcias e pormenores, como a despersonalização e a instabilidade da vida de um preso
político no Regime Vargas. O objetivo do aprisionamento nesse governo não era acusar
indivíduos, mas sim retirá-los da sociedade, despersonalizando-os e sujeitando-os aos
maus tratos físicos e psicológicos em instituições carcerárias. Essas instituições penais
brasileiras tinham a dimensão de órgãos repressores, instalando os interesses do Estado
acima do bem comum, colocando-se acima das leis. Seus membros realizavam ações
violentas e repressoras contra os supostos “inimigos” da nação.
Apesar de todas as torturas físicas e psicológicas pelas quais os presos passavam nas
instituições penais tanto da década de 1930 quanto da pós-64, eles procuraram
desenvolver suas próprias formas de expressar seus descontentamentos com o
autoritarismo reinante no Brasil nesses períodos. Mesmo sendo obrigados a sobreviver
nessas instituições, submetidos a todo tipo de violência, degradação e rebaixamento,
que os transformavam em “bichos”, “simples rebanho”, vivendo em um “curral de
arame farpado”, os presos ainda encontravam espaço para serem solidários e
preocuparem-se com os destinos uns dos outros.
Estes e outros aspectos reverberam nas duas Memórias. Comparar a adaptação da
literatura para o cinema feita por Nelson Pereira dos Santos pode representar um beco
sem saída, conforme atesta João Batista B. de Brito. A maneira que os cineastas
encontram para se manterem fiéis à essência de um romance implica numa transcrição
direta de sua linguagem para a linguagem cinematográfica. Isso é praticamente
impossível. Mas, conforme ainda coloca a crítica especializada, há muitas semelhanças
entre essas duas artes, o que as mantêm em uma espécie de estado de sincronia, e lhes
confere validade em estudos como este.
No caso em exame, Santos retomou o título do livro e procurou dar ao filme o
mesmo destaque que o autor Graciliano Ramos deu aos fatos narrados e personagens da
obra literária. Enfim, para não entrarmos no beco sem saída alertado pelos críticos,
procuramos analisar as várias representações das categorias sociais, dos
relacionamentos entre personagens, dos projetos de vida e das instituições que estão
inscritos nas duas Memórias do cárcere. As possibilidades interpretativas são inúmeras.
Transitar entre o passado e o presente, construir análises de memórias, metafóricas ou
não, dialogar com as alegorias possíveis à sociedade em que vivemos são algumas
leituras viáveis. E, principalmente, poder contar com o testemunho de Graciliano
Ramos e com a visão singular de Nelson Pereira dos Santos, permite-nos o
entendimento da pluralidade de representações existentes na sociedade brasileira.

Referências

BRITO, João Batista B. de. Imagens amadas. São Paulo: Ateliê Editorial, 1995.
_______ . Literatura, cinema, adaptação. In Graphos. Revista de Pós-graduação em
Letras da UFPB, Vol. I, N. 2, jun. 1996.
CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da Era Vargas. Brasília:
Editora da UnB, 1993, p. 193.
RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 20. ed. Rio de Janeiro: Record, 1985.
Vol. I.
_______ . Memórias do cárcere. 20. ed. Rio de Janeiro: Record, 1985. Vol. II.
SANTOS, Nelson Pereira dos. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Lucy e Luis
Carlos Barreto Filme, 1984, 187 min.
SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro.
Rio de Janeiro, Record, 1996, p. 357.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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HUMOR E ENIGMA NA PRODUÇÃO LITERÁRIA JUVENIL: O PAPEL DO


LEITOR NA OBRA CHARADAS MACABRAS, DE ANGELA LAGO

Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira 1 (UNESP/IMESA)

Este texto tem por objetivo apresentar uma possibilidade de leitura da obra juvenil
Charadas Macabras, de Angela Lago, na qual se considera o papel do leitor e da
linguagem híbrida, composta pela junção dos discursos: literário e da tradição popular.
Para a consecução do objetivo, pretende-se apresentar uma reflexão fundamentada pela
estética da recepção acerca do que propicia o prazer na leitura e quais elementos
determinam o papel do leitor implícito.
Em relação à linguagem, parte-se do pressuposto de que a literatura, na atualidade,
conforme Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schollhammer (2002, p.16), “[...] não
preserva a ilusão clássica da pureza dos gêneros, nem a romântica da autonomia
criadora do espírito, mas encontra-se sempre hidridamente articulada em contato com
gêneros não-literários e com meios de comunicação e expressão não-discursivos.”
Assim, para os autores, o hibridismo é o fundamento e a regra para o escritor
contemporâneo, e não a exceção. O desafio para os estudos da literatura consiste em
sinalizar as confluências que a obra literária estabelece com outras formas de
manifestação cultural ou outros meios. Um exemplo dessas confluências pode ser
observado em Charadas Macabras, por se tratar de uma obra literária cujo texto se
constitui pelos discursos verbal e não-verbal, literário e oral.
Constrói-se, neste texto, a hipótese de que a estratégia da escritora em resgatar a
cultura popular, pela apresentação de enigmas, tanto permite ao leitor contato com um
texto atraente e lúdico, quanto lhe faculta a ampliação de conhecimentos, por meio do
resgate da memória cultural. Na obra, a apropriação da cultura popular, proveniente da

1
Professora Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela UNESP, campus de Assis – SP. Ministra
aulas de Língua Portuguesa nos cursos de Publicidade e Propaganda, Jornalismo e Direito do Instituto
Municipal de Ensino Superior de Assis – IMESA/FEMA.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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oralidade, no caso das “Charadas Tiburcianas” ou “Charadas Novíssimas”, atua como


fator de valoração da identidade do jovem leitor, pois por meio dela, ele é capaz de
elevar sua autoestima, pois se reconhece como herdeiro de um patrimônio cultural
tradicional. Este tipo de charada, conforme afirma a autora no texto de apresentação da
obra, “[...] foi inventada pelo oficial brasileiro Antônio Tibúrcio de Souza, em Tuiuti,
durante a Guerra do Paraguai” (p.4). Como modelo, apresenta-se um exemplo desse tipo
de charada para o leitor familiarizar-se com a proposta de enigma que permeará todo o
enredo do livro: “Avistei uma rã de sentinela. Uma e duas. Os números correspondem ao
número de sílabas. Avistei, com uma sílaba: vi. Rã, com duas sílabas: jia. Jia soa como
gia. A resposta, portanto, é vigia, ou seja, sentinela” (p.4). Nota-se, então, que as
palavras que fornecem as pistas para a resolução do enigma são destacadas graficamente
das demais.
A obra Charadas Macabras, de Angela Lago, configura-se sob a forma de uma
narrativa-adivinha, composta por charadas curtas e enigmáticas que oferecem, em sua
própria organização textual, pistas para a sua resolução. Apresentadas de forma
ambígua, as charadas ora criam uma atmosfera de terror, ora de humor. Para André
Jolles (1976, p.124), a “[...] forma da Adivinha abre tudo ao fechar-se; é cifrada de tal
modo que esconde o que comporta, retém o que contém.” Justamente, é essa
ambiguidade, essa tendência para a incompreensibilidade que a define.
As ilustrações na obra mantêm também a duplicidade da adivinha porque remetem o
leitor, tanto para uma atmosfera sinistra, composta por um tridente, uma tesoura, uma
adaga, caveiras, nuvens, relâmpagos, um rosto que espia atrás de uma persiana o leitor
etc., quanto a elementos humorísticos representados por outro rosto de perfil que ora
olha sorrindo através de uma fechadura, ora assombra-se, ora oferece uma colher de
“canja” para o leitor, denotando que o ajuda a decifrar as charadas. Elas se revelam
inovadoras, pois não estão presas às páginas em que aparecem. Desse modo, pode-se
observar uma tesoura, uma adaga e uma agulha que transpassam para a outra página,
rompendo os limites da página a qual pertencem. As ilustrações no corpo do texto
reforçam a atmosfera de mistério, pois dispostas na mesma gama cromática em tons de
azul asseguram um aspecto de frieza. Como também são traçadas de forma
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intencionalmente indefinida, porque como marca d’ água, compostas por transparências,


conferem um caráter nebuloso à narrativa. Assim, essas ilustrações mantêm a mesma
ambiguidade da charada tiburciana, remetendo ao seu poder de, ao mesmo tempo,
ocultar a resolução e apresentá-la na própria formulação do enigma
As imagens que compõem a capa e a quarta capa representam uma alegoria da obra.
Pode-se notar que ambas apresentam a representação de uma persiana entreaberta. Pela
cor preta de fundo, com a persiana em relevo em tons de cinza e chumbo, e o título em
azul, essas capas asseguram o tom de mistério e segredo. Na capa, a persiana encobre
parcialmente o título do livro e parte do nome da autora, denotando que a história
disposta no interior da obra, embora se apresente, mostre-se para o leitor, omite suas
reais intenções que são as de cativá-lo para um jogo de inúmeros desvendamentos, que
ultrapassa o plano do enigma e adentra o da reflexão metaficcional, e assim prendê-lo
até o final da obra. Na quarta capa não há nada atrás da persiana, insinuando que o
mistério já foi solucionado.
A folha de abertura da obra, situada na página cinco, apresenta novamente a persiana
sob a qual se esconde um rosto que olha diretamente para o leitor por entre as lâminas
que afastou com os dedos. Assim, a escritora, logo no início da narrativa, provoca o
leitor, mostrando-lhe que oculta alguém que o espia dentro do próprio relato, ao
contrário dos demais livros que se apresentam à observação de quem os procura. Esse
rosto na folha de abertura representa a maior charada da obra, pois, por meio dele,
sugere ao leitor uma reflexão sobre a criação ficcional narrativa e sobre a sua leitura.
As charadas se iniciam, sendo apresentadas por uma narradora que dialoga com o
leitor e o convida à participação de uma performance que se desenrola dentro de um
necrotério: “No momento em que o vigia apaga a luz da sala principal do necrotério, ele
e você, caro leitor, escutam um sussurro: – Eu quero a metade do pé. Duas [meia]”
(p.7). Esse convite desdobra-se também em provocações que o estimulam a prosseguir
no desvendar dos enigmas para que, assim, se aproprie das palavras de passagem, ou
seja, da resolução para a próxima cena.
A mesma voz que pede, por meio de um enigma, a meia do vigia, também, alerta o
leitor para o fato de que dentro do sapato dessa personagem há o demônio. O vigia foge
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e, de repente, a narradora avisa que o leitor está sozinho – “[...] no enorme corredor da
folha em branco” (p.11) – e segura nas mãos os sapatos e a meia do vigia. Segundo a
narradora, o demônio aponta outra porta para o leitor, “[...] ou melhor, página, e você
sabe que tem que entrar por ela” (p.13). Assim, a narradora motiva o leitor a prosseguir,
contudo, antes lhe apresenta mais um enigma: “– Corta aquilo dele, passarinho. Duas e
uma” [pica-pau] (p.13). Nota-se a reflexão metaficcional da narradora que conduz o
leitor pelas páginas, como se estas fossem portas de um intrincado labirinto do qual ele
somente pode sair se encontrar as resoluções para as charadas.
A narradora busca não só antever as reações do leitor, como induzi-lo a certos
comportamentos: “Agora você hesita. Tenta compreender. Mas está com medo. Sim,
medo! Muito medo!” (p.13). No ápice da tensão, ocorre o processo de contensão pela
resposta à charada: pica-pau que remete, de forma humorística, àquilo que deve ser
cortado. Quando se imagina que a tensão foi eliminada, a narradora alerta o leitor para o
fato de haver barulhos de correntes e de uma voz horripilante na escuridão do corredor
em que ele se encontra. Novamente, motivado por ela a fugir desse espaço, o leitor se
depara com charadas que sinalizam para a presença de caveiras, almas penadas,
assombrações e cadáveres em putrefação.
A intromissão da narradora manifesta-se por meio de um processo antitético. Neste,
nota-se a motivação ao leitor para as resoluções de enigmas e a simulação de uma
urgência em prosseguir adiante, pela presença do macabro, seguida pela contensão.
Justamente, esta ocorre quando a narradora, ridicularizando nomes que, para ela,
remetem à decomposição – como Caio que conota “cair aos pedaços” e Rui que “remete
a ruir” –, alerta o leitor para o fato de que, nesse instante, está no “[...] coração do
cemitério” (p.23). Mas há um esqueleto, de uma mulher cruel, que se aproxima e o
leitor precisa fugir: “– Ordinária e perversa. Sou mulher! Uma e uma” (p.24). Essa
mulher, Vilma, foi assassinada cruelmente pelo marido. Novamente, há o alívio da
tensão pela descrição da narradora do comportamento ridículo desse marido que
enlouquecera depois do homicídio. Por esse motivo, ele imagina que a falecida esposa
está viva, então, dirige-se até a Câmara e grita: “– Entregue a prostituta por piedade, ó
parlamentar! Uma, duas e uma” [deputado] (p.29).
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Nessa cena, a narradora indaga o leitor acerca do porquê de lhe contar tudo isso,
afirmando que é isso que um escritor faz. A essa reflexão, alinha outro enigma sobre o
tecer de uma trama que, semelhante a um tecido cheio de furos (filó), requer um ato
solitário (só) de costura (fia), resultando no vocábulo filosofia. A narradora indica para
o leitor, então, um epitáfio disposto em um dos túmulos, apresentando-lhe o enigma que
o compõe: “Dorme eternamente o filho de Minas coberto de flores. Uma e três” (p.31).
Ela afirma que a “[...] tumba está debaixo de um jaz-mineiro, um jasmineiro! Pura
poesia” (p.31). Assim, por meio do humor e da poeticidade, Angela Lago projeta no
discurso da narradora sua apreciação pela terra natal: Minas Gerais. Isso não impede,
entretanto, que o leitor, mesmo desconhecendo as origens da escritora, aprecie o jogo
das palavras.
O leitor é motivado pela narradora, ainda, no cemitério a desvendar outros enigmas
que conduzem para o campo do humor, chegando às últimas páginas do livro. Nesse
momento, a narradora dá-se conta de que a história está terminando e o leitor, com o
qual ela dialoga, pode até ter achado tudo muito tedioso, mas chegou ao final do relato
que está no seu sofá, no livro, no seu colo, na sua mão. Ocorre, então, a epifania para a
narradora que supunha no controle da situação, manipulando o que ela julgava ser o
leitor, levando-o a correr e a sentir medo: “Virgem! Que horror!! Estou nas suas
mãos!!!! É mesmo o fim” (p.35). Indignada, ao constatar que é ela quem está sendo
manipulada e observada pelo leitor, anuncia-lhe de forma irreverente que termine
sozinho o relato. Para tanto, apresenta-lhe o último enigma, instaurando, assim, a
indagação e o humor, pois este não vem, como os outros, após algumas peripécias,
seguido da resolução: “Enfim... acabe você este artigo com as graças de Nosso Senhor.
Até outra! Uma e uma [adeus]” (p.37). Desse modo, a obra se firma sob a forma de um
jogo aberto em que o leitor real pode, ainda, interagir, mesmo após o término da leitura.
Justifica-se, então, que as persianas estejam representadas semi-abertas na quarta capa,
sem nada por trás, pois a história acabou e a narradora foi embora. Ficou, apenas, o
leitor com o enigma.
A abordagem do tema é dinâmica, pois se configura tanto no texto verbal quanto no
visual como repleta de lacunas, provocadas pelos enigmas, que solicitam a interação
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com o leitor e o prendem até o final da leitura. Essa abordagem é, também, consistente,
pois escapa de simplificações nas representações, demonstrando com humor a
capacidade de sedução da obra que pressupõe um leitor curioso e, justamente por isso,
motivado a desvendar todos os enigmas. A preocupação estética na obra centra-se na
manutenção da coerência entre linguagem verbal e oral, ainda, na dialogia entre texto
verbal e não-verbal. Dessa forma, o livro propicia uma experiência significativa quanto
aos usos literários da língua e da ilustração.
Charadas Macabras dialoga com contextos culturais do jovem leitor, pode-se notar
esse diálogo na afirmação da narradora de que o demônio escapa de dentro do sapato do
vigia: “[...] tal qual o gênio de Aladim [...]” (p.11). Por meio de seu intertexto, a obra
retoma charadas populares, mobilizando e instigando o leitor a estabelecer relações com
outros textos na leitura. Pelo emprego da temática do mistério e pelo jogo imagético
instaurado logo no início da narrativa, no interior de um necrotério, a obra contribui para
o desenvolvimento da percepção de mundo do leitor e para a reflexão sobre narrativas
tradicionais que apresentam narradores, geralmente, como personagens masculinos,
observadores que, de forma distanciada, não interagem com o leitor. Assim, o livro
favorece a ampliação das referências estéticas e culturais do jovem leitor, permitindo-lhe
uma revisão de valores e de conceitos prévios acerca da narrativa ficcional.
A obra de Angela Lago faculta ao leitor o reconhecimento, pela leitura, de uma rede
dialógica que, por meio de sua memória, permite-lhe identificar um lastro de narrativas
que interagem entre si. Justamente por isso, são instauradoras de um tempo que, apesar
de dinâmico, pode ser retomado e recontextualizado tantas vezes quantas forem as
leituras da narrativa. Esse reconhecimento, por sua vez, confere prazer na leitura para o
jovem leitor, pois ele percebe que “[...] os livros se falam entre si” (ECO, 1985, p.66),
estabelecendo um dialogismo.
Entende-se por dialogismo, neste texto, conforme Diana Luz Pessoa de Barros (1999,
p.2), a característica essencial da linguagem e princípio constitutivo, muitas vezes
mascarado, de todo discurso. Na obra de Angela Lago é esse dialogismo que produz
encantamento no leitor. O encantamento provém do equilíbrio que o jovem encontra na
leitura entre elementos conhecidos e desconhecidos. Conduzido pelo narrador, o leitor
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entra em contato com um universo ficcional novo, mas nem tanto, porque moldado à luz
dos contos folclóricos, das adivinhas, dos romances de terror e detetivescos, por isso
mesmo, seguro e acolhedor. Ao mesmo tempo, depara-se com desafios propostos pelas
indicações de leitura. Dessa forma, essa combinação entre elementos conhecidos e
desconhecidos assegura entre os jovens uma atitude leitora dinâmica.
O equilíbrio entre elementos conhecidos e desconhecidos presente na obra deve-se à
harmonia do antigo com o atual. Pode-se observar na obra que a escritora resgata a
cultura popular de inspiração folclórica, mantendo suas raízes coletivas, contudo,
também expressa uma ideia moderna de folclore (SILVA, 2004, p.14). Na obra, o
elemento antigo apresenta uma releitura. Assim, enquanto a escritora mantém um
imaginário popular nas representações verbais e imagéticas da narrativa, apresentando
uma narrativa sintética, próxima à forma primordial e oral da adivinha, bem como a
circularidade no relato, assegurada pelo emprego de enigmas que são retomados a cada
resolução, subverte o emprego do lúdico, pois não o apresenta como na tradição oral
com finalidade moralizante, antes como fator de contensão do drama e elemento que
conduz ao riso, ao humor. Ao se apropriar das charadas tiburcianas, Angela Lago, por
meio do recurso dialógico da apropriação e da inovação, produz um texto individual, rico
e poético, mantendo no texto o perfil de criação autoral. Para Silva, na obra da escritora,
uma vez atualizada, a charada multiplica-se, não o molde, mas a sua substância. Desse
modo, na sua forma simples transparece a forma artística. Na narrativa da autora, a
linguagem fluida, aberta e móvel, própria das charadas, permite uma renovação
constante (2004, p.66).
O prazer obtido na leitura decorre também da estrutura do texto, da presença de
lacunas que solicitam do leitor um papel na composição literária: o de organizador e
revitalizador da narrativa. Esse papel, preenchido por meio da imaginação, implica em
reapropriação de criações do passado segundo a perspectiva do presente. A obra de
Angela Lago propicia uma interação na qual o leitor “recebe” o sentido do texto ao
constituí-lo. Desse modo, a atualização da leitura se faz presente como um processo
comunicativo. Conforme Iser (1999, p.107), esse processo ocorre quando existem
lacunas presentes no texto que indicam os locais de entrada do leitor no universo
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ficcional. A obra de Angela Lago possui, então, uma estrutura de apelo que invoca a
participação de um indivíduo na feitura e acabamento: é seu leitor implícito. A
comunicação ocorre quando esse leitor, na busca do sentido, da concretude, procura
resgatar a coerência do texto que os vazios interromperam.
Esse resgate realizado pelo leitor é decorrente da utilização de sua atividade
imaginativa. Para Regina Zilberman (1984, p.79), obras que consideram o leitor,
concebem que, somente por meio de sua atividade, a criação poética alcança seu fim: a
transmissão de um saber. No caso de Charadas Macabras, este saber é emancipatório,
pois oferece novos padrões ou possibilidades de suplantar a norma vigente. Pela leitura,
o jovem revê seus conceitos acerca do fazer ficcional, de finais fechados, de narradores
observadores masculinos, de personagens que existem para serem vistas e analisadas e
não para espiarem o leitor e o observarem, do emprego de charadas de forma poética que
permitem a constituição de uma narrativa atraente e inteligente.
A leitura da obra de Angela Lago concede ao processo de leitura uma legitimação de
ordem existencial, pois revela ao leitor sua capacidade intelectual, valoriza-o. Essa
valorização ocorre quando o texto o convoca ao desvendamento da charada,
submetendo-o a um rito de passagem, por meio do qual, outros heróis mitológicos já
passaram diante de uma esfinge. O sucesso no deciframento prova que aquele que é
arguido tem a mesma competência de seu arguidor, sendo aceito pelo grupo a que
pertence (JOLLES, 1976, p.116). Como a charada é composta pela linguagem popular,
figurada e, às vezes, ritmada – “Até ovo podre, pra cachorro que não ladra, é doce. Duas
e duas [chocolate]” (p.31) –, conhecê-la é deter um saber acerca de um discurso
plurívoco que tanto desautomatiza o uso da linguagem, quanto faculta a percepção de
suas inúmeras realizações.
Em síntese, Charadas Macabras confere prazer ao leitor implícito porque solicita a
sua produtividade, ou seja, oferece-lhe a possibilidade de exercer a sua capacidade. Pelo
exposto, pode-se, então, perceber que é válida a hipótese de que, pela leitura da obra de
Angela Lago, o leitor entra contato com um texto atraente e lúdico que lhe faculta a
ampliação de conhecimentos diversos, sobretudo, por meio do resgate do seu patrimônio
cultural.
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Referências bibliográficas

BARROS, Diana Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: ______; FIORIN,
José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakthin. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p.1-9.

ECO, Umberto. Pós-escrito a O Nome da Rosa: as origens e o processo de criação do


livro mais vendido em 1984. Trad. Letizia Zini Antunes e Álvaro Lorencini. 2.ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes
Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1999. vol.2.

JOLLES, André. Formas simples. Tradução da própria editora. São Paulo: Cultrix,
1976.

OLINTO, Heidrun Krieger; SCHOLLHAMMER, Karl Erik (orgs.). Literatura & Mídia.
Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002.

SILVA, Celso Sisto. Vestígios da Cultura Popular em Angela Lago: Conto Recontado
É Segredo Revelado. Florianópolis, 2004. 209p. Dissertação (Mestrado em Letras) –
Universidade Federal de Santa Catarina.

ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 2.ed. São


Paulo: Ática, 1984.
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VIDA E MORTE EM “O PIROTÉCNICO ZACARIAS, DE MURILO RUBIÃO

Elias Vidal Filho (G-UNESP)


Marco Antonio Sant’Anna (UNESP)

Introdução

A produção literária de Murilo Rubião ocupa posição importantíssima na literatura


brasileira, pois inaugurou uma nova estética de composição artística: a fantástica.
Apesar dessa reconhecida importância, a obra do escritor não tem recebido a devida
atenção tanto da crítica literária institucional quanto da academia universitária.
Fundamentado pelas avaliações críticas da obra muriliana realizada por Eliane
Zagury, Jorge Schwartz e José Paulo Paes e pelo trabalho de Robert Alter quanto à
abordagem literária do texto bíblico, este trabalho se propõe refletir sobre as
possibilidades de diálogo entre o conto “O pirotécnico Zacarias” (cuja epígrafe é um
excerto do livro de Jó), de Murilo Rubião, e o livro bíblico de Jó.
O objetivo, pois, deste trabalho é analisar a aproximação entre o conto “O
pirotécnico Zacarias” e o Livro de Jó, principalmente no que diz respeito aos
discursos sobre a vida e sobre a morte em ambos os textos. Além disso, pretende-se
descobrir em que medida essa aproximação é intencional e irônica. O método de
interpretação irá privilegiar os aspectos internos de cada texto, para que, em seguida,
sejam realizadas suas devidas correlações.
Nascido em 1 de junho de 1916, em Carmo de Minas, Murilo Eugênio Rubião foi
professor, jornalista, embaixador e escritor brasileiro. Ao longo de sua carreira
publicou trinta e dois contos em sete livros, a saber, O ex-mágico (1947), A estrela
vermelha (1953), Os dragões e outros contos (1965), O pirotécnico Zacarias (1974),
O convidado (1974), A casa do girassol vermelho (1978) e O homem do boné
cinzento (1990). Sua produção literária, apesar de não muito extensa, ocupa posição
importantíssima na literatura fantástica brasileira.

1. Literariedade do Livro de Jó

Em “Verdade e Poesia no Livro de Jó”, capítulo do livro Em espelho crítico, Robert


Alter analisa literariamente a narrativa de Jó. Alter desenvolve seu texto, sobretudo
por meio da confrontação dialética dos discursos de Deus e de Jó. Após a
apresentação da vida justa de Jó e sua posterior miséria desencadeada a partir da
confusão posta pelo diabo “a prosa da história básica é substituída por uma poesia
extraordinária” (ALTER, 1988, p. 23).
Nesta prosa poética, Jó deseja nunca ter nascido e passa a fazer seu discurso a favor
de sua morte. Seus amigos tentam dissuadi-lo de suas opiniões, refletindo e
discutindo sobre sua situação. Já no final da narrativa, numa aparição cósmica, Deus
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faz seu discurso pela vida de Jó e ordena o restabelecimento de sua condição


anterior, na verdade de maior riqueza e abundância ainda.
No discurso de Jó estão presentes signos da morte e da vida, tais como as trevas e a
luz, a noite e o dia, ao que Deus responde, transfigurando essas metáforas, de
negritude do útero/túmulo em luz, a partir do nascimento.
Para além do enredo, Robert Alter também afirma, sobretudo, a poeticidade do Livro
de Jó:

O que se precisa enfatizar, no entanto, muitíssimo mais do que


foi feito até agora, é o papel essencial que a poesia desempenha
na realização imaginativa da revelação. Se a poesia de Jó – pelo
menos quando seu texto muitas vezes problemático e
plenamente inteligível – se destaca de toda poesia bíblica em
virtuosidade e pura força expressiva, o poema culminante em
que Deus fala do meio da tempestade eleva-se além de tudo o
que o precedeu no livro, onde o poeta elaborou um idioma
poético ainda mais rico e mais impressionante do que aquele que
emprestou a Jó. Ao impelir a expressão poética rumo a seus
próprios limites superiores, o discurso de conclusão ajuda-nos a
ver o panorama da criação – como talvez só pudéssemos fazê-lo
através da poesia – com os olhos de Deus (ALTER, 1988, p.
25).

Então, o Livro de Jó ocupa posição importante em toda a bíblica quanto à qualidade


estética, e ainda, o discurso divino que constitui os últimos capítulos do mesmo livro
sobressai poeticamente em relação a todo o restante do Livro de Jó. A poesia do
Livro de Jó não é vazia ou desconectada do enredo, mas expressa, através da
grandiosidade formal do discurso de Deus, o conteúdo do discurso, conteúdo divino
(conforme contado).
Em seu ensaio introdutório intitulado “Da memória e da desmemória: excurso sobre
o poeta José Elói Ottoni, tradutor do Livro de Jó” à tradução de José Elói Ottoni do
Livro de Jó, Haroldo de Campos cita o prefácio extraído da versão bíblica do Livro
de Jó do Abade de Genoude: “Nele o Livro de Jó é visto com um ‘divino poema’.
Seu autor discute se se trata ou não de um verdadeiro ‘drama’, fazendo um paralelo
entre as tragédias de Ésquilo e o poema bíblico” (CAMPOS, 1993, p. XVI). Apesar
de mais adiante o Abade opor moralmente os textos numa axiologia estética do
“bem” e do “mal”, Haroldo declara que se trata de grandezas singulares não
comparáveis nestes termos, “mas há um traço positivo em sua reflexão [do Abade]:
aquele que o leva a realçar os valores estéticos do texto bíblico” (CAMPOS, 1993, p.
XVII).
As citações da obra de Robert Alter e a reflexão de Haroldo de Campos buscam
resguardar ou justificar a literariedade do Livro de Jó.
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2. Intertextualidade subversiva

No conto “O pirotécnico Zacarias”, o protagonista Zacarias é atropelado por um


carro e morre. Porém, começa a ouvir a discussão das pessoas do carro que o
atropelou, sobre o destino a ser dado ao seu cadáver. Como a decisão tomada o
afetaria mais que a qualquer outro, o pirotécnico decide intervir na conversa e expor
sua posição. Assustadíssimos diante da situação insólita, depois de pequenos
conflitos, os presentes entram em consenso com o morto. De volta a sua vida quase
normal, o pirotécnico não consegue falar com ninguém sobre o acontecimento
daquela noite do acidente, e então não tem explicada a situação insólita de sua morte,
porque os vivos sentem medo de sua presença fantasmagórica, pois uns acreditam ser
ele um fantasma, enquanto outros, uma pessoa muito parecida com o falecido, ou
ainda, ser o morto muito parecido com o Zacarias, e este, continuando vivo.
Ao longo do conto são intercalados discursos a favor da morte e a favor da vida de
Zacarias, nos mesmos moldes do discurso de Jó pedindo sua morte diante das
atrocidades de sua vida, e do discurso divino, afirmando sua vida, uma ainda de
maior fartura depois da calamidade.
Diante desses fatos, pode-se levantar a seguinte questão: em que medida a
aproximação entre os textos é intencional e irônica? Essa dúvida se justifica, já que a
vida afirmada por Deus equivale à vida do pirotécnico após sua morte: uma vida
melhor que a anterior, destoada da vida comum da sociedade morta. Zacarias declara
que vive “com mais agrado do que anteriormente” (RUBIÃO, 1976, p. 14).
“(Ao meu lado dançavam fogos de artifício, logo devorados pelo arco-íris)”
(RUBIÃO, 1976, p. 14), assim afirma o pirotécnico. Essa citação pode indicar uma
ironia na aproximação dos textos, porque, ao lembrarmos que, por ocasião do
dilúvio, o arco-íris simboliza, no texto bíblico, um pacto entre Deus e a humanidade
de que o mundo jamais acabaria novamente em água, mas sim queimado pelo fogo.
Para Zacarias, o fogo dança e não destrói. O fogo é devorado pela água e então não
haverá fim. A água, pois, é necessária para o aparecimento de um arco-íris,
fenômeno óptico e metereológico. É preciso existir gotas de água no ar para que a luz
do sol incida sobre elas. Da mesma maneira ocorre com as relações humanas. Com
Zacarias morto o seu fim está sacramentado, o que lhe inaugura uma vida melhor.
Assim, a água, como símbolo do nascimento, remetendo ao líquido amniótico do
útero não trás morte, mas, ao invés disso, vida.
Numa reflexão paralela e desafiadora, e numa segunda questão a ser levantada, qual
seria o limite entre a morte e a vida? “Quando tudo começava a ficar branco, veio um
automóvel e me matou” (RUBIÃO, 1976, p. 14): o branco é a última luz do morto ou
a primeira de quem nasce? O morto transcende a realidade medíocre dos vivos. É
mais vivo. Zacarias vive melhor depois de seu declínio mesmo sem novos amigos
que lhe restabeleceriam, como os de Jó.

3. Epígrafe do conto
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O conto “O pirotécnico Zacarias” é introduzido pelo versículo dezessete do capítulo


onze do Livro de Jó: “E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia;
e quando te julgares consumido, nascerás como a estrela d’alva”. Essa epígrafe
extratifica o argumento de todo o conto, sua idéia essencial, a saber, a precariedade
da existência humana, sobretudo a em sociedade, leva o homem a sucessivas
metafóricas mortes cotidianas.
A epígrafe evidencia a intertextualidade entre o conto e o Livro de Jó, e, pelo
conteúdo ideário do primeiro estabelece a subversão operada no texto bíblico por
meio dessa aproximação dos dois textos: enquanto o renascimento de Jó como estrela
d’alva pela luz do meio-dia, após a tarde constitui a segunda – ideal – glória de sua
vida; o renascimento de Zacarias é sua morte, pois essa determina seu isolamento
social. Em Jó, seus amigos é que lhe trouxeram novamente seus bens perdidos, para
Zacarias a ausência do contato humano, impossível chamar amigos, é em si mesmo o
bem perdido no momento exato do nascimento primeiro.
Jorge Schwartz, na obra Murilo Rubião: a poética do uroboro faz a primeira
tentativa de análise da obra do autor em sua totalidade, descobrindo em seus contos
uma narrativa estabelecida em suas epígrafes bíblicas. Segundo Schwartz, o herói
muriliano “refaz o percurso do uroboro, serpente mítica que morde sua própria
cauda: um trajeto circular e kafkiano, onde são reconstituídas as questões vitais da
existência” (SCHWARTZ, 1981, contra-capa).
A partir da citação de Schwartz, a morte de Zacarias corresponde à serpente
mordendo a própria cauda num processo de reconstrução da existência, pois, depois
de morto, o pirotécnico retorna a seu estado de pureza original, equivalente ao não
contato com outro humano. A vida misantropa é resultado do processo evolutivo do
humano, morto ele mesmo pelo contato com o homem.
Ainda quanto à utilização de versículos bíblicos como epígrafes por Murilo Rubião,
Eliane Zagury em “Murilo Rubião, o contista do absurdo” aponta a unidade da
produção literária de Murilo, cujo “ponto central da temática é a religiosidade do
autor que desencadeia apocalipticamente uma cosmovisão absurda” (ZAGURY,
1971, p. 28). A autora também identifica nessa produção três principais dicotomias:
“vida-morte, indivíduo-sociedade e amor-incomunicabilidade” (ZAGURY, 1971, p.
29). Nessa organização, “O pirotécnico Zacarias” é posto como exemplo da primeira
dicotomia, a partir do que conclui: “temos, portanto, em Murilo Rubião, o
representante originalíssimo de uma linha de ficção muito pouco explorada na
literatura brasileira tão afeita às analogias mais primitivas da realidade que a sustém”
(ZAGURY, 1971, p. 35). Esse arranjo temático de Zagury reitera a propriedade do
presente trabalho.

4. Milagre e Fantástico

A analogia entre o Livro de Jó e “O pirotécnico Zacarias” se estende até a reflexão


sobre milagre, no caso da segunda glória de Jó, e sobre o fantástico, a vida após a
morte de Zacarias. Jó, da completa miséria, não apenas torna a seu estado primeiro
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como reaparece mais rico que antes. A redenção do homem experimentado pelo
sofrimento e temente a Deus configura milagre divino de misericórdia e inexplicável.
Pois como entender a cura da chaga de Jó, ou a visita de homens do mundo todo a
trazer presentes para a recomposição de sua fortuna, senão como milagre?
O acontecimento da vida misantropa de Zacarias após sua morte é impossível de ser
explicado realisticamente, assim como o milagre divino. Porém, apesar de ambos
serem inexplicáveis racionalmente, cada um representa idéias humanas
extremamente opostas quanto à existência, independência e compromisso do
humano.
A indagação quanto à aproximação entre o milagre e o fantástico está fundamentada
na seguinte reflexão de José Paulo Paes:

[...] já que tudo quanto possa manifestar-se em desobediência às


leis da realidade pertence, por definição, ao domínio da
sobrenaturalidade. Todavia, para o homo religiosus, entre o
natural e o sobrenatural não há oposição categórica, mas um
nexo de continuidade. Isso porque o mundo da realidade
palpável pode ser o lugar de manifestações do sagrado [...] e
sempre que ocorra algo inexplicável pela lógica do palpável
tem-se o milagre ou o sobrenatural (PAES, 1990, p. 120-121).

O fantástico e o milagre trabalham com o sobrenatural. No entanto, para o homem


moderno, o milagre não é valor absoluto na medida em que cria realidades
inexplicáveis, e então, coloca em xeque a construção racional do indivíduo,
conforme Mircea Eliade:

[O homem moderno a-religioso] não aceita nenhum modelo de


humanidade fora da condição humana, tal qual ela se deixa
decifrar nas diversas situações históricas. O homem faz-se a si
próprio, e não consegue fazer-se completamente senão na
medida em que estiver radicalmente des-mistificado. Só será
verdadeiramente livre no momento em que tiver matado o
último Deus (ELIADE, s.d., p. 157).

E desmistificado, depois de já ter matado o último Deus, o homem encontra no


fantástico o sobrenatural que o desestabiliza em sua frágil apreensão das coisas.
Apesar de não acreditar num paraíso prometido como vida persistente depois da
morte, o homem moderno percebe suas sucessivas mortes – trágico! – cotidianas e se
vê renascendo. Precisando renascer.
E porque inquirir se renasce mutilado? Se o que mutila é o humano, basta anular
quanto possível o humano do homem: a vida misantropa. O passado é atualizado
urgente e incansavelmente no presente; atém-se às possibilidades que cabem no
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limite da própria existência de nova configuração humana. O silêncio que faz fugir,
não o que contempla quieto, e quando não, as sombras camuflam essa nova
configuração da existência humana: “Caminhava pela estrada. Estrada do Acaba
Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que silencio” (RUBIÃO, 1976, p.
15).

5. Existencialismo no pirotécnico

Ao constatar que a vida do pirotécnico permanece, e melhor, após sua morte temos
que a existência do homem está sobreposta a sua essência, porque a mudança do
posicionamento de Zacarias quanto à humanidade, de instalado a misantropo, não
significa não continuar existindo. Sendo assim, a maneira como vive a existência
correspondente a essência do homem, porque constitui concepção, ideologia. Esse
argumento é existencialista, e expresso por Sartre: “A existência precede e governa a
essência”. Outra afirmação de Sartre, “O inferno são os outros”, também extratifica a
ideia de vida misantropa de Zacarias como uma melhor existência.
Paralelamente à reflexão sartriana sobre existência e essência, em O mundo como
vontade e representação, Schopenhauer postula que o mundo é uma representação, o
homem e o objeto, e então a essência do mundo não está nele, pois é representação,
mas sim no que condiciona seu aspecto exterior, a vontade (equivalente à escolha do
posicionamento quanto à humanidade, se adaptado ou misantropo).
O mundo é a materialização dessa vontade. Certamente toda a vontade não chega a
ser realidade representada, a dor causada por essa irrealização ou pela distância entre
homem e objeto devido à ideia platônica dele, quando a realidade chega a ser
representada, mas não suficientemente, essa dor é imensa. Como insatisfeito, o
homem cava sempre mais funda sua ideia platônica, e o sofrimento cresce. Essa
vontade pode ser, por exemplo, um sentimento de encaixe e acolhimento dentre os
outros que o pirotécnico não provava: o próprio descaso sentido é uma morte
(assassinato).
Para Schopenhauer, somente a contemplação da realidade a sua volta e a
contemplação estética podem interromper a dor. No momento de contemplação o
objeto preenche completamente a consciência do indivíduo que, agora sem
possibilidade de fantasiar a ideia platônica, vê o conhecimento objetivo do objeto.
Sem atentar em como, de algum modo, a contemplação do redor (re-dor) é sentir-se
bem comparativamente a quem está pior (outra ilusão) ou em como a contemplação
estética é fuga alienante academicamente aceita; a síntese em sistema
schopenhaueriana do que seja o mundo coincide exatamente com a vida distanciada -
pois a contemplação só é possível com distanciamento - de um misantropo.

Conclusão
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Conclui-se, então, que a utilização do versículo do Livro de Jó como epígrafe do


conto “O pirotécnico Zacarias”, de Murilo Rubião, consagra o estudo comparado
entre os textos. Consagra, uma vez que essa comparação já estava fundamentada
desde a constatação do diálogo que ambos textos estabelecem com o pensamento
existencialista, aqui brevemente exemplificado em Sartre e Schopenhauer. Dessa
apropriação ou compartilhamento do pensamento existencialista é que originam as
reflexões sobre vida e morte, mais especificamente sobre as metafóricas mortes
cotidianas e a redenção da vida a partir de uma existência misantropa, no caso de
Zacarias. Por isso mesmo, está evidente que a utilização dos versículos como
epígrafe foi irônica e subversiva.

REFERÊNCIAS

ALTER, Robert. Verdade e poesia no Livro de Jó. In: Em espelho crítico. Trad.
GARCIA, Adriana e GOLSZTAJN, Margarida. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 23-48.
CAMPOS, Haroldo de. Da memória e da desmemória: excurso sobre o poeta José Elói
Ottoni, tradutor do Livro de Jó. In: OTTONI, José Elói. O Livro de Jó. São Paulo:
Loyola, Giordano, 1993, p. XI-XXVI.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões, Trad.
FERNANDES, R. Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 157.
PAES, J.P. Um seqüestro do divino. In: A aventura literária – ensaios sobre ficção e
ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 120-121.
RUBIÃO, Murilo. O pirotécnico Zacarias. São Paulo: Ática, 1976.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. Trad.
CORREIA, M. F. Sá. Porto: Rés-Editora, s.d.
SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. São Paulo: Ática, 1981.
ZAGURY, Eliane. Murilo Rubião, o contista do absurdo. In: A palavra e os ecos.
Petrópolis: Vozes, 1971, p. 28-36.
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OUTREMIZAÇÃO: AS BASES DO APARTHEID EM “THE NARRATIVE OF


JACOBUS COETZEE” (1974), DE J. M. COETZEE

Elis Regina Fernandes Alves (UFAM)

Introdução

O pós-colonialismo é, atualmente, um termo utilizado para descrever toda a cultura


produzida desde o início da colonização até os dias de hoje (ASHCROFT et al., 1998).
A teoria pós-colonial, aplicada na literatura, portanto, analisa a literatura produzida
pelos povos colonizados desde antes do período de independência, e as influências que
o processo colonial trouxe para tais regiões e povos colonizados.
O objetivo geral desse trabalho é analisar, à luz da teoria pós-colonial, a
outremização dos sujeitos coloniais da África do Sul de 1760, verificando como as
formas de outremização aplicadas pelo sujeito colonizador constituem-se como bases
para a outremização ocorrida durante a política do apartheid neste país. Para isso,
importa verificar como se deu o início do apartheid e como, ficcionalmente, ocorre a
outremização dos sujeitos coloniais, sua dominação e a motivação do colonizador em
outremizar.
Neste sentido, este trabalho busca exemplificar como, ficcionalmente, a obra The
narrative of Jacobus Coetzee é exemplificadora das formas mais diversas de
outremização encontradas pelo colonizador para subjugar os colonizados locais e como
tais estratégias de outremização constituem-se como estratégias muito similares àquelas
ocorridas durante o período do apartheid na África do Sul, momento de segregação,
separação, divisão entre as sociedades negra e branca no país.

1. A África do Sul e o apartheid


A África do Sul é um dos mais desenvolvidos países de todo o continente africano,
composta por maioria negra e diversas outras raças, bem como por diversos idiomas
oficiais, devido a seus muitos grupos étnicos e à sua colonização européia.
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Os primeiros europeus a chegarem à África do Sul foram os portugueses, em 1487,


quando da ida para as Índias ocidentais, Bartolomeu Dias contornava o Cabo da Boa
Esperança. Após isso vieram os holandeses, no século XVII, que, para garantir os
suprimentos dos navios com frutas, vegetais, água doce, trouxeram colonos de seu país,
para cuidar de fazendas (Oliver e Fage, 1975, p. 163). Assim iniciou-se a colonização da
África do Sul, que atraiu, além de holandeses calvinistas, alemães calvinistas e, em
1688, franceses calvinistas que fugiam da perseguição religiosa de Luís XIV (THE
DUTCH..., on-line, 2006). Portanto, os holandeses, chamados bôeres ou africânderes,
estabeleceram-se e expandiram-se pelo interior da África do Sul, desenvolvendo uma
língua própria, o africâner (ALMANAQUE ABRIL, 2000).
Em 1836, os holandeses iniciaram a “Grande Jornada” (Great Treck). Adentraram no
interior e, após vencer lutas contra povos bantos, fundaram duas repúblicas, Transvaal e
Estado Livre de Orange, que foram reconhecidas como independentes pelo governo
britânico entre 1852 e 1854 (LANE, 1978).
Dentro da história da África do Sul, importa destacar a questão da política
segregacionista do apartheid, que, apesar de não ser enfocada em The Narrative of
Jacobus Coetzee, é o contexto de escrita dessa e de muitas outras obras de Coetzee. O
apartheid foi a exacerbação dos pressupostos filosóficos que permearam a colonização
holandesa na África do Sul, que, em sua essência, já imputava a outremização e a
segregação aos negros, como o apartheid o faria trezentos anos depois, sob a aprovação
das leis vigentes no país. A segregação racial existiu desde o início da colonização da
África do Sul, com o intuito mascarado de preservar a cultura e a ordem social,
objetivando, em realidade, o uso da mão-de-obra local, lançando as bases do apartheid.
Desde a consolidação dos britânicos no país, o número de brancos na África do Sul
cresceu muito, principalmente após a descoberta de ouro e diamantes nas terras. “A
partir de 1911, a minoria branca, composta de africânderes e descendentes de britânicos,
promulga leis que consolidam seu poder sobre a minoria branca” (ALMANAQUE
ABRIL, 2000, p. 104). Desde o início do século 20, várias leis foram criadas para ir
diminuindo, gradativamente, o poder dos negros.
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Entre 1910 e 1948 o governo sul-africano negou aos negros e


”pardos” direito ao voto e à propriedade de terras. Legislações como a
lei de Áreas Urbanas Nativas, de 1923, removeram negros
“excedentes” das cidades, criando áreas exclusivas para brancos
(COLEÇÃO ENCICLOPÉDIA ILUSTRADA DE HISTÓRIA, 2009,
p. 496).

Tal situação exacerbou a segregação racial de tal forma que, em 1948, foi
oficializada a política do apartheid, que criava leis que invalidavam os direitos dos
negros. O apartheid foi, na verdade, uma extensão das leis segregacionistas impostas
por governos anteriores.
Na década de 50 já se iniciavam lutas contra o apartheid. O CNA (Congresso
Nacional Africano), liderado por Nelson Mandela foi o maior grupo oposicionista. Mas,
com a prisão de Mandela em 1962, o grupo perde força e só se recuperaria em 1990,
com a saída de seu líder da prisão. Um plebiscito em 1992 acaba com o apartheid e, em
1994, Mandela é eleito presidente da África do Sul. Até hoje o país luta com as
diferenças sociais impostas pela segregação racial.
É dentro desse contexto turbulento que se insere a literatura de J.M.Coetzee (1940-).

2. The Narrative of Jacobus Coetzee (1974)

J.M.Coetzee (1940-) é escritor de mais de uma dezena de romances que versam sobre
os problemas de uma África do Sul afetada pela colonização e ganhador do Nobel de
literatura em 2003. The Narrative of Jacobus Coetzee é a segunda novela de Dusklands
(1974), a primeira obra de ficção de J.M.Coetzee (BIOGRAPHY, on-line, 2005). A
novela trata da exploração e conquista da África do Sul por holandeses, no século
XVIII. The Narrative of Jacobus Coetzee é narrada em primeira pessoa, por Jacobus
Coetzee, fazendeiro, caçador e explorador holandês, morador da África do Sul, que,
autorizado pelo governador, realiza uma expedição a territórios ainda desconhecidos
pelo homem branco para, supostamente, caçar elefantes.
A novela divide-se em três partes:
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1) O Relato (narrativa principal) inclui: Translator’s Preface; uma “Introdução”


(apesar de esse título não constar na novela, assim o chamaremos para melhor
entendimento); The Journey beyond the Great River (Viagem além do Grande Rio);
Sojourn in the Land of the Great Namaqua (Estada na terra dos Grandes Namaqua);
Second Journey to the Land of the Great Namaqua (Segunda viagem à terra dos grandes
Namaqua);
2) Afterword; um relato impessoal da importância de Jacobus Coetzee para a
colonização da África do Sul, em especial sobre sua expedição à Terra dos Grandes
Namaqua, feito por S.J.Coetzee em forma de palestras que anualmente ele dava na
Universidade de Stellenbosh entre 1934 e 1948 e que J.M.Coetzee, o tradutor, colocou
em forma de Afterword;
3) Appendix: Deposition of Jacobus Coetzee: é o depoimento oficial escrito pelo
escrivão e secretário O.M.Bergh, ditado por Jacobus Coetzee em 18 de Novembro de
1760, tendo como testemunhas L.Lund e P.L. Le Seuer e não assinado por Jacobus, que
apenas marcou um “X” em lugar de seu nome, o que indica, para efeitos da lei, que ele
era analfabeto.

3. A outremização

A dialética Outro/outro é a base do discurso colonial, que se formou quando da


chegada dos colonizadores às regiões ainda desconhecidas e posteriormente
colonizadas. Antes da chegada dos representantes do poder imperial, os sujeitos
coloniais não se constituíam outros, pois não havia a comparação, e a diferenciação
entre raças, culturas etc. Com a chegada dos colonizadores é que a dicotomia
Outro/outro se instalou devido à instauração de um centro (o império) e as margens (as
colônias), provocando a diferenciação entre colonizador e colonizado, branco e não
branco, europeu e não europeu. O sujeito colonial que antes era livre e senhor de sua
terra passa a receber ordens e tem sua vontade cerceada, tornando-se, assim, objeto.
A diferenciação entre Outro e outro existe a partir do momento em que o colonizador
impõe-se como alguém superior ao colonizado. Para Figueiredo (1998, p. 64) “o negro,
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como o colonizado, é criação da Europa. Antes de ter contato com o branco, o


colonizado/negro não se sente inferior a nenhuma outra raça. Toda a crise identitária
surge da negação dos valores humanos e culturais imposta pela colonização.” Essa idéia
é corroborada por Ashcroft et al., (1998), os quais afirmam que a construção do Outro
ocorre ao mesmo tempo em que o outro é construído. Ao perceber essa intrínseca
relação entre a colonização e a construção da dicotomia Outro/outro, nota-se que o
retrato do sujeito colonizado como outro é levado ao mundo e assimilado por ele,
devido ao fato de a Europa (centro colonizador) disseminar tal diferenciação com
intuitos econômicos e capitalistas.
Os estereótipos que dominam o pensamento europeu criam a dialética entre Outro e
outro. Mas, além dessa concepção inerente ao homem branco europeu, esse ainda
utiliza-se de meios para relegar os sujeitos coloniais à alteridade, imputando-lhes
características que os definam como outros. É a chamada outremização, termo cunhado
por Spivak para definir o processo pelo qual o discurso imperial fabrica o outro
(ASHCROFT ET. AL., 1998).
São várias as maneiras de outremizar e vários os motivos para outremizar. Um dos
mais fortes meios para se outremizar é a criação de estereótipos sobre os sujeitos
coloniais, os quais, como vimos, relegam o sujeito colonial a uma condição inferior à do
sujeito colonizador. Dentre tantas estratégias de outremização, veremos, como
funcionou a criação de estereótipos, dentre eles, o de pagão, canibal, o de racialmente
inferior, de degenerado sexual e, ainda, a imposição da língua européia, a imposição da
força física e o uso de um discurso depreciativo.
As estratégias de outremização vinculam-se diretamente à formação do sujeito. A
criação de estereótipos utiliza o discurso e a linguagem para transformar o sujeito
colonial em outro. Os estereótipos em si carregam a ideologia da classe colonizadora,
cheia de preconceitos e desejo de enriquecer. Importa perceber as razões que levam
colonizador a outremizar.

4. A outremização em The Narrative of Jacobus Coetzee: as bases do apartheid


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A novela The narrative of Jacobus Coetzee mostra um momento da colonização


holandesa à África do Sul, enfatizando como o personagem protagonista, Jacobus,
conseguiu adentrar mata adentro com a ajuda de sujeitos colonizados locais. Para tanto,
ele usa de estratégias de outremização, subjugando seus homens e conseguindo a mão
de obra escrava. Em muitos momentos Jacobus Coetzee recorre ao aviltamento da
inteligência dos nativos namaqua para transformá-los em outros. Imputa-lhes
estereótipos que os caracterizam como pouco inteligentes, ao mesmo tempo em que
reforça sua própria inteligência:

[...] Eu vi, por volta do terceiro parágrafo, somente enfado e


desatenção. A ironia e o moralismo do oratório forense, dificilmente
traduzidos em Nama, era quase estranho à sensibilidade do hotentote
(COETZEE, 1998, p. 70).

A criação de estereótipos foi um dos meios mais empregados pelos colonizadores


para outremizar os colonizados. Os estereótipos também funcionam como meio de
“justificar” a invasão colonial, na medida em que reforçam a condição selvagem, pagã,
inculta dos nativos, que mereciam a ‘luz’ trazida pelos colonizadores, homens
civilizados, cristãos, cultos. Ao criar estereótipos, o europeu evidencia a ideologia
binária, capitalista, cristã, européia que domina seu discurso, pois os mitos criados sobre
os sujeitos coloniais baseiam-se naquilo que os diferem do europeu. Neste sentido,
podemos notar que esta estratégia de outremização foi mais tarde aplicada às leis
segregacionistas do apartheid, em que 90% da população (negra) foi dominada por uma
minoria de 10% (branca). (WHITAKER, 1999). Isto porque a minoria branca só
considerava correto o seu modo de agir.
Os estereótipos criados para inferiorizar os sujeitos coloniais baseiam-se na ideologia
binária que compõe o pensamento europeu. O binarismo, trazido para o contexto
colonial, cria oposições hierárquicas na relação entre colonizador e colonizado. O
binarismo cria oposições que favorecem a desigualdade entre europeu e não-europeu,
impondo a imagem do império como bom, superior, possuidor do poder e da verdade. O
discurso de Jacobus a respeito dos grandes namaqua é todo permeado por sua ideologia
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binária, por isso ele critica a cultura nativa, ironizando-lhes os costumes, pois, a seu ver,
só a cultura européia teria valor.

[...] Uma dança estranha [...].(COETZEE, 1998, p. 68).


Eu tinha esquecido dos terrores que a vida comunal dos hotentotes
pode gerar para a alma sossegada. (COETZEE, 1998, p. 72).
Os hotentotes não têm nenhum sentimento pela cerimônia e mostram
somente a reverência mais superficial pela autoridade. (COETZEE,
1998, p. 72).

Ao criticar e ridicularizar os costumes do povo namaqua, Jacobus quer enaltecer os


seus. Não considera a cultura namaqua como válida e não lhes respeita os costumes,
pois esses diferem dos seus.

Eu tinha vivido no meio deles e eu não tinha visto nenhum governo,


nenhuma lei, nenhuma religião, nenhuma arte além do cantar de
canções lascivas e do dançar de danças lascivas. (COETZEE, 1998, p.
97).

Ao afirmar que os namaqua não possuem leis, governo, religião ou arte, Jacobus quer
dizer, na verdade, que eles não possuíam leis, religião, governo e artes europeus. A
negação de tudo o que não corresponde à ideologia européia é típica do pensamento
binário. Assim, nota-se a semelhança entre este tipo de outremização e a outremização
imputada pelo regime do apartheid. No apartheid foram criadas leis que relegavam os
sujeitos negros à inferioridade, pois para a maioria branca um sistema criado pelos
negros não poderia ter validade. São leis racistas que criam a separação binária entre
branco e não-branco. Os brancos podiam circular livremente, já os negros necessitavam
de cartões de identificação e tinham acesso restrito às áreas “brancas”. (ASHCROFT ET
AL, 1998).
O binarismo também se evidencia em diversos outros estereótipos criados para
caracterizar o sujeito colonial. Um dos mais recorrentes estereótipos imputados aos
colonizados foi o de selvagem. Obviamente todos os estereótipos escondiam intenções
muito menos nobres que a educação dos colonizados. O que as invasões coloniais
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sempre buscaram foram as riquezas naturais da terra e o uso da mão-de-obra nativa. Ao


chegar às terras desconhecidas, assim como já fora feito nas Índias, os colonizadores
europeus buscaram extrair-lhes a riqueza, apoderar-se dos bens naturais. E, para atingir
tal intento, a caracterização do sujeito colonial como ser inferior foi uma das estratégias
mais eficientes. O desejo de enriquecer e adquirir o que o dinheiro pode trazer leva o
Outro a criar o outro, considerando-o inferior e tratando-o como tal. Ao descrever a
conquista da América pelos espanhóis, Todorov (1999, p. 175) afirma que

O desejo de enriquecer e a pulsão de domínio, essas duas formas de


aspiração ao poder, sem dúvida nenhuma motivam o comportamento
dos espanhóis; mas este também é condicionado pela idéia que fazem
dos índios, segundo a qual estes lhe são inferiores, em outras palavras,
estão a meio caminho entre os homens e os animais. Sem esta
premissa essencial, a destruição não poderia ter ocorrido.

Da mesma forma tais estereótipos foram usados na institucionalização da diferença,


através do apartheid. Os negros deveriam estar sempre separados dos brancos, com a
justificativa (pouco plausível) de que a “mistura” de raças destruiria a raça branca.
Porém, o que se intentava, em realidade, era a usurpação dos direitos dos negros em
benefício próprio, ou seja, a restrição dos direitos dos negros fazia com que o branco
cada vez mais enriquecesse às custas do negro. “O apartheid [...] retirou da África do sul
branca a maior quantidade possível da população negra, sem colocar em perigo a oferta
de mão de obra, especialmente no setor agrícola e minerador” (FIUZA NETO, 2010,
p.49). Assim, na novela, notamos como Jacobus rotula os namaqua com adjetivos
degradantes, uma forma de reforçar, também, sua própria superioridade e conseguir
deles favores.

Então eu me afastei para me posicionar atrás do vagão que se retirava,


enfrentando os selvagens que vinham [...].(COETZEE, 1998, p. 69).

Os hotentotes são um povo primitivo. (COETZEE, 1998, p. 71).


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Em diversos outros momentos de sua narrativa, Jacobus demonstra também ser


racista, utilizando estereótipos relacionados à raça negra para outremizar os sujeitos
colonias da tribo namaqua. O racismo também é provocado pela ideologia binária, que
classifica o branco como ‘Outro’ e o negro ou ameríndio como ‘outro’. Jacobus denota
o preconceito racial que lhe tolda a visão.

Faltava-lhes qualquer tipo de livre arbítrio, eles nasceram


escravos [...].(COETZEE, 1998, pp. 73-4).

Os hotentotes não conheciam nada de perspicácia. Para ter


perspicácia você precisa de olhos azuis. (COETZEE, 1998, p.
97).

Nota-se que, na acepção de Jacobus, os sujeitos coloniais já ‘nasceram’ escravos e


não possuem sagacidade e inteligência. O preconceito contra a raça negra ou ameríndia
contradiz, em alguns aspectos, a própria ideologia cristã européia. Ao considerar o índio
e o negro como inferiores, os colonizadores cristãos esquecem-se da igualdade
apregoada pela própria religião cristã. E, mais uma vez, vê-se outro estereótipo
imputado ao sujeito colonial, devido à necessidade de justificar as invasões coloniais e a
ganância pela riqueza que o domínio de novas terras e novos povos traria. Do mesmo
modo agiu a apolítica do apartheid, criando leis segregacionistas que não permitiam ao
negro a expressão própria. Aos negros era restrita a participação social e política,
permitindo-se a ele apenas o trabalho, quase escravo, como forma de melhorar a
situação econômica do país, garantindo o crescimento do poder aquisitivo dos brancos.
“Uma das primeiras leis adotadas foi o “Regulamento do Trabalho Indígena”, de 1911,
segundo a qual era considerado um crime- apenas para os africanos, ou seja, os não
brancos, a quebra de um contrato de trabalho.” (HISTÓRIA DA ÁFRICA DO SUL,
online, 2010).
Os estereótipos carregam a ideologia dos colonizadores, que, de forma binária, só
consideram a religião cristã como correta. A outremização de índios e negros ocorreu
dentre tantos outros fatores, por eles não possuírem a fé cristã e, dessa feita, não
possuírem religião alguma na visão do colonizador. Diante do suposto quadro de
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paganismo encontrado nas colônias, houve as empreitadas religiosas, chamadas missões


civilizadoras, que buscavam iluminar o pagão através do cristianismo. Porém, em geral
não havia a verdadeira aceitação da fé imposta e os sujeitos coloniais apenas fingiam a
conversão, no processo que Bhabha (1999) cunhou como cortesia dissimulada (sly
civility): os sujeitos coloniais fingiam aceitar a religião para não entrar em confronto
direto com os colonizadores, entretanto, intimamente, continuavam reverenciando suas
próprias divindades. A política do apartheid, mais tarde oficializada, também separava
os negros dos brancos por questões religiosas. “Em 1911 foi promulgada a ‘Lei da
Igreja reformada Neerlandesa”, que proibia os negros de se tornarem membros daquela
igreja” (HISTÓRIA DA ÁFRICA DO SUL, online, 2010).
O pensamento binário de Jacobus é explicitado em diversos momentos, nos quais ele
tenta fixar a imagem negativa do sujeito colonial, outremizando-o através de
comparações depreciativas.

[...] Eu comando sua vida. Pela objetiva eu o vejo aproximar-se,


carregando o espaço vazio. Por um lado, ele não é nada para mim e
eu, provavelmente, não sou nada para ele. Por outro lado o medo
mútuo nos dirigirá às nossas pequenas comédias de homem e homem,
prospector e guia, benfeitor e beneficiário, vítima e assassino,
professor e aluno, pai e filho (COETZEE, 1988, p. 81).

O trecho acima é, claramente, a evidência do binarismo que domina a ideologia e o


discurso europeus. Jacobus é representante do império colonial e, ao criar imagens
distorcidas e estereotipadas dos sujeitos coloniais, perpetua a outremização
sistematizada dos colonizados, cerceando-lhes a liberdade, tornando-os objetos, fazendo
com que percam a agência sobre as próprias vidas. Foi exatamente isso o que o
apartheid trouxe aos negros da África do Sul, criando leis diferenciadas para negros e
brancos, privilegiando o branco e depreciando o negro, criando até mesmo espaços
institucionais diferenciados para ambos.
Os colonizadores sempre atribuíam a característica de violentos aos sujeitos coloniais
e, como vimos, isso funcionou como forma de justificar a própria violência das
empreitadas coloniais. Jacobus acusa os namaqua de violência, contradizendo-se,
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porém, pois ele mesmo havia agido com crueldade com garotos da vila que resolveram
roubar suas roupas enquanto ele se banhava no rio.

Rugindo como um leão e envolvido em espuma como Afrodite eu caí


sobre eles. Minhas garras arrancaram orlas de pele e descarnaram suas
costas fugitivas. Um soco forte meteu um no chão com estrondo. Deus
do céu eu caí em cima de suas costas, e enquanto seus pequenos
colegas se espalharam entre arbustos e se reagruparam, eu moí a face
dele nas pedras, puxei-o em posição vertical, chutei-o para baixo (com
o calcanhar, para que eu não quebrasse o dedo do pé), puxei-o para
cima, chutei-o embaixo, e assim por diante, gritando na língua
hotentote todas as palavras de baixo calão que poderia evocar,
conjurações aos companheiros dele para voltar e lutar como homens.
(COETZEE, 1998, p. 90).

Jacobus não aceita ser alvo das brincadeiras dos meninos, não aceita ser desafiado e,
por isso, desfigura o rosto de um deles. E quando os meninos revidam, Jacobus acusa-os
de serem violentos. A mesma violência ele praticara contra os meninos namaqua, mas
parece não se dar conta disso, pois a ele, colonizador, branco, europeu, superior, tudo é
permitido e os colonizados, negros, inferiores, deviam-lhe obediência. A violência foi
um fator marcante na política do apartheid. Qualquer tentativa de expressão por parte
dos negros era reprimida com extrema violência. Um exemplo marcante foi o Massacre
de Sharpeville, em 1960, em que 5.000 manifestantes negros protestavam contra a Lei
da Licença, que os obrigava a portarem uma identidade oficial que os classificava de
acordo com sua cor. 69 manifestantes foram mortos a tiros, a maioria nas costas.
(FIUZA NETO, 2010).

Conclusão
A outremização dos sujeitos coloniais foi reforçada pela criação de mitos e
estereótipos sobre eles, o que reforçava a ideologia binária do colonizador, que só via
sua própria cultura como legítima e correta. Percebemos que a dicotomia sujeito/objeto
estabelecida, respectivamente, para colonizador e colonizado, realizou-se pelo desejo de
explorar as colônias e obter lucro com isso, o que acabava encontrando uma justificativa
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ideológica nos estereótipos de pagãos, preguiçosos, canibais, degenerados sexuais,


bárbaros, incultos, entre outros, imputados aos sujeitos coloniais.
A novela The Narrative of Jacobus Coetzee é exemplificadora de como funcionou a
outremização dos sujeitos coloniais, de como os estereótipos foram usados para rotulá-
los. Notamos como o europeu outremiza os sujeitos coloniais através da imputação de
estereótipos de incultos, preguiçosos, degenerados sexuais, canibais, selvagens, e como
sua ideologia binária o faz caracterizar-se como superior a eles por ser branco, europeu,
cristão, culto, civilizado. Neste sentido, a comparação com as políticas do apartheid se
fundamentam, pois do mesmo modo que o personagem Jacobus imputou estereótipos
aos nativos, ficcionalmente, o apartheid imputou a separação, legalmente, entre negros e
brancos através da outremização da população negra, ou seja, através da criação de leis
que consideravam diferentes sujeitos negros e brancos, que consideravam inferiores os
negros.
Observamos também que o europeu posiciona-se como uma personagem monolítica,
que enfrentou o interior da África do Sul sem respeito à cultura alheia, sem pensar em
outra coisa que não em si, outremizando totalmente os sujeitos coloniais e impondo sua
própria ideologia. A ideologia binária do europeu faz com que ele seja egoísta e não
aceite aquilo que não corresponda à sua própria ideologia, por isso outremiza e relega
esse outro à alteridade. Assim ocorreu também no apartheid, em que o pensamento
binário dos sujeitos brancos se sobrepôs a toda uma maioria negra, relegada assim à
alteridade, à diferença, à inferioridade, à usurpação de seus direitos civis.
Verificamos que o europeu que, teoricamente, levaria civilidade e que apregoava
isso, contradiz o próprio discurso com as ações violentas e a imposição de sua cultura,
sua crença, sua língua, seu ideologia, enfim, aos sujeitos coloniais. O mesmo se deu na
política do apartheid, em que o branco, que se considerava superior ao negro, age de
forma extremamente violenta, negando aos negando aos negros seus direitos e punindo-
os quando tentavam ter voz.
Diante da abrangência da teoria pós-colonial e dos diversos aspectos passíveis de
estudo na literatura pós-colonial, ainda há muito a ser estudado em obras que, como The
Narrative of Jacobus Coetzee, também enfocam os conflitos do momento da
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colonização, o encontro colonial, a outremização dos sujeitos coloniais, enfim, os


problemas decorridos da colonização. Da mesma forma, a verificação das bases das
políticas do apartheid podem ser analisadas em outras obras como essa.

Referências

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ASHCROFT, B. et al. Key concepts in Post-colonial Studies. London: Routledge, 1998.
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DO TRADICIONAL AO TRANSCULTURAL: UMA LEITURA DE BALADA DE


AMOR NO SERTÃO, DE CRISTINA MATO GROSSO

Elisângela Rozendo de São José (PG-UFMS/CCHS)


Wagner Corsino Enedino (UFMS/CPTL)

Introdução

A palavra teatro traz em si uma duplicidade: pode se referir ao espaço onde ocorrem
espetáculos e também a própria representação. Etimologicamente, o termo (teatron)
possui o significado de miradouro, local de onde se vê. Pode-se dizer que não há espaço
mais adequado para visualizar a história humana, pois ele é uma das artes que fala do
homem com mais propriedade, já que o faz por meio do próprio homem. A palavra, no
teatro, tem um alcance maior que a simples expressão da voz, é o próprio texto em
princípio, sendo assim, por meio da linguagem é que inicialmente penetra-se na face da
“visceral ambigüidade” dessa arte, como bem disse Moisés (1997). Corvin sustenta que
a decifração semiológica de uma obra dramática conceba-se em função da representação
e que uma simples leitura, estática, poderia truncar o teatro em sua definição específica.
Por outro lado, “[...] o texto escrito tem a vantagem de propor traços menos fugitivos e
menos subjetivos do que os registrados pelos olhos e ouvidos, ele permite melhor (...)
discernir classes de signos típicos e depreender (...) traços pertinentes [...](CORVIN,
1998, p.277)”. Nesse sentido, o intuito aqui é de destacar a obra escrita, que ostenta
elevada taxa de literariedade, pois o texto dramático alimenta-se dessa linguagem
polissêmica para as construir como espetáculo (MOISÉS, 1997, p.261).
Umberto Eco (apud RYNGAERT, 1996, p.03) conceitua o texto como “uma
máquina preguiçosa que exige do leitor um duro trabalho de cooperação para preencher
os espaços do não-dito ou do já-dito que ficou em branco (...), o texto não é outra coisa
senão uma máquina pressuposicional”. Seu conceito pode ser tranquilamente estendido
ao texto dramático, geralmente estruturado de forma enigmática por sua contextura
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engendrada de signos não-verbais que se ligam aos verbais na representação; um texto


considerado “aberto” ou “texto com brechas” como denominou Anne Ubersfeld.
Tratando-se especialmente das práticas escriturais da atualidade que mostram-se
fragmentadas, lacônicas e descontínuas, o labor do leitor é cada vez mais árduo, visto
ter muito a se descortinar, imaginar e construir.
Nesse sentido, pretende-se esboçar aqui algumas hipóteses acerca da obra Balada de
amor no sertão(2003), de Cristina Mato Grosso, com relação a sua estrutura,
personagens, elementos transculturados e à poética da dramaturga, infelizmente ainda
pouco explorada no âmbito acadêmico. Por esse motivo, é pertinente destacar alguns
aspectos sobre vida e produções da autora, tentar apreender sua teatralidade, ou seja, a
enunciação teatral, a circulação dos conteúdos subjetivos dos diálogos e rubricas, o
desdobramento visual da enunciação (personagem/autor) e de seus enunciados,
projetando, no mundo sensível, os estados e imagens que constituem suas molas ocultas.
O destaque à dramaturga se dá, especialmente, por seu reconhecido trabalho à frente do
grupo GUTAC (Grupo Teatral Amador Campo Grandense), que produziu um teatro
engajado, de resistência (desde inícios dos anos 70), hoje denominado INECON
(Instituto de Educação e Cultura Conceição Freitas), do qual é uma das fundadoras, e
atual presidente. Além disso, a autora desenvolveu inúmeras obras e projetos que
resultaram em vários prêmios. Importa ressaltar que com a obra Balada de amor no
sertão, Cristina Mato Grosso conquistou o 1º prêmio Funarte de Dramaturgia - Região
Centro-Oeste - Teatro adulto, em 2003.
“Ler o texto de teatro é uma operação que se basta a si mesma, fora de qualquer
representação efetiva (RYNGAERT, 1996, p. 25)”, portanto, importa salientar que as
especulações se restringem somente ao texto e não à representação, sendo
procedimentos bem distintos, ainda que complementares.

1- Breve trajetória de Cristina Mato Grosso

Não há como tracejar o cenário dramatúrgico de Mato Grosso do Sul sem apontar o
nome de Cristina Mato Grosso, visto ter sido ela um baluarte nesse campo artístico.
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Maria Cristina Moreira Oliveira, de nome artístico Cristina Mato Grosso, é atriz,
dramaturga e diretora teatral do GUTAC/ INECON em Mato Grosso do Sul; graduada
em letras, ministrou aulas em algumas universidades, trabalhou com projetos teatrais
voltados para a educação pública e, atualmente é doutoranda em teatro na ECA- USP.
No momento de 1971, ano de surgimento do GUTAC, Cristina Mato Grosso e
Américo Calheiros (atualmente secretário de cultura do estado) foram os sustentáculos
do movimento teatral em Mato Grosso do Sul. O GUTAC é um dos grupos brasileiros
(nascidos nos anos setenta) que se distingue pelo teatro de resistência, em luta à falta de
liberdade de expressão nos anos da ditadura militar; suas atividades fomentam-se com
os festivais estudantis mato-grossenses de teatro, dessa forma, o grupo conquista seu
espaço na comunidade e, o reconhecimento reflete-se nos vários prêmios alcançados.
Teve importante papel na inauguração dos teatros Glauce Rocha (1971) e Aracy
Balabanian (1989), nos quais ele foi o primeiro grupo teatral a se apresentar. O grupo se
fortalece e o trabalho com o teatro se efetiva no âmbito das escolas públicas, pois
grande parte dos componentes do GUTAC era profissional em educação.
A partir daí seguiram-se trabalhos significativos e importa relembrar alguns
espetáculos do grupo, produções indispensáveis à leitura de seu projeto dramatúrgico.
Um dos pontos claros da autora é evidenciar questões do cotidiano em suas peças,
prova disso é que no período da ditadura, muitas delas sofreram interferências dos
órgãos de censura porque retratavam a realidade da repressão e da obstrução cultural
que o país viveu nesse período. Em 1973 e 1975, respectivamente, com as peças
Contramão (texto de Cristina Mato Grosso) e Os Profanos (Américo Calheiros),
sofreram cortes comprometedores e interdições, o grupo conviveu com a censura federal
durante quatorze anos, marcando expressivamente sua produção textual e cênica.
O espetáculo Foi no Belo Sul Mato Grosso (1979), texto de Cristina Mato Grosso,
sofreu censura na faixa etária (18 anos) e foi considerado o divisor de águas na história
do teatro da região, manifestando uma linguagem própria, irreverente, e especialmente a
preocupação pela defesa das condições subumanas que o povo estava submetido.
Segundo Mato Grosso, as “condições estão cada vez mais agravantes, à medida que o
modelo econômico deste governo arbitrário, de mãos dadas com a burguesia dominante,
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permite que esta, controle, abocanhe e devore nossa terra, nossa produção” (2007, p.59).
De encontro a essa realidade, a arte do grupo se compromete cada vez mais com o
oprimido.
A produção assume caráter crescente e se nota, a cada texto, aspectos idiossincráticos
regionais sendo valorizados. As apresentações se intensificam nas principais capitais
brasileiras; os encontros com profissionais de teatro, sobretudo do eixo Rio-São Paulo
são cada vez mais frequentes e significativos e, resultam na redefinição de caminhos
estéticos.
Outro texto significativo de Mato Grosso foi Vila Paraíso, Bom dia, 1980, (censura
18 anos), que sintetizava a problemática social do momento: a prostituição, exploração
do menor, moradia e saneamento básico da população.
Em Pedro Palito e o Monstro Devorador (1984), texto de Mato Grosso, censura 14
anos, texto de forte discurso político e que expressa as manifestações de organização
coletiva, garantiu ao grupo a existência de uma identidade. Nessa nova etapa cênica e
dramatúrgica fica evidenciada a preocupação de um conteúdo em resposta aos anos
antecedentes de exceção, própria de um teatro de resistência, sucessor das lutas dos
jovens artistas dos anos de 50 e 60, do ARENA ao CPCs (MATO GROSSO, 2007).
Com a peça Tia Eva, de Cristina Mato Grosso (1986) o grupo conquistou o Prêmio
Pesquisa de Linguagem Cênica no Festival Nacional de Teatro Infantil, de São José do
Rio Preto-SP. Em 1989, O Sonho de Ceição, retratando a vida de uma artista que se
tornou ícone da cultura popular de nosso estado,venceu a Concorrência FIAT- Prêmio
Centro-Oeste. Pelo segundo ano consecutivo, uma peça de Cristina Mato Grosso
arremata o prêmio FIAT na categoria Teatro, Anhanduí- Anhanduizinho, meu amor que
faz referência ao elemento indígena. Valendo-se de subsídios verídicos para a escritura
de suas peças, Cristina Mato Grosso realiza suas investigações históricas, geográficas,
das raízes religiosas, culturais e folclóricas de forma bastante expressiva.
Foram inúmeras as críticas sobre a produção da teatróloga sendo veiculadas em
jornais de âmbito nacional, obtendo reconhecimento por sua produção em todas as
esferas, pelo pronunciamento de jornalistas, sociólogos, artistas, professores e diretores
teatrais ou pela voz do povo leigo, porém tão sensível à sua arte. Não se pode negar a
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pronta identificação com a cultura regional, por meio de temas, linguagem, cenários,
música, personagens, entre outros elementos. É intrínseca a preocupação exegética da
autora em toda sua trajetória artística. Sua obra deixa reverberar muito de suas lutas
sociais e de seu comprometimento além-arte. Percebe-se em todas as peças citadas neste
artigo um traço fundamental, recorrente no início de sua carreira e sustenta-se
contemporaneamente: o engajamento, o ativismo social- independentemente de seus
enredos, dos espaços retratados e da tipologia de personagem ou sua densidade ôntica-
discursiva, a “magia” teatral se envolve com as discussões concernentes à realidade
humana, indissolúveis no ato criador da autora.
Suas peças transitam na tênue linha do fantástico verossímil e o mundo empírico,
especialmente se tratando de Balada de amor no sertão, sua mais recente obra, em que a
liberdade inventiva é bastante exacerbada.

Importa destacar que o “ciclo de dramaturgia Pedro Palito” (conforme designa a


dramaturga no livro Teatro em Questão), composto pelas obras anteriores O mistério
das Marias; Mamulengo Pantaneiro de Pedro Palito, O Inzoneiro; Pedro Palito, O
Inzoneiro e o Touro Candil; Pedro Palito e o Monstro Devorador; A noiva), tem a
recorrência de algumas personagens e culmina na obra em estudo, Balada de amor no
sertão (2003), na qual em alguns quadros se percebe algumas passagens que remetem a
outras desse ciclo. Reaproveitamento, aliás, que é peculiar à autora, isto é, uma de suas
marcas discursivas.

2- Da tradição à transculturação

A noção de tradição permeia a história do homem e também foi refletida entre os


autores contemporâneos. O crítico brasileiro Antonio Candido retoma o conceito em
seus estudos, especialmente em Formação da literatura brasileira (1981) ao utilizar-se
da metáfora da passagem de uma tocha entre corredores para exemplificar a
continuidade literária. Assim, define a tradição como a
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transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos


transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou
comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para
aceitar ou rejeitar. Sem essa tradição, não há literatura, como
fenômeno de civilização (CANDIDO in CUNHA, 2007, p.39).

Candido concebe então um sistema literário como uma seqüência ininterrupta de


obras e autores aliada às funções ideológica e social e, buscando um sentido completo
de tradição conseguido pela tríade indissolúvel autor, público e obra. Antonio Candido
tratou de comentar com maior propriedade o sistema literário do Brasil, mas é
importante ressaltar o nome de Angel Rama, crítico uruguaio, que comungava também
dessas ideias de Candido.

Podemos dizer que Rama projetou o conceito de sistema de Antonio


Candido sobre a América Latina e, com a incorporação dos estudos da
antropologia ao tentar abrangê-la como um todo, procedeu a uma
visão regional, subdividindo-a em comarcas culturais. Nesse
procedimento, segundo a concepção de Rama, seriam perceptíveis
tanto as diferenças étnicas quanto as sociais (CUNHA, 2007, p. 85).

Segundo os estudos de Cunha (2007, p.85) o crítico uruguaio “parte do estudo da


literatura para o da cultura, voltando ao âmbito literário”, essa visão global pôde
acontecer devido a influência de estudos antropológicos, e para destacar alguns deles,
detectamos o reflexo teórico de outros nomes brasileiros como Darcy Ribeiro e Gilberto
Freyre.
Rama absorve e reelabora as investigações de estudiosos anteriores à sua geração e
de seus contemporâneos, assim, se respaldando em ensaios de cunho antropológico ou
sociológico, aprofunda e amadurece suas idéias, reforçando assim, “seus estudos sobre
uma densidade literária” (CUNHA, 2007, p.87).
Pode-se dizer, sucintamente sobre a transculturação, que o termo, cunhado pelo
antropólogo cubano Fernando Ortiz (CUNHA, 2007), foi utilizado para explicar o
processo de colonização em Cuba, advindo da necessidade de expressar os muitos
fenômenos ocorridos no país devido às transformações de culturas apresentadas.
Classificado por ele como um neologismo para substituir o vocábulo aculturação que,
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grosso modo, é entendido como a assimilação de traços de outras culturas, entende que
a transculturação expressa melhor as diferentes fases do processo transitivo de uma
cultura a outra, pois representa a síntese de dois processos: a perda de uma cultura
(desculturación) e o acréscimo de outra cultura (aculturación). Dito de outro modo, o
termo transculturação pode ser genericamente compreendido como “a mescla de
culturas e o estabelecimento de uma terceira, motivada, principalmente, pela velocidade
com que tal processo teria ocorrido na história de Cuba e da América” (CUNHA, 2007,
p.127). Ángel Rama dá amplitude ao conceito de Ortiz, buscando dinamismo maior nas
possibilidades de respostas ao impacto cultural. Revê o conceito de Fernando Ortiz em
suas três etapas (perda parcial da própria cultura, incorporações da externa e
recomposição de ambas) complementando-o pelo processo de perdas, seleções,
redescobrimentos e incorporações. O crítico, segundo os estudos de Roseli Cunha, ao
apresentar as formas de resposta ao impacto cultural, sintetiza-as em três: a
vulnerabilidade cultural que se entende pelo aceite passivo à cultura do outro; rigidez
cultural, ao se fechar unicamente nos valores da comunidade que recebe o impacto; e, a
plasticidade cultural, neste, ao incorporar elementos exteriores, com o elemento
inventividade, a estrutura cultural é dinamizada.
Rama recriou o conceito de Ortiz no que tange à cultura latino-americana
estendendo-o à literatura, especialmente a regionalista. Cunha (2007, p. 146- 147)
observa que esse posicionamento se dá pelo intuito de destacar o momento da literatura
do subcontinente latino-americano que se voltava para suas peculiaridades. O desejo de
uma independência literária se basearia na originalidade, sendo a ruptura com
influências do passado, o que levaria a uma representatividade regional, de modo a
enfatizar as diferenças em relação às culturas colonizadoras. Rama repensou a tradição a
partir do contato com a influência externa e a relevância que o elemento tradicional e o
modernizador teriam ao formarem um terceiro. Para ele, a obra de arte seria o produto
que transita entre o universal e o regional.
As ideias aqui expostas, Rama designa de transculturação, de sentido amplo, já um
outro sentido de transculturação pode ser nomeado de transculturação narrativa, que se
direciona mais especificamente à literatura. Pode-se dizer que a última dimensiona as
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mesclas culturais às obras literárias da América Latina, a outra, refere-se ao geral


(cultura externa e cultura interna).
No que tange à transculturação narrativa, se faz pertinente, neste ensaio, conhecer
os três níveis que estruturam este sentido de transculturação, focado na literatura:
linguístico, estruturação literária e a cosmovisão, que podem ser verificados no
entendimento geral da transculturação.
De acordo com Cunha (2007, p. 183), o primeiro nível da transcultuação- o da
língua- é encontrado nos romances dos primeiros regionalistas, almejando a
coexistência de um sistema dual em que nota-se a língua literária culta, “encarnando os
ideais dos autores” e o dialeto próprio dos personagens, preferencialmente de um
ambiente rural. A estudiosa ainda observa que “os herdeiros desses primeiros
regionalistas seriam os ‘transculturadores’, (...) que teriam promovido um encurtamento
na distância entre a ‘língua’ do narrador-escritor e a dos personagens” (2007, p.184),
intermediando uma recriação da linguagem. Assim, a “voz popular passaria de
singularizadora do personagem àquela que narraria e que poderia, portanto, como o
narrador, manifestar sua visão de mundo preservando a própria identidade” (2007,
p.186). Esse primeiro nível pode ser encontrado em Balada de amor no sertão, pois no
trato com a palavra, mostra-se a forma culta no registro escrito, mas se guardam as
referências da oralidade local. O fragmento ilustrativo refere-se ao Ato I, quadro I.

MÃE
Pedro Palito!.
(O menino ignora o chamado, e prossegue recitando, ora lendo, ora recita textos memorizados com
gestos e intenções maliciosas: )
PALITO

“Veloz borboleta

Que leda girando

De flor para flor;

(...)

Ai, minha borboletinha,


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Deixa eu por, deixa eu por!!

MÃE

(interrompendo-o)

Cê vai por é mão na enxada,

Moleque sem-vergonha!

Dê cá essa revista safada!

(toma-a do garoto com intenção de rasgá-la. O menino lhe suplica: )

PALITO

Não, mãinha!

É de Camonge1 a revistinha!

O outro nível, o da estruturação literária, diz respeito à forma do romance que,


busca resolver a tensão entre o impacto modernizador, de vanguarda e a cultura local.
A peça em estudo, traz essa tensão a partir de sua forma. Segundo os estudos de
Moisés (2004, p.49-51), a universalidade da balada permite considerá-la uma das
mais primitivas manifestações poéticas. É uma forma literária mista, reunindo
elementos da poesia dramática e lírica bem como de narrativa. Pode ser descrita
como uma canção-histórica que emprega escassos detalhes; sugere mais do que
explora largas porções do enredo e transmite as expectativas e valores do seu povo. É
uma modalidade narrativa originariamente transcultural, visto que revitaliza e recria
a tradição por se tratar de uma literatura folclórica, oral e que se altera a cada
transmissão e a cada choque com outras culturas.
O cantar de feição narrativa gira ao redor de um único episódio (na peça é a luta
das protagonistas: Coronel, Pedro Palito e o Pai, pelo amor de Maria), de assunto
melancólico, trágico, histórico, fantástico ou sobrenatural.
Destacamos o terceiro nível proposto por Rama, o da cosmovisão. Busca-se nele
equacionar o histórico ao fantástico; temos então o mito, um elemento inovador na
produção da narrativa. Em Balada de amor no sertão a presença do mito está nos
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heróis Pedro Palito e Jesuíno Brilhante 1. Nas palavras de Rosenfeld (1996, p. 23), o
herói “não é um ser real e sim um mito”, e este último é uma forma de se organizar
as emoções mais veementes, projeção de angústias e temores; esse “herói mítico é a
personificação de desejos coletivos (1996, p. 36).
Os heróis, na peça, são cangaceiros e sabe-se que o cangaço foi uma forma de
melhorar a situação social, uma estratégia de sobrevivência, “[...] uma tentativa de
transformação social de dentro para fora” (VASSALO, 1993, p.61). De acordo com o
entendimento de LAGAZZI (1988, p. 43, grifo nosso) “[..]a luta do sujeito se faz
necessária. A lei, por sua univocidade, tenta reprimir o desejo. É, portanto, contra o
mecanismo da lei que a luta do sujeito se impõe, para que ele possa contar a sua história
e mostrar as suas singularidades. Através da contextualização, a falta pode ocupar o seu
espaço e o desejo do sujeito se colocar”. Diante do exposto, o herói representa o desejo
de luta pelo amor, de luta contra o tirano, contra as dores e mazelas de um povo que
vive no “sertão”2.
Presenciam-se, nas situações postas, discursos de cunho político, a preocupação com
a identidade regional, a valorização da cultura universal. A dramaturga dialoga, muitas
vezes, com a modernidade, porém, evidencia-se, no decorrer de seu texto, a
identificação com aspectos da tradição popular.
Cristina Mato Grosso é considerada uma artista que realiza um teatro popular, no
sentido de que dá voz à cultura popular, às idiossincrasias de um povo; têm como
marcas a improvisação, a presença marcante de personagens alegóricos, utiliza-se
também de máscaras, do teatro de bonecos, de sombras, e foi reconhecida também fora
do país por seu trabalho com os mamulengos 3.

1
Nessa peça, o cangaceiro referenciado é Jesuíno Brilhante (1844-1879), considerado por Matoso
Câmara o Robin-Hood do sertão. Antecessor de Lampião.
2
O sertão aqui é entendido como “um lugar identitário, relacional e histórico. Ele simboliza a relação de
cada um de seus ocupantes consigo mesmo, com os outros e com uma história em comum” (SANTOS
apud CASTILHO, 2009, p.69).
3
Importa lembrar que a direção do GUTAC foi agraciada com a Bolsa de Teatro Virtuose- MINC-, pelo
qual realizou estudos teatrais no D.E.A, Institut D’études théâtrales, Universidade Sorbonne Nouvelle,
Paris III, no ano letivo 2002/2003. Os componentes participaram de alguns eventos em Paris onde
demonstraram, especialmente, as técnicas do mamulengo brasileiro, uma das formas animadas de teatro
em que o grupo destaca-se pela especialidade.
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Para a dramaturga, indubitavelmente, são inesgotáveis as fontes populares nas quais


bebe o teatro universal, elas são também “[...] bons pretextos para as literaturas regional,
nacional e clássica caminharem juntas. O GUTAC, ao servir-se dessas fontes, aponta
sua trajetória estética para o cruzamento de tais caminhos”(MATO GROSSO, 2007,
p.112).

Nesse sentido, atenta-se também para a poética de Cristina Mato Grosso que guarda
tendências humanistas do teatro de Gil Vicente. Há um casamento literário: as alianças
da linguagem poética e dos personagens alegóricos escolhidos se diluem no ato criador.
Mato Grosso retoma na peça Balada de amor no sertão a linguagem clássica de Camões
e as cantigas vicentinas por meio da intertextualidade ou mesmo recortes dessas obras,
que se transculturam na voz das personagens do sertão. As líricas ibéricas mesclam-se à
literatura de cordel dando lume a essa obra popular, podendo ser lida como uma forma
de entender a identidade não só do espaço sertão, mas nacional; pois a literatura possui a
característica de não delimitar fronteiras: é o universal dentro do local, haja vista que
“[...] a literatura é concebida em suas relações com a nação e com sua história. A
literatura, ou melhor, as literaturas são, antes de tudo, nacionais”. (COMPAGNON,
2001, p.32-33).

O texto da autora procura estabelecer relações entre o antigo e o novo, pois:

A tradição não pode ser herdada , e se alguém a deseja, deve


conquistá-la através de um grande esforço. Ela envolve, em primeiro
lugar, o sentido histórico, [...]; e o sentido histórico implica a
percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua
presença; [...] Esse sentido histórico, que é o sentido tanto do
atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos,
é que torna um escritor tradicional. E é isso que, ao mesmo tempo, faz
com que um escritor se torne mais agudamente consciente de seu
lugar no tempo, de sua própria contemporaneidade (ELIOT, 1989, p.
38- 39).
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Considerações finais

A análise proposta da obra por ora encerra-se aqui, mas está longe de ser
finalizada. Há muito a ser discutido, compreendido e revisitado no texto. Com esses
poucos apontamentos, acreditamos ter contribuído um pouco para a disseminação da
literatura dramática sul-mato-grossense, em específico, a da dramaturga contemporânea
Cristina Mato Grosso. Como se pôde verificar, a ficção da autora não só se evidencia
pela ideologia política de que está impregnada, porém deixa patente a função ideológica
dos símbolos utilizados, e o uso recorrente da multiplicidade de temas e personagens a
serem investigados.
Levando em conta a produção literária de Cristina Mato Grosso, bem como sua
formação profissional e seu constante trabalho de cunho social e educacional, torna-se
necessário lançar estudos sistemáticos acerca sua poética, afinal, “um grande
dramaturgo é patrimônio tanto do teatro quanto da literatura”(MAGALDI, 1998, p.13).

REFERÊNCIAS

CASTILHO, Priscila de Cássia Pinheiro. Veredas de transculturação: a travessia


identitária nacional em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Três Lagoas,
MS: [s.n.], 2009.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum; tradução de
Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2001.
CORVIN, Michel. Abordagem semiológica de um texto dramático- A paródia de Arthur
Adamov. In: GUINSBURG, J., NETTO, Teixeira Coelho, CARDOSO, Reni Chaves.
Semiologia do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1988.
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CUNHA, Roseli Barros. Transculturação narrativa: seu percurso na obra crítica de


Ángel Rama. São Paulo: Humanitas Editorial, 2007.
ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: ___. Ensaios. Trad, introd. e notas de
Ivan Junqueira. São Paulo: Art. Editora, 1989.
LAGAZZI, Suzy. O desafio de dizer não. Campinas, SP: Pontes, 1988.
MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Ática,1998.
MATO GROSSO, Cristina. Teatro em questão: teatro de resistência do Gutac/Inecon
em MS: 36 anos. Campo Grande: Gráfica Editora Alvorada, 2009.
_______.Teatro Popular. Estética e Política. Campo Grande: UFMS, 2007.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12 ed. rev. e ampl. São Paulo:
Cultrix, 2004.
_______. O teatro. In: A criação literária: prosa. 9 ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
ROSENFELD, ANATOL. O Mito e o Herói no Moderno Teatro Brasileiro. 2. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1996.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Trad. Paulo Neves; Revisão
da trad. Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
VASSALO, Ligia. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna.
Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora S.A. 1993.
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UM NARRADOR DO PASSADO: NICOLA GONÇALVES E SUAS


LEMBRANÇAS ESPARSAS

Eliza Pratavieira G (UEL)


Sonia Pascolatti (UEL)

Que é, pois, ser velho na sociedade capitalista? É sobreviver. Sem


projeto, impedido de lembrar e de ensinar, sofrendo as adversidades
de um corpo que se desagrega à medida que a memória vai se
tornando cada vez mais viva[...] (BOSI 1994, p.18/19.).

Pretendo com esse ensaio, lançar um olhar sobre o último escrito de Nicola
Gonçalves as Lembranças Esparsas. Esse é o décimo livro do agora octogenário “Seu
Nicola”, carpinteiro, nascido na cidade de Colina –SP em 1929. Mora em São Carlos
desde 1943.
Nicola nos conta no prefácio de suas Lembranças Esparsas que se mudou pra São
Carlos para trabalhar com a carpintaria nas indústrias de camas e cadeiras que eram
abundantes na cidade nessa época, e nos conta com a devida ênfase que a carpintaria é a
atividade que desenvolve até hoje, de 8 a 12 horas diárias. Ele nos narra também, que
em Pitangueiras onde trabalhou nos anos de 1952 e 1953 aprendeu o ofício de técnico
de rádio e operador de cinema numa máquina de 16 milímetros, e já trabalhou no
Cinema Santa Helena, localizado em Colina. Ainda no prefácio, diz que em 1959
montou sua oficina de carpintaria e desde então exerce esse ofício. É carpinteiro e
escritor.
No decorrer do livro se pode notar a importância do trabalho para esse senhor, que
faz questão de descrever as atividades laborais que desenvolveu durante toda a vida.
Ecléa Bosi, no texto Memória e Sociedade: Lembranças dos Velhos afirma que o
trabalho manual, mecânico ou intelectual, ocupou a maior parte do tempo vivido pelas
pessoas que entrevistou. Para eles o trabalho possui uma significação dupla:

Envolve uma séria de movimentos do corpo, penetrando


profundamente na vida psicológica. Há o período de adestramento,
cheio de exigências e receios; depois uma longa fase de práticas, que
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acaba confundido com o próprio cotidiano do indivíduo (BOSI, 1994,


p.471).

Nicola diz: “trabalhei em Pitangueiras nos anos de 1952 e 1953, com meu primo
Zéca, com quem aprendi o ofício de técnico de rádio e cinema, num aparelho de 16
milímetros, que às vezes manejava desajeitadamente provocando assobios da platéia”.
O trabalho ao nível corpóreo, no período do adestramento, pode ser percebido pela parte
destacada do fragmento. Durante as narrativas, temos uma série de exemplos que
remetem a essa significação do trabalho. Em Mesinha de Televisão temos um exemplo
ainda mais claro:
Tratei de arranjar madeira bem seca, um tampo de prancha bem
polida, fiz o que pude para deixa-la ao gosto do freguês, sem antes
aplicar duas ou três camadas de verniz tipo gomalaca e lá fui fazer a
entrega da tal mesinha [...] (GONÇALVES, 2009, p.51).

O segundo significado trabalho, segundo Ecléa Bosi, está relacionado à posição


social que o sujeito ocupa, para ela, o trabalho significa o caráter corpóreo e subjetivo e
simultaneamente a inserção obrigatória do sujeito em um sistema de relações
econômicas e sociais: “Ele é um emprego, não só como fonte salarial, mas também
como lugar na hierarquia de uma sociedade feita de classes e de grupos de status”
(BOSI, 2005, P. 471).
Em diversas narrativas de Nicola temos o relato de situações onde o sua
individualidade está completamente fundida com o seu trabalho/posição social. Nos
fragmentos abaixo são narradas situações de clara representação da sua posição social
de carpinteiro fundida à sua individualidade. Em ambas as situações há desvalorização
de seu trabalho, são claramente situações de opressão.

Quando fui lá receber o dinheiro, o moço saiu para fora aos gritos
exigindo que eu retirasse imediatamente aquela mesa de sua sala,
enfurecido ao extremo alegando que não ia fica com uma porcaria
daquela em sua casa( GONÇALVES, 2009, p.51).

Certa vez fui numa fazenda tratar um serviço e o fazendeiro era desse
tipo de gente (pessimista, orgulhosa, arrogante). Após apresentar o
orçamento do trabalho que seria executado, por ter achado cara a
minha mão de obra, o tal fazendeiro virou uma fera pro meu lado,
vociferando descontrolado contra a minha pessoa. Precisei dar o fora
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dali o mais depressa possível, ante a ameaça de levar um tiro na cara.


Conforme eu ia me retirando da sua fazenda, ele me ameaçava com
palavras ofensivas, até que pude desaparecer daquele maldito lugar,
pedalando minha bicicleta com a maior força do mundo
(GONÇALVES, 2009, p.61).

É perceptível que as duas significações do trabalho descritas por Ecléa Bosi se


encontram nos escritos de Nicola, que deixa transparecer nas primeiras linhas de seu
texto que a atividade laboral se funde com a própria substância de sua vida. Nicola
termina o parágrafo em que descreve todas as funções laborais que já desenvolveu com
a seguinte frase: “(...) graças a Deus, jamais fiquei um dia só parado por falta de
serviço” (GONÇALVES, 2009, p. 2).
Em mais de um texto Nicola deixa claro qual é a importância que o trabalho tem na
sua vida. Sua posição é bem definida com relação a esse assunto. Nos fragmentos a
seguir temos uma amostra de suas opiniões:
Todo ser humano passa por uma fase de preparação do seu intelecto
em que procura aperfeiçoar-se da melhor maneira possível ao nível de
instrução pedagógica e profissional para poder competir na difícil luta
pela sobrevivência, em meio a tantos desafios que certamente virão
pela frente (GONÇALVES, 2009, p 59).

O trabalho é fator primordial para a nossa felicidade, pois se praticado


com prazer faz com que as horas passem depressa e liberta-nos de um
peso na consciência, proporcionando-nos o descanso merecido, o
dinheiro para a nossa sobrevivência do dia a dia e a renovação para
novas forças, tão necessárias para se viver (GONÇALVES, 2009,
p.61).

O conselho que dou a todos é o seguinte: O trabalho não mata


ninguém e é uma ótima diversão, quando, porém, gostamos daquilo
que fazemos. Mas cortar cana debaixo de um sol escaldante, isso já é
dose pra elefante (GONÇALVES, 2009, p. 62).

No prefácio, Nicola revela que anda cansado e desanimado, nos diz que está
passando por uma fase ruim da vida e nos explica qual é a causa do seu mal estar.
Mas como tudo na vida cansa, hoje estou entrando numa fase um
pouco pessimista, mas acho que isso vai passar e voltarei
normalmente ao meu estado natural. Essa fase um tanto
desconfortável deve-se a falta de motivação e inspiração ara produzir
textos literários que sejam de interesse (grifo meu) para pessoas mais
exigentes em se tratando de leitura de livros em geral (GONÇALVES,
2009, p.2).
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Nicola percebe o desinteresse do público com relação que aquilo que acredita ser
mais precioso, a sua memória, as experiências que compõe sua vida. Ecléa Bosi teoriza
a relação do velho com a memória.

Ao lembrar o passado ele não está descansando por um instante das


lides cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do
sonho: Ele está se ocupando consciente e atentamente do próprio
passado, da substância mesma de sua vida (BOSI, 1995, p.60).

Na seqüência, Ecléa Bosi explica que o velho possui uma espécie singular de
obrigação: a de lembrar. E lembrar significa relacionar o corpo presente com o corpo
passado, significa evocar, dar vida a coisas que já não existem mais, significa não deixar
se perder o que foi a sua própria vida. Porém a sociedade industrial não valoriza a
lembrança, e consequentemente os contadores das lembranças.
Walter Benjamin discorre sobre o fenômeno no artigo O narrador: Considerações
sobre a obra de Nicolai Lescov. Temos nesse artigo algumas reflexões sobre os rumos
da narrativa oral, a instituição do romance burguês, como forma de narrativa da
sociedade industrial e a relação dessa forma com os meios de produção. Na carta-
resposta de Nicola, ele nos fala de um contador de histórias tradicional assim como
exemplifica Benjamin no seu texto.
Meu finado pai foi um grande contador de histórias. Costumava
freqüentar bares da cidade, e lá ficava horas e horas bebericando um
conhaque e contando histórias aos companheiros. Nos meus livros eu
conto alguns casos narrados por ele, motivo pelo qual muito aprendi
com ele. Geralmente meu pai contava as experiências assimiladas ao
correr de sua vida, quase todas passadas em fazendas, onde trabalhou
como carpinteiro. Conhecia como ninguém histórias de assombração,
de bandidos e facínoras, de folclore e uma infinidade muito grande de
narrativas (GONÇALVES, 2009.p.1)

Benjamin explica que depois da 1ª guerra, as experiências foram radicalmente


desmoralizadas; a experiência deixa de ser comunicável e com isso a fonte da narrativa
(que era o narrador) perece. Outro motivo que culmina na morte da narrativa, é a
ausência de bons ouvintes.
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Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde


quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque
ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o
ouvinte de esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o
que é ouvido (BENJAMIN.1996, p. 205).

Nicola percebe o desinteresse do público e se frustra. Porém o desinteresse não


provém do estilo da sua escrita, mas sim de uma sociedade que não valoriza a memória,
o passado, as origens. As narrativas de Nicola são escritas em livros, esse fato já aponta
a falta de interesse social, pois antes, o ato de contar era ato coletivo, se fazia em rodas e
havia muitos interessados, pois todos compartilhavam o mesmo conjunto de valores,
não havia a fragmentação social, o eu era coletivo.
Escrever as lembranças em livros é sinal de que a sociedade já não está preparada
para ouvir, pois é fragmentada e individualizada, o interesse coletivo desapareceu.
Sou um mal contador de histórias, meus ouvintes são geralmente as
pessoas que freqüentam a minha oficina de carpintaria, alguns alunos
de escolas são carlenses, mas a reação deles não é lá muito animada.
Me considero um perfeito fracasso nessa ramo oral de contar histórias.
(GONÇALVES, 2009, p. 1)

Nicola escreve, pois percebe que não há mais a possibilidade de comunicar as


experiências através da fala, ao mesmo tempo em que sente a necessidade de transmitir
o que aprendeu durante a vida. Nicola escreve porque é necessário tentar transmitir, e a
frustração vem ao perceber que o fato de as suas experiências serem escritas, não as
torna comunicáveis, pois os contemporâneos são coisificados e o passado pouco lhes
interessa.

Quando a sociedade esvazia seu tempo de experiências significativas,


empurrando-o (o ancião) para à margem, a lembrança de tempos
melhores se converte num sucedâneo da vida. E a vida atual só parece
significar se ela recolher de outra época o alento. O vínculo com outra
época, é a consciência de ter suportado, compreendido muita coisa,
traz para o ancião a alegria e uma ocasião de mostrar sua competência.
Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos,
ressonância (BOSI, 1995, p.82).

A falta de interesse aparece na própria materialidade de todos os livros de


Nicola, e nesse especificamente. O material foi editado e imprimido de modo artesanal,
em papel sulfite encadernado com espiral, tudo custeado pelo próprio autor, que nunca
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vendeu nenhum dos 30 mil exemplares que já distribuiu para os moradores de São
Carlos e região. Não há nenhuma espécie de subsídio público, e se os livros fossem
vendidos, muito provavelmente seriam pouco consumidos. Nicola diz: “Na verdade
gasto mais dinheiro com meus livros do que com o resto das minhas despesas”
(GONÇALVES, 2009, p.63).
As Lembranças Esparsas são um apanhado de relatos das mais variadas fontes
que vão desde acontecimentos vividos ao longo dos anos, passando por lembranças de
antepassados e amigos, figuras lendárias que habitaram a região de São Carlos e Colina,
e por fim a descrição de espaços e costumes enraizados nos habitantes da região.
Os relatos são relativamente curtos, o que é recorrente nos 10 livros de Nicola, e
não possuem ordem cronológica, vão brotando naturalmente através das palavras. Não
possui um estilo literário muito desenvolvido, as narrativas se aproximam muito da
oralidade, os relatos são construídos com detalhes tão minuciosos que os torna
documentos de inestimável valor histórico. O autor faz detalhadas descrições de como
os espaços da cidade foram há 50, 60 anos.. Nicola deixa transparecer a sua sinceridade
com relação aos escritos, sua intenção é narrar, transmitir de alguma forma aquilo que é
lembrado, e já não existe mais.
Ao encerrar essas três crônicas, devo salientar que as e as mesmas
representam procedimentos insólitos de minha vida particular e que de
bom senso não deveriam ser publicadas, mas carrego comigo o
costume de não esconder nada do que acontece de bom ou de mal nos
meus procedimentos cotidianos, não faço nenhuma simulação desses
acontecimentos, tudo o que relatei acima realmente aconteceu em
minha vida Já passei por muitas situações embaraçosas, umas quase
trágicas, outras hilariantes, as quais ao longo dessas narrativas serão
levadas ao conhecimento dos leitores para que sirvam de bom ou mau
exemplo para todos (GONÇALVES, 2009. p.7).

As narrativas de Nicola são escritas em primeira pessoa, possuem certa carga


metalingüística, dirige-se ao leitor o tempo todo, revela o eu tentando atingir o outro.
Geralmente as narrativas possuem um caráter moralizante, como no fragmento
transcrito acima. Esta é mais uma característica das narrativas orais:

O senso prático é uma das características de muitos narradores natos


(...) Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja
numa sugestão prática, seja num procedimento ou uma norma de vida
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– de qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar


conselhos. Mas se “dar conselhos” é hoje algo antiquado, é porque as
experiências estão deixando de ser comunicáveis (...) Na realidade,
esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa do discurso vivo
e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo,
tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução
secular das forças produtivas.(BENJAMIN, 1996, p. 200 - 201).

Enquanto idealizava esse artigo, escrevi uma carta a Nicola, e nessa carta fiz
alguma perguntas. Uma das perguntas foi se suas narrativas possuíam alguma grande
mensagem, e uma parte da resposta transcrevo a seguir. “(...) Pretendo ensinar coisas
como as vitórias alcançadas ao decorrer dos anos, a vivência com a natureza, com
animais silvestres, as aves, os bichinhos do mato as pessoas, os maus e os bons
elementos humanos, causos e costumes do campo (...)”.
A resposta é carregada de elementos de um tempo mítico, quase primitivo, essa
atmosfera está presente em todos os escritos de Nicola. De certa forma as coisas de que
Nicola trata nas narrativas, apesar de passadas, possuem algo de vivo, algo que se
percebe no cotidiano das pessoas que habitam aquela região. Ecléa Bosi explica a
origem desse espírito contido nas lembranças:
Há dimensões na aculturação que sem os velhos, a educação dos
adultos não alcança plenamente: o reviver do que se perdeu de
histórias, tradições, o reviver dos que já partiram e participam então
de nossas conversas e esperanças; enfim o poder que os velhos tem de
tornar presentes na família os que se ausentaram, pois deles ficou
alguma coisa no nosso habito de sorrir, de andar. Não se deixam para
trás essas coisas como desnecessárias. Essa força, essa vontade de
revivescêscia, arranca do que passou seu caráter transitório, faz com
que entre de modo constitutivo no presente (BOSI, 1995, p. 74).

Não podemos deixar pra trás algo que está intrínseco na nossa natureza. Não
existe cultura sem memória, perdemos todos os dias elementos preciosos de nós
mesmos, quando deixamos morrer os velhos sem ouvirmos o que eles têm a nos dizer.
Com essa desvalorização das experiências e falta de interesse dos jovens, aos poucos os
velhos perderam qualquer espaço na sociedade, só são necessários enquanto produzem,
sua vida sua experiência não possui nenhum valor. Quando descreve seus medos Nicola
deixa transparecer que um deles é o medo de ser improdutivo, o outro, o maior deles é a
morte.
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Hoje posso dizer que poucos medos atormentam a minha mente,


alguns até sem motivo algum. Tenho medo, por exemplo, de cair
doente numa cama, de machucar-me nas máquinas de minha oficina e
um pavor doentio da cadeira do dentista. Mas meu maior medo
mesmo é o da morte. Esse jamais consegui afugenta-lo de meus
pensamentos (GONÇALVES, 2009, p. 58/59).

Todos os dias enquanto essas pessoas vão se morrendo o que passa despercebido
pelos que ficam, é que aos poucos vamos perdendo algo essencial da nossa cultura,
vamos nos tornando seres esvaziados, seres artificiais, somos cada vez mais
semelhantes aos produtos descartáveis vinculados a cultura do consumo imposta pelos
meios de comunicação. Não existe povo sem cultura. Não existe cultura sem memória.

Referências

BENJAMIN, Walter. O Narrador Considerações sobre a Obra de Nicolai Lescov in_


Magia, Técnica, Arte e Política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
1996.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade Lembrança de Velhos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
GONÇALVES, Nicola. Lembranças Esparsas. São Carlos, 2009.
GONÇALVES, Nicola. Carta-Resposta. São Carlos , 2009.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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O REVIDE DA MULHER NEGRA EM THE HANGMAN’S GAME 1, DE KING-


ARIBISALA

Elizandra Fernandes Alves (PG – UEM)

Introdução

A corrida para a expansão colonialista dos séculos XVIII e XIX coincidiu com o
surgimento do feminismo na Europa, sendo que aquela pregava a superioridade branca,
cristã e patriarcal, negando aos povos conquistados os direitos civis (e sendo as
mulheres nativas as mais afetadas). A superioridade masculina em detrimento da
feminina, causando as mulheres opressão, já era uma prática comum na sociedade
europeia, dada a natureza patriarcal da mesma, assim, ela só se estendeu com maior
violência às mulheres das sociedades conquistadas.
Dentro desse quadro patriarcal há de considerarmos a dificuldade da mulher em
reagir contra os pressupostos sexistas e assumir sua posição na sociedade, não como
homem ou mulher, mas como sujeito agente. A mulher branca, europeia, já nasce
cercada pela ideologia da opressão e dessa forma o construto de seu pensamento é
essencialista: a elas cabem os castigos, a prostituição, o trabalho escravo, tudo sem
questionamento aparente. Este costume também deveria ser adotado pelas mulheres
colonizadas, que, ao recusarem o aceite dos critérios ocidentais patriarcais como únicos,
sofriam maiores barbáries que aquelas sofridas pelas mulheres brancas, e muitas delas
causadas por estas. Tais atitudes geraram um fato comum no processo colonial, a dupla
colonização: a mulher é oprimida pelo sistema patriarcal colonial, sendo subjugada pelo
poder imperial geral (homens e mulheres), bem como sofre os mesmos abusos no
ambiente doméstico familiar. A historiadora Emilia Viotti da Costa reafirma essa
prática comum num estudo da real revolta de Demerara: “Como trabalhadoras, sofriam
os mesmo abusos que os homens. Mas tinham de enfrentar problemas adicionais:

1
Obra sem tradução para o português. Os trechos aqui utilizados foram traduzidos por mim.
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estupro era um deles, separação dos filhos em fase de aleitamento era outro” (COSTA,
1998, p. 92).
Apesar do silêncio do nativo ser, muitas vezes, tão forte a ponto de apagar o
indivíduo colonizado da sociedade imperial (e isso se estender com mais violência em
relação à mulher), a voz do nativo pode ser recuperada por meio de questionamentos às
práticas opressoras do colonizador. Esta resistência é discutida por Bhabha que entende
que esta prática, com maior dificuldade, também pode ser trabalhada pela mulher
colonizada, que assim reverte a dupla colonização e recupera sua identidade. O presente
trabalho busca verificar como a personagem Auntie Lou do romance The Hangman’s
Game (2007) revida as imposições da dominação branca principalmente por meio da
dissimulação, negando assim o suposto caráter inferior da mulher colonizada e
inserindo-a no processo de libertação como sujeito agente.

1. Karen King-Aribisala

King-Aribisala nasceu e se educou na Guiana e atualmente trabalha na Universidade


de Lagos, na Nigéria. A autora já publicou vários contos e poemas em revistas como
Wasafiri, Presence Africaine, The Griot e Bim, e também ganhou prêmios como o
Commonwealth Prize (da região africana) de 2008, entre outros. The Hangman’s Game
(2007) é seu primeiro romance e é a história de uma escritora (cujo nome não é dado)
fictícia que se muda para a Nigéria com a intenção de pesquisar e escrever um romance
sobre a revolta escrava de Demerara na Guiana de 1823.
Diante de acontecimentos como o assassinato de um amigo pelo governo nigeriano
da época, um possível golpe político e sua gravidez, a narradora-escritora começa sua
hiponarrativa com sete personagens: John Smithers, Mary Smithers, Quamina, Rosita,
Governador Murrain, Auntie Lou e Capitão McTurkeyen, sendo que alguns equivalem,
respectivamente, a personagens reais da revolta em Demerara (Reverendo John Smith,
Jane Godden, Governador John Murray e Michael McTurk). Nota-se que as sete
personagens possuem, na diégese, um ‘irmão gêmeo’, com funções “semelhantes”
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àquelas desempenhadas por eles. Nomeada Three Blind Mice e dividida em três partes,
os acontecimentos da hiponarrativa dependem da ocorrência dos acontecimentos da
narração da autora fictícia, bem como dos eventos que ocorrem na suposta atual
Nigéria. Como aparato de identificação, as narrativas foram impressas com fontes
distintas (normal e negrito), sendo as mesmas ligadas pelo inofensivo jogo da forca,
com a palavra-chave controle, e guiadas pela narradora.
Mesmo considerando que em The Hangman’s Game o apelo à força do poder
ideológico imperial e colonial em pleno século 21 parece ser o ponto primordial da
narrativa, a dada investigação voltar-se-á particularmente a análise da personagem
Auntie Lou e suas relações de subjetividade que a habilita a revidar os domínios
coloniais em Demerara sem fazer uso de agressão física. Ao revidar o poder do
colonizador poderemos reconhecê-la como metonímia da ascensão negra em uma
sociedade duramente colonizada.

2. Resistência: revertendo o poder colonial

A resistência ao poder colonial pode ser observada desde os aspectos mais primitivos
– pela luta armada – até os sociais e culturais – pelo discurso, e análises diversas vêem
comprovando que esta opera de forma mais efetiva que aquela, muito embora o termo
resistência conote luta física a priori.
Nos primórdios do processo colonizador, a luta armada foi o primeiro tipo de
resistência utilizada pelos nativos. A eficácia desta logo se provou baixa dado que no
período que esta operou milhões de sujeitos coloniais foram exterminados na tentativa
de reaver o espaço tomado pelo colonizador que impunha uma realidade brutal aos
nativos. Sem a organização do branco europeu (pois as tribos viviam em guerra mesmo
entre si) os povos colonizados protelaram em pouco a total dominação europeia e em
parte contribuíram para um embate mais violento e uma rápida dizimação dos seus. Na
conquista do território que hoje chamamos de México temos, talvez, o relato da maior
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barbárie cometida em nome das missões civilizadoras européias, relato este descrito por
Todorov (1991).
Poucos são os estudiosos que defendem a luta armada em favor da libertação,
destacando o entilhano Frantz Fanon em, principalmente, Os condenados da terra
(2005). O ensaísta e médico psiquiatra, que abraçou a causa argelina, estudou a
psicopatologia do sujeito negro colonizado e era a favor da via armada em detrimento
da aceitação da imposição colonial. Porém, a resistência operada no discurso provou-se
muito mais eficaz e comum, conforme Ashcroft (2001) observa:
Se pensarmos na resistência como qualquer forma de defesa pela qual
um invasor é ‘mantido do lado de fora’, as formas sutis e, às vezes, até
mesmo as formas não ditas de resistência social e cultural foram muito
mais comuns. Estas formas mais sutis e mais difundidas de resistência,
formas de dizer ‘não’, são as mais interessantes porque são as mais
difíceis de serem combatidas pelos poderes imperiais (p.20).

Assim considerada, a resistência pode ser observada sob forma da ab-rogação


(intimamente ligada à apropriação – forma como a língua colonizadora é adaptada pelo
sujeito colonizado para descrever o contexto colonizador), da reescrita e a
reinterpretação (no plano de confecção e aceitação do texto literário), fenômenos
descritos por Bonnici (1998) como o repúdio dos escritores pós-coloniais à cultura
imperial, sua estética, seu padrão normativo e seu uso correto, a retomada de obras
literárias do cânone sob o viés da realidade colonial (Foe, de Coetzee) e a releitura das
mesmas obras sob o paradigma das relações centro-margem (A tempestade, de
Shakespeare).
Pela apropriação o sujeito colonizado pode também adquirir voz e resistir às
estratégias de outremização empregadas pelo colonizador pois “sabe que não é um
animal. E, precisamente, ao mesmo tempo que descobre sua humanidade, ele começa a
afiar suas armas para fazê-la triunfar” (FANON, 2005, p. 59). Spivak (1985), no
entanto, acredita que o sujeito colonizado não tem meios de reagir contra o circuito
binário estereotipado criado pelo europeu, estando a mulher em situação ainda pior, pois
esta se insere na dialética da dupla colonização, enquanto Bhabha (1984) confia na
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recuperação da voz do mesmo através da paródia, a mímica e a chamada sly civility


(cortesia dissimulada) (BONNICI, 1998, p.14).
Por meio da mímica o sujeito colonizado tenta copiar o colonizador, assimilando
hábitos e valores culturais, trajando suas roupas, copiando o modo deste andar, a língua;
como a reprodução não é exata ela beira a ridicularizarão, o que mostra ao europeu que
o ‘outro’, a margem colonizada, não está totalmente dominado, pois seu comportamento
é caricato e revela sua visão em relação ao colonizador, provando a limitação da
autoridade do discurso colonial por meio de uma resistência muda (ASHCROFT et al,
2000, p. 139). A paródia também copia o discurso do colonizador, utilizando-se da
escrita (para copiar e reescrever), de forma que ao escrever, suas linhas se tornem
carregadas dos valores culturais nativos, reagindo silenciosamente contra os valores
europeus impostos pelo colonizador. Outra forma de adquirir a voz e resistir ao
colonizador é através da cortesia dissimulada: “a recusa nativa a satisfazer a demanda
narrativa do colonizador” (BHABHA, 1998, p. 147). Querendo evitar um confronto
corporal (já provado ineficaz nos primórdios da colonização) o sujeito colonizado não
enfrenta o colonizador diretamente, e de forma não tão consciente quanto a mímica ele
resiste ao transformar elementos da cultura européia e usar em favor a si mesmo: utiliza-
se da língua colonial, moldando-a e atribuindo-lhe elementos de sua própria cultura,
criando uma língua que nem é a dele, mas também não é do colonizador. Assim ele
supostamente aceita os mandos do sujeito colonizador, pois o mesmo pensa que
conseguiu forçá-lo a aprender sua língua, quando na verdade ele critica e resiste ao
poder colonial sem usar da violência física, cultivando seus costumes com isso.
Ao resistir à outremização através das formas acima sugeridas, percebe-se que o
sujeito colonizado também revida, sem usar de conflito armado, criando uma linguagem
própria, mas também mantendo seus costumes de maneira que o colonizador não
perceba que sua vontade está sendo contestada: por meio da dissimulação cortês o
colono continua ‘senhor’, mas o colonizado sabe que na sua imitação é que reside a
fonte para recusar o que lhe é imposto, uma vez que por meio dela ele consegue
modificar o objeto imitado. Quando isso acontece o ‘outro’ acaba revelando sua
subjetividade, e ao revelá-la passa também ao papel de ‘Outro’, sujeito ativo dentro de
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seus limites coloniais, capaz de firmar sua independência e liberdade sem uso de forças
armadas.

3. O revide de Auntie Lou

O termo revide (ou resistência) conotava, a priori, a luta armada e estratégias de


cunho violento (ASHCROFT et. al. 1998). Foi com rebeliões que os primeiros sujeitos
colonizados tentaram evitar e reverter o quadro colonial degradante imposto pelos
colonizadores. Cientes da inexpressividade de suas lutas diante do homem branco e da
iminente perda de seus territórios eles passaram a lutar pela sua identidade de forma
mais velada, através de uma resistência social e cultural. Em The Hangman’s Game
(2007) o revide, impulsionado por motivos similares, pode ser observado tanto na
instância da violência quanto da dissimulação: dos homens negros e escravos em
relação à coroa britânica e das mulheres negras e escravas em relação à Inglaterra. As
mulheres são representadas por uma figura distinta: a escrava e curandeira Auntie Lou.
Auntie Lou pode, inicialmente, ser analisada sob um parâmetro essencialista, privada
de sua individualidade, como grande maioria dos sujeitos negros escravos:
“desumanizado, inferiorizado [...] preguiçosos, ignorantes” (MEMMI, 1985 apud
FIGUEIREDO, 1998, p.66). No entanto, escrava e amante do Governador de Demerara,
Murrain, Auntie Lou preserva sua subjetividade e autonomia ao revidar aos assédios
coloniais através, principalmente, da cortesia dissimulada descrita por Bhabha (1998),
ajudando a promover a libertação da sociedade guianesa negra.
A personagem é introduzida na história durante o enterro do Reverendo Smithers,
quando Lou critica a sociedade patriarcal colonial da Demerara, que releva as mulheres
o papel de subordinadas, tolhindo-lhes a participação na luta pela libertação, pois,
segundo Young (2001), considerava-se que o colonialismo e suas complicações eram de
natureza masculina e não cabia as mulheres contribuir em tais assuntos: “Foi Mary,
Rosita e eu quem planejamos o que os homens chamam de revolta. Nós planejamos isso
e ninguém irá nos agradecer porque este é um mundo de homens, e eles são todos
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cegos” (KING-ARIBISALA, 2007, p. 55). Auntie Lou, no entanto, não é submissa a


essa ‘ordem cega’: sendo uma curandeira sua voz é ouvida e respeitada (em âmbito
colonizador e colonizado), e por meio da dissimulação consegue reaver a voz negra
numa sociedade colonial. A escrava surpreende diante de sua capacidade inata de
entender sobre aspectos mundanos e de seu poder de persuasão e usa dessas qualidades
para desafiar o poder colonial, representado pelo Governador Murrain.
Consciente da ineficácia da revolta armada organizada por Quamina, Auntie Lou
tenta persuadi-lo, em vão, a aguardar, pois usando de seu discurso ela tenta assegurar a
liberdade do colonizado sem colocar a segurança de ninguém em risco: “Auntie Lou
dizia que uma revolta deveria ter armas superiores as dos homens brancos. Eles
deveriam se organizar. Qualquer rebelião deveria ser organizada” (KING-ARIBISALA,
2007, p. 49, grifo meu). É pela intimidade sexual com o Governador que Lou assegura
seu poder para um futuro revide, baseando-se na ideologia de que os homens, brancos
ou negros, superiores ou inferiores, é uma fabricação dos valores eurocêntricos,
conforme Figueiredo: “E o que é o negro senão um constructo, ou seja, uma construção
cultural do mundo branco?” (1998, p. 68). Quando o Governador, homem branco,
colonizador, concorda em manter em sua casa uma mulher negra, escrava, ele passa a
dividir com ela sua intimidade, provando a Auntie Lou sua humanidade: “[...] o
governador tinha vindo até ela como um homem precisando de uma mulher [...]”
(KING-ARIBISALA, 2007, p.60), e nessa constatação a mulher escrava vê a chance de
liberdade para ela e toda a colônia - se pretendesse que fosse feliz e passiva aos arranjos
feitos “isso providenciaria um caminho para a liberdade próxima” (KING-ARIBISALA,
2007, p. 61).
Como concubina de Murrain, Auntie Lou presencia os atos diários que aos seus
olhos desmitifica a posição de Governador-Deus, uma imagem falsa e imposta ao negro
quando o colonizou, um constructo frágil e ambíguo, que enfraquece a autoridade
colonial: o ritual de usar o urinol com a ajuda da escrava, o ato de vê-la lavar e encerar
os degraus de sua casa e servir-lhe água. A autoridade do Governador é enfraquecida
porque não só Auntie Lou vê nele um homem comum (“Auntie Lou sorriu, vendo o
homem no Governador” (KING-ARIBISALA, 2007, p.60), mas com isso também tem
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certeza de que a cor nada mais é que um mero subterfúgio para a objetificação dos
escravos - “É tudo como se [...] encontrassem um prazer intrínseco [...] no fato de
exercer poder sobre os outros, na demonstração de sua capacidade de dar a morte”
(TODOROV, 1991, p. 139) - para provar uma superioridade inventada, que não condiz
com a realidade, o que fortalece sua subjetividade e a conduz ao revide.
Questionamentos à religião cristã também são ferramentas que ajudam a fortalecer
suas bases para a resistência colonial. Ashcroft (2001, p. 21) discute que o maior
aspecto do poder colonial está na capacidade em construir o colonizado dentro de mitos
binários, e a fé eurocêntrica cristã tem sido uma das mais relevantes estratégias
coloniais para submeter à condição maligna do negro, em contraste com a pureza
religiosa do europeu, homem fiel a Deus. A imposição da religião cristã como única e
verdadeira, apontando os rituais religiosos dos nativos como maus, conseguiu
convencer muitos negros a se converteram ao cristianismo e, consequentemente, à
ideologia europeia, mas também serviu para mostrar a muitos negros a alienação que
essa ideologia representava. Auntie Lou se enquadra nesta última categoria. A escrava
revolta-se com os atos divinos em relação à colônia, comparando-os com a passagem
bíblica na qual a serpente chega ao paraíso para destruí-lo: “Deus [...] estou brava com
você [...] Você construiu um jardim para nós. Nós tínhamos flores e coisas bonitas [...]
então você trouxe a serpente [...] Por quê?” (KING-ARIBISALA, 2007, p.63). Lou
humaniza Deus quando fala com ele de forma tão íntima, desconsiderando o papel de
Deus, senhor supremo, que o homem branco conferiu a ele e que deveria ser observado
pelos negros. Sua subjetividade ganha espaço diante da certeza que o poder branco não
é algo divino, mas uma criação tão humana quanto os costumes negros, que o mito
binário branco/negro, homem/mulher não tem fundamento e que todos são iguais,
independente do Deus evocado:

Você é homem [...] Eu te conheço. Eu conheço o Governador. Eu


conheço o Rei. Eu conheço todos os homens broncos quando você
urina. Eu sei que eles urinam […] Eu sei que você tem gases. Eles
cheiram mal. Você arrota. Você é como as mulheres. Você é como eu.
Mas eu sei disso. Você urina [...] e todas as vezes que você urina eu me
fortaleço. As mulheres se fortalecem (KING-ARIBISALA, 2007, p.64).
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Verificada a fragilidade do poder do Governador, Auntie Lou aos poucos toma


controle do mesmo sem uso de armas, somente com o tempo e com o uso do discurso:
ela impede que um escravo seja vendido (Samuel) para que a família não seja
desintegrada, participa na construção dos ideais da revolta, mobilizando inclusive Mary,
esposa do Reverendo Smithers, para defender os escravos, fala com o Governador com
voz autoritária diante de pessoas públicas e intervém em questões sociais sérias, como o
julgamento do Reverendo:

Se, efetivamente, minha vida tem o mesmo peso que a do colono, seu
olhar não me fulmina mais, não me mobiliza mais, sua voz não me
petrifica mais [...] Não só a sua presença não mais me constrange, mas
já estou lhe preparando tais emboscadas que logo ele não terá outra
saída senão a fuga. (FANON, 2005, p. 62)

Fazendo uso do inglês crioulo Lou ponta que o aprendeu, não como os ingleses o
falam, mas o embutido aos seus costumes, adaptando-o às suas necessidades para
denunciar sua própria outremização e a de seu povo, e essa forma de usar a língua do
colonizador mostra que na imitação a recusa à superioridade europeia acorre à medida
que o colonizado modifica o objeto imitado. E é com esse discurso modificado que a
escrava entra no tribunal, recobrando sua voz como negra e também como mulher:
“‘Você é Auntie Lou de...’ / ‘Eu sou Louise,’ anunciou Auntie Lou, cruzando os braços.
Ela nunca tinha visto tantos homens brancos num só lugar” KING-ARIBISALA, 2007,
p.150). Ela ridiculariza o Governador Murrain quando este pede que ela jure verdade
com a mão na bíblia, questionando se ela deveria jurar para Deus ou para ele, relegando
o poder dos dois ao mesmo patamar, numa clara crítica à postura superior do
Governador em relação aos negros, e retirando a bandana que protege seus cabelos,
deixando óbvio seu físico negro, ela encara os juízes ingleses, na defesa do Reverendo
Smithers, criticando o pré-julgamento deste, a compra de testemunhas, e também a
tortura aos negros:
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Ela apontou para John. “Todos vocês já o condenaram. Vocês querem


falar de justiça [...] Vocês nos espancam como animais, vocês compram
testemunhas negras porque vocês nos colocam medo. Vocês pensam
que porque somos negros nós somos estúpidos […] Deixe-me te falar
uma coisa: eu não tenho medo de você, homem branco. Governador,
Rei George, promotor ... nenhum de vocês […] Eu zombo de (KING-
ARIBISALA, 2007, p.152).

Revidando, a autonomia de Auntie Lou ultrapassa os limites opressores do sistema


colonial e ela traz à tona o sujeito africano, livre da falsa superioridade europeia,
passando de subalterno para sujeito autônomo. Auntie Lou revida o poder negro numa
sociedade colonial porque encara o processo colonizador com a certeza de quem ela é
(Louise), o que quer e o que sente (a liberdade de um sistema opressor que ela sabe que
é falsamente construído, e por isso ela ri deles para eles). O Reverendo Smithers é
condenado e morre na prisão para, mais tarde, descobrirem que o Rei da Inglaterra
concedeu-lhe perdão pelo crime de traição à coroa ao organizar a revolta escrava em
Demerara. Murrain acaba tendo seu castigo pela forma brutal que governou a sociedade
escrava: ele recebe ordens do próprio Rei para voltar para a Inglaterra, e é neste
contexto que Lou o abandona: “Não poderia ser verdade. Depois de tantos anos
servindo ao Rei de Demerara […] Instruído para voltar à Inglaterra no próximo navio
[…] Onde está Auntie Lou? […] Eu chamei por Auntie Lou!” (KING-ARIBISALA,
2007, p.167-168). Notamos que o revide de Auntie Lou se dá não por meio da luta
armada, mas pela dissimulação, a imitação burlesca, a espera, que derruba o poder
colonial, e no romance isso se concretiza quando Auntie Lou arranja para que, em mar,
Murrain morra:

O Governador se contrai de dor. O médico do navio mergulha a mão em


sua bolsa preta coloca sais aromáticos no nariz do Governador. O
Governador sussurra, ‘Auntie Lou. Eu a amo… eu… se ao menos… se
ao menos eu pudesse… (KING-ARIBISALA, 2007, p.179).

Conclusão
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Segundo Bhabha (1991, p. 184), “o objetivo do discurso colonial se concentra em


construir o colonizado como população de tipo degenerado, tendo como base uma
origem racial para justificar a conquista e estabelecer sistemas administrativos e
culturais”. Analisadas sob a ótica da teoria do revide, percebemos que as atitudes da
escrava Auntie Lou trabalharam em prol da reversão da ideologia do discurso colonial
apontado por Bhabha e considerando o desfecho da análise, pode-se concluir que a
resistência que tramita no campo da dissimulação tem maior eficácia que àquela
estruturada na violência. Costa (1998), embasada em relatos reais da real revolta de
Demerara em 1823, observa que existem diferenças qualitativas entre resistência e
rebelião, pois enquanto a primeira visa melhorar o sistema colonial, a segunda quer
derrubá-la:

Foi na resistência cotidiana que os escravos reafirmaram o apego a seus


“direitos” e testaram limites do poder senhorial. Foi na resistência
cotidiana que o ressentimento dos escravos cresceram, que laços de
solidariedade se fortaleceram, que líderes se formaram e que atos de
desafio individuais se converteram em protesto coletivo (COSTA, 1998,
p. 109).

Se assim considerarmos a teoria da resistência, é possível entender que o desfecho da


revolta de Demerara no romance, embora trágico (considerando a morte do Reverendo
Smithers e Quamina) tem um ponto positivo: com a resistência de Auntie Lou é
provável que uma nova era tenha se iniciado na colônia, que seu revide tenha
fortalecido as instâncias colonizadas e que à partir do episódio mais evidente de
resistência (o julgamento do reverendo) futuros protestos coletivos tenham se iniciado
(a ordem do retorno do Governador Murrain pelo Rei da Inglaterra aponta para tal) e a
colônia de Demerara tenha dado seus primeiros passos em direção à liberdade.

Referências

ASHCROFT, B; GRIFFITHS, G; TIFFIN, H. Key concepts in Post-colonial Studies.


London: Routledge, 1998.
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ASHCROFT, B. Post-Colonial Transformation. London: Routledge, 2001. p.18-44.


ASHCROFT, B; GRIFFITHS, G; TIFFIN, H. The Pos-Colonial Studies Reader.
London: Routledge, 1995.
BHABHA, Homi. K. A questão do ‘Outro’: diferença, discriminação e o discurso do
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BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. ÁVILA, Myriam, REIS, Eliana L. L. e
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BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da Teoria Pós-Colonial. Maringá: Eduem, 2005.
BONNICI, Thomas. Introdução ao estudo das literaturas pós-coloniais. Mimeses, v. 19,
n.1, Bauru, p.07-23, 1998.
COSTA, Emilia Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos
escravos de Demerara em 1823. Trad. BARRETO, Anna Olga de Barros. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
FANON, F. Os condenados da terra. Trad. ROCHA, Elnice A. e MAGALHÃES, Lucy.
Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005.
FIGUEIREDO, Eurídice. Construção de Identidades Pós-Coloniais na Literatura
Antilhana. Niterói: Eduff, 1998.
KING-ARIBISALA, Karen. The Hangman’s Game. London: Peepal Tree, 2007.
TODOROV, T. A conquista da América: a questão do outro. Trad. MOISÉS, Beatriz
Perroni. São Paulo: Martin Fontes, 1991.
YOUNG, R.J.C. Post colonialism: A Historical Introduction. Oxford: Blackwell, 2001.
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OS LIMITES (OU NÃO) DO ESPAÇO FEMININO NA POESIA DE ADÉLIA


PRADO E PAULA TAVARES

Érica Antunes Pereira (PG-USP/FAPESP)

Minha mãe nunca foi em Belo Horizonte e a vida dela foi um microcosmo.
(PRADO, Adélia, 1999, p. 12)

A redacção do Valério teve honras de ser lida em voz alta. Era assim:
Na minha casa a minha mãe faz tudo: cozinha, lava, limpa, trata de nós quando
estamos doentes e atura o meu pai.
A MÃE É MUITO ÚTIL.
(TAVARES, Paula, 1998, p. 61)

Ler Adélia Prado é enxergá-la em plena rotina em Divinópolis, interior de Minas


Gerais, Brasil, onde nasceu em 13 de dezembro de 1935 e ainda vive. Isso porque a sua
figura real não escapa tanto ao que descreve nos poemas: segundo Rodrigues (2001),
estudante de Letras e Jornalismo e conterrâneo da poeta, ela adora receber visitas e não
hesitou em, no dia do aniversário, mandá-lo entrar com uma porção de amigos na
cozinha, enchendo-lhes as xícaras de café e oferecendo-lhes biscoitos; da mesma forma,
Merij (2002) narra que Adélia foi capaz de, espontaneamente, em meio a muitos,
reclamar que a roupa de linho pinicava demais. E é assim que a vida da poeta aparece
refletida em sua arte, notada justo pela simplicidade peculiar, em que a carpintaria
rústica é aprimorada com toques do cotidiano.
Adélia se formou em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis em 1973,
quando contava trinta e nove anos de idade. Nessa época, já era, há tempos, uma senhora muito bem
casada com o bancário José de Freitas – o Zé, como carinhosamente o chama – e mãe de cinco filhos, três
deles adolescentes.
Seu ingresso no mundo da literatura se deu em 1973, ano de sua formatura, quando
enviou uma carta com uma porção de poemas a Affonso Romano de Sant’Anna (2000,
p. 17-18), também seu conterrâneo, que, tendo gostado, não perdeu tempo e comentou
sobre a poeta emergente com Carlos Drummond de Andrade.
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Não tardou muito, pois, para que o trio mineiro se reunisse e Drummond se ocupasse
de fazer chegar os originais de Bagagem à editora que o publicava. Desde então, Adélia
Prado caiu, também, nas graças de Sena Madureira, o editor, não levando mais que um
ano para que sua obra de estréia fosse lançada e para que o seu nome se tornasse
conhecido. Em 1976, quando a poeta esteve no Rio de Janeiro para o lançamento de
Bagagem, ficou hospedada em casa de Affonso Romano de Sant’Anna e Marina
Colasanti e conheceu vários escritores durante “uma rodada de amizades” organizada
por Rubem Braga em sua cobertura. Na noite de autógrafos, até Juscelino Kubitschek
compareceu. Em São Paulo, o lançamento aconteceu no Museu de Arte Moderna, tendo,
o evento, sido patrocinado por José Mindlin (SANT’ANNA, 2000, p. 18).
De Bagagem, seu livro de estréia, lançado em 1976, até o presente, Adélia Prado
participou de várias antologias, escreveu algumas peças teatrais e publicou mais treze
livros: O Coração Disparado (poesia, em 1978), Solte os Cachorros (prosa, em 1979),
Cacos Para Um Vitral (prosa, em 1980), Terra de Santa Cruz (poesia, em 1981), Os
Componentes da Banda (prosa, em 1984), O Pelicano (poesia, em 1987), A Faca no
Peito (poesia, em 1988), Poesia Reunida (reunião das obras poéticas publicadas até
então, em 1991), O Homem da Mão Seca (prosa, em 1994), Oráculos de Maio (poesia,
em 1999), Manuscritos de Felipa (prosa, em 1999), Prosa Reunida (reunião das obras
em prosa, em 1999), Filandras (prosa, em 2001), Quero Minha Mãe (prosa, em 2005) e
Vida Doida (reunião de parte de sua poesia, em 2006).
Paula Tavares – Ana Paula Ribeiro Tavares –, por sua vez, nasceu no dia 30 de
outubro de 1952, no Lubango, Huíla, província localizada ao sudoeste de Angola. É
filha de Maria Emília, de descendência portuguesa, e de Geraldo Agostinho, de origem
kwanyama. Desde os nove meses de idade, como era costume no contexto da situação
colonial, foi criada pela madrinha, parenta mais abastada, e da casa desta só saiu para
casar. A infância e a adolescência de Paula foram passadas, segundo ela própria narra
em e-mail (2004),
à solta pelas ruas. Com trabalhos que tinha a obrigação de efectuar,
rodeada de animais e plantas e dos cheiros das cozinhas e da roupa
lavada a corar ao sol. A adolescência, com as perturbações normais
entre a religião e a atenção à injustiça: um aprendizado.
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Contudo, mesmo tendo crescido em Angola, a educação que recebeu esteve toda
pautada nos hábitos e costumes portugueses, de modo que o seu contato com a cultura
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da terra natal se deu com um certo distanciamento.
Mais tarde, já adulta, ela conseguiu preencher tal hiato depois de realizar, segundo
relata Secco (2003, p. 177), “leituras e projetos de investigação histórica e
arqueológica”, “tanto na capital angolana, como em várias cidades do interior de
Angola”, isso tudo enquanto cursava História na Faculdade de Letras do Lubango,
atualmente denominada ISCED-Lubango. A graduação, porém, só foi terminada em
Lisboa, para onde se mudou com o intuito de aprimorar seus estudos. Em 1996, também
concluiu, pela mesma Universidade de Lisboa, o Mestrado em Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa.
Atualmente, tendo concluído o Doutoramento em História e Antropologia sobre
Angola na Universidade Católica de Lisboa, onde também leciona Literaturas Africanas
de Língua Portuguesa, continua a morar em Lisboa. Paula exerce a profissão de
professora desde os dezenove anos de idade, tendo passado por cadeiras como História
(no Ensino Secundário), Língua Portuguesa e Português a Estrangeiros.
Mesmo distante de seu país, a poeta
sempre trabalhou ligada à área cultural, tendo actuado como
profissional em diferentes áreas da cultura como a Museologia,
Arqueologia e Etnologia, Património, Animação Cultural e Ensino.
Participou em simpósios, congressos, comissões de estudo e
elaboração de inúmeros projectos da área cultural. Foi Delegada da
Cultura no Kwanza Norte, técnica do Centro Nacional de
Documentação e Investigação Histórica (hoje Arquivo Histórico
Nacional), do Instituto do Património Cultural. (Site da União dos
Escritores Angolanos).

Além da União dos Escritores Angolanos (UEA), Paula Tavares é membro da


Associação Angolana do Ambiente (AAA), do Comitê Angolano do Conselho
Internacional de Museus (ICOM), do Comitê Angolano do Conselho Internacional de
Monumentos e Sítios (ICOMOS) e da Comissão Angolana para a Unesco.
A participação de Paula Tavares nos movimentos em favor da independência
angolana se deu, segundo ela própria (2004), “já tarde, como todos os da minha geração
que ficaram no país e nas franjas possíveis: alfabetização, cartazes, poesia, leitura de
Marx a Mao-Tsé-Tung e mesmo Enver Hoxa, enquanto se sonhava com Che Guevara”.
Como se observa, a atuação de Paula é incisiva mesmo estando fisicamente longe de
seu país há tanto tempo. Em Angola, além do Lubango (província da Huíla), onde
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nasceu e viveu até 1992, morou, também, no Huambo (província do Huambo), no
Sumbe (província do Kwanza-Sul), em Benguela (província de Benguela) e em Luanda.
No total, Paula Tavares tem oito obras publicadas: Ritos de Passagem (poesia, em
1985), O Sangue da Buganvília (prosa, em 1998), O Lago da Lua (poesia, em 1999),
Dizes-me Coisas Amargas Como os Frutos (poesia, em 2001), Ex-Votos (poesia, em
2003), A Cabeça de Salomé (prosa, em 2004), Os Olhos do Homem que Chorava no Rio
(em parceria com Manuel Jorge Marmelo, prosa, em 2005) e Manual para Amantes
Desesperados (poesia, em 2007).
O espaço feminino, nas poéticas de Adélia Prado e Paula Tavares, costuma estar
atrelado a casa, ao lar, ao cercado, à cozinha, à faina doméstica. Em princípio, a
tendência é imaginar que tal fato caracteriza um reflexo da sociedade patriarcal, em que
o adágio “lugar de mulher é em casa” se torna imperativo. Nas obras de Paula, essa
idéia parece ter passagem em alguns poemas (embora na maioria das vezes o que se
observa é a igualdade de condições entre homens e mulheres), mas, nas de Adélia, as
figuras femininas parecem não carregar consigo o peso da submissão, ainda que,
normalmente, estejam inseridas no ambiente caseiro. Isso se deve, na concepção de
Rocha-Coutinho (1994, p. 42), ao dissertar sobre o posicionamento feminino perante a
sociedade, graças ao “poder que lhe foi concedido sobre este mesmo mundo (o da casa e
da família)”.
O poema “Solar”, de Adélia Prado, por exemplo, alude ao bucolismo da vida familiar
e descreve não só a simplicidade do cardápio composto de “arroz, feijão-roxinho, molho
de batatinhas”, mas também a riqueza que o gesto de cozinhar significa para a família.
Vejamos:
Minha mãe cozinhava exatamente:
arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.
Mas cantava. (PRADO, 1991, p. 151).

Por isso, embora a mãe cozinhasse “exatamente”, observa-se, neste seu ato, um zelo
extremado: o feijão era “roxinho” e o molho feito com “batatinhas”. Essa idéia é
reforçada pela conjunção adversativa “mas” empregada no terceiro e último verso, “Mas
cantava”, pois torna certa a alegria de vida da mãe, a sua satisfação quando da execução
das tarefas domésticas, sobretudo ao preparar os alimentos.
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Este poema parece comprovar o pensamento de Barros (1981, p. 12) quanto ao
espaço feminino, ao afirmar que “é no âmbito da refeição que a mãe exerce sua
autoridade e controle, determinando, dentro das possibilidades geradas pelo trabalho do
pai, o que irá compor a refeição e como esta será distribuída entre os membros da
família”. Com base nesta idéia, não há motivo para que a mãe, no caso do poema em
apreço, sinta-se, por um só instante, diminuída pelo fato de laborar somente em casa.
Ela parece ter ciência disso e, portanto, cantarola e se esmera no preparo dos pratos,
ainda que sejam triviais.
Finalmente, note-se que o título, “Solar”, sinônimo de mansão ou morada nobre,
parece bem apropriado, pois demonstra que, a despeito da simplicidade, do bucolismo e
do desprovimento de luxo, ali vive uma família feliz, e, por isso, tão grandiosa quanto
um solar.
A cozinha, no poema “As gentes de Mpinda e Mbanza Kongo”, de Paula Tavares, do
mesmo modo que no poema adeliano, surge representando o ambiente feminino, pois,
nela, “as mulheres tratam da gordura”, cuidam do preparo dos alimentos para a família.
Aqui, porém, os limites se estendem para além da cozinha, envolvendo a casa como um
todo e o trabalho que, para a manutenção desta, é necessário: “apanhar os frutos
maduros da palmeira”, colher a lenha, buscar a água, cuidar das crianças e dos velhos.
Vejamos:
As gentes de Mpinda e Mbanza Kongo
Colocaram nos braços as pulseiras
Beberam o vinho de palma
Andaram em círculo
Deixaram para as mulheres o trabalho
De apanhar os frutos maduros da palmeira.

Coro:
Se não consegues descansar, és escrava
Mandam-te à lenha
Mandam-te à água
Mandam-te aos frutos

Na cozinha as mulheres tratam da gordura


No quarto as mulheres tratam dos mais novos
Os velhos não comem mais carne
Sentam-se ao sol a desfiar palavras

Coro:
Se não consegues descansar, és escrava
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Mandam-te à lenha
Mandam-te à água
Mandam-te aos frutos (TAVARES, 2003, p. 20-21).

A divisão sexual do trabalho, entendida por Bruhns (1995, p. 85) como uma relação
direta “com o papel da mulher no processo reprodutivo”, é bastante intensa neste
poema. Essa bilateralidade laborativa se torna evidente logo na primeira estrofe, quando
às mulheres é reservado “o trabalho/ De apanhar os frutos maduros da palmeira”, ao
passo que, aos homens, cabe, apenas, beber “o vinho de palma”. Disso se pode inferir
que, se é próprio da natureza feminina gerar filhos, também o é a ocupação acerca das
atividades necessárias para a criação deles, caso das atividades domésticas.
Muito importante, ainda, em “As gentes de Mpinda e Mbanza Kongo” é a presença
do “Coro”, na segunda e na quarta estrofes, para revelar, por meio de versos que
oscilam entre a oração e o grito de revolta, as proporções do trabalho feminino: “Se não
consegues descansar, és escrava/ Mandam-te à lenha/ Mandam-te à água/ Mandam-te
aos frutos”. Desta feita, afirma-se pela existência de uma voz externa que denuncia a
submissão da mulher, já que a mesma é obrigada a cumprir toda uma ordem de tarefas
domésticas e, aparentemente, não tem voz para contestar.
Algo bem diverso acontece no poema “Ensinamento”, de Adélia Prado, que, embora
também apresente a cozinha como espaço exclusivamente feminino, nem por isso o
papel da mulher é visto como inferior ao do homem. Tanto é assim que o eu lírico
invoca a figura da mãe para mostrar que são os pequenos gestos os norteadores de um
bom relacionamento afetivo e a descreve em meio aos afazeres domésticos, arrumando
“pão e café” e deixando “tacho no fogo com água quente” para quando o marido
chegasse do trabalho. Vejamos:
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo. (PRADO, 1991, p. 116)
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Muito mais que valorizar a faina caseira da mulher, o eu lírico, neste poema, parece
caminhar para uma inversão de idéias, sublimando a posição feminina, que
normalmente, é vista como de menor importância. Em outras palavras, no momento em
que a mãe expressa a compaixão que sente pelo marido – “Coitado, até essa hora no
serviço pesado” –, torna certo que não se sente, nem por um momento, inferior ao sexo
oposto. Trata-se de uma mulher muito bem resolvida, absolutamente feliz com seus
afazeres, capaz de perceber a importância do trabalho do marido, sim, mas também do
seu, e, por meio dele, edificar a relação, demonstrar carinho pelos que ama.
É preciso notar, ainda, que o eu lírico, ao lembrar desse fato, afirma que, embora a
mãe achasse “estudo/ a coisa mais fina do mundo”, sabe que “Não é”, porque “A coisa
mais fina do mundo é o sentimento”, demonstrado, este, nos pequenos gestos maternos,
no simples ato de arrumar “pão e café”, de deixar o “tacho no fogo com água quente”
para que o marido, depois de um dia inteiro de trabalho, sinta-se acarinhado,
reconhecido. Só isso é suficiente, segundo o eu lírico, para provar que o amor, mesmo
jamais tendo sido mencionado pela mãe porque “palavra de luxo”, era vivido diuturna e
reiteradamente, caracterizando, assim, o maior “Ensinamento” que lhe poderia ser
legado.
No poema “EXACTO LIMITE”, de Paula Tavares, observa-se que o espaço
feminino está afeito ao “exacto limite” do “Eumbo”. Este, de acordo com Abranches
(1985, p. 275), compreende o local de convivência “sob o mesmo tecto”, mas também,
no sentido antropológico, muito mais do que uma família extensa, um grande grupo de
parentesco, que, funcionando ao mesmo tempo como célula produtora e célula de consumo,
controla os aspectos principais da distribuição do produto e agrega indivíduos com estatutos
servis, engajados no processo produtivo e por afeição no processo de consanguinidade.
Assim, além de um território circunscrito, pode-se imaginar, com Bezerra (1999, p.
53), que, “nesse poema, a voz poética volta-se para a rapariga traçando seus limites,
numa leitura que se reporta à cerimônia da efundula, quando a menina torna-se mulher”.
Traços como a demarcação dos limites, a mudança das vestes, o novo penteado e o uso
do cinto, bem amparam a idéia de que se trata, efetivamente, de um rito de passagem.
Vejamos:
A cerca do Eumbo estava aberta
Okatwandolo,
“a que solta gritos de alegria”
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colocou o exacto limite:
árvore
cabana
a menina da frente
sairam todos para procurar o mel
enquanto, o leite
(de crescido)
se semeava, azedo
pelo chão
comi o boi
provei o sangue
fizeram-me a cabeleira
fecharam o cinto:
Madrugada
Porta
EXACTO LIMITE (PRADO, 1985, p. 28).

Há, em “EXACTO LIMITE”, a contraposição do desejo de liberdade – “a cerca do


Eumbo estava aberta” – com a sua interdição – “fecharam o cinto:/ madrugada/ Porta/
EXACTO LIMITE”. Esta última expressão aparece três vezes no poema, e, tanto no
título, quanto no verso final, em letras maiúsculas, o que, de acordo com Bezerra (1999,
p. 53), além de ser um recurso visual para enfatizar sua importância, cria um elo de ligação
entre o título e o último verso do poema (verso que não termina por um ponto final), remetendo,
conseqüentemente, para a imagem de um círculo/espaço que se fecha, - idéia também presente
na imagem do cinto que se fecha (verso 16).
Finalmente, nota-se, no poema, a constância do emprego do sujeito indeterminado –
“saíram”, “fizeram-me”, “fecharam” – para demonstrar, talvez, que a mulher raramente
possui voz própria, limitando-se a obedecer o “exacto limite” do “eumbo” e a sofrer as
ações que lhe são impostas.
Tal submissão feminina, porém, seria posta à prova quando, num outro poema de
Paula, o sujeito poético “salta o cercado”, ou seja, assume as rédeas da própria vida e,
portanto, torna-se ciente de sua identidade feminina. Nesse sentido, válidas são as
palavras de Bezerra (1999, p. 49), para quem a escritura de Paula é voltada para o modo
“como as mulheres percebem o mundo em que vivem, explorando suas reações não só
ao modo como estas têm sido tradicionalmente representadas na literatura, mas também
aos aspectos do seu cotidiano ligados a uma tradição africana que as tocam mais
diretamente”.
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Desta forma, os aspectos mais comuns das poesias de Adélia Prado e Paula Tavares
vão desde o emprego de versos livres e da ausência rítmica até a vida humana do dia-a-
dia misturada com a religiosidade, a pureza e a inocência, o erotismo, o saudosismo, a
luta interior travada pelo sujeito poético. Em outras palavras, o fazer poético dessas
duas autoras compreende o povo e o cotidiano que o permeia, aproximando a escrita da
linguagem falada com o emprego reiterado de vocativos e de expressões populares. Há,
assim, uma flexibilidade temática circundante e enraizada no chão da província, capaz
de provocar, no leitor, uma aproximação tão grande que se torna impossível separar o
real do imaginário. De fato, ler a obra poética de Adélia Prado e Paula Tavares é
adentrar nas profundezas do menor gesto, tomá-lo para si e, por fim, dele se valer para
vislumbrar a própria vida.

Referências

ABRANCHES, Henrique. A Konkhava de Feti. 2. ed. Luanda: União dos Escritores


Angolanos, 1985, v. 2.
BARROS, Myriam Moraes Lins de. Testemunho de vida: um estudo antropológico de
mulheres na velhice. In: FRANCHETTO, Bruna (Org.). Perspectivas Antropológicas da
mulher 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
BEZERRA, Kátia da Costa. Paula Tavares: uma voz em tensão na poesia angolana dos
anos oitenta. Estudos Portugueses e Africanos, Campinas: UNICAMP, n. 33 e 34, p. 49-
58, 1999.
BRUHNS, Heloisa Turini. Corpos femininos na relação com a cultura. In: ROMERO,
Elaine (Org.). Corpo, Mulher e Sociedade. Campinas: Papirus, 1995, p. 71-98.
MERIJ, Ana <a.merij@uol.com.br>. Érica. Poesia Eternamente, 02 ago. 2002.
Disponível via lista <http://www.egroups.com/group/poesia_eternamente>.
PRADO, Adélia. Poesia Reunida. 3. ed. São Paulo: Siciliano, 1991.
__________. Prosa Reunida. 2. ed. São Paulo: Siciliano, 1999.
QUEM é quem: base de dados sobre os escritores, seus mundos e paisagens: Paula
Tavares. União dos Escritores Angolanos. Luanda, [s.n.: s.d.]. Disponível em:
<http://www.uea-angola.org/bioquem.cfm?ID=116>. Acesso em: 06 out. 2004.
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Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira
nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
RODRIGUES, Bernardo <bernardorodrigues@belohorizonte.com>. Serenata para
Adélia. Letras & Cia, 13 dez. 2001. Disponível na Internet via lista
<http://br.groups.yahoo.com/group/letrasecia/message/14908>.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Confluências: Os componentes da banda.
Cadernos de Literatura Brasileira – Adélia Prado. São Paulo: Instituto Moreira Salles,
p. 17-19, jun. 2000, v. 9.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. A Magia das Letras Africanas: ensaios escolhidos sobre
as literaturas de Angola e Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE
Graph: Barroso Produções Editoriais, 2003.
TAVARES, Paula. O Sangue da Buganvília. Praia-Mindelo: Centro Cultural Português,
1998.
__________. Ritos de Passagem. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985.
__________. Ex-Votos. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
__________. <apaulatavares@yahoo.com>. Re: pequena entrevista [mensagem
pessoal]. Mensagem recebida por <ericantunes@irapida.com.br> em 06 out. 2004.
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IDENTIDADE DIASPÓRICA EM SMALL ISLAND (2004), DE ANDREA LEVY:


RESISTÊNCIA E REAFIRMAÇÃO CULTURAL

Érica Fernandes Alves (UFAM)

Introdução

A literatura negra britânica, ou a literatura em inglês escrita por caribenhos, asiáticos


e africanos, e outros povos das ex-colônias britânicas tem uma origem relativamente
antiga, talvez tão antiga quanto o próprio império. Tais escritores têm mostrado as
relações culturais, econômicas, sociais e mesmo políticas existentes no império através
de sua tessitura. Porém, como ficará claro adiante, não se pode pensar em literatura
negra britânica verdadeira, sem pensar na chegada dos supostos primeiros imigrantes a
bordo do navio SS Empire Windrush em 1948, quando a cultura trazida por esses
imigrantes mistura-se com a cultura britânica dando nascimento ao que hoje chamamos
de multiculturalismo, entretanto, antes disso, alguns autores já eram conhecidos por
escrever sobre a relação do império e as colônias.
O nigeriano Ukawsaw Gronniosaw, também conhecido como James Albert (1705 –
1775), Ignatius Sancho (1729 – 1780), Olaudah Equiano (1745 – 1797), o africano
Ottobah Cugoano (1757 - ? ) são alguns dos nomes que representam os primeiros
escritores negros que publicaram sua obra denotando as mazelas sociais e humanitárias
relacionadas aos negros e escravos.
Atualmente, muitos escritores que tratam da temática pós-colonial têm seus
trabalhos premiados no cenário literário mundial. Andrea Levy nasceu em Londres em
1956, filha de jamaicanos. Seus pais fazem parte dos primeiros pioneiros caribenhos
que vieram para Londres a bordo do navio emblemático SS Empire Windrush, que
transportava cerca de quinhentos caribenhos, dos quais muitos haviam servido na
Segunda Guerra Mundial ao lado dos britânicos. Havia rumores de que os britânicos
não os deixariam desembarcar, mas eles conseguiram e mudaram o curso da historia
britânica, se tornando os primeiros imigrantes do século vinte que começaram a
transformar o Reino Unido em uma sociedade multicultural. As obras da autora são:
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Every Light in the House Burnin’ (1994), Never Far From Nowhere (1996), Fruit of the
Lemon (1999) todos sem tradução na língua portuguesa, e Small Island (2004), no
Brasil A Pequena Ilha, publicado pela editora Nova Fronteira em 2008.
Em Small Island vislumbramos a maneira como se relacionam negros e britânicos ao
terem que dividir o espaço que antes era apenas habitado por brancos. A partir dos
relatos dos quatro personagens centrais da trama, os jamaicanos Hortense e seu marido
Gilbert e os britânicos Queenie e Bernard, o leitor delineia o cenário da época em
relação a presença dos negros no Reino Unido. O objetivo desse artigo é verificar de
que maneira o personagem jamaicano Gilbert consegue fugir à discriminação racial por
qual é exposto demonstrando sua identidade diaspórica e mantendo sua cultura em meio
a uma sociedade fechada aos valores oriundos das culturas não europeias.

2- Identidade cultural de Gilbert

Gilbert Joseph revela um caráter avesso à assimilação dos costumes e tradições do


colonizador. Durante o desenrolar de suas ações percebe-se que sua identidade
jamaicana é ressaltada e que ele não faz questão de escondê-la ou disfarçá-la como sua
esposa o faz. O jamaicano procura integrar-se à sociedade britânica mantendo seus
costumes e tradições, mas encontra dificuldades em sustentar tal atitude. Ashcroft
(2001) argumenta que, quando o sujeito colonizado procura manter seus costumes e
tradições, não aceitando ser absorvido por aqueles do colonizador, ele está resistindo ao
poder colonial.
Uma característica peculiar e bastante presente na personagem de Gilbert é seu
comportamento típico de qualquer jamaicano. O modo de falar, as roupas e os gestos
denotam sua origem e sua tradição. Os jamaicanos são tidos como sujeitos brincalhões,
despojados e alegres, o mesmo pode-se dizer de Gilbert, que sempre procura ver o lado
bom de todos os fatos que acontecem com ele. Quando Hortense chega da Jamaica ele a
recebe com brincadeiras e piadas:

- Hortense, o que é que você tem dentro desse baú? Sua mãe?
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[...]
- Nesse baú eu tenho tudo de que vou precisar, obrigada Gilbert.
- Então você trouxe mesmo a sua mãe – Disse Gilbert. Deu aquela sua
risada, da qual eu me lembrava. Um estranho som de fungada saído da
parte de trás de seu nariz, que fazia reluzir seu dente de ouro. Eu ainda
estava sorrindo quando ele começou a esfregar as mãos e dizer:
- Bom, espero que tenha trazido goiaba, manga, rum e... (LEVY,
2008, p. 24-25).

Sendo um sujeito diaspórico, a personagem se encaixa em algumas das


características postuladas por Safran (1991 apud COHEN, 1998) no que diz respeito ao
mito sobre sua terra natal e sua relação com os membros do país que adentrou.
Lembrando as inferências de Safran sobre o sujeito diaspórico notamos que tais
indivíduos mantêm uma visão ou um mito sobre sua terra natal, pois compreendem que
não são totalmente aceitos na nova terra que habitam e, devido a isso, mantêm-se
parcialmente separados do resto da população, em outras palavras, uma espécie de
segregação é estabelecida pelo próprio ser diaspórico. O jamaicano mantém distância
dos britânicos porque nota que não é bem vindo no país devido a sua cor e origem e,
dessa forma, procura estabelecer o mínimo de contato possível com eles; Além disso,
sua terra natal é idealizada: ao falar sobre a Jamaica, Gilbert o faz com saudosismo,
relembrando as coisas boas provenientes de lá, como a comida, o clima e as cores
vibrantes; Outro aspecto que podemos salientar na caracterização de Gilbert, que
mantém correlato com as argumentações de Safran, é o fato de ele se relacionar de
várias maneiras com a terra natal buscando estar junto com outros jamaicanos que
habitam o novo país e sendo solidário a eles, estabelecendo assim uma ética de
solidariedade em relação ao seu igual.
O primeiro problema enfrentando por Gilbert no Reino Unido foi a diferença cultural
entre ele e seus superiores. Seus costumes oriundos da Jamaica eram deliberadamente
marginalizados e ridicularizados pelos soldados britânicos. Além disso, os negros
sofriam todo o tipo de insultos referentes à cor de sua pele. Por vezes, eram chamados
de ‘macacos’, ‘negrinhos’, ‘selvagens’, ‘crioulo’, ‘de cor’’, ‘preto’, dentre outros. Aos
poucos, Gilbert foi desenvolvendo uma espécie de filtro que o impedia de revidar aos
insultos desferidos contra si. A visão essencialista do branco o faz enxergar os negros
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como um bloco igual, sem características peculiares que os discerniam uns dos outros.
Para eles, todos os negros eram ignorantes, desprovidos de cultura e degenerados
sexualmente. Quase nenhum deles demonstrava interesse pelo ‘outro’, por sua origem e
cultura. De acordo com Figueiredo (1998, p. 65), o branco reage negativamente à
presença do negro desestabilizando sua subjetividade e, “enaltece as suas (do branco)
qualidades, os méritos eminentes da civilização que representa e insiste sobre os
defeitos, os deméritos do povo conquistado, seu atraso, sua pobreza, enfim, sua
inferioridade”. Gilbert se ressentia porque nenhum branco sabia localizar seu país no
mapa. Nenhum branco inteligente e educado nas melhores escolas era capaz de dizer
que havia ouvido falar de uma ilha chamada Jamaica. Enquanto a educação que Gilbert
recebera era direcionada a fazê-lo aprender tudo sobre a ‘pátria-mãe’, a educação do
branco mal mencionava a existência das colônias britânicas. Tudo isso fazia com que o
encantamento de Gilbert pelo Reino Unido se dissipasse ao poucos, pois o rapaz
constatava que a ‘pátria-mãe’, que tanto necessitava dos negros das Índias Ocidentais
para ajudar na guerra, não se importava com a Jamaica e seus soldados negros. A
consciência do jamaicano, um indivíduo diaspórico colonizado, acusa a ignorância do
branco em relação às suas próprias colônias, ou seja, o descaso e o desinteresse por algo
que lhes pertencia e que lhes gerava frutos:

Era inconcebível que nós, jamaicanos, nós, das Índias Ocidentais, nós,
membros do Império Britânico, não nos precipitássemos para defender
a Pátria Mãe quando essa fosse ameaçada. Mas diga-me: se a Jamaica
estivesse ameaçada, será que algum major, algum general, algum
sargento seria capaz de encontrar essa amada ilha? (LEVY, 2008, p.
142).

A crítica de Gilbert em relação ao descaso do Reino Unido para com suas colônias o
faz refletir sobre o modo de vida britânico e todas as fábulas contadas pelos britânicos
que viviam nas colônias. Em nenhum momento Gilbert inveja os costumes e cultura
britânicos, ao contrário, o jamaicano se ressente por não poder ser um jamaicano em um
país que ele amava a ponto de arriscar a própria vida em uma guerra para ajudá-lo. Vê-
se que Gilbert encarna aquele imigrante que tenta participar da sociedade majoritária,
mas que, devido ao preconceito dos membros dessa sociedade, acaba sendo segregado,
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contra sua própria vontade. Esse tipo de comportamento gerou um senso muito forte de
união entre os sujeitos diaspóricos, corroborando para o estabelecimento do chamado
‘community building’ entre os sujeitos minoritários presentes no ceio das comunidades
ditas hegemônicas e fechadas. Brah (2002) comenta que, nessas comunidades fechadas,
o sujeito dominante é responsável pela fabricação do ‘outro’, ou seja, responsável pela
fabricação e manutenção do mito de que o imigrante representa uma ameaça constante a
sua hegemonia e poder, dessa forma, cria mecanismos de defesa e de exclusão que
afastam os imigrantes do centro, até se tornarem objetos, ao invés de sujeitos.
Gilbert consegue um posto como aviador na guerra, porém, por ser negro, ele não
desenvolve tal função, sendo relegado a um cargo mais baixo: motorista. Mesmo a
contragosto o jamaicano se sujeita ao trabalho, passando por diversas humilhações
dirigidas a ele por seus superiores, soldados brancos e civis. Segundo Bhabha (1994),
através da civilidade dissimulada (sly civility), o colonizado resiste ao colonizador,
buscando conquistar o poder colonial sem conflito direto ou violência. Tal estratégia,
muitas vezes, não é consciente, mas está arraigada na consciência do sujeito colonizado
de uma forma que nem ele mesmo percebe que está resistindo. No caso de Gilbert, ele a
utiliza conscientemente, para supostamente aceitar o que o branco lhe diz, porém, essa
ação apenas o impede de entrar em conflito diretamente com o mesmo e preservar sua
identidade cultural e ainda solapar a autoridade colonial e toda a sua soberba.
Após alguns anos, com o fim da guerra, o rapaz embarca de volta para a Jamaica,
cuja grandeza e sofisticação já não mais o encantavam quanto antes. Do status de ilha
maior do Caribe, moderna e alegre, a Jamaica se torna para Gilbert, uma ‘pequena ilha’
apenas, emblema que remete ao título do romance:
Eu era um gigante vivendo numa terra do tamanho das solas dos meus
sapatos. Para onde me virasse, eu via o mar. As palmeiras que os
turistas achavam tão bonitas em todas as praias eram as grades da
minha prisão. O horizonte eram as fronteiras que me atormentavam
(LEVY, 2008, p. 206).

A Jamaica tornara-se uma prisão, que já não comportava mais os sonhos de


crescimento que Gilbert nutria em seu pensamento. Assim, como muitos outros
imigrantes que retornam, a personagem passa a relativizar sua terra natal. A todo o
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momento, ele compara os dois países e vê no país de origem, certa pequenez e


desvantagem, enquanto que o país que o recebeu como indivíduo diaspórico, é visto
como aquele que lhe pode proporcionar um futuro melhor.
Ao desembarcar novamente no Reino Unido, Gilbert não era o mesmo que
desembarcara ali há alguns anos, cheio de ilusões e fantasias em relação à metrópole.
Gilbert havia mudado consideravelmente, mas sua pele negra continuava a mesma.
Desta vez, o jamaicano sabia exatamente o que esperar dos britânicos e de sua
hospitalidade para com os negros. Nesse ponto, Gilbert reconhecia que o Reino Unido
também era uma ‘pequena ilha’, pois ainda estava longe de se estabelecer como um país
aberto às diferenças e à diversidade. Apesar de o país ser desenvolvido em vários
setores, como economia, educação e cultura, a democracia racial ainda configurava
como um dos grandes desafios a serem suplantados.
Diferente dos outros imigrantes que chegam à ilha pela primeira vez com suas
cabeças voltadas para cima, admirando a paisagem nova e desconhecida, Gilbert
mantinha sua cabeça voltada para baixo. Muitas vezes, o imigrante idealiza a terra para
onde está migrando e passa a observá-la com olhos de admiração. A partir do momento
em que se estabelecem na nova terra, muitos imigrantes sonham em se tornar parte
integrante da sociedade maior em que está inserido. Ashcroft et al. (1995) afirmam que
é o conceito de uma comunidade compartilhada, chamada por Benedict Anderson
(1983) de ‘comunidade imaginada’, que permite que as sociedades pós-coloniais
inventem uma imagem de si próprias, através da qual elas podem agir para se libertarem
da opressão imperialista. Em se tratando de comunidades diaspóricas, a idealização de
que a sociedade hospedeira se abrirá para o imigrante e ele poderá participar ativamente
dessa sociedade faz parte de uma das formas de resistência mais comuns. Brah (2002)
acrescenta que “uma combinação do local e do global é sempre um aspecto importante
das identidades diaspóricas” (BRAH, 2002, p. 195).
Quando desembarca no porto londrino, Gilbert vê algo que ele julga ser uma jóia,
reluzindo no chão. Ao se aproximar da suposta jóia, para qual ele já havia feito planos,
ele a vê se dissipar no ar em pequenos pontinhos pretos, constatando que ela não
passava de um pedaço de fezes de um animal rodeado por moscas. Essa passagem é
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bastante reveladora porque prenuncia as dificuldades enfrentadas no futuro pelos


sujeitos diaspóricos naquele país avesso a negros. Será que os outros imigrantes negros
estavam preparados para o futuro que a ‘pátria-mãe’ reservara para seus ‘filhos’ negros?
Gilbert sabia que era o momento do Reino Unido repensar o futuro e as relações raciais
que configuravam a mente dos britânicos, por isso sua insistência em não ser assimilado
pelos costumes deles e sim integrar-se à sociedade, mantendo sua identidade cultural
intacta. Apesar de sua obstinação em não se deixar marginalizar ou mesmo, perder sua
identidade, Gilbert reconhecia que suas opções como indivíduo diaspórico eram
restritas.
Após dormir em lugares degradantes, sem conforto nenhum, Gilbert retorna à casa de
Queenie, uma mulher branca que se tornara sua amiga enquanto ele servia ao exército
britânico. Ela lhe aluga um quarto, não muito melhor do que aqueles que ele havia
encontrado naquele momento, mas, mesmo assim ele o aceita, pois sabe que seria difícil
encontrar outro quarto que poderia ser alugado para um negro em toda a Londres. O
relacionamento de amizade que Gilbert achava existir entre ele e Queenie dá lugar a
uma exploração que a britânica insiste em empregar quando se dirige ao jamaicano.
Gilbert já não era mais considerado um amigo, mas um empregado subalterno, que se
responsabilizaria pelos pequenos trabalhos que precisavam ser feitos na pensão de
Queenie. Apesar de a britânica necessitar do dinheiro que os negros lhe pagavam do
aluguel, ela os tratava como seres inferiores e marginais:

O aluguel que Queenie nos cobrou-me fez limpar os ouvidos para


perguntar de novo. [...] Então, quando fui lhe entregar o aluguel da
primeira semana, no sábado, ela me disse que alguém tinha deixado a
porta aberta por tempo demais. No dia seguinte, quis que eu soubesse
que alguém batera a porta com força demais. Alguma coisa estava
cheirando mal em um dos quartos. Alguém estava fazendo barulho
demais. Eu precisava dizer aos rapazes para não deixarem a luz acesa.
Já disse aos rapazes para manter os quartos limpos? (LEVY, 2008, p.
218, grifos meus).

O modo como os brancos viam Gilbert faziam-no encolher-se, esconder-se em seu


íntimo. Figueiredo comenta que o olhar do branco é vital para a construção do caráter
do negro: “O olhar do branco o fixa, o confina. Esperam dele um comportamento não de
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homem, mas de negro. E o que é o negro senão um constructo, ou seja, uma construção
cultural do branco?” (FIGUEIREDO, 1998, p. 68, grifos do autor) Apesar da escravidão
já ter sido abolida há muito tempo o negro é reconhecido como um ser inferior, um
servo. A partir disso, o negro passa a ter uma visão negativa de si próprio, processo
extremamente neurotizante, que atinge a psique do indivíduo.
Em sua procura por emprego na cidade de Londres, a única vaga que o jamaicano
encontra é a de motorista dos correios. Ao invés de se entristecer por estar
desempenhando uma função subalterna e não digna de suas qualidades, Gilbert fica
satisfeito, pois antes de conseguir o emprego, já havia recebido vários ‘nãos’ de outras
empresas.
As estratégias utilizadas pelo império britânico durante a conquista de muitos
territórios continuam a vigorar no Reino Unido: o supervisor de Gilbert ordena que ele
faça seu trabalho sem questionar, mesmo que o questionamento tenha fundamento.
Submisso, pois sabia que poderia perder seu precioso emprego por causa de uma
discussão infundada, Gilbert segue seu caminho, sem questionar mais o preconceito que
se instaurara em seu ambiente de trabalho. Porém, aquele dia estava longe de estar
terminado e Gilbert ainda teria que enfrentar aviltamento ainda maior por parte dos
britânicos. Ao chegar a seu destino, o jamaicano pede ajuda para localizar os malotes
que deveria transportar, mas, um grupo de funcionários que trabalhava na estação
começa a zombar dele, chamando-o de ‘ladrão’, ‘negrinho’ e ‘crioulo’. Gilbert responde
rispidamente ao homem que o agride verbalmente, sendo agarrado em seguida. O
homem insulta Gilbert e pede para ele repetir a ofensa que havia feito ao homem
branco. Covardemente, Gilbert se retrai e, não querendo agir de forma violenta, como o
branco o estava fazendo ele age de forma submissa.

- Eu não disse nada, cara. Nada. – E então me encolhi abjetamente até


minha subserviência fazer aquele homem me soltar.
- Agora que toquei em você vou ter que lavar a porra das mãos –
disse-me ele, empurrando-me para longe.
Fiquei ali, cabisbaixo como um cão que apanhou, enquanto aquele
homem dizia:
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- Este seu trabalho deveria estar sendo feito por ingleses decentes –
Mantive os olhos cravados nos pés dele enquanto ele meneava o
queixo: Ali, naquele carrinho. Agora pega as suas coisas e dá o fora
daqui (LEVY, 2008, p. 314, grifos meus).

Embora Gilbert discordasse internamente do modo como é tratado, ele se posiciona


como um sujeito marginal, pois sabe que, naquele momento não deve questionar a
atitude do homem branco. Sua atitude, embora aparentemente seja de subserviência e
aceitação, configura uma espécie de estratégia para evitar a violência iminente, caso ele
revidasse diretamente. Sabe-se que o colonizador geralmente se portou de maneira
violenta e inescrupulosa para dominar e manter seu domínio sobre os sujeitos
colonizados, sua atitude é ambivalente, pois, ao mesmo tempo em que acusava os
nativos de serem degenerados e selvagens, era o colonizador que se utilizava da força
bruta para sobrepujar o colonizado. Gilbert percebe que a violência só fará com que os
homens que o insultam confirmem que ele é um selvagem, assim, passivamente, ele
resiste pacificamente. Ashcroft (2001) afirma que, as manifestações sutis de resistências
são aquelas que mais surtem efeito, porque são mais difíceis de serem combatidas pela
ideologia dominante.
A vida de Gilbert no quarto alugado da velha mansão de Queenie se torna
absurdamente impossível após várias discussões e mesmo lutas corporais com o marido
da britânica. Enquanto discute abertamente com o recém chegado, Gilbert questiona
várias vezes a sua soberania e sua soberba em relação aos negros; porém, o homem
parece desconhecer que ele está sendo racista, na verdade, ele pensa que negros e
brancos não deviam se misturar, mas que tal atitude não é racista, apenas normal.
Quando Queenie pede ao casal jamaicano para adotar seu bebê, Bernard e Gilbert
novamente começam a discutir e Gilbert questiona os valores de Bernard, como um
sujeito superior apenas por sua cor dérmica:

- Sabe qual é o seu problema, cara? – perguntou – A sua pele branca.


Você acha que ela torna você melhor do que eu. Acha que ela lhe dá o
direito de mandar num homem negro. Mas sabe o que ela o deixa?
Quer saber o que a sua pelo o deixa, homem? Ela o deixa branco. Só
isso, cara. Branco. Nem melhor, nem pior do que eu... apenas branco.
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[...]
- Será que eu devo ser o seu criado e você o senhor para sempre? Não.
Pare com isso, cara. Pare com isso agora. Nós podemos trabalhar
juntos, sr. Bligh. Não está vendo? (LEVY, 2008, p. 518).

Nesse momento, o jamaicano expõe abertamente sua posição em relação a sua


marginalização, não aceitando ser taxado de inferior apenas por sua aparência. Agindo
dessa forma, Gilbert revela sua subjetividade e desmistifica a ‘brancura’ como analogia
de tudo o que é superior. Com seu discurso despojado de preconceitos, Gilbert
desconstrói a ideia de que por causa da cor de sua pele ele é ignorante e aculturado e
que o branco é o detentor do conhecimento e da soberania. O jamaicano não aceita ser
desprezado por causa de sua cor e convida Bernard a esquecer as diferenças entre eles,
como forma de aceitação das diferenças existentes. Percebe-se nitidamente a proposta
do hibridismo: a abertura para o ‘Outro’, para o diferente.
Suas tentativas são frustradas, já que Bernard não conseguia compreender o sentido
de tudo aquilo. Bernard é o reflexo do ‘analfabetismo da imaginação’, quando se fecha
para as outras culturas e deixa-se assimilar totalmente por algo que ele crê ser correto,
ou seja, Bernard faz parte das “culturas que se fecham em determinadas funções,
[culturas] que lêem o mundo de um único modo, [...] uma recusa total, uma dificuldade
total para ler o mundo de qualquer outro modo, para fazer qualquer outro tipo de ajuste”
(Harris, 1989, apud SOUZA, 1997, p. 76). Cansado de lutar por seus direitos e contra o
preconceito, Gilbert decide partir daquele lugar levando o bebê de Queenie, pois, assim
como Hortense, ele sabia que a criança, por ser negra, só seria maltratada e
marginalizada como ele, com o agravante de que ela é britânica:

- Hortense – disse ele. – O que podemos fazer, o que podemos fazer?


Não posso simplesmente ir embora. Deixar aquele bebezinho de cor
sozinho neste mundo cheio de pessoas como o Sr. Bligh. Ele e todos
os da sua laia. Que tipo de vida aquele homenzinho teria? Malditos
sejam eles. (LEVY, 2008, p. 519).

Gilbert, que a princípio se mostra um sujeito que aceita a objetificação, por ter receio
de desencadear uma série de consequências negativas para si próprio caso revidasse aos
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maus tratos que recebe por parte dos brancos, acaba revelando sua soberania de caráter
em relação aos mesmos, que se julgavam superiores. O futuro do casal e da criança é
incógnito, mas infere-se que sua predisposição em aceitar as diferenças que os rodeiam,
os tornam mais fortes e mais seguros em sua agência. Sabe-se que as condições sociais
não foram favoráveis à permanência do negro no Reino Unido, logo após o fim da
guerra. De acordo com Hall (2006),

Jovens rapazes afro-caribenhos são altamente vulneráveis ao


desemprego e ao baixo desempenho educacional, são
desproporcionalmente presentes entre os excluídos da escola e a
população prisioneira e são o objeto mais frequente das detenções em
operações de blitz policial (HALL, 2006, p. 65).

Gilbert e Hortense são uma metonímia de todos os negros que lutam por condições
melhores, que respeitam a alteridade e rechaçam a outremização. Sua reação ao
preconceito solapa a hegemonia branca e seus pressupostos ideológicos baseados em
conceitos hierarquizantes de ‘raça’ e ‘soberania’. Ilustrando a situação dos primeiros
sujeitos diaspóricos que adentram o Reino Unido em busca de oportunidade e
reconhecimento, o casal jamaicano demonstra que o negro foi fundamental para a
construção atual da verdadeira identidade multicultural britânica.
A hegemonia e o monolitismo do branco representados por Queenie e Bernard no
romance Small Island são solapados pela agência das personagens híbridas Gilbert e
Hortense. Cohen (1998, p. 134) afirma que a migração e a criação de diásporas foram
responsáveis pelo movimento da margem para o centro, além disso,

A identidade grupal pode permanecer forte e mesmo ser reforçada, em


resposta à diminuição do espaço entre os povos. Esse espaço
permanece e sua característica tem de ser explorada se quisermos
compreender não só como somos parecidos e como já não podemos
ignorar um ao outro, mas também, como as nossas diferenças
permanecem profundas e, por vezes, insuperáveis.

Aos poucos, as personagens negras do romance vão desconstruindo a ideologia


binária essencialista que o branco persiste em utilizar. Servindo-se de um discurso
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totalmente ideológico, o branco articula a forma de agir e comandar os considerados


‘marginais’.

Conclusões

Gilbert é a personagem que representa a simplicidade e informalidade do povo


jamaicano. Em geral, a cultura e costumes jamaicanos difundidos ao redor do mundo
revelam o caráter informal, alegre e irreverente do povo. Gilbert não foge dessa
perspectiva. Aliás, essa é a característica que melhor descreve seu caráter. Seus gestos,
modo de se vestir e de falar refletem a maneira como o jamaicano estava ligado à sua
cultura nativa.
Gilbert sustenta o sonho de morar no Reino Unido, porque percebe que sua ilha é
pequena demais para seus sonhos. Ele deseja encontrar um bom emprego, firmar-se
como cidadão e, posteriormente, estudar e se tornar um advogado. O jamaicano percebe
que esses desejos dificilmente se realizariam a partir do momento que sua cultura se
choca com a cultura da ‘pátria-mãe’. Apesar de não ter recebido educação formal como
a que Hortense recebeu, Gilbert tem uma percepção muito maior do racismo em que a
sociedade britânica está imersa e de como ele seria tratado naquele país. A partir dessa
descoberta, Gilbert reflete sobre o Reino Unido e descobre que aquele país também era
uma pequena ilha, por estar muito fechada às transformações sociais pelas quais o
mundo estava passando.
Apesar de se dar conta de sua posição marginal naquela sociedade, de ser atacado
com palavras violentas e racistas, de ocupar cargos ínfimos e morar em um lugar
deprimente, Gilbert sustenta sua identidade cultural. O jamaicano procura encarar as
dificuldades de frente, fazendo galhofa dos problemas e dificuldades que o assolam por
causa de sua cor, evitando um confronto direto e violento com o europeu, apesar de que,
em alguns momentos, a violência parece ser o único subterfúgio que resta para lutar
contra a exclusão social.
O jamaicano rejeita a imposição da dominação do outro. De forma pungente, ele diz
não ao racismo e à marginalização baseadas em um único arcabouço: a cor dérmica.
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Mesmo sem receber compreensão do britânico, Gilbert impõe sua identidade no


contexto de marginalização em que está inserido, questionando o motivo que faz com
que o britânico se sinta superior a ele. O jamaicano abre espaço para que os britânicos
entrem em sua vida, propondo uma negociação para que ambos possam viver em paz.
Percebendo que o britânico não estava disposto a receber o negro em sua vida,
Gilbert aceita ficar com a criança híbrida, abraçando a causa do excluídos, dos
marginalizados. Dessa forma, observa-se que Gilbert é um homem corajoso, que
enfrenta as dificuldades sem titubear, propondo-se a vencer os desafios, mesmo que isso
signifique criar o filho de uma mulher branca britânica. O que isso poderia causar em
sua vida é uma pergunta que continua incógnita, mas concluímos que essa aceitação
demonstra que seu caráter refuta a ideologia assimilacionista e binária que o branco
insiste em adotar. Sob esse enfoque, finalizamos afirmando que o negro se mostra muito
superior ao branco, mesmo o branco não aceitando tal fato.

Referências

ASHCROFT, B. Post-Colonial Transformation. London: Routledge, 2001, p. 18 – 44.


ASHCROFT B. et al. The Post colonial Studies Reader. London: Routledge, 1995.
BHABHA, H. K. The location of culture. London: Routledge, 1994.
BRAH, A. Cartographies of Diaspora: Contesting Identities. London: Routledge, 2002.
COHEN, R. Global Diasporas: An Introduction. Washington: UCL Press, 1998.
FIGUEIREDO, E. Construção de Identidades Pós-Coloniais na Literatura Antilhana.
Niterói: Eduff, 1998.
LEVY, A. A pequena ilha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
SOUZA, L.M.T.M. O fragmento quântico: identidade e alteridade no sujeito pós-
colonial. In: Letras: Alteridade e heterogeneidade. Santa Maria: UFSM. Jan/Jun, 1997,
p. 65-81.
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LEITURA COMPARTILHADA: UMA EXPERIÊNCIA COM BENTO-QUE-


BENTO- É-O-FRADE e HOJE TEM ESPETÁCULO: NO PAÍS DOS PREQUETÉS

Etiene Mendes Rodrigues (FFM/FIP)

Introdução

O processo de formação do leitor, a partir da primeira fase do ensino fundamental


constitui-se cada vez mais um desafio. Está claro que a política de distribuição de livros
para escolas, sem um trabalho de formação com os professores e demais mediadores de
leitura não tem surtido o efeito desejado. Comprova esse fato o abrangente projeto
federal, denominado Literatura em minha casa, que vigorou a partir de 2002.
Pontualmente, muitas experiências significativas foram realizadas com a coleção, que
trouxe, inegavelmente, obras importantes de diferentes gêneros literários. Quando nos
aproximamos de professores de escolas públicas e particulares percebemos que as
leituras literárias muitas vezes só são valorizadas no que trazem de conteúdo a ser, de
um modo ou de outro, ser ensinado. E mesmo um olhar sobre as obras “paradidáticas”,
indicadas pelas escolas particulares, deixa entrever a mesma concepção. Por outro lado,
experimentos realizados por diferentes pesquisadores em escolas públicas revelam que,
quando se aborda a obra literária a partir de uma metodologia que privilegia a relação
texto e leitor, o envolvimento de crianças e adolescentes chegar a ser surpreendente 1.
Nesta comunicação, relataremos uma experiência de leitura literária, de curta
duração, realizada numa escola pública de Campina Grande, na Paraíba, com alunos
extremamente pobres. As obras trabalhadas foram Bento-que-bento-é-o-frade e Hoje
tem espetáculo: no país dos Prequetés, de Ana Maria Machado; este último integra o

1
Bons exemplos desse tipo de experiência estão relatados nos trabalhos de: SANTOS, Kléber
José Clemente dos. O balé dos canibais: leitura de contos de Moacyr Scliar e vivências de aula.
Dissertação/Mestrado. POSLE – UFCG, 2007; MOURA, Fernanda Chaves Bezerra. Brincando com a
bicharada: a leitura de sextilhas e folhetos no ensino fundamental I. Dissertação/Mestrado. POSLE –
UFCG, 2009; SOARES, Kalina Lígia Pereira. Da leitura do espaço ao espaço da leitura: um estudo de A
cama, de Lygia Bujunga Nunes. Dissertação/Mestrado. POSLE – UFCG, 2008
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acervo da coleção Literatura em minha casa. Metodologicamente, serviram-nos de


apoio as reflexões de Bordini & Aguiar (1988), quando tratam do método criativo e
recepcional; as inúmeras sugestões de atividade com o texto literário sugeridas por
Resende (2007); e Colomer (2007), quando elabora o conceito de “leitura
compartilhada”, e que nos foi útil nesse momento de reflexão sobre o trabalho
desenvolvido. Os resultados, embora não possam ser mensurados de modo quantitativo,
revelaram um envolvimento praticamente de todos os alunos, uma participação e uma
capacidade de reflexão que nem sempre se espera de alunos de escolas públicas.
Ressalte-se também o modo como souberam acionar suas próprias experiências para
dialogar com o texto ficcional.

1. O projeto “Sala de leitura”

A prefeitura municipal de Campina Grande, na Paraíba, implementou, em 2004, nas


escolas públicas municipais, o projeto intitulado “Sala de leitura”. Para efetivação de
parte dos trabalhos, o projeto contou com uma coordenadora, um orientador e doze
estagiárias, que eram alunas de Letras e Pedagogia das Universidades Federal de
Campina Grande e Estadual da Paraíba. O projeto tinha como objetivo fazer com que a
literatura fosse levada aos alunos que cursam da alfabetização à quarta série do Ensino
Fundamental, de forma a despertar prazer e gosto pela leitura literária. Para alcançar
esse objetivo, as estagiárias desenvolviam um trabalho com os alunos, mas que também
era acompanhado pelas professoras de cada turma, que consistia em contar e ler
histórias infantis para as crianças, além de outras atividades de caráter lúdico. Na
qualidade de estagiária, tivemos a possibilidade de desenvolver trabalhos com alunos de
três escolas.
Para que os trabalhos fossem efetivados, a Secretaria Municipal de Educação
montou nas escolas uma Sala de leitura. Tratava-se de uma sala geralmente ampla, bem
arejada e composta por mesas, sofás, tapetes, almofadas e várias estantes repletas de
livros; um espaço, portanto, bem aconchegante e convidativo a atividades de leitura e
criação.
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Realizada em uma turma de 4ª série do Ensino Fundamental, a experiência que ora


relataremos teve duração de dois meses – entre agosto e setembro de 2004. Vale
salientar, no entanto, que durante esses dois meses tivemos em torno de quatro feriados,
e que os trabalhos aconteceram, de fato, em quatro encontros; sempre às segundas-feiras
e duravam em torno de 30 a 40 minutos – das 13:30 às 14:00/14:10.
Localizada num bairro pobre da cidade, a Escola acolhia crianças do mesmo bairro e
de bairros vizinhos. A turma com a qual trabalhamos as obras de Ana Maria Machado,
era relativamente homogênea: os poucos mais de quarenta alunos tinham entre 9 e 11
anos de idade, gostavam das mesmas brincadeiras, e já haviam desenvolvido um certo
gosto pela leitura. Pudemos chegar a essas informações através de conversas com a
professora da turma e com os alunos durante os nossos encontros e também através de
conversas travadas nos corredores da Escola. Os trabalhos foram realizados na Sala de
leitura da referida escola, quase sempre no tapete, em meio às almofadas.

Os procedimentos adotados nessa experiência foram, basicamente, leitura oral das


obras, discussões, brincadeiras e encenação. Por fim, fizemos uma avaliação oral do
trabalho, em que os alunos, a professora e a estagiária puderam manifestar nossas
opiniões acerca do trabalho realizado.

2. As obras

Bento-que-Bento-é-o-frade narra a história de Nita, uma garota que, numa


brincadeira de “bento-que-bento-é-o-frade” com seus amigos, começa a questionar a si e
aos outros sobre o porquê de determinadas convenções e, também, sobre o sentido das
palavras. Nita, no intuito de encontrar respostas para seus questionamentos, sai em
viagem, e acaba conhecendo vários lugares e “pessoas”, como a floresta – lugar onde
encontra os Prequetés –, e um campo onde ela encontra várias pessoas – homens,
mulheres e crianças – trabalhando em regime de mutirão. No final da história, Nita volta
para seus amigos para contar-lhes o que havia aprendido com a viagem que fizera. Só
que, para surpresa da garota, seus amigos também aprendem algo significativo em sua
ausência.
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Hoje tem espetáculo: no país dos Prequetés, de 1978, é o título que lança Ana Maria
Machado no mercado editorial. Trata-se de uma versão, em teatro, de Bento-que-bento-
é-o-frade, publicada em 1979. As duas obras têm, portanto, o mesmo enredo, e mesmos
personagens. O que difere, basicamente, é a presença do narrador, na segunda obra, e
ausência deste na primeira. Contudo, Bento-que-Bento... trazia um número significativo
de discurso direto, o que favorecia a leitura em grupo, como a participação de vários
alunos na condição de personagens.
Autora que conta atualmente com mais de cem títulos publicados e alguns prêmios
ao longo de sua carreira, Ana Maria Machado, já nesta primeira obra, inova no campo
da literatura infantil brasileira quando nos oferece um modo de representação da
infância que não se sujeita passivamente aos mandos e convenções dos adultos. Aqui
fica clara a influência lobatiana, sobretudo de personagens como a boneca Emília.

3. A experiência – primeiro encontro

Antes de iniciarmos a leitura de Bento-que-bento-é-o-frade e Hoje tem espetáculo:


no país dos Prequetés, mantivemos uma conversa com a turma, a fim de sondar as
preferências dos alunos no que se referia à leitura: uns disseram gostar mais de poesia,
outros de narrativa, sobretudo as de Monteiro Lobato. Quando questionei sobre o que já
haviam lido de Lobato, a maioria foi unânime em responder Reinações de Narizinho,
Memórias da Emília e O Pica-Pau Amarelo.

Após esse primeiro contato, apresentamos a obra que iria ser trabalhada, através de
um pequeno resumo: “Bento-que-bento-é-o-frade narra a história de Nita, uma garota
que, no intuito de encontrar respostas para seus questionamentos sobre as relações
impostas entre as pessoas, sai em viagem, e acaba conhecendo vários lugares e
“pessoas”. No final da história, Nita volta para seus amigos para contar-lhes o que havia
aprendido com a viagem que fizera”.

Nesse momento, as crianças manifestaram um grande entusiasmo, sobretudo, porque


tomaram conhecimento de que o livro se inicia com uma brincadeira 2. Vejamos:

2
Bento-que-Bento-é-o-frade é o nome da brincadeira atribuído no Estado de São Paulo ao que,
em algumas regiões do país, é conhecida por Boca de forno.
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1. Bento-que-bento-é-o-frade!
2. Frade!
3. Na boca do forno!
4. Forno!
5. Cozinhando um bolo!
6. Bolo!
7. Fareis tudo o que seu mestre mandar?
8. Faremos todos!
9. E quem não fizer?
10. Levará um bolo...
(MACHADO, 1990 p. 09)

Um aluno, inclusive, disse que já havia lido o livro, e sabia onde tinha outros iguais
àquele. Então, ele foi até uma das estantes da sala e trouxe para a turma dez exemplares
de Hoje tem espetáculo: no país dos Prequetés.

Agrupamos os alunos em duplas e em trios, de forma que cada grupo estivesse de


posse de um exemplar do livro. Com os alunos já organizados, iniciamos a leitura de
Bento-que-bento-é-o-frade. Nesse primeiro encontro, a leitura em voz alta foi realizada
por mim, e acompanhada pelos alunos. No capítulo inicial da obra, temos a
apresentação da personagem principal – Nita, uma personagem muito questionadora.
Os primeiros questionamentos de Nita dizem respeito ao sentido que as palavras
podem ter, mais especificamente as palavras que foram usadas pelo mestre ao dar a
primeira ordem, a saber: “Então cada um imita um bicho sem barulho...” (MACHADO,
1990, p. 03). Nita, ao contrário das outras crianças, entende a ordem como sendo “imitar
um bicho que não faça barulho”, e não o processo de imitação de algum bicho sem fazer
barulho. Esse é o primeiro dos muitos confrontos que virão, com a continuidade da
brincadeira. Já aqui, Nita mostra-se uma garota mais atenta ao sentido das palavras do
que o restante do grupo. A seguir, ela contesta o resultado da brincadeira, e defende seu
ponto de vista, já que estava preste a ganhar um “bolo”. Observe:
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- Um bolo à-toa, um bolinho só, de leve, na mão – insistiu Zé.


- Não, não e não! – teimou Nita. – Eu sei que é brincadeira e não
dói. Mas é que eu fiz tudo o que seu mestre mandou, fiz direito,
só que fiz do meu jeito.
(Idem, p. 09 – grifo nosso)

Após a leitura, foi suscitada a discussão a partir de algumas questões que estavam
postas no capítulo lido, tais como: se eles tinham ou não conhecimento acerca da
brincadeira que dá título à obra – bento-que-bento-é-o-frade; se, na hora de brincar,
havia desentendimentos como aquele colocado no livro. Não foi surpresa para mim
quando eles disseram não conhecer a brincadeira. Esse fato pode ser explicado pela
seguinte razão: bento-que-bento-é-o-frade é o nome dado à brincadeira no estado de São
Paulo. Entretanto, quando falei que ela tinha uma versão nordestina, e que levava o
nome de “boca de forno”, alguns alunos disseram que conheciam, e que inclusive já
haviam brincado com os amigos, na rua da casa onde moravam. A turma só foi unânime
em dizer que conheciam a brincadeira quando um aluno se manifestou e falou que a
brincadeira também começava com:

11. Abacaxi?
12. Xi!
13. Maracujá?
14. Já!
15. Se eu mandar?
16. Vou!
17. E se não for?
18. Apanha!

Esta é uma das versões da brincadeira em Campina Grande, cidade que fica
localizada na região da Serra da Borborema, no Estado da Paraíba. Nesse momento as
crianças sentiram-se motivadas e quiseram brincar. Partimos, então, para a brincadeira.

Terminado o momento de brincadeira, prosseguimos com as discussões. Agora,


acerca das confusões suscitadas na hora de brincar. Quase todos os alunos disseram que,
quando a “turma” se reunia para brincar sempre havia discordâncias quanto à
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brincadeira a ser escolhida, mas que esse impasse não demorava muito e que era
resolvido com a escolha de várias brincadeiras, de forma a satisfazer a vontade de todos
os participantes.

Nesse encontro, ainda discutimos as ilustrações que fazem parte do primeiro capítulo
dos livros, a partir de uma comparação entre Bento-que-bento-é-o-frade e Hoje tem
espetáculo: no país dos Prequetés. De acordo com as falas dos alunos, percebi que eles
simpatizaram mais com as ilustrações do primeiro título, vejamos alguns depoimentos:

Os desenhos do livro da senhora [BBF] são mais bonitos;

Os meninos do outro livro [BBF] são mais parecidos com criança;

O Prequeté de Hoje tem espetáculo... parece um palhaço, e não um boneco


de pau.

Embora em preto e branco, a simpatia dos alunos pelas ilustrações de Eva Furnari,
em Bento-que-bento-é-o-frade, foi praticamente unânime. Isso deve-se ao fato de que,
como eles mesmos afirmaram, os personagens estão desenhados de forma mais realista,
o que proporcionou uma certa identificação. Finalizadas as discussões sobre as
ilustrações, encerramos o primeiro encontro.

3.2. Segundo encontro

No segundo encontro, no intuito de dar continuidade ao trabalho, procedemos da


seguinte forma: retomamos ao capítulo anterior através de perguntas como: “quem
lembra o que foi lido no encontro anterior?”; “o que vai acontecer com Nita daqui em
diante?” Alguns alunos recuperaram a leitura através de pequenos comentários como: “o
livro conta a história de Nita”, “Nita vai viajar para entender melhor as coisas”...
Gostaríamos de ressaltar que, a partir do segundo encontro, ficamos apenas com Hoje
tem espetáculo: no país dos Prequetés, pelo fato de que o número de exemplares era
maior.

Após a retomada da leitura anterior, a turma quis proceder como na narrativa:


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brincando. Então, estimulados pelo livro, brincamos de Boca de forno. Passada essa
etapa, partimos para o segundo capítulo. Nesse momento da obra, de acordo com a
narrativa, a protagonista sai em viagem para tentar resolver os dilemas pelos quais
estava passando, e chega até à terra dos Prequetés. Ao se depararem com esses
personagens, sucedeu-se um grande tumulto na sala, pelo fato de todos os alunos
quererem ler as falas que correspondiam às dos bonecos. Como o número de
personagens não correspondia ao número de alunos, propomos, para que resolvêssemos
a situação, que fosse feita uma espécie de rodízio de leitura, de forma que cada aluno
lesse uma fala. Dessa forma, todos participaram.

Nesse encontro, nenhuma questão da obra foi levada à discussão devido ao tempo
que havia terminado.

3.3. Terceiro encontro

No terceiro encontro, devido à ansiedade em se encontravam os alunos, partimos


direto para a leitura do terceiro momento do livro, em que ocorre o encontro de Nita
com um mutirão. Os alunos demonstraram uma grande simpatia pelo modo como
aquela comunidade vivia. No intuito de aproximarmos a leitura de uma pequena
encenação, procedemos à leitura dramatizada dos trechos. Para tanto, dividimos os
papéis de acordo com o número de alunos, e fizemos a leitura dos trechos várias vezes.
À medida que iam lendo, os alunos tentavam melhorar, no sentido de aproximar a
leitura do tom adequado às falas de cada personagem. Esta atividade é bastante divertida
e propicia um conhecimento mais profundo do texto, bem como favorece, muitas vezes,
a ampliação da própria narrativa. Não se tratava de uma encenação, mas de leitura
dramática,, com inúmeras repetições.

3.4. Quarto encontro

No quarto e último encontro, lemos o quarto episódio do livro. Nesse momento, Nita
volta para casa e socializa a experiência da viagem com seus amigos. As discussões
giraram em torno do amadurecimento ocasionado pela viagem de Nita, seu encontro
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com outros modos pensar e viver.

Grande foi o entusiasmo dos alunos por esse momento, sobretudo no que diz respeito
à percepção do trabalho em grupo, do mutirão, pelos alunos. Nesse momento, alguns
relembraram suas experiências, dizendo que: “na minha casa, a gente sempre divide as
tarefas”; “aqui na sala, a professora ‘bota’ todo mundo para trabalhar”... “é mesmo, todo
mundo trabalha: limpa a sala, arruma as carteiras, apaga o quadro”.

Além da leitura e discussão, fizemos uma avaliação avaliamos a experiência. De


acordo com os depoimentos dos alunos e da professora, a experiência foi bastante
válida, uma vez que, sempre que necessário, partíamos para discussões, e os alunos
puderam ler e manifestar suas opiniões sobre o que estava sendo lido. Um dos pontos
negativos foi, como consequência dos intervalos entre alguns encontros, ocasionados
pelos feriados, a demora no término da leitura da obra. Esse fato talvez justifique a
desistência de alguns alunos no percurso do trabalho.

Embora não tendo experimentado a encanação da obra, as questões elencadas por


Vânia Maria Resende acerca de literatura e teatro nos parecem muito pertinentes, uma
vez que chamam atenção para a importância desse tipo de atividade no meio infantil.
Conforme a professora,

Na condição de participante ou espectador de boas


apresentações teatrais, a criança e o adolescente são
profundamente motivados a integrar-se, concreta e efetivamente,
no espetáculo, mantendo-se vibrantes em face do que vêem,
ouvem, sentem, reelaboram recriam. O teatro é linguagem viva
que toca a alma infantil e juvenil, educando-a poeticamente.
(RESENDE, 1997, p. 226)

Com essa experiência, pudemos observar o quanto as crianças se encantam e se


envolvem quando a leitura é feita de forma livre, sem cobranças de cunho mais
pragmático. Dessa forma, pensamos que a estrutura e os diálogos de Hoje tem
espetáculo: no país dos Prequetés, e mesmo de Bento-que-Bento-é-o-frade, possibilitam
uma vivência significativa com o texto dramático, independentemente de sua
encenação, levando o aluno a participar, a conviver com o texto de forma mais dinâmica
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e a compartilhar suas experiências de vida. As próprias discussões revelaram que as


crianças são capazes de, no momento da leitura, enxergar detalhes que, ao adulto, às
vezes, passa despercebido. Não se trata de supervalorizar o olhar desse tipo de leitor, e
sim de adotar uma postura baseada no diálogo, ou daquilo que Teresa Colomer (2007)
chamou de “leitura compartilhada”. Trata-se, segundo a pesquisadora espanhola, de

tornar possível beneficiar-se da competência dos outros para


construir o sentido e obter o prazer de entender mais e melhor os
livros. Também porque permite experimentar a literatura em sua
dimensão socializadora, fazendo com que a pessoa se sinta parte
de uma comunidade de leitores com referências e cumplicidades
mútuas. (COLOMER, 2007, p. 143)

Considerações finais

Por muito tempo as pesquisas acadêmicas se voltaram apenas para diagnósticar


os problemas relativos ao ensino. Neste rol, avaliava-se a qualidade das obras e sua
adequação a determinado público, o uso pragmático dos textos literários em sala de aula
(quer para trabalhos ligados à aprendizagem da língua, quer, nas séries inicias, o uso do
texto com objetivos pedagógico-moralizantes, dentre outras abordagens). Nos últimos
anos, em diferentes pontos do país, as pesquisas vêm buscando, pontualmente, realizar
experimentos que resultem em reflexões sobre metodologias mais adequadas ao
trabalho com o texto literário com crianças e jovens. Nesta perspectiva é que demos
prosseguimento em nosso mestrado à pesquisa sobre a vivência com o texto em sala de
aula 3. A experiência piloto, que relatamos aqui foi o embrião do trabalho realizado no
mestrado.

Pensamos que, ancorados numa perspectiva metodológica fundamentada no diálogo,


nossos professores terão mais possibilidade de formar leitores capazes de refletir e se
alegrar com a leitura literária, o que não é pouco.

3
RODRIGUES, Etiene Mendes. Bem do seu tamanho e Bento-que-bento-é-o-frade: da
análise à sala de aula. Programa de Pós-Graduação em Letras: João Pessoa, 2006, Dissertação
de Mestrado.
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Referências

BORDINI, Maria da Glória & AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do
leitor – alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Trad. SANDRONI,
Laura. São Paulo: Global, 2007.
MACHADO, Ana Maria. Bento-que-Bento-é-o-frade. Ilustrações de Eva Furnari. 4.ed.
Rio de Janeiro: Salamandra, 1990.
______. Hoje tem espetáculo: no país nos Prequetés. Ilustrações de Gerson Conforti.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
RESENDE, Vânia Maria. Literatura infantil e juvenil: vivências de leitura e expressão
criadora. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
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POESIA NO VESTIBULAR: DA OBRIGATORIEDADE AO PRAZER DA


LEITURA

Paloma do Nascimento Oliveira (PG – UFPB) 4

Considerações iniciais

Um dos temas que mais atraem o pesquisador em literatura é, sem dúvida, o que
toca na importância da literatura para a formação do leitor e, sobretudo, como já disse
Antonio Candido na década de 70, para a formação do homem. Enquanto professores,
sabemos do papel fundamental que a literatura exerce no processo de humanização dos
indivíduos. No entanto, quando nos aproximamos da realidade escolar, sobretudo no
nível médio, percebemos um significativo distanciamento dos jovens com relação à
literatura.
Em pesquisa realizada num cursinho mantido pela Universidade Estadual da Paraíba,
em Campina Grande, nos anos de 2007 a 2009, pudemos constatar que muitos alunos,
egressos do ensino médio, não atribuíam valor à leitura literária 5.
Partindo deste contexto, planejamos um trabalho de leitura literária envolvendo
diferentes gêneros (contos, poemas, crônicas, literatura dramática) buscando sensibilizar
os alunos para a leitura literária. Relataremos nesta comunicação como se deu a
abordagem especificamente do livro Terra de Santa Cruz, de Adélia Prado.
O estudo do livro em sala pautou-se pela leitura oral dos poemas e discussão de
aspectos temáticos que chamava a atenção dos alunos. A metodologia adotada está
próxima do que Colomer (2007) denomina como “Leitura compartilhada”. Desse modo
foi possível realizar um estudo analisando como a poesia é recepcionada pelos alunos
vestibulandos, bem como entender de que maneira a obrigatoriedade, dependendo do

4
Orientador: Dr. José Hélder Pinheiro Alves – helderpin@uol.com.br.
5
Chegamos a essa conclusão através de perguntas aos alunos sobre a influência da literatura
em suas vida até aquele momento, como também a partir da observação das interpretações destes de
alguns textos literário utilizados em sala de aula.
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modo como a obra é abordada, pode se transformar ou não numa experiência


significativa.
19. A obra da arte na sala

Um dos grandes desafios do professor de literatura da educação básica é encontrar


nas práticas pedagógicas, a que ele tem acesso, o auxílio necessário para motivar os
alunos à análise e interpretação de obras literárias. Devido a essa dificuldade de
encontrar uma metodologia eficaz, surgem perguntas do tipo: “Como lidar com a
literatura em sala de aula?” ou “Como fazer com que o aluno se sinta envolvido pela
literatura?”. Não pretendemos dar respostas acabadas, mas levantar questões que sirvam
como direcionamento para o professor que ainda encontra dificuldade no trabalho com a
literatura em sala de aula.
Uma das questões a serem pensadas é: por que o aluno vê a literatura como um
código indecifrável? Martins (2006) aponta uma das causas para esse fenômeno escolar
e diz que a escassez de práticas de leituras literárias é um fator que contribui para que o
aluno encare a literatura como objeto artístico de difícil compreensão. A autora diz
ainda que essa situação seja herança de possíveis lacunas oriundas do ensino
fundamental, como também do encaminhamento dado ao estudo de literatura no ensino
médio.
Percebemos que essa leitura da literatura enquanto inacessível está mitificada nas
bases sociais. Santaella (1996) destaca que um dos grandes mal-entendidos da sociedade
para com a arte literária é “aquele que exige que a literatura tenha uma linguagem
compreensível, didática, acessível ao nível de entendimento de um leitor médio” (p.
217), ou seja, pede-se que o texto literário tenha uma pedagogia que a obra literária não
comporta. É com esse tipo de pensamento que leva o aluno a negar, inconscientemente,
o caráter de experimento e singularidade próprias da literatura, com o horizonte
limitado, condicionando a arte ao seu imediato.
A primeira atitude que devemos tomar, enquanto professores, é a de sermos claros
em relação ao conceito ou à tentativa de produção de um conceito do que vem a ser
literatura. Não iremos dizer o que ela é, mas o que não é. Inicialmente deve-se deixar
claro que a literatura não é ciência, ou seja, não se pode fazer um paralelismo com as
outras disciplinas estudadas pelo aluno, como a biologia ou a química. Não há fórmulas,
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nem tabelas para decorar. Pode-se dizer que “O discurso literário decorre,
diferentemente dos outros, de um modo de construção que vai além das elaborações
lingüísticas usuais, porque de todos os modos discursivos é o menos pragmáticos, o que
menos visa aplicações práticas” (BRASIL, 2006, p. 49).
Devemos observar que “as técnicas de abordagem ao texto literário não são
diversificadas, contribuindo para que o educando desenvolva uma compreensão
mitificada e homogênea do fenômeno literário” (MARTINS, 2006, p. 84). É necessário
encontrar formas simples de trabalhar o texto literário de modo que o aluno perceba que
se trata de um trabalho artístico. Atingindo esse objetivo o professor desmitificaria o
fenômeno literário enquanto ciência e traria para o aluno uma literatura para ser
apreciada.
Estando clara a concepção de uma literatura desvinculada do ideário científico, o
professor pode voltar-se para o trabalho com a leitura. Partindo da idéia de que esta
leitura é um instrumento para o aluno desenvolver a criatividade e a imaginação, a
interação com o texto literário pode ser introduzida em sala de aula de maneira que o
professor, juntamente com o aluno, construa possíveis interpretações do texto.
Outro ponto a ser pensado é: sendo a literatura uma arte complexa como passar para
o aluno a importância de ser estudada? A literatura é desafiadora, específica,
identificada por sua plurissignificação, pelo trabalho com a conotação, pela liberdade de
criação e, sobretudo, pela ênfase no significante. Esses pontos a tornam peculiar e ao
mesmo tempo a colocam em uma posição que, ao trabalhar desafiadoramente com a
linguagem, fazem-na ultrapassar os limites da simples reprodução da realidade humana.
Assim, o professor deve observar que um dos pontos fundamentais de apreciação da
literatura é sua relação direta com a humanidade, com o homem.
Cândido (2008) diz que pensar na literatura e sua ligação com o homem é solidificar
as conexões que se pode fazer entre literatura e realidade, mas não tratá-la
absolutamente como um documento positivo de reflexo do comportamento da
sociedade. Isso significa que enquanto educadores não devemos desprezar a relação
entre homem, literatura e realidade, pelo contrário, um dos objetivos de nossas aulas é
ressaltar a importância da conexão entre esses elementos para a concretização da arte. A
respeito disso:
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A literatura é o homem em ação. Ora, o homem em ação é,


forçosamente, um ser na sociedade. Estabelece, de imediato, um
relacionamento com o mundo, com as coisas e, sobretudo com os
outros homens: cria uma humanidade . Cada obra literária oferece
a evidência dessa sociabilidade do homem. (SANTOS, 1987, p.
42)

É perceptível, pois, que homem e literatura estão imbricados e se não enxergamos


essa conexão não somos passíveis de entender, sentir e interagir com o texto literário.

2. A tradição historiográfica e a obrigatoriedade no vestibular

Antes de relatarmos nossa experiência gostaríamos de tocar, rapidamente, em dois


pontos que julgamos essenciais para prosseguir a discussão: o ensino historiográfico da
literatura e a obrigatoriedade da leitura de obras específicas para o vestibular.
As orientações curriculares para o ensino médio (2006) destacam que o aluno não
deve ser sobrecarregado com informações sobre épocas, estilos ou características de
escolas literárias e os Referenciais Curriculares da Paraíba (2007), endossam e
“sugerem que o ensino da literatura no nível médio parta do estudo dos gêneros
literários e não da evolução da história da literatura” (ALVES, 2008, p. 29). Essas
observações pertinentes contestam uma tradicional prática escolar pautada na
memorização mecânica de regras gramaticais, datas de fatos históricos e características
de cada movimento literário. Segundo Colomer (2007), é no século XIX que se instaura
a substituição do modelo retórico de ensino pelo estudo da história da literatura nas
línguas nacionais que levou ao ensino uma linha de evolução cronológica.
Infelizmente a realidade do ensino no sistema educacional brasileiro ainda tende para
a continuidade daquilo que a tradição impõe.
Constata-se, de maneira geral, na passagem do ensino fundamental para o ensino
médio, um declínio da experiência de leitura de textos ficcionais, seja de livros da
Literatura infanto-juvenil, seja de alguns poucos autores representativos da Literatura
brasileira selecionados, que aos poucos cede lugar à história da Literatura e seus estilos.
(BRASIL, 2006, p. 63)
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Mesmo munidas de documentos oficiais, boa parte das escolas preferem o


comodismo daquilo que está legitimado enquanto modelo de ensino e não fornecem
meios para ampliar e articular conhecimentos e competências dos alunos.
Não pretendemos nos divorciar da contribuição que a tradição histórica fornece,
mas deixar claro que é papel do professor fazer a articulação desse modelo histórico de
ensino com o estudo do objeto literário que é a obra.
A abordagem da literatura nas provas de vestibular da Paraíba, por exemplo, visa
o estudo das obras aliando elementos teóricos aos histórico-culturais com o intuito de
auxiliar na interpretação dos textos. Pode-se observar que o aspecto histórico não foi
abandonado, mas relido enquanto instrumento de auxílio para a interpretação do texto e
não para o simples mecanismo de decorar nomes e características de uma determinada
escola literária.
Ao falar nas provas de vestibular, partimos para o segundo ponto que nos propormos
a discutir: a obrigatoriedade da leitura de obras inserida nos vestibulares do país em fins
da década de 1980 6. De um lado os alunos, sobretudo os das áreas de exatas e saúde,
que se queixam das “inúteis” leituras obrigatórias para o vestibular, de outro as
instituições educacionais promotoras do concurso que justificam tal obrigatoriedade na
“possibilidade de ampliação de repertório cultural do aluno e (...) melhoria do seu
desempenho lingüístico” (ANDRADE, 2003, p.14). Mas afinal, quem está certo?
Foi devido à “baixa qualidade da expressão escrita verificada na produção das
redações e das questões dissertativas, (que) a instituição do vestibular apresentou, no
final dos anos 80 e início dos 90, como inovação, a exigência da leitura obrigatória”
(ANDRADE, 2003, p. 34). Apesar da maioria dos alunos que se submetem às provas de
vestibular reclamar das indicações obrigatórias de obras, muitos entendem que a leitura
tem um objetivo maior que ser explorada em um exame e boa parte reconhece que a
motivação das suas queixas é oriunda da preguiça de ler.

6
Segundo Andrade (2003), por sugestão de Henrique Murachco, professor de grego da USP, a
FUVEST lança, em 1889, a primeira lista de indicações de leitura para ser aplicada em 1990 com o
objetivo de melhorar o desempenho do aluno na prova de redação.
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Preferimos substituir o termo preguiça por ausência de oportunidade durante o


período que o aluno passa pela educação básica. Colomer (2007) diz que
“possivelmente uma das causas da resistência à leitura provenha da perda das formas de
leitura coletiva nas sociedades contemporâneas” (p. 143). A facilidade que temos de
apontar os problemas alheios não é a mesma para as soluções. Portanto, generalizar as
dificuldades e a falta de motivação da leitura dos alunos como preguiça é cruzar os
braços diante de um problema solucionável ou, no mínino, buscar uma resposta muito
fácil. Não se chega a lugar nenhum, não se problematiza e não se encontra soluções. O
professor, enquanto educador, é analítico e precisa planejar como mudar esse jogo, ao
invés de simplesmente aceitar a negação da leitura como um fator cultural.
A leitura é para sempre, relatou um aluno do Pré-vestibular solidário da UEPB. Com
tais palavras ele nos fez lembrar o que Gianni Rodari diz ao tratar da pergunta-clichê
“Pra que serve a literatura”: “Não se ensina literatura para que todos os cidadãos sejam
escritores, mas para que nenhum seja escravo” (RODARI apud COLOMER, 2007, p.
35). É sob essa ótica que o vestibular começou a introduzir dadas obras em seu quadro
de obrigatoriedade.
Segundo Andrade, “ao ser incluída como exigência para o vestibular, a leitura passou
a ser vista como uma atividade com um objetivo nítido ao fim do ensino secundário” (p.
17) Além da melhoria do desempenho lingüístico, a leitura também valoriza o trabalho
literário na educação básica, promovendo a motivação dos alunos desde as etapas
primárias dos estudos.
Vemos, assim, que a obrigatoriedade tem seus fundamentos e apesar de agressivo o
termo, nas linhas a seguir mostraremos como a obrigação se aliou ao prazer da leitura
literária, especificamente da leitura de poesia.

3. Recepção da poesia

Surpreendido pela contemporaneidade das obras indicadas ao vestibular, o professor


se vê em uma tarefa desafiadora: analisar ele próprio a obra, geralmente com a ajuda das
teorias literárias e de pouquíssimos livros para suporte. Junto a essa ausência de uma
fortuna crítica se alia o ideário dos cursinhos de que “a preparação deve ser de última
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hora. Como o freguês tem sempre razão, eles não desmentem e oferecem o melhor
ensino da última hora que o dinheiro pode comprar” (CASTRO apud ANDRADE,
2003, p. 28).
Durante os anos de 2007 a 2009 nos colocamos diante dessa problemática ao
perceber que os alunos procuravam no cursinho uma espécie de reforço. No cursinho
em que ocorreram as aulas, as turmas se dividiam em: Humanas, Exatas e Saúde.
Procuramos trabalhar nas turmas de Exatas e Saúde, consideradas problemáticas quanto
à recepção da literatura, sobretudo da poesia. A eleição destas se deu pela hipótese –
posteriormente comprovada – de que por não optarem pela área de humanas tais alunos
teriam algum tipo de relação não afetuosa com a literatura.
Dentre obras analisadas em sala de aula como: O bom crioulo, O ateneu, O vôo da
guará vermelha, Morte e vida Severina, Terra de Santa Cruz, elegemos a última para, a
partir de um recorte, relatar como se deu o trabalho com o texto literário, em especial
com a poesia, com um público de horizonte de expectativa tão distinto daqueles que já
apreciam a literatura.
Além de rememorar as aulas e reler algumas seqüências didáticas da época, para
legitimar nosso relato pedimos a alguns ex-alunos, hoje universitários, que depusessem
livremente, numa página de relacionamentos, sobre que perspectiva de literatura ficou
depois das nossas aulas e, preferencialmente, depois da leitura da poesia do livro Terra
de Santa Cruz (1981), de Adélia Prado. Preferimos construir nossa análise a partir das
informações colhidas junto aos alunos, visto que suas impressões demonstraram que a
relação entre a obrigatoriedade e o prazer da leitura é mais direta do que pensávamos.
Apesar de enfatizar no questionário virtual que queríamos preferencialmente uma
ponte com o livro referido, os ex-alunos foram mais incisivos no tocante ao que ficou
das aulas de literatura em geral, exemplificando o trabalho também com outros textos.
Isso nos mostrou que os depoimentos que seguem têm um alcance maior, uma vez que
revelam que o utilitarismo imediato dos cursinhos foi ultrapassado. Como é o caso da
aluna Amanda quando fala sobre a recepção do conto “Uma vela para Dario”, de Dalton
Trevisan: “depois desse texto, me interessei mais pela literatura e tento sempre ter uma
interpretação mais aprofundada do texto” (Ver anexo I).
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O primeiro passo de nossas aulas foi trabalhar o texto literário de forma diferente do
que o ensino de literatura historiográfica propõe. Levamos diferentes gêneros literários e
partimos do texto para o contexto. Dessa forma colhemos as seguintes opiniões de então
alunas da turma de exatas: “comecei a perceber que tudo o que eu tinha em mente sobre
a literatura era totalmente o contrário, vi que a literatura é poder viajar sem sair do
lugar” (Ver anexo II) e “não gostava muito da disciplina mesmo sabendo que ela é
essencial para nossa vida. Comecei a ler mais, ter paciência comigo mesma e analisar
melhor os poemas” (Ver anexo III).
Em se tratando da abordagem em sala do livro Terra de Santa Cruz, indicado nos
anos de 2007 e 2009, utilizamos como estratégia aquilo que Colomer (2007) chama de
Leitura compartilhada. Ela esclarece que

Compartilhar as obras com outras pessoas é importante porque


torna possível beneficiar-se da competência dos outros para
construir o sentido e obter o prazer de entender mais e melhor os
livros. Também porque permite experimentar a literatura em sua
dimensão socializadora, fazendo que a pessoa se sinta parte de
uma comunidade de leitores com referências e cumplicidades
múltiplas. (p. 143)

Nossa proposta de trabalho com o livro era mostrar que apesar de imposto pelo
vestibular a leitura poderia ser prazerosa, afinal “a poesia pode ser um elemento
fundamental de educação da sensibilidade” (ALVES, 2008, p. 25). E foi a partir de
algumas lições de Martins (2006) que ajudamos os alunos a elaborar ou até rever suas
interpretações iniciais dos poemas de Adélia Prado, obviamente sem descartar suas
primeiras leituras. Segundo a autora “O professor deveria colaborar com os alunos,
visando à construção/reconstrução de interpretações e não simplesmente apresentando
leituras já prontas” (p. 85). Assim relata Julliana, ex-aluna da área de saúde e hoje
graduanda do curso de Letras: “e foi durante essas aulas que fui aprendendo a gostar
ainda mais de ler e querer conhecer mais sobre a literatura (...). As aulas ocorriam
tranquilamente, com debates em sala, conversar informais, e com isso fui aprendendo
que a literatura não era algo distante de nós” (Ver anexo V).
A partir da idéia de que era necessário confrontar o aluno com a diversidade de
leituras do texto literário, para que ele reconhecesse que o sentido não está apenas no
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texto, mas é construído pelos leitores na interação com textos, escolhemos trabalhar
com alguns poemas como “Casamento” e “O homem humano”.
A título de exemplificação, o poema “Casamento”, em especial, gerou grande
inquietação nos alunos. Muitos acusavam o eu lírico de submissão, mas aqueles que
releram com mais atenção sentiram uma verdadeira epifania ao descobrir a simplicidade
e o carinho com que foi tratada a instituição matrimonial neste poema de Adélia Prado.
Percebemos, portanto, o efetivo interesse dos alunos pela poesia. Como relata Bruno,
ex-aluno da turma de exatas: “Passei a me interessar mais pela literatura, pesquisei
sobre alguns autores na época das aulas” (Ver anexo IV).
Vimos, portanto, que a recepção da poesia não foi catastrófica, mas marcante para os
alunos. Estes até o presente momento lembram daquilo que lhes marcou nas aulas,
mostrando-nos que com a estratégia adequada e direcionamento correto a
obrigatoriedade ultrapassará a imposição, sendo um norte para o trabalho com o texto
literário.

Conclusões

Ministrar aulas de literatura não é uma tarefa fácil, sobretudo quando o objeto da aula
é a poesia. Durante o período em que trabalhamos com um público voltado ao vestibular
percebemos que trabalhar com poemas em sala de aula não era nosso maior desafio,
mas sim deixar claro para os alunos que à obrigatoriedade desse trabalho não deveria ser
atribuída a negatividade.
Foi trabalhando com a obra de arte em sala que empiricamente comprovamos que o
ensino historiográfico de literatura sem articulação com a análise está totalmente
ultrapassado e, ao invés de contribuir para o gosto por textos literários, afasta os alunos
da vivência afetiva com obras de suma importância.
Obtivemos sucesso com boa parte das turmas e pudemos observar que muitos alunos
viram na obrigatoriedade a oportunidade de conhecer um universo revelador de sentidos
e sensibilidade, o literário.
Através do trabalho com os mais variados gêneros preparamos um terreno fecundo à
poesia. Desse modo, quando levamos Adélia Prado e seu livro Terra de Santa Cruz para
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sala de aula, os alunos já se sentiam confortáveis e sem medo algum de desvendar os


mistérios da poesia adeliana.
Deixamos, portanto, ao longo do texto alguns pontos de reflexão para o professor que
trabalha nos cursinhos pré-vestibulares, como também para aquele que dá aulas no
Ensino Médio, de modo que esses poderão se apropriar de nossa experiência como
suporte para dar andamento a seu próprio procedimento metodológico.
Fica claro, por fim, que o assunto não se esgota neste artigo, pelo contrário. Nestas
páginas, levantamos a discussão da obrigatoriedade da poesia no vestibular como
pretexto para que o professor possa (re)pensar nas estratégias que está usando para dar
aula.

1. Referências

ALVES, José Hélder Pinheiro. Caminhos da abordagem do poema em sala de aula.


Graphos: Revista da Pós-Graduação em Letras. Vol. 10, n. 1. João Pessoa: 2008, p. 19
– 31.
ANDRADE, Claudete Amália Segalin de. Dez livros e uma vaga: a leitura de literatura
no vestibular. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2003.
BRASIL. Linguagens, códigos e suas tecnologias: conhecimentos de literatura. In:
______. Orientações curriculares para o ensino médio. Brasília: MEC/Secretaria de
Educação Básica, 2006, p. 49 – 81.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 10 ed. Rio de Janeiro Ouro Azul, 2008.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Trad.
SANDRONI, Laura. São Paulo: Global, 2007.
MARTINS, Ivanda. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor?. In:
BUZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia (orgs). Português no ensino médio e formação
do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 83 – 102.
PARAÍBA. Referenciais Curriculares da Paraíba. João Pessoa: Secretaria de
Educação, 2007.
PRADO, Adélia. Poesia Reunida. 8 ed. São Paulo: Siciliano, 1999.
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SANTAELLA, Lúcia. “Literatura e ideologia”. In: ______. Produção de linguagem e


ideologia. 2 ed. São Paulo: Cartez, 1996, p. 209 – 249.
SANTOS, Wendel. Crítica: uma ciência da literatura. Goiás: UFG Editora, 1987.

5. Anexos

II

III
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IV

V
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PRÁTICAS DE LEITURA EM REDES SOCIAIS NA INTERNETE: ORKUT E


BLOGS

Everton Vinicius de Santa (PG-UEL) *

Introdução

As ferramentas eletrônicas foram paulatinamente absorvidas pelos estudiosos da

literatura desde a década de oitenta, proporcionando um avanço inegável aos estudos

literários. Não só a edição eletrônica de textos, mas principalmente o advento do acesso,

do processamento e da análise de dados de forma eletrônica tem alavancado os estudos

de conjunto de textos, de léxico e de estilística autoral. O principal problema para um

melhor uso talvez resida em certa aura de novidade ou de dificuldade de uso da

tecnologia e suas ferramentas, ou seja, ela permite um largo avanço tanto na crítica

literária quanto no estudo escolar de textos literários.

Nesse sentido, a proposta deste trabalho se foca em observar a relação entre literatura

e meio digital no sentido a entender como se ocorre esse contato entre a literatura e seus

leitores, a fim se buscar seu público identitário diante do corpus de estudo, que inclui os

blogs e os grupos de discussão do orkut, tomando por base a ideia de que este universo

de contribuições de produção e recepção de textos entre as redes sociais na internete

ainda não foi explorado. Portanto, o eixo e atividades de pesquisa pretendem abordar o

cânone literário encontrável nos grupos de discussão e o funcionamento dos blogs,

assim como estabelecer um esboço da crítica do leitor.

O presente estudo insere-se no projeto de pesquisa Hipercontexto: Estudos da

Literatura em Meio Eletrônico, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), que


*
Trabalho orientado pelo prof. Dr. Alamir Aquino Corrêa (UEL)
propõe a discussão e análise do processamento informático de textos literários à luz das

feramentas eletrônicas disponíveis, sobretudo a internete, e que ampliam o espaço para a

crítica literária e para os estudos de textos literários dentro e fora o universo escolar.

Nesse sentido, o método de trabalho se foca na detecção de procedimentos e

práticas de leitura em grupos de leitores, através de protocolos de memória de leitura e

de acesso a novas fontes de leitura, configurados pelos testemunhos voluntários

observáveis nas comunidades do orkut e nos blogs em que o assunto seja a produção e a

recepção de textos literários.

1. Uma visão geral da questão do livro e inclusão digital no Brasil

Em pesquisa financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e

Social (BNDES), verificou-se que o livro no Brasil tem elevado custo quando

comparado a outros países e que o governo tem agido coerentemente na distribuição de

livros didáticos. Ainda, nas livrarias e por venda de porta em porta, “os livros mais

vendidos são os religiosos (Bíblia), livros de culinária, livros de pesquisa escolar,

manuais práticos e de cuidados” (EARP & KORNIS, 2005, p. 8). Quem mais lê são

“os que têm educação superior, sendo que a ocupação também serve de elemento

diferenciador: são os estudantes e empregados que dizem ler mais, enquanto os inativos

e as donas de casa ocupam o pólo oposto do espectro” (EARP & KORNIS, 2005, p. 9).

É certo que em qualquer sociedade há um descompasso significativo entre o número

de títulos publicados e a capacidade de absorção da produção cultural pelos leitores.

Contudo, é importante considerar que o sistema cultural está pautado na relação entre

oferta de bens culturais e capacidade econômica do leitor. Em termos de economia do


livro, o principal atenuante é o descompasso entre a crescente oferta, a capacidade

limitada de absorção das bibliotecas e a mais limitada ainda, capacidade de absorção do

consumidor (EARP & KORNIS, 2005, p. 4).

Nesse sentido, as dificuldades da economia livresca no Brasil envolvem a edição, a

gráfica, a distribuição, o acesso aos consumidores, através de livrarias ou vendedores de

porta em porta, as bibliotecas, que representam o setor mais atrasado na cadeia livresca

pela falta de financiamento, e a demanda, vinculada ao marcado de trabalho.

Essas dificuldades são, portanto, resultado direto da equação que envolve o custo de

produção e distribuição do livro e a disponibilidade de recursos do leitor para sua

aquisição, considerando também as restrições de compras por bibliotecas, em razão de

políticas públicas com níveis ineficientes ou pouco preocupadas com a formação e

fomento da leitura.

As preocupações sobre a indústria do livro a envolver os editores e indicando os

fatos mais relevantes como a Lei do Livro 1, por exemplo, são apresentadas em

Perspectivas do Mercado Editorial Livreiro para 2005 2 (BRASIL, 2005). Em um dos

viéses da pesquisa realizada com editores do país, observa-se que estes preocupam-se

mais com políticas que envolvem as questões financeiro lucrativas do livro, leitura e

bibliotecas, do que com a criação de um Fundo Pró-Leitura, por exemplo, que garantiria

investimentos efetivos na área e acesso ao bem cultural para uma parcela maior da

população, sobretudo aos da classe de baixa renda, para o caso das bibliotecas públicas.

Isso evidencia que o aspecto econômico a frente do intelectual gerador de

conhecimento, formador de opinião e de leitores conscientes, quando deveriam estar

lado a lado. As maiores compras de livros per capita em volume, por exemplo, são as

1
http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2007/11/lei-10753-de-2003.pdf
2
http://www.cbl.org.br/download.php?recid=367
japonesas, com 11 livros anuais, seguidas pelos Estados Unidos e França. Os brasileiros

compram em média 2 exemplares por ano (EARP & KORNIS, 2005, p. 18), número

pouco expressivo.

Ao pensarmos no quadro atual que envolve a economia do livro, devemos entender

que todas as ações de indução de incremento da leitura no Brasil receberam outro viés

por meio da ampliação do acesso à internete. A inclusão digital, muito em razão de seu

baixo custo relativo, minora ou atenua obviamente as condições de acesso ao bem

cultural. No Brasil, segundo dados publicados em 2002 pela International

Telecommunication Union 3, havia 14,3 milhões de usuários de internete.

As questões a envolver o livro, bem como o mercado livresco, as dificuldades

econômicas ligadas à disseminação, produção e acesso ao livro colocam-se, no contexto

atual, parcialmente atenuadas se considerarmos os projetos de inclusão digital, sejam

eles do Estado ou os de universidades, atuando no quadro sócioeconômico do acesso ao

bem cultural, porém, não resolvem as questões das práticas de leitura à luz das questões

culturais, afinal, pesa sobre o brasileiro o rótulo de “não leitor” e é pouco significativo

discutir disseminação de leitura e acesso ao livro sem que isso seja realizado de forma

consciente e mediatizada por profissinais da educação e, claro, pelos órgãos

institucionais responsáveis.

2. As práticas de leitura diante do hiper(con)texto

Embora controlados pelo Estado e, antes, pela Igreja, os livros tornaram-se objeto de

consumo em larga escala, sobretudo na era “pós-Gutenberg”. A transição da estreita

para a larga circulação só é possível pela diminuição do valor do objeto. Em


3
http://www.itu.int/osg/spu/ni/security/workshop/presentations/cni.15.pdf
consequência, há o alargamento da leitura, mas que evidencia também por outro lado

uma maior condição da educação formal (CORRÊA, 2004, p. 92).

Diante desse arcabouço ferramental eletrônico, as ciências humanas, onde está a

grande parte da elite cultural, mantiveram o livro impresso como único e válido

expositor de ideias. A técnica digital ainda é vista reticentemente ou até com desprezo

pela concepção apocalíptica colocada diante das possibilidades do meio eletrônico,

chegando ao extremo com a fórmula do ceci tuera cela 4.

Ao nos referirmos às novas tecnologias, ao boom dos computadores e ao advento da

internete sob o prisma das práticas de leitura, não podemos dizer que há apenas textos,

mas sim que “há hipertextos, [...] uma rede multidimensional onde cada ponto ou nó

pode, potencialmente, ligar-se a outro” (ECO, 1996).

Considerando que o hipertexto, desse modo, configura o ciberespaço, uma vez que

ao acessarmos um sítio, por exemplo, escolhemos um entre vários caminhos a seguir,

observamos que ao leitor é permitido se envolver em um processo de escrita/leitura não-

linear e não hierarquizada e que lhe permite o acesso ilimitado a outros textos de forma

instantânea.

Ao nos referimos ao texto literário digital, os níveis culturais a envolver estética e

recepção com relação ao livro, ficam em segundo plano, uma vez que se coloca em

pauta o meio (ciberespaço) ou técnica (“digitalização”) em que este está inserido, meio

pelo qual perpassam vozes dignificadoras do livro como legado sagrado que norteia seu

alto valor estético.

Nesse sentido é que surgem outros questionamentos sobre a disponibilidade e a

multiplicidade do objeto, a conformação e a completude da obra, a vulgarização e o

4
isto destruirá aquilo.
respeito à propriedade intelectual, a volatilidade da autoria (CORRÊA, 2004, p. 95) e ao

que Walter Benjamin (1936), em seu texto sobre a reprodutibilidade técnica, aponta

para a historicidade tanto dos valores estéticos como da percepção humana, indicando

que novos meios significam transformações nos corpos, consciência e ações humanas, e

não somente novas formas de expressão.

Estas novas técnicas hipertextuais, fazem do texto literário mais suscetível a

alterações ao mesmo tempo em que maximiza sua disponibilidade e o torna mais

acessível ao amplo público que atinge. Em contrapartida, além da ausência do valor

financeiro, ao se pensar em uma vulgarização da propriedade intelectual que questiona o

próprio cânone, coloca-se em xeque também seu valor artístico enquanto objeto de

criação estética e a questão da autoria.

Santaella (2007, p. 32) nos apresenta diferentes tipos de leitores entre contemplativo,

movente e imersivo, aquele que navega em uma tela de computador. Esse leitor se

depara com uma infinidade de ‘nós’ dispostos em uma coleção de informações, cada um

deles levando a outro e a mais outro como em uma grande rede em uma nova dimensão

(o ciberespaço), como na alusão borgiana da biblioteca de Babel à uma biblioteca

virtual de proporções infinitas.

Se por um lado, a configuração do novo modus legendi representada por leitores que

comportam uma disposição do corpo totalmente livre e individual, a leitura de um livro

impresso sempre será mais convidativa que a leitura em tela, afinal, há uma interação

física intensa e direta com o livro (CAVALLO & CHARTIER, 1999, p. 222). Por outro,

há o leitor imersivo que convive com um grande número de objetos de informação e de

elementos eletrônicos que o colocam em um estado de prontidão, sendo guiado por um

roteiro labiríntico que ele próprio ajuda a construir quando navega, esboçando, assim,
“um leitor implodido cuja subjetividade se mescla na hipersubjetividade de infinitos

textos num grande caleidoscópio tridimensional onde cada novo nó e nexo pode conter

uma outra grande rede numa outra dimensão” (SANTAELLA, 2007, p. 33).

3. Práticas de leitura de literatura no orkut e em blogs

O sistema de comunidades ou grupos do orkut nos chama atenção por atingir grande

parte dos milhões de usuários da internete não só no Brasil, mas no mundo todo. Criado

em 2004 pelo turco Orkut Buyukkokten, o sítio pertencente ao popular Google e,

segundo dados do próprio orkut (maio de 2010), predominam-se os usuários brasileiros

(50,6%), seguidos pelos indianos (20,44%) e estadunidenses (17,78%)5 e a maioria

jovens entre 18 e 25 anos.

A literatura, por sua vez, marca presença no orkut em diversas comunidades criadas

por seus usuários. Na busca realizada no sítio com o tema literatura, o contador nos

revela mais de mil comunidades que abordam o tema das mais variadas maneiras. Em

várias dessas comunidades, além da cópia, do compartilhamento e, geralmente, do

elogio de textos publicados originalmente em livros, há grande propagação de textos

originais escritos pelos membros dos grupos.

Os números são expressivos, uma vez que o tema literatura se equivale às

comunidades de temas mais comuns como futebol, amor ou música, o que nos revela

que a literatura faz parte do cotidiano de leitura de muitos dos usuários interessados em

debates sobre obras e autores, além da produção de textos (contos, poesias, romances)

escritos por seus integrantes.

5
Dados acessados em 19 de abril de 2010.
Com efeito, através dos protocolos de memória de leitura observados nos tópicos

abertos nas comunidades, podemos visualizar como a literatura está presente no

cotidiano desses “leitores imersivos”, que interagem com o meio eletrônico.

Na maior comunidade que discute o tema, “Literatura” 6, com mais de 62 mil

membros, é possível constatarmos obras do cânone literário aparecendo em meio aos

tópicos abertos e suas respostas equiparadas ao que podemos considerar como sendo um

esboço de uma crítica do leitor. Há, por exemplo, um tópico com mais de 1.700

postagens intitulado “Leio ou Fecho”, em que na maioria das respostas observa-se um

escritor canonizado, não só da literaura brasileira: Machado de Assis, Érico Veríssimo,

Goethe, Clarice Lispector, Jorge Amado, José Saramago, Jane Austen, entre outros.

Nesse sentido, observamos a presença inegável do clássico arraigado às práticas de

leitura dos usuários, ao mesmo tempo em que percebemos uma abertura àqueles

escritores fora do cânone e posicionamento crítico desses leitores.

Esse posicionamento crítico literário, que se aproxima das discussões de aulas de

Literatura Brasileira por universitários, aparece no orkut ou mesmo em blogs e embora

representem mais gosto pessoal que proximidade ao embasamento teórico, aparece

sempre ligada a um escritor consagrado e não poderia ser diferente, uma vez que são

mais lidos. Percebe-se ainda certa proximidade com o que a crítica tradicional faria ao

abordar a linguagem, coerência e espaço, por exemplo, bem menos complexa, mas não

menos pertinente, até porque “percebe-se nessas atividades críticas “amadoras” a

presença de parâmetros adquiridos no ambiente escolar tradicional” (FOGGETTI, 2008,

p. 57).

Entre as redes sociais presentes no ciberespaço, os blogs também apresentam

produções de seus próprios autores em busca de comentários críticos sobre seus textos e
6
http://www.orkut.com/Main#Community.aspx?cmm=72880
as questões da crítica e recomendação aparecem como no orkut. Alguns apenas

escrevem sobre literatura e suas manifestações, noticiam lançamentos, comentam livros

ou textos publicados em jornais, sempre à luz do objeto literário. Além disso,

entendemos que os blogs são espaços de representação (ficcionais ou reais?) de

identidades múltiplas e complexas, polimorfas, que caracterizam o processo de

construção de identidades (virtuais) alimentada não apenas pela “espetacularização do

eu” (AZEVEDO, 2007, p. 1), mas também, pelo ávido interesse do ‘outro’ e pela

necessidade em falar de si mesmo. O blog é um espaço aberto cuja realidade se mescla à

ficção sem qualquer espécie de censura ou meias palavras, realidade esta, propiciada

pelo ciberespaço que se caracteriza por ser de natureza aberta, autônoma e pública.

Contudo, há de se anotar que as formas de expressão literária a envolver leitura,

disseminação e recomendação de textos literários não-canônicos, crítica, mesmo que

“amadora”, estão em constante crescimento, seja através de blogs ou das comunidades

do orkut, e a envolver um público cada vez maior pela fácil acessibilidade

proporcionada pelo meio digital que interfere direta e significativamente nas práticas

culturais da sociedade.

4. Novas perspectivas para os rumos da literatura

Orkut, Second Life, o mais recente microblog twitter, comunidades virtuais, avatares,

softwares sociais, mensagens instantâneas, ambientes colaborativos, videogames,

realidade virtual, blogs, são frequentemente tópicos de reflexões e discussões, seja com

entusiasmo, ou com receio e descrédito, sobretudo quando se levanta a questão do


desenvolvimento das relações entre as gerações que dominam já o uso destas

ferramentas.

Definido o corpus do presente estudo, que se focou nas representações literárias,

evidenciamos a presença marcante do cânone literário em muitos dos fóruns abertos

pelos usuários nas comunidades. Interessantemente, aliada a essa presença do cânone,

verificou-se que há uma tentativa do que chamamos de esboço da crítica do leitor diante

das discussões abertas pelos usuários.

No segundo eixo de pesquisa, constatamos que além do cânone, os usuários que

conhecem, leem e recomendam autores de obras pouco conhecidas, tanto nas

comunidades do orkut, quanto nos blogs consultados. A questão da recomendação de

leituras se dá pela indicação não só de livros, mas também de blogs que, de uma forma

ou de outra, discutem literatura, tanto que há uma Academia Virtual Brasileira de

Letras 7 cuja finalidade é disponibilizar na rede seus textos.

As questões a envolver práticas de leitura e inclusão digital no Brasil estão

caminhando com o PROLER, projeto de incentivo a leitura do governo federal e

vinculado a Fundação Biblioteca Nacional, cujo objetivo é facilitar e democratizar o

acesso à leitura, disponibilizando livros em escolas, bibliotecas e outros locais públicos,

por exemplo, e que envolve várias pessoas em vários estados. Há também o Programa

Livro Aberto, que prevê a instalação de bibliotecas em cidades onde não há, e o PNLL

(Programa Nacional do Livro e Leitura), uma continuidade do Programa Livro Aberto

que também foca seus objetivos em implantar bibliotecas públicas em municípios onde

não as possuem.

7
http://www.avbl.com.br/website/
Quanto à inclusão digital, o Governo Federal mantém um portal8 com todos os

programas e órgãos envolvidos. Esses programas, em sua maioria, são voltados para a

população de baixa renda, focados, sobretudo, no estado de São Paulo, que tem o maior

número dos chamados “pontos de inclusão digital” (PIDs), embora a abrangência

poderia ser dada de forma proporcional e igualitária, atingindo assim, os estados menos

favorecidos, em que a acessibilidade ao meio digital é mais dificultosa, tanto pela falta

de recursos quanto pela falta de gerenciamento e informação.

Contudo, embora esses projetos tentem, no geral, abarcar parte da população de

baixa renda, há de se perceber que não há estatísticas que envolvam o perfil de leitura

das camadas de menor renda quando ainda tinham de ir às bibliotecas, quanto mais

agora com a facilitação do acesso à internete e, consequentemente, ao acesso a uma

quantidade infindável de gêneros. Terá sido de pouco valor prático, em termos de

mudança nos hábitos de leitura, por exemplo, digitalizar toda a obra de Machado de

Assis, como foi feito em 2008 9, se ela não chegar ao seu público leitor de forma efetiva?

Houve mudança no hábito de leitura desse público? É um dos caminhos ainda a se

explorar.

O sucesso das redes sóciovirtuais revela que o hipercontexto é o meio mais

efetivo de se propagar a literatura não só entre a grande massa, mas entre os acadêmicos

também, e não só pelo barateamento dos meios de produção ou pela sua fácil

acessibilidade, mas pela liberdade que o ciberespaço proporciona aos seus navegadores,

sejam eles do orkut ou dos blogs. É possível se debater ainda, fenômenos a envolver

produção, técnicas de criação, autoria de textos na rede, enfim, há uma gama de outros

aspectos que devem ser explorados pelos pesquisadores da literatura, a fim de que se

8
http://www.inclusaodigital.gov.br/inclusao/outros-programas
9
http://www.machadodeassis.ufsc.br/
possa compreender, paulatinamente, os passos pelos quais a literatura vem tomando,

não só envolvendo leitura, mas toda e qualquer forma de manifestação literária.

Referências

AZEVEDO, L. Blogs e Autoficção. In: ENCONTRO REGIONAL DA ASSOCIAÇÃO


BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA, São Paulo. 2007. Anais... São
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PROSA DE FICÇÃO (1843-1881): ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ewerton de Sá Kaviski (PG/UFPR)

Introdução: arranca-rabos na corte do Imperador ilustrado

Reza a tradição anedótica de nossa história literária que, ao saber da morte de José de
Alencar em 1877, D. Pedro II teria declarado: “era um homenzinho teimoso”
(FARACO, 1997, 22). Está por detrás dessa imagem de Alencar, atribuída pelo
Imperador, a fama de polemista do escritor cearense. E com efeito, em todas as
encrencas entre os homens de letras do Segundo Reinado, estava Alencar metido no
meio: brigou com Gonçalves de Magalhães e D. Pedro II, em 1856, por conta do poema
A confederação dos tamoios; com Franklin Távora e José Feliciano de Castilho, não
respondeu diretamente, mas levou muita pancada nas Cartas a Cincinnato, em 1871-72;
com Joaquim Nabuco, em 1875, tudo começou por causa da crítica que este fez a peça
O jesuíta (1875); sem falar nas brigas com um sem-número de outras personalidades
menores, da literatura e da política 1. Reinava na corte do Imperador ilustrado, portanto,
um clima de escreveu, leu e o pau comeu.
De modo geral, o ponto central de todas as polêmicas do século XIX, em especial
destas três acima citadas, foi a legitimidade das representações que se oferecia do Brasil
em nossa produção literária no período formativo inicial 2. Tratava-se de um modo de
questionar as formas pelas quais os romances, peças de teatro e poemas pintavam a
imagem do país. Joaquim Nabuco, para aduzirmos um exemplo paradigmático,
reclamou da presença do negro no teatro de Alencar: “(...) há certas máculas sociais que
não se deve trazer ao teatro (...) O homem do século XIX não pode deixar de sentir um
profundo pesar, vendo que o teatro (...) acha-se por uma linha negra, e nacionalizado
pela escravidão.” (COUTINHO, 1965, 106) (grifos meus). Nota-se, por esta citação a
1
Para maiores informações, remeto o leitor à recente biografia de José de Alencar, O inimigo do rei, de
Lira Neto.
2
O período formativo inicial deve ser entendido, aqui, como a fase romântica da ficção em prosa no
Brasil que vai, grosso modo, de 1843 a 1880.
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linha de força que informou as discussões travadas entre os escritores sobre a


representação ficcional da nação: a imagem literária deveria estar vinculada a um ser-
um-brasileiro-civilizado.
Pode-se dizer, sinteticamente, que as polêmicas giravam em torno da representação
literária da realidade local e do estatuto nacional desta mesma representação – o que faz
delas, as polêmicas, um documento sobre os problemas constitutivos de nossa formação
cultural em conciliar ideologicamente, numa representação ficcional, a matéria local e
as formas de expressão agenciadas pelos gêneros literários, em especial, o romance. Ou
por outra: as polêmicas, por serem reflexões em solo tropical acerca da prática
romanesca entre nós, trazem em si, à revelia dos polemistas, certas questões de
representação literária e que, numa perspectiva da história da literatura, podem mostrar
os impasses da criação de um teto simbólico – um campo poético mesmo – para a
prática literária no Brasil.
O presente artigo se insere na perspectiva acima delineada: rastrear certas questões
cruciais de representação ficcional no romance oitocentista brasileiro de modo que os
impasses e as constantes sobre o ato de representação possam ser apontados; bem como,
destacar, preliminarmente, o estatuto da ficção em nosso contexto de país periférico.
Para tanto, as Cartas a Cinccinato (1872) [1870-71], de Franklin Távora, foram
selecionadas por abordarem, de maneira mais sistemática, alguns conceitos
fundamentais para a representação literária, a saber, a observação, a imaginação, a
verossimilhança externa/interna e a moralização em literatura. Por último, assinalo que
esses conceitos devem ser entendidos, aqui, como linhas de força ou postulados, por
serem respostas formais aos problemas de fundo cultural, para a criação de um campo
poético em nosso sistema literário. São, em última instância, os elos que unem nossos
ficcionistas oitocentistas e que formam uma tradição interna do romance brasileiro, para
usar de uma expressão de Maria Cecília Boechat (2008).

1. A cor local: critério e problema para a nacionalização literária


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O mapeamento do país empreendido pelos ficcionistas do século XIX – o gigantismo


paisagístico de Antonio Candido (1975, 114) – trouxe para o centro da trama ficcional
do romance oitocentista um temário cujas representações formais ainda não haviam sido
estabelecidas na prática deste gênero entre nós. Daí certa precariedade estética de nossa
prosa do 19 – salvo algumas exceções –, pois o ineditismo da matéria local levou os
escritores a terem literalmente de bolar maneiras de dar expressão àquilo que ainda não
possuía expressão no campo do romance. Ou por outra: os escritores tiveram de dar
expressão a matéria local a partir de um arcabouço formal por vezes incapaz de dar
conta desse ineditismo. Fica claro, portanto, que o principal obstáculo para se criar uma
obra esteticamente válida em nossa literatura oitocentista passou pela preocupação dos
recursos formais que deveriam ser agenciados para dar voz e expressão a nossa cor
local.
Esse movimento de abarcar todos os cantos do país, que fez do romance um
instrumento de descoberta e interpretação (CANDIDO, 1975, 109), foi motivado pelo
nosso instinto de nacionalidade. O gesto de apropriar-se do índio, de descrever a hiléia
amazônica ou de pintar os costumes da corte brasileira e do interior do país estava
imbuído daquela necessidade nacionalista de erigir um teto simbólico que sublimasse
nossa realidade local e criasse uma identidade brasileira. Era um esforço claro de
construção de uma cultura nacional em que a nação pudesse se sentir representada na
forma mais ilustre do tempo – o romance. O mapeamento dos ficcionistas foi, em última
instância, o gesto literário – e nacionalista – de inserir o país no mundo da cultura
civilizada, criando representações nossas a partir de certas formas consagradas pelos
países que nos serviam de modelo.
E tamanha foi a euforia pela paisagem, que, se não for forçar a nota, diria inclusive
que essa adesão da prosa de ficção à realidade e ao nacionalismo literário foram
incorporados de tal modo pelo nosso sistema literário que se tornaram, pelo seu forte
peso ideológico, em uma espécie de “lei” da poética romanesca do Brasil, pois, desde
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então, a ficção estabeleceu um consórcio com o espaço geográfico e um


comprometimento com a identidade nacional 3.
Com base no consórcio entre romance e paisagem brasileira, formulou-se entre
nossos ficcionistas e teóricos um conceito que fez escola em nossa literatura. Trata-se da
idéia de observação e que vai gerar, já nas primeiras manifestações de maior fôlego do
romance, um instinto de fidelidade ao real – uma ética literária, por assim dizer – entre
os escritores e que levou Antonio Candido a ver nos romances do romântico Joaquim
Manuel de Macedo, um “pequeno realismo”.
Armava-se assim um ponto de vista sobre a nossa realidade. A máquina da ficção
abocanhava o país, tendo o nacionalismo como força motora e a observação como
ferramenta. Conseqüentemente, a representação ficcional da matéria local estava,
portanto, orientada pela necessidade de timbrar na literatura uma identidade brasileira.
Nesse sentido, o nacionalismo desempenha um papel fundamental para a fatura dos
romances do período formativo inicial: foi princípio de organização da matéria local
dentro do discurso romanesco. Como observa Antonio Candido, o nacionalismo
constituiu uma diretriz de leitura e organização no momento da elaboração da matéria
local em matéria ficcional, pois foi um ponto de vista pelo qual o autor operava sobre a
realidade, selecionando e agrupando os seus vários aspectos (CANDIDO, 1975, 111). O
nacionalismo, conjugado com a observação, constituiria uma maneira de o romance
existir como brasileiro.
A observação da realidade e a incorporação do dado local à estrutura romanesca,
entretanto, trouxeram, dentro desse ponto de vista armado sobre o Brasil, um problema
crucial para nossa série literária, a saber, a presença da particularidade brasileira na
forma do barbarismo 4 que, na mesma medida que era elemento definidor da
nacionalidade, uma vez que vinha a reboque da matéria local, era problema para a
representação no romance. Trata-se de um problema de fundo cultural, por sua

3
O estudo desenvolvido por Flora Sussekind, em Tal Brasil, qual romance? (1984), baseado na idéia de
repetições do naturalismo, desenvolve exemplarmente esta hipótese da dependência ficcional ao espaço
geográfico brasileiro. O presente estudo tenta mostrar que podemos fazer um pequeno deslocamento em
relação a origem dessa obsessão pelo apego ao “real” em nossa série literária.
4
Chamo de barbarismo certos valores da dinâmica da vida social brasileira que negam, em uma escala
variável, os valores dos países que nos serviam de modelo e dos quais recebíamos influxos ideológicos.
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persistência em nossa história literária, e que possui papel importante dentro da relação
observação e nacionalismo literário. A observação objetiva de corte nacionalista
tenderia cada vez mais ao complexo de inferioridade e menos a euforia do “ser
brasileiro” na mesma proporção em que esse barbarismo se acentuava na prosa de
ficção do 19. Releia-se, para exemplo, a passagem de Nabuco sobre a presença do negro
no teatro de Alencar.
Visto de longe, esse desconcerto entre matéria local e expressão literária possibilita
perceber que houve um problema comum para todos os escritores, imposto pelo
acentuado realismo do romance oitocentista, e que irmana autores tão díspares, numa
certa escala de valor, como Bernardo Guimarães e Manuel Antonio de Almeida;
Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar. Como notou Antonio Candido, esse
problema gera uma resposta que imprime um padrão peculiar em nossa prosa de ficção:

Levados à descrição da realidade pelo programa nacionalista, os


escritores (...) eram contudo demasiado românticos para elaborar um
estilo e uma composição adequados. A cada momento, a tendência
idealista rompe nas junturas das frases, na articulação dos episódios,
na configuração das personagens, abrindo frinchas na objetividade da
observação. (CANDIDO, 1975, 115).

A objetividade da observação, imposição do ponto de vista do nosso nacionalismo


literário, incompatibilizava-se, no plano ficcional, com a tendência idealizante que se
operava quando da representação ficcional da matéria observada. Isto é, o problema
comum de nossos romancistas era o de ler a realidade brasileira a partir da forma
romance. Parece um problema crucial para entender a ficção do período formativo:
apesar do movimento de observação da realidade, de fidelidade ao real, a representação
ficcional efetivava-se a partir de uma distorção idealizada da mesma realidade
observada. Imperou um aparente contra-senso entre nossos primeiros romancistas – uma
observação idealizada da realidade local5.

5
Trata-se, em partes, daquilo que Antonio Candido chamou de dupla fidelidade dilacerada: ao mesmo
tempo em que nossos romancistas eram fiéis a nossa realidade local, única maneira de guardar o timbre
de nacionalidade, eram também fiéis a certas maneiras de representar ditadas pela forma importada, o
romance (CANDIDO, 1975, 117).
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Até aqui, as linhas de força que compõe a formação de um teto simbólico em nosso
Oitocentos ficaram somente sugeridas: nacionalismo, observação objetiva e idealização
do objeto observado. Essas três linhas parecem que se impõe como questões
fundamentais para o início da prática romanesca no Brasil. Todos os escritores, desde os
precursores Joaquim Norberto, Teixeira e Sousa e J. M. de Macedo até Franklin Távora,
Machado de Assis e Taunay, tiveram que dar lidar com essas linhas de força. Antes de
mostrar o principal efeito dessas linhas na fatura das obras, gostaria de aprofundar a
discussão, ainda que rapidamente, com base em algumas reflexões de Franklin Távora
sobre a obra de José de Alencar.

2. Cartas de Semproneo a Cinncinato6

A leitura que Franklin Távora empreende dos romances de José de Alencar, nas suas
Cartas a Cincinnato (1872), está inserida nestas coordenadas que ficaram sugeridas
acima: clama por observação, critica a idealização “senial” e busca o fator nacional na
representação da matéria local – e a polêmica que a leitura de Távora provoca está
localizada justamente em como se representa essa matéria local. As Cartas, portanto,
enunciam em si os problemas do processo de representação ficcional no romance
oitocentista.
Quando Franklin Távora (1872) analisa o romance O gaúcho (1870) de José de
Alencar, anuncia desde o início que se trata de uma “fábula rachitica” (p. 4), que como
romance de costumes da campanha sul rio-grandense, “é desnaturado, falsissimo,
apocrypho” (p. 7). E completa: “Tal qual foi concebido e executado, importa a mais
pungente palinodia contra a gentileza, a masculinidade, a fama das illustres façanhas e
legendarias tradições do campeão das savanas austraes.” (p. 7). Em suma, o romance é
6
As cartas foram originalmente publicadas no periódico carioca Questões do Dia, dirigido por José
Feliciano de Castilho. Elas surgiram justamente no momento em que o diretor do jornal empreendia uma
demolição da carreira política de José de Alencar. Por muito tempo, essa polêmica literária de Távora foi
classificada como ataque meramente político e pessoal a figura de Alencar, como atestam algumas
afirmações, por exemplo, de Lúcia-Miguel Pereira. Recentemente a posição das Cartas, no que diz
respeito à literatura, vem sendo reavaliada por Eduardo Martins Vieira, professor da Universidade de São
Paulo.
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uma triste concepção que em nada contribui para a fixação de nosso “ser brasileiro”: “o
que fica fora de duvida (...) é que o Gaúcho não passa de uma produção cachetica, de
que a litteratura brazileira pouco se deverá lisonjear.” (p. 94) 7.
O que estaria por trás dessa recusa clara, por parte de Franklin Távora, da
permanência de O gaúcho no teto simbólico de nossa literatura? Vejamos.
De início, a recusa de Távora em aceitar o gaúcho como um tipo nacional
fundamenta-se no fato de José de Alencar não ter saído do Rio de Janeiro para escrever
o livro, isto é, de praticar uma literatura de gabinete – um argumento que arma toda a
leitura de Távora:

(...) Senio tem a pretensão de conhecer a natureza, os costumes dos


povos (todas essas variadas particularidades, que só bem apanhamos
em contacto com ellas) sem dar um só passo fora do seu gabinete. Isto
o faz cahir em frequentes inexactidões, quer se proponha a reproduzir,
quer a divagar na tela.
Porque (sic) não foi ao Rio Grande do Sul, antes de haver escripto o
Gaúcho? A litteratura é uma religião, e tem direito de merecer taes
sacrificios de seus sinceros cultores. Não nos teria então talvez dado
esses esboços de physionomia fria, de cutis contradictoria, concepções
hybridas, a titulo de figuras esculpturaes e legendarias de campanha.
(p. 15-16).

Freqüentes inexatidões: o romance de Alencar, para Távora, é uma série de


deturpações da realidade, pois o que impera como força de representação literária em O
gaúcho não é a observação objetiva, mas a imaginação falaciosa, criadora de “chimeras”
(p. 15): “Senio, á força de querer passar por original, sacrifica a realidade ao sonho da
caprichosa imaginação” (p. 14). O papel da imaginação na construção do romance é
inclusive pernicioso, principalmente da maneira como figura em O gaúcho, “porque
importa uma corrupção do sentimento natural e racional, o rebaixamento vivo e
indecoroso da especie.” (p. 7). A objeção de Távora sobre a criação de Alencar é o fato
de ela ser muito mais a projeção da imaginação do escritor, por isso arbitrária e
inverossímil, do que uma recuperação, por observação, da realidade local.

7
Mantive a ortografia da primeira edição em livro (1872). Daqui pra diante, cito com base nessa edição.
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Tal é o apego de Távora à idéia de que só a observação pode criar boas


representações do elemento nacional, que ele empreende uma verdadeira leitura
microscópica do romance alencariano, rastreando as inverossimilhanças da narrativa.
Távora se detém em uns dois ou três episódios para apontar os disparates no romance de
Alencar, criando uma discussão, por vezes, bizantina. E a leitura microscópica se pauta
na seguinte idéia: em “definitiva não ha criação; reproduzir, imitar, eis quanto nos
cabe”. Ou, dito de outro modo, em uma postulação: “Logo, a natureza em primeiro
logar, e depois complexa e completa observação” (p. 147).
Franklin Távora exige que a literatura seja um “daguerreótipo” da realidade,
emparelhando, sinonimicamente, verossimilhança textual e verdade externa. Entretanto,
uma pergunta surge ao longo de suas considerações, que matiza essa obsessão pela
fidelidade ao real: “E o cunho nacional de uma obra consistirá em reproduzir ella quanto
se acha em a natureza (sic), nos costumes do povo, nos preconceitos e fragilidades de
uma raça?” (p. 214). A noção de “imitação” e “verossimilhança externa” é matizada,
quando Távora concede espaço para o ideal na representação ficcional – e isso por conta
daquele desconcerto que a cor local produzia no âmbito do discurso romanesco:
“Segundo penso, meu amigo, e me parece recommendar a esthetica, o artista não tem o
direito de perder de vista o bello ou o ideal, posto que combinando-o sempre com a
natureza” (p. 215). Curiosamente, aquilo que Távora jogou pela janela entrou pela porta
dos fundos: a imaginação que havia sido desqualificada por deformar a realidade dá as
mãos à observação objetiva na medida em que se deve preservar uma “belleza ideal” (p.
215). A volta da imaginação, portanto, é devido a certos valores atribuídos a
representação literária e que, segundo Távora, deveriam ser preservados para o bem da
identidade nacional.
É nesse sentido que as passagens em que Távora se debruça sobre a representação
dos cavalos podem ser lidas como os momentos em que está em jogo tanto o rótulo de
inverossímil, concebido nos termos acima delimitados, como também a projeção de
certos valores atribuídos por Távora ao universo ideológico que as representações
literárias deviam possuir. É extremamente incomodo para Távora a humanização dos
cavalos: “São muito discretos, sensatos e reflectidos. A baia é sensível, amorosa e
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ciumenta de Canho; a tordilha tresanda a humanidade e a piedade christã; o alazão, o


pae do lote, é polido e cumprimentador como um conselheiro.” (p. 5-6). É inaceitável,
para Távora, que sejam tributados valores e sentimentos humanos aos animais, pois para
além da inverossimilhança que esse procedimento gera dentro de um romance que se
quer de costumes, ocorre um emparelhamento entre homem e animal, isto é, o animal se
humaniza e o homem se brutaliza: “para se chegar a humanisar a sociedade equina não
se hesita em cavallisar a sociedade dos homens” (p. 7). Ao analisar o uso da palavra
babujar, por exemplo, que é atribuída tanto ao poldro como a civilização, Távora
explode, dizendo:

Senio não se contenta sómente com dizer que o poldro babuja; e sem
se importar com o simile pouco lisongeiro a que dá logar seu vaidoso
capricho, faz também a civilisação babujar (como o cavallo) a
virgindade primitiva das regiões. Aqui não temos simplesmente o
rebaixamento do homem ao nivel de irracional, idea fixa e capital de
Senio em sua obra: temos mais isto: o phenomeno supremo e
providencial da humanidade, a civilisação, exerce a funcção do bruto
– babuja. (p. 44).

As queixas de inverossimilhança, portanto, estão veiculas a questão do rebaixamento


do homem, que num “romance de nacionalidade” é um tipo representativo, dentro do
processo de representação ficcional empreendido por Alencar.
A representação do ideal gaúcho de Alencar passa, em última instância, no consórcio
do bruto com o homem, sendo que muito do bruto prevalece sobre o homem. Canho é
mais primitivo que os cavalos. Daí a queixa de Távora sobre a humanização dos
animais, pois fazia frente, como disse anteriormente, a barbárie do herói. É isso que
Távora não aceita e que está em jogo nas suas concepção de objetividade, imaginação e
representação literária. O esforço analítico de Franklin Távora é movido por uma
necessidade coletiva – manter a presença de uma identidade nacional civilizada na
representação literária. O clamor pela observação objetiva e pela busca de uma
realidade ideal se justifica por esta tentativa de estabelecer na literatura nossa
identidade. No fundo, as Cartas a Cincinnato são menos uma tentativa de destruição
das bases do ideário romântico, como quer grande parte da crítica, e mais uma
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contribuição para o problema intrínseco que vinha se arrastando desde os primeiros


teorizadores de nossa literatura em como dar expressão à matéria local. Franklin Távora,
no final das contas, propõe uma correção das imperfeições da matéria local – gerando a
moralização em literatura e criando espaço para um veto ao ficcional em nossa série
literária.
Cabe destacar ainda que o comprometimento com a observação e a verossimilhança
externa faz Távora minimizar a importância do romance fantástico em prol de um
romance mais condizente com a realidade, por uma razão moral:

Parece-me, porém, que o romance tem influencia civilisadora; que


moralisa, educa, formão sentimento pelas lições e pelas advertencias;
que até certo ponto accompanha o theatro em suas vistas de conquista
do ideal social – prefiro o romance intimo, historico, de costumes, e
até o realista, ainda que este me não pareça caracteristico dos tempos
que correm. (p. 98).

O clamor de Távora pela observação, mérito atribuído pela crítica às Cartas, está sob
uma chave singular, pois vai para além de uma exasperação do sentimento de fidelidade
ao real de nossos escritores. Quando Távora propõe o conceito de objetividade, há por
de trás de sua intenção outro aspecto importante: recusar a concepção de realidade de
Alencar. Ao contestar Alencar por fazer a imaginação prevalecer sobre a observação,
Távora incide não numa maneira de proceder na relação com o objeto a ser
representado, mas nos mecanismo ideológicos que devem ser agenciados para que se
efetive a representação (“o belo ideal”). Ao vetar a imaginação alencariana, Távora
veta, na verdade, os valores que ele não reconhecia como dignos de figurar na ficção.
Está em jogo nas críticas de Távora, portanto, as projeções ideológicas que a
representação literária carrega em si, provando que o princípio realista que move o
romance oitocentista brasileiro é uma maneira ideológica de se ler uma realidade – ou
de mascara-la.

3. Forças de construção de um campo poético no Oitocentos brasileiro


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Dois pontos de vistas ideologicamente armados sobre a realidade e que


condicionariam duas maneiras de lidar com as forças antagônicas de nosso cenário
cultural, sugeridas pela ambivalência da cor local: de um lado, Franklin Távora que
pedia mais objetividade na ficção para se ter uma imagem ideal da nação; de outro,
Alencar, como bom conservador que era, grudando-se ao dado local até no que ele tinha
de desconcertante para a realização de nosso ideal de civilização, e sendo acusado de
criador de fantasias e quimeras.
Ambas as posições, que acabaram sendo o dois centros em torno dos quais os
intelectuais giravam, tiveram desdobramentos significativos na execução das
representações ficcionais do nosso oitocentos, pois fixaram, pelo seu forte poder
ideológico, dois tipos de narradores nos romances do período formativo inicial: um
narrador-naturalizador que insistia nos elementos da cor local até as últimas
conseqüências; o que implica em dizer que o barbarismo de nossa matéria local tinha
mais chances de aparecer na representação literária. Esse narrador traz para o centro da
trama ficcional aqueles elementos da cor local que podem gerar constrangimento no que
diz respeito ao projeto de construção de um país civilizado.
O outro narrador pode ser chamado de ilustrado. Seu principal traço é a insistência
em perseguir o ideal europeu, a partir de uma leitura da realidade brasileira fundada na
noção de beleza ideal da nação. Embora a cor local seja encarada como um elemento
necessário para a literatura manter seu timbre brasileiro, assume-se, deste ponto de
vista, que é necessário operar mudanças no momento da representação literária para
haver a correção dos “defeitos” do país. Trata-se de uma representação compensatória,
pois estava por detrás desta visão o esforço de afinar nossa experiência social e
intelectual com a Europa.
Duas posições ideológicas, dois narradores: um problema único – a
incompatibilidade da cor local com a estrutura romanesca, que gera por sua vez uma
frincha em nosso sentimento de nacionalidade, pois essa incompatibilidade é um
problema posto para a representação literária. Diante desse problema comum, pode-se
dizer que esses narradores se irmanam em um aspecto: esforçam-se ambos para
remendar as rachaduras da identidade. Mais, os dois narradores acionam um discurso
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moralizante toda a vez que o conteúdo cria alguma frincha na forma. E a moralização
transforma-se em mais uma lei para o campo poético brasileiro...

4. A moralização em literatura: Flora Süssekind e o veto ficcional no Brasil

Em nossa literatura oitocentista, a observação objetiva da realidade dá as mãos a


idealização do objeto observado – um contra-senso aparente que é desfeito, se
lembrarmos que os escritores eram guiados por aquele sentimento de estar fazendo um
pouco de nação ao fazer literatura, pois ambos os conceitos procuravam criar a imagem
do Brasil. O clamor pela observação objetiva e pela busca de uma realidade ideal se
justifica, portanto, por esta tentativa de estabelecer na literatura nossa identidade –
colar-se a realidade, mas não muito porque poderia aparecer algum aspecto
desconcertante na matéria local para identidade nacional.
O fato era que a conciliação dos aparentemente opostos se dava porque tínhamos um
problema não resolvido na prática romanesca entre nós: o ineditismo dá matéria não
possuía soluções formais de representação para a incompatibilidade ideológica que se
operava entre cor local e forma literária; ou valores ideologicamente carregados do
conteúdo com os valores ideologicamente presentes na estrutura. Aquela “lei” da
observação objetiva da realidade trouxe para o romance oitocentista uma segunda “lei”:
a moralização em literatura. A moralização é o mecanismo acionado entre nossos
ficcionistas por conta desta incompatibilidade da cor local com a forma romance.
Quanto mais se insistia na observação objetiva da realidade, mais a moralização
aflorava na prosa de ficção.
A conseqüência direta da observação objetiva e do moralismo para os romances do
período formativo inicial foi a criação de uma única interpretação toda-poderosa do
objeto representado. Para o bem da identidade nacional, o romance reproduz uma
realidade sem fissuras. Mais que isso: elabora uma imagem sem possibilidade de ser
ambígua. Assim, essa “obsessão pela ‘visibilidade’ do literário”, que produziu em nossa
literatura “uma ilusão extra-textual” (SUSSEKIND, 1984, 99) – ilusão extra-textual,
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bem entendido, de um ideal de realidade para o romance do período formativo – cortou


o vôo do ficcional na decolagem, isto é, já no início do romance brasileiro. Isso não
quer dizer que possuíamos documentos no lugar de ficções, como nota Flora Süssekind
sobre a prosa naturalista, mas que há um interdito histórico para aflorar aquela
linguagem opaca e a plurissignificância do texto – que qualifica certa noção de ficcional
–, pois numa prática romanesca que quer construir uma identidade nacional de uma
literatura em formação não há possibilidades de mais de uma imagem.
***
Observação objetiva, imaginação, idealização, nacionalismo literário, moralização,
veto ficcional – são estas as linhas de força que compõem a dinâmica de nosso campo
poético ou teto simbólico da literatura oitocentista. Pintado o painel, gostaria de
destacar, pondo de lado o sentimento de incompletude que as abordagens panorâmicas
produzem, uma vantagem metodológica que é a de tomar o sistema literário do período
formativo inicial em um movimento amplo, destacando certa homogeneidade em um
período tão heterogêneo como esse. É o que se tentou sugerir aqui.

Referências

BOECHAT, Maria Cecília. “Pela tradição interna do romance brasileiro”. In: Vários
autores. Estudos de literatura brasileira. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). Belo


Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, v. 1 e v. 2.

COUTINHO, Afrânio. A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro,


1965.

FARACO, Carlos. “Todos cantam sua terra/ também vou cantar a minha”. In:
ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1997.
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SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.

TAVORA, Franklin. (sob o pseudônimo de Semproneo). Cartas a Cincinnato.


Pernambuco: J. –W. de Medeiros, Livreiro-editor, 1872.
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ASPECTOS DO TRÁGICO EM ABISMO, DE POMPÍLIA LOPES DOS SANTOS

Fabiana dos Santos Zanquetta (PG-UEM)

Introdução

O presente artigo destina-se a uma possibilidade de leitura da obra Abismo, de


Pompília Lopes dos Santos sob a perspectiva de evidenciar indícios do trágico na
literatura de autoria feminina paranaense.
O romance Abismo (1985) se trata de um romance tipicamente marcado por
peripécias múltiplas à moda do romance tradicional, diferente da prosa intimista de
Clarice Lispector, Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles.
De modo geral, o livro retrata a história da protagonista Letícia. Moça bem educada
intelectual e moralmente, professora de piano, compositora e com um gosto apurado
para o artístico.
A partir do casamento, inicialmente feliz, sua vida sofre uma significativa
desestruturação. Inicia-se uma sequência de perdas como a sua separação do marido,
decorrente ao comportamento inadequado que este apresentava. A morte da mãe,
aparentemente causada pela tristeza de acompanhar o sofrimento da filha. O pai, vítima
de um derrame cerebral e seu único filho, devido um atropelamento. Finalizando, o
novo namorado rompe o compromisso, acarretando para Letícia uma decepção
emocional muito grande.
De acordo com as diversas peripécias que o romance apresenta, é possível realizar
uma análise de acordo com o trágico. Como base, teremos a teoria proposta por
Aristóteles.
Em relação à Pompília Lopes dos Santos, vale destacar que ela é uma escritora
curitibana, nascida no início do século XX, autora de quatro romances, sendo um deles
ganhador do 1º prêmio para romance histórico em 1960, através do Concurso do Centro
de Letras do Paraná. Em suas obras temos ainda, Biografias e Antologia.
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Pompília foi a primeira presidente da Academia Feminina de Letras do Paraná. Foi


há primeira mulher a ingressar na Academia Paranaense de Letras. Em sua formação
educacional, desde muito jovem, já manifestava gosto pela literatura.
A literatura de autoria feminina, em especial a brasileira, tem conquistado seu
espaço, mas sabemos que essa conquista é muito recente. Os grandes nomes
consagrados da literatura são quase que exclusivamente formados por homens, e essa
hegemonia além de privilegiar o masculino estabelece também a formação do cânone.
Porém, com o passar do tempo, um número cada vez maior de mulheres começa a
escrever, o que torna necessário rever os conceitos até então estabelecidos.
As conquistas sociais se estenderam para as conquistas do campo literário, a mulher
passou também a ser reconhecida a partir de sua capacidade de fazer literatura.
Garantindo o espaço literário, a mulher passa a ter oportunidade de expor suas ideias e
mostrar a sua capacidade intelectual, não só no âmbito da arte literária, mas também no
da crítica.
Com intuito de periodizar a história da escrita feita por mulheres, a norte-americana
Elaine Showalter (1985), um dos mais relevantes nomes da crítica feminista, propõe a
divisão da literatura de autoria feminina em fases. A primeira, “Fase feminina”
(feminine) que remete o processo de escrita como imitação e internalização dos valores
e padrões vigentes, em seguida a “Fase feminista” (feminist) que busca defender as
minorias e questionar os valores vigentes e a terceira “Fase fêmea” (female) que propõe
a busca de uma identidade própria. No Brasil, tem seu marco inicial, segundo Elódia
Xavier (1998), em meados do século XIX, com a publicação de Úrsula (1859), de
Maria Firmina dos Reis.
A contribuição de Showalter foi importante, no sentido de estabelecer parâmetros
para nortearem os estudos que se referem à literatura de autoria feminina, porém essa
classificação não é considerada uma regra fixa, imutável. É perceptível que mudanças
ocorrem e continuarão acontecendo e a busca de uma identidade própria é perseguida
pela literatura de autoria feminina.
Restringindo a discussão para o âmbito da literatura de autoria feminina paranaense,
é fácil perceber que durante a formação dessa nova sociedade traços culturais diversos
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misturaram-se e afetaram diretamente o comportamento provinciano de seu povo. Dessa


forma, a mulher sofreu o maior impacto dessas mudanças, principalmente no que se
refere a sua conduta. Segundo Níncia Teixeira
O comportamento da mulher paranaense, conforme o lugar que ocupa
dentro dessa sociedade, é permeado de regras e traços de uma
sociedade agrária, que exige um comportamento recatado e
doméstico próprio dos costumes de vida nas fazendas, regras que
estão enraizadas não só na classe dominante, mas que também
orientam o comportamento das famílias de classe alta e média [...]
(2008, p. 68).

Nesse sentido, observamos que a mulher fica restrita a um papel secundário dentro
da sociedade em que está inserida, o que fortalece ainda mais a vigência das regras
patriarcais que norteavam seu comportamento no século passado.

1. Alguns aspectos do trágico e tragédia

Existe uma relação entre o trágico e a tragédia, e a resposta para definir esses dois
conceitos é bem mais complexa do que parece.
Quando nos referimos ao trágico, estamos enfatizando aspectos que remetem a tudo
que traz a morte, fatos que causam a desgraça ou situação de desastre. Na verdade o
trágico tem por finalidade descrever certos tipos de experiências humanas que, na
maioria das vezes, resultam em catástrofe.
O trágico pode estar bem próximo de nós, enquanto seres humanos, e para conhecê-
lo profundamente é fundamental que “designamos por possibilidade de relação com o
nosso próprio mundo. O caso deve interessar-nos, afetar-nos, comover-nos” (LESKY,
1996, p.33), ainda na perspectiva de Lesky só será possível experimentar o trágico, quando
formos atingidos no mais profundo do nosso ser.
Sem sombra de dúvida, podemos afirmar que os gregos foram os responsáveis pela
criação da Arte trágica, e com isso conseguiram realizar uma das maiores proezas, mas
“não desenvolveram nenhuma teoria do trágico que tentasse ir além da plasmação deste
no drama e chegasse a envolver a concepção do mundo como um todo”. (LESKY, 1996,
p. 27).
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O termo trágico tem por finalidade qualificar as produções artísticas, nas quais a
presença de características essenciais da tragédia grega faz-se conhecida por todos, sem
a preocupação de ter sido escrita para ser encenada. O trágico se torna
um rito solene não por qualquer formalismo superficial, mas por ser o
desfile da consciência diante do espelho desnudo da existência. É
como se, nesse momento, o social mais imediato fosse abolido, como
se a distância entre o alto e o baixo fosse a catapulta necessária para,
com o impulso da queda, arremessar e mergulhar um homem lúcido,
com toda a força, no coração da matéria. (KOTHE, 1985, p. 29)

Para que ocorra o nascimento do trágico é necessário que aconteça um conflito entre
“ethos (caráter)” e “dáimon (a força, gênio mau)”. De acordo com Costa e Remédios é
necessário que exista dois planos, divino e humano, assim a personagem trágica vive o
conflito de duas ordens diferentes “a do passado mítico, cheio de um poder religioso, e a
do presente, onde é um cidadão como qualquer outro, sujeito ao veredicto de um
tribunal” (p. 52).
A tragédia deve ser vista como o gênero dramático de literatura que atingiu destaque
especial na Grécia. Ao observar esses dois termos nota-se que é difícil existir tragédia
sem a presença do trágico. Ao mencionar a tragédia, rapidamente vem a nossa
lembrança Aristóteles. Esse renomado filósofo grego foi um dos maiores de todos os
tempos deixando produções intelectuais que nos auxiliam até a atualidade.
Em sua obra Poética, produzida a mais de dois mil anos, Aristóteles oferece uma
leitura fundamental para todas as pessoas que se dedicam a estudos clássicos. Nessa
obra, Aristóteles procura definir a tragédia e os elementos básicos para que ela aconteça.
Segundo esse autor
É pois a Tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa
e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias
espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama],
[imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e
que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação
dessas emoções. (1992, p. 37)

Para que uma tragédia seja considerada de qualidade, é necessário que esta possua
seis partes constitutivas são elas: Mito, Caráter, Elocução, Pensamento, Espetáculo e
Melopeia. Porém, o elemento de maior destaque fica com o Mito, pois a “tragédia não é
imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas
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felicidade] ou infelicidade reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não
uma qualidade”. (1992, p. 41)
Na condição de imitação das ações da vida humana o Mito para Aristóteles é como
se fosse à alma da tragédia. Esta deve conter princípio, meio e fim oportunizando a
narrativa, a possibilidade de começar e terminar em momentos oportunos.
Em segundo lugar Aristóteles faz menção as personagens e em seguida os outros
elementos acima citados. No capítulo XV da Poética, Aristóteles traça o perfil ideal de
como deve ser representado o caráter dos personagens em uma tragédia.
Inicialmente esse herói deveria apresentar como principal virtude ser bom, mas não
exclusivamente bom:
Isto porque de um lado seria chocante a queda de alguém
extremamente virtuoso, e de outro, imprópria a queda de um homem
perverso, por se apresentar como um resultado merecido.
(CARVALHO, 1998, p. 148)

A qualidade que ocupa o segundo lugar é a conveniência que, por sua vez, enfoca um
caráter de virilidade. Essa qualidade acaba por excluir a mulher, pois se alega que as
características de “viril ou terrível” não convêm à mulher.
A terceira qualidade, segundo Aristóteles, é a semelhança. Porém, não fica
estabelecido o ponto de referência a que devemos ter como objeto de comparação para
essa semelhança mencionada. Alguns estudiosos supõem que exista uma semelhança
entre o mito e a história, outros pensam que os caracteres devam ser “semelhantes à
realidade”.
Aristóteles finaliza com a quarta qualidade, a coerência. As personagens devem ser
concisas dentro do drama, ou seja, suas ações devem culminar para que ocorra uma
coerência dentro do enredo.
Em síntese, para que os caracteres atinjam um patamar de excelência eles “devem ser
normalmente bons (ou participantes de um grau de excelência), adequados, semelhantes
à vida (ou ao mito), e, finalmente, coerentes” (CARVALHO, 1998, p. 163).

2. Abismo: uma proposta de leitura através do trágico


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Para os aspectos do trágico na obra Abismo, da paranaense Pompília Lopes dos


Santos, foi observada à trajetória da protagonista Letícia.
Para que uma tragédia tenha um desenvolvimento perfeito é relevante que esta
possua três unidades fundamentais: ação, tempo e lugar. Dentro da ação, unidade
essencial, é necessário que seja evitada a diversidade de enredos, ou seja, devem ser
enfocados apenas aspectos relevantes da narrativa, é o que acontece em Abismo.
Existem as histórias paralelas, que tratam da vida dos familiares de Letícia. Porém,
afunilam-se e acabam conduzindo a narrativa para um enfoque central. A partir do
casamento, a narrativa centraliza-se totalmente em um único foco: a relação de Letícia
com o marido Altino, que desencadeia todos os acontecimentos trágicos na vida dessa
mulher: “numa bela manhã de abril, dentro do círculo restrito da família, realizou-se
com toda a simplicidade, o casamento de Letícia e Altino”. (SANTOS, 1985, p. 22)
Percebe-se ainda, que existe uma sequência ordenada dos acontecimentos. Durante
esse percurso a heroína passa pela mudança de fortuna, mas a narrativa se apresenta
compacta e estruturada com um início, meio e fim.
O tempo da narrativa diferencia-se da proposta por Aristóteles. Para ele o ideal seria
que os fatos ocorressem em mais ou menos vinte e quatro horas. Porém, podemos
afirmar que o tempo não é uma medida objetiva psicológica, ou seja, as narrativas
adquirem características diferentes conforme o autor, e na obra em questão o tempo fica
em torno de aproximadamente vinte anos.
O espaço fica restrito a três pólos principais: Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. O
Paraná é cenário antes do casamento de Letícia e após sua separação. Em São Paulo a
permanência é um pouco maior. Nesta cidade acontecem mistos de alegrias e tristezas: o
matrimônio e o divórcio. No Rio de Janeiro, tem-se o início da vida a dois e começa a
ser revelada a diferença de caráter entre ambos.
Dentro do enredo estão presentes as três partes sugeridas por Aristóteles: a peripécia,
o reconhecimento e a cena de sofrimento. A peripécia ocorre através de um fato
negativo que incide na vida da personagem. Em Abismo o leitor é avisado com
antecedência sobre esse fato negativo. A narrativa apresenta marcas do futuro incerto
que a personagem passaria até a sua catarse “o Sr. Manfredo Magalhães, culto e
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experiente, foi o único que enxergou a farsa em toda a sua extensão. Mas...já era tarde!
O noivo estava muito íntimo...” (SANTOS, 1985, p. 22)
Quando mencionamos o reconhecimento, devemos ter em mente que o herói trágico
tomará consciência de algum fato que até então era desconhecido. No caso de Letícia,
esse fato é o desencadeador de uma série de conflitos, que na verdade vinham sendo
mostrados a ela, mas que por medo e ingenuidade não a deixavam acreditar. O trecho a
seguir demonstra o tom de anúncio da irregularidade
Altino jamais lhe falara em nenhuma espécie de emprego. Andava
sempre endinheirado, mas, nunca trabalhava. Notou que, de vez em
quando, seu marido era procurado por um indivíduo bem vestido e
mal encarado, que o esperava na portaria do hotel e de lá, mesmo, se
retirava (SANTOS, 1985, p. 24)

Mesmo com tantas evidências, Letícia se recusava a aceitar que algo errado estivesse
ameaçando seu casamento e outra situação de constrangimento assola sobre a
personagem: “com passos incertos acompanhou o homem que devia ser polícia secreta.
Nessa mesma noite, sem interrogatório, foi detida com ordem de ficar incomunicável”.
(SANTOS, 1985, p. 29)
Esses são alguns precursores que desencadeariam uma série de conflitos internos e
externos. Quanto ao primeiro fica evidente um desgaste moral “Letícia estava passando
bem de saúde, mas, seu abatimento moral era extremo” (SANTOS, 1985, p. 30), e para
complementar os fatos que pouco a pouco ganhavam visibilidade “alguns meses mais
tarde, Letícia foi notificada de que seu marido fora condenado a dois anos de prisão
celular, em conseqüência de haver falsificado firmas”. (SANTOS, 1985, p. 31)
Esses são os primeiros elementos que causariam fator determinante para a mudança
de fortuna. A sofrida preparação que Letícia enfrentou foi apenas o começo da série de
episódios trágicos que estavam por vir. A cena de sofrimento, a qual Aristóteles se
refere, é a presença de situações tais como: a morte ou alguma desgraça que
consequentemente será fundamental na ordem e no rumo dos acontecimentos. O
sofrimento é visto como uma punição, porém pode ser interpretado como uma forma de
autoconhecimento.
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No decorrer da obra, as partes mais relevantes no que se refere ao sofrimento da


heroína trágica são as sequências de decepções e perdas que ela enfrenta. A primeira
delas é com o marido. Após tantos indícios da má índole do companheiro, ele supera
todas as atividades ilegais feitas até o momento e “negocia” com o amigo Rangel a
própria mulher em troca de dinheiro: “o Rangel, rico e desprendido como é, era para
mim, a maior das esperanças. Agora...está tudo perdido. Salvo se você quiser reparar
sua falta...[...] Quando, teve um colar como aquele?..." (SANTOS, 1985, p. 39). O fato
de Letícia ter sido “negociada” evidencia toda sua ingenuidade e a total confiança no
marido, porém ao se deparar com tamanha falta de caráter de ambos, se posiciona
decididamente em não ser mais manipulada, ocasionando uma mudança radical em sua
vida.
As sucessões de perdas da vida de Letícia se deram em um curto período de tempo.
Sua mãe “D. Santa adoeceu, seriamente, em conseqüência dos sofrimentos de Letícia.
Faleceu, poucos meses após a chegada da filha a sua casa” (SANTOS, 1985, p. 40).
Passados alguns anos “o Sr. Magalhães faleceu em conseqüência de um derrame
cerebral. O mal apresentou-se fulminante. Letícia sentiu muito a morte do pai”.
(SANTOS, 1985, p. 41- 42). Mas, nenhum acontecimento foi tão significativo quanto à
perda do filho “apanhado por um automóvel em plena rua, Alexandre morre
instantaneamente. Completara dezesseis anos e era já, um virtuose de raros dotes
artísticos” (SANTOS, 1985, p. 42).
Toda a tragédia que recai sobre a vida de Letícia nos leva a pensar sobre outro
conceito proposto por Aristóteles, a catarse. Segundo ele, a catarse é uma forma de
causar horror e piedade em relação ao herói desafortunado.
A catarse também pode ser entendida como uma maneira de purificar-se pelo
sofrimento do outro, ou seja, indiretamente. É o que acontece com Letícia. Através da
tríade sequencial de mortes, ela passa de um estágio estável para um estágio de
desestruturação moral e psicológica: “vivia desesperada. Parecia enlouquecer.
Abandonou as alunas. Cessou o motivo pelo qual vivia. Não precisava viver. Preferia
morrer. Em nada pensava...” (SANTOS, 1985, p. 43)
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Esses acontecimentos foram o ponto de partida para que Letícia mudasse


completamente sua vida, principalmente na conduta moral. A mudança radical de
comportamento por que passa a personagem a essa altura de sua trajetória, aponta para
que ela passasse a fazer tudo o que antes considerava moralmente incorreto “fumava,
bebia e jogava em público” (SANTOS, 1985, p. 44), porém, apresentando uma
dualidade “prezava e conservava sua dignidade, porque era honesta” (SANTOS, 1985,
p. 44).
Depois de alguns anos nessa fase de desestruturação familiar e psicológica, Letícia
resgata a vida habitual, ao impedir o suicídio de um rapaz que segundo ela era “um
jovem, exatamente, como deveria estar Alexandre, se fosse vivo. Parecia ser seu
filho...tinha um ar triste, acabrunhado. Parecia infeliz, mergulhado em profundos
pensamentos” (SANTOS, 1985, p. 45), o retorno demonstra a retomada da consciência
de que fugir dos problemas, ou amenizá-los através de uma conduta “imoral”, não seria
a forma ideal de resolver seus problemas.
A heroína trágica dessa narrativa resgata através do sofrimento, sua vida honesta e
moralmente correta, e na tentativa de reverter os erros, através de atos de caridade se
redime ajudando pessoas necessitadas. Por outro lado, percebemos que os
acontecimentos trágicos em sua vida ganhariam foco novamente. Ao conhecer Celso,
Letícia pretende reconstruir sua vida, e a partir daí esquecer as diversas dificuldades
“ele agradava, naturalmente. [...] Era humano. Era como os pais de Letícia, como os
irmãos, como Roberto. Era pessoa de seu mundo”. (SANTOS, 1985, p. 49), Celso seria
uma forma de redenção dos infortúnios enfrentados.
Mas acontece o inverso, a personagem caminha frente a um desfecho sem final feliz.
Os fantasmas do passado contribuem e colocam um ponto final na felicidade de Letícia
“Rangel, insatisfeito em sua paixão interior, não perdera Letícia de vista. Sem que ela
soubesse acompanhou todos os seus passos [...] (SANTOS, 1985, p. 59).
A tragicidade dos fatos tomariam proporções irreversíveis. Com o retorno de Rangel,
instaura-se o caos. Ele consegue através da intriga destruir o relacionamento do casal
“caríssima Letícia: liberto-a do compromisso assumido comigo. Haverá quem seja mais
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digno de seu amor e capaz de fazê-la perfeitamente feliz. Você merece o melhor
possível. Celso”. (SANTOS, 1985, p. 66).
Esses fatos resultam na invalidez da mulher que até agora buscava apenas algo que
nunca realmente conhecera: a felicidade. “Letícia quedou-se imóvel. Alheia, indiferente
a tudo. E, no dia seguinte, não reconheceu a aluna que foi procurá-la. Esqueceu, até, a
própria identidade! Letícia! Letícia!... (SANTOS, 1985, p. 66-67)
O fim trágico de nossa personagem culmina com o sofrimento físico e mental que
resulta com a sua morte “reconhecera-o, num lampejo de lucidez. Depois, sucumbiu.
Sua cabeça tombou para a frente. Seus cabelos se espalharam sobre o marfim...e tudo
terminou” (SANTOS, 1985, p. 70-71)
Dentro das qualidades essenciais para as personagens de uma tragédia, conforme
Aristóteles, apontaremos dentro da narrativa essas comprovações. O primeiro é que a
personagem deve ser bom. Letícia “tinha olhos sonhadores, distantes, capazes de afastar
qualquer pensamento mau, daqueles que dela se aproximassem. Amava a música e
desde pequena estudou piano”. (SANTOS, 1985, p. 13). Para ela fica fácil elencar
qualidades e atributos que a qualifiquem positivamente “bondosa, como era, emprestava
suas virtudes ao noivo e o julgava perfeito” (SANTOS, 1985, p. 22), o que reafirma e
intensifica o caráter do herói como símbolo da bondade.
A conveniência proposta por Aristóteles, como já citado anteriormente, não se atribui
à mulher, porém podemos repensar essa qualidade de caráter ao considerarmos que
Letícia, a sua maneira, lutou contra as armadilhas impostas pelo seu destino trágico até
que a situação toma rumos incontroláveis. A situação foge de seu controle quando passa
para um âmbito de doença física, ou seja, já não dependia unicamente dela para se
reestabelecer. Mesmo assistida por profissionais médicos especialistas, estes, porém,
não conseguiram mudar o quadro clínico a que ela se encontrava.
Quanto ao caráter de semelhança, considerado como “semelhantes a nós”, temos que
a heroína se enquadra dentro desses padrões de proximidade entre o herói e as demais
pessoas. Letícia integrava uma família comum bem estruturada e que possuía padrões
éticos e morais. Ela por sua vez, também se ocupava de atividades que condiziam com
suas aptidões fator que reafirma ainda mais a semelhança com as pessoas comuns
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“interpretava música clássica, trechos de ópera. [...] Compunha música e tocava com
sentimento, as sonatas e os noturnos que nasciam de sua inspiração. (SANTOS, 1985, p.
17)
Finalizando com a coerência, última qualidade reservada à personagem. Durante toda
a narrativa ela se apresenta com princípios morais éticos, apesar dos conflitos que
emergiam a todo momento em sua vida. Ela segue um padrão de coerência linear.
Alteram-se os fatos, mas a conduta da personagem mantém-se estável “Letícia parecia
invulnerável, continuava pura ao lado do vício, alva no meio do lodo. [...] Uma auréola
impenetrável a cercava e irradiava a beleza sonhada para enfeitar a feia realidade”.
(SANTOS, 1985, p. 37). Nessa passagem da boa para a má fortuna, a personagem sofre
várias provações e acaba sendo punida com a morte, fato que determina o fim da
heroína e da narrativa.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1992.
CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Interpretação da “Poética” de Aristóteles. São
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Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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TEIXEIRA, Níncia C. R. B. Escrita de mulheres e a (des)construção do cânone


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XAVIER, Elódia. Narrativa de autoria feminina na literatura brasileira: as marcas da
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EÇA E SARAMAGO: A DESCONSTRUÇÃO DOS CANONES CRISTÃOS

Fábio Gonçalves Fernandes (G-UEM)


Marisa Corrêa Silva (UEM)

Introdução: O Fantástico na Literatura

Desde sempre o ser humano têm se deparado com situações para as quais não
consegue encontrar explicação. Situações que fogem das leis que o homem julga serem
naturais. Essas situações causam estranhamento ao homem, pois ele sente sua
aparentemente sólida representação do universo modificada e/ou ameaçada por alguma
coisa que desconhece.
Para aquilo que não se pode entender, e que intriga o ser humano, há sempre a
busca por alguma resposta, uma explicação, algo que sane ou minimize o mal-estar
frente àquilo que ameaça romper a lógica interna da sua representação do mundo. Assim
surgiram as ciências, na tentativa de explicar os fenômenos incompreendidos.
Nas artes, a incompreensão, a curiosidade, a fuga do real, ganharam outras
perspectivas. Os artistas, por muitas vezes, utilizam a fuga ao “real” interpretada como
liberdade para desenvolver suas ideias, seja sob a forma de simbolismos, seja de
arquétipos, seja de distorções propositais. Na literatura, diversos são os textos que
apresentam tais características, e, na tentativa de entender melhor essas características,
alguns críticos literários pesquisaram e escreveram suas ideias acerca do tema.
Desenvolveram então, teorias que se denominavam Fantástico, Maravilhoso e Estranho,
gêneros vizinhos. Sendo o foco deste trabalho o Fantástico na literatura, iremos
contemplar apenas a teoria proposta por Tzvetan Todorov acerca do gênero Fantástico,
que nas suas próprias palavras se trata de:

A hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis


naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural [
...] Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas
maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A
possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico
(TODOROV, 2004, p.31).
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Em outras palavras, o efeito fantástico na literatura se trata da hesitação da


personagem ou do leitor diante de algum acontecimento estranho a sua realidade. A
perplexidade diante de alguma quebra das leis que regem o universo estabelecido.
Assim, a confusão com outros gêneros é comum, por serem tão estreitas suas divisões,
logo, deve-se agir com cautela na distinção do Fantástico para com seus gêneros
vizinhos, como salienta Todorov:

O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra


resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero
vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a
um acontecimento aparentemente sobrenatural (IBIDEM, p. 31).

Percebemos então que estabelecer alguma obra literária como pertencente ao


gênero Fantástico é uma tarefa complexa, pois, o Fantástico e seus vizinhos são
separados por uma linha muito tênue. É neste ponto que reside o desafio de estabelecer
as características fantásticas dos romances A Relíquia e O Evangelho Segundo Jesus
Cristo.

1. A Relíquia

A Relíquia traz o narrador/personagem Teodorico Raposo, que, primeiramente,


retrata ao leitor o círculo social onde é criado pela tia, uma viúva rica e beata fanática.
Neste contexto nos é apresentado um universo extremamente religioso, com padres e
religiosos que prezam muito a fé e, mais ainda, a fortuna da tia de Teodorico. O menino
recebe o que era considerada, na época, uma boa educação e, quando deixa de ser
criança, percebe que sua principal vocação é a devoção ao sexo oposto, tornando-se,
então, um grande mulherengo. Posteriormente, Teodorico realiza uma viagem à Terra
Santa para satisfazer os desejos religiosos de sua tia, além de seus próprios desejos
sexuais, conhecendo a personagem Miss Mary. É nesta viagem que Teodorico tem
sonhos nos quais conhece o Diabo e presencia a Paixão de Cristo, episódio que nos é
apresentado de uma maneira diferente da que conhecemos.
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1.1. O Fantástico e a Relíquia


O primeiro personagem bíblico a figurar na narrativa de Eça é, nada mais, nada
menos, que o próprio Satanás, pintado de uma maneira extremamente cômica, sendo o
primeiro a aparecer no sonho de Teodorico. Os dois conversam e surge até uma espécie
de camaradagem. O Diabo fala a Teodorico sobre as outras religiões que se passaram e
de como a Terra era mais divertida antes do cristianismo;

Mas aparecera este carpinteiro de Galileia – e logo tudo acabara!


A face humana tornava-se para sempre pálida, cheia de
mortificação: uma cruz escura, esmagando a terra, secava o
esplendor das rosas , tirava o sabor aos beijos: - e era grata ao
deus novo a fealdade das formas. (QUEIROS, 1887, p.106)

No romance de Eça, o Diabo não é a figura representante de todo o mal, o


Senhor das Trevas, tal como apresentado na tradição cristã: para nossa surpresa,
apresenta sentimentos humanos, como a tristeza. O personagem diabólico conversa com
Teodorico amigavelmente e fala sobre seus problemas. Teodorico, por sua vez, fica
compadecido, e tenta consolar o novo amigo.

Julgando Lúcifer entristecido, eu procurava consolá-lo: Deixe


estar, ainda há-de haver no mundo muito orgulho, muita
prostituição, muito sangue, muito furor! Não lamente as
fogueiras de Moloch. Há-de ter fogueiras de judeus. E ele,
espantado: Eu? Uns ou outros, que me importa, Raposo? Eles
passam, eu fico! (QUEIROS, 1887, p.106)

Mais tarde, no romance, Jesus Cristo nos é apresentado; entretanto, é um Cristo


com características diferentes das que a doutrina cristã tem como verdadeiras, diferente
do Cristo narrado pelos Evangelhos, diferente das representações populares. É um
choque para o leitor a maneira como Teodorico testemunha a “verdadeira história” do
personagem símbolo da religião cristã. Na Relíquia, Jesus não é Deus, mas um
personagem repleto de humanidade.

E aquele homem não era Jesus, nem Cristo, nem Messias – mas
apenas um moço de Galiléia, que cheio dum grande sonho,
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desce da sua verde aldeia para transfigurar todo um mundo e


renovar todo um céu, e encontra a uma esquina um Netenim do
Templo que o amarra e o traz ao pretor, numa manhã de
audiência,entre um ladrão que roubara a estrada de Siquém e
outro que atirara facadas numa rixa em Emath! (QUEIROS,
1887, p. 119)

Ao longo do romance, vários episódios bíblicos são desmitificados e um, em


especial, chama mais a atenção. A ressurreição de Cristo, um episódio importantíssimo
na tradição cristã, é recontado de maneira diferente. Em A Relíquia, tudo não passou de
um plano mal sucedido. Jesus Cristo ingerira uma substância que o deixaria como morto
mas, posteriormente, após o efeito passar, Jesus “ressuscitaria”. Entretanto, algo no
plano falhara e Jesus morrera,

Demos-lhe a beber os cordiais, chamámo-lo, esperámos,


orámos... Mas ai! Sentíamos, sob as nossas mãos, arrefecer-lhe o
corpo!... Um instante abriu lentamente os olhos, uma palavra
saiu-lhe dos lábios. Era vaga, não a compreendemos... Parecia
que invocava seu pai, e que se queixava de um abandono...
Depois estremeceu: um pouco de sangue apareceu-lhe ao canto
da boca... E com a cabeça sobre o peito de Nicodemus, o rabi
ficou morto!(QUEIROS, 1887, pg.265)

Assim, percebemos que o texto de Eça dialoga com um universo, de certa


maneira, diferente daquele que estamos habituados. A Bíblia cristã é um livro muito
influente nas sociedades ocidentais e, desconstruindo as bases deste livro,
automaticamente se constrói uma sensação de perplexidade diante de algo diferente.
Apesar da crescente diminuição da importância do pensamento religioso na prática
cotidiana constatado já por Friedrich Nietszche, no século XIX, muitas pessoas ainda
crescem ouvindo histórias bíblicas e fazendo delas fontes dos modelos de moral e de
ética a serem seguidos: quando deparamos com a desconstrução de tais cânones
bíblicos, temos, para além da vaga sensação de “heresia”, uma fuga daquilo que
tomamos como o “real” estabelecido pela tradição e/ou pela fé.
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2. O Evangelho Segundo Jesus Cristo

Em 1991, José Saramago publicou o romance O Evangelho Segundo Jesus


Cristo, que propõe um recontar da vida de Jesus e de outros episódios eternizados pela
religião cristã. Vera Bastazin, em seu livro Mito e Poética na Literatura
Contemporânea, discorre acerca do romance de José Saramago.

O romance reconta episódios do nascimento, vida e morte de


Cristo, aquele que, filho de Deus, veio à terra com a missão de
redimir os homens por meio de seu sofrimento e morte na cruz.
Entretanto, essa história se modifica, não no seu todo, mas nos
pequenos episódios que compõem a macronarrativa, e essa
ruptura ocorre não apenas em nível semântico – que subverte
significados seculares, sedimentadores de toda uma cultura
cristã – mas também na estrutura da obra, na linearidade
narrativa, que se rompe, com frequência, para dar espaço a
afirmações irônicas, alegóricas e, por vezes, de humor
sutil.(BASTAZIN, 2006, p.19)

Então, o romance de Saramago recria uma narrativa que segue o modelo de um


Evangelho. Entretanto, o autor usa da liberdade literária para expôr de maneira diferente
episódios e personagens cuja trajetória vem sendo narrada reiteradamente, de forma a
desencorajar dúvidas e/ou reinterpretações, pelas religiões cristãs.

2.1. O Fantástico no Texto Saramaguiano

Uma das principais características do romance é trazer personagens tidos como


sagrados pela religião como simples seres humanos, com defeitos e virtudes, fugindo
totalmente dos moldes tradicionais. São inúmeras as divergências entre a Bíblia Cristã e
o Evangelho de Saramago, no qual, em alguns trechos, o próprio Jesus, que fora
assimilado a Deus (embora com diferenças, como a de substância divina, que causou o
cisma entre as igrejas católica romana e ortodoxa) pela tradição cristã e, de forma
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equivocada, santificado pelo apelo popular de sua figura (muitos católicos referem-se ao
Menino Jesus como “o Santinho”), se define inteiramente humano,

[...]Como pode um homem ser filho de Deus, Se és filho de


Deus, não és um homem, Sou um homem vivo, como, durmo,
amo como um homem, portanto sou um homem e como homem
morrerei. (SARAMAGO, 2006, p.305).

Neste trecho, Jesus atribui a si mesmo características humanas, com destaque


para a capacidade de realização amorosa; nesse ponto, reside uma das divergências mais
evidentes entre o texto de Saramago e a tradição religiosa. Segundo a fé cristã aceita
pelas instituições católicas e protestantes, Jesus não teria tido experiências amorosas
com nenhuma mulher, o que lhe reforçaria a pureza e santidade. Porém, no Evangelho
Saramaguiano, da mesma forma que em alguns textos apócrifos, Jesus se relaciona com
Maria Madalena, outra personagem bíblica que toma novas formas no texto alternativo
do escritor português:

Maria de Magdala apareceu, nua. Nu estava também Jesus,


como ela o deixara […] Maria de Magdala, que dizia, Calma,
não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então
sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo
dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um
estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-
se, e que de súbito se escapava gritando, impossível, não pode
ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao
mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo
sobre o dele (SARAMAGO, 2006, p.234 -5)

No romance de Saramago, além de Jesus, o próprio Deus apresenta


características humanas. Murilo Moiana, em seu artigo “A humanização do divino em O
Evangelho Segundo Jesus Cristo”, discorre sobre o Deus presente no romance de José
Saramago:

A personalidade de Deus. Uma personalidade irônica,


aparentemente sádica e que sempre deixa que suas vontades, por
díspares que pareçam, sejam as únicas verdades, nos leva a
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pensar que Deus é o antagonista da humanidade por fazer dela


apenas o meio para satisfação de seu id, ego e superego.
(Moiana, 2004, p.1)

No trecho a seguir, Deus perde a condição de absoluto (Todo-poderoso e fonte


de todo o Bem), cristalizada na cultura popular e na religiosa, e reconhece precisar de
ajuda, como qualquer ser humano,

E este filho que sou, para que o quiseste, Por gosto de variar,
não foi, escusado seria dizê-lo, Então Porquê, Porque estava
precisando de quem me ajudasse aqui na terra, Como Deus que
és, não devias precisar de ajudas, Essa é a segunda questão.”
(SARAMAGO, 2006, p.306)

Além de humanizado, o Deus recriado pelo evangelho de Saramago lembra,


muitas vezes, os Deuses sedentos de sangue de diversas mitologias. Também lembra, de
certo modo, os deuses do Olimpo e os do Walhala, em suas buscas por poder e
hegemonia. Isso parece estranho aos nossos olhos pois, influenciados pelas religiões
modernas, como o Cristianismo, o Islamismo, o Ba'Hai – e deixando de fora o Budismo,
por exemplo - temos como ideia de Deus um bom pai e criador de todas as coisas, um
ser absoluto que não pode ser contestado e que rege todas as leis do universo, logo, que
não teria a necessidade de buscar o poder ou de lutar para preserva-lo. Encontramos
neste ponto uma certa ganância e/ou vaidade, ou seja, características humanas
impressas na figura maior da religião, Deus.
A sequência do diálogo no pequeno bote no Mar da Galiléia, do qual Jesus é
testemunha muda e durante o qual Deus combina com o Diabo o nascimento da nova
religião, que renderá mortes e calamidades em fim para a satisfação da vaidade divina,
reintroduz uma dimensão pagã nesse Deus. Assimilado às deidades que se deleitam com
as desgraças humanas e que se divertem manipulando as Criaturas, Deus é repugnante
para o próprio Jesus. Apesar disso, submetido à vontade do Pai pelo poder deste, Cristo
não consegue alertar os humanos sobre seu verdadeiro papel no que se configura como
uma comédia macabra, destinada a criar uma tradição religiosa hipócrita, que concilia o
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discurso da piedade, da caridade e da tolerância com os futuros autos-da-fé, Cruzadas,


Noites de São Bartolomeu, massacres diversos etc.
Tal sanguinarismo entra em choque com a proposta aceita pelos cristãos
contemporâneos de que o ser humano deve se aprimorar, agindo com bondade e
tolerância para com os outros. Assim, não apenas o Deus do Evangelho saramaguiano é
humanizado, mas acaba por ser mesmo degradado, apresentado como dono de
sentimentos e apetites que seriam considerados “maus” e “inferiores” num ser humano.
Em duas palavras, Deus é apresentado como um tirano sádico.
As características degradadas atribuídas no romance a seres santificados pela
tradição obrigam o leitor a um estranhamento diante do texto. Mesmo leitores não
cristãos são conhecedores dos elementos que compõem a tradição cristã e estão
provavelmente em contato com uma sociedade que perpetua os mitos religiosos. Logo,
a narrativa saramaguiana foge daquilo que poderíamos chamar de senso comum e nos
apresenta um contexto que extrapola aquilo que temos como natural.

3. Eça e Saramago Dialogando com o Fantástico

Aplicando as teorias acerca do Fantástico, segundo Todorov, aos textos de Eça e


Saramago, não conseguimos estabelecer nenhuma das obras como totalmente engajada
ao gênero fantástico. Entretanto, podemos achar certos momentos nos textos onde há
alguma fuga ao “normal” e onde podemos encontrar características fantásticas.
O universo de O Evangelho Segundo Jesus Cristo é estranho aos nossos olhos. À
medida em que são apresentados os personagens, somos surpreendidos e começamos a
lidar com construções não condizentes com as imagens pre-estabelecidas do cristão. Em
certos momentos, tornam-se até chocantes algumas passagens do texto, por exemplo, a
já citada cena de sexo entre Jesus Cristo e Maria de Magdála. Essa ruptura da santidade
(entenda-se castidade) de Cristo e as características, negativas, humanas, de Deus, são
os pontos onde o leitor sente mais distanciamento daquilo que tem como estabelecidos,
logo, pontos onde o texto flerta com o Fantástico.
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Entretanto, o Fantástico não caracteriza o romance, pois, ao longo da narrativa o


leitor se habitua àquele universo, e indiretamente, através de diálogos filosóficos, o
autor explica os comportamentos dos personagens, sempre através das incoerências da
doutrina cristã. Tomemos como exemplo a passagem onde Deus utiliza o diabo como
“bode expiatório” para sanar as suas incompetências como regente do universo e
atribuir tudo o que há de ruim ao seu maior inimigo,

[…] o pecado e o Diabo são os dois nomes duma mesma coisa,


Que coisa, perguntou Jesus, A ausência de mim, E a ausência de
ti, a que se deve, a teres-te retirado tu ou a terem-se retirado de
ti, Eu não me retiro nunca, Mas consentes que te deixem, Quem
me deixa, procura-me, E se não te encontra, a culpa, já se sabe, é
do Diabo[...] (SARAMAGO, 2006, pg. 323)

Assim, podemos entender que o Evangelho saramaguiano não se trata de um


texto totalmente fantástico, mas que instaura por vezes uma ambiência fantástica, ou
seja, que lança mão de recursos que visam provocar no leitor exatamente a hesitação, a
dúvida, o instante no qual não se sabe se a história é maravilhosa (ficção em estado
puro, numa espécie de Universo Paralelo onde Deus possui licença para seu mau) ou
estranha (Deus pode, de fato, ser mau e sádico e a narrativa saramaguiana apenas
desvela didaticamente sua duplicidade).
Características também presentes em A Relíquia. No romance de Eça, também
identificamos o estranhamento no que diz respeito ao senso comum acerca da fé cristã.
A trama mostra que o episódio da Paixão de Cristo não teria sido tal como o
conhecemos, e tudo não teria passado de um plano mal sucedido, que Jesus não era
divino e que não ressuscitou. Ora, podemos estabelecer aí o estranhamento, pois, assim
como no romance de Saramago, a desconstrução da santidade de Cristo é algo que foge
do senso comum para a maioria dos leitores ainda hoje – para não falar do Portugal
oitocentista!
A quebra da possibilidade do Fantástico ocorre quando recordamos que os episódios
recontados sobre a vida de Cristo se passam durante um sonho do personagem
Teodorico: logo, o estranhamento é explicado, uma vez que, em sonhos, tudo é possível.
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No sonho de um hipócrita devasso, embora simpático, o embuste pode ser mesclado á


trama do divino.
Entretanto, no fim do livro temos uma passagem que aproxima o livro do gênero
fantástico, mais até do que o evangelho saramaguiano,

E tudo isto perdera! Porquê? Porque houve um momento em que


me faltou esse descarado heroísmo de afirmar, que, batendo na
Terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu –
cria, através da universal ilusão, ciências e religiões.
(QUEIROS, 1887, pg. 348, 349).

Para finalizar seu romance, Eça deixa ao leitor essa frase, inferindo que as
religiões são fundadas em inverdades. Coloca tal afirmação na fala de Teodorico, que
desabafa suas reflexões acerca de suas experiencias vividas e sobre sua escolha de viver
com a verdade. Esta passagem ocorre depois do sonho, já no universo “real”, enquanto
Teodorico conversa com outra pessoa. A partir do momento que o personagem traz as
experiências oníricas para a sua realidade, a sociedade portuguesa do século XIX, há um
movimento duplo: primeiro, recupera e modifica os sentidos do sonho do protagonista,
que passa a significar uma revelação epifânica do poder da mentira fervorosa. Depois
disso, nota-se a súbita aproximação da focalização do personagem (devasso e cínico)
com a do autor implícito (que escolhe encerrar o livro com a frase de efeito).
Esse duplo movimento reinsere no texto a dúvida, o instante de hesitação: ou a fala é
de um personagem cínico e indigno de confiança (portanto, temos o estranho, explicável
pelo caráter de quem interpreta as instituições sociais) ou é a de um autor implícito (e
que teria, portanto, segundo o pacto de leitura oitocentista, um peso de “verdade” na
internalidade do texto, o que restabeleceria a versão blasfema da morte de Jesus como
plano de tomada de poder). Portanto, o romance encerra utilizando a brecha do
Fantástico para veicular sutilmente as idéias revolucionárias de Eça e sua crítica mordaz
ao catolicismo.

Referências
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BASTAZIN, Vera. Mito e Poética na Literatura Contemporânea: Um Estudo sobre


José Saramago. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006.
MOIANA, Murilo. A humanização do divino em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de
José Saramago. Revista Urutágua – nº10 – Maringá: Depto. de Ciências Sociais, 2004.
QUEIRÓS, Eça de. A Relíquia. [s/l]: Klick Editora, 1997.
SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: Schwarcz, 2006.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Persperctiva,
2007.
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O FANFICTION: A HISTÓRIA DE FÃS PARA OUTROS FÃS

Fabíola Socorro Figueiredo dos Reis (PG/UFPA/CAPES) 1

1. Os gêneros digitais e o fanfiction – história criada por fãs

A Internet é uma facilitadora no que diz respeito aos novos processos de criação,
principalmente quando um novo gênero é bem aproveitado na prática. As pessoas estão
profundamente familiarizadas com a chamada cultura eletrônica: todos entram em
contato com diversas formas de gêneros digitais, nas mais diversas formas de texto e
múltiplas formas semióticas, como sons e imagens.
Um exemplo disso é o blog, uma alternativa para publicação de textos que se
tornou verdadeiramente popular por conta da facilidade de atualização, já que não exige
muitos conhecimentos prévios de webdesign; são mais práticos para manutenção que os
websites comuns e possuem hospedagem gratuita em muitos provedores, como os
conhecidos Blogspot, Livejournal e o novato Wordpress 2. No mundo todo, estima-se
que há mais de dois milhão de “blogueiros”, e sua popularidade se justifica, segundo
Komesu (2005), pelo fato de permitir a hospedagem de vídeos, imagens, animações e
música, além de facilitar a publicação do texto escrito e ter um serviço gratuito. Não se
pode esquecer também que essa parcela da população mantenedora de blogs faz uso do
mesmo como forma de expressão de sentimentos 3. A autora justifica que não é um
exibicionismo como se fosse a vida particular de uma celebridade, “mas do cotidiano e
das histórias de pessoas consideradas comuns porque não exercem quaisquer atividades
que lhes dêem destaque social, a não ser o fato de possuírem um blog na rede”
(KOMESU, 2005, p.112).

1
Trabalho orientado pela Profa. Dra. Lilia Silvestre Chaves (UFPA)
2
Cujos portais estão disponíveis em: <http://www.blogspot.com/>,< http://www.livejournal.com/> e
<http://wordpress.com/>.
3
Há ainda o caso de empresas, faculdades e mesmo jornalistas que preferem fazer uso da ferramenta para
fins profissionais, como é o caso dos blogs divulgados na Folha Ilustrada da Folha de São Paulo
(disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/blogs/> ) ou o blog da faculdade de Engenharia da
Computação da Universidade Federal do Pará (disponível em: <http://engcomp-blog.blogspot.com/>).
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Os fanfictions, as “ficções criadas por fãs”, são histórias sem caráter comercial
ou lucrativo, escritas por fãs, utilizando personagens e universos ficcionais que não
foram criados por eles. Assim, por exemplo, um/uma fã poder escrever um conto que
acontece no universo ficcional da série Harry Potter. Apesar da legislação sobre direitos
autorais variar de país para país, de modo geral, escrever uma fanfiction não constitui
uma violação da propriedade intelectual, desde que a obra não seja comercializada e
nem se obtenha lucro financeiro advindo dela. Da mesma forma, juristas recomendam
que o/a escritor/a de fanfictions acrescente no início do texto uma pequena nota legal
(chamada pelos americanos de "disclaimer") declarando quem realmente é o detentor
dos direitos autorais e esclarecendo que não se está obtendo qualquer forma de ganho
financeiro, nem se está praticando comércio. Cada fã tem um carro-chefe, um ponto de
apoio, alguma série que o influencia a escrever.
O que pode motivar tantos jovens, na condição de fãs internautas, a passar horas
navegando, concentrados na produção de histórias de ficção como atividade extra-classe
completamente voluntária?
Uma das respostas mais aceitas para isso é a “oportunidade de interagir com
textos de seu interesse, a saber, na maior parte dos casos, textos bem-sucedidos
comercialmente [...], cuja presença, no dia-a-dia do jovem, o motive a prolongar o
contato com eles” (VARGAS, 2005, p. 14). E, assim como os blogs, existe a facilidade
de publicação das histórias em diversos sites gratuitos, e a “deixa” na história original
para uma possível continuação da mesma, permitindo ao leitor livre expressão dos
sentimentos.

O fanfiction repara alguns dos prejuízos causados pela privatização da


cultura, permitindo que esses potencialmente ricos arquétipos
culturais falem por e para uma variedade cada vez maior de visões
políticas e sociais (JENKINS, 1998, apud VARGAS, 2005, p. 56).

O escritor-navegador não é novidade a muitos estudiosos da prática da escrita


quando já se conhece os blogueiros e os participantes ativos de comunidades do Orkut 4.
Isso é mais uma confirmação de que os jovens estão sempre dispostos a ter em mãos o
4
Disponível em: <http://www.orkut.com>
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uso de novas tecnologias em atividades de recepção duvidosa pelo sistema escolar e


pelo grande público. Esses jovens “parecem ter o hábito de passar horas navegando na
net não de forma errática, mas concentrados na busca e na leitura de histórias que
remetem a um original, cujo apreço é compartilhado por todos os que participam de
determinadas comunidades” (VARGAS, 2005, p. 15).
Dentro de uma mesma comunidade, um fandom, a atividade é bem recebida e
compartilhada, como afirma Vargas (2005, p. 15):

Particularmente surpreendente foi a observação da transposição das


práticas tradicionais nas instituições escolares e fundantes da
sociedade letrada, a leitura e a escrita, para o meio eletrônico, o que
produziu um questionamento acerca do tempo desprendido por esses
jovens em frente ao computador na atividade de leitura. Embora a
leitura na tela seja considerada cansativa por gerações anteriores, esses
autores e leitores de fanfictions parecem ter o hábito de passar horas
navegando na internet, não de forma errática, mas concentrados na
busca e na leitura de histórias que remetem a um original, cujo apreço
é compartilhado por todos os que participam de determinadas
comunidades.

Xavier (1999) afirma que o uso intensivo da rede tornou possível o contato
desses jovens com gêneros textuais variados a partir de uma autonomia de
aprendizagem. Isso permite aos jovens, pelo uso intensivo e pela prática, usar de modo
diferenciado os mais recentes gêneros. Eles sabem identificar cada um deles, sem um
professor por perto. “Eles aprendem fazendo, praticando, experimentando; escrevem e
lêem, lêem e escrevem muitas mensagens nesses gêneros” (XAVIER, 1999, p. 106).

2.2. Os principais websites de histórias:

O Fanfiction.Net 5 (doravante FF.Net), o maior hóspede desse material no


mundo, vive em constante reformulação do visual para continuar agradando aos olhos
dos leitores. Criado por volta do ano 2000, o slogan “Unleash your imagination and
free your soul” (fig. 1), ou “Solte sua imaginação e liberte sua alma”, oferece histórias

5
Disponível em: <http://www.fanfiction.net>.
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em mais de trinta línguas e chamou a atenção dos primeiros escritores (ficwriters 6) da


categoria.
A página inicial do FF.net apresenta ainda as principais categorias com histórias
criadas: Anime/manga, Movies, TV Series, Books (fig. 2 e 3). Clicando na categoria
interessada, abre-se outra página com as principais séries da mesma categoria. Mesmo
que não seja tão popular, se alguém escrever uma história e quiser hospedá-la no site
precisa somente mandar um e-mail e solicitar a categoria.
A partir da categoria, o leitor pode escolher uma ou várias histórias de uma
página que apresenta as 25 histórias atualizadas naquele momento daquele dia. Cada
história tem um título próprio e ao seu lado está o link do nome do autor, que usa
geralmente um penname 7 ligado ao fandom de interesse. Além disso apresenta um
resumo de até 60 caracteres e os principais dados da mesma: rating (a classificação
etária conforme o padrão americano 8 língua, gênero (romance, comédia, suspense,
aventura), número de capítulos, número de palavras, quantidade de comentários
(reviews), data de atualização e a data de publicação.
O rating é a classificação etária do fanfiction conforme o padrão americano e é
seguido à risca pelos ficwriters sob pena de punição por parte do site, com a devida
exclusão da história ou até mesmo do perfil do autor, caso o fanfiction não seja
devidamente classificado. Os ficwriters brasileiros seguem a classificação conforme a
tabela abaixo:
RATINGS
Padrão americano Padrão brasileiro
K Classificação livre
K+ A partir de 9 anos
T A partir de 13 anos
M ou R A partir de 16 anos
MA ou NC-17 A partir de 18 anos

6
Termo inglês que designa os escritores de fanfictions.
7
Termo inglês que designa os nomes de autores de fanfictions e pelo qual eles são conhecidos dentro do
website.
8
Disponível em: http://www.fictionratings.com/guide.php/
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Tabela 1: Tabela de classificação etária de acordo com os padrões


americano e brasileiro.

Atualmente, os mais conhecidos websites de fanfiction online de língua


estrangeira são:
Fanfiction.net: o maior e mais conhecido da categoria, com recursos que
chamam a atenção, facilitam a publicação das histórias e incentivam muitos
jovens a permanecerem lá. Criado em 1998, por Xing Li, nos Estados Unidos, é
mantido hoje por uma grande equipe de webdesigners.

Mediaminer.Org 9 (fig. 4): o segundo maior site, criado em 2000 por um grupo
de amigos no Canadá. Diferentemente do FF.Net, o Mediaminer não possui
restrições quanto a publicação de histórias para maiores de 18 anos e oferece
poucos recursos para hospedagem, como línguas estrangeiras, por exemplo.
Atualmente é permitido publicação de histórias em inglês, espanhol, francês,
alemão, japonês e chinês.

Adultfiction 10 (fig. 5 e 6): o mais conhecido site de fanfiction de conteúdo adulto


da web, para onde muitos dos que foram prejudicados pelas restrições do FF.Net
correram. Foi criado nos Estados Unidos em 2002.

Restricted Section 11 (fig. 7): conhecido site que hospeda fanfictions de conteúdo
adulto da série Harry Potter.

Um caso especial é o FictionPress 12 (fig. 8), um site que hospeda histórias de


ficção com personagens originais, o que o diferencia dos fanfictions comuns, que se
valem de personagens já popularizadas. Foi criado pela equipe que mantém hoje o site
do FF.Net com o objetivo de permitir aos mesmos autores de fanfictions a possibilidade
de hospedar histórias originais. O número de histórias publicadas e de acessos é alto por
conta da divulgação que o FF.Net fez durante muitos meses. 13
No Brasil, os sites mais conhecidos de fanfictions são três:
Floreios e Borrões 14 (fig. 9): é o conhecido e mais antigo hóspede de
fanfictions do fandom Harry Potter, criado em 2002 por fãs brasileiros da
série.
9
Disponível em: http://www.mediaminer.org/ .
10
Disponível em: http://www.adultfanfiction.net/
11
Disponível em: http://restrictedsection.org/
12
Disponível em: http://www.fictionpress.com
13
A divulgação saiu das páginas iniciais, mas permanece ainda nos guidelines do site, como consta em
http://www.fanfiction.net/guidelines/.
14
Disponível em: http://floreioseborroes.net/.
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FFSol (fig. 10): site que hospeda tanto desenhos quanto histórias, criado em
2004 por um grupo de fãs de anime (desenhos japoneses) participantes ativos
de um conhecido fórum.
Nyah! Fanfiction 15 (fig. 11): criado em 2005, hoje é um site que contém um
vasto acervo de fanfictions.

3. Como se constrói uma história a partir de outra


3.1. A questão do cânone nos fandoms

No universo dos fanfictions, construir uma história exige mais que ter uma série,
um livro ou um filme favorito. Fazer parte de uma comunidade, de um fandom, é um
fator que impulsiona a criação, mas não é o principal. Segundo Henry Jenkins (1992),
os fandoms são responsáveis pelo surgimento de grande parte dos gêneros digitais como
forma de o leitor manter contato mais próximo com o que aprecia, uma interação que a
virtualidade permite ao fã exercer, muito mais do que se fosse na vida real. Vale
ressaltar, conforme Vargas (2005), que os fandoms surgiram muito antes da chegada e
expansão da Internet, porém a mesma permitiu que as comunidades passassem a agregar
maior número de pessoas, facilitando o contato entre todos – tanto pessoas quanto o
próprio produto:

Com o advento da internet, os fandoms passaram a agregar um


número cada vez maior de pessoas, rompendo barreiras geográficas e
até mesmo linguísticas e a produção de fanfictions também cresceu,
particularmente na década de 1990. Isso fez com que a prática fosse
quase restrita ao gênero ficção científica, onde teria nascido, para a
condição de amplamente exercida por fãs de vários outros gêneros,
como séries policiais e de suspense, filmes, histórias em quadrinhos,
videogames e livros ficcionais. (VARGAS, 2005, p. 24)

Escrever uma história tem relação com a forma mais fácil ou criativa que o
ficwriter busca para si. O que mantém o próprio cânone zela pelo respeito à história
original e também pela reputação das personagens, o que tenta manter o mesmo ritmo
da história original com as mesmas personagens, sem descaracterizá-las e muitas vezes
sem introduzir alguém novo para acompanhar as aventuras. Muitas vezes essas histórias
15
Disponível em: http://fanfiction.nyah.com.br/.
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são uma continuação de um livro acabado ou uma aventura totalmente inédita, como um
capítulo intermediário.
Ao contrário destas, os fanfictions de universo alternativo costumam fazer uso
das mesmas personagens e alterar o ambiente da história original. Em lugar de Alice de
Alice no País das Maravilhas ser uma menina perdida num lugar desconhecido e que
foge de uma rainha má, ela pode muito bem ser uma jovem de vinte e poucos anos à
procura de um namorado em pleno século XXI.
Isto é apenas para se ter uma ideia do que os ficwriters podem escolher para ser
o cenário das histórias. Vargas (2005) apresenta as duas classes “a favor” e “contra” os
universos alternativos como questões polêmicas, pois há quem defenda o cânone, o
universo das histórias originais, e mesmo websites que não permitam a publicação de
uma história que se passa em um universo alternativo. O Fiction Alley 16, por exemplo,
mantém um glossário que define os principais termos da atividade. Na definição, consta
que cânone são “fatos que nos foram contados nos livros. [...]. Henry não pode ter olhos
verdes e azuis e seu pai não pode ser um artilheiro e apanhador. A contrapartida do
cânone é o ‘fanon’” (apud VARGAS, 2005, p. 38-39).

3.2 – O exemplo Alice x Alyss

Um exemplo de como essa narrativa se apresenta: temos a história de Alice no


país das maravilhas, de Lewis Carroll, publicado originalmente em 1865, que conta a
saga da pequena Alice, que lê um livro junto à irmã e acorda num lugar desconhecido,
onde deverá correr e se proteger de pessoas desconhecidas e ameaçadoras, como a
Rainha de Copas. No Brasil, as traduções do primeiro livro e de Alice através do
espelho e o que Alice encontrou lá (1871) ficaram a cargo do poeta Sebastião Uchoa
Leite, responsável também pela versão em português de Crônicas Italianas (1839) de
Stendhal e de Signos em rotação (1982), de Octávio Paz.

16
Disponível em: <http://www.fictionalley.org/>
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Uma releitura que existe da história de Carroll é a escrita por Frank Beddor,
autor da chamada Trilogia Através do Espelho 17. Nela, no primeiro capítulo que o que
Alice vivenciou em Alice no País das Maravilhas 18 é uma ilusão, e que aquela aventura
é a real. Nela, Alyss é forcada a fugir para o mundo real depois que a tia dela, a rainha
Redd (a rainha de Copas e rainha Vermelha da história original), conquista o País das
Maravilhas e destrói todos que se opõem a ela. Para ajudá-la, o assassino Gato de
Cherishe persegue Alice – e esta é protegida por Hatter Madigan, guarda-costas da
Rainha e que sabe das intenções malignas dela em querer matar Alice e ficar com mais
poder. Refugiada no mundo real, Alice é obrigada a viver num lugar desconhecido e é
protegida por Hatter Madigan e por Dodge Anders, o filho do reverendo Charles
Dodgson, assassinado a mando da rainha má. A trilogia iniciada em 2005 já tem três
livros publicados. O primeiro The Looking Glass Wars foi publicado em 2006, a
segunda Seeing Redd (2008) e a terceira Archenemy, lançado em outubro de 2009.
O trabalho de Frank Beddor nada mais é, no final das contas, que um fanfiction
bem vendido - cuja história é um universo alternativo da história original. Enquanto que
Alice de Alice no País das Maravilhas (1980) desperta do sono e vê-se “então deitada
no barranco com a cabeça no colo da sua irmã, que delicadamente afastava do seu rosto
algumas folhas mortas que haviam tombado da árvore” (p. 130), conta a história de seus
“sonhos” para a irmã mais velha, e esta, depois que Alice volta para casa, põe-se a
sonhar as mesmas aventuras que a mais nova teve, “embora soubesse que bastava abrir
os olhos outra vez e tudo se transformaria na enfadonha realidade de volta”. Nas
aventuras reescritas por Frank Beddor, Alice Liddell, também conhecida por Alyss
Heart, está a conversar com o reverendo Charles Dodgson, nome real de Lewis Carroll,
que acabara de dar de presente a ela o livro escrito e ilustrado por ele mesmo. Ela, que
também contara a ele a respeito do sonho cheio de aventuras no País das Maravilhas,
estranha, porém, o título dado à obra:

17
The Looking Glass Trilogy, no original.
18
CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Trad. LEITE, Sebastião Uchoa. 3.ed. São Paulo:
Summus, 1980, 282 p.
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“Oh!”, As Aventuras subterrâneas de Alice? Que tipo de título é esse?


E por que o nome dela estava escrito de forma errada? Ela falou a
Dodgson como se soletrava corretamente o nome dela, até mostrou
escrito a ele. “Por Lewis Carroll?”, ela leu com enorme
preocupação 19. (BEDDOR, 2006, p. 2)

O sonho de Alice é recontado no livro do reverendo de tal forma que ela mesma,
claramente a protagonista, não entende e a considera uma aventura nonsense de algo
que foi a ela bastante pessoal, e Charles Dodgson esclarece que a contou de forma
diferente em trechos que ele julgava necessário:

Admito que tomei algumas liberdades com sua história,” Dodgson


explicou, “para transformá-la em nossa, como disse que poderia fazer.
Você reconhece o tutor que me descreveu? Ele é o Coelho Branco.
Tive a ideia depois que descobri que as letras do nome do tutor
poderiam formar a palavra ‘coelho branco’[...]20. (BEDDOR, 2006,
p.3)

A história de Beddor é apenas um exemplo de como as histórias podem ser


recontadas em um fanfiction. Não é objetivo aqui apresentar uma fórmula fixa de “como
fazer”, apenas mostrar alguns passos de como a história é criada o que move a criação
de um fanfiction. E, segundo ainda Vargas (2005, p. 22), um dos principais motivos
para escrever uma história é “preencher lacunas deixadas pelos autores das séries, ao
mesmo tempo em que conexões entre os episódios são criadas” Seria como se
respondesse a uma pergunta iniciada pelo conjuntivo: “E se acontecesse isso ou
aquilo...?”. A partir dessa pergunta, os leitores-autores contam suas versões (em
universo alternativo ou não) a partir de uma história original.

4. Considerações finais

19
“Oh!” Alice’s Adventures Underground? What sort of title was that? And why was her name
misspelled? She had told Dodgson how to correctly spell her name, had even written it out for him. “By
Lewis Carroll?” she read with growing concern (BEDDOR, 2006, p. 2) – tradução minha.
20
I admit that I took a few liberties with your story,” Dodgson explained, “to make it ours, as I said I
would. Do you recognize the tutor fellow you once described to me? He’s the White Rabbit character. I
got the idea for him upon discovering that the letters of the tutor’s name could be made to spell ‘white
rabbit’ […]” (BEDDOR, 2006, p. 3) – tradução minha.
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O presente estudo apresentou o fanfiction, histórias de ficção criadas por fãs de um


filme famoso, um livro sempre presente na lista dos mais vendidos etc como um gênero
em expansão entre os jovens envolvidos pela indústria cultural, mas que ainda carece de
atenção por parte dos professores. Os fanfictions publicados no Fanfiction.Net, o site
mais conhecido do gênero, formam uma amostra do que um adolescente, que usa a
internet intensivamente, sabe fazer em casa, mas não na escola: um roteiro, um resumo,
uma narrativa em primeira ou terceira pessoa postada em capítulos. Muitos professores
poderiam inserir seus alunos no chamado letramento digital, principalmente numa
época em que a cada dia os jovens estão mais envolvidos com a internet e se
familiarizam rapidamente com os diversos gêneros digitais que surgem a cada dia.
Vargas (2005) acrescenta ainda que a prática de letramento envolvendo
fanfictions aprofunda as leituras de mundo dos praticantes, um processo que demonstra
que a atividade não é apenas ligada à escrita. Há uma melhora significativa nas
habilidades lingüísticas de leitura e compreensão de textos. Um outro aspecto, mais
particular, é com relação à recepção desses textos por comentários recebidos a cada
capítulo publicado, através da qual a maioria dos autores procura aprimorar sua
produção escrita com cuidado e atenção.
Retomando Xavier (1999), o uso de gêneros digitais não prejudica a
aprendizagem dos jovens escritores. Serve, pelo contrário, de alerta à escola para que
não seja indiferente às mudanças de gêneros e suportes textuais. A Internet pode ser
usada como uma ferramenta à aquisição de novas habilidades e a escola deve aproveitar
esses novos suportes para que haja melhor domínio dessas novas habilidades,
transformando os jovens internautas em bons produtores de gêneros textuais.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003. P. 261-306.

BEDDOR, Frank. The Looking Glass Wars. New York: Penguin Group, 2006, 368 p.
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CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas e Através do espelho e o que Alice
encontrou lá. 3.ed. São Paulo: Summus, 1980, 282 p.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. 2. ED. São Paulo:


Unesp, 1999.

JENKINS, Henry. Cultura de convergência. 2.ed. São Paulo: Aleph Editora, 2009, 432
p.

KOMESU, Fabiana Cristina. Blogs e as práticas de escrita sobre si na Internet. In


MARCUSCHI, Luis Antônio; XAVIER, Antônio Carlos dos Santos (Orgs.).
Hipertextos e gêneros digitais: novas formas de construção de sentido. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2004, p. 110-119.

MARCUSCHI, Luis Antônio. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia


digital. In: MARCUSCHI, Luis Antônio; XAVIER, Antônio Carlos dos Santos (Orgs.).
Hipertextos e gêneros digitais: novas formas de construção de sentido. Rio de Janeiro :
Lucerna , 2004.

VARGAS, Maria Lúcia. O fenômeno fanfiction: novas leituras e escrituras em meio


eletrônico. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005. 127 p.

XAVIER, Antonio Carlos. Reflexões em torno da escrita nos novos gêneros digitais na
Internet. Investigações (Recife), v. 18, p. 104-116, 2006.

___. Letramento Digital e Ensino. In: Carmi Ferraz Santos e Márcia Mendonça. (Org.).
Alfabetização e Letramento: conceitos e relações. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2005, v. 1, p. 133-148.

ANEXOS
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Fig. 1: Logo do Fanfiction.net.

Fig. 2: Antiga versão da página inicial do


FF.Net

Fig. 3: Nova página inicial do FF.Net

Fig. 5: Página de verificação de idade do site


Adultfiction.
Fig. 4: Página inicial do Mediaminer.Org.

Fig. 6: Página inicial do Adultfiction.Org.


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Fig. 7: Página inicial do Restricted Section, de fanfictions da série Harry Potter.

Fig. 9: Página inicial de Floreios e Borrões.


Fig. 8: Página inicial do FictionPress, dedicado
a histórias originais.

Fig. 10: Página inicial do FFSol.

Fig. 11: Página inicial do Nyah! Fanfiction.


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A REPRESENTAÇÃO DE MINORIAS EM ALIÓCHA DE DOSTOIÉVSKI E


STALKER DE TARKOVSKI

Fabrícia Silva Dantas (PG - UEPB) ∗

1. Os estudos culturais e a representação de minorias

No presente texto, faremos um breve estudo sobre dois personagens que, a nosso ver,
possuem entre si muitas afinidades, inclusive no que diz respeito às discussões sobre
grupos minorizados da sociedade. Trata-se de Aliócha, personagem do romance Os
irmãos Karamázov 1 (2008) de Dostoiévski e o Stalker do filme Stalker 2 (1979) de
Tarkovski. Acreditamos que esse filme é uma tradução indireta do romance de
Dostoiévski, trazendo uma série de referências aos seus personagens e outros elementos.
O próprio Tarkovski era um admirador desse escritor o que pode ter motivado algumas
de suas obras, como atesta o seguinte trecho:

Num estado de tensão constante e sem desenvolvimento, as paixões


alcançam seu mais alto nível de intensidade, manifestando-se de modo
mais vivo e convincente do que o fariam num processo de
modificação gradual. Esta minha predileção é o que me leva a gostar
tanto de Dostoiévski. Para mim os personagens mais interessantes são
aqueles exteriormente estáticos, mas interiormente cheios da energia
de uma paixão avassaladora. (TARKOVSKI, 1998, p. 14)

Apesar das obras de Dostoiévski serem conhecidas e, de certa forma, pertencer a uma
alta literatura, o estudo em questão trará uma abordagem sobre minorias, tema ainda
pouco discutido nessa literatura, atribuindo a obra um novo caráter e provando que


Este trabalho foi orientado pelo Professor Doutor Luciano Barbosa Justino, coordenador do Mestrado
em Literatura e Interculturalidade (MLI) da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
1
Os irmãos Karamázov foi publicado em 1879. A edição que estamos utilizando no presente texto trata-
se da lançada em 2008, pela Editora 34, traduzida por Paulo Bezerra.
2
Esse filme russo tem o seu roteiro baseado na novela Piquenique à beira da estrada, dos irmãos Boris e
Arkadi Strugatisky.
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ainda não se esgotaram as possibilidades de leitura dela, inclusive aquelas que refletem
os grupos excluídos.
Os Estudos culturais vêm nos trazendo significativas mudanças no campo da
literatura, sobretudo, no que diz respeito ao rompimento de cânone literário. Esse novo
olhar sobre a sociedade atualiza a literatura trazendo para ela temas, personagens e
discussões, até então tidas como não relevantes, acrescentando um pensamento que leva
em conta a cultura, a economia, a política de uma dada sociedade. Em outras palavras:

A presença dos estudos culturais no campo discursivo da crítica


cultural trouxe uma mudança evidente de teor dessa crítica, que hoje
discute com fluência as condições materiais da produção cultural.
Sociedade e cultura andam em conjunto na busca de uma mudança na
crítica cultural. (CEVASCO, 2005, p. 150)

A história da literatura tem contemplado grandes escritores, estéticas especiais e


obras em particular de modo a sobressair discussões determinadas por um grupo
fechado de pessoas e seus interesses. Tendo em vista o quadro de desigualdade, a
grande massa da população não era uma preocupação relevante dentro das obras. A
cultura de minoria (CERVASCO, 2005, p. 49), reflexo da pequena parcela que
coordenava os rumos da cultura, não estava interessada nas transformações sociais por
que passava verdadeiramente a população. Cada vez mais crescia a necessidade de dar
voz a grande massa, seus grupos e pensamentos silenciados pela tradição e pelo
desinteresse de um pequeno grupo dominador.
Nesse sentido a ideia de interculturalidade (ALBÓ, 2005), abarcada pelos estudos
culturais, também trouxe abertura e possibilidades de se refletir sobre a relação entre
sociedades, culturas e a diversidade de fatores sociais que as constitui. Posteriormente,
reconhecer que se a sociedade tem suas variáveis, ao representá-la, a literatura deve ser
heterogênea e tentar abranger, além da grande população, aqueles grupos excluídos –
negros, pobres, homossexuais, velhos, mulheres, determinadas classes de trabalhadores,
entre outros. Ou seja,

se cultura é tudo que constitui a maneira de viver de uma sociedade


específica, devem-se valorizar, além das grandes obras que codificam
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esse modo de vida, as modificações históricas desse mesmo modo de


vida (CEVASCO, 2008, p. 51).

Não se trata de abandonar o cânone literário, mas rediscutir as obras que o compõe
sob novos enfoques e trazer outros títulos e outores para também fazer parte desses
debates. Sabemos que na prática ainda é muito forte o preconceito contra a literatura de
autores, temas e personagens fora do lugar apreciado pela alta literatura.
Embora muitas ainda sejam as entraves, a literatura e outras artes têm contribuído
para a emergência de vozes silenciadas, ajudando-nos a refletir sobre as preocupações
do outro – e suas diferenças políticas, religiosas, filosóficas, linguísticas, bem como,
sobre nossos próprios valores. A liberdade, o reconhecimento dos indivíduos e outros
temas populares têm sido vistos através da literatura, fato que contribui para a tentativa
de fazer ecoar a voz de pessoas marginalizadas pela sociedade e para democratizar a
arte (DALCASTAGNÉ, 2005).

2. Aliócha Karamázov e o Stalker: possíveis representações de minoria

Logo nas primeiras páginas do romance Os irmãos Karamázov (2008), o narrador


fala sobre seu herói, Alieksiêi, mostrando-o como um personagem indefinido, excêntrico
e sujeito ao risco de ser incompreendido pelos seus leitores:

Para mim ele [Alieksiêi] é digno de nota, mas duvido terminantemente


que consiga mostrá-lo ao leitor. O caso é que talvez até se trate de um
ativista, mas um ativista indeciso, indefinido. Pensando bem, seria
estranho exigir clareza das pessoas numa época como a nossa. Uma
coisa, é de crer, fica bastante evidente: trata-se de um homem
estranho, de um excêntrico até. (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 13).

Aliócha, como também é chamado no romance, é o terceiro filho de Fiódor


Pávlovitch Karamázov e traz em si uma forte marca espiritual - cheio de compaixão,
sensível para as coisas simples, humano e paciente. Por vontade própria fora morar
numa espécie de mosteiro onde recebia os ensinamentos de um stárietz, um mestre
religioso da igreja católica ortodoxa russa: “o stárietz é alguém que pega a vossa alma e
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a vossa vontade e as absorve em sua alma e em sua vontade (DOSTOIÉVSKI, 2008, p.


48)”. Segundo o narrador do romance, ele procurou a reclusão não por fanatismos
religiosos nem por radicalismos, mas porque se via incompreendido pelo mundo e nesse
ambiente encontrava paz e serenidade para os seus pensamentos. Vejamos o que nos
mostra o próprio narrador:

Aviso, antes de tudo, que esse rapaz, Aliócha, não era absolutamente
um fanático e, a meu ver, nem chegava a ter nada de místico. Antecipo
minha opinião completa: era somente imbuído de um precoce amor ao
ser humano, e se lançou no caminho do mosteiro, foi apenas porque,
na ocasião, só ele lhe calou fundo e lhe ofereceu, por assim dizer, o
ideal para a saída de sua alma, que tentava arrancar-se das trevas da
maldade mundana para a luz do amor. E esse caminho só lhe calou
fundo por que ai ele encontrou naquele momento um ser que achava
extraordinário – o nosso famoso Zossima, stárietz do mosteiro (...)
(DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 32)

Aliócha sentia a hostilidade e maldade da sociedade. Não precisamos ir longe para


entender a preocupação do “monge”, basta observamos as figuras do pai e dos seus
irmãos: Fiódor era um velho “sentimental. Mau e sentimental (DOSTOIÉVSKI, 2008,
p. 43).” Era também vaidoso e ganancioso. Herdara dos seus casamentos dote e
sobrenome nobre para lhe conferir status. Vivia de orgias e caprichos; morava sozinho
em sua propriedade onde até os empregados dormiam num anexo, exterior à casa
principal. Já Dmitri, o filho mais velho, assim como o pai, é orgulhoso e levado pelas
paixões a ponto de cometer crimes em nome delas; Ivan, o segundo filho, é racionalista;
um niilista convicto e atormentado. Esses dois irmãos vivem em conflito com o pai e
Aliócha representa um elo entre os três, com suas palavras sinceras, amorosas, sem pré-
julgamentos. Smierdiákov é o filho bastardo do velho Fiódor, fruto da violência deste
contra uma pobre mulher que perambulava pelas ruas da cidade onde morava. Ele fora
adotado pelo criado de Fiódor – Grigori – e também trabalha na mesma casa como
cozinheiro.
Diante dessa situação vivida entre os irmãos e o pai, vemos que Aliócha ocupa um
entre-lugar na narrativa do livro, ou seja, é um herói que tenta conciliar as vozes dos
seus irmãos e do seu pai e intervir a favor de todos. Seu discurso é o da humildade, fé
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no amor e no perdão. Aliócha traz em si uma concepção próxima da ideia socialista


cristã – conciliadora, igualitária, humana -, já os outros Karamázov destoam dele por
refletirem uma burguesia esbanjadora, fútil, materialista, descrente da bondade e do
amor. De acordo com Paulo Bezerra (2008), no texto crítico que integra essa obra de
Dostoiévski:

O epílogo do romance revela a intenção ideológica que Dostoiévski


imprimiu à imagem de Aliócha Karamázov (...). Embasado num
sentimento de fraternidade ético-religiosa, o discurso que encerra o
romance traduz, de fato, uma concepção de socialismo cristão, que foi
uma marca ideológica do próprio Dostoiévski. (BEZERRA, 2008, p.
xiv)

No livro Problemas da poética de Dostoiévski (1981), Bakhtin fala, entre outras


coisas, sobre o caráter polifônico das obras desse autor. Cada personagem é marcado
por várias vozes que ecoam ao longo da narrativa. Essas vozes, por vezes, encontram e
se desencontram em situações violentas, contraditórias, inflamadas, causando
discussões e conflitos e é nessa efervescência de opiniões que os personagens se
realizam, entendem a si mesmos e ao outro. Na Estética da criação verbal (2003),
Bakhtin diz a respeito da polifonia da obra dostoievskiana:

Em toda parte há certa intersecção, consonância ou intermitência de


réplicas do diálogo aberto com réplicas do diálogo interior dos
personagens. Em toda parte certo conjunto de ideias, pensamentos e
palavras se realiza em várias vozes desconexas, ecoando a seu modo
cada uma delas. O objeto das intenções do autor não é, de maneira
alguma, esse conjunto de ideias em si como algo neutro e idêntico a si
mesmo. Não, o objeto das intenções é precisamente a realização do
tema em muitas e diferentes vozes, a multiplicidade essencial e, por
assim dizer, inalienável de vozes e a sua diversidade. (BAKHTIN,
2003, p. 199)

Cada personagem – Fiódor, Dmitri, Ivan, Aliócha, Smierdiákov etc. – representa uma
convicção, um ponto de vista diferente sobre o mundo e as situações vividas no livro
(DOSTOIÉVSKI, 1981, p. 27). Essa multiplicidade de vozes traz consigo, além de
concepções valorizadas pela sociedade, também àquelas que não têm muito espaço, que
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ainda lutam para serem ouvidas. Em meio à sociedade burguesa que o rodeia, Aliócha
responde silenciosamente, através de gestos sutis, contra apego ao dinheiro, à mentira, à
desigualdade social, ao preconceito etc., representando, veladamente, vozes minorizadas
que também acreditam nesses ideais. Apesar de Aliócha ter uma origem rica, este se
sente deslocado de sua família; seus valores não condizem com o modo de vida
observado nos outros Karamázov. O desconforto o leva a buscar uma nova forma de
vida encontrada no mosteiro através da figura do Stárietz Zossima. Vejamos o seguinte
trecho sobre o posicionamento de Aliócha:

Talvez digam que Aliócha era obtuso, atrasado, que não concluira seu
curso, etc. Que não concluíra seu curso era verdade, mas dizer era
obtuso ou tolo era uma grande injustiça. Vou simplesmente repetir o
que já disse: ele só se enveredou por esse caminho porque foi o único
que o fascinou naquele momento e ao mesmo tempo lhe ofereceu todo
o ideal para a saída de sua alma, que tentava arrancar-se das trevas
para a luz. Acrescenta-se que ele já era, em parte, um jovem do nosso
tempo, ou seja, honesto por natureza, que reclamava a verdade, que a
procurava e acreditava nela e, uma vez tendo acreditado, exigia
participar imediatamente dela com toda a força de sua alma,
reivindicava um feito urgente, movido pelo premente desejo de doar
tudo de si, até mesmo a própria vida, para realizar esse feito. (...)
Aliócha apenas escolheu um caminho oposto ao de todos outros, mas
com a mesma sede de um feito imediato. (DOSTOIÉVSKI, 2008, p.
44-46)

Aliócha é símbolo do sonho de transpor as barreiras de uma sociedade mecânica e


preconceituosa para alcançar a valorização do lado humano das pessoas, de melhores
condições de vida pautadas nos ensinamentos cristãos. Segundo Bakhtin (2003):

De fato as personagens de Dostoiévski são movidas por um sonho


utópico de fundação de alguma comunidade de seres humanos fora
das formas sociais existentes. Fundar uma comunidade na terra,
unificar algumas pessoas fora do âmbito das formas sociais vigentes –
a isso aspiram o príncipe Míchkin, 3 Aliócha, aspiram em forma menos
consciente e menos nítida todas as demais personagens de
Dostoiévski. (...) É como se a comunidade se houvesse privado do seu
corpo real e quisesse fundá-la arbitrariamente com material puramente
humano. (BAKTHIN, 2003, p. 201)

3
Personagem do romance O idiota (1869), de Dostoiévski.
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Observamos uma relação significativa entre o filme e a obra de Dostoiévski, no


sentido de serem compostos por personagens centrais conflituosos que se encontram em
uma posição de marginalização em cada contexto e mediam o relacionamento entre os
que estão próximos a si, fatores que contribuem para a emergência de discussões sobre
as diversas formas de relacionamento entre os sujeitos e o mundo.
Em Stalker (1979) o personagem central que dá nome ao filme é um transgressor das
leis do lugar que habita e guia pessoas até o interior de uma região misteriosa chamada
Zona. O Professor e o Escritor contratam o Stalker e juntos percorrem um difícil
caminho em busca do Quarto, lugar imprevisível onde se acredita realizar o mais íntimo
desejo de quem nele adentra. Esse sujeito retoma a imagem de Aliócha, uma vez que
não está nos padrões da sociedade que vive e de certo modo se refugia em um lugar
evitado pela maioria das pessoas – a Zona -, assim como faz Aliócha no contexto da
obra narrativa.
Como na obra de Dostoiévski, esse filme também tematiza a diferença entre os
sujeitos e a busca da esperança. O Stalker também é um incompreendido dentro de sua
região; é um exilado dentro da sua própria casa. No filme o herói não busca um
mosteiro, mas a Zona como símbolo de um ambiente seguro, familiar, onde, enfim, ele
pode reencontrar-se. Também Aliócha é um incompreendido em sua sociedade; exila-se
em um mosteiro. Tanto um como outro, são mediadores, espécies de guias dos que estão
a sua volta.
A Zona é um espaço mítico; no filme, não existe especificações de onde se situa essa
região. Após um acontecimento misterioso - suspeita-se da queda de um meteorito, ou
da presença de seres de outro planeta – os moradores do lugar foram banidos. A Zona é
um lugar proibido, perigoso. Exceto o Stalker, os que iam à Zona não voltavam, por isso
as autoridades isolaram o local, já que não tinham o controle do que lá acontecia. O
meio ambiente da Zona é formado por pedaços de construções, de postes, carcaças de
carros e de tanques de guerra, restos de instalações elétricas, indiciando a antiga
presença de pessoas naquele lugar. Além das máquinas, também observamos a natureza
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em meio a tudo isso – plantas, sons de animais, água - entranhando-se pelos escombros,
misturando-se às máquinas (imagem 1, anexos).
Segundo Guattari (2000), a ideia de meio ambiente vai além da presença da natureza
e abarca a noção de um ambiente construído e não simplesmente herdado pelo homem;
os restos de máquinas e a natureza compõem um espaço vivencial, que transmite a
história de quem lá viveu. Portanto, o meio ambiente é algo composto pelos elementos
que rodeiam o homem e que interagem com ele. Tomando por base essa ideia, notamos
que o filme se divide em dois ambientes que destoam entre si por representarem
sentimentos diferentes no Stalker: no primeiro, como aparece no começo e no fim do
filme, com imagens em tons escuros, é onde as pessoas residem, inclusive o nosso guia,
e onde ele se sente incompreendido e reprimido, enclausurado na sua condição de nativo
da zona; inadaptado (imagem 2, anexos); o segundo, de tons coloridos, é a Zona. Para o
Stalker, a Zona é um espaço de liberdade, de diálogo, onde enfim ele pode estar em
casa, muito embora seja proibido. Ele mantém com esse lugar uma relação de afeto, de
completude, de cumplicidade. Mais importante do que as imposições da sociedade é
estar em comunhão com a Zona, ou seja, com ele mesmo (imagem 3, anexos).
Ser um Stalker significa ter uma vocação, assim como Aliócha ao entrar no mosteiro.
Responsável por uma difícil tarefa, ele guia as pessoas dentro do universo da Zona, ele
transita entre o permitido e o impedido. As imagens iniciais do filme mostram a casa do
Stalker (imagem 2) e refletem a opressão vivida por esse personagem – paredes com
aspecto lodoso, sons de goteiras, uma filha com deformidades físicas, conseqüência da
Zona. Tudo isso levam o Stalker a enfrentar o perigo e transpor os limites que lhe foram
impostos para buscar a liberdade.
Conhecemos os personagens do filme através dos seus ofícios, pois seus nomes são
omitidos na narrativa. Essa omissão confere ao filme, além do tom de mistério, a
sugestão poética de arquétipos de diferentes construções humanas. O filme deixa em
suspenso várias informações e desafia o expectador a buscar soluções para preencher
esses vazios, como reflete o cinema de poesia, proposto por Buñuel 4.

4
BUÑUEL, Luis. Cinema: instrumento de poesia. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
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O Professor, o Escritor e Stalker representam três tipos diferentes: o Professor é um


físico regido por uma ótica racional, objetiva, assim como Ivan Karamázov. Durante a
caminhada na Zona, ele carrega uma mochila com objetos para medir, testar e analisar
os elementos que encontra no caminho; enquanto isso, o escritor leva uma garrafa (com
alguma bebida alcoólica) e um cigarro. Este é um escritor sem inspiração para escrever
seus romances, levado pela paixão por mulheres, pelo álcool e pelo fumo; busca na
Zona algum motivo que o devolva a esperança e o sentido de escrever. Também em
Dmitri encontramos o mesmo apego aos sentimentos efêmeros e aos vícios. Eles são
guiados pelo Stalker em busca do Quarto e, ao longo da caminhada, vão mostrando suas
impressões sobre a Zona, o mundo, a vida. Cada um representa uma faceta diferente do
ser humano. Cada um defende seu ponto de vista, por vezes até de forma conflituosa,
assim como nos Karamázov, e o Stalker tenta estabelecer a paz, mostrando que a Zona é
um espaço de esperança, de possibilidades para realização pessoal. A primeira coisa que
faz ao entrar na Zona é deitar-se no chão, sob a vegetação para respirar a sensação de
liberdade, de integração e reencontro com esse lugar (imagem 4, anexos).
Observando os dois personagens, podemos compreender que tanto Alieksiêi quanto o
Stalker refletem a ideia de uma minoria, uma vez que representam uma voz silenciada
por uma sociedade hipócrita, preocupada com interesses egoístas – compra e venda de
bens materiais, ascensão social, paixões levianas, vaidade etc. Ambos demonstram uma
experiência sensível (MAFFESOLI, 1998), pautada, sobretudo, na experimentação dos
sentidos e o meio que vivem: experimentam as emoções, sentem os lugares em que
estão, vivem suas paixões, tocam as superfícies, escutam o outro. Não se trata de formas
de vidas abstratas que supervalorizam o uso da razão, no sentido dado por Maffesoli
(1998), mas de um modo de viver baseado também na experiência e no aprendizado no
dia-a-dia. Sobre essa lógica abstrata, afirma Maffesoli:

A atitude intelectualista contenta-se com discriminar. Em seu sentido


mais simples, ela separa o que é suposto ser o bem ou o mal,
verdadeiro do falso, e por isso mesmo, esquece que a existência é uma
constante participação mística, uma correspondência sem fim, na qual
o interior e o exterior, o visível e o invisível, o material e o imaterial
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entram numa sinfonia – seja ela dodecafônica – das mais harmoniosas.


(MAFFESOLI, 1998, p. 30)

Aliócha busca no mosteiro, através da figura de Zossima, vivenciar a fé e o amor, já o


5
Stalker, depois dos ensinamentos de seu mestre porco-espinho vai até a Zona para
sentir de perto a sua existência. Aliócha e o Stalker sobressaem-se como heróis das
obras em questão porque não comungam da lógica racionalista, objetiva representada
por Fiódor, Dmitri, Ivan, Smierdiákov, nem pelo Professor e pelo Escritor. Esses heróis
representam uma espécie de resistência contra uma lógica em que unicamente domina o
racionalismo. Tanto para Aliócha quanto para o Stalker, o reencontro com seu mundo,
com seu ambiente familiar dar-se através de um rompimento da situação inicial na qual
se encontravam: Aliócha deixa os estudos e vai para o mosteiro e o Stalker vai
esgueirar-se pela Zona.
Ambos preferem os novos caminhos aos já conhecidos e partilhados por uma
sociedade fria e pessimista. Essas considerações nos ajudam a concluir que Aliócha
Karamázov e Stalker simbolizam vários grupos que lutam para transpor as barreiras
impostas por um sistema totalitário que dita as regras de como se deve pensar, falar, se
portar perante os outros. Esses indivíduos também procuram um mosteiro ou alguma
Zona desconhecida, um espaço que lhes permita a manifestação de sua liberdade, que
lhes permitam exteriorizar seus valores e ideais.

Referências

ALBÓ, Xavier. Interculturalidade. In: Cultura, interculturalidade e inculturação.


(Tradução de Yvonne Mantoanelli). São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 47-56.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. (Trad. BEZERRA, Paulo).
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

5
No filme, o Stalker também tinha um mestre. Este não aparece no filme, mas é mencionado pelo Stalker
como o porco-espinho; ele lhe transmitia conhecimentos sobre a Zona.
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BAKHTIN, Mikhail. A respeito de Problemas da obra de Dostoiévski. In: ________.


Estética da criação verbal. (Trad. BEZERRA, Paulo). 4 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003. p. 195-201.
CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. 2ed. São Paulo:
Boitempo editorial, 2008.
DALGASTAGNÈ, Regina. Isso não é literatura. In: _______. Entre fronteiras e
cercados de armadilhas: problemas da representação na narrativa brasileira
contemporânea. Brasília: Unb: Finatec, 2005. p. 65-74.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. (Tradução, posfácio e notas
BEZERRA, Paulo). São Paulo: Editora 34, 2008. 2 vols.
GUATARRI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. (Trad. OLIVEIRA, Ana
Lúcia de. e LEÃO, Lúcia Cláudia). São Paulo: Editora 34, 2000.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. (Trad. STUCKENBRUCK, Albert
Christophe Migueis). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
TARKOVSKI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o tempo. (Trad. CAMARGO, Jefferson
Luiz). 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
STALKER. (Direção de Andrei Tarkovski; roteiro de Andrei Tarkovski, Arkandi
Strugatsky e Boris Strugatsky; fotografia de Alexandr Kniajinski; direcao de arte de A.
Merkúlov; músicas de Eduard Artmiev, Ravel e Beethoven; elenco composto por
Anatoli Solonitsyn, Alexandr Kniajinski, Nikolái Grinko, Alissa Freindlikh e Natasha
Abramova). URSS: Mosfilm, 1979. 1 DVD (134’). son., color., leg.

ANEXOS:
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Imagem 1: a Zona, em Stalker (1979).

Imagem 2: quarto do Stalker (início do filme).


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Imagem 3: o Stalker, o Professor e o Escritor (ao fundo) no interior da Zona.

Imagem 4: o Stalker em comunhão com a Zona.


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GOYA E ALPHONSUS: SONHOS E PESADELOS

Felipe G. M. Maia (G-UNICENTRO)


Rosana Gonçalves (UNICENTRO)

Sobre a pertinência da relação entre as artes plástica e escrita

A correspondência entre as artes sempre suscitou polêmicas, sobretudo quando


envolve a relação entre a pintura e a poesia. De um lado, há aqueles que não vêem com
bons olhos essa aproximação e, por outro, há quem defenda a correspondência entre
ambas. Neste trabalho, não pretendemos abordar profundamente esta questão;
buscaremos tão somente buscar possíveis similaridades entre o pintor espanhol,
Francisco de Goya (1746-1828), com o poeta brasileiro simbolista Alphonsus de
Guimaraens (1870-1921). Num primeiro momento, essa aproximação pode parecer
utópica, ainda mais se considerarmos as distâncias temporais e espaciais que os
separam, mas, à medida que aprofundamos a pesquisa, notamos que essa questão não é
tão descabida assim.
A relação entre as artes remonta aos tempos da Antiguidade Clássica. Como
formas de Arte e, por conseguinte, como formas de expressão humana, a pintura e a
poesia se correspondem. Claro que a matéria-prima utilizada é diferente. O poeta utiliza
como meio a palavra e, por sua força expressional, surge a imagem mental suscitada por
ela, que se convencionou chamar de imagem poética. O pintor, por sua vez, utiliza
diretamente a imagem que nos sugere universos parecidos com aqueles criados pela
poesia.
Valdevino S. de Oliveira em Poesia e pintura: um diálogo em três dimensões
(OLIVEIRA, 1999, p.14-15), afirma que “as artes se contemplam e se completam como
vasos comunicantes”. Inevitavelmente, a poesia dialoga não só com a música, pelo
ritmo e pela sonoridade, mas também mantém estreita relação com a pintura, por meio
das imagens mentais e visuais criadas por seus autores. “A literatura não pode ser
entendida como uma atividade artística isolada”, escreve Valdevino. De fato, é
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praticamente impossível pensarmos numa arte fechada, que não receba influxos de
outras artes. Quando tratamos de assuntos sobre pintura e poesia, não podemos esquecer
de citar o poeta e crítico Charles Baudelaire, defensor dessas inter-relações, para quem
“a melhor análise de um quadro poderá ser um soneto ou uma elegia”(BAUDELAIRE,
2002, p, 673).
O próprio Alphonsus, no poema “A cabeça de corvo”, do livro Kiriale, nos dá a
idéia que seus versos são pintados: “E a minha mão, que treme toda, pinta / Versos
próprios de um louco”(GUIMARAENS, 2001, p.126).
Apesar da distância de tempo e espaço entre Alphonsus e Goya, ambos se
aproximam, no tocante ao universo lúgubre, à preferência do sonho em detrimento à
realidade, à noite em oposição ao dia, por ser ela a mais propícia para a eclosão dos
sonhos e pesadelos.
Pretendemos demonstrar como a imagem possui o poder sugestivo de suscitar
outros mundos, tanto aquela criada por Goya, em “O sonho da razão produz monstros”,
como as criadas por Alphonsus de Guimaraens, nos poemas “Succubus”, “Initium” e
“Sonhos idos”. Amparados pelo conceito de “grotesco fantástico”, de Wolfang Kayser
(1986), buscaremos aproximá-los pela temática, ressaltando a criação de imagens que só
a arte pode nos oferecer e o seu poder para criar universos fantásticos e irreais.

Goya e a gravura “o sonho da razão produz monstros”

Essa gravura, que tornou-se um símbolo para os artistas românticos, também é


considerada como uma imagem indissoluvelmente relacionada com o artista moderno.
Sob este ponto de vista, poderemos fazer associações com o poeta Alphonsus
Guimaraens. Mas antes será preciso esclarecer alguns pontos dessa gravura e sobre o
pintor.
Nos finais do século XVIII, mais precisamente em 1792, Goya sofreu de uma
crise não bem identificada, que desencadeou a surdez, num momento em que já gozava
de certa fama. Hoje se pensa numa possível sífilis, e há quem acredite que ele padeceu
de saturnismo, que era a doença provocada pelo chumbo das tintas. O que importa saber
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é que o pintor nunca mais seria o mesmo. Algo havia modificado o seu pensamento e a
sua forma de ver o mundo.
De acordo com Jean-Francois Chabrun, no livro Goya, o artista “sofrerá uma
interminável sucessão de delírios atrozes, auditivos e visuais” (CHABRUN, 1974,
p.88). O pintor foi conduzido a um outro universo, muito mais lúgubre, onde
permaneceu envolto por fantasmas e monstros. “Os delírios tornar-se-ão em pesadelos,
antes de se transformarem em desenhos, gravuras e pinturas”. Surdo para sempre, Goya
não teve outra alternativa para se comunicar, para se expressar, senão pela arte.
Muitos poderão contestar se esse fato biográfico teve ou não influência em sua
arte, pois a palavra “biográfico” tornou-se maldita nos meios acadêmicos,
principalmente no século XX. No entanto, neste trabalho tornam-se imprescindíveis
esses apontamentos, pois consideramos que a obra de arte é fruto de uma expressão
humana e única e, por isso mesmo, susceptível às suas idiossincrasias. Quando se trata
de uma arte marcada pelo subjetivismo, como é o caso da arte romântica, temos que
analisar não apenas a obra, mas também o ser humano por detrás dela. É dessa forma
que estamos de acordo com Rene Huyghe, no livro O poder da imagem (s.d. 1), quando
escreve:
Cada obra, sob o revestimento elaborado que se lhe acrescentou,
continua a ser o testemunho brutal e íntegro de uma vida e de seu
drama; seja quais forem as intenções que julgaram orientá-la, continua
essencialmente a ser uma marca do artista e permite abordá-lo de
forma reveladora (HUYGHE, s.d., p.120).

Neste sentido, podemos considerar certas imagens de Goya como uma confissão,
do mesmo modo que a confissão está presente em Alphonsus de Guimaraens. Mas é
claro que não podemos nos deter tão somente a esse aspecto, visto que uma obra de arte
deve existir por si mesma. Essas relações serão apenas uma ferramenta a mais, útil para
melhor compreender o universo da arte e do artista.
O momento histórico em que viveu Goya também foi determinante para sua
expressão. Sabemos que o pintor via com bons olhos os ideais iluministas, daí que a
frase “O sonho da razão produz monstros”, num primeiro momento, aparece como uma

1
Livro sem data.
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crítica às crenças, à ignorância de uma Espanha ainda monarquista. No entanto,


concordamos com Rene Huyghe quando ele escreve estas palavras:

Claro que poderemos relacionar este título com as preocupações mais


imediatas do artista, empenhado na luta política e erguendo-se ao lado
dos ‘liberais’ contra o obscurantismo, pelo reino da deusa Razão. Mas
isto é simplesmente o empenhamento do pensamento consciente,
implicado nos fatos contemporâneos. Da mesma forma que, através de
um episódio, um artista faz vibrar a linguagem simbólica da sua alma,
através de uma alusão política, Goya deixa transparecer uma
mensagem de uma origem bastante mais remota, cujo significado se
alcança, quando se avalia a que ponto esta enigmática imagem se
inscreve na memória como a própria chave de toda a obra do artista
[...] (HUYGHE, s.d., p.140).

É esta “enigmática imagem” que se tornará símbolo, não só do Romantismo, mas


também do Simbolismo e Surrealismo. Não se pode afirmar se foi consciente ou não,
mas o pintor lança mão de uma arte voltada para a liberdade de criação, onde a
imaginação flui sem barreiras. Como um sinal de ruptura com a arte clássica, Goya
parte de uma temática subjetiva e abusa dos recursos da imaginação, de imagens
grotescas, de um mundo à parte, onde a razão deixa de exercer a sua supremacia,
promovendo os sonhos e os pesadelos.
Goya ficou também conhecido por seu elemento grotesco, que segundo Wolfgang
Kayser (1986) e Hugo Friedrich (1991), é um elemento tipicamente da arte moderna. O
grotesco se caracteriza como aquelas imagens assustadoras, que causam estranhamento,
junto com “um elemento lúgubre, noturno e abismal” (KAYSER, 1986, p.16). Além
disso, há no grotesco características sobrenaturais e absurdas, onde aniquilam-se as
ordenações do mundo real. Apesar de Goya ter vivido numa época em que a razão
ditava, até certo ponto, suas regras, ele também produziu “imagens oníricas”, como
podemos observar na série Os Caprichos (1799). Em certo momento do livro O
Grotesco, Kayser dividirá o grotesco em duas vertentes, duas correntes para uma melhor
expressão. A saber, a primeira é o “grotesco fantástico”, caracterizado por “seus
sinistros mundos oníricos apresentando-se povoados de esqueletos estalejantes, entes
radicais rastejantes, monstros ameaçadores e animais fantásticos (KAYSER, 1986,
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p.144)”. A outra corrente, por sua vez, aproxima o grotesco e o cômico, por meio da
ironia e o riso. Goya participa das duas correntes, ora uma, ora outra. É por meio dessas
“imagens oníricas” que Goya apresentará grande semelhança com Alphonsus de
Guimaraens.
Após a doença, Goya tornou-se um pintor mais misterioso e passou a pintar
imagens lúgubres e tenebrosas. Vejamos o que escreveu Chabrun acerca deste período:

Após o período da doença, abre-se-lhe brusca e maravilhosamente


uma porta para um país desconhecido, um país povoado de sombras e
luzes vivas e seres aterradores, um país que é suficiente ter entrevisto
para não mais esquecer. É um sonho? (CHABRUN, 1974, p.90).

Sim. É um sonho. Mas ocorre que, muitas vezes, esse sonho transforma-se em
pesadelo. Esse aspecto particular de Goya levou Baudelaire a denominá-lo como um
pintor “assustador”2. De fato, a sua obra, sobretudo as gravuras e as pinturas negras, nos
dá a mostra do que é capaz uma mente livre de qualquer preconceito e voltada ao
universo onírico.
Feito isso, agora poderemos nos deter tão somente à gravura, que tornou-se
símbolo do artista atormentado, inclinado para evasão. Nela, identifica-se claramente
um homem debruçado sobre a mesa, os cabelos desarrumados, papéis e lápis em cima
da mesa. É um artista que dorme e podemos ver o que está ocorrendo em seu sonho, ou
melhor, em seu pesadelo. A hora do sono é propícia para eclosão dos seres que habitam
as trevas do homem, visto que esses animais emergem das profundezas do sonho, com
o qual o inconsciente está indissoluvelmente ligado. Os animais que esvoaçam em torno
do artista parecem atormentá-lo, exceto a imagem do gato, que parece alheio aos
“gritos” dos outros animais. Aliás, há dois gatos, um facilmente identificável à direita e
embaixo, e o outro atrás do artista, que apenas podemos ver os olhos. Corujas e
morcegos, seres noturnos que logo sugerem um aspecto sombrio, pairam acima do
artista, e parecem desvairados, numa atitude aterrorizadora.
De acordo com o Dicionário de Símbolos (2005), de Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, se buscarmos a simbologia do morcego, veremos que este é um animal
2
Do artigo “Alguns caricaturistas estrangeiros”. In: Obra Completa.
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impuro, que simboliza o pavor, o medo, o irracionalismo. A coruja, por sua vez, é o
animal guardião das moradas escuras, das trevas, que também pode representar o
racionalismo que, de alguma forma, tenta impor a sua vontade ao artista. Kayser
também afirma que “há animais preteridos pelo grotesco”, que entre eles estão a coruja
e o morcego. Este, segundo o autor, é o mais sinistro de todos. Vejamos o que ele
escreve acerca do morcego:

Um animal crepuscular, de vôo silencioso, com inquietante agudeza


perceptiva e de segurança infalível nos rápidos movimentos – não
caberia suspeitar que ele suga o sangue de outros animais enquanto
estão dormindo? (KAYSER, 1986, p.158).

A simbologia do gato oscila entre positiva e negativa, pois que sua atitude é a um
só tempo terna e dissimulada. O gato é um animal com inteligência apurada, não é
selvagem, mas também não é servil. Ao contrário das atitudes dos outros animais, o
gato está tranqüilo, apenas observando. A impressão que nos fica é que, nos
sonhos/pesadelos de Goya, há uma briga constante entre aquilo que é racional e
irracional, uma dualidade, de certo modo, inata ao ser humano e que artistas e poetas
conseguem exprimi-la. Além disso, essa briga irá se estender por toda a modernidade. É
uma busca pelo controle da própria mente, tanto daquilo que é consciente como o que é
inconsciente.
Como poucos, Goya foi capaz de transpor o limite do real com o irreal. Ao passar
para o outro lado, o lado escuro da mente, o pintor descobriu um mundo fantástico e
pôde dar livre curso à imaginação. “O sonho da razão produz monstros” nos conduz às
profundezas da alma e do inconsciente, muito tempo antes do próprio Freud. Com os
prelúdios do Romantismo, já é possível notarmos alguns “sintomas” da modernidade,
como acentuou Hugo Friedrich, daí a importância de Goya para a arte moderna.

Alphonsus de Guimaraens e seus pesadelos

Antes de tudo, um fato da vida de Alphonsus de Guimaraens, que nos lembra do


ocorrido com Goya, após a sua doença, tem de ser discutido aqui.
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Alphonsus teve uma noiva ainda muito jovem, chamada Constança, que morreu
de tuberculose, um mal ainda sem cura na época, deixando o seu noivo desolado e, por
certo, interferindo na sua vida pessoal e literária. Da mesma forma que Goya não seria
mais o mesmo após a doença, Alphonsus não seria mais o mesmo após a morte de sua
amada, ainda mais por ser ele ainda tão jovem. Como Alphonsus é um poeta de extremo
subjetivismo, não poderíamos deixar de citar esse fato determinante. Para uma melhor
compreensão da obra e do artista, levaremos em consideração tais acontecimentos e,
para completar, utilizamos as palavras de Tácito Pace, no seu estudo acerca de
Alphonsus, intitulado “O simbolismo na poesia de Alphonsus de Guimaraens”:
Se o indivíduo deve ser estudado no meio em que produziu a sua obra,
no sentido de captar-lhe as vibrações exógenas e fixar as influências
ambientes, próximas ou remotas, que incidiram nessa obra e fundiram
as características que a projetaram no tempo e no espaço, é totalmente
significativo, sob todos os aspectos, que o mundo interior do poeta
seja descoberto, através de incursões analíticas ao mundo físico em
que ele viveu e se debateu, amou e trabalhou, pecou e creu, errou e
sofreu, caiu e triunfou, magoou e foi magoado, castigou e foi
castigado, julgou e foi julgado, para que conheçamos os ‘caminhos da
vida’ que o levaram à glória pelos ‘caminhos da mente’ (PACE, 1984,
p.37).

Há nos versos de Alphonsus Guimaraens tendências um tanto estranhas. O poeta


mineiro tornou-se conhecido por seus versos místicos, muitos deles com uma
religiosidade cristã acentuada. No entanto, esse estudo mostrará que o universo de
Alphonsus também foi povoado por situações grotescas, por aquele “grotesco
fantástico” que nos fala Wolfgang Kayser, que nada condizem com o poeta resignado e
católico que foi conhecido posteriormente. Como observou Henriqueta Lisboa, em
estudo acerca do poeta mineiro, surge a figura de um “estranho Alphonsus”. Para
complementar, vejamos ainda o que escreveu Henriqueta sobre o livro Kiriale, um livro
da mocidade do poeta e o qual se nos apresenta rico em imagens grotescas: “Nota-se,
nesta mais do que em qualquer outra produção sua, a originalidade que lhe permitia
formar em valores estéticos, expressões vulgares ou grotescas”(LISBOA, 1945, p.41-
42).
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Para fazer a aproximação com Francisco de Goya será preciso levarmos em


consideração o conceito do “grotesco fantástico”, que, como vimos, a arte do pintor
espanhol está repleta. Pretendemos demonstrar como uma mente em total liberdade
pode extrapolar com o real e, por isso mesmo, causar-nos espanto e estranheza.
Como já vimos, o “grotesco fantástico” é um desdobramento do conceito principal
de grotesco, o qual Kayser expôs em sua obra, e se refere aos “sinistros mundos
oníricos”, aos “monstros ameaçadores e animais fantásticos (KAYSER, 1986, p.144)”.
Este outro universo criado, tanto por Goya, como por Alphonsus, causam
estranhamento, pois não somos acostumados com tais imagens. E este “mundo
estranhado surge ante o olhar do sonhador, quer no sonho desperto, quer na visão
crepuscular da transição” (KAYSER, 1986, p.160).
Levando em consideração que o Simbolismo, de certa forma, é uma continuação
do Romantismo, que tem em Goya seu principal precursor, fica-nos clara a ligação entre
os dois artistas, uma vez que ambos usam o sonho como meio de correspondência entre
o mundo real e o mundo imaginário. Em Goya, seus sonhos, ou melhor, seus pesadelos,
são povoados por animais esvoaçantes, que causam terror. Em Alphonsus, por sua vez,
encontraremos espectros, sombras, anjos com asas pretas, esqueletos, enfim, um
batalhão de pesadelos, como podemos observar nesses versos do poema “Succubus”, do
livro Kiriale:

Às vezes, alta noite, ergo em meio da cama


Meu vulto de espectro, a alma em sangue, os cabelos
Hirtos, o torvo olhar como raso em lama,
Sob o tropel de um batalhão de pesadelos.

Imagens como “a alma em sangue”, “cabelos hirtos” e “torvo olhar” nos sugerem
não mais um sonho, mas antes um pesadelo. É essa condensação de imagens que é
capaz de evocar a atmosfera pesadelar, muito parecida com àquela de Goya, na gravura
“O sonho da razão produz monstros”. A realidade exterior fica aniquilada. É aquilo que
Kayser chama de “vivências oníricas”, o qual já não podemos afirmar se o que acontece
é um sonho, uma ilusão, uma visão ou até uma alucinação, mas que podemos ter a
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certeza de que, quando o sonhador acordar, “ao levantar-se da cama, pisa em outro
plano” (KAYSER, 1986, p.70).
Se é a noite é propícia à eclosão dos sonhos, como podemos perceber no decorrer
das manifestações literárias, então a noite na poesia de Alphonsus toma uma forma
sombria e desolada, como acentuou Tácito Pace. Vejamos o que o crítico escreveu
acerca da noturnidade de Alphonsus:

A poesia sombria e desolada de Alphonsus, pelos essenciais aspectos e


símbolos de solidão, recolhimento, contemplação, silêncio, que
apresenta a cada verso, deixa-nos a impressão de que sempre foi
inspirada na quietude e cumplicidade da noite, por isso que é povoada
de fantasmas, duendes, sombras, penumbras, trasgos e vozes
misteriosas (PACE, 1984, p.126).

Como quase em toda a sua obra, a noite irá prevalecer em oposição ao dia. É no
silêncio da noite e na solidão, aquela “solidão sonhadora” de que nos fala Gaston
Bachelard (2001), onde o cenário domina o drama e as imagens se estabelecem como
quadros. Aqui, Alphonsus terá um ambiente propício aos seus sonhos.
Neste sentido, há um local especial para Alphonsus, um espaço favorável a
devaneios, um ambiente silencioso e pesadelar, ou seja, o quarto. É por meio das “noites
passadas de olhos abertos” que o poeta irá criar esse universo do “grotesco fantástico”,
onde a imaginação atingirá patamares até então só atingido pelo sonho. Nessas horas
soturnas, alto da noite, virá “um batalhão de pesadelos” tentar o poeta. Observamos os
versos a seguir, do poema “Initium”, do livro Kiriale:

Noites passadas de olhos abertos,


Sem nada ver, sem falar, tão mudo...
Alguém que chega, passos incertos,
Alguém que foge, e silêncio em tudo...

Tudo se dá na forma de sugestão, pois não temos a imagem total e clara. São
impressões que nos ficam, são “passos incertos” e “alguém que chega”, mas logo
“foge”, como imagens do sonho que perpassam nossa mente enquanto dormimos e que
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são difíceis de se lembrar. Cabe ao artista selecionar essas imagens e expressá-las da


forma que preferir.
Só, perseguido de sombras mortas,
De espectros negros que são tão altos...
Ouvindo múmias forçar as portas,
E esqueletos que me dão assaltos...

Só, na geena deste meu quarto


Cheio de rezas e de luxúria...
Alguém que geme, dores de parto,
--- Satã que faz nascer uma fúria...

Na “geena” do quarto, ou seja, no seu próprio inferno, com rezas e com luxúria,
“sombras mortas”, “espectros negros”, “múmias” e “esqueletos” vêm atormentar o
poeta nas suas horas de solidão. Ora, essas imagens não podem suscitar felicidade. São,
antes, imagens grotescas, aterrorizadoras e que sugerem pesadelo. Apesar de Alphonsus
mais tarde ter escritos versos de misticidade católica, foi, quando moço, um poeta
voltado para temáticas sombrias, um verdadeiro baudelairiano.
Agora, prestemos atenção ao poema “Sonhos Idos”, o qual está no livro Pulvis,
último livro de Alphonsus e, segundo Henriqueta Lisboa, o livro “mais triste” do poeta
mineiro. O poema tem uma atmosfera toda particular. É noite, o eu poético quer
descansar o “corpo morto”. No entanto, os sonhos vêm perturbá-lo e, como se fosse
uma aparição, surge a presença da alma, personificada no abutre:

E alma me diz: Sobre o teu corpo esvoaço


Como um abutre...
Morre afinal, pois que de mim se nutre
Tua carne, teus músculos, teus ossos,
Ao som funéreo de padre-nossos...

Da mesma forma que em Goya aquelas aparições, aquelas imagens dos animais
que esvoaçam em torno do artista, perturbavam-no, a alma do poeta, que encontra uma
forma de se comunicar com ele através do sonho, vem perturbá-lo também, na
personificação do abutre. Se buscarmos na simbologia do abutre, veremos que ele é um
animal devorador de entranhas e, por isso mesmo, pode simbolizar a morte como
também a renovação, ou a morte do corpo e o renascimento da alma em outra dimensão.
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À medida que se sente isolado e perdido nas trevas da mente, o artista faz uma viagem
ao interior dele mesmo, no qual encontrará a alma, que antes era esquecida em proveito
da realidade.

Considerações Finais

Neste artigo pudemos comprovar a estreita ligação do pintor espanhol Francisco


de Goya com o poeta brasileiro Alphonsus de Guimaraens. Baseando-nos no conceito
de Wolfgang Kayser acerca do “grotesco fantástico”, traçamos ligações entre o pintor e
o poeta, ambos os artistas de uma sensibilidade exacerbada, por meio de suas imagens
não convencionais. Ademais, pudemos comprovar o que Baudelaire escreveu sobre o
que seria a melhor análise de um quadro: um poema ou um soneto são capazes de
sugerir imagens tais como os pintores nos oferecem. Através das imagens, pictórica e
poética, foi possível observar a criação de um mundo à parte, alheio ao real, em outras
palavras, o mundo dos sonhos.
Acontece que esse mundo dos sonhos, muitas vezes, é povoado por seres
aterrorizadores, sombras, fantasmas, espectros, esqueletos, toda a sorte de animais
fantásticos que levam-nos a pensar antes num pesadelo do que um sonho, numa
atmosfera pesadelar bem ao moldes românticos e decadentes.
Outro fato aproxima ainda mais os dois artistas. Goya, atormentado por delírios e
surdo para o resto da vida. Alphonsus, jovem, apaixonado, frente à morte que veio
impedir a consumação do amor. Goya não mais faria uma arte para agradar aos outros, é
só prestarmos atenção a suas gravuras e pinturas negras, por exemplo. Alphonsus, por
sua vez, tornar-se-ia obscuro, sombrio, mantendo estreitas relações com “a morte”. Para
tanto, os dois artistas abusaram da imaginação, a fim de proporcionar uma obra rica em
imagens oníricas. Além disso, a “Quinta del Sordo” foi o refúgio para o pintor espanhol,
do mesmo modo que Mariana foi o refúgio para Alphonsus, conhecido ulteriormente
como “o solitário de Mariana”.
Pudemos perceber como a gravura “O sonho da razão produz monstros” tornou-se
símbolo, não só do Romantismo, mas também símbolo do artista moderno. Alphonsus
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de Guimaraens se mostra indissoluvelmente ligado a esta gravura, no tocante daquele


universo pesadelar e lúgubre, tão característico de Goya.
Este trabalho só veio ratificar o que pensávamos no início, ou seja, a estreita
relação entre Goya e Alphonsus que, mesmo afastados no tempo e no espaço,
aproximam-se por diversos fatores. Se Goya foi capaz de produzir imagens de sonhos
pintados, Alphonsus foi capaz de produzir sonhos escritos.

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. [Trad. Antonio de Pádua Danesi]. 3ª ed.


São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. [Org. Ivo Barroso]. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2002.
CHABRUN, Jean-Francois. Goya. Rio de Janeiro: Verbo, 1974.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. [Trad. Vera da Costa e Silva]. 19ª.ed.
Rio de Janeiro: Jose Olympio, 2005.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados
do século XX. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991.
GUIMARAENS, Alphonsus. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.
HUYGHE, Rene. O poder da imagem. Lisboa: Edições 70, [s.d.].
KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo:
Perspectiva, 1986.
LISBOA, Henriqueta. Alphonsus de Guimaraens. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1945.
OLIVEIRA, Valdevino Soares de. Poesia e pintura: um diálogo em três dimensões. São
Paulo: UNESP, 1999.
PACE, Tácito. O simbolismo na poesia de Alphonsus de Guimaraens. Belo Horizonte:
Comunicação, 1984.
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NINGUÉM É ALGUÉM: A IDENTIDADE NO CONTO “O IMORTAL”, DE


BORGES

Felipe Luis Melo de Souza 1 (PG - UFSJ)

Introdução

Em sua autobiografia, publicada originalmente em 1970, em inglês, com o título


de Autobiographical Essay, Jorge Luis Borges considera os livros Ficções e O Aleph
como os mais importantes que escrevera (BORGES, 1999, p. 111). Neste último, de
1952, o conto “O Imortal” é o primeiro da coletânea.
A narrativa, em primeira pessoa, aparece posterior aos dois parágrafos
explicativos sobre um manuscrito, em língua inglesa, encontrado na última parte da
Ilíada de Pope pela princesa de Lucinge em 1929, após a compra do livro no antiquário
de Joseph Cartaphilus, oriundo de Esmirna.
Dividido em cinco partes pelo autor, “Marco Flamínio Rufo, tribuno militar de
uma das legiões de Roma” (BORGES, 1999, p. 7), o manuscrito, com sua falsidade
poética e veracidade de circunstâncias factuais, descreve as aventuras que levam Rufino
da militância romana à imortalidade, que o destitui da certeza de saber-se alguém. Se
“em um prazo infinito ocorrem a todo homem todas as coisas” (BORGES, 1999, p. 11),
ele se torna, como imortal, todos os homens, ou, tal qual Ulisses, Ninguém.

1. Concepções não-unitárias de Identidade

No prólogo do El libro de los seres imaginarios (1982, p. 3), Jorge Luis Borges
argumenta que o título de seu livro permitiria a inclusão como seres imaginários, do
ponto, da linha, da superfície, bem como de Hamlet, das palavras genéricas, das pessoas

1 Agradeço a leitura atenta da Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino, que me orienta no
Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, na dissertação: Um
manuscrito de Joyce: a identidade narrativa e o artista.
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como nós e da divindade.


Genéricas ou abstratas, as palavras que definem o próprio universo – seguindo a
brincadeira de Borges – são imaginárias, imaginadas. Esse ponto de vista, de certo
modo presente no empirismo de Hume e de Locke, discorda da idéia platônica e,
portanto, das generalizações e abstrações.
A identidade, entendida por Levi-Strauss (apud BERND, 1990, p. 14) como
“entidade abstrata, sem existência real” articular-se-ia à classe dos seres imaginários.
Pois o que é a identidade? É possível definir uma idéia clara a seu respeito? De onde ela
surge? São possíveis várias definições?
De acordo com o dicionário eletrônico Houaiss, a palavra identidade surge do
latim identitas, em Marciano Capela (425 d. C). Este vocábulo, por sua vez, é derivado
de idem 'o mesmo'.
Para Stuart Hall (2001, p.10), pode-se distinguir três concepções de identidade –
que explicaremos a seguir: a iluminista, a sociológica e a pós-moderna. A identidade
iluminista nasce da filosofia e do princípio de identidade que, juntamente com o
princípio da não-contradição, estabelece o axioma para a razão ocidental.
De acordo com Heidegger, em seu livro Identität und Differenz (1990, p. 60),
usualmente pensa-se o princípio de identidade (Der Satz der Identität) através da
fórmula A = A. Porém, ao considerarmos a igualdade – em latim idem, em grego το
αυτό, em alemão das Selbe – de um ente como por exemplo, o gato é o gato, incorremos
em um pensamento tautológico.
De modo que, aparentemente muito simples, é necessário meditar a respeito
desta questão. Para Heidegger, a fórmula anterior esconde o que quer dizer realmente o
princípio: “Die geläufige Formel für den Satz der Identität verdeckt somit gerade das,
was der Satz sagen möchte: A ist A, d. h. jedes A ist selber dasselbe” 1 (HEIDEGGER,
1990, p. 62). Ou seja, cada ente é ele mesmo para si mesmo, é consigo mesmo o
mesmo.

1 “A famosa fórmula para o princípio de identidade esconde o que o princípio deseja dizer: A é A, isto é,
cada A é ele mesmo o mesmo” [tradução minha].
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E é em função desta relação do “com” (consigo) que, historicamente na filosofia,


o princípio de identidade será considerado uma unidade:

In der Selbigkeit liegt die Beziehung des “mit”, also eine


Vermittelung, eine Verbindung, eine Synthesis, die Einung in eine
Einheit. Daher kommt es, dass die Identität durch die Geschichte des
abendländischen Denkes hindurch im Charakter der Einheit
erscheint 2(HEIDEGGER, 1990, 62).

Foram necessários quase dois mil anos para que a mediação no princípio de
identidade, desde então sempre presente (na visão de Heidegger), surgisse com o
pensamento dos filósofos alemães idealistas – antecipados por Leibniz e Kant os quais
introduziram a questão - Fichte, Schelling e Hegel.
O pensamento hegeliano abrirá ao pensamento ocidental outras possibilidades,
pois na síntese encontram-se suprassumidas (aufheben) as diferenças entre a tese e a
antítese. O conhecimento é dado no movimento que perpassa os momentos nos quais o
não-ser – ou a alienação do ser em outro – constitui-se como condição para o
desenvolvimento do pensamento filosófico. O princípio de identidade, de unidade, passa
a ser questionado na sua uniformidade.
A identidade presumida no iluminismo é, para Hall, a que concebe o sujeito
como sujeito racional. Sendo a razão – através do princípio de identidade e do princípio
de não-contradição – unitária, o sujeito seria uma entidade única. Apesar do outro, que
ao sujeito aliena, já aparecer na Fenomenologia do Espírito de Hegel, o projeto
iluminista, ao que parece continuou conceitualizando, em sua ideologia, a identidade 3
enquanto uma unidade, portanto.
A sociologia, em sua querela epistemológica com a psicologia, na discussão
sobre “indivíduo” e “sociedade” é que apresenta, para Stuart Hall, o avanço da unidade

2 “Na mesmidade jaz a relação do “com”, uma mediação, uma relação, uma síntese: a união de uma
unidade. Por isso que, o princípio de identidade aparece ao longo da história do pensamento ocidental
através do caráter de uma unidade” [tradução minha].

3 A identidade na filosofia, evidentemente, não corresponde a um sujeito empírico, mas, antes, ao sujeito
do conhecimento. Entretanto, a concepção ideológica da identidade iluminista parece, de acordo com
Hall, ter determinado uma visão de mundo a respeito das identidades dos sujeitos empíricos.
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do sujeito iluminista para a mediação entre sujeitos. Autores como G.H. Mead e C.H
Cooley e os interacionistas simbólicos defendem esta nova concepção identitária, na
qual a alteridade é contemplada. Na concepção sociológica, “A identidade é formada na
‘interação’ entre o eu e a sociedade” (HALL, 2001, p.11).
Além da identidade iluminista e sociológica, para Hall, na pós-modernidade “o
sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se
tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas
vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2001, p.12). Há, portanto o surgimento
de “identidades abertas, contraditórias, inacabadas” (HALL, 2001, p.46).
O exemplo (HALL, 2001, p. 19) dado pelo autor da identidade pós-moderna é o
da indicação pelo presidente americano Bush, em 1991, de Clarence Thomas para juiz
da Suprema Corte. Na pluralização identitária, o jogo político da identidade acontece
em função deste sujeito ser negro, conservador e ter sofrido um processo de assédio
sexual por parte de uma mulher negra. De modo que a identidade do juiz é perpassada
por esses elementos, os eleitores dividiram-se em função de suas próprias identificações
e votaram a partir delas.
O sociólogo Zygmunt Bauman, outro autor da contemporaneidade que
conceitualiza a identidade, discorda de Stuart Hall com relação à segunda forma de
identidade. Segundo Bauman, autores clássicos da sociologia, como Durkheim, Weber
ou Simmel, não se preocupavam com a temática da identidade, em virtude do contexto
em que elaboraram suas teorias ser diferente do contexto atual. Em seu livro Identidade
(2005), que consiste em entrevista a Benedetto Vecchi, diz ele: “Há apenas algumas
décadas, a 'identidade' não estava nem perto do centro do nosso debate, permanecendo
unicamente um objeto de meditação filosófica” (BAUMAN, 2005, p. 22-23).
Bauman – apesar de enfatizar que a identidade é um “conceito altamente
contestado” – descreve-a na atualidade como sendo “uma luta simultânea contra a
dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa
resoluta de ser devorado” (BAUMAN, 2005, p. 84). Nesse sentido, aproxima-se de Hall
com relação ao entendimento de que a identidade na pós-modernidade é cambiante,
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aberta e fragmentada.
A identidade, constituindo-se em um conceito ou idéia, “não foi 'naturalmente'
gestada e incubada na experiência humana, não emergiu dessa experiência como um
'fato da vida' auto-evidente. Essa ideia foi forçada a entrar na Lebenswelt de homens e
mulheres modernos – e chegou como uma ficção” (BAUMAN, 2005, p. 26).
O nascimento da própria ideia sobre a identidade, individual ou coletiva, tal qual
aparece no senso comum ou em sentidos dicionarizados, deveu-se à própria criação do
Estado moderno. Seguindo o pensamento de Bauman,

A identidade só poderia ingressar na Lebenswelt como uma tarefa – uma


tarefa ainda não realizada, incompleta – um estímulo, um dever e um ímpeto
à ação. E o nascente Estado moderno fez o necessário para tornar esse dever
obrigatório a todas as pessoas que se encontravam no interior de sua
soberania territorial (BAUMAN, 2005, p. 26).

Deste modo, para Bauman, a identidade “só nos é revelada como algo a ser
inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, 'um objetivo'; como uma coisa
que se precisa construir a partir do zero” (BAUMAN, 2005, p. 21).
No percurso feito por Stuart Hall do iluminismo à pós-modernidade e na
entrevista de Bauman a Vecchi, notamos as diferentes acepções que o termo identidade
pode adquirir. Pela sua raiz etimológica idem e pelo princípio filosófico, a identidade
enquanto idéia nasce como o que é semelhante a si, como o mesmo. É esta concepção
que contamina o olhar iluminista a respeito do sujeito em sua identidade una.
A identidade sociológica pode ser resumida como aquela na qual a alteridade
faz-se indissociável, embora Bauman argumente que a questão da identidade não tenha
sido a principal preocupação dos sociólogos do início do século XX.
Na pós-modernidade as definições sobre a identidade – apesar do uso de
significantes diversos – parecem ser unívocas: a identidade precisa ser inventada,
reconstruída, ela é aberta, cambiante, fragmentária. Ela está em constante e interminável
processo.
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2. Identidade e imortalidade

Supondo um sujeito imortal, qual definição de identidade seria adequada? É esta


questão que pretendemos responder, utilizando como corpus o conto “O Imortal”, de
Borges.
“Marco Flamínio Rufo, tribuno militar de uma das legiões de Roma” (BORGES,
1999, p.7) e Homero são os dois personagens principais do conto. Porém, a narrativa em
primeira pessoa que é um manuscrito escrito por Rufo, confunde ao final as duas
pessoas, poderíamos dizer, as duas identidades.
Voltemos ao início. Rufo, que é um militar romano, descobre a existência de um
rio que livra os homens da morte. Após buscá-lo e encontrá-lo, quase sem querer, ele
descobre a Cidade dos Imortais.
Entre labirintos, prenunciados em sonhos e câmaras de nove portas que levam a
outras nove, surge o palácio que – por sua magnitude, inutilidade, grandeza e
incompreensibilidade – é definido sucessivamente por Rufino: “Este palácio é obra dos
deuses (...). Os deuses que o edificaram morreram (...). Os deuses que o edificaram
estavam loucos” (BORGES, 1999, p. 8).
Antes de chegar ao palácio, ele já havia bebido da água cujo prêmio é a
imortalidade e conhecido os trogloditas, homens de baixa estatura, que devoram
serpentes e andam nus. Um deles, mudo, segue Rufo até a entrada da Cidade – e após
dias de exploração e angústia – permanece lá, talvez esperando-o, na boca da caverna.
Rufo começa a chamá-lo de Argos, o cão de Ulisses, que na Odisséia encontra seu dono
quando este retorna a Ítaca.
O militar romano decide então ensiná-lo a falar, mas todas as suas tentativas
mostram-se inúteis. O curioso é que assim que sai da Cidade, Rufo vê que Argos
“desenhava grosseiramente e apagava uma fileira de sinais que eram como as letras dos
sonhos, que se está a ponto de entender e logo se juntam” (BORGES, 1999, p.9).
Rufo cria teorias para tentar explicar porque Argos não responde e não aprende.
Talvez estivessem em universos distintos, talvez Argos, como se diz dos macacos, não
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quisesse aprender para que não tivesse que trabalhar. Além destas possíveis explicações,
ele continua:
Pensei em um mundo sem memória, sem tempo; considerei a
possibilidade de uma linguagem que ignorasse os substantivos, uma
linguagem de verbos impessoais ou de indeclináveis epítetos. Assim
foram morrendo os dias e com os dias os anos, mas algo parecido com
a felicidade ocorreu uma manhã. Choveu, com lentidão poderosa
(BORGES, 1999, p. 10).

É nesta manhã, com o balbucio de duas frases gregas, que o mistério a respeito
da verdadeira identidade de Argos se esclarece, quando este diz: "Argos, cão de
Ulisses" (...) "Este cão atirado no esterco" (Borges, 1999, p. 10). Rufo lhe pergunta o
que ele sabia da língua grega: "Muito pouco, disse. Menos que o rapsodo mais pobre. Já
terão passado mil e cem anos desde que a inventei (BORGES, 1999, p. 10)”.
Argos é o criador da língua da Odisséia e deste poema que narra as aventuras de
Ulisses. Argos é Homero. Entretanto, parece não se lembrar e não se importar com o
fato de ter sido o autor desta obra. A imortalidade, em contraponto à mortalidade, é o
que explica a falta de orgulho e de vaidade.
Os homens, que possuem um exíguo tempo entre o nascimento e a morte, para o
narrador em primeira pessoa são como fantasmas. São preciosos e patéticos: “cada ato
que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por dissolver-se como o
rosto de um sonho” (BORGES, 1999, p.12). Para os imortais, a quem o tempo
assemelha-se à eternidade, “não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a
Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o
impossível seria não compor, sequer uma vez, a Odisséia” (BORGES, 1999, p.11).
Este valor advinha da compreensão da tendência ao equilíbrio das ações. “Por
suas passadas ou futuras virtudes, todo homem é credor de toda bondade, mas também
de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro” (BORGES, 1999, p.11).
Com a ideia do universo como um sistema de compensações, juntamente com a
extensão temporal da imortalidade, encontramos uma definição de identidade plausível
de um sujeito, como Homero, imortal. “Ningué m é alguém, um só homem imortal é
todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou
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demônio e sou mundo, o que é uma fatigante maneira de dizer que não sou”.(BORGES,
1999, p.11).
Após a descoberta da “real” identidade de Argos, Rufo, ao lado dos trogloditas
ou imortais, permanece no mundo da pura especulação. Para o corpo havia apenas a
necessidade de rações limitadas de carne de serpente, de água algumas vezes no mês e
poucas horas de sono.
Passam-se os séculos, e por volta do ano 1000 d. C., surge um pensamento que
revoluciona a atitude dos imortais perante a vida. Logicamente, ele é estruturado da
seguinte forma: se há um rio que livra os homens da morte, há um rio que a devolve.
Em virtude da novidade deste pensamento, eles dispersam-se sobre a face da terra, em
busca agora não da imortalidade, mas da mortalidade.
Rufo descreve suas aventuras a partir deste momento, em poucos pontos: Em
1066, participa da guerra em Stamford. Depois, “no sétimo século da Hégira, no
arrabalde de Bulaq, transcrevi com pausada caligrafia, em um idioma que esqueci, em
um alfabeto que ignoro, as sete viagens de Simbad e a história da Cidade de Bronze”
(BORGES, 1999, p.12). Em Samarcanda, ele joga xadrez, em Bikanir e na Boemia,
ensina astrologia. No ano de 1638, viaja a Kolozsvar, Leipzig. Já no século XVIII,
escreve a Ilíada de Pope e, em 1729, discute-a com Giambatista Vico.
Em 1921, em um porto da costa da eritréia, no Mar Vermelho – como quando
era tribuno militar romano – ele bebe de um caudal de água que lhe devolve a
mortalidade. “De novo sou mortal, repeti a mim mesmo, de novo me pareço com todos
os homens” (BORGES, 1999, p.12-13).
Um ano após ter concluído o manuscrito, Rufo revisa o que tinha escrito e
percebe algumas incoerências em seu relato. Além do excesso de elementos
circunstanciais, que aprendera com os poetas, ele descobre a razão da irrealidade da
narrativa (que, evidentemente, não é a existência dos imortais): “A história que narrei
parece irreal porque nela se mesclam os sucessos de dois homens diferentes”
(BORGES, 1999, p.13).
Quando se aproxima o fim, já não restam imagens da lembrança; só
restam palavras. Não é estranho que o tempo tenha confundido as que
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alguma vez me representaram com as que foram símbolos do destino


de quem me acompanhou, por tantos séculos. Eu fui Homero; em
breve, serei Ninguém, como Ulisses; em breve, serei todos: estarei
morto (BORGES, 1999, p. 13).

No canto IX da Odisséia, quando Ulisses está preso na caverna do Ciclope,


encontramos a definição de Ulisses como Ninguém. “Οΰτις έμοί γ' όνομα 4” (HOMERO,
1961, p.244). Ele, entretanto, usa desta artimanha para que, quando o Ciclope peça
ajuda aos seus, ele reclame de que Ninguém estava em sua caverna. Assim, ele e seus
companheiros poderiam escapar da morte.
A semelhança entre a concepção de identidade de Rufino e a concepção pós-
moderna, portanto, consiste no fato de que para uma identidade imortal (pensada
supostamente) e para uma identidade pós-moderna (em constante mutação pelas
demandas sócio-econômicas) não se é alguém, ou seja, não se pode ser apenas um.
“Ninguém é alguém” (BORGES, 1999, p.11). Tanto por Hall quanto por Bauman, a
identidade consiste antes em um processo do que em um dado. Está em constante
abertura e modificação.

Considerações finais

A identidade apresenta diversas concepções. Com a raiz latina idem e o princípio


de identidade, a origem do termo enquadra-se no campo semântico do que é igual, do
que é idêntico, do que é o mesmo. Sua origem contamina a visão iluminista a respeito
dos sujeitos, entendidos como únicos, centrados na razão. Embora logicamente
demonstrado por Heidegger, a mediação – que desde sempre existiu no principio de
identidade – tenha sido antecipada por filósofos do ilu minismo e por Hegel.
De acordo com Stuart Hall, na passagem do século XIX para o XX, alguns
sociólogos como G.H. Mead e C.H. Cooley formularam a concepção de identidade
vinculada à alteridade, apesar de que os pais da sociologia, Durkheim e Weber não
tivessem como central a questão identitária.
Na pós-modernidade, o conceito de identidade (tanto individual quando coletiva)

4 “Ninguém é o meu nome” (HOMERO, 1974, p. 134).


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se reveste de maior importância, principalmente nas últimas décadas do século XX. No


contexto da globalização, a concepção vigente a respeito da identidade para diversos
autores, como Stuart Hall e Bauman, é a de que esta se encontra em processo, em
construção. Os sujeitos possuem várias identidades, que são cambiantes, fragmentárias
e, por vezes, conflituosas.
Escrito na segunda metade do século XX (1952), o conto fantástico de Jorge
Luis Borges “O Imortal”, ao descrever os sucessos de um militar romano que busca e
encontra a fonte da imortalidade, concebe o sujeito – ao final confundido com Homero
– como sendo todos os homens e, ao mesmo tempo, como sendo ninguém. Dado um
período de tempo vasto, um sujeito – alguém – pode ser qualquer um, pode ser Homero,
pode ser todo e qualquer homem. A partir destas possibilidades, o sujeito é ninguém, ou
seja, não se resume a ser um. Sua identidade (imaginada) é aberta, em processo,
fragmentária.
Bauman, em seu livro Modernidade Líquida (2001), argumenta que o tempo e o
espaço na pós modernidade – ou na modernidade líquida – possuem uma configuração
totalmente nova na história da humanidade. O tempo, com o desenvolvimento dos
meios de transporte e de tecnologias informacionais como a internet, é praticamente
inexistente.

Na atualidade, portanto, o tempo predisporia a vivências identitárias fluidas,


parecidas com as que são experimentadas na duração infinita do conto de Borges.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.
BORGES, Jorge Luis. Autobiografia: 1899-1970. Trad. Marcial Souto y Norman
Thomas di Giovanni. Buenos Aires: El Ateneo, 1999.
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BERND, Z. Literatura e identidade nacional. Editora da Universidade Federal do Rio


Grande do Sul, 1990.
BORGES, Jorge Luis. El libro de los seres imaginarios. Barcelona: Bruguera, 1982
BORGES, Jorge Luis. O Aleph. In: Jorge Luis Borges – Obras completas, Volume I.
São Paulo, Editora Globo, 1999.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da
Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
HEIDEGGER, Martin. Identidad y diferencia. Edição bilingüe. Barcelona: Anthropos,
1990.
HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0. Objetiva, 2000.
HOMER. Odyssee. Griechisch und deutsch. Übertragung von Anton Weiher. Germany,
Ernnst Heimeran Verlag, 1961.
HOMERO. Odisséia. São Paulo, Editora Três, 1974.
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AS REPRESENTAÇÕES DE UMA HEROINA BRASILEIRA NA LITERATURA


LATINO-AMERICANA

Fernanda Aparecida Ribeiro (PG-UNESP/Assis)

Introdução

Anna Maria de Jesus Ribeiro (1821?-1849) entra para a história com o codinome de
mulher guerreira, com o epíteto de “heroína dos dois mundos” e com o nome e o
sobrenome que seu companheiro, o revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi (1807-
1882), atribuiu a ela: Anita Garibaldi.
Até os dias de hoje não foi possível precisar a data e o local de seu nascimento, mas
o biógrafo brasileiro Wolfgang L. Rau (1975, p. 45), após uma pesquisa intensa,
assinala o ano de 1821 como o mais provável e a “região dos lagos da cidade de
Laguna, no sul catarinense” como a sua terra natal. Baseado na tradição oral, Rau
descreve alguns acontecimentos da infância, da adolescência e do relacionamento de
Anita com o primeiro marido, o sapateiro Manuel Duarte de Aguiar. Nesses episódios,
revela-se uma jovem de caráter independente, resoluta, cujas atitudes demonstram
“certo cunho viril”, conforme o relato de Walter Piazza (apud RAU, 1975, p. 52). Rau
também aponta que o casamento com o sapateiro, ocorrido em 1835, se faz por vontade
da mãe de Anita, possivelmente para aliviar a pobreza da família após a morte do pai
Bento Ribeiro.
Em 1839, quando os farroupilhas conquistam a cidade de Laguna, Manuel parte com
o exército imperial, deixando Anita em casa de amigos na Barra. É nesse local que
Garibaldi a vê desde seu barco e vai à sua procura, iniciando a relação com aquela que
será a sua companheira por dez anos, até a morte dela.
Garibaldi e Anita enfrentam diversos perigos durante a Revolução Farroupilha
(1835-1845) em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, migrando de cidade em cidade e
lutando juntos em inúmeras batalhas. Em setembro de 1840 nasce Menotti, o primeiro
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filho do casal, e, em meados do ano seguinte, a família Garibaldi se muda para


Montevidéu.
Na capital do Uruguai, Anita não participa de nenhuma batalha e fica confinada em
casa, cuidando das tarefas domésticas e dos filhos – ela tem mais três filhos enquanto
vive em Montevidéu, sendo que uma menina falece de difteria. Garibaldi é convidado a
auxiliar o país na luta contra o ditador argentino Juan Manoel Rosas, organizando a
Legião Italiana, que é a base da lenda garibaldina na Europa.
Em 1848, a família Garibaldi chega à Itália. Anita e os filhos ficam na casa de dona
Rosa Raimondi, mãe de Garibaldi, enquanto o revolucionário entra para o movimento
da unificação italiana. Em algumas ocasiões, Anita vai ao encontro de seu marido,
lutando também pela unificação do país. A última é em junho de 1849, em Roma,
quando a cidade é sitiada pelas tropas francesas. No mês seguinte, os legionários se
retiram da capital, fugindo da perseguição francesa e austríaca. Anita falece em 04 de
agosto em Madriole, perto de Ravenna. Por causa da aproximação da tropa inimiga, seu
corpo é enterrado na areia. Dias depois, uma menina descobre seu braço para fora da
sepultura. O corpo de Anita passa por diversos sepultamentos até ser enterrado
definitivamente em 1932, em Roma, em um monumento em sua homenagem.
1. A Anita de Giuseppe Garibaldi

A imagem de heroína de Anita Garibaldi é construída na história primeiramente por


Garibaldi em suas Memórias. O italiano redigiu diversas versões de suas memórias. A
primeira é publicada em inglês dez anos após o falecimento de Anita. Em 1860,
aparecem duas edições francesas das Memórias de Garibaldi, traduzidas do manuscrito
original por Alexandre Dumas, uma versão italiana e outra inglesa. No ano seguinte, é
publicada a versão alemã de Elpis Melena. Contudo, as “memórias definitivas” são
publicadas apenas em 1882. De todas as versões, talvez a mais difundida seja a de
Alexandre Dumas. Inclusive, é essa a versão traduzida no Brasil em 1907.
Quando a versão francesa é publicada em 1860, Garibaldi já é considerado o herói da
unificação italiana. Na sua narrativa, o revolucionário descreve sua vida desde o
nascimento até o ano de 1849. Ele também destaca a atuação de sua companheira Anita,
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lutando com intrepidez ao seu lado pelas mesmas causas. Assim, a imagem da brasileira
é de uma mulher guerreira, corajosa e fiel ao seu amado. Assim, Garibaldi constrói a
heroicidade de Anita, elevando-a ao pedestal dos deuses mitológicos:
Na missão de transportar as armas até a orla e no seu retorno à
embarcação, ela talvez tenha realizado vinte vezes o trajeto, cruzando
invariavelmente sob o fogo inimigo dentro de uma pequena barca com
dois remadores [...]. Ela, porém, de pé sobre a popa, no encruzamento
dos tiros, surgia, ereta, calma e altaneira como uma estátua de Palas,
recoberta pela sombra da mão que Deus naquelas horas pousava sobre
mim (DUMAS, 2006, p. 99).
Sabe-se que Atena é a deusa grega da guerra e que o arquétipo de Palas Atena se
refere à mulher que “cria e combate. Está pronta para lutar por suas próprias
necessidades e direitos, para defender conquistas culturais e a dignidade e causas
humanas” (RAPUCCI, 1997, p.70). Ou seja, ela é a deusa da sabedoria e a patrona dos
homens heroicos. Ao comparar Anita à deusa grega, Garibaldi afirma que sua
companheira é uma pessoa que maneja a arte da guerra, sendo conduzida por Deus,
como ele mesmo afirma em seu relato. Desse modo, ao validar a heroicidade de Anita, o
italiano comprova o seu próprio mito de herói.
O que se percebe em vários episódios de Anita descritos nas Memórias é que
Garibaldi edifica a imagem de uma mulher que em pleno século XIX transgride as
regras da sociedade patriarcal e irrompe no espaço público como vencedora. Ou seja,
Garibaldi descreve Anita como uma guerreira, uma mulher familiarizada com o
universo masculino, ambientada no espaço da guerra.
É dessa imagem de Anita construída por Garibaldi que partem os demais
historiadores, especialmente os brasileiros, destacando também a vivência de Anita no
espaço privado, cuidando da casa e da família. Muitos deles asseveram que ela deve ser
louvada como modelo de mulher resignada, pois permanece no ambiente fechado da
casa a espera do marido. Assim, a imagem histórica de Anita Garibaldi é de uma figura
ambígua, uma mulher que transita entre o espaço público e privado.
A questão dessa transitoriedade é retratada nos romances históricos sobre Anita
Garibaldi, sendo que alguns deles corroboram com a criação da figura da heroína
elaborada pelo revolucionário, como ocorre com o romance brasileiro A guerrilheira
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(1979), do mineiro João Felício dos Santos, e outros romances refutam tal construção
mítica, como acontece com Anita cubierta de arena (2003), da argentina Alicia
Dujovne Ortiz.
2. Uma guerrilheira convicta

O romance A guerrilheira, de João Felício dos Santos, publicado em 1979, narra a


saga de Anita Garibaldi entre os anos de 1835 a 1841, isto é, desde o início da
Revolução Farroupilha (1835-1845) e de relacionamento com Manuel, até a partida da
protagonista para o Uruguai, junto com Garibaldi e Menotti.
Pelo título da obra se percebe que Felício dos Santos corrobora com o mito de Anita
edificado por Garibaldi, ao afirmar que ela é uma guerrilheira, ou seja, uma pessoa que
participa da “luta armada de voluntários não-disciplinados militarmente” (BORBA,
2004, p. 697), e também que é dotada de coragem, que combate com ânimo, como se
pode perceber no episódio abaixo:
Somente no repiquete dos primeiros tiros foi que Garibaldi deu com
Anita, a seu lado, já disparando sua arma nova, e aos gritos de grande
entusiasmo:
- Mirem que não creio em fantasmas, corja de covardes, cascudos de
merda! Venham, sem medo, velhacos governistas! – e atirava... e
matava... Logo, enchia Garibaldi de ânimo – Não te preocupes
comigo, Papin de minha alma! Vá em frente, chico, que esses
porcalhões não são de subir ladeira... – e fuzilava... e derrubava...
(SANTOS, 1987, p. 243).
A personagem feminina adentra o campo de batalha como se fosse um espaço ao
qual a mulher frequentasse sem restrições. Ela luta com coragem, sabe manejar as armas
e incentiva os demais soldados. Nesse trecho, Anita não guerreia somente com atos,
mas também com palavras. A protagonista, enfim, tem o domínio das armas e das letras,
duas propriedades vedadas à mulher pela sociedade patriarcal.
No romance, Anita é descrita como uma mulher intrépida, que luta por justiça e
liberdade desde pequena. Na primeira parte do romance, a personagem Galdino
relembra, em pensamentos, as atitudes da protagonista que chocam a sociedade:
Não fora ela que, aos treze anos, agredira com um chicote o rosto de
um plantador, na serra onde dera seus primeiros passos [...]. Ainda
com menos idade, era sabido, costumava agredir e ofender com as
palavras mais duras os homens donos de escravos, comprados dentro
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da mais absoluta legalidade... Por fim, a doidivanas temperamental


não achou de agredir o pároco da terra a pontapés?[...] Porque o
pároco, um amigo de dom Rafael, fora obrigado a negar à pequena
desordeira a comunhão, que Anita se apresentara, como foi público e
notório, de bombachas, botas e lenço à mesa da Eucaristia...
(SANTOS, 1987, p. 26-27).
Apesar de viver em uma sociedade patriarcal, a personagem não é uma mulher
oprimida pelo homem e submissa às regras sociais que estabelecem o domínio
masculino. Como se percebe, Anita luta por sua liberdade como pela dos demais
oprimidos e desde jovenzinha já possui intuitivamente as noções de liberdade e justiça.
Assim, ela nega realizar qualquer tarefa imposta que lhe tolhe a liberdade e a confine ao
espaço privado, como se pode verificar na seguinte fala de dom Rafael, padrasto da
protagonista:
Outra coisa: a senhora sua mãe anda queixosa de se comportamento
em casa, sabe? Diz que, agora, a senhora só quer galopar sem rumo;
frequentar o mercado e o comércio; falar com desconhecidos; matear
sem escolha de local... Enfim, fazer propaganda da revolução. É um
absurdo, convenhamos! Diz mais que suas agulhas e linhas andam
espalhadas por toda a casa. Suas roupas... saiba que sua tesoura
encontrei-a eu mesmo, ontem, no quintal! Depois, que entende a
senhora de políticas? de Regência? de escravidão? Que sabe de
guerras? de coisas de homens? Na verdade, a senhora que coisas sabe
para discutir em público com forasteiros, às vezes até perigosos?
(SANTOS, 1987, p. 41).
Aqui se percebe como a protagonista refuta qualquer elemento que a possa prender
ao ambiente fechado da casa e às tarefas domésticas, preferindo circular pelo espaço
público, tido como da alçada masculina. Os atos de galopar, ir ao mercado, matear no
comércio e discutir política são atitudes atribuídas aos homens e proibidas às mulheres.
Todavia, a personagem não se submete às normas que estabelecem a opressão feminina
e transita no espaço público como o seu território.
Linhas, tesoura e agulha são objetos que remetem ao ofício de costureira, uma
atividade tipicamente feminina. Por isso, Anita os abandona pela casa, inclusive no
quintal, um espaço de transição entre o público e o privado, negando, assim, o ambiente
privado para conquistar o ambiente público que é valorizado pela sociedade.
A personagem também é questionada por dom Rafael sobre seus conhecimentos de
política e de guerra, assuntos que eram praticamente tratados pelos homens e dos quais
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se supunha que a mulher não tivesse entendimento e, com isso, era proibida de
expressar qualquer comentário, principalmente com desconhecidos. Todavia, Anita
demonstra que a mulher tem capacidade de entender e argumentar tais assuntos,
manifestando uma opinião própria, interpretando a realidade diferentemente dos
homens:
[...] com sua licença, dom Rafael, digo que sou analfabeta mas não
sou burra! Escuto as coisas, tchê! Avalio, peso, raciocino... Se dizem
que sou violenta, não tenho culpa. Nasci assim, ora! [...] se me tenho
metido em entreveros é porque, isso, não tolero. Não posso nem ver.
Não aceito, por exemplo, a escravatura. Não me passa um homem ser
dono de outro homem. Vomito! Infelizmente nós também ainda somos
escravos de um rei... Que coisa é um rei? Um idiota feito ainda mais
idiota pelos ladrões que o rodeiam... (SANTOS, 1987, p. 41).
Nessa fala, a personagem demonstra a sua visão sobre o mundo, a escravidão dos
negros e a tirania do rei como coibição da liberdade do ser humano. Ao tomar a palavra,
Anita também se apropria do universo masculino, pois as mulheres eram proibidas de
falar publicamente e de questionar os homens.
Na luta entre imperiais e farroupilhas, a protagonista faz do campo de batalhas um
espaço familiar e sua atuação é semelhante a de qualquer soldado intrépido. São várias
as cenas que mostram a protagonista combatendo com intrepidez, como no exemplo a
seguir:
Somente no repiquete dos primeiros tiros foi que Garibaldi deu com
Anita, a seu lado, já disparando sua arma nova, e aos gritos de grande
entusiasmo:
- Mirem que não creio em fantasmas, corja de covardes, cascudos de
merda! Venham, sem medo, velhacos governistas! – e atirava... e
matava... Logo, enchia Garibaldi de ânimo – Não te preocupes
comigo, Papin de minha alma! Vá em frente, chico, que esses
porcalhões não são de subir ladeira... – e fuzilava... e derrubava...
(SANTOS, 1987, p. 243).
Assim, João Felício dos Santos ambienta a personagem feminina no espaço público e
masculino, irrompendo nele como vitoriosa, como fosse um espaço familiar à mulher.
Ao corroborar com o mito heroico de Anita, situando-a no universo masculino, o autor
acaba acentuando as características de sua heroicidade, criando uma mulher-
guerrilheira, que se apropria do ambiente público, pois a sociedade o considera como
espaço central e positivo, em detrimento ao espaço privado, que é marginalizado.
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3. A versão feminina de Garibaldi

O romance Anita cubierta de arena (2003), da argentina Alicia Dujovne Ortiz, relata
a trajetória de Anita Garibaldi de 1839, quando ela conhece Garibaldi em Laguna, até
1849, quando falece em Madriole. A narrativa inicia-se com o encontro de Garibaldi e
Manuelita Sáenz, a amante de Simón Bolívar, no Peru, durante o segundo exílio do
italiano. No primeiro capítulo do romance é relatado esse encontro, no qual Manuelita
pede ao revolucionário que lhe conte a história de Anita. Entretanto, a vida de heroína
brasileira é narrada a partir da perspectiva feminina, ou seja, não é o relato de Garibaldi
que o texto apresenta, mas sim a “visão” de Manuela, ou melhor, a interpretação que ela
faz da narração do italiano.
Nesse sentido, a ênfase não será os atos públicos de Anita, mas os conflitos interiores
de uma mulher inserida na sociedade patriarcal do século XIX. A narradora1 não
recupera os feitos heroicos de Anita que Garibaldi perpetuou em suas Memórias. Ela
apresenta uma personagem em conflito, transitando entre os espaços público e privado e
apresenta argumentos contrários aos do italiano em suas Memórias ao relatar a
“heroicidade” de Anita.
Por exemplo, na luta naval entre imperiais e farroupilhas, Anita transporta as armas
das embarcações para a praia. Garibaldi em suas Memórias afirma que ela fez o trajeto
em pé na barca “ereta, calma e altaneira como uma estátua de Palas” (DUMAS, 2006, p.
99), elevando-a ao patamar dos deuses guerreiros e sublinhando que ela é guerreira nata
e que luta pelos mesmos ideais que os seus.
Contudo, a narradora de Anita cubierta de arena, ao se referir ao mesmo fato,
oferece uma leitura distinta para a atitude destemida de Anita: “Anita en el bote no va
remando ni sentada [...] ella va parada en la proa. Así muestra que puede, así convence a
José de que es capaz” (DUJOVNE ORTIZ, 2003, p. 49). Ou seja, a personagem não
enfrenta a guerra porque é uma mulher destemida, que luta pelas causas nobres, mas
para provar ao seu companheiro que pode segui-lo sem ser uma carga para ele levar. A

1
Por o foco narrativo e a perspectiva serem femininas, acredita-se que a narração seja proferida
por uma mulher.
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personagem não adentra o espaço público para fazer dele o seu lugar e sim só para estar
ao lado do homem que ama. Assim, o romance desconstrói o discurso de Garibaldi e a
imagem de Anita que ele elaborou nas Memórias.
O romance Anita cubierta de arena tira Anita do pedestal de heroína no qual ela é
ovacionada, e dá-lhe dimensões humanas ao mostrar uma mulher interessada com sua
vida amorosa:
Garibaldi ya ha conocido en Sudamérica a más de una. Todas han
hecho lo contrario. Mujercitas finas. […] El que Anita invierta las
cosas lo toma de sorpresa. Rato después, la criolla y el gringo se
pierden tras las cabañas de pescadores.
Si de algo sabe Anita es de necesidades. La de él la imagina, la suya la
conoce. Así que ha elegido un lugar amistoso para hacer lo que deben:
una playita redonda y protegida por unas piedras romas del color de la
carne (DUJOVNE ORTIZ, 2003, p. 21).
A personagem tem uma sexualidade próxima da mulher do século XX, do que a de
sua época, pois ela não vê tabu na sexualidade feminina. Segundo Bataille (2004, p. 46),
o erotismo “está na consciência do homem, o que faz com que ele seja um ser em
questão”. Em outro momento do livro, Bataille afirma que, por causa do erotismo, o
sujeito “se perde” para se identificar com o objeto de desejo.
Na busca de sua identidade, são vários os papéis desempenhados pela personagem
Anita no romance de Dujovne Ortiz, cada qual modificando sua imagem: “Para Rio
Grande do Sul había sido una famosa guerrillera. Para Montevideo, nadie. Para Itália
era la mujer del héroe del que los diarios se hacían lenguas desde que él peleaba junto a
ella en Rio Grande do Sul” (DUJOVNE ORTIZ, 2003, p. 151). Todavia nenhuma
dessas funções a completam. Elas são apenas representações exteriores.
No Uruguai, Anita é proibida, veladamente, de acompanhar Garibaldi na guerra.
Enquanto espera a volta do marido, a personagem passa o tempo cuidando da casa e dos
filhos, questionando sua própria identidade. Na vida que leva em Montevidéu, ela
encena algo que não se conforma com sua personalidade:
[…] los trajes inventados por su marido eran como aquellas calzas
marrones y aquel sombrero calabrés por los que ella aún suspiraba.
Nunca había sido tan Anita como disfrazada de soldado […] ¿Pero
ahora quién era Anita? No requería grandes búsquedas la imagen que
se le había pegado encima. Nada más fácil de hallar que el atavío de
mujer cualquiera, apagada, modesta, pobre (DUJOVNE ORTIZ, 2003,
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p. 128).
A protagonista também não encontra sua identidade no espaço privado, no papel de
dona de casa que a sociedade lhe impunha. O que mais se aproxima a ela é o “disfarce
de soldado”, isto é, aquilo que deveria ser apenas uma máscara, uma encenação, é na
realidade algo que se associa à sua identidade.
Ao final de sua vida, ao acompanhar Garibaldi e os legionários na fuga em Roma, ela
corta o cabelo e se veste como homem, encontrando a sua identidade em Garibaldi:
No es la primera vez que Anita está junto a José, frente a los otros,
pero sí la primera que aparece como una versión de José, con su
mismo sombrero de alas blandas y de penacho negro. Un José hombre
y una José mujer. Un José de dos cabezas. No por doblez como
Canabarro: por amor (DUJOVNE ORTIZ, 2003, p. 205).
Depois de procurar sua identidade no papel de guerreira, de dona de casa, de soldado
valente ou de mãe e esposa, a protagonista logra o seu intento ao se tornar uma versão
feminina de Garibaldi, uma espécie de duplo ou de andrógino.
Conforme os estudos feministas (Cf. CASTELLO BRANCO & BRANDÃO, 1989,
p. 125-126), no movimento em busca de identidade fora de si mesma, na maior parte
das vezes, a mulher identifica-se com o objeto amado, ou seja, o homem. Ela se
conforma com tal situação como algo natural e sem buscar outras opções. É justamente
o que ocorre com a protagonista de Anita cubierta de arena: ao buscar identidade fora
de si, ela acredita que é a complementação de Garibaldi e se realiza por ser uma versão
feminina de seu amado.
A Anita de Dujovne Ortiz é uma personagem que transita entre os âmbitos aberto e
fechado, mas não consegue se fixar em nenhum deles. O romance nega a imagem
histórica de Anita elaborada por Garibaldi ao apresentar uma mulher mais carnal,
preocupada com assuntos femininos e que não se molda ao protótipo de guerrilheira.
Contudo, a protagonista não consegue se desligar do herói italiano, ao contrário, ela se
anula para ser uma versão de Garibaldi, diluindo sua identidade na imagem de seu
amado.
Considerações finais
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Como se pode verificar, os romances A guerrilheira, de João Felício dos Santos, e


Anita cubierta de arena, de Alicia Dujovne Ortiz, não conseguem se desligar totalmente
da influencia do relato das Memórias de Garibaldi: enquanto o escritor brasileiro
constrói uma personagem que valida o mito heroico de Anita, a autora argentina, apesar
de negar a heroicidade de Anita como algo inato, associa a personagem ao protótipo
histórico por causa do amor e fidelidade a Garibaldi. Tanto em uma obra como em
outra, a personagem feminina é descrita como um ser ambíguo, de características
femininas e masculinas, circulando pelo espaço público e privado. Ao resgatar a história
de Anita, cada autor tenta retirar o pó que encobre a imagem dela; contudo, eles
acrescentam uma máscara nova, encobrindo-a com mais histórias.

Referências

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. FARES, Cláudia. São Paulo: Arx, 2004.
BORBA, Francisco S. (Org.) Dicionário UNESP do português contemporâneo. São
Paulo: UNESP, 2004.
CASTELLO BRANCO, Lúcia; BRANDÃO, Ruth S. A mulher escrita. Rio de Janeiro:
Casa-Maria Editorial: LTC-Livros Técnicos e Científicos, 1989.
DUMAS, Alexandre. Memórias de Garibaldi. Trad. CARUCCIO-CAPORALE,
Antonio Caruccio-Caporale. Porto Alegre, L&PM, 2006.
DUJOVNE ORTIZ, Alicia. Anita cubierta de arena. Buenos Aires: Alfaguara, 2003.
RAU, Wolfgang L. Anita Garibaldi. O perfil de uma heroína brasileira. Porto Alegre:
Edeme, 1975.
RAPUCCI, Cleide A. “Exposta ao vento e ao sol”: a construção da personagem
feminina na ficção de Angela Carter. Tese. 380 f. (Área de Teoria Literária e Literatura
Comparada) – UNESP-Assis, 1997.
SANTOS, João F. A guerrilheira: o romance da vida de Anita Garibaldi. São Paulo:
Círculo do Livro, 1987.
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AS MEMÓRIAS DE GARIBALDI E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE


ANITA GARIBALDI

Fernanda Aparecida Ribeiro (PG-UNESP/Assis)

Introdução

Fernando Aínsa (1991, p. 83), em seu artigo “La nueva novela histórica
latinoamericana” aponta como característica do romance histórico, entre outras, a
releitura da história para “dar un sentido y una coherencia a la actualidad desde una
visión crítica de la convivencia”. Neste trabalho, destacam-se os romances A
guerrilheira (1979), do brasileiro João Felício dos Santos, e Anita Garibaldi (2003), do
argentino Julio A. Sierra, como releituras das Memórias de Garibaldi (1860), a base da
construção da identidade da heroína brasileira Anita Garibaldi.
1. Anita Garibaldi

A brasileira Anita Garibaldi (1821?-1849) é reconhecida na história por ser a esposa


do revolucionário Giuseppe Garibaldi (1807-1882), o herói da unificação da Itália
(Risorgimento 1815-1870).
Até os dias de hoje não foi possível precisar a data e o local de nascimento de Anita,
mas o biógrafo Wolfgang L. Rau (1975, p. 45), após uma extensa pesquisa, assinala o
ano de 1821 e a “região dos lagos da cidade de Laguna, no sul catarinense” como os
mais prováveis. O nome Anna Maria de Jesus pode ser confirmado na certidão de
casamento com o sapateiro Manuel Duarte em 1835. Os episódios da vida de Anita
antes de conhecer Garibaldi estão praticamente baseados na tradição oral.
Por causa da Revolução Farroupilha (1835-1845) no estado do Rio Grande (do Sul),
Manuel se alista no exército imperial e parte com a tropa na ocasião da conquista da
cidade de Laguna pelos farroupilhas em 1839. Anita passa a frequentar a casa de um
casal amiga na Barra e é desse local que o corsário Garibaldi a vê pela primeira vez.
Conforme o relato dele nas suas Memórias, Garibaldi vai ao encontro de Anita e lhe diz:
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“Virgem criatura, tu serás minha!” (DUMAS, 2006, p. 91), iniciando, assim, a relação
com aquela que será sua companheira pelos próximos dez anos, até a morte dela.
São inúmeros os episódios vividos por Garibaldi e Anita durante a campanha dos
farrapos. Em 1841, já com um filho, o casal se muda para Montevidéu, onde Garibaldi é
convocado a auxiliar o exército uruguaio na luta contra o ditador da Argentina, Juan
Manoel Rosas, e Anita é obrigada a ficar na casa, cuidando dos filhos – Garibaldi e
Anita têm mais três filhos no Uruguai, sendo que uma falece de difteria.
Em 1848, a família Garibaldi vai para a Itália. O revolucionário se engaja na luta pela
unificação do país e Anita vai ao seu encontro em algumas ocasiões. A última vez
ocorre em junho de 1849, quando o exército francês impõe um cerca à cidade de Roma,
obrigando os legionários a fugirem em direção ao mar Adriático. Anita falece em
Madriole em 04 de agosto de 1849. Garibaldi consegue se exilar na América pela
segunda vez, mas retorna ao seu país, consagrando-se herói por conseguir a unificação
italiana.
2. As “memórias” do herói italiano

Garibaldi redige várias versões de suas Memórias. A primeira é traduzida para o


inglês e publicada em 1859. No ano seguinte, aparecem duas edições francesas das
Memórias de Garibaldi, traduzidas do manuscrito original por Alexandre Dumas, uma
tradução italiana, com a introdução de George Sand, Amandine Aurore Lucile Dupin, e
a versão inglesa de Willian Robson. Em 1861 sai a tradução alemã de Maria Speranza
von Schwarts (Elpis Melena). Garibaldi revisa suas Memórias e as conclui em 1872,
mas as “memórias definitivas” só são publicadas dez anos depois, no ano em que falece.
No Brasil, em 1907, é traduzida a versão francesa de Alexandre Dumas, no jornal
rio-grandense O intransigente, sem indicação do nome do tradutor. É essa primeira
tradução brasileira que se populariza no país, sendo a base dos livros de história e
também dos romances analisados em este estudo.
Nessas Memórias de Garibaldi por Dumas percebe-se que se trata de uma narrativa
em prosa, na qual se conhece a identidade do autor francês, muito notório na época, mas
o narrador é Giuseppe Garibaldi, o herói italiano. Contudo, o revolucionário apenas
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fornece os dados biográficos a Dumas que elabora o texto, com um emaranhado de


vozes: a sua própria, a de Garibaldi, a do coronel Médici, entre outros. Apesar de haver
polifonia de vozes, verifica-se que o “eu” de Garibaldi, personagem principal, é
predominante e a sua identidade é diferente da identidade do autor. A perspectiva do
narrador é retrospectiva, pois ele elabora um texto sobre os acontecimentos vividos por
ele desde sua infância até a Retirada de Roma, em 1849.
O que se sobressai é o pacto (ou contrato) que se estabelece com o leitor a partir do
título – as memórias não são de Dumas, mas sim de Garibaldi, a personagem principal –
e que é reforçado no final da apresentação do livro feita pelo escritor francês em que
diz: “Deixemos que ele próprio nos conte os episódios extraordinários da sua
aventurosa existência” (DUMAS, 2006, p.23). Assim, a responsabilidade da veracidade
dos fatos não compete ao autor Alexandre Dumas, mas sim ao próprio Garibaldi, que
lhe entrega um manuscrito sobre sua vida e que no texto das Memórias se torna o agente
principal dos acontecimentos.
Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico (2008), descreve os elementos
constituintes da autobiografia e de seus gêneros vizinhos como as memórias, a
biografia, o romance pessoal, o poema autobiográfico, o diário e o auto-retrato ou
ensaio. Sobre as memórias, são três as categorias que preenchem os requisitos: a) forma
de linguagem: narrativa e em prosa; b) situação do autor: identidade do autor (cujo
nome remete a uma pessoa real) e a do narrador; c) posição do narrador: identidade do
narrador e da personagem principal e perspectiva retrospectiva da narrativa. Ao abordar
essas categorias e uma quarta – assunto tratado: vida individual, história de uma
personalidade – Lejeune se refere à autobiografia e exclui essa última característica do
gênero memorialístico.
Apesar de o autor excluir o item “assunto tratado: vida individual, história de uma
personalidade”, pode-se dizer que, no caso das Memórias de Garibaldi, trata-se de
contar a vida dessa personalidade tão conhecida e amada na Itália. Não são os fatos de
sua vida individual que sobressaem no texto, mas as ações que o tornam o herói da
unificação italiana. De sua vida particular, ou daqueles que o cercam, o italiano frisa
apenas os episódios que não denigrem a sua imagem. Por isso, Anita Garibaldi é
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descrita como uma heroína corajosa como qualquer soldado intrépido e que se destaca
nos combates por suas iniciativas e ousadia. Contudo, elementos que poderiam denegrir
a imagem de Anita, e assim a sua própria, Garibaldi os omite nas Memórias como o fato
de sua companheira ter sido casada com outro homem antes de se conhecerem, entre
outros. Esses dados são revelados posteriormente pelos historiadores, especialmente
brasileiros, quando buscam obter mais informações sobre a “heroína dos dois mundos”,
embora em todos os livros permaneça o caráter heróico construído por Garibaldi para
sua companheira.
Quando é publicada a versão de Alexandre Dumas em 1860, Garibaldi já é
considerado o herói da unificação da Itália. Nessas Memórias, Anita é descrita como
uma mulher valente e digna de lutar ao lado de seu companheiro, bem como de ser uma
esposa leal. Assim, Garibaldi é o responsável pela edificação da personagem histórica
Anita, cuja imagem será reproduzida pela história.
Por isso, nas suas Memórias, ele toma o cuidado de omitir todo detalhe ou episódio
que possa denegrir a imagem dela e, consequentemente, a sua também. Anita é
construída como uma autêntica heroína romântica que acompanha Garibaldi pelas lutas
republicanas, combatendo ela também pelas causas dele, não demonstrando medo frente
ao perigo, sendo uma mulher fiel no amor e nas armas.
Nos trechos das Memórias sobre os atos de Anita, pode-se dizer que o objetivo de
Garibaldi seja demonstrar que ela era uma mulher intrépida e combativa, que luta como
qualquer soldado, que tem iniciativa e encoraja os próprios soldados para a luta: “[...]
minha corajosa Anita já começara a canhonada. Ela mesma apontava e disparava a arma
que se encarregara de dirigir e exortava com palavras os nossos homens algo
temerosos” (DUMAS, 2006, p. 97).
Garibaldi não apenas se contenta em dizer que Anita é corajosa e guerreira,
descrevendo seus feitos na guerra. Ele lança mão da comparação, elevando sua imagem
ao patamar dos deuses, a quem os perigos dos combates não causam dano algum:

Na missão de transportar as armas até a orla e no seu retorno à


embarcação, ela talvez tenha realizado vinte vezes o trajeto, cruzando
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invariavelmente sob o fogo inimigo dentro de uma pequena barca com


dois remadores [...]. Ela, porém, de pé sobre a popa, no cruzamento dos
tiros, surgia, ereta, calma e altaneira como uma estátua de Palas,
recoberta pela sombra da mão que Deus naquelas horas pousava sobre
mim (DUMAS, 2006, p. 99).

Nesse momento, Anita não é um ser humano, mas sim um ser mitológico, que passa
incólume sob o tiroteio, na função de auxiliar a tropa farroupilha em sua retirada. Se a
ocasião da saída dos farrapos da cidade de Laguna é de desonra para eles, essa fuga é
dignificada no relato de Garibaldi pela ousadia de sua companheira.
Mesmo quando Anita é capturada pelos imperiais na batalha de Curitibanos,
Garibaldi encontra uma maneira de defendê-la, utilizando argumentos que a descrevem
como uma heroína que não abandona seus companheiros de luta para salvar-se somente
a si mesma:
Excelente amazona e montada num admirável ginete, Anita poderia
ter disparado e escapado àqueles cavalarianos; porém, o seu peito de
mulher encerrava um coração de heroína. Em lugar de fugir, ela tratou
de exortar os nossos soldados a defenderem-se, achando-se de súbito
rodeada pelos imperiais. (DUMAS, 2006, p. 120)

Garibaldi garante, assim, que não é um descuido ou fraqueza de Anita que a leva a
ser capturada, mas é algo honroso que ela faz em não fugir, incentivando os soldados
para a defesa, o que resulta em seu aprisionamento.
Em todas as cenas das Memórias em que Anita aparece, o que se percebe é a
elevação de sua pessoa como uma heroína corajosa, comparada inclusive a uma deusa
grega, e também fiel ao seu companheiro e aos seus ideais. Em seu relato, Garibaldi
instaura o mito do heroísmo de Anita que será repetido e ampliado por outros autores e
historiadores.

3. A donzela-guerrilheira

O romance A guerrilheira, do mineiro João Felício dos Santos, publicado em 1979,


conta a vida de Anita Garibaldi entre os anos de 1835 a 1841, ou seja, desde o início da
Revolução Farroupilha e seu primeiro casamento, com o sapateiro Manuel Duarte,
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passando por vários acontecimentos que ela vive ao lado de Garibaldi durante a Guerra
dos Farrapos até a sua partida para o Uruguai.
A narrativa é dividida em duas partes. A primeira, intitulada “A terra”, trata da vida
da personagem em Morrinhos, Santa Catarina, no período anterior ao surgimento de
Garibaldi em sua vida: são apresentados os fatos de sua juventude, o casamento com
Manuel Duarte e a posterior separação. A função dessa parte é enfatizar o caráter
guerreiro, contestador e dominador de Anita, que não se deixa levar pelo senso comum
e impõe os seus desejos. Destaca, também, episódios de sua infância através da
lembrança de outras personagens, nos quais se evidencia o seu lado combativo –
denominado “rebelde” pelas pessoas que a rodeiam.
Já a segunda parte do romance, “A Guerra”, narra a trajetória de Anita desde o
momento da chegada de Garibaldi a Laguna até a partida do casal para o Uruguai. Se a
primeira parte tem como objetivo a construção do caráter da personagem, a segunda
parte abarca os episódios que fazem dela a heroína que a história exalta. A sua bravura
se manifesta plenamente com a sua entrada nas tropas farroupilhas, lutando por seus
ideais ao lado de seu ídolo.
Em La nueva novela histórica de la América Latina (1993), Seymour Menton aponta
várias características dos romances históricos contemporâneos. Entre elas pode-se citar
a impossibilidade de conhecer a realidade histórica, pois o que ficou do passado são
vestígios – relatos, memórias, fotos, textos, entre outros – que são interpretados
conforme a ideologia da época ou das pessoas que investigam tal assunto. A visão que
se tem da personagem histórica Anita Garibaldi não foi a mesma desde sempre. No
século XIX, especialmente na região em que morava em Santa Catarina, ela era vista
como uma mulher adúltera, rebelde, que lutava contra o regime de seu país. A imagem
dela como heroína surge no Brasil após a Proclamação da República, quando os
historiadores da época passaram a buscar na história aqueles que lutaram por essa forma
de governo.
Walnice N. Galvão (1998, p. 83), ao tratar das mulheres brasileiras que se engajam
nas guerras como soldados, afirma que elas “mostram o desejo bastante compreensível
de invadir uma área vedada à experiência feminina, área que, em momentos de grandes
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causas públicas como é a convocação para a guerra, está sendo excepcionalmente


valorizada”.
No romance de Felício dos Santos, a bravura de Anita e seu desejo de lutar pelos
oprimidos não aparecem somente quando conhece Garibaldi, mas é algo inato em seu
espírito, bem como o seu desejo de fazer justiça aos injustiçados. Essa característica fica
explícita na cena em que Anita, ao saber que sua comadre Licota está sendo expulsa de
sua casa bem como os vizinhos porque um padre descobriu que o terreno era de uma
confraria religiosa e estava reivindicando o lugar, vai tirar satisfação do padre e
consegue que ninguém mais desaloje aquele povo.
Sobre sua vontade de “pelear”, ela já o declara abertamente a Manuel, quando ainda
são noivos, sendo já um indício que o casamento não seria eterno e que, sem o saber
ainda, ela já está preparada para a chegada da Revolução Farroupilha em Laguna e,
principalmente, para a vinda/vida de Garibaldi: “Tenho é uma garra enorme de pelear...
Não sei! De brigar duro pelos que precisam que a gente brigue por eles... Pelos que não
sabem brigar... pelos que se deitam, obrigados pelos mandões... pelos que não têm
coragem!” (SANTOS, 1987, p. 78)
É por causa de suas ideias de igualdade entre os homens que a protagonista de A
guerrilheira resolve deixar sua vida em Laguna e seguir lutando por seus ideais ao lado
de Giuseppe Garibaldi, não somente na Guerra dos Farrapos, mas também no Uruguai,
para onde eles vão ao final da narrativa.
Ela não teme os perigos da guerra e os enfrenta como um soldado corajoso e de
iniciativa. Esse espírito decidido a acompanha nas demais lutas que enfrentará ao lado
de Garibaldi. Ela será sempre uma das primeiras pessoas a atirar quando se inicia um
tiroteio e a animar seu amado com os seus gritos, como se percebe no trecho abaixo:

Somente no repiquete dos primeiros tiros foi que Garibaldi deu com
Anita, a seu lado, já disparando sua arma nova, e aos gritos de grande
entusiasmo:
- Mirem que não creio em fantasmas, corja de covardes, cascudos de
merda! Venham, sem medo, velhacos governistas! – e atirava... e
matava... Logo, enchia Garibaldi de ânimo – Não te preocupes
comigo, Papin de minha alma! Vá em frente, chico, que esses
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porcalhões não são de subir ladeira... – e fuzilava... e derrubava...


(SANTOS, 1987, p. 243)

Aqui se pode falar do mito da donzela-guerreira, conceituado por Walnice N. Galvão


(1998). Os traços originais dessa figura é a de uma mulher, filha de pai que não possui
filhos varões, que se traveste de homem para ir à guerra ou para vingar o seu pai de uma
ofensa. A autora cita a classificação de donzela-guerreira de Hobsbawm: a guerreira
propriamente dita; a mulher-consorte, que é aquela que acompanha o homem na guerra,
sendo esposa e mãe; e a mulher do apoio logístico que não se integra ao grupo de
guerreiros. Mas a personagem histórica Anita Garibaldi, segundo a classificação de
Hobsbawm citada por Galvão (1998, p. 83), “é mais apropriadamente uma guerreira-
consorte, acompanhando o marido, tendo filhos, etc.”
Contudo, quando se trata de textos ficcionalizados – seja biografia ou narrativa
ficcional – as características da donzela-guerreira se acentuam, como ocorre em A
guerrilheira. A protagonista se mostra, desde o princípio, como uma pessoa predisposta
à guerra, que abdica das “fraquezas femininas” e das tarefas atribuídas às mulheres para
se engajar na luta, igualando-se a um soldado corajoso e destemido. No romance de
João Felício dos Santos, Anita é uma donzela-guerreira propriamente dita porque está
em seu caráter lutar pelos oprimidos, pelas causas justas. Uma vez, a protagonista
afirmou que se Garibaldi não a tivesse levado para a guerra, ela teria ido por conta
própria, já que sentia a necessidade de estar ao lado dos republicanos e se simpatizava
com a causa dos farroupilhas.
Se a personagem histórica Anita já havia sido descrita por Garibaldi em suas
Memórias, como uma mulher valente e corajosa, a protagonista de A guerrilheira vai se
sobrepor a seu modelo, acentuando as características de donzela-guerreira. No romance,
ela combaterá a favor dos farroupilhas, não por causa de Garibaldi, mas sim porque
acredita serem injustas a escravidão dos negros e a soberania do imperador. Ela se
traveste com roupas masculinas, não para esconder a sua feminilidade, mas por serem
mais cômodas e permitir melhor os seus movimentos. Ela vai à guerra porque percebe
que é preciso fazer justiça por aqueles que não sabem lutar. Assim é caracterizada a
personagem guerreira de João Felício dos Santos.
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4. Anita Garibaldi

O romance Anita Garibaldi, do argentino Julio A. Sierra, narra a saga da heroína


desde a sua infância no Brasil até a sua morte na Itália. O subtítulo do livro, “Guerrillera
en América del Sur, Heroína de la Unidad Italiana”, explicita a ideologia do autor em
relação a sua personagem: a de querer exaltar e idealizar uma mulher que lutou a favor
do povo, em busca de ideais de justiça e liberdade.
Sabe-se, historicamente, que Anita parte com Garibaldi, quando este precisa romper
o bloqueio naval do Império em Laguna, mas não se sabe exatamente como foi a reação
primeira do italiano. O romance de Julio Sierra apresenta duas afirmações do próprio
Garibaldi: na primeira, ele tenta persuadir Anita a ficar na cidade, demonstrando que,
mesmo com os ensinamentos do grupo Saint Simon, ele está impregnado da ideologia
da época que separa tarefas e lugares para homens e mulheres. Na segunda afirmação,
ele tenta explicar sua oposição que, mesmo sendo sincera, coloca a mulher como o sexo
frágil e que o homem deve protegê-la dos perigos. E o narrador relata exatamente o que
teria dito Garibaldi:
“Traté de explicarle que las mujeres no podían formar parte de la
tripulación embarcada en una misión de guerra”, me explicó
Garibaldi. “Le dije una y otra vez que era demasiado arriesgado, que
su vida podía peligrar” (SIERRA, 2003, p. 110).
“Muchos dijeron que ella se había impuesto a mi voluntad. Pero no
fue así”, me dijo Garibaldi […] “Yo estaba feliz de tenerla conmigo.
Mi oposición inicial se debió a mi deseo de protegerla, de no
exponerla al peligro.” (SIERRA, 2003, p. 111)

Em suas Memórias, Garibaldi já confessara sobre o seu posicionamento:

Eu manifestava o desejo de desembarcar Anita, mas ela se opusera, e,


como em meu íntimo eu admirava e orgulhava-me de sua coragem,
repelidas as minhas primeiras súplicas, nada mais fiz naquelas
circunstâncias para impor a minha vontade à sua. (DUMAS, 2006, p.
93)
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Essa afirmação comprova o que o narrador de Anita Garibaldi relata: que o italiano
se opôs primeiramente que Anita deixasse a cidade para segui-lo nas lutas, mas que no
final ele cede e fica feliz com a decisão dela.
No romance, Garibaldi titubeia em levar Anita no barco, mas ela não vacila nem um
segundo em firmar a sua decisão e ser irredutível, porque não tem a mesma opinião da
sociedade de que guerra é lugar e assunto somente para homens. Na ocasião da partida
dos barcos de Laguna, ela aparece como dona de suas vontades e capaz de ir em busca
de seus ideais, mesmo sem o marinheiro farroupilha, como ela mesmo lhe diz:

Mira, José. Lo tengo bien decidido. Me iré contigo. No puedo vivir en


esta ciudad que me desprecia. Además, mi vida sin ti no tiene sentido.
Si no me embarco contigo, cuando vuelvas no me encontrarás en
Laguna. Me uniré a las fuerzas de los farrapos y me iré a luchar por la
causa republicana. Ya no hay sitio para mí en Laguna. (SIERRA,
2003, p. 110-111)

Como se explica mais adiante, o narrador comenta que muitas mulheres


acompanham as tropas militares. E Anita afirma a Garibaldi que, se não parte com ele,
ela se une aos farrapos de qualquer maneira, pois seu instinto de guerreira lhe indica que
deveria lutar pela república.
Mesmo demonstrando seu valor e sua capacidade nos combates quando parte com
seu companheiro, Anita não deixa de sofrer preconceito por parte dos soldados e sua
tarefa tornou-se mais árdua, pois tem que provar que pode ser um bom soldado, sem
deixar de ser mulher: “No escapaba a su inteligencia que un grumete sin experiencia
tenía más mérito a los ojos de los hombres de Garibaldi que ella, que en poco tiempo
sabía tanto de las artes de navegar y guerrear como el mejor oficial. Pero no por ello iba
a dejar de sentirse mujer” (SIERRA, 2003, p. 112).
A personagem dá mostras de que uma mulher pode aprender as artes de guerrear
como qualquer homem e, às vezes, com mais rapidez e mais eficiência que eles.
Entretanto, os homens se mostram inflexíveis a esse fato por pensarem e acreditarem
que a mulher não tem agudeza suficiente para combater na guerra, considerada como
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assunto e lugar de homens. Essa é uma barreira que Anita tem que derrubar para se
fazer merecedora de ficar ao lado de Garibaldi.
Anita não só tem potencial para aprender as artimanhas de luta, como é dotada de
iniciativa, uma habilidade importante em todas as tarefas, especialmente nas guerras
quando se é surpreendido pelo inimigo. Aliás, a personagem já havia sido descrita como
uma pessoa resoluta, quando resolve denunciar o homem que tentou violentá-la. Outra
aptidão necessária é incentivar os soldados para o combate, pois homens cheios de
temor é um passo para o fracasso da luta. A protagonista de Anita Garibaldi possui
todos esses talentos, como se percebe no trecho abaixo, quando o narrador relata que o
barco de Garibaldi foi surpreendido pelos imperiais nos arredores do porto de
Paranaguá:
Fue Anita la que dirigió el ataque con los fusiles. Ella misma dio la
orden de disparar, aun cuando el capitán todavía no había dado las
señales necesarias. El instinto de ella le indicó cuándo era el momento
preciso.
- ¡Disparen! ¡Disparen! – alentaba ella a sus hombres –. Debemos
sostener la posición. (SIERRA, 2003, p. 118)
-
Anita é uma mulher que tem instinto para saber o momento de atacar, mesmo que o
comandante não tenha dado a ordem precisa. Como um soldado competente, ela auxilia
a tropa no combate, o que acentua a sua imagem de guerreira, aquela que incita à
guerra. A narração desse fato é congruente com aquilo que Garibaldi relata a Alexandre
Dumas: “a minha corajosa Anita já começara a canhonada. Ela mesma apontava e
disparava a arma que se encarregara de dirigir e exortava com palavras os nossos
homens algo temerosos” (Dumas, 2006, p. 97). Percebe-se que o italiano cria, em suas
Memórias, a imagem de Anita como uma heroína corajosa e destemida; imagem essa
que será transposta para o romance de Julio Sierra. Os mesmos fatos relatados por
Garibaldi a Dumas serão narrados em Anita Garibaldi, sem grandes mudanças no
conteúdo.
Conclusão

A imagem de Anita Garibaldi nos dois romances analisados aqui é praticamente a


mesma instaurada por Giuseppe Garibaldi em suas Memórias: de uma mulher corajosa,
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fiel ao seu marido e às causas pelas quais ele luta. Nesse sentido, as obras corroboram
com o mito heroico de Anita, reafirmando o relato do revolucionário italiano.

Referências

AINSA, Fernando. La nueva novela histórica latinoamericana. Plural. México, 240,


p.82-85, 1991.

DUMAS, Alexandre. Memórias de Garibaldi. Trad. CARUCCIO-CAPORALE,


Antonio. Porto Alegre: L&PM, 2006.

GALVÃO, Walnice N. A donzela-guerreira – um estudo de gênero. São Paulo: Editora


SENAC São Paulo, 1998.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Trad.


NORONHA, Jovita Maria G. e GUEDES, Maria Inês Coimbra. Belo Horizonte:
UFMG, 2008.

MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América Latina, 1949-1992.


México: FCE, 1993.

RAU, Wolfgang L. Anita Garibaldi. O perfil de uma heroína brasileira. Porto Alegre:
Edeme, 1975.

SANTOS, João F. A guerrilheira: o romance da vida de Anita Garibaldi. São Paulo:


Círculo do Livro, 1987.

SIERRA, Julio A. Anita Garibaldi. Guerrillera en América del Sur, heroína de la unidad
italiana. Buenos Aires: Sudamericana, 2003.
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ENGENHO E ARTE: CONSCIÊNCIA METAPOÉTICA NA POESIA


BRASILEIRA

Fernanda Burgath
fergath19@yahoo.com.br

Introdução

Na tradição ocidental, a criação artística tem sido objeto permanente de interesse,


estudo e discussão ao longo dos séculos, desde a antiguidade grega. Basta
considerarmos, por exemplo, que já Homero, no século VIII antes de Cristo, tratava
desse assunto em suas epopeias, a Ilíada e a Odisseia, ambas iniciadas sob a invocação
das Musas, às quais o poeta pedia inspiração, ou seja, ajuda para a elaboração dos seus
poemas, o que, por si, evidencia determinado conceito de criação artística.
Quanto à sua abordagem um tanto mais sistemática e filosófica na cultura helênica, o
estudo e conceituação da arte ocidental pode ser detectada nos escritos principalmente
de Platão e Aristóteles, ambos situados no século IV antes de Cristo. Duas das
principais produções destes pensadores, o Íon e a Poética, respectivamente, serão a base
das reflexões e comentários que apresentaremos daqui por diante, com o intuito de
procurar compreender um pouco mais o significado de poesia e de poética a partir dos
conceitos de arte e de artista, criação, inspiração e técnica, e verificar a presença desses
conceitos na abordagem e expressão metapoética de alguns poetas brasileiros
representativos.

1. Inspiração e Técnica

Eis aqui um grande paradoxo surgido desde os conceitos de arte propostos por Platão
e Aristóteles. Enquanto para este a arte resulta de uma intenção racional e se realiza por
meio da técnica, prezando a organização, os detalhes da escrita e da perfeição,
considerando, portanto, essa criação como trabalho artesanal; para aquele, a arte
acontecia como resultado da inspiração, representada pela noção de que o poeta, no
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momento da sua criação artística, era tomado por um estado divino, arrebatado por um
verdadeiro delírio provocado por uma Musa, e de onde lhe vinha a inspiração criadora.
Em Íon (PLATÃO, 2007), Sócrates dialoga com o próprio Íon, um rapsodo, sobre
essa inspiração. No caso de Íon, a Musa seria representada por Homero, “o melhor e
mais divino dos poetas” (p. 22). Sócrates fala que os poetas inspirados são os
verdadeiros poetas, diferentes dos outros, os poetas que se utilizam dos jambos e dos
ditirambos, representando aqui a técnica. E declara a Íon que “de acordo com isso,
recebe, a nosso ver, o melhor para ti, Íon: ser divino mas não habilidoso no se mostrar
sobre Homero”. (p. 53).
É conhecida esta passagem inequívoca de Íon, em que Platão afirma, pela boca de
Sócrates:
“[...] o poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar até que
se torne inspirado e fora de si, e a razão não esteja mais presente nele.
Até conquistar tal coisa, todo homem é incapaz de poetar e proferir
oráculos. [...] poetam e falam muitas e belas coisas [...] não por arte,
mas por uma porção divina [...] aquilo para o que a Musa o lançou
[...]. (p. 33-34)

O interesse pela técnica, por sua vez, produziu, ao longo da história da arte, um
conjunto de regras úteis ao projeto e à execução da obra. Essa tradição normativa surgiu
das aplicações da geometria e das regras de percepção e proporção nas artes plásticas e
na arquitetura. Na música, a arte também pode ser codificada em números, pelo tempo
de suas notas, da divisão dos compassos, do ritmo. Na arte literária, estudos sobre a
técnica surgiram a partir da retórica, já nos tempos de Aristóteles.
Quanto às concepções de Aristóteles, é bastante esclarecedora a apresentação de
Lubomir Dolezel que, em seu livro A poética ocidental: tradição e inovação
(DOLEZEL, 1990), assim resume esse aspecto do pensamento aristotélico:

Incrementando a distinção entre “agir” e “fazer” [...], Aristóteles


afirma que “a arte identifica-se com a capacidade de fazer e envolve
um raciocínio verdadeiro. Toda a arte tem por objecto dar existência a
algo, i. e. o objecto último da sua arte consiste em descobrir os meios
de dar existência a alguma coisa que pode ser ou não ser e cujo
princípio reside no produtor e não na coisa produzida” [...] Seguindo
esta linha de pensamento, Aristóteles designa os artistas [...] como
“peritos em artes”. Estas declarações explícitas sobre as artes visuais
fazem supor que a poesia seja, por sua vez, uma arte [technè] que
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produz obras poéticas e que os poetas sejam “peritos” nesta arte. (p.
29-30)

Na Idade Média, Renascimento e Neoclassicismo, grosso modo, adotavam-se,


pendularmente, as teorias tanto de Platão como de Aristóteles, mediadas às vezes pelas
posições conciliatórias da Arte Poética ou Carta aos Pisões de Horácio, o grande poeta
e estudioso latino do século I antes de Cristo.
Nos séculos XIX e XX, o interesse pela técnica pode ser evidenciado nas produções
dos poetas parnasianos e na obra de escritores como Edgar Allan Poe, Mallarmé e Paul
Valéry. Na linha dum vanguardismo estético, observa-se a intensa elaboração técnica
em obras de Joyce, Ezra Pound, T.S. Eliot. No Brasil, após o formalismo clássico do
Barroco e do Neoclassicismo Árcade, a preocupação técnica ganhou destaque na poesia
de parnasianos como Olavo Bilac e Raimundo Correia, e depois da Semana de Arte
Moderna de 1922, observa-se a busca do rigor formal em Drummond e João Cabral de
Melo Neto, para citar dois grandes exemplos, chegando-se a certos extremismos
formalistas entre poetas das vanguardas das décadas de 1950-60, como no caso dos
concretistas.
Horácio foi quem fez convergir os pensamentos de Platão e Aristóteles, associando
inspiração e técnica, no intuito de transformar a poesia num “ser uno”. Diante da
questão aparentemente dilemática sobre se o que faz digno de louvor um poema é a
natureza (o dom natural, o talento inato) ou a arte (a técnica, o trabalho artesanal), ele
declara que “de nada adianta, sem uma veia rica, o esforço, nem, sem cultivo, o gênio;
assim um pede ajuda ao outro, numa conspiração amistosa”. (HORÁCIO, 1981, p. 67).
Dentro dessa linha situa-se o comentário de Bosi (BOSI, 1983, p. 19) ao observar
que “um dos mais fortes relativizadores do puro tecnicismo foi - e tem sido - o
postulado romântico da inspiração”, com origens no pensamento platônico de Íon.
Dentre esses românticos destacam-se os alemães Goethe, Novalis e Schiller, este com
suas Cartas sobre a educação estética da humanidade.

2. Contribuições para o estudo poético


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Como se dá a criação da poesia por intermédio dos poetas? O filósofo Mikel
Dufrenne, em seu livro O poético (DUFRENNE, 1969), trata a poesia de maneira
filosófica, considerando-a como um fenômeno. Ele discorre sobre inspiração, sobre
como os poetas se comportam durante a criação do poema e como podem ser vistos
através de suas próprias criações.
Para a poesia acontecer, ela necessita ser percebida pelo outro: “Se a obra poética
tem seu fim em si própria, tem no leitor o seu meio, objeto essencialmente sensível, ela
só existe verdadeiramente quando apreendida e consagrada por esta percepção.” (p. 10)
Segundo esse autor, existem dois tipos de poetas: o poeta inspirado e o poeta artesão.
O poeta inspirado escreve tomado por um elevado estado de inspiração, e “a fim de
justificá-la, o poeta faz intervir, entre si e a obra, um terceiro que o possui e anima”. (p.
129). É como se sua obra nascesse a partir de um estado de graça, como se o poeta
fosse “menos cioso de seu ato do que propriamente de seu estado”. (p. 129) Dufrenne
trata do assunto como uma busca pela liberdade, algo que vai além da estética: “o poeta,
por sua vez, reivindica a inspiração apenas para ser livre, para libertar-se da arte” (p.
130). O poeta artesão é motivado pela linguagem, não deixando de lado a inspiração,
mas não sob esse conceito de divindade. São “os verdadeiros poetas, os que conseguem
selar a difícil aliança do som e o sentido, da significação e da expressão” (p. 128).
O psicólogo Carl Gustav Jung, num livro específico de reflexões a respeito do tema:
O espírito na arte e na ciência (1985), afirma que “seja o que for que a psicologia possa
fazer com a arte, terá de se limitar ao processo psíquico da criação artística e nunca
atingir a essência profunda da arte em si” (p. 89). Logo, tudo se resume ao processo
criador, cujas raízes mergulham na imensidão do inconsciente, e este momento
permanecerá para sempre fechado ao conhecimento humano. Somente a partir disto, o
homem poderá ser considerado na sua condição de artista.
Talvez se possa dizer que o poema tem vida própria. No momento de seu ato criador,
o poeta é “emprestado” à sua obra, e se faz como meio de expressão, como instrumento
para a realização desta. Jung observa: “Por um lado, ele [o artista] é uma personalidade
humana, e por outro, um processo criador, impessoal” (JUNG, p. 89). Existe um poema,
de Mac Leish, que sintetiza tal fenômeno: “A poem not mean / But be” (“Um poema não
significa / Mas é”) (apud DUFRENNE, 1969, p. 82).
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A crítica genética, surgida na década de 1970, na França, foi aplicada inicialmente
no campo literário, mas hoje já se estende a outros campos. Ela se volta para o
levantamento e estudo dos documentos que permitam vislumbrar e, de certo modo,
acompanhar, a gênese de uma obra, ou seja, tenta apreender a obra em seu próprio
processo de criação. Entre nós, a crítica genética inicia-se em 1985, tendo por pioneiro o
professor belga Philippe Willemart, radicado no Brasil desde 1983.
Segundo Cecília Almeida Salles, que pode ser considerada uma das mais
importantes estudiosas brasileiras sobre o assunto, a crítica genética nasceu da
constatação de que uma obra literária é resultado de um trabalho que passa por
transformações progressivas no decorrer do processo criativo do artista. O interesse da
área está no estudo desse processo, baseado na análise da obra, feita a partir de suas
etapas de fabricação, numa investigação sobre a ordem, as normas criadas e seguidas
pelo seu autor. Essa resposta deverá ser encontrada mediante a análise dos documentos
do próprio autor, dos seus rascunhos, de diferentes tipos de anotações, dos cadernos,
vindos diretamente de suas mãos antes da publicação, e que registram as marcas
deixadas por ele ao longo do caminho da escrita. (SALLES, 2002).
É interessante como o testemunho do poeta russo Vladimir Maiakóvski, pode
corroborar estas propostas da crítica genética. No seu ensaio, de caráter autobiográfico,
Poética: como fazer versos (MAIAKÓVSKI, 1977), ele fala da relevância que os
rascunhos, o bloco de notas e as novidades dos processos de trabalho têm para o artista
e para cada obra poética: “o bloco de notas é uma das condições essenciais para fazer
qualquer coisa de válido” (p. 28). Declara que as anotações, provindas de suas reservas
poéticas, ocupavam-lhe a maior parte do tempo, em seus rascunhos, de dez a dezoito
horas por dia. E de um modo ou de outro, tudo, enfim, seria utilizado por ele.

3. Consciência metapoética na poesia brasileira

Manuel Bandeira dedica um livro todo - Itinerário de Pasárgada (in BANDEIRA,


1974) - ao relato de sua formação artística e, consequentemente, sobre seus processos de
criação poética Relata, entre outras coisas, algumas situações peculiares em que lhe
surgiam elementos para este ou aquele poema. Declara-se um poeta lírico, o que, no seu
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entender, equivale a ser dependente de estados emocionais propícios à escrita poética:
“Não faço poesia quando quero e sim quando ela, a poesia, quer” (p. 92).
Neste sentido, um dos aspectos que chamam a atenção é o fato de o poeta confessar
que alguns de seus poemas foram escritos em estado de puro delírio, sem a sua
participação consciente. Conta, por exemplo, que certa vez, tomado por forte emoção,
bateu uns versos em sua máquina de escrever e: ‘fiquei espantadíssimo ao verificar que
o poema se compusera, à minha revelia, em sete estrofes de sete versos de sete sílabas.”
(p. 92; grifo do autor). Era como se a obra tivesse se construído a si própria, forma e
conteúdo, sem a intervenção consciente e deliberada do escritor. E, no caso, não se trata
de um texto menor do poeta, mas sim do belíssimo poema Última canção do beco.
Porém, por mais que Bandeira se autointitule um poeta lírico, à mercê dos estados
emocionais que o inspirem, sabe-se que ele teve embasados estudos de poética, em
geral, e das formas clássicas de poesia (soneto, balada, rondó...), tendo composto vários
poemas nestas formas, à maneira dos poetas clássicos, aos quais admirava tanto, como
Camões, por exemplo, que ele declarava ser o seu mestre de sempre. No Itinerário,
Bandeira se refere a seus estudos atentos da sonoridade dos fonemas, da variedade e
funções da rima, da métrica, inclusive confessando: “Não me lembro de problemas
dentro da metrificação, que eu não tivesse resolvido prontamente.” (p. 48). E não
bastassem as informações sobre seus estudos de poesia contidas no Itinerário, temos
ainda a vasta correspondência sua com Mário de Andrade, onde ambos discutiam sobre
os mais variados aspectos técnicos da escrita poética.
João Cabral, em seu ensaio A inspiração e o trabalho de arte (in: MELO NETO,
1994), observa que a poesia, para uns, é o momento inexplicável de um achado; para
outros, as horas enormes de uma procura; ou ainda, os dois, como a mistura dos
extremos. Para o autor, a inspiração seria o relato de uma experiência do poeta,
mediante um impulso, provocado por um “ditado absoluto do inconsciente” (p. 728).
Ao contrário dessa experiência, o poema pode ser escrito pelo olho crítico do seu
criador, a partir de um tema escolhido, mas como uma elaboração de experiências
vividas por ele anteriormente, feita de maneira lenta, milímetro a milímetro. É o poeta
intelectual, o qual proporcionalmente quanto mais trabalho tiver ao elaborar seu poema,
mais fonte este será de riquezas. E esta foi a via trilhada por João Cabral em sua longa
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produção poética, tendo ficado conhecido principalmente como um “poeta cerebral”,
ou, como ele mesmo se autodenominou, um “poeta construtivista”.
Seja o poeta movido pela inspiração ou pelo trabalho forjador de sua poesia, para
João Cabral “o autor de hoje trabalha à sua maneira, à maneira que ele considera mais
conveniente à sua expressão pessoal” (p. 724). Segundo ele, independente de o poeta ser
movido pela inspiração momentânea ou pelas longas horas de trabalho e lima de seus
versos, ambas são compostas com elementos da experiência do homem, e reconhece que
“essencialmente essas duas maneiras de fazer não se opõem [...]”. (p. 725).
Denomina-se metapoesia a maneira com que os poetas fazem referência ao seu fazer
poético, por meio dos próprios poemas, tanto na forma quanto no efeito causado ao
leitor perante o poema como um todo. Dentre os poetas brasileiros que falam sobre o
labor poético em seus próprios poemas, está o parnasiano Olavo Bilac e seu poema
programático Profissão de Fé. O poeta pode ser chamado aqui, juntamente com os seus
demais colegas parnasianos, de artesão. A grande preocupação do Parnasianismo, na
busca do belo artístico, é a forma, a arte pela arte, o verso perfeito, impecável. Bilac
relata o duro trabalho de esculpir os versos, como uma joia, como se moldasse o metal
até atingir sua forma perfeita. Observemos estes versos do longo poema, que resumem a
postura estético-formal dos parnasianos:

Invejo o ourives quando escrevo:


Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo
Faz de uma flor.

[...]

Porque o escrever – tanta perícia,


Tanta requer,
Que ofício tal... nem há notícia
De outro qualquer.

Assim procedo. Minha pena


Segue esta norma,
Por te servir, Deusa serena,
Serena Forma!
(BILAC, 1977, p. 5-7)
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Segundo o crítico Anatol Rosenfeld, o pré-modernista Augusto dos Anjos exala, ao
longo de seus poemas, “a sedução dir-se-ia erótica que sobre ele exercem os termos
científicos” (ROSENFELD, 1977, p.243 ), sendo que estes aparecem na maioria de seus
versos a fim de descrever e/ou explicar os atos e o comportamento humano. Muitos de
seus poemas foram criados a partir de descrições biológicas, como a decomposição das
moléculas, de reações entre elementos químicos, das leis da física. O poeta, nos dois
sonetos A ideia e A dança da psique, do seu único livro Eu, outras poesias (ANJOS,
1965), desenvolve a descrição de supostas reações bioquímicas e psíquicas que
ocorreriam no momento em que um artista tem uma ideia iluminada, o insight, da qual
parte para a criação de sua obra. Observemos esse processo em A dança da psique:

A dança dos encéfalos acesos


Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos!

É então que a vaga dos instintos presos


- Mãe de esterilidades e cansaços -
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.

Subitamente a cerebral coreia


Para. O cosmos sintético da Ideia
Surge. Emoções extraordinárias sinto...

Arranco do meu crânio as nebulosas.


E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!
(ANJOS, 1965, p. 202).

Augusto dos Anjos mostra o sujeito lírico tomado pela inspiração, fenômeno que
tenta representar não como uma força abstrata e divina, mas como um processo
biopsíquico, cerebral, e para tanto o poeta traz a ciência para dentro dos seus versos.
Carlos Drummond de Andrade também faz parte do grupo de poetas que buscam
explicar através da própria poesia o fazer poético, essa procura pela “fórmula” para se
escrever uma boa poesia - por mais que se saiba que esta dificilmente será encontrada.
Em poemas como Consideração do poema e Procura da poesia, ambos do livro A Rosa
do Povo, (In: ANDRADE, 1992), Drummond desenvolve uma reflexão sobre o fazer
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poético, descrevendo, como que numa “receita”, a maneira de trabalhar a linguagem na
criação dos poemas, dizendo que um belo poema não precisa necessariamente obedecer
às imposições das rimas e de forma predeterminada. Para ele, os poemas não devem ser
escritos num ímpeto inconsciente da emoção e, sim, após a escolha e combinação
artisticamente adequada das palavras.
Segundo uma análise feita por Francisco Achcar, sobre o poeta mineiro, o que
constitui a sua poesia não são os acontecimentos, nem os sentimentos e os sonhos, mas
sim, “o profundo trabalho com a linguagem” (ACHCAR, 1993, p. 23). O segredo de
Drummond é o tempo em que o poema é construído. Eis o fragmento de Procura da
Poesia, que confirma tal observação:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
Há calma e frescura na superfície inata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
Com seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o.
Como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
No espaço.
(ANDRADE, 1992, p. 96-97)

É interessante observar que, fora dos poemas, Drummond também discutia questões
estéticas e técnicas do fazer poético, como se pode conferir na longa e preciosa
correspondência trocada com Mário de Andrade – a quem reconhecia como seu mestre.
Certa vez, ao escrever um texto para a Revista Acadêmica, intitulado Autobiografia
para uma revista (In: ANDRADE, 1992), Drummond fez estas afirmações, que podem
servir de feixe conclusivo das várias abordagens teóricas e metapoéticas aqui
brevemente apresentadas:

Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não


considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-
de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com
as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e
secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até
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os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê
de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. (p. 1344-1345)

Conclusões

Inspiração e técnica estão ligadas entre si, quando falamos de poetas e poesia. E a
boa arte, o poema digno de louvor, no dizer de Horácio, só se realiza na conjugação das
duas. Tanto será objetiva a poesia na proporção em que a mensagem do poeta consiga
ser transmitida àquele que o lê. E como disse Flaubert, “quanto mais uma ideia é bela
tanto mais a frase é harmoniosa. A exatidão do pensamento faz a exatidão da palavra”.
(Apud ABBAGNANO, 1998, p. 771). Isso significa que de nada serve a ideia inspirada
do poeta se não há beleza em sua escrita, se não há forma em seus versos, ou mais: se
não há arte. Por sua vez, a técnica, sem ser animada por viva emoção estética, é vazia,
vira mero tecnicismo, e não se realiza como uma obra artisticamente bela.
Podemos afirmar que não se deve levar em consideração somente a beleza estética do
poema, mas sim, a comunicabilidade expressa, na proporção que, enquanto é belo é bem
interpretado pelo seu leitor, que o acolhe e o transforma como sendo seu, como
expressão de suas próprias experiências. Tem de ser carregada de significação no seu
máximo grau possível.
Além da beleza da forma e a comunicabilidade, um poema deve ser expresso de
maneira original. Cada poeta tem a sua marca de acordo com o seu estilo. Vários poetas
expressaram-se sobre tal ponto, desde a antiguidade, pode-se afirmar que já desde
Homero, e de Horácio, ao próprio Maiakóvski, João Cabral, e estudiosos como Jung e
Dufrenne, para citar alguns dentre tantos outros que aqui não foram estudados.
E como já dito anteriormente, sabemos que o tempo é algo indiscutível para se obter
a perfeição da obra. Guardar o texto, o rascunho, o poema na gaveta, retê-lo até que se
tenha a certeza de que está em sua forma perfeita e definida, pronto para o seu devido
consumo. Em Dufrenne, vemos que “fazer é sempre desfazer e refazer, e antes de tudo
julgar: na medida em que compõe, o poeta é seu primeiro leitor e abre caminho a
outros” (1969, p. 129).
Sobre a análise das obras e dos poetas, trabalho destinado à crítica literária e à crítica
genética, podemos dizer que a única coisa de possível descoberta é o caminho que o
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poeta seguiu na escrita de sua obra. Ninguém melhor que um poeta para afirmar que “o
poeta goza desse incomparável privilégio de poder, à sua vontade, ser ele mesmo e
outro”, palavras ditas pelo poeta Baudelaire (Apud Bosi, 1983, p. 144).
Assim, podemos concluir que toda obra de arte, bem como todo artista, ligado à sua
intenção, são total e unicamente subjetivos. E a partir dos dois pressupostos, técnica e
inspiração, o poeta contemporâneo deve ligar o seu conhecimento e a sua
expressividade, construindo o seu estilo, buscando unicidade e compondo de maneira
original e cuidadosa a sua obra poética.

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


ACHCAR, Francisco. A rosa do povo e claro enigma: roteiro de leitura. São Paulo:
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FIGURANDO O INOMINÁVEL: DA COR AO GESTO, DA LETRA AO


CORPO, UM ENCONTRO ENTRE CLARICE E POLLOCK

Fernando de Mendonça (PG – UFPE)

E em nada disso existe o abstrato.


É o figurativo do inominável.
Clarice Lispector

Introdução

Em toda a produção literária de Clarice Lispector, talvez nunca ela tenha


dialogado tanto com o domínio pictórico como no texto de Água Viva (1973). A ficção,
protagonizada por uma narradora-pintora, oferece uma percepção do estético que prima
pelo diálogo de linguagens, por um ponto de vista intersensorial que remete diretamente
ao núcleo da Modernidade. Uma análise sobre as recorrências que o objeto literário
clariceano mantém com o universo das artes plásticas reflete a relação primeira que o
próprio fazer literário e o conceito de escritura nutrem para com a visualidade e o
elemento que é central tanto para a criação literária como pictórica; origem de
significação do verbo: a Imagem.
Dos aspectos visuais mais diretos às intenções estéticas, são quase incontáveis os
momentos no livro que nos permitem levantar o norte-americano Jackson Pollock
(1912-1956) como o nome mais pertinente a entrar em diálogo com a obra de Clarice,
em estreita convergência de pensamentos e realizações. Tal relação foi aqui
impulsionada pela significativa contribuição de Amaury Leal (1998), autor que já havia
apontado semelhanças entre os artistas, dentro de uma “intersecção plena no modo do
fazer artístico, não mais calcado em conceitos preestabelecidos, mas que se sedimentam,
sobretudo, no momento de elaboração do texto literário ou do quadro” (p. 53-55).
Diversas vezes, Clarice escreve como se estivesse diante de um quadro de Pollock,
recriando o estilo e imprimindo pela palavra os movimentos do pintor (apesar de não
citá-lo). A convergência das formas finais, em ambos, deve ser observada no que cada
um intencionou fazer, em quais aparentes objetivos, texto e telas insistiram em se
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concentrar; e se é possível discernir ambições artísticas afins, dentro do contexto


exterior a eles (geral), também nos importa o diálogo interior a cada um (particular).
1. Figuração

Não é por acaso que Clarice se debruça sobre uma prosa abstrata para o
desenvolvimento de seu livro. Ela, Pollock e muitos outros artistas do século XX,
entenderam que o discurso pautado pelo abstrato seria o mais apropriado para responder
às necessidades do homem nesse momento de sua história. Muito mais do que negar
uma forma concreta de representação, os meios dispostos nas telas e no texto em
questão, revelam-se importantes em si mesmos, com significados independentes de
identificação, senão aquela que sua mera presença insinua. A subjetividade do autor
dilui-se na subjetividade do próprio objeto artístico, ao mesmo tempo em que a
abstração, nas tendências entrelaçadas ao figurativismo 1. Evidencia-se assim o diálogo
entre os autores, através da (re)criação que objetiva capturar o movimento da ação, o
instante, que independe da noção convencional de tempo para ambicionar a
permanência de um estado presente.
A fase áurea de produção de Pollock abriga as telas realizadas entre 1947 e
1951, período de experimentações, responsável pela criação do termo que nominaria a
vanguarda do “Expressionismo Abstrato” por parte de Harold Rosenberg, entre 1951-
52, assim como da expressão Action Painting (pintura em ação), atribuída a Pollock
pela maneira como ele pintava suas telas (destaque para a utilização do Dripping). A
Action Painting está tão fortemente vinculada ao ‘fazendo’ da tela que se torna difícil
compreendê-la sem ter em mente o momento criativo do pintor, o instante de vida em
que ele se debruçou e registrou na matéria da tela a ação de seu corpo, o envolvimento
de si próprio com a criação, a um ponto em que se tornam indissociáveis. Isso, porque a
obra representante do Expressionismo Abstrato acumula valor não só de objeto
finalizado, mas de acontecimento em andamento, como se na visualização da imagem

1
Picasso foi um dos primeiros a negar a condição de perda da figuração na arte abstrata, pois a imagem,
por mais fugidia que seja, não pode fugir da superfície de uma tela. Sobre o assunto ver o artigo de
Robert Kudielka: Abstração como Antítese (1998).
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estivesse disposta não somente uma representação do, e, pelo autor, mas, ele, nela se
apresentasse.
Buscando ultrapassar os limites contextuais do que Rosenberg e outros teóricos
exploraram no trabalho de Pollock na época mesma de sua criação e em meio às
exposições e divulgação dos quadros, encontramos em T. J. Clark, o ensaio Em Defesa
do Expressionismo Abstrato (1994), lugar em que o legado de Pollock e dos demais
artistas daquela vanguarda é analisado com o devido e mínimo distanciamento histórico
e precisão crítica. O historiador da arte, preocupado em avaliar os ideais da vanguarda
sob o primado hegeliano da ‘arte como passado’, consegue revitalizar a discussão que o
Expressionismo Abstrato motivou durante décadas, sob a nova e necessária ótica de
uma aceitação do objeto de arte como um elemento de passado, desencantado. São
inúmeras as problemáticas de Clark para provocar o pensamento sobre a arte nesse
texto, mas queremos nos deter, por questões práticas, apenas à sua conclusão, àquilo
que realmente parece motivar o autor há tantos anos passados ainda suscitar um debate
que urge ser levantado pelo pensamento contemporâneo das artes.
Suas palavras finais (CLARK, 2007, p. 37-38) concluem que o Modernismo,
mesmo nas experimentações e desconstruções voltadas para um adensamento formal da
arte, não abandona a identificação entre a Arte e o lírico. Tal afirmação exige uma
postura que observe a Modernidade sob o primado da subjetividade, do ponto de vista
pessoal, ininterrupto e absoluto que o indivíduo criador se permite imprimir em sua obra
(características que se encontram na definição de Clark para o conceito de ‘lírico’). Essa
reflexão não poderia ser tão facilmente aplicada se estivéssemos lidando com objetos
mais próximos dos dias atuais, pois como ele bem observa, “no mundo de hoje, o lírico
é profundamente ridículo. E o profundo ridículo do lírico é precisamente o tema do
expressionismo abstrato, ao qual ele retorna como uma língua a um dente amolecido.”
O século XX, com suas transformações e fragilidades, constitui-se num cenário
perfeito para o que autores como Pollock e Clarice problematizam através de suas obras
e da maneira como se dá a criação das mesmas, pois é na plenitude da expressão que
cada um deles subjetivará sua vivência interior. A crise do homem moderno, seja com
sua individualidade ou com o mundo, vem encontrar na arte o lugar de liberação do
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sujeito, talvez o único em que o Eu possa se manifestar sem problemas de consciência,


por isso mesmo, sem apelar para falsas expressões do que habitualmente seria
compreendido por lírico. Se identificamos o lírico moderno nas obras desses artistas, no
limite da abstração e do rigor formal como eles trabalharam, concordamos com a
premissa de Clark de que a obra de arte moderna não pode renunciar ao seu papel no
desencantamento do mundo 2. E se isso acontecer, ou seja, se o objeto estético servir
como reflexo ordenador, restaurador do mundo, a arte não mais encontrará o dente
amolecido para se debater, pois ficará deslizando sobre um buraco vazio que já não
poderá ser sentido, um lugar que só encontrará a plenitude da inexistência.
Num texto que problematiza a tese de Clark frente à teoria estética de Adorno,
Jay Bernstein (1998) propõe o conceito da ‘particularidade sensível’ para o
entendimento da obra de Pollock. Segundo a referência, uma pintura dessa vanguarda
tornar-se-ia um “ensaio sobre a visibilidade do visível”, estabelecendo um estado de
percepção que, na concepção do autor, aproxima-se dos ideais sinestésicos existentes na
obra de Clarice Lispector. Ele diz: “Os gotejamentos vetoriais dão ao campo, de outro
modo apenas óptico, um caráter táctil que tem o efeito de incorporar o olho do
observador, de tornar a experiência de olhar a pintura uma experiência de ser
incorporado, como condição do olhar [...]” (BERNSTEIN, 1998, p. 90)
Com essas palavras adentramos não apenas nas possibilidades visuais e
sensoriais presentes em Pollock, onde as pinturas além de proclamar uma insistente
materialidade corporal do autor, clamam por algo que só pode ser completado pela
corporalidade do espectador, mas também vislumbramos muito do imaginário de Água
Viva, onde o interesse de refletir o ato criativo, seja o das pinturas da personagem ou da
própria escrita de seu manuscrito, entrelaça a presença das palavras à superfície das
telas descritas num resultado escritural que estabelece todo o livro como um verdadeiro
tratado subjetivo em potencial da prática intersemiótica. Conciliar as obras de Clarice e

2
O mesmo autor, em O Estado do Espetáculo (2005) aponta o ‘desencantamento do mundo’ como um
aspecto síntese da Modernidade. A expressão originalmente utilizada por Max Weber, que por sua vez
se valeu de Schiller, sustenta uma promessa pessimista e exultante de um mundo sem falsas crenças.
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Pollock sob o aspecto da particularidade sensível nos parece o ponto de partida ideal
para que características mais profundas sejam apontadas na relação entre esses autores.
Para um melhor esclarecimento do que iremos abordar a partir daqui, convém
exemplificarmos uma parte de cada obra. Assim, dispomos um dos quadros de Pollock
mais representativos de sua fase expressionista abstrata áurea (1947-1951), um dos
primeiros desse período e, na verdade, selecionado quase aleatoriamente dentro do
grupo, pois qualquer exemplo seria útil à nossa problematização; conjuntamente, alguns
fragmentos extraídos de Água Viva (1973), em notável coerência com o estilo do pintor,
pela descrição direta da narradora em ‘coincidentes’ achados visuais:
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor
em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o
instante. É também com o corpo todo
que pinto os meus quadros e na tela fixo
o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo
mesma. (p. 11)

Não pinto idéias, pinto o mais inatingível


‘para sempre’. Ou ‘para nunca’, é o
mesmo. Antes de mais nada, pinto
pintura. (p. 13)

Formas redondas e redondas se


entrecruzam no ar. (p. 30)

[...] da sensualidade vital de estruturas


nítidas e das curvas que são
organicamente ligadas a outras formas
curvas. Meu grafismo e minhas
circunvoluções são potentes [...] (p. 47)

Quero na música e no que te escrevo e


no que pinto, quero traços geométricos
que se cruzam no ar e formam uma
desarmonia que eu entendo. (p. 79)

Evola-se de minha pintura e destas


minhas palavras acotoveladas um
silêncio que também é como o substrato
dos olhos. Há uma coisa que me escapa o
tempo todo. (p. 87)
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FIGURA 1 - Full Fathom Five, Jackson Pollock, 1947. 3

Palavras parecem mesmo dispensáveis diante da espantosa (no mínimo)


associação a que essas obras se permitem. A sensibilidade da narradora no registro de
seu estilo próprio de criação aparenta convergir diretamente ao que Pollock se dedicou
em sua vanguarda pessoal, permitindo uma inequívoca constatação de equivalência nas
intenções de cada autor. Confrontar num mesmo espaço e ao mesmo tempo a
visualidade da tela ao que as palavras provocam, constata, sem deixar margem de
dúvida, a íntima associação que a compreensão criativa clariceana para com o universo
pictórico das artes plásticas assume na relação com o estilo de Pollock 4.
Com isso, encontramos um exemplo de relação intersemiótica no que de mais
rico pode ser oferecido por um estudo desta natureza, motivo que não permite
desperdiçar a compreensão de mundo a que essas obras se propõem. Por isso
perguntamos: é possível vislumbrar o mundo, na ordem habitualmente tomada do ‘real’,
nas imagens (pictórica e escriturais) observadas? Qual a relação dessas obras com o
conceito/contexto de mundo externo?
Refletir tais questões fortifica a relação entre Clarice e Pollock, principalmente
quando lembramos as constatações de Rosenberg (1974) a respeito do século XX,
período marcado por artistas solitários que não ansiavam apenas por um mundo
diferente, mas que em suas obras se concretizasse um mundo. No libertar do objeto
artístico um eco da sociedade em vias de emancipação. O autor completa: “O grande
momento chegou quando ficou decidido pintar... simplesmente PINTAR.”
(ROSENBERG, 1974, p. 17) Notemos como a afirmação é relida na segunda citação

3
Óleo sobre tela, pregos, tachas, botões, chaves, moedas, cigarros, fósforos, etc., 129,2 x 76,5 cm.
New York, The Museum of Modern Art, doação de Peggy Guggenheim. Disponível em
<http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/pollock/fathom-five/pollock.fathom-five.jpg> Acesso em 25
ago 2009.
4
Sobre a sensibilidade que Clarice Lispector teve para com as artes plásticas é interessante observar a
obra que a própria autora deixou como pintora. Entre 1975-1976 (pouco depois do lançamento de Água
Viva) Clarice pintou uma série de 16 quadros que oscilam justamente entre o expressionismo e a
abstração. Não tomamos a produção pictórica de Clarice Lispector como objeto deste artigo por
acreditarmos que na ‘intencionalidade’ da relação com Pollock, dentro da proposta intersemiótica como
a fizemos, o universo de Água Viva possa ser melhor analisado.
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que selecionamos em Clarice. O ‘simplesmente pintar’ e o ‘pinto pintura’ confirmam a


preocupação fática com a linguagem que os artistas daquele período demonstraram,
onde a concentração da forma estética ampliava o ‘dar a ver’ de uma obra, permitindo a
sobrevivência dessas linguagens. Nesse sentido, torna-se necessária uma breve
explanação sobre o assunto do ponto de vista literário que, por sua vez, também
iluminará o imaginário das artes plásticas.

2. Nominação

O ensaio O Nome e a Natureza do Modernismo comenta que na nova literatura,


“a arte passa do realismo e da representação humanista para o estilo, a técnica e a forma
espacial em busca de uma penetração mais profunda da vida.” (BRADBURY e
McFARLANE, 1999, p. 18). Os autores querem referir-se claramente à mimese e ao
conceito de figurativismo presente nas artes anteriormente, indicando que a literatura e a
arte modernas não pretendem simplesmente ‘reproduzir’ o mundo, mas sim ‘revelá-lo’
através da linguagem, seja ela apreendida a partir de um registro abstrato ou figurativo,
pois em qualquer deles o que se imprime ultrapassa as noções de forma e conteúdo.
A forma literária, ou a maneira com que a linguagem se dá a existir na
Modernidade é o maior diferencial assumido em relação a épocas anteriores. Passando a
residir no texto e exclusivamente por ele, todas as preocupações literárias convergem no
tratamento lingüístico e na estrutura formal escolhida pelo autor para contar sua história
(ou a falta dela). Quando Clarice elege a palavra como sua quarta dimensão em Água
Viva, reafirma o ideal de que a linguagem existe como razão de ser literária dentro da
Modernidade. A consciência do texto clariceano conflui todos os elementos existentes
na própria revelação do discurso escrito, lugar em que a escritura, a partir de uma
gênese interna de representação, completa-se numa ontologia que remete sempre a si
própria, semelhante à particularidade sensível que delineamos em Pollock.
Se Clarice desculpa-se ao justificar que “só não te contaria agora uma história
porque no caso seria prostituição.” (p. 101), é porque a problematização advinda com a
nova consciência do sujeito, impede o artista moderno de se preocupar com temas
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exteriores ao nível da linguagem. É como se não houvesse mais lugar para


questionamentos externos, ou melhor, que esses se camuflassem em um domínio que
antes de negá-los, anseia por um novo ordenamento racional do mundo (interior à obra)
para alcançar respostas. E se eles se escondem, não é para elevar o ideal de autor
moderno, criador que feito personagem deseja revelar somente a si; como observado:
Por mais que ela [Clarice] tenha tentado apagar o ‘eu’
pessoal/ficcional, retirando as crônicas justapostas ao texto, muitas
outras subsistiram à revelia da autora para confirmar suas ‘marcas’
pessoais, além de que a própria tessitura escritural se dá pelo
despojamento de um corpo autoral inscrito no texto. (NOLASCO,
2001, p. 199, grifo nosso)
Entramos no domínio da palavra, do Logos que em permanente (re)significação
desafia as convenções nominando o mundo, ao mesmo tempo em que voltamos ao
domínio da imagem, numa singular expressividade abstrata das coisas. Nesses lugares
os temas humanos revelam-se em oculto, mas de forma alguma fogem à existência. A
tensão criativa do ‘corpo autoral’ apontada por Edgar Nolasco, num excelente trabalho
de análise da criação de Clarice Lispector a partir do levantamento de suas crônicas e
registros pessoais, demarca Água Viva como uma imagem escrita de Clarice. A
iminência do autobiográfico, com toda a força que aqui se permite explicitar, ultrapassa
a idéia de uma escrita (grafos) da vida (bio), fixando-se no âmago da própria vida, como
se na obra o corpo de Clarice não pudesse jamais deixar de pulsar. Diante disso, não é
demais enxergar no resultado de Água Viva semelhanças ao que Hans Namuth
possibilitou ver em suas fotografias de Pollock 5, pois assim como na Action Painting do
pintor, a personagem de Clarice revela na primeira citação que fizemos dialogar com a
tela que ‘pinta seus quadros com o corpo todo’, onde podemos completar com outro
momento do livro quando ela diz: “agora te falo a sério: não estou brincando com
palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além
das palavras. E um silêncio se evola sutil do entrechoque das frases.” (p. 24)
Podemos distinguir, assim, dois níveis sobressalentes de equivalência entre
Clarice e Pollock: o primeiro, possibilitado pelo desvendar criativo de Nolasco,
5
Sobre o assunto, ver Hans Namuth. Critique d’art, de Jean Clay (1977) e Reading Photographs as Text
de Rosalind Krauss (1978).
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encontra-se na ação de criar que cada autor desenvolve, no processo, pois o embate
entre corpo e obra (palavra/imagem) já se configura como uma certeza irreversível no
tocante ao universo estilístico de cada exemplo; o segundo, mais atraente para nós,
situa-se na devida apreensão de cada obra, ou seja, no objeto final resultante da primeira
ação criativa mencionada. As palavras de Clarice nas páginas 30, 47 e 79, como
transcritas, funcionam quase como uma descrição da tela ao lado, sendo importante
repetir: aí apontamos apenas alguns dos trechos que Água Viva se permite a essa relação
e, segundo, essa é apenas uma das inúmeras telas de Pollock que poderiam ser aqui
utilizadas para visualização. A convicção intersemiótica daí derivada é o que facilitará o
vislumbre do ‘real’, do mundo que não fugiu à abstração dessas obras, mas antes,
penetrou-lhes mais fundo para se transfigurar.
A relação entre as palavras de Clarice e as tintas de Pollock comprova que
ambos os autores trabalharam o objetivo de capturar o movimento através de uma
intensificação do nível da linguagem e da valorização que cada suporte pode oferecer
para externar suas subjetividades. Com isso, percebemos que as referências externas
utilizadas para a criação de uma obra não devem simplesmente conduzir o ideal estético
ao mundo e ao que há fora da obra, mas sim levar ainda mais fundo ao interior do objeto
de arte em questão. O valor de reflexão moderno vem romper a pura imanência da
forma (ADORNO, 2003), atribuindo ao caráter negativo, pois subjetivo, da estética
recente, ecos positivos que parecem discordar da temida e infundada possibilidade do
fim das artes.
Ao explorar os reflexos da fusão autor/obra e a conseqüente negatividade
surgida pela ênfase ao subjetivo do autor, Hans-Georg Gadamer ressalta como resultado
positivo o trabalho de elaboração ativa, outorgado aos que contemplam um objeto de
arte moderno. Quando questiona a poesia hermética, característica do último século, é
verdade, ele a identifica como num “limite do compreensivo”, caracterizada pelo
“trágico emudecimento no indizível” (GADAMER, 1985, p. 19); mas conclui
semelhantemente ao paradoxo da consciência benjaminiano, restabelecendo ao ato da
reflexão intensificada um novo valor estético à obra moderna. Debruçando-se sobre o
pensamento estético da maneira como ele se formou a partir das teorias de Hegel,
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Gadamer reitera inúmeras vezes a necessidade de uma compreensão dessa época em


unidade aos tempos antigos, concordando que o espírito negativo do homem moderno
não se esquece dos primeiros fundamentos platônicos e aristotélicos de poiésis e
representação mimética da arte. Com isso, podemos entender que a ‘aparência do nada’
presente na Modernidade e o esvaziamento no conteúdo das obras de nosso tempo não
se fundamentam numa gratuidade conceitual ou arbitrariedade filosófica, pois aliadas
estão a um contexto humano irreversível.
O desenvolvimento que acompanhamos na Modernidade, nesse sentido, não se
dá mais num caráter evolutivo, mas sim inserido num processo cíclico de sobrevivência.
Sobrevivência da representação. Se a arte moderna (e contemporânea) autotelicamente
reflete sobre seus meios e intenções, sobre sua materialidade e a pretensa noção de
conteúdo, chegando a prescindir do suporte artístico, sem abandonar a presença
poiética, assim o faz para provar e testificar que a transcendência estética não apenas
ainda é possível, como pode dar-se sob uma perspectiva original. O original em arte
surgiria, assim, em diálogo com a própria origem da arte e da representação humana. A
diluição do suporte, dos conteúdos, da compreensão habitualmente ligadas por um ‘dar
a ver’, privilegia um retorno natural e contínuo aos anseios que levaram o homem desde
épocas primitivas a se expressar para existir.

Conclusão

É com o corpo que Clarice lida em sua obra, numa espontaneidade sensual que
provoca, evoca e invoca todos os sentidos a um diálogo com as artes e a vida. O
‘crescendo’ da narrativa atinge o ponto da indistinção entre a autora e a obra,
exatamente como as telas de Pollock estabelecem uma continuidade ao homem, numa
espécie de extensão física e emocional, que marca na imagem sua ausência,
presentificando-a. O detalhe subjetivo, ecoando e concordando sempre com o primado
da particularidade sensível multiplica-se, nestes artistas, acariciando a sensualidade da
linguagem e dotando-a com uma sutil capacidade de dar a ver naquilo que não é visível
a olho nu. Após a observação da equivalência escritural entre o livro e a Action
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Painting, de constatarmos nas palavras de Clarice uma aparente e impressionante, sem


esquecer que involuntária, descrição dos quadros do pintor, esperamos deixar aberta a
aproximação intersemiótica que essas obras se permitem.
Por desenvolver todo o livro em busca do ‘inominável’, Clarice decompõe o
conceito da abstração semelhantemente ao entendimento adorniano do abstrato como
máscara, pois se aí ele recebe a máscara do concreto, retribui com a mesma função. É
no avesso que a escritora vive. Não da obra ou do mundo. Pois se há uma certeza de que
a subjetividade em Água Viva traz, é a da fusão entre o interno e o externo que o objeto
artístico almeja nesses tempos modernos. Já não há lados, tempos ou espaços divididos.
Na obra, a convicção de uma uniformidade da linguagem em que convergem as formas,
os mitos, os homens, as coisas e o mundo em que vivemos a uma mesma ação: o criar
artístico. E pelo criar, os corpos de Clarice e Pollock não sucumbirão, pela maneira
como eles nos convidam a participar da criação. David Sylvester (2006, p. 75) diante de
uma retrospectiva do pintor, em 1958, expressou a mesma sensação que Água Viva nos
proporciona, e que se excluídas as atribuições à pintura ou tela, traduzirá tão bem o
espírito de criação moderno:
Fazemos parte do quadro assim como fazemos parte do mar quando
vamos nadar: abrimos caminho a braçadas e em contrapartida somos
repelidos pelas ondas – linhas que continuamente mudam de plano e
direção. A pintura está sempre se modificando, sempre se fazendo. E
se modifica em virtude do nosso movimento imaginário dentro dela.
Seu espaço é fluido, definido e redefinido pelo nosso movimento. É
um espaço que só existe na medida em que existe no tempo. A pintura
é como um organismo vivo.

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POÉTICAS DA MODERNIDADE: O PARÁ NO SISTEMA LITERÁRIO


BRASILEIRO

1
Fernando de Moraes Gebra (UFPA)

O conceito de sistema literário, proposto por Antonio Candido na sua Formação da


literatura brasileira (1958) é relevante como categoria de análise não apenas do
processo formativo da nossa literatura, surgido com os árcades mineiros e sua vontade
de fazer literatura brasileira, como também permite verificar a ocorrência de
subsistemas regionais, em que se articulam autores, mecanismo transmissor e público,
possibilitando a reflexão da identidade cultural de determinada região.
Interessa-nos, no presente ensaio, estabelecer diretrizes de formação de um
subsistema literário na Amazônia paraense, estudando, tal como faz Antonio Candido,
os momentos decisivos de formação de uma “continuidade ininterrupta de obras e
autores” (2007, p.26). É necessário “averiguar quando e como se definiu” essa tradição
literária (2007, p.26), tendo em vista a articulação da região cultural paraense com o
sistema literário nacional, verificando nesse espaço social os elementos diferenciadores
e integradores dessa produção literária regional.
Antonio Candido concebe o sistema literário em oposição a manifestações literárias.
O referido crítico, por meio de critérios histórico-sociológicos, entende a literatura
como fenômeno cultural de uma civilização, salientando a importância do tripé autor-
obra-público como constituintes desse sistema. Sistema literário pode ser entendido
como um conjunto de obras interligadas por denominadores comuns, tanto internos
como externos, que permitem reconhecer as notas dominantes de uma fase (2007, p.25).
Essas notas dominantes permitem a formação de uma tradição, entendida como um
processo dialético de continuidades com valores de um período anterior e rupturas com
esses padrões de comportamento. Tradição como transmissão de algo entre os homens e

1
Queremos registrar nossos agradecimentos à FADESP (Fundação de Amparo e Desenvolvimento da
Pesquisa) pelo financiamento das passagens aéreas do docente-autor, viabilizando sua participação no 1º
CIELLI (Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários)
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o conjunto de elementos transmitidos, formando esses padrões presentes em um sistema
social (2007, p.26).
A epistemologia historiográfica de Antonio Candido recebeu notações críticas de
Afrânio Coutinho, sobretudo no que diz respeito à configuração do sistema literário.
Este último discorda que o processo formativo da literatura brasileira esteja ligado aos
últimos árcades e às academias do século XVIII, propondo, em seu turno, que a nossa
literatura começa a se formar a partir do momento em que o primeiro português chegou
ao Brasil e encontrou por aqui outro espaço, outra situação climática, desenvolvendo
outras necessidades, novos cantares e novas maneiras de expressão, diferentes dos
portugueses que ficaram em Portugal (2008, p.15). Coutinho argumenta que o instinto
de nacionalidade, que definiria o escritor, na expressão de Machado de Assis, como
homem do seu tempo e de seu país, já estaria presente no barroco crioulo de Gregório
de Matos Guerra (2008, p.55-6). Dessa forma, Coutinho acusa Candido de confundir o
período de formação da literatura brasileira com a autonomia que começa a ser
esboçada com os últimos árcades (2008, p.57).
Embora Coutinho forneça contribuições importantes para o estudo do fenômeno
literário, como o conceito de periodização estilística, no lugar das velhas periodizações
centradas em elementos cronológicos e políticos, ou ainda, questões de nacionalismo
literário, sobretudo em uma perspectiva histórica que discute os projetos do românticos
e dos modernistas, discordamos da idéia de barroco crioulo presente na poesia de
Gregório de Matos. No século XVII, é muito mais válido utilizar a expressão “literatura
comum”, proposta por Candido (2007, p.30), do que verificar elementos de
nacionalidade brasileira quando não éramos um país independente. Há apenas alguns
talentos literários isolados como Gregório de Matos e Padre Antônio Vieira, com
experiências tanto em Portugal como no Brasil, além de uma escassez na divulgação das
obras e um público restrito em uma organização social ainda rudimentar, nos primórdios
do processo de colonização portuguesa na América. Falta, como propõe Candido, a
articulação entre autores, obras e público, elementos externos necessários à formação da
já referida tradição literária.
Os primeiros escritos na colônia portuguesa foram responsáveis pela formação de
uma tradição literária, mas não houve uma continuidade ininterrupta de obras. Viana
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Moog chega a mencionar o conceito de arquipélago cultural, isto é, “a dispersão do país
em subsistemas regionais até hoje relevantes para a história literária” (BOSI, 1994,
p.12). Essa continuidade ininterrupta proposta por Candido se dá, principalmente no
período arcádico-romântico, sobretudo com os árcades mineiros, as últimas academias e
os intelectuais ilustrados, quando “surgem homens de letras formando conjuntos
orgânicos e manifestando em graus variáveis a vontade de fazer literatura brasileira”
(2007, p.26). Dito de outra forma, quando se estabelece entre esses homens e os que os
sucederam “uma tradição contínua de estilos, temas, formas ou preocupações” (2007,
p.27).
Considerando o conceito de arquipélago cultural e a noção de subsistema regional,
verificamos regiões do Brasil em que a configuração desse subsistema se deu
tardiamente em relação ao sistema nacional, que foi sendo consolidado no período
arcádico-romântico e se encontra consolidado no período realista. É o caso da literatura
amazônica, que passou a configurar um sistema de obras interligadas por
denominadores comuns a partir da década de 1940, em torno do grupo de Benedito
Nunes. O distanciamento da Amazônia em relação à inteligência artística nacional,
concentrada no sudeste brasileiro, particularmente nas cidades do Rio de Janeiro e de
São Paulo, devido ao processo de imigração, urbanização e industrialização que estava
se dando nessa região, dificultou a chegada a Belém dos experimentalismos estéticos
praticados pelos simbolistas franceses, pelos vanguardistas europeus e pelos
modernistas de São Paulo.
Assinala Benedito Nunes que pouco se soube da estada de Mário de Andrade em
Belém, em 1927 (2001, p.19), quando o renomado escritor concebeu as crônicas de
viagem enfeixadas posteriormente no livro O turista aprendiz. Ressalta o crítico
paraense que a literatura produzida na Amazônia possuía ainda, em plena metade do
século XX, características parnasianas (2001, p.19). É o caso, por exemplo, de Ferreira
Gullar, que embora não sendo amazônico e sim maranhense, publica em 1949, Um
pouco acima do chão, livro de poemas renegado posteriormente, pois, a partir de 1954,
em plena efervescência cultural do movimento concretista em São Paulo, liderado por
Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, com a publicação em 1954
de A luta corporal, tem início seu projeto de demolição de formas e de incorporação de
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várias experiências poéticas.
Diferente da iconoclastia do Modernismo paulista, no Pará houve um Modernismo
moderado, pois não se liquidaram totalmente os velhos padrões acadêmicos,
parnasianos e simbolistas, nem houve verdadeira poesia futurista. Para o modernista
pernambucano Inácio Inojosa, a leitura de Bailado lunar (1924), de Bruno de Menezes,
permite afirmar que “não se encontram em suas páginas as veemências de uma
Paulicéia desvairada” (1994, p.121). Segundo Inojosa, o Modernismo chegou ao Pará
via Pernambuco (1994, p.121). Para o referido crítico, os ecos da Semana de Arte
Moderna chegaram primeiramente a Recife, posteriormente ao Rio de Janeiro, para só
então chegar a Belém.
A gênese do movimento modernista no Pará encontra-se na revista Belém Nova que,
embora não fosse uma revista modernista no seu início, como a Klaxon de São Paulo, a
Mauricéia de Recife e A Revista, de Belo Horizonte, passou, com o tempo, a ampliar e
vincular o Modernismo no norte do Brasil. Segundo Marinilce Oliveira Coelho, essa
geração de escritores pretendia trazer aos poemas as “imagens de um Brasil meio
esquecido pelos parnasianos e simbolistas” (2005, p.84), além de enfatizar a vida
simples e cotidiana da “gente humilde dos bairros do Umarizal, Pedreira, Jurunas”
(2005, p.85).
O verso livre, uma das características modernistas, soma-se à mistura de estilos, em
que o sagrado passa a figurar o mesmo espaço poético do profano, como ocorre em
“Oração da cabra preta”. Nesse poema, como em outros de Batuque, o mais conhecido
livro de Bruno de Menezes, os rituais religiosos apresentam uma configuração
sincrética, de que fazem parte o hibridismo cultural e a presença de elementos
populares, esses últimos entendidos por Eduardo Jardim de Moraes como agente de
nacionalização: “Os traços populares das composições musicais são o atestado de seu
grau de brasilidade” (1990, p.80).
Dessa forma, a cultura popular e as religiões afro-brasileiras são incorporadas na
estrutura interna dos poemas de Batuque, permitindo que afirmemos a entrada de Bruno
de Menezes e do grupo do primeiro momento modernista do Pará, conhecidos como o
“grupo de renovadores do Pará” (INOJOSA, 1994, p.121), em torno da revista Belém
Nova, na modernidade artística brasileira. Estabelece-se, assim, um momento decisivo
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na configuração de um subsistema literário no Pará, em torno de nomes também
importantes como os de Edgar Souza Franco, De Campos Ribeiro, Eneida de Moraes,
Abguar Bastos, além do desenvolvimento da recepção crítica das obras desse primeiro
momento do modernismo paraense, tanto em Belém, no discurso crítico de De Campos
Ribeiro, como no Recife, em torno de Inojosa, este último responsável por emitir a
notação crítica de que o Pará vinha consolidando um ambiente de modernidade artística.
A Amazônia, sobretudo pela obra de Mário de Andrade, passa a ser vista como
participante da unidade nacional. O escritor paulista chega a afirmar, em muitas de suas
cartas, já ter perdido a noção das fronteiras regionais. Trata-se, nesse momento, não
mais da Amazônia pitoresca da literatura dos viajantes, dos sermões do Padre Antônio
Vieira e dos contos de Inglês de Sousa, mas da Amazônia pertencente ao mesmo
sistema cultural que o eixo sul-sudeste. O conceito de desgeografização, proposto por
Mário de Andrade, pode ser definido, de acordo com Eduardo Jardim de Moraes, como
o “processo pelo qual se descobre para além das diferenças regionais (ou outras) que
comporta a nação, uma unidade subjacente relativa a sua identidade” (1990, p.69).
Assim, ocorre a busca da parte nacional em meio às diversidades culturais e regionais.
Na formulação proposta por Lafetá sobre os projetos estético e ideológico do
Modernismo, verifica-se que os anos de 1920 problematizam uma revolução na
linguagem, procurando se opor ao discurso bacharelesco e parnasiano que vigoravam na
inteligência artística nacional, incorporando elementos populares, folclóricos,
linguagem coloquial e eliminando as distâncias entre as modalidades escrita e oral da
linguagem. Já nos anos de 1930, a ênfase se dá no projeto ideológico, entendido como
consciência de classe, discutindo-se a função da literatura, o papel social do escritor e as
relações entre arte e ideologia (1974, p.17). Segundo o crítico, a necessidade de
atualização das estruturas sociais transborda a burguesia, indo na direção das ideologias
de esquerda, como também na reação conservadora e de direita (1974, p.18).
É desse contexto histórico-social a proliferação do conhecido romance de 30,
caracterizado, nas palavras de Antonio Candido, como a “pré-consciência do
subdesenvolvimento” (2003, p.160). Em seu conhecido ensaio intitulado “Literatura e
subdesenvolvimento”, Candido equipara o regionalismo ao subdesenvolvimento,
destacando duas posições históricas em face da ficção regionalista: a consciência de país
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novo e a de país subdesenvolvido. A primeira, encontrada nos romances sertanistas dos
períodos romântico e naturalista, explora na literatura o pitoresco decorativo, típica do
otimismo burguês, em que mesmo sem se dar conta, o nativismo acaba por “tornar-se
manifestação ideológica do mesmo colonialismo cultural que o seu praticante rejeitaria
no plano da razão clara, e que manifesta uma situação de subdesenvolvimento e
consequente dependência” (2003. p.157). Já a segunda, relativa à fase de consciência
(ou pré-consciência) do subdesenvolvimento, “funciona como presciência e depois
consciência da crise, motivando o documentário e, com o sentimento de urgência, o
empenho político” (2003, p.158).
Para Candido, em ambas as etapas, selecionam-se áreas temáticas e grupos social e
etnicamente menos favorecidos, situados na periferia do sistema capitalista. No entanto,
na fase de consciência do país novo, os escritores pouco percebem que seu regionalismo
está sendo posto a serviço de uma ideologia dominante, fornecendo a “um leitor urbano
europeu, ou europeizado artificialmente, a realidade quase turística que lhe agradaria
ver na América” (2003, p.157). É o caso de boa parte da produção literária amazônica
dos anos que antecede a década de 1930.
Podem-se citar como exemplos dessa produção que ressalta a diversidade da
natureza, os aspectos míticos e exóticos entrelaçados com a fauna e a flora exuberantes,
as obras de Inglês de Sousa e José Veríssimo, destacadas por Antonio Candido como
representativas da região amazônica do século XIX, entendida pelo crítico como um das
“áreas problemáticas” onde vivem “grupos marcados pelo subdesenvolvimento” (2003,
p.158).
Por outro lado, na fase de consciência do subdesenvolvimento, a perspectiva otimista
engendrada pela burguesia, de valorização da exuberância da natureza tropical brasileira
como forma de escamoteamento dos problemas sociais, cede lugar a uma perspectiva
pessimista, diferente daquela percebida no discurso naturalista, segundo o qual, o
homem pobre era focalizado como “elemento refratário ao progresso” (2003, p.160).
Essa nova perspectiva pessimista volta-se contra a ideologia das classes dominantes,
“vendo na degradação do homem uma consequência da espoliação econômica, não do
seu destino individual” (2003. p.160).
Pode-se citar, nessa perspectiva, o romance Terra Imatura, do paraense Alfredo
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Ladislau, publicado em 1923, em que, por mais que haja a ênfase na diversidade da
natureza amazônica e a posição mítica e nacionalista no que se refere a essa área
territorial, há inquietações das personagens do romance, Aiúna e Arianda, na busca de
um caminho de desenvolvimento para a região, tornando-se, no entender de Marinilce
Coelho, “uma palavra de ordem no grupo de Cléo Bernardo que seguiu o estilo de
pensar e adotou o espírito de luta na realidade econômica, social, política e cultural que
se estruturava no país nos anos 30” (2005, p.94).
O grupo dos anos de 1930 começava a se organizar na Amazônia paraense em torno
dos nomes de Cléo Bernardo e Sylvio Braga, diretores da revista Terra Imatura, cujo
título foi uma homenagem ao romance homônimo de Alfredo Ladislau. Essa geração
contou com nomes como José Maria Mendes Pereira, Ruy Barata, Bruno de Menezes e
Dalcídio Jurandir, este último estudado na UFPA, principalmente pelos seus romances
Chove nos campos de Cachoeira (1941) e Marajó (1947), na produção ensaística de
Gunter Karl Pressler (é preciso que o estrangeiro venha aqui e valorize nossa produção
cultural para nos darmos conta da nossa riqueza de produções simbólicas!).
De forte ideologia de esquerda, Terra Imatura traz artigos sobre a necessidade de
organização do movimento estudantil, as dificuldades econômicas que o estudante de
outros lugares encontra em Belém (até hoje é assim!), a denúncia das injustiças sociais,
a indignação diante dos movimentos totalitários que assolavam a Europa e a revolta
contra o abuso de poder dos ditadores (2005, p.95-6).
De acordo com Marinilce Coelho, “Terra Imatura ampliou e desenvolveu os novos
itinerários da literatura local e nacional da década de 1930, marcando definitivamente o
movimento literário paraense” (2005, p.106), consolidando, seguindo o viés teórico de
Antonio Candido, o subsistema literário da Amazônia paraense. Não havia mais, nesse
período, a necessidade de enfatizar a cor local da região amazônica; essa preocupação
foi gradativamente substituída por uma produção literária capaz de “desvendar o
alcance e os limites circunscritos ao homem moderno” (2005, p.102), tal como ocorre
na poesia de Ruy Barata, antecipando as novas tendências do pós-guerra. Possibilita-se,
assim, a abertura do Pará a movimentos estéticos como as artes de vanguarda, o
Modernismo paulista, o Concretismo, dentre outras poéticas do século XX.
A formação de grupos de leitura, ao redor do filósofo Benedito Nunes; a circulação
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maior de obras produzidas por autores como Mário Faustino e Max Martins, apesar dos
poucos recursos e da pouca qualidade do material datilografado; a formação de um
público leitor, sobretudo com a criação da Universidade Federal do Pará e da divulgação
em revistas e jornais locais dos trabalhos desses autores, começa por possibilitar a
configuração de um subsistema literário em consonância com a tradição estabelecida
pelo sistema literário nacional, consolidado no período do Realismo.
No caso específico de Max Martins (1926-2009), destaca-se seu constante diálogo
com autores canônicos como Drummond, João Cabral de Melo Neto, os concretistas,
Mário Faustino e Ferreira Gullar, dentre outros. Há nessas relações dialógicas uma
poética orientada pela “aprendizagem de desaprender, tenacidade de quem tenta se
desapegar dos hábitos já estabelecidos de sua própria escrita” (NUNES, 2001, p.33). As
descontinuidades da poesia de Max Martins estão relacionadas às crises com a própria
forma poética. Há o enfrentamento do poeta com a linguagem, e essa adquire um fluxo
contínuo ininterrupto, marcado, tal como a dialética, por continuidades e rupturas,
gerando a descontinuidade, a aprendizagem pelo desaprender. Essa reflexão que denota
maturidade e evolução dos processos lingüísticos ocorre no poema “A cabana”, inserido
em Para ter onde ir (1992).

A cabana

É preciso dizer-lhe que tua casa é segura


Que há força interior nas vigas do telhado
E que atravessarás o pântano penetrante e etéreo
E que tens uma esteira
E que tua casa não é lugar de ficar
mas de ter de onde se ir

Nesse poema, composto de apenas uma estrofe, o eu-lírico desconstrói o paradigma


de casa enquanto lugar de estabilidade e de ponto de chegada. A casa, espaço da
identidade do poeta, símbolo da construção de um movimento interior, é marcada pela
segurança (“tua casa é segura”), auto-confiança (“há força interior) e solidez (“vigas do
telhado”). Tal como propõe Benedito Nunes no estudo do poema “Varanda”, espaço de
fronteira, há a interpenetração dos espaços interior e exterior, movimento semelhante a
poemas modernistas como “Chuva oblíqua”, de Fernando Pessoa e “Poema de sete
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faces”, de Drummond.
A casa e suas vigas possibilitam ao sujeito um processo de interiorização, de
autoconhecimento para uma nova etapa, para a travessia (“atravessarás”) do “pântano
penetrante e etéreo”, espaço exterior da passagem ritualística para novas aprendizagens
poéticas. A casa não é vista como “lugar de ficar”, mas sim de “ter de onde se ir”. Note-
se que o poeta se vale da construção “de onde se ir”, ao invés de “para onde se ir”,
configurando no símbolo casa o ponto de partida, e não o ponto de chegada. A casa, tal
como a “esteira”, indica movimento, mobilidade.
A poética de Max Martins não se relaciona com o estático, com valores cristalizados,
mas sim permite uma abertura que sai da própria crosta da palavra bruta que adquire
cintilações marítimas (mar, preamar, maré, praia, ilha, rio) por meio de um ritual de
passagem pela “esteira” e pelo “pântano”. O poeta precisa deixar de lado a estabilidade
de formas como o conforto da casa solidificada pelas vigas interiores e alcançar um
lugar além dele mesmo, o “ter de onde se ir”, que não importa para onde se chegará,
mas certamente atingirá o objetivo poético da travessia, do mergulho interior no
“pântano penetrante e etéreo”, perquirição de um eu que anseia constantemente por
novas aprendizagens.
A reflexão sobre o próprio fazer poético e o questionamento dos limites do processo
da escritura, presentes na tradição poética ocidental, como em “Le vierge, le vivace et le
bel aujourd’hui”, de Mallarmé, “Poética”, de Manuel Bandeira, “Considerações sobre o
poema” e “Procura da poesia”, de Drummond, “Motivo”, de Cecília Meireles”,
“Poética”, de Ferreira Gullar”, dentre outros, embora frequentes nos primeiros poemas
de Max Martins, somente em H’Era (1971) passam a ser, de acordo com Benedito
Nunes, “de maneira explícita, o acompanhamento de todos os outros temas” (2001,
p.34). Porém, em O estranho (1952), essa linguagem, material bruto da poesia, pelo seu
polimorfismo, resulta em estranheza para o eu-lírico:

Estranho

Não entenderás o meu dialeto


nem compreenderás os meus costumes.
Mas ouvirei sempre as tuas canções
e todas as noites procurarás meu corpo.
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Terei as carícias dos teus seios brancos.
Iremos amiúde ver o mar.
Muito te beijarei
e não me amarás como estrangeiro (2001, p.347).

O poema “Estranho” articula-se sob a dialética do eu e do tu, enunciador e


enunciatário destinados a uma compreensão mútua. Figurado em “meu dialeto”, “meus
costumes” e “meu corpo”, o eu configura uma relação triádica em cujos outros dois
vértices comparecem linguagem e cultura. Temos, como propõe João Luiz Lafetá, ao
analisar a poética de Mário de Andrade, a articulação entre o eu, a linguagem e a nação
(1986, p.27). O fechamento da incompreensão do tu dos valores culturais desse eu (“não
entenderás’, “não compreenderás”), por meio das sensações corporais (“procurarás meu
corpo”), opera a passagem da recusa para a aceitação desse eu, isto é, o tu que antes não
era capaz de entender nem de compreender dialeto e costumes, passa, no espaço noturno
(“todas as noites”) a uma procura desse eu, ao entendimento por meio das sensações
físicas e corpóreas (“procurarás meu corpo”). Segue-se, após dois enunciados negativos
(“não entenderás”, “não compreenderás”) um enunciado afirmativo (“procurarás”).
Sobretudo em Anti-retrato (1960), “aparentemente um anti-estranho” (NUNES,
2001, p.34), haverá um “entrançamento congênito de linguagem e sexo” (2001, p.35),
isto é, a poesia de Max Martins passa a se estruturar na relação interdependente entre
linguagem e erotismo. Segundo Benedito Nunes, “Eros e Poiesis serão a cara e a coroa
do mesmo trabalho de linguagem. A Poética equivalerá a uma arte erótica que veicula,
sob o tropismo fálico do corpo feminino, o labor reflexivo do poeta com a matéria das
palavras” (2001, p.35).
No poema em análise, ainda que faça parte de O estranho, a articulação entre Eros e
Poiesis já se faz presente. No entanto, essa temática ainda é estranha ao corpo do
poema, não apresentando a mesma imbricação estrutural como nos poemas das séries
seguintes. Figuras como “meu corpo”, “carícias”, “teus seios brancos”, referentes à
carnalidade, relacionam-se a imagens da natureza, permitindo o alcance cósmico. Eu e
tu, antes dissociados, o segundo marcado pela incompreensão e o primeiro disposto ao
diálogo (“Mas ouvirei sempre tuas canções”), unem-se ao abraço cósmico possibilitado
pelo encontro dos corpos: “Iremos amiúde ver o mar”. Antes a dissociação, agora, a
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união dos corpos celebrada pelo mar, paisagem aquática que, segundo Benedito Nunes,
é o “esboço das posteriores imagens preferenciais da Natureza” (2001, p.32-33).
Infere-se que o mar possibilita a união erótica dos corpos. Dentro da tradição literária
de que a poesia de Max Martins espera seu justo lugar e reconhecimento da crítica
literária, deve-se considerar que dentro do subsistema literário já consolidado na
Amazônia paraense, as imagens aquáticas, muito presentes também em Mário Faustino,
piauiense integrado ao subsistema literário paraense, tornam-se abundantes nas
construções literárias desses dois poetas, pois são do mar, do rio, dos igarapés que se
servem os poetas paraenses na sua constelação imagética, constituindo essas figuras
elementos telúricos, formadores da identidade das comunidades amazônidas.
Pensar na construção identitária de obras poéticas de autores paraenses do século
XX, verificando em que medida se dá a incorporação dessas obras no cenário nacional,
desvinculanda-a de um regionalismo de ostensiva cor local, permite um exercício
teórico-crítico que pretende sistematizar essa produção literária, visando ao
estabelecimento das matrizes modernistas dessa produção literária. Pensando na
estrutura social como elemento de construção de sentidos, consideramos também, como
propõe Antonio Candido, as maneiras como os elementos sócio-históricos são
incorporados na estrutura da obra literária, permitindo, no desenvolvimento deste
projeto em desenvolvimento, vários olhares para a construção do subsistema literário
amazônico.
No espaço deste ensaio, optamos por centrar nosso foco na evolução literária dos
grupos ligados às revistas Belém Nova, Terra Imatura, Encontro e Norte, e o
suplemento literário Folha do Norte, abrangendo um período histórico de,
aproxidamente, três décadas, em torno de 1923 a 1951. Passa-se, assim, em um primeiro
momento, pelos momentos decisivos de formação do subsistema literário regional com
os contatos dos modernistas paraenses estabelecidos com o grupo pernambucano,
responsável por integrar o Pará no modernismo brasileiro; em um segundo momento,
amadurece o regionalismo de matriz romântica e naturalista para um regionalismo com
orientações ideológicas relacionadas à compreensão dos problemas sociais e
econômicos que degradam o homem; e finalmente, um terceiro momento, com plena
articulação entre produtores, receptores e mecanismo transmissor, que vai, lentamente,
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deixando de lado o regionalismo para se inserir nas preocupações em torno da
linguagem e de questões existenciais.
Essa visão panorâmica não pretendeu se estender até a contemporaneidade, uma vez
que isso implicaria a necessidade de outras orientações críticas e historiográficas,
advindas dos estudos pós-coloniais que, somadas às contribuições de Antonio Candido,
permitem estabelecer o juízo crítico das obras literárias produzidas da segunda metade
do século XX em diante. Incluiríamos aí os movimentos sociais e as comunidades dos
povos tradicionais amazônidas, responsáveis pela divulgação de uma cultura popular
que ainda carece de estudos na historiografia literária brasileira. É ainda de nos espantar
a defasagem na circulação das obras de autores como Antônio Tavernard, Bruno de
Menezes, Max Martins, Age de Carvalho, Haroldo Maranhão, dentre outros ainda
menos conhecidos do público-leitor até mesmo da sociedade paraense.
Como vimos ao longo desta exposição, a configuração do sistema literário, pelo viés
epistemológico de Antonio Candido, pressupõe um conjunto de obras interligadas por
denominadores comuns, tanto internos como externos. Pelo estudo da produção literária
da Amazônia paraense ao longo das primeiras décadas do século XX, apesar de
consolidado o subsistema literário regional, entendidos os elementos externos, que
permitem identificar as notas dominantes de uma fase, como o conjunto de produtores,
receptores e mecanismo transmissor, o tripé proposto pelo crítico, tanto em âmbito
regional como nacional, padece, no presente momento, pela falta de circulação das
obras e da sistematização da fortuna crítica sobre elas, tornando seu estudo necessário
no âmbito da historiografia e crítica literária.

Referências

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1994.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos 1750-
1880. 11ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2007.
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MEMÓRIAS DA DIÁSPORA JUDAICA: EXÍLIO E IDENTIDADE CULTURAL


EM VIAGENS DE AHASVERUS À TERRA ALHEIA EM BUSCA DE UM
PASSADO QUE NÃO EXISTE PORQUE É FUTURO E DE UM FUTURO QUE JÁ
PASSOU PORQUE SONHADO, DE SAMUEL RAWET

Fernando Oliveira Santana Júnior (PG – UFPE)

Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar conceitos de diáspora, exílio, memória e


identidade cultural na novela Viagens de Ahasverus à terra alheia em busca de um
passado que não existe porque é futuro e de um futuro que já passou porque sonhado,
do escritor judeu polonês-brasileiro Samuel Rawet (1929-1984), publicada em 1970.
Essa análise também lidará com um tema mítico presente nessa novela, já enunciado no
título: a lenda de Ahasverus, o judeu errante, criação cristã medieval com intenções
antissemitas quanto à morte de Cristo, apesar de a errância judaica anteceder esse fato.
Considerando exílio, memória e diáspora, desdobraremos a questão do hibridismo
identitário-cultural1 como elemento integrante da condição judaica, para vermos o
Ahasverus rawetiano como arquétipo do humano deslocado e transeunte em identidades
múltiplas. Não só nessa novela de Rawet, mas também em toda a obra literária desse
escritor, em diferentes graus, Ahasverus, mesmo originalmente denotando o judeu
diaspórico, disperso pelo mundo, agregando uma variedade de identidades,
reatualizando memórias, pôde se tornar um arquétipo da condição humana universal
marginalizada (IGEL, 1997; WALDMAN, 2003; VIEIRA 2008). Assim, focalizando a
diáspora judaica, que agrega – em si mesma – memória, exílio e identidade, veremos
tais fenômenos não como unicamente judaicos, mas como princípios universais. Isso
será feito a partir das nossas reflexões sobre a condição diaspórica judaica da
personagem rawetiana Ahasverus, considerando que o termo diáspora foi legado pelos
judeus, inicialmente, expandido oportunamente pelos Estudos Culturais para analisar a

1
Isto é, “identidades podem se misturar hibridamente, cruzando fronteiras e culturas”, conforme Nelson
Vieira (In: VIEIRA; GRIN, 2004, p. 91). Nesse sentido, os irmãos Boyarin, em seu ensaio Diaspora:
Generation and The Ground of Jewish Identity, defendem o hibridismo como fenômeno da diáspora
judaica (1993).
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condição diaspórica das identidades de outros povos, com outros sentidos (HALL,
2003; HUA, In: AGNEW (Ed.), 2005; BOYARIN, In: BOYARIN (Ed.), 1997).
Com a análise da novela rawetiana supracitada, inserimos a obra de Rawet num
campo de pesquisas que têm surgido dentro da amplitude dos Estudos Culturais,
especialmente nas academias norte-americanas: os novos estudos culturais judaicos. A
despeito de existirem notáveis trabalhos publicados e relacionados com os estudos
culturais judaicos, iniciados germinalmente em meados da década de 1980, segundo
Daniel e Jonathan Boyarin, teóricos desse campo de estudos, “o trabalho de estabelecer
um ‘lugar judaico’ dentro do campo de esquema dos Estudos Culturais só está
iniciando” (In: BOYARIN (Ed.), 1997, p. viii. Tradução nossa). No Brasil, como
sabemos por ora, há três núcleos de pesquisas em estudos judaicos que agregam
pesquisas sobre o campo de estudos culturais judaicos: o NEJ, Núcleo de Estudos
Judaicos, da UFMG, o NIEJ, Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos, da UFRJ, e o
Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas, da
USP. Os novos estudos judaico-culturais, segundo os irmãos Jonathan e Daniel Boyarin,
na condição de “crítica e pesquisa da cultura judaica”, “também têm muito a oferecer à
comunidade dos estudos culturais” (In: BOYARIN (Ed.), 1997, p. xviii. Tradução
nossa). Noutras palavras:

Especificamente, uma das nossas metas principais em promover a


rubrica dos estudos culturais judaicos é caminhar em direção do
reconhecimento da cultura judaica como parte do mundo das
diferenças a serem valorizadas e enriquecidas pela pesquisa na
universidade, junto com as diferenças dos outros grupos [...]
(BOYARIN, In: BOYARIN (Ed.), 1997, p. xi. Tradução nossa).

Esse processo de inserção dos estudos judaicos no campo dos Estudos Culturais
decorre do fato de que ele “é um campo de estudos onde diversas disciplinas se
intersecionam no estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea”
(ESCOSTEGUY, In: SILVA (Org.), 2006, p.137). Reforçando a contribuição judaica
para os estudos culturais, conforme Lisa Silverman, os estudos culturais judaicos
constituem “um rico e produtivo campo, para o mais profundo entendimento de
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questões mais gerais, tanto da diferença quando da diáspora” (2006, p. 01. Tradução
nossa). E o exemplo dado é a questão da diáspora:

Essa questão tornou-se, posteriormente, um conceito-pivô em certas


partes dos estudos culturais, especialmente aquelas envolvidas na
história do Pós-colonialismo. Culturas de povos diaspóricos, sua
preservação cultural, e a dupla consciência desses povos – bem como
os caminhos pelos quais a diáspora se tornou um paradigma de certa
condição cultural no período pós-colonial tout court – são, de modo
crescente, áreas do pensamento vividas dentro do paradigma. A
diáspora judaica, por meio da qual o termo foi criado, fornece a
história mais longa de produção e sobrevivência cultural diaspórica
(In: BOYARIN, 1997, p. x. Tradução nossa).

É justamente a diáspora, no contexto das ressonâncias diaspóricas da lenda do judeu


errante, na novela rawetiana, que se mostra como elemento de grande contribuição da
cultura judaica para o mundo. Na obra rawetiana, ele representa o judeu bodenlos e
heimatlos, apátrio e sem fundamento identitário unívoco (FLUSSER, 2007), errância de
deslocamento cultural, hibridização de identidades. Tese sustentada por Stuart Hall para
as identidades diaspóricas, que estão em constante construção e reprodução,
considerando que a experiência da dispersão é matriz histórica de todas as diásporas
forçadas (1996). O exílio, fenômeno diaspórico, se torna uma experiência-dor, de
fratura entre seres e lugares, entre um eu e seu lar deixado para trás (SAID, 2003). Esse
fenômeno-dor se instaura como um passado, presentemente construído pela memória 2,
pela narrativa, pelo mito e pela fantasia (HALL, 1996), causando o que Pierre Ouellet
denomina hibridização de memórias (2003). Essa experiência, em seus múltiplos
deslocamentos, também se vincula à instabilidade de uma identidade definida e à
pertença cultural a uma localidade étnica, ocasionando um estigma da identidade
deslocada na mobilidade (WALDMAN, 2003; BAUMAN 2005).

1 Quem foi Samuel Rawet? Memórias, diáspora, exílio e identidade cultural de um


imigrante judeu que se tornou escritor brasileiro

2
Assim, Hua (In: AGNEW (Ed.), 2005) vincula a diáspora às questões de identidade, memória e exílio,
considerando esses fenômenos como parte de um todo, e a memória judaica converge para a fusão desses
fenômenos consigo mesma.
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A importância de se ter conhecimento da vida de Samuel Rawet é fundamental para a


compreensão de sua obra, pois “na ficção e na ensaística, o que é permanente em Rawet
é o fato de ele ser seu próprio laboratório” (ENGELLAUM, 2006, p. 75. Cf. BINES;
TONUS, In: RAWET, 2008). Nesse sentido, conforme Nelson Vieira, “a experiência
ontológica de Rawet como um judeu da diáspora, como alguém que questiona a
natureza do ser e o seu destino de exílio perpétuo, penetra opressivamente sua prosa
(1995, p. 51-52. Tradução nossa). Essa experiência diaspórica se iniciaria na vida de
Rawet a partir da imigração de sua família do shtetl (pequena aldeia em iídiche), situado
na pequena cidade polonesa de Klimontów, para os subúrbios da cidade do Rio de
Janeiro. Nascido em 23 de julho de 1929 e registrado nessa cidade da Polônia como
Szmul Urys Rawet, o autor de Viagens de Ahasverus [...] relembra sua infância, com a
vida religiosa, aprendizado das orações judaicas e do iídiche, sua vida familiar, a
situação dos judeus em Klimontów:

Comecei a estudar muito cedo, como era comum numa cidade


pequena da Europa Central. A escola funcionava ao lado da sinagoga.
O primeiro alfabeto que aprendi foi o ídiche – não aprendi o hebraico
propriamente. Aprendi as rezas [...]. Tenho lembranças da vida na
aldeia, lembranças do inverno, da vida religiosa, da convivência com
parentes, lembranças inclusive de um mundo que não existe mais, e
que mais tarde passou a me interessar por ser um mundo [...] (apud
KIRSCHBAUM, 2000, p. 25).

A tentativa de reconstituição desse passado judaico de Rawet concerne à questão da


memória judaica. A memória individual de Rawet, através desse relato, se vincula à
memória coletiva judaica, pois segundo o sociólogo judeu Maurice Halbwachs, “para
evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras,
e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela
sociedade” (2006, p. 72). Assim, “a memória individual é um ponto de vista sobre a
memória coletiva” (HALBWACHS, 2006, p. 69). Considerando que “a memória do
passado foi sempre um componente central da experiência judaica”, o historiador Yosef
Yerushalmi declara que “os judeus [...] tem a mais longa e a mais persistente de todas as
memórias” (1996, p. xxxiii. Tradução nossa). Ademais, a memória é um dos
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componentes da preservação da múltipla identidade cultural judaica através de séculos


de dispersão, considerando que “a memória desempenha um papel significativo na
produção e na construção da identidade” (SILBERSTEIN, In: SILBERSTEIN (Ed.),
2000, p. 03. Tradução nossa. Cf. HALL, 2003). Essas reflexões nos ajudam a
compreender o investimento de Rawet em tentar reconstruir um painel mnemônico de
seu universo judaico polonês, inclusive literariamente. Todavia, esse universo judaico
da infância de Rawet começou a ruir, quando a família emigrou para o Brasil, universo
relembrado no conto Gringuinho, da obra Contos do imigrante, primeira obra do
escritor, de 1956: “Antigamente, antes do navio, tinha o seu grupo. [...] Em casa a sopa
quente de beterrabas [...]. Sentava-se no colo do avô recém-chegado das orações e
repetia com entusiasmo o que aprendera [...]” (RAWET, 2004, p. 43).
A emigração da família Rawet foi provocada por uma crise econômica nos anos
1930, de modo que “o propagado boicote ao comércio judeu conduziu à falência várias
firmas comerciais e familiares. Muitos judeus atingidos pela atmosfera anti-semita [sic]
e também pela pobreza emigraram, então, para a Palestina, para os EUA e para a
América do Sul” (MAZUREK, apud KIRSCHBAUM (Org.), 2007, p. 37-38). Em
suma, além da possibilidade de eclosão de manifestações antissemitas, a pobreza e a
miséria foram fatores determinantes do deslocamento diaspórico, ou exílico, da família
Rawet para o Brasil. Isso é confirmado por Hall: “a pobreza, o subdesenvolvimento, a
falta de oportunidades [...] podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o
espalhamento – a dispersão” (2003, p. 28). A chegada definitiva ao Brasil, precedida
pelo pai (que aqui chegou em 1933), também é relatada por Rawet em suas entrevistas,
confirmando o possível motivo dessa partida diaspórica, a pobreza, culminando com o
fluxo de imigrações judaicas da Europa para a América. Chegando ao Brasil, a família
foi morar nos subúrbios cariocas, onde os tios de Rawet já residiam com o pai.
Consequentemente, a vida suburbana marcou profundamente Rawet, inclusive no
aprendizado do português: “sou fundamentalmente suburbano; o subúrbio está muito
ligado a mim. Aprendi o português na rua [...]. Aprendi tudo na rua (apud
KIRSCHBAUM, 2000, p. 28-29). “Aqui [no Rio de Janeiro] cheguei quando tinha sete
anos, aqui começou a minha vida de imigrante” (RAWET, 2008, p. 238). É a partir
desse dêitico existencial que tem início o entre-dois-mundos de Rawet, a identidade
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diaspórica e hifenizada de judeu-brasileiro, ou brasileiro-judeu. Sobre isso, Stuart Hall


declara: “a referência hifenizada já marca o funcionamento do processo de
diasporização” (2003, p. 41). É assim que nasce o escritor Samuel Rawet 3, com uma
linguagem errante, que imprime, no seu português, a experiência diaspórica: “a
linguagem de Rawet atesta não apenas a impossibilidade de escrever em português, mas
também a impossibilidade de escrever em qualquer outra língua que não o português”,
gerando “uma escrita que celebra o estranhamento e a errância dos sentidos como
afirmações estéticas” (BINES, In: GRIN; VIEIRA, 2004, p. 209). Conforme Vieira, “o
Brasil tem uma alma, uma anima, diaspórica” (2004, p. 95). Assim, a hifenização
híbrida de ser judeu polonês e brasileiro suburbano em Rawet “reflete culturalmente a
complexidade da condição ou do comportamento relacional e, sobretudo, situacional do
judeu brasileiro” (VIEIRA, In: GRIN; VIEIRA, 2004, p. 94). Rawet afirma esse
hibridismo em sua obra, vinculando-o ao tema do judeu errante. Ou seja, o hibridismo
do judeu errante com o carioca suburbano implode numa errância estética em Crônica
de um vagabundo (ou um híbrido de conto com requintes de romance?), do livro de
contos Os sete sonhos, de 1967, e a novela Abama, de 1964 (bem como em seus ensaios
filosófico-autobiográficos). Não só a narrativa eclode uma errância do foco narrativo,
mas também as suas respectivas personagens (um anônimo vagabundo e Zacarias), que
fundem reflexões filosóficas às suas andanças diaspóricas nos cotidianos da existência,
culminando com a novela Viagens de Ahasverus [...], ápice estético de Rawet, no
percurso da temática de imigrante para errante (VIEIRA, In: VIEIRA, 1995).

2 O Ahasverus rawetiano: de híbrido-diaspórico judeu a arquétipo da condição


humana marginalizada

3
Rawet ingressou no ensino superior e cursou Engenharia. Posteriormente, a equipe de Oscar Niemayer
na construção de Brasília. Não obstante, ser literato era o que mais lhe interessava. Rawet começou pela
produção ensaística sobre teatro, de 1950 a 1954. Logo depois, uma pausa ensaística é assinalada pelo
sucesso de Contos do imigrante, publicado em 1956 (BINES; TONUS, In; RAWET, 2008, p. 09-10;
KIRSCHBAUM, 2000, p. 31). Faleceu solitário em Sobradinho-DF, em 1984, possivelmente vitimado
por um aneurisma cerebral.
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A novela Viagens de Ahasverus [...] apresenta em seu início a problematização da


identidade de Ahasverus: “Ahasverus bocejou, [...] e procurou [...] uma identificação
para seu estado. Não sabia se era real como resíduo de um sonho, se era sonho, resíduo
do real” (RAWET, 2004, p. 453). Conforme Vieira (1995), essa obra de Rawet é o ápice
do investimento estético do escritor no tema da errância. Do anônimo errante de
Crônica de um vagabundo, passando pelo nominado Zacarias, de Abama, Rawet
resolveu trazer a lume a antiga lenda que germinava não só essas narrativas, como
também o tema inicial do imigrante: a lenda do judeu errante, Ahasverus 4. A lenda do
judeu errante não é judaica, mas uma criação cristã medieval, fundamentada em
pressupostos antissemitas, que alimentaram a propaganda nazista no século XX
(BRICHETTO, 2006, p. 01; UNTERMAN, 1992, p. 140). Conforme a Enciclopédia
Judaica trata-se de “uma figura imaginária de um sapateiro de Jerusalém que, tendo
insultado Jesus no caminho em direção à crucificação” (2002, p. 01. Tradução nossa),
recebeu uma maldição de que andaria perpetuamente como um errante sobre a Terra, até
o retorno de Cristo. Essa é a versão de um panfleto anônimo e alemão de 1602, que
nomina o judeu errante de Ahasverus, embora outra, medieval e mais antiga, o
denomine Cartáfilo, segundo o livro Flores historiarum, de 1237. Entretanto, “não há
nenhuma referência ao judeu errante nos Evangelhos, nem mesmo nos chamados
Evangelhos apócrifos” (WALDMAN, 2003, p. 91), conquanto textos neotestamentários
(Mateus 16:28; João 18:20-22 e 21:20) tenham sido usadas como fonte para a
construção dessa lenda (BRICHETTO, 2006, p. 04; WALDMAN, 2003, p. 90).
Quanto ao judeu errante de Rawet, um narrador em terceira pessoa lança
abruptamente o protagonista Ahasverus sem dêiticos temporais e espaciais que denotem
cronologia, causalidade, origem de percurso, aspectos já sugeridos no título da novela.
Esse deslocamento também – no início da novela – é atribuído ao estado identitário de
Ahasverus, pois ele estava sem saber se era real como reflexo do sonho, ou sonho como
reflexo do real; via-se como Ahasverus, outras vezes, não. Não obstante, o percurso

4
Numa entrevista, Rawet revelou que sentia uma profunda inquietação pela figura do Ahasverus,
chegando a afirmar que não sabia se escreveria uma novela ou um conto sobre esse judeu errante,
inclusive ressaltando que o usaria “com a mesma característica, mas completamente diferente do
marginal” (apud WALDMAN, 2003, p. 89-90). Noutras palavras, ele fundiria o judeu errante da lenda
cristã com o vagabundo suburbano (BINES, In: GRIN; VIEIRA, 2004, p. 203-204).
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narrativo sugere que as duas condições identitárias são possíveis. Em suma, há um ser
híbrido, que funde elementos fantásticos e realistas, especialmente nos vários momentos
de suas metamorfoses surreais. Mesmo momentaneamente sem saber “se podia assumir
a responsabilidade de sua consciência, cansada já, exausta, sempre renovada no entanto,
sempre alerta ao movimento dela mesma, um olho dentro de um olho, espreitado e
espreitando” (RAWET, 2004, p. 453), como o texto mesmo o diz, Ahasverus tinha sua
consciência, após os períodos oscilantes, sempre renovada. Isso sugere que ele se sabia
mais em estado de Ahasverus, de modo que a não-identificação da origem do
personagem é um não-saber que pode ser lido como um saber recusado, latente,
reprimido, por causa da dor, da angústia e do próprio percurso histórico da errância:
“[Ahasverus] descobriu que tinha mais de mil anos, que era imortal” (RAWET, 2004, p.
454). Segundo Vilém Flusser, “a viagem ao passado encontra sempre resistência da
memória, que dificulta o progresso. A memória se recusa a entregar tudo o que esconde,
e muitas vezes cala” (2007, p. 48). Não obstante, a possível oscilação de Ahasverus traz
implicações para a identidade cultural: “disjunturas patentes de tempo e espaço são
abruptamente convocadas, sem obliterar seus ritmos e tempos diferenciais. As culturas,
é claro, têm seus ‘locais’. Porém, não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam”
(HALL, 2003, p. 36). Sob ecos derridianos, ainda segundo Hall, a ausência-presença de
uma origem cultural é como uma “repetição-com-diferença, ou de reciprocidade-sem-
começo” (2003, p. 37): a identidade refletirá palidamente o lugar verdadeiramente
original, mas, com o percurso híbrido-diaspórico, ela passou por um enfraquecimento
progressivo. Isso mostra, no âmbito dos estudos judaicos culturais, que Ahasverus é
uma metáfora da dispersão da origem da identidade do povo judeu, e tal dispersão
denota que essa identidade não um dado pronto, pois “mais que descrever quem somos,
ou de que lugar nós estamos vindo, a identidade deve lidar com o nosso vir a ser”
(SILBERSTEIN, In: SILBERSTEIN (Ed.), 2000, p. 03). Assim, a identidade judaica,
traçando-se uma origem, é diaspórica, pois Avrahám (Abraão), o primeiro hebreu,
conforme a Torá, era um desterritorializado, que saiu da antiga Babilônia em direção à
Terra Prometida por Deus. Mas antes de o povo judeu entrar nessa terra, ele teve a sua
formação no exílio egípcio: um nascimento diaspórico. Assim, o povo judeu tem “uma
identidade diaspórica” (BOYARIN, Jonathan; BOYARIN, Daniel, 1993, p. 721.
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Tradução nossa), pois esteve na Diáspora desde Abraão, e mesmo com a existência
nacional na antiga Judeia (até antes do exílio provocado pelos romanos, em 135 d.C.), e
no posterior e moderno Estado de Israel, “a condição de existência do povo judeu foi
sempre a de ser diaspórico” (SORJ, In: FUKS, 2005, p. 177. Grifo do autor).
Vejamos a desconstrução da lenda católica do Ahasverus, na novela rawetiana; logo
após retornaremos à problemática da identidade, do exílio e da memória do povo judeu,
finalizando o nosso trabalho: “[...] lembrou-se de uma conversa que teve com um
nazareno num monte de oliveiras. Que bela conversa! Que companheiro excelente! [...]
Falavam e riam de lírios dos campos, de agulhas e camelos [...]” (RAWET, 2004, p.
455). Apesar de não compreender a profundidade do nível de vínculo que tinha com o
nazareno (Jesus), Ahasverus “sentia-se estranhamente ligado a ele, entrevia às vezes,
uma relação vital nas duas existências. Mas sabia, também, de uma distância quase
infinita a separá-los” (RAWET, 2004, p. 455). O encontro entre Ahasverus e Jesus
transcorre fraternalmente, com conversas midráschicas sobre o sermão da montanha,
sobre parábolas e milagres de Cristo. Ahasverus até pensou em se metamorfosear,
queria ser os dois, mesmo tendo desistido dessa mutação fantástica. Não obstante essa
leitura desconstrutiva, a quase infinita distância a separá-los sugere os pressupostos
antissemitas da lenda medieval e cristã do judeu errante, de modo que isso é confirmado
pela imagem de Cristo que é mostrada a Ahasverus: um Jesus irreconhecível, diferente
do que ele encontrou. Dessa desconstrução da lenda, o decurso narrativo de Viagens de
Ahasverus [...] desemboca na questão do hibridismo das múltiplas identidades que
constituem as metamorfoses fantásticas da personagem, considerando seus
deslocamentos diaspóricos (WALDMAN, 2003):

Conversar em metamorfose. Ahasverus nunca teve problema de


línguas. [...]. As consoantes e as vogais [...] recorriam a uma lógica de
faringe, cordas vocais, lábios, dentes, vegetação à volta, casario,
hábitos, costumes, tradição, migrações. E conquistava o sabor das
fugas às imposições normativas elaboradas de um modo arbitrário e
aleatório. [...] Dormiu. Sonhou. Deserto, areia, vento, pequena
caravana de camelos. [...] Acordou. Bebeu. Regressou ao colchão da
Pensão Lafonense. Ahasverus no mediterrâneo. Era demais.
Ahasverus vagando entre Nápoles, Marselha, Barcelona, Pireu,
Atenas, Limasol, Famagusta, Salamina [...], Tel-Aviv, Haifa. [...]
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Conforme Nelson Vieira, as metamorfoses de Ahasverus sugerem que “ele adapta


sua identidade para se amoldar a uma situação particular” (1995, p. 97). Já lemos que
Ahasverus tem dois olhos, um para dentro e outro para fora: podem denotar um olhar
para a identidade judaica e outro para a identidade não-judaica (dos países da diáspora).
É o estar entre mundos, entre culturas, entre identidades, mostrando que as identidades
“não [são] uma essência” (HALL, 1996, p. 70), pois “a realidade cultural
híbrida/diaspórica [é] resultado da encruzilhada de culturas pelos fenômenos da
imigração e também da migração (interna)” (VIEIRA, In: GRIN; VIEIRA, 2004, p. 82).
Esse processo também concerne à variedade de línguas faladas por Ahasverus; a
dispersão do povo judeu, por exemplo, para a Europa, gerou duas línguas híbrido-
diaspóricas: o ladino (que funde hebraico, espanhol, português e árabe) e o iídiche (que
funde hebraico, alemão, polonês, etc.). Esse processo de hibridismo linguístico atingiu
a vida e a ficção de Rawet, conforme falamos anteriormente, e que expressa o que
Pierre Oullet ensina: que “os escritores vivem dentro da língua e dentro da voz uma
condição ao mesmo tempo exilada e asilada do homem” (2003, p. 08. Tradução nossa).
Nesse senso, Said ensina que, para o exilado, “não há uma linguagem adequada”,
considerando que “o exílio, ao contrário do nacionalismo, é fundamentalmente um
estado de ser descontínuo” (2003, p. 50). Consequentemente, uma descontinuidade
exílica gerará, nos escritores, uma ficção, deslocada, diaspórica, que – como Ahasverus
– vive errante tanto no sonho quanto no real. Diante disso, no âmbito dos estudos
judaicos culturais, a identidade judaica é uma identidade em construção
(SILBERSTEIN, In: SILBERSTEIN (Ed.), 2000) desde Abraão. Como disse Vilém
Flusser, o que explica a errância de Ahasverus por cidades e países, “sou apátrida,
porque em mim encontram-se armazenadas várias pátrias” (2007, p. 221). À vista disso,
“a fragilidade e a condição eternamente provisória da identidade não podem mais ser
ocultadas” (BAUMAN, 2005, p. 22), sendo passível de um grau zero de construção.
Quanto à memória judaica, “[Ahasverus] pensou na carga própria que a aldeia russa
lhe dava, na torrente de cadeias místicas e míticas que o levavam; sempre a um passado
de fé e sonho, mas um sonho-fuga, sonho-ilusão” (2004, p. 472). Já falamos sobre a
importância da memória para o povo judeu, meio de conservação e da sobrevivência da
identidade diaspórica dele, mas há algo revevante a ser observado a partir desse
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fragmento da novela rawetiana: “a memória transborda, acima de tudo, através de dois


canais: o ritual e a narrativa” (YERUSHALMI, 1996, p. 11), dois canais que na
narrativa rawetiana se bifurcam, quando a personagem passa por uma sinagoga em
Israel e quando ouve uma velha recitar Schmá Israel (RAWET, 2004), a declaração de
fé no Deus dos judeus, mostrando que o elemento religioso também faz parte da
identidade judaica, pela ligação do povo judeu com a Torá, apesar da ilusão-fuga da
fissura dolorosa do exílio-expulsão do sonho paradisíaco do shtetl russo, que os
pogroms provocaram, pois “as realizações do exílio são permanentemente minadas pela
perda de algo deixado para trás, para sempre” (SAID, 2003, p. 46). Portanto, conforme
Anh Hua, a memória é vista em registros históricos, nos rituais, etc., lidando com
processos traumáticos (o Holocausto, a Guerra do Vietnã, por exemplo), “reescrevendo
um sentido de perda frequentemente achado na diáspora, no exílio e nas narrativas de
imigrantes” (In: AGNEW (Ed.), 2005, p. 200). Enfim, Ahasverus aparece como símbolo
do ser humano marginalizado, metamorfoseando-se em três tipos, por exemplo: “E
[Ahasverus] era três então. Um mendigo, um entalhador, um vendedor de cocadas. [...]
Os três eram um só e nenhum” (p. 476). No fim da novela, transgredindo os limites de
autoria e ficção, numa eclosão autobiográfica, Ahasverus se metamorfoseia em Samuel
Rawet 5. Sobre esses dois pontos, Berta Waldman (2003) diz que Rawet, por ter vivido
com pessoas suburbanas deslocadas e marginalizadas, transformou o espaço suburbano
em laboratório estético, fazendo que o judeu universal, diaspórico, tipifique as minorias
discriminadas, que muitas vezes se diasporizam em busca de uma vida melhor.

Conclusão

Tendo vivido em subúrbios cariocas, Rawet experienciou e acompanhou a situação


de muitos judeus imigrantes, de modo que deu tratamento literário a ela, e tinha

5
Conforme Nelson Vieira, “essa identificação pessoal de Rawet com sua novela não só confirma o
comissionamento de Rawet com sua arte, como também abre uma fissura entre ficção e realidade. Em
1968, a pós-modernista Leslie Fiedler propôs que os artistas deveriam ‘atravessar o limite e abrir essa
fissura’, uma perspectiva que deu a entender uma apreciação de consciência pela heterogeneidade cultural
e pela alteridade, as quais Rawet acreditava estar faltando no Brasil” (1995, p. 99).
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conhecimento da condição de outros grupos, de modo a universalizar o exílio judaico.


Com isso, Rawet transformou “o lendário em cotidiano” (2008, p. 170). Ahasverus
“visa com suas andanças transmutacionais atingir uma identidade consigo, com o
mundo, com os demais” (ENGELLAUM, 2006, p. 79). Assim, obra de Rawet cumpre
uma das metas dos estudos culturais judaicos: a contribuição da diáspora judaica para a
compreensão de outras diásporas, inserindo a história judaica na história do mundo.
Através de sua obra, pondo sua memória individual a serviço de uma memória
coletiva diaspórica, Samuel Rawet fez um percurso existencial e ficcional, o do judeu
imigrante para o judeu errante, para transcender a perspectiva de uma identidade
nacionalista una. É a condição de espírito migrante, diaspórico-exílica, do ser humano:
“o homem vive em deslocamento [...]” (OUELLET, 2003, p. 07. Tradução nossa).

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MEMÓRIAS DO SCHTETL: INTERSEMIOSE E EXÍLIO NO ROMANCE THE


FIXER, DE BERNARD MALAMUD, E NA PINTURA DE MARC CHAGALL

Fernando Oliveira Santana Júnior (PG – UFPE)

Introdução

O objetivo deste trabalho é fazer uma análise intersemiótica da presença da memória


e do exílio no romance The fixer (O faz-tudo), do escritor judeu norte-americano
Bernard Malamud 1 (1914-1986), publicado em 1966, e em alguns quadros do pintor
judeu franco-russo Marc Chagall 2 (1887-1985): Êxodo (de 1952-66), A crucificação
branca (de 1938), Eu e a Aldeia (de 1911). À vista disso, nossa proposta de leitura
intersemiótica, ou comparatista, entre Malamud e Chagall, se deterá em dois elementos
vinculados à memória e ao exílio. Para a memória, o schtetl, sob perspectiva nostálgica,
para o exílio, a lenda do judeu errante, o Ahasverus, com implicações críticas a respeito
do antissemitismo. A colocação desses elementos não denota uma dicotomia estanque,
já que o schtetl também se vincula ao exílio e o judeu errante, à memória. Tendo
consciência dessa flexibilidade, conforme supracitado, memória/schtetl e exílio/judeu
errante constituirão as duas partes deste trabalho.
É oportuno ressaltar que a leitura comparada da ficção de Malamud com a pintura de
Chagall não constitui novidade, pois há ensaios investigando a presença da temática
chagalliana do amor na obra malamudiana, especialmente em contos 3. Por isso, nossa

1
Bernard Malamud nasceu em Nova Iorque, em 26 de abril de 1914. Filho de judeus imigrantes russos,
Malamud foi romancista e contista; escreveu oito romances e vários contos, sendo o The fixer premiado
com os prêmios Pulitzer e National Book, em 1967. Segundo a crítica literária norte-americana,
juntamente com Isaac Bashevis Singer, Philip Roth e Saul Bellow, entre outros, Malamud se tornou um
dos grandes escritores da literatura judaica norte-americana do século XX. Morreu em 18 de março de
1986.
2
Marc Chagall, registrado Moishe Shagal, nasceu em Vitebsk, no dia 07 de julho de 1887, na Bielorússia
(na época integrada ao Império Czarista Russo). Foi um dos maiores pintores do século XX, combinando
com estilo próprio, os movimentos artísticos de seu tempo: o cubismo, o surrealismo, simbolismo e
fauvismo. Sua pintura é de expressão judaica, com exceção de alguns quadros parisienses. Pintou
quadros, fez ilustrações para a Bíblia e para as fábulas de La Fontaine, tapeçarias, vitrais, etc. Morreu em
28 de março de 1985.
3
Cf., por exemplo, o ensaio The Loathly Landlady: Chagallian Unions and Malamudian Parody: “The
Girl of My Dreams” Revisited”, de Joel Salzberg. In: Studies In Short Fiction, vol. 30, n. 4, Sep. 22,
1993, p. 543-554.
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hipótese de trabalho não partirá dessa temática, mesmo que haja poucos trabalhos sobre
esta, mas das questões quanto à memória e ao exílio, uma vez que até o momento
desconhecemos, à luz das nossas pesquisas, algum trabalho comparando a pintura de
Chagall com a prosa romanesca de Malamud. Mais específica e detidamente, partimos
hipoteticamente da necessidade de um estudo comparativo entre a obra romanesca
malamudiana e a pintura chagalliana. Noutras palavras, de um trabalho comparativo que
explore possíveis relações chagallianas com o romance The fixer (O faz-tudo). Essas
possíveis relações são sugeridas pelo fato de que esses artistas tematizam memórias do
schtetl (embora Malamud só ouvisse histórias sobre este, mas Chagall passou sua
infância em um na Rússia) e o sofrido exílio do povo judeu, pelo viés antissemita,
supostamente legitimado, segundo tal viés, pelo crime judaico da morte de Cristo.
Para reforçar a necessidade deste estudo comparativo, temos a confissão de Malamud
Malamud de que ele foi influenciado por Chagall. Em uma entrevista, disse que foi
influenciado por Chagall: “eu utilizei o imaginário chagalliano, intencionalmente, em
uma estória, O barril mágico, e é isso mesmo” (In: THE PARIS REVIEW
FOUNDATION, 2005, p. 19. Tradução nossa). Essa influência ocorreu no conto O
barril mágico. Nele, fundindo linguagem verbal e visual, há o encontro amoroso entre
Leo Finkle, estudante de yeshiváh (academia rabínica), e a sofrida prostituta Stella
Salzman (MALAMUD, 2007 4), tematizando o amor como instrumento de redenção:
Diante disso, estamos diante de possíveis leituras intersemióticas entre a obra ficcional
de Malamud e a obra pictórica de Chagall. É com base nos temas da memória e do
exílio que este trabalho propõe uma leitura intersemiótica entre alguns quadros
chagallianos e o romance malamudiano The fixer. Também nos fundamentaremos no
que Erwin Panofsky chamou de Iconologia, que consiste no estudo da produção e da
interpretação “de imagens, histórias e alegorias que dão sentido, mesmo para os planos
formais e para os procedimentos técnicos empregados [nas obras de arte]” (1955, p. 31.
Tradução nossa). Imagens, histórias e alegorias que constituem o “significado
intrínseco, ou o conteúdo” (PANOFSKY, 1955, p. 30), fincado nas influências

4
“[Finkle] viu naquela jovem a sua própria redenção. Violinos e velas acesas encheram o ar. Leo correu
para ela com seu buquê de flores. Quem dobrasse a esquina veria Salzman encostado a uma parede a
entoar orações pelos mortos” (MALAMUD, 2007, p. 254).
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teológicas, filosóficas e políticas, com os propósitos e as inclinações individuais dos


artistas, sem se deixar de ver a obra de arte como um documento artístico-individual e
civilizatório de seu tempo.

01 O schtetl: memórias de um paraíso perdido, mas reconstruído na arte

Muitos locais passados são presentificados na arte, através da memória. Eles podem
ser vistos como documentos civilizatórios historicamente relacionados a uma obra, ou
grupos de obras de arte (PANOFSKY, 1955, p. 39). Um local tornou-se atemporal na
memória judaica, especialmente para os ashkenazim, judeus do Leste Europeu, e para
seus descendentes: o schtetl. Em iídiche, significa cidadezinha ou aldeia. Os schtetlekh
constituíam pequenas comunidades judaicas na Europa Oriental durante os séculos XIX
e XX, na Rússia, na Polônia, na Ucrânia, na Lituânia e a parte leste do Império Austro-
Húngaro (ZOLLMAN, 2010; UNTERMAN, 1992). O schtetl era cercado por campos e
florestas; suas residências, construídas em madeira, eram de centenas a milhares; as ruas
do schtetl, em sua maioria, não eram pavimentadas. O conceito de cultura no schtetl
estava restritivamente ligado ao da religião judaica, pois o idishkeit (o judaísmo)
norteava a visão da vida, da existência (BEREZIN, 1977, p. 37). Assim, conforme
Joellyn Zollman (2010), os espaços públicos do schtetl tinham sinagogas de madeira,
cemitério judaico, tanques rituais (mikvaôt), o mercado, etc., juntamente com igrejas
ortodoxas russas ou católicas 5. Ademais, “no ‘schtetl’, o rabino era tanto o guia
religioso quando o secular” (BEREZIN, 1977, p. 37). Havia schtetlekh com feição
totalmente judaica (UNTERMAN, 1992, p. 246), havendo neles residências de não-
judeus, de modo que o schtetl era marcado pelo contato diário (social e comercial) entre
judeus e não-judeus, apesar de períodos de tensões antissemitas (ZOLLMAN, 2010;
UNTERMAN, 1992). A vida no schtetl era difícil: as pessoas tinham poucas posses e
não tinham acesso à educação secular.

5
Quanto ao trabalho, “a maioria dos judeus do schtetl, tanto homens quanto mulheres, trabalhava para
sustentar suas famílias, usualmente em negócios artesanais e comerciais [...]” (ZOLLMAN, 2010, p. 01.
Tradução nossa).
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A despeito de períodos de profunda miséria, geralmente, os judeus do schtetl tinham


uma fé inabalável; outros, que desanimavam, fugiam em busca de melhorias de vida, ou
para ingressarem na militância revolucionária. Esses dois comportamentos judaicos
(sendo o da fuga condizente com o segundo e o terceiro aspectos) correspondem,
respectivamente, a dois personagens do romance The fixer, do escritor judeu norte-
americano Bernard Malamud (2006): o mascate Shmuel e o faz-tudo (consertador)
Yákov Bok. O mesmo ocorre com as personagens que povoam a pintura chagalliana,
principalmente marcados pela religiosidade judaica e pela fuga à perseguição. Apesar da
destruição do schtetl provocada pelo Nazismo, artistas da palavra e da imagem
procuraram – através da memória – salvar o schtetl do esquecimento. Nesse sentido,
conforme Anh Hua, a memória é estetizada, e, assim, o estudo da memória deve levar à
ausência, à tradição, à nostalgia, etc. (In: AGNEW (Ed.), 2005, p. 197). E é nessas
condições que Marc Chagall e Bernard Malamud tematizam o schtetl, mas com
diferença. Chagall viveu em um, de modo que jamais se desligou dele, especialmente
em sua pintura, mas Malamud foi filho de judeus que viveram no schtetl: ouviu histórias
dos imigrantes não só de seus pais, mas também dos imigrantes judeus. Nesse contexto,
através da literatura e da pintura, ocorreu uma mitificação nostálgica do schtetl: para os
que viveram no schtetl, bem como para sua descendência, “o schtetl se apresenta como
um ponto mítico de origem” (ZOLLMAN, 2010, p. 02). É assim que Chagall apresenta
o schtetl, com infante nostalgia:
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Eu e a aldeia, 1911, de Marc Chagall (In: WALTHER; METZGER, 2006, p. 20).

Chagall tem um estilo único: fundindo vanguardas (como o fauvismo, o orfismo, o


cubismo e o surrealismo) com movimentos como o romantismo e o simbolismo, ele se
tornou “o pintor da metamorfose dos gêneros, dessa imbricação transformadora das
artes propugnada por tantos vanguardistas” (CEDILLO, 1997, p. 02). Eu e a aldeia [o
schtetl], iconologicamente, frisa imagens pictóricas marcadas pelas estéticas
vanguardistas supracitadas. A fauvista e orfista (pelo emprego metamórfico das cores,
especialmente o verde, que contrasta com o branco), cubista (com o caráter geométrico
da circunferência que une o eu, a árvore e a ovelha, sob o aperspectivismo dos motivos,
numa convergência assinalada pela estrada de linhas retas em direção ao schtetl, acima).
Com isso, há uma apropriação chagalliana do cubismo para destruir a noção
tridimensional do espaço, a fim de recompô-lo, transgredindo a cronologia temporal,
quadrimensionalmente através da memória (CEDILLO, 1997, p. 02). As casas, a cor
branca e a jovem de cabeça para baixo evocam “uma realidade existente para além do
mundo visível, para a imaginação daquilo onde as lembranças se reduzem a símbolos”
(WALTHER; METZGER, 2006, p. 20): Apolinaire chamou os quadros de Chagall de
supernaturalisme. Ainda em termos iconológicos, há a história do schtetl e a árvore
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central, alegoria do Paraíso, da infância de Chagall, que – apesar da condição escassa da


vida na aldeia – ainda a via como um Éden. Essa leitura também é permitida pela
harmonia do olhar entre o pintor e a ovelha. Assim, o verde simboliza o equilíbrio, “é
uma cor tranqüilizadora, refrescante, humana” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009,
p. 938, 939), que desnuda primaverilmente a terra em que o homem habita, desnudando-
o da solidão do inverno. Ademais, “benéfico, o verde reveste-se [...] de um valor mítico,
o das green pastures, dos paraísos verdes dos amores infantis” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 940). Essa harmonia entre o pintor e a ovelha dialoga com a
harmonia do mascate Shmuel com o seu cavalo, no romance malamudiano The fixer:

Shmuel [...] passava havia muito dos sessenta, tinha uma barba branca
[...]. [...] Era um homem religioso [...]. [O cavalo] era um animal
descarnado, de pernas compridas, corpo marrom e ossudo e grandes
olhos estúpidos. O animal e Shmuel entendiam-se muito bem
(MALAMUD, 2006, p. 17-18/23).

Shmuel era um velho sofrido com o grau de miséria do schtetl em que vivia.
Diferentemente da visão bucólico-paradisíaca do schtetl de Chagall, em Eu e minha
aldeia, Shmuel sofria com o seu, mas havia algo edênico em sua aldeia: a harmonia com
seu cavalo, e esse aspecto, de certo modo, dialoga com o entre-olhar do pintor com a
ovelha. Como? Ambos schtetlekh, o de Chagall e o de Shmuel, têm uma atmosfera
religiosa: a do movimento hassídico, um dos ramos do judaísmo. O seu fundador, o rabi
Israel ben Eliezer, conhecido como Baal Shem Tov, “gostava de passar o tempo nos
campos e nas florestas, experimentando o divino no mundo da natureza”
(UNTERMAN, 1992, p. 40), de modo que, através da ascese mística, esse sábio
conhecia a linguagem da fauna e da flora. É esse aspecto hassídico que nos ajuda a
compreender a harmonia entre o humano e o animal, na pintura de Chagall e no
romance de Malamud. Esses artistas colocaram esse aspecto do movimento hassídico
em suas respectivas obras, tornando possível esse diálogo, como uma evocação
paradisíaca do schtetl, confirmando, nessas obras, o que disse Anh Hua: “a memória é
encontrada [...] na literatura, [...] nas artes visuais [...]” (In: AGNEW (Ed.), 2005, p.
199). Ademais, a tentativa de reconstituição do schtetl concerne à memória judaica. A
memória individual de Chagall e Malamud, através de suas obras, se vincula à memória
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coletiva judaica, pois segundo o sociólogo judeu Maurice Halbwachs, “para evocar seu
próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se
transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade”
(2006, p. 72). Assim, “a memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva” (HALBWACHS, 2006, p. 69). Considerando que “a memória do passado foi
sempre um componente central da experiência judaica”, o historiador Yosef Yerushalmi
declara que “os judeus [...] tem a mais longa e a mais persistente de todas as memórias”
(1996, p. xxxiii. Tradução nossa). É o mandamento do zékher (lembrança),
acompanhado do ato. Zékher é a memória individual e coletiva do povo judeu, cuja
transmissão ocorre mediante o ritual e a narrativa (YERUSHALMI, 1999). Assim, a
memória recria o espaço e o tempo, transgredindo cronologias (IGEL, 1997).
Infelizmente, Shmuel e seu cavalo, que tão bem se entendiam (compartilhando de
uma existência pobre), tiveram de se separar, pois Yákov Bok, genro de Shmuel,
revoltado com a miséria do schtetl, trocara uma vaca por ele, para ir embora do schtetl,
a fim de tentar uma vida melhor em Kiev. Essa partida desencadeia outro tema: a lenda
do judeu errante, vinculada ao antissemitismo, enredado na história que permeia o
romance The fixer: a recriação do caso Mendel Neils, para ser a estória de Yákov Bok.

02 Exílio judaico e antissemitismo: recriação crítica em Chagall e Malamud

Malamud e Chagall tematizam o exílio sofrido pelo povo judeu, contestando o uso da
crucificação de Jesus como pretexto antissemita. Malamud o faz com o personagem
Yákov Bok, anti-herói que vive um auto-exílio de seu schtetl, sob as implicações do
histórico exílio coletivo do povo judeu, por causa da falsa acusação de libelo de
sangue 6, que surgiu na Idade Média e que ainda ocorreu no século XX. Chagall também
o faz, a seu modo, recriando a lenda de Ahasverus, o judeu errante 7, inserindo-o em

6
Originada pelo anti-judaísmo cristão medieval, consiste na acusação de que os judeus cometiam
assassinato de cristãos, especialmente crianças, para usar o sangue deles para fazer a matsá (pão sem
fermento) da Páscoa judaica (UNTERMAN, 1992). Reapareceu em Kishinev, em 1903.
7
Conforme Joseph Jacobs, trata-se de “uma figura imaginária de um sapateiro de Jerusalém que, tendo
insultado Jesus no caminho em direção à crucificação” (2002, p. 01. Tradução nossa), recebeu uma
maldição de que andaria perpetuamente como um errante sobre a Terra, até o retorno de Cristo.
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todo contexto histórico de antissemitismo, dialogando com o caso Neilis, recriado no


romance malamudiano. Mesmo que Chagall não tenha uma tela que retrate o caso
Beilis, telas em que ele aborda o exílio judaico fazem referência implícita a esse caso:

A crucificação branca, 1938, de Marc Chagall (In: WALTHER; METZGER, 2006, p. 62).
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Êxodo, 1952-1966, de Marc Chagall (In: WALTHER; METZGER, 2006, p. 83)

Em 1911, mais uma vez aparece a acusação antissemita de libelo de sangue: a vítima
foi Menahem Mendel Beilis foi acusado de haver matado ritualmente o garoto Andrei
Yushchinsky. Beilis foi mantido preso por dois anos, torturado, mas foi absolvido
quando a verdadeira assassina confessou o crime. Por trás desse velho discurso de crime
ritual há o antissemitismo, que deriva de séculos de antijudaísmo cristão: os judeus
deveriam pagar por haverem matado Jesus. Antes de falar da recriação literária feita por
Malamud, convém fazermos uma breve análise dos dois quadros chagallianos que, de
certo modo, retratam implicitamente o libelo de sangue, e com mais contundência o
exílio judaico. O uso de Jesus crucificado é para Chagall a resposta-explicação
definitiva “para a desgraça de sua época” (WELTHER; METZGER, 2006, p. 62), ou
seja, o sofrimento exílico do seu povo. A presença de Jesus crucificado é corrente em
várias pinturas de Chagall, como A guerra, de 1964-66, Obsessão, de 1943, O mártir,
de 1940, A alma da cidade, de 1945, A queda do anjo, de 1923-1947, por exemplo. A
herança cubista do simultaneísmo dos motivos salta aos olhos. Pogroms no schtetl, um
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nazista pondo fogo em uma sinagoga, lamentação dos profetas-testemunhas (tirados do


Antigo Testamento) diante das barbaridades antissemitas, praticadas em nome de Cristo
(o que explica a lamentação), fugas a pé e a mar, simbolizada pelo judeu errante,
Ahasverus, que aparece de verde, passando rente a um Sêfer Toráh (Rolo da Lei
Mosaica) em chamas. O branco, sendo a cor da pureza, mostra que Jesus não tem culpa.
Mais contundentemente, o Jesus apresentado está com vestimenta judaica, o talit, manto
religioso usado nas orações, cujas quatro franjas suspensas em seus quatro cantos
simbolizam a Torá, além da cabeça coberta, diferentemente das imagens cristãs de Jesus
crucificado. Assim, Chagall realiza uma desconstrução de um judeu que foi
cristianizado contra o seu próprio povo, para implodir o paradoxo que atinge o discurso
cristão-antissemita. O discurso da perseguição aos judeus em nome de um judeu que,
segundo depreendemos da pintura chagalliana, jamais deixou de ser fiel ao judaísmo
(Cf. Evangelho de Mateus 5:17). As personagens saindo pelas extremidades inferiores
do quadro reforçam a leitura do exílio judaico. Diante disso, as personagens dessas
pinturas mostram que o exílio é uma experiência terrível, “uma fratura incurável entre
um ser humano e um lugar natal, [...] uma condição de perda terminal” (SAID, 2003, p.
46). Refletindo sobre o sofrimento provocado pelo exílio judaico em seus sobreviventes,
a partir do sofrimento individual do personagem Yákov Bok, diz o narrador do romance
The fixer: “os judeus que conseguem escapar com vida estão condenados a viver a dor
da lembrança para sempre” (MALAMUD, 2006, p. 321). Já em Êxodo, o título se
refere à fuga exílica dos judeus do Egito, aspecto da pintura confirmado pela presença
de Moisés, segurando as Tábuas dos Dez Mandamentos. Chagall traz a multidão judaica
em fuga exílica de um schtetl em chamas. Com isso, Chagall além de reatualizar o
Êxodo dos judeus do Egito, mostra Jesus crucificado no centro superior da tela, tendo só
o branco de uma auréola em torno da cabeça, mas com o corpo amarelado. Essa cor
amarelada evoca, no contexto da perseguição aos judeus, a estrela amarelada que o
nazismo pôs sobre os judeus: mais uma vez se confirma o uso antissemita do judeu
Jesus para perseguir o seu povo. Mesmo com a visão coletiva, o caso particular do
julgamento de Mendel Beilis está presente nesse contexto pictórico chagalliano, no
tocante aos judeus, pois a forjada “culpa” de Beilis recaiu sobre seu povo, de modo que
organizações como as Centúrias Negras incitavam pogroms. Fazendo um diálogo com o
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romance The fixer, de Malamud, sai-se do exílio coletivo para o exílio individual, mas
sob a implicação histórica do exílio coletivo judaico: do consertador Yákov
Chepsovitch Bok, recriação literária de Mendel Beinis. Nesse sentido, dialogando com
os quadros chagallianos apresentados, um motivo central norteia a estória de Yákov
Bok: “Desde que Cristo foi crucificado, o crime de quem o matou passou a ser de todos
os judeus para sempre” (2006, p. 321).
Romance histórico, mas entremeado pela estética surrealista (especialmente nos
momentos de sonhos e aparições vivenciados pelo protagonista na prisão), The fixer se
apresenta como literatura de testemunho contra a barbárie histórica cometida pelo
Império Czarista contra o povo judeu. Obviamente, também se insere o Holocausto,
pois, no contexto desse romance, o que o Império Czarista fez foi uma antecipação do
que faria o Nazismo 8, e, mais amplamente, todas as atrocidades cometidas contra o
gênero humano pelos regimes totalitaristas. Situado na Kiev de 1911, o romance retrata
a história de Yákov Chepsovitch Bok. Ele, cansado da miséria do schtetl, e marcado
pelo abandono da esposa, Yákov resolve deixá-lo, para buscar uma vida melhor na
cidade de Kiev. Apesar das advertências de seu sogro Shmuel, consistindo no perigo
antissemita que rondava a vida judaica nessa cidade, Bok resolveu ir embora, conquanto
temesse essa partida e sentisse saudade do schtetl, enfrentando um conflito nostálgico.
Após haver salvo da morte um velho antissemita, e membro das Centúrias Negras,
Nikolai Maximovitch Lebedev, este o põe como encarregado em uma olaria. Mais tarde,
Yákov foi acusado de haver assassinado ritualmente o menino Jênia Golov, a velha
acusação de libelo de sangue reaparece, apesar de o judaísmo proibir a ingestão de
sangue. A partir do exílio de Yákov na prisão, o narrador reflete sobre o exílio, a
errância do povo judeu, como eles marcam profundamente a memória judaica,
mostrando o povo judeu como vítima do antissemitismo ao longo da História, em
qualquer lugar, reflexão também empastada nas telas chagallianas:

Do lado de dentro, ou do lado de fora, era a história que prevalecia –


triste memória do mundo. Eram as coisas ruins que ficavam na
memória. Portanto, para um judeu não fazia diferença onde ele

8
“De uma hora para outra surge um louco dizendo que o sangue dos judeus é maldito”, diz o narrador de
The fixer (MALAMUD, 2006, p. 321).
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estivesse. Carregava sempre às costas uma carga de memórias: a


condição de servidão, de oportunidades reduzidas, de vulnerabilidade”
(MALAMUD, 2006, p. 368).

Refutando a culpabilidade judaica pela morte de Jesus, o narrador diz que a dispersão
exílica dos judeus pelo mundo tem uma explicação metafísica, baseada no
relacionamento eterno entre Deus e os judeus (MALAMUD, 2006). Diferentemente de
Chagall, que não mostra a causa da diáspora exílica do povo judeu, preferindo – com
contundência estética – mostrar a causa dada pelo antissemitismo moderno, filho do
antijudaísmo cristão medieval. Não obstante, para o narrador de The fixer, que na
verdade expressa as reflexões de Yákov Bok, a diáspora judaica não decorre da paixão
de Cristo, mas de uma quebra da aliança com Deus, que consta na Torá, acompanhada
da contrapartida: a promessa messiânica. Sem respostas de seu amigo judeu Sygmund
Freud para explicar a profundidade absurda do exílio do povo judeu ao longo da
História, o judeu intelectual, radicado no Brasil, Stephan Zweig, em sua obra O mundo
de ontem, vislumbra a explicação metafísica: “mas talvez seja precisamente o sentido
supremo do judaísmo repetir sem descanso, por sua existência cujo enigma desafia o
tempo, a eterna pergunta proposta a Deus por Jó, a fim de que jamais aquela possa ser
integralmente esquecida na terra” (apud BEREZIN, 1977, p. 209). Diante disso, a
transcendência da resposta consiste na miraculosa sobrevivência do povo judeu,
considerando que, como explica o filósofo Nicolai Berdaiyev, pelo “critério materialista
positivista, a nação judaica já deveria ter desaparecido da face da terra já há muito
tempo. Sua existência é um fenômeno misterioso e espantoso, [...] a vida dessa nação é
regida por alguma força de algum decreto antigo [...] (apud GRYLAK, 1998, p. 176)”.
Como lembra Edward Said, inexiste uma linguagem adequada para tentar exprimir a
descontinuidade da existência exílica (2003, p. 50), e que “apesar da opressão e da
ameaça de extinção, um determinado ethos permanece vido no exílio” (SAID, 2003, p.
57). Especificamente, em se tratando da descontinuidade exílica do povo judeu, sua
existência, após séculos de tentativa de extermínio, “extrapola a regra corrente no
destino dos povos”, de modo que “vive e respira, apesar de contradizer com sua
persistência as leis usuais da história” (GRYLAK, 1998, p. 176). É com essa linguagem
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absurda, para explicar um exílio considerado absurdo, transgredindo a lógica e a


limitada razão humana que Chagall e Malamud põem em suas obras a condição judaica.

Conclusão

Mesmo com a descoberta dos verdadeiros criminosos, Yákov sai da prisão, para ser
julgado. A caminho do julgamento, a narrativa suspende-se em um diálogo imaginário
entre Yákov e o Czar, revelando a frieza irônica do trato deste com os judeus de seu
império. Yákov pega uma arma e mata o Czar. Esse gesto denota que, segundo a
personagem, a História pode ter seu curso alterado e que “um homem não pode ficar
parado vendo a própria destruição” (MALAMUD, 2006, p. 392). Com isso, vemos a
universalização da condição judaica. Ambos – Marc Chagall e Bernard Malamud –
usaram o judeu como alegoria da condição universal humana. Malamud disse: “eu tento
ver o judeu como um homem universal. [...]. O drama judaico é prototípico, um símbolo
da luta pela existência humana, nos mais altos e possíveis termos humanos” (1991, p.
30. Tradução nossa). Chagall o confirma: “quando um pintor é judeu e pinta a vida,
como se poderia ele defender contra elementos judaicos em sua obra! [...] Com efeito, o
elemento judaico permanece aí, mas a sua obra pretende alcançar prestígio universal”
(apud WELTHER; METZGER, 2006, p. 62).

Referências

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Estado de São Paulo, 1977.
CEDILLO, Adolfo Gómez. Marc Chagall. Trad. Berta Rodrigues Silveira. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da
Costa e Silva. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
GRYLAK, Moshe. Reflexões sobre a Torá. Trad.Marcelo Firer. São Paulo: Sêfer, 1998.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro, 2006.
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Memory, and Identity: A Search for Home. Toronto: University of Toronto Press, 2005.
IGEL, Regina. Emigrantes judeus, escritores brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1997.
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MALAMUD, Bernard. O faz-tudo. Trad. Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Record,
2006.
______ . O barril mágico. Trad. Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Record, 2007.
______ . The art of fiction. In: Paris Review Foundation. Paris. nº 52, p. 1-25, 2005.
______ . Conversations with Bernard Malamud. Edited by Lawrence Lasher.
Mississipi: University Press of Mississipi, 1991.
PANOFSKY, Erwin. Meaning in the Visual Arts. New York: Doubleday, 1955.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SALZBERG, Joel. The Loathly Landlady: Chagallian Unions and Malamudian Parody:
“The Girl of My Dreams” Revisited”. In: Studies In Short Fiction, vol. 30, n. 4, Sep. 22,
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UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. Trad. Paulo Geiger. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
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Washington: University of Washington Press, 1996.
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http://www.myjewishlearning.com/history/Modern_History/1700-1914/Shtetls.shtml
Acesso em 08 de março de 2010.
WALTHER, Ingo F.; METZGER, Rainer. Marc Chagall – 1887-1985 – Poesia em
quadros. Trad. Lisette Queiróz Werner. Rio de Janeiro: Paisagem Distribuidora, 2006.
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OLAVO BILAC, MONTEIRO LOBATO E ANA MARIA MACHADO: TRÊS


DISCURSOS SOBRE LITERATURA INFANTIL E JUVENIL?

Fernando Teixeira Luiz (UNESP)

Introdução
O presente estudo, centrado na análise documental, ocupa-se em problematizar
tópicos específicos da literatura infantil e juvenil com base na apreciação crítica de três
escritores emblemáticos nacionais: Olavo Bilac, Monteiro Lobato e Ana Maria
Machado. Em outras palavras, a pesquisa objetiva verificar como os citados ficcionistas,
movidos por determinadas convicções e imersos em distintos contextos, definem,
descrevem e discutem o gênero infanto-juvenil.
Para tanto, tal investigação científica optou por seguir um caminho ainda não muito
explorado na tradição de pesquisas consolidadas nesse campo: recupera, examina e
polemiza, com base na crítica literária contemporânea, os conceitos “teóricos” dos
anunciados autores, dispersos ora em produções de caráter epistolar (como no caso de
Lobato), ora em prefácios e ensaios (como acontece, respectivamente, com Bilac e
Machado). Os resultados obtidos apontam para o diálogo que os escritores mantiveram
com seus antecessores (Rousseau, Herbat e Comte, entre outros), em específicos
momentos de suas vidas.
A esse respeito, vale ressaltar no texto bilaquiano a severa crítica aos contos de
fadas, seguida de uma proposta literária bastante ufanista, monológica e conservadora,
em plena sintonia com as diretrizes escolares da época. Lobato, rompendo com esse
paradigma, enveredaria pelas trilhas dos pensadores da Escola Nova e introduziria um
modelo bastante moderno de literatura. Filiando-se à linha inaugurada pelo criador de
Emília e em total diálogo com a poética pós-moderna e o cognitivismo piagetiano,
Machado apresenta uma retórica em que conceitua a literatura infantil como aquela que
também pode ser lida pelas crianças, firmando-se, consequentemente, como capaz de
envolver o público em geral.

1- A poética “tradicional” de Olavo Bilac.


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Não é novidade assinalar que a produção literária de Olavo Bilac revela um estreito
pacto com uma postura nacionalista e plenamente escolar. A crítica literária
contemporânea já havia acentuado tal faceta das publicações bilaquianas direcionadas
ao leitor em formação. Novidade, no entanto, é discutir como o escritor em questão
definia e “teorizava” a literatura para crianças, introduzindo alguns conceitos em textos
mais “dogmáticos”. É o que acontece, por exemplo, no pórtico de Poesias Infantis
(1904). Aqui, o autor explicita abertamente sua visão de literatura infanto-juvenil: textos
que exigiriam total cuidado e excessivo trabalho do ficcionista, uma vez que se dirigiria
a sujeitos sem experiências, com um repertório ainda vago e possivelmente incapazes
de compreender as nuances do poema ou da narrativa a ser examinada.
Quando a Casa Alves & Cia me incumbiu de preparar este livro para o
uso das aulas de instrução primária, não deixei de pensar, com
receios, nas dificuldades grandes do trabalho. Era preciso fazer
qualquer cousa simples, acessível à inteligência das crianças; e quem
vive de escrever, vencendo dificuldades de forma, fica viciado pelo
hábito de fazer estilo. Como perder o escritor a feição que já adquiriu,
e as suas complicadas construções de frases, e o seu arsenal de
vocábulos peregrinos, para se colocar ao alcance da inteligência
infantil? (BILAC, 1904, p. 09)

Em outro pólo, Bilac investe nas críticas aos materiais de leitura até então presentes
no país, formados, basicamente, pelos contos de fadas europeus traduzidos no solo
português.
Outro perigo: a possibilidade de cair no extremo oposto – fazendo um
livro ingênuo demais, ou, o que seria peor, um livro, como tantos há
por aí, cheio de histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a
credulidade das crianças, fazendo-as ter medo de cousas que não
existem (BILAC, 1904, p. 09).

Avançando na leitura do documento, encontramos os baluartes de seu projeto


literário. A literatura, para ele, abarcava uma estrutura nitidamente moralizante. Sua
função residiria no fato de ensinar ao leitor normas de conduta e comportamento, bem
como a obediência, o recato e o amor à pátria. A criança, aqui, em sintonia com as
diretrizes de uma pedagogia que a crítica escolanovista designaria mais tarde como
tradicional, seria apontada basicamente como um ser que retém informnações e as
reproduz em seu meio. Nessa perspectiva, o conto de fadas é repudiado pelo autor,
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tendo em vista que sua estrutura não condizia com o que ele defendia, pontuava e
valorizava como “literatura escolar”.
O livro aqui está. É um livro em que não há os animais que falam,
nem as fadas que protegem ou perseguem crianças, nem as feiticeiras
que entram pelos buracos das fechaduras; há aqui descrições da
natureza, cenas de família, hinos ao trabalho, à fé, ao dever, alusões
ligeiras à história da pátria, pequenos contos em que a bondade é
louvada e premiada (BILAC, 1904, p. 10).

Ainda nesse documento, Bilac chama a atenção do leitor ao manifestar plena


consciência acerca do que salientou nos parágrafos anteriores como “literatura escolar”,
de fundo didático e não necessariamente endereçado ao prazer estético da criança, e a
“obra aberta”, bem mais sofisticada e absolutamente aberta à total participação do
destinatário.
O autor deste livro destinado às escolas primárias do Brasil não quis
fazer uma obra de arte: quis dar às crianças alguns versos simples e
naturais, sem dificuldades de linguagem e métrica, mas, ao mesmo
tempo, sem a exagerada futilidade com que costumam ser feitos livros
do mesmo gênero (BILAC, 1904, p. 10).

No parágrafo posterior, tal dado ganha novos contornos e seu pensamento parece
ainda mais claro ao leitor: o trabalho estético não está em voga, e sim o de ordem
moralizante, calcado na ideologia de propagar valores como a importância dos estudos,
o amor ao território brasileiro, o respeito à casa, aos pais e, por conseguinte, ao
professor: “O que o autor deseja é que se reconheça neste pequeno volume, não o
trabalho de um artista, mas a boa vontade com que um brasileiro quis contribuir para a
educação moral das crianças do seu país” (BILAC, 1904, p. 10).
Em linhas gerais, as “teses” defendidas pela retórica bilaquiana expressam as
aspirações e diretrizes do sistema educacional brasileiro da segunda metade do século
XIX. Ganha força aqui a vertente positivista ancorada a quatro pilares que seriam, mais
tarde, polemizados por Coelho. Compondo os pilares anunciados, destacam-se o
nacionalismo, marcado pela dedicação à pátria, o culto às origens e à construção de
heróis locais; o intelectualismo, priorizando estudos e livros como meios de realização
social; o tradicionalismo cultural, elegendo modelos da literatura a serem assimilados e
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imitados; e o moralismo, pressupondo que a missão da literatura abarcava elementos


atitudinais, como a honestidade, a a solidariedade e a retidão de caráter.

2- Monteiro Lobato: a revolução conceptual.

A concepção de literatura infanto-juvenil que sustenta o projeto de Monteiro Lobato


compreende um desdobramento de suas idéias gerais sobre literatura. Em linhas gerais,
o ficcionista enaltece textos claros, concisos, revestidos de dinamismo, destituídos de
digressões e capazes de instruir e, ao mesmo tempo, deleitar o interlocutor – o que, na
verdade, refletia uma preocupação do autor com a formação dos filhos, tendo em vista
que os livros que circulavam na época eram de âmbito monológico e estritamente
utilitaristas.
Problematizar o conceito de literatura infanto-juvenil empregado por um autor
requer, mesmo antes de iniciar o trabalho de exegese crítica, conhecer as referências
teóricas sobre infância que perpassam, sustentam e regem sua concepção.
No geral, cumpre sublinhar que a concepção lobatiana de infância é bastante
influenciada pelo clássico de J. Barrie, que é contemporâneo ao autor brasileiro, Peter
Pan. (1911). Seguindo as trilhas do personagem escocês que almejava preservar-se na
condição de criança - o que enfocava, exaltava e acentuava as particularidades de tal
fase da vida - Lobato, em diferentes momentos de sua literatura, sublinha o encanto
inerente à infância, contrapondo-o, de maneira drástica, ao marasmo peculiar à idade
adulta. Por isso, seus personagens sentem a necessidade de se exibirem como crianças,
preocupando-se com a lenta imposição dos anos de maturidade. É o que se revela em
Reinações de Narizinho (1931) a partir do receio de Pedrinho em crescer, mesmo
consciente de que isso era inelutável:
A história de Peter Pan, que Dona Benta contara aos meninos certo
dia, tinha-os deixado de cabeça virada. Narizinho só pensava em
Wendy; Pedrinho só pensava em Peter Pan, “o menino que nunca quis
crescer”.
Pedrinho também não queria crescer, mas estava crescendo. Cada
vez que apareciam visitas era certo lhe dizerem, como se fosse um
grande cumprimento: “Como está crescido!” e isso o mortificava
(LOBATO, 1931, p.131, grifos nossos).
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Reflexões semelhantes ressurgem em O Saci (1921). Dessa vez é o duende nacional


quem recupera a imagem de Peter Pan para aconselhar Pedrinho a se conservar como
menino. A valorização da infância ganha novos contornos, enaltecendo-se a pureza
típica de tal fase da vida, em contraste com os vícios, a intolerância e a rigidez
intrínsecos ao adulto.
Qual, Pedrinho, não se meta a defender o bicho homem que você se
estrepa. E trata de fazer como Peter Pan, que embirrou de não crescer
para ficar para sempre menino, por que não há nada mais sem graça
do que gente grande. Se todos os meninos do mundo fizessem greve
como Peter Pan, e nenhum crescesse, a humanidade endireitava. A
vida lá entre os homens só vale enquanto vocês se conservarem
meninos. Depois que crescem, os homens viram uma calamidade, não
acha? Só os homens grandes fazem guerra. Basta disso. Os meninos
apenas brincam de guerra (LOBATO, 1921, p.23).

Na verdade, o exposto fragmento permite inferir que Lobato, leitor exímio de Barrie
e solidário ao movimento escolanovista, explicitava uma visão que o aproximava dos
princípios iluministas difundidos pelo pensador Jean Jacques Rousseau. Em linhas
gerais, há para o filósofo francês uma hipervalorização da natureza, definindo-se o
homem como um desdobramento desta. O sujeito, por conseguinte, seria naturalmente
bom. O problema se encontraria na sociedade civilizada, que o afasta de sua essência.
Por isso, Rousseau almejava que as crianças vivessem por mais tempo possível em seu
estado natural de inocência, ao passo que Lobato, também comungando desse
paradigma, acreditava que a causa do mal proporcionado pelos adultos – em especial as
guerras – residia no fato destes terem se distanciado de sua respectiva “essência
natural”, ou seja, a infância.
Assim, apoiando-se nesse viés, Lobato, no artigo “A Criança é a Humanidade de
Amanhã” (Conferências, Artigos e Crônicas (1948)), denuncia as condições de
produção e circulação dos livros brasileiros no princípio do século XX, fixando-se no
impasse da formação de leitores. Nessa direção, critica a abordagem educacional
empirista, que desconsiderava as particularidades e potencialidades da criança,
entendendo-a como mero elemento passivo na relação ensino x aprendizagem. No
entanto, o autor investe sua apreciação sobre os textos estritamente pedagógicos
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empregados no período, que negavam as múltiplas possibilidades de leitura em nome de


uma finalidade unicamente escolar.
O literato, em suma, propõe um novo modelo de criança, o qual é marcado pela
capacidade de iniciativa e a liberdade em relação às idéias instauradas sobre o texto.
Isso justifica, inclusive, a pouca importância atribuída pelo autor à obediência, e causa,
consequentemente, amplo impacto entre os setores mais conservadores da época – em
especial a Igreja Católica.
Uma vez exposta a concepção lobatiana de infância, cumpre adentrar suas
declarações acerca das especificidades do texto artístico infanto-juvenil. Antes, porém,
cabe observar o que se pensa atualmente sobre esta temática.
Segundo Cadermatori (1986), Coelho (2000) e Zilberman (2005), um dos principais
traços da literatura infanto-juvenil reside no fato de se preconizar o jovem leitor como o
principal foco do processo de recepção. A prosa é arquitetada a partir de uma
configuração adequada às expectativas dos garotos, garantindo-lhes a adesão.
Absolutamente consciente da relevância dessa premissa e atento aos textos
utilitaristas que predominam em sua época, o romancista, quase setenta anos antes do
pronunciamento de Cadermatori, já visualizava o pequeno leitor como grande
protagonista de sua obra. Em torno disso, chega a criar uma cena em Reinações de
Narizinho (1931) em que o fabulista Jean de La Fontaine confessava a Lúcia e a
Pedrinho que só o interessava os comentários das crianças sobre suas narrativas, e não
os dos adultos, austeros representantes da crítica francesa do século XVII, que não
avaliavam, de modo positivo, seus escritos:

-Não faça caso! – Gritou Emília. Eles não sabem o que dizem.
Pedrinho quando diz uma coisa é por que é. Pode acreditar nele.
-Obrigado pelo consolo, bonequinha. Tua opinião e a de Pedrinho
valem muito para mim, por que em ambas vejo grande necessidade
(LOBATO, 1931, 138, grifos nossos).

Nessa perspectiva, Lobato demonstrava absoluta preocupação com a recepção no


processo de construção do texto. A narrativa não deveria fascinar apenas interlocutores
mais amadurecidos, mas, sobretudo, a própria criança. Por isso, em uma informal
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conversa com Godofredo Rangel, recomenda a ele que, antes de publicar qualquer conto
nessa área, submetesse-o à avaliação de alguns garotos, cujo “veredicto” seria
fundamental para determinar o destino da obra. Essa era, inclusive, uma prática adotada
pelo autor ao projetar o lançamento de seus livros no competitivo mercado nacional.
Além disso, Lobato defendia o texto infanto-juvenil como um peculiar gênero
literário, uma produção revestida de artisticidade. Tal posicionamento, nas primeiras
décadas do século XX, repercutiu em considerável polêmica, uma vez que, tanto para a
crítica local quanto para a maior parte dos reconhecidos escritores brasileiros, a
literatura para crianças, que lentamente se projetava, não era definida como objeto
estético, mas simples material pedagógico.
Atento a esse preconceito, que se estenderia pelos decênios seguintes, o autor, em
Histórias Diversas (1947), consagra Visconde de Sabugosa como literato e o conduz à
Academia Brasileira de Letras para a cerimônia de posse. Sua eleição mostrava-se
excessivamente tumultuada, já que os ilustres membros da Academia o desconheciam.
Nesse sentido, o registro denuncia e satiriza a pouca atenção dispensada pelos
intelectuais do período para a ficção infanto-juvenil nacional, em contraste com a
apreciação positiva que endereçavam à literatura sem o adjetivo.
Havendo o Visconde de Sabugosa entrado para a Academia Brasileira
de Letras, Dona Benta fez questão de ir ao Rio, com todo o pessoal do
sítio, a fim de assistir à cerimônia de posse. A eleição do Visconde
ocorrera muito barulhenta graças à imposição dos imortais que não
tinham em casa filhos crianças e, portanto, ignoravam quem fosse o
tal “sabugo científico” (LOBATO, 1947, p. 86, grifos nossos).

Outro ponto pertinente para Lobato é de que o texto não deveria se fixar no anseio de
auxiliar a criança a se inserir na realidade adulta, transmitindo-lhe preceitos morais, mas
permitir com que ela evadisse da vida cotidiana, transferindo-se a um universo interno
às malhas textuais.
Nesse sentido, o escritor procurava minimizar a grande assimetria que era inevitável
na literatura infanto-juvenil, ou seja, o fato de ser escrita e comercializada por adultos,
mas consumida pela criança. Para isso, Lobato propõe a ruptura da rigidez gramatical,
da linguagem hermética, lançando livros que pudessem ser absorvidos como se o leitor
estivesse ouvindo a história em um contexto informal.
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A fórmula de Lobato conquistou êxito imediato no mercado editorial. As evidências


disso se encontram não apenas nas sucessivas edições de cada obra, mas no conjunto de
correspondências assinadas pelos pequenos leitores, muitas das quais agrupadas em
Cartas Escolhidas (1948).
Em outras situações, Lobato sugere transformar o leitor em personagem,
possibilitando com que este perambulasse pelas terras de D. Benta: “Este mês tenho que
escrever mais dois livros para serem publicados aí e vou botar num deles o meu amigo
íntimo. Vou fazer o amigo íntimo aparecer na casa de Narizinho e passar uma tarde
inteira brincando com ela e o Rabicó” (LOBATO, 1948, p.274)
Ademais, o autor também se mostra atencioso mediante as sugestões de novas
historietas oferecidas pela clientela. Nessa direção, preza pelas idéias das crianças, sem
intervenções dos adultos, como se revela no registro logo abaixo extraído de uma
missiva de 1929:
Faço questão de receber outras cartas do amigo íntimo, dando-me
idéias para os meus livros, mas cartas inteirinhas escritas por ele, sem
que papai nem mamãe metam o bedelho ou consertem as idéias do
amigo. Os amigos íntimos dizem tudo o que pensam e não pedem
opinião para ninguém (LOBATO, 1948, p. 275, grifos nossos).

Tendo em vista o que foi explorado, ratifica-se que, para Lobato, o texto infanto-
juvenil constitui uma especial modalidade da literatura e, por conseguinte, um objeto
cultural altamente artístico. Sua especificidade deve-se ao fato de se dirigir a um
destinatário ainda jovem, projetando-o na escritura como um leitor implícito.

3- Um olhar feminino: Ana Maria Machado

Ana Maria Machado teve a infância marcada pelo efetivo contato com os títulos de
Monteiro Lobato – fato, inclusive, decisivo na consolidação de sua carreira. Assim,
consagrando-se com um estilo incomum e na condição de seguidora da proposta
lobatiana, chegou a ser indicada ao júri que integra o International Board on Books
Yang People (IBBY), recebendo, em 2000, o prêmio H. C. Andersen pelo conjunto de
sua obra.
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Revisitando sua obra, Lajolo (1995) apregoa que em vários pontos a trajetória da
autora em questão se cruza com a percorrida por Lobato nos anos 20, 30 e 40. Entre os
pontos que merecem destaque, a pesquisadora observa a “modernização do texto, a
coloquialização da linguagem, o arejamento das mensagens, a concepção de criança
leitora como inteligente e inventiva, além de uma atitude radicalmente crítica da
realidade brasileira” (p.73).
Tendo em vista essas relações, é prudente ainda salientar que a própria autora assume
abertamente seu vínculo com Lobato. É o que explicita tanto nos depoimentos contidos
na publicação Ana e Ruth: 25 anos de literatura, quanto na seqüência de artigos
enfeixados no livro Contracorrente: conversas sobre leitura e política. Aqui, Machado,
examinando o percurso histórico da literatura infanto-juvenil brasileira, sublinha a
contribuição de Monteiro Lobato no processo de construção, consolidação e legitimação
da literatura para crianças e jovens como gênero.
Tendo em vista essas relações, é prudente ainda salientar que a própria autora assume
abertamente seu vínculo com Lobato. É o que explicita tanto nos depoimentos contidos
na publicação Ana & Ruth: 25 anos de literatura (1995), quanto na sequência de artigos
enfeixados no livro Contracorrente: conversas sobre leitura e política (1999). Aqui,
Machado, examinando o percurso histórico da literatura infanto-juvenil brasileira,
sublinha a contribuição de Monteiro Lobato no processo de constituição, consolidação e
legitimação da literatura para crianças e jovens como gênero.
Situando-se em um período histórico diferente do vivenciado por Lobato, a escritora
acompanha as múltiplas transformações no campo da teoria literária, os novos
paradigmas sustentados pela crítica nacional e as mais recentes vertentes na esfera
pedagógica. O texto estético, agora, passa a ser visto como equacionado em seus
aspectos sociais e ideológicos, passível ao diálogo com outros textos, pleno de lacunas a
serem preenchidas pelo leitor no processo de interação.
A concepção de criança, sustentada no início do século XX pelo aporte de Rousseau,
ganha novos contornos ante as contribuições do cognitivismo piagetiano e da pedagogia
histórico-crítica.
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Imersa nesse novo contexto, Machado define a literatura infanto-juvenil não como
aquela que será lida exclusivamente pelo público em questão, mas também por esses
leitores – o que confere ao termo absoluta amplitude.
A gramática ensina que os adjetivos podem ser explicativos ou
restritivos. No primeiro caso, referem-se a uma qualidade essencial do
ser. No segundo, a uma qualidade acidental. No entanto, se
considerarmos o sintagma literatura infantil, essa classificação cai por
terra. Evidentemente, não se trata de uma qualidade essencial da
literatura, há toda uma literatura que não é infantil. E apesar disso,
paradoxalmente, não se pode dizer que nesse caso o adjetivo tem um
papel restritivo. A rigor, ele não restringe o sentido do substantivo. Ao
contrário, o amplia. Literatura infantil é aquela que pode ser lida
também pelas crianças (MACHADO, 1995, p. 57).

Sobre essa questão, Pereira (2004), em um instigante artigo sobre a produção de


Machado, chama a atenção para a defesa da escritora direcionada aos textos infanto-
juvenis de qualidade – o que rompe com o preconceito que ainda impera entre aqueles
que julgam tal produção como textos menores.
Ante esse depoimento, a autora, mais uma vez dialogando com a poética de Lobato,
apregoa o papel político do escritor, incorporando as preocupações de seu tempo na
matéria textual:

Sabemos, com Lobato, que o faz-de-conta é um dado da realidade tão


concreto quanto outros aspectos mais tangíveis. E sabíamos isso desde
pequenos, antes de incorporarmos qualquer leitura ou vivência
psicanalítica posterior. Mas também sabemos, com Lobato, que os
problemas políticos, econômicos e sociais do mundo em que vivemos
não são cortados do universo infantil. Ele discutiu a campanha pelo
petróleo, a guerra mundial e outras questões do seu tempo.
Trazemos nossas preocupações contemporâneas para dentro do que
escrevemos. Mas sabemos que a fantasia é uma linguagem
simbólica para expressar e não deve nunca ser transformada em algo
alienante, escapista e redutor de potencialidades humanas
(MACHADO, 1995, p.51).

Em última análise, vale afirmar que Ana Maria Machado, bem como parte
significativa dos escritores consagrados que integram o mercado editorial
contemporâneo (cabendo aqui uma longa lista que agrega Ziraldo, Ruth Rocha,
Fernanda Lopes de Almeida e Lygia Bojunga Nunes, entre outros), teve na infância
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amplo contato com os livros de Lobato. Esse dado pode ser paralelamente ilustrado com
a assertiva de que não existia competição entre os meios de comunicação de massa do
passado. Segundo Penteado (1999), pelo fato de não haver TV ou facilidades para ir ao
cinema, bem como revistas em quadrinhos e outros textos literários do mesmo porte da
série O Sítio do Picapau Amarelo, particularizava-se a saga dos netos de D. Benta como
relevante mídia entre os anos 20 e 50. Nesse sentido, o citado grupo de autores se
inscreve em uma geração que, mais tarde, Penteado referir-se-ia como filhos de Lobato,
e que Coelho (1995), não obstante, rotularia como pós-lobatianos.

Considerações finais:

O presente estudo, envolvendo o discurso de três escritores brasileiros, buscou


problematizar os conceitos de literatura infanto-juvenil difundidos ao longo do século
XX. Em princípio, explorou a retórica de Olavo Bilac, calcada em um posicionamento
ainda tradicional perante a veiculação de livros para leitores em formação. Monteiro
Lobato, contrariando essa postura, evidenciou um novo enfoque frente o lançamento de
textos para crianças. As narrativas, nessa perspectiva, perderiam a conduta moralizante
e atenderiam ao princípio de deleitar o destinatário. Tributária do ideário lobatiano, Ana
Maria Machado chama a atenção para o alocutário da literatura em questão, ou seja,
parte do pressuposto de que o que caracterizava a literatura como infantil estava no fato
de que poderia ser lida também por crianças e adolescentes.
Os contextos histórico-sociais em que se encontram os três abordados ficcionistas
possivelmente justifiquem os posicionamentos detectados: Bilac, imerso nos ditames da
República até então instaurada, lança mão de um “tratado” bastante conservador,
nacionalista e calcado em um projeto educacional de ordem positivista. Lobato, por sua
vez, mergulharia na literatura infanto-juvenil européia que o precede e se filiaria ao
movimento da Escola Nova nos anos 30. Por conta disso, emite um parecer endereçado
à hipervalorização da criança. Ademais, cria uma literatura permeada de intertextos,
humor e aventura. Machado, consequentemente, expõe suas reflexões em harmonia com
as convicções de Lobato. Em outro pólo, por estar na condição de professora
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universitária, demonstra em suas declarações plena sintonia com as diretrizes da


pedagogia moderna e as mais recentes teorias do texto e da linguagem.

Referências

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Ouro, 1972 [primeira edição em 1911].
BILAC, Olavo Poesias infantis. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1957
[primeira edição em 1904].
CADERMATORI, Lígia. O que é Literatura Infantil. São Paulo: Brasiliense, 1986.

COELHO, Nelly Novaes. Panorama Histórico da Literatura Infantil/ Juvenil: das


origens indoeuropéias ao Brasil contemporâneo. São Paulo: Summus Editorial, 1995.

_______. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Ed. Moderna, 2000.

LAJOLO, Marisa .& ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira: História e


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LAJOLO, Marisa. Ana Monteiro & Ruth Lobato ou vice-versa? In: BASTOS, Dau Ana
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LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho São Paulo: Ed. Brasiliense, 1972


[primeira edição em 1921].

______ O Saci São Paulo: Brasiliense, 1972 [primeira edição em 1921].

______. Histórias Diversas. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1972 [primeira edição em
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______. Conferências, Artigos e Crônicas. São Paulo: Brasiliense, 1972 [primeira


edição em 1948].

______. Cartas Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1961 [primeira edição em 1948].
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MACHADO, Ana Maria Leitura Infantil In: BASTOS, Dau Ana & Ruth: 25 anos de
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MACHADO, Ana Maria A expansão da literatura infantil In: BASTOS, Dau Ana &
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PENTEADO, José. Os filhos de Lobato: o imaginário infantil na ideologia do adulto.
Rio de Janeiro: Qualitymark / Dunya, 1997.
PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves (Re) criando e (Com) partilhando a palavra:
considerações sobre a linguagem de Ana Maria Machado. In: PEREIRA, Maria Teresa
Gonçalves, ANTUNES, Benedito. Trança de Histórias: a criação literária de Ana Maria
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ZILBERMAN, Regina. Como e por que Ler a Literatura Infantil Brasileira. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2005.
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O STATUS DA MULHER DIASPÓRICA BANGLADESHIANA EM BRICK


LANE (2003), DE MONICA ALI

Francieli Aparecida Muniz Nagib (PG-UEM)

Introdução

Com o fim da II Guerra Mundial, da colonização da África, Ásia e do Caribe e com o


fim da Guerra Fria, observou-se uma grande dispersão de povos de seus países de
origem para os países industrializados e de tradição democrática. Apesar da
independência, muitos países enfrentam problemas típicos do período colonial, como o
subdesenvolvimento e a marginalização. Os colonizadores os deixaram economica e
militarmente frágeis, e a sociedade civil não foi desenvolvida, acoplado à condição de
pobreza, de analfabetismo e de falta de emprego e oportunidades. Diante dessas
adversidades, inúmeras pessoas deixam sua terra natal e vão em busca de melhores
condições de vida nos países europeus. Todavia, o término da colonização não
significou o fim do preconceito. Os sujeitos diaspóricos ao chegarem às metrópoles
deparam-se com todos os processos de exclusão social, enfrentando trabalho informal,
baixa remuneração, péssimas condições de moradia, além de serem estereotipados como
seres inferiores.
No âmbito literário, muitos autores que configuram a literatura negra britânica têm
representado essa dispersão de povos oriundos das ex-colônias para as grandes cidades
europeias e o tipo de tratamento que eles têm na sociedade hegemônica branca, como
Monica Ali em Brick Lane. O romance, publicado em 2003, retrata a história de
Nazneen, uma bangladeshiana muçulmana que vive com o marido e duas filhas em
Londres, tornando-se um dos milhares de imigrantes orientais que deixam seus países
de origem e vão para a Inglaterra, tentando libertar-se das regras que lhes são impostas e
construir o seu próprio mundo.
O presente trabalho tem por objetivo analisar o status da mulher diaspórica
bangladeshiana representado no romance Brick Lane (2003), enfatizando como a
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personagem Nazneen negocia seu espaço no contexto hegemônico branco na busca de


sua firmação como sujeito. Questionamos, dessa forma, qual é a condição social da
mulher diaspórica bangladeshiana no contexto hegemônico londrino? Como Nazneen se
posiciona frente à ideologia patriarcal bangladeshiana e a nova cultura? Como ela
negocia seu espaço na conflituosa comunidade londrina? A opção por estudar a referida
obra justifica-se pelo fato de que nela encontramos material adequado para discutir e
ponderar sobre a diáspora contemporânea, o multiculturalismo, como também a
identidade diaspórica, dentro da perspectiva do pós-colonialismo e suas acepções.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica fundamentada em conceitos referentes à
diáspora e ao multiculturalismo, tendo como referencial teórico Hall (2003), Brah
(2002), Gilroy (2006), entre outros. Assim, associadas teoria e obra, definiu-se o corpus
para reflexão e argumentação sobre o objetivo proposto.
Monica Ali nasceu em 1967, em Daca, Bangladesh, e foi criada na Inglaterra. Antes
mesmo de sua publicação oficial, Brick Lane já havia concedido à escritora o mérito de
ocupar um lugar no Granta, como uma das melhores jovens romancistas britânicas de
2003. Filha de pai bengalês e mãe inglesa, Monica Ali foi para Inglaterra aos três anos,
onde estudou filosofia, política e economia. Em 2004, seu romance de estreia foi
indicado para o Booker Prize. Hoje, a autora vive em Londres com o marido e dois
filhos.

1. Diáspora e Multiculturalismo

A literatura pós-colonial delineia uma estética que oferece ao crítico literário e ao


estudioso de literatura parâmetros coesos para analisar os textos literários de escritores
da metrópole e das ex-colônias. A conscientização de nacionalismo dos povos
oprimidos pelo imperialismo europeu origina o espírito de rejeição ao poder do
colonizador e desperta para outras visões de mundo, transcritas por essa literatura.
Para o desenvolvimento da análise de Brick Lane nessa proposta, alguns termos e
teorias são abordados, dentro da concepção de literatura pós-colonial, com a finalidade
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de esclarecer seus conceitos e significados, além de estabelecer os parâmetros


pertinentes ao objetivo almejado.

1.1. Diáspora
O termo diáspora (do grego diasporein: semear) refere-se à dispersão de povos de
seus países de origem para outras regiões do mundo (ASHCROFT, 1998), constituindo
em um trauma coletivo de um povo que voluntária ou involuntariamente foi exilado da
sua terra e, vivendo em um lugar estranho, sente-se deslocado de sua cultura e de seu
lar.
A palavra diáspora frequentemente invoca a imagem de dispersão forçada,
separação, exílio, traumas, como ocorreu na escravidão. Em contrapartida, na diáspora
contemporânea o termo pode assumir uma conotação positiva, uma vez que o
deslocamento é caracterizado por situações que não são nem traumáticas e nem
associadas com desastres. (REIS, 2004). A busca por emprego e de oportunidade de
estudo, facilitados pela globalização, são razões suficientes para estimular o processo
diaspórico no contexto contemporâneo.
Reis (2004) aponta três períodos principais no processo diaspórico pelo mundo: (1)
O Período Clássico – envolve não apenas a diáspora judaica, mas a dispersão dos gregos
(de onde se origina o termo) na colonização da Ásia Menor (Oriente Médio) e da região
do Mediterrâneo no período de 800-600 a.C. (2) O Período Moderno – inclui os Mouros
na Espanha, assim como os Ciganos no início do século XIV. Também registra-se um
modelo diaspórico, dentro do colonialismo, que envolve o próprio colonizador, que nos
séculos XV, XVI e XVII, deixou sua terra natal e foi para terras estrangeiras estabelecer
suas colônias de exploração capitalista. Durante esse período muitos nativos foram
dizimados, principalmente nas Américas, o que resultou na necessidade de reposição de
trabalhadores nas colônias, desencadeando assim, o tráfico de escravos da África. Esses
povos eram forçados a deixar seus países para trabalhar em terras estrangeiras em
péssimas condições de sobrevivência. (3) A Diáspora Contemporânea – período que
iniciou em 1945 com o fim da II Guerra Mundial e estende-se até o presente.
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Após a II Guerra Mundial, a descolonização da África, da Ásia e do Caribe (anos de


1960-1970) e, com o fim da Guerra Fria (anos 1990), observou-se o deslocamento de
refugiados e de despatriados para outros países em busca de melhores condições de
vida. Segundo Ashcroft (1998), um dos movimentos mais recentes e mais significantes
socialmente é a volta dos povos colonizados para os centros metropolitanos, seja por
trabalho, em busca de melhores oportunidades de empregos, seja como oportunidade de
estudar e adquirir cultura. Esse processo diaspórico mostra-se muito mais complexo,
diverso e global, envolvendo muito mais povos do que anteriormente, além do fato de
que a dispersão tem sido voluntária, diminuindo o trauma de abandono da terra natal.
Este período é caracterizado pelo deslocamento e pela fragmentação, enquanto a
diáspora Clássica estava diretamente relacionada com o exílio, como no caso dos
judeus, palestinos e africanos. A diáspora contemporânea e a globalização podem ser
consideradas processos complementares, sendo que a segunda teve um papel decisivo
na fase atual da primeira. Com a revolução tecnológica, a globalização facilitou o
movimento diaspórico, permitindo que os imigrantes mantenham contato com sua terra.
Esse sujeito diaspórico contemporâneo, no entanto, convive com uma profunda
incerteza, pois se ele voltar à sua terra de origem, essa não será a mesma, devido às
inúmeras transformações que sofrera. Por outro lado, obrigado a ambientar-se em uma
sociedade estrangeira, ele se condiciona a viver uma nova realidade, interagindo com
culturas e línguas díspares. De modo geral, os imigrantes, principalmente oriundo de ex-
colônias, são estereotipados e marginalizados pela metrópole. Eles enfrentam grandes
dificuldades de sobrevivência, tais como, “condições de moradia precárias e empregos
mal remunerados. [...] A maioria se concentra na extremidade inferior do espectro social
de privação, caracterizada por altos níveis de pobreza, desemprego e insucesso
educacional”. (HALL, 2003, p.64).
Outro fator que atinge diretamente os imigrantes é a indeterminação de sua
identidade. Os sujeitos diaspórico retêm fortes vínculos com sua terra de origem e sua
cultura, ao mesmo tempo em que são obrigados a negociar com a nova cultura em que
vivem, sem simplesmente ser assimilado por ela e sem perder completamente a sua
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identidade. Eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas
linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. (HALL, 2006, p.89).
Nesse sentido, podemos perceber que a diáspora não se limita ao fato histórico de
mudanças de pessoas de um lugar para o outro, mas, a partir de seu aspecto funcional de
relações de poder, inserem-se em seu contexto contemporâneo grandes problemas como
relações de classe e racismo, provocados pelas diferenças de raça e cultura, que as
estratégias políticas multiculturais tentam contornar.

1.2. Multiculturalismo

Como conseqüência do processo diaspórico surge o termo multiculturalismo, que


refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar os problemas da diversidade
cultural provenientes das sociedades diaspóricas, questionando o tipo de tratamento que
os imigrantes tiveram e ainda tem nas democracias tradicionais.
Com o fim da II Guerra Mundial e do colonialismo, com a divisão da União
Soviética e a construção da Comunidade Europeia, o multiculturalismo surgiu como um
conjunto de políticas, que tem como objetivo acomodar os imigrantes não brancos e de
minorias étnicas, ou seja, uma proposta para contornar o preconceito e a discriminação
que essas sociedades estão frequentemente expostas. Trata-se, portanto, de um discurso
político, uma vez que, compreende a diáspora contemporânea, a convivência entre os
imigrantes e a população antes estabelecida, problemas de populações minoritárias e
hegemonia cultural, além dos problemas de ‘raça’, cultura e classe.
Cabe a crítica analisar como se estabelece a relação entre as culturas de ‘minorias’ e
a cultura dominante, principalmente quando as minoritárias são procedentes de
populações das antigas colônias as quais tiveram suas culturas profundamente
transformadas pelo regime imperial. Em contextos dominantes essas minorias étnicas
são estereotipadas através dos termos ‘raça’, ‘etnicidade’ e ‘indigeneidade’, além de
várias outras formas de objetificação operadas pelos ‘brancos’. Assim, com frequência,
o multiculturalismo é visto como uma forma de ocultar essas diferenças racializadas,
requerido por uma política de tolerância.
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Enquanto Hall (2003) o considera uma estratégia política racista, Gilroy (2006)
defende o multiculturalismo como a solução para os países hegemônicos enfrentarem o
seu passado colonial. Ele propõe um outro termo para designar o multiculturalismo, o
que chama de “convivialidade”. Para Gilroy (2006), este conceito

não descreve a ausência do racismo ou o triunfo da tolerância. O


termo sugere um ambiente diferente para seus rituais vazios e
interpessoais. A convivialidade começou a significar outra coisa
quando da ausência de uma forte crença em raças absolutas ou
integrais. (...) Ela introduz uma certa distância do termo essencial
“identidade”, a qual tem sido uma fonte ambígua para analisar raça,
etnicidade e política. A abertura radical que torna a convivialidade
algo interessante ridiculariza a identidade fechada, fixa e coisificada e
focaliza os mecanismos sempre imprevisíveis da identificação
(GILROY, 2006, p. XI).

Apesar da visão positiva de Gilroy (2006) acerca do multiculturalismo, o conceito


pode levar as culturas minoritárias a assimilar a cultura dominante, caracterizando-o
apenas como uma política para evitar injustiças e desigualdades, ocorrendo, porém, um
afastamento, senão a perda de suas culturas e identidades.
Diante dessa conjuntura, podemos observar que são diversas as opiniões acerca do
multiculturalismo. Torna-se evidente que com freqüência o termo está vinculado à
diferença racionalizada e à tentativa de identificação à cultura hegemônica. Contudo, ele
também é utilizado pelas minorias étnicas e culturais como uma estratégia para
combater essa política, governada pelas sociedades dominantes. Apesar de o
multiculturalismo ser um termo com várias facetas semânticas, ele representa uma
importante política de recusa às práticas dominantes de exclusão e objetificação.

2. A mulher diaspórica bangladeshiana no contexto hegemônico londrino

O romance Brick Lane, de Monica Ali, apresenta a comunidade bangladeshiana em


Londres, na qual interagem pessoas diaspóricas nascidas em Bangladesh, e jovens
britânicos de origem bangladeshiana. A obra retrata também a trajetória de Nazneen,
uma jovem muçulmana de dezoito anos que foi dada, em um casamento arranjado, a
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Chanu, um homem medíocre, enfadonho, pseudo-intelectual e muito mais velho que sua
noiva. Após o casamento, eles vão para a Inglaterra, tornando-se um dos milhares de
imigrantes orientais que vivem em Londres em busca de melhores condições de vida.
Entretanto, esses imigrantes ao chegarem à Inglaterra encontram um contexto muito
diferente do que eles imaginavam, passando por todos os processos de exclusão social e
sofrendo as desvantagens que o racismo lhes impõe. A maioria do povo britânico olhava
esses “filhos do Império” como se não pudessem sequer imaginar de onde “eles”
vinham, por que ou que outra relação eles poderiam ter com a Inglaterra. (HALL, 2003).
Alguns imigrantes, apesar de altamente qualificados, como Chanu na obra em análise,
enfrentam o que Hall (2003) designa de “teto de vidro”, ou seja, o bloqueio à promoção
nos níveis superiores da carreira profissional:

- Quando vim para cá, eu era jovem. Tinha ambições. Grandes


sonhos. Quando saltei do avião, eu tinha o meu diploma na mala e
umas poucas libras no bolso. Achei que haveria um tapete vermelho
estendido para mim. Eu ia entrar para o serviço público e me tornar
secretario particular do primeiro-ministro. [...] Esse era o meu plano.
E então vi que as coisas eram um pouco diferentes. As pessoas aqui
não sabiam a diferença que havia entre mim, que havia saltado do
avião com um diploma e os camponeses que fugiam dos navios
trazendo apenas os piolhos que tinham na cabeça. [...] Eu fiz de tudo.
O que conseguia arranjar. Muito trabalho pesado, de baixa
remuneração. [...] E fiz duas promessas para mim mesmo. Vou ser
bem sucedido custe o que custar. Esta é a promessa número um.
Número dois, vou voltar par a minha terra. Quando for um sucesso.
(ALI, 2004, p.31-32).

Mesmo com todos os seus certificados e seu conhecimento, Chanu nunca conseguiu
a promoção que tanto almejava, atribuindo seu fracasso profissional ao racismo e ao
preconceito da sociedade britânica que julga como inferior os ‘outros’:

Meu marido diz que eles são racistas, principalmente o sr. Dalloway.
Ele acha que vai conseguir a promoção, mas que vai levar mais
tempo do que qualquer homem branco para consegui-la. Ele diz que
se pintasse a pele de branco e rosa, aí não haveria problema. [...].
(ALI, 2004, p.68).
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Para a mulher diaspórica torna-se ainda mais difícil esse espaço no ambiente cultural
dominante, especialmente por ser subjugada pelo gênero e pelos ditames patriarcais. Ao
chegar à Inglaterra, Nazneen é confinada em um pequeno apartamento numa
comunidade reclusa e invisível para o restante da sociedade inglesa. Ao invés de
conhecer as possibilidades ofertadas pelo novo país, ela acaba por ser vítima do
patriarcalismo de sua antiga nação, sendo obrigada a seguir as tradições impostas pela
cultura bangladeshiana. A vida de Nazneen é projetada para ser semelhante à de muitas
mulheres diaspóricas muçulmana: cuidar das tarefas domésticas, do marido, dos filhos:
“[...] Nazneen limpava e cozinhava e lavava. Ela preparava o café de Chanu e o servia
enquanto ele comia, juntava suas canetas e guardava-as em sua pasta. [...] Ela fazia a
cama e arrumava o apartamento [...]”. (ALI, 2004, p.37).
Chanu exercia sobre sua esposa uma força silenciosa que tinha como propósito
oprimi-la e desencorajá-la a exercer qualquer atividade social, como ir à rua, fazer
amizades, estudar inglês. Quando ela pedia para sair Chanu sempre a repreendia
dizendo: “Por que você deveria sair? Se você sair, dez pessoas irão dizer, ´Eu a vi
andando na rua´. E eu vou fazer papel de bobo. Pessoalmente, eu não me importo que
você saia, mas este pessoal é muito ignorante. O que se pode fazer?”. (ALI, 2004, p.42).
Submissa a autoridade do marido, Nazneen não o questionava e aceitava tudo
passivamente, sempre pensando nas palavras de sua mãe: “Se Deus quisesse que nós
fizéssemos perguntas, ele nos teria feito homens”. (ALI, 2004, p.76). Sua única
distração, deste modo, era assistir a patinação no gelo pela televisão, algo que mexia
profundamente com seu íntimo, e visitar a sua vizinha Razia, uma bangladeshiana que
busca ocupar seu espaço no contexto britânico hegemônico.
Ao contrário de Nazneen, Razia assimila rapidamente a cultura ocidental,
apropriando-se da língua do país colonizador, cortando os cabelos, trocando o sári por
vestimentas ocidentais e começando a trabalhar como costureira em uma fábrica. A
personagem expressa sua identificação à nova cultura, vestindo-se com um casaco de
moletom com uma grande bandeira da Inglaterra na frente e declarando: “Cidadã
Britânica”. (ALI, 2004, p.217). Contudo, após o fatídico 11 de setembro de 2001, Razia
sente-se perseguida pela Inglaterra ‘supostamente’ materna e multicultural: “[...] Razia
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usou a sua blusa com a bandeira da Inglaterra e cuspiram nela [...]”. (ALI, 2004, p.350).
Tal atitude simboliza o poder e a hierarquização da sociedade britânica sobre os
imigrantes, estando longe de ser ideologicamente multicultural, uma vez que não admite
a inclusão de pessoas de diferentes culturas e exclui radicalmente os indivíduos
diaspóricos que não fazem parte de sua etnicidade.
Diante do exposto, podemos observar duas mulheres diaspóricas que são oprimidas e
subjugadas pelo gênero e pela sociedade em que vivem. Enquanto Nazneen é obrigada a
submeter-se aos ditames patriarcais de sua tradição ancestral, Razia, apesar de assimilar
a nova cultura, é excluída e outremizada pela sociedade inglesa, reiterando a idéia de
que o sujeito diaspórico só é sujeito dentro de sua comunidade, pois fora dela, ele é o
‘outro’.

3. A negociação no ambiente multicultural

Segundo Hall (2006), os sujeitos diaspóricos contemporâneos são obrigados a


negociar com as novas culturas em que vivem, aprendendo a habitar, no mínimo, duas
identidades, a falar duas linguagens culturais. Nesse sentido, Nazneen frente aos
fracassos sofridos por Chanu, especialmente o desemprego, faz com que ela, deixando
de lado o trabalho associado à função biológica feminina, recusasse a manter-se dentro
dos limites prescritos pelo patriarcalismo e buscasse melhores oportunidades
econômicas para ela e para sua família através de seu trabalho como costureira.
Através de seu novo ofício, Nazneen conhece Karim, um jovem britânico de origem
bangladeshiana, que desperta na personagem o desejo, a sexualidade e uma visão de um
ambiente em que a mulher, descartando toda a ‘opressão’, se sente sujeito:

Ele a beijou na boca e levou-a para o quarto. Tire a roupa, ele disse, e
deite-se na cama. Ele saiu do quarto. Ela vestiu a camisola e se deitou
debaixo dos lençóis. Pela janela, ela contemplou um pedaço de céu
azul e uma faixa branca de nuvem. Ela puxou o lençol até o pescoço
e fechou os olhos. O que ela queria fazer era dormir. Ela estava com
febre e seu corpo estava tremendo. Ela enfiou o rosto no travesseiro e
gemeu e quando ele beijou sua nuca ela tornou a gemer (ALI, 2004,
p.274).
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Privilegiando um romance extraconjugal à fé islâmica e o casamento e a


maternidade ao desejo, Nazneen entra em uma profunda crise entre a objetificação e a
emancipação feminina:

No quarto tudo mudava. As coisas se tornavam mais reais e menos


reais. Como um sufi em transe, um daroês rodopiante, ela perdia o fio
de uma existência e encontrava outra. (...) Fora do quarto, ela ficava –
em sobressalto – temerosa e audaciosa. Se alguma vez sua vida
esteve fora de suas mãos, foi agora. Ela tinha se submetido ao pai e se
casado com o marido; ela tinha se submetido ao marido. E agora ela
se entregava a um poder maior do que eles dois, e se sentia impotente
diante dele. Quando se infiltrou em seu cérebro a ideia de que o poder
estava dentro dela, que ela o havia criado, ela a abandonou como
sendo uma presunção. Como uma mulher tão fraca poderia liberar
uma força tão grande? [...]. (ALI, 2004, p.285).

Assim, seguindo os passos de Karim e de suas filhas para os quais a Inglaterra é sua
terra e adquirindo algumas características liberais da cultura ocidental, ela recusa-se a
voltar para Bangladesh com Chanu e renega seu romance com Karim, negociando sua
estada na Inglaterra junto com suas duas filhas, porém, sem deixar completamente sua
cultura e sua individualidade.
Repelindo a vida passada e assimilando alguns aspectos da cultura britânica, por
mais problemático que isso possa ser, Nazneen juntamente com Razia iniciam suas
vidas como mulheres agentes e negociam seu espaço em um ambiente multicultural:

Razia é que tinha arranjado tudo. Ela entrou na Fusion Fashions,


audaciosa como um mainá, e pediu trabalho. Ela largou a fábrica
clandestina. Subiu no ônibus e foi para terras distantes: Tooting,
Ealing, Southall, Wembley. Voltou com pedidos, retalhos, amostras,
contas, rendas, plumas, couro, imitação de pele, emborrachado e
cristais” (ALI, 2004, p. 459).

Razia monta sua própria facção de costura, tornando-se empresária e Nazneen


trabalha com ela, tentando romper as barreiras que as separam das oportunidades
ofertadas pelo país promissor.
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Conclusão

Como se pode constatar por meio do breve estudo que acabamos de desenvolver, é
possibilitado ao leitor analisar o status da mulher diaspórica bangladeshiana no contexto
hegemônico londrino, através das personagens Nazneen e Razia.
Nazneen, a bangladeshiana fiel à sua cultura islâmica, transgride as fronteiras
impostas pelo gênero, renega seu casamento com Chanu e negocia seu espaço na
conflituosa comunidade londrina. Razia demonstra de forma enfática a sua assimilação
à cultura britânica. Mesmo sendo discriminada em diversos momentos da narrativa, ela
luta para romper as barreiras impostas pelo país em que vive e ter melhores
oportunidades econômicas, montando sua própria facção.
Nesse sentido, se cada personagem feminina preserva um pouco de sua cultura
ancestral, não deixam também de negociar com uma sociedade ‘homogênea’ branca
caracterizada por ‘olhos hostis’ frente à invasão de suas fronteiras.

Referências

ALI, Monica. Brick Lane. London: Doubleday, 2003.


ALI, Monica. Um lugar chamado Brick Lane. Tradução de Lea Viveiros de Castro. Rio
de Janeiro: Rocco, 2004.
ASHCROFT, B. et al. Key Concepts in Post-Colonial Studies. London: Routledge,
1998.
BONNICI, T. Conceitos-chave da Teoria Pós-Colonial. Eduem: Maringá, 2005.
BRAH, A. Diaspora, border and trasnational identities. In: BRAH, A. Cartographies
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COHEN, R. Global diásporas: an introduction. London: UCL Press, 1997.
GILROY, Paul. After empire: melancholia or convivial culture? London: Routledge,
2006.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG,
2003.
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A


Editora, 2006.
SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2008.
SEMPRINI, A. Multiculturalismo. Bauru: Edusc, 1999.
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A “ESPOSA-PEDRA” E SUA TENTATIVA DE EMANCIPAÇÃO EM “ELA


ERA SUA TAREFA”, DE MARINA COLASANTI

Frederico Helou Doca de Andrade 1 (PG-FCL-UNESP)

Introdução

O riso pode ser alegre ou triste, bom e indignado, inteligente e tolo,


soberbo e cordial, indulgente e insinuante, depreciativo e tímido,
amigável e hostil, irônico e sincero, sarcástico e ingênuo, terno e
grosseiro, significativo e gratuito, triunfante e justificativo,
despudorado e embaraçado. Pode-se ainda aumentar esta lista:
divertido, melancólico, nervoso, histérico, gozador, fisiológico,
animalesco. Pode ser até um riso tétrico! (JURENEV, 1964, p. 41, 8
apud PROPP, 1992, p. 27-28).

Os tipos de riso são tão variados, possuem tantos aspectos que cabe ao leitor /
decodificador da obra de arte (literatura, música, pintura, escultura, enfim, todas as
manifestações da expressividade do ethos humano) captar qual riso foi proposto pelo
enunciador, por um pathos realmente intencionado do artista.
Caso contrário, cai-se na ingenuidade de interpretar a obra de maneira superficial e
imprimir o riso frouxo ou leve, fácil, a algo que não foi dito pelo parodista ou ironista.
Em nosso trabalho, vamos explorar justamente essas intenções do não dito, da ironia
mais profunda, julgadora, enraizada na paródia que a escritora brasileira Marina
Colasanti cria a partir de um mito muito conhecido no cânone literário mundial – o
“Mito de Sísifo”. É com a estrutura dos minicontos, ou como a própria definição trazida
na contracapa de Contos de Amor Rasgados define esse hermético e eximiamente
construído novo gênero do conto – “São minicontos, pequenas fábulas ou talvez curtos
poemas em prosa...” (COLASANTI, 1985) – que Colasanti tece a paródia “Ela era sua
tarefa” a “pouca tinta”. Por se tratar de uma narrativa poética, erigida em não mais que
uma página (às vezes disposta em apenas um parágrafo), torna-se ainda mais
dispendiosa a tarefa daquele leitor / decodificador a que nos referimos acima, de
1
Aluno de mestrado bolsista da FAPESP (Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo),
orientado pela Profª. Dra. Cleide Antonia Rapucci.
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enxergar o humor e a ironia cáusticos nessa microficção se não o fizer munido de


contextos oferecidos pelo próprio texto, pelo texto de fundo e de um repertório próprio:
[...] toda ironia acontece intencionalmente, quer a atribuição seja feita
pelo codificador, quer pelo decodificador. A interpretação é, num
sentido, um ato intencional por parte do interpretador [...] Os
interpretadores, também, não são consumidores ou “receptores”
passivos de ironia: eles fazem a ironia acontecer pelo que quero
chamar de ato intencional, diferente da intenção do ironista de ser
irônico, mas relacionado a ela. [...] O interpretador tem de formular a
hipótese que o falante intenciona que seja irônica ou que minta. Esse
ato é também, para usar os termos sugeridos no Capítulo III, um ato
de inferência semântica do significado adicional, relacional e
inclusivo da ironia mais do que o contrário da mentira ou outro
significado. Mas formular a questão dessa forma não acaba com a
intenção, como eu a defini, porque aquele ato de inferência é, em si,
um ato intencional, baseado (como o próximo capítulo vai explorar)
em informação fornecida pelo contexto imediato e por marcadores
textuais. (HUTCHEON, 2000, p. 171-172).

Tais elementos do “contexto imediato” e de “marcadores textuais” a que se refere


HUTCHEON (2000) tornam complexa a total decodificação da narrativa de Marina
Colasanti, visto que a poeticidade dessa prosa se faz marcante por meio de uma
simbologia muito latente. Além disso, o tamanho dessa narrativa (que é um miniconto)
faz com que sua estrutura concisa e sintética dificulte ainda mais uma interpretação
apurada de toda a ironia aí contida. HUTCHEON (2000) faz suas as palavras de
Umberto Eco sobre o garimpo da ironia pelo leitor: “encontrar um caminho a partir da
marca visível para o que ela está dizendo que, sem essa marca, permaneceria como
discurso não falado, dormente” (ECO, 1989b, p. 32 apud HUTCHEON, 2000, p. 190).
Portanto, se o leitor não compartilha da “comunidade discursiva” descrita por Hutcheon,
ou seja, “as normas e crenças que constituem a compreensão anterior que trazemos à
elocução” (HUTCHEON, 2000, p. 205), a ironia será pouco entendida ou nem mesmo
inferida.
Escolhemos, portanto, nosso objeto de estudo, a paródia de um mito consagrado da
literatura universal, carregada de humor, ironia e sátira, por entendermos que Marina
Colasanti recontextualiza a temática contida no texto de fundo (Sísifo na figura de um
marido que é “obrigado” eternamente a carregar o fardo feminino, representado na
figura da “esposa”) de maneira muito pertinente, “transcontextualizando”
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comportamentos humanos ainda muito recorrentes em nossa sociedade. Pois, segundo


HUTCHEON (1989), a paródia, por seu caráter de renovação, ressignificação,
[...] é hoje dotada do poder de renovar. Não precisa de o fazer, mas
pode fazê-lo. Não nos devemos esquecer da natureza híbrida da
conexão da paródia com o “mundo”, da mistura de impulsos
conservadores e revolucionários em termos estéticos e sociais. O que
tem sido tradicionalmente chamado paródia privilegia o impulso
normativo, mas a arte de hoje abunda igualmente em exemplos do
poder da paródia em revitalizar. Citando as palavras de Leo Steinberg:

Há casos sem conta em que o artista investe a obra em que se


vai basear de relevância renovada; ele concede-lhe uma viabilidade
até então insuspeitada; atualiza as suas potencialidades, como um
Brahms tomando temas de Handel ou Haydn. Ele pode limpar as teias
de aranha e dotar de frescura coisas que se consumiam no
esquecimento ou, o que é pior, que se haviam tornado banais através
de uma falsa familiaridade. Alterando o seu ambiente, um artista dos
nossos dias pode emprestar a imagens moribundas um recomeço de
vida. (STEINBERG, 1978, p. 25 apud HUTCHEON, 1989, p. 146).

Destarte, é a partir da definição de Linda Hutcheon sobre a paródia,


A paródia é, pois, na sua irônica “transcontextualização” e
inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação
crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que
incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia
pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa; tanto
pode ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva. O prazer
da ironia da paródia não provém do humor em particular, mas do grau
de empenhamento do leitor no “vai-vém” intertextual (bouncing) para
utilizar o famoso termo de E. M. Forster, entre cumplicidade e
distanciação. (HUTCHEON, 1989, p. 48)

que iremos desenvolver nosso estudo. Além dessa estudiosa, empregaremos teóricos
que, em suas obras, trataram do riso, humor, ironia, paródia e sátira, como o fizeram
Henri Bergson, Vladimir Propp, Elias Thomé Saliba, Beth Brait, Klaus Gerth, Matthew
Hodgart, dentre outros.
Paralelamente à elucidação do humor na narrativa por nós selecionada, também
faremos uma análise do miniconto “Ela era sua tarefa” sob o escopo da Teoria e Crítica
Literária Feminista, sobretudo a vertente da Ginocrítica, concebida pela estudiosa de
gênero em textos de autoria feminina, Elaine Showalter. Entendemos ser crucial essa
investigação pelo fato dessa narrativa estar impregnada de relações de gênero, sobretudo
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quanto à representação da mulher enquanto mulher-objeto, “fardo”, o peso que Sísifo


(seu marido) tinha de carregar por toda a vida

1. A “esposa-pedra” e sua tentativa de emancipação


A “esposa-pedra” em “Ela era sua tarefa”, de Marina Colasanti, é o estereótipo
gendrado da mulher-objeto, que Lúcia Osana Zolin diferencia da mulher-sujeito a
seguir:
[...] a mulher-sujeito é marcada pela insubordinação aos referidos
paradigmas, por seu poder de decisão, dominação e imposição;
enquanto a mulher-objeto define-se pela submissão, pela resignação e
pela falta de voz. As oposições binárias subversão/aceitação,
inconformismo/resignação, atividade / passividade, transcendência
/imanência, entre outras, referem-se, respectivamente, a essas
designações e as complementam. (ZOLIN In: BONNICI; ZOLIN,
2005, p. 183).

Porém, a “mulher” da narrativa de Colasanti, no penúltimo parágrafo do miniconto


supracitado, interrompe seu destino, quebra a anáfora “Desde sempre”, que vinha
permeando os dois parágrafos anteriores, para chegar no “... momento em que, cravando
os dentes e agarrando as unhas nas pedras daquele cimo árido, a mulher contém seu
destino. E erguidas aos poucos as costas, mal equilibrada ainda sobre si, faz-se de pé."
(COLASANTI, 1986, p. 99). Essa personagem passa, então, de mulher-objeto, passiva,
que aceita seu “destino” com o pesar de nunca poder mudá-lo algum dia, para
transmutar-se em mulher-sujeito, que toma a decisão de não mais tolerar a sina de seu
“homem”, que fora designado, até o fim de seus dias, a rolar sua “mulher”
(provavelmente sua esposa) encosta acima, do amanhecer ao anoitecer – quando era o
momento em que a “mulher” despencava, por meio de uma força descomunal, flanco
abaixo; o que também evidencia que essa jornada interminável se repetirá no dia
subsequente.
Tal qual Sísifo, que fora condenado pelos deuses a um trabalho desgastante,
incessante e repetitivo, em virtude de ter traído a confiança das divindades do Olimpo, o
“homem”, na paródia de Marina Colasanti ao mito grego, deve, também, realizar uma
tarefa que se alongará para sempre. Metaforicamente, essa tarefa era o fardo de ter que
aguentar, nas costas, sua própria mulher – mas “aguentar”, aqui, refere-se ao fato de o
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“homem” ter de prover a esposa, de conceder atenção a ela e, consequentemente, de


impor sua dominação sobre o “segundo sexo”, pois, de acordo com o universo
falocêntrico, são os homens que comandam o espaço privado (o lar) e também o público
(o mercado de trabalho, a política, a ciência, etc.). Portanto, foi inadmissível a esse
“homem” que sua “mulher” tivesse conseguido “andar com as próprias pernas”, ou seja,
que tivesse conseguido sua emancipação, a independência em relação a ele, o fim de
uma subjugação fadada à eternidade.
A tentativa de passagem do “espaço privado” para o “espaço público”, da “mulher”
em “Ela era sua tarefa” é frustrada não apenas pelo “homem”, mas talvez, também, pelo
medo que aquela sentiu ao ver-se de pé, no alto do flanco, admirada com sua conquista
de liberdade. Essa ambivalência (a mulher que teme migrar do espaço privado para o
público) foi explorada pela jornalista e estudiosa Rosiska Darcy de Oliveira, quando
afirma que,
As mulheres querem mudar de vida mas temem as
conseqüências da mudança. Têm medo de questionar sua auto-
imagem tradicional sem a certeza de encontrar outra mais satisfatória
por meio de sua inserção no mundo do trabalho. Têm medo de não
estarem mais em condições de desempenhar seu papel de alicerce
emotivo e afetivo da família sem a certeza de encontrar compensações
em suas atividades profissionais.
Insatisfação, ambição, desejos de independência e de autonomia
são sentimentos que, nas mulheres, muitas vezes são acompanhados
pelo fantasma da culpa. É essa culpa que o fracasso vem sancionar.
Sendo a culpa um sentimento que se nutre das provas de que se está
errada, a melhor dessas provas é o fracasso. Lugar de transgressão, o
espaço público torna-se também lugar de expiação.
Ter sucesso, para as mulheres, é bem mais arriscado que
fracassar. Ter sucesso não está previsto e introduz ao desconhecido.
Negociar o sucesso profissional com o equilíbrio familiar e afetivo
parece a muitas mulheres configurar uma ameaça de desencontro que
elas preferem evitar. (OLIVEIRA, 1991, p. 84)

O empurrão que o “homem” dá na “mulher”, no cimo do monte, é a vitória do espaço


privado sobre o espaço público. Em contrapartida, a ironia, nesse enredo, está no fato de
que o medo que as mulheres sentem de galgar o espaço público, segundo Rosiska
Darcy, frustra qualquer tentativa de independência em relação ao homem.
No campo da Teoria e Crítica Literária Feminista, SHOWALTER (1985), em relação
à tradição literária dos textos de autoria feminina, estabelece três grandes fases:
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[...] a de imitação e de internalização dos padrões dominantes; a fase


de protesto contra tais padrões e valores; e a fase de autodescoberta,
marcada pela busca da identidade própria. Adaptando essas fases às
especificidades da literatura de autoria feminina, tem-se a fase
feminina, a feminista e a fêmea (ou mulher), respectivamente. [...]
(SHOWALTER, 1985 apud ZOLIN, 2005, p. 278 In: BONNICI,;
ZOLIN, 2005, p. 275-283).

A tentativa de rebelar-se contra o patriarcado falogocêntrico, então, em “Ela era sua


tarefa”, configura a Fase feminista, segundo SHOWALTER (1985), pois há uma
reivindicação contra os valores e padrões vigentes por parte da “mulher”, mas esta é
surpreendida pelo empurrão que o “homem” lhe aplica, ou seja, sua tentativa de
descobrir-se como mulher, com vistas à total independência, é frustrada.
Falando, agora, sobre como se dá o processo do riso nessa narrativa, não podemos
configurar essa paródia do Mito de Sísifo como uma sátira, pois fica claro que esta tem
um propósito moralizante, reparador, escarnecedor e extramural, ou seja, vai além dos
textos em que está presente (texto original e sátira, em si) para construir uma crítica a
valores vigentes para além da esfera estética, ficcional. Já na paródia, que é um meio de
que se vale a sátira (pois esta se apoia em outros textos) “verificamos não haver um
julgamento negativo necessariamente sugerido no contraste irônico dos textos. A arte
paródica desvia de uma norma estética e inclui simultaneamente essa norma em si,
como material de fundo. Qualquer ataque real seria autodestrutivo” (HUTCHEON,
1989, p. 62).
Contudo, há elementos satíricos mesclados a uma ironia mordaz no fato de Marina
Colasanti ter substituído a “pedra”, do “Mito de Sísifo”, pela “mulher”, em “Embora
sem náusea”. Não há gratuidade nisso, pois, mesmo que a autora carioca não tenha tido
a intenção de moralizar e aplicar uma correção, punição a um comportamento
falocêntrico e sexista, é por meio de traços satíricos e da função pragmática da ironia de
julgar, denunciar que ela, metafórica e simbolicamente, expõe a situação da mulher
como o “pesado fardo” a ser carregado pelos homens em uma sociedade moderna que
ainda se comporta de modo a relegar o gênero feminino a uma categoria inferior.
Temos, pois, a definição de paródia de HUTCHEON (1989):
Por esta definição, a paródia é, pois, repetição, mas repetição
que inclui diferença (Deleuze, 1968); é imitação com distância crítica,
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cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo. Versões


irônicas de “transcontextualização” e inversão são os seus principais
operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do ridículo
desdenhoso à homenagem reverencial. (HUTCHEON, 1989, p. 54).

No miniconto em questão, a paródia, por meio da ironia, repete alguns elementos


formais do “Mito de Sísifo”, porém se afasta dele na medida em que se vale desse texto
de fundo para exprimir uma crítica ferrenha e mordaz – que não pode suscitar o riso
fácil, mas sim um riso crítico, de soslaio, que apedreja, causticamente, uma situação
muito em voga – a misoginia reforçada por um pensamento de que as mulheres, no
espaço do privado e do público, são fardos impedidos de transpor o limiar que divide
esses dois universos – daí o “inferno” (destino) amenizado de Sísifo na figura do
“homem”. Pois, ao estabelecermos uma relação de intertextualidade no que tange à
questão desse “martírio”, entre a paródia de Colasanti e o texto de partida,
perceberemos que Sísifo, transcontextualizado no “homem”, não partilha, como no caso
do grego, de uma sorte tão cruel.

Conclusão

Podemos concluir, por meio de nossa análise, que a escritora Marina Colasanti, em
sua paródia “Ela era sua tarefa” se vale o tempo todo da ironia que causa o riso
escarnecedor, mas que também incute a galhofa, a zombaria. Contudo, como
demonstramos, é perigoso tentar assimilar a intenção dessas ironias apenas
superficialmente, pois elas contêm críticas, julgamentos de comportamentos ainda
muito recorrentes na sociedade de hoje (a escritora publicou Contos de amor rasgados,
inicialmente, há 25 anos – daí a qualidade e relevância que seus textos têm, por ainda
carregarem consigo uma carga semântica muito forte e atual).
E essa crítica, nessa paródia, não pode ser compreendida como sátira, apesar de
encontrarmos algumas características desse subgênero no texto da autora que
estudamos.
Vimos que, apesar dos dois textos de Colasanti se afastarem e se diferenciarem do
“Mito de Sísifo” quanto à estrutura formal e, acima de tudo, ao enredo, não estão
ausentes elementos que corroborem que suas paródias, de certa forma, também laureiam
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esse último texto, porém mantém-se o “distanciamento com diferença” de que Linda
Hutcheon fala, o bouncing (movimento de vai-e-vem).
Além disso, pudemos constatar que essa paródia construída por Colasanti traz
consigo uma carga metafórica muito forte, aproximando a prosa da poesia. A metáfora,
comparada à paródia, destarte, de acordo com Linda Hutcheon:
Em certo sentido, pode dizer-se que a paródia se assemelha à
metáfora. Ambas exigem que o descodificador construa um segundo
sentido através de interferências acerca de afirmações superficiais e
complemente o primeiro plano com o conhecimento e reconhecimento
de um contexto em fundo. (HUTCHEON, 1989, p. 50).

Finalmente, inferimos que há a ironia desveladora que expõe temas já muito


percorridos na literatura e em inúmeras outras artes, a subjugação da mulher ao homem
e a ambivalência do feminino nos universos do público e do privado, mas que se fazem
presentes com vistas a criticar ferrenhamente e, principalmente, comportamentos e
posições reproduzidas até hoje – amenizando os “infernos” de que compartilham os
seres humanos.

Referências

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Trad. CAIXEIRO, Nathanael C.. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, 105 p.
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______. O próprio e o alheio: ensaios de Literatura Comparada. São Leopoldo: Editora
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HUTCHEON, Linda. Narcissistic Narrative: The Metaficcional Paradox. New York:
Methuen, 1985a.
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______. Teoria e política da ironia. Trad. JEHA, Julio. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2000, 359 p.
______. Uma teoria da paródia: Ensinamentos das formas de arte no século XX. A
Theory of Parody. Trad. PÉREZ, Teresa Louro. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 45-68.
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brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das
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ZOLIN, Lúcia Osana. “Crítica feminista”. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana
(org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2. ed.
Maringá: Eduem, 2005, p. 181-203.

Anexos

1. “Ela era sua tarefa”

Desde sempre, o dia chegando vinha encontrá-lo ali, no começo da encosta, já


empurrando e rolando sua esposa para cima, longo esforço em direção ao cume.
Desde sempre, resvalando lentamente para a noite, o sol desenhava a sombra
embolada do corpo da mulher que, mal chegada ao alto, despencava novamente pelo
flanco da morte.
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Desde sempre. Até o momento em que, cravando os dentes e agarrando as unhas nas
pedras daquele cimo árido, a mulher contém seu destino. E erguidas aos poucos as
costas, mal equilibrada ainda sobre si, faz-se de pé.
Desaparece quase a luz do sol, o último alento vermelho tinge a mão do homem. Que
se levanta. E firme, empurra a mulher pelas costas, monte abaixo.
(COLASANTI, Marina, 1986, p. 99)
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CÉTICA HISTORIOGRAFIA DO FUTURO: O RETRATO TRÁGICO DA


UTOPIA CIENTIFICISTA BRASILEIRA EM O ALIENISTA

Gabriel Victor Rocha Pinezi (PG-UEL)


Renan Pavini Pereira da Cunha (PG-UEL)

Introdução

Comparando o caso de um assassinato banal, ocorrido na cidade baiana de


Cachoeira pelas mãos de uma mulher comum chamada Martinha, ao famoso suicídio de
Lucrécia, nos tempos da antiguidade romana, Machado de Assis reflete, em uma crônica
publicada em 5 de agosto de 1894, a respeito dos limites entre a ficção, a historiografia
e a verdade.

Bem sei que Roma não é a Cachoeira, nem as gazetas dessa cidade
baiana podem competir com historiadores de gênio. Mas é isso mesmo
que deploro. Essa parcialidade dos tempos, que só recolhem,
conservam e transmitem as ações encomendadas nos bons livros, é
que me entristece, para não dizer que me indigna. Cachoeira não é
Roma, mas o punhal de Lucrécia, por mais digno que seja dos
encômios do mundo, não ocupa tanto lugar na história, que não fique
um canto para o punhal de Martinha. [...]

Se, ao menos, o punhal de Lucrécia tivesse existido, vá; mas tal alma,
nem tal ação, nem tal injúria, existiram jamais, é tudo uma pura lenda,
que a história meteu nos seus livros. A mentira usurpa assim a coroa
da verdade, e o punhal de Martinha, que existiu e existe, não logrará
ocupar um lugarzinho ao pé do de Lucrécia, pura ficção. Não quero
mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis às
realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das coisas
tangíveis em comparação com as imaginárias. Grande sabedoria é
inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e
acabar acreditando que não há pássaros com asas... (ASSIS, 2010-a)

Eis uma pequena ponta de sabedoria cética escrita no fim do século XIX, o século
positivista. Ao comentar a história clássica e o tanto de falsa grandiosidade que nela
existe, Machado discute de forma simples e exemplificada o mesmo tema que
desenvolveu incessantemente em toda a sua obra literária: os limites entre o dito e o ato,
a fala e o fato, o discurso e a verdade. Este tema, identificado pelo professor Antônio
Cândido (1970, p.25-6) como um dos traços da modernidade da prosa machadiana,
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adquire uma importância singular para quem deseja fazer as pontes entre a literatura e
história partindo de sua obra.
Na verdade, tal temática desdobra necessariamente em um jogo de ambigüidades
perigoso para o pesquisador, que será obrigado tanto a ler a história através da literatura
quanto a literatura através da história. Pelo menos, tratando-se de Machado de Assis,
seria impossível escolher apenas um destes dois caminhos sem condenar-se a
superficialidades. Se em uma simples crônica a respeito de um assassinato, nós leitores
somos conduzidos a uma dúvida radical e cética sobre a relevância e veracidade de
determinados fatos contados em nossa historiografia, o que diremos então de uma
novela tão complexa quanto O Alienista, publicada originalmente em 1882 na coletânea
Papéis Avulsos, poucos anos antes do Brasil deparar-se com a proclamação de sua
República?
O presente trabalho pretende ler a célebre narrativa da literatura brasileira através
dessa via de mão dupla com a história, onde ficção e realidade estão postas
simultaneamente num jogo de reinvenção do mundo através da escrita. Gostaríamos de
mostrar como Machado utiliza-se deste profético “pássaro sem asas”, que é a ficção,
para revelar o quanto a história tem, em si própria, de absurda, inverossímil e irracional.
Para isso, analisaremos como se dá a crítica machadiana ao positivismo, doutrina
científica e moral arraigada na sociedade brasileira da época de Machado, tanto em um
nível narrativo quanto retórico. Assim, dedicaremos a primeira parte deste trabalho para
a descrição da cultura da Belle Époque, seguido de uma análise de como ela é retratada
em O Alienista por meio da sina trágica do cientista Simão Bacamarte, contada por esse
narrador/historiador a partir das ditas “crônicas de Itaguaí”.
1.A utopia cientificista do republicanismo brasileiro

O Brasil da segunda metade do século XIX viu circular entre as elites dos meios
urbanos um ímpeto enérgico de modernização técnico-científico que teve origem na
Europa e nos Estados Unidos, lugares que viviam o recente impacto da chamada
Segunda Revolução Industrial e que cintilavam como modelos de prosperidade a serem
seguidos por outros países do continente americano. O surgimento instantâneo e
simultâneo de uma série de novas tecnologias, como a luz elétrica, o cinema e o bond,
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tiveram uma pesada conseqüência para os hábitos da vida cotidiana, que começaram a
se alinhar com a expansão das fronteiras do capitalismo a níveis globais, tendo como
modelo cultural principalmente os países da Europa. As conseqüências deste
movimento histórico para o Brasil foram imensas, e fazem parte do contexto da
proclamação e aceitação do regime político republicano e da sedimentação da economia
capitalista no país.
Inserido na conjuntura da expansão do ideário positivista na América Latina como
um todo, a história nacional teve como marco da consolidação do republicanismo a
fundação do Partido Republicano, em 1870. Tal como o México, o Chile e a Argentina,
a faceta brasileira dessa doutrina encontrou na filosofia de Comte o modelo que
explicava os impasses políticos que passavam na época.
Segundo Nicolau Sevcenko (1998-a, p.14), além do positivismo comtiano, a nova
elite intelectual brasileira respaldava-se também na corrente do darwinismo social de
Spencer e no monismo alemão. Baseada nestas visões de mundo marcadas pela plena
convicção na “evolução”, no “progresso” e na “regeneração”, não faltaria muito tempo
para que, depois da fundação do partido em 1870, a República fosse proclamada com
um golpe militar que destituiu o imperador Pedro II de seu trono, instaurando o regime
presidencialista em 1889, apenas um ano depois da libertação dos escravos, em 1888.
Parecia inevitável que o país sofresse por sucessivas mudanças políticas, sociais e
culturais nos anos que se seguiriam. O que não se sabia ainda eram as conseqüências
dessas mudanças. O Alienista, publicado em 1882, pode ser entendido como uma
previsão cética de Machado em relação a esses acontecimentos iminentes.
Sabe-se hoje, a partir do estudo de José Murilo de Carvalho em Os Bestializados
(1987), que as camadas populares assistiram passivamente a essa “mudança”
arquitetada pelos militares positivistas, sem que pudessem participar dela ou
compreender a sua amplitude. De fato, como a história nos mostrou em seus
desdobramentos, o projeto utópico de uma nova sociedade defendido pelos republicanos
não se revelou nem um pouco preocupado com os problemas das classes mais humildes.
Pelo contrário; a leitura do darwinismo social e a interpretação do positivismo comtiano
que se aplicaram no Brasil viam neste contingente de pessoas um problema, uma chaga
social a ser curada. O desejo do progresso e do alinhamento das cidades brasileiras com
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as capitais européias levou o Rio de Janeiro, então capital brasileira, a uma campanha de
higienização e reconstrução da cidade em padrões europeus que ficou conhecida como a
“Regeneração”.

O símbolo máximo da Regeneração [...] ficou sendo o eixo


fundamental do projeto de reurbanização, a Avenida Central.
Inspirada no planejamento dos bulevares parisienses, conforme o
projeto dos amplos corredores comerciais do barão de Haussman,
prefeito plenipotenciário de Paris sob o império de Napoelão III, a
Avenida introduzira na capital a atmosfera cosmopolita ansiada pela
nova sociedade republicana. Não só os produtos à venda nas vitrines
de cristal eram via de regra franceses, assim também eram as roupas e
os modos dos consumidores, tanto quanto os bandos de pardais
encomendados pelo prefeito Pereira Passos, por serem típicos de
Paris. O caráter suntuoso da Avenida era acentuado pelas fachadas em
arquitetura eclética, oferecendo um cenário para o desfile ostensivo da
nova sociedade e instigando a animação do consumo conspícuo.
(SEVCENCO, 1998-b, p.545)

Sob a justificativa de “regenerar”, de “progredir” e de “evoluir”, a cultura


cientificista brasileira da segunda metade do século XIX clamou por um projeto utópico
de superação do passado e de encontro acelerado com o futuro. Houve, assim, uma
reação contra as marcas do passado colonial e imperial, que foram, pouco a pouco,
sistematicamente apagadas da paisagem urbana carioca. O desejo de modernização da
sociedade fez com que o brasileiro repudiasse suas origens, renegando sua própria
história em favor dos sonhos e das possibilidades do futuro. Confiava-se
demasiadamente no progresso; a “história” positivista não era um olhar retrospectivo,
uma interrogação profunda sobre o passado, mas apenas um olhar em linha reta para o
futuro, para o caminho prometido que estava por vir e que apagaria as marcas do erro
anterior.

No afã do esforço modernizador, as novas elites se empenhavam em


reduzir a complexa realidade social brasileira, singularizada pelas
mazelas herdadas do colonialismo e da escravidão, ao ajustamento em
conformidade com padrões abstratos de gestão social hauridos de
modelos europeus ou norte-americanos. Fossem esses os modelos da
missão civilizadora das culturas da Europa do Norte, do urbanismo
científico, da opinião pública esclarecida e participativa ou da crença
resignada na infalibilidade do progresso. Era como se a instauração do
novo regime implicasse pelo mesmo ato o cancelamento de toda a
herança do passado histórico do país e pela mera reforma institucional
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ele tivesse fixado um nexo co-extensivo com a cultura e a sociedade


das potências industrializadas. A compreensão dos fenômenos do
subdesenvolvimento e das desigualdades inerentes ao sistema de
trocas no mercado internacional levou um longo tempo para germinar
e adquirir uma significativa substância crítica entre as elites
republicanas. E enquanto essa consciência crítica não amadurecia,
prevaleceu o sentimento de vergonha, desprezo e ojeriza em relação
ao passado, aos grupos sociais e rituais da cultura que evocassem
hábitos de um tempo que se julgava para sempre e felizmente
superado (SEVCENKO, 1988-a, p.27-28).

Não à toa, a passagem do Império à República foi marcada por uma mudança
abrupta da forma com que o brasileiro olhava para a sua história. Diferentemente da
época da independência, em que as imagens do patriotismo estavam ligadas a um
retorno às origens idílicas de um país rico de naturezas, o projeto republicano repudiou
todas essas lembranças “selvagens” ao vangloriar o homem cosmopolita e afinado com
o exterior. Na literatura, este momento é identificado com a passagem dos discursos
patriotas do romancista José de Alencar e do poeta Gonçalves Dias para o apego à
ciência e à estética escatológica de Aluísio de Azevedo. Inspirada pelo escritor francês
Émile Zola, viu-se florescer na literatura brasileira da década de 1880 a escola
naturalista e seu apego incondicional às ciências da vida, principalmente à medicina e à
psiquiatria. Títulos como O Homem e A Carne refletem bem em seus enredos o poder e
o prestígio que a ciência médica tinha conquistado na época, representando uma
alavanca para o progresso e para a construção de uma sociedade civilizada.
Como não podia deixar de ser, a mesma década que viu especialistas clamarem por
uma “medicalização da sociedade” acabou por refletir, em sua literatura, a autoridade
que o discurso científico começava a ganhar no contexto da vida cotidiana carioca.

Não é de se estranhar que, nesse clima, também se assistisse a uma


cientifização da linguagem literária. Num momento em que artigos de
médicos ocupam as páginas dos jornais, não é de espantar que as
páginas dos romances também se deixem invadir por “temperamentos
doentios”, médicos, diagnósticos e discussões sobre as causas e
tratamentos apropriados para as doenças. Às vezes, meio a troco de
nada, surgem nos romances longas descrições de enfermidades que, a
rigor, não têm importância alguma na narrativa, a não ser para
ressaltar ainda mais a referência a um competente discurso médico
(SÜSSEKIND, 1984, p.124).
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A passagem do romantismo para o naturalismo é o indício de uma ruptura histórica


das concepções e dos modelos de homem ideal adotados pelo brasileiro. Enquanto o
indianismo e o regionalismo, voltando-se ao passado e ao interior das matas,
encontraram o rosto da pátria nos povos indígenas, o cientificismo positivista encontrou
no europeu o modelo do homem do futuro, renegando assim sua própria nacionalidade e
assumindo um desejo de se tornar o estrangeiro (SEVCENKO, 1989, p.36).
Inserido neste contexto de apagamento do passado e construção de um novo
homem, não é difícil explicar porque a medicina e a psiquiatria receberam uma
importância até antes nunca vista. Carregando consigo o paradigma de oposição entre o
normal e o patológico, a ciência médica possuía embutida em suas teses um projeto
utópico de reformulação do homem, inspirada no ideal de manutenção da saúde e
normalização da vida. Ao conceber as teses deterministas que reconheciam o espaço
urbano e o ambiente como causas das doenças e das moléstias humanas, a medicina do
século XIX ganha uma dimensão social e progressista que não existia ainda na prática
médica da época colonial. Agora, mais que apenas um classificador e curador de
doenças, o médico passa a ser identificado como um cientista social que

não poderá restringir-se aos conhecimentos clínicos: integrará a seu


saber a estatística, a geografia, a demografia, a topografia, a história.
Conhecimentos que instrumentalizarão a medicina, permitindo-lhe
produzir, a partir das exigências da ordem social, normas médicas de
comportamento e também, conseqüentemente, os desvios a essas
normas (MURICY, 1988, p.24-5).

Inseparáveis uma da outra, a crença cega na ciência positivista e no progresso social


conduzia inevitavelmente a uma luta ferrenha e quimérica contra a morte, a doença e o
passado. Tudo o que estivesse mais próximo do futuro estaria necessariamente mais
próximo da saúde, da razão e da vida, e tudo o que estivesse ligado ao passado estaria
mais próximo da doença, da insânia e da morte.
Percebemos isto ao olhar para os romances naturalistas, onde a morte de
personagens de “raça inferior” é celebrada como o caminho natural da vida, da
manutenção das raças mais fortes e do desaparecimento da fraqueza. Sob a influência do
darwinismo social, a morte fisiológica do indivíduo “fraco” no romance naturalista
brasileiro não representa a obscura e indecifrável presença da finitude, tal como a
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encontramos nas tragédias gregas (morte enquanto vivência incontrolável, destino


misterioso de que não se pode escapar), mas a mera manutenção social da vida
fisiológica: o que é doença no âmbito individual, representa, na verdade, a cura do
“organismo social” por meio da evolução.
Estamos inclinados a interpretar o tema do progresso – tanto no sentido filosófico
(progresso da razão, da ciência, da verdade) quanto no sentido biológico (progresso da
vida, da raça, da saúde) – enquanto parte desta cultura geral de cosmopolitismo que
invadiu o Brasil e, particularmente, o Rio de Janeiro nas três últimas décadas do século
XIX. Não resta dúvida de que o cientificismo positivista foi uma utopia própria a este
período histórico onde estão em jogo a passagem do Império para a República e das
relações sociais de tipo senhorial para as de tipo burguesa. Trata-se de um tempo
conturbado da história brasileira que constitui e solidifica uma nova cultura urbana, em
que a ciência médica toma proporções políticas e sociais inéditas. A medicina, muito
longe da imparcialidade e da isenção desejada pelo positivismo, é uma prática e uma
racionalidade inerente à utopia civilizatória do século XIX. Nas palavras de Kátia
Muricy (1988, p.27-8),

A medicina ocupará [...] o papel de “Vanguarda da civilização”,


reclamando em numerosas teses médicas do século. A identificação de
seus objetivos com os de um projeto mais amplo de racionalização da
ordem social fará dela a pedagogia apropriada para a construção do
cidadão, isto é, o indivíduo liberto da confusão social a que os
instintos e a ignorância o condenavam, vivendo em harmonia com os
outros cidadãos, regidos pelas normas do bem comum. A medicina
propõe-se como a base racional para o pacto social. Necessariamente
política e progressista, ela se identifica com os ideais de democracia,
liberdade e civilização. Enquanto instituição, a medicina está a serviço
da modernidade, orientando de forma racional o homem na tarefa
emancipadora de condução da sociedade à plenitude da civilização.

2.A História, uma personagem suspeita

Quais são os indícios que nos levam a afirmar uma inevitável vinculação entre O
Alienista e uma reflexão a respeito do contexto histórico de sua publicação? É preciso
salientar que esta novela apresenta um elemento chave que a distingue de outros textos
machadianos: a referência explícita à historiografia. Devemos nos dar conta de que “as
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crônicas de Itaguaí” são uma espécie de personagem que, como vemos na primeira frase
da novela, aparece na narrativa antes mesmo do personagem principal, Simão
Bacamarte: “As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um
certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos
do Brasil, de Portugal e das Espanhas” (ASSIS).
Muitas das leituras que vinculam a obra de Machado ao contexto histórico de sua
época parecem não dar muita atenção ao fato de que o narrador de O Alienista é um
historiador que faz o papel de mediador entre as crônicas e o leitor. Kátia Muricy irá
interpretar esse “recuo no tempo” como “a escansão necessária para o autor sentir-se
mais à vontade na crítica às concepções científicas suas contemporâneas” (1988, p.33);
ou seja, a referência ao passado estaria indicando os meados do século XIX, quando é
decretada a criação do Hospício de Pedro II no Rio de Janeiro. Para a autora,

“os tempos remotos”, muito mais do que falar de costumes passados,


parecem ironizar um presente cujo nonsense fundamental seria esse
embate entre o passado dos hábitos e as necessidades que a urgência
de acertar o passo com o progresso impunha. Que isso fizesse de mãos
dadas com a ciência era, como recurso, o mais eficaz: o compromisso
com a razão e com a verdade dava distinção à pressa. O presente
ficava suspenso pela urgência de modernizar, civilizar, á moda
européia, os hábitos sociais; um pé no passado, um pé no futuro – eis
o nosso solo (ibidem, p.33-4).

No entanto, a interpretação de Kátia Muricy não vai além desta hipótese de que as
crônicas apenas situam a narrativa na História. A autoridade deste narrador que se
baseia nas crônicas de Itaguaí não é, em nenhum momento, discutido pela autora em seu
estudo sobre O Alienista.
Já Luís Augusto Fischer (2008, p.199), para defender a tese de que o texto se baseia
em relações de verossimilhança, irá afirmar que as crônicas são “relatos de tipo
histórico que aparentemente afiançam a verdade do que vai sendo dito”, concluindo
assim que “o conjunto narrativo da novela, ainda que dê ares paródicos, centra sua força
no realismo”. As crônicas seriam então um recurso utilizado por Machado para afirmar
a verdade dos fatos, não deixar nenhuma dúvida ao leitor de que eles realmente
aconteceram.
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Mas é preciso se perguntar até que ponto não seria mais “realista” e
“verossimilhante” a simples utilização de um narrador onisciente em terceira pessoa, tal
como nos romances naturalistas inspirados em Emilé Zola. Ora, o narrador de O
Alienista fala em terceira pessoa, mas não é onisciente; pelo contrário, ele sabe apenas
aquilo que as crônicas de Itaguaí contam, chegando ao ponto de, em alguns momentos,
questionar a insuficiência dos documentos para esclarecer todos os detalhes da história,
como no seguinte trecho: “A derrota dos Canjicas estava iminente, quando um terço dos
dragões, — qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram — passou
subitamente para o lado da rebelião” (ASSIS). E, em outro momento, o narrador
contesta a veracidade das crônicas, dizendo:

Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde


de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da
história de Itaguaí; a opinião mais verossímil é que eles foram
recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na
igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo
caso, é uma simples conjetura; de positivo nada há. (idem)

Ao ironizar a convicção na verdade da ciência, o narrador revela que tem plena


consciência dos cortes que escolhe fazer, direcionando o olhar do leitor da forma como
lhe é mais conveniente, assumindo que, para explicar de maneira satisfatória a
complexidade dos fatos, precisaria de muito mais páginas do que as poucas que utilizará
no capítulo final. É o que se vê no seguinte trecho:

O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem, e tão


inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição;
mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos
mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.
(idem)

A partir da leitura destes trechos, é possível então fazer uma leitura avessa a de
Fischer, no que diz respeito à verossimilhança da narrativa. A referência às crônicas de
Itaguaí pelo narrador de O Alienista deve ser entendida muito mais como um propósito
cético do que como uma forma de afiançar a veracidade. O fato de o narrador referir-se
explicitamente ao seu poder de reescrever, da maneira que lhe for mais conveniente, a
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história de Itaguaí, só reforça a crítica irônica de Machado à autoridade do discurso


positivista da época, bem como sua desconfiança com a historiografia como um todo.
Tal como em outras obras do autor, podemos ver em O Alienista a presença de um
narrador não confiável. A problematização da confiabilidade do discurso nesta novela se
dá tanto no nível da narração quanto no nível do conteúdo da narrativa. É preciso
lembrar que uma das insistentes críticas esboçadas em O Alienista tem como alvo a fácil
aceitação do discurso científico advindo da Europa entre os moradores da vila de
Itaguaí. A seguinte passagem envolvendo a opinião do boticário Crispim Soares a
respeito das teses de Simão Bacamarte ilustram bem esta crítica.

Quanto à idéia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário


extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe
sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a
sublime e verdadeira, e acrescentou que era “caso de matraca”. (idem)

Vê-se bem aqui como o narrador conta que a verdadeira opinião do boticário – a de
que a tese de Bacamarte era extravagante – não foi expressada; perante a autoridade
médica de seu amigo, Crispim Soares só teve coragem de dizer, com um “nobre
entusiasmo”, que concordava com ele, que ele não falava nada mais do que a pura
verdade. E, para completar, diz que esta descoberta “é caso de matraca”, ou seja, que é
notícia a ser espalhada por toda a vila de Itaguaí. Mas o mais ácido da ironia
machadiana está logo a seguir, quando o narrador ironiza ao explicar no que consistia o
uso da matraca e, ao mesmo tempo, questionar a confiabilidade deste sistema em
relação aos tempos atuais:

Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do


povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a
matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, — um
remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo
eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc.
O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era
conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por
exemplo, um dos vereadores, — aquele justamente que mais se
opusera à criação da Casa Verde, — desfrutava a reputação de perfeito
educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses
bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os
meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto
cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente
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falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade,


verdade; nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o
desprezo do nosso século. (idem)

O ceticismo de Machado em relação à verdade se expressa nesta passagem em que,


ironicamente, o narrador critica o sistema de divulgação de verdades do passado que foi
responsável por uma mentira contida nas crônicas. Ora, mas se toda a verdade desse
enredo baseia-se na confiança nas crônicas de Itaguaí, única fonte consultada pelo
narrador que nos conta a história, o que garante, em termos discursivos, que não é
apenas este pequeno caso do vereador que domava cobras uma invenção do povo, mas
todo o resto do enredo da novela? O que nos garante que tudo isso não passa de
invenção? E o que a crença da população na ciência de Bacamarte teria de mais
confiável em relação às notícias divulgadas através da matraca? Sob a perspectiva cética
de Machado, tanto a ciência positivista quanto a matraca são unicamente baseadas nessa
“confiança no sistema”. O que efetivamente muda, de um caso para o outro, é que a
legitimação do discurso científico simboliza o progresso, o futuro, a última novidade
das terras estrangeiras, enquanto a matraca é apenas uma marca do passado colonial,
que simboliza o atraso, a crença na mentira.
Portanto, é um tanto quanto perigosa a afirmação de que o recurso retórico de O
Alienista é de tipo realista. Tanto a problemática da fácil crença dos moradores de
Itaguaí na autoridade do discurso científico – que, apesar da “Revolta das Canjicas”,
continua a triunfar até o fim da narrativa – quanto a crença do leitor no narrador que
conta a história a partir das crônicas só tendem a reforçar o poder que as palavras tem
como elementos de recriação da realidade. Machado é muito mais nominalista que
realista. Os fundamentos da verdade em O Alienista são mais baseados em uma retórica
cínica do que na mera descrição dos acontecimentos. Na verdade, todo o discurso
realista do positivismo está sendo satirizado impiedosamente ao longo da novela. Tanto
o é que, no fim, Simão Bacamarte é ironicamente preso por suas próprias palavras no
universo daquilo que acredita ser a verdade: sua própria a loucura. Luiz Dantas (1985)
foi quem percebeu, em O Alienista, a presença insistente

do papel da palavra a um tempo todo-poderosa e precária, móvel,


quando solicitamos a ela que sirva de fio de Ariadne através dos
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múltiplos obstáculos que obstruem os caminhos até a “verdade”. A


experiência de Simão Bacamarte termina com o isolamento e a morte,
na Casa Verde. O psiquiatra manipula e sofre os efeitos dessa palavra
servil e traiçoeira. Prisioneiro da sua própria formulação, incapaz de
atingir os seus objetivos, encontra a solução para tantos dilemas
fechando-se só, no silêncio. (DANTAS, 1985, p.152)

De fato, o destino reservado para Simão Bacamarte no fim da narrativa deve ser
interpretado como uma reflexão a respeito da crença inquestionável na palavra de ordem
positivista, na a evolução da ciência e no progresso da racionalidade. O positivismo,
herdeiro do iluminismo, pregava o natural progresso da razão a caminho de uma
verdade absoluta e via na ciência a prática que conduziria o homem ao conhecimento
pleno da realidade, a extinção de todas as dúvidas. No entanto, os caminhos da ciência
em O Alienista conduzem exatamente para o lado oposto da razão, revelando a loucura
que já existia, em estado latente, no projeto ambicioso de Bacamarte. Se a utopia
positivista pregava que a verdade do futuro é sempre “mais verdadeira” que as verdades
do passado, o ceticismo machadiano tomará o rumo contrário, e fará o fim da história
coincidir com o momento de maior dúvida a respeito da narrativa, quando entra em cena
o boato de Padre Lopes a respeito da loucura originária de Bacamarte.

Fechada a porta da Casa Verde, [Bacamarte] entregou-se ao estudo e à


cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete
meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada.
Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco,
além dele, em Itaguaí; mas esta opinião, fundada em um boato que
correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o
boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes, que com
tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for,
efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade. (ASSIS)

O desfecho trágico de O Alienista vem corroborar a visão machadiana a respeito da


História. Crítico à noção de progresso, Machado vira ao avesso o discurso utópico da
medicina e da psiquiatria do século XIX, mostrando que o futuro nem sempre nos
espera de braços abertos, e que o que está por vir pode não ser tão melhor do que aquilo
que já se passou. Assim, podemos afirmar que esta historiografia machadiana não é
apenas um recuo ao passado, nem uma revisão do presente, mas é também uma visão do
futuro que sela a única certeza que se pode ter na vida: a morte, o dilaceramento de
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todas as coisas. Uma percepção trágica do mundo parece impregnar essa historiografia
inventada que é O Alienista; para Machado, não é o progresso que sela o fim da
história, mas a morte, o desmoronamento da utopia.
Para nós que, atualmente, conhecemos tão bem a história desastrosa de nossa
República Velha, O Alienista pode parecer apenas mais uma destas estórias que nos
recontam a História, documento de papel que nos reflete o mundo como um espelho. No
entanto, se tivéssemos lido esta novela no alvoroço do Brasil de 1882, a sina de
Bacamarte deixaria no ar a mesma sensação de incerteza e dúvida que a vida brasileira
passava; muito mais que uma alegoria da alma humana ou uma irônica reinvenção do
passado, haveria nesta ficção um quê de mistério e profecia: nem pura ficção, nem pura
realidade, mas este “pássaro sem asas” que nos ensinaria a reconhecer no sonho do
progresso a sina da morte e do fracasso. Machado transpôs a tragicidade da vida para o
âmbito da História, e criou esta peça literária de escárnio que é O Alienista, uma cética
historiografia do futuro.

Referências
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Crônicas do jornal “A Semana” (1892-1900).
Disponível em: http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/cronica/macr12.pdf
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis Avulsos. Disponível em:
http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn003.pdf.
CANDIDO, Antônio. Esquema de Machado de Assis. In: ______. Vários Escritos. São
Paulo: Duas Cidades, 1970.
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que
não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
DANTAS, Luiz. O Alienista de Machado de Assis: a loucura e a hipérbole. In.
RIBEIRO, Renato Janine (Org.) Recordar Foucault. São Paulo: editora Brasiliense,
1985. p.144-152
FISCHER, Luís Augusto. Uma Coisa e outra e nenhuma delas: “O Alienista” In.:
___________ Machado e Borges – e outros ensaios sobra Machado de Assis. Porto
Alegre: Arquipélago, 2008. p.197-214
MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, Ritmos e Ritos do Rio. In.


___________ (Org.) História da Vida Privada no Brasil, vol.3 – São Paulo: Companhia
das Letras, 1998-b. p.514-619
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. 3ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.
__________. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In.
__________. (Org.) História da Vida Privada no Brasil, vol.3 – São Paulo: Companhia
das Letras, 1998-a. p.7-48
SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
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A COPRESENÇA DOS TEMPOS NAS IMAGENS DA MEMÓRIA: CRISTO SI È


FERMATO A EBOLI, DE CARLO LEVI

Gabriela Kvacek Betella (USP)

1. Tempos e espaços de Carlo Levi

Carlo Levi (1902-1975) foi escritor, jornalista, poeta, pintor e político italiano,
nascido em Turim, de família judia. Uma de suas primeiras atividades jornalísticas
começou em 1922, no jornal Rivoluzione liberale, fundado por Pietro Gobetti, em
tempos de consolidação de ideias socialistas que pregavam a aproximação aos
problemas do sul do país. Nessa época Levi também se iniciava na pintura e cursava
medicina, curso em que se formou em 1924.
A década de 1930 se abre com a opção de Levi pela pintura e pela escrita. Já em
1929 integrava o grupo “Sei pittori di Torino” (com Jessie Boswell, Gigi Chessa,
Francesco Menzio, Nicola Galante, Enrico Paolucci) e participava das mostras de
Turim, Gênova e Milão. Logo em seguida expôs nas Bienais de Veneza, em Buenos
Aires, em Roma e em Paris, onde abriu um estúdio. Contudo, seu interesse pelos
problemas sociais, civis e políticos motivou outras atividades além dos temas de seus
quadros. Do periódico de número único Lotta Politica, publicado clandestinamente em
Turim, ao programa revolucionário do declarado antifascista Quaderni di Giustizia e
libertà, publicado pelo grupo “Giustizia e libertà”, fundado em Paris (refúgio de vários
intelectuais torineses) por Carlo e Nello Roselli, suas ideias tomaram forma em ensaios
cujos pontos centrais são as reivindicações de reformas sociais e de soluções para o
problema meridional, além de uma das questões cruciais para o jornalista Carlo Levi - a
autonomia, princípio fundador da revolução italiana, que deveria seguir a queda do
fascismo.
Dois escritos importantes, “Seconda lettera dall’Italia” e “Il concetto di
autonomia nel programma di GL”, publicados em março de 1932, respectivamente no
segundo e quarto número de Quaderni di Giustizia e Libertà, podem servir como
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amostra do lúcido pensamento de Levi sobre o significado positivo de autogoverno que


sua noção de autonomia inclui, bem como de sua consciência de uma profundidade das
reformas políticas e, especialmente, de uma capacidade de liberdade que deve atingir as
contradições internas das próprias forças revolucionárias, como as de posição comunista
(LEVI, 2004, p. 18-21). Para Nicola Tranfaglia (na introdução a LEVI, 2004), essa
distinção entre o Partido Comunista e o grupo Giustizia e Libertà, que aparece nesses
artigos de 1932, possui certo valor profético, na medida em que o papel dessas duas
linhas na década seguinte, sobretudo na luta pela Libertação, representará um exemplo
de aliança entre forças de esquerda discordantes.
A participação de Carlo Levi no movimento antifascista levou-o à prisão quando
ele estava em Alassio (Ligúr ia), durante alguns meses de 1934. Sofreu uma
admoestação por dois anos, mas continuou escrevendo. Foi preso em maio de 1935,
enviado a Turim e depois para a penitenciária Regina Coeli, em Roma. Em julho foi
condenado a três anos de confinamento 1 a ser cumprido na região da Lucânia, numa
cidadezinha da província de Matera chamada Grassano. Pouco tempo depois foi
transferido para Aliano, muito próxima. A certa altura consegue autorização para
retornar a Grassano por alguns dias, para completar algumas pinturas ali iniciadas. Com
a proclamação do Império após a guerra da Abissínia em 1936, alguns presos políticos
recebem anistia. Levi partiu de Aliano contra a sua vontade, conforme registrou ao final
de seu relato.
Até o final da década de 1930 participou de diversas mostras de pintura e se
transferiu para Paris, devido à perseguição da polícia fascista. Levi retornou para a Itália
em 1941 e aderiu ao Partito d’Azione, com participação na luta pela Libertação. Em
1943 esteve preso por alguns meses em Firenze, e após a soltura assumiu a co-direção
do jornal La Nazione del Popolo, enquanto escrevia, entre dezembro de 1943 e julho de
1944, Cristo parou em Eboli (Cristo si è fermato a Eboli), publicado em 1945 em

1
Confinamento (confino) era uma medida policial introduzida em 1931 para substituir a prisão
domiciliar, e consistia em impor ao condenado o seu deslocamento e permanência em região distante de
seu local de residência.
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Turim, pela Einaudi 2. O livro explora o tempo do exílio com a sensibilidade do


intelectual socialista. O resultado são passagens de grande valor poético, que incluem
habilidade discursiva, conhecimento histórico e filosófico capazes de integrar um caso
popular ou uma análise política e social no relato:

– Nós não somos cristãos – dizem eles –, Cristo parou em Eboli.


Na linguagem deles, cristão significa homem – e esta frase
proverbial, que escutei tantas vezes repetida, talvez não seja em suas
bocas nada mais do que a expressão de um triste complexo de
inferioridade. (...) Contudo, a frase possui um sentido muito mais
profundo que, como de hábito, nos costumes simbólicos, é o sentido
literal. Cristo realmente parou em Eboli, onde a rodovia e o leito da
estrada de ferro abandonam a costa de Salerno e o mar, mergulhando
nas desoladas terras da Lucânia. Cristo nunca chegou aqui, como
também até aqui não chegaram o tempo, nem a alma individual, nem a
esperança, nem a relação entre a causa e os efeitos, a razão e a
História. (...) Ninguém tocou essa terra a não ser como conquistador,
inimigo ou visitante indiferente. As estações transmutam-se sobre seus
trabalhos agrícolas, tanto hoje como há três mil anos antes de Cristo.
Nenhuma mensagem, nem humana nem divina, foi dirigida a essa
pobreza obstinada. Falamos uma linguagem diferente: aqui a nossa
língua é ininteligível. Os grandes viajantes não ultrapassaram as
fronteiras de seu próprio mundo; percorreram os caminhos de suas
próprias almas e aqueles do bem e do mal, da moralidade e da
redenção. Cristo desceu ao inferno subterrâneo do moralismo hebraico
para abrir-lhe as portas temporais e selá-las na eternidade. Mas, nessa
terra desconhecida, sem pecado e sem redenção, onde o mal não é
moral e sim um sofrimento terreno, que existe para todo o sempre nas
próprias coisas, Cristo não desceu. Cristo parou em Eboli. (LEVI,
1986, p. 12)

Em algumas passagens, as descrições das texturas, dos volumes, das cores,


aumentam a plasticidade do texto e a relação estabelecida com a realidade graças ao
olhar do pintor a guiar a composição das imagens no texto:

Tinha sido [a Primeira Guerra] uma grande desgraça, suportada como


todas as outras. Aquela também tinha sido uma guerra de Roma.
Igualmente naquela época, haviam seguido as três cores que aqui

2
O livro apareceu primeiro aos capítulos na revista Il Ponte, fundada em janeiro de 1945 e dirigida por
Piero Calamandrei. A revista privilegiava assuntos políticos, econômicos e sociais. Inspirada nos ideais
da Resistência, Il Ponte procurava não mitificar aqueles tempos dramáticos, mas manter os ideais
humanistas, a dignidade coletiva após a ruína deixada pela guerra e pelo fascismo.
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parecem estranhas, as cores heráldicas de uma outra Itália,


incompreensível, voluntária e violenta. Esse vermelho, insolente e
alegre, e esse verde, absurdo por aqui, onde mesmo as árvores são
cinzentas, onde a relva não brota da argila. Essas cores e todas as
outras são para os nobres. Estão bem nos escudos dos senhores ou
sobre os pavilhões das cidades. Que possuem em comum com as cores
dos camponeses? Sua cor é apenas uma, aquela mesma de seus olhos
tristes e de suas roupas, que não é uma cor mas sim a escuridão da
terra e da morte. (LEVI, 1986, p.161)

Na altura de 1945 Levi vivia em Roma e dirigia L’Italia Libera, e em 1946 era
candidato para a Constituinte, motivo que o levou de volta para a Lucânia, em
campanha política. Foi durante esse retorno que encontrou o jovem poeta Rocco
Scotellaro, com o qual estabeleceu uma relação literária de efeitos muito positivos. Levi
voltou em outras ocasiões para visitar várias regiões do sul do país. As viagens à Sicília
produziram o livro Le parole sono pietre, publicado em 1955.
Após vários escritos gerados em anos profícuos para a literatura, no início da
década de 1960 Levi começou a pintar uma grande obra, o “Lucania ‘61”, apresentado
em Turim durante as comemorações do primeiro centenário da unidade italiana, em
1961. A pintura está exposta numa sala dedicada a Carlo Levi no Palazzo Lanfranchi,
em Matera, na Lucania. Pode-se observar no gigantesco painel algumas cenas que
sintetizam certas passagens do livro que rememora o deslocamento de Levi para a
região devastada pela miséria.
Durante os anos de 1960 a atividade política de Levi esteve livre de legenda de
partido - ele era um candidato “independente de esquerda”, qualificação com a qual foi
eleito senador, por dois mandatos. As mostras de pintura com suas obras continuaram a
se organizar por todo o país. Em 1974, após sofrer consequências de sérios problemas
de saúde, retornou ao sul para apresentar sete litografias inspiradas em Cristo parou em
Eboli, na Lucânia. Em janeiro de 1975 Carlo Levi faleceu em Roma, e foi sepultado em
Aliano.

2. Memórias de exílio compostas em tempos amargos


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Cristo parou em Eboli vem de uma experiência de prisão política, de exílio em


seu próprio país. Levi é “confinado” nas aldeias de Grassano e depois Aliano, que
assume no livro o nome de Gagliano, provavelmente na tentativa de assumir na grafia
uma pronúncia. Além dessa modificação, a narrativa também não apresenta na sua parte
inicial a chegada do narrador à primeira cidade de confinamento, tendo início com as
impressões sobre a segunda aldeia. A situação criada pelo discurso permitiu que as
lembranças de Grassano invadissem o relato sobre a permanência em Gagliano, como
uma curiosa rememoração dentro de outra narrativa do passado – procedimento que
ocorre mais de uma vez, quando o narrador faz uma digressão e volta no tempo
enquanto relembra um momento de reflexão, por exemplo. Na “memória dentro da
memória” o narrador descreve os arredores de Grassano como se tentasse fixar a
paisagem mais firmemente à memória e ao texto, como uma declaração de carinho
numa despedida, ao se deslocar para a segunda cidade, ou ainda tenta associar pessoas e
hierarquias de poder de Grassano aos sujeitos de Gagliano. A certa altura, quando o
narrador nos conta sobre o retorno a Grassano, finalmente sabemos algo sobre a
primeira cidade e a chegada do confinado meses antes: “Tinha chegado lá após meses
de solidão absoluta. Lá tornara a ver, pela primeira vez, as estrelas e a lua, as plantas e
os animais, bem como o rosto dos homens. Assim, Grassano tinha ficado impressa na
minha mente como uma terra de liberdade” (LEVI, 1986, p. 188-189)
Baseando-se na obra mais conhecida de Carlo Levi, o filme de Francesco Rosi
possui título homônimo e faz reviver, em 1979, a história do intelectual obrigado a
morar no sul sob vigilância. A abertura do filme traz a primeira página da narrativa
quase literalmente reproduzida na fala em off do protagonista envelhecido, sentado em
seu estúdio e relembrando, sozinho e através das imagens de seus quadros, o tempo, o
espaço e as pessoas de seu exílio na Lucânia. A câmera passa do rosto de Levi em close
para os quadros que o encaram com a força das pessoas que resistem, como se cada um
retornasse ao protagonista a dúvida sobre o destino deles. A cada olhar das imagens, um
olhar pasmado e frustrado de Levi. A sequência integra texto, audiovisual e pintura para
oferecer logo de início a razão das memórias, a justificativa da volta ao passado para o
retorno das imagens de sofrimento e impotência.
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Após a cena de abertura, o tempo volta através da data “1935” no meio da tela, e
vemos Carlo Levi (interpretado por Gian Maria Volonté) desembarcando na estação de
trem de Eboli, onde troca de trem, sempre acompanhado por dois oficiais. Seguem para
Pisticci, o fim da linha. Depois acompanhamos Levi num automóvel coletivo por uma
estrada tortuosa, subindo a serra, com a visão de duas pequenas cidades, até um
cruzamento em que somente Levi e seus guardiões embarcam num automóvel de
direção inglesa, cujo condutor faz questão de se referir às origensdocarro, comprado
com o dinheiro que havia conseguido trabalhando na América. Assim, Rosi recompõe o
exílio de Levi segundo uma linha tempo-espacial mais fiel à realidade, restituindo a
sequência original do percurso e, mais que isso, oferecendo um sentido mais palpável
para o título da obra. O caráter memorialístico também ganha destaque graças à cena de
abertura e às falas em off que permanecem trazendo passagens do livro durante a
viagem através da paisagem lucana.
A escrita das memórias revisita as impressões do exilado através das diversas
histórias de habitantes locais, camponeses que desenham um painel de homens e
mulheres mostrando as razões da emigração, a exclusão dessa população pelo Estado, o
misticismo religioso, as péssimas condições de saúde. De um modo geral e panorâmico,
a obra cumpre uma função semelhante à do painel “Lucania ‘61”, no sentido de dar
conta de um universo verdadeiro, imediato, palpável, apenas entrevisto pelo pensamento
teórico. A narrativa, por sua vez, parece mapear toda a região, explorar o tempo através
das descrições de mudanças de estação e anular a primeira pessoa do discurso através de
uma diluição promovida pelos momentos descritivos que contaminam o texto. Portanto,
assim como a pintura não torna as imagens necessariamente didáticas ao misturá-las
como num amálgama em movimento de cenas, cenários e pessoas, o texto condensa e
traduz a experiência numa espécie de “travelling intertemporal” capaz de dialogar com
as técnicas do audiovisual que resultam na simultaneidade e nas atualizações e que
podem revelar a ânsia pelo registro e a necessidade do apelo constante à memória.
Curiosamente, o filme de Francesco Rosi não aproveita esse tipo de registro com
quebras tempo-espaciais.
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À medida que o protagonista de Cristo parou em Eboli se envolve com as


pessoas – inclusive por causa de sua formação em medicina – sua resposta humanitária
também aparece na pintura. Em várias passagens são descritos o preparo e a execução
de alguns quadros e, sobretudo, o papel e as particularidades da natureza e das pessoas
como objetos captados pelo artista que os reproduzira nos quadros (pintados no exílio) e
nas descrições que rememoram, anos depois, conduzidas pelo olho do pintor, hábeis em
captar a beleza e o sofrimento da realidade, tanto quanto as telas que correspondem
perfeitamente às descrições:

Outro dos meus fiéis seguidores era Michelino, um garoto com


uns dez anos, ávido, esperto e melancólico, com olhos negros e
opacos, herança de lágrimas ancestrais, que pareciam a verdadeira
imagem daquela aldeia desolada. Contudo, eram os filhos do alfaiate
que me procuravam mais do que todos os outros, principalmente o
menorzinho, Tonino, um garotinho miúdo, vivo, arguto e tímido, com
uma cabecinha morena raspada e olhinhos vivos como verdadeiras
cabeças de alfinetes. (...)
Todas essas crianças tinham alguma coisa de singular; tinham
algo de animal e alguma coisa de homem adulto, como se, com o
nascimento, tivessem recolhido de imediato um fardo de paciência e a
consciência obscura da dor. (LEVI, 1986, p. 252-253)

O livro é produzido num tempo em que se fazia necessário narrar, melhor


dizendo, no tempo em que os registros do que dizia respeito à destruição material e
humana de uma guerra eram legitimados por um veículo artístico. Carlo Levi escreveu o
livro no período decisivo da Segunda Guerra e – particularmente na Itália – de intensas
reviravoltas e grande tensão, devido à divisão de forças no país e à violência instaurada.
Levi não trata do presente, mas da experiência evocada do período de 1935 e 1936. A
frase de abertura, “Passaram-se muitos anos, cheios de guerra e do que se costuma
chamar de História” (LEVI, 1986, p. 11) destaca o tempo que separa o presente da
composição do passado dos fatos narrados. Define logo nas primeiras linhas o seu
processo e as condições sob as quais põe em prática a empreitada da memória:

(...) fechado numa sala, um mundo fechado, é agradável retornar,


através das lembranças, àquele outro mundo, encerrado no sofrimento
e nos costumes, este mundo à margem da História e do Estado,
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eternamente paciente, onde o camponês vive, na miséria e no


afastamento, a sua vida imóvel numa terra árida, diante da morte.
(LEVI, 1986, p. 11)

Ao longo da narrativa, no exercício de volta no tempo, esse narrador prova


novamente o gosto da acolhida durante a qual os conceitos do homem do norte não
valem muito no mundo que concentra uma força histórica tremenda, capaz de provocar
a reflexão sobre outras realidades e, certamente, de potencializar os problemas do
presente. É justo deduzir que o momento de narrar pedia uma atitude que aliasse o ponto
de vista aos acontecimentos imediatos, mas também pode ser legítimo reconhecer a
capacidade do discurso memorialístico de ampliar o espectro das reflexões. Ao localizar
os tempos da escrita e dos fatos, o texto passa a funcionar inevitavelmente nas duas
direções, mesmo com a situação de “exílio voluntário” do espírito no passado. Não é
demais ressaltar que a experiência particular se imbui de universalidade ao oferecer
contribuição ao debate de temas como a “questão meridional” italiana e o
subdesenvolvimento de outras partes do mundo, graças à consciência da realidade
trágica movida e incorporada pela forma literária (CANDIDO, 1989).
Em 1963, Carlo Levi escrevia ao editor Giulio Einaudi para comentar a nova
edição do livro escrito vinte anos antes. Declarava sua consciência da reelaboração dos
fatos descritos, pois desenvolvera “com o auxílio da memória, não apenas os
acontecimentos do passado, mas também a contemporaneidade infinita e poética dos
tempos e dos destinos” (LEVI, 1986, p. 5). Em seu “refúgio contra a morte feroz” em
1943-1944 a memória dos anos de 1935-1936 se tornava uma forma de enfrentamento
da matéria trágica, caótica e catastrófica que se punha diante do escritor. O livro era
uma defesa confessa, mas cerca de trinta anos depois do vivido o autor ainda pode
concluir que o momento da escrita também havia sido uma forma de reviver o outro
“eu”, aquele que descobrira “a história além da história, o tempo fora do tempo, a dor
antes de nada mais, e a si mesmo” (LEVI, 1986, p. 7) através da reformulação da
experiência que o levou à Lucânia.
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3. O poder da imagem inscrita na memória, expressa no texto e nas telas

Trabalhando com a matéria da experiência o autor preserva sua reflexão, num


certo sentido, dos horrores da guerra presente, porque essa matéria não pode ser retirada
pela imposição, nem saqueada, nem retida. O estilo de narrar transcende o mero relato
passivo de lembranças e é atrativo, pois reelabora as imagens da memória durante o
próprio ato da narração, daí a vivacidade impressionante. A dramaticidade do discurso
de Carlo Levi é sutil, mascarada pelo caráter ensaístico que parece se colocar no tom
certo. Não há marcas de romanesco, contudo, existe o poder de sedução de um romance.
Boa parte dessa atração está associada à microhistória traçada pelo cotidiano da
Lucânia. A perspectiva da descoberta não esmorece com os verbos no passado – assim
como o narrador permanece surpreso, por vezes assustado, o leitor também estranha
aquele território tão longe do progresso civil, tão destacado e tão encravado no país que
traça a sua História e sua glória com as guerras, mantendo incoerências. Tal perspectiva
é sabiamente utilizada, uma vez que o leitor se aproxima dos fatos sem deixar de estar
consciente da mediação:

Cerca de umas dez mulheres, com os filhos no colo ou seguros


pela mão, esperavam pacientes, que eu me levantasse. Queriam me
mostrar seus filhos para que eu os tratasse. Todos eram pálidos,
magros, com imensos olhos negros e tristes nos rostos cerúleos, as
barrigas inchadas e retesadas como tambores sobre perninhas tortas e
delgadas. A malária, que não poupa ninguém por aqui, já se tinha
instalado nos seus corpos desnutridos e raquíticos.
(...) Talvez fosse o prestígio natural do forasteiro que vem de
longe e que, por isso, é como um deus; ou teriam elas percebido que,
na minha impotência, tinha me esforçado para fazer qualquer coisa
pelo moribundo e tinha-o olhado com interesse e tristeza reais? Estava
assombrado e envergonhado por aquela confiança, tão completa
quanto imerecida. Despedi-me das mulheres com alguns conselhos e
saí, atrás delas, do cômodo cheio de sombras para a luz ofuscante da
manhã. As sombras das casas eram negras e nítidas, o vento quente
que subia dos barrancos erguia nuvens de poeira: na poeira os cães
catavam suas pulgas. (LEVI, 1986, p. 50-51)

O narrador recompõe a perplexidade vivida naquele momento com a


presentificação das impressões de luz e sombra, de sensações táteis. Levi traz para o
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momento que vivia durante a composição do livro imagens nada consoladoras, posto
que agravantes de uma aflição e do absurdo da desumanização compulsória. Destaca a
impotência e agrava seu sentido com as imagens de abandono, de desolação.

O filme de Francesco Rosi aparece num tempo em que não adiantava muito
gritar, porque antes de tudo era preciso entender as diferenças condensadas na questão
meridional e agir sobre elas, conforme o próprio diretor declarou. Sua ação é a de
transpor para a tela inclusive a dimensão ensaística da obra em forma de narrativa
linear, evitando as digressões e tornando o efeito mais didático (que pagou o preço de
alguns comentários acentuando o caráter pouco analítico do filme), assim como resolve
mostrar a paisagem genuína da Lucânia com belas tomadas que incluem a multiforme
região com resquícios de floresta e recursos que poderiam ser melhor aproveitados por
planos de desenvolvimento do lugar. Desse modo, a leitura do diretor napolitano
certamente tem influência dessa origem sulista, no sentido de oferecer para a aridez e
desolação da paisagem do livro uma possibilidade de modificação, sem apelos ao
pitoresco regional, visto que o filme também se livra da exploração das superstições e
magias que povoam o livro.
Todavia, a construção de imagens não poupa sagacidade documentarista,
dramatização e elegância, distantes do sectarismo que poderia rondar a obra. Não se
pode negar uma nota exagerada no formalismo da reconstrução histórica disposta a
captar uma realidade política e social distante daquele final dos anos de 1970 somente
na aparência. Ainda que seja pela narrativa fragmentada, voltar ao modo de vida
daquela sociedade arcaica e aos sistemas de repressão que atravessaram os tempos é
revelar, de certo modo, uma face única infelizmente disposta a atravessar o milênio,
conforme já profetizava Carlo Levi, de certo modo revisando nos anos de 1940, em
plena presença da guerra, suas próprias posições dos anos de 1920:

(...) num país de pequena burguesia como o é a Itália, onde as


ideologias do pequeno-burguês conseguiram contaminar até mesmo as
classes populares citadinas, é, infelizmente, provável que as novas
instituições que se seguirão ao fascismo, através de uma evolução
lenta ou por obra da violência, e mesmo que surjam de um movimento
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extremista e aparentemente revolucionário, serão levadas a


revalorizar, sob uma outra forma, as antigas ideologias; recriarão um
Estado tão distante da vida, tão sacrossanto e abstrato quanto o outro.
Sob novos nomes e novas bandeiras, perpetuaremos, mais agravado
ainda, o eterno fascismo italiano. (LEVI, 1986, p. 295)

Independente do teor das soluções que Levi apontará, voltadas para a revolução
camponesa e para a reforma radical do Estado, não se pode negar a clareza do
pensamento nessa altura e a contribuição das imagens representadas ao longo do livro
para a nossa compreensão.

Referências

CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. A Educação pela Noite e outros


ensaios. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989, pp. 140-162.
FALDINI, Franca e FOFI, Goffredo. Il certo e l’incerto. In: _____. Il cinema italiano
d’oggi: 1970-1984. Milano: Mondadori, 1984.
LERNER, Giovanna Faleschini. Ogni segno e pittura: Carlo Levi's visual poetics.
University of Pennsylvania, 2005.
LEVI, Carlo. Cristo parou em Eboli. Trad. Wilma F. Ronald de Carvalho. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
LEVI, Carlo. Cristo si è fermato a Eboli. 17. ed. Torino: Einaudi, 2003.
LEVI, Carlo. Galleria di ritratti. Roma: Donzelli, 2000.
LEVI, Carlo. Il dovere dei tempi. Prose politiche e civili. Roma: Donzelli, 2004.
LEVI, Carlo. Paesaggi 1926-1974. Roma: Donzelli, 2001.
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PARA QUE SERVEM AS AULAS DE LITERATURA NO ENSINO MÉDIO?

Gabriela Rodella de Oliveira PG (USP)

Introdução: dos propósitos do exercício etnográfico

Pensar sobre o lugar que a literatura ocupa na escola brasileira hoje significa refletir
sobre como ela é tratada dentro do currículo escolar e sobre as práticas de ensino dessa
disciplina na escola. No sentido de orientar a formação de leitores literários foram
publicadas pelo governo federal, em 2006, as Orientações Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (OCNEM) específicas de literatura. Nelas, destaca-se que é de grande
importância a seleção dos textos feita pelos professores para serem trabalhados em sala
de aula e que a escolha de qualquer texto escrito, “popular ou erudito”, deve levar em
consideração o mesmo “crivo que se usa para os escritos canônicos: há ou não
intencionalidade artística? a realização correspondeu à intenção? quais os recursos
utilizados para tal? qual o seu significado histórico-social? proporciona o texto o
estranhamento, o prazer estético?” (MEC, 2006, p. 57). O documento defende, portanto,
que o texto a ser levado para a sala de aula deva ter uma qualidade estética, partindo do
pressuposto de que ele será lido e trabalhado com os alunos, com vistas à formação de
leitores literários, entendidos no sentido que Umberto Eco atribui ao leitor crítico 1. Tais
orientações, no entanto, vão na contramão das práticas instituídas e perpetuadas nas
salas de aula de português do Ensino Médio.

Como se sabe, o ensino secundário brasileiro começou com a instalação de escolas


jesuítas que passaram a encarregar-se da preparação da população branca – formada à

1
Umberto Eco identifica dois tipos básico de leitor: “O primeiro é a vítima, designada pelas próprias
estratégias enunciativas, o segundo é o leitor crítico, que ri do modo pelo qual foi levado a ser vítima
designada” (Eco, 1989, apud MEC, 2006, p. 68). Segundo as orientações, o leitor vítima seria aquele
interessado no conteúdo do texto, enquanto o leitor crítico se preocuparia com a questão formal, com
o “como” a história é contada. Para as OCNEM, portanto, a principal questão do ensino de literatura
deveria ser justamente fornecer as condições necessárias para que os alunos pudessem se tornar
leitores críticos. Essa concepção de ensino de literatura como ensino de leitura literária tem sido
defendida também por diversos pesquisadores franceses da atualidade, tais como Jean Verrier (2007),
Annie Rouxel (2004) e Baudelot e Chartier (1998).
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época por portugueses e seus descendentes – para o curso universitário português. Nesse
modelo de educação, fundamentado em uma concepção humanista, a literatura era vista
como “posse de um conhecimento erudito e de um patrimônio” (Zilberman, 1988) e
como um “conjunto de modelos estéticos” (Frederico, Osakabe, 2004) necessários para
unir os sujeitos que a ele tivessem acesso e para também diferenciá-los.
A segunda metade do século XIX trouxe mudanças para o ensino da disciplina. O
conceito de literatura como conjunto de modelos persistiu, mas não se tratava mais dos
modelos estéticos da “concepção clássica” e sim de modelos como “monumentos
definidores das particularidades de uma língua e, via de regra, de uma nacionalidade”
(Frederico, Osakabe, 2004). Algum tempo depois, em fins do século XIX, José
Veríssimo, homem de letras e crítico literário, passou a defender um movimento pela
presença de obras brasileiras no que era chamado o livro de leitura, antologia de trechos
de obras literárias usada para o ensino (LAJOLO, 1982). Dessa maneira, entrava para o
currículo a “história da literatura nacional.
Pesquisas de campo realizadas com professores do então chamado colegial nas
décadas de 1970 (ROCCO, 1981), 1980 (VIEIRA, 1988), 1990 (LEAHY-DIOS, 1995)
e 2000 (OLIVEIRA, 2008) apontam que nas quatro últimas décadas os professores
continuam optando pelo ensino tradicional de história da literatura, que privilegia o
estudo de dados sobre a biografia dos autores e o contexto sócio-histórico dos
movimentos literários, organizado a partir da leitura de textos curtos ou de fragmentos
de obras de autores selecionados dentro de um cânone escolar. Essa ênfase tem como
consequência a ausência da proposta de leitura de textos maiores, sem que se trabalhe
com a organização da linguagem literária ou os valores estéticos de uma obra, o que
provavelmente não leva à formação de leitores literários.
Tendo em vista essas constatações, interessou-nos a idéia de poder verificar in loco
como são as aulas de literatura hoje e se elas ajudam na formação de leitores literários.
Assim, fomos a campo para observar as aulas de literatura de um professor de Ensino
Médio da rede estadual. Depois de algumas dificuldades, chegamos à escola que nos
aceitou como observadora. As observações foram realizadas nos dias 26, 27 e 29 de
outubro, 13, 23 e 24 de novembro e 17 de dezembro de 2009.
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1. A escola e o corpo docente

A Escola Estadual Marquês de Tamandaré fica no bairro da Freguesia do Ó, à rua


Jacaré Copaíba, 33. Essa parte do bairro, considerada por alguns professores com os
quais conversamos de “classe média baixa”, já afastada da zona da Marginal Tietê, é
uma área bem cuidada e fica perto de uma grande avenida da região, que tem certa
arborização. Uma das professoras nos disse, no entanto, que há favelas muito próximas
e que considera a região como periférica.
Tida como uma boa escola pela comunidade que a freqüenta, a Tamandaré, como é
chamada pelo corpo docente e discente, tem cerca de 2 mil alunos e funciona em três
turnos. Por determinação da Diretoria de Ensino da zona Norte e da Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo, a escola recebe mais alunos de Ensino Fundamental
II do que de Ensino Médio. As turmas de Ensino Médio concentram-se pela manhã (três
turmas de primeiro ano, uma de segundo e mais uma de terceiro) e à noite (com muito
mais turmas desse ciclo nesse período).
Nas salas de aula, a impressão que se tem é a de que as carteiras e cadeiras são
pequenas para os alunos do Ensino Médio. Pintadas de verde claro, as salas têm 40
metros quadrados e deveriam receber no máximo 37 alunos, mas há salas com mais de
45 alunos tanto pela manhã como à noite, principalmente nas turmas de Ensino Médio.
Sintoma das salas-ambiente, em geral, os professores ficam em suas salas e os alunos é
que circulam de sala em sala. Os deslocamentos, segundo José (professor cujas aulas
observamos) 2, têm a função de “sossegar” os alunos, que aproveitam para se mexer e
conversar um pouco mais alto por alguns minutos, enquanto trocam de sala. Quando
isso não acontece, os alunos tendem a ficar mais tensos e mais irritados e se torna mais
difícil “controlá-los”.
Durante a observação foi possível perceber, por um lado, uma preocupação de todo o
corpo docente e da vice-diretora no sentido de preservar o espaço destinado aos
professores e aos funcionários da escola, evitando a presença dos alunos; a estes é
permitido o acesso às salas de aula somente durante os momentos em que estão em aula.

2
Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos sujeitos citados no artigo.
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A mudança constante de sala faz com tenham de carregar suas mochilas para o
intervalo; nesse período, em que a circulação fica restrita ao pátio, observou-se um
fenômeno que denominamos “itinerância permanente”. Por outro lado – quando de uma
discussão sobre a necessidade da instalação de uma grade que separasse o espaço dos
alunos do espaço dos professores – foi possível notar a preocupação da escola de não se
assemelhar a uma cadeia.
Esses elementos parecem constituir um efeito de lugar 3 que toma corpo na ação dos
sujeitos dentro do espaço físico da escola. Como observa Bourdieu (2003, p. 165), se “o
habitat contribui para fazer o hábito, o hábito contribui também para fazer o habitat
através dos costumes sociais mais ou menos adequados que ele estimula a fazer”. Os
adultos parecem buscar a segregação em relação aos alunos, ainda que à maneira
disfarçada de uma grade “bonita”, e a esses últimos não é permitido ter uma sala ou um
lugar que sejam “seus”, onde possam ficar quando não estão em aula e onde possam
guardar seus pertences, ficando assim sujeitos a uma constante perambulação.

2. O professor

José tem 26 anos e é professor de português há seis anos. Filho de pais que
trabalharam na área de turismo, em agências, ele nos contou que quem gosta de ler em
sua casa é sua mãe. Leitora ávida de romances policiais, ela havia lido recentemente
toda a série de livros sobre Harry Potter e os da série Crepúsculo, apesar da crítica do
filho a esses últimos. Segundo o professor, ela costuma ter sempre um livro perto de si.
O pai já gosta mais de ler jornal.
Com relação a seus próprios hábitos de leitura, José nos contou que só lê romances
nas férias, quando tem tempo. Durante o ano letivo, ele prefere os livros de auto-ajuda,
que pode ler de maneira fragmentada, entre as atividades na escola, a preparação das
aulas e correção dos trabalhos dos alunos, suas aulas de yoga e seu treino na academia.
Comentou também que um dos livros de que mais gosta é de Clarice Lispector,

3
“Os efeitos de lugar”, explica Pereira et. al. (2006, p. 13), “são as formas pelas quais as características
do espaço físico são incorporadas pelos agentes e, simultaneamente, os modos pelos quais os
indivíduos emprestam ao espaço físico suas propriedades distintivas”.
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confessando que quase havia desistido de lê-lo durante a faculdade. Mas explicou que,
passadas as dez primeiras páginas, a leitura correu bem, tendo afirmado que considera
esse livro um dos melhores dentre os 150/200 livros que já leu na vida, ainda que não se
lembrasse do nome. Questionado se seus alunos liam, José respondeu que não, que eles
não liam, tendo atribuído a falta de interesse deles pela leitura a uma provável falta de
valorização dessa atividade por parte dos respectivos pais 4. Quando perguntamos se ele
havia pedido a leitura de livros durante o ano letivo, respondeu que havia feito isso no
ano anterior e comentou que pretendia pedir a leitura de livros no próximo ano.
À época de prestar o vestibular, a primeira opção de José foi pelo curso de
Jornalismo, para o qual se inscreveu no vestibular da FUVEST. Como não passou,
resolveu tentar o curso de Letras, pensando em se tornar revisor ou preparador de textos
e entrar para a área de edição ou ainda em se tornar tradutor. Chegou a passar no
vestibular do Mackenzie, mas como o valor das prestações era muito alto, decidiu-se
pelo curso da faculdade UniNove. Ao chegar ao segundo ano do curso de Letras, no
entanto, começou a se interessar pelos assuntos da Educação e, ao fazer um estágio em
sala de aula, acabou optando pela docência. Tendo passado em concurso do Estado,
começou a dar aulas e está no Tamandaré há cinco anos. Afirmou que se sente
“confortável” com sua escolha e com a profissão, embora, em alguns momentos reflita
sobre a possibilidade de mudar de rumo algum dia.

3. Uma aula de literatura no 1º B

Durante o período de observação, acompanhamos as aulas do professor José por seis


dias letivos inteiros, tendo observado suas aulas no 1º B, no 1º C, no 2º A, no 3º e em
uma 8ª série. Foram cerca de seis aulas por dia, tendo havido ocasiões em que eram

4
Em pesquisa realizada com professores de literatura da rede estadual da cidade de São Paulo, Oliveira
(2008, p. 91) afirma que dentre as causas apontadas pelos professores como responsáveis pela
constituição de um aluno carente do ponto de vista intelectual estão as “famílias de origem dos
estudantes, acusadas de não ‘incentivar’ o hábito da leitura, de não ‘motivar’ seus filhos a ler e de não
dar ‘exemplos’ que possam ser seguidos.” Dessa maneira, no discurso dos professores, os jovens que
freqüentam hoje o Ensino Médio não teriam aprendido a valorizar a leitura ou a literatura,
“deficiência” que se reflete no trabalho em sala de aula.
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ministradas duas aulas seguidas em uma mesma turma. Para este relato, optamos por
descrever a primeira aula observada no 1º B, pois, após a análise do diário de campo
produzido durante o período em que estivemos na escola, foi possível perceber que dela
já constava grande parte da dinâmica presente em todas as aulas do professor.
Nessa primeira aula observada, que começou às 7h20, o professor procedeu a uma
recapitulação da matéria vista ao longo do ano, desenhando na lousa uma linha do
tempo da história da literatura, de 1200 d.C. a 1800 d.C. Ao comentário de uma aluna:
“Lá vem a famosa linha do tempo...”, o professor respondeu: “Que eu sempre vou
cobrar!” Em seguida, foram distribuídos aos alunos os livros de português do Ensino
Médio de Maia, que ficam em estante da sala de aula do professor de português. Foi
lido então em voz alta por um dos alunos um trecho do livro sobre o Neoclassicismo.
Em comentário sobre a passagem do período Barroco para o período Árcade e
Neoclássico, José ressaltou a importância do movimento intelectual do Iluminismo. Ao
falar sobre Rousseau, afirmou que para o pensador o homem era bom por princípio,
sendo a vida em sociedade a grande causadora de todos os problemas. Um aluno
sentado na frente da sala questionou-o: “Mas e quem nasce psicopata?”. José respondeu
que essas eram as idéias de Rousseau e continuou sua exposição, destacando o
desenvolvimento da ciência no mesmo período. Nesse momento, um segundo aluno,
Fernando, garoto alto, agitado, inteligente e participativo, sentado ao fundo da sala, fez
a seguinte observação: “Professor, como, de uma hora para outra, todo mundo resolve
mudar de opinião?”. José respondeu dizendo que não era “assim de uma hora para
outra”, que ele já havia explicado como se dava esse processo e relembrou que “o único
movimento que teve hora e lugar para começar foi o Modernismo brasileiro, que se
iniciou em 13 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo, às 20h”.
Acrescentou ainda que essas nomeações eram feitas a posteriori, quando tudo já havia
acontecido, ressaltando que hoje temos muitos tipos de livros diferentes (como os
romances policiais, os de vampiros, os livros de auto-ajuda) e que não sabemos como
seremos nomeados daqui a alguns anos. Retomando a explicação sobre o Arcadismo e o
Neoclassicismo, José contou que se tratava de um período cuja literatura havia sido
“elitizada” e que o movimento era “dos mais fracos”, além de ter sido “irrisório”,
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“chato”, “sem importância”, “só ter tido poesias” e de não ter sequer influenciado o
Romantismo, movimento que eles estudariam no 2º ano, “esse sim digno de nota”.
Às 7h40, foi retomada a leitura em voz alta do texto expositivo do livro didático.
José ressaltou, ao final da leitura, que Bocage era um autor importante, pois seus
poemas por vezes constavam dos vestibulares. Na seqüência, o professor explicou ainda
que “os movimentos mais distantes da gente têm temas um pouco mais chatos; depois,
tudo fica mais interessante, porque os autores precisam vender para as pessoas e não
escrevem mais para reis ou para a classe dominante”. Houve ainda uma discussão sobre
uma imagem do período neoclássico presente no livro didático, que mostrava duas
mulheres nuas. Um dos alunos disse que estava “todo mundo pelado no quadro”, outro
afirmou que aquilo era “pedofilia”. O professor classificou a imagem como um “nu
artístico”, explicou que se tratava de “influência da arte da Grécia Antiga” e seguiu com
a aula. Em vez de resposta às questões propostas pelo livro, o professor propôs na lousa
duas perguntas para os alunos: “1) Qual o tema central do poema?; 2) Identifique
características do movimento árcade no poema.” Conforme José nos explicou em
seguida, as perguntas do livro tratavam também de questões linguísticas, das quais ele
não achava apropriado se ocupar naquele momento.
Durante a leitura e a exposição da matéria, metade da classe acompanhava pelo livro
e metade só escutava, sendo que alguns grupos conversavam baixinho. Mas, de modo
geral, a sala estava relativamente tranqüila. Às 8h05, porém, a dinâmica da escola
passou a interferir no ritmo da aula. Nesse momento a inspetora bateu à porta,
perguntando se uma aluna atrasada poderia entrar na sala de aula. O professor
aquiesceu. Em seguida foi retomada a leitura de um poema de Bocage por Maria, uma
aluna que se prontificou a lê-lo, mas, às 8h07, foi interrompida pela outra professora de
português do Ensino Médio, que bateu à porta para perguntar algo a José. Alguns
meninos passaram então a conversar mais alto, uma aluna resolveu pintar os olhos e
outra passou a fazer anotações no que pareceu ser um diário ou agenda decorada com
flores. Às 8h10 foi a vez de um aluno bater à porta. Quando ela foi aberta, ele gritou
algo e os alunos do 1º B responderam aos berros. José repreendeu-os e retomou a aula.
Às 8h15, chamado pela professora de matemática, o professor desceu para acudir o 1º
C, sem aula em função da falta de um professor (os professores em geral buscavam “se
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desdobrar”, dando aulas em duas salas ao mesmo tempo). Mas o 1º C comprometeu-se a


ficar quieto durante a aula vaga e José pôde continuar somente com a aula no 1º B. A
dispersão foi contínua durante todo o restante da aula. Faltando menos de 5 minutos
para o seu final, dois alunos se prontificaram a responder às questões e o professor ditou
as respostas “certas”, para que todos as tivessem registradas em seus cadernos,
apagando a lousa em seguida. Aulas semelhantes, que tenderam ainda mais à dispersão
e ao barulho, foram observadas ao longo do período de observação.
Todas as aulas de literatura observadas foram aulas sobre história da literatura. Nelas
não se leu nem se discutiu nenhuma obra específica ou trecho de texto literário, à
exceção do soneto de Bocage 5. O que observamos os alunos fazerem foi copirar
informações sobre o contexto sócio-histórico e sobre a biografia dos principais autores
de determinados períodos literários, com a explicitação de que se esperava que os dados
fossem memorizados e que isso talvez lhes servissem quando fossem prestar algum
concurso vestibular. Parece ser em função dessa idéia de ensino propedêutico que os
currículos de português são estruturados.
Ao optar por abordar a história da literatura, o professor se vê diante do desafio de
dar conta de uma série de conteúdos de cunho sócio-histórico e filosófico para o qual,
muitas vezes, não está preparado. Ao questionar a afirmação de Rousseau, por exemplo,
o aluno propôs uma discussão, a que José se furtou, aparentemente por dificuldade em
desenvolvê-la. A aula fica, nesse sentido, reduzida ao argumento de autoridade de um
filósofo, sem que as implicações de suas reflexões possam de fato ser trabalhadas, ou
seja, sem que se conheça seu pensamento. Aos alunos é negado o acesso ao
conhecimento. O que parece se esperar deles é que adquiram a habilidade de articular
cronologicamente informações fragmentadas sobre certas figuras importantes de
diversos cânones (literário, filosófico, histórico, etc.), sem que saibam efetivamente
sobre o que refletiram e discorreram essas figuras. Como observa Geraldi:

não se trata de trabalhar com dados ou fatos

5
Rocco (1981) já chamava a atenção para a preferência dada pelos professores ao trabalho com aspectos
da biografia do autor e da história da literatura, além da aquisição de cultura, em detrimento do
trabalho com o próprio texto. Vieira (1988) também aponta a tendência docente de deixar em segundo
plano os valores estéticos da obra literária.
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para, refletindo sobre estes, produzir uma


explicação. Trata-se de aprender/ensinar as
explicações já produzidas e fazer os exercícios
para chegar a respostas que o saber já
produzido havia previamente fornecido.
(GERALDI, 2002, p. 92)

A questão que mais nos chamou a atenção, no entanto, foi o trabalho com a cópia da
lousa. Por que fazer com que os alunos copiassem poemas, textos sobre biografias de
autores e sobre características de períodos literários ou pontos gramaticais com tanta
frequência? A explicação que o professor nos forneceu sobre a atividade da cópia, é que
esta serve para que os alunos fixem os conteúdos estudados e para que os tenham
arquivados, já que precisarão devolver os livros para a escola ao final do ano letivo.
Dessa maneira, eles poderão consultar seus cadernos quando precisarem rever a matéria
para um concurso. Além disso, enquanto os alunos copiam, ele pode aproveitar o tempo
para dar conta de todas as suas outras atribuições escolares (como corrigir provas,
trabalhos e redações, preencher diários, dar vistos em cadernos, etc.). Nesse sentido,
José parece entender a cópia como uma estratégia legítima para se “resguardar” do
desgaste da profissão. Segundo ele, quando envolvidos nessa tarefa, com a qual aliás
estão acostumados (“eles mesmos pedem a matéria na lousa”), os alunos tendem a ficar
mais quietos e a se comportar melhor. Mas – José fez questão de ressaltar – isso só
acontece se o professor realmente der visto nos cadernos depois: professores que não se
dão ao trabalho de olhar os cadernos de seus alunos não costumam contar com a
colaboração deles em sala de aula. A cópia parece então ter relação direta com o visto
nos cadernos. Entretanto, há outra modalidade de trabalho que parece render à cópia
uma apreciação negativa pelo professor: com relação à correção de trabalhos feitos em
casa, José chegou a comentar que ele só lê a introdução e a conclusão porque o resto
“eles copiam da internet mesmo...”. Mas como os alunos produziriam trabalhos sem
“copiá-los”, se são treinados a copiar tudo da lousa em sala?
François Bresson, em seu artigo “A leitura e suas dificuldades” (2001), chama a
atenção para o fato de que, ao contrário da linguagem oral (forma da língua que poderia
ser considerada “natural”, já que pode ser adquirida espontaneamente no contato com a
palavra do outro), a escrita e a leitura não podem ser objetos de um procedimento
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espontâneo de aquisição. Segundo o autor, essas são práticas sociais instituídas, que não
podem ser transmitidas pelo simples contato com a escrita ou a partir da observação de
alguém lendo. Traçando um paralelo, poderíamos perguntar se o desenvolvimento de
uma pesquisa ou a escrita de trabalhos comprometidos com a análise e a pesquisa não
dependem de habilidades que precisam ser ensinadas e desenvolvidas pela própria
escola. Será legítimo esperar que os alunos ajam de maneira diferente e que não se
prestem a copiar da internet os textos que entregam como trabalhos seus? Afinal, o que
é que se ensina em uma sala de aula de Português do Ensino Médio?

Conclusão: o que é ensinado em uma aula de literatura?

Nos últimos dias do ano letivo, José reservou um bom tempo das aulas em todas as
salas para dar vistos nos cadernos. Tanto a cópia da matéria colocada na lousa, como as
respostas às questões propostas e a organização dos conteúdos foram vistadas.
Uma das alunas, que recebeu uma nota dez com direito a um “Excelente!” assinado
por José, voltou para sua carteira exultante com o resultado e com o fato de o professor
ter dado visto “em todas as páginas!” de seu caderno, tendo exclamado ainda: “Que da
hora!”. Na sala do 1º C, pudemos observar outra aluna que copiou todo o bimestre do
caderno de uma outra colega, enquanto o professor olhava os cadernos de outros alunos.
Alternando canetas de cores diferentes, ela copiou tudo, inclusive as respostas que a
amiga havia dado às questões colocadas ao longo do último bimestre de 2009. Um
pouco antes do final da aula, levou seu caderno para a vistoria. Recebeu um 8,5, em
função da falta da cópia da matéria dada nas últimas aulas e retornou à sua carteira feliz
com o resultado e dizendo-nos que sua mãe ficaria contente com a nota obtida.
De alguma maneira, o esforço por manter os alunos quietos nas salas de aula, o
emprego da estratégia da cópia da matéria e a criação de laços de identificação com os
alunos fizeram sentido quando presenciamos o impacto que o momento de vistoria dos
cadernos causou nos estudantes. Não se tratava, portanto, do ensino de história da
literatura ou mesmo do ensino de gramática e muito menos da formação de leitores
literários. Pois, então, do que se tratava?
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O tecido da cultura – entendida como trama de significados, como a conceitua


Geertz6 – é composto de práticas hierarquizadas, nas quais estão implícitos valores e
representações. Muitos autores afirmam que a cultura é conservadora, porque em geral
os indivíduos buscam sentir-se seguros em suas vidas. A escola também é conservadora,
resistente. Ela está imersa em uma cultura mais ampla, mas, como tem suas
especificidades, institui regras e práticas particulares, uma “cultura escolar”, descrita
pelo historiador Dominique Julia (2001) como “um conjunto de normas que definem
conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem
a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”. A sala
de aula é um espaço de comunicação. Se o aluno não consegue inserir-se dentro do
espaço escolar, ele tem grandes chances de fracassar. Quando um aluno não consegue
ter atitudes “adequadas”, obedecer a regras de interação, ele está fadado a ser excluído
do grupo.
Na escola, lugar, portanto, de aprendizagem não só de saberes, mas também da
aprendizagem de formas de exercício do poder e de relações com o poder, como
observa Lahire (2004, p. 59), o professor parece esperar que os alunos apresentem um
comportamento “ideal” que pressupõe o autocontrole, a sensatez, a racionalidade, a
autodisciplina e a capacidade de se organizar sozinhos. José, no entanto, parece não
partir do pressuposto de que o aluno deveria trazer essas disposições de casa. Pelo
contrário, ele não se furta ao trabalho de desenvolvê-las em sala de aula com seus
alunos e parece fazer isso justamente por meio da cópia, recompensada ao final de cada
bimestre com momentos individuais de sua atenção, com a marca de sua caligrafia em
cada caderno, com uma nota condizente com o trabalho pedido, a partir de um
combinado acordado anteriormente com os alunos. Dessa maneira, eles sabem o que é
esperado deles e ficam satisfeitos quando os resultados de seus trabalhos cumprem as
expectativas do professor e as suas próprias. De alguma maneira, ao corresponderem

6
O antropólogo defende um conceito de cultura essencialmente semiótico, partindo do pressuposto de
que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu e que a cultura é essa
teia. Geertz afirma, citando Goodenough, que “a cultura [está localizada] na mente e no coração dos
homens”. Nesse sentido, ela seria composta de “estruturas psicológicas por meio das quais os
indivíduos ou grupos de indivíduos guiam seu comportamento, consistindo no que quer que seja que
alguém tem que saber ou [em que tem que] acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus
membros”. Para o autor, “a cultura é pública porque a significação/o significado é pública/o” (Geertz,
1987, tradução nossa).
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àquilo que o professor espera deles e receberem por isso atenção e uma nota coerente
com a sua produção, os alunos parecem sentir-se respeitados.
Nesse sentido, o que é ensinado nas salas do professor José parece não ter relação
com o saber sobre a literatura em si ou com um saber sobre a história da literatura, mas
sim com um tipo de organização materializada no caderno por meio da cópia, com um
tipo de trabalho do professor, que é colocar na lousa o que julga importante e conseguir
a obediência a seu comando, ou seja, o que é ensinado tem a ver com o respeito à figura
do professor e com a sua autoridade, tanto no que se refere à orientação de atividades
como à avaliação do trabalho realizado.

Referências

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LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola. Bilac e a literatura escolar na


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PÉ DE PILÃO: UMA LEITURA DO GÊNERO LÍRICO

Clair Fátima Zacchi (Unoesc- São Miguel do Oeste)

Introdução

“Poesia é brinquedo de criança”. “Poesia é brincar com palavras/como se brinca com


a bola, papagaio, pião”. “Meus pés/são dois moleques divertidos/brincando de poesia./”
A poesia são pássaros que pousam no livro, que alçam voo, que se alimentam do leitor.
Tomamos de Bordini (1991), Paes (2001), Dinorah (1994) e Quintana (1984) as belas
definições para iniciarmos nossa conversa/leitura e dizer que compartilhamos da ideia
desses poetas e escritores que, entre outros elementos, estabelecem um jogo lúdico,
“brincadeira” de sentidos com a linguagem de seus versos, proposta do paradigma
lúdico.
Modernamente, no sentido literário, a poesia se alarga para um leitor especial: o
leitor infantil/juvenil, embora nem sempre esse gênero tenha sido/seja visto como o
“brincar com palavras/como se brinca com a bola, papagaio, pião”; ou ainda, “Poesia é
brinquedo de criança” – título que abre a obra de Bordini (Poesia Infantil 1991), na qual
a autora expõe a trajetória da poesia destinada ao público infantil, mostrando,
historicamente, a divisão entre mundo infantil e mundo adulto e como a lírica
“transitou/transita nesse universo.
Desde sua escolarização – século XVIII –, a lírica se efetiva segundo os interesses e
critérios adotados pelos organizadores/autores dos manuais escolares. A respeito da
escolarização da literatura, Magda Soares (2001), em seu artigo A escolarização da
literatura infantil e juvenil, aponta que não há como não escolarizar o que se converte
em saber escolar (a literatura). Em seguida, questiona o modo como essa escolarização
se efetiva e o modo como são trabalhados os textos literários, nos livros didáticos,
analisando-os. Segundo a autora,
essa escolarização acaba por adquirir […] sentido negativo, pela
maneira como ela tem se realizado, no quotidiano da escola. […] se
pode criticar […] a inadequada, a errônea, a imprópria escolarização
da literatura, que se traduz em sua deturpação, falsificação, distorção,
como resultado de uma pedagogização ou uma didatização mal
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compreendidas que, ao transformar o literário em escolar, desfigura-o,


desvirtua-o, falseia-o. (SOARES, 2001, p. 21-22).

A pedagogização e didatização da literatura, e sobretudo do gênero lírico, começam


já no período de sua formação, ao final do século XX, quando se caracterizava pelo
compromisso e obediência aos interesses relacionados ao caráter didático-moralista.
O papel lingüístico-pedagógico da literatura instaura-se no século XVIII, quando
passa a ser matéria de ensino pelo fato de utilizar-se da língua escrita, interessando ao
Estado Burguês que, em formação, necessitava de uma língua “homogênea” e nacional
que lhe garantisse identidade e distinção. Assim, aprende-se literatura para dominar a
língua culta, para estudar gramática e/ou linguística – como ainda fazem alguns
professores e pensam alguns estudantes: “Literatura é um estudo que não me agrada, por
isso não gosto de defini-lo.” ou “Literatura é um método que ensina a estudar a maneira
como os poetas escrevem, levando em conta a época e os meios que os influenciaram”. 7
Observemos que essa última fala denota a literatura como estudo de poetas dentro de
um determinado período literário.
Como podemos perceber, a literatura “entra” para a escola com objetivos
pedagógicos bem definidos. De lá para cá, apesar de haver um esforço para romper com
essa tendência pedagogizante, a literatura ainda é vista/tomada pela escola como veículo
de aprendizagem linguístico-pedagógica e moralista, servindo de “pretextos”, como
apontou Magda Soares. Esses pretextos podem ser percebidos tanto por parte das
escolas como em seus manuais didáticos. E nesse sentido, escola e professor precisam
estar atentos ao encaminhamento dado à literatura.
Se a literatura, no espaço escolar, for encaminhada como pretexto – recurso utilizado
pela escola do século XVIII – como garantir, para além da formação conteudística, a
formação literária, entendida, aqui, como conhecimento e modalidade de produção
humana? O questionamento nos leva para uma interrogação maior: que ensino de
literatura há hoje? Qual paradigma perpassa esse ensino?
Entre as décadas de 20 e 50 do século XX, tenta-se uma desvinculação do caráter
moral dado à literatura. Porém, só na década de 60 deste mesmo século, a poesia rompe
com o utilitarismo pedagógico e assume as características da poética moderna. De

7
Definição de Teresa Cristina, estudante de 15 anos (apud ZACCHI, 2000, p. 22).
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acordo com Luís Camargo (2000), desenhou-se, então, a passagem de um paradigma


moral e cívico para um paradigma estético e, posteriormente, para o paradigma lúdico.
No paradigma moral e cívico, os poemas deveriam ser usados, nas aulas, como
instrução primária, versando sobre a educação moral das crianças. Por isso, a temática
estava relacionada aos valores cívicos, morais e familiares, e os livros eram escritos sob
encomenda e publicados por editoras de livros didáticos. Olavo Bilac, poeta parnasiano,
é autor de Poesias infantis (1904), obra “encomendada” e elaborada com esse propósito.
A lírica visava, principalmente, à aprendizagem da língua portuguesa e estava
comprometida em formar o aluno como cidadão “(...) de bons sentimentos […], pois a
criança era entendida como um adulto em miniatura que precisava assimilar, o mais
rápido e o mais perfeitamente possível, o modo de ser, pensar e agir do adulto”, como
registra Coelho (2000, p. 224). Via de regra, os poemas infantis funcionavam como
“manuais” de bons costumes, de moral e obediência
Esse paradigma evidencia os primeiros indícios de declínio, com Henriqueta Lisboa
(1943), em O menino poeta, no qual a autora esboça uma poesia de grande lirismo e de
metáforas. Com A televisão da bicharada, Sidónio Muralha (1962) lança o paradigma
estético, cuja consolidação acontece com Cecília Meireles e Vinícius de Moraes. Esse
paradigma tem como principal característica o trabalho com a linguagem, destacando-se
o humor e os jogos rítmicos e sonoros. O paradigma lúdico, representado por Sérgio
Capparelli e José Paulo Paes – mais recentemente – vem fortemente marcado pelo
humor, pelo ilógico, enfatizando o jogo/ludismo sonoro.
Dentro do paradigma lúdico, o texto literário se assemelha a um jogo e, as
manifestações do lúdico, na poesia, acontecem por diferentes elementos associados ao
jogo de maneira geral, que, simbolicamente, representa uma luta. Amarilha (2003),
partindo dessa idéia, observa: “O sentimento de combate é fundamental para toda
atividade lúdica manifestada em jogo, assim como entendo que a poesia o seja”. E
continua explicitando que as condições de jogo se dão no poema “(...) quando poeta e
leitor se encontram no texto e o leitor tenta recriar as possíveis significações escondidas
nas palavras propostas pelo poeta. (AMARILHA, 2003, p. 28). Massaud Moisés (2000,
p.41) coloca que a expressão da poesia se dá “(...) por meio de linguagem conotativa ou
de metáforas polivalentes (...) E prossegue: “Tais metáforas, dada sua múltipla valência,
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constituem-se de três camadas (a emocional, a sentimental e a conceptual, não


superpostas, mas imbricadas ou inter-relacionadas).”
Evidenciamos o exposto nesse paradigma na criação literária de Mário Quintana, Pé
de pilão.

1. Pé de pilão e seus aspectos caracterizadores nos paradigmas estético e lúdico

Pé de Pilão (2001), nome que nasceu da quadra popular “Pé de pilão/ carne seca com
feijão./Arreda camundongo,/Pra passar o batalhão!”, é uma das mais belas obras de
Mário Quintana. O poema narrativo – característica da poesia modernista –, mostra a
história de um menino que virou pato. “O pato, naqueles dias,/ Era um menino, o
Matias. (QUINTANA, 2001, não pag). O menino fora enfeitiçado pela Fada Mascarada:

“Olha, menino, o que eu trouxe!”


E lhe mostra um lindo doce.

Ele, guloso e contente,


Finca o dente no presente.

Vai falar. Mas que é que há?


Só pode dizer quá... quá...

Pois, o menino tão belo


Virou patinho amarelo.
(QUINTANA, 2001, não pag.).

O texto está estruturado em dísticos (estrofes de dois versos), redondilhas (sete


sílabas) e rimas binárias (aa bb cc...). Essas rimas produzem uma espécie de compasso
de música, cujo ritmo é facilmente percebido, quando o poema é lido em voz alta.
A fluidez da narrativa também é marcada, de verso em verso, pela apresentação de
novos personagens, que no “percurso” se somam, inesperadamente, surpreendendo o
leitor. De leitura envolvente e divertida, é um bom exemplo de poema que reúne
aspectos dos paradigmas estético e lúdico –, criando muitas possibilidades de imaginar
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e construir imagens, ao mesmo tempo em que instiga o leitor a querer saber o que vem
depois.
O poema inicia em médias res, apresentando o pato-menino enfeitiçado pela Fada
Mascarada, que deseja tirar retrato para mandar à sua avó. Já no início, surge a
complicação. O macaco tenta tirar retrato do pato, quando chega o passarinho: “- Eu
também quero retrato!” Nesse instante, passa um polícia: “Uma briga? Que delícia!”

O polícia era um cavalo


Montado noutro cavalo.

Entra como um pé-de-vento


Prende tudo num momento.
(QUINTANA, 2001, não pag.).
A narrativa é interrompida para apresentar o feitiço sofrido pela avó Alice e o neto
Matias, agora pato. Na sequência, os versos mostram como o pato se perde na floresta e
é encontrado, num regato, pela menina Rosa. O pato, então, vai à escola com a menina e
aprende muitas lições. A história retoma a confusão inicial, em que há o polícia levando
pato, macaco e passarinho à cadeia. A esses personagens, é acrescida uma cobra
cascavel. “E entra nova personagem/Para dar gosto à viagem/Uma cobra cascavel/Bicho
enganoso e cruel.”
O apelo de Quintana aos seus leitores, independentemente de idade, está na
construção de sentidos que ultrapassam as idéias aparentes. O fato de os acontecimentos
não se desenrolarem de forma linear, convocam o leitor a ordenar os fatos, tecê-los e
alinhavá-los.
Desse modo, Pé de pilão, além das características do paradigma estético –
elaboração da linguagem – é intensamente marcado pelo paradigma lúdico, no qual o
jogo sonoro, o humor, o inesperado fazem dessa narrativa uma lírica tão ímpar e tão ao
gosto infantil. Como pode um pato tirar retrato para mandar à avó? “O pato ganhou
sapato,/ Foi logo tirar retrato.”/ O macaco retratista /Era mesmo um grande artista./
Disse ao pato: “Não se mexa/ Para depois não ter queixa.” Os versos são quase uma
música. E prossegue: “E o pato, duro e sem graça/ Como se fosse de massa!/ “Olhe pra
cá direitinho/ vai sair um passarinho.” (QUINTANA, 2001, não pag.).
A estranheza inicial, causada pelo ilogismo, mostra como diz Bordini (1991, p. 13),
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uma das modernas convenções sobre o uso poético da linguagem


verbal — aquele em que as palavras sobressaem, espessando-se e
fazendo-se perceptíveis, de modo a se interporem entre o usuário e as
coisas a que se referem, subvertendo-lhes a face cotidiana.

O encontro entre poeta e leitor é marcado, sobretudo, pelo lúdico e pela linguagem.
Na contemporaneidade, esse encontro se diferencia do caso tradicional, em que o poema
era o veículo privilegiado de conselhos, ensinamentos e normas, “(...) exceto no que
respeita à utilização de certos recursos formais como a redondilha, o paralelismo, o
dístico e a rima fácil.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1999, p. 148). Quintana, em Pé de
pilão, constrói o diálogo com seu leitor, aproveitando esses recursos formais,
acrescentados da temática do cotidiano infantil e do ponto de vista que “(...) compartilha
com seus pequenos leitores a anticonvencionalidade, quer na linguagem, quer do recorte
de realidade.” (LAJOLO; ZILBERMAN 1999, p.148).
Ainda de acordo com as autoras:

no projeto de incorporação do cotidiano infantil, ganha espaço e


relevo a recuperação de modinhas infantis, canções de ninar e
brincadeiras de roda que, submetidas ao processo de colagem ou
enumeração, caros à poesia moderna, estabelecem com o destinatário
infantil a cumplicidade de linguagem e de repertório cultural. É o que
se sucede, por exemplo, com o livro Pé de Pilão, de Mário Quintana,
cujo titulo é tomado a uma brincadeira infantil. (LAJOLO;
ZILBERMAN, 1999, p.150).

A peculiaridade do olhar infantil de Quintana traz os elementos mágicos que já


fazem parte da imaginação das crianças, ou seja, elementos de suas memórias de leitura:
Fada, feitiço, Floresta Encantada, avó, espelho. Conforme afirma Coelho (2000, p. 249):
“o fluxo poético se forma de lembranças de velhas histórias, tropelias de animais,
situações absurdas e engraçadas, feitiçarias ou milagres” Para a autora, tudo isso “
resulta num jogo divertido que atrai e estimula a imaginação criativa do leitor.”
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Esses aspectos, comuns às memórias de leitura, aliados aos efeitos do som, também
provocavam/convocam o pequeno leitor, embora nem sempre consiga efetuar as
transformações de representação implicadas em Pé de pilão. Os mais experientes atinge
por meio do exercício da reflexão, porém baseado na coordenação de relações sensoriais
possíveis e inesperadas, perceptíveis pela carga figurativa do discurso. Daí ser uma
leitura para qualquer idade. E nesse sentido, também possibilita a apreensão das
camadas emocional, sentimental e conceptual do poema, mesmo que não aconteça de
uma só vez.
Seguindo essa perspectiva, a passagem seguinte ilustra a transformação da avó de
Matias pela Fada Mascarada, que a enfeitiçou:

Lá na Floreta Encantada
Mora a Fada Mascarada.
(...)
Chega a vó. E vejam só:
A Fada lhe atira um pó.
(...)
Num segundo a pobre Alice
Toda encolheu de velhice.
(QUINTANA, 2001, não pag.).

A Fada Mascarada é uma bruxa que usa disfarces com interesses malvados. Suas
travessuras se confundem com as travessuras verbais e recursos poéticos elaborados
pelo autor, num clima envolvente, mágico, produzindo prazer. A poeticidade dessa obra
está, entre outros elementos, na construção fluida, assegurada pelo ritmo, e na
brincadeira que se dá também pelas surpresas. O fato de a bruxa mudar o rosto,
segundo seu gosto e o dia, além de tornar a narrativa poética diferente, a sonoridade lhe
confere um certo “suspense” peculiar: /Ninguém direito a conhece,/ Pois sempre outra
parece./(...)/ Quando no espelho se olhava,/O espelho logo rachava./ - Se olhava um rio
– ora essa!/Corria o rio mais depressa!
Esse suspense se acentua nos versos:
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E entra uma nova personagem


Para dar gosto à viagem.

Uma cobra cascavel


Bicho enganoso e cruel
(...)
Essa cobra amaldiçoada,
Em um galho enroscada,
(...)
Pelos dois chifres do Diabo!
De meu rival vou dar cabo.”

E o repelente animal
Prepara o bote mortal.
(QUINTANA, 2001, não pag.).

Medo e suspense, tão bem enfatizados pelos personagens e seus adjetivos, tomam
um sentido maior pela pontuação, sobretudo pelo uso da exclamação. Esses elementos
são detonadores, a um só tempo, de medo e prazer, sentimentos desejados pelos leitores
infantis/juvenis. Por outro lado, a melodia, o ritmo e o fluxo dos acontecimentos causam
uma espécie de “apagamento” do medo, mostrando-se muito mais como uma
brincadeira.
O jogo sonoro, criado pelas rimas, estende-se pelo emprego das aliterações
(t,s,v,z,p), assonâncias (a,a,e), alternância de sílabas fortes e fracas e rimas bem
marcadas: /quanto é sete vezes nove?/ e rosinha nem se move? /mas o pato, desta vez,/
assopra: sessenta e três/. Além disso, o s sibilante faz som com o z. Esses elementos,
estabelecidos pelo paradigma estético-lúdico, imprimem à poesia uma brincadeira
semelhante à das quadras populares.
Ao conflito inicial, a prisão do pato, macaco e passarinho, Quintana arranja uma bela
saída, sempre mantendo as rimas, o ritmo e o lúdico:

“O macaco retratista,
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(...)
Vê a cobra e pensa: “hum!
Vou matar esse muçum...”
(...)
Pega a cobra do chocalho.

[..] torce a desgraçada,


Tal qual roupa enxaguada.

E a cobra, de cabo a rabo,


Entrega a alma ao Diabo.
(QUINTANA, 2001, não pag.).

E agora? Ainda é preciso dar um jeito no polícia:

“E o macaco...desgranido
Tem uma idéia, o sabido...
(...)
Corta o chocalho da cobra
(...)
Também corta com perícia,
Ao cavalo do polícia,

A corda que liga aos dois,


Prende-lhe o guizo depois.
(QUINTANA, 2001, não pag.).

O sabido macaco engana o polícia que continua ouvindo o guizo da extinta cobra à
“procura de outra rima”:
“Olhar pra trás não preciso,
Enquanto escuto esse guizo...”

Assim pensa o chischisbéu.


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Fazendo versos ao léu,

Enquanto os presos se vão


Vai rimando o paspalhão...
(QUINTANA, 2001, não pag.).

E para finalizar, o céu escurece, a noite cai e todos se encontram em uma modesta
capela à beira da floresta. E “Por fé, ou outros motivos”, como diz o autor, “Entram
nela os fugitivos” e mais tarde, somam-se a eles “Uma velha... quem é ela? Eis que
surge a avó Alice enfeitiçada. Passam a noite na capela, e Quintana mescla magia,
fantasia e religião, numa bem humorada solução:

No estado em que estou agora


Só mesmo Nossa Senhora!
(...)
Com a graça celestial
Põe fim a tudo que é mal.
(...)
Quando acorda – que alegria!
Matias lhe dá bom-dia.

É ele, outra vez menino,


Com seu sorriso ladino!

E ela está em pleno viço,


Como antes do feitiço!
(QUINTANA, 2001, não pag.).

Por fim, Matias retorna à escola, e como poetiza Quintana: “E para que nossa
história/Não ficasse relambória,/A Rosinha, envergonhada/(...)/Estuda como uma
traça/Passa sempre nos exames/Como a luz pela vidraça.

Concluindo: a simbiose do jogo lírico-lúdico em Pé de Pilão como uma


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possibilidade de literatura e ensino

Partindo do pressuposto de que a decifração do poema é um jogo lúdico, retomamos


a questão inicial dessa discussão: poesia é brincadeira no sentido de jogo, de enigma.
Para decifrá-lo, estabelece-se uma luta entre autor e leitor. Sobre o assunto, Amarilha
(2003, p. 28) diz: “A luta pelo sentido produz os efeitos típicos da ação lúdica: tensão,
contraste, solução.” Observamos que o jogo se efetiva por semelhanças e diferenças; por
aproximações e distanciamento. Assim, começar a decifração/jogo pelo campo
semântico é um primeiro momento. Partindo dessa idéia, um segundo momento pode se
dar no estabelecer de diferenças e semelhanças entre esse campo semântico,
considerando a ordem emotivo-sentimental-conceptual, conforme apontou Massaud
(2000). Buscar uma ordem lógica é um equívoco. Assim, Pé de Pilão é um constante
jogo marcado por aproximações/distanciamentos que se constroem pelas idas e vindas
da poética narrativa.
Seguindo a perspectiva de Massaud (2000, p. 43), desveladas as metáforas do poema,
(o campo semântico e/ou as suas semelhanças e diferenças) e apreendidas as camadas
emocional, sentimental e conceptual, o leitor terá surpreendido a essência do poema,
mesmo que “(...) sua decifração total não tenha ocorrido”, porque a análise jamais se
esgota. Amarilha (2003) e Massaud (2000) falam em decifrar o poema. Isso reforça a
ideia de brincadeira, de enigma, de embate entre leitor e poema.
A imagética – caminho poético de elucidação sensorial –, elaborada pelo
deslizamento e associação de elementos intrínsecos, extrínsecos, e arbitrários ao poema
também marcam esse texto. Esses elementos, responsáveis pela imaginação,
representam uma ruptura/abertura para uma nova poesia voltada para o público
infantil/juvenil, como um significativo recurso estético, assegurando, também, o efeito
da arte literária, segundo afirma Bordini (1991, p. 31):
Se, conforme os teóricos formalistas, o efeito especificante da arte
literária é desacomodar os esquemas perceptuais, através de artifícios
discursivos que deformam os referentes habituais das palavras no
cotidiano e promovem representações singularizantes do objeto
visado, é ao nível da imagética que esse processo acontece mais
claramente.
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O jogo linguístico do texto se completa com o plano interno da obra, com as formas,
com as ilustrações, que tornam o momento da leitura ainda mais prazeroso.
As imagens retratam muito bem o dinamismo/movimento dos personagens, suas
expressões frente aos acontecimentos. Quando o pato reclama: “/- No retrato saiu eu
só/”, sua imagem expressa um bater de pé, um mexer com as mãos e uma boca bem
aberta para deixar bem claro que era só ele que deveria sair na foto. Além de
complementarem, as ilustrações imprimem mais movimento ao texto, criando uma
simbiose perfeita entre a imagem e a palavra, uma simbiose lírico-lúdica.
A Fada Mascarada é outro exemplo. Suas mãos magras e compridas passam a
impressão da agilidade para fazer feitiços e maldades; seus disfarces são as máscaras
como o próprio texto descreve: Cada dia usa um rosto.” A figura do pássaro é produzida
numa confluência de imagem e palavra, enriquecendo de tal forma a leitura, que é
possível imaginar e escutar o barulho dos guizos que enfeitam suas penas: “Com três
penas no topete/ E no rabo apenas sete./ E como enfeite ele tinha/ Um guizo em cada
peninha.”
A narrativa poética encanta, prende pela sonoridade e a plasticidade, aguçando a
curiosidade do leitor para saber o que vem depois e como se desenrola a história. No
exemplo acima, pelas rimas emparelhadas (topete/sete = ete), (tinha/peninha = inha) e
ricas (substantivo, verbo e numeral, adjetivo); pela aliteração das consoantes T e P:
“/São Três Penas no ToPeTe,/ E no rabo aPenas seTe/”, somando-se ao som sibilante do
S; pela assonância da vogal E, fica evidente a relação desses elementos. Acentuando
ainda mais a sonoridade, o autor “brinca” com as palavras apenas e penas, revelando
um jogo sonoro/rítmico que se associa ao jogo linguístico. Mário Quintana evidencia
em seu texto um lírico-lúdico. O jogo sonoro, os ritmos, o trabalho realizado com a
linguagem, o humor, características dos paradigmas estético e lúdico trazidos por Luis
Camargo e, aqui, refletidos pelos autores com os quais conversamos, não só promovem
o encontro do leitor com o literário, como contribuem com o desenvolvimento do
imaginário e suas vivências perceptivas. Desse modo, a articulação da linguagem
escrita e sua plasticidade auxilia nas representações mentais, na compreensão de
vivências ou experiências anteriores e presenciais da infância.
Pé de pilão é um poema “em movimento”, que se constrói por seus ritmos, suas
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imagens, suas metáforas e sua linguagem. É um jogo lúdico entre texto e leitor na
descoberta/decifração semântica e rítmica proposto por Quintana. O leitor identifica sua
própria voz na voz do eu-lírico, desencadeado pelo poema. Todavia, isso requer uma
leitura literária, cujo itinerário teórico, em sua maior parte, está por ser percorrido.
Dessa perspectiva, partimos do pressuposto de que, para encaminhar o texto poético, no
espaço escolar, é necessário conhecer as suas peculiaridades, o que tentamos evidenciar
aqui.
Na perspectiva do paradigma lúdico, fizemos uma leitura da obra de Quintana,
considerando que os elementos/recursos trazidos por esse paradigma desafiam seus
leitores a responderem com inteligência aos jogos propostos pela linguagem literária.
Dito de outro modo, o poema aproxima-se do “eu” infantil/juvenil e provoca-o poética e
criativamente. Há, nessa produção, um comprometimento com os leitores, à medida que
delega a eles a tarefa de decifrar, de entrar no jogo enigmático, provocativo e
desafiador. Ora, se o texto literário se compromete com o leitor, entendemos ser
compromisso da escola uma literatura sem “pretextos”.
Nossa leitura é só mais uma leitura que deseja somar-se a outras leituras e instigar
leituras provocativas, que privilegiem os aspectos propostos pelo paradigma lúdico,
presentes nos poemas; que convidem os leitores a entrar na ciranda poética, no jogo,
com Quintanas, Dinorahs, Paes, Capparellis e tantos outros, no ensino de nossas
escolas, a fim de decifrar os enigmas do poema que os desafiam e desacomodam, a
exemplo de Pé de Pilão.

Referências

AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica.


5.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.
BORDINI, Maria da Glória. Poesia infantil. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991.
CAMARGO, Luiz. A Poesia infantil no Brasil. Disponível em:
<www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/artigos/art021.htm>. Acesso em: 8 mar.
2010.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 7. ed. São Paulo:
Moderna, 2002.
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LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 3. ed. São


Paulo: Ática, 1999.
MASSAUD, Moisés. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
PAES, José Paulo. Poemas para brincar.16. ed. Ática, 2001.
PRADO, Maria Dinorah. Cantiga de estrela. 3.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
QUINTANA, Mário. Pé de pilão. 8. ed. São Paulo: Ática, 2001.
______. Nariz de vidro. 13.ed. são Paulo: Moderna, 1984
SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA,
Aracy Alves Martins et al. (orgs.). A escolarização da leitura literária. São Paulo:
Autêntica, 2001,17- 48.
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A POESIA PARANAENSE DE AUTORIA FEMININA E A REPRESENTAÇÃO


DA MULHER

Geisa Pelissari Silvério (G-UEM)


Lúcia Osana Zolin (UEM)

Introdução

Historicamente, a figura feminina sempre esteve à margem da sociedade, sendo


considerada como objeto em relação ao sujeito masculino. Enquanto o homem possuía o
poder de decisão sobre tudo o que dissesse respeito à mulher, esta tinha suas ações
restringidas ao zelo e ao cuidado da casa e à educação dos filhos, sem acesso às
atividades intelectuais, sociais, políticas e econômicas.
Todavia, com o desenvolvimento do pensamento feminista na década de 1960, a
mulher passa a inserir-se na sociedade, expressando suas opiniões, angústias e
sentimentos até então ignorados pelo pensamento patriarcal vigente. Expressando-se,
sobretudo – e isso nos interessa mais de perto neste trabalho – como artista e intelectual.
Sendo assim, só tardiamente o universo literário pode contar com nomes femininos
relevantes. Antes, quando a mulher escritora arriscava-se a adentrar no restrito universo
literário, masculino e elitista por excelência, fazia-o por meio de pseudônimos
masculinos para que não fossem rejeitadas pela opinião social.
Ademais, a crítica literária que, em sua maioria, era também da alçada masculina,
não raro, rotulava, de antemão, os textos de autoria feminina como sendo de má
qualidade, “coisas de mulher”, “futilidades”, “amenidades”, ou coisa assim, e, portanto,
não dignos de figurarem no cânone literário brasileiro.
A despeito disso, alavancada pela corrente feminista, a literatura na década de 1960
passa a ter, não somente mulheres reconhecidas nacionalmente por suas produções
literárias, mas também críticas literárias, empenhadas em promover o desnudamento de
uma tradição literária de autoria feminina mantida, até então, no anonimato; tradição
essa que nada deixa a desejar em relação à respeitável produção dos homens letrados.
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Não é por acaso, portanto, que a literatura de autoria feminina tem se caracterizado
por certa tendência de pôr em relevo questionamentos acerca dos papéis sociais
destinados à mulher, bem como do silenciamento histórico a ela imposto, além da
naturalização da dominação masculina e da opressão feminina. Nessa empreitada, ganha
relevo o fato de a mulher passar a representar na literatura a própria mulher, com voz e
vez, com capacidade, enfim, de ação e reação.
Tendo isso em vista, o presente artigo apresenta três escritoras paranaenses do gênero
lírico que, por terem vivido e escrito em diferentes épocas, representam a mulher
inserida em diferentes contextos histórico-sociais. Nosso intuito é compreender e avaliar
o modo como a mulher representa a si própria no universo literário.

1. A crítica feminista e a literatura de autoria feminina

Apesar de não se poderem determinar ao certo quando surgiu o feminismo – se


apenas nos dois últimos séculos, como querem alguns teóricos, ou ao longo de toda a
história, como defendem outros – pode-se, segundo Zolin (2009), defini-lo como
um movimento político bastante amplo que, alicerçado na crença de
que, consciente e coletivamente, as mulheres podem mudar a posição
de inferioridade que ocupam no meio social, abarca desde reformas
culturais, legais e econômicas, referentes ao direito da mulher ao voto,
à educação, à licença-maternidade, à prática de esportes, à igualdade
de remuneração para função igual etc., até uma teoria feminista
acadêmica voltada para reformas relacionadas ao modo de ler o texto
literário (p. 220).

Sendo assim, a partir de 1960/70, inseridos no contexto do pensamento feminista, são


muitos os estudiosos que têm procurado introduzir a figura feminina no âmbito sócio-
histórico-literário como ser atuante, já que, devido às circunstâncias sócio-históricas de
que fez e faz parte, a mulher sempre foi vista como ser marginalizado. É o que aponta
Moreira (2002):
Nós, mulheres, sempre estivemos na margem e à margem da
sociedade, nunca no centro, isso desde os tempos remotos. Prova disso
é que precisamos transvestir nossa linguagem e nossos corpos para
conhecermos o mundo, para termos uma escrita de autoria feminina,
para sairmos do enclausuramento, do confinamento ao qual nos
submeteram. Nosso sexo, o segundo, já nos colocava no sótão, já nos
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relegava a um lugar marginal, já nos fazia crer que nascíamos para


sermos fantasmas, nunca seres humanos pensantes, envoltos numa
alteridade que nos distingue, marcando a diferença (MOREIRA, 2002
apud GAVRON & TEIXEIRA, 2008, p. 03).

Com o objetivo de por fim a essa marginalização, a crítica feminista, sustentada pelo
feminismo, tem empreendido, nas últimas décadas, discussões acerca do texto literário,
face às práticas sociais e à autoria, com vistas ao rompimento do estereótipo feminino
negativo, difundido pela ideologia dominante e reproduzido pela literatura e pelo
cinema. A intrínseca relação entre sexo e poder estabelecida pela sociedade
patriarcalista gerou e gera essa imagem negativa da mulher, que é baseada nas relações
sociais – inicialmente privadas e depois, também, públicas – de poder entre homem e
mulher.
A crítica literária feminista empenha-se em revelar como o texto literário representa
e discute as questões de gênero, ou seja, as práticas que apontam para a construção ou
desconstrução da oposição binária homem/mulher, relacionada com outros pares
binários bem conhecidos: dominador/dominada, opressor/oprimida, centro/margem, etc.
Desconstruir essas estruturas binárias implica tomá-las como construções sociais e
não como estruturas essencialistas, relacionadas a cada um dos gêneros. A origem
mesma da dominação masculina e da submissão feminina, apesar de ser, muitas vezes,
relacionada a aspectos biológicos e naturais, em verdade, é produto de construções
sociais, calcadas em relações de poder. A simples diferença é transformada em
diferença hierarquizada.
A crítica feminista, em face disso, tem procurado dar visibilidade à produção literária
feminina, muitas vezes, capaz pôr esse estado de coisas em discussão, de reivindicar a
igualdade de direitos entre os sexos, de denunciar a opressão feminina, de representar a
mulher a partir de outros vieses diferentes daquele que a toma sempre como frágil,
dependente e incapaz. Trata-se de uma forma de resistência à ideologia patriarcal, por
tanto tempo dominante, não só no universo social, mas também literário. Muitos críticos
literários começaram, alavancados pelo feminismo crítico, a resgatar e a reinterpretar as
obras literárias de autoria feminina. Com isso, apontou-se para um espaço que, se antes
era exclusivamente masculino, agora passa também a ser ocupado pela mulher.
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A ensaísta norte-americana Showalter (1985), ao resgatar e reinterpretar as obras


literárias de autoria feminina na Inglaterra, divide-as em três fases: a feminina, a
feminista e a fêmea (ou mulher). A primeira traz a ideia de imitação e de internalização
dos padrões dominantes; a segunda, apresenta-se como a fase de protesto contra tais
padrões e valores; a última é a fase da autodercoberta, determinada pela busca da
identidade própria.
Desse modo, a literatura de autoria feminina que, até há pouco tempo, não existia
efetivamente, passou a constituir o universo literário, numa espécie de questionamento
do cânone oficial. O regaste promovido pela crítica feminista revelou-lhe a tradição. No
Brasil, essa afirmação deu-se com o reconhecimento nacional de escritoras como Maria
Firmina do Reis, autora de Úrsula (1859), primeiro romance que se tem notícia de
autoria feminina no Brasil, seguido por diversos outros ainda no século XIX; depois por
muitos outros de escritoras que se fizeram reconhecer em meio a seus pares masculinos,
em meados do século XX, como Raquel de Queiroz, Cecília Meireles e Clarice
Lispector. Sendo que esta última foi quem de fato fez deslanchar a tradição literária de
autoria feminina no Brasil.
Com a mudança de mentalidade provinda do feminismo, essas escritoras e as muitas
outras que vieram em sua esteira, passam a representar personagens femininas que
possuem consciência da sua dependência e submissão em relação à ideologia patriarcal;
daí serem retratadas como sendo capazes de questioná-la e de refutá-la.
Esse processo histórico repete-se no cenário literário paranaense. Com o objetivo de
contribuir com esse trabalho de resgate e reavaliação da produção literária de mulheres,
apresentamos, neste artigo, uma análise de como a figura feminina é representada na
poesia da mulher paranaense. Selecionamos três escritoras que escreveram em épocas
distintas para lhes analisarmos a obra com vistas ao modo como representam aí a
imagem feminina. São elas: Júlia da Costa (1844-1911), Helena Kolody (1912-2004) e
Alice Ruiz (1946).

2. Júlia da Costa – a crítica abafada


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“Forte, decidida, às vezes audaciosa, antes de mais nada, porém uma mulher que se
antecipou à sua época e que, por isso, muito sofreu” (MUZART, 2001, p.15). A poetisa,
assim definida pela pesquisadora catarinense, inaugura a literatura de autoria feminina
no Paraná. Viveu em um período de preconceitos e de tabus e, como forma de escape,
escrevia. Publicou, em vida, dois livros: Flores dispersas (1867-1ª série) e Flores
dispersas (1868-2ª série). Outros dois livros da escritora foram publicados: Flores
Dispersas (1913-3ªsérie), publicado pelo Centro de Letras do Paraná, que traz todos os
poemas encontrados no acervo da poetisa, e Bouquet de violetas, coletânea de poemas,
manuscrita, organizada e nomeada pela própria escritora e recolhidos e publicados pela
Drª Rosy Pinheiro Lima.
Um passeio pela biografia de Júlia da Costa nos vai mostrar uma mulher, não raro,
descrita como “inteligente” e “independente” que se recusou a desempenhar os papéis
sociais destinadas à figura feminina de seu tempo. Apesar de casada com o comendador
Carlos da Costa Pereira e de possuir uma vida próspera, seus poemas retratam a solidão,
como resultado da paixão pelo poeta Benjamin Carvoliva que, por duas vezes, teria
fugido às propostas da poetisa de viverem juntos e enfrentarem os preconceitos da
sociedade.
Essa melancolia faz-se retratar no poema “Página Solta”, da coletânea Bouquet de
Violetas.
Página Solta

Queres saber quem eu sou?


Meu nome queres saber?
Escuta! as brisas se abraçam
Eu só não devo gemer!
As brisas sabem meu nome
Só tu não deves saber.

Eu sou a folha de um livro


Que tu não deves voltar;
Sou um arcano, um segredo
Que tu não podes achar;
Sou uma nota distante
Que só te faço chorar.

Eu sou a sombra doirada


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De um tempo que já lá foi;


Sou o fantasma de um sonho
Que em tua mente pousou;
Sou uma folha sem nome
Que o vento forte mirrou.

Queres saber quem eu sou?


Levanta a pedra gelada!
– Eu sou a alma de um morto
Pela saudade velada
Que sigo ao longe teus passos
Pela floresta crestada.

Os temas propostos pela escritora, como a ausência, a perda, a dor de viver, a


angústia ou o desejo da morte, a falta de esperança e a solidão, são desenvolvidos, na
maior parte das vezes, a partir da ótica de um eu-lírico feminino. No poema
apresentado, embora não haja elementos para que o/a leitor/a pense se tratar de um eu-
lírico feminino, a aura de mistério que perpassa sua identidade, além da própria autoria,
remete a alguém marcado por perdas e danos, pela pecha da não realização, da
incompletude, características estas tradicionalmente femininas e assumidas pela própria
escritora.
Em meio ao jogo de esconde-esconde proposto por esse misterioso eu-lírico, as pistas
apontam para idéias vagas – “Eu sou a folha de um livro /Que tu não deves voltar; /Sou
um arcano, um segredo / Que tu não podes achar; /Sou uma nota distante /Que só te
faço chorar” – que, no entanto, graças a toda sorte de cerceamentos, são condizentes
com a tradicional figura feminina, a quem tudo é proibido: os desejos se mostram
irrealizáveis, os projetos, envelhecidos, sem esperança, sem solução; trata-se, na
verdade, de um não-eu, a negação, enfim, da existência.
Em “Página solta”, Júlia da Costa, implicitamente, retrata uma suposta figura
feminina que, ao se pautar pela falta, incompletude e solidão, parece remeter à imagem
da mulher tradicional que, construída pelo pensamento patriarcal enquanto ausência,
acumula incontáveis perdas, as quais a conduzem ao nada. É como se, no momento
presente flagrado no poema, lhe fosse negada a própria identidade.
É, no fim, a representação de uma imagem de mulher que reduplica a imagem
requerida pelo patriarcalismo, em que a objetificação lhe marca o destino e lhe tolhem
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as possibilidades de transcendência. Em função disso, parece remeter a primeira fase da


literatura de autoria feminina descrita por Showalter (1985), a fase feminina.

3. Helena Kolody – o protesto objetivo

Ao lado de Paulo Leminsk, Helena Kolody, apresenta-se como um dos maiores


nomes da literatura paranaense, no que diz respeito ao gênero lírico, e por isso é
reconhecida no cenário literário nacional. A escritora, filha de ucranianos, os quais
sempre incentivaram o hábito da leitura, nasceu, em 1912, na cidade de Cruz Machado
(PR) e mudou-se, em 1927, para Curitiba. Por mais que tenha sido uma poetisa precoce,
escreveu muitos de seus poemas às escondidas, por vergonha e receio da opinião
pública.
Seu primeiro livro, Paisagem interior, foi publicado em 1941; antes, seus poemas
eram publicados em jornais e revistas. Possuía apenas 16 anos quando escreveu seu
primeiro poema intitulado “A Lágrima”. É autora de numerosos livros, em sua maioria,
editados com seus próprios recursos: Paisagem Interior (1941), Música Submersa
(1945), A sombra no rio (1951), Poesias Completas (1962), Vida Breve (1965), Era
Espacial e Trilha Sonora (1966), Antologia Poética (1967), Tempo (1970), Correnteza
(1977 - seleção de poemas publicados até esta data), Infinito Presente (1980), Poesias
Escolhidas (1983- traduções de seus poemas para o ucraniano), Sempre Palavra (1985),
Poesia Mínima (1986), Viagem no Espelho (1988 - reunião de vários livros já
publicados), Ontem, Agora (1991), Reika (1993), Sempre Poesia (1994, antologia
poética), Caixinha de Música (1996), Luz Infinita (1997, edição bilíngüe), Sinfonia da
Vida (1997 - antologia poética com depoimentos da poetisa), Helena Kolody por Helena
Kolody (1997 - CD gravado para a coleção Poesia Falada), Poemas do Amor
Impossível (2002 - antologia poética), Memórias de Nhá Mariquinha (2002 – narrativas
que lembram as de Cora Coralina, pelo Museu do Tropeiro de Castro – PR).
Kolody, por meio da síntese, isto é, de poemas curtos exprime sua autencidade
poética, além de uma admirável percepção profunda das imagens, captadas em sua
existência. Essa característica sua acaba por resultar na inauguração, no Paraná, da
prática poética do haicai, tipo de poema de origem japonesa composto de 17 sílabas,
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distribuídas em 3 versos apenas, os quais captam poética e espontaneamente um


momento especial.
Segundo a própria escritora, em todos os seus livros, “ainda que diversos no
conteúdo e na realização, certos temas são constantes, como Deus, a morte, a
transitoriedade da vida, a solidão e o valor sagrado da vida” (Rezende, 1997, p.45).
Todavia, também expressou, ainda que com menor intensidade, a crise de identidade
feminina, consequência da percepção dos limites impostos à mulher pela ideologia
patriarcal, em que sempre esteve inserida a sociedade na qual nasceu e cresceu. Eis o
tema do poema selecionado para estas reflexões, retirado do livro Reika (1993):
Clones
1988

Seres programados:
As mesmas atitudes,
As mesmas idéias,
As mesmas decisões.

Uma das possibilidades de leitura do poema acima está associada à definição da


figura feminina como espécies de clones, seres tomados como sempre iguais,
programados para agirem e pensarem sempre da mesma maneira. Se assim
entendermos, é como se Kolody apontasse para a incompatibilidade da mulher, tomada
como ser humano, portanto, complexo e contraditório, com os rígidos papéis sociais que
lhe são impostos. Nesse sentido, trata-se de a poetisa empreender, por meio da síntese, e
de flashes relacionados ao restrito universo feminino, tal como concebido pelo
pensamento patriarcal, uma ácida crítica, não só aos ditames patriarcais, mas às próprias
mulheres que se curvam a ele.
Tendo em vista a classificação de Showalter (1985), trata-se de um poema inscrito
fase feminista da literatura de autoria feminina no Paraná, já que a escritora transparece
seu protesto contra tais padrões e valores impostos pela.

4. Alice Ruiz – a busca pela identidade da mulher


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Nascida em 1946, Alice Ruiz é um dos principais nomes da literatura


comtemporânea de autoria feminina no Paraná. Poetisa, tradutora, compositora e
roteirista, foi casada com o renomado escritor Paulo Leminski (também paranaense),
com quem teve três filhos e, dentre os quais, está Estrela Leminsk que, como os pais,
tornou-se escritora.
Possui um estilo preciso, objetivo e irônico, o qual assemelha-se ao de Helena
Kolody, também possuindo, como esta, reconhecimento pela produção de hai-kais. É
autora dos livros: Navalhanaliga (1980), Paixão chama paixão (1983), Pelos pelos
(1984), Hai tropikai (1985), Rimagens (1985), Nuvem feliz (1986), Vice versos (1988),
Desorientais (1996), Hai Kais (1998), Poesia para tocar no rádio (1999), Yuuca
(2004), Salada de Frutas (2008), Conversa de Passarinhos (2008), Dois em um (2008),
Três linhas (2009).
Na maioria de suas obras, Ruiz faz uma crítica viva à sociedade atual. Defensora da
teoria feminista, seus textos são, por vezes, preenchidos pela revolta contra o
patriarcalismo que concebeu a mulher como objeto, submetido aos desmandos da figura
masculina, sujeito dominador por excelência. É o que retrata o poema que se segue,
retirado do livro Navalhanaliga (1980).

faz de mim
gato e sapato
me desconcerta
me conserta
me espanta
me aperta
me acerta
me alerta
me espeta
me deita
e seu poder
mais alto
se levanta

A escritora paranaense inicia o poema afirmando ser feita de “gato e sapato”. Trata-
se de um ditado popular por meio do qual diz ser maltratada, usada, explorada. No
decorrer do poema, diversos outros verbos na 3ª pessoa, como “desconcerta”,
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“conserta”, “espanta”, “acerta”, “alerta”, etc.”, apontam para atitudes que encerram
dominação, porém, em nenhum momento, o eu-lírico evidencia quem as pratica.
Somente no fim do poema, nos últimos quatro versos, faz inferência a uma figura
masculina cujo “poder mais alto” parece estar a serviço da conquista e/ou da dominação
por meio do sexo. Segundo Bourdieu (2005) “o ato sexual em si é concebido pelos
homens como uma forma de dominação, de apropriação, de posse” (p. 30). A sucessão
de verbos que compõem os versos, dentre os quais se destaca o décimo – “me deita” –,
sugere não apenas o ato sexual, mas a relação de dominação de que fala Bourdieu
(2005), cujas “posições tradicionais” parecem implicar: a mulher deitada e o homem
sobre ela, como que representando o princípio fundamental entre o masculino, ativo, e o
feminino, passivo. Trata-se, no fim, da dominação erotizada.
Além disso, se observarmos o modo como o poema foi gramaticalmente construído,
o pronome “me” remete ao eu-lírico (a mulher) que, apesar de iniciar os versos, age
como objeto dos verbos aos quais se refere e que possuem como sujeito implícito o
homem. Isso significa que o homem (sujeito) rege a mulher (objeto). Todavia, ao
sugerir, ironicamente, que o falo ereto é o que torna o homem poderoso perante a
mulher, Ruiz acaba por desconstruir, de modo sagaz, a superioridade masculina. Ao
afirmar que “seu poder mais alto se levanta”, referindo-se à ereção, é como se
relativizasse e/ou minimizasse a importância dos supostos outros “poderes” que o
pensamento patriarcal confere ao homem.
Com isso, Ruiz dialoga, verso a verso, com o modo tradicional de a sociedade pensar
a mulher: reprodutora e objeto de manejo. Contudo, acaba por evidenciar a mulher
como sendo capaz de afirmar sua identidade, por meio da superioridade intelectual que
lhe torna capaz de fazer o jogo da dominação sem, efetivamente, se curvar a ela. Quem
sabe aqui poderíamos falar na representação da figura feminina aos moldes da terceira
fase da literatura de autoria feminina, reconhecida por Showalter (1985) a fase fêmea
(ou mulher), na qual a mulher reconhece seu espaço na sociedade, passe a ter, em fim,
voz e vez.

Coclusão
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Com base no que foi exposto observou-se que a tradicional figura feminina,
considerada objeto em relação ao sujeito masculino, sofre uma espécie de evolução no
que se refere ao modo como é representada na poesia produzida por mulheres no
Paraná. Trata-se do reflexo dos avanços empreendidos pelo movimento feminista.
Não só na realidade social, mas também no universo literário, a mulher sai da espécie
de limbo em que sempre estivera confinada para se impor como sujeito e passar a gerir a
própria vida e atuar na sociedade da qual faz parte. Até meados dos anos 1950, não
havia nomes femininos representativos na literatura. O cânone literário brasileiro, até
então, era constituído apenas de homens, considerados mais capazes de exercer o ofício
da escrita.
A literatura de autoria feminina no Paraná, ainda que tardiamente, também contribuiu
para que a voz da mulher não se calasse, fosse pela maneira sofrida de Júlia da Costa em
demonstrar sua revolta contra a sociedade patriarcal; ou com Helena Kolody que, de
modo simples e objetivo, reclamou pelo espaço feminino no mundo das letras; ou ainda
com Alice Ruiz que, de forma despojada e irônica, traz à baila o velho tema das relações
de gênero, coroadas pela dominação masculina, hoje em declínio graças ao feminismo.

Referências

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Küher. 4. ed. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
GAVRON; T. F.; TEIXEIRA, N. C. Faces da escrita de autoria feminina nas poesias
de Luci Collin. 4 ed. Guarapuava: Revista Eletrônica Lato Sensu, 2008. Disponível em:
<<http://web03.unicentro.br/especializacao/Revista_Pos/P%C3%A1ginas/4%20Edi%C
3%A7%C3%A3o/Lingua/PDF/8-Ed4_LL-FacesEs.pdf>>
KOLODY, H. Viagem no Espelho e vinte um poemas inéditos. Curitiba: Criar Edições,
2001.
MUZART, Z. L. (Org.). Poesia-Júlia da Costa. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná,
2001.
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REZENDE, T. H. de. (Org.) Helena Kolody: Sinfonia da vida. Curitiba: Letraviva,


1997.
RUIZ, A. Pelos pelos. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.
SHOWALTER. E. A literature of their own. New Jersey: Princeton UP, 1985.
ZOLIN, L. O. Crítica feminista. In: BONNICI, T. & ZOLIN, L. O. (Org.) Teoria
literária: abordagens históricas e tendências. Maringá: Eduem, 2009.
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A MULHER EM “HOMBRE DE LA ESQUINA ROSADA”, DE JORGE LUIS


BORGES: ANIQUILAÇÃO DO FEMININO OU DO MASCULINO?

Geneviève Faé (PG-UCS)

No mundo ficcional de Jorge Luis Borges, em que se rompem esquemas lineares de espaço e
tempo, a presença da mulher na esfera social chama a atenção do leitor mais atento, nos contos de
contornos mais regionais. Entretanto, estes não são os mais comumente apontados pela crítica
quando se trata de estudos sobre o universo borgeano. Na contracorrente, este trabalho tem como
objetivo apontar a presença feminina no conto “Hombre de la esquisa rosada”, de Jorge Luis Borges
(1899 – 1986), publicado no livro Historia universal de la infamia (1935), demonstrando os
aspectos que promovem a ação feminina em um mundo predominantemente masculino.
Conforme aponta Sarlo (2008), a fama internacional borgeana acabou por anular aspectos da
cultura argentina que aparecem na obra. Por mais que o autor tenha sido acusado de estar à margem
das questões culturais de seu tempo, debateu diversas vezes acerca das principais figuras da história
nacional: o gaúcho e o compadrito. O gaúcho argentino, herdeiro de índios e espanhóis, foi
desaparecendo aos poucos, com a chegada da industrialização no pampa 1. Ao invés deste, quem
passeia pelos contos de Borges é o compadrito, o gaúcho que chegou à cidade, mas não se adequou
a tal situação.
Em “Hombre de la esquina rosada”, que teve sua continuação, com retrocesso, em “Historia de Rosendo
Juárez” 2, surge a questão da coragem como virtude primeira para o crioulo 3 argentino. Francisco Real, além
de humilhar Rosendo Juárez em público, rouba sua mulher, a “Lujanera”, assim chamada de forma
depreciativa devido a sua região de origem (Luján). É apresentada como a mulher mais desejada pelos
compadritos, a amante de Juárez, o mais valente entre eles.
Encontra-se, em ambos os contos, o “pendenciero” ou “malevo”, outras denominações ao compadrito

1
“Al gaucho se le achica el territorio cada vez más, y su marginación como sujeto social útil al nuevo orden, lo
impulsa ahora a sólo dos opciones: terminar sus días como peón de estancia asalariado, o convertirse en perseguido de
la justicia bajo imputación de malhechor.” In: RELA, Walter. El gaucho en el contexto sócio-político rioplatense:
(desde la época colonial hasta fin del siglo XIX). Letras de Hoje, n. 77, 1989. Porto Alegre, p. 9-22.
2
Sarlo (2008) aclara a questão da reescritura do conto: “Altera a perspectiva da narrativa e, por meio dessa
variação, introduz uma dimensão moral explícita: em seu rival, o cuchillero reconhece e repudia um reflexo de si
mesmo. Esse reflexo de vergonha, e não a covardia (como acontecia na primeira versão), obriga-o a fugir à peleja.” (p.
141)
3
Crioulo, no sentido espanhol do termo, representa o branco nascido em colônias hispano-americanas, em
oposição aos nascidos na Espanha.
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temido por sua bravura e habilidade com o punhal ou com o “cuchillo”, como ressalta Agheana (1995). A
violência, se utilizada na defesa dos valores desse contexto em particular, não é motivo de censura. Pelo
contrário, a covardia é motivo de crítica, vergonha e reprovação. Tanto é que no conto “Historia de Rosendo
Juárez”, a personagem homônima conta que não aguentava mais um duelo atrás do outro, sempre a vida
testando sua masculinidade. A coragem resume o ethos desse homem, o meio pelo qual ele alcança a justiça.
Sarlo (2008, 139) comenta os valores que regem essa determinada sociedade:
A violência definiria, em profundidade, a cultura criolla: vivida como um destino
americano, durante séculos a violência levou os homens a um limite em que tão-
somente a resignação e a coragem eram virtudes válidas; mas, ao mesmo tempo, a
violência formalizou um código que dava sentido às relações privadas e públicas.
Quando dois homens se enfrentam em duelo, ritual que ambos aceitam como lei,
eles participam de valores “bárbaros” que, apesar de tudo, são o único fundamento
da vida comum naquelas regiões em que o Estado não organizou as relações
jurídicas entre os sujeitos.

O narrador inicia a história demarcando a importância de Rosendo para a sociedade local, já que
os homens o imitam até no jeito de cuspir. Em seguida, após detalhado o lugar onde inicia o
conflito, o salão “La Júlia”, insere-se na narrativa a presença de Lujanera, mulher de Rosendo, mas
admirada por todos, devido à beleza: “Verla, no daba sueño”. Apesar de haver muitas mulheres
resistentes para o baile, esta se destacava, tanto é que o narrador comenta que era preciso vê-la “en
sus días, con esos ojos”, uma beleza praticamente impossível, então, de descrever. Como diria
Bourdieu (2007, p. 82) sobre a dependência simbólica das mulheres, “elas existem primeiro pelo, e
para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis.” De início o
leitor de Borges, se também for leitor de Simões Lopes Neto, lembra de Tudinha, do conto “O negro
Bonifácio”, já que ambas, as mulheres mais bonitas, levam os machos à perdição.
Aqui vale ressaltar o excelente trabalho de Vallerius (2009), que traduz o conto borgeano para o
português, a partir da linguagem simoniana, devido à semelhança temática de representação.
Segundo a autora, esse trabalho foi motivado pelas perdas que a versão do texto de uma língua a
outra ocasiona. Ela explica o título do conto: antigos botecos de esquina dos bairros periféricos de
Buenos Aires eram pintados de cor-de-rosa. Sem essa informação de caráter cultural, o leitor pode
não compreender o título. O fato de citar uma esquina, onde ficaria o bar, representa um lugar de
passagem ou de encontro.
É importante analisar os elementos que compõem todo o conflito dessa narrativa. Francisco real,
o valente do norte, chega aos subúrbios do sul com seus companheiros, em busca de um homem,
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simplesmente para matá-lo: Rosendo, respeitado por homens, cães e mulheres. Desenrola-se
praticamente um confronto entre os líderes: Curraleiro contra Batedor. Aquele, fora de seu ambiente
de domínio, desafia a coragem do mandante local. O narrador, ao ver que este joga a faca pela
janela e vai embora, não compreende tal covardia. Entretanto, no final, o leitor entende que o
próprio narrador foi quem restabeleceu a “ordem” quebrada com a chegada (e o desafio) do
forasteiro. E a mulher, nesse contexto, move-se como um troféu, que cabe, logicamente, ao
vencedor da batalha.
Novamente o leitor se lembra de Simões Lopes Neto, devido às semelhanças entre esta
personagem e Lalica, em “Jogo do Osso” (Contos Gauchescos, 1912), “uma piguancha bem
jeitosa”. A saber, mais um objeto que passa tranquilamente das mãos de um homem a outro, tratada
como simples mercadoria. A mulher é equiparada a um cavalo, tornando-se motivo de aposta4. Sua
atitude é entregar-se a Osoro, diante da humilhação a que estava exposta: Lalica se oferece,
aceitando ser o prêmio e ofendendo Chico Ruivo: “...guampudo, por gosto”...Este, agora, é que me
encilha, retalhado!...” A ofensa se estenderia em uma dança entre novo “casal”, semelhantemente ao
conto aqui analisado: “quando quiseres, meu negro, ...eu vou na tua garupa”. É evidente que
acabaria em dupla morte o jogo do osso, que certamente desafiou a hombridade.
Vale ressaltar que conhecemos o episódio de “Hombre de la Esquina Rosada” pela visão do
próprio assassino, portanto os elementos narrados foram selecionados por ele. Isso se confirma na
leitura do já citado “Historia de Rosendo Juárez”, em que a personagem homônima traz à tona
outros elementos – o motivo de ter recuado frente ao convite à “peleia”, por exemplo –, o que
aponta para a questão do perspectivismo: a realidade, tal como é percebida, depende do ponto de
vista do observador. Ao leitor cabe conhecer, então, a versão de Curraleiro (Corralero) e de Batedor
(Pegador). Surgem aqui dois conceitos de coragem. Enquanto, para aquele, é defender sua honra e
sua hombridade em um ambiente de violência gratuita, para este é justamente ir contra tal
concepção de vida. O narrador acerta o forasteiro quando este adentra o salão, mas Real não se
intimida. Na verdade, deixa-se apanhar porque está à procura de um só homem.
Após a irrupção da violência, Francisco Real, ou Curraleiro, afirma procurar por um tal de
Batedor, para aprender com ele a ser valente. Ele desafia, então, Rosendo Juárez. E aqui a mulher
comete um ato decisivo: entrega uma faca, incentivando-o a aceitar o combate. Vale a pena reler o
trecho sobre sua atitude frente à estagnação de Rosendo: “La Lujanera lo miró aborreciéndolo y se
4
E Blau explica, num dos “Artigos de fé do gaúcho”, que “mulher, arma e cavalo do andar, nada de emprestar”.
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abrió paso con la crencha en la espalda, entre el carreraje y las chinas, y se jue a su hombre y le
metió la mano en el pecho y le sacó el cuchillo desenvainado y se lo dió con estas palabras: -
Rosendo, creo que lo estarás precisando.” (BORGES, 1996, p. 333)
Nesse mundo de duelos, o feminino aparece somente para reconhecer o compadrito mais valente
e ser protegida por ele. Ela manifesta claramente que desaprova a atitude covarde de Juárez, depois
de sugerir que ele tomasse seu “cuchillo” e enfrentasse quem o desafiava: “Entonces la Lujanera se
le prendió y le echó los brazos al cuello y lo miró con esos ojos y le dijo con ira:
- Déjalo a esse, que nos hizo creer que era un hombre” (BORGES, 1996, p. 333). Ela demonstra,
então, que reprova tal atitude, ou melhor, ausência de atitude.
Além disso, deixa bem claro que não permaneceria com um homem covarde, fora dos padrões
esperados. A ação de Real, frente à abertura feminina, é previsível: “Francisco Real se quedó
perplejo un espacio y luego la abrazó como para siempre y les gritó a los musicantes que le
metieran tango y milonga y a los demás de la diversión, que bailaramos.” (BORGES, 1996, p. 333)
Conforme Castillo (1995, p. 207):
Para ella, es una relación de pretección y, por tanto, carece de sentimentalidad. Por
eso se muestra igualmente fria y dura con la cobardia de Juárez como, despúes, con
la muerte de Real. No es el amor lo que la une a los hombres sino el sentido de
protección. Se me ocurre que quizá el apellido Real del forastero tiene un valor
simbólico y significa que él es un compadrito ‘real’ frente a Juárez que es un
compadrito fingido o falso.

Frente à negativa deste, interpretada como covardia, mais surpreendente ainda resulta a atitude
de entrega feminina. O narrador coloca que, além de humilhar Rosendo, o “estrangeiro” consegue
uma mulher para aquela noite, ou melhor, para várias noites. Desde já, é viável concluir que as
ações femininas, bem como as palavras, são escassas nesse conto, porém decisivas, visto que
desencadeiam a tragédia. Passar das mãos de um para as do outro representa o reconhecimento de
uma vitória.
“Abram cancha que eu a conduzo na dança”. 5 O fato de Real envolver Lujanera no tango é
significativo, devido à carga de paixão, sedução, sensualidade e drama imbricados nesse ritmo,
nascido nos cabarés e bordéis dos subúrbios em Buenos Aires, no final do século XIX. Nas tristes
letras de tango, quase sempre aparece o sofrimento amoroso masculino, causado, evidentemente,

5
Segundo tradução de Denise Mallmann Vallerius (2009), em tese de dissertação já citada. A expressão “la
llevo dormida” significa, nesse contexto, que o homem sabe conduzir bem a mulher na dança, então ela acaba fechando
os olhos.
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pela feminino. Na mesma noite, o resto das mulheres, “el hembraje”, começa a dançar com os
homens do Norte, porém sem falar nada.
Ao sair do baile, Rosendo ofende o narrador, o que faz este refletir sobre sua condição de vida.
Pistas sobre o desenlace: covardia de Rosendo e coragem intragável do forasteiro não o deixavam
em paz. Até uma mulher o forasteiro consegue! Como lembra Bourdieu (2007, p. 65), “a virilidade
tem que ser validada pelos outros homens, em sua verdade de violência real ou potencial, e atestada
pelo reconhecimento de fazer parte de um grupo de ‘verdadeiros homens’.”
Todavia, Lujanera e Real voltam ao baile, só que ele chega ferido. Havia sido atacado por um
desconhecido, em um pequeno campo. Morre na frente de todos, que decidem se livrar do corpo
antes que a polícia chegasse, pois não queriam encontrá-la. Chegam a acusar Lujanera, mas ela
escapa nesse ínterim. O narrador parte em defesa dela, ressaltando as características “femininas”
que lhe impediriam de cometer tal ato: “fijensén el las manos de esa mujer. ¿Qué pulso ni que
corazón va a tener para clavar una puñalada?” (BORGES, 1996, p. 336)
Finalmente, o narrador conta a Borges que era o assassino. Quando se aproxima de casa, percebe
uma luz acesa. Diz que se apressa em chegar quando se dá conta do que era. Cabe ao leitor concluir,
assim, que a mulher esperava pelo “herói”, afinal ele já havia contado ao interlocutor que dormira
com ela na mesma noite.
Yo me fui tranquilo a mi rancho, que estaba a unas tres cuadras. Ardía en la
ventana una lucecita, que se apagó en seguida. De juro que me apuré a llegar,
cuando me di cuenta. Entonces, Borges, volví a sacar el cuchillo corto y filoso que
yo sabía cargar aquí, en el chaleco, junto al sobaco izquierdo, y le pegué otra
revisada despacio, y estaba como nuevo, inocente, y no quedaba ni un rastrito de
sangre. (BORGES, 1996, p. 336)

O narrador praticamente “toma” o lugar de Rosendo Juárez, seu ídolo, assumindo sua identidade
ao ponto de matar quem o havia desafiado e ficar com Lujanera, a mulher do “Pegador”, mitificado
aos olhos dos demais “compadritos”. A questão da identidade remete a outro conto borgeano,
igualmente interessante por conter características semelhantes: “El muerto”, em que a mesma
relação de admiração e consequente tomada de lugar se estabelece. Quando consegue a amizade de
Suárez, o guarda-costas de Bandeira, Otálora coloca em prática um plano para derrotar a quem
inveja. Aparentemente bem-sucedido, resulta na posse dos três atributos que “identificam”
Bandeira: o cavalo, a autoridade e a mulher: “son atributos o adjetivos de um hombre que él aspira a
destruir.” (p. 547)
Castillo (1995, p. 2003) esclarece essa questão identitária, exemplificando com o conto aqui
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abordado: “Frente al miedo de Juárez, el narrador siente horror y el vacío que le produce el
derrumbamiento de un mito. Se siente desprotegido porque la admiración que sentia por el outro se
fundamentaba en un reconocimiento de tipo carismático e irracional, casi religioso.” E a mulher,
nesse contexto, possui uma importância simbólica: “La identificación con ‘el otro’ significa aqui,
para el narrador, convertirse en el Juárez que admiró. La Lujanera refuerza el reconocimiento de ese
código sagrado, de ese sistema de valores que comparte con el compadrito narrador.” (CASTILLO,
1995, p. 205)
Afinal, por que Otálora, personagem principal de “El muerto”, quer ser o gaúcho Bandeira, líder
admirado por todos? Bourdieu (2007, p. 65) explica a exaltação da virilidade, uma espécie de não
feminilidade: “em oposição à mulher, cuja honra, essencialmente negativa, só pode ser defendida ou
perdida, sua virtude sendo sucessivamente a virgindade e a fidelidade, o homem ‘verdadeiramente
homem’ é aquele que se sente obrigado a estar à altura da possibilidade que lhe é oferecida de fazer
crescer sua honra buscando a glória e a distinção na esfera pública”. Aplica-se a observação de
Bourdieu ao conto mais precisamente analisado nesse estudo. Rosendo Juárez nega-se a participar
do duelo, perdendo, dessa maneira, o posto de homem mais admirado que lhe cabia. Bourdieu
(2007, p. 20 e 64) continua:

A virilidade, em seu aspecto ético mesmo [...], princípio da conservação e do


aumento da honra, mantém-se indissociável, pelo menos tacitamente, da virilidade
física. [...] A virilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social,
mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência (sobretudo em
caso de vingança) é, acima de tudo, uma carga.
Aqui, o foco está na construção do gênero masculino, cerne de discussão dos estudos de gênero:
Ao problematizar a questão das relações de gênero como uma categoria de
abrangência de um conjunto de relações sociais, o feminismo, longe de cingir-se à
questão da mulher como indagação emblemática, postula que ambos, homens e
mulheres, são prisioneiros do gênero – ainda quando diferentemente, mas de modo
inter-relacionado. (CAMPOS, 1992, p. 111)

O protagonista-narrador, frente à covardia de Rosendo, mata Francisco a punhaladas, seguindo a


lógica de seu meio social, atuando de acordo com seu modo de viver e garantindo os valores do
grupo, no qual a lei da honra prevalece. Sua aparente inocência engana o leitor até o último minuto.
O compadrito, que não é nomeado, conta a Borges, este convertido em personagem-ouvinte, sua
história. Dessa maneira, o autor consegue representar aspectos da mentalidade de um “orillero”,
pertencente ao mesmo ambiente que Otálora. A faca que o narrador utiliza para matar um homem
continua “inocente”, como ele descreve no final. É como se esse tipo de violência fosse justificável,
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de acordo com o código de ética de tal sociedade representada no conto.


Se a mulher continuasse ao lado do compadrito “fracassado”, deixaria de ser respeitada. Ou seja,
ela segue uma “regra” de convivência social, pertencente a um ethos. Retomando Bourdieu (2007,
p. 17), vale destacar a noção de habitus, a qual se refere à participação das mulheres na própria
dominação. É pela experiência diária que as identidades sociais são adquiridas:
A divisão entre os sexos parece estar na “ordem das coisas”, como se diz por vezes
para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente no
estado objetivado das coisas, em todo o mundo social e, em estado incorporado nos
corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como esquemas de percepção, de
pensamento e ação.

A aura de proteção inerente ao compadrito é vista pela mulher como condição necessária. Em
outras palavras, em nenhum momento “questiona” (aos outros ou a si mesma) se precisa dessa
proteção, de submeter-se ao homem mais admirado pelos outros, afinal, para os esquemas de
pensamento, é “natural” que seja assim, processo esse denominado de “naturalização” dos papéis
sociais. Em se tratando de uma sociedade patriarcal, Zinani (2006, p. 60), na esteira de Bourdieu,
coloca que
A dominação patriarcal se legitima, tanto pela força da tradição que demarca o
conteúdo dos ordenamentos como pelo livre-arbítrio de seu senhor. A dominação
patriarcal é constituída por associações de caráter comunitário, regidas pelo
‘senhor’, o qual é obedecido pelos ‘súditos’. O poder do patriarca alicerça-se na
idéia arraigada nos dominados de que essa dominação é um direito próprio e
tradicional do dominador e que exerce no interesse deles próprios. A fidelidade é
um princípio básico, legitimado pela santidade da tradição.

A frase crucial de Lujanera permite entrever uma necessidade de reconhecimento. Castillo


(1995, p. 202) continua:

Es indudable que existe una ley de reciprocidad entre la más bella de las mujeres y
el más bravo de los hombres. No cumplir esta relación de reciprocidad significaría
para ella vulnerar, más que un principio meramente funcional, un principio de
reconocimiento ritual frente al grupo de compadritos y prostitutas.

Segundo esse autor, o fato de o conto ser o menos “borgeano”, no sentido de ausência de
complexidade, o levou a ser acolhido por mais leitores, transformado inclusive em filme. Cabe ao
leitor deduzir que o narrador é o protagonista, o que mantém Borges a uma distância considerável.
Esse aspecto reforça a verossimilhança: não se trata de “invenção” do autor, mas sim de uma
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história que lhe contaram, fato esse corroborado pelas marcas de oralidade que compõem a estrutura
gramatical. O efeito é claro: esquece-se definitivamente do autor, nesse caso convertido em
personagem, mero interlocutor do narrador. Borges consegue escrever segundo a mentalidade e a
visão de mundo de um “compadrito”.
Fica claro para o leitor que Lujanera joga-se nos braços de Real como um troféu ao homem mais
valente da noite. Não obstante, depois de ele ser misteriosamente assassinado, ela reconhece no
narrador um novo protetor: vai para o rancho dele. Ou seja, em poucas horas esteve com os três
homens mais importantes do local. Este, de início, já deixa claro que ela dormira com ele, uma
possível pista sobre o desenlace da história. Aliás, a frase que abre o conto por si só já constitui uma
pista: “A mí, tan luego, hablarme del finado Francisco Real”. (BORGES, 1996, p. 331) Castillo
(1995, p. 203) comenta que “La Lujanera, que se puede entender como la mujer más deseada por
los compadritos, o la que está con el compadrito más valiente, reconoce al narrador como su nuevo
protector al haber sido capaz de hacer lo que Juárez no hizo, esto es, desafiar a Real.”
Entretanto, Bonicci (2007, p. 80) ressalta que há estereótipos, herança das sociedades patriarcais,
que acabam determinando como a mulher será representada, o que extrapola, em parte, o contexto
histórico-social, as condições do meio machista e violento que explicam como esta se delineia no
conto: “Na literatura e na mídia as mulheres ou são ausentes ou representadas em termos de
sedução, objetos sexuais, feminilidade, dependentes, consumidoras e ocupadas com trabalhos
domésticos, enquanto os homens mostram independência, autoridade e dominância”.
Outro aspecto fundamental para o estabelecimento de sentido da narrativa aponta,
evidentemente, para a mulher. Não é possível saber o nome de “Lujanera”, ela é referida dessa
forma durante todo o conto. Entretanto, não é a única tratada de maneira depreciativa. Ao descrever
o baile, o narrador comenta sobre “la caña, la milonga, el hembraje.” Segundo a o dicionário da
Real Academia Espanhola, este último termo significa conjunto de fêmeas do gado. Todavia, na
Argentina, no Paraguai e no Uruguai é utilizado para designar conjunto ou grupo de mulheres.
Como deriva do vocábulo “hembra”, fêmea em língua portuguesa, o significado mais evidente
compreende o mundo animal, indicando comportamento instintivo, ignorante, ou até mesmo sexual.
Vallerius (2007) traduz o vocábulo como “mulherio”. De qualquer forma, o narrador poderia ter
comentado que havia “mujeres”. O interessante é que ele tinha parceira para dançar, mas acaba a
noite com Lujanera, já que se transforma em “o mais valente”. Por conseguinte, merece ficar com
esta, afinal “las sobrava a lejos a todas” e representa um elemento concreto de posse do outro, a
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quem admirava. Simbolicamente, ela concretiza a “superioridade” do narrador sobre o forasteiro.


Nota-se, em contos como este, que Borges não idealiza o homem dos subúrbios: apenas mostra a
crua verdade do destino argentino, sem ares de nacionalismo. O punhal, para o “compadrito”, é a
única justiça que ele reconhece. O homem deve estar pronto para matar ou morrer, tendo a coragem
como lei, religião e valor máximo. De acordo com Sarlo (2008), na cultura crioula, “Era inevitável
que o ofensor e o ofendido se enfrentassem corpo a corpo na forma de um duelo: a falta de leis e de
virtudes republicanas era substituída pelo código de honra e pela virtude da coragem. A reparação
concreta e simétrica do dano sofrido tomava o lugar das decisões da justiça formal.” (p. 140)
Amado Alonso (1960, p. 348) resume essa problemática:
He aquí unos hombres y mujeres que forman la resaca de la sociedad. Vicio y
delincuencia. Viven al margen de la ley y nuestra policía los vigila. A nuestra
higiene moral y corporal ese extraño modo de vivir le inquieta y azora. Absurdo,
abyección y maldad. Pero éstas son tres negaciones formuladas desde nuestro
modo reglado de vida. También aquél es un modo de vivir y, por lo tanto, debe
tener regulación. No hay más que mirarlos desde dentro, en vez de juzgarlos desde
fuera. Entonces se les sorprende unos ideales de vida, unas normas y leyes.

Faz-se necessário ler a narrativa sob a perspectiva de Rosendo Juárez, no conto já referido
anteriormente. Assim o narrador começa: “Usted, señor, ha puesto el sucedido en una novela, que
yo no estoy capacitado para apreciar, pero quiero que sepa la verdad sobre esos infundios.”
(BORGES, 1970, p. 40) A história centra-se na versão deste sobre o que aconteceu na noite em que
o Curraleiro morre. Rosendo comenta como ficou conhecido como o mais valente, pois é a partir de
tal fato que a mulher entra em sua história: “No había un alma que no me respetara. Me agencié
uma mujer, la Lujanera, y un alazán dorado de linda pinta.” (BORGES, 1970, p. 44) Nesse
momento, toma posse de dois objetos de reconhecimento dele como homem: a mulher e o cavalo.
Sobre mulheres, ele e Luís Irala conversam. Este havia perdido a sua para Rufino Aquilera e
conta ao outro que planejava se vingar. Rosendo, em uma postura antiviolência, o aconselha a
recuar, mas ele insiste, argumentando que as pessoas o vão rotular de covarde. Então, em uma frase,
ele resume a humilhação que significa, nesse mundo em particular, sofrer por uma mulher: “Un
hombre que piensa cinco minutos seguidos en una mujer no es un hombre sino un marica.”
(BORGES, 1970, p. 45)
Quando conta sobre a chegada dos forasteiros no baile, comenta que se lembra do vestido
floreado da companheira. Nesse momento, ele explica o motivo – uma espécie de coragem – de ter
“fugido” do embate: “En ese botorate provocador me vi como en un espejo y me dio vergüenza. No
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sentí miedo; acaso de haberlo sentido, salgo a pelear. Me quede como si tal cosa.” (BORGES, 1970,
p. 47) Na sua versão da história, ele é chamado de covarde pelo desafiante e responde que não lhe
importaria sair dali com essa fama. Conforme Sarlo (2008, p. 141),“Como o duelo exige uma
relação entre iguais, a inferioridade moral do desafiante justifica a recusa do desafio.”
Ele conta a atitude de Lujanera, quando coloca a faca em sua mão. Finalmente ele escapa, sem
importar-se com a aparente covardia. A personagem, então, fala dos novos rumos que havia
seguido: “Para zafarme de esa vida, me corri a la República Oriental, donde me puse de Carrero.
Desde mi vuelta me he fincado aqui. San Telmo ha sido siempre un barrio de orden.” (BORGES,
1970, p. 48) Nessa história, pelo ponto de vista de outra personagem, não há a fala provocativa de
Lujanera, esta não ofende “seu homem”. Ademais, fica claro que há uma tomada de consciência por
parte deste, que não vê mais justificativa nessa vida de violência gratuita e de desordem. Sarlo
(2008, p. 142) justifica: “Quem desafia sem ofensa é um espelho no qual o desafiado não quer ver
seu reflexo. Rosendo Juárez recusa-se a duelar porque aquele que o provoca não o respeita como
instrumento para restabelecer uma ordem. Tão-somente os cuchilleros de uma época que anuncia a
decadência do duelo recorrem a ele sem necessidade de reparação ou de justiça.” (SARLO, 2008, p.
142)
Voltando à construção do gênero feminino, de acordo com Vallerius (2007), “Lujanera”, além de
um gentílico, pode ser referir à Nossa Senhora de Luján ou ainda a uma carta específica dos jogos
de baralho, que simboliza a perda do jogo para quem a possui, nos costumes dos gauchos
argentinos. Ou seja, carta de azar, com poder de decidir o resultado de uma partida. Spagnuolo 6
auxilia a compreender esse sentido tão intrigante no contexto do conto borgeano, apontando a
instauração do caráter ambíguo da mulher:
La Lujanera es la mujer fatídica, la mujer-carta que le hace perder la suerte a
Francisco Real cuando la cree muy segura. [… ] En ese punto, la suerte de
Francisco Real está echada. La intervención de la Lujanera – ese golpe del juego –
ya ha decidido la muerte del Corralero, aunque su victimario aún no sepa con
claridad el lance que se le prepara.

Mesmo que o leitor desconheça tal informação, fica evidente a importancia da irrupção feminina

6
SPAGNUOLO, Marta. Ascasubi, Borges y La Lujanera. Ensaio originalmente publicado na revista
Variaciones Borges # 16/ 2003, pp. 16-78 (The J. L. Borges Center for Studies and Documentation, University of
Aarhus, Denmark). Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/bh26borges.htm. Acesso em: 10 abr.
2010.
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no destino dos homens. É claro que, para o leitor argentino, esse detalhe cultural auxilia a atribuir
significação ao conto: conforme a autora supracitada, há uma mulher-carta (passa de mão em mão),
dissimulada (esconde elementos do assassinato) e prostituta (oferece seu corpo ao forasteiro). Em
um ambiente violento, de ação esencialmente masculina, ela consegue manipular o sexo oposto,
mas somente utilizando-se de sua sexualidade como argumento.
De acordo ainda com Bourdieu (2007, p. 22):

Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produto da
dominação ou, em outros termos, quando seus pensamentos e suas percepções
estão estruturados de conformidade com as estruturas mesmas da relação da
dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são, inevitavelmente,
atos de reconhecimento, de submissão.
E no âmbito da sexualidade,

Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela
está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino,
ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e
dirige o desejo – o desejo masculino como desejo de posse, como dominação
erotizada, e o desejo feminino como desejo da dominação masculina, como
subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento
erotizado de dominação. (BOURDIEU, 2007, p. 31)

Ainda quanto à representação de gênero feminino, é bom lembrar Campos (1992, p. 113), em
consonância com as teorias de Bourdieu: “a ‘naturalização’ de papéis sociais atribuídos aos sexos
consolidou-se hierarquicamente, como se fossem da ordem do senso comum, quando, em verdade,
neles se abrigam a dominação, a opressão, a exclusão.”
Com relação a essa dominação, é necessário retomar Bourdieu (2007, p. 7), para quem a
submissão feminina resulta em uma aniquilação simbólica da mulher, processo esse denominado de
“violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas”, mas que não
acontece na ordem das intenções conscientes. Para o sociólogo, uma sociedade androcêntrica (visão
essa historicamente construída) origina uma discriminação simbólica. E as divisões entre os sexos,
construídas arbitrariamente, são apreendidas como naturais, evidentes. As mulheres, em
consequência, legitimam essa dominação, pois “aplicam a toda a realidade e, particularmente, às
relações de poder em que se veem envolvidas, esquemas de pensamento que são produto da
incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem
simbólica.” (BOURDIEU, 2007, p. 45) Ele ainda comenta que os dominados acabam lançando mão
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de estratégias que reforçam o reconhecimento da dominação simbólica, como, por exemplo, o


artifício da sedução, caso do conto em questão.
Destarte, na sociedade representada nesse texto literário, a passividade e a submissão reinam em
um meio de bravura, valentia e liberdade. Quando a mulher está presente nesse contexto, move-se
como pano de fundo, apenas reforçando a posição do homem, já que o foco encontra-se nele, numa
sociedade que valoriza a masculinidade. E, nesse ambiente, muitas vezes, ela é sinônimo de dúvida
e de desequilíbrio, figura que representa o extremo oposto do homem. O papel dela é figurar o
reconhecimento do mais forte. O interessante é que, embora envolta em uma aura de passividade,
portanto sofrendo uma “aniquilação simbólica”, nos termos de Bourdieu, a mulher, nesse conto,
também representa a aniquilação do masculino. Como aponta Spagnuolo 7:
La irrupción de la Lujanera da un giro completo al relato. Su entrega a Francisco
Real, que en apariencia duplica el triunfo del malevo, es en realidad el comienzo de
su inmediata derrota y consecuente muerte. En efecto, presenciar cómo el
Corralero ha dado por tierra con el crédito del barrio es insufrible para el anónimo
relator; pero ver que además ha conseguido a la Lujanera, es el colmo que mueve
su puñal. Estos hechos tan “reales” para el lector, resultan, sin embargo, de la
metáfora de una metáfora. De la alegoría casi, de tan claramente traslaticia,
representada por la “salida” de la Lujanera: mujer funesta que señala al perdedor en
el cuento donde los personajes de Borges se juegan la vida, y carta funesta que
señala al perdedor en la carpeta donde los gauchos juegan su suerte a la baraja. […]
eso es lo que significa Lujanera: la carta de la mala suerte, la que, al salir o ser
colocada con trampa, señala la segura derrota de un jugador.

Em Borges, a “ausência” da mulher se traduz pela impossibilidade de atuação e de voz, o que


leva as personagens a se mover como podem – principalmente em função de sua sexualidade – em
um meio onde o conflito social entre os gêneros se destaca. Lujanera concretiza o conflito que
estava prestes a acontecer e estabelece o desfecho: fica com o homem mais valente da noite. Em
suma, o feminino é representando como um misto de bem e mal, vitória e derrota, sempre em
relação ao masculino, reforçando o estereótipo construído pela literatura. Teiniaguá simoniana nos
pampas argentinos? Aniquilação mútua?
Na mesma linha das análises de Sarlo, Arrigucci Jr. (1987, p. 195) desconstrói o rótulo de
escritor puramente “universal” atribuído a Borges: “pensá-lo nos quadros da história concreta,
reatar os elos que o prendem ao contexto literário onde apareceu, entender sua especificidade e

7
SPAGNUOLO, Marta. Ascasubi, Borges y La Lujanera. Ensaio originalmente publicado na revista
Variaciones Borges # 16/ 2003, pp. 16-78 (The J. L. Borges Center for Studies and Documentation, University of
Aarhus, Denmark). Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/bh26borges.htm. Acesso em: 10 abr.
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como ele lida com a matéria particular a que deu forma universal, tudo isto é tarefa crítica vasta,
complexa e fundamental.” Ou seja, é preciso resgatar a leitura da obra borgeana que busque
estender as relações de regionalidade, as marcas regionais que atuam para o estabelecimento de uma
visão de mundo.

REFERÊNCIAS

AGHEANA, Ion. El sur. In: CAÑEQUE, Carlos. Conversaciones sobre Borges. Barcelona: Destino,
1995.ALONSO, Amado. Materia y forma en poesía. Madrid: Gredos, 1960.
ARRIGUCCI JR., Davi. Enigma e Comentário. Ensaios Sobre Literatura e Experiência. São Paulo:
Cia. das Letras, 1987.
BONICCI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: EDUEM,
2007.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Barcelona: Emecé, 1996, 4 v.
______. El informe de Brodie. Barcelona: Emecé, 1970.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Gênero. In: JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da Crítica. Rio
de Janeiro: Imago, 1992.
CAÑEQUE, Carlos. Conversaciones sobre Borges. Barcelona: Destino, 1995.
DICCIONARIO DE LA LENGUA ESPAÑOLA. Disponível em:
http://buscon.rae.es/draeI/SrvltConsulta?TIPO_BUS=3&LEMA=hembraje. Acesso em 10 abr.
2010.
RELA, Walter. El gaucho en el contexto sócio-político rioplatense: (desde la época colonial hasta
fin del siglo XIX). Letras de Hoje, n. 77, 1989. Porto Alegre, p. 9-22.U
SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges, um escritor na periferia. São Paulo: Iluminuras, 2008.
SAVATER, Fernando. In: CAÑEQUE, Carlos (Org.). Conversaciones sobre Borges. Barcelona, ES:
Destino, 1995.
SPAGNUOLO, Marta. Ascasubi, Borges y La Lujanera. Ensaio originalmente publicado na revista
Variaciones Borges # 16/ 2003, pp. 16-78 (The J. L. Borges Center for Studies and Documentation,
University of Aarhus, Denmark). Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/bh26borges.htm.
Acesso em: 10 abr. 2010.
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VALLERIUS, Denise Mallmann. De traduções e transcrições: o regionalismo borgeano para além


das fronteiras. Tese de Doutorado (2009). Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=14330
7. Acesso em: 10 abr. 2010.
Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero: a construção da identidade feminina. Caxias do Sul:
EDUCS, 2006.
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A RESISTÊNCIA DA COMUNIDADE JAMAICANA EM IN THE FALLING


SNOW DE CARYL PHILLIPS

Geniane Diamante Ferreira Ferreira (UEM)

Vida e obra de Caryl Phillips

Caryl Phillips nasceu em St. Kitts, em 1958, e cresceu em in Leeds, Inglaterra.


Depois de se formar no Queen’s College, em Oxford, ele escreveu seu primeiro
romance, The Final Passage (1985), com o qual ganhou o prêmio de ficção Malcolm X.
Seus romances seguintes, A State of Independence (1986), Higher Ground (1989),
Cambridge (1991), Crossing the River (1993), The Nature of Blood (1997), A Distant
Shore (2003), Dancing in the Dark (2005) e, mais recentemente, In the Falling Snow
(2009) receberam inúmeras premiações.
Ele também escreveu para a televisão, rádio, teatro e cinema. Seus trabalhos incluem
três livros de não-ficção: The European Tribe (1987), The Atlantic Sound (2000) e A
New World Order (2001). Ele também tem duas antologias, Extravagant Strangers
(1997) and The Right Set (1999). Phillips estudou em universidades na Índia, em
Singapura, Suécia, Canadá, Polônia, Barbados e Gana. Hoje ele divide seu tempo entre
Londres e Nova Iorque, onde é professor de inglês e de Migração e Ordem Social na
Faculdade de Barnard na Universidade de Columbia.
Não é fácil categorizar seu trabalho, já que ele cobre temas muito diversos tais como
o pós-colonialismo, o pós-modernismo, os negros britânicos e assim por diante. Mas um
de seus temas predominantes é a condição dos imigrantes. Isto é mostrado de maneira
relevante em seu primeiro romance e de forma mais sutil em seus últimos trabalhos.
Evidentemente, o fato de Phillips ser caribenho nos remete a traços autobiográficos em
seu trabalho, mas não se pode afirmar que há um paralelo entre sua vida e os
personagens que cria. É claro que ele usa as dicotomias de sua própria perspectiva para
escrever. Por outro lado, ele também menciona outros grupos marginais (judeus, por
exemplo) para fazer uma analogia. Mais que isso, ele escreve acerca de imigrantes em
geral, que, apesar de possuir nomes definidos, poderiam ser os protagonistas de outras
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diversas histórias. Ele discute a diáspora em geral e todos os problemas que estas
pessoas podem vir a enfrentar, inclusive os resultados, tais como alienação e/ou
destruição destas sociedades. O trabalho de Phillips é tão significativo que muitos
consideram que ele ‘concretizou’ o divórcio entre a Inglaterra e o Caribe e entre a
América do Norte e a África.

1. Fábula do excerto analisado de In the Falling Snow

A protagonista da obra é Keith, um filho de imigrantes nascido nos anos 60,


primeiramente criado por sua madrasta, uma mulher branca. Ele tem aproximadamente
40 anos e sua vida encontra-se embaraçada: separado de sua esposa (cuja família
abandonou por ter se casado com um homem negro), afastado de seu filho de 17 anos e
em lide com uma colega de trabalho que o acusa de assédio. Além de tudo isso, Keith
sente desesperadamente que ele e seu trabalho não são mais relevantes.
Movendo-se do presente para o passado e vice-versa, a narrativa mostra
particularidades de classe, origens, temperamento e revela como, involuntariamente, sua
esposa, seu filho e seu pai o ajudam a lidar com as mudanças em sua vida.
Este trabalho versa sobre a última parte do livro sob estudo, em que o pai de Keith,
Earl Gordon, conversa com seu filho no hospital. Ele está morrendo e contando a Keith
sobre sua história desde quando vivia na Jamaica, sua chegada na Inglaterra, seus
sonhos, decepções etc. O trecho versa, assim, sobre o fluxo de consciência de Earl no
final de sua vida.
Trata-se de um extenso monólogo, portanto, uma história contada a partir de um
ponto de vista individual da personagem, mas talvez este seja o trecho mais
impressionante de todo o livro. Sua história de deslocamento físico e ‘psicológico’ e os
problemas enfrentados por ser imigrante influenciam seu filho, Keith, fazendo com que
ele reveja suas atitudes e sua postura perante a vida.

2. Resistência, Identidade e Pós-colonialismo


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O imperialismo construiu a crença de que a cultura européia era central e superior,


usando suas descobertas científicas, a literatura, o comércio, entre outros, para justificar
tal afirmação.
No final do século XIX, o colonialismo europeu se popularizou e então a ideologia
da sua superioridade, o que ajudou a dar suporte às conquistas e seus conseqüentes
crimes. Desta forma, a submissão, a escravidão e a total destruição de inúmeras
sociedades foram até mesmo consideradas como boas ações para os colonizados.
Conforme os territórios eram ganhos, uma nova cultura também era imposta, ou seja, a
língua, a economia e principalmente o poder sobre a nova colônia, que era passado ao
invasor, com a expectativa do enriquecimento. A destruição de uma diversidade de
culturas em incontáveis nações é resultado deste imperialismo cultural.
A resistência contra a dominação exercida pelos colonizadores é o caminho para a
recuperação da subjetividade e da identidade dos povos oprimidos. Ela pode aparecer de
forma violenta ou discursiva. Quanto à resistência violenta, temos as posições contrárias
de Frantz Fanon e de Hannah Arendt. Já a resistência discursiva pode apresentar-se na
forma de mímica e/ou paródia, cortesia dissimulada e releitura e reescrita de obras do
cânone do colonizador.
Frantz Fanon (1925 – 1961), psiquiatra, filósofo, revolucionário e escritor,
influenciou o campo dos estudos pós-coloniais e foi um célebre pensador do século XX
a respeito da descolonização e da psicopatologia da colonização. Seus trabalhos
inspiraram movimentos de libertação anti-coloniais por mais de quatro décadas. Seu
livro de maior destaque, Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), é uma análise do efeito
da subjugação colonial sobre a humanidade. Esta obra foi originalmente apresentada e
recusada como sua tese de doutorado em Lyon. Mais tarde, em seu livro Os
Condenados da Terra, de 1961, censurado pela França e prefaceado por Jean-Paul
Sartre, Fanon discute os efeitos da tortura das forças francesas que se sobrepõem na
guerra na Argélia. Ele analisa também o papel da classe social, da raça, da cultura e da
violência em prol da libertação nacional.
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Fanon se tornou, assim, um defensor da resistência e da revolução contra o


colonialismo. Tal resistência, defendia ele, se dava por meio da violência, porque,
segundo Fanon, esta é a única língua que o colonizador entende.

Fanon’s articulation of the basic requirements of a national culture


was sufficiently rigorous to have anticipated some of the most radical
positions of our contemporary criticism (ASHCROFT, 1999, p. 159).

A violência, neste caso, vem a ser a força purificadora, que liberta sua nação do
parasita da metrópole. Ele acredita que como a violência já está sendo empregada, o
desejo de aniquilação do colonizador é, ou deve ser, uma reação natural do colono, pois
ela proporciona a unidade entre os nativos na luta contra a história da metrópole em
favor da construção da história de sua nação (FANON, 1990).
Já Hannah Arendt (1906 – 1975), uma teórica política judia-alemã, tem posição
contrária. Ela admite, porém, que a política e, conseqüentemente, a história tem sido
permeada pela violência: “No one concerned with history and politics can remain
unaware of the enormous role violence has always played in human affairs” (ARENDT,
1969)]. Para Arendt, isso demonstra o quanto estamos habituados à violência e o quanto
ela tem sido ignorada, dada sua presença óbvia tão intimamente ligada ao poder. A
violência, segundo ela, está hoje intrínseca ao poder, pois este é um tipo de violência.
Contudo, a visão de governo que Arendt defende é aquela em que há poder, pois ele é
da sua essência, mas sem violência, porque esta não o é.
Assim, o poder e a violência, embora sejam fenômenos distintos, usualmente
aparecem juntos e a violência, ao contrário do poder, não precisa de legitimidade, mas
de implementos. Uma violência bem implementada apresenta artefatos que podem
destruir o poder ou subjugar outra nação imediatamente, o que não advém do poder em
si. Quando não há poder, ou ele é perdido, ele é passível de ser substituído pela
violência.
A resistência discursiva também tem importante papel como defesa contra a
outremização. Embora Spivak (1995) acredite que o sujeito não pode falar, já que não
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tem espaço para se expressar, Bhabha (1998) afirma que há táticas usadas pelo
colonizado que podem ser vistas como sua voz.
Segundo ele, tal resistência consiste no discurso empregado pelo colonizado. A
mímica ou a imitação, a paródia, além da cortesia dissimulada, fazem ruir a sistemática
monolítica do colonizador, pois a língua é, afinal, uma atitude e isso quebra a primazia
do invasor.
A mímica é a tentativa, por parte do colonizado, de imitar o colonizador. Como é
difícil para o colonizado fugir da vitimização, ela está implícita na condição pós-
colonial. A mímica aparece, inicialmente, com a função de se assemelhar ao outro,
àquele que se acredita ser o padrão correto. Pode-se dizer, então, que a mímica é
produto do apregoamento da idéia binária do adequado (europeu) e do inadequado
(negro, colonizado). Tal resultado verifica-se na forma de resistência à opressão, já que,
parecendo o outro, não se pode mais ser subjugado.
A mímica e a paródia podem ser sarcásticas e tornar ridículos os padrões
colonizadores. Elas também são consideradas como defesa, já que um abismo é criado:
o colonizador se vê a partir de uma perspectiva diferente. Ele vê que sua ‘criação /
criatura’ – o outro – não é o mesmo que encontrou e nem o mesmo que ‘adestrou’ e que,
conseqüentemente, o negro não está completamente colonizado e pode se tornar uma
ameaça, já que percebe os pontos fracos do invasor. Nas palavras de ASHCROFT et al.
(1989, p. 88), “the distinction is between the authentic experience of the ‘real’ world
and the inauthentic experience of the unvalidated periphery”.
Essa oposição é vista nos mais diferentes aspectos:

Order and disorder, authenticity and inauthenticity, reality and


unreality, power and impotence, even being and nothingness. Clearly,
the dominance of the centre and its imprimatur on experience must be
abrogated before the experience of the ‘periphery’ can be fully validated
(ASHCROFT et al.,1989, p. 88).

Obviamente, tratando-se de uma resistência discursiva, a mímica e a paródia não


constituem somente da imitação da fala ou de costumes, mas também de modelos
europeus de cultura, especialmente a escrita e a literatura.
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A falta de autenticidade na mímica e na paródia que produz tal ambivalência é


flagrante pois elas podem, no máximo, repetir a ‘verdade’ ou a representar de forma
anômala, mas nunca torna-se autêntica. Por conseguinte, o processo da imitação, como
dito anteriormente, acaba por ridicularizar o discurso colonial quando ocupa suas
brechas e deslizes, demonstrando fragilidade. As fendas descobertas e exploradas pelo
colonizado funcionam como alavancas para rachar o discurso imperial, agora exposto
com seus temores e vulnerabilidade quanto ao seu poder.
Além da mímica e da paródia, Bhabha (1998) também cita a sly civility ou ‘cortesia
dissimulada’ como forma de resistência. Em seu livro The Location of Culture, o autor
desenvolve tal conceito. A cortesia dissimulada é uma postura retórica que parece se
submeter à influência hegemônica para, na verdade, eliminá-la sutilmente.
Entre a significação pregada pela nação européia e aquela dada pela colônia, surge
uma diferença que embaraça o absolutismo do bom governo estrangeiro. Isso abre um
espaço para outras interpretações e apropriações que, como na mímica e na paródia,
pois também são formas de resistência, produzem uma ambivalência que remonta às
origens da autoridade.

The native refusal to unify the authoritarian, colonialist address within


the terms of civil engagement gives the subject of colonial authority -
father and oppressor (…). This ambivalent 'and', always less than one
and double, traces the times and spaces between civil address and
colonial articulation (BHABHA, 1998, p. 98).

O que é articulado na cortesia dissimulada na ambigüidade do discurso colonial não é


simplesmente a violência de uma nação poderosa escrevendo a história de outra, mas o
modo de contradição do discurso que reposiciona, por meio das relações de poder, o
colonizador e o colonizado. Como conseqüência, uma incerteza da compatibilidade
entre as nações é revelada e o discurso de civilidade é posto à prova, já que a colônia
clama por liberdade e a metrópole por ‘ética’, pois para o colonizador, o espaço do
outro é sempre ocupado por conceitos como o caos, a violência e barbáries (BHABHA,
1998).
A dominação faz com que o nativo se submeta ao invasor, mas não é capaz de
produzir efeitos de amor, confiança e verdade que balizariam suas relações. E, se tais
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efeitos nunca aparecem, em virtude da resistência por parte de um e da opressão por


parte de outro, uma crise de autoridade emerge no senso comum dos colonizados.
Encontra-se, também, entre as formas de resistência, a re-leitura e a re-escrita das
obras dos colonizadores que são, aliás, instrumentos usados pela teoria pós-colonial
como estratégias do colonizado. A re-leitura se dá com a re-interpretação das obras
literárias canônicas européias, analisando os silêncios e as lacunas da narrativa. Já a re-
escrita das obras canônicas problematiza os pressupostos filosóficos sobre os quais a
(des)ordem colonial estava baseada. A re-escrita também se vale da subversão da
linguagem e da colocação da oralidade na escrita.
Nas palavras de Bonnici (2000, p. 258): “o autor da literatura pós-colonial deve
dedicar-se à produção de estereótipos negativos do colonizador e de imagens autênticas
do colonizado. Desse modo, criará um mecanismo que foi produzido inversa mas
eficazmente na era colonial”. Talvez o exemplo mais representativo seja o romance
Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, de 1719, que foi re-elaborado em 1986 pelo
ganhador do prêmio Nobel de Literatura, J. M. Coetzee, com sua obra Foe, que trata de
uma narrativa manipulada por uma mulher (algo inovador, que tenta chamar atenção
também para o preconceito de gênero). No livro, o autor mostra o náufrago Robinson
sem motivação e letárgico, o que lhe serve para solapar a posição monolítica do
colonizador que se mostra fraco e defeituoso. Friday, por sua vez, modificado de um
caribenho atraente para um africano, teve sua língua cortada como uma metonímia da
não-expressão do negro, mas ainda dançava e desenhava, ou seja, tinha outras maneiras
de ‘falar’. Ainda, seu silêncio pode ser interpretado como um ‘virar de costas’ para o
europeu que não pode penetrar em sua história. O próprio título é ambivalente, pois
articula uma paródia do nome do autor – Defoe – e significa ‘inimigo’ em inglês, que
era também o nome utilizado pelos colonizadores britânicos para denominar os
colonizados.
Em geral, os textos analisam os cânones tradicionais de classe, gênero e raça nos
processo de exclusão e aceitação cultural. Escritos a partir de uma ‘posição marginal’,
eles questionam a marginalidade em si numa tentativa de quebrar o silêncio das vozes
pós-coloniais. As obras são colocadas em enfrentamento com a literatura tradicional do
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colonizador e examinam as condições históricas e discursivas sob as quais os autores


negros devem operar.
Todos estes meios – violência expressa ou não, na forma de mímica, paródia e
cortesia dissimulada – têm efeitos contrários à autoridade do colonizador. Eles
consistem em tentativas de permanecer intocado ou de voltar ao status quo ante.
Entretanto, o sujeito pós-colonial já se tornou diferente do que era o nativo, pois ambas
as partes foram influenciadas. Quando novas práticas de língua e cultura foram
introduzidas, ambas as partes foram contaminadas com algo ‘externo’.

[…] there is no neat binary opposition between the colonizer and the
colonized, both are caught up in a complex reciprocity and colonial
subjects can negotiate the cracks of dominant discourses in a variety
of ways (LOOMBA, 1998, p.10).

Assim, a resistência é ferramenta importante nas mãos do colonizado. Ela o leva da


cegueira à luz que o conduz para a prevenção de sua objetificação e de sua terra. Se o
colonizado tem a percepção de que ele e sua comunidade tornaram-se ‘parte’ da
metrópole, não compondo mais sua História, mas a do Outro, ele é capaz de questionar
e se contrapor. Desta forma, o colonizador e o colonizado são colocados frente a frente,
procurando forças equivalentes.
Por meio da resistência, tanto a violenta como a discursiva, o colonizado re-adquire
sua subjetividade. Os aspectos externos que impedem ou diminuem seu exercício são
discutidos e então discernidos. O colonialismo é um dos fatores mais eficientes na tarefa
da objetificação do indivíduo e, ao perceber isso, o sujeito colonial resiste e luta para
superar este empecilho em busca de sua autonomia.
O estudo da identidade do colonizado não pode tomar somente a despersonalização
colonial, mas a assunção de uma nova e diferente identidade (assim como, em menor
escala, é claro, ocorreu com os colonizadores). Assim, a identidade é o espaço onde se
dão os fatos reais. Tal significado da realidade nunca pode ser totalmente apreendido,
mas o sujeito fechado para outras sociedades sofre o ‘analfabetismo da imaginação’
pelo qual não se vê o outro, pois se considera absoluto e monolítico. É assim que age o
dominador: tentando sempre definir e qualificar o dominado, sem perceber sua própria
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fragmentação por também estar sujeitado a algo. Da mesma forma, ao imitar o


colonizador, o colonizado fecha as portas de sua própria cultura (SOUZA, 1997).
A questão não se sobrepõe somente em alguns aspectos – político, social – mas o
fato é que o sujeito colonial recebe sua definição / delimitação a partir de fora. Os
negros, dada a violência psíquica a que são submetidos, acabam por se avaliar segundo
critérios dados por brancos, o que reforça o eurocentrismo, o desejo de identificação
com o branco e, acima de tudo, o maniqueísmo do branco vs. negro que metaforiza,
respectivamente, o bem vs. mal.
A construção da autoridade social e do processo de identificação se dá sobre três
condições: “existir é ser chamado à existência em relação a uma alteridade, seu olhar ou
lócus”; “o próprio lugar da identificação, retido na tensão da demanda e do desejo, é um
espaço de cisão” e “a identificação é sempre a produção de uma imagem de identidade e
a transformação do sujeito ao assumir aquela imagem” (BHABHA, 1998, p. 76).
Bhabha (1998) recusa a polaridade colonizador-colonizado e reconhece que a
alteridade é “a sombra amarrada” do sujeito, porque ambos se construíram. Esse hiato
entre o sujeito e o objeto, o território da incerteza, é aproveitado pelo autor pós-colonial
para reconstruir seus personagens pós-coloniais. O hibridismo pós-colonial, com sua
subversão da autoridade e a implosão do centro imperial, constrói o novo sujeito pós-
colonial. Wilson Harris (1973) fala do sujeito colonizado como alguém que tem muitas
facetas, o eu e o Outro. A procura desse eu composto é a nova identidade pós-colonial.
A violência (o desmembramento do sujeito) é seguida pela fragmentação e pela
reconstrução do vazio a partir do qual as culturas são liberadas da dialética destrutiva da
história (BONNICI, 2000, p. 258).
Desta forma, a diferença não se dá porque um é o colonizador e o colonizado, mas
sobre a perturbadora distância entre os dois, espaço em que surgem indagações não só
sobre a imagem, mas sobre o lugar discursivo onde se coloca a identidade. Mas estes
limites psíquicos, culturais e territoriais não apresentam uma linha divisória clara entre
línguas, povos etc.

A demanda da autoridade não consegue unificar sua mensagem nem


simplesmente identificar seus sujeitos. Isto porque a estratégia do
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desejo colonial é representar o drama da identidade no ponto em que o


negro desliza, revelando a pele branca (BHABHA, 1998, p. 100).

Na literatura, a expressão de autores negros, vistos como libertadores de suas


‘identidades rendidas’, ajuda a entender a identidade do negro no que tange seus
aspectos negativos (invisibilidade, falta de nome e rosto), interpretados aqui como uma
exigência para ser ouvido, visto, reconhecido e encarado como indivíduo e não como
homens marcados por sua cor e estereótipo.
Tal identidade negativa é uma ferramenta no esclarecimento de complicações
relacionadas à compreensão da identidade do negro, como a hierarquia de elementos
culturalmente positivos e negativos em cada identidade psicossocial do indivíduo e a
fusão das imagens negativas apresentadas pela maioria dentro da identidade negativa do
oprimido e explorado.
Os elementos positivos e negativos da personalidade do negro e da comunidade não
são completamente conhecidos e surge a questão de se a identidade negativa do negro
pode ser definida somente em termos de sua adaptação defensiva à maioria branca
dominante.
Ao contrário, percebe-se que é a partir de aspectos mais amplos da identidade
disponíveis na cultura que o negro encontrará sua própria identidade.

4. Análise
Como em suas outras obras, Phillips trata, ao contar diferentes histórias de seus mais
diversos personagens da preocupação com a imigração e da solidão, decepção e
exclusão que usualmente a acompanham.
O caso de In the Falling Snow não é diferente. As personagens são oprimidas pelo
centralismo europeu e se encontram à margem da sociedade. Keith, protagonista do
livro, é a segunda geração de imigrantes da família vivendo na Inglaterra, já que seu pai,
Earl, é quem primeiro sai da Jamaica.
Ao final da obra, Earl tem sua vez de falar. Até o momento ele permanece em
silêncio, o que também pode ser significativo, já que, até o momento de sua morte, não
teve voz. Sua triste história, além de afetar Keith profundamente e fazer com que ele
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entenda que o legado que leva consigo tem importante papel na sua história pessoal,
permite uma série de analises acerca da experiência do imigrante na Inglaterra de hoje.
Dentre os muitos tipos de resistência empregados pela personagem, um relevante é a
construção e manutenção da comunidade (community building) como forma de
subversão à outremização do jamaicano pelo inglês.
Earl tinha seus amigos na Jamaica – Ralph e Baron, entre outros – que imigraram
anteriormente para a Europa. Lá eles viviam em uma comunidade que se ajudava
mutuamente. Depois da morte de seu pai, Earl resolve juntar-se a eles na Inglaterra,
onde também é auxiliado pelos companheiros já lá residentes. No novo país, eles se
reúnem regularmente num bar, para trocar experiências, compartilhar problemas e
prestar assistência uns aos outros. Mais tarde, quando ficam velhos, recolhem-se, então
a uma mesma casa de idosos, onde relação idêntica permanece, mantendo, assim,
características da comunidade jamaicana para se abrigarem dentro da Europa.
Pelo seu relato, Earl queria apenas levar uma vida normal e equilibrada. Ele não
almejava enriquecer, mas ser livre como cidadão para trabalhar. Em outras palavras,
isso mostra sua maior resistência. Earl e seus amigos (Ralph e Baron) estavam dispostos
a superar todos os obstáculos, desde que fossem de fato livres. Este senso de formação
de comunidade (community building) pode ser visto como um dos tipos de resistência
mencionados anteriormente. Tal esforço compreende-se pela

potencialidade do nativo para fomentar a comunidade, o altruísmo, a


reconciliação e a inclusão. De fato (o colonizado) empenha-se em
construir a comunidade: promove encontros de nativos, acolhe as
pessoas excluídas, unifica a nação, e é elo de união na família (...). A
‘africana’ Martha, no romance Crossing the River (1993), de Caryl
Phillips, contrapõe-se ao capitão inglês do navio negreiro, e constrói
comunidades em todos os ambientes e circunstâncias em que ela se
encontra (BONNICI, 2005, p. 20).

Isto significa que os negros também queriam sua sociedade, onde as pessoas
pudessem trabalhar e ninguém tivesse poder sobre a outra. Eles sonhavam viver numa
relação sujeito – sujeito, em que todos vivessem seu papel sem a interferência de
‘proprietários’. Em suma, apesar do descrédito da sociedade, eles seriam todos
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‘cidadãos ingleses’, equiparados aos brancos em todas as áreas da vida em sociedade,


pois eles estavam, na verdade, sob a mesma condição de trabalhador.
Embora este desejo pela formação de comunidade por parte do nativo é muito mais
evidente na mulher, dada sua natureza de preservação da família, ela também pode ser
observada como resistência silenciosa e, portanto não-violenta, no homem
discriminado.

Colonialism operated very differently for women and for men, and the
‘double colonization’ that resulted when women were subject both to
general discrimination as colonial subjects and specific discrimination
as women needs to be taken into account in any analysis of colonial
oppression (ASHCROFT, 1998, p. 105).

Um outro ponto significativo é que, diferentemente de suas outras obras, Phillips


inclui uma terceira geração de imigrantes na história. Laurie é o filho adolescente de
Keith que, não despropositadamente, se relaciona com Chantelle uma moça inglesa e
branca. Os pais de Chantelle não aprovam o namoro, mas não devido à cor e sim pelo
fato de ela ser adventista e ele não.
O interessante é notar como o preconceito social pode caminhar, já que Keith foi
discriminado pelos pais de sua esposa Annabelle, por ser negro. Tal ‘amalgamação’
social permeia todo o livro: Keith, tendo a mãe morta desde os seis anos de idade,
contrariando toda outremização até aqui exposta, é criado por sua madrasta, uma mulher
branca (Brenda), que vai até sua morte, cuidando de seu enteado negro.
A hegemonia branca britânica a cercava, havia um acordo, embora tácito, de
preservar a raça e rejeitar o outro que era muito claro. “Domination is thus exerted not
by force, nor even necessarily by active persuasion, but by a more subtle and inclusive
power over the economy, and over state apparatuses such as education and media (...)”
(ASHCROFT, 1998, p. 116)]. Contudo, Brenda pertencia a uma minoria e suas atitudes
estampam o quanto ela se diferenciava. Sua personagem demonstra traços de um sujeito
que age segundo seu próprio arbítrio.

Cada vez que o encontro com a identidade ocorre no ponto em que


algo extrapola o enquadramento da imagem, ele escapa à vista (...)
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deixa um rastro resistente, uma mancha do sujeito, um signo de


resistência. (...) estamos diante (...) de uma estratégia (...) do momento
da interrogação, um momento em que a demanda pela identificação
torna-se, primariamente, uma reação a outras questões de significação
e desejo, cultura e política (BHABHA, 2003, p. 83, grifos nossos).

Vê-se, assim, que, por meio de sua atitude, ela questionava o sistema, e, opondo-se a
ele, buscava sua identificação e desejos. Isto mostra como o sujeito colonizador pode
ser fragmentado e contraditório – como o indivíduo o é na realidade. Reflexões pós-
estruturais refutam a unicidade do ser humano e seu monolitismo. A representação das
personagens híbridas ou negras nos romances pós-coloniais

disrupt this man-centred view of the world, arguing that the subject,
and that sense of unique subjectivity itself, is constructed in language
and discourse; and rather than being fixed and unified, the subject is
split, unstable or fragmented (IN RICE e WAUGH, 1996, p. 123).

Deste modo, Brenda provoca a ideologia racista ao assumir uma relação de afeto
inter-racial numa sociedade excludente e a conseqüente dificuldade de manter uma
mentalidade aberta ao outro. Contrapondo a outremização, criar um enteado, e não um
filho, é a prova viva da resistência contra o eurocentrismo e a exclusão decorrente desta
ideologia.

Referências

ASHCROFT, Bill et al. The Post-Colonial Studies Reader. London: Routledge, 1995.
BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da Teoria Pós-Colonial. Eduem: Maringá, 2005.
BONNICI, Thomas. O Pós-Colonialismo e a Literatura. Eduem: Maringá, 2000.
BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lucia Ozana (org.) Teoria Literária. Abordagens
Históricas e Tendências Contemporâneas. 2ª ed. Eduem: Maringá, 2005.
LOOMBA, Ania. Colonialism / Postcolonialism. London: Routledge, 1998.
PHILLIPS, Caryl. In the Falling Snow. New York: A Knopf, 2009.
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O MARAVILHOSO NA OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO:


DA IMAGINAÇÃO À CRÍTICA SOCIAL

Geovana Gentili Santos (PG - UNESP/Assis – USC/Espanha)

No cenário cultural brasileiro, Monteiro Lobato (1882-1948) torna-se conhecido por


suas múltiplas atuações. Engajado com as questões de seu tempo, Lobato combate o uso
inapropriado da terra, opõe-se às queimadas e dedica-se aos problemas sanitários. Nesse
âmbito, a figura do Jeca-Tatu torna-se emblemática, na medida em que representa o
homem do interior de forma menos idealizada, denunciando seu comportamento e suas
práticas ambientais. Em carta a Godofredo Rangel, datada em 20 de outubro de 1914,
Lobato afirma:

Se não houvesse virado fazendeiro e visto como é realmente a coisa, o


mais certo era estar lá na cidade a perpetuar a visão erradíssima do
nosso homem rural O romantismo indianista foi todo ele uma
tremenda mentira; e morto o indianismo, os nossos escritores o que
fizeram foi mudar a ostra. Conservaram a casca... Em vez de índio,
caboclo” (LOBATO, 1964, v.11, p.364).

Além dessas questões, Lobato luta pelo petróleo e investe no setor editorial,
expandindo o acesso aos livros e elevando o nível de sua materialidade. Se,
inicialmente, o público-alvo de seus textos não era as crianças, posteriormente, após
observar o comportamento dos seus filhos diante das narrativas contadas por Purezinha,
Lobato desperta-se para o gênero:

[...] as fábulas em português que conheço, em geral traduções de La


Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e
impenetraveis. Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada.
Fabulas assim seriam um começo da literatura que nos falta [...] ando
com idéia de iniciar a coisa” (LOBATO, 1964, v.12, p.104).
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Preocupado com a formação literária de seus filhos e movido pelo desejo de criar
livros que realmente interessassem e despertassem a imaginação das crianças, Lobato
publica seu primeiro livro infanto-juvenil – A Menina do Narizinho Arrebitado – em
1920 e que, no ano seguinte, é reformulado e vem à público com o título de Narizinho
Arrebitado. O desejo de agradar aos pequenos leitores fica registrado na passagem da
carta de 09 de fevereiro de 1921 a Rangel: “Mando-te Narizinho escolar. Quero tua
impressão de professor acostumado a lidar com crianças. Experimente nalgumas, a ver
se se interessam. Só procuro isso: que interesse às crianças” (LOBATO, 1964, v.12,
p.228, grifo nosso).
Com a aceitação do público, sucessivamente, Lobato publica novas obras que
constituem uma série, ambientada num espaço comum – o Sítio do Picapau Amarelo – e
integrada pelas mesmas personagens: Dona Benta, Tia Nastácia, Narizinho, Pedrinho,
Emília, Visconde de Sabugosa, Marquês Rabicó, Quindin e Burro Falante. Com uma
linguagem fluida, as narrativas lobatianas se filiam àquelas construídas sob a atmosfera
do maravilhoso. André Jolles, em Formas Simples (1930), declara que nos contos de
fadas “o maravilhoso não é maravilhoso, mas natural” (JOLLES, 1976, p.202) e que
esse recurso torna-se imprescindível a essa forma. De forma similar, Tzvetan Todorov
afirma que “o conto de fadas é senão uma das variedades do maravilhoso e os
acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa: nem o sono de cem
anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas” (TODOROV, 1975, p.60).
Com as mesmas características de escritura dos contos de fadas, as histórias
lobatianas são repletas de acontecimentos sobrenaturais que em nada gera o
estranhamento das personagens, ao contrário disso, o maravilhoso é vivenciado,
sobretudo pelas personagens-crianças, com muita naturalidade. Na primeira narrativa do
livro Reinações de Narizinho (1931), “Narizinho Arrebitado”, logo após a apresentação
das personagens, Narizinho conhece o Reino das Águas Claras, que fica no fundo do
ribeirão do Sítio. Nesse trecho da história, a paisagem comum do ribeirão de Dona
Benta metamorfoseia-se, trazendo à luz um Reino Encantado que, até então, passava
despercebido: “E ainda estavam discutindo os milagres das famosas pílulas quando
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chegaram a certa gruta que Narizinho jamais havia visto naquele ponto. Que coisa
estranha! A paisagem estava outra” (LOBATO, 1957, v.1, p.09).
Essas transformações ocorrem com certa freqüência no universo ficcional lobatiano.
Em Emília no país da gramática (1934), as personagens estão caminhando e, de
repente, deparam-se com um novo espaço: “Trotou, trotou e, depois de muito trotar, deu
com eles numa região onde o ar chiava de modo muito estranho [...] – É que já entramos
em terras do País da Gramática – explicou o rinoceronte – Estes zumbidos são os SONS
ORAIS, que voam soltos no espaço” (LOBATO 1988, v.6, p.11). Sem qualquer
explicação, a paisagem modifica-se, como também se observa em O Picapau Amarelo
(1939), com a mudança das personagens do País das Maravilhas para as Terras Novas:
“Aquelas terras ordinaríssimas, onde só havia saúva e sapé, começaram a transformar-se
por encanto” (LOBATO, 1956, p.22-3). Outro exemplo está em O Minotauro (1939), no
momento em que a turma do Sítio decide ir visitar a Grécia antiga e não a atual: “Todos
concordaram e, fechando os olhos, fizeram tchibum! Foram sair lá adiante, em plena
Grécia de Péricles. Tudo mudou como por encanto” (LOBATO, 1988, v.12, p.113).
Além da transformação do espaço, verificamos, no Sítio, a transformação das
próprias personagens. Os grandes exemplos são a Emília e o Visconde. Ambos deixam
de ser bonecos e metamorfoseiam-se em “gente”, como reconhece Dona Benta, em
Caçadas de Pedrinho (1933): “Mas lembre-se, Nastácia, que também nunca vimos
contar de nenhuma boneca que falasse, nem de nenhum visconde de sabugo que agisse
tal qual uma gentinha – e aí estão a Emília e o Visconde de Sabugosa” (LOBATO,
1988, v.3, p.39). Em O Saci (1921), Narizinho também sofre uma metamorfose, é
transformada por Cuca em pedra. A menina é salva por Pedrinho e o Saci: “um fato
maravilhoso se deu. Uma pedra no terreiro, que ninguém se lembrara de ter visto ali,
principiou a inchar, a crescer e a tomar forma de gente. Segundos depois essa forma de
gente começou a apresentar os traços de Narizinho (LOBATO, 1988, v.2, p.245-6).
Considerando os exemplos mencionados nos parágrafos anteriores e as palavras de
Marina Warner, em Da fera à loira, de que “é a metamorfose que define o conto de
fadas” (WARNER, 1999, p.17), constatamos que Monteiro Lobato, na elaboração do
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seu universo ficcional, investe nesta modalidade literária ao retomar e re-apresentar


(Sant’Anna) suas características basilares, criando novos planos de sentido.
Além da metamorfose, na estrutura dos contos de fadas, os objetos mágicos também
cooperam para a manutenção da atmosfera de encantamento, criando “um imenso teatro
de possibilidades nas histórias: tudo pode acontecer” (WARNER, 1999, p.18). Se, por
exemplo, nos contos de fadas de Charles Perrault (1628-1703), podemos constatar essa
abertura dada à narrativa quando as botas de sete léguas são incorporadas na história do
Pequeno Polegar, ampliando as possibilidades de ação da personagem; ou, na varinha
de condão da madrinha de Cinderela, viabilizando as transformações necessárias para a
ida da personagem ao baile. No Sítio do Picapau Amarelo, o prodígio do recurso
maravilhoso será introduzido a partir de “Pena de Papagaio”, o penúltimo capítulo de
Reinações de Narizinho: “o menino invisível [Peninha] tirou dum saquinho certo pó de
pirlimpimpim [...] que é o pó mais mágico que as fadas inventaram” (LOBATO, 1957,
p.259). Produzido por seres sobrenaturais, as fadas, o pó possibilita o deslocamento das
personagens lobatianas para outras partes do País das Maravilhas.
Neste mesmo capítulo, as crianças experimentam uma viagem com o pó e vão,
juntamente com Peninha, para o País das Fábulas onde conhecem La Fontaine e Esopo:

[...] sentiram-se leves como plumas, e tontos com uma zoeira nos
ouvidos. As árvores começaram a girar-lhes em torno como
dançarinas de saiote de folhas e depois foram se apagando [...] Eles
boiavam no espaço como bolhas de sabão levadas por um vento de
extraordinária rapidez (LOBATO, 1957, p.260).

Esses eram os sintomas do pó que logo passavam com a chegada ao destino. Peninha
é uma personagem que desperta dúvida nas crianças do Sítio a respeito de sua
verdadeira identidade: – “Estou desconfiado – disse Pedrinho – que o tal pó mágico de
Peter Pan era o nosso pó de pirlimpimpim. / – E quem nos garante que o tal Peninha,
que deu a você o pó de pirlimpimpim, não seja esse mesmo Peter Pan?” (LOBATO,
1988, v.5, p.133). Com essa sugestão, Lobato explicita ao leitor empírico sua concepção
concernente ao processo de composição de uma obra literária. Nesse jogo intertextual,
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Lobato demonstra que seu universo ficcional é um complexo “mosaico de citações”,


confirmando a tese de que “todo texto é absorção e transformação de um outro texto”
(KRISTEVA, 1974, p.64), tornando “a linguagem poética pelo menos dupla” (Idem,
p.64). Assim, como declara a escritora Ana Maria Machado, “com a maior sem-
cerimônia, [Lobato] pegou o pó-das-fadas que Barrie inventou para fazer Peter Pan
voar, batizou-o com o som da fada Sininho e criou o pó de pirlimpimpim, mudando
apenas o modo de usar” (MACHADO, 2002, p.127).
Com a inserção desse recurso mágico, a vida no Sítio extrapola seus limites físicos,
permitindo a ida a lugares inusitados, tais como, o País das Fábulas, o Céu, o planeta
Marte, o planeta Saturno, a Via Láctea, a Grécia, Olimpo, a Ilha de Creta, a Ilha de
Bikini etc. Apesar de seu poder, o pó de pirlimpimpim perde sua eficácia ao entrar em
contato com o sal, como é relatado no capítulo “O pó de pirlimpimpim”, em Reinações
de Narizinho: “Com espanto geral, porém, o pó não fez efeito. Outra dose, e nada.
Pirlimpimpim perdera a força... Molhara-se na água do mar [...] Pirlimpimpim agüenta
tudo, menos sal (LOBATO, 1956, p.309).
Além de propiciar a locomoção no espaço, os pós mágicos presentes nas narrativas
lobatinas possibilitam também a inserção de temas que abordam problemas da realidade
cotidiana, considerados, até então pela crítica, como inadequados ao público infantil.
Com esse procedimento, Lobato opera inovações no âmbito temático, conduzindo o
leitor à tomada de um posicionamento crítico diante os fatos que o cercam.
Em “A reinação atômica”, presente em Histórias Diversas (1959), a experiência
atômica realizada pelos americanos na ilha de Bikini é indiretamente abordada,
recebendo um tratamento formal no qual a atenção do leitor se concentra no jogo de
investigação realizado no Sítio. Logo no início do conto, Narizinho expõe a sua avó sua
preocupação com Emília.

– Quem anda enjoada mesmo é Emília, vovó, e até penso que


está com qualquer coisa, alguma doença.
– Doença? Por quê?
– Não sei. Até o cabelo anda perdendo. Volta e meia cai um fio,
e não me admirarei se tivermos uma carequinha aqui no sítio...
(LOBATO, 1988, p.246).
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Cismada com tal situação e acreditando que se tratava de uma “reinação lá no


laboratório do Visconde”, Dona Benta foi falar com o cientista do Sítio a fim de
descobrir algo que explicasse o que estava acontecendo com a ex-boneca. Entretanto,
em vez de obter uma resposta concreta, outra situação bem curiosa, ocorrida a alguns
dias é revelada:

– Não sei de droga nenhuma aqui com o poder de afetar os


cabelos humanos, mas ando desconfiado de uma coisa...
– Que coisa?
– Não posso dizer ainda. Tenho de concluir uma investigação
que estou fazendo. Há dias dei balanço em meu estoque de pim
e superpim (era como o Visconde chamava o pó de
pirlimpimpim e o super pó que ele havia inventado) e notei a
falta de duas pitadas. Quer dizer que alguém entrou aqui e as
furtou. Para quê? Para usá-las, evidentemente. Donde concluo
que alguém desta casa utilizou o pim para alguma aventura, sem
que os outros soubessem. Ora que alguém era capaz de fazer
isso senão a Emília? (LOBATO, 1988, p.247).

Associando o sumiço do pó de pirlimpimpim com a queda de cabelo da ex-boneca, o


Visconde assume o papel de investigador e o foco da narrativa incide na tentativa de
arrancar de Emília uma confissão. Para tanto, o Visconde de Sabugosa aplica o método
do “detetivismo psicológico” que, segundo ele consiste em “ir apertando a pessoa
suspeita, apertando, até que ela não tenha mais remédio e conte tudo espontaneamente”
(LOBATO, 1988, p.248).
Na primeira tentativa, de modo bem direto, o Visconde questiona a ex-boneca a
respeito da possibilidade de haver no sítio uma pessoa calva: “Emília encarou-o firme e
desconfiada, depois disse com naturalidade: – Pode ser. Meu cabelo está caindo. Se
continuar...” (LOBATO, 1988, p.248). Com muita habilidade, Emília desconversa e vai
despistando o Visconde, sem que este tivesse qualquer êxito em suas investigações.
Nesse momento da narrativa, o narrador intervém:

Conversaram longamente, essa e outras vezes, mas sem resultado para


o detetive. Dias depois, entretanto, o Visconde ficou de pulga atrás da
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orelha em virtude do interesse da ex-boneca pela física atômica. Isso


foi depois do lançamento da bomba atômica sobre a ilha de Bikini,
feito pelos americanos. Emília não largava do assunto, mas o seu
interesse não era pela força destruidora das bombas, e sim pelos
efeitos das emanações sobre os seres vivos. A experiência havia
mostrado que depois da explosão a terra carregadíssima de
radiatividade, e essa radiatividade exercia misteriosos efeitos nos seres
vivos. Os sábios andavam a estudar esses efeitos. A preocupação de
Emília era saber que efeitos as radiações produziam, ou podiam
produzir (LOBATO, 1988, p.249).

Em um único parágrafo, o narrador expõe a verdadeira causa do interesse de Emília


pela física atômica. Com uma linguagem simples, com o emprego de frases comuns,
como “ficar com a pulga atrás da orelha”, o narrador introduz o assunto sério e
polêmico da bomba atômica. Contudo, observamos que o foco do assunto, ou o
interesse de Emília, não se centra na descrição da ação destruidora da bomba, mas sim
nos efeitos causados aos seres vivos com a sua explosão. Ao afirmar que “depois da
explosão a terra fica carregadíssima de radiatividade”, o narrador já dá indícios em seu
discurso da causa da queda dos cabelos de Emília. Observamos, ainda, que o emprego
do adjetivo no superlativo procura expressar a grande quantidade de radiatividade
presente na terra, evitando com isso as descrições pormenorizadas.
Motivado por essa peculiar preocupação de Emília, o Visconde solicita a Dona Benta
revistas científicas americanas e estabelece um contato com os mais famosos cientistas,
a fim de obter maiores informações sobre tal evento. Em correspondência com o Doutor
Galipoli, o sabugo de milho descobre que cinco pessoas após terem entrado nas ruínas
de Bikini estavam perdendo seus cabelos. Tal conhecimento conduz o Visconde de
Sabugosa a conversar novamente com a ex-boneca e, nesse momento, outro fato vem à
memória do cientista do Sítio: a três meses “havia pilhado Emília saindo de seu
laboratório com qualquer coisa na mão...” (LOBATO, 1988, 249).
A fim de confirmar suas associações, Visconde retoma, estrategicamente, o assunto
da experiência americana com Emília valendo-se da comparação com outra experiência
atômica: “– Para mim, a explosão da bomba atômica em Bikini foi um fracasso. Fez
muito menos estragos do que a lançada em Hiroshima” (LOBATO, 1988, p.250). Nessa
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fala, há a referência a uma outro fato histórico sério e dramático da história da


humanidade, praticado igualmente pelos americanos: o lançamento da bomba atômica
sobre a cidade de Hiroshima, no Japão. Assim, verificamos que os temas que eram
considerados inapropriados aos leitores infantis são, pouco a pouco, inseridos e
abordados no espaço ficcional do Sítio do Picapau Amarelo.
Emília, sem se dar conta, cai na armadilha do Visconde e retruca: “– Pois penso o
contrário. Acho que em Bikini o arrasamento foi completo; só que não havia cidade ali,
a destruição foi menos espetacular (LOBATO, 1988, p.250). Apesar de ter como
parâmetro o ocorrido em Hiroshima, verificamos que Emília não estabelece comparação
no grau de destruição de cada bomba projetada, mas sim, no nível de espetacularidade,
denunciando de igual modo a catástrofe causada nos dois lugares-alvos dos Estados
Unidos da América.
Percebendo que a ex-boneca se enredava no assunto, o Visconde faz outra pergunta,
desta vez, ainda mais específica, questionando o estado em que ficaram os troncos das
palmeiras da ilha de Bikini. Envolvida pela situação, Emília responde com precisão, ou
melhor, com a certeza de quem esteve por lá e viu com os próprios olhos o estado de
cada uma daquelas palmeiras. Sem deixar escapar a oportunidade, o Visconde afirma:
“Emília, Emília! Como é que sabe disso? Como é que sabe com tanta precisão como
ficaram as palmeiras da ilha de Bikini depois da explosão da bomba atômica?”
(LOBATO, 1988, p.250).
Apesar de perceber seu deslize e tentar remediar a situação com sua habitual
esperteza, Emília não consegue despistar o sabugo que lhe dá um xeque-mate:

Esteve lá, sim! E posso dizer mais: esteve lá há três meses, logo
depois que entrou na ponta dos pés em meu laboratório e furtou duas
pitadas de pim, um para ir até à ilha de Bikini e outra para voltar. Foi
ou não foi assim, Senhora Marquesa de Rabicó? (LOBATO, 1988,
p.250).

Com sua reinação descoberta, a ex-boneca “cruzou o braço, empinou o queixinho” e


respondeu ao Visconde com sua costumeira altivez: “– Foi – e agora? Estive lá na ilha
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de Bikini – e agora? Quis ver os estragos da bomba atômica – e agora?” (LOBATO,


1988, p.251). Com uma estrutura similar a da resposta de Emília, o Visconde afirma
com certo tom de ironia: “Agora, Senhora Marquesa de Rabicó, vai ficar careca, sabe?
Vai ficar mais careca que o Doutor Osmundo, sabe? O castigo de me haver furtado as
pitadas do pim vai ser esse, sabe?” (LOBATO, 1988, p.251). Trocando o repetido termo
“agora” que na resposta de Emília conferia um tom desafiador, o Visconde quebra com
a suposta esperteza da ex-boneca de ter usado o pó de pirlimpimpim para ir até a ilha de
Bikini sozinha. Repetindo o termo “sabe”, verificamos a tentativa no discurso do
Visconde de trazer à tona as conseqüências da atitude de Emília; além de demarcar,
como o próprio narrador afirma, “a superioridade de sempre” do cientista do Sítio. Para
reforçar ainda mais os efeitos de sua reinação, o Visconde declara que a ex-boneca
ficaria careca “como o ovo de cezir meias de Dona Benta” (LOBATO, 1988, p.251).
Emília que sempre se manteve firme diante das situações mais complicadas, revela
sua fragilidade: “Emília perdeu a compostura, fez cara de choro – ela que nunca havia
chorado! E correu à cozinha em busca de Tia Nastácia, à qual contou tudo, entre
soluços, querendo saber se não havia remédio” (LOBATO, 1988, 251).
É nos braços da negra que havia lhe criado que a ex-boneca busca consolo e, após ter
a garantia de que para sua careca haveria um remédio, “Emília fungou, fungou e afinal
se consolou. Minutos depois estava no pomar ajudando Pedrinho a consertar a gaiola do
curió” (LOBATO, 1988, p.251).
Com a leitura do conto “A reinação atômica”, podemos observar, ainda que de
forma breve, o modo como Monteiro Lobato introduz em sua produção literária infantil
as questões sociais de seu tempo. Valendo-se do espaço ficcional do Sítio do Picapau
Amarelo e de suas personagens, Lobato convida o leitor a participar de mais uma
aventura que possui como tema os efeitos gerados pela bomba atômica lançada na ilha
de Bikini pelos americanos.
Reconhecendo que as crianças são “a humanidade de amanhã”, Monteiro Lobato
não lhes omite a realidade cotidiana, ao contrário, vale-se do maravilhoso para
introduzir e expor tais informações. No conto analisado, notamos que é o pó de
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pirlimpimpim que viabiliza a viagem de Emília até a ilha e lhe permite constatar tanto a
destruição quanto viver as conseqüências desse experimento.
Por fim, cabe dizer que Lobato aborda diversos assuntos em seus textos,
possibilitando, por meio da atmosfera maravilhosa, a reflexão crítica do pequeno leitor.
Assim, consciente das debilidades dos livros destinados a esse público específico,
Lobato propõe, com a criação do Sítio do Picapau Amarelo e de sua turma, uma re-
apresentação dos contos de fadas, combinando elementos próprios com as
características basilares dessa modalidade literária. Verificamos, portanto, que Lobato
investe genericamente nos contos de fadas, não para perpetuar um modelo amplamente
divulgado, mas para atualizá-lo.. Com esse procedimento criativo, Lobato cria o “novo”
a partir do “velho”, rompendo com as barreiras do conservadorismo vigente na literatura
infantil.

Referências

JOLLES, André. O conto. In:______. Formas Simples. Tradução: Álvaro Cabral. São
Paulo: Cultrix, 1976, pp.181-204.
KRISTEVA, Julia. A palavra, o diálogo e o romance. In: ______. Introdução á
Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974, pp.61-90.
LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. 11.ed. São Paulo: Brasiliense, 1964. (Obras
completas de Monteiro Lobato, v.11).
______. A barca de Gleyre. 11.ed. São Paulo: Brasiliense, 1964. (Obras completas de
Monteiro Lobato, v.12).
______. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 1957.
______. O Picapau Amarelo. São Paulo: Brasiliense, 1956.
______. O Saci. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-juvenil de Monteiro
Lobato, v.2).
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______. Caçadas de Pedrinho. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-juvenil
de Monteiro Lobato, v.3).
______. Emília no país da gramática. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-
juvenil de Monteiro Lobato, v.6).
______. Minotauro. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-juvenil de
Monteiro Lobato, v.12).
______. Histórias Diversas. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-juvenil de
Monteiro Lobato, v.15).
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002.
SANT’ANNA, Affonso Romano. Paródia, Paráfrase e Cia. 6.ed. São Paulo: Editora
Ática: 1998.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução: Maria Clara Correa
Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.
WARNER, Marina. Da Fera à Loira: sobre contos de fadas e seus narradores.
Tradução: Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
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ORALIDADE, RITMO E VOZ EM TOTONHA, DE MARCELINO FREIRE

Geruza Zelnys de Almeida (PG-USP)

Pois não conhecemos antecipadamente nosso ritmo.


Passamos a vida a procurá-lo.
Henri Meschonnic

Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar.


Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.
Marcelino Freire

A presença da oralidade na literatura contemporânea tem requisitado uma atenção


especial da crítica. Estudos recentes tentam responder à demanda do oral e avaliar a
complexidade de um tema que não se esgota na simples oposição ao escrito. Pelo menos
é o que pensa Meschonnic (2006) em sua clara recusa à tradicional dualidade que reina
absoluta, de Platão aos pós-estruturalistas.
Embora Meschonnic não poupe Derrida de sua crítica à supremacia do signo, suas
concepções se aparentam ao ler na divisão binária uma estrutura hierárquica na qual um
termo comanda o outro do “alto” (DERRIDA, 2001). Nesse caso, o domínio da escrita
sobre a oralidade funda-se numa “posição” ocupada na sociedade letrada, servindo-lhe
como instrumento de elitização. Daí Meschonnic propor a tripartição entre oral, falado e
escrito, na qual oral e falado não se confundem, pois se o falado pode ser imitado na
escritura, a oralidade faz dela sua morada.
É possível ouvir o eco dessas formulações no estudo de Piglia (1999), ao mencionar
que, ao final do conto, sentimos como que “algo irrecuperável foi dito”, ou ainda, que
“não é o narrador oral o que persiste no conto, mas a sombra daquele que o escuta”.
Frisam-se os termos “dito” e “escuta” que, aqui, não se ligam apenas à boca e orelha, já
que estamos no domínio da leitura, mas ao ritmo do texto que embala o leitor e o torna
cúmplice do seu movimento.
Assim, partindo do oral como movimento da escritura, realizando-se na rítmica da
frase, Meschonnic convoca a pensar a oralidade como inscrição do sujeito, ou seja,
como lugar privilegiado de sua “subjetividade-especificidade-historicidade”. Esse
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sujeito constituído na oralidade será examinado no conto Totonha 1, de Marcelino Freire,


autor expoente da literatura contemporânea, que não se priva de temas delicados como o
preconceito social e racial. Ao contrário, são eles o húmus que vem fertilizando sua
produção literária.

1. O ritmo e a rima

“Totonha” é um dos dezesseis contos, indicados como cantos, do livro Contos


Negreiros (2005), Prêmio Jabuti 2006, que apresenta, numa singular prosa poética, o
marginalizado, seja ele pobre, negro, homossexual ou mulher. Em “Totonha”, o Canto
XVI, quem fala é a personagem que o intitula e que configura uma tripla representação
da exclusão: pobre, mulher e idosa.
Mais interessante, no entanto, é que o texto se desenvolve como diálogo, apesar de
só lermos o discurso de Totonha. Porém, entrelaçado ao seu, há a presença de um
discurso virtual, ao qual ela responde, promovendo a dialogia, ou seja, no seu discurso
ouvem-se os ecos de “outros” pontos de vista confrontados no seu discurso: o da
professora, o do governo, o dos habitantes do vale do Jequitinhonha e o da natureza.
Essas vozes virtuais são postas em xeque numa construção que desconcerta o leitor
porque quebra sua expectativa de certo e errado: Totonha se dirige à professora que,
supostamente, quer ensiná-la a escrever seu nome, recusando a “ajuda”.
Para isso, ela elabora o que se poderia chamar de um improviso. Chamo improviso o
emaranhado de perguntas-respostas que a personagem constrói até chegar não a uma
verdade, mas a um dilema que não pode ser resolvido no texto: “Eu é que não vou
baixar minha cabeça para escrever. Ah, não vou” (a esse dilema pretendo voltar no
decorrer do artigo).
O improviso seria, portanto, uma estratégia de construção menos racional do que
sensível, pois faz uso dos recursos poéticos próprios da poesia: o ritmo, a entonação e a
rima. Entretanto, a interpelação de Totonha ao leitor não clama à identificação, mas ao
(re)conhecimento do seu lugar social, ou ainda, do ambiente ao redor: “Capim sabe ler?

1
Em anexo.
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Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero
aprender, dispenso”. (FREIRE, 2005, p. 79)
Nota-se que as perguntas que iniciam o texto não exigem respostas científicas.
Exigem reflexão. São muito menos simples do que parecem a princípio: falam de
natureza, ciência, valores e, ainda, desestabilizam o leitor letrado que se depara com
uma personagem que lhe diz: não quero ser como você: “Não quero aprender, dispenso”
(FREIRE, 2005, p. 79). O fato de a personagem dispensar o aprendizado força o leitor a
des-pensar o que ele tem como verdade absoluta: o letramento/alfabetização como valor
positivo. Afinal, o confronto não se dá pelo que ela diz, mas pelo como diz, ou seja, por
meio de um dizer específico que não fala sobre ela, mas é ela própria, sujeito
incomunicável-comunicável da linguagem:

O que ela [a linguagem] mostra melhor é o que você faz dela. Por
isso somos todos, nós mesmos, inteiramente, o conteúdo da
linguagem. A linguagem é, a cada vez, o sujeito inteiro. Sua história.
Que significa mais o que ele não diz do que o que ele diz. O que
interessa é descobrir como. O incomunicado é o que se comunica
antes de tudo” (MESCHONNIC, 2006, p. 4).

Mas onde então encontrar o sujeito em sua presença inapreensível na palavra?


Meschonnic dirá que ele vive no ritmo: “o ritmo, que não está em nenhuma palavra
separadamente mas em todas juntas, é o gosto do sentido. Sua física” (MESCHONNIC,
2006, p. 4). Daí a necessidade de reconhecer o movimento da fala na escritura, na rítmica
da frase que, em Totonha, é marcado por frases curtas e repetições por reenvio ou
retomada de termos que vão ampliando, imageticamente, os sentidos:

Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de
doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só
precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto.
Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?
(FREIRE, 2005, p. 79)

Os elementos grifados sinalizam repetições, mas que marcam diferenças: o segundo


gente restringe o primeiro; os de são cumulativos; o trio de pobre visa chegar à nulidade
total através da abstração; o segundo precisa inverte o sentido do primeiro; eu se
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completa em tô bem; na boca especifica meu canto; fogo retoma o derivado fogão. Essa
linguagem imagética não precisa da ponderação que se espera no texto escrito: a
remissão de fragmentos, muitas vezes realizada pela profusão de rimas no interior do
texto, funciona como uma pintura, cujo jogo entre luz e sombra dirige sensivelmente os
olhos a deslizarem pelos contornos do objeto.
Esse deslizamento, que é efeito e causa da oralidade, é fisicamente incorporado pelo
leitor que traga essa linguagem que não é a sua, mas de um outro que o habita no
momento da leitura e passa a controlar seus impulsos respiratórios. É inegável que o
ritmo esteja ligado à respiração e esta, por sua vez, é o que mantém o vínculo entre o
homem e seu exterior: quando cessa a respiração, cessa a vida. Assim, o leitor precisa
ler Totonha, a personagem, aos solavancos, com seu imaginário respiratório, porque ela
é esse sujeito que reúne e remenda as concepções suas às dos outros; o saber de um não-
saber sabedor, porque poético. E,

o poema não sabe mais. Não ensina um saber. Não ensina.


Evidentemente. Mas ele mostra. Trabalha o insabido. Nem à margem,
nem fora dela. Sua utopia é estar aqui. Seu partido, e também o da
crítica, é o partido do ritmo. Sua política. (MESCHONNIC, 2006, p.
6).

Portanto, a movência do ritmo institui um sujeito político, pois em interação com o


entorno, que se ou(vê) dentro da escritura:

Se a escritura é o que acontece quando alguma coisa é feita na


linguagem por um sujeito e que jamais havia sido feito assim até
aquele momento, então a escritura participa do desconhecido. Ou
seja, do ritmo. Ela começa aí onde cessa o saber. E como o saber é o
presente do passado, poderíamos dizer que a escritura é o presente do
futuro, o futuro no presente, no momento em que ela tem lugar. Por
conseguinte, em certos casos, talvez para sempre, ela é um passado
que continua a ter o futuro (MESCHONNIC, 2006, p. 9)

Essa presentificação faz da escritura o lugar indiscutível da oralidade: é nela que o


sujeito se manifesta em linguagem:

Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de


quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só
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quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho


entende, entende? (grifos meus). (FREIRE, 2005, p. 80)

O estar só implica estar colada à sua linguagem como num amálgama.


Incompreensível, inaudita, incomunicável, uma vez que apenas o passarinho a entende.
E o leitor? O leitor somente a entenderá por detrás de sua “linguagem superior”, com a
sabedoria do olhar para o texto tátil-visual que esconde o canto dos pássaros.
Destaca-se também que, nos contos de Marcelino Freire, o sujeito não é
representado de modo caricatural, como às vezes ocorre com autores que pretendem
representar o falado no escrito. Totonha não é falada por Marcelino, o autor a apresenta
no título pelo apelido com que é chamada por seus amigos, colocando-se no mesmo
nível em que esses se encontram: “No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale
do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me
chamar de Totonha” (FREIRE, 2005, p. 80). Assim, Marcelino apenas re-posiciona, no
centro do papel, a posicionalidade que a personagem já tem no seu ambiente social,
mesmo que esse seja um lugar marginal. Entretanto, com Totonha ao centro, toda a
fisicalidade do papel se transforma no Vale do Jequitinhonha, o qual o leitor é
convidado a adentrar.
Desse modo, pode-se dizer que é Totonha quem se fala por meio de uma
“linguagem ordinária” 2, aparentemente banal e “repleta de duplicidade, [é] fugidia,
ardilosa como a razão” (MESCHONNIC, 2006, p. 12). É o que se exemplifica em:
“Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás
de sílaba?” (FREIRE, 2005, p. 79). As marcas canto, boca, fogo remetem a uma
linguagem muito mais ágrafa do que gráfica, uma linguagem elementar, original, de
canto de/da boca, mas fundamentalmente histórica. Desligada da mítica da poesia, essa
linguagem vem dela, mas já está historicizada pela escritura, falta-lhe a ingenuidade
primaveril que o senso comum não cansa de associar à poesia, pois

2
Ao se referir à expressão “linguagem ordinária”, Meschonnic diz que: “À primeira vista, ela parece dupla, pelo
menos. (...) Ela designa, indistintamente, a linguagem e uma relação com a linguagem, que se esconde por detrás de
uma aparente evidência, como se o termo mostrasse, com toda transparência, a própria natureza da linguagem. Um
estatuto e uma teoria. A expressão linguagem ordinária é, então, tanto mais perversa, e perniciosa, quanto mais
simples parece. Ela implica uma atitude e uma história localizadas, e o próprio instrumentalismo a que ela se refere
passa despercebido por detrás de sua banalidade” (MESCHONNIC, 2006, p. 12).
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a poesia, aquém e além da oposição entre o verso e a prosa, toma


a linguagem ordinária e mostra que toda linguagem é ordinária, e que
ela surge daí. Ela é o ato pelo qual o ordinário se descobre toda a
linguagem. E é, então, através da poesia que não há mais linguagem
ordinária. Descobri-lo para si mesma é o trabalho da escritura.
(MESCHONNIC, 2006, p. 4)

Por tudo isso, creio que, se a escritura esconde o sujeito generalizando-o pela
arbitrariedade do signo linguístico e do uso regrado dele, “que interpõe seus filtros”
(ZUMTHOR, 1993, p. 109), é pela oralidade que o sujeito se desvela naquilo que lhe é
único e irrepetível: sua forma específica de exteriorizar e interiorizar o “em torno”. O
ritmo, então, é a “organização subjetiva do discurso da ordem do contínuo, não do
descontínuo do signo” (MESCHONNIC, 2006, p. 17) que se manifesta gestualmente
promovendo a subjetividade na linguagem.

2. O gesto e a voz

Para entender a importância da gestualidade nos contos de Marcelino Freire, retomo


a entrevista a Lima Trindade 3, quando ao ser questionado sobre a impressão de que seus
contos “nasceram para serem lidos em voz alta”, Marcelino assim se manifesta:

Eu escrevo em voz alta, sim. Gosto da palavra falada. Como lhe


disse, escrevo a partir de uma primeira frase que ouvi por aí. Não
tenho história para contar. Tenho um som para rimar. Vou
construindo a história a partir de um mote. O que faço é música,
costumo dizer. Embolada. E eu comecei a minha trajetória
escrevendo para teatro. Gosto muito do teatro. Quando escrevo,
imagino sempre um ator em cena. Eu penso muito nisso. Na palavra
lançada, dita para ser ouvida. E eu leio e releio muito o que escrevo.
Em voz alta, pela casa. Quando algo não está claro, o ouvido
denuncia. E aí eu mudo, modifico o parágrafo. Eu adoro ler os meus
contos em público. (website)

3
Disponível em: http://www.verbo21.com.br/index.php?Itemid=94&id=77&option=com_content&task=view.
Acesso em 10/04/2010.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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No balanço do autor, percebe-se a importância do som “de ouvido” dos seus textos e
a gestualidade teatral que o produz. Zumthor (1993, p. 105) comenta que a leitura
silenciosa e ocular substituiu a “leitura ruminativa”, de articulação vocal, devido à
multiplicação e à circulação de escritos. De fato, na infância da escritura, voz era
sinônimo de fonia. Contudo, é importante destacar que não é somente como fonia e
performance que a oralidade se concretiza nos textos do autor, mas, também na prosódia
e sintaxe que dão certa “visão da voz”.
Diz Meschonnic que

Se o sentido está nas palavras, a significância no ritmo e na


prosódia, a significação pode estar na voz. Pela voz, a significação
precede o sentido, ela o porta. As palavras estão na voz. Como a
relação precede e traz consigo os termos. O que a entonação faz.
Compreender, paradoxalmente, precede o sentido.
(MESCHONNIC, 2006, p. 47)

Desse modo, compreender a voz é compreender a significação antes mesmo de ela


significar e, por isso, apreendê-la em sua inapreensibilidade. Afinal, uma vez realizada,
a significação não é mais a mesma, pois entra no processo metalinguístico e infinito de
tradução.
A voz, portanto, não é expressa pelas palavras, mas no como essas palavras se
realizam no texto, ou seja, no ritmo e na entonação que recebem. Assim como “a
pontuação na poética de um texto é seu gestual, sua oralidade” (MESCHONNIC, 2006,
p. 23-4), a entonação, dada a partir da pontuação, é uma marca da alteração e/ou
perturbação emotiva da personagem:

Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo


esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou
fazer com essa cartilha? Número? Só para o prefeito dizer que valeu a
pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço? Todo
dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem
melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?
Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de
preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma
coceira, não uma doença. Tenha santa paciência! (FREIRE, 2005, p.
81)
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Não é preciso ler o fragmento em voz alta para sentir as nuances da voz: o falar
espaçado da segunda frase estende-se no olhar físico ou imaginativo, aguçado pela
pergunta antecedente, imbuindo-o de uma ternura que vai esmorecendo até o “Hein?”,
cujo sobressalto faz com que o tom aumente nas frases sequenciais. Destacam-se duas
frases que recebem entonações peculiares na leitura: “Tem esforço mais esforço que o
meu esforço?”, cuja leitura obriga a acentuar o segundo termo esforço porque reenvia ao
primeiro, e o termo meu por anteceder uma nova repetição. A segunda frase em
destaque é: “Tenha santa paciência!”, que, por fechar uma série de desabafos, soa como
uma explosão com acento nas sibilantes santa e ciência.
Essas reflexões sugerem que a voz indicia o tipo de relação estabelecida entre a
personagem e seus interlocutores e, pela forma como Totonha se dirige à professora,
percebe-se que estão de frente uma para a outra. De acordo com Hall (1973), em seus
estudos sobre a proxemística, essa seria a “distância social” (1,20 a 3,60m) e marca o
limite da dominação. Nela, há uma sensação da presença corporal do outro, porém o
olhar é fundamental para manter o contato, pois o toque é interditado. No conto, é certo
que ambas se olham porque nesse tipo de distância “cuando se deja de mantener la
mirada de la otra persona equivale a despedirla, lo que hace que la conversación se
detenga” (HALL, 1973, p. 191).
Na distância social, a voz varia entre normal a um pouco mais alta, podendo ser
ouvida num raio de seis metros, ou seja, a voz marginal de Totonha se desloca da
periferia para o centro desse círculo compreendido pelo som. É possível ainda que
Totonha esteja no ambiente de trabalho ou em casa: “Deixa eu, aqui no meu canto. Na
boca do fogão é que fico”, pois a proximidade permite que “uma de ellas continue
haciendo su trabajo em presencia de la outra sin que por ello se cometa uma grosería”
(HALL, 1973, p. 191). Por outro lado, pode ser que ambas estejam sentadas, mas nada
indicia que a professora esteja em pé frente à Totonha no trecho: “Não preciso ler,
moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente (...)”, pois Totonha inverte
facilmente as posições de quem precisa aprender: a moça/mocinha/professora, como se
se movimentasse livremente no espaço, afirmando-contrariando seu próprio dizer:
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“Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa.
Que voa.” (FREIRE, 2005, p. 81).
É interessante que, mesmo se Totonha estivesse em pé diante da professora sentada,
ainda assim não conotaria dominação em seu discurso porque a voz do letrado, pelo
status que ocupa na sociedade, possui força mesmo quando não pronunciada em
palavras: “há voz no silêncio e silêncio na voz. Há sempre sentido. Ou, sobretudo, há
significação. Pois, para a linguagem, não existe fora da linguagem. Os silêncios fazem
parte dela. Aliás, nós os fazemos falar” (MESCHONNIC, 2006, p. 38).
Assim, se a voz e o ritmo são invisíveis, a energia que produzem torna a oralidade
visualizável na escritura. Totonha, uma vez desmascarado o signo, realiza sua
subjetividade tornando-se sujeito-voz ou voz-sujeito, sendo que a posição desses termos
é continuamente redefinida: enquanto sujeito, Totonha é uma voz, enquanto voz,
Totonha é um sujeito.

3. O sujeito no interior do dilema

Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só


pra mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem o meu
nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem
vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não
conta? (FREIRE, 2005, p. 79)

Totonha não é uma personagem de fácil acesso; as questões que ela coloca são, no
mínimo, desestabilizadoras do senso comum: qualquer leitor que se dispõe a ler esse ou
qualquer conto, a priori é a favor de qualquer programa de letramento/alfabetização.
Porém, lendo Totonha, a personagem, ele é obrigado a dispensar suas certezas, o que, é
claro, não significa apenas concordar com ela, mas refletir e relativizar seus próprios
pontos de vista.
Isso significa que Totonha nivela-se com o leitor e é ouvida porque no interior de
sua linguagem ressoa também a voz do outro, apropriada e remodelada sem ingenuidade
porque nenhuma apropriação representativa é inocente (MOREIRAS, 2001). Isso se
comprova no fragmento acima. Segundo Zumthor (1973, p. 113), para a “massa dos
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iletrados, a letra traçada é uma coisa – significante da mesma condição que toda coisa
criada – irrefutável, mas inacessível, quase imaterial, portadora de esperanças ou
pavores mágicos”. Totonha, embora iletrada, não participa da mesma massa a qual se
refere Zumthor, para ela o nome é apenas coisa, sem misticismo algum: sem vida
porque sem gente, sem voz.
É preciso levar em conta que Zumthor se baseia na cultura medieval e Totonha vive
num outro tempo-espaço, contemporâneo, de passagem da cultura logocêntrica para a
imagocêntrica “ou de uma cultura literária para uma tecnocultura electrônica. À
emergência, em suma, de uma nova ordem cultural polarizada já não no livro e na
leitura, mas na televisão e no computador.” (DIAS, 1998, p. 15). Totonha pode não
saber ler e escrever, mas nem por isso sabe menos, pois está “informada” dos
acontecimentos. Assim, a personagem alia a informação recebida pelas mídias a seu
conhecimento de mundo:
O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o
vale-doce e o vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com
o vento, ta me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta
ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A
química. (FREIRE, 2005, p. 81; grifos meus)

Diferente daquele que ignora sua própria ignorância, Totonha sabe dela e sabe que
apenas ignorando há a oportunidade de aprender com o que existe e, por isso, se
respeita. Não seria exagero lembrar Sócrates aqui, afinal ele também não sabia.
Portanto, é nessa relação com o saber-não-saber, inscrita no seu ritmo e voz, que
Totonha vai se constituindo como sujeito político.
Porém, como definir esse sujeito que parece sujeitar-se a todas as mazelas de sua
condição social? Seu direito à liberdade significa abandono do político ou a recusa à
representação? Essas questões não se resolvem facilmente, ao contrário, elas colocam a
personagem em estado de “suspensão”, visto que construída na/pela oralidade é
definitivamente inacabada. Esse inacabamento ocorre porque a voz é, sobretudo,
loucura (MESCHONNIC, 2006, p. 49), daí entender o desejo de Totonha ser “demente
como um mosquito”, o que lembra o discurso da histeria em Lacan: a histérica como
sujeito que questiona o outro é quem, de fato, conduz ao saber.
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A profusão de perguntas desemboca na asserção final: “Eu é que não vou baixar
minha cabeça para escrever. Ah, não vou.” (FREIRE, 2005, p. 81), que se coloca como
o grande dilema do texto. Uso o termo dilema como tradução do “double bind”, de
Derrida, sugerido por Evando Nascimento, que o lê como uma situação que “impõe uma
decisão impossível entre duas solicitações que aparentemente se excluem” (2001, p. 99).
Assim, a situação proposta – baixar a cabeça para escrever – se bifurca em duas
significações: a primeira que denuncia a libertação pela aprendizagem e, a segunda, a
submissão ao que o governo espera dela.
Essa estrutura é construída por um olhar dissimétrico, que olha para sua própria
representação, por isso “o campo de visão que o olhar dissimétrico articula já é sempre
desarticulado por ele” (MOREIRAS, 2001, p. 168). De modo que Totonha, por um lado,
pode ser o “novo sujeito político”, representante da multidão e “resultado histórico que
não é nem produtor nem cidadão porque não está interessada em se reconstituir como
sujeito” (MOREIRAS, 2001, p. 155) e daí explica-se seu acomodamento à situação
exposta. Mas, por outro, ao transpor a representação pré-concebida, Totonha se afirma
como “palavra nova”, ou como venho defendendo, inaudita: “do representado virá o que
subverte a representação, mas apenas se a subversão não resultar em nova
representação” (MOREIRAS, 2001, p. 191). Nesse sentido, seu acomodamento daria
lugar a uma atitude de resistência frente ao que o outro, representando o poder
hegemônico – professora/governo/leitor – espera dela. Porém, nenhuma das posições
efetivamente se firmam.
Essa hesitação, como os deslizamentos orais, é decisiva para manter a tensão no
texto de Marcelino Freire, deixando em suspenso uma significação que pudesse resolvê-
la. Talvez essa seja a causa do “irrecuperável” (PIGLIA, 1999) ao fim do conto: porque
a “negociação política e/ou crítica da alteridade incorpora necessariamente um elemento
de imprevisibilidade: a alteridade nunca é dominada ou mesmo contida exaustivamente
por antecipação” (MOREIRAS, 2001, p. 160). Tudo isso justifica o que Meschonnic
(2006, p. 7) propõe no início do livro: o ritmo como “missão do sujeito” e como
“experimentação imprevisível da alteridade sobre a identidade”; a oralidade e o ritmo
como “a matéria e a questão da modernidade”.
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Nesse movimento contínuo, do ritmo e da voz, que chama o leitor a fundir-se com
seu tempo e espaço, por meio do imaginário respiratório, Totonha constrói sua
subjetividade e historicidade também no papel, que é de onde ela se faz ouvir.

Referências

DERRIDA, Jacques. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica,
2001.
DIAS, Sousa. “Esforços de guerra: pensamento, comunicação e resistência”. In: Estética
do conceito: A filosofia na era da comunicação. Coimbra: Editora Pé de Página, 1998.
p. 5-27.
FREIRE, Marcelino. Contos negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005.
_____. Entrevista concedida a Lima Trindade. Verbo21. jun. 2008. Disponível em:
<http://www.verbo21.com.br/index.php?Itemid=94&id=77&option=com_content&task
=view>.
HALL, Edward T. La dimensión oculta. Enfoque antropológico del uso del espacio.
Madrid: Instituto de Estudios de administración Local, 1973.
LACAN, Jacques. Psicoses. Seminário III. Trad. Aluísio Menezes. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1988.
MESCHONNIC, Henri. Linguagem: ritmo e vida. Extratos traduzidos por Cristiano
Florentino. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2006.
MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença. Trad. Eliana L. de Lima Reis e Glaucia
R. Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos
textos da desconstrução. Niterói: EdUFF, 1999.
PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. Buenos Aires: Temas Grupo Editorial, 1999.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A literatura medieval. Trad. São Paulo: Cia das
Letras, 1993.
Anexo: Totonha
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Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor?
Em quê? Não quero aprender, dispenso.
Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar
bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa.
Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás
de sílaba?
O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-
lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, ta me entendendo? Demente
como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que
eu. A química.
Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O
risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?
Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o
meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol.
Tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?
Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso
de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa
paciência!
Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí
ficar contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me
diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás
do nome não conta?
No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos
aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não
mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.
Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não
tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem
sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?
Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa
saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever.
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Ah, não vou.


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DO “QUANDO” AO “DEPOIS”: O SPÄTZEIT EM SEM ANA, BLUES

Geruza Zelnys de Almeida (PG-USP)

Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça,


de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. (CFA)

Talvez o conto de amor mais belo de Caio Fernando Abreu não seja realmente
um conto de amor... É claro que Sem Ana, blues fala da (tentativa de) reconstrução da
vida quando e depois do fim de um relacionamento amoroso, da dor da perda, de novos
amores e da ausência sempre presente do ser amado, mas, mais do que essa leitura
linear, o conto-blues fala do tempo e da história. É a partir dessa chave e numa leitura
que toma como base para a análise o artigo Spätzeit, de Walter Moser (1999), que
empreendo minha leitura do conto de Caio, cruzando-o em algum momento com o
conto Amor, de Clarice Lispector.
No artigo homônimo, Moser busca pela arqueologia do conceito Spätzeit que,
correntemente, refere-se à “modernidade tardia”. Para isso, o autor seleciona alguns
componentes semânticos inscritos no termo: a perda da energia, a decadência, a
saturação cultural, a secundariedade e a posteridade, todos, a meu ver, intimamente
presentes no conto Sem Ana, Blues, que extrapola os limites do ficcional, adquirindo
envergadura de metaficção teórica e crítica cultural, num momento em que toda
atividade crítica está em crise.
Mas, como essas questões se apresentam sob a fina malha poética? Como
delinear os pontos de cruzamento entre o ficcional e a atividade teórica e crítica do real?
Esse é o objetivo deste artigo.

1. O sujeito sem Ana do Spätzeit


Sem Ana, blues é um dos treze contos do livro Os dragões não conhecem o
paraíso, publicado em 1988, cuja temática principal é o amor, entretanto, a realização
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amorosa é uma busca no mais das vezes acompanhada da decepção. A diversa gama de
personagens (que inclui mulheres, homossexuais, adolescentes e bêbados) é uma mostra
heterogênea do que se pode chamar coletividade, de modo que a narrador-personagem,
abandonado por Ana, pode representar em sua particularidade um estado de frustração
compartilhado pelo homem contemporâneo.
É importante salientar que o narrador de Sem Ana, blues fala de um tempo-
espaço específico, ou seja, de um Brasil recém democratizado, o que significa que se
encontra “em passagem” do período sócio-político autoritário, marcado pela opressão e
insegurança, a outro – não menos traumático – no qual se esperava viver plenamente as
promessas de futuro. Evidentemente, o futuro tornado presente não se concretiza como
esperado acentuando, assim, as incertezas de um também autoritário excesso de
liberdade 1 e as tentativas de reconstituição da memória utópica esgarçada pela força do
presente. Desse modo, os pontos de cruzamento entre o estado emocional vivenciado
pela personagem de Caio e um estado que diz respeito à contemporaneidade como um
todo podem ser surpreendidos no relato desse ‘eu’ deslizante entre dois tempos – o
quando e o depois:
Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois
jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma
frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu
pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a
única espécie de não continuação que vinha. (ABREU, 1988, p. 41)

Moser (1999, p. 44) afirma que há na configuração semântica da palavra Spätzeit


um componente temporal que permite “estruturá-lo pelas conjunções antes que,
enquanto e depois que” (grifos do autor), ou seja, “o Spätzeit é aquilo que vem depois
de alguma coisa que o terá precedido”, o que leva a crer que é “pura posterioridade”.
Por isso, durante todo o relato, as expressões “quando Ana me deixou” e “depois que
Ana me deixou” vão se repetir ao longo do texto, que permanece em suspenso, como
que amarrando suas partes e fazendo-o girar sobre si mesmo impulsionado por um

1
Zizek (2003, p. 16-17), nas páginas iniciais de Bem-vindo ao deserto do real, alerta para o
“potencial antidemocrático do princípio de liberdade de pensamento” que paradoxalmente
garante sua “servidão”. Ele argumenta que, na modernidade, a escolha é sempre imposta: “você
tem a liberdade de escolher o que quiser, desde que faça a escolha certa”.
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sentimento que precisa se con-formar, ou seja, encontrar uma forma/fôrma que lhe dê
contornos ou com a qual possa ao menos estar com. Lê-se, assim, no desespero
amoroso, a perda de certa materialidade presente na expressão estética, ou ainda, de um
modo de dizer que dê conta do vazio do sentir. Nessa direção, continua:

Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha
cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela
ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco
sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou
ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade
foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo,
para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios,
meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras
coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro
dela. (ABREU, 1988, p. 41)

Essa longa seleção do poema faz-se necessária para entender a personagem que
vive num Spätzeit em relação à sua antiga condição de plenitude, na qual, imagina-se,
viveu o ápice de sua história, tomando essa condição como aquela em que reinavam a
esperança e a força heróica e, porque não dizer utópica, de futuro. Lembrando a leitura
de Natali (2006, p. 36-37) sobre A educação sentimental, pode-se dizer que aqui
também a nostalgia é “pelo ‘futuro’ que um dia existira em seu passado” [grifo do
autor], ou ainda “pela perda de um horizonte de possibilidades” que faz com que se
“perceba o presente como uma falta, em contraste com a plenitude do passado, mesmo
que com a plenitude de uma promessa”. É isso que parece sentir o narrador que precisa
vivenciar e, ao mesmo tempo, narrar a perda dessa promessa.
Moser (1999, p. 34) exemplifica essa situação com o mito do “paraíso perdido”
que aproximo do também mítico “primeiro amor” – poderia dizer grande ao invés de
primeiro, mas, como não há nada que anteceda Ana no relato, esses adjetivos se
equiparam. Então, uma vez encontrado o clímax, esse grande/primeiro amor evolui para
a “perda progressiva da plenitude inicial”. Não é difícil ver sob a pele desse indivíduo,
tardio em relação a si mesmo, toda a coletividade contemporânea que vive a angústia de
sentir que chegou tarde em relação a uma primeira época de grandes acontecimentos, de
grandes heróis, transformações e revoluções, frente à qual se encontra estática.
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Nesse sentido, à emergência de uma forma que possa dar corpo à ausência, a
personagem responde com o silêncio e a imobilidade, faces visíveis da perda de energia
que vem com a perda do que era considerado o dispositivo gerador de completude.
Entretanto, trata-se de um silêncio paradoxal porque pleno de palavras: o narrador-
personagem narra esse silêncio e essa falta justamente com o excesso de significantes
agora vazios de significado para ele: “meus dias, meu apartamento, minha cama, meus
passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas” (Idem, ibidem).
Nota-se que, como o sujeito do Spätzeit, a personagem acredita se tratar de uma
perda irreparável e, por isso, “desenvolve[r] estratégias para prolongar o sistema do qual
faz parte” (MOSER, 1999, p. 35):

Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do


apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos.
(...) Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento,
o último bilhete de Ana nas mãos, (...) Mas a campainha também não
tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no
centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior
de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente
nada além de respirar. (ABREU, 1988, p. 41; grifos meus)

O prolongamento da situação de espera e, consequentemente, de inação vem


acompanhado de uma nova concepção de tempo totalmente interiorizado, no qual “o
conteúdo histórico em essência torna-se periférico” (DIEHL, 2006, p. 371) mesmo que
ainda exista como objeto de narração. Porém, ao mergulho interior acompanha a solidão
e a gradativa diminuição de tamanho da personagem, daí todo o apartamento diminuir
até parecer com o interior de um aquário. De modo semelhante, o homem
contemporâneo – mais especificamente o artista contemporâneo, já que se trata de um
escritor que tem a folha do papel como “espaço branco sem Ana” – tende a desprezar o
seu tempo, o qual percebe como diminuído e fraco e, a um possível desejo de “construir
um novo mundo que seja melhor e mais poderoso que o do passado” (MOSER, 1999, p.
35), responde com uma postura contemplativa e, aparentemente, desprovida de energia
criadora:
Depois que Ana me deixou - não naquele momento exato em que estou
ali parado, porque aquele momento exato é o momento-quando, não o
momento-depois, e no momento-quando não acontece nada dentro dele,
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somente a ausência da Ana, igual a uma bolha de sabão redonda,


luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e
dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas
não luminoso, ao contrário, opaco, fosco, sem brilho [...] (ABREU,
1988, p. 42)

Moser explica que o componente “perda de energia” liga-se ao componente


“decadência” também inscrito no termo, de modo que as formas do passado só podem
ser possuídas como fragmentos, pois

sofreram um processo de desintegração e só chegam ao artista, que


habita um Spätzeit, em forma de escombros e ruínas, testemunhos de
uma época passada. O destino do artista que veio mais tarde consiste
em ser condenado a habitar um mundo decaído. (MOSER, 1999, p.
36)

Ana, então, passa a existir apenas nos restos e como fragmentos: o bilhete, cujo
“suor que escorre pelo meu corpo começa a molhar as mãos e a dissolver a tinta das
letras”; o cheiro, “cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda
guardavam o cheiro dela” e o copo de cristal “que sobrara de uma briga” (ABREU,
1988, p. 42). Pode-se, nesses cacos imagéticos, ver a personagem a partir de outra
imagem: a do anjo da história benjaminiano que vira as costas ao futuro para encarar
fixamente a catástrofe e as ruínas do passado (BENJAMIN, 1987), fazendo com que
essa degradação seja a “alegoria por excelência do ser histórico do homem” (MOSER,
1999, p. 37). A personagem, como o anjo, resiste a deixar para trás o que ficou e lançar
seu olhar ao futuro, vivendo assim entre dois tempos, de modo intempestivo.
Agamben (2009), a partir da leitura do poema O século (1923, Osip
Mandel’stam), apresenta outra forte imagem para o contemporâneo: aquela da época-
fera que tem as vértebras fraturadas e, por isso, ao tentar virar-se para trás mostra o
sorriso demente. Na versão do filósofo, o homem contemporâneo fatalmente precisa
continuar sua caminhada rumo ao futuro que desconhece, futuro que Benjamin compara
à força de uma tempestade. Entre a visão de Benjamin, na qual o avanço ocorre
passivamente (o anjo é arrastado pela tempestade) e a de Agamben, cuja fera-demente
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insiste na caminhada mesmo olhando para trás, a personagem de Caio condensa,


portanto, ambas as imagens – anjo e louco – em meio à tempestade:

Porque no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, em


que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno
corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico
em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade,
oscilando no interior do transatlântico, eu não conseguia evitar de parar
à porta do banheiro, no pequeno corredor que parecia enorme.
(ABREU, 1988, p. 43)

O que se nota, portanto, é que há, na situação do Spätzeit, uma turbulência


gerada no conflito entre interior e exterior, culminando no momento de total negação
que, no conto, é muito bem representado pelo vômito, imagem recorrente nos textos de
Caio: “Eu me ajoelhava com cuidado no chão, me abraçava na privada de louça (...),
enfiava devagar a ponta do dedo indicador cada vez mais fundo na garganta, (...)
Vomitava e vomitava de madrugada” (ABREU, 1988, p. 43). Ao vomitar, a personagem
começa a travar uma luta físico-corporal para se desfazer de Ana e de sua repetição
incessante (ideia presente já no próprio nome da personagem): “depois daqueles dias
começou o tempo em que eu queria matar Ana dentro de tudo aquilo que era eu, e que
incluía (...) aquela vida que tinha se tornado a minha depois que Ana me deixou”
(ABREU, 1988, p. 44).
Interessa apontar que a negação está intimamente ligada ao elemento semântico
posterioridade mencionado por Moser (1999, p. 45) que se refere à “descendência
patrilinear”, ou seja, à “passagem de pai para filho”. Essa relação agonística inscreve-se
na influência que alicerça toda forma de criação, de modo que o poeta-filho ficará
sempre “à sombra de um poeta-pai poderoso, trabalhando, pois, sob a ameaça
angustiante de ser absorvido pela força da obra do poeta-pai”. Teríamos, então, o filho
passando da posição inicial de fraqueza e esgotamento à posição de combate que, por
sua vez, deixa ver os restos míticos edipianos e do ato parricida que envolve a festa da
comida totêmica.
Trazendo a reflexão de Moser para a obra do autor é bem possível intuir uma
relação agonística entre Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector, pois ele nunca
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escondeu a admiração pela autora e a influência direta de Clarice sobre sua obra, o que
permite associar o conto Sem Ana, blues ao conto Amor, cuja personagem tomada por
um amor dos mais transcendentais da literatura brasileira também se chama Ana.
Parece-me que há, aqui, um importante combate, no qual não se pode apenas repetir o
modelo, mas é necessário profaná-lo, torná-lo outro para que assim seja seu:

Entre aquele que vem tarde e aquilo que ele já encontra na cena
cultural acontece uma prova de força que culmina na criação. E essa
prova de força é, no sentido próprio do termo, um corpo a corpo
textual, ela se pratica nos e com e contra os materiais de uma poesia
que já ocupa o espaço poético. (MOSER, 1999, p. 46-47)

Se essa profanação – “em relação a uma herança cultural forte e incontornável”


– pode ocorrer da apropriação ao desvio, da reescritura à transformação, no caso do
autor Caio em relação à Clarice, essa profanação ocorre justamente quando ele vira ao
avesso o momento epifânico vivido pela Ana primeira. A trajetória da dona de casa que
experimenta uma revelação, um instante epifânico, um rito de passagem da banalidade
da vida à verdade é cruzada por outra, em direção oposta, na qual a personagem
experimenta o mais puro vazio da experiência. Daí, certamente, o emudecimento inicial
e o silêncio da personagem, ambos referindo-se à impossibilidade de construção de
novas experiências, uma vez que estas só podem ocorrer na linguagem. É o que diz
Agamben (2006, p. 21-22) sobre o homem contemporâneo que “volta para casa à
noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos – divertidos ou maçantes, banais ou
insólitos, agradáveis ou atrozes – entretanto nenhum deles se tornou experiência”.
Seguindo essa ordem de ideias, a personagem de Caio combate Amor com
desamor, causa e consequência do abandono sofrido, iniciando seu ato parricida (ao
poeta-pai Clarice), no ritual orgiástico em que se farta com o que falta:

comecei a trazer outras mulheres para casa. Mulheres que não eram
Ana, mulheres que jamais poderiam ser Ana, mulheres que não tinham
nem teriam nada a ver com Ana. Se Ana tinha os seios pequenos e
duros, eu as escolhia pelos seios grandes e moles, se Ana tinha os
cabelos quase louros, eu as trazia de cabelos pretos, se Ana tivesse a
voz rouca eu a selecionava pelas vozes estridentes que gemiam coisas
vulgares quando estávamos trepando, bem diversas das que Ana dizia
ou não dizia, ela nunca dizia nada além de amor-amor ou meu-menino-
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querido, passando dos dedos da mão direita na minha nuca e os dedos


da mão esquerda pelas minhas costas. (ABREU, 1988, p. 44)

Se, ao dormir com todas as mulheres que não são Ana, o que facilmente se
observa é um processo rumo à superação do trauma, conforme assinalaria Freud (2002)
em “Luto e Melancolia”, nisso também reside outro processo que está inscrito no termo
Spätzeit: o da secundariedade. Segundo Moser (1999, p. 40), “é secundário um
fenômeno que se repete de maneira mais fraca e muitas vezes deformada, tardio no
tempo em relação a um primeiro aparecimento”. Assim, Ana – a cada reaparição no seio
do próprio desaparecimento – aponta para tudo aquilo que é secundário e que estava à
margem de sua própria centralidade. De modo semelhante, a secundariedade designa
“um modo de produção cultural que trabalha a partir de um pré-construído cultural, a
partir de materiais previamente dados, que já tem um estatuto cultural” (Idem, 41), o
que, neste caso, torna todas as mulheres apenas uma deformação caricata da Ana
primeira, cuja representação seria a personagem clariciana. Talvez por isso, a
impossibilidade da Ana de Caio figurar no conto: se acaso fosse representada também
cairia na armadilha da secundariedade, daí que apenas como fantasmagoria ou ausência
(sem Ana) sua integridade possa ser assegurada e equiparada à força da, também
ausente, antecessora.
Tudo isso leva a crer que é inequívoca a associação da personagem, saturado de
passado, com a cultura contemporânea, descarga de culturas passadas e heterogêneas,
pois “a condição do Spätzeit inclui a vida num mundo culturalmente pleno, cheio dos
restos das épocas que o antecederam”, de forma que “destruídas e decaídas” as culturas
do passado se mantém “materialmente presentes sob a forma de destroços que irrompem
no presente” (MOSER, 1999, p. 38-40). É o que se vê na sopa cultural apresentada pela
personagem:
Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das
anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos,
vidências, números e axés ¿ ela volta, garantiam, mas ela não voltava -
e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, dos sonhos
junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da
humildade, com promessas à Santo Antônio, velas de sete dias, novenas
de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas e velhinhos
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desamparados, e veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra


armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, Zoomp, Mister
Wonderful, musculação, alongamento, yoga, natação, tai-chi, halteres,
cooper, [...](ABREU, 1988, p. 45)

Diehl (2006, p. 370) afirma que tal “heterogeneidade revela um espaço cultural
contemporâneo saturado de diferenças”. Assim, a personagem de Caio, vivendo num
mundo “culturalmente pleno, talvez pleno demais”, pode ter duas reações que
desembocam em atitudes diferentes: a reação negativa que “percebe menos a plenitude
do que o excesso” e a reação positiva que “percebe menos o excesso do que a plenitude”
(MOSER, 1999, p. 39). No conto, essas atitudes oscilam, deslizando da paralisia à
criação, quando o narrador finalmente aceita produzir a partir de “uma mesa cultural já
posta [e] onde reina a abundância”:

e fui ficando tão bonito e renovado e superado e liberado e esquecido


dos tempos em que Ana ainda não tinha me deixado que permiti, então,
que viesse também o ciclo dos fins de semana em Búzios, Guarajá ou
Monte Verde e de repente quem sabe Carla, mulher de Vicente, tão
compreensiva e madura, inesperadamente, Mariana, irmã de Vicente,
transponível e natural em seu fio dental metálico, por que não, afinal, o
próprio Vicente (ABREU, 1988, p. 45-6)

Nessa oscilação o que se tem são momentos de criatividade entremeados a


outros de exaustão. Entretanto, é aí que se fundam as ambigüidades dentro do termo
Spätzeit, pois se, a princípio, ele parece conter apenas aspectos negativos, sua porção
positiva depende da leitura daquele que o emprega. Se pensarmos esse enfraquecimento,
próprio do Spätzeit, associado às concepções de Vattimo (1996), por exemplo, veremos
que o pensamento fraco não só é positivo como se trata da única possibilidade de
emancipação do homem frente à uma metafísica forte e esmagadora. Para o filósofo, o
pensamento fraco corresponderia a uma reorientação do indivíduo no novo contexto
sem garantias, certezas ou verdades absolutas, daí a necessidade de um pensamento da
fruição, ou re-memoração, e da contaminação, que concorrem com um “saber
explicitamente residual” e uma “realidade ‘aliviada’, tornada mais leve porque menos
nitidamente cindida entre o verdadeiro e a ficção, a informação, a imagem”
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(VATTIMO, 1996, p. 188-189). Mesmo Bauman (2004, p. 67), em Amor líquido,


quando fala da fragilidade e flexibilidade das relações contemporâneas equiparando-as
ao princípio consumista, ou seja, das relações caracterizadas pelo uso e descarte, deixa
entrever que, apesar de toda insegurança, o homem contemporâneo é mais leve do que
foi há algumas décadas, quando vivia sob o peso do “para sempre”.
Portanto, o indivíduo do Spätzeit e a condição de Spätzeit em si, representadas
no conto, não oferecem apenas uma visão apocalíptica da atualidade – tomada aqui
como um recorte particular na vida de uma personagem vivendo o momento pós-ápice –
mas a possibilidade de vivenciar, apesar do passado, outros possíveis que são oferecidos
no momento em que se (sobre)vive:

Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o


mundo foi se tornando ao poucos um enorme leque escancarado de mil
possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio
de mulheres e homens lindos e sedutores interessantes e interessados
em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os
exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com
aquele charme todo especial de homem-quase-maduro-que-já-foi-
marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza
de jamais tocar no assunto. (ABREU, 1988, p. 46)

Percebe-se que a permanência sintomática da falta de Ana aponta um aspecto


positivo da negatividade dessa situação: (sem)Ana torna-se uma imagem de referência
para esse narrador pós-moderno: indivíduo entranhado nele mesmo em busca de um
sentido sem qualquer garantia de que tal sentido exista de fato. No contexto da
historiografia, Diehl (2006, p. 373) explica que

Sem dúvida, o momento é dos cotidianos íntimos da vida, das


experiências do sujeito, a vez é das bruxas e das feiticeiras, dos
loucos, dos vadios, dos homossexuais, dos gestos significativos tais
como o medo, o desejo, a angústia etc. A vez é daquilo que
denominamos de compensações dos custos resultantes dos processos
de modernização otimistas lineares, daquilo que historicamente fora
banido pela ciência formal. Parece que procuramos no passado
àqueles gestos significativos que compensam a falta de critérios
transparentes no presente, preenchendo assim o vácuo. Radicalizando
poder-se-ia dizer: romantizamos, idealizamos aspectos do passado
num esforço quase saudosista para restabelecer a ordem perdida.
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Ana, portanto, se torna esse elemento aglutinador, uma imagem secreta, única
entre tantas incertezas, que possibilita ao narrador um ponto de partida – ou de retorno –
para a (re)criação de si: “Porque nunca contei à ninguém de Ana. Nunca ninguém soube
de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém” (ABREU, 1988, p. 46). Ana
(ou o espectro de) é de certa forma a única coisa que o narrador possui integralmente,
pois tudo o mais é pulverizado, é excessivo ou multiplicado em “inúmeros recados,
convites e propostas da secretária eletrônica” ; por isso “nunca ninguém jamais soube de
tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou” (Idem, ibidem):
disso somente ele é sabedor.
É compreensível, então, o tom nostálgico ou melancólico do texto. Para Moser
(1999, p. 49-50) tanto a nostalgia como a melancolia são provocadas “pela experiência
de uma perda, ou, pelo menos, pela consciência de uma distância que deslizou entre nós
e um objeto que nossa força desejante investiu”. Porém, se o “afeto nostálgico consiste
no desejo de recuperar o objeto perdido e gozar dele novamente, ou, pelo menos,
encurtar a distância que nos separa dele” – ou que separa o tempo dele e o Spätzeit em
relação a essa temporalidade - “o sujeito melancólico sabe que o objeto perdido ou
longínquo não é recuperável, que sempre será inatingível” Mesmo assim, esse objeto
perdido não lhe sai da consciência, não é possível, “em termos freudianos, fazer dele o
trabalho de luto para desinvesti-lo inteiramente”.
Nota-se que a diferença essencial está na crença ou não num reencontro futuro.
Entretanto, Natali (2006, p. 72-73) observa que o esquema mental que difere a
melancolia da nostalgia, em ambos os casos, está alicerçado no desencantamento, sendo
que “se não houver desencantamento ou ateísmo, então outro território conceitual
emerge”: neste caso, diz ele, “estaríamos diante de algo que não é nem nostalgia, nem
melancolia”. Como então definir o território em se encontra essa personagem?

Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo
depois, (...) tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e
eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo,
como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como
se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até
hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com
o último bilhete dela nas mãos. (...) por mais que o tempo passe e eu,
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de qualquer jeito e sem Ana, vá em frente. Palavras que dizem coisas


duras, secas, simples, irrevogáveis. Que Ana me deixou, que não vai
voltar nunca, que é inútil tentar encontrá-la, e finalmente, por mais que
eu me debata, que isso é para sempre. Para sempre então, agora, me
sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do
apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta
para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um
alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o
interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas. (ABREU,
1988, p. 46-7)

Nota-se, nos fragmentos grifados, a permanente oscilação entre desencanto e um


outro estado definido como “muito bem”, ambos ocorrendo num tempo instantâneo
marcado pelo termo “agora”. Isso sugere que o narrador é uma personagem em
construção no momento mesmo do discurso, inacabada e que se refaz a cada instante.
Talvez, então, esse território não possa ser delimitado justamente por se tratar ainda de
um interregno no qual a ordem anterior “perde a sua aderência e já não pode se impor” e
um modelo substituto “ainda está na fase de concepção, ainda não foi completamente
montado ou não é suficientemente forte para ser colocado em seu lugar” (BAUMAN,
2009, p. 20). Nesse sentido, os sentimentos da personagem também não podem ser fixar
completamente perdendo qualquer possibilidade de caracterização final ou de
tratamento do passado como aquilo que ficou ou não para trás. Dessa maneira, ora a
personagem parece nostálgica, ora melancólica, porém é somente no território intervalar
entre uma postura e outra que se pode compreendê-la. Retomando Natali, um e outro
conceito não dão conta de representar a ela ou à sua relação com o passado, pois ela se
encontra num “além” conceitual.
Bhabha (2007, p. 27) diria que viver no além é “ser parte de um tempo
revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade cultural;
reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar o futuro em seu lado de cá”
[grifos do autor]. Para ele, o espaço intermediário do além é “um espaço de intervenção
no aqui e no agora”. Do mesmo modo, no espaço-tempo do interregno, a história
evolutiva perde a supremacia e autoridade que o caráter cumulativo lhe garantia
permanecendo em aberto, sempre em permuta com o passado. Assim, se “é só quando o
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movimento da história passa a ser visto como necessariamente emancipador,


progressivo e racionalmente compreensível que o apego ao passado pode ser condenado
como aberração política e um obstáculo irracional” (NATALI, 2006, p. 13), quando esse
movimento é tomado de forma sincrética, irredutora e incompreensível esse “apego”
comporta um componente de extrema positividade: o da liberdade para o desvio e o
reenvio, movimentos que podem explorar com lucidez a condição do Spätzeit. É o que
pensa Diehl acerca da história como disciplina submetida ao estado de crise
contemporânea:
Nessa orientação, não entendemos tais conseqüências da crise como
sendo negativas ou sem sentido para a história-disciplina, mas sim
como possibilidade de problematizarmos o passado no sentido de
reconstituir idéias de futuro que se tinha no passado e, sobretudo,
creditarmos argumentos para uma cultura da mudança a partir da
proposição de alguns temas.

É, nesse sentido, que o solitário blues de Caio melodicamente atravessa os


limites da ficção e adquire envergadura teórica, pois, numa perspectiva adorniana, neste
processo de individuação, ao se particularizar, a personagem mais se universaliza. A
experiência do amor com todos os componentes que à ela se ligam – a dor, a saudade, o
ódio, o deslocamento, a inadequação e inatualidade – expandem-se em desconfortos
referentes à cultura e à condição de Spätzeit vivenciada pelo homem contemporâneo.
Por tudo isso, enfim, tardiamente reconheço que talvez o conto de amor mais
belo de Caio Fernando Abreu seja realmente um conto de amor... Um grande amor pelo
seu tempo e sua história.

Referências
ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC:
Argos, 2009.
_____. Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
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BHABHA, Homi K. “Locais da cultura” e “O compromisso com a teoria”. In: O local


da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia R. Gonçalves.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 19-42 e 43-69.
BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Zorge Zahar Editor, 2004.
_____. “O triplo desafio” In: Revista Cult. No. 138, Agosto/2009, Ano 12, p. 20-21.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre
literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo:
Brasiliense, 1987. Vol. 1, p. 222-232.
DIEHL, Astor Antônio. Teoria Historiográfica: diálogo entre Tradição e Inovação. In:
Varia História, Belo Horizonte, vol. 22, nº 36, Jul/Dez 2006: p.368-394. Acesso em
09/02/2010. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/vh/v22n36/v22n36a08.pdf
FREUD, Sigmund. “Luto e Melancolia” In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago,
2002, vol. XVII.
MOSER, Walter. Spätzeit. In: MIRANDA, Wander Melo (org). Narrativas da
Modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
NATALI, Marcos Piason. A política da nostalgia: Um estudo das formas do passado.
São Paulo: Nankin, 2006.
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-
moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ZIZEK, Slavoj. Bem-Vindo ao deserto do Real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e
datas relacionadas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003 (Estado de Sítio).
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TESSITURA DE UM PASSADO
GRACILIANO RAMOS E A INVENÇÃO DE SUA INFÂNCIA

Giscard Farias Agra (PG-UFPE)

Introdução

A obra Infância, de Graciliano Ramos, publicada em 1945, é constantemente lida


como uma autobiografia do autor. Uma obra memorialística que retrataria os primeiros
anos de vida de Graciliano, expondo ao público leitor, assim, a experiência de uma
criança vivendo em um espaço pobre do sertão de Alagoas, que, primogênita de uma
numerosa prole, teria sido a primeira a passar pela árdua disciplina imposta pelos pais,
uma educação em que raros seriam os gestos de afeto e vários seriam os de opressão,
oriundos tanto do “seio familiar” quanto da sociedade em que viviam.
No presente ensaio pretendo analisar a obra Infância a partir das novas concepções
que orientam o estudo dos chamados textos biográficos e autobiográficos, direcionando-
me à discussão de tais narrativas como “produções” e “elaborações” de si, mais
condizentes com uma manipulação da memória de si ou de outrem do que textos
reveladores de verdades sobre os sujeitos biografados.
Com tal intento, analiso inicialmente a mudança no espaço historiográfico de estudo
das biografias, especialmente a sua reformulação no final do século XX, especificando
alguns aspectos da metodologia de estudo das produções de si a fim de aplicá-las na
leitura da elaboração da infância que Graciliano faz na referida obra.

1. (Auto)Biografias: a constituição de um novo espaço metodológico


A reformulação do pensamento histórico ocorrida ao longo do século XX não deixou
incólume os textos biográficos, lançando olhares nem sempre amistosos a tais tipos de
narrativas.
A Escola dos Annales, principal responsável pelo modelo paradigmático de produção
do conhecimento histórico do século XX, rejeitou a biografia como texto historiográfico
pelo seu caráter narrativo, individualizante e não-científico. Opondo-se à historiografia
metódica, preocupada em narrar e vangloriar os feitos que, apesar de singulares,
executados por aqueles “grandes heróis do passado”, diziam respeito à história
“universal”, os Annales mostraram-se mais interessados em aspectos mais gerais
próprios de uma sociedade, como cultura, economia, religiosidade, etc. Para o
paradigma então vigente, uma abordagem sobre um único indivíduo parecia pretender
construir em torno dele uma visão heroificada de ser, não sendo, desta maneira,
condizente com a proposta então vigente de olhar histórico.
As biografias, entretanto, continuaram sendo produzidas, fosse por letrados de fora
do círculo acadêmico dos Annales, como jornalistas, fosse no interior da própria escola,
por pensadores que as produziram a partir de abordagens diferenciadas daquelas
atribuídas aos metódicos do século XIX. São exemplos deste novo modelo biográfico as
obras de Lucien Febvre sobre Lutero e Rabelais, consideradas “biografias modais”,
textos que, debruçados sobre o indivíduo, informavam mais sobre a coletividade em que
ele se inseria (PRIORE, s.d.). Décadas mais tarde, seguindo modelo semelhante de
biografar, não mais interessado na singularidade de um único sujeito, mas interessado
em estudar um indivíduo para, através dele, desvelar certas concepções culturais
presentes no social, Carlo Ginzburg trouxe à tona a experiência de leituras, práticas e
interpretações de um único moleiro italiano para desvendar as concepções presentes no
cenário social em que ele vivera. Assim, portanto, pretendia Ginzburg que, ao penetrar
na singularidade de Menocchio, fosse possível compreender o mundo que o cercava
(FIGUEIREDO, s.d.).
O gênero biográfico voltou à tona na historiografia francesa por meio justamente da
renovação do modelo que passou a informá-lo a partir da chamada terceira geração dos
Annales, ao final da década de 1960, muito impulsionado também pelos estudos sobre a
constituição dos sujeitos, com Michel Foucault no campo da filosofia 1, e sobre a
emergência da sociedade dos indivíduos, com Norbert Elias e Richard Sennett no
campo da sociologia 2.
As últimas décadas do século XX trouxeram, portanto, de volta à cena da
historiografia francesa o interesse pela produção de biografias, com metodologia
renovada de investigação dos sujeitos. Alguns elementos atribuídos às biografias
tradicionais – dentre eles o caráter de ser uma narrativa sobre um único sujeito de
experiência suficientemente modelar para tê-la biografada –, bem como às
autobiografias – especialmente no tocante à autoridade que o autor teria em trazer à tona
a verdade sobre sua vida, já que ele, mais do que qualquer outra pessoa, teria acesso a
tal verdade por tê-la vivido – passaram a ser problematizadas pelas novas abordagens,
constituindo um novo procedimento de leitura das experiências.
Um dos principais elementos caracterizadores destas novas abordagens diz respeito à
(im)possibilidade de se atingir a verdade sobre o sujeito. O sujeito biografado é, acima
de qualquer outra coisa, uma invenção, uma ficção. Esta se dá pelas várias maneiras
como o sujeito passa a ser constituído narrativamente, como, por exemplo, em atos,
palavras, sentimentos, aspectos físicos, indumentárias e certos comportamentos que lhes
são atribuídos e passam a constituí-lo, a fazer parte integrante da própria existência do
sujeito narrado. Tais elementos, portanto, existissem ou não no sujeito histórico, quando
passam a constituir uma imagem contada desse mesmo sujeito, quando ajudam a
integrar um discurso sobre ele, transformam-no, criam-no e recriam-no, narram sua
vida, ficcionalizam-na, produzem, assim, uma representação do passado, que diz mais
sobre o tempo presente no qual foi produzida do que efetivamente sobre o passado de
que se pretende falar.
Isto porque nenhum relato de vida, seja ele biográfico ou mesmo autobiográfico, traz
a verdade sobre o sujeito. A busca da verdade já se mostrou um trabalho de Sísifo há
algumas décadas, mas já era condenada desde pelo menos o século XIX, quando
Nietzsche declarou que a verdade não passava de uma convenção de grupo seguida pelo
rebanho (NIETZSCHE, 2008). Com isto, afirmou a pluralidade da concepção de

1
Dentre outros, cf. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004;
Idem. História da sexualidade. 9 ed. São Paulo: Graal, 2007 [vol. 3 – O cuidado de si].
2
Dentre outros, cf. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1994; SENNETT, Richard. O declínio do homem público – as tiranias da intimidade [trad. Lygia Araujo
Watanabe]. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
verdade e a possibilidade de se localizar historicamente a fabricação dos enunciados que
uma sociedade culturalmente elabora e naturaliza como verdade.
Assim, toda suposta “verdade biográfica” não passa de uma interpretação de eventos
concernentes à vida do sujeito narrado, interpretação, esta, que é estabelecida por um
outro lugar, por um sujeito que dá sentido aos eventos que narra. Todo conhecimento,
portanto, como disse Nietzsche, é uma metáfora, uma transposição de um elemento de
um lugar a outro, uma nova distribuição cultural determinada pelo lugar de onde se fala,
como também alertou Michel de Certeau (CERTEAU, 2007, p. 65-122).
Neste sentido, todo biografado, portanto, é produto de seu biógrafo. É este quem
interpreta os eventos e as ações do sujeito, atribui-lhe pensamentos, sentimentos, dá-lhe
um sentido para a vida, produzindo-o muitas vezes como um sujeito coerente, cujas
ações sempre foram bem pensadas, elaboradas e efetuadas logicamente, esquecendo-se
dos momentos de angústia, das incoerências, das modificações de pensamento, dos
erros, etc (LEVI, 1996, p. 167-182). O sujeito narrado, assim, é um sujeito produto do
lugar que o fabricou, interpretado pelo olhar do biógrafo e ficcionalizado por este, só
existindo na narrativa e não no mundo empírico.
Mesmo nas chamadas autobiografias é possível perceber este movimento. Neste
caso, apenas aparentemente as figuras do biógrafo e do biografado se confundem, posto
que o biógrafo, ao pensar sobre sua própria vida e transformá-la em narrativa, também
fará uma interpretação dos eventos que a marcaram partindo do seu lugar presente para
ler eventos do passado. O sujeito que escreve é um sujeito diferente do da época que ele
narra: a distância entre esses dois lugares provoca as mais diversas mudanças nas
maneiras de dar sentido ao mundo. Deste modo, o sujeito que escreve produz um sujeito
narrado a partir do seu olhar presente, atribuindo certos comportamentos e pensamentos,
informadores do seu olhar presente, a um sujeito no passado que tinha outras maneiras
de relacionar-se com as coisas do mundo. Neste sentido é que hoje tais elaborações são
estudadas, não mais enquanto reveladoras da verdade sobre um sujeito ou sobre si
próprio, mas como produções, portanto, elaborações e escritas de si (GOMES, 2004).
Pensar, portanto, que tais textos são capazes de trazer à tona a verdade sobre um
sujeito, mesmo quando escritos pelo próprio sujeito, é cair naquilo que Bourdieu
chamou de ilusão biográfica (BOURDIEU, 1996, p.183-191). Os biografados são
sujeitos que só existem nas narrativas de seus biógrafos, pois são representações
elaboradas por estes que produzem uma imagem para aqueles. É assim que, tal qual
obras de arte, como a “Monalisa” de Da Vinci, a “Criação do Homem”, de
Michelangelo, a “Independência do Brasil”, de Pedro Américo, o “Abaporu” de Tarsila
do Amaral, posso me referir ao “São Luís” de Jacques LeGoff, ao “Maquiavel” de
Sebastian de Grazia, ao “Albert Camus” de Olivier Todd e ao “Thomas Mann” de
Marianne Krüll, que não são os mesmos sujeitos vistos por outros biógrafos: o “Freud”
de Peter Gay não é o mesmo Freud de Rene Major, assim como o “Dom Pedro II” de
José Murilo de Carvalho não é o mesmo imperador do Brasil que desfila pelas páginas
das obras de Lilia Moritz Schwarcz e de Jean Soublin, nem o “Gilberto Freyre” de
Maria Lucia Garcia Pallares-Burke é o mesmo de Guilhermo Giucci nem de Manuel
Correia de Andrade, e assim por diante.
No caso específico das escritas de si, quando o autor se debruça sobre suas próprias
lembranças para narrar o seu passado, está, tal qual tenho falado, produzindo um olhar
sobre si próprio que ele deseja ver circular socialmente. Aqui, é possível perceber como
o suposto passado do autor é construído interessadamente, muitas vezes para elaborar
uma linha de continuidade entre o seu passado e o seu presente, uma coerência no
processo de construção do pensamento que o leva a ser, no presente, o resultado de
todas as experiências que o formaram no passado e, desta maneira, este seu passado
seria o legitimador de suas ações no presente. O passado, portanto, como um produto do
olhar do presente, é construído interessadamente para justificar as ações e os
pensamentos do sujeito que conta e inventa as suas memórias.
É a partir de todas essas concepções que vislumbro a obra “Infância”, de Graciliano
Ramos, da qual passo a tratar agora.

2. “A criança faz o homem”: a elaboração de uma infância para Graciliano Ramos

A leitura que aqui proponho de Infância insere-se na discussão em torno da produção


de si, conforme entendida nos últimos anos, e não como uma autobiografia como
entendida tradicionalmente. Leio a obra não interessado em saber como foi a infância do
autor de Caetés, mas preocupado em identificar como Graciliano inventa uma memória
da infância para si, construindo uma representação dos primeiros anos de vida da
criança.
Ao longo de toda a obra, o que se destaca é um olhar de inferioridade da criança para
com o mundo que a cerca. Sob as lentes da criança, tudo ao seu redor é visto e descrito
como grande, demonstrando que o único elemento pequeno, miúdo, era ela própria. Os
espaços são descritos como “cheios de gente” (RAMOS, 2008, p.10), de “altura
incrível” (p.13), “o pátio (...) era imenso (...) o fim dele tocava o céu” (p.14), o buraco
cavado pelos homens era “medonho, precipício que me acolhia apavorado entre
montanhas erguidas nas bordas” (p.14), e assim por diante.
Por outro lado, as pessoas que convivem com a criança, especialmente aquelas que
sobre ela mantêm uma relação de poder com o uso da força física, também são descritas
não da altura que realmente eram, mas da altura que era percebida pelo infante,
tornando-se ainda maiores em momentos que exerciam o seu poder sobre ele, como no
caso do cinturão narrado no quarto capítulo. Os pais, especificamente, são descritos sem
adjetivações sentimentais, de uma maneira fria, supostamente objetiva.

Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um


homem sério, de testa larga, uma das mais belas testas que já vi,
dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada,
agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal
protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em
momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura
(RAMOS, 2008, p.16).

Muitas das memórias sobre os pais que Graciliano narra no livro dizem respeito,
especificamente, aos comportamentos opressores e autoritários deles sobre a criança. O
alvo principal acaba sendo o pai, responsável tanto pelo primeiro contato que a criança
teve com a “justiça”, quando foi surrado por supostamente ter sumido com um cinturão
(RAMOS, 2008, p.33-37), bem como pelo abuso de poder que cometeu ao prender o
mendigo Venta-Romba, mais em nome da demonstração pública de poder que o seu
cargo de juiz substituto lhe conferia e do “enjôo que lhe causava a figura mofina”
(p.241), do que em nome de um interesse social em tal conduta. O narrador chega a
afirmar que tal comportamento paterno “deve ter contribuído também para a
desconfiança que a autoridade me inspira” (p.243).
Desconfiança, esta, que foi sendo formada ao longo de toda uma vivência opressora,
promovida tanto por elementos “naturais”, como a seca que assolava o sertão nordestino
(RAMOS, 2008, p.27-32), quanto pelas pessoas que o rodeavam, fossem seus pais,
familiares – o avô que tentava educar com tamanha rispidez que desincentivava o garoto
nas leituras (p.135-142) –, vizinhos – como Chico Brabo, que, apesar de ser “amável”
no espaço público, constantemente espancava o empregado de sua casa, o menino João
(p.151-156) –, ou mesmo colegas de escola – que, de tanto humilharem e rejeitarem a
presença de um dos alunos, este acabou se tornando um bandido aos quinze anos e foi
morto a punhaladas na casa de uma de suas mulheres (p.55-260). Opressão que pouco a
pouco foi tomando conta também da própria criança, naturalizando-se nela sem que se
percebesse, o que a levou, inclusive, a tentar ajudar o pai na surra que este executava no
moleque José, um garoto que trabalhava em sua casa e que foi alvo de sua ira certo dia
(p.90-91), ao olhar racista e preconceituoso lançado a D. Maria do Ó (p.179-185) e ao
novo professor do largo do Comércio (p. 193-198), bem como a unir-se àqueles colegas
de escola que rejeitavam a pobre criança infeliz (p.255-260).
A transformação, entretanto, da criança-animal, do ser acuado, miúdo e mudo,
começou, pela narrativa de Graciliano, quando teve contato com as letras. Mesmo que
inicialmente tal contato tenha sido um tanto perturbado, passou a significar a sua
passagem para a vida adulta. Convencido inicialmente pelo pai da importância de
alfabetizar-se, teve com este e com a escola que freqüentou péssimas experiências de
ensino, devido à rigidez e violência com que o pai tentava educá-lo (RAMOS, 2008, p.
109-114), bem como ao despreparo dos professores e às punições escolares que se
seguiam à dificuldade em aprender a cartilha, o que deixou marcas e traumas que o
narrador confessa ainda serem profundas e vivas (p.115-120). A experiência
educacional com o avô, por sua vez, também não se diferenciou muito das demais até
então, sendo experienciado pela criança de maneira traumática (p.135-142). A paixão
pelas letras, entretanto, começou a ser despertada quando o garoto foi privado, devido a
doença nos olhos, da visão, e, em meio à escuridão da cegueira, encontrou prazer em
ouvir as cantigas folclóricas cantadas pela mãe durante os trabalhos domésticos (p.143-
150).
Daí por diante, novas relações passaram a ser estabelecidas entre a criança e a leitura.
Um pai temporariamente compreensivo o acompanhou nesta trajetória, talvez
estabelecendo aí certos laços sentimentais tocantes à paternidade que até então o garoto
não havia experimentado (RAMOS, 2008, p.205-210), e um novo professor que o fez
começar a envaidecer-se perante os outros pelo conhecimento que adquiria (p.211-216),
bem como um desafio que despontou à sua frente que transformou a leitura do livro O
Menino da Mata e o seu Cão Piloto ainda mais instigante: a ciência de descobrir e
revelar o que lhe era proibido (p.217-222). Foi a possibilidade de descoberta por meio
da leitura que o levou a enveredar-se pela biblioteca de Jerônimo Barreto (p.229-236) e
a cada vez mais aprofundar-se nas letras, libertando-se dos grilhões de uma infância
oprimida e muda.

Considerações finais

A infância, portanto, como construída por Graciliano, é um espaço marginalizado,


um estágio de privação das vontades e da própria palavra. O letramento promoveria no
sujeito a sua libertação de tal estado de opressão, instruiria e educaria o sujeito, fazendo-
o ter consciência de seu estado e lutar pela sua libertação, lutar pelo seu direito à fala.
Tema corriqueiro na literatura de Graciliano: a relação sem muitas palavras de
Fabiano e Sinhá Vitória, ou a completa falta de fala daquele quando se defronta com a
autoridade do soldado amarelo, em Vidas Secas (RAMOS, 1996); bem como o diálogo
várias vezes corporal entre Paulo Honório e seu homem de confiança, Casimiro Lopes,
em São Bernardo (RAMOS, 1992), demonstra certas experiências que são passadas e
vividas mais pelo corpo do que pelas palavras articuladas (ARAÚJO, 2008).
Graciliano, por meio de sua literatura, parece dizer que a civilidade está
intrinsecamente ligada à linguagem verbal, à articulação de palavras, enquanto a falta
disto leva à brutalidade, à animalidade. E, no espaço inóspito do sertão nordestino
inventado por ele, os humanos são jogados à condição de animais, seja pelas condições
ambientais em que desponta a calamidade da seca, seja pela opressão dos grandes
proprietários de terra e dos sujeitos ligados à autoridade que abusam de seus poderes
para oprimir os demais (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001). A rudeza do homem,
supostamente conseqüência das condições de vida do Nordeste pobre de Graciliano,
espalha-se por todos os âmbitos sociais, do espaço público, com a exacerbação do poder
dos coronéis ligados às forças policiais, ao espaço privado, com as relações familiares
cada vez mais desgastadas entre os próprios cônjuges e entre estes e seus filhos. A
relação nada sentimental que a criança de Infância tem com os seus pais é proveniente
deste tipo de espaço, bem como a relação estabelecida entre Fabiano e seus filhos em
Vidas Secas – os meninos, por sua vez, sequer têm nomes, mas são referidos como
“menino mais velho” e “menino mais novo”.
Infância, portanto, parece-me uma narrativa sobre a formação de um sujeito, do seu
mais tenro estado de inconsciência e de impossibilidade de leitura do mundo à sua volta,
inebriado pelas nuvens que cercam a memória dos tempos passados, até a sua
humanização por meio da linguagem, da oralidade e da literatura. O animal humano que
iniciou a narrativa humanizou-se ao seu final, deixou de ler o mundo e as pessoas à sua
volta como imensos, gigantescos, e a si próprio como inferior, menor, mudo, mas
tornou-se alguém que, consciente da opressão da sociedade onde vive, tem o
conhecimento necessário para não se curvar a ela, tem a ciência necessária para lutar
contra o estado de coisas como se apresenta. Graciliano Ramos, um engajado militante
marxista, preso político do período varguista (RAMOS, 2005), parece-me lutar contra
tal estado de coisas por meio de sua literatura, onde denúncia a opressão, o abuso de
poder e a animalização do ser humano. E Infância, como uma sessão psicanalítica do
próprio Graciliano, parece-me uma literatura que, longe de ser autobiográfica no sentido
tradicional do termo, inventa, produz, fabrica uma infância de opressão e sofrimento no
intuito de legitimar e autorizar o tipo de literatura que Graciliano produzirá na fase
adulta, uma literatura de denúncia, amargurada e pessimista (MOISÉS, 2001).
Numa tese explicitamente freudiana, Graciliano constrói uma infância problemática
para justificar um adulto problemático. Neste caso, ele ficcionaliza as suas próprias
memórias de criança para autorizar a sua visão de mundo expressa na fase adulta, seja
na sua literatura, com a invenção de adultos problemáticos, como Paulo Honório e
Fabiano, seja na ideologia que o move em vida, em ações políticas e sociais pelas quais
enfrentou mais do que nunca o abusivo poder das autoridades policiais.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes.


2 ed. Recife: Massangana. São Paulo: Cortez, 2001.
ARAÚJO, Susana Elaine Fernandes de. O corpo manifesto por Graciliano Ramos: uma
leitura de Vidas Secas e São Bernardo. Dissertação de mestrado em Letras. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2008.
BOURDIEU, Pierre. “A Ilusão Biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Morais,
AMADO, Janaína (Org.) Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996,
pp. 183-191.
CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”. In: A escrita da História. 2 ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, pp. 65-122.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994;
“Entrevista com Jacques Le Goff”. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n.
8, 1991, pp. 262-270.
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. “Menocchio, Machado e Maranhão: Ginzburg,
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www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF15/CG_Figueire do.pdf. Acesso em: 9 fev. 2010.
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GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004.
LEVI, Giovanni. “Usos da biografia”. In: FERREIRA, Marieta de Morais, AMADO,
Janaína (Org.) Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, pp. 167-
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NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral [apresentado
por Fernando de Moraes Barros]. São Paulo: Hedra, 2008.
OLIVEIRA, Ilca Vieira de. “Infância, de Graciliano Ramos”. PasseiWeb. Disponível
em: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/i/infan
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PRIORE, Mary Del. “Biografia: quando o indivíduo encontra a história”. Topoi.
Disponível em: www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi19/topoi%2019%20-
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RAMOS, Graciliano. Infância (memória). 40 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record,
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_________. São Bernardo. 58 edição. Rio de Janeiro: Record, 1992.
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SENNETT, Richard. O declínio do homem público – as tiranias da intimidade [trad.
Lygia Araujo Watanabe]. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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VIRTUALIDADE REAL: REFLEXOS E REFLEXÕES DE UMA REALIDADE


EM TRANSFORMAÇÃO

Glauce Rocha de Oliveira (USP)

Introdução

“Aonde a mão vai, o olho segue; aonde o olho vai, a mente vai; aonde a mente vai, está
o coração; onde está o coração, repousa a realidade de existir”. 1

É cada vez mais presente em nosso cotidiano notícias que anunciam avanços
tecnológicos que revolucionarão nossas relações sociais, inclusive as relações de
consumo. Por exemplo, o advento da televisão digital no Brasil e as promessas de uma
sensação de realidade sem precisar estar in loco (o que se chama de tele sense: "Nosso
objetivo é criar no espectador a sensação de estar lá, imerso na própria cena") e de uma
interatividade fenomenal – leia-se interferir na escolha dos ângulos em que se pode ver
a cena ou comprar algo que apareça em cena.
Nessa mesma diretriz, já se pensa em aplicações para o turismo por meio de home
theaters e DVDs de alta definição com chamadas do tipo “Por apenas R$2,00 ou R$3,00
você poderá conhecer as pirâmides do Egito”2.
Se de um lado isso pode parecer um grande avanço, de outro não podemos nos
esquecer de quais lugares esse discurso e seus “textos” (DVDs, games, por exemplo)
são construídos, para não cairmos numa reprodução acrítica de valores que não mais se
sustentam.
Gostaria de propor neste artigo uma reflexão sobre a natureza heterogênea de nossa
realidade (tomada aqui como uma construção social, seja constituída por pixels, por
campos magnéticos, ou por aglomerados químicos de carbono) e de nossa interação

1
Trecho de Natyashastra, tratado sobre dramaturgia e dança, em sânscrito, de autoria de Bharata, datado
entre os séculos 500 AC e 500 DC.
2
Revista Época, nº 471, 28/05/2007, p.61.
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social, para lermos criticamente a atual situação de ‘virtualidade’ mediada por


computador em que vivemos, bem como para podermos ter insights para lidar com tal
situação com sabedoria, ou seja, sem nos prendermos a conceitos ou receitas
preestabelecidas que nos impedem de entendermos nossa realidade sistemicamente
(leia-se de modo extremamente interligado). Para tanto, organizo este artigo a partir de
três questionamentos: a) Quão longe pode um pássaro voar sobre o azul do mar?; b) Por
que o homem ocidental tem de ver para crer?; e c) Como impedir que uma gota d’água
seque?
Gostaria também de enfatizar que as “respostas” dadas são propostas de se construir
caminhos explicativos que levem em consideração não só o lócus de enunciação dos
leitores, mas também um convite para se perceber as n variáveis que estão em jogo no
processo de construção de sentido em dada situação.

1. Quão longe pode um pássaro voar sobre o azul do mar?


Sobre o azul do mar – espaço em constante movimento e fluidez cuja cor da água
depende não só da profundidade, como também dos reflexos dos arredores. Para um
pássaro voando sobre essas águas, a única certeza de descanso é um mastro de um
navio.
O que isso representa aqui? Esse mastro é uma metáfora para os regimes de verdades
(VEYNE, 1984) que ancoram ou sustentam o que costumamos chamar de realidade (ver
próximo item).
Esse momento de parada tão necessário pode propiciar que o pássaro continue seu
vôo, descansando, posteriormente, em outro mastro, ou que se desloque na rota do
navio, caso escolha ficar “parado” no mastro.
Sob essa perspectiva, não importa quão longe ele possa voar, pois ele tem a “certeza”
de um apoio/descanso.
De um lado, o pássaro apóia-se em aparentes certezas, mas sempre disposto a pousar
em outros mastros durante seus vôos, ou escolhe ancorar-se em um mastro e ser levado
por uma rota preestabelecida (aquela do navio).
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Essa dinâmica não é muito diferente do que vivenciamos em nosso cotidiano e em


nossas interações sociais. Se de um lado, temos de ter “certezas” compartilhadas para
convivermos em nossas práticas sociais, de outro, tomar tais certezas como únicas pode
nos levar a um estado de oclusão ou reprodução.
Num processo de ensino-aprendizagem, em que os sujeitos são deslocados de suas
“certezas” para se transformarem, a segunda opção poderia ser uma escolha pouco
“criativa” ou transformadora, que, dependendo de nossas necessidades, poderia ser
comparada a uma escolha de ver com os olhos de outros, como Menezes de Souza
(2008, em comunicação pessoal) explica:

“Não precisamos ser iguais e idênticos para nos entendermos. E


entendimento não precisa significar consenso. Entendimento é
mais próximo a uma construção de uma ponte sem esquecer o
rio que separa as margens. Precisamos ter a coragem de ser
nômades, nos afastarnos de nossas pátrias (que nos protegem
e nos dão segurança, estabilidade) para construir nossos lares
onde quer que estivermos, fazendo sempre as devidas
adaptações e modificações. Infelizmente, muitos confundem
pátria com lar e se refugiam nas aparentes certezas, verdades,
dos outros – dos grupões em seu entorno; talvez porque esses
grupões ou pátrias lhes dão uma aparência de segurança e
estabilidade. Infelizmente, sufocam.”

Nesse sentido, andar na rota do navio pode ser comparado ao mainstream desses
grupões. Ao passo que a coragem de ser nômade, pode ser comparada à mesma atitude
do pássaro de alçar vôo sobre as águas do mar, porque ele “sabe” que haverá algum
mastro para repousar.
Em nosso atual contexto, esses “grupões” ou se deslumbram ou se chocam com a
realidade da virtualidade. A questão aqui não se restringe a uma visão sedutora ou
apocalíptica dessa realidade, mas à brecha que ela abre para re-vermos nossas premissas
fundamentais ou os regimes de verdade que a sustenta(va)m.

2. Por que o homem ocidental tem de ver para crer?


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Para revermos nossas premissas fundamentais, é necessário lembrarmos daquilo que


já foi naturalizado em nossas práticas sociais e sedimentado como o óbvio ou verdades
inquestionáveis.
“Ver para crer” reflete um regime de verdade que sustenta a idéia de uma realidade
preexistente e independente de seu observador, ou seja, independente da interpretação
localizada de seu espectador e passível de ser capturada ou apreendida, pois está lá do
lado de fora. Além disso, reflete a crença de que a visão é um sentido “neutro” e
imediato e auto-explicativo, sem a necessidade de interpretação, estimulada,
geralmente, por elementos externos a ela (diferentemente do olfato e paladar) (ULMER,
1985; ROCHA DE OLIVEIRA, 2002).
Essa postura decorre de um caminho explicativo calcado no racionalismo, na crença
em uma objetividade positivista, no materialismo, bem como na ordem cronológica
entre espaço e tempo.
Nesse processo, espectador e espetáculo estão divididos, ou seja, sujeito versus
objeto, este passível de análise, aquele capacitado em apreender o objeto em seus
mínimos detalhes. Surge dessa relação a ilusão de um olhar documental, não
interpretativo. Esquecemos que vemos com aquilo que temos e com que aprendemos em
nossa cultura (GOMBRICH, 1986), ou seja, a sensação de clareza advém de
conhecimentos compartilhados e sobrepostos e a sensação de não clareza, de situações
de deslocamentos, em que os conhecimentos não estão compartilhados (MENEZES DE
SOUZA, 2008). Desconectado de si, esse sujeito esqueceu-se de sentir e de ver como
aprendeu a ver a realidade. Ou seja, ao invés de preocupar-se em perceber como vê o
que diz ver, esse sujeito detém-se em identificar o que vê.
Nesse sentido, usa uma interpretação socialmente construída para provar o que vê,
iludido de que não faz parte dessa visão, como ilustra a imagem do Anexo 1, uma
propaganda da hp, publicada na revista Time em junho de 2001, quando do lançamento
de uma máquina fotográfica digital.
Assim sendo, o homem ocidental culturalmente acostumado a isentar-se do processo
de co-criação ou de interpretação daquilo que vê acredita apenas naquilo que seus olhos
podem averiguar.
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Não é de se admirar que com o advento da imagem digital, formada pelos pixels, o
status de verdade de imagem-documento começa a ser questionado. Ameaçando a
relação direta com referentes localizados no mundo “real” ou “material”, essa imagem é
construída na imaterialidade dos pixels. Mas não seria essa “ameaça” a possibilidade de
quebrarmos a ilusão de o referente dessa realidade “lá fora” garante sua veracidade? Em
outras palavras, não seria esta a oportunidade de lembrarmos que nossa postura de
espectador co-cria o que vemos e não garante nada além do que é compartilhado em
nossas práticas sociais. Por exemplo, mesmo sabendo que um mapa não é o território,
acreditamos piamente que o google maps ou um GPS serve para nossa orientação
espacial – este é um típico caso em que a sobreposição de conhecimento gera a sensação
de transparência.
Em face disso, começamos a perceber que configuramos nossa realidade conforme
os valores e as verdades que assumimos (e/ou aprendemos a assumir) como legítimos e
válidos dentro de nossas práticas culturais. Daí, por exemplo, nossos espaços e nossas
relações serem distintamente organizados em cada momento, em cada contexto – assim
como a catedral gótica torna visível uma concepção de Deus como um ser superior e
inatingível, bem como de seu poder incontestável, o computador pode ser derivado de
um meio de comunicação nascido dentro da cultura patriarcal. Mas, paradoxalmente, ele
indica mudanças epistemológicas que mais tendem à ordem da simultaneidade e das
relações de afinidade, as quais desestruturam a ordem linear do patriarcado. Daí essa
maleabilidade ser entendida como ameaça ou uma des-realização, para não dizer
falsidade, ou ainda uma artificialidade pós-humana (SANTAELLA, 2003) ou um
modelo de mundo simulado por algoritmos matemáticos.
Por isso, a questão não é mais sobre considerar falsas as manifestações que não mais
se encaixam nos moldes materialistas ou racionalistas, mas sim se queremos ou não
continuar a acreditar em tais modelos de realidade objetiva, independente de seu
observador.

3. Como evitar que uma gota d’água seque?


Atirando-a ao mar.
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O ensinamento nessa upanishad serve aqui como uma metáfora da re-integração de


nós mesmos, fazendo com que possamos perceber que, no caminho explicativo de uma
realidade co-construída (MATURANA, 2001, 2002; MATURANA ET AL. 2004),
espectador e espetáculo estão ligados de uma maneira ou de outra.
Essa integração nos ajuda a navegar nos espaços aumentados e permeados por
diversas tecnologias, sobretudo as digitais (MANOVICH, 2006), por meio de nossos
seis sentidos construindo sentido. Ou seja, nesse processo, ver não se restringe a crer,
nem a interpretar, mas implica a complexa intersecção dos lugares que ocupamos
simbólica e socialmente (FOUCAULT, 2001) por meio de nossos seis sentidos – visão,
audição, tato, paladar, olfato e consciência.
Daí, o conceito de senestesia (ROCHA DE OLIVEIRA, 2008), propositalmente
grafado assim, justapondo sin (prefixo grego que indica reunião ou ação conjunta),
cen(o) que indica algo em comum ou que vive em comunidade, e cines(i), “ação de
mover, movimento”, bem como os sentidos canônicos de sinestesia como a sensação
em certa parte do corpo produzida pelo estímulo em outra parte; cenestesia, sensação
que a pessoa experimenta de sua existência; e cinestesia, sentido pelo qual se percebem
os movimentos musculares, o peso e a posição dos membros. Em outras palavras sobre
a mesma palavra: isso é a ação gerada e sustentada por determinados sentimentos, a
qual, por sua vez, é desencadeada por um “estímulo” percebido por algum de nossos
sentidos, construindo significados a partir disso.
Além disso, esse conceito serve para mostrar que nossas referências ou verdades são
discursivamente estabelecidas (FOUCAULT, 1995, 1996; e VEYNE, 1984), daí a não
utilidade de crermos que o que vemos está lá fora, ou seja, numa realidade preexistente,
ou numa referencialidade extra-humana, ausente de interpretação.
Assim sendo, nossa interação social, bem como os “textos” que permeiam nossa
realidade, são construídos numa complexa relação senestésica que não mais se restringe
à sobreposição das linguagens verbal, visual e/ou sonora, como os primeiros estudos
sobre multimodalidade (KRESS e VAN LEEUWEN, 1996; KRESS, 2003) e
hipermodalidade (LEMKE, 2002) apontavam.
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Nesse processo de construção de sentido, é de extrema importância perceber de onde


falamos, com quem falamos, em quais contextos, estabelecendo pontes que aproximem,
sobretudo, sentidos distintos ou não tão claros a interlocutores que ocupam espaços
sociais diferentes. A esse processo MENEZES DE SOUZA (2008, comunicação
pessoal) dá o nome de “ver se vendo” – a percepção de que usamos diversos regimes de
verdade para ancorar ou não nossa realidade. Essa percepção nos leva a sentir quão
momentâneos ou contextuais são (noss)os sentidos. Além disso, nos faz perceber que
sustentar lutas simbólicas para garantir determinada situação ou realidade seria a mesma
coisa que tentar segurar a água em nossas mãos.
O Anexo 2 “ilustra” a complexa rede de significados que podemos construir por meio
de nossos sentidos – o que é o chão para determinados observadores passa a ser o teto
para outros a partir de outras perspectivas. Assim como, parte superior e inferior são
assim denominadas a partir de determinados lugares – ou seja, nada preexiste à
complexa relação de sentidos que se estabelece no ato da interação.

Conclusão – Reflexos refletidos


É muito comum, em nosso cotidiano, ao se pronunciar a palavra tecnologia, logo
pensarmos em supercomputadores com grande capacidade de processamento e
armazenamento de dados ou ainda em gadgets eletrônicos, geralmente para espionagem,
como vemos na maioria dos filmes hollywoodianos (007, Minority Report,
Exterminador do Futuro, Duro de Matar, dentre outros do gênero) como microcâmeras
instaladas em canetas ou óculos, escutas telefônicas, radares, microchips subcutâneos.
Ou seja, somos acostumados a relacionar tecnologia a uma máquina “inteligente” que
nos propicie algum tipo de bem-estar, comodidade, ou que abrevie nosso esforço físico.
Além disso, costumamos tomar essa tecnologia como um índice ou “medidor” de
progresso social e avanço cultural, bem como um instrumento de auxílio ou extensão
das capacidades humanas com um valor em si, como se intrinsecamente tivesse o valor
que possui em determinada prática social e pudesse ser usada indiscriminadamente,
independente dos contextos sócio-históricos, dos intérpretes em questão e de suas
práticas sociais de letramento. Ou seja, o senso comum, por exemplo, vê no computador
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uma forma de ajuda e avanço humano, daí a crença de que ele pode trazer tais
“benefícios” a práticas sociais que não o têm.
Outra visão disseminada pelo senso comum em nossas práticas sociais é a de que
essas máquinas, ao se tornarem cada vez mais inteligentes, possam ter vida, chegando a
“pensar ou tomar decisão” por nós – de alguma maneira, essa crença está presente na
programação da web 3.0, estruturada em redes semânticas que norteiam a buscam de
uma informação pelas relações de significados já estabelecidos para determinado
assunto. O mecanismo mais disseminado atualmente é o tag como temos nos sites dos
principais jornais diários de São Paulo e no site del.icio.us, um bookmark, por meio do
qual podemos organizar nossos sites favoritos estabelecendo relações de sentido entre
eles.
Contrário a esse senso comum de valorizar a tecnologia como um valor em si
mesma, acreditamos que essa tecnologia, por ser criada dentro de determinadas
condições socioculturais e de acordo com as regras estabelecidas pelas práticas de
letramento que a reproduz e utiliza, carrega traços de seu momento e contexto de
produção, ao mesmo tempo em que sofre a influência de usuários localizados em outras
práticas de letramento com outras regras e usos, distintos daqueles de seu momento de
produção.
Assim sendo, essa tecnologia não serve para tudo e para todos, ou seja, tem contexto
restrito de atuação e prazo de validade. E, à medida que ela se transforma, percebemos
como os regimes de verdade (VEYNE, 1984), sejam os que fundam as bases
epistemológicas ou ontológicas da sociedade que a re-cria, se transformam, ou
depurando ainda mais as premissas fundamentais ou ontológicas (como é o caso do uso
exacerbado de câmeras de vídeo em nossa cidade com o propósito de vigiar e punir) ou
sinalizando uma mudança ontológica.
Curiosamente, essa característica ou condição sociocultural não se restringe às
máquinas, ou à tecnologia digital. Além disso, nos esquecemos de que cada cultura tem
suas respectivas e distintas tecnologias, que não se restringem a aparelhos eletrônicos ou
digitais.
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Nesse sentido, refletir sobre os reflexos que constituem nossa realidade nos faz
perceber onde as premissas fundamentais que a sustenta são construídas e suspender sua
legitimidade intrínseca, sempre lembrando que têm espaços e prazos de validade. Isso
nos torna observadores mais críticos, menos ingênuos, mais propensos a mudanças que
nos libertem das jaulas da ilusão de uma realidade preexistente e unicamente concreta e
material.
Daí, nossa liberdade em escolher onde colocar nosso “coração” e nos
responsabilizar pela rede de significação que estabelecemos para justificar ou ancorar
nossas interpretações.

Bibliografia

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução por Raquel Ramalhete. 14. ed.
Petrópolis: Vozes, 1996.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. SP: Martins Fontes, 1995.
FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: MOTTA, Manoel Barros da (org.). Michel
Foucault: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Tradução por Inês A.
Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, pp. 411-422. (Coleção
Ditos & Escritos III)
GOMBRICH, Ernst. Verdade e Estereótipo. In: ________. Arte e Ilusão. São Paulo:
Martins Fontes, 1986. p. 54-79.
LEMKE, Jay L. Travels in hypermodality. In: Jewitt, Carey et al. (ed.) Visual
Communication. London: Sage Publications, vol. 1, number 3, Oct. 2002, pp. 299-325.
MANOVICH, Lev. The poetics of augmented space, In: JEWITT, C., TRIGGS, T.
(ed.), Visual Communication – special issue: Screens and the social landscape, volume
5, number 2, june 2006, pp.219-240.
MATURANA, Humberto e Verden-Zöller, Gerda. Amar e Brincar: Fundamentos
Esquecidos do Humano. Tradução por Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo:
Palas Athena, 2004.
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___________. Cognição, Ciência e Vida Cotidiana. Organização e tradução Cristina


Magro e Victor Paredes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
___________. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Tradução por José
Fernando Campos Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
MENEZES DE SOUZA, L.M.T. Beyond “here´s a culture, here´s a literacy”: vision in
Amerindian literacies, In PRINSLOO, M.; BAYNHAM, M. (ed.), Literacies, global
and local, 2008, vii, 213p.
ROCHA DE OLIVEIRA, Glauce. Ver para Crer: A Imagem como Construção.
Mestrado. FFLCH/USP, 2002, 131f. Disponível em www.ead.unicamp.br/e-lang e em
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-02012006-105801/
___________. Sobre o Azul do mar: Virtualidades Reais e Realidades Virtuais.
Doutorado. FFLCH/USP, 2008, 241f. Disponível em
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-30072008-115653/
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à
cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
ULMER, Gregory L. Applied Grammatology: Post(e)-Pedagogy from Jacques Derrida
to Joseph Beuys. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1985.
VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação
constituinte. São Paulo: Brasiliense, 1984.

Anexo 1
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Anexo 2
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IMAGEM E IDENTIDADE: AS MULHERES INDÍGENAS DE “BUGRAS”

Grazielli Alves de Lima (PG/ UFGD)

Introdução

A infância nos proporciona uma série de conhecimentos que levamos por toda uma
vida. É nessa fase que fazemos descobertas, que desvendamos sonhos e que criamos
mitos. Histórias que não sabemos até onde são verdadeiras e a que ponto fazem parte da
imaginação daqueles que nos contam. Assim, na escola pintamos desenhos conforme as
datas comemorativas do ano: no natal, o bom velhinho é pintado de vermelho, com
barba branca e rosto rosado; na páscoa é a vez do coelhinho branco, com cenoura na
boca e ovos coloridos ao seu redor; no dia do índio, a figura que nos revelam é a do
homem de cara-pintada, com folhinhas presas na cintura, cocar na cabeça, arco e flecha
na mão. Mas até que ponto essa figura indígena ainda existe, é real? Será essa a sua
verdadeira identidade?
Mato Grosso do Sul é uma região privilegiada, pois em seu território há aldeias quase
urbanas, praticamente dentro da cidade. Os sujeitos co-habitantes das aldeias e da
cidade constituem o índio sul-matogrossense, que, em alguns casos, estuda, trabalha nos
moldes do homem branco, mas que sustenta os resquícios de sua cultura. Mesmo assim,
a figura representativa do índio é a mesma: crianças em todas as escolas do estado ainda
desenham os índios que viviam isolados no país, antes da chegada dos portugueses, e
essas imagens são decorrentes dessa época, onde uma verdadeira guerra instaurou-se
pelo poder, pela terra, pela vida.
Segundo dados do RCENEI (2005) quando os portugueses chegaram ao Brasil à
população indígena era estimada de 6 a 10 milhões de índios. Atualmente esse
contingente não chega a 300.000. Com a destruição em massa dessa população uma
série de perdas ocorreu nesses séculos todos. As línguas indígenas que somavam cerca
de 1.300 línguas nativas e que hoje chega a aproximadamente a 180 línguas foi apenas
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uma das grandes perdas que essa população sofreu. Como a língua, a identidade desses
povos foi rechaçada, uma vez que estes se viram forçados a abdicar de muitos de seus
costumes em prol do homem branco. O que se conservou da época de Cabral aos
tempos atuais foi apenas a imagem dos índios que eles encontraram aqui; a
conseqüência é identidade indígena fragmentada.
Não são raros os exemplos da figura indígena em nossa literatura, especialmente da
mulher indígena. Em Iracema, por exemplo, essa mulher nos aparece como uma figura
idealizada, com traços de um bom selvagem. Em Bugras, poema da obra Fonte
Luminosa, da escritora sul-mato-grossense Raquel Naveira, essa beleza é equiparada a
elos naturais e críticos, mesclados com imagens coloridas que produzem um retrato
diante de nossos olhos. Com base nesses aspectos, o presente artigo propõe-se analisar a
imagem que emana do poema Bugras bem como a identidade da mulher indígena
conforme o poema suscita.

1. Imagem e identidade: pressupostos teóricos.

Do texto emanam imagens... Pensar num texto verbal que revela um caminho
imagético implica uma série de postulações. Ao falar desse aspecto específico do texto
não abordamos um fato recente. No século XX, Pound, um dos grandes expoentes na
defesa das aproximações da poesia com a imagem visual, já postulava este conceito,
denominado fanopéia. Seguindo essa linha, vários teóricos vêm defendendo a
possibilidade da fusão do imagético com o verbal.
Além da teoria de fanopéia, postulada por Pound, existe a abordagem semiótica do
texto, que contempla os níveis de significação de um determinado objeto literário.
Valdevino Oliveira (1999) em seu livro Poesia e Pintura: um diálogo em três
dimensões se baseia nesses estudos, traçando um paralelo entre seus teóricos,
postuladores da ciência, tais como Saussure, Greimas, Heljmeslev, Pierce, entre outros.
A linha semiótica de Pierce, segundo Oliveira, é a única ajuda a perceber a conversão da
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poesia para a esfera visual e convive com formas de um e outro código. Sendo assim,
essa é a linha abordada por Oliveira.
Por vezes, essa imagem que o texto revela perpassa por um outro conceito. De que
forma ela foi construída? O que revela essa imagem? Quem é aquele/aquilo que se
mostra ao leitor diante de um texto verbal? Qual a sua identidade?
Rita Limberti (2009), em Discurso indígena: aculturação e polifonia, traz as
considerações semânticas sobre os termos identidade, identificação, identificar e
identificável, mostrando dessa formas os contrastes semânticos dos termos.

Ao mesmo tempo em que idêntico significa “perfeitamente igual”,


identidade é sinônimo de “2. conjunto de caracteres próprios e
exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo,
defeitos físicos, impressões digitais, etc ou 5. Relação de igualdade
válida para todos os valores das variáveis envolvidas”. (LIMBERTI,
2009, p. 40).

A multiplicidade de significações leva novamente ao questionamento. O que é


identidade? Ela nasce com o indivíduo? Ela é construída? Stuart Hall (2003) liga a
identidade de indivíduo com a cultura que este abarca. Segundo ele, muitas vezes
presume-se que essa identidade nasce com o indivíduo. Mas, ao supor que o caminho
perpassa por constantes mutações, acredita-se então que as identidades são construídas.
Portanto, o indivíduo possui um mosaico de identidades que o caracteriza: mulher, mãe,
empregada, esposa, etc., só para exemplificar.
Pensar em um ser poeticamente descrito; um ser emblemático da cultura brasileira
requer, no mínimo, reflexão sobre suas condições enquanto ser. Impossível falar de
imagem estereotipada do indígena, mais especificamente, da mulher indígena sem
pensar em sua identidade construída por uma infinidade de caminhos, obstáculos e
fronteiras.
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Segundo Limberti, o contato com a cultura branca impõe uma quebra de valores por
parte de uma determinada comunidade indígena. Antes, todos seguiam rigorosamente
suas crenças; agora os mesmo, questionam a sua tribo.

O sujeito erigido coletivamente perde seu referencial, deixa de ser


definido por ele para ser definido pelo outro. Antes, o outro para ele
seu espelho, com quem ele se identificava (conjuntos de
similaridades), hoje, o outro “é outro”, seu oposto contraditório (...).
(LIMBERTI, 2009, p.42.).

Uma vez que há uma ruptura na identidade do indígena, ele foca o outro, para tentar
encontrar-se. Entretanto, essa escolha nem sempre é acertada. O outro reconstitui uma
nova identidade. Mas nem sempre, esse novo eu é visto de forma imagem/ semelhança
por aquele que corrompeu com a sua cultura, com suas crenças, seus hábitos. E então a
imagem deste indígena passa a ser estereotipada, seja na vida cotidiana; seja na
linguagem literária.
Ao compor o poema Bugras, Raquel Naveira traz em seus versos uma multiplicidade
de significantes que proporcionam ao leitor o questionamento e a reflexão. Partindo do
pressuposto de construção de identidade e do imagético do texto poético, analisaremos o
poema Bugras de Fonte Luminosa, colhendo as imagens de mulheres indígenas,
presentes no texto.

2. As mulheres indígenas de Bugras

BUGRAS

As índias bugras
Caminham pela 14
Com aquele ar selvagem
De potrancas,
Os cabelos lisos e longos como crinas,
O remexer musculoso das ancas.
Carregam na cabeça
Latas de avencas
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Colhidas nas barrancas,


Cajus de castanhas duras
Como bicos de pássaros,
Desprende-se delas
Um perfume de frutas maduras,
De seixos rolados,
De plumagens vermelhas,
Como se a primavera
Fizesse ninho dentro delas.

O poema acima pertence ao livro Fonte Luminosa de Raquel Naveira, uma produtora
assídua da arte sul-mato-grossense. Naveira tem um total de 24 livros editados,
inúmeros poemas publicados, participações em diversas escalas do setor cultural, entre
outros.
Bugras no chama atenção desde o primeiro momento. Nessa primeira leitura, a
interpretação superficial do poema, nos leva a certa indignação. Questionaríamos se o
poema não seria uma ofensa às mulheres indígenas, pois a índia é metamorfoseada
animal/mulher. Entretanto, essa primeira interpretação contemplativa muda à medida
que nos deixamos envolver pelos aspectos imagéticos do poema. Nessa perspectiva,
lemos o poema, de forma que imagens da natureza saltam aos nossos olhos. A poesia de
Raquel é repleta de metáforas, que ora nos parece um tanto agressivas com a imagem da
mulher indígena (O remexer musculoso das ancas), ora nos emociona com tamanha
poesia, como o exemplo dos dois últimos versos: Como se a primavera / Fizesse ninho
dentro delas. Isso torna o poema extremamente imagético. Nesses versos a imagem
salta aos nossos olhos, seja no colorido das palavras, ou seja, em seu cunho descritivo.
Os versos que descrevem o perfume das bugras retratam bem esse colorido, essas
imagens recorrentes da natureza: Um perfume de frutas maduras, / De seixos rolados, /
De plumagens vermelhas.
Naveira inicia seus versos descrevendo o caminhar das índias pelas ruas de Campo
Grande, MS. Bugras, termo que se refere à índia, tem todo um significado em nossa
mente. A etimologia do termo, que vem do francês, lembra os indivíduos que estão à
margem da sociedade. As mulheres de pele vermelha, que já começam a colorir o
poema desde o título são chamadas de bugras por grande parte da sociedade, o que é
considerado, por vezes, uma forma de ofensa. As bugras seriam as mulheres feias da
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aldeia. Na sociedade branca, as mulheres marginalizadas, pedintes de pão; pedintes de


identidades que os mesmo brancos usurparam delas. Dessa forma, Naveira vem chamar
a atenção desde o título de seu poema, para a forma que mulher indígena é retratada por
nossa sociedade.
As índias bugras/Caminham pela 14/Com aquele ar selvagem. Esse ar selvagem nos
remete a natureza, a condição indígena nos seus tempos mais remotos. Aqui, a
identidade da mulher indígena é concebida levando em conta apenas os aspectos de sua
cultura sem nenhuma intervenção da cultura branca. O ar selvagem poderia sugerir que
mesmo civilizadas, caminhando pelas ruas de Campo Grande, as bugras ainda carregam
consigo todos os caracteres próprios daquelas índias que ainda vivem nas aldeias mais
longínquas do cotidiano urbano, tentando sustentar dessa forma, aspectos de sua cultura.
O termo selvagem logo faz a mente começar a reproduzir a índia que a maioria das
gravuras, dos textos, dos filmes, no traz: a índia que cobre o corpo com folhas, que
espera do marido o alimento da caça e da pesca. Selvagem remete a uma série de
expectativas, tão logo observamos que os versos de Naveira implicam um variado
número de interpretações. O ar selvagem, também pode ser visto como característica
dessa mulher, que não espera pelo outro. De mulher que como uma outra qualquer, luta,
trabalha, estuda, cria seus filhos e ainda carrega consigo, todo um estereotipo de uma
mulher não civilizada, por vezes comparada a um animal. Os versos seguintes levam a
esse entendimento à medida que o ar selvagem é aliado ao verso de potrancas. O ar
selvagem de potranca observado no caminhar das mulheres indígenas, por essa vertente,
é descrito diretamente como algo rudimentar. Esses versos renovam a imagem do
indígena que a maioria das pessoas tem em mente: o índio de cara-pintada, seminu, com
arco e flecha na mão.
O poema de Naveira é repleto de metáforas, que num apanhado geral, delineiam a
imagem dessas índias sul-mato-grossenses. A metáfora, segundo Aristóteles, “é o
transporte a uma coisa, de um nome que designa uma outra, transporte ou de gênero à
espécie, ou da espécie ao gênero ou da espécie a espécie ou segundo a relação de
analogia” (apud Oliveira, 1999, p.120). Nesse sentido, entendemos metáfora como
mudança de sentido, substituição de um termo pelo outro, com intuito de promover
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semelhanças. Esses versos, portanto, não podem ser lidos literalmente. Os termos foram
empregados para que a leitura significasse além do que está ao alcance de nossos olhos,
provocasse certo estranhamento. Isso se acentua a medida que percorremos o poema.
Naveira descreve o físico das bugras: Os cabelos lisos e longos como crinas, O remexer
musculoso das ancas. Os cabelos longos, escuros e lisos e o remexer do quadril são
comparados ao de uma potranca. Uma comparação direta da mulher com o animal. A
índia de Naveira, mesmo urbanizada, não deixa de carregar consigo, o estereotipo de
mulher não-civilizada. Nesses versos a beleza das índias é equiparada a uma beleza
natural, porém rústica. A imagem que se forma em nossa mente se distorce nesse
momento da poesia, confundindo-nos entre a mulher e o animal.
As mulheres indígenas no poema de Raquel Naveira são descritas não só por suas
belezas naturais. O suor de seu trabalho, a força que as leva a enfrentar os problemas do
cotidiano dão aos versos seguintes, o início do grande clímax de todos os versos. Agora,
as bugras carregam na cabeça latas de avencas e cajus de castanhas duras. Avencas são
plantas ornamentais que junto com os cajus enfeitam a cabeça das indígenas. Se de um
lado, as plantas e as frutas somam a imagem da beleza natural que desde o primeiro
verso se instaura no poema, por outro poderíamos pensar, metaforicamente, no
equilíbrio que essas mulheres mantêm entre ser mulher e representar uma etnia, que é
tão discriminada e tão desvalorizada. Os índios são discriminados e menosprezados
desde o inicio da colonização. Sua cultura, suas crenças vem sofrendo desde então,
profundas rupturas, por questões políticas, ideológicas, etc.
Os aspectos da natureza, que compõe todo o poema, evidenciam-se neste trecho. O ar
selvagem, o remexer sinuoso do quadril cedem lugar ao perfume de frutas maduras,
uma fragrância própria da pele das bugras, simples e agradável. Doce, como frutas que
estão prontas para serem colhidas. Perfume este que provem de seixos rolados, de
plumagens vermelhas, que combina com a vermelhidão da pele indígena. Este trecho
explode em cores, todos decorrentes da beleza das coisas simples. Toda uma estação se
desenha aos nossos olhos, seja pelas plantas, pelo fruto maduro, pelas multicores
presentes. A imagem da mulher indígena ora se mostra como ela sempre foi
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estigmatizada pelo tempo, pelas ações do homem branco, ora se faz pretender mulher
contemporânea, que é mulher de garra, independente de sua raça.
A primavera que se revela nos versos agora se faz presente dentro do ventre. “Como
se primavera/ Fizesse ninho dentro dela”. O ninho, semente da vida, que se formou por
meio de uma estação capaz de fazer renascer flores, capaz de amadurecer frutas, brota
também no útero das índias. Essa sem dúvida é a grande metáfora de todo o poema. O
ninho promove a continuidade, a reprodução do ser. O ninho é a similitude entre todas
as raças, independente de cor ou sexo. A primavera que ocorre dentro da mulher
amadurece um fruto para a vida.
O poema Bugras permite uma profunda reflexão do ser. A índia, com toda sua
particularidade, é pintada em cada verso, que ora indigna, ora encanta tamanho cunho
poético de toda a poesia. A primeira imagem da indígena levantada aqui não é diferente
da encontrada nos livros didáticos, ou diferente da imagem que a maioria dos docentes
leva aos seus alunos pequenos: o índio com penacho na cabeça, o índio que só fala
guarani, o índio rústico, que às vezes mais parece animal do que gente. A nossa região
tem o privilégio de conviver de perto, em co-irmandade com aldeias que não estão tão
longe da cidade. Convivemos com indígenas em nosso ambiente de trabalho, nas
escolas, em nosso lazer, e mesmo assim, a imagem que permanece em nossa mente é a
estereotipada por toda uma sociedade que fecha os olhos para sua realidade.

Conclusão

O texto poético-imagético desperta inúmeras sensações no leitor. As imagens que


saltam aos olhos por meio da leitura permitem várias hipóteses de interpretação. Ao
retratar em sua poética a figura da mulher indígena da capital Campo Grande, MS
Raquel Naveira traz um todo colorido e imagens que ora nos lembram verdadeiras
fotografias, ora nos revelam figuras metamorfoseadas: mulher-animal. Essa imagem da
mulher indígena, poetizada por Naveira, leva ao questionamento: Quem é essa mulher?
O que ela revela?
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O presente artigo teve por objetivo refletir sobre a imagem e a identidade da mulher
indígena, num contexto contemporâneo na poesia de Raquel Naveira. Percebemos que a
poesia caracteriza a indígena que percorre nossa imaginação desde nossa infância. Por
vezes comparada a elementos da natureza, as bugras da 14, também podem ser vistas
com uma mulher qualquer, que luta, trabalha, que se mantêm bela, que gera filhos.
Gerar filhos, algo tão natural, talvez seja a maior beleza de toda a poesia e de toda a
vida dessas mulheres, indígenas ou não. A primavera que acontece em seus ninhos, não
poderia ser descrita de outra forma. O poema nos oferece múltiplas interpretações. Cabe
ao leitor a forma de conceber a leitura. Ou olhamos para o poema equiparando a mulher
indígena a um animal, a selvageria ou a enxergamos sim, por sua beleza de aspectos
naturais, mas principalmente como uma mulher que luta diariamente para vencer as
barreiras do preconceito que as estigmatiza.

Referências

BRASIL. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Ministério da


Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília,
MEC / SECAD, 2005.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La


Guardia Resende; Ana Carolina Escosteguy; Cláudia Álvares; Francisco Rüdiger;
Sayonara Amaral. Belo Horizonte: editora UFMG, 2003.

LIMBERTI, Rita de Cássia Pacheco. Discurso indígena: aculturação e polifonia.


Dourados: Editora UFGD, 2009.

NAVEIRA, Raquel. Fonte luminosa. São Paulo: Massao Ohno, 1990.

OLIVEIRA, Valdevino Soares de. Poesia e pintura: um diálogo em três dimensões. São
Paulo: Editora UNESP, 1999.

POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 9ª ed.
São Paulo: Cultrix, 1990.
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DE LINDA A ROSALINA: AS FACES DO PODER EM A ESTÓRIA DE LÉLIO E


LINA

Hélen Cristina Pereira Rocha (PG-UNIMONTES)


Telma Borges da Silva (UNIMONTES)

Introdução

Bem como grande parte das narrativas de João Guimarães Rosa, A estória de Lélio e
Lina (2001), novela pertencente a um dos volumes de Corpo de Baile, situa-se
espacialmente no sertão, região que é registrada, pelo autor, como um mundo em
transformação. Tal transformação nos instiga a pesquisar as personagens femininas que,
se não desencadeiam, fazem parte dessas transformações de maneira bastante ativa.
Neste trabalho esboçaremos de que forma mulheres como Sinhá Linda e Rosalina,
personagens de A estória de Lélio e Lina, contribuem para o deslocamento do
paradigma da tradição paternalista no Sertão dos Gerais.
A ambientação ficcional da novela nos remete a um momento de transição entre a
República Velha e a era Vargas, visto que há ali a presença de alguns dos principais
ícones desse período da história do Brasil, marcado pela atuação dos coronéis. O
fenômeno social reconhecido como coronelismo estabelecia a aplicação de domínio
econômico e social em regiões do interior do Brasil; típico da República velha, esse
fenômeno instituiu também o que se denominou “homem cordial. Para Sérgio Buarque
de Holanda (2002), essa cordialidade resulta de um poder simbólico, instituído pelo
patriarca e se baseia em relações de afetividade e de parentesco.
Com efeito, nota-se que no espaço em que está situada a narrativa vigora o sistema
patriarcal ou paternalista, que submetia camadas inferiormente localizadas, na
hierarquia estabelecida, à “proteção” dos grandes proprietários de terra – o que, por sua
vez, acarretava a submissão dessas camadas ao seu poder. Isto fica evidente ao se
observar as relações amigáveis instituídas no âmbito da Fazenda do Pinhém, onde o
coronel faz de si um núcleo detentor de poder, através das relações afetivas.
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Esse tempo, porém, parece estar comprometido ou em declínio em A estória de Lélio


e Lina, pois o coronel, Seo Senclér, representante da instituição patriarcal, vê-se
obrigado a vender a fazenda para homens que figuram em um mundo regido pelo
capital, conforme sugerem seus nomes, Seo Amafra e Dobrandino que, de acordo com
Luiz Roncari, “ressoam a chegada da mafra, a gente ordinária, e do dobrão, a moeda
antiga.” (RONCARI, 2004, p. 155). Com isso, explicita-se no relato a sobreposição do
poder do dinheiro e da produção de mercadorias, em detrimento do poder da
afetividade, típica da estrutura coronelista.
Ressaltadas essas características da novela que nos propusemos a analisar, percebe-se
em A estória de Lélio e Lina a representação literária de uma conjuntura de estruturas
que se confrontam e que se dividem entre a tradição e a emergente modernidade. Por
meio da criação ficcional de Guimarães Rosa somos levados a pensar alguns aspectos
do trânsito do Brasil pelas veredas da modernização. Esses índices de modernização, ao
serem notados no espaço descrito, impulsionam um movimento de ruptura com a
tradição vigente; as mulheres passam a ser as grandes protagonistas, pois de alguma
forma conseguem se impor, cada uma à sua maneira, naquele cenário.
Jiní, uma mulata de beleza exótica, se vale do corpo, recurso exclusivamente
feminino, enquanto arma de sedução e meio de conseguir o que deseja. As “Tias”,
Conceição e Tomázia, desconstroem um espaço, outrora estriado 1, invertendo a ordem
patriarcal e falocêntrica das relações sertanejas, uma vez que se tornam detentoras de
um poder simbólico, materializado por seus corpos. Elas atuam como as grandes
iniciadoras da sexualidade masculina no Pinhém, construindo para si, especularmente ao
coronel, um núcleo detentor de poder/influência. Dona Rute utiliza recursos como a
feitiçaria  que está ligada ao arquétipo da mulher conhecedora de vários mistérios 
para manter seu casamento e o respeito que os demais agregados da fazenda têm para
com ela. Mariinha utiliza o poder do discurso para se fazer percebida por seu Senclér,
por quem é apaixonada. A moça, dona de um nome que denota fragilidade, “Mariinha”,
cresce e se impõe como alguém que possui autonomia à medida que, “levantada sobre

1
“O estriado é o que entrecruza fixos e variáveis, ordena e faz sucederem-se formas distintas, organiza as
linhas melódicas horizontais e os planos harmônicos verticais” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 184).
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todas suas forças” (ROSA, 2001, p. 307), fustiga uma ordem ao encarar a todos e
exclamar o seu amor.
Todas essas manifestações de alteridade ancoram-se naquilo que Pierre Bourdieu
chama de poder simbólico, segundo o qual

[...] é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde
ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder
simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser
exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe
estão sujeitos ou mesmo que o exercem. (BOURDIEU, 2005, p. 07-
08).

Essa assertiva chama a atenção, tendo em vista que as consequências de um sistema


social que se estrutura em relações de subserviência acabam por calar muitas vozes que,
ao se rebelarem, podem provocar o “devir” 2. Esse tipo de estrutura social é que
possibilita a deflagração do poder simbólico. Considerando-se que o homem é a norma,
a mulher será, inevitavelmente, aquela que a corromperá. É o que tentaremos evidenciar
por meio deste estudo, já que analisaremos duas personagens basilares na composição
estética e social da novela.

I- Sedução e rejeição - uma abordagem do amor cortês em A estória de Lélio e Lina

A priori, a tônica tradicionalista parece estar eximiamente elaborada em A estória de


Lélio e Lina, já que é logo após sua chegada à fazenda do Pinhém que o vaqueiro Lélio
do Higino relata uma experiência amorosa vivenciada por ele enquanto estivera em
Paracatú. O vaqueiro se recorda de uma moça, Sinhá Linda, por quem se apaixonara à
primeira vista. A mocinha viajava com os pais pelo sertão dos Gerais, era de família
abastada, “família cidadôa” (ROSA, 2001, p. 184), o vaqueiro sente de imediato uma

2
O Devir caracteriza-se como algo que está em processo, algo passível de provocar mudanças, assim:
“As minorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O
que define a maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme. Ao passo que uma minoria não tem
modelo, é um devir, um processo” (DELEUZE, 214, 1992).
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espécie de “paixão platônica” pela moça, uma vez que não era correspondido e nem
mesmo notado por Sinhá Linda. A moça, legítima representante de uma classe
hegemônica, reafirma os códigos de uma tradição por meio do seu modo de se vestir e
agir, inclusive ao não cogitar a possibilidade de se envolver com alguém de classe social
inferior à sua.

O amor que Lélio tem por Sinhá Linda nos remete ao amor cortês que, em sua
essência, é uma experiência que impulsiona o amante a tentar fazer de si próprio
merecedor de sua senhora, seja colocando-se de forma subordinada a ela:

[...] à tarde por um acaso ele pôde ver seus pezinhos, que ela lavava, à
beira de água corrente. Demorou agudo os olhos, no susto de um
roubado momento, e era como se os tivesse beijado: nunca antes
soubera que pudesse haver uns pezinhos assim, bonitos, alvos,
rosados, aquela visão jamais esqueceria. (ROSA, 2001, p. 188-189),

seja demonstrando-se corajoso e realizando quaisquer feitos que ela deseje: “Se ela
olhasse mandasse, ele tinha asas, gostava de ir longe, até a distância do mundo, por ela
estrepolir fazer o que fosse, guerrear, não voltar [...].” (ROSA, 2001, p. 185-186).
Esse amor, que contradiz desejo erótico e realização espiritual, distancia-se do amor
platônico, visto que mesmo sendo permeado pela submissão e idealização do amante ao
ser amado, possui, subliminarmente, o mote do desejo, da atração sexual que, conforme
Mary Del Priore, explicita-se pela presença da insígnia dos pés, já que

do corpo inteiramente coberto da mulher o que sobrava eram as


extremidades. Mãos e pés eram os que mais atraíam olhares e atenções
masculinas. Grandes romances do século XIX, como A pata da gazela
ou A mão e a luva, revelam, em metáforas, o caráter erótico dessas
partes do corpo.
[...]
Tirar gentilmente o chinelo ou descalçar a mule era o início de um
ritual no qual o sedutor podia ter uma vista do longo percurso a
conquistar. (DEL PRIORE, 2006, p. 158-159).

Além da marcante presença dos pés, faz notar-se, argutamente elencada por
Guimarães Rosa, a metáfora do Buriti, que é amplamente representativa na obra do
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autor mineiro, uma vez que em Noites do Sertão (2001), especificamente na novela
Buriti, uma imensa palmeira alegoriza o falo, insurgindo como metáfora da sexualidade
ali latente. Entretanto, é em outra acepção simbólica do buriti que se nota um sutil
movimento entreposto na novela em apreço:

No Porto-do-Cavalo, ele pensou o projeto, mal pôde dormir. Acordou


antes do dia, montou e galopou meia-légua, até onde estavam dizendo
que se conseguia achar o dôce de buriti, bom especial. Comprou,
mesmo com a tigela grande – não queriam vender aquela tigela,
bonita, pintada com avoejos verdes e roxas flores. Trouxe, deu a ela,
receoso, labasco, sem nenhuma palavra podida. Ela riu, provou, e
sacudiu a cabecinha: disse aos rapazes que era um doce grosseiro,
ruim. Nem olhara para Lélio. Mas ele ouviu, desriu em cara cuja, e
coube em si pelo resto do dia. (ROSA, 2001, p. 187).

Apesar de mostrar-se filiada à tradição patriarcal e hierárquica vigente, Sinhá Linda


surpreende à medida que rejeita o doce de buriti, ícone que insurge na literatura rosiana
como forte alegoria de soberania e poder, tendo em vista que é associado a Nhô
Liodoro, coronel de Buriti Bom, admirado por suas características morais, éticas e
também sensuais. A recusa de Linda ao doce metaforiza sua rejeição aos moldes
patriarcais que vigoravam no sertão descrito na narrativa. Ao rejeitar essa subserviência
que o vaqueiro tenta lhe impingir, Linda recusa o amor (carnal e espiritual) e inverte a
ordem, canônica naquele espaço, e passa a ser ela a dominadora e Lélio o dominado. A
essa cena segue aquela em que Lélio a observa lavar seus “pezinhos”, o que remete
ainda à subordinação a que o rapaz se sujeita em decorrência da postura da moça.
Ao demonstrar-se avessa ao “doce de buriti”, a mocinha de Paracatú parece
desencadear em toda a trama uma série de outras atitudes que fazem ecoar na narrativa a
voz de personagens que representam a hierarquia menos privilegiada do sertão, as
mulheres. Comumente relatadas como coadjuvantes, passam a protagonizar a ação em A
estória de Lélio e Lina. O sentido ritual pretendido pelo ato de comer o doce de buriti
aqui não se efetiva, à medida que também não desencadeia um sentimento de
apaziguamento, ou seja, não consegue submeter a personagem em questão ao poder
imposto e, assim, parece ressoar no corpo da narrativa (inclusive enquanto lembrança, já
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que Sinhá Linda é, a todo instante, retomada por Lélio, através do mecanismo da
memória) como um primeiro movimento de desvencilhamento das amarras da tradição
patriarcal.

II- Sabedoria e poder – o lugar discursivo da razão em A estória de lélio e Lina

[...] seu coração se resumiu: vestida de claro, ali perto, de costas


para ele uma moça se curvava, por pegar alguma coisa no chão.
Uma mocinha.
[...]
Mas: era uma velhinha! Uma velha... uma senhora. (ROSA,
2001, p. 232-233).

Assim é introduzida na narrativa uma das personagens mais singulares do universo


ficcional rosiano. Dona Rosalina aparece na narrativa de forma tal, que estabelecer uma
relação especular entre ela e a mocinha de Paracatú parece inevitável, a princípio, já que
a jovialidade de Lina se sobrepõe à sua real condição. Esse espelhamento inicial se
apresenta como tal simplesmente por ser o primeiro. Entretanto, dá-se às avessas, já que
enquanto uma é capaz de produzir certa sensação de desconforto, que mistura nostalgia
e sentimento de incompletude, refletida na recusa ao doce de buriti, a outra consegue
impor a Lélio um momento de calmaria e passaa, inclusive, ser chamada de santa pelo
moço.
É importante, porém, frisarmos que é um espelho e, como tal, faz transbordar na
narrativa uma duplicidade, mas uma duplicidade que congrega relações análogas
mantidas ao longo de toda a narrativa, porque é comum à novela em apreço a
coexistência e consequente empoderamento de uma minoria que ganha relevo na
narrativa e que tem em suas ações, diversas, uma finalidade específica: o deslocamento
de um paradigma que aparece implicitamente em meio à elaboração estético-literária da
novela.
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Dona Rosalina é personagem reconhecidamente sábia e detentora de palavras que


possuem força suficiente para retirar o homem de um estado irreflexivo e levá-lo à
razão:
- “festa meu mocinho, é o contrário de saudade...” –
dona Rosalina falou. – “para se aguentar a vida no atual, a gente
carece das duas... mas agora estamos precisando mesmo é de festa:
que é um arremedo de antecipo...” e ela não temperava sua influência,
refletindo que tudo ia ser raro de bom. (ROSA, 2001, p. 260).

É essa razão o mote que nos leva a projetar Rosalina como aquela que, através de sua
sabedoria, consegue impor e ser autônoma em um contexto em que ainda vigorava,
embora em decadência, um sistema tradicionalista desencadeador da subordinação
feminina. Cabe, então, nos remetermos a Theodor Adorno e a Max Horkheimer, para
definirmos razão, já que para os autores a razão constitui-se duplamente; ao mesmo
tempo em que é esclarecimento, a razão pode tornar-se também instrumento de
dominação. Por esse motivo, Adorno e Horkheimer apontam que

a essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a


dominação. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se
à natureza ou submeter a natureza ao eu. Forçado pela dominação, o
trabalho humano tendeu a se afastar do mito, voltando a cair sob seu
influxo, levado pela mesma dominação. (ADORNO e
HORKHEIMER, 1985, p. 43).

Assim, Lina, enquanto detentora da razão, posiciona o seu lugar de fala no sertão
ficcionalizado por Guimarães Rosa na medida em que não se deixa levar pela vontade
do filho, representante de uma classe hegemônica, fazendo com que o discurso, o da
mãe, representante da minoria, não se deixasse apagar:

E o caso foi que quando ele e dona Rosalina estavam conversando,


que chegou o filho dela, o Alípio, de má cara. Às ásperas que chegou,
de sobrecenho e sem palavras, queria mesmo desfeitar. Nem, o
saudou, nem o olhou, foi impondo que queria tratar com a mãe. Lélio
quis ir embora, mas dona Rosalina o impediu, com um gesto. Ela
chamou o filho para dentro, para a sala-de-jantar. “... Axé! A entre
os cornos do bode...” Lélio o ouviu, que praguejava. Mas dona
Rosalina o repreendia, ele rompeu e se foi tinindo seu peso, praças de
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ira, barbaz. Um se afligia, repentino com o grave e não entendível


dessas coisas.
“Ele está jeriza...”  dona Rosalina disse, depois. Onde o Alípio
queria, exigia que ela cortasse aquela amizade fora de normas, que o
Lélio não viesse mais em casa dela. A bufos mandava aquilo! “Mas
você vem, meu Mocinho. Não vamos somar com o que ele acha de
imperiar... Ele, no que é, é regrista. E é um que só sabe de sua mesma
pessoa...” Lélio não engarupava medo. Aquele homem ringia e
ameaçava, daqui veio a enviar recado; para ele o mundo não era de
todos. (ROSA, 2001, p. 305-306).

A razão aqui torna-se verdade, e se retornarmos à antiguidade Greco-latina


entenderemos que, ali, quem possuía um lugar de fala estabelecido (poetas, rei,
adivinho) era o detentor da verdade e consequentemente da razão, raiz desencadeadora
de poder e dominação que, no caso de A estória de Lélio e Lina, se torna instrumento de
afirmação, uma vez que Lina destitui o lugar de poder do filho ao negligenciar suas
ordens e ameaças e fugir da Fazenda do Pinhém com Lélio.
A narrativa culmina com a partida de Lélio e Lina do Pinhém e, uma das últimas
frases ditas por Rosalina faz-nos pressupor o caminho que ambos trilhariam dali para
frente. Lina Diz o seguinte: “Buriti e boi! Isto sempre vamos ter no caminho...” (ROSA,
2001, p. 311). Ao utilizar o ícone do boi que, de acordo com Herder Lexicon (1998),
postula a ideia de bondade e de força pacífica, e do buriti que, na obra rosiana, remete à
sensualidade e ao poder, o autor de Cordisburgo amarra de maneira singular corpo e
desfecho da novela, ao nos fazer retomar a presença marcante de personagens femininas
que encenaram a desestruturação, por meio de um poder simbólico; de um poder
coronelista até então enraizado.

Conclusão

O uso autônomo do corpo, utilizando-o inclusive enquanto instrumento disciplinar, e


o direito à palavra são recursos utilizados, das mais diversas formas, como meio de
obtenção da alteridade feminina no sertão relato em questão. Todos parecem derivados
de duas personagens que transitam por toda a narrativa: Linda e Lina que, ao
estabelecerem um lugar discursivo, acabam por deslocar o paradigma basilar à
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constituição social do início do século XX, o patriarcalismo, segundo o qual o homem é


a maior autoridade, sendo as pessoas do sexo oposto subordinadas, prestando-lhe
obediência. Esse deslocamento é perceptível em A estória de Lélio e Lina, por exemplo,
na relação existente entre Lélio e Sinhá Linda e entre Lélio e Dona Rosalina, já que ali
não são elas que têm sua existência em função dele, mas ele em função delas, tendo em
vista que é ele quem de alguma forma está subordinado a elas, de maneira bastante clara
em relação a Linda, a quem dedica uma espécie de amor cortês, ou de maneira um
pouco mais aguda no trato com Lina, por quem demonstra obediência e admiração.
Esse modo de falar do masculino e do feminino, em Guimarães Rosa, provoca
instigantes investigações na medida em que as questões do gênero tomam conta da cena
na novela. Nela nota-se que uma das personagens que dá nome à trama, Rosalina (Lina),
aparece como detentora de um poder simbólico, explicitado através de sua sabedoria,
revestida pelo pressuposto da razão que fomenta o lugar de fala da personagem,
atribuindo-lhe status de sujeito cujo lugar discursivo desestabiliza a verdade
estabelecida pelo poder patriarcal.

Referências

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do


esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. ALMEIDA, Guido Antônio de. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BORGES, Telma; RAMOS, Rogério Macedo. O fim do homem cordial no arraial do
Ão. Caminhos da História, Montes Claros, vol. 13, n.2, p. 117-126. 2008.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 8. ed. Trad. TOMAZ, Fernando. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. PELBART, Peter Pál. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1992.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Trad.
PELBART, Peter Pál. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995-1997.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio Editora, 1936.
LEXICON, Herder. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Cultrix, 1998.
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PRIORE, Mary Del. “Pés e mãos: objetos de desejo”. In: História de amor no Brasil. 2.
ed. São Paulo: Contexto, 2006.p. 158-161.
RONCARI, Luiz. “Irmão Lélio, Irmã Lina: incesto e milagre na "Ilha" do Pinhém”. In:
O Brasil de Rosa: Mito e história no universo Rosiano: O amor e o poder. São Paulo:
UNESP, 2004. p. 151-198.
ROSA, João Guimarães. “A estória de Lélio e Lina”. In: No Urubuquaquá, no Pinhém:
(corpo de baile). 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 175-311.
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A ARTE EM DUAS LINGUAGENS: O CARTEIRO E O POETA

Helena Bonito Couto Pereira (UPM)

O papel da literatura como disciplina curricular no Ensino Médio e as relações do


ensino de literatura com a formação do leitor, do estudioso e, principalmente, do ser
humano, constituem o escopo deste trabalho.
Em uma breve retrospectiva histórica, pode-se observar que a inserção da área de
Letras no Brasil e o papel decisivo de escritores e críticos para a consolidação de nossas
atividades intelectuais nos dois últimos séculos não foram suficientes para estancar um
processo de declínio que hoje se encontra em pleno andamento. Trata-se da perda de
espaço e de prestígio das Letras, decorrente da rapidez dos avanços tecnológicos,
associada à facilidade com que os recursos audiovisuais e eletrônicos impregnam todas
as esferas de atuação no contexto contemporâneo. Reconhecer a ocorrência de tais fatos
não significa tomá-los como insuperáveis; ao contrário, a compreensão do papel das
Letras na contemporaneidade é requisito fundamental para uma reflexão em busca de
melhores condições para a pesquisa e o ensino na área.
Cumpre desfazer algumas impressões que, embora relativamente generalizadas, não
correspondem à verdade. A princípio, deve-se atribuir a devida dimensão à pretensa
incompatibilidade entre leitura e tecnologia, ou a uma “concorrência excludente” entre
leitura de textos escritos, em formato tradicional ou digital, e de imagens. O emprego de
recursos tecnológicos e a intensa exposição às imagens não fazem recuar em um
milímetro a necessidade de domínio dos diversos registros e mesmo da norma culta nas
diferentes línguas nacionais, para a adequada integração ao meio socioeconômico e
cultural em cada país, em paralelo à “língua franca” em que se transformou o inglês
hoje. Além disso, o consumo de textos ficcionais em minisséries, novelas ou filmes, tão
acessíveis a diferentes faixas etárias e camadas socioeconômicas, não exclui a
possibilidade de leitura e fruição das narrativas literárias.
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Este trabalho reflete, portanto, sobre o ensino de língua e de literatura, com foco em
suas possíveis interfaces em outros suportes e outras mídias. As interações entre
literatura e cinema ocupam um lugar especial, pela quantidade de obras hoje existentes
em ambos os suportes, livro e filme (DVD). Componentes narrativos como espaço,
personagem, tempo ou focalização podem ser analisados e interpretados não como
substituíveis entre si, mas como recursos que estão presentes em obras estéticas ou
artísticas passíveis de fruição e portadoras de múltiplos sentidos.
Em primeiro lugar, a discussão ou o estudo de textos literários, cinematográficos e
teledramatúrgicos têm em comum a narratividade e a ficcionalidade. Outras
peculiaridades do texto escrito, como as descrições ou digressões, podem oferecer
maiores desafios quando se pensa em sua transposição para códigos audiovisuais, o que
não diminui o potencial de interesse de tais interações midiáticas. No caso específico do
cinema e da literatura de ficção, cada produto deve ser compreendido em sua condição
de artefato artístico ou cultural, devendo ser interpretado à luz de outros textos da
mesma ou de outra natureza. A interatividade dialógica é o caminho para que os estudos
de língua e literatura superem a falsa impressão de obsolescência e se reafirmem em
patamar compatível com sua verdadeira importância.
Quanto à literatura na sala de aula, nem sempre seus textos são acolhidos com gosto
ou atenção e, mais grave, raramente são explorados pelo viés artístico, já que muitos
professores limitam-se a explorar aspectos temáticos ou a retomar esquemas
reproduzidos ad infinitum, com vistas a exames seletivos para a universidade. Em
paralelo à superficialidade da formação de grande parte dos professores de Ensino
Médio em todo o território nacional, agrava-se o problema com a precariedade das
situações de leitura a que são expostos, em sua maioria, os alunos. Mesmo em
ambientes socioculturais mais adequados, pouco se estimula a criação de um hábito que
exige tempo e reflexão, como é o caso da leitura em geral e da literária em particular.
Difunde-se velozmente, por razões óbvias, a leitura apressada nas telas dos
computadores, inundadas de estímulos, vocacionadas para a movimentação aleatória e
refratárias à continuidade. Para complicar, a literatura é apresentada habitualmente, no
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Ensino Médio, por meio de um enfoque histórico, sem o menor vínculo com as
manifestações contemporâneas e, sobretudo, sem a necessária ênfase em sua natureza
artística e criativa. Por outro lado, a narrativa ficcional está presente em outros suportes,
dentre os quais o cinema, onde a generalizada falta de percepção quanto aos
componentes estéticos do texto narrativo também ocorre, mesmo em filmes
intencionalmente distantes do mero lazer. Dessa forma, considerando o parentesco da
narrativa ficcional cinematográfica com a literária, sendo ambas produtos culturais
facilmente intercambiáveis entre si e também adaptáveis a outras mídias, este trabalho
apresenta um brevíssimo estudo de uma obra literária e de sua conversão em filme, a
partir de O carteiro e o poeta, do escritor chileno Antonio Skármeta. Trata-se da
ficcionalização de episódios da vida de Pablo Neruda, em um período de ostracismo
político em seu país, no livro, e de exílio em uma região litorânea da Itália, no filme.
Surge uma inesperada camaradagem entre o grande poeta Neruda e Mário, o jovem
carteiro, que é um dos poucos indivíduos alfabetizados no vilarejo peninsular. O jovem
passa a perceber o mundo também em sua dimensão artística e, a partir de fatos
corriqueiros, passa a reconhecer e, posteriormente, a criar poesia.
A presença da linguagem poética na vida cotidiana é o aspecto que sobressai, em um
livro e em um filme de indiscutível qualidade artística, o que torna O carteiro e o poeta
um excelente material para a fruição estética do texto e para a compreensão da
dimensão artística em obras literárias e cinematográficas.

1. Narrativa ficcional

Nem todas as narrativas são ficcionais: basta ser espectador de tevê ou leitor de
jornal para estabelecer a distinção entre ficcional e não-ficcional. Apresentadores de
telejornais, locutores esportivos e outros comunicadores narram diariamente, e
jornalistas escrevem sobre episódios corriqueiros ou excepcionais, em situações de rua,
competições esportivas, problemas de trânsito ou reuniões ministeriais, com maior ou
menor compromisso com a exatidão dos fatos. Embora haja consenso, hoje, quanto à
impossibilidade do discurso neutro, ainda assim tais narrativas propõem-se a informar,
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ao grande público, versões fiéis na medida do possível, sob pena de serem


desacreditadas por seus ouvintes, leitores ou espectadores.
Já a narrativa ficcional, por sua vez, permanece à margem desse compromisso. Em
primeiro lugar, pode inspirar-se em pessoas e episódios reais para recriá-los, sob
determinado ponto de vista, e a criação pode afastar-se consideravelmente das origens.
Tanto a linguagem literária como a fílmica podem abranger narrativas ficcionais, que
se organizam por meio de sequências narrativas e, ao mesmo tempo, reorganizam a
realidade ao seu redor.
Na literatura, recria-se a realidade por meio de palavras, ao passo que, no cinema,
são as imagens, os sons, os ruídos e a ilusão de movimento que recriam o mundo. Tais
recriações referem-se aos aspectos estéticos ou artísticos, que fazem interface com os
aspectos ideológicos, concretizando-se, estes últimos, em forma de assuntos ou temas.
A palavra é essencial para o romance, assim como a imagem para o cinema, porque é
por meio delas que o leitor e o espectador alcançam a fruição da obra artística. Para
determinadas correntes críticas, mais importante é a elaboração formal (o texto escrito
ou o conjunto imagem-som-movimento), enquanto que, para outras, o contexto sócio-
cultural, a mensagem e a problematização da realidade devem ser considerados em
primeiro plano.
Embora predominem por larga margem os enredos ficcionais, é inegável a força
representada pelos documentários, no cinema, ou pelas biografias, na literatura, e ainda
muito se poderia escrever sobre as relações entre ficção e não ficção – basta pensar, por
exemplo, nos limites ficcionais das narrativas históricas, como grandes catástrofes ou
filmes de guerra. Por outro lado, a recriação em filmes e livros, seja qual for sua carga
ficcional, pode construir ou destruir a imagem de personagens históricas e também das
contemporâneas, pode recontar sob ângulos inusitados episódios históricos ou atuais, e
assim por diante.

2. Linguagem cinematográfica
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Araújo (1995, p. 30) refere-se ao cinema como “arte de iludir o olhar”, pois nele não
há movimento, mas apenas imagens fixas que, quando projetadas, proporcionam a
ilusão do movimento. À medida que essa ilusão, graças a diversos mecanismos, foi-se
aperfeiçoando, surgiu a linguagem cinematográfica. Boa parte dessa criação coletiva
começou por acaso, mas algumas inovações resultaram da genialidade de alguns
profissionais do cinema, que aprenderam, aos poucos, a movimentar a câmera, não só
por aproximação ou distanciamento em relação aos atores, como também pelo recorte
do espaço, pela variação do ritmo, pela construção de ações simultâneas, pela seleção de
posições ou ângulos.
Bernardet (2000, p. 34-35) reconhece no processo de elaboração dois procedimentos
sucessivos: “filmar é uma atividade de análise. Depois, na composição do filme, as
imagens filmadas são colocadas umas após as outras. Essa reunião de imagens, a
montagem, é então uma atividade de síntese”. Realizando-se por meio de operações
como seleção e montagem, a linguagem cinematográfica conta histórias, mantendo a
impressão de realidade.
Do ponto de vista da especificidade da linguagem cinematográfica, Stam (2004, p.
27) afirma que a narrativa deve ser considerada a partir de diversas abordagens: a
tecnológica, referente aos dispositivos necessários a sua produção; a linguística, que
inclui os materiais de expressão, ou seja, a camada significante do cinema; a histórica,
que leva em conta suas origens; a institucional, que concerne aos processos de
produção, e mais uma que se refere aos processos de recepção.
Como se observou inicialmente, estabeleceu-se um vínculo indissolúvel entre
literatura e cinema por meio da narratividade, ou seja, pela capacidade de contar
histórias, independentemente de compromisso com a verdade, exatidão, fundamentação
rigorosa.
Outro aspecto comum a ambas as artes reside no fato de se terem construído, como
linguagens, e ao mesmo tempo terem sido alvo da construção do referencial teórico-
crítico a seu respeito. Embora haja enorme diferença temporal, já que o cinema tem
pouco mais de um século de existência, a narratividade foi um dos fatores que
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permitiram que a teoria do cinema também se tornasse “herdeira da reflexão sobre os


gêneros literários” (STAM, 2004, p. 27). Mais ainda, as aproximações entre linguagem
literária e linguagem cinematográfica possibilitaram a expansão dessa herança a
conceitos críticos como o de texto, realçado pela força com que o dialogismo e a
intertextualidade impregnam atualmente os estudos em Letras.
Compreendido não como uma imitação da realidade, nem apenas como uma
sequência de palavras ou imagens, mas como um artefato ou um construto, o texto
(fílmico inclusive) torna-se um espaço multidimensional em que são reelaborados os
discursos socialmente disponíveis. Assim, ainda segundo Stam,
O dialogismo intertextual se refere às possibilidades infinitas abertas
pelo conjunto das práticas discursivas de uma cultura, a matriz inteira
de enunciados comunicativos no interior da qual se localiza o texto
artístico, e que alcançam o texto não apenas por meio de influências
identificáveis, mas também por um sutil processo de disseminação. O
cinema, nesse sentido, herda (e transforma) séculos de tradição
artística. (...)
A intertextualidade é um conceito teórico valioso, na medida em que
relaciona o texto individual a outros sistemas de representação, e não
a um amorfo “contexto” (2004, p. 224-226).

Para analisar um filme, deve-se levar em conta que, ao contrário do que ocorre com o
texto literário, que se expressa e que pode ser comentado em um único suporte - a
linguagem verbal -, o texto fílmico não comporta o comentário crítico em forma de
filme, ou seja, só pode ser comentado em outro suporte, em que seja possível efetuar os
procedimentos analíticos e a síntese interpretativa.
A própria natureza do filme pode direcionar as leituras. Assim, a análise de um filme
com ênfase nos componentes artísticos terá mais êxito se focalizar os recursos
expressivos, a materialidade do filme e, de maneira análoga, a análise de um filme de
intensas marcas ideológicas levará o teórico a atentar para o conteúdo. Taddei (1981, p.
77) faz a distinção entre leitura temática e leitura artística: “com a primeira
conseguimos colher a idéia central quando ela é de caráter ideológico ; com a segunda,
quando a idéia central é de caráter poético”. Neste último caso, insere-se o filme O
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carteiro e o poeta (Il postino, 1995), inspirado no livro que o romancista chileno
Antonio Skármeta havia lançado como Ardiente paciencia em 1985.

3. O carteiro e o poeta

Protagonista de O carteiro e o poeta, Mario Jiménez, no romance, converte-se em


Mario Ruoppolo no filme, e a diferença de sobrenomes já dá a pista de outras
modificações, como a que se refere a espaço: no livro tudo acontece no Chile, ao passo
que o filme recria a história na Itália do pós-guerra, em um período de exílio de Neruda.
Outras pequenas alterações, como a situação de família de Beatriz, a jovem por quem
Mario se apaixona, apresentada no livro como filha e no filme como sobrinha da
proprietária de uma estalagem, não chegam a comprometer a harmonia do filme.
Mário é um jovem pobre, cuja vida monótona e sem perspectivas profissionais muda
radicalmente quando o poeta Pablo Neruda passa a residir no vilarejo. A chegada do
poeta desperta enorme curiosidade e, por ser um dentre os poucos indivíduos
alfabetizados, Mário consegue o emprego de carteiro – quase um carteiro particular,
pois a única residência a necessitar o serviço é a do poeta. A rotina da entrega de cartas
logo dá origem a franca camaradagem entre ambos, decorrente de indagações do
carteiro.
A recriação do enredo em um vilarejo de pescadores pobres parece intensificar seu
potencial estético, permitindo a exploração da beleza de ambientes rústicos, em
harmonia com uma natureza deslumbrante. O tempo transcorre lentamente, em meio a
magníficas paisagens – a praia, a escarpa, o mar encapelado – com uma reconstituição
bastante exata do modesto cenário urbano e das personagens simples do vilarejo.
O interesse pela poesia leva Mário a consultar Neruda, expressando suas dúvidas.
Um dia, após entregar as cartas, Mário permanece ao lado do portão, relutando em
afastar-se, até que o poeta o interpela e pergunta:
- Que há?
- Dom Pablo?...
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- Você fica aí parado como um poste.


Mario retorceu o pescoço e procurou os olhos do poeta, indo de
baixo para cima:
- Cravado como uma lança?
- Não, quieto como uma torre de xadrez.
- Mais tranquilo que um gato de porcelana?
Neruda soltou o trinco do portão e acariciou-se o queixo:
- Mario Jiménez, afora as Odes elementares, tenho livros muito
melhores. É indigno que você fique me submetendo a todo tipo de
comparações e metáforas.
- Como é, dom Pablo?!
- Metáforas, homem!
- Que são essas coisas?
O poeta colocou a mão sobre o ombro do rapaz.
- Para esclarecer mais ou menos de maneira imprecisa, são modos
de dizer uma coisa comparando-a com outra. (2006, p. 19-20)

A recriação no filme é quase literal, com os atores encenando as ações indicadas


pelo narrador:
N – Por que você está aí duro como um poste?
M – Cravado como um arpão?
N – Imóvel como uma torre no tabuleiro de xadrez?
M – Mais quieto que um gato de porcelana?
N – Escrevi outros livros além de Odes elementares. Não é justo me
cobrir de sorrisos e de metáforas.
M – Metáforas? O que são?
N – Quando se fala de uma coisa comparando-a com outra...

Assim inicia-se a jornada de Mario rumo ao conhecimento da linguagem


poética. O enredo desencadeia-se a partir do envolvimento de Mario com Beatriz, em
um jogo de sedução que tem no poeta um cúmplice, ainda que involuntário. A grande
novidade no mundo de Mario, que é a metáfora, retorna à cena quando Beatriz é
surpreendida por sua mãe, com ares sonhadores, e submetida a um verdadeiro
interrogatório:
- (...) Que disse ele?
Beatriz teve a palavra na ponta da língua, mas adubou-a com sua
cálida saliva por alguns segundos:
- Metáforas.
A mãe se aferrou ao enfeite do catre rústico de bronze, apertando-o
(...).
- Nunca escutei de sua boca uma palavra tão comprida. Que
“metáforas” lhe disse ele?
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- Me disse... me disse que o meu sorriso se estende como uma


borboleta no meu rosto.
- Que mais? (...)
- Que mais me disse?
- Não, filhinha, o que mais lhe fez?! Porque esse seu carteiro, além
de boca, há de ter mãos.
- Não me tocou em um só momento. Disse que estava feliz por
estar junto a uma jovem pura como a orla de um branco oceano.
(2006, p. 46-47)

O filme mostra um diálogo mais áspero, pois a tia foi composta como uma
personagem rústica, camponesa bastante perspicaz e resoluta, proprietária de uma
estalagem, porém analfabeta. Conversam tia e sobrinha:
R – Que foi que disse o seu poeta?
B – Metáforas.
R – Metáforas? Nunca ouvi você falar assim antes. Que metáforas ele
fez para você?
B – Fez? Ele disse!
R – Que disse ele?
B – Que meu sorriso se espalha como uma borboleta...

A transposição para o filme possibilita a dinamização da cena, pois as frases


seguintes são apresentadas nas palavras de Mario, em flashback:
Mário - Seu sorriso é como uma rosa, uma lança descoberta, é o bater
das águas... Seu riso é uma onda prateada repentina...

Retorna-se ao espaço em que as duas mulheres conversam:


R – E o que você fez?
B – Fiquei quieta.
R – E ele?
B – O que mais ele disse?
R – Não, o que ele fez. Porque seu carteiro, além de uma boca, tem
duas mãos...
B – Ele nunca me tocou. Ele disse estar feliz ao lado de uma jovem
pura.

O filme expõe, em sucessivas cenas e diálogos, os diferentes empregos da linguagem


poética, inserida na vida cotidiana, mesmo quando as pessoas que a empregam não têm
a menor consciência disso. Posto inicialmente que um dos objetivos deste texto é
ampliar as possibilidades de estudo de uma obra literária e fílmica, sua interpretação
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pode estender-se para além dos limites habituais, propiciando o desenvolvimento de um


conteúdo da área de Letras, no caso, a metáfora.

4. A metáfora

Além de apontarem o conceito de metáfora segundo a Retórica tradicional – uma


substituição de palavra por analogia, ou uma comparação abreviada –, Charaudeau e
Maingueneau (2004) referem-se às sistematizações efetuadas por teóricos
contemporâneos. Assim, para os semanticistas modernos, a metáfora apresenta um
caráter discursivo, em que se opõe à metonímia, e ainda um processo trópico, no qual se
estabelece uma interseção analógica entre dois domínios. Já do ponto de vista das
abordagens pragmáticas, a metáfora pode ser, ainda segundo Charaudeau e
Maingueneau, um “fenômeno linguageiro ordinário, aparecendo apenas nos cálculos
interpretativos do receptor, no momento em que ele reconstroi mentalmente a intenção
comunicativa” (2004, p. 329). Reportam, ainda, os dois semióticos, a concepção de
Jakobson, que alçou a metáfora a um dos dois grandes polos da linguagem, recobrindo
as relações de similaridade, em oposição à metonímia que, por sua vez, abrange as
relações de contiguidade.
Três funções discursivas são atribuídas rotineiramente à metáfora: a função estética,
que é portadora de “força imagética” e que concerne, sobretudo, aos enunciados
literários; a função cognitiva, que permite explicar um domínio novo ou pouco
conhecido a partir de um domínio conhecido; e a função persuasiva que, por fornecer
uma “analogia condensada”, torna-se recorrente em discursos que pretendem impor
opiniões, como os discursos morais, jurídicos, políticos ou midiáticos (id.,p. 330) .A
breve exploração do conceito de metáfora com base no livro e no filme O carteiro e o
poeta neste trabalho constitui um exercício ilustrativo das possibilidades de extensão de
linguagens artísticas a outras finalidades, além da pura fruição estética. Como se
observou na retomada do enredo, o carteiro sente-se atraído para o mundo da poesia e as
circunstâncias fortuitas acabam por levá-lo a descobrir-se poeta. Por outro lado, são
frequentes as metáforas referentes a Beatriz, por exemplo, portadora de beleza,
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sensualidade e de uma expressão de singela autenticidade que a tornam uma figura


singular. Assim, as metáforas referentes a ela são puramente estéticas, contendo enorme
carga sugestiva.
Assim, o estudo da interseção entre diferentes linguagens pode operar-se
produtivamente no espaço pedagógico, como se demonstrou brevemente neste estudo.
O carteiro e o poeta, obra literária contemporânea, deu origem a um filme de grande
sucesso, e ambos constituíram aqui o ponto de ancoragem para o estudo da metáfora e
da percepção ou da aquisição da linguagem poética. Exemplifica-se desse modo,
concretamente, a viabilidade da mobilização de duas áreas artísticas como a literatura e
o cinema para fins pedagógicos.

Referências

ARAÚJO, Inácio. Cinema – o mundo em movimento. São Paulo: Ática, 1995.


BERNARDET, Jean Claude. O que é cinema. Col. “Primeiros Passos”. São Paulo:
Brasiliense, 2000.
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do
discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
SKÁRMETA, Antonio. O carteiro e o poeta. Rio de Janeiro: Record, 2006.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. São Paulo: Papirus, 2003.
TADDEI, Nazareno. Leitura estrutural do filme. São Paulo: Loyola, 1981.
VANOYE, Francis & GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica.
Campinas: Papirus, 1994.

Referências fílmicas

O carteiro e o poeta (Il postino). França-Itália, Produção: Miramax Films, Cecchi Gori
Group Tiger Cinematografica,1995. 108 minutos. Direção: Michael Radford. Roteiro:
Pablo Neruda (poemas), Anna Pavignano, Michael Radford, Furio Scarpelli, Giacomo
Scarpelli, Massimo Troisi.
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IMAGENS DE FONSECA: LISBOA E LEONOR

Heloiza Brambatti Granjeiro (PG-UNESP/Assis-FAPESP)

Este trabalho visa a enfocar um dos subtemas da obra de Antônio da Fonseca Soares, a
beleza feminina, uma vez que, a mulher é a temática central da obra deste escritor
português vivido no final do século XVII. Entre os diversos subtemas tratados nos 104
romances analisados e catalogados no manuscrito 2998 da Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, a beleza é predominantemente trabalhada por Fonseca em
modos descritivo e narrativo. As mulheres retratadas por ele se dividem em dois grupos:
comuns (aquelas que possuem atividades cotidianas como costureira, vendedora, florista
etc.) e mitológicas (aquelas consideradas deusas, como Vênus, Afrodite etc.).
Por se tratar de aspecto explicitamente visual, o ut pictura poesis, as descrições, as
comparações e a divinização (mitológica) da mulher estão contidos nas obras do poeta
português, como procedimentos de prescrição no âmbito da poesia seiscentista. Para este
trabalho, abordaremos o poema 36, que trata da descrição da beleza feminina em
comparação com lugares de Lisboa. O poema é narrativo e, através das referidas
descrições, cria-se uma imagem relacionando mulher / Lisboa.
Utilizaremos como suporte de prescrição do modelo as obras de Horácio e
Aristóteles e alguns especialistas na poesia seiscentista, nossos contemporâneos, tais
como: Hansen e Muhana, que tratam da produção da agudeza, ou seja, do modo como
se devia escrever e lançar mão dos artifícios necessários para a obtenção dos resultados
almejados. Essas prescrições, atendendo à necessidade da argúcia e do engenho, visam à
recepção da obra pelo público, conhecedor das técnicas da retórica e da poética
consagradas como modelos praticados na produção do engenho 1.

1
Tringali (1993) trata das questões do engenho (dom natural) e da arte (estudo e prática da arte) a partir
da perspectiva Horaciana. Para ele, somente o poeta tem vocação. Na época do poeta latino, a crítica
valorizava a arte como produto do engenho. Assim, a arte decorre da perfeição e deve agradar e instruir
pela beleza e pela utilidade.
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Para este autor, a poética do engenho considera o talento natural como fator único da
produção artística, enquanto a poética da arte defende a idéia de que a produção artística
depende exclusivamente do estudo e do exercício. Em Horácio, a segunda assertiva é a
que se privilegia. A realização de uma obra deve ser bela e perfeita em todos os níveis,
o belo se caracteriza pela unidade na multiplicidade, pela harmonia do todo e pelas
adequações entre as partes.
A escolha é tida como a ação principal de fazer arte, já que o poeta precisa escolher o
material, a colocação, a linguagem; é preciso ter bom gosto e ter como objetivo a
perpetuação da obra. Horácio considera que o poeta deve a obediência às regras, já que
não existe arte em criação livre. O artista imita direta ou indiretamente a vida humana,
ou seja, o comportamento realista do agir dos homens. Tudo é possível no plano
alegórico.
A falta de coerência, a brevidade demasiada, o excesso de polidez que apaga a
inspiração e o surrealismo exagerado são vistos como defeitos nas obras. Também
ressalta os problemas de elocução. Para o autor, tanto a poética do engenho quanto a
poética da arte, respectivamente o talento/inspiração e teoria/prática, privilegiam a arte
tornando-a útil e bela.
A poética do engenho trata de escrever poesia como uma vocação ou talento natural.
Os escritores desta linha eram considerados gênios e por isso deviam se submeter às
regras e também a outros modelos. Já a poética da arte pressupunha muito estudo, ou
seja, um longo aprendizado baseado em uma sólida formação e uma incansável prática.
A busca constante pela perfeição e a prescrição utilizados como regras para uma obra
de arte idealizada, as faculdades artísticas, como a razão, o sentimento e a fantasia,
devem fornecer às artes emoções tocantes e autênticas. A clareza deve sobrepor à
obscuridade, o conteúdo se concretiza pela expressão, o estilo deve se harmonizar com
o contexto, a crítica, o sublime e o público são modos de demonstrar a agudeza e
engenho para o leitor, e, por fim, a função da arte, para Horácio, concilia agradar e
ensinar, sendo o prazer mais importante.
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Ressaltamos a necessidade de conhecer a leitura que Tringali faz de Horácio, pois,


em se tratando do conhecimento de vertentes diferentes é necessário que se possa,
proceder-se à escolha de um referencial teórico que constitua norte para o
desenvolvimento de outros trabalhos. Particularmente neste tópico – a presença da
poética de Horácio em Antônio da Fonseca – a preocupação primeira esteve a serviço de
demonstrar esta influência, ficando em segundo plano a verticalização dos pressupostos
teóricos defendidos por um ou outro estudioso do fenômeno, mesmo porque, a rigor, o
foco de Hansen é o século XVII (portanto diretamente ligado ao corpus que estudamos),
neste trabalho especificamente temos como foco principal Muhana, enquanto Tringali é
subsidiário, por tratar muito mais diretamente da Poética e se referir, igualmente, aos
clássicos, ficando, para nós, a pertinência da abordagem horaciana como principal
elemento de sua obra.
Para Hansen (1995), o prazer do ornamento torna-se central na poesia barroca, daí a
importância para a metáfora e outras figuras de linguagem que funcionam como ornato
dialético do procedimento estrutural da poesia deste século. Esta poesia também consta
dos critérios horaciano do ut pictura poesis, pois ao discorrer sobre o tema tratado cria
se imagens envolvendo as figuras centrais do poema: Leonor e Lisboa. Enfim, há
vários modos de produzir agudeza. Para o poeta deste tempo é necessário o domínio e
conhecimento desses recursos para obter a finalidade que almeja.
Em “Ut pictura poesis e verossimilhança na doutrina do conceito no século XVII”
(HANSEN, 1995), retrata a doutrina seiscentista do conceito, que reatualiza a
assimilação da lógica (como dialética) e arte (como retórica) que passa a ser definido
como “ornato dialético”, na qual a atividade artística passa a ser entendida como
técnica. Os seiscentistas do ornato dialético têm com referências o livro da Retórica de
Horácio, e ainda conceitua a metáfora de simples ornato para a “gran madre di tutte le
argutezze”, assim, pressupõe que os homens engenhosos são divinos.
A obra Poesia, e Pintura ou Pintura, e Poesia de Manuel Pires de Almeida é uma
formulação horaciana do ut pictura poesis comentada por Adma Muhana (2002). A
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teórica destaca a analogia que Almeida traça em relação à pintura e poesia, que “pintura
é poesia muda, poesia é pintura que fala” (MUHANA, 2002, p.12).
Na concepção de Alberti sobre pintura, encontram-se conceitos retórico-poéticos
latinos fundamentais, que possibilitam estipular a semelhança entre a poesia e a pintura,
pois exige um conhecimento da técnica por parte de quem a pratica. A retórica, a poesia
e pintura são artes que têm uma finalidade e ofício, desempenhadas por alguém que
conhece os preceitos. Segundo Alberti a retórica predomina sobre a poética “A
insistência nas virtudes elocutivas das chamadas figuras de clareza, metáfora e
evidência, “que pintam como um quadro”, nas preceptivas de Aristóteles, Cícero e
Quintiliano” (MUHANA, 2002 p.13), propicia a fraternidade entre pintura e letras.
A preceptiva acerca da arte da poesia ou da arte da pintura até o século XVIII é
aristotélica. Sendo assim, estabelece paralelos entre a duas artes. A poesia difere da
pintura pelo ritmo, linguagem e harmonia da primeira, e pela cores e figuras da segunda.
Ambas compreendem ações humanas e divinas, sendo que a primeira predomina em
relação à segunda, pela conveniência.
Para Muhana, Alberti divide a poesia em circunscrição (desenho), composição
(conjunto de superfícies) e recepção de luzes (cores); é na composição dos corpos que
reside toda fama e engenho do pintor. A invenção e a elocução são partes essenciais da
poesia, já na pintura são o rascunho e a cor. O fim é a parte mais importante, porque o
fim da poesia consiste na imitação, no verossímil e não na verdade. Sua perfeição está
em imitar. A fórmula horaciana ut pictura poesis tem a função de autorizar o poema e a
pintura como detentores de clareza, imagens, variedade de locução, cores vivas,
menosprezando o descuido.
Para a expressão da verdadeira poesia e pintura, é necessária a figuração da
linguagem e o colorido das carnes, respectivamente, para que possam afetar os leitores e
espectadores. A poesia é metáfora da pintura e vice versa. A boa poesia procede do
homem engenhoso ou furioso. Almeida (apud MUHANA, 2002, p. 41) privilegia o
engenho, mas não despreza a importância do furor; a poesia aparece como retrato do
universo. A excelência da poesia está em imitar a pintura. Enfim, quando Almeida se
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refere ao “pintor poeta”, quer dizer que a poesia e pintura se equiparam, sendo uma
metáfora da outra.
No século XVII, poesia e poeta são aqueles que pintam as ações humanas como “os
costumes”, “as palavras” e “os sucessos”, sendo estes respectivamente, os costumes ou
caracteres, que na Poética estão contrapostos em situação inferior às ações; as palavras
ou sentenças elemento que na Poética é nitidamente distinguido das ações e relacionado
com os caracteres, como aquilo que manifesta o pensamento; e por fim o sucesso ou as
ações propriamente ditas. Hoje se pode afirmar que as ações se referem a qualquer tipo.
A imitação tem a capacidade de causar prazer e conhecimento, sendo expressão por
intermédio da poesia um campo próprio de prazeres e saberes.
Na doutrina do engenho seiscentista como invenção retórica dialética do desenho fica
evidente que o discurso interior é um contexto ordenado de metáforas. Assim como a
pintura usa dos artifícios, a poesia deve calcular como proporção seus efeitos, tendo
como finalidade o belo eficaz.
Nas praticas em que a metáfora é central, A Arte Poética de Horácio é apropriada
como critério retórico ordenador do decoro na emulação de obras, paralelo entre a
pintura/poesia. O ut pictura poesis pondera o juízo no decoro interno e externo, já que é
uma doutrina genérica da verossimilhança, segundo a invenção, disposição e elocução.
O ut pictura poesis implica na distância exata, encontrada nas letras do século XVII,
empenhadas em produzir o fantástico. O quiasma ocorre nas letras ditas cultistas e
conceptistas, estilo que deve ser entendido como enigma ou alegoria fechada.
Enfim, no século XVII o ut pictura poesis em alguns gêneros tende a ser obscuro e
hermético, ou seja, é necessária uma análise profunda e vagarosa, pois pode haver
mudança anacrônica na leitura para os pós-modernos. Por fim, o modo de produzir
agudeza ou ornato dialético demonstra que o poeta deve dominar o engenho e todos os
seus artifícios para que a obra de arte possa ser contemplada e entendida pelo seu
público, previamente conhecedor do catálogo de realizações agudas e engenhosas.
Com base nos teóricos utilizados, principalmente em Muhana, notamos a descrição
do recurso ut pictura poesis e a importância que este tem nas poesias, em particular as
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do século XVII. Em nosso objeto de estudo averiguamos que Fonseca é um dos autores
deste período e que faz o uso deste recurso em romances. Para esta comunicação
selecionamos o romance 36, o qual o poeta faz a descrição da mulher e simultaneamente
da cidade, em cada lugar citado ele ressalta algo dela e inclui o lugar. Vejamos a
análise do romance 36:

Romançe 36
Estes Domingos de Mayo
foi Leanor a Bem fica
e que mal ficou sem ella
a Cidade aquelle dia
Foy passando por fazer
couto liue a cotouia
coutada naõ que quis dar
caça á toda couza viva.
Pos os pes em campo Lide,
e tanto campou de linda
que Lidauaõ as moquestas
em uer a Roza com uida
Chegou logo a Sette riso
A tempo que amanheçia
e de flores Requintadas
aparecião as quintas
Meteo na fonte do vale
Leonor a mão cristalina,
e dever Cristal tao puro
ficou a fonte corrida
Perguntarão lhe os galanes
como uos chamais menina,
bem podeis romper o nome
pois em uos a aurora he vinda
As contas Leua na maõ
Õ quanto melhor lhe siria
da llas boas dos que morrem
nas maos dessa tirania
Impropiamente fazeis
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as deuotas romarias
pois uindes buscar as graças
sendo as uossas infenitas.
Chegou Leanor á cidade
oh numca della sahira,
pois com o lume deseos olhos
abrazado o mundo fica Retira
Que Leanor aos amantes
faz guera viua
Todos os guardem,
porque mata no campo, e na cidade

O romance trata de uma mulher comum, Leonor, apresentada como uma bela mulher,
a qual, no decorrer do poema, começa a ser descrita em comparação à cidade de Lisboa.
O poema é narrativo, a partir das atitudes de Leonor em relação aos lugares por onde
passa. A princípio Leonor sai da cidade indo para a região de Benfica, nestes versos o
poeta utiliza o nome do lugar “Bem fica” para introduzir a antítese “a cidade fica mal
sem ela”: “foi Leanor a Bem fica, e que mal ficou sem Ella, a Cidade aquelle dia”.
Em seguida, faz referência a Campolide, lugar no qual Leonor fez muito sucesso com
sua beleza, relacionando o locus ao trabalho, a lida no campo, no verso “Pos os pes em
campo Lide, e tanto campou de linda, que Lidauaõ as moquestas, em uer a Roza com
uida”. As figuras da homofonia em “campou linda” e antítese, pela “lida no campo”, são
os principais efeitos sugeridos neste verso.
Segue, então, para Sete Rios, lugar no qual se mostrou envaidecida pela sua beleza
física. O encontro pode sugerir exatamente a aproximação com o topônimo, “sete rios”.
Neste ambiente, Leonor é cortejada por muitos homens pela sua beleza e pelo seu jeito
sedutor. Na sequência, Leonor cumpre o destino chegando à cidade, da qual nunca saiu.
Na estrofe final, o poeta faz menção do poder que causa a beleza de Leonor sobre os
homens: beleza que faz guerra viva no campo e na cidade. Assim feita a descrição,
observa-se ela não se desenvolve numa única direção: ela é visual, quanto à beleza de
Leonor, toponímica, quanto às lembranças da cidade, imagética, quanto ao poder
provocado pela descrição e finalmente comparativa, quando coloca esses três elementos
em condições de igualdade e de progressão, no processo de construção da personagem
que inspirou o poema.
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Referências
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padre Antônio da Fonseca. Assis, 2005
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Tradução Jaime Bruna. 7ª
ed. São Paulo, Cultrix, 2005
COSTA, M. C. A poética de Aristóteles: Mímese e verossimilhança. 1ªedição. São
Paulo, Ática, 2001
DURÃO, S. R. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. São Paulo,
Martins Fontes, 2001
HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Sec. VXII.
Campinas, Ed.Unicamp, 2004
HANSEN, J.A. et al. Para Segismundo Spina: Língua, Filologia, Literatura. São Paulo,
Edusp, 1995
HORÁCIO. Arte Poética. Tradução R. M. Rosada Fernandes. Lisboa, Inquérito, 1984
MUHANA, A. A Epopéia em Prosa Seiscentista. São Paulo: UNESP, 1997
SILVA, V. M. P. A. Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa. Coimbra:
Centro de Estudos Românicos, 1971.
TAVARES, H. U.C. Teoria Literária. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares S.A.,
1954
VERISSIMO, J. História da literatura brasileira. 3ª. ed. Rio de Janeiro, Livraria José
Olympio editora, 1954
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O FILME PUBLICITÁRIO E A RETÓRICA DO FANTÁSTICO

Hertz Wendel de Camargo (PG-UEL)

Introdução: publicidade audiovisual

Este artigo é fruto da pesquisa (tese) em andamento intitulada “O argumento no filme


publicitário”, do programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Londrina, sob orientação da professora Esther Gomes de
Oliveira. Em geral, propomos aqui uma introdução à análise do filme publicitário em
busca da compreensão de sua sintaxe e de como ele consegue ser atraente, persuasivo e
eficiente a partir da utilização do realismo de forma fantástica como retórica.
Os pesquisadores na área dos estudos da linguagem se encantam ou, pelo menos,
demonstram um certo fascínio pela publicidade. Em parte, essa atração acontece pelo
fato do anúncio publicitário em revista ou jornal ser, de maneira objetiva, concisa e
deliciosamente “canalha”, um misto de diversas textualidades, verbais e não-verbais.
Todo anúncio publicitário é concebido por equipes profissionais armadas com
conhecimentos das semioses que envolvem a publicidade que ajudam a torná-la
retórica, portanto, sedutora, bonita, persuasiva, convincente. Tratamos aqui da
publicidade audiovisual que é, na concepção de Koch (2006, p. 19-20), um texto
sincrético e discursivizado, ou seja, também é um “tipo de comunicação realizada
através de um sistema de signos”.
Esse gênero de publicidade concatena, hoje, uma série de signos linguísticos, tais
como a palavra, a imagem, o som e a computação gráfica, associados ao realismo de
pessoas, coisas e cenários em movimento, um verdadeiro amálgama identificado como
publicidade televisiva. Em sua breve e intensa existência – projeção de imagens-sons-
lugares inesquecíveis inserida no espaço-tempo televisual –, o filme publicitário é
planejado minuciosamente em todas as etapas de concepção visual e discursiva, tanto
que mais de 60% dos investimentos em publicidade no Brasil destinam-se à televisão
(Grupo de Mídia, 2009, p. 37). O filme publicitário educa a memória do espectador para
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o consumo, mas também dialoga com a memória cultural desse mesmo espectador,
contribuindo para a produção e recomposição dos sentidos da cultura.

1. Simulacros televisuais

Para compreendermos como o fantástico surge no filme publicitário, a serviço dos


interesses mercadológicos, temos que compreender o seu entorno: a televisão. E uma
pergunta nos surge: por que as pessoas vêem televisão?
O atual espaço-tempo urbano – a cidade pós-moderna – se define pelo espaço-tempo
da reprodução serializada e feérica de modelos, mensagens, signos, informações,
sujeitos e objetos, todos simulacros produzidos por uma linha de montagem que tem
como base o discurso tecnocientífico da indústria. Cremos que a melhor definição do
termo simulacro é apresentada por Sodré (1994):

[...] Solidário dessas técnicas industriais é o simulacro, entendido


como a produção artificial (mecânica, química, eletrônica) de uma
imagem, que não precisa referir-se a um modelo original nem gera
imagens ambivalentes, a exemplo da obra de arte. É antigo o culto
(religioso) de imagens. O conceito de simulacro, entretanto, é
absolutamente moderno (tem suas bases assentadas nas teorias da
autonomia imagística, correntes a partir do século XVI), na medida
em que libera a imagem de suas cauções (metafísicas) externas,
colocando-a diante do “livre olhar” de sujeitos históricos. (SODRÉ,
1994, p. 28)

O simulacro não necessita de uma realidade externa para ser validado. Ele existe por
si enquanto imagem e promove um apagamento dos limites entre o real e o imaginário.
A fotografia e o cinema, simulacros modernos, concederam ao olho artificial – a
objetiva – uma relevância incomensurável, quando outrora era a mão que produzia as
imagens. Há um alinhamento estético e político entre a mente de quem manipula a
máquina e a visão monocular da câmera fotográfica ou cinematográfica. Na fotografia e
no cinema, o mundo passa a ser organizado conforme as antigas regras da perspectiva
renascentista, registrado por meio de um arranjo espacial geométrico, que dita a forma
como o mundo deve ser visto e simulado.
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Aquele aparato intelectual e técnico, pensado como ciência,


objetivamente produzido para aprisionar o real, reproduzi-lo e
afirmar-se como sua única e competente representação é a
Perspectiva. Suas linhas tecerão uma malha firme sobre a realidade
visual, religiosa e política e oferecerão aos poderes uma caixa de
ilusão geométrica para a construção de suas genealogias e mitos. Uma
caixa que encerrará em linhas, luzes e sombras artificiais e estáveis, as
linhas, luzes e sombras da realidade natural e cambiante. Construirá
em pintura, mais tarde em fotografia e cinema, LOCAIS e IMAGENS
inesquecíveis para serem lembrados. [...] Como e com a Ciência,
constituirá a forma dominante de representação do real e ao longo do
tempo, serva constante da Política, será o real. (ALMEIDA, 1999, p.
124)

Ao escrever as coisas por meio da luz, a fotografia mata o tempo e o espaço


históricos do objeto, que reaparece, em outros espaços e tempos, não mais originais,
mas em perspectiva. A imagem fotográfica emoldura e ordena o espaço e o tempo,
convergidos num mesmo plano ótico, numa mesma dimensão visual e com um ponto de
fuga. Como simulacro, a fotografia existe graças à emulsão química que permite a
reprodução infinita de cópias. O maior êxito simulatório da fotografia é a sua maior
subjetividade: a objetividade em que ela opera, sua natureza de autenticação do real
histórico. Barthes (2000) disse que a fotografia é um certificado de presença, enquanto
para Sontag (1994) as imagens fotográficas são pílulas de realidade.
No cinema, a fotografia está presente em 24 quadros por segundo. Os fotogramas,
em sequência, criam a ilusão do movimento, enganam os olhos e invadem a alma do
espectador. O simulacro cinematográfico, diferente do real-histórico da fotografia, opera
ao nível do onírico, em que o imaginário é produzido ou presentificado pela narrativa
ficcional. A fotografia perde sua objetividade histórica, em que o espaço e o tempo se
convergem, se congelam, e mergulha no fluxo diegético do movimento narrativo,
portanto, uma imagem aberta ao devir, ao futuro, a novos espaços e tempos que vão
acontecendo. Com o surgimento do som, passando a simulacro audiovisual, o cinema se
consolida como ampla e realista possibilidade de simulação – de ser um duplo, um
reflexo idealizado – do mundo. Ao cinema, somamos a necessidade de um ritual de
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contemplação em que as pessoas se preparam, se deslocam, até um determinado espaço,


uma sala escura, uma fuga da realidade no tempo de duração da obra cinematográfica.
Diferente do cinema, a televisão incorpora a oralidade do rádio e todas as demais
técnicas de reprodução da imagem. Nenhum outro meio de comunicação conseguiu
mesclar tão bem as imagens do real-histórico às representações do imaginário, e
organizar tudo em espaços distantes agora próximos e em temporalidades distintas
agora simultâneas; a nova ágora das cidades pós-modernas. Quando Muniz Sodré
(1994, p. 32), numa hipérbole de certa maneira aceitável, escreveu “eu não vejo algo na
televisão, eu vejo televisão”, é uma clara referência à ruptura dos limites entre o real e o
imaginário, passando o simulacro a ser a própria realidade. Para o espectador, ver
televisão significa ter acesso à realidade que é apresentada a distância. O maior feito (e
efeito) da televisão, sua verdadeira magia, não é a espetacularização da realidade, mas,
enquanto meio de comunicação de massa, a ampliação da ubiquidade do espectador.

O panóptico oitocentista foi intensificado a tal nível que já pode


desaparecer enquanto maquinaria racionalizável. A discussão não
mais consiste no temor de ser visto por um controlador remoto e
inacessível, mas no próprio ato de ver, na medida em que
desaparecem as mediações simbólicas do olhar e em que a visão é
literalmente engolida pelo “objeto”, o espelho. A máquina é, agora,
narcísica. (SODRÉ, 1994, p. 31)

A telerrealidade, no conceito de Sodré (1994), significa a arquitetura de um novo


espaço-tempo. O culto das imagens apenas nos soa como antigo, mas vemos hoje que os
sentidos metafísicos que um dia impregnaram as imagens, em suas diversas concepções
e suportes no decorrer da História, persistem nas imagens televisuais, migraram para a
televisão. Agora, a metafísica revive no poder (divino) de ver – para nossa atual cultura
ver significa saber – tudo aqui e agora, possibilitado pela televisão. Deste modo, a
televisão não apenas incorpora o ethos da moderna vida social, em termos de novidade,
simultaneidade e velocidade, mas organiza e controla a cultura. Em uma análise sobre o
poder exercido pela televisão como espaço público no Brasil, Eugênio Bucci (2006, p.
228) afirma que “a visibilidade social foi ficando tão amarrada à tela da TV que, para
ganhar o estatuto de realidade, as coisas precisam aparecer na TV. [...] Isso faz dela uma
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sede, por excelência, do que chamamos de espaço público”. Comentando sobre a


televisão no Brasil, o autor completa seus argumentos e dá como exemplo o maior êxito
da televisão: a consolidação do simulacro televisual como realidade. Bucci diz:

A televisão é hoje o veículo que identifica o Brasil para o Brasil, [...].


Tire a TV de dentro do Brasil e o Brasil desaparece, ou seja, a
representação que o Brasil faz de si mesmo praticamente é desligada.
A TV une e iguala, no plano do imaginário, um país cuja realidade é
constituída de contrastes, conflitos e contradições violentas. A TV
conseguiu produzir a unidade imaginária onde só havia disparidades
materiais. Sem tal unidade, o Brasil não se reconheceria Brasil. Ou,
pelo menos, não se reconheceria como o Brasil que tem sido. (BUCCI,
2006, p. 222)

No século passado, nos anos 60, Mcluhan lança o conceito do qual é impossível
escapar, mesmo tentando observar a mídia de outra maneira: “o meio é a mensagem”.
Mordaz, Mcluhan ainda diz que “é o meio que configura e controla a proporção e a
forma das ações e associações humanas” (2007, p. 23). A palavra forma nos remete
diversos significados, mas principalmente aos sentidos de uma ordenação veemente
oculta logo abaixo das superfícies das coisas visuais. A forma pressupõe cálculos,
planejamentos, valores e políticas que regulamentam o que é captado pelo olhar. A
televisão não é diferente. Repleta de enunciados efêmeros, fragmentados, narrativas
entrecortadas por outras narrativas – tudo direcionado para indivíduos atomizados e
encasulados em suas casas, em suas salas de TV – a televisão simula a interconexão dos
indivíduos, a coletividade, legitimando o controle por meio de conteúdos com discursos
de entretenimento, notícia, conhecimento e comunicação universal.
Para manter essa superestrutura, e continuar participando do controle do ethos, a
televisão necessita atuar em duas frentes: uma na forma e outra no conteúdo. A forma é
ditada por uma arquitetura telecomunicacional imensurável – informática, redes de
comunicação, novas tecnologias eletrônicas e, agora, digitais, em que a velocidade e a
capacidade de transmissão possibilitam maior cobertura e fluxo de informações em
menor tempo; o conteúdo, a faceta mais sorridente da realidade fabricada, tem a função
de capturar o olhar do espectador e impor discursos que resultam na organização social.
Para Sodré (1994, p.39), “cultura e sociedade passam, assim, à condição de objetos de
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um gerenciamento cada vez mais reflexivo das relações de mercado e dos discursos
legitimadores da produção capitalista”.
Por que ver televisão? Sodré (1994) aponta para esse meio como componente do
sistema organizador em que, como espelho, é onde, narcisicamente, a ordem
tecnocapitalista se reflete e indica as suas grandes linhas de constituição das identidades
culturais. Como simulacro, o espaço-tempo televisual naturalmente é narcísico, ele
existe por si só, e essa autossuficiência é o seu principal atrator. Vemos televisão porque
ela tem a capacidade de fascinar nosso olhar, de nos extirpar a alma fazendo-nos pensar
que somos nós o duplo da realidade televisual, e não o contrário. Somos mais o reflexo
a admirar a bela face de Narciso, em que “o simulacro, a duplicação trazem sempre a
possibilidade de morte para o original. Narciso abisma-se (e morre) em sua própria
imagem, porque esta efetivamente implica a morte de sua verdade enquanto protótipo,
identidade primeira” (Idem, p. 41).

2. A oralidade midiatizada

No decorrer do século XX, o homem contemporâneo experimenta a retomada da


oralidade. Não a oralidade comumente conhecida, mas midiatizada. A cultura oral, que
até então se baseava na fala e seu entorno, ganha novas dimensões, espaços e
temporalidades. A palavra, o gesto, a expressão, o tom da voz, as intencionalidades e
ideologias, em narrativas vivazes que antes transcorriam no tempo da fala, ou do
discurso oral, agora transcorrem no tempo-espaço das produções audiovisuais. E como
síntese dessa nova oralidade, a televisão foi o meio que se disseminou entre todas as
camadas das sociedades mundiais, do erudito ao popular.

A transmissão eletrônica de informações em imagem-som propõe uma


maneira diferente de inteligibilidade, sabedoria e conhecimento, como
se devêssemos acordar algo adormecido em nosso cérebro para
entendermos o mundo atual, não só pelo conhecimento fonético-
silábico das nossas línguas, mas pelas imagens-sons também.
(ALMEIDA, 1994, p. 16)
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Se por um lado a escrita, como mediação da oralidade, requer a necessidade de


leitura, interpretação, decodificação, alfabetização; por outro, a linguagem televisual
apenas requer a capacidade de interpretação de uma conversa informal, um bate-papo,
uma fofoca numa roda de amigos ou um discurso de uma pessoa que conquista nossa
atenção. Certamente, o caráter abstrato do texto escrito em relação ao objeto
representado permite momentos de possível reflexão, de inteligibilidade do mundo, de
dúvidas e perguntas, de identificação simbólica com o autor, a obra ou a fala, de
aproximação ou distanciamento político, de contemplação, de saberes.
Em parte, o poder de atração da linguagem televisual está justamente em sua nova
oralidade. Ao ligarmos a televisão vemos apresentadores, personagens, atores,
entrevistados, todos vivos, com seus corpos que falam, suas bocas que emitem sons e
expressões, seus cenários, sua verdade. São pessoas que estão ali, na sua frente, que
fazem exatamente o que se faz na vida real. Estar na frente da tevê é quase que estarmos
na frente de um espelho.

A nova oralidade implica uma inteligência reflexa, especular,


mecânica; o que se vê e se ou é o que é, uma verdade, mesmo
que esta seja substituída por outra em seguida, verdades que se
sobrepõem umas às outras, nunca compondo um todo que dê
sentido ao pensamento sobre o mundo. Dessa nova oralidade
compartilham de maneira fundamental as produções de imagens
e sons do cinema e principalmente da televisão. Se
anteriormente à massificação do cinema e da televisão
poderíamos pensar em uma comunidade de pessoas, hoje é
forçoso pensar em uma comunidade de espectadores, de
consumidores de imagens e sons, pessoas que formam sua
inteligibilidade do mundo a partir das informações dos meios de
comunicação de massas, das informações que lhes vêm por
imagens e sons, dessa nova oralidade. (Idem, p. 45).

Na contemporaneidade, uma parcela significativa das pessoas (mesmo as que


dominam a interpretação da escrita) mantém um contato significativo com os produtos
audiovisuais do cinema e, principalmente, da televisão. Pasolini (1982) ainda afirma
que a técnica audiovisual é a verdadeira “língua da realidade”. Os efeitos de sentido no
texto audiovisual são resultado da composição do monema audiovisual (o plano), da sua
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relação com outros monemas, do tempo de sua exposição no transcorrer da narrativa


fílmica. A composição dos sentidos se dá por meio da montagem que, para Pasolini, é a
sintaxe do filme. Outros elementos são inerentes ao monema audiovisual como o
movimento da câmara, a iluminação, o som, os objetos e personagens em cena.
Os planos apresentados a seguir, foram retirados do filme comercial da La Coste
(2007), do perfume Touch Of Pink serve como ilustração das acepções de Pasolini. Os
planos (monemas) apresentam diversos objetos da realidade. Cada objeto chamado de
cinema (correspondente ao fonema) dão sentido ao plano: a garota, o vestido, a cor rosa
da roupa, a sombra na parede, a perseguição por uma objeto no ar, a praça, os reflexos
no espelho, a luz do sol. Dentro dos planos, os objetos são identificados
(substantivação), recebem qualificações (adjetivação) e as ações destes são apresentadas
(verbalização). Podemos identificar como unidade narrativa “a garota de vestido rosa
corre pela calçada, olhando para cima, tenta alcançar o brinquedo de papel solto ao
vento, num dia de sol. Sua sombra é projetada na parede”. Outros sentidos deste plano
(ou monema audiovisual) surgem quando na montagem do filme se justapõe a outros
planos e quando o movimento da cena cria outros sentidos, ou seja, é na sequência dos
planos que o fantástico é presentificado. O fantástico se faz por meio do discurso.

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Os signos do mundo real – pessoa, objetos, cenários, narrativas, produto – surgem no


vídeo como uma personagem coadjuvante. Enquanto a garota persegue uma pipa de
papel-seda, que serpenteia pelo céu azul do dia ensolarado, sua sombra olha para baixo,
persegue no chão a silhueta do seu objeto de desejo. Luz e sombra. Olhar para o alto,
olhar para baixo. Céu e terra. Ar e chão. A sombra projeta-se como a alma da
personagem, alcança o que a personagem parece não conseguir tocar, as sombras
humana e objetal parecem quase se encontrar no cenário. Estas sombras, que
tecnicamente foram desenhadas no plano por computação gráfica, surgem para agregar
sentidos de leveza, volaticidade, fluidez, etéreo. Como o aroma (a alma do perfume?),
“a nova fragrância da Lacoste”, as sombras subvertem a ordem natural do movimento
realístico da garota. Os signos são realísticos, mas no conjunto, suas conexões, criam
um universo ou uma narrativa fantástica – onírica, mágica – na qual surge a imagem do
produto. Para tocar os sonhos, basta comprar o produto, tangível e ao alcance da mão.

3. O filme publicitário e a Arte da Memória

De maneira resumida, a retórica é a “ciência” ou “arte” de fazer uso da linguagem


com o objetivo de persuadir, influenciar ou convencer um interlocutor ou o público. A
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palavra retórica vem do grego rhetor, que significava “orador”. Para isso, o emprego
ornamental ou eloquente da linguagem é a sua principal característica. Não é desta
forma, ornamental, eloquente e fantástica, que a publicidade audiovisual mantém
contato com seu público, os espectadores, com vistas a se tornarem consumidores? Não
é desta maneira que cada plano (monema) do filme publicitário e sua montagem
(sintaxe) é planejado para mimetizar a oralidade, naturalizar o discurso do real para
tornar-se indelével na memória do espectador?
Sabe-se que, baseado em Aristóteles, Cícero divide o discurso retórico em cinco
partes distintas: Inventio, Dispositio, Elocutio, Memoria e Actio.

Invenção é a descoberta de coisas verdadeiras ou verossímeis que


tornem a causa provável. Disposição é a ordenação e distribuição
dessas coisas: mostra o que deve ser colocado em cada lugar.
Elocução é a acomodação de palavras e sentenças adequadas à
invenção. Memória é a firme apreensão, no ânimo, das coisas, das
palavras e da disposição. Pronunciação é a moderação, com encanto,
de voz, semblante e gesto. (Cícero, 1997, Livro I, p. 97, tradução
nossa).

Para que o discurso obtenha êxito – que é convencer ou persuadir a plateia da sua
veracidade –, uma grande parte de conhecimentos deve ser retida pelo orador, tanto para
o discurso ao qual ele se propõe, quanto para a rememoração de discursos que
obtiveram êxito no passado. Sendo assim, ele deve ter uma memória prodigiosa. A obra
Retórica a Herênio (Ad Herennium) é um tratado sobre retórica, dividido em quatro
livros, sendo o Livro III dedicado totalmente à Arte da Memória. Para ampliar a
capacidade mnemônica do orador, Cícero sistematizou, em sua obra De oratore,
técnicas da arte retórica e em especial uma delas que ele chamou de “arte da memória”.
Um dos poucos escritos sobre essa arte – datado entre 86-82 a.C. –, foi atribuído a
Cícero que escreveu para um amigo, na Idade Média, na Europa. Cícero escreve:
“Passemos agora ao tesouro das coisas inventadas e à guardiã de todas as partes da
retórica: a memória”.
A Arte da Memória foi um estudo iniciado na Grécia, continuado, sistematizado e
aplicado por Cícero e consiste na educação da memória do orador, por meio da
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associação de partes ou informações do discurso a imagens e lugares inesquecíveis.


Cícero inicia explicando que existem dois tipos de memória que acabam por se
interpenetrar:
Existem duas memórias: uma natural, outra produzida pela arte.
Natural é aquela situada em nossa mente e nascida junto com o
pensamento; artificial é aquela que certa indução e método preceptivo
consolidam. Porém, como em tudo mais, é frequente a aptidão do
engenho imitar a doutrina, e a arte, por sua vez, fortalecer e aumentar
a comodidade natural. (CÍCERO, 2005, p. 183)

O orador, segundo Cícero, deve selecionar e ordenar as imagens impactantes, belas


ou feias o suficiente para não serem esquecidas – imagens fantásticas, alocadas em
lugares com a mesma recomendação.

A memória artificial constitui-se de lugares e imagens. Chamo lugar


aquilo que foi encerrado pelo homem ou pela natureza num espaço
pequeno inteira e distintamente, de modo que possamos facilmente
percebê-lo e abarcá-lo com a memória natural: como uma casa, um
vão entre colunas, um canto, um arco e coisas semelhantes. Já as
imagens são determinadas formas, marcas ou simulacros das coisas
que desejamos lembrar. Por exemplo, se queremos guardar na
memória um cavalo, um leão ou uma águia, será preciso dispor suas
imagens em lugares determinados. (Idem)

Os lugares e imagens que ele chamou de “agentes”, isto é, ativas no sentido de que
devem agir sobre a memória do orador tornando-se indeléveis, devem manter uma
sequência lógica de forma que o orador, em pensamento (reminiscência), consiga
transitar por elas, lê-las, interpretá-las e traduzi-las em discurso oral.

Os lugares assemelham-se muito a tábuas de cera ou rolos de papiro;


as imagens, a letras; a disposição e colocação das imagens, à escrita; a
pronunciação, à leitura. Devemos, então se desejarmos lembrar muitas
coisas, preparar muitos lugares, para neles colocar muitas imagens.
(CÍCERO, 2005, p. 187)

A partir das observações de Cícero, é possível dissecarmos o filme publicitário em


todas as partes do discurso retórico, porém, nos estudos da ars memorativa ocorrem as
aproximações mais sistemáticas entre aquela arte e a sintaxe audiovisual. Enquanto as
imagens e lugares, na arte da memória, estão no plano da reminiscência do orador, –
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subjetividades traduzidas em proposições que criam novas subjetividades na plateia –,


as imagens e lugares do filme publicitário são a presentificação do pensamento de seus
atuais retores (os diversos autores do filme) que objetivam convencer, persuadir, seduzir
a plateia.

Conclusão

Assim como a arte da memória é um tipo de educação da memória do orador, o filme


publicitário educa a memória do espectador para que a marca de determinado produto
torne-se inesquecível. Para isso, imagens inesquecíveis são talhadas minuciosamente,
selecionadas, sequenciadas, postas em narrativa audiovisual, apresentando a realidade
em um recorte e ordem únicos, na língua audiovisual que todos os espectadores já
conhecem. A escolha de determinados canais de TV, horários, tempo de exibição e
momento histórico para a veiculação do filme publicitário apontam para a seleção
sistemática dos lugares inesquecíveis. O objetivo do filme publicitário é a composição
de uma memória artificial do público, o que me leva a pensar que esse tipo de
publicidade é a persistência, na contemporaneidade, da arte da memória.
Por outro lado, apesar da composição artificial da memória do espectador, os efeitos
de sentido desse produto cultural, decorrente no espaço-tempo de 30 segundos,
irrompem a simples ideia de ser uma produção retórica com o objetivo da venda de
produtos, serviços, conceitos ou candidatos políticos. Foge do simples fato de que seu
maior ou único objetivo seja meramente convencer, persuadir, seduzir. Ele dialoga com
a memória que Cícero identificou como “natural”, em que as memórias natural e
artificial, de fato, são indissociáveis. Talvez, aqui resida seu maior argumento.

[...] o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de


determinadas conclusões, constitui o ato linguístico fundamental, pois
a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais
ampla do termo. (KOCH, 2006, p. 17)

O filme publicitário, por essa premissa, participa de uma educação estética e visual
do homem urbano contemporâneo, assim como as imagens-sons do cinema, arte da qual
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ele traz grande parte dos seus elementos sintáticos. Do conceito do cinema como
“língua da realidade”, de Pasolini; e do cinema como “arte da memória”, de Milton José
de Almeida, conclui-se que, para compreender a sintaxe do filme publicitário, repleta de
escolhas estéticas e políticas próprias de uma língua audiovisual, é necessário apreender
os caminhos pelos quais imagens e lugares são organizados para serem fantásticos,
portanto, inesquecíveis.

Referências

ALMEIDA, Milton José de. Imagens e sons: a nova cultura oral. Autores Associados:
Campinas, 1994.
______é. Cinema: arte da memória. Campinas: Autores Associados, 1999.
BUCCI, Eugênio, KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo:
Boitempo, 2004
CICERO, Marcus Tullius. La invención retórica. Tradución: Salvador Nunez. Madrid:
Editorial Gredos, 1997.
______. Retórica a Herênio. Tradução: Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra.
São Paulo: Hedra, 2005.
Grupo de Mídia. Mídia Dados 2009. São Paulo: RWA, 2009.
KOCH, Ingedore G. V. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2006.
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo : Senac, 2005.
PASOLINI, Pier Paolo. O empirismo hereje. Lisboa: Assirio e Alvim, 1982.
SODRÉ, Muniz. A máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil. São
Paulo: Cortez Editora, 1994
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O MAR COMO IDENTIDADE, LIBERDADE E REINO:


UM ESTUDO DE MAR-POESIA, DE SOPHIA DE MELLO BREYNER

Hilda Regina Gelinski (G-UNICENTRO)


Maria Natália Ferreira Gomes Thimóteo (UNICENTRO)

1. A poesia de Sophia: temas e fontes

Quando morrer voltarei para buscar


Os instantes que não vivi junto do mar.
Inscrição

Poetisa e contista portuguesa, Sophia de Mello Breyner Andresen é considerada


uma das maiores figuras da literatura portuguesa contemporânea. Sua poesia está
relacionada aos elementos cósmicos, às coisas, aos seres, à natureza e ao social. “Sophia
manifesta as suas convicções mais íntimas e mais profundas, mas também permite que o
ser na sua essência se manifeste (o ser pedra, praia...) todo o cosmos se manifesta na
poesia de Sophia.” (LAMAS, 1998, p. 49). Tudo e todo aquele que provoca a
contemplação da poetisa é fonte para as suas descrições. A busca da unidade do homem
com os elementos da natureza e também a busca do homem com o ser humano,
mostram a diversidade de alicerces que vigoram na poesia de Sophia.
Não é apenas a imensidão íntima que é exposta em sua poesia, mas a poetisa acaba
cedendo alguns versos para os elementos que necessitam de suas palavras para que
possam se manifestar. “A sua poesia é a visão do mundo, visão feita de palavras,
palavras-objetos que Sophia manipula artisticamente, não palavras escolhidas pela
beleza, mas escolhidas pela sua realidade e poder poético de estabelecer uma aliança”.
(LAMAS, 1998, p. 48). O mundo visto pelos olhos de Sophia e lido pelas suas palavras
nos faz compreender quão grande é o poder das letras que não precisam,
necessariamente, serem belas para poderem exprimir a realidade que o eu-lírico tanto
explora, formando assim a aliança entre as palavras, sua visão de mundo e a realidade.
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Um tema muito explorado na obra de Sophia de Mello Breyner é a natureza


marítima: o mar, as algas, os peixes, as conchas, as ondas... O fato de a poetisa ter
nascido no Porto e ter passado grande parte da sua infância e juventude na Praia da
Granja, fez com que aflorasse sua paixão pela vida marinha e seu interesse por
desvendar os enigmas do mar.
Mar e sua amplidão, “o mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim” é constante em
sua poesia e assume vários aspectos como: reencontro do “eu” na solidão, a fuga da
multidão, do cotidiano e também a comunhão com o que há de mais puro. O mundo do
mar, amparado pelo silêncio, pelo vento, pela luz solar e pelo luar fez com que houvesse
um diálogo único entre Sophia e o possuidor desta vastidão, o mar.
Para Sophia, a poesia sempre foi uma perseguição do real. Sua primeira recordação é
de um “quarto em frente do mar...” em sua Antologia Poética, lembrada por Eduardo
Coelho em seu artigo “O real, a aliança e o excesso na poesia de Sophia de Mello
Breyner”:
A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar
dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã
enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-
se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de
fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real
que descobria. (...) Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do
real. (...) E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz,
evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. (COELHO, 1972,
p. 225)

Para o crítico Antonio Ramos Rosa, Sophia é a poetisa da claridade e da clareza. Sua
linguagem é transparente e luminosa, mesmo nos poemas mais obscuros. “Na sua
fulgurante nudez os poemas de Sophia criam uma euritmia cósmica como se a missão
do poeta fosse transcender a noite na lumière nature de Rimbaud.” (ROSA, 1987, p.
16). Também a identidade de Sophia com os cosmos, sempre presente em sua obra, foi
descrita por Lamas, lembrando a relação intensa que Sophia tem pelos elementos e sua
necessidade de liberdade para encontrá-los:

Essa atração pelo primitivo, essa imantização pela luz e pelo silêncio é
peculiar ao texto de Sophia. O ‘eu’ desnuda-se, procura libertar-se de
tudo quanto o acorrenta para poder ir ao encontro das coisas, numa
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caminhada repetida por praias, por descampados, por desertos, para se


poder consubstanciar nos cosmos. É a identidade do eu com os
cosmos. (LAMAS, 1998, p.95)

2. A essência da poética de Sophia: o mar.


O mundo é grande, mas em nós/ ele é profundo como o mar.(Rilke)

Helena Langrouva, em seu artigo “Mar-poesia em Sophia de Mello Breyner


Andresen”, afirma que “a poesia de Sophia vive muito de caminhadas, partidas e
reencontros solitários, sendo a praia espaço de caminho, partida, reencontro,
contemplação, renovação, até de esperança de regresso...”.Uma das primeiras
imagens do fundo do mar que aparecem na obra de Sophia, segundo Langrouva, é a
do poema “Navio Naufragado”, no livro Dia do mar, poema incluído na antologia
Mar-poesia. “A poesia de Sophia não valoriza nem desenvolve o naufrágio nem o
negativo do mar e das viagens marítimas.” (LANGROUVA, 2002,p.18). Neste
poema permanece o enigma sobre qual seria o futuro para os náufragos depois da
morte:

E os corpos espalhados nas areias


Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves de cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos dos videntes.

Langrouva estudou o mar de Sophia como identificação do sujeito lírico e concluiu


que “a essência da sua alma poética vive da cumplicidade da maresia e da sua
identidade como respiração da brisa marinha, numa harmonia perfeita de ritmo vital
anímico e espiritual.”(LANGROUVA,2002, p.6). Também o mar como liberdade foi
visto a partir da dualidade do espaço fechado (quarto) e o espaço aberto, de libertação
(mar). A oposição entre o ambiente fechado e o aberto, e os lugares eleitos para o “dia
do mar” interferem nas ações do eu-lírico. Quando o dia do mar é no quarto, visto
também como um cubo, pois pequeno e restrito é seu espaço, os gestos do eu-lírico são
acompanhados pelo adjetivo “sonâmbulos”, demonstrando um movimento inconsciente,
portanto, sem liberdade. Diferente disto, quando o dia do mar é no ar, sendo também um
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dia alto, ou seja, sem limites, os gestos do eu-lírico mudam radicalmente de


“sonâmbulos” para “gaivotas” conquistando a plena liberdade de um dia junto ao mar e
desfrutando da mesma liberdade com que as gaivotas voam e “se perdem rolando sobre
as ondas, sobre as nuvens.”
Dia do mar do meu quarto – cubo
Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.
Dia do mar no ar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas que se perde
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.

As metáforas do Pescador, do Marinheiro Real e do Pirata também são constantes


na obra de Sophia. O Pescador “tem uma relação de fraternidade com ‘as coisas’, supera
as emoções, tem o que Sophia designa ao longo da sua obra poética como ‘inteireza do
ser’, integra o mar e o céu na sua realidade ontológica...” (LANGROUVA, 2002, p.15).
O Marinheiro Real “vive em paz, integra-se no ritmo do cosmos, cultiva essa mesma
“inteireza”, atinge a perfeição, desconhece a cidade.” (idem,ibidem). O Pirata é cercado
pela liberdade, “conjuga o gosto de estar só no seu barco com o gosto de se identificar
com os mastros (...) é a alegoria do homem intrépido, viajante solitário, que à partida
vence tudo o que é impeditivo ou destrutivo, como que uma aspiração ou realidade de
todo o ser humano que nasce, percorre solitário a vida.” (idem, pp.15-16).
Algumas opiniões de Gaston Bachelard podem ser detectadas nos estudos sobre os
mares de Sophia. Segundo o filósofo,
A verdadeira valorização é de essência social (...) Mas é necessário
considerar também uma valorização dos devaneios do sonhador que
foge da sociedade, que pretende tomar o mundo como único
companheiro. (...) certas matérias transportam em nós seu poder
onírico, uma espécie de solidez poética que dá unidade aos
verdadeiros poemas. (BACHELARD, 2002, pp 139-140).

Veremos que a imensidão marítima de Sophia aproxima-se da imensidão


íntima de Bachelard, uma vez que a contemplação do eu-lírico pela imensidão do
mar gera um estado de alma particular, fazendo desta apreciação um momento único
e infinito.
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3. Identidade, liberdade e reino: os mares de Sophia


(...) Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.
Biografia.

A partir de uma epígrafe poética a identidade do eu-lírico começa a ser


revelada, com seus sintomáticos versos, Sophia descreve sua alma em
“Atlântico”Mar, / Metade da minha alma é feita de maresia”. Mesmo com economia das
palavras e sem a necessidade de mais versos, esta pequena epígrafe define a maresia
como a verdadeira composição da alma poética, pois não apenas a metade, mas sim
toda a alma é constituída pela maresia. Como diz Langrouva: “Um verso que define
uma idiossincrasia da sua alma poética, como se a maresia pudesse a um tempo
constituir metade da essência da sua alma e eventualmente cobrir, pelo seu elemento
etéreo – o cheiro vindo do mar que penetra no ar - a outra metade da sua alma.”
(2002, p.6). Além da maresia, encontramos a identidade marítima de Sophia em
outra pequena, mas significativa como no poema- epígrafe “Inscrição”
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.

Mesmo tendo nascido no Porto e passado grande parte da sua vida em frente ao
mar, o desejo de Sophia de viver eternamente junto a ele choca-se com esta mesma
vontade exposta pelo eu-lírico em sua poesia. Neste caso, a praia serve como
esperança de regresso da morte para viver com o mar aquilo que não foi vivido. A
contemplação que Sophia tem pelo mar, tornando sua alma de maresia e desejando,
mesmo após a morte, retornar e viver junto dele, gera um estado de alma que coloca
o sonhador fora do mundo próximo, como na imensidão íntima de Bachelard:

A contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um


estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora
do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.
(BACHELARD, 2003, p.189)

No caso do eu-lírico, a contemplação pela imensidão do mar e pelo seu infinito,


fazem-no sonhar somente com o mar e com a ideia de fazer esta relação marítima
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perdurar eternamente mesmo após a morte. Na lírica de Sophia o mar também é


sinônimo de liberdade. Amar profundamente a praia e unir-se aos elementos mar,
vento e lua é descrita em “ Mar I”:

De todos os cantos do mundo


Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Na Poética do Espaço, Bachelard, define o canto. Nele, temos a oportunidade


de nos encontrarmos, ele se torna o espaço da nossa imobilidade que, por sua vez, se
torna o espaço do nosso ser. Num canto acreditamos estar bem escondidos e
protegidos de tudo:
(...)o canto é um refúgio que nos assegura um primeiro valor do ser: a
imobilidade. Ele é o local seguro, o local próximo de minha
imobilidade. (...) A consciência de estar em paz em seu canto propaga,
por assim dizer, uma imobilidade. A imobilidade irradia-se.
(BACHELARD, 2003, pp. 145-146)

Para Sophia, seu refúgio é a praia. Seu canto predileto (mesmo sem ângulos, sem
paredes, sem teto) é a imensidão da praia. É ela quem lhe assegura a imobilidade
mesmo sem a pressão das paredes, pois como num êxtase, o eu-lírico contempla tal
espaço. A solidão e a imobilidade que encontramos num canto, o eu-lírico encontra
na praia. Para ele não importa outros amores, outros cantos, outras pessoas... Seu
local seguro que lhe dá a consciência de paz e imobilidade é o conjunto de areia mais
mar. Além do eu-lírico poder encontrar-se consigo mesmo de frente ao mar, ele tem
a liberdade de amar com maior apresso esta praia e unir-se ao mar, ao vento e à lua.
No poema “Eu me perdi” há outro aspecto de liberdade

Eu me perdi na sordidez de um mundo


Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez de um mundo


Eu me salvei na limpidez da terra
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Eu me busquei no vento e me encontrei no mar


E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar

No poema anterior, a liberdade encontrada foi na imobilidade do canto praia e


na união do eu-lírico com o mar, o vento e a lua. Neste poema há uma série de fatos
que antecedem a relação do eu-lírico com o mar, demonstrando a liberdade e também
a identidade do sujeito lírico. Primeiramente o eu-lírico se perde na sordidez do
mundo e em seguida consegue se salvar na limpidez do elemento terra. Mesmo salvo,
busca si próprio no vento, mas onde realmente se encontra é no mar. Ou seja, ele se
perde, se salva e se busca nos mais diferentes lugares, entretanto, o único lugar onde
ele verdadeiramente se encontra e encontra sua completa liberdade é no mar.
Em A água e os sonhos, Bachelard, nos define a moral da água. “Uma das
características que devemos aproximar do sonho de purificação sugerido pela água
límpida é o sonho de renovação sugerido por uma água fresca. Mergulha-se na água
para renascer renovado.” (2002, p.151). A pureza é encontrada na água límpida e a
renovação na água fresca. O reencontro do eu-lírico acontece no mar, possuidor,
provavelmente, de águas límpidas e frescas. Então, pode-se dizer que nas águas deste
mar, o sujeito lírico encontra-se e renasce completamente renovado, tal é o poder da
água. Para Sophia, o mar também é reino e ela torna-se a rainha:

As ondas quebravam uma à uma


Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só pra mim.
As ondas quebravam uma à uma

A beleza do elemento marinho tem como único contemplador o eu-lírico. Como


num reino onde o rei é aquele que possui plenos poderes e todo o espaço, observando
tudo e todos, nestes versos o único apreciador torna-se rei, tendo as ondas, a areia e a
espuma em seu alcance e o canto do mar oferecido somente a ele, como se o eu-lírico
fosse o possuidor de toda a vastidão marinha. Intensa é a descrição do mar como
reino nas metáforas do poema “Reino”:
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Reino de medusas e água lisa


Reino de silêncio luz e pedra
Habitação das formas espantosas
Coluna de sal e círculo de luz
Medida da Balança misteriosa.

A imensidão do mar faz com que ele se divida em vários reinos, apresentando o
equilíbrio entre a água lisa e a presença dos monstros e formas espantosas, como a
medusa, monstros marinhos e todas as lendas que acompanham as histórias
marítimas. Para Langrouva há a positividade do mar como reino:

Reino onde convergem, no silêncio e na luz, as metáforas-geometrias


perfeitas da “coluna de sal” ou “eixo onde todos os equilíbrios são
possíveis”; o “círculo de luz”, na sua irradiação; a medida exata da
“Balança misteriosa” da relação justa do homem com o cosmos.
(2002, p. 14)

O mar depois de Sophia

"Desde a orla do mar


Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim".

Os mares de Sophia foram vistos a partir de três substantivos que caracterizaram


perfeitamente os versos marítimos da poeta. São eles: liberdade, identidade e reino.
Com o apoio das descrições, produzidas por Lamas sobre a poesia de Sophia, dos
esclarecimentos sobre “Mar-poesia”, de Langrouva e das opiniões de Bachelard,
pudemos analisar e aliar melhor os versos às bases teóricas, percorrer o itinerário do
sujeito-lírico e suas relações com o mar.
A identidade marinha de Sophia foi exposta com a afirmação de que a verdadeira
alma poética do sujeito-lírico é constituída de maresia e também com o desejo e a
esperança de regresso da morte para viver eternamente junto ao mar. No seu verso
"Desde a orla do mar/ Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim”, e de muitos
dos seus poemas dedicados ao mar, podemos depreender que tal contemplação de
Sophia pelo mar dialoga com a contemplação da grandeza de Bachelard, pois causou no
eu-lírico um estado de alma particular que o levou ao devaneio de colocá-lo fora do
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mundo, porém diante do infinito, que neste caso ilustra-se, como a relação eterna
(infinita) do eu-lírico .
Percebe-se o mar como liberdade a partir da dualidade dos espaços quarto e mar,
onde a oposição entre o ambiente fechado e aberto interferiu nas ações do eu-lírico.
Seus movimentos inconscientes de sonâmbulo se diferenciaram de seus movimentos
livres de gaivota, opondo a prisão do quarto à liberdade do mar. Foi vista também a
partir da relação entre a imobilidade do canto praia e o desejo do sujeito lírico de amá-la
profundamente e unir-se aos elementos mar, vento e lua. Por último, mas não menos
importante, a liberdade foi vista nos desencontros e reencontros do sujeito-lírico
consigo mesmo a partir de seu desaparecimento no mundo, da sua salvação na terra, da
sua busca no vento e essencialmente do seu reencontro no mar.
O mar como reino se instaura na relação de poder do eu-lírico com as ondas do mar,
onde tal sujeito-lírico seria o único apreciador da vasta beleza marinha. Sendo assim, as
ondas cantavam somente para ele, como se ele estivesse com plenos poderes em um
reinado. Também o mar foi descrito reino a partir de metáforas que nos remetem à
imaginação de um reino marinho, onde seus elementos e o equilíbrio do sujeito-lírico
com os cosmos prevalecem. Identidade, liberdade e reino três substantivos que
definiram os mares de Sophia. A maresia tomada como a verdadeira identidade, a
imobilidade do canto praia, desencontros e reencontros do sujeito-lírico como a real
liberdade e a contemplação da grandeza como reino, permitiu-nos reconhecer e
compreender mais sobre a poesia “marinha” de Sophia. Seus leitores passam a ter maior
encantamento pelo mar, depois de seus poemas.
Desde 2005, no Oceanário de Lisboa, os poemas de Sophia sobre o Mar foram
colocados para leitura permanente nos locais de apreciação e descanso da exposição,
permitindo aos visitantes daquele museu marinho absorverem a força da sua escrita
enquanto estão imersos numa visão de fundo do mar. É considerada a mais importante
poeta da literatura portuguesa contemporânea, cantora da “vida de mil faces
transbordantes”.

Referências
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BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Trad: DANESI, Antonio de Pádua. São


Paulo: Martins Fontes, 2002
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Trad: DANESI, Antonio de Pádua. São
Paulo: Martins Fontes, 2003
COELHO, Eduardo Prado. A Palavra sobre a palavra. Porto, Portugal: Portucalense,
1972.
LAMAS, Estela Pinto Ribeiro. Sophia de Mello Breyner Andresen. Da escrita ao texto.
Lisboa: Caminho, 1998
LANGROUVA, Helena Conceição. “Mar-Poesia de Sophia de Mello Breyner
Andresen: Poética do Espaço e da Viagem”. In: Revista Brotéria, Lisboa, Maio-Junho e
Julho de 2002
ROSA, Antonio Ramos. Incisões Oblíquas: estudos sobre poesia portuguesa
contemporânea. Lisboa: Caminho, 1987.
A LITERATURA EM SALA DE AULA NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO:
A CONTRIBUIÇÃO DO PROFESSOR DE PRÁTICA DE ENSINO

Hiudéa Tempesta Rodrigues Boberg (UENP)

No final do ano de 2002, as professoras do Departamento de Letras da Faculdade


Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho - naquela época ainda uma
instituição isolada - procuraram se mobilizar em torno da reformulação do projeto
pedagógico do curso de Letras, movidas pela publicação da Resolução CNE/CP 01, de
18 de fevereiro, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de
Professores da Educação Básica, em nível superior, e também pela Resolução CNE/CP
02, de 19 de fevereiro, que institui a duração e a carga horária dos cursos de
licenciatura, ambas daquele mesmo ano.
Era o momento de se provocar significativas mudanças no curso, de promover a
readequação das matrizes curriculares das habilitações, de repensar não apenas a
distribuição das disciplinas e de suas cargas horárias nas grades, mas também os
conteúdos a serem ministrados e, por consequência, era o momento de se rever as
práticas pedagógicas.
Ao se considerar o papel das habilitações em Português e Literaturas de Língua
Portuguesa, em Francês e em Inglês e suas respectivas literaturas, verificou-se que, nas
duas últimas grades curriculares, as 400 horas de estágio supervisionado estavam
divididas entre as disciplinas de Prática de Ensino de Língua Portuguesa e as das
Práticas correspondentes às línguas estrangeiras. Já no curso de Letras/Literatura, nada
mais justificado do que inserir uma nova disciplina, Prática de Ensino de Literatura, e
dividir as horas de estágio com Língua Portuguesa.
Dentre tantas outras modificações que passaram a ser adotadas a partir de 2003, esse
procedimento veio bem a calhar. Em anos anteriores, as docentes da área de literatura já
tinham percebido que deveriam assumir medidas pontuais para tentar reverter o quadro
de completo desinteresse dos estudantes de Letras pela leitura e pela literatura. Esta
apatia era um componente do perfil dos calouros, e se acentuava cada vez mais,
conforme os anos se passavam.
Até mesmo nos vestibulares algumas alterações já haviam sido tentadas, como a
inclusão de questões discursivas, proposta que resultou num insucesso ainda maior.
Foram estas provas mesmas que revelaram a gravidade da situação: os candidatos ao
curso de Letras não liam por vários motivos, e dentre eles estava a falta de estímulo do
professor do ensino médio. Pode-se imaginar que os candidatos provinham dos
municípios do entorno da Faculdade, do norte pioneiro do estado do Paraná e daqueles
da fronteira sul do estado de São Paulo, compreendendo cerca de 50 municípios. Se, na
maioria deles, os alunos do ensino médio não tinham contato com a leitura literária,
além daquela prevista nos exames vestibulares, então seria bem possível contar com a
falibilidade, nessa região, do emprego das propostas das diretrizes curriculares dos dois
estados para a área de literatura.
Como não é difícil de perceber, a formação de boa parte dos professores de língua
portuguesa, que atuavam nesse espaço, estava nas mãos dos docentes do curso de Letras
da Faculdade até então conhecida por FAFIJA. Diante dos fatos, era necessário tomar
providências ainda mais decisivas, que pudessem compor um conjunto de esforços,
apesar das limitações características de uma instituição de ensino superior isolada, ou
seja, ainda não integrada a uma universidade. Mesmo com essas restrições, foi instituída
a prática de iniciação científica, foram criados dois grupos de pesquisa e um evento
anual em que as produções dos alunos e dos professores pudessem ser compartilhadas
com o ambiente acadêmico e com outras comunidades universitárias.
As resoluções nasceram da necessidade de se sistematizar todas as providências que
deveriam ser tomadas, naquele momento, para de fato melhorar a qualidade do curso de
Letras, bem como o desempenho dos seus alunos. Assim, dois projetos de pesquisa
foram concebidos, um na área de linguística e o outro na de literatura. Pode-se dizer que
o corpo docente do curso de Letras passou a viver, a partir de então, outra realidade
acadêmica, mais sintonizada com um bom ambiente universitário, em que os
desdobramentos das responsabilidades vão solicitando novos esforços e novos
empreendimentos: a requisição de bolsas de iniciação científica, a divulgação da
produção científica, a projeção do nome da instituição em outros eventos estão entre as
experiências dessa nova fase.
Sob o título Metodologias do ensino de literatura e propostas pedagógicas para o
professor, o projeto de pesquisa da área de literatura buscou estabelecer laços entre o
Grupo de Pesquisa Literatura e Ensino e as disciplinas de Prática de Ensino de
Literatura I e II, com o intuito de aproximar as pesquisas do ensino acadêmico e da
prática pedagógica nos estágios.
Ao se consultar os procedimentos de outras universidades na ocasião em que se
buscava criar a ementa da disciplina de Prática de Ensino de Literatura, surgiram
algumas surpresas. Por exemplo, há cursos de Letras em que os estágios não derivam do
próprio Departamento de Letras, mas de outros, como de Pedagogia ou de Prática de
Ensino. Nesses casos, geralmente, os docentes orientadores de estágios sequer são da
área de Letras, ou seja, é difícil conceber que o aluno está bem assessorado em seus
estágios se não recebe orientação específica da sua área de atuação.
Examinando os cursos de Letras de universidades paranaenses, percebeu-se que
invariavelmente a prática de ensino de literatura não está dissociada da prática de língua
portuguesa. Dessa maneira, não se via nas ementas selecionadas um enfoque mais
preciso ao ensino de literatura, especialmente no momento em que a Secretaria de
Estado da Educação do Paraná também buscava propor parâmetros de ensino
fundamentados em teorias e metodologias inovadoras. É certo que a grande maioria dos
professores da rede não teve contato com esses conhecimentos nos seus cursos de
graduação. Tal realidade hoje é fácil de constatar, quando os docentes universitários têm
sob sua responsabilidade a orientação dos professores da educação básica inscritos no
PDE - Programa de Desenvolvimento Educacional do Paraná. Muitos dos professores
agora é que começaram a apreciar, menos superficialmente, os fundamentos da Estética
da Recepção e da Teoria do Efeito, ou a assimilar melhor os conceitos bakhtinianos.
Desde a proposta inicial da ementa, aplicada a partir de 2006, até os dias atuais,
houve um processo de ajustamento às carências reveladas, tanto no que tange ao
universo escolar, onde o estágio se desenvolve, quanto ao contexto acadêmico, ambiente
de formação dos futuros professores. Assim, a ementa do 3º ano, de Prática de Ensino
de Literatura I, evoluiu para o que atualmente contempla:

Políticas públicas do ensino de literatura. Fundamentação teórica e


metodológica do ensino de literatura. Análise de propostas
metodológicas. Estudo da realidade da escola e da sala de aula, com
foco em atividades de observação, participação e reconhecimento das
condições de ensino e aprendizagem de literatura no ensino
fundamental e no ensino médio. Reflexão sobre os dados observados
para a identificação de questões relacionadas aos problemas no ensino
de literatura. Desenvolvimento orientado de propostas de práticas
direcionadas aos problemas identificados. Concepção e planejamento
de micro-aulas e de projetos de ensino. (UENP, 2010a)

Também passou pelo mesmo processo a ementa de Prática de Ensino II, do 4º ano,
que hoje compreende:
Aspectos teóricos sobre o ensino de literatura no ensino médio. A
literatura no ensino médio: problemas e possíveis soluções.
Elaboração de projetos de leitura literária. Planejamento da regência
em ensino fundamental e ensino médio. Execução de regência.
Elaboração do Portfólio. (UENP, 2010b)

Nas duas ementas, o conteúdo explora desde a formação do professor e a literatura


infanto-juvenil, a necessidade de metodologia de abordagem textual, as novas
metodologias de ensino (método recepcional, dialogismo, sequência básica, proposta
rizomática) até ao conhecimento das Diretrizes Curriculares e o ensino de literatura na
educação básica, as questões relativas à presença da literatura no ensino médio, o
vestibular e o ensino de literatura, o planejamento do ensino e a utilização dos recursos
audiovisuais e multimídias.
A par desses conteúdos, são feitos pelos alunos os relatos de seus estágios durante as
duas horas semanais de Prática de Ensino, cuja exposição oral é objeto de análise por
seus colegas, de debate e de busca de novas propostas de ensino. Também são criadas
situações-problemas, a partir das observações feitas pelos estagiários nas escolas, com o
objetivo de que resoluções sejam concebidas levando-se em consideração as teorias e
metodologias já assimiladas e a sua real aplicabilidade no contexto escolar. Questões
sempre são levantadas sobre a pertinência dos pressupostos teórico-metodológicos aos
vários momentos de execução dos estágios, evitando-se que se criem abismos entre as
proposições teóricas e a prática adequada. Ainda são concebidas, pelos alunos, outras
propostas metodológicas para a abordagem do texto literário, ou ao menos são
produzidas sequências didáticas que depois serão apresentadas nos estágios.
Como se percebe, todas as providências enumeradas ilustram as diligências que
podem ser adotadas pelo professor ministrante da disciplina de Prática de Ensino, com o
propósito de provocar o hábito da reflexão sobre a postura a ser cultivada em sala de
aula. Além de subsidiar os seus alunos com os elementos teóricos e metodológicos
pertinentes, e com os recursos pedagógicos apropriados, o professor terá ainda que, na
medida do possível, acompanhar o desenvolvimento dos estágios de seus alunos. Nessa
caminhada, é preciso guardar as devidas proporções na discussão sobre quais teorias
realmente sustentam o cotidiano escolar, sempre buscando adaptar os conceitos à
realidade escolar objeto de análise. Por isso, são lembradas aqui as considerações de
Isabel Alarcão (2004) acerca da formação do professor reflexivo:

Os formadores de professores têm uma grande responsabilidade na


ajuda ao desenvolvimento dessa capacidade de pensar autônoma e
sistematicamente. E têm vindo a ser desenvolvidas uma série de
estratégias de grande valor formativo, com algum destaque para a
pesquisa-acção no que concerne à formação de professores em
contexto de trabalho. Penso que a pesquisa-acção, a aprendizagem a
partir da experiência e a formação com base na reflexão têm muitos
elementos em comum. (2004, p. 46)

Quando se estima a adaptação dos conceitos dos pesquisadores à realidade do


cotidiano em que vive o aluno estagiário, pensa-se que novas ideias devem ser
incorporadas à formação desse futuro professor, desde que de fato possam corresponder
às próprias aspirações, ao contexto em que ele vai atuar, às carências e potencialidades
desse contexto. Assim, a operacionalização das concepções sobre “professor reflexivo”,
por exemplo, passa pelas observações de Pimenta e Lima (2004), que bem lembram os
limites em que tais conceituações podem ser adaptadas à escola brasileira e que esforços
precisam ser empreendidos para a sua superação:

Tirar do papel e tentar operacionalizar a idéia (sic) de professor


reflexivo e pesquisador é o grande desafio das propostas curriculares
dos cursos de magistério e dos planos de ensino dos professores
formadores. De forma individual ou coletiva, há tentativas várias de
concretização de tal proposta em diferentes modalidades de estágio.
(PIMENTA; LIMA, 2004, p. 51) 1

Assim, os conceitos de “pesquisa-ação” e de “professor reflexivo” são apresentados


aos alunos respeitando-se a integralidade desse ideário, mas ao mesmo tempo eles são
instigados a observar as possíveis correspondências entre o plano conceitual e o
contexto do campo de atuação, com todos os revezes implicados. Dentre eles, a questão
fundamental da presença da violência nas escolas, fruto da falta de educação familiar,
da organização escolar em torno do problema, do estímulo à prática do bullying, tão
comum numa sociedade extremamente competitiva como a brasileira.
Dentre as “tentativas várias de concretização” da concepção de professor reflexivo,
como apontam Pimenta e Lima, e a par das já relatadas atividades de cunho oral, foi
introduzida a tarefa de escrita do portfólio na ementa de Prática de Ensino de Literatura,
no quarto ano. É por meio dessa forma de registro que se pode constatar os efeitos do
processo de ensino na trajetória acadêmica do aluno. Buscou-se inspiração nas
deliberações de Isabel Alarcão, de Idália Sá-Chaves e de Carlos Ceia, todos autores

1
Considere-se que a edição consultada apresenta problemas de paginação, conforme consta em
errata apresentada pela editora.
portugueses, com o objetivo de se chegar à sugestão de um formato de portfólio,
modelo este que ainda está em processo de aperfeiçoamento.
Alarcão assim procura definir portfólio: “Um conjunto coerente de documentação
reflectidamente seleccionada, significativamente comentada e sistematicamente
organizada e contextualizada no tempo, reveladora do percurso profissional.” (2004, p.
55) Trata-se, como se vê, de uma concepção já distanciada do campo das artes, de onde
o vocábulo se originou, mas é Idália Sá-Chaves, segundo Alarcão, quem vai adaptar o
conceito à área da formação de professores, por isso mesmo ampliando o significado da
expressão ao associá-la à designação de “portfólios reflexivos”. Em entrevista
concedida à revista do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino, da
Universidade Estadual de Ponta Grossa, denominada Olhar de professor, em 2004, a
autora, que é doutora em Didática na especialidade de Supervisão e Formação pela
Universidade de Aveiro, ressalta as peculiaridades do portfólio como instrumento
coerente com as propostas de avaliação formativa:

O portfolio sendo uma estratégia que concretiza cabalmente esta nova


filosofia [de avaliação] constitui, por isso, uma narrativa de cariz
reflexivo, que dá voz à pessoa do aluno que aprende, na medida da sua
auto-implicação no processo e na complexa e múltipla interacção, que
a relação entre aprender e ensinar pressupõem. De um modo sempre
inacabado e intencional o aprendente vai dando conta não apenas dos
conteúdos que medeiam essa interacção, como também dos
significados e dos sentidos que ele mesmo atribui à informação com a
qual interage. Por sua vez, o formador tomando conhecimento da
evolução do aluno pode, em tempo útil, dar informação apropriada,
que reencaminhe os processos de desenvolvimento de cada aluno.
(2004, p. 10)

De fato, é o momento em que o formando recupera as suas experiências de estágio,


desde o terceiro ano, e se põe a tecer considerações sobre a sua trajetória, revendo
posturas, contrastando-as com os ensinamentos absorvidos e projetando o perfil que
pretende assumir no seu cotidiano escolar. Na feitura dos seus apontamentos, a presença
do professor orientador é fundamental para cooperar em circunstâncias que revelam
lacunas, ambigüidades, desvios de percurso, ou mesmo corrigir em tempo erros de
assimilação de conceitos ou de metodologias.
Este compromisso de se voltar para dentro de si mesmo e de rever posições, por meio
de uma escrita que lembra o tom confessional, invariavelmente implica um processo de
verdadeiro embate pessoal, no momento em que o aluno se prepara para sua formatura e
está preso ao mesmo tempo a convicções de dever cumprido e a visões de assombro
diante do futuro que se lhe impõe. Não raro, são surpreendentes os registros de
manifestações de alegria diante da representação do aprendizado para a vida escolar, ou
de angústia por só então dar-se conta de que o tempo dessa experiência foi curto demais
perante a enorme responsabilidade a ser assumida na visa profissional.
Na busca por um modelo de portfólio que fugisse ao padrão do relatório comum de
estágio, localizou-se uma das configurações mais bem elaboradas, a de Carlos Ceia,
docente do Departamento de Estudos Anglo-Portugueses da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tendo por meta acompanhar o
processo formativo de seus alunos universitários, o professor elaborou um roteiro a
partir de outros já existentes nos moldes anglo-americanos, que se conformasse às
especificidades dos parâmetros portugueses de formação de professores. Para o
professor, elaborar um portfólio

é uma oportunidade única para o professor-estagiário poder reflectir


sobre toda a sua prática pedagógica, incluindo formas de auto-
avaliação do trabalho desenvolvido, execução de planificações de
aula, investigação pedagógica realizada, acções de formação
promovidas, projectos educativos concebidos, etc. A componente
auto-reflexiva é uma das mais importantes na construção do porta-
fólio da prática pedagógica. O professor-estagiário deve ser capaz de
auto-avaliar permanentemente o seu trabalho pedagógico e reflectir
sobre os resultados do seu ensino. (2001, p. 2)

Tal como defenderam Alarcão e Sá-Chaves, o caráter reflexivo é destacado pelo


professor, a ponto de a própria estrutura do portfólio motivar uma relação mais estreita
entre o aluno e as suas lembranças do estágio desenvolvido. Além dessa peculiaridade,
o modelo ainda permite a exposição da jornada empreendida, contemplando tanto os
aspectos formativos quanto a execução de tarefas. Foram providenciadas adequações
nessa estrutura, redefinindo certos elementos que deveriam ser objeto de apreciação do
estagiário do norte paranaense em seu contexto sociocultural. Da mesma forma, optou-
se por tornar os apontamentos mais breves e pontuais, de modo que o formato proposto
restou mais enxuto, sem perder de vista a possibilidade de avaliação da qualidade da
narrativa do aluno. Para se ter uma ideia do seu formato, o Sumário do portfólio está
assim definido: Introdução, I. Exposição da planificação empreendida, II. Execução e
avaliação, III. Trabalho de projeto, IV. Exemplos de prática pedagógica, V.
Metodologia específica do ensino da disciplina, VI. Relação com a comunidade escolar,
VII. Relações interpessoais, VIII. Síntese final.
Objetivando demonstrar o envolvimento dos alunos com a elaboração dos portfólios,
e alguns dos resultados da atuação do docente de Prática de Ensino, observem-se alguns
exemplos que foram colhidos das partes do formato proposto, entre os anos de 2006 e
2007.
Na Introdução, destacam-se duas questões interessantes: a importância da construção
do portfólio na prática pedagógica e a importância do estágio supervisionado na
experiência profissional do estagiário.
Quando o aluno inicia a elaboração do portfólio, tendo em vista todo o percurso já
empreendido, guarda plena consciência de que se trata de um processo reflexivo acerca
das conquistas alcançadas e também das lacunas ainda por preencher. O aluno
reconhece que efetuou um mergulho na própria aprendizagem e que tal postura deverá
passar a fazer parte de seu perfil profissional.
Quanto à importância do estágio supervisionado, mais do que repetir os conceitos
teóricos assimilados durante o processo formativo, os graduandos também procuram
expor suas próprias concepções, que são fruto da experiência diária com as
inseguranças, ansiedades e esperanças forjadas nas salas de aula. Eis alguns
depoimentos:

Somente através do Estágio, o acadêmico tem a noção real da


profissão que poderá estar exercendo após a conclusão do curso de
graduação. É no Estágio Supervisionado que o estudante se depara
com as mais diversas situações-problema, ampliando assim sua
expectativa criada na graduação a respeito do que é ser professor.
Dessa forma, estará apto para decidir seguir ou não a carreira
educacional. Sem os estágios, é impossível saber a dimensão do
ensino, que envolve não só as teorias de grandes estudiosos, mas
depende muito da vivência e da prática escolar. (Suzete)

É exatamente através desse período que o acadêmico poderá conhecer


a profissão escolhida e, assim, descobrir se há identificação ou não
com a área. [...] O estágio supervisionado tem a característica de
ampliar a visão que o acadêmico faz, ou fazia, de sua futura profissão.
Posso confirmar essa experiência na minha própria trajetória
acadêmica. Somente com o contato que o estágio me possibilitou ter
com o universo escolar, foi que pude perceber o quanto estou
motivada com minha profissão e o quanto posso contribuir para que
melhorias sejam iniciadas. Quando penso na palavra “ensinar” é como
se seu significado ultrapassasse o conteúdo didático específico e
atingisse um patamar que envolve a noção de cidadania,
responsabilidade e capacitação. (Ana Luiza)

Contudo, para aqueles que não pretendem assumir a profissão, já neste primeiro
depoimento se revela a falta de gosto pelo magistério, na não aceitação da experiência
em sala de aula como processo natural de formação do futuro professor:

O estágio supervisionado é uma prática obrigatória e imposta pelo


sistema de ensino, e isso muitas vezes desestimula o estagiário a
concretizá-lo devido à alta carga horária exigida. [...] Conciliar a
prática do estágio com vários aspectos da vida pessoal do estagiário
também é um fator “dificultador” (sic) nesse processo. (Renata)

Como se percebe, a aluna em questão parece desconhecer o perfil da licenciatura no


momento em que vai se graduar, e este, infelizmente, não é o único caso já registrado
entre formandos, ao final de cada ano letivo. Imagine-se que, mesmo não tendo simpatia
pelo exercício do magistério, estes formandos assumem mais tarde a direção de sala de
aula, e lá vão dar vazão aos seus descontentamentos.
Da parte I. Exposição da planificação empreendida, observam-se os registros acerca
do tópico “7. Reflexão crítica sobre os sucessos e insucessos do trabalho realizado”. Ao
se debruçar sobre estas considerações, os alunos já teriam posto em revista os três
momentos dos estágios: de observação participativa, de participação em atividades em
sala e extraclasse, e de regência. É surpreendente o nível de amadurecimento que o
formando atinge em relação à própria caminhada, mesmo quando já é professor, como
no caso abaixo:

O estágio realizado foi muito gratificante, levando-se em conta que se


concretizou no meu próprio local de trabalho [...] Há que se destacar
aqui a insegurança de minha parte ao iniciar o estágio, no que diz
respeito à professora regente, por ser colega. Um dos fatores
complicadores pelos quais, na minha opinião, dificultaram a primeira
fase do trabalho. As fases seguintes foram as melhores, pois foi
possível um contato mais próximo com os alunos. O intercâmbio de
informações, as experiências vividas, a realidade do ensino de
literatura para jovens, com seus acertos e seus tropeços se tornaram
fontes riquíssimas de aprendizado pessoal e profissional. Finalmente,
posso afirmar com toda a convicção que a experiência me permite,
que momentos vividos num processo de estágio supervisionado são
imprescindíveis, e nenhum formando deve abrir mão desse direito,
pois muito mais que um dever a ser realizado, é direito do estudante
poder vivenciá-lo plenamente. (Anita)
Já para os chamados “estreantes”, a experiência é reveladora das limitações pessoais,
mas também das potencialidades a serem atingidas, com a firme certeza de que os
obstáculos podem ser vencidos com a força do trabalho bem realizado, como se vê a
seguir:

Sabemos que, independente da profissão que escolhemos


desempenhar, sempre encontraremos dificuldades e alegrias, mas o
que vai nos diferenciar da maioria das pessoas que por inúmeras
razões escolheram a mesma profissão que nós, será o modo como
enfrentaremos as dificuldades, a nossa forma de olharmos para os
problemas e procurar soluções, mesmo quando milhares de vozes
gritam aos nossos ouvidos que não há nada a ser feito. E quando as
vitórias chegarem, porque mesmo que penosamente elas chegarão,
devemos administrá-las com seriedade e maturidade.
[...] Assim, refletindo sobre os sucessos e insucessos de meu estágio,
fica a certeza de que o sucesso foi um retorno que tive de todo meu
esforço. E os insucessos, uma maneira de olhar para os fatos e não me
conformar, tentar de alguma forma contribuir para transformar este
quadro alarmante em que o ensino da literatura está inserido, mesmo
que para muitos possa parecer utópico, cabe a nós, futuros
professores, mostrar que nada é impossível. (Paula)

No entanto, para aqueles que não se identificam com a profissão, o relato é objetivo,
desprovido de qualquer encantamento:

[...] Talvez os meus insucessos sejam devidos a ter descoberto, tarde


demais, que não fui feita para administrar uma sala de aula. [...] pois
não é possível ensinar qualquer coisa enquanto a indisciplina reinar na
sala de aula. (Renata)

Como uma das metas da disciplina de Prática de Ensino de Literatura é o conhecimento


e a aplicação de metodologias de ensino, convém resgatar ao menos duas apreciações
sobre o tópico 4, inserido na parte V. Metodologia específica da disciplina:

A escolha da metodologia sugerida pela professora orientadora e por


mim adotada foi bem aceita pelos alunos. As aulas tiveram um bom
andamento. No ensino médio, utilizei o método recepcional, apenas
algumas de suas etapas, porque o tempo não era suficiente, mas
consegui resultados satisfatórios. No ensino fundamental, apliquei
conhecimentos metodológicos diversos, e me surpreendi com o
resultado. A aula foi muito motivadora e produtiva.
Fiquei satisfeita e motivada, enquanto professora, com a pesquisa e
introdução de metodologias no ensino. Percebi que é realmente
importante levar a sério a inserção de metodologias na construção de
planos de aula, mesmo que sejam necessárias algumas modificações
ou adequações. Ter uma metodologia, ou várias, como base, é
fundamental. (Suzete)

Ao escolher as metodologias de ensino, pude contar com a ajuda de


minha professora orientadora. Juntas, ela, eu e minha colega de
estágio, chegamos a um consenso de que inseri-las seria de extrema
necessidade para que obtivéssemos um bom andamento da aula e
conseqüentemente bons resultados. Para isso, utilizamos, tanto no
ensino fundamental quanto no ensino médio, o método recepcional e o
método criativo [...] um pouco diversificados e adaptados à realidade
escolar encontrada. Percebi a importância das metodologias na criação
dos planos de aula e de seu desenvolvimento. (Márcia)

Os exemplos aqui reunidos, recortes de narrativas dos alunos em seus portfólios,


permitem apresentar alguns dos bons resultados dos procedimentos assumidos por
docentes do curso de Letras/Literatura, do Centro de Letras, Comunicação e Artes da
UENP/campus de Jacarezinho, no que se refere aos estágios em literatura.
A par da tentativa de se promover a qualidade do curso, revela-se a natureza
empreendedora de alguns dos graduados que, estimulados pelo ambiente acadêmico,
firmaram compromissos de cultivar a leitura literária na sua sala de aula, a despeito de
todas as adversidades que o contexto escolar hoje enfrenta. Não é raro identificar um ou
outro, que já atua na rede de ensino, abraçado à intenção de mudar os rumos do ensino
de literatura em suas práticas, colaborando para que se reverta o quadro crítico
detectado no início da década. Além dos desdobramentos das providências tomadas
naquela ocasião, certamente as contribuições do docente de Prática de Ensino, no curso
de Letras, ainda podem trazer mais luz a esta causa, quem sabe, colaborando para
transformar positivamente o entorno dessa unidade universitária na próxima década.

REFERÊNCIAS
ALARCÃO, Isabel. Professores reflexivos em uma escola reflexiva.3. ed. São Paulo,
Cortez, 2004. (Coleção Questões da Nossa Época; 103).

CEIA, Carlos. Porta-fólio da prática pedagógica. Disponível em:


<http://www.fcsh.unl.pt/docentes/cceia/educacao/portfolio.pdf>. Acesso em: 02 fev.
2006.

PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. São
Paulo, 2004. (Coleção docência em formação. Série saberes pedagógicos).
SÁ-CHAVES, Idália. Discutindo sobre portfólios nos processos de formação.
Entrevista com Idália Sá-Chaves. Olhar de professor. Ponta Grossa, 7 (2): 09-17, 2004.
Disponível em: <www.uepg.br/olhardeprofessor/pdf/revista72_artigo01.pdf.> Acesso em: 20
fev. 2006.

UENP. Ementas e disciplinas de Prática de Ensino de Literatura I e II. Centro de


Letras, Comunicação e Artes, 2010a e 2010b.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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OS SIGNOS SENSÍVEIS DA MEMÓRIA EM AS PARCEIRAS, DE LYA


LUFT

Iara Christina Silva Barroca (UFV)

É a partir do nada, do lugar do vazio, do silêncio de um Real que


irrompe e se nega à simbolização, que a memória se edifica e se faz
texto. É preciso esquecer para lembrar. É preciso haver lacuna para que
o gesto de memória se dê. (Lúcia Castello Branco, em A traição de
Penélope)

Como o objetivo maior desse trabalho é tentar elucidar um traço de escrita que
nasce, especialmente, das lacunas, das margens, das perdas e de possíveis vazios, é
imprescindível o destaque sobre a relação entre esse tipo de escrita e a memória,
parceira primeira, propulsora da escrita entendida como feminina. Se “é preciso
haver lacuna para que o gesto da memória se dê”, como nos diz Lúcia Castello
Branco, citada na epígrafe deste trabalho, e se a escrita feminina se dá, também,
através de — e em — um espaço lacunar, é inevitável realçar a aproximação,
especialmente no que diz respeito ao caráter constitutivo de ambas.
A proposta desse artigo é analisar como se dá a relação entre mito, memória e
escrita, refletindo sobre a possibilidade de ser o trajeto de rememoração de Anelise
(narradora do romance As Parceiras) similar àquele feito por Mnemosyne, deusa
da memória. Pretendemos refletir, também, sobre o sentido de (re) lembrar para
essa personagem / narradora, uma vez que ela se entrega ao ofício de narrar os
acontecimentos pretéritos, motivada pela razão de conhecer uma verdade sobre sua
história familiar. Ao trazer para o espaço romanesco esses acontecimentos, Anelise
cria uma estratégia apropriada para resgatar sua trajetória existencial desde a
infância, o que faz com que o texto que se tece a partir de suas reminiscências fale
mais do que ela mesma diz. A partir dessa situação, o leitor é convocado a
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descobrir, a decifrar os códigos desse jogo que propõe, agora, um passeio pelos
tortuosos caminhos da (des) memória feminina.
A memória, que é elemento especial para a construção dessa enunciação
feminina, se constrói a partir das lembranças de infância do infante, ou seja,
daquele que não fala. E a partir do que se cala, invadimos os territórios dessa
construção, nos quais se entrelaçam memória e escrita feminina, uma vez que
ambas se erigem a partir de um vazio estruturante, de um vazio que as constitui.
Para lembrar, é preciso esquecer, e para esquecer é preciso buscar o que ficou em
um tempo distante. Por isso Anelise volta aos tempos de infância, na esperança de
que, revivendo-os, possa superar os seus traumas existenciais. Como o que efetiva
a construção dessa narrativa é uma escrita baseada nos relatos da memória, uma
vez que Anelise nos narra muitas histórias de infância, achamos interessante
também citar Béatrice Didier, ao se referir à infância:
A infância é esta ‘espaciosa catedral’ onde as mulheres gostam de
retornar, e se recolher: parece-lhes que lá é possível reencontrar sua
verdadeira identidade, como numa nostalgia de sua integridade
original. Nostalgia talvez de uma linguagem, feita mais de balbucios
e gritos, sensações e imagens do que palavras. (DIDIER, 1981,
p.25).

A partir dessas reflexões, percorreremos os labirínticos caminhos da (des)


memória de Anelise, que se apresenta, em seus relatos, descontínua, desordenada,
fragmentada — feminina?
Se pensarmos em Mnemosyne, deusa da memória, quinta esposa de Zeus, irmã
de Crono e Okeanós, veremos que ela preside à função poética e imaginativa dos
artistas criadores. Suas filhas, as Musas, divindades responsáveis pela inspiração,
garantem ao poeta o privilégio da vidência e a função de intérprete de Mnemosyne,
aquela que possui o saber de “tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será”
(VERNANT, 1973, p.73). Como inspiradora da invenção poética, essa deusa
feminina revela as relações obscuras entre o rememorar e o inventar, uma vez que
é por intermédio dela e de suas filhas que os poetas possuem o dom da poesia, o
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dom da linguagem. Essas associações já nos permitem entrever a inevitável relação


de proximidade entre memória e linguagem.
Para os gregos, Mnemosyne é capaz não só de promover o resgate do passado
como sua perda ou como seu esquecimento. Segundo Hesíodo, na Teogonia, a
função da memória não consiste apenas em tornar presente o passado, mas também
em promover o esquecimento, fato que nos revela uma aparente natureza paradoxal
dessa deusa: a memória é, também, esquecimento. Tais idéias, que aliam memória
e esquecimento, parecem se fundar na narrativa mítica que, segundo Vernant, já
assinala, com precisão, uma íntima relação entre os atos de lembrar e esquecer. De
acordo com o mito, é na trajetória de descida ao Hades, precedida por um ritual de
purificação necessário ao ingresso dos seres na “boca do inferno” que se verá, com
maior nitidez, a estreita articulação entre Lethe (esquecimento) e Mnemosyne
(memória), como forças antagônicas complementares:
Antes de penetrar na boca do inferno, o consultante, já submetido
aos ritos purificatórios, era conduzido para perto de duas fontes
chamadas Lethe e Mnemosyne. Ao beber da primeira, ele esquecia
tudo de sua vida humana e, semelhante a um morto, entrava no
domínio da noite. Pela água da segunda, ele devia guardar a
memória de tudo o que havia visto e ouvido no outro mundo. A sua
volta, ele não se limitava mais ao conhecimento do mundo presente.
O contato com o além lhe havia trazido a revelação do presente e do
futuro. (VERNANT, 1973, p.79).

Como se pode ver, o processo da memória transcrito no trecho acima não deve
ser entendido apenas como preenchimento de lacunas, (re) composição de imagens
passadas, mas, também, enquanto a própria lacuna, enquanto decomposição, litura
dessas imagens.
Além disso, as reflexões advindas do trecho acima nos remetem à epígrafe deste
artigo, uma vez que elas nos permitem considerar o fato de que o passado não se
conserva inteiro nos refúgios da memória; ele se constrói, também, a partir de
faltas, de ausências, que (re) aproximam o processo da memória com o processo de
produção da escrita feminina, constituída, especialmente, desses constantes vazios.
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A proposta de analisar a similaridade entre o trajeto de Anelise e o de


Mnemosyne, nos aproxima muito dessa relação de contigüidade, de
complementaridade entre os atos de esquecer e lembrar. As primeiras
considerações levantadas sobre a posição da narradora restringem-se ao fato de
descobrir o porquê de (re) lembrar seu passado, ou seja, qual o significado dessa
memória que, junto com Anelise, narra o romance: Lembrar para esquecer?
Lembrar para reviver o passado no presente e superar uma grande falta? Ou para
buscar uma verdade capaz de (re) constituir esse ser de papel e apagar suas
angústias?
Essas são algumas questões que rumorejam em nossas reflexões sobre o papel
da memória nessa narrativa, uma vez que ela, além de constitutiva de uma
enunciação feminina, se faz também fina matéria de constituição desse espaço
romanesco, isto é, as lembranças de infância se fazem, também, parceiras de
Anelise. Através delas percorremos os labirínticos caminhos da (des) memória
dessa personagem, que se vê instigada a descobrir o “lance perverso da jogada”.
Por isso, Anelise acredita que a única possibilidade de salvação é voltar ao
passado, na tentativa de encontrar uma explicação para as raízes enfermas de sua
família e, finalmente, de se livrar do malogrado destino de ser “mais uma da
legião” de perdedoras.
Há que se realçar, aqui, mais uma vez, a estreita relação entre o lembrar e o
esquecer, e, assim, a impossibilidade de ser fiel a situações pretéritas, ainda que
memoráveis. Ao voltar a casa para (re) lembrar sua história familiar, Anelise acaba
se comprometendo em relação à fidelidade dos fatos que a levaram a buscar a
verdade sobre a loucura de sua avó. Para isso, leia-se: “Hoje sei todos os detalhes
que há para saber sobre sua vida, mas a verdade perdeu-se entre aquelas paredes”
(AP., p.13). Se a verdade ficou perdida entre paredes, confirma-se a
impossibilidade de manter uma “conservação do vivido em sua integridade”, como
nos diz Lúcia Castello Branco, uma vez que essa verdade, como bem nos diz a
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narradora, se perdeu. Além disso, Anelise tem “bastante tempo para repassar o
filme todo mais uma vez” (AP., p.17). Essa idéia de “repassar o filme todo mais
uma vez” nos remete a uma possibilidade de escolha, por exemplo, das cenas a que
se pretende assistir, dos acontecimentos que, de fato, Anelise quer narrar. Adélia
Bezerra de Menezes, em um ensaio sobre Memória e ficção, já nos fala sobre a
condição de registro da memória, no que diz respeito à capacidade de seleção
daquilo que se pretende registrar: “a memória não é museológica, mas seletiva”,
isto é, ela não acumula as coisas — os acontecimentos — indiscriminadamente,
tampouco as relata dessa forma. Ao sistematizar uma cadeia associativa que
estabeleça uma ordem para que os fatos sejam narrados, automaticamente já ocorre
esse processo de seleção na memória. Não há mais um “depositar sem seleção,
indiscriminado”. Nesse momento, já se sabe o quê lembrar e como o reconstituir
no nível da linguagem.
Como no romance tudo o que sabemos obedece a uma (des) ordem instituída na
memória da narradora, não se pode confiar na veracidade dos fatos que se narra no
momento presente, embora eles se dêem a conhecer através de buscas pretéritas. É
certo que o tempo da narrativa é um tanto diferente do tempo da história vivida
pela personagem, mas isso, que parece óbvio, ganha complexidade a partir da
seguinte reflexão:
(...) não há como fazer coincidir o chamado tempo do vivido com
o tempo do revivido, com o tempo construído pela memória e,
portanto, pela linguagem: qualquer gesto de rememoração se
efetua sempre a partir de um fosso temporal intransponível. É
precisamente na linguagem que pretende descrever, criar a
continuidade almejada, que essa continuidade se rompe: o signo se
erige sempre a partir do que já não é. (grifo da autora)
(CASTELLO BRANCO, 1994, p.29).

Se o signo se erige sempre a partir do que já não é, não se deve acreditar na


verdade dos fatos que Anelise nos narra. O cachorro Bernardo, a caseira Nazaré e a
veranista são as imagens do tempo presente. A essas personagens presentes não
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interessam as memórias confusas de Anelise: elas parecem interessar, apenas, ao


leitor.
Como Mnemosyne — fonte da memória que está ao lado de Lethe, a fonte do
esquecimento, Anelise aproxima os três tempos em que a memória se envolve:
presente, passado, futuro. No mesmo parágrafo a narradora reúne esses três tempos
e os relata, aproximando a causalidade — ou a casualidade — de cada um deles:
“hoje vamos subir o morro”, “ontem eu o prendi demais”, “subo devagar a
estradinha íngreme”, “tantas vezes andei aqui com Adélia”, “fizeram um caminho
melhor”, “mas hoje não quero máquina”. Como se pode ver, presente, passado
próximo — ontem —, passado distante — tantas vezes —, futuro. Proximidade e
distância, presente e passado, vida e morte, entre outros: Lya Luft parece pretender
invalidar a idéia antagônica que (re) une essas instâncias. Nesse romance,
especialmente, privilegia mais a contigüidade dessas relações aparentemente
contrárias, do que suas diferenças, melhor dizendo, suas oposições. A decisão de
Anelise de rememorar o seu passado, e com ele a história de sua família, se dá no
momento presente da narrativa, ou seja, é do presente, tempo que intercepta o
passado e o futuro, que parte o chamado que evoca suas lembranças. Assim, o
tempo da memória nada mais é do que o tempo da presença, onde esse sujeito
narrador se apresenta e, na rememoração, conta (inventa?) o seu passado. Como se
pode ver, a memória é o que determina a construção dessa narrativa, não a ação das
personagens.
Se dissermos que a vida de Anelise, como a de Scherazade, foi “trocada por uma
narrativa”, torna-se possível sugerir, também, uma relação entre memória e (i)
mortalidade, uma vez que refletimos sobre a supremacia da palavra enquanto
mecanismo de linguagem e de uma possibilidade de salvação.
Segundo Walter Benjamin, “é no momento da morte que o saber e a sabedoria
do homem e sobretudo sua experiência vivida — e é dessa substância que são
feitas as histórias — assumem pela primeira vez uma forma transmissível”
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(BENJAMIN, 1985, p.207), o que determina que o texto se constitua antes num
produto da rememoração do que propriamente da experiência. Para isso, leia-se:
Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na
esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem
limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e
depois. Num outro sentido, é a reminiscência que prescreve, com
rigor, o modo da textura. Ou seja, a unidade do texto está apenas
no actus purus da própria recordação. (BENJAMIN, 1986, p.37).

Ainda em seu ensaio sobre O narrador, Benjamin associa essa entidade


narrativa, com sua “breve memória”, à Scherazade, que “imagina uma nova
história a cada passagem da história que está contando”. Os atos de Anelise
também se aproximam dos atos de Sherazade. Primeiro por tentar fazer de sua
narrativa uma forma de salvação; segundo por, talvez, inventar um passado que a
(re) conforte. No romance, os fatos narrados não obedecem a uma linearidade; à
medida que Anelise se lembra deles, segue relatando-os, ou seja, não há uma
preocupação em ordenar esses acontecimentos. Há uma certa confusão ao narrá-
los, pois no mesmo momento em que lembra um acontecimento pretérito, age no
presente, como, por exemplo, nessa citação em que ao lembrar-se de um gesto da
amiga Adélia, que soltou das mãos uma flor — no passado —, também adormece
— no momento de agora, presente —: “Afinal o cansaço vence, e o peso das
lembranças. Afundo no sono como aquela flor rosada desceu até o mar quando
Adélia abriu os dedos e a soltou de cima do penhasco vertical. O lírio foi girando,
girando, e finalmente, as águas devoraram tudo”. (AP., p.33).
A própria questão de a narrativa ter os capítulos intitulados pelos nomes dos
sete dias da semana já esboça uma visível insistência em revelar a proximidade
entre presente e passado, uma vez que se pode pensar nessa escrita diária, também
feita em um diário. Em seu diário, Anelise relata tudo o que vai fazer durante o dia
e, ao mesmo tempo, o que aconteceu em seu tempo de criança.
Todos os capítulos começam a serem narrados a partir de uma intenção presente
que, aos poucos, se mescla aos acontecimentos passados. No domingo, por
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exemplo, primeiro capítulo do romance, temos: “Catarina tinha quatorze anos


quando casou, penso, enquanto seguro a balaustrada, me debruço para aspirar
melhor a maresia, e deparo com a mulher postada no morro à minha direita.”(AP.,
p.11). Segunda-feira: “— Bernardo, hoje vamos subir o morro. Levar flores para os
mortos (...) tantas vezes andei aqui com Adélia” (AP., p.37). Terça-feira: “A
manhã se estende tão luminosa que decido andar na praia. (...) Não há ninguém
aqui a essa hora, apenas uma mulher idosa e uma criança. Ou é mocinha? Uma
criatura melancólica que me lembra Bila” (AP., p.51). Quarta-feira: “Acordo, Zico
fala esganiçado com a mãe na cozinha (...) Acordar com risadas de criança é bem
melhor do que ser arrancada do sono pelas batidas secas de tia Beata na porta, nos
tempos do casarão. Um despertador implacável, aqueles ossos dos dedos não
perdoavam” (AP., p.73). Quinta-feira: “Noite de pesadelos: uma anã de trança
escava numa sepultura, retira ossos, desmonta esqueletos. (...) No cochilo que
segue percebo meio atordoada alguém chamando meu nome. (...) Catarina não faria
isso” (AP., p.93). Sexta-feira: “Acordo com agitação na casa. Parece que dormi
apenas minutos. Vozes, correria, claridade cinzenta. Madrugada. Medo: Adélia
morreu. Mas isso faz muito tempo” (AP., p.109). Finalmente, sábado: “A
empregada agourenta não veio mesmo. Esquento o café de ontem, tem um gosto
horrível. Se continuar assim sem comer, entro em levitação. Mas não acho graça
nenhuma da idéia. Como Adélia havia de rir disso, naquele tempo distante!” (AP.,
p.125).
Essas citações nos ajudam a demonstrar, com mais clareza, como o presente
incide sobre o passado e como, de certa forma, ele altera a sua percepção. A
filosofia, segundo Henri Bergson, nos fala do caráter criador dos atos da memória,
incapazes de reproduzir exatamente o fato em si. Mesmo tentando provar que o
passado se conserva inteiro no espírito, Bergson admite que “é do presente que
parte o chamado ao qual a lembrança responde” (BERGSON, 1983, p.10). E essa
afirmação reitera nossas idéias especialmente no que diz respeito ao estudo da
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constituição desse romance, que se dá, para nós, essencialmente através da


memória.
Lúcia Castello Branco, em seu livro intitulado Literaterras, ao se referir à
psicologia social que incide, segundo ela, junto à filosofia nos conceitos sobre a
memória, cita Maurice Halbwachs como um exemplo mais audaz em relação às
afirmações feitas por Bergson, uma vez que Halbwachs afirma, categoricamente,
que toda lembrança implica, sempre em uma dose de invenção:
A lembrança é uma imagem constituída pelos materiais que estão,
agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que
povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a
lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que
experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de
então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas
idéias, nossos juízos de realidade e de valor. (HALBWACHS apud
CASTELLO BRANCO, 1995, p.136-137).

Essa questão que concerne à lembrança uma dosagem de invenção, embora um


tanto delicada, deve ser mais elaborada no sentido de discorrer sobre a posição de
Anelise enquanto narradora, rememoradora de sua própria história. Suas
lembranças percorrem não só os labirintos de sua memória, mas também os
labirintos do Chalé com seus quartos, escadaria, portas, janelas, banheiro, sacada,
varanda, cozinha, jardim, sótão. Todos esses espaços domésticos dão uma idéia de
concretude ao ambiente no qual Anelise viveu sua infância e, também, seus medos
familiares. As sensações que ela nos descreve estão associadas a esses lugares que
parecem manter as devidas particularidades dos acontecimentos. A lembrança da
imagem da avó, bem como a do encontro com ela — que se dera uma única vez —
a descrição do sótão, tudo se dá em torno da casa que parece ser o centro, o
tabuleiro no qual se espalham as peças do jogo:
A mulher do morro me fez pensar em minha avó. Catarina
costumava ficar horas a fio atrás do vidro da porta que abria para a
sacada. Dizem que do jardim se via seu rosto branco e ausente.
Tive com ela um único encontro, quando eu era pequena. Lembro
o aperto da mão de mamãe quando subíamos a escada em caracol,
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lembro o contraste entre a sombra e a claridade do quarto, onde


tudo era branco: paredes, cortinas, tapetes, móveis, até as rendas
do vestido comprido de sua moradora. Um quarto de menina,
aquele. Limpo. Chamavam de sótão a esse quarto do terceiro piso
do casarão, com um banheiro e a sacada. Combinava bem o nome:
uma palavra triste e sozinha. A porta rangeu como estas velhas
madeiras agora, mas em vez de maresia pairava ali um cheiro forte
de alfazema. (AP., p.12).

Venus Coury, ao escrever um ensaio sobre literatura e memória intitulado


Babel, diz que a casa é um “território privilegiado” e, para enfatizar esse seu
conceito, cita-nos Bachelard:
(...) uma espécie de atração de imagens concentra as imagens em
torno da casa. Através de todas as casas que sonhamos habitar, é
possível isolar uma essência íntima e concreta que seja uma
justificação do valor singular de todas as nossas imagens de
intimidade protegida (...) (COURY, 1998, p.52).

Como se pode ver, Anelise isola sua intimidade no sótão, como a avó Catarina.
Como se isso não lhe bastasse, ela faz de si mesma seu próprio sótão existencial.
Para ela, não se trata apenas de escrever essa narrativa, mas, também, de escrever-
se nela. Talvez por isso lhe seja fundamental tecer o seu bordado, ainda que
partindo do lado avesso, esse da memória.

Referências

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov.


In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet.
São Paulo: Brasiliense, 1994, p.197-211.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o
espírito. Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2ª ed. São Paulo: TA
Queiroz, 1983.
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CASTELLO BRANCO, Lúcia. O que é escrita feminina.São Paulo: Brasiliense,


1991.
CASTELLO BRANCO, Lúcia. Literaterras: as bordas do corpo literário/ Lúcia
Castello Branco, Ruth Silviano Brandão. São Paulo: Annablume, 1995.
CASTELLO BRANCO, Lúcia. A traição de Penélope. São Paulo: Annablume,
1994.
COURY, Venus. Babel: ensaio sobre literatura e memória. Belo Horizonte:
Edições do autor, 1998.
DIDIER, Béatrice. L’Écriture Femme. Paris: Presses Universitaires de France,
1981.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. 4. ed. São Paulo: Iluminuras, 2001.
LUFT, Lya. As parceiras. Rio de Janeiro: Record, 2003.
MENEZES, Adélia Bezerra de. Memória e ficção. Resgate: revista de cultura.
Campinas, SP: Unicamp, Centro de memória, nº 3, Julho de 1991, p.9-15.
MENEZES, Adélia Bezerra de. Do poder da palavra: ensaios de literatura e
psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
VERNANT, JEAN PIERRE. Mito e pensamento entre os gregos: Estudos de
psicologia histórica. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
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AS VIAGENS DE MANUEL BANDEIRA PELA CIDADE DE OURO PRETO

Ilca Vieira de Oliveira (UNIMONTES/CNPq) 1

“PATRIMÔNIO

Duas riquezas: Minas


e o vocábulo.”
(Carlos Drummond de Andrade)

A viagem dos poetas modernistas às cidades de Minas como os “descobridores do


passado colonial” teve início em 1919 com o jovem Mário de Andrade em visita ao
poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, em Mariana. Nessa viagem, ele também
manteve contato com as construções antigas da cidade de Ouro Preto. Alphonsus de
Guimaraens, em carta ao seu filho João Alphonsus, faz o seguinte comentário sobre a
visita que recebeu de Mário:
Há cinco dias esteve aqui o Sr. Mário de Morais Andrade, de S.
Paulo, que veio apenas para conhecer-me, conforme disse. É doutor
em ciências filosóficas. Leu e copiou várias poesias minhas
(principalmente as francesas), e admirou o teu soneto oferecido ao
Belmiro Braga. É um rapaz de alta cultura, sabendo de cor, em
inglês, todo o “Corvo”, de Poe. Viaja para fazer futuras
conferências e visitou todos os templos desta cidade. A verdade é
que, para quem vive, como eu, isolado – uma visita dessas deixa
profunda impressão. (GUIMARAENS, apud GUIMARAENS
FILHO, 1995, p. 356)

Sobre essa visita, Mário de Andrade escreve um artigo publicado em A Cigarra, de


São Paulo, em agosto de 1920, que traz o olhar de um sujeito preocupado com a
valorização dos elementos artísticos e culturais do país, principalmente em se tratando
da produção literária, fazendo a seguinte indagação: “Não haverá no Brasil um editor
que lhe agasalhe os poemas, tirando-os da escuridão?” (ANDRADE, apud
2
GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 358) . Como se vê pela pergunta de Mário, o que faltava

1
Doutora em Literatura Comparada pela UFMG. Professora de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua
Portuguesa do Departamento de Comunicação e Letras e do Mestrado em Estudos Literários da Unimontes. O
presente texto faz parte de resultados de pesquisa desenvolvida no projeto “Cidades de Minas na poesia brasileira do
século XX”, financiado pelo CNPq.
2
ANDRADE, Mário de., BANDEIRA, Manuel. Itinerários. Cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira a
Alphonsus de Guimaraens filho. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
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era a valorização e divulgação desse poeta completamente desconhecido pelos


brasileiros. Nesse sentido, Mário faz um apelo aos editores do país para que possam
tirar da escuridão os poemas desse autor que se encontrava distante dos grandes centros
culturais do país, Rio de Janeiro e São Paulo, continuando com as suas indagações da
seguinte maneira:
Não existirá a piedade dum novo bandeirante que vá descobrir nas
Minas Gerais essa minas de diamantes castiços e lapidados, e
deslumbre os da nossa raça com tesoiros que Alphonsus guarda
junto de si? Onde? quando o abre-te Sésamo dessa gruta
encantada?.... (ANDRADE, apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p.
358)

Mário foi o primeiro bandeirante modernista que veio explorar essa gruta encantada
que existe nas cidades barrocas. Em 1924, depois da Semana de Arte Moderna, com a
viagem da caravana dos paulistas Mário, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e do
poeta franco-suiço Blaise Cendrars a São João del Rei e Tiradentes, pode-se ver que
outros bandeirantes teriam se juntado a Mário na busca de metais preciosos. A arte
dessas cidades de Minas provocou um efeito em todo o grupo que, ao retornar para São
Paulo, passou a se preocupar com a valorização das cidades históricas e do patrimônio
cultural do país. Como resultado da descoberta do século 18 pelos modernistas
paulistas, temos várias produções artísticas e críticas como, por exemplo, a pintora
Tarsila do Amaral que produziu desenhos inspirados na plástica local e Oswald de
Andrade que compôs vários poemas para Pau Brasil, de 1925. Sobre a visita dos
modernistas às cidades de Minas e a repercussão que ela teve para esses intelectuais, o
crítico Rui Mourão faz a seguinte exposição:
No retorno a São Paulo, a preocupação com a valorização das cidades
históricas passou a ser incluída nas linhas programáticas dos jovens
revolucionários. Eles identificavam, naquela arte de dois séculos
atrás, a autenticidade de inventiva que desejavam alcançar. Essa
descoberta os inseria numa tradição. Com a retaguarda daquela forma
protegida, sentiam-se mais seguros e mais bem plantados. E o
trabalho para divulgar o patrimônio barroco e difundir informações
sobre ele não terminaria mais. Através de artigos e constantes
referências, procurava-se trazer, para o desfrute dos contemporâneos,
valores que não podiam continuar ignorados, exilados ou esquecidos
no passado. Na obra de Francisco Lisboa e outros, brilhava a chispa
da genialidade. O acervo que as chamadas cidades históricas reuniam
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representava prodigioso conjunto de arte que a cultura de tradição


portuguesa deixara nestas paragens. (MOURÃO, 1994. p. 39-40)

No início de 1919, ano em que Mário de Andrade esteve em Mariana para visitar o
poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, o poeta Manuel Bandeira – que também
tem papel importante na Semana de Arte Moderna e no modernismo brasileiro –
encontrava-se em Juiz de Fora e escreveu um artigo “A academia e Alphonsus de
Guimaraens” para o Correio de Minas, jornal daquela cidade, em 19 de janeiro,
mostrando que seria uma honra a Academia ter esse poeta como sucessor de Bilac. Mas
essa não seria a vez de um escritor mineiro ocupar a cadeira do poeta parnasiano, mas
sim do escritor paulista Amadeu Amaral. Muitos anos depois, em 1953, Bandeira ainda
retoma a frustrada candidatura desse escritor à Academia Brasileira de Letras e continua
a defender esse poeta simbolista por reconhecer a importância da sua poesia para a
literatura brasileira, chegando a comparar a sua grandeza poética à do escritor francês
Mallarmé 3.
O poeta Bandeira, ao longo de sua vida, manteve contato com vários intelectuais
mineiros, correspondendo-se com alguns deles por vários anos. Nota-se que suas
viagens por Minas não se restringiram às leituras da poética árcade e simbolista que
demonstra conhecer muito bem em seu exercício de crítico e poeta; elas são, de fato,
viagens reais que o poeta fez como pesquisador para conhecer e recolher informações
para compor o livro-guia de Ouro Preto. Em carta de 26/7/1937 para Mário de Andrade,
o poeta Bandeira, quando retorna de São Paulo para o Rio, informa ao amigo que a

3
O texto de Manuel Bandeira de 1953 chama-se “Alphonsus de Guimaraens”. Bandeira, em carta escrita para Mário
de Andrade com data de 12/10/1941, entre as notícias que dá ao amigo, pede um conselho sobre a antologia dos
simbolistas e pós-parnasianos que estava em fase de preparação para o Ministério de Educação. Apresentamos
fragmento do texto: “O Capanema mandou me chamar e reclamou a antologia dos simbolistas e pós-parnasianos.
Tenho que fazer! Dê-me um conselho: não acha que é pena misturar simbolistas e pós-parnasianos? Já li e reli com
cuidado o Cruz e Sousa e estou seguro da minha escolha. Mas o Alphonsus de Guimaraens me atrapalha: é mais
difícil de apanhar e limitar numa seleção. Você quer me apontar o que lhe parece melhor – o que lhe pareçam dez
coisas que não devem ser esquecidas? P’ra comparar com o que separei. Meu critério você conhece: não o mais belo
ou forte ou perfeito. – Ou tudo junto equilibradamente”. (ANDRADE; BANDEIRA, 2001. p. 656). Em carta de
26/10/1941, Bandeira acusa recebimento da carta de Mário do dia 17 e reclama que o amigo não o ajudou no pedido
feito anteriormente. Vejamos o comentário de Bandeira: “Mas estou safado de você não me ajudar no caso de
Alphonsus de Guimaraens. Que diabo, você já andou lendo e estudando e tomando apontamentos sobre o homem.
Faça uma releitura rápida. Não é preciso ler os sonetos, pois o que me está embaraçando são as poesias mais longas,
não os sonetos, dos quais já fiz a minha escolha. Insisto com você, porque fiz igual pedido ao Carlos Drummond e a
resposta dele me atrapalhou ainda mais: só em duas coisas (uma delas “Ismália”) concordamos”. (ANDRADE;
BANDEIRA, 2001. p. 657) Na correspondência dos dois, não encontramos essa carta do dia 17 que Bandeira
responde a Mário. Com certeza, o documento não foi localizado pelo organizador Marco Antonio de Moraes.
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viagem de volta correu bem melhor que a de ida e, no fim do relato, confessa: “Agora
vou me atirar ao Guia de Ouro Preto. Estou com preguiça e com medo. Mas com amor
também. Amor e medo...” (ANDRADE; BANDEIRA, 2001, p. 638). Mário não faz
nenhum comentário sobre essa carta que Bandeira a ele enviara, pois, em toda a
correspondência dos dois, não localizamos novas informações sobre a escrita desse
livro-guia 4. As informações que encontramos sobre a atuação de Bandeira como sujeito
que teve acesso aos documentos históricos e artísticos de Ouro Preto estão presentes em
sua produção de ensaísta e cronista. Na crônica “Uma revista”, de 9/9/1937, o poeta
revela o seu lado crítico de investigador da história do passado colonial de Minas
Gerais, com comentários sobre o texto de abertura “Roteiro Lírico de Ouro Preto”, de
Afonso Arinos de Melo e Franco, publicado no boletim “Lanterna Verde, nº 5”. Após
ler esse texto de abertura, Bandeira ressalta que “informações preciosas” ali presentes
mereciam ser revistas 5.
Manuel Bandeira fez um trabalho intenso de pesquisa para o Serviço de Patrimônio,
em 1937-1938, para escrever o livro-guia da cidade, iniciando, assim, uma biografia de
Ouro Preto que encanta os seus leitores-viajantes, pois ao material recolhido pelo
pesquisador, comprometido com os fatos históricos, foi concedido tratamento “especial”
na visão do artista 6. O estudo “Viagem a Ouro Preto”, de Lourival Gomes Machado, é
um texto que traz comentários sobre esse livro de Bandeira. Vejamos o texto a seguir:

4
Em carta de 20/9/1937 para Mário, Bandeira dá notícias da viagem de Cândido Portinari para Minas: “Ontem partiu
o Candinho para Minas. Maria e Olga, Santa Rosa e Glorinha também foram. Candinho foi ver de perto os trabalhos
de minas e siderurgia para fazer um dos painéis do futuro Ministério. Passarão lá uma semana. Iam a Sabará, Ouro
Preto e Mariana. O Brodosquinho poderá fazer observações precisas sobre as pinturas de Ouro Preto e Mariana”.
(ANDRADE; BANDEIRA, 2001. p. 639-640) Entretanto, em toda a correspondência, não existe mais nada sobre o
trabalho realizado para a escrita desse guia sobre Ouro Preto.
5
Para esclarecer melhor a informação exposta, apresentamos fragmento da crônica de Manuel Bandeira. Vejamos:
“Arinos repete que o palácio da Penitenciária foi riscado por D. Luís da Cunha Meneses. Parece que não. O Sr.
Augusto de Lima Júnior, contaram-me, descobriu ultimamente em Portugal que o risco veio de lá. Descobertas
líquidas e que ainda não aparecem no “Roteiro” são que o risco do Carmo é obra de Manuel Francisco Lisboa,
arquiteto português, suposto pai do Aleijadinho, e que das mãos deste último são as talhas dos altares laterais de São
João e de Nossa Senhora da Piedade. Uma e outra coisa constam dos livros de termos das liberações das mesas da
Ordem do Carmo: a primeira no livro 1.º, pág. 107; a segunda no livro 2.º, pág. 70. Devemos essas descobertas a
pesquisas mandadas efetuar pelo Serviço de Defesa do Patrimônio Artístico e Histórico, criado pelo Ministro
Capanema e dirigido por Rodrigo M. F. de Andrade. Arinos me acusa de leviano por eu achar meio sem graça os
amores do Dr. Gonzaga com Maria Dorotéia. E me emprestou o livro de Tomás Brandão, Marília de Dirceu, para eu
mudar de idéia. Ainda não tive tempo de ler o livro, e por isso continuo na minha leviandade de achar aqueles amores
do ouvidor bordando vestidinhos para Marília um caso daquilo que a neo-gnomonia chama “mozarlismo
lacrimejante”. (ANDRADE; BANDEIRA, 1986, p. 234)
6
Em 1938, Bandeira é nomeado pelo Ministro Gustavo Capanema professor de Literatura do Colégio Pedro II e
membro do Conselho Consultivo do Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Com ilustrações de
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Bandeira dispõe da paciência meticulosa do pesquisador honesto e


pôde, assim, reunir todos os dados úteis conhecidos em 1938, mas
ninguém esquecerá que Manuel Bandeira é dos grandes da poesia
nacional e, desse modo, talvez mesmo sem o querer, deixou filtrar,
entre duas datas e localização de um altar, a gotinha de sua infinita
sensibilidade. O seu trabalho, com as ilustrações de Luís Jardim, nada
tem de baedeker cacete para ter tudo de passeio ameno, na melhor
companhia deste mundo. (MACHADO, 2003, p. 178-179)

Nesse estudo, o crítico descreve a sua experiência de viajante que em 1948 visita a
cidade de Ouro Preto, informando aos desavisados que desejam visitar a cidade pela
primeira vez e têm em mãos o Guia turístico de Bandeira que os passeios pela cidade
não são tão saborosos como explicita a sensibilidade desse poeta, principalmente porque
a geografia da cidade não ajuda o visitante que encontrará uma cidade barroca diante de
si, com todos os seus contrastes.
Diante de toda a discussão até aqui exposta, perguntamos-nos: por que motivo o
diretor do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rodrigo Mello Franco
de Andrade, pede ao poeta Manuel Bandeira para escrever um Guia de Ouro Preto?
Como bem sabemos, no contexto em que esse guia foi publicado, a cidade barroca de
Ouro Preto passava por um processo de “restauração” como objeto material, pois os
intelectuais mineiros da época estavam empenhados para que ela fosse reconhecida
como Monumento Nacional, fato esse, ocorrido em 1936, com o decreto de nº 756-A,
assinado pelo presidente Getúlio Vargas. Com tal ato público, a cidade Ouro Preto
adquire o status de “cidade mítica”, “inventada” pelo poder público. O poder público
passa a investir na preservação do patrimônio histórico e artístico do País e realiza
vários projetos de “salvamento” dessas cidades históricas de Minas, principalmente
porque, segundo Rui Mourão, o Ministro Gustavo Capanema era entrosado com os
modernistas e tinha como chefe de Gabinete o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Rui Mourão ainda ressalta que, em 1937, esse ministro resolveu encomendar a Mário de
Andrade um projeto para a proteção do patrimônio histórico e artístico, trazendo-nos um
esclarecimento importante sobre essa época e o projeto de preservação dessas cidades:

Luís Jardim e Joanita Blank, o Guia de Ouro Preto teve a primeira edição sob a chancela do Ministério da Educação
e Saúde, Rio de Janeiro, 1938. Manuel Bandeira elaborou o livro atendendo ao pedido de Rodrigo M. F. de Andrade,
diretor do SPHAN.
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O projeto de Mário, abrangente e arrojado, contemplava o universo


inteiro dos bens culturais. Na primeira fase de trabalho que se
implantaria, porém, como se tornou lugar comum observar, fez-se
opção por cuidar preferencialmente dos monumentos arquitetônicos e
urbanísticos. Isso aconteceu porque o órgão criado, o Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sob a direção de Rodrigo
Mello Franco de Andrade, dispondo de parcos recursos e insuficiente
quadro de pessoal, não se achava em condições de abrir muitas
frentes de trabalho. Deve ter pesado, também, o fato de que a parte
urbana das cidades históricas e as construções aí existentes haviam
sido o primeiro motivo de encantamento dos modernistas. Sobre elas
é que se concentrava, naqueles anos, o interesse de estudo e
divulgação. (MOURÃO, 1994. p. 41-42)

O Guia de Ouro Preto está dentro desse projeto modernista de resgatar e divulgar os
monumentos históricos e artísticos do Brasil. O poeta-viajante se coloca na perspectiva
de um turista que, com a sua máquina, tenta fotografar a paisagem que se descortina
diante de seus olhos, percorrendo os espaços mais recônditos da cidade barroca e
mergulha numa gruta encantada.
O poeta, de posse de documentação sobre a cidade e seus monumentos, constrói uma
série de itinerários para o turista que deseja visitar a cidade. Esse itinerário, que começa
pela “História” de Ouro Preto, surgida com a chegada dos bandeirantes, também expõe
informações importantes, com várias descrições sobre a fundação da primitiva Vila
Rica, focalizando o período de construção de seus monumentos religiosos e civis até o
instante em que a cidade recebe o título de Monumento Nacional. No poema “Ouro
Preto”, que abre o livro Lira dos cinquenta anos (1940), Bandeira descreve,
poeticamente, o instante da chegada dos bandeirantes em busca de ouro e pedras
preciosas, a exploração e opulência dos anos de glória e a decadência da cidade:
Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada
Ribeirão trepidante e de cada recosto
De montanha o metal rolou na cascalhada
Para o fausto d’El-Rei, para a glória do imposto.
(BANDEIRA, 1986a, p. 140)

Sobre esse livro, o crítico Jorge Miguel afirma: “Não se pode pretender estabelecer
uma característica aos poemas que compõem o 6º livro de Bandeira. Pode-se dizer que
novas experiências formais continuam” (MIGUEL, 1988, p. 44). Sobre o soneto “Ouro
Preto”, diz que esse “guarda a forma ainda tradicional, não só a rigidez dos 14 versos
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em dois quartetos e dois tercetos, com a presença de versos alexandrinos (doze sílabas)
(...) – soneto de abertura – parece sugerir o retorno ao Parnasianismo”. (MIGUEL,
1988, p. 44-45) A partir do comentário desse crítico, é importante esclarecermos aqui
que, nesse momento de composição, o poeta Bandeira mantivera contato estreito com a
produção dos poetas do século XVIII e a história de Ouro Preto. Com isso, o eu lírico
faz uma pintura interior de Ouro Preto e o que se revela diante dos olhos do leitor não é
a paisagem montanhosa e o conjunto arquitetônico com a sua opulência barroca, mas os
contrastes da linguagem barroca que já aparecem no primeiro verso, com o “ouro
branco/ouro preto”, e o próprio adjetivo podre, contrastando com o “ouro” que é um
metal precioso, o que configura um tom irônico. A vogal /o/, que nos lembra o oco e o
vazio, ressoa por todos os versos do poema e remete-nos ao vazio e às destruições das
montanhas que foram exploradas de maneira desenfreada. A cidade tem o seu momento
de glória; com a extração dos metais preciosos, atinge a sua opulência, mas terá a sua
decadência por causa da ganância dos homens e dos altos impostos que eram cobrados
pela Coroa portuguesa.
De leitor do passado histórico da cidade no cap. 1, o poeta passa a descrever, no cap.
2, “As impressões dos viajantes estrangeiros” que apresentaram visões sobre Vila Rica
no século XIX, quais sejam: João Antônio Antonil, Jonh Mawe, Auguste Saint-Hilaire,
Jonh Luccock, Walsh, Georg Gardner, Castelnau, Milliet de Saint-Adolphe e Richard
Francis Burton. É nessa parte do Guia de Ouro Preto que Bandeira resolve o seu
impasse com Afonso Arinos sobre as liras de Gonzaga, corrigindo informações
equivocadas de viajantes sobre Marília ao informar que ela não se casou. Vejamos:
“Tomás Brandão restabeleceu a verdade em sua obra Marília de Dirceu, provando ter
havido confusão de Marília com sua irmã Emerciana” (BANDEIRA, 2000, p. 31) 7. O
“Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga”, de Lira dos cinquenta anos (1940),
expressa uma diferença formal em relação ao soneto de abertura do livro, “Ouro Preto”,
que parece ainda trazer o “penumbrismo” que Norma Goldstein (1983) estuda nos seus

7
Como podemos ver, no momento da escrita do Guia, Bandeira já demonstra outra visão em relação ao lirismo de
Gonzaga e, pelas informações que apresenta no texto, confirma a leitura do texto de Tomás Brandão sobre Marília,
sugerida por Afonso Arinos.
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três primeiros livros: A cinza das horas (1917), Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto
(1924). Nesse poema, Manuel Bandeira retoma o tema do amor tão bem explorado pela
lira árcade, contudo o próprio título do texto já provoca certa dissonância, pois o haicai
fora retirado de uma “falsa lira de Gonzaga”. Assim, o poeta nega o lirismo, expondo
uma antilira, mas não com a intensidade de quem combate, em Libertinagem, todas as
formas de lirismo que se encontram no poema “Poética”, no qual o eu combatente
expressa: “Estou farto do lirismo comedido/Do lirismo bem comportado/Do lirismo
funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço
ao sr. diretor./Estou farto do lirismo namorador”. (BANDEIRA, 1986e, p. 98)
No cap. 3, “Ouro Preto, a cidade que não mudou”, Bandeira faz uma avaliação da
cidade e esclarece: “Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. Morta
é São José del-Rei. Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside o seu
incomparável encanto” (BANDEIRA, 2000, p. 34). Apesar desse comentário de
abertura do capítulo, Bandeira, na sequência de seu texto, trata da mudança sofrida pela
cidade ao longo dos anos. Com um olhar crítico de um biógrafo, não deixa de observar
que o conjunto arquitetônico sofreu alterações com o tempo, pois novas casas foram
construídas com um estilo diferente do colonial, é o neocolonial. No fim do capítulo, faz
uma comparação de Ouro Preto com Olinda e Salvador e assegura que essa cidade
mineira não perdeu as feições do passado com o progresso que tudo transforma. A visão
que a voz narradora expõe da cidade no Guia não é a mesma que a voz lírica expressa
no soneto “Ouro Preto”, pois inicia o segundo quarteto com indagações, explicitando
um momento de reflexão:
Que resta do esplendor de outrora? Quase nada:
Pedras... templos que são fantasmas ao sol-posto.
Esta agência postal era a Casa de Entrada...
Este escombro foi um solar... Cinzas e desgosto!
(BANDEIRA, 1986a, p. 140)

A atitude contemplativa é perceptível no poema. E o poeta não precisa ter a mesma


visão do pesquisador a serviço do Estado, que cumpre o seu papel de preservar e
divulgar os monumentos históricos e artísticos. Nesse clima meditativo, o eu lírico
interroga e, ao mesmo tempo, já responde, reconhece que a cidade não possui o mesmo
“esplendor de outrora”, a riqueza do ouro branco e preto que se contrapõe aos elementos
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que metaforizam as ruínas e a morte nos “templos que são fantasmas ao sol-posto”, nos
“escombros” e nas “cinzas e desgosto”, restando apenas o pó. O poeta Manuel Bandeira
faz um mergulho na realidade, refletindo, a partir dela, sobre a própria condição da
cidade. Nesse aspecto, aprofunda o tema da morte e da destruição, revelando que os
monumentos que vão representar a memória material e imaterial do nosso país estão
ameaçadas pelo próprio tempo que tudo destrói, estando a decadência e a morte ligadas
à transitoriedade das coisas no tempo.
No cap. 4, “As duas grandes sombras de Vila Rica”, o poeta viaja para o passado
com um olhar que privilegia homens que fizeram parte da história de Ouro Preto, mas
não tiveram o mesmo lugar de destaque na história, por isso seleciona duas personagens
que considera mais relevantes, Tiradentes e Aleijadinho. Não se detém nos poetas
letrados, tais como Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga, porque esses já
possuíam um lugar na sociedade, ou seja, “eram homens requintados, letrados, a quem a
vida corria fácil”, todavia valoriza o alferes Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes)
pelo seu papel na conspiração de 1789 e artista Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho)
pela sua importância cultural, principalmente na construção de igrejas e esculturas.
Como se vê, a morte é retomada através da referência a essas “duas sombras”. No
poema “Ouro Preto”, esses mortos são evocados nos dois tercetos seguintes:
O bandeirante decaiu – é funcionário.
Último sabedor da crônica estupenda,
Chico Diogo escarnece o último visionário.

E avulta apenas, quando a noite de mansinho


Vem, na pedra-sabão lavrada como renda,
– Sombra descomunal, a mão do Aleijadinho!
(BANDEIRA, 1986a, p. 140)

No cap. 5, “Passeios a pé no Centro”, o poeta convida o turista a fazer um passeio


pelos bairros da cidade, deixando bem claro que cada bairro tem a sua beleza e a sua
diferença em relação ao outro, até mesmo pela sua própria história de fundação. A partir
do instante em que o passeio se inicia, o poeta vai percorrendo as ruas, praças, as
ladeiras, os largos e as pontes. Nesse percurso a pé, vai entrando nas igrejas, nos
palácios, nas casas de poetas e em sobrados e hotéis. Com o seu olho-câmera, vai
chamando a atenção do turista para os detalhes das construções. Já no cap. 6, “Passeios
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de Automóvel”, o poeta sai do centro da cidade de Ouro Preto e vai conhecer os bairros
mais distantes, a mina de ouro de Passagem, Cachoeira do Campo, Ouro Branco e
Itatiaia, o Itacolomi e as cidades de Mariana e Congonhas do Campo. Nos capítulos 7,
“Monumentos Religiosos”, e 8, “Monumentos Civis” Bandeira revela mais ainda a
preocupação que tinham os modernistas em valorizar e divulgar os objetos materiais e
imateriais da cidade como um Monumento Nacional, pois os monumentos religiosos e
civis são representados, desde as suas construções, cada um sendo descrito como objeto
importante para cada cidade e também para o patrimônio histórico e artístico nacional.
E, para finalizar o seu Guia de Ouro Preto, Bandeira indica as “estradas” para os
viajantes que desejam conhecer essa cidade encantada. Em 1938, podia-se ir a Ouro
Preto por estrada de ferro ou por estrada de rodagem; hoje, somente por estrada de
rodagem.
No poema “Minha gente, salvemos Ouro Preto”, de Opus 10 (1952), o poeta
Bandeira descreve, de forma imagética e pictórica, o tema da destruição da cidade de
Ouro Preto. Ao fazer uma revisão sobre a poética de Bandeira, em 1986, o crítico
Giovanni Pontiero faz o seguinte comentário sobre Opus 10:
os poemas desta nova coletânea são caracterizados por uma maior
simplicidade e força de expressão. Movimentando-se livremente do
epigrama satírico à grave meditação, Bandeira agora parece capaz de
transformar tudo ao seu redor em poesia, não importando o lugar-
comum ou o trivial aparente. (PONTIERO, 1986, p. 206)

O poeta apresenta um cenário cotidiano de maneira meditava, faz uma reflexão sobre
a condição humana ao colocar em cena a cidade que se encontra em estado de
destruição e revela o elemento responsável pelos danos desse monumento-nacional,
pedindo, na primeira estrofe, ajuda: “As chuvas de verão ameaçaram derruir Ouro
Preto./Ouro Preto, a avozinha, vacila./Meus amigos, meus inimigos,/Salvemos Ouro
Preto”. (BANDEIRA, 1986a, p. 197)
O poema apresenta elementos imagéticos e pictóricos, pois ele se constrói a partir da
memória do poeta que evoca eventos do passado ao mesmo tempo em que conjuga
elementos do coletivo. O tom lírico está expresso na subjetividade que o eu expõe à
condição do outro, entretanto explicita um tom memorialista, já que o passado histórico
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da cidade é retomado através do tom narrativo que se configura na linguagem dos


versos longos e nos encadeamentos que existem em todas as estrofes.
O poeta, como um sujeito crítico e engajado, está comprometido com o mundo no
qual se encontra inserido, por isso não se revela como um simples “retratista” da cidade-
monumento, mas como quem medita sobre a condição da cidade que fora atingida pelas
“chuvas de verão” e pede ajuda a todos os “homens do Brasil”. No entanto, é com um
tom irônico que expõe o seu desejo salvacionista, criticando a sociedade brasileira que
não se importa com a conservação de Ouro Preto e com os pobres. Vejamos, nos versos
a seguir, o tom do sujeito diante do objeto de contemplação:
Bem sei que monumentos veneráveis
Não correm perigo.
Mas Ouro Preto não é só o Palácio dos Governadores,
A casa dos Contos,
A Casa da Câmara,
Os templos,
Os chafarizes,
Os nobres sobrados da Rua Direita.

Ouro Preto são também os casebres de taipa de sopapo


Aguentando-se uns aos outros ladeira abaixo,
O casario do Vira-Saia,
Que está vira-não-vira enxurro,
E é a isso que precisamos acudir urgentemente!
(BANDEIRA, 1986a, p. 198)

Ao transfigurar essa realidade cotidiana que é a da cidade que se encontra em estado


de destruição, o poeta expõe uma visão consciente e um sentimento de
“antitotalitarismo e antiburocratismo”. Giovanni Pontiero, ao discutir esses sentimentos
perceptíveis na poética de Bandeira, aponta que, nesse poema, existe uma “súplica
desapaixonada pela conservação de Ouro Preto e pelo amparo social às pessoas simples,
cujas casas miseráveis são ameaçadas de destruição pelas chuvas torrenciais”
(PONTIERO, 1986, p. 211). Com base nesse comentário do crítico, é importante
ressaltarmos que, nesse momento de composição de Opus 10, o poeta expressa a mesma
visão crítica em relação à conservação da cidade, antes explorada no poema “Ouro
Preto” de Lira dos cinquenta anos, de 1940, o que parece revelar que, em 1952, o poeta
esteve bem mais afastado do seu objeto de contemplação.
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No poema, os contrastes são explorados através de vários elementos metafóricos. De


um lado, há os “ricos do Brasil”, as “Grã-finas cariocas e paulistas” e, de outro, os
pobres que vivem nos “casebres de taipa e sopapos”. O poeta, como alguém que medita
sobre a condição humana, conclama a todas as “Gentes de minha terra!” que “Salvemos
Ouro Preto” e, com essa voz lírica, mostra as contradições do Brasil.
Na crônica “Ouro Preto remoçada”, de 26/10/1960, Manuel Bandeira irá reproduzir
um acontecimento do cotidiano, a inauguração de uma nova sede de uma galeria de arte
no Rio de Janeiro, fazendo-se revelar, nessa narrativa, o que o escritor, embora atendo-
se à realidade, explicita uma visão opinativa sobre as pinturas da exposição. Esse poeta
tece elogios ao pintor Alberto da Veiga Guignard, mas a crônica não se resume somente
a isso, pois o escritor aproveita o momento para fazer uma reflexão sobre Ouro Preto
que estava sendo retratando na “exposição do esplêndido Guignard”. Nessa crônica, por
ocasião da exposição de Guignard, Manuel Bandeira ainda demonstra a sua
preocupação com a preservação do patrimônio de Minas:
Havia muito tempo que eu não via Guignard, Guignard de repente
sumiu do Rio, enfurnou em Minas, montando escola em Belo
Horizonte, ensinando as mineirinhas bonitas a pintar, (...) e quem
mais ganhou com a presença de Guignard foi Ouro Preto, que hoje
está definitivamente tombada na obra do pintor (o tombamento
oficial não será talvez suficiente para poupar a velha cidade-
monumento-nacional, pois nem a zelosa DPHAN nem o clamor de
alguns poucos interessados nas relíquias do nosso passado histórico e
artístico têm conseguido impedir que continue a abalar a estrutura do
casario a circulação do tráfego pesado). (BANDEIRA, 1986c, p. 57)

E o poeta mostra-se um conhecedor profundo dos problemas do cotidiano ao opinar


sobre questões tão importantes que, muitas vezes, não são relevantes para a maioria das
pessoas. O tom irônico do poeta, no poema “Minha gente salvemos Ouro Preto”, não
deixa de existir nessa crônica, mas o poeta consegue fazer uma outra leitura da velha
cidade histórica e, a partir da pintura de Guignard, revela um tom lírico e nostálgico que
vale ser citado na conclusão do nosso texto:
Nesta exposição são numerosas as telas que fixam o encanto da
paisagem ouro-pretana, e eu fiquei com inveja de Alfredo Lage, feliz
possuidor de certo quadrinho que me fez grandes saudades da Ladeira
Vira-Saia. A Ouro Preto de Guignard não é triste, Guignard remoça
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Ouro Preto, sem no entanto a descaracterizar. Gosto de Ouro Preto de


Guignard. (BANDEIRA, 1986c, p. 57)

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. A paixão medida [1980]. In: Poesia Completa. Rio
de Janeiro: Editora Aguilar, 2002.
ANDRADE, Mário de; BANDEIRA, Manuel. Correspondência Mário de Andrade &
Manuel Bandeira. Org. introdução e notas de Marcos Antonio de Moraes. 2. ed. São
Paulo: Edusp, Instituto de Estudos Brasileiros, USP, 2001. (Coleção Correspondência
de Mário de Andrade, 1).
ANDRADE, Mário de; BANDEIRA, Manuel. Itinerários. Cartas de Mário de Andrade
e Manuel Bandeira a Alphonsus de Guimaraens filho. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
ANDRADE, Oswald. Pau Brasil. 2. ed. São Paulo: Globo, 2003.
BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto (1938). Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
BANDEIRA, Manuel. Lira dos cinquenta anos (1940). Seleção e coordenação de texto
de Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986a.
BANDEIRA, Manuel. Opus 10 (1952). Seleção e coordenação de texto de Carlos
Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986b.
BANDEIRA, Manuel. “Ouro Preto remoçada”. In: Andorinha, Andorinha. Seleção e
coordenação de texto de Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1986c.
BANDEIRA, Manuel. “Uma revista”. In: Andorinha, Andorinha. Seleção e
coordenação de texto de Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José
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BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Seleção e coordenação de texto de Carlos
Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986e.
GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Do penumbrismo ao modernismo: o primeiro Bandeira e
outros poetas significativos. São Paulo: Ática, 1983.
GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Alphonsus de Guimaraens no seu ambiente.
Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1995.
MACHADO, Lourival Gomes. Barroco mineiro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
MIGUEL, Jorge. Coleção engenho e arte – Manuel Bandeira. São Paulo: Harbra, 1988.
MOURÃO, Rui. A nova realidade do museu. Ouro Preto: MinC; IPHAN; Museu da
Inconfidência, 1994.
PONTIERO, Giovanni. Manuel Bandeira: revisão geral de sua obra. Seleção e
coordenação de texto de Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1986.
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A RELAÇÃO ENTRE A LITERATURA E A PSICANÁLISE: O DUPLO E A


IMORTALIDADE DO POETA AUGUSTO DOS ANJOS NA OBRA A ÚLTIMA
QUIMERA, DE ANA MIRANDA.

Inajara Silva de Albuquerque (G – UNESP/Assis – FAPESP)


Maria Lídia Lichtscheidl Maretti (DLM – UNESP/Assis )

Foi em 1900 que Sigmund Freud publicou A Interpretação dos Sonhos, que
encaminhou outro tipo de visão da corrente positivista, que “pretendia dar ao império de
uma razão dita científica, bem no sentido da prova experimental, do domínio
permanente de uma razão soberana que excluiria qualquer investigação do fato humano
como significação, desconsiderando o imaginário e o campo simbólico” (VITAL, 1992,
p.25). Freud primeiramente para formular suas teorias observa na literatura o
comportamento do homem. O seu envolvimento com a arte o levou ao prêmio Goethe
de literatura e depois aos escritos de outras obras. Eis alguns exemplos:

Vários exemplos que podem ser apresentados: Édipo Rei e Hamlet na


Carta 71, Die Ritchterin [A juíza] na carta 91, Édipo Rei e Hamlet em
A interpretação de sonhos [sic], Delírios e sonhos na “Gradiva” de
Jensen, Contribuições a um questionário sobre literatura, Escritores
criativos e devaneios, Dostoievski e o parricídio, Prefácio a Edgar
Allan Poe etc. Cumpre notar que Freud, em Resposta a um
questionário sem leitura (1906), citou como livros esplêndidos as
obras de: Homero, Sófocles, Goethe e Shakespeare - Ilíada, Édipo
Rei, Fausto, Hamlet e MacBeth. (FREITAS, 2009, p14.).

Essas obras eram ilustradas com personagens que representavam o momento


sócio-cultural, bem como suas permanências na história, isto é, estão ligados
diretamente ao meio, pois a literatura ou a arte sempre está ligada a sua época. Sendo
assim, a literatura representa uma produção constante da cultura que pode ser olhada e
interpretada pela psicanálise. Daí podermos notar que o discurso do personagem está
aberto a possibilidades de interpretação que permitem acesso à linguagem do desejo
inconsciente, presente não importa em qual texto.
A psicanálise e a literatura são tidas como práticas da dúvida e, portanto, a
literatura, com seu poder de representar o homem e a sociedade (cultura), pode ser
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olhada, de fato, e interpretada pela psicanálise. Assim, podemos notar que o discurso do
personagem pode ser interpretado de maneira a permitir o acesso à linguagem do desejo
inconsciente, presente em qualquer texto. Segundo Freitas, outra forma de representação
da linguagem do desejo inconsciente está no que Freud explica sobre a sublimação da
pulsão que permite o surgimento das artes, das ciências e das religiões, que seriam
formas de realização simbólica que se associam à criatividade humana. Notamos que
essas realizações simbólicas podem necessariamente ser alvo de muitas interpretações,
através do saber psicanalítico, na medida em que sempre podemos nelas encontrar,
como já dissemos, a presença da linguagem do desejo inconsciente.
A questão da cultura é importante para muitas explicações e lembramos aqui que
Freud tinha essa preocupação como princípio, pois para ele a sociedade do século XIX
estava vivendo um momento em que a razão e a ciência significavam a perda da
subjetividade, já que na época o positivismo se expandia por todo lado. A cultura é
representada e o indivíduo, por fazer parte dela, de alguma forma se vê identificado
neste processo. O autor enfatiza bastante a figura do leitor e a importância que este tem
perante uma obra literária.
É através da identificação com os personagens que o leitor participa
fantasiosamente das cenas, ao poder modificá-las imaginariamente e com a certeza da
ausência de crítica do outro. Temos um exemplo:

Ao se examinar uma obra literária, temos que nos referir ao conceito


freudiano de identificação. Por que será que determinados
personagens, e não outros se tornam significativos para a nossa
cultura? Os personagens que permanecem ao longo da história
representam, de forma incontestável, o que se passa com qualquer
homem a qualquer tempo. O que faz com que uma obra ocupe espaço
destacado na cultura é a sua capacidade de permitir, de forma eficaz,
uma identificação do leitor, com o herói/heroína da trama. A
identificação [...] é uma das formas que o homem encontra para
representar um laço afetivo com outra pessoa, e uma das formas que o
ego utiliza para atender ao desejo pulsional. (FREITAS, 2009, p. 19.)

A interpretação psicanalítica de um personagem da literatura possibilita ao


intérprete enriquecer seu “patrimônio cultural” ao obter os efeitos da sublimação. Os
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personagens criados por um autor são sempre representativos de um contexto cultural,


situam-se entre fato e ficção, e também falam das repressões secundárias. O personagem
na literatura sempre representa um modo de viver, representa a racionalidade e as
formas que uma determinada cultura usa para resolver seu interminável conflito interno,
sempre inflacionado, de forma intolerável, pela presença do outro. Freitas admite e
reconhece que toda reprodução artística é ilimitada, e que oferece inúmeras
possibilidades interpretativas sobre a linguagem metafórica e o sujeito, que sempre está
sendo representado e representando.
Na obra A Última quimera, de Ana Miranda, a figura do narrador assume o
papel de representar o poeta Augusto dos Anjos a partir de um discurso ambíguo. O
narrador não só tem a função de narrar a história, mas é através de seu discurso que
observamos no romance duas vertentes: a primeira é a criação do Duplo, ele não
diferenciando o que é ficcional do que é real − a voz do narrador se confunde e por isso
assume como imagem as características e algumas ações da personagem Augusto dos
Anjos. A segunda pergunta é: o que é história e o que é ficção? Essa indagação justifica
a primeira, pois o Duplo faz com que o narrador discorra sobre momentos, sentimentos,
pensamentos que ora são e ora não são dele, como, por exemplo, os poemas escritos
com nomes de mulheres misteriosas que podem ser de Augusto ou do narrador.
Seu sentimento era tão grande por Augusto que ele sabia de tudo de sua vida e
obra. Na segunda passagem do romance o narrador encontra-se com o poeta Olavo
Bilac saindo de uma confeitaria e o aborda para comentar sobre Augusto e sua recente
morte. Bilac o escuta por alguns instantes com desprezo em relação a Augusto; chega a
afirmar que não o conhece. O narrador pede desculpa, mas recita-lhe um poema. Ana
Miranda nesse momento faz um recorte do próprio poema para manter na obra uma
identificação do narrador por Augusto. Eis o primeiro recorte:

“Versos Íntimos”. Raspo a garganta. E inicio a declamação: “Vês?!


Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão − essa pantera − foi tua companheira
inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem que nessa
terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de ser
fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo amigo é a véspera
do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém
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causa ainda tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga, escarra
nessa boca que te beija. (MIRANDA, 1995, p.13).

Ao longo do romance notamos que esse recorte que a autora faz é de certa forma
um modo de imortalizar Augusto dos Anjos, é como se o narrador fosse o próprio poeta
recitando exatamente na madrugada de sua morte para Olavo Bilac, que age como o
esperado, dizendo: “Pois bem”, ele diz. Eh... “Tosse, cobrindo a boca com a mão.
Depois se cala visivelmente perturbado. Olha para os lados. Num impulso súbito deseja
livrar-se de mim. “Pois se quem morreu é o poeta que escreveu esses versos”, então não
se perdeu grande coisa”. (MIRANDA, 1995, p.13). Ana Miranda também nos mostra
um panorama do período de transição do século XIX para o XX e certamente a
manifestação de estilos como o simbolismo e parnasianismo eram bem conflituosas.
Diríamos que há uma questão de identidade literária também.
Falar de identidade ou de um processo de identificação com o outro é complexo.
Notamos que ao mesmo tempo em que há um problema de identidade do narrador, há
um problema de identidade com a sociedade da época. No romance Ana Miranda traça
um panorama histórico do século XX e relembra alguns instantes do final do XIX, como
citamos. São retratados “os descaminhos da República, as disputas políticas, a Revolta
da Chibata, a modernização do Rio de Janeiro, o duelo entre Olavo Bilac e Raul
Pompéia, a manifestação da influência francesa, esta, que tem um grande momento na
nossa sociedade no processo modernização cultural, isto é, nas artes e na literatura.
Esses fatos são abordados e significam o processo de identidade de uma cultura
brasileira que ainda está, de certa maneira, muito ligada à Europa. No romance notamos
quão forte é a presença francesa; tanto é assim que em muitos momentos o poeta
simbolista Charles Baudelaire é comparado a Augusto.
A cultura e particularmente a produção literária só são possíveis pela regressão e
pela liberação do estranho que habita em nós, pela liberação das forças da morte que
vão fragmentar as mesmices, seguindo o caminho da reunião dos fragmentos para
reestruturar o futuro, mediante reconstruções e recriações. É por causa da subjetividade
que temos o poder de criar um mundo diferente e, no ato criativo, deixamos de ser quem
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somos para ser o outro. Podemos pensar que o narrador representa essa liberdade de
criação de si que transcende no outro.
A psicanálise surge com o objetivo de desvendar, “não se reduz à lógica formal e
à dimensão racional de uma consciência, uma ciência que fala de um ‘desconhecido
incognoscível’ e de um saber que não se sabe a si mesmo, e que usa este construto
hipotético de um inconsciente determinativo” (BRAZIL, 1992, p.26). A valorização da
interpretação foi fundamental para o desenvolvimento da cultura, que mostrou uma
reação contra a “cultura utilitária” e que para Hórus Vital Brazil se expressa na literatura
“de um romantismo impressionista” e de um “realismo crítico” (BRAZIL, 1992, p.27).
Como já citamos a propósito de textos anteriores, ao conhecer o psiquismo,
Freud valoriza o objeto de interpretação e as artes e a literatura quando, em suas obras,
cita poetas, os mais representativos de seu tempo, e se coloca contra um realismo
ingênuo que tem como conseqüência um pragmatismo eficaz. Por isso inaugura mais
tarde a abordagem de “densidade cultural” como o conceito de um inconsciente
determinativo acrônico e incognoscível. Brazil procura tornar visível para nós, leitores,
a importância que Freud atribui à questão da cultura.
Podemos pensar também que a atividade interpretativa da psicanálise é realizada
num intertexto e informa o ato interpretativo, e a literatura, como ato criativo, se insere
na intersubjetividade do contexto cultural. Freud tem um jeito admirável de escrever e,
por conta disso, quando arquiva seus casos clínicos, é como se escrevesse uma obra
literária. E essa intersubjetividade, na representação do “caso Dora”, por exemplo, faz
com que Freud não aja somente como o autor da obra, mas também como um dos
personagens que vivem o drama, tão intensamente quanto qualquer outro. O psicanalista
assume a função de deslocamento de autor para auditor/leitor que decifra num
intertexto, revelando a busca do sentido e da “alteridade” num texto clínico que não
deixa de ser literário.
É por isso que Freud merecidamente ganhou o prêmio Goethe, pois seus textos
têm estilo narrativo bem argumentado, pois quase sempre são poéticos. Ele conseguiu
admiração por ser um “pensador da modernidade” que não se deixou levar pela razão.
Brazil termina a primeira etapa do livro da seguinte forma:
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E é procurando, pelas interpretações de sentido, uma origem além da


palavra, associando psicanálise e literatura, enriquecendo a
disponibilidade interpretativa da subjetividade com o mesmo valor de
ruptura com as análises de tipo realista e nominalista que a crítica
literária faz, revelando o sentido oculto pela desconstrução dos
significados, provocando ressonâncias, multiplicações do sentido,
refrações do significado, como acontece em qualquer obra literária,
que podemos descobrir a possibilidade de se instaurarem novas
significações na subjetividade. (BRAZIL, 1992, p.39).

Em “Psicanálise e teoria literária”, subtexto desse ensaio, para Brazil, “A


atividade interpretativa e a questão do sujeito na intersubjetividade fazem com que
aproximemos a psicanálise da crítica literária, esta, que também utiliza a interpretação
como prática da dúvida que se opõe à ‘estabilidade do sentido’” (BRAZIL, 1992, p.40).
É sem dúvida o pensamento crítico da teoria literária que se associa ao estruturalismo e
à psicanálise e que revela esta aproximação quando considera a obra literária em si
mesma, segundo Genette, na visão de Brazil.
O autor completa que Todorov fez uma aproximação entre a psicanálise, a teoria
da literatura e a crítica literária ao comentar o artigo de Freud intitulado “O chiste e suas
relações com o Inconsciente”. Nessa crítica, Todorov mostra como nos textos de Freud
se tem a “descrição geral de formas discursivas”, e até mesmo o associa a críticos e
lingüistas como, por exemplo, Lessing e Propp já que esse trabalho de “análise
lingüística e retórica” é o lugar onde se resolve a forma de conhecimento parcial sobre o
indizível, modo esse de valorizar o inconsciente e a “função do desconhecimento”.
Esse desconhecimento está ligado ao sujeito da dúvida que se liga ao interdito.
Observa-se, no artigo de Lacan “Subversion du sujet et dialectique du désir dans
l’inconscient”, um magnífico jogo de palavras, que “é o inter-dito que é o intra-dito de
um entre-dois-sujeitos”, em uma dialética do inconsciente no “enunciado que se
renuncia”.(BRAZIL,1998, p.44). Vejamos abaixo o esclarecimento de interdito na visão
de Bakhtin:

É este interdito que impõe, para a atividade interpretativa de qualquer


subjetividade, a “razão dialógica”, o “dialogismo” de M. Bakhtine que
tão claramente aproxima a teoria literária da teoria psicanalítica
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porque, para Bakhtin, o diálogo − a separação das “razões” ou da


palavra − não é somente a linguagem assumida pelo falante, não é
uma simples referência a interlocutores, mas é “uma escritura onde se
lê o Outro”. (BRAZIL, 1992, p.45).

Para a psicanálise somos todos sujeitos trágicos; em algum lugar somos sujeitos
extraordinários que lutamos contra as tensões e dramas profundos, e isso é muito
atraente. A psicanálise para Nabokov (1899-1977) era vista como um fenômeno da
cultura de massas, pois o fato de cada indivíduo se conectar às grandes tragédias está
relacionado com o procedimento clássico na cultura de massas. Para Manuel Puig
(1932-1990), segundo o autor, “o inconsciente tem estrutura de folhetim” (PIGLIA,
1998, p.111). Essa idéia é devida às suas criações: ele escrevia suas histórias com base
nas estruturas das telenovelas e dos grandes folhetins da cultura de massas, tendo
conseguido notar essa dramaticidade escondida na vida de todos.
Põe-se em questão a velha pergunta: A literatura usou a psicanálise? De que
modo a psicanálise tem usado a literatura e vice-versa? Para muitos autores, quem de
fato conseguiu utilizar devidamente a psicanálise foi o escritor James Joyce,
considerado um dos maiores escritores do século XX. E, como nos parece, Joyce
conhecia perfeitamente a Psicopatologia da vida cotidiana e A interpretação dos
Sonhos. Com sua notável utilização da psicanálise, Joyce soube usar de maneira
coerente esse conhecimento para o mundo literário.
Como já vimos através do exemplo de Joyce, a literatura buscou a psicanálise.
Agora Piglia mostra o outro lado dessa história. A psicanálise deve à literatura.
Exemplo maior é o envolvimento que Freud teve com as tragédias, mas não com o olhar
nos conteúdos de Sófocles e Shakespeare, mas sim com a visão que a tragédia
estabelece quando se trata de tensão, isto é, entre o herói e a palavra.
A literatura e psicanálise têm uma relação extremamente importante, pois o
sujeito precisa se reconhecer e buscar mais ainda a subjetividade. O homem vive no
mundo tido como globalizado, mas ainda assim mantém um comportamento de uma
sociedade tradicional em muitos aspectos: principalmente o cultural, em que às vezes é
complicado compreender e respeitar o outro.
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No romance A Última quimera, a relação que a literatura e a psicanálise


estabelecem se dá em função da temática do Duplo que foi abordada de forma pioneira
e muito completa por Otto Rank (1914), em sua obra O Duplo. Segundo Freud, “Ele
penetrou nas ligações que o duplo tem com reflexos em espelhos, com sombras, com os
espíritos guardiões, com a crença na alma e com o medo da morte”. (FREUD, 1976,
p.293). A imagem da personagem Augusto dos Anjos é extremamente representada pelo
discurso do narrador nos momentos em que se identifica no outro a sua própria imagem.
Nós podemos compreender que há uma relação entre o reflexo de um espelho e a teoria
de duplicação do “eu” para se formar o outro. Eis um exemplo: O filho do homem numa
idade em que, por um curto espaço de tempo, é superado em inteligência instrumental
pelo chimpanzé que já reconhece obstante como tal sua imagem no espelho. Os estudos
de Lacan sobre a formação do eu mostram como buscamos nossa identidade desde os
primeiros momentos de vida, e o outro sempre é o espelho em que procuramos nossa
imagem, um reflexo a ser imitado; porém, o indivíduo escolhe a quem deseja se
assemelhar, sendo isso um grande perigo para a formação do caráter. A questão da
identidade no romance é uma representação do indivíduo que busca ainda a sua própria
identidade. O duplo tem como "poder" o ato de imortalizar. Não é somente o narrador
que aparece como um “imitador”, mas há uma personagem no final do romance que
caracteriza a “versão feminina” do poeta. Quando o narrador, no desfecho da obra, se
liberta da imagem do poeta essa jovem aparece e sugere talvez um novo ciclo de
imortalidade da representação augustiana, pois ela também conhece de cor a vida e a
obra do poeta morto, sem descartar a sua aparência semelhante à com a dele. Vejamos
abaixo a descrição:

Numa madrugada, estou saindo de uma farmácia quando ouço a voz


de alguém a me cumprimentar. É uma jovem num vestido escuro, xale
sobre os ombros, um singelo chapéu de feltro cobrindo seus cabelos.
Tem rosto pálido, expressão de alguém dotado de uma intensa e
sofrida vida espiritual. Ela me olha, tímida. (MIRANDA, 1995,
p.292).

Essa descrição é uma das formas pela qual notamos a construção da imortalidade
do poeta, assim como os recortes dos poemas dentro do romance, cuja percepção é a da
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existência de uma obra dentro de outra, ou seja, o livro EU e outras poesias (1912), o
único que Augusto escreveu. Ana Miranda faz com que sobreviva a obra do poeta. É
tratando da imortalidade, do duplo, da psicanálise e da literatura que nos lembramos do
conto de Edgar Allan Poe “Willian Wilson”. Através desse conto podemos fazer uma
relação com o romance e pensar por que o Estranho nos é familiar em ambas as obras.
O estranho mostra a maneira secreta de encarar o mundo, isto é, um olhar para si
mesmo sempre se encarando e também agindo assim com o mundo em sua totalidade. O
estranho existe em cada um, à medida que se é freqüentemente estranho a si mesmo e,
como visto, o conceito do estranho é tudo aquilo que já foi familiar, e que se manifesta
sob certas condições. Cunha (2009) também afirma que o duplo é uma das
manifestações do estranhamento que está no limite da imaginação e da realidade, sem
esquecer que para Freud o conceito de Estranho é absolutamente contrário à questão da
estética. Em seu artigo, ela prioriza como objeto a intenção de valorizar as formas vivas
da pulsão de morte como reconhecimento na criação do artista, aquele que transforma o
perigo interior de morte, ou de enlouquecer, no poder de fazer dele uma forma de vida
com a reconstrução:

É no artista que as representações inconscientes da morte adquirem


formas culturais organizadas. Para tanto, o criador, ao encontrar a
força de matar suas antigas representações, corre o risco de não
conseguir tomar suficiente distância em relação a uma imago materna
toda poderosa, para chegar a compor a obra que ele pressente e a fazer
uma criação mais livre. (CUNHA, 2009, p.63)

A cultura, e particularmente a produção literária, só são possíveis pela regressão


e pela liberação do estranho que habita em nós, pela liberação das forças da morte que
vão fragmentar as mesmices, seguindo o caminho da reunião dos fragmentos para
reestruturar o futuro, mediante reconstruções e recriações. É por causa da subjetividade
que temos o poder de criar um mundo diferente e, no ato criativo, deixamos de ser quem
somos para ser o outro.
Já que citamos alguns aspectos sobre o estranho e o outro, vamos também
refletir sobre a questão do duplo a partir do texto “O duplo na literatura e na psicanálise:
William Wilson”, por Adelina Helena de Lima Freitas (2009), que considera que o
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conto do escritor Edgar Allan Poe é um dos mais fantásticos que ele escreveu: “A
literatura e particularmente o conto fantástico é uma modalidade narrativa que associa
imagens, tempo e espaço, numa forma particular de subversão da realidade, ao dar um
passo além desta.” (FREITAS, 2009, p.139). Podemos dizer que se caracteriza por uma
hesitação, aspecto marcante da literatura fantástica, que corresponde à relação complexa
entre o racional e o irracional, ou mesmo, na mediação entre a realidade e o sobrenatural
que atinge o leitor quanto à linguagem e ao sentido dos fatos relatados.
Nesse artigo de Freitas sobre “William Wilson”, a autora relaciona a literatura
(conto) com a psicanálise (a questão do duplo). O que podemos observar é que o conto é
marcado pela estranheza. Aqui Freitas exprime o seu ponto de vista sobre o estranho,
dizendo que este se refere ao narcisismo, tema que nos remete à questão do duplo, que
Freud trabalhou através do sentimento de estranheza também e que Lacan desenvolveu
com a experiência do Estágio do espelho: “Na primeira situação especular do Estágio do
espelho eu não sou eu, mas sim o reflexo daquilo que o outro vê em mim. Isso
fundamenta a “identificação ao semelhante” com sua agressividade inerente.” (p.144).
Podemos concluir que isso nos faz pensar em uma reação de agressividade no sujeito
diante dessa simetria:

O mito grego de Narciso revela o vínculo com a morte, o que remete


em psicanálise ao tema da agressividade, ligada à invasão do objeto
hostil e identificação ao semelhante. Como descrito anteriormente, é
na relação com o semelhante, como suporte dos processos de
identificação e separação, que Lacan (1949) teoriza acerca da
constituição do eu e seu duplo que, além de permitir um
reconhecimento de si, também funciona como um diferente com o
qual a criança irá inicialmente rivalizar. (FREITAS, 2009, p.145).

Os temas do narcisismo, da morte, da agressividade, da invasão do objeto hostil,


da identificação com o semelhante, estão em pauta na obra de Poe. Freitas ainda afirma
que “Willian Wilson” “é um conto que mostra, de forma clara, a relação da
agressividade imaginária presente na história de um jovem que encontra, em diversos
momentos, um outro exatamente igual a ele”(FREITAS,2009,p.141). Isso quer dizer
que se trata de uma espécie de um duplo que lhe suscita sentimentos distintos, e por isso
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o fim trágico não poderia ser outro a não ser o desejo de morte. O personagem de
Wilson, assim como a representação do indivíduo, estabelece com o outro um processo
de identificação e se põe sempre em dúvida a respeito de si próprio. Segundo Freitas, o
duplo formulado por Lacan ocorre em três níveis − Imaginário, Simbólico e Real:

No plano imaginário encontramos a duplicação de imagens, idéias,


sósias, rivais, semelhanças em atos e delitos, além dos processos
mentais que saltam telepaticamente para outrem. No nível simbólico,
o que aparece é a partição ou divisão do aparelho psíquico; o sujeito
duvida a respeito de si mesmo, deixando-se encarnar por um eu
estranho. Aqui está em jogo a função da censura. No registro do real,
impera a confusão, um intercâmbio do eu com o outro, vivências
delirantes com idéias de influência e alteração da consciência, reforço
constante da mesma coisa, estranha repetição dos traços, atos, feitos e
nomes. (FREITAS, 2009, p.144).

Como descrito anteriormente, é na relação com o semelhante, como suporte dos


processos de identificação e separação, que Lacan (1948) teoriza acerca da constituição
do eu e do seu duplo, através da qual o sujeito se permite reconhecer e que também
funciona como um diferente com o qual a criança rivalizará. Isto explica a ambivalência
própria desta relação, além da agressividade correlativa da identificação com o outro e a
conseqüente hostilidade que se instala a partir daí. É curioso que o duplo em Wilson se
manifesta a partir de si mesmo (o próprio sujeito) e no romance o narrador cria no poeta
um outro.
Esta tentativa de comparação entre o conto de Poe e o romance A Última
quimera mostra que há várias maneiras de o duplo se manifestar e, portanto,
observamos que a literatura pode apresentar em seus textos temas como o duplo,
estudado pelos psicólogos e psicanalistas, assim como os psicanalistas usam a literatura.
Retomemos, a fim de finalizar esse texto, a questão da função do narrador e da
jovem que aparece no final do romance. O primeiro começa com a idéia de duplicação
no desenrolar da história e vai demonstrando características semelhantes às do poeta
para confundir o leitor ou, simplesmente, em termos psicanalíticos, para imortalizar o
poeta. Por último a moça fecha a história para reafirmar não só mais uma leitora de
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Augusto dos Anjos, mas uma figura do universo feminino que também demonstra traços
semelhantes aos do poeta. É por isso que podemos afirmar que há, no romance, uma
preocupação de não esquecer o poeta e a pessoa de Augusto dos Anjos. Sua
originalidade justifica a sua grande contribuição para a nossa literatura brasileira.

Referências

BRAZIL, Hórus Vital. Freud e a literatura. In: ___. Dois ensaios sobre psicanálise e
literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 25-39.

BRAZIL, Hórus Vital. Psicanálise e teoria literária. In: ___. Dois ensaios sobre
psicanálise e literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p.39-57.

CUNHA, Dirce Ferreira da. Olhando a pulsão de morte: sobre o ato de criar. In:
ALBUQUERQUE et al (org.). Escritos sobre psicanálise e literatura. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud/Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, 2009, p.55-66.

FREITAS, Adelina H. F. L. P. O duplo na literatura e na psicanálise: William Wilson.


In: ALBUQUERQUE et al (org.). Escritos sobre psicanálise e literatura. Rio de
Janeiro: Companhia de Freud/Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, 2009, p. 139-150.

FREITAS, Adelina H. F. L. P. Psicanálise e arte. In: ALBUQUERQUE et al (org.).


Escritos sobre psicanálise e literatura. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud/Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, 2009, p. 31-37.

FREITAS, Luiz Alberto Pinheiro de. Psicanálise e Literatura. In: ALBUQUERQUE et


al (org.). Escritos sobre psicanálise e literatura. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud/Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, 2009, p.13-30.

PIGLIA, Ricardo. O melodrama do Inconsciente. Psicanálise e literatura: Revista da


Associação Psicanalítica de Porto Alegre. VIII, 15, nov 1998, p.110-114.
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À PROCURA DAS INFLUÊNCIAS BRASILEIRAS NA CONSTRUÇÃO


DA CULTURA LITERÁRIA ANGOLANA: O CASO DE JOSÉ DA
SILVA MAIA FERREIRA

Jacopo Corrado (UFRJ)

A Revolução Liberal de 1820 mudou radicalmente a situação política tanto na


metrópole como nas colônias portuguesas. Devido à pressão exercida pelas Cortes de
Lisboa, El-Rei João VI retornou com a corte para a Europa, deixando seu herdeiro
Pedro no Brasil. João VI promulgou a primeira constituição, mas Pedro ignorou a
convocação vinda das Cortes e, pelo contrário, proclamou a independência da maior e
mais rica possessão portuguesa, anulando assim a tentativa de reconverter o Brasil à
condição de simples colônia. No plano das Cortes, a única medida liberal tangível a ser
aplicada nas possessões ultramarinas consistia no direito de eleger alguns representantes
para a assembléia geral do Reino em Lisboa.
A colônia de Angola também escolheu três deputados: em 1822 o padre Manuel
Patrício Correia de Castro, o magistrado Eusébio de Queirós Coutinho e o capitão
Fernando Martins do Amaral Gurgel e Silva foram enviados para Lisboa via Rio de
Janeiro. Na capital brasileira eles testemunharam, nas suas fases finais, o processo de
independência e não só foram convidados a se unir ao movimento, mas também a
redigir um documento que aconselhasse o ‘povo’ de Angola a fazer o mesmo.
Contagiados pelo clima de efervescência revolucionária e euforia geral, Queirós
Coutinho e Amaral Gurgel produziram duas declarações que podem ser consideradas
como os primeiros discursos nativistas endereçados a Angola. 1
O apelo de Amaral Gurgel ao ‘povo’ de Angola reflete a incomensurável distância
que separava a metrópole da África, bem como a decepção para com um novo regime
constitucional que, de fato, não trouxe mudanças significativas na vida das colônias. 2

1
Tendo tido acesso aos arquivos públicos de Luanda e às notas do historiador Angolano
Alberto de Lemos, Walter Spalding conseguiu incluir ambas as declarações na sua obra
Angola e a Independência do Brasil.
2
Spalding, “Angola e a Independência do Brasil”, Revista do IHGB, vol. 296 (Rio de
Janeiro, 1972), pp. 32-33.
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Em contraste, Queirós Coutinho dirige-se, veemente e explicitamente, aos
verdadeiros recipientes da mensagem, os comerciantes nascidos na África que estavam
ansiosos para manter suas conexões brasileiras. Embora fosse claro que a falta de
recursos e peso político da colônia os obrigasse a aceitar o patrocínio de um poder mais
forte, com certeza eles tinham todo o interesse em escolher o mal menor. É também
importante reparar que o assunto da raça aparece aqui pela primeira vez entre as
reivindicações: Queirós Coutinho fala abertamente de “injúria, suborno e corrupção
[padecidos] por parte desses brancos enviados pela metrópole para vos comandar com
punho de ferro, usando e abusando do poder que detém de maneira irresponsável”. 3
De qualquer maneira, o senado de Luanda foi prontamente avisado por padre Correia
de Castro e, graças ao apoio do exército colonial, condenou a traição e conseguiu conter
a onda de dissenso, pelo menos por um tempo.
O clima político entre 1820 e 1840 foi de fato turbulento e as vezes violento na
colônia. Um pavoroso sistema de remuneração e benefícios, a férrea disciplina imposta
por oficiais que freqüentemente adotavam medidas brutais: tudo isso contribuía para
aumentar a agitação nas filas do exército colonial, que era principalmente composto por
degredados originalmente condenados por crimes comuns, militares ou políticos.
Tal descontentamento podia ser facilmente manipulado por outras categorias de
pessoas dispostas a quebrar a ordem: questões ligadas à abolição do tráfico de escravos,
à proteção dos interesses dos negreiros, ou à prossecução e exclusão dos filhos da terra
dos postos administrativos uniram contra a metrópole residentes de origem social e
racial diferente.
As revoltas e os conflitos que aconteceram durante este período foram oficialmente
considerados como tentativas de se unir ao império brasileiro. Provavelmente, a maioria
das pessoas denunciadas às autoridades como membros do ‘Partido Brasileiro’ não
passavam de vítimas da luta constante para o controle de fundos e créditos locais. 4 Os
residentes mais influentes, divididos em facções rivais, competiam entre si - e com os
portugueses enviados da metrópole - para alcançar os postos administrativos mais
importantes ou para obter nomeações no setor judiciário, na alfândega ou como oficiais
da fazenda. Por meio destes cargos, eles tinham a possibilidade de promover seus

3
Spalding, “Angola e a Independência do Brasil”, pp. 33-34.
4
Dias, “A sociedade colonial de Angola e o Liberalismo Português”, p. 272.
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interesses comerciais, não pagar impostos e taxas de alfândega, ganhar precedência
sobre seus rivais e desviar recursos públicos em benefício próprio. 5 Dentro desse
contexto, aderir a princípios de nacionalismo (seja português ou brasileiro), absolutismo
monárquico ou constitucionalismo liberal era, na maioria dos casos, uma das formas de
consolidar uma estratégia que visava perseguir mais urgentes e pragmáticos objetivos a
curto prazo.
A ameaça da separação alcançou o ponto mais alto durante o período de confusão
política causada pela temporária suspensão do tráfico com o Brasil que precedeu o
reconhecimento da independência brasileira por parte de Portugal (1825). Como pode se
imaginar, o ‘Partido Brasileiro’ ganhou bastante popularidade entre os que mais deviam
ao tesouro real. Em 1823, o seqüestro de propriedade privada pertencente a devedores
locais e uma série de ataques retaliatórios por parte das autoridades portuguesas contra
os navios negreiros brasileiros provocaram revoltas em Luanda e - especialmente - em
Benguela onde, segundo os insistentes boatos, em 1824 os comerciantes juraram
fidelidade ao Imperador Pedro I. O historiador Varnhagen nos informa que, depois da
proclamação de independência, no Brasil “chegou a notícia de que Benguela tinha
aclamado o Imperador Pedro I, enquanto Luanda não pôde fazer o mesmo por causa da
oposição do bispo”. 6 De acordo com Rebelo da Silva, em Benguela o motim explodiu
nas barracas do exército colonial no dia 7 de Novembro de 1823, e foi chefiado por
soldados sicilianos e napolitanos que até conseguiram capturar o governador, antes da
repressão final. 7
Mais informações sobre o descontentamento em Luanda são fornecidas por um
relatório enviado ao governo central pelo Governador-Geral Cristóvão Avelino Dias,
que nos mostra o outro lado da moeda: “os habitantes deste município parecem não
entender o sentido de palavras quais ‘liberdade’ ou ‘igualdade’, tal como sua arrogância
e falta de respeito perante as autoridades bem o demonstra. Quando desembarquei em
Luanda, a província estava sob o controle de um club de mercantes de escravos. Agora,

5
Em particular, no Arquivo Histórico Ultramarino abundam as fontes relativas aos abusos e
à má gestão de bens e propriedades dos órfãos. Ofícios do Governador-Geral Nicolau de
Abreu Castelo Branco, AHU, Angola: 04/09/1824, box 145, doc. 76; 23/11/1824 box 146,
doc. 58; 19/10/1825, box 149-A, doc. 53.
6
Francisco Adolfo de Varnhagen, “História da Independência do Brasil” in Revista do
IHGB, vol. 173 (Rio de Janeiro, 1938), p. 178...
7
Rebelo da Silva, Relações entre Angola e Brasil 1808-1830 (Lisboa: AGU, 1970), p. 241
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as despesas do batalhão expedicionário, junto com a diminuição da renda pública
causada pela interrupção do comércio com o Brasil, me obrigaram a seqüestrar bens e
propriedades que pertenciam aos maiores devedores inadimplentes da cidade. Em
conseqüência disso, estes facciosos tentaram convencer oficiais e soldados a desertar, na
esperança de anular as suas dívidas simplesmente integrando-se ao Brasil e pedindo a
proteção do seu novo governo: e até conseguiram, porque a tropa, insatisfeita com o
soldo recebido, só queria deixar esta terra insalubre. A causa principal do tumulto, entre
outras tantas, é mesmo o desejo de integrar-se ao Brasil (…) O ‘Partido Brasileiro’
continua a crescer mais forte a cada dia e esta gente olha para o Brasil como a sua pátria
natural”. 8
Se Luanda, sede do governo, mantinha relações mais estreitas e frutíferas com a
metrópole, Benguela estava mais perto do Pernambuco do que de Lisboa em virtude do
intenso comércio marítimo e oferecia um suporte relativamente maior à causa Brasileira
também por causa do número de habitantes brasileiros que ali residiam. Mas afinal de
contas, pouco importa quanto intenso fosse o desejo local de se separar da metrópole, a
falta de suporte recebido pelo governo brasileiro acabou por frear entusiasmo e
confiança.
De acordo com o tratado de independência assinado no Rio de Janeiro no dia 29 de
Agosto de 1825 - e ratificado por Portugal a 15 de Novembro do mesmo ano – o Brasil
passava a ser considerado como um império separado dos reinos de Portugal e
Algarves; El-Rei João VI concedia o título de Imperador ao filho Pedro; os direitos de
portugueses e brasileiros haveriam de ser respeitados, assim como todos seus bens e
propriedades, ao fim de restabelecer o mais cedo possível as relações comerciais entre
os dois países. Mas, sobretudo, obedecendo ao pedido das Cortes - justamente
preocupadas com a brecha aberta na soberania portuguesa pela secessão do Brasil -
Pedro I prometeu que nunca tomaria em consideração qualquer proposta procedente de
colônias portuguesas que desejassem se unir ao império brasileiro. 9
No dia 16 de Abril de 1826, o tratado de aliança entre Portugal e o Brasil foi
celebrado com uma missa solene na catedral de Luanda, presenciada pelo Governador-

8
Ofício do Governador ao Conte de Subserra, AHU, Angola, 12/10/1823, box 68.
9
Maria Cândida Proença, A Independência do Brasil (Lisboa: Edições Colibri, 1999), p. 81.
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General e pelos representantes de nobreza, clero secular e regular, câmara municipal,
residentes e nativos. 10
Imóvel, a colônia aceitou seu destino e viu o Brasil se afastar.
A partir desse momento, as relações entre Brasil e Angola eram destinadas a
enfraquecer progressivamente, mas isso não significa que a forte influência consolidada
durante séculos de trocas ao longo da costa africana se apagou de repente. Em
particular, no que diz respeito às trocas culturais dentro do triângulo luso atlântico, não
é possível descurar as freqüentes referências ao movimento de famílias angolenses para
os portos pernambucanos de Recife, Olinda e Porto de Galinhas.
Em Pernambuco muitas famílias angolenses tinham sua segunda residência e
negócios a tratar, como no caso do pai de José Da Silva Maia Ferreira, o autor de
Espontaneidades da Minha Alma, a primeira obra publicada por um autor africano de
língua portuguesa, em 1849. 11
No que diz respeito à formação de poeta do autor que hoje consideramos como o
fundador da literatura angolana, portanto, os livros lidos por Maia Ferreira em Luanda
ou no Rio de Janeiro podiam também ter sido encontrados por ele mesmo ou por seus
patrícios no Recife, ou trazidos de volta por angolenses que tinham passado um tempo
em Olinda, atraídos pela qualidade dos seus estudos jurídicos. Afinal das contas, a zona
Recife-Olinda oferecia cursos de educação superior reconhecidos em todo o mundo de
língua portuguesa, tinha jornais imprimidos desde 1825 e hospedava famílias de
comerciantes angolenses envolvidos no tráfico.
Francisco Soares colecionou pacientemente todas as referências a obras literárias
mencionadas na secção de anúncios e vendas do Diário de Pernambuco. Em linhas
gerais, o resultado mostra um milieu cultural ainda fortemente marcado pela segunda
metade do século XVIII: Rousseau, Mirabeau, La Fontaine e Boileau mais, com certeza,
clássicos como Cícero, Lívio, Horácio, Ovídio, Quintiliano e Santo Agostinho. Além

10
Ruela Pombo, “O Brasil Colonial…” (Luanda, 1932), p. 16.
11
Carlos Pacheco, José da Silva Maia Ferreira, novas achegas para a sua biografia
(Luanda: UEA, 1992), p. 179.
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disso, a existência do curso superior de estudos jurídicos em Olinda explica a
predominância dos textos sobre jurisprudência, ética, retórica e oratória. 12
O panorama bibliográfico sugerido pelos anúncios de venda ou procura de livros
publicados no Diário de Pernambuco pode então ser definido de pré-romântico.
Suspiros Poéticos e Saudades, a obra de Gonçalves de Magalhães que mais do que outra
representa o romantismo brasileiro, só apareceu em 1836, dois anos depois da chegada
de Maia Ferreira no Rio de Janeiro. Contudo, apesar de desenvolver em seguida uma
atitude critica perante algumas das ramificações do movimento no Brasil, sem dúvida
Gonçalves de Magalhães tinha pelo menos uma característica em comum com Garrett e
Herculano, referências igualmente assimiladas na gênese da obra de Maia Ferreira: uma
formação influenciada por cultura iluminista, literatura neoclássica e oratória
revolucionária procedente de Paris. Como já sugerido por Mário António, partindo de
uma visão em retrospectiva das principais obras e autores referenciados por Maia
Ferreira na sua obra - junto com Alexander Pope, Lamartine, Hugo, André Chenier e
alguns poetas ultra-românticos portugueses - se destacam Homero, Cícero e Fenelon,
três referências que aparecem também na bibliografia mencionada acima. 13
O melting pot cultural ativo em Olinda, Recife ou Rio de Janeiro duas décadas antes
do aparecimento do livro de poemas Espontaneidades da Minha Alma com certeza
deixou algum rasto num texto cujo background bibliográfico - mesmo sendo mais
condicionado pelo contato com os círculos literários cariocas que inauguraram o
Romantismo Brasileiro do que diretamente influenciado pelo que veio antes - é muito
parecido. 14 Embora elementos neoclássicos apareçam só raramente nas obras publicadas
pelos intelectuais Angolenses do século XIX, podemos afirmar que esta influência
subterrânea produziu personalidades ávidas de retórica pré-romântica. Nesse sentido, o
intercâmbio cultural e literário entre Angola e Brasil nunca pode ser subestimado ou
considerado esgotado em conseqüência da interrupção das atividades ligadas ao tráfico
de escravos.

12
Francisco Soares, “Um percurso Lusotropical: migração e bibliografia entre Luanda e
Recife/Olinda no princípio do século XIX”, in Lusotropicalismo, uma teoria social em
questão, Adriano Moreira & José Carlos Venâncio (Lisboa: ed. Vega, 2000), p. 132.
13
Mário António, A formação da Literatura Angolana 1851-1950 (Lisboa: Imprensa
Nacional Casa da Moeda, 1997), pp. 30-31.
14
Soares, “Um percurso Lusotropical...”, p. 141.
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Como brevemente esboçado, a época em que Maia Ferreira viveu foi caracterizada
por profundas mudanças históricas em Angola, principalmente devido à grave crise
econômica que seguiu a abolição do comércio de escravos para o Brasil. Além disso, a
introdução de ideais liberais e da imprensa clandestina possibilitou, pela primeira vez na
colônia, a elaboração de sentimentos nativistas. O nativismo, precursor do
nacionalismo, foi a expressão de um grupo social cujos interesses começaram a divergir
significativamente dos projetos da metrópole. Esta comunidade só levantará a voz em
protesto contra o regime colonial a partir do último quartel do século XIX, mas é
precisamente agora que uma nova consciência se manifesta pela primeira vez em
literatura.
A família de José da Silva Maia Ferreira (1827-1867) deixou Angola quando ele
tinha sete anos. Seu pai, um comerciante miguelista envolvido no tráfico, teve que fugir
para o Rio de Janeiro depois do fim definitivo da monarquia absoluta em Portugal.
Educado na capital do império brasileiro, Maia Ferreira freqüentou os círculos literários
daquele vivaz, ainda que restrito, milieu cultural. De qualquer maneira, em 1845 seu pai
faliu e Maia Ferreira, depois de uma estadia em Portugal, voltou para Angola a fim de
começar uma carreira na administração pública. Durante os seis anos passados em
África - talvez interrompidos por mais uma breve estadia no Brasil - Maia Ferreira
experimentou pessoalmente todas as dificuldades e o constrangimento que os filhos da
terra mais instruídos tinham que enfrentar na colônia. Este período da vida de Maia
Ferreira permanece bastante nebuloso devido às freqüentes viagens do poeta e à escassa
e espalhada documentação disponível. Os seus biógrafos mais fiáveis, Mário António,
Carlos Pacheco e William P. Rougle discordam freqüentemente sobre as datas ou sobre
detalhes relativos à atividade laborativa de Maia Ferreira. No entanto, deixando de lado
esse gênero de disputas, nessa altura o que mais importa é sublinhar quanto fosse difícil,
para a descendência de uma antiga família euroafricana arruinada pela cessação do
tráfico, encontrar um lugar dentro da nova sociedade colonial. Como sublinhado por
Rougle num ensaio escrito depois do achamento da correspondência americana de Maia
Ferreira, o poeta lutou a vida inteira a busca de um trabalho que pudesse garantir
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estabilidade financeira à família. 15 Em Angola, ele trabalhou seja em Luanda que em
Benguela como servidor público ou empregado da alfândega. Tudo o que conseguiu foi
uma série de empregos temporários, vagas abertas para cobrir o intervalo de tempo entre
a partida e a chegada de funcionários portugueses. 16
Por meados do século XIX, época em que mestiços como Maia Ferreira ainda
figuravam entre os mais ricos e instruídos indivíduos da colônia, o agravamento da crise
econômica e social em Angola contribuiu a tornar amargas as relações entre
euroafricanos e portugueses. Em Benguela Maia Ferreira entrou em contato com um
grupo de mestiços igualmente descontentes. Eles começaram a chamar-se filhos da
terra, a reunir-se em clubes como a União ou a Jovem Luanda - agremiações de
inspiração maçônica que abrigavam as atividades políticas dos seus membros mais
antiportugueses - e a desenvolver sentimentos nativistas, exprimindo-os principalmente
por meio da disseminação de pasquinades e outras “indecentes peças anônimas”
endereçadas contra as autoridades e, mais em geral, contra os portugueses da colônia. 17
Em Benguela, o Governador Tavares de Almeida perseguiu este grupo impiedosamente,
demitindo os filhos da terra do serviço público por motivos fúteis para os substituir com
confiáveis cidadãos portugueses, pouco importa se de dúbia reputação.18
O envolvimento com este tipo de ‘amizades perigosas’, entre as quais temos que
mencionar um amor proibido com a mulher de um oficial público, acabou por forçar a
saída de Maia Ferreira: o poeta deixou Benguela e um funcionário português logo
tomou seu lugar no secretariado do governo. 19 De volta a Luanda, trabalhou por um
tempo como escriturário da alfândega antes de ser despedido mais uma vez por “ter

15
Rougle, “José da Silva Maia Ferreira, poeta angolano, correspondente brasileiro, homem de
negócios americano”, in Colóquio-Letras, n° 120 (Lisboa, 1991), p. 186.
16
“Como torna-se necessário designar um secretário ad interim para os trabalhos da comissão
mista anglo-portuguesa estabelecida nesta cidade, na espera da chegada do Doutor Luís
António Baptista, nomeado por Sua Majestade (…) ao fim de não prejudicar os programas da
dita comissão, o Governador-Geral nomeou José da Silva Maia Ferreira à posição acima
mencionada”. BGGPA, n° 67, Luanda, 19/12/1846.
17
Pacheco, José da Silva Maia Ferreira, novas achegas para a sua biografia (Luanda: UEA,
1992), p. 63.
18
Pacheco, José da Silva Maia Ferreira, novas achegas..., p. 60.
19
Para saber mais sobre o romance entre Maia Ferreira e Dona Maria Paula da Gama
Teixeira de Cravela ver Pacheco, José da Silva Maia Ferreira: o homem e a sua época
(Luanda: UEA, 1990). Maia Ferreira dedicou à dama Portuguesa o poema Já não tenho fé,
revelando como a sua turbulenta vida sentimental o levou a “desconfiar do mundo e desprezar
terra e céu”.
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vergonhosamente perturbado a ordem pública, pondo em perigo a segurança pública e
faltando-lhe a responsabilidade moral e civil para exercer tal função”. 20 Indesejável em
sua própria terra, em 1851 Maia Ferreira embarcou para os Estados Unidos. Ele viveu
principalmente em Nova Iorque até 1864, quando regressou ao Rio de Janeiro a fim de
passar os últimos anos de sua vida.
Nos cinqüenta e seis poemas de Espontaneidades da Minha Alma, na maioria
dedicados ao amor e à amizade, Maia Ferreira também evocou a peculiaridade da sua
terra natal produzindo, sob a influência de modelos brasileiros e europeus, uma
descrição pitoresca da paisagem angolana. Comentando este duplo imprint
(eurobrasileiro e africano, respectivamente) o crítico Angolano Carlos Ervedosa afirmou
que Maia Ferreira é um magnífico exemplo do fenômeno de assimilação cultural. 21 Por
um lado, o poeta assume uma atitude tipicamente colonial, mostrando seu orgulho em
ser um leal súdito português e pintando retratos de nativos em puro estilo cartão-postal;
mas, por outro lado, ele foi o primeiro a desenvolver um novo regionalismo africano,
abrindo o caminho para a criação da literatura Angolana moderna. A autoconsciência da
africanidade do autor constitui o tema principal de dois entre os seus poemas mais
conhecidos e quase homônimos: À minha terra e A minha terra.
Em À minha terra o poeta, de volta de uma longa viagem, o autor sente-se
profundamente comovido à vista da costa angolana: “É minha terra querida, / Toda da
alma, toda-vida.” 22 Em seguida, o adjetivo possessivo minha é repetido com insistência,
como se o poeta quisesse literalmente tomar posse da terra que o viu nascer: “É minha
terra querida (…) minha terra primorosa (…) da minha terra a beleza (…) da minha
terra natal”.
Embora fosse às vezes afetado e amaneirado, o seu amor por Angola levou-o a
retratar o seu país e a fundar um novo tipo de regionalismo, que resulta evidente em
poemas como Benguelinha, composição dedicada à ave da qual a cidade herdou o
nome, e A minha terra, que resume perfeitamente o dilema dos assimilados, cuja
formação cultural estritamente eurobrasileira tinha que ser adaptada à nova exigência de

20
Portaria provincial n° 239, 25/01/1851, documento citado por Salvato Trigo no prefácio de
Espontaneidades da Minha Alma (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002), p. 9.
21
Ervedosa, Roteiro da Literatura Angolana (Havana: UEA, 1985), p. 21.
22
José da Silva Maia Ferreira, “À minha terra”, Espontaneidades da Minha Alma (Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002), p. 118.
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afirmar um sentimento de identificação com a terra natal africana. O poema é quase
inteiramente construído com base na confrontação entre Angola e Portugal. Comparada
com a metrópole, a terra de Maia Ferreira parece ter pouco a oferecer, o incipit do
poema sendo minha terra não tem seguido pelas principais atrações de Portugal: seus
rios, fontes e costas; seus celebrados poetas; seu glorioso passado. A esse leitmotiv,
Maia Ferreira opõe o termo restritivo só tem, que é todavia compensado pela poesia
intrínseca à paisagem africana, percebida pelo autor por meio de seus sentidos
despertados: a vista de ondas de areia branca, o canto da benguelinha e o calor do sol.
Na segunda parte do poema, Maia Ferreira põe em evidência algumas peculiaridades
do seu país, celebrando a flora e fauna africana, mas também os africanos, sem esquecer
as mulheres angolanas, tão diferentes das européias por causa da sua natureza honesta,
generosa e da sua falta de afetação:

Tem palmeiras de sombra copada


Onde o soba de tribo selvagem,
Em c’ravana de gente cansada,
Adormece sequioso de aragem.

Empinado alcantil dos desertos


Lá se aninha sedento Leão
Em covis de espinhais entr’abertos,
Onde altivo repousa no chão.

Nesses montes percorre afanoso,


A zagaia com força vibrando,
O Africano guerreiro e famoso
A seus pés a pantera prostrando.

Não tem virgens com faces de neve


Por que lanças enriste Donzel,
Tem donzelas de planta mui breve,
Mui airosas, de peito fiel. 23

Ainda caraterizada por contradições expressivas imputáveis à dependência cultural


de modelos europeus, a obra de Maia Ferreira pode todavia ser interpretada como a fase
inicial de um processo de identificação emocional com o território angolano. Em todas
as maneiras possíveis, os textos do poeta angolense reconhecem o importante papel
atribuído pelas poéticas românticas à natureza e à pátria, elementos que suportam o

23
Maia Ferreira, “A minha terra”, Espontaneidades da Minha Alma, p. 27.
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crescimento de um sentimento nativista destinado a se transformar progressivamente em
consciência nacional.
A análise das trocas de estruturas literárias entre Brasil, Angola e Portugal mostra
claramente que a poesia angolana - e mais em geral a literatura angolana - deu seus
primeiros passos ao seguir as pistas deixadas pelas duas literaturas lusófonas já
formadas. Um processo que encontra a sua origem não só na imitação de referências
literárias paradigmáticas como, por exemplo, Gonçalves Dias, mas também no
conhecimento e assimilação de obras hoje pouco estudadas - ou até quase totalmente
desconhecidas, como no caso da maioria dos poetas ultra-românticos portugueses
menores - mas que naquela época eram consideradas paradigmáticas, dignas de ser lidas
ou simplesmente constituíam o único material de leitura disponível.
Neste sentido, o seguinte caso de plagiarismo nos oferece um exemplo tangível da
maneira com que escolas de pensamento e modelos europeus ‘viajavam’ ao longo dos
três vértices do triângulo atlântico, acabando por ser assimiladas na remota província de
Angola. Na edição do Almanach de Lembranças Luso Brasileiro de 1877 aprendemos
que o poema enviado de Moçâmedes por Valentim Augusto Monteiro da Silva,
publicado na edição de 1866, é mera replicação de uma composição escrita pelo poeta
português João d’Aboim.
Eis o texto do poema em questão:

Se eu fora das noutes o astro formoso,


Em teu lindo colo quizera brilhar;
Teu negros cabellos às brisas soltára
Se eu fora nas praias a brisa do mar...
(...)
Mas eu não sou astro, nem lyra, nem ecco,
Nem ave, nem trova, nem brisa do mar
Sou homem que sofre, que ama e que sente,
Que sente e não póde teu seio abrandar. 24

Infelizmente não foram encontradas fontes que nos permitam de saber mais sobre o
lugar de nascimento do plagiário ou de conhecer mais detalhes acerca da sua vida em
Angola e da sua atividade literária. As alterações introduzidas por Monteiro da Silva são

24
Valentim Augusto Monteiro da Silva, POESIA, Novo Almanach de Lembranças Luso
Brasileiro (Lisboa: Lallemant Frérès, 1877), p. 5.
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geralmente insignificantes, mas a transformação dos últimos dois versos da composição
merece atenção : “Sou homem e eu sinto, eu sofro, eu gemo, / sua presença no mundo
me pode matar” torna-se “Sou homem que sofre, que ama e que sente, / Que sente e não
póde teu seio abrandar”.
A passagem da primeira à terceira pessoa revela o maior destacamento do autor,
acentuado no último verso, onde a possível morte do poeta foi substituída com a
preocupação pela pessoa amada. De acordo com Francisco Soares e suas pesquisas
sobre a poesia angolana do século XIX, concentrando a atenção do leitor sobre uma
segunda pessoa antes do que sobre o sujeito poético, Monteiro da Silva recorre a um
expediente dramático bastante comum entre os poetas angolenses. 25 Aliás, tal
característica, ganha um sentido particular dentro de uma sociedade em que indivíduos
ou famílias eram expostos a repentinas e as vezes imprevisíveis alterações do seu status
social - em alguns casos mais do que uma vez na vida, como os casos paradigmaticos de
outros intelectuais ativos em Angola na época quais Arsénio Pompílio Pompeu de
Carpo e Joaquim António de Carvalho e Meneses parecem confirmar. Dadas as
condições anteriormente apontadas, a coabitação era mais aberta e penetrante: os laços
familiais ou sociais adquiriam um valor especial e, muitas vezes, deles dependia a
possibilidade de alcançar uma boa posição ou fechar um bom negócio, por exemplo. De
qualquer maneira, o simples fato de que um poema escrito por João d’Aboim tem sido
lido por alguém em Angola é por si bastante significativo.
Jornalista, dramaturgo e poeta, João Correia Manuel d’Aboim (1814-1861) publicou
muitas obras, entre as quais se destacam O Livro da Minha Alma e Devaneios Poéticos,
que são dignos de menção, visto que estes títulos são muito semelhantes a
Espontaneidades da Minha Alma e Delírios de Joaquim Dias Cordeiro da Matta (1888),
outro pioneiro da literatura angolana. Além disso, João d’Aboim viveu no Brasil -
exilado por causa do seu envolvimento político durante o período das revoluções
liberais - onde encontrou Maia Ferreira. 26 Talvez Monteiro da Silva teve acesso à obra
de d’Aboim porque foi um entre os muitos colonos portugueses que deixaram o Brasil
para fundar e povoar Moçâmedes durante os anos 40, mas a divulgação em Angola de
25
Francisco Soares, “Se: percurso Lusotropical de uma estrutura literária”, Revista
Internacional de Estudos Africanos, nn° 16-17 (Lisboa: IICT, 1992-94), p. 259.
26
Como confirmado por Carlos Pacheco, Mário António e Gerald Moser no prefácio da
edição de Espontaneidades da Minha Alma publicada em 1980 (Lisboa: Edições 70, 1980).
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livros ou poemas escritos por este pouco conhecido autor português poderia também ser
atribuída ao próprio Maia Ferreira. O poeta angolense poderia ter disseminado ou
ajudado a disseminar a obra do seu amigo d’Aboim entre os seus patrícios, pois que
nenhuma menção relativa ao Livro da Minha Alma pode ser encontrada nos anúncios
dos jornais da época.
A influência deste texto sobre Espontaneidades da Minha Alma é evidente e
manifesta, a partir do subtítulo escolhido por Maia Ferreira, “Às Senhoras Africanas”.
Na introdução do seu livro, D’Aboim cita uma carta escrita a Gonçalves Dias, seguida
pela resposta do poeta brasileiro. Agradecendo Gonçalves Dias por tê-lo recebido de
braços abertos no Brasil, d’Aboim despede-se dizendo: “É minha intenção dedicar este
livro às senhoras brasileiras...” 27 O fato de Dias e d’Aboim serem amigos é também
significativo: provavelmente Maia Ferreira teve a possibilidade de conhecer Gonçalves
Dias por meio do amigo comum, ou vice-versa. Talvez isso possa explicar a razão por
que os poemas de Espontaneidades da Minha Alma devem tanto à obra de Gonçalves
Dias, cuja Canção do Exílio, por exemplo, inspirou os versos de A minha terra. 28
Entretanto, em primeira leitura, quase parece que o poema de Maia Ferreira,
apresentando elementos que denotam a superioridade do seu modelo de referência,
reverte completamente a postura ‘standard’ geralmente requerida pela tarefa de exaltar
qualquer pátria. De certo modo, o sentido de negatividade que emerge da seqüência de
imagens evocadas pelo texto reflete o desconforto de quem reconhece as deficiências do
próprio país. Ao mesmo tempo, é possível detectar um certo grau de ambigüidade
especialmente nos versos finais, quando a alusão do autor ao Brasil parece temperar
com um pouco de ironia uma atitude senão suspeitosamente lealista e reverente.
Considerando que a recente independência do Brasil ainda constituía algo como uma
ferida aberta no orgulho nacional e no imaginário português, não é sem zombaria que
Maia Ferreira decidiu fechar o poema com a celebração das maravilhas daquele país,
colocando o Brasil ao mesmo nível de importância do seu ex-colonizador. Além disso,

27
Soares, “Se: percurso Lusotropical de uma estrutura literária”, pp. 260-261.
28
O famoso incipit de Canção do Exílio providenciou as imagens utilizadas por Maia
Ferreira na tentativa de definir a essência de um país: “Minha terra tem palmeiras, / Onde
canta o Sabiá; / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá. / Nosso céu tem mais
estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais
amores” Gonçalves Dias, Poesia e Prosa completas (Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar,
1998), pp. 105-106.
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sugerindo que Angola, cujo único recurso era a “solidão de um deserto”, não tinha
ilustres eruditos e maravilhas artísticas, o poeta, ainda que indiretamente, aponta o dedo
à administração colonial. A crítica dirigida por Maia Ferreira contra a maneira com que
Portugal administrava a colônia de Angola resulta ainda mais evidente no panegírico
dedicado ao Governador-Geral Adrião Acácio da Silveira Pinto (1848-1851), no qual o
poeta denuncia a cobiça de seus predecessores e invoca um “melhoramento na província
morta, abandonada pelo mundo, solitária e triste”. 29
Embora resolvidos a celebrar Angola como pátria e reconhecendo que os verdadeiros
beneficiários de suas riquezas e oportunidades - especialmente no que diz respeito aos
postos mais altos na administração civil e militar - teriam que ser os filhos da terra, é
preciso lembrar aqui que a geração de Maia Ferreira nunca contestou abertamente o
sistema colonial. Exceção feita para a elite econômica da colônia que tentou, em vão,
consolidar e tornar autônomo o eixo comercial Angola-Brasil durante os anos 30, a
natureza dos laços que uniam Angola a Portugal foi raramente posta em discussão antes
do último quartel do século XIX. A elite local só queria manter seus privilégios e o
nativismo, como sugerido por Carlos Pacheco, caracterizava-se principalmente pela
oposição entre nativos e estrangeiros, ou seja, entre ‘portugueses africanos’ e
‘portugueses de Portugal’. 30 Portanto, o conceito de pátria limitava-se às diferenças
geográficas, antropológicas e culturais que opunham Angola aos outros países
estrangeiros, inclusive Portugal. Referências a Angola vista como uma entidade
histórica distinta e concreta só apareceram no final do século XIX, em textos escritos
por José de Fontes Pereira e outros jornalistas ou intelectuais angolenses. Eis porque
muitas das acusações dirigidas a Maia Ferreira - cuja alienação cultural e dependência
dos modelos europeus e brasileiros tendem a ser consideradas por alguns críticos como
causas de uma certa ‘falta de angolanidade’ presente nos seus poemas - parecem
injustificadas se compararmos a obra do poeta ao contexto histórico-cultural em que
esta foi originalmente concebida e escrita.
É preciso lembrar que a consciência nativista ou regionalista de Maia Ferreira refletia
a consciência social de um homem que tinha que enfrentar os problemas da colônia

29
Maia Ferreira, “Dedicação ao Excelentíssimo Senhor Adrião Acácio da Silveira Pinto”,
Espontaneidades da Minha Alma, pp. 23-25.
30
Pacheco, O nativismo na poesia de José da Silva Maia Ferreira, p. 32.
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durante o período 1845-1849, um período que viu a emergência de movimentos
nativistas e sentimentos de lusofobia em reação ao controle e à pressão colonial que iam
se tornando cada vez mais asfixiantes. Para dizer o mínimo, parece prematuro tirar
conclusões precipitadas sobre a angolanidade do poeta num contexto parecido. Não
obstante tudo, Maia Ferreira - para usar as palavras de Gerald Moser - “foi o primeiro a
ousar dedicar poesias ao território africano escrevendo em Português, criando versos
simples que inauguraram um novo tipo de regionalismo. Por essa razão, podemos
afirmar que Espontaneidades da Minha Alma abriu o caminho para a formação da
literatura angolana”. 31 Ademais, como também observado por Manuel Ferreira, a
construção e a aquisição de uma consciência nacional reside principalmente numa forte
consciência regional. 32 Esta primeira abordagem aos temas de identidade e identificação
com o território contribuiu, seja como ponto de partida seja como memento constante, à
elaboração das reivindicações da elite euroafricana nas gerações seguintes.
Na obra de Maia Ferreira, o nascimento da consciência regional, misturada a um
sincero amor pela sua terra natal, se converteu numa reivindicação de pertença a
Angola, que:

Mesmo assim rude, sem primores da arte,


Nem da natura os mimos e belezas,
Que em campos mil a mil vicejam sempre,
É minha pátria!33

E, na poesia A minha terra, este forte apelo à identidade nacional foi repetido duas
vezes.

31
Gerald Moser, introdução a Espontaneidades da Minha Alma (Lisboa: Edições 70, 1980),
pp. xxix-xxx.
32
Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 1 (Lisboa: ICALP,
1977), p. 13.
33
Maia Ferreira, “A minha terra”, Espontaneidades da Minha Alma, p. 30.
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HIPERTEXTO E A NOVELA COLETIVA: A CIDADE COMO ESPAÇO DE


EXPERIÊNCIA, PRODUÇÃO E PARTILHA DE CONHECIMENTO

Jaime dos Reis Sant’Anna (UEL)

Introdução

Trata-se da exposição de um projeto de produção de textos realizado entre alunos do


Ensino Médio (High School), da Associação Escola Americana Graded School, entre
1999 e 2006, e do curso de Licenciatura em Letras da Universidade Bandeirante de São
Paulo 1, entre 2007 e 2008. A motivação para a elaboração do projeto inspira-se numa
prática crescente entre usuários da internet em todo mundo – a novela coletiva –,
trazendo o fenômeno para o âmbito da sala de aula e das práticas novas de ensino de
produção de textos.

Utilizando-se o sítio eletrônico da instituição de ensino filiado ao curso, os capítulos


de uma novela produzida coletivamente pelos alunos matriculados na disciplina
Produção de Textos estarão disponibilizados pelo sistema de intranet ou para qualquer
usuário da internet, com a possibilidade de inserção de novos capítulos, a partir de
critérios estabelecidos pelo coordenador do projeto.

Desta forma, qualquer usuário da rede de computadores poderá acompanhar a


evolução capítulo a capítulo, observando a evolução dos textos, bem como
compreendendo os critérios de composição textual.

O objetivo didático é aplicar ao texto narrativo os elementos teóricos estudados em


sala de aula, tais como elementos da narrativa (foco narrativo, construção de
personagens, linguagens, tempo, espaço, temáticas), encadeamento de figuras de
pensamento, construção e de efeito sonoro, mecanismos de intertextualidade, níveis de
coerência, elementos de coesão, discurso indireto livre, metalinguagem, prosa poética,
flashbacks, dentre outros, produzido no veículo público e aberto da internet.
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A fundamentação teórica que norteou a elaboração e execução do projeto de


cibertexto “A Novela Coletiva A arte e andar nas ruas da paulicéia” está presente no
espírito dos principais textos referentes à educação no Brasil, particularmente os PCNs
(Parâmetros Curriculares Nacionais – Português) e as DCEs (Diretrizes Curriculares do
Estado do Paraná.

Em ambos os textos, evidencia-se a preocupação pedagógica com o desenvolvimento


do aluno em diversas frentes de atuação. Por um lado, valorizou-se aquilo que se
convencionou denominar “a criação de um leitor participativo na construção dos saberes
e do questionamento dos processos de escrita e comunicação”, inserido em uma
sociedade cada vez mais plural, quer na diversidade de culturas, que nos veículos de
comunicação. Por outro lado, pretende-se explorar as diversas possibilidades de
abordagem interdisciplinares, envolvendo as diversas áreas de saber num projeto
encampado pela comunidade escolar.

Por tratar-se da descrição de uma experiência no campo didático e ter como principal
objetivo o compartilhamento desta experiência como forma de inspiração aos
professores de lingua portuguesa para a elaboração de suas próprias estratégias de
ensino de produção de textos, não nos ateremos a questões teóricas no que diz respeito
aos fenômenos lingüísticos observados na escrita de textos no espaço novo da internet –
certamente relevantes para os congressistas deste simpósio sobre Literatura e
Ciberespaço.

As fases do projeto

Na primeira fase, a partir de um curto capítulo apresentado pelo professor


coordenador do projeto, estabelecemos as diretrizes literárias que dirigem a produção
dos capítulos de uma novela intitulada A arte de andar nas ruas da paulicéia. Em
seguida, dividiremos a turma em dois grupos, cada um deles responsável pela produção
dos demais capítulos.

Depois, teremos um novo capítulo, em torno de 500 palavras, inserido na Novela


Coletiva, escolhido pela turma, após leitura e votação públicas, sob orientação do
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professor. A cada mês acrescentaremos um novo texto, e ao término do ano teremos


duas obras diferentes, autônomas e de autoria coletiva – tudo disponível em sítio da
internet.

Quando estivermos produzindo o capítulo 3, faremos um rodízio entre os grupos,


para que um possa dar continuidade ao trabalho do outro. Assim, no final do Projeto
teremos duas obras escritas com cerca de oito capítulos cada, todas elas diferentes uma
da outra e produzidas coletivamente pelos alunos.

O projeto e os elementos da narrativa

Trata-se de uma narrativa aberta à produção de textos num curso de Português para o
Ensino Médio, visando o ensino de elementos da narrativa a partir da mobilização de
alunos no que diz respeito ao contexto social em que vivem e com o qual podem extrair
os elementos que tornem verossímil o desenvolvimento da narrativa ficcional.

O professor escreveu um curto primeiro capítulo e cada uma das três classes é
responsável pela produção dos demais capítulos. A cada mês vamos acrescentando um
novo capítulo, conforme a escolha (quase) livre dos alunos e ao término do ano teremos
(espero!) três obras diferentes e de autoria coletiva.

A princípio, pretendo que a cada mês tenhamos um novo capítulo inserido na Novela
Coletiva, escolhido pela própria classe, sob orientação do professor. Sugiro que os
textos produzidos tenham em torno de 500 palavras, algo em torno de uma página e
meia, mas não devemos ser rigorosos com estas regras. A criatividade e a boa redação
serão sempre os critérios mais importantes.

Quando estivermos produzindo o capítulo 3, faremos um rodízio entre as classes para


que uma turma possa dar continuidade ao trabalho da outra. Assim, espero que no final
do Projeto tenhamos três obras escritas com cerca de oito capítulos cada, todas elas
diferentes uma das outras e produzidas coletivamente por todos os alunos.

O primeiro capítulo da Novela Coletiva


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A elaboração de um primeiro capítulo é fundamental para o estabelecimento dos


critérios que nortearão a produção narrativa dos demais capítulos, servindo de modelo a
indicar quais recursos literários pretende-se utilizar, bem como aqueles que serão
previamente estudados em sala de aula, conforme previstos nos objetivos do programa
da disciplina.

O capítulo a seguir é apenas a ilustração de um caso especial de projeto


interdisciplinar, em que a cidade de São Paulo tornara-se objeto de estudo nas
disciplinas Geografia, História, Inglês e Artes. Todavia, o espaço literário pode ser
transferido para qualquer outra cidade e a ampliação de mais disciplinas pode envolver
outras áreas do saber.

Este é o capítulo 1 da Novela Coletiva A arte de andar nas ruas da Paulicéia, a


partir do qual o demais serão elaborados individualmente e trazidos para leitura pública
na sala de aula para posterior eleição do melhor capítulo:

Mal tinha parado o elevador e antes de abrir a porta o pai foi logo atirando a frase
favorita: “Vais encontrar o mundo, Sérgio. Coragem para a luta”. Depositou as duas
malas no chão, tocou a campainha muitas vezes, contendo a impaciência. Uma moça
atrapalhada atendeu, mandou entrar. O homem fingiu achar normal os três rapazes e a
moça morarem juntos no mesmo apartamento, tentou parecer jovial, e aí, legal, beleza,
então. Constrangido, abraçou o filho e saiu sem muitas palavras. Juízo, hein, não
esquece de ligar.

Morando tão perto, Sérgio usava a bicicleta no trajeto para a Faculdade. Adorava
pedalar pelas ruas do campus, um lugar cheio de ipês que forravam o chão de amarelo.
A vida universitária era boa. As aulas eram boas. Até a comida do bandejão era boa. O
problema é que não conseguia conversar com os colegas. Todo mundo do curso de
Biologia parecia já se conhecer a tempos, falavam alto, riam alto e ele acabava isolado.
Um dia foi abordado por uma moça de fala lenta e gestos autômatos, que começou a lhe
falar de Jesus Cristo, chamou-o para um fim de semana no acampamento de sua
comunidade espiritual. Logo percebeu que se ficasse sentado sozinho era um prato
cheio para estes grupos religiosos que atacavam sempre os solitários.
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Começou a sentir a falta da mãe, da irmã. Ligava sempre do telefone público, de


manhã e de tarde. Devia ter um telefone celular, facilitava as coisas, mas estava
proibido pelo Juiz da sua cidade. Três anos antes ele tinha colocado o seu celular no
bolso do paletó de um vizinho falecido. Planejara que depois do enterro poderia ligar
para o número e assustar quem sabe o coveiro, Miolos, Otoniel, miolos, quem sabe um
casal de namorados que estivesse de sacanagem dentro do cemitério, Eu sei o que vocês
fizeram no verão passado. Com sorte poderia até salvar o pobre diabo cataléptico, seria
a celebridade. Mas não resistiu à ansiedade, telefonou ali mesmo do velório, assustou
os presentes que, repostos do pânico, acharam o aparelho no caixão, comunicaram a
polícia, exigiram punições, aquilo não era certo, total falta de respeito, precisavam dar
uma lição a este inconseqüente.

Com o tempo parou de telefonar para a mãe. Os cartões de telefone estavam sempre
amassados porque ele colocava no bolso de trás da calça e não percebia que quando
andava de bicicleta, o selim inutilizava os cartões. Depois, abandonou a bicicleta
também. São Paulo não era Cajuru, onde sempre viveu com a família, melhor não se
arriscar. Passou a usar os coletivos. Mesmo que a distância fosse pequena, sentava no
ponto e esperava um tempão pelo ônibus lotado. Uma tarde, voltando da Faculdade, não
conseguiu descer no ponto do seu prédio, foi parar no Largo de Pinheiros. Perambulou
pelas ruas sem compromisso, pra que voltar pro apartamento? Entrou num bar, depois
num Teatro, num Forró. Aquilo era muito movimentado, a noite não dormia em São
Paulo. Amyr Klink entre céu e mar, Sérgio estava descobrindo a cidade.

Os elementos da narrativa na composição da Novela

O Protagonista é Sérgio, jovem entre 18 e 20 anos, acabou de entrar na Universidade


(não se definiu qual é, mas fica implícito que é a Universidade de São Paulo, campus
Butantã); viveu toda a vida na pequena cidade chamada Cajuru (perto de Ribeirão
Preto-SP), de apenas 10 mil habitantes; foi dividir um apartamento com mais três
universitários que ele ainda não conhece (dois rapazes e uma moça). Carrega consigo
um passado de inadaptação às convenções, mas nada patológico. Não consegue se
relacionar com os novos colegas e começa a desenvolver o hábito de andar a pé pelas
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ruas da cidade de São Paulo que, aos poucos, começa a descobrir, como uma espécie de
cavaleiro solitário urbano.

Os Personagens Secundários devem ser abundantes e extraídos de contextos


previamente estabelecidos para a composição de cada capítulo. Já apareceram o pai, os
três colegas com quem divide o apartamento e a moça religiosa (todos não receberam
nomes ainda). Depende da decisão de cada aluno desenvolve-los ou não, bem como
acrescentar novos tipos ao seu capítulo. Todavia, eu acho que eles são um grande filão
para compor a narrativa.

O Enredo deve ser simples e não pode dominar a ação, evitando-se os episódios
espectaculares, pois o personagem é, acima de tudo, um observador do que acontece
com os habitantes da cidade. Trata-se de um jovem interiorano de 20 anos vem para São
Paulo estudar Biologia na Universidade, onde divide um apartamento com mais três
colegas que ainda não conhece (dois rapazes e uma moça). Socialmente inadaptado
desde a infância, começa a desenvolver o hábito de andar sozinho a pé pelas ruas de São
Paulo, descobrindo a grande cidade. Paralelamente, alguns conflitos de relacionamento
com os novos colegas podem enriquecer o enredo.

O cronotopos literário – Tempo e o Espaço – indissociáveis, como na perspectiva


bakhtiniana – será proposto a cada capítulo, visando variedade de ambientação dentro
da atualidade, mas com possibilidades de flashbacks. O espaço obrigatório é a cidade de
São Paulo e seus pontos pitorescos, não necessariamente os mais badalados (talvez
explorar os lugares menos conhecidos de Sampa produza um efeito mais interessante).
Quanto a este elemento da narrativa – não é exagerado salientar, não obstante a
obviedade – a adaptação ao contexto social em que a escola está inserida se faz
necessária. Desta forma, ao invés de São Paulo, seriam privilegiadas as regiões
metropolitanas da escola onde vivem os alunos, tais como Maringá, Londrina, Cascavel,
Ponta Grossa, Curitiba, etc., motivando-os ao trabalho de pesquisa de campo,
previamente direcionados pela equipe transdisciplinar.

Este projeto foi exposto – além da cidade de São Paulo, onde foi elaborado – em
congressos em Caracas, na Venezuela, e em Buenos Aires, na Argentina, com a
presença de professores de outros países, que se manifestaram desejosos de explorar as
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possibilidades pitorescas de suas respectivas cidades. Daí o caráter interdisciplinar da


produção de textos mediante esta Novela Coletiva, pois deverá envolver as múltiplas
possibilidades que conhecimento do espaço urbano.

A Linguagem é o elemento com o qual se pretende trabalhar com mais intensidade. A


narrativa é em 3a pessoa, com constante uso do Discurso Indireto Livre . Eu acredito que
seja melhor assumir um narrador onisciente que acompanhe o protagonista mais do que
aos demais personagens.

A intertextualidade (referência a outros textos, literários ou não), por exemplo, está


amplamente ilustrada na proposta: o título da novela remete a Rubem Fonseca e José de
Alencar, ambos autores que, em épocas diferentes, escreveram ficção com títulos
similares; paulicéia é termo importante na poemática de Mário de Andrade; o primeiro
parágrafo é paródico em relação a O Ateneu, de Raul Pompéia; Almir Klink e títulos de
filmes direcionados para o público adolescente também estão no primeiro capítulo
como. O importante é manter a narrativa rápida, com bom humor e numa linguagem
informal culta. Não se esqueça de revisar o texto: escrever bem não é difícil, mas dá
trabalho. Então, mãos à obra.

Propósitos na composição da Novela Coletiva e o Ciberespaço

A motivação inicial da elaboração e execução do projeto Novela Coletiva: A arte de


andar nas ruas da paulicéia visa ao estudo teórico e pratico dos elementos constituintes
da narrativa, gênero pouco trabalhado nas salas de aulas, possibilitando ao aluno que
aprenda, concomitantemente, tanto a identificação dos elementos da narrativa quanto as
diversas maneiras de utilização dos recursos literários ligados a uma produção textual
dinâmica, participativa e evolvente.

Entretanto, o motivador fundamental do projeto é a compreensão que o leitor de um


texto narrativo elaborado pelos alunos de uma sala de aula precisa ser ampliado para
além do leitor-único que é o professor, isolado interlocutor do aluno. Na verdade, a
restrição da leitura do texto produzido pelo aluno apenas ao professor é um forte
elemento desmotivador do desenvolvimento de uma produção textual comprometida e
criativa. Quanto mais leitores o texto do aluno tiver, mais ele se sentirá motivado à
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elaboração da escrita direcionada a um leitor que ele deverá considerar existente nas
mais diversas esferas virtuais e ou idealizadas que se abre ao alcance ilimitado da
intranet ou mesmo da internet.

Por isso, ao postar cada novo capítulo, pretende-se a interação com o público leitor.
Em princípio, objetiva-se a comunidade escolar diretamente ligada ao projeto, através
da intranet. Mas pode ser ampliado para a manifestação dos leitores de fora da
comunidade, caso se estenda para além dos limites da escola, uma vez que o projeto
também pode ser disponibilizado para a rede externa.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud e Y. Vieira.


São Paulo: Hucitec, 1999.

BARBOSA, Severino Antonio M.; AMARAL, Emília. Redação : escrever é desvendar


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KLEIMAN, Angela. A formação do professor: perspectivas da Linguistica Aplicada.


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MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 2005.

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PEREIRA, Julio Emílio Diniz. Formação de professores: pesquisas, representações e


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RICOUER, Paul. Ideologia e utopia. Lisboa: Ed. 70, 1999.

SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto
curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.


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O INCENSO E O CHICOTE: O PERFIL EDITORIAL DA GAZETA DE


NOTÍCIAS

Jaison Luís Crestani (PG – UNESP/Assis – FAPESP)

Introdução
A Gazeta de Notícias ocupou uma posição de destaque em meio ao jornalismo
brasileiro, conforme se pode constatar pela bibliografia crítica, que é unânime em
afirmar a importância de suas inovações técnicas e de sua inusitada democratização da
informação. Para a reconstrução das condições históricas e da atuação cultural do
periódico, pretende-se promover uma combinação da análise das condições materiais e
técnicas com o exame do contexto sócio-cultural no qual a publicação está inserida,
atentando para as considerações teóricas de Tania Regina de Luca (2006, p. 139): “O
conteúdo em si não pode ser dissociado do lugar ocupado pela publicação na história da
imprensa, tarefa primeira e passo essencial das pesquisas com fontes periódicas”.
Dessa forma, o estudo do perfil editorial da Gazeta de Notícias pretende averiguar
não só o conteúdo publicado ao longo de sua trajetória, mas também a sua forma gráfica
(formato, diagramação, disposição das matérias, recursos técnicos), as estratégias de
mercado (métodos de venda, distribuição e uso da publicidade), o corpo de
colaboradores, o público-alvo, os objetivos propostos, a orientação ideológica e a
função social exercida pelo periódico. Para tanto, será de fundamental importância a
análise dos diversos depoimentos de intelectuais firmados por ocasião de aniversários
do jornal e de homenagens à morte de seu redator-chefe, e também das apreciações
expressas em histórias da imprensa e demais pesquisas sobre a atividade jornalística.
Para além da análise da materialidade e do conteúdo da publicação, é preciso atentar
em aspectos, influências e forças ocultas que não estão estampadas de maneira patente
nas páginas do periódico. Desse modo, cumpre averiguar o processo que motivou a
criação e organização do periódico, os interesses, escolhas e posicionamentos do grupo
responsável pela linha editorial, e as relações estabelecidas com instituições políticas e
associações econômicas e financeiras.
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O interesse de revisitar as páginas envelhecidas do periódico reside na importância

de se recuperar o contexto de produção de um dos nomes mais célebres da literatura

brasileira: Machado de Assis. Nas páginas da Gazeta, o autor publicou 56 contos,

diversas séries de crônicas, poesias, críticas e homenagens. Portanto, a recuperação das

especificidades desse contexto poderá contribuir para uma visão mais autêntica dos

processos composicionais e dos desenvolvimentos temáticos da obra machadiana.

“Sem pretensões, e quase sem programa...”

Fundada em 2 de agosto de 1875 por Ferreira Araújo, a Gazeta de Notícias circulou


até o ano de 1942. A sua criação contou também com a participação dos editores Elísio
Mendes e Manuel Carneiro, e dos redatores Henrique Chaves e Lino de Assunção. Para
se ter uma idéia do prestígio alcançado pelo jornal no âmbito da imprensa brasileira do
século XIX e da importância de sua atuação sócio-cultural, bastaria referir os
depoimentos de renomados intelectuais que participaram de seu corpo editorial.
A análise dos editoriais viabiliza a identificação das propostas programáticas do
periódico, o horizonte de expectativas e a construção de identidades com o público
consumidor. Em sua estréia, a Gazeta de Notícias apresentava-se como um jornal
moderno, assinalado pelo signo da jovialidade, conforme transparece nas palavras
proferidas no prospecto de abertura do periódico:

Um jornal nasce com a idade do espírito de seus redatores […].


A Gazeta de Notícias tem vinte e... tantos anos. Quer isto dizer que
ainda tem coração para falar de amor às moças, que ainda sabe rir com
os rapazes, e apesar de recém-nascida sabe talvez já ter juízo como os
velhos, mas a seu modo.
[…] A Gazeta de Notícias apresenta-se assim. Não é isto um
programa, é um retrato. Não diz o folhetim o que nós pretendemos
fazer, diz o que somos.
De onde viemos? Da mocidade! Quem somos? A mocidade! O que
queremos? Viver, mas viver moços, rindo, amando, crendo no que é
bom e justo, respeitando o que merece respeito, desprezando o que
deve ser desprezado, erguendo altares a quem for digno deles,
abatendo as estátuas dos falsos ídolos, tendo em uma mão o incenso
para o talento e a virtude, na outra um chicote para os vendilhões do
templo.
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Não temos com isto a pretensão, nem de encorajar os inteligentes e


virtuosos, porque não precisam disso, nem de corrigir os maus, porque
não somos a palmatória do mundo. A nossa pretensão é simples: dizer
o que pensamos e sentimos, ser o que somos (Gazeta de Notícias, 2
ago. 1875, p. 1).

A opção por um estilo jovial, descontraído, por vezes irreverente e propenso ao


humorismo pode ser identificada já na maneira espontânea e folgazã com que é
construído o discurso de apresentação, rompendo com a convencional formalidade dos
programas e editoriais de abertura. Como se observa, nesse propósito de conjugar o
assunto grave e a matéria leviana, a veneração e o escárnio, o incenso e o chicote, a
Gazeta de Notícias ambiciona alcançar, pela diversidade de sua proposta programática,
um público igualmente múltiplo e diverso, visando falar tanto ao “coração” das moças e
ao espírito galhofeiro dos rapazes quanto ao “juízo” e à índole grave dos velhos.
Nessa apologia da mocidade e repúdio à “pretensiosa experiência” dos velhos (“que
de nada vale, que para nada serve, a não ser para destilar fel na taça de néctar que tens
de beber”), evidencia-se uma oposição categórica ao velho e sisudo Jornal do Comércio
e a sua tendência fortemente conservadora. Contrapondo-se a essa inclinação, a Gazeta
demonstra uma nítida abertura ideológica, repelindo posições sectárias e moralistas:
“Não sendo a Gazeta de Notícias folha de partido, apenas tratará de questões de
interesse geral, aceitando nesse terreno o concurso de todas as inteligências que
quiserem utilizar-se das suas colunas” (Gazeta de Notícias, 2 ago. 1875, p. 2).
O propósito de manter-se como imprensa imparcial e neutra é buscado por meio da
oposição declarada à oficialidade conservadora do Jornal do Comércio e ao caráter
tendencioso e virulento das folhas partidárias, conforme se reafirma veementemente no
editorial de 2 de agosto de 1897:

Começamos sem pretensões, e quase sem programa. Queríamos


fazer uma folha diversa das que então havia, e que eram de um lado o
Jornal do Comércio, sério e grave, não se envolvendo em polêmicas,
sempre sistematicamente posto ao lado do governo, por amor da
ordem, e de outro lado, folhas partidárias, com todas as paixões mais
ou menos violentas, mais ou menos intolerantes.
Queríamos ser, e fomos, e temos sido imprensa neutra. ...
Quanto às instituições então vigentes, o nosso papel consistiu, se
assim nos podemos exprimir, em faltar-lhes ao respeito. Um velho
prestígio as cercava, que fazia parte dos costumes, e esta imprensa
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neutra, que não tinha compromissos, permitiu-se achar alguns desses


costumes anacrônicos e ridículos, e como éramos moços, levamos a
coisa a rir (Gazeta de Notícias, 2 ago. 1875, p. 2).

Na visão de Alvaro Santos Simões Junior (2007), essa irreverência no combate das
combalidas instituições do Império constituía “uma característica essencial da Gazeta de
Notícias, cujo bom humor se refletia em quase todas as seções” (p. 119-20). Além do
humor irreverente, o autor destaca o “caráter liberal do jornal”, significativamente
evidenciado desde o primeiro ano de sua publicação, por ocasião da proibição, obtida
pelo clero junto ao Conservatório Dramático, do drama português Os Lazaristas, de
Antônio Ennes. Insurgindo-se contra a censura, a Gazeta “decidiu então publicar o texto
como folhetim” (SIMÕES JR., 2007, p. 120). Nessa linha, cumpre mencionar também a
atuação da Gazeta de Notícias na defesa da liberdade de imprensa, conforme se observa
em matéria intitulada “A polícia e a imprensa”:

O Sr. Chefe de polícia mandou ontem chamar o Sr. Giovanni


Luglio, proprietário redator da Voce del Popolo, periódico italiano que
se publica nesta corte, e convidou-o a moderar a linguagem de que se
serve contra o Brasil, sob pena de ser compelido a deixar o país.
O Sr. Luglio tem em seu jornal aconselhado os seus patrícios a que
não emigrem para o Brasil; muitos dos seus artigos são transcritos na
Itália, principalmente no sul, e nos são prejudiciais, porque pintam
com cores carregadas os nossos erros, e esquecem-se as mais das
vezes de assinalar o que por aqui há de bom.
Não é, pois, para causar completa estranheza o procedimento da
polícia; ainda assim, porém, não permitiremos, sem protesto, que tal
procedimento estabeleça um precedente. É sabida a tendência que tem
a autoridade para exorbitar; é conhecida a elasticidade com que se
interpreta a lei, e como um fato é torcido para autorizar um abuso
(Gazeta de Notícias, 28 fev. 1886, p. 1).

A despeito da discordância em relação ao modo prejudicial com que o periódico


italiano vinha retratando o Brasil, a direção da Gazeta prefere protestar contra os abusos
de autoridade que, por ventura, poderiam vir a incidir sobre sua própria publicação,
como ocorreu em 1893, por questões políticas relacionadas ao florianismo (Cf. SODRÉ,
1966, p. 301), e em 1904, em função dos conflitos gerados em torno da Revolta da
Vacina (Idem, p. 373).

A materialidade da publicação
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Em termos de composição, a Gazeta de Notícias era composta por quatro páginas por
número, divididas em oito colunas. A diagramação caracterizava-se por uma expressiva
simplicidade, carecendo de ornamentos gráficos, tais como ilustrações, vinhetas,
arabescos, destaques gráficos, entre outros recursos decorativos comumente empregados
para emoldurar as matérias publicadas. Na maioria dos casos, as matérias justapõem-se
umas às outras separadas simplesmente por um pequeno traço, sem mesmo a indicação
de títulos que permitisse identificar o assunto abordado.
De um modo geral, o conteúdo jornalístico e literário restringia-se às duas primeiras
páginas, reservando-se as duas últimas para a publicidade. O amplo espaço ocupado
pelos anúncios dos patrocinadores demonstra que o jornal procurava alcançar a sua
autonomia econômica e independência política por meio da publicidade.
A despeito da simplicidade gráfica, as condições de produção oferecidas aos
colaboradores permitem identificar a garantia de uma revisão textual cuidadosa,
conforme se depreende dos comentários emitidos pelos organizadores da edição crítica
da coletânea de contos machadianos, Histórias sem data (1884), em sua maioria
publicados inicialmente nas páginas da Gazeta:

A Gazeta de Notícias deu às 15 peças nela publicadas o destaque


permitido pelas condições técnicas da imprensa brasileira, na época,
estampando-as nas últimas colunas da primeira página, continuação na
segunda; os contos mais extensos, ocupando toda a altura da página;
os outros limitando-se ao rodapé. Composição em corpo 8, realces em
grifo. Revisão excelente, inclusive quanto à pontuação. Não fossem as
alterações textuais feitas pelo Autor posteriormente, em quase todas as
peças, esta publicação seria o melhor texto-base para estabelecimento
do texto crítico (HOUAISS, 1975, p. 26-7).

O esmero da revisão textual era acompanhado também da eficácia de seus métodos


de impressão, que contavam com a rapidez, a qualidade técnica e as avultadas tiragens
proporcionadas pelas rotativas Marinoni de quatro cilindros, introduzidas pela Gazeta
de Notícias no meio jornalístico brasileiro:

A Gazeta de Notícias, o primeiro jornal da América do Sul a ter nas


suas oficinas a rotativa de quatro cilindros, foi uma das melhores
folhas do século passado. Nunca perdeu seu feitio, eminentemente
popular, sem esquecer as elites, que alcançava através de uma
colaboração criteriosamente selecionada. Inovador, arejado, foi dos
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poucos diários que puderam competir com o velho e sólido Jornal do


Comércio (COUTINHO; SOUSA, 2001, p. 760)

Do excerto citado, pode-se apreender também o êxito das estratégias editoriais


empreendidas pelos organizadores do periódico, cuja perspicácia facultava atingir um
público amplamente diversificado, dos setores populares às elites. Evidencia-se, nesse
sentido, a concepção dinâmica que orienta a interação entre forma e conteúdo: a
diagramação ágil interage dinamicamente com a facilidade de transição entre o assunto
grave e a matéria frívola, entre a seriedade das questões políticas e a comicidade das
anedotas de puro entretenimento. A diversidade de público é assegurada, portanto, pela
pluralidade do conteúdo e das seções do periódico. Ao lado da austeridade dos debates
sobre as causas políticas e as reformas da nação, o jornal não descuidava dos atrativos
que impulsionavam a sua venda, tais como a reportagem sensacionalista sobre crimes e
escândalos e o tradicional folhetim, amplamente requisitado pelo grande público,
conforme demonstrou Nelson Werneck Sodré:

O grande público iria sendo lentamente conquistado para a literatura


principalmente pelo folhetim, que se conjugou com a imprensa e foi
produto específico do Romantismo europeu, aqui imitado com sucesso
amplo, nas condições do tempo. O folhetim era, via de regra, o melhor
atrativo do jornal, o prato mais suculento, que podia oferecer, e por
isso o mais procurado. Ler o folhetim chegou a ser hábito familiar, nos
serões das províncias e mesmo da Corte, reunidos todos os da casa,
permitida a presença das mulheres. A leitura em voz alta atingia os
analfabetos, que eram a maioria. […] A Gazeta de Notícias, do Rio,
renovando sob tantos aspectos a fisionomia da imprensa, submete-se
ao gosto pelo folhetim (SODRÉ, 1966, p. 279).

Nesse espaço, Ferreira de Araújo acolhia não só as produções nacionais do gênero,


como também mandava “traduzir os melhores autores franceses”, lançando “as
imaginações em entusiasmos e exageros extraordinários” (PONTES, 1944, v. 1, p. 173).
Em uma breve descrição do periódico, John Gledson enaltece a sua modernidade e
autonomia, deixando entrever, a partir da referência à colaboração de Machado de
Assis, a diversidade de público almejada pelo jornal. A despeito de seu caráter
essencialmente noticioso, não são desconsideradas as preferências da clientela feminina:

Era um jornal liberal no melhor sentido da palavra, politicamente


independente, vivo e decididamente preocupado em apoiar boas
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produções literárias. Ferreira Araújo, seu fundador e redator-chefe, era


um jornalista admirável e muito amigo de Machado de Assis, para
quem as portas da Gazeta se abriram pelo menos desde 1876. Mas
apenas em fins de 1881 é que Machado resolveu aparecer
regularmente em suas páginas, começando com nada menos que
“Teoria do medalhão”. O material publicado na Gazeta foi mais
variado, embora nem por um instante se possa imaginar que Machado
subestimasse seu público feminino (GLEDSON, 1998, p. 20).

Dessa forma, verifica-se que o título de “melhor jornal brasileiro da época” e


responsável por importantes reformas operadas na imprensa, atribuído por Sodré (1966,
p. 314), não corresponde a aspectos estéticos passíveis de serem apreendidos
prontamente pelo consumidor. O êxito e o prestígio de sua publicação estão vinculados
a fatores estruturais e ao posicionamento assumido no conjunto das possibilidades
editoriais disponíveis no período. Nesse sentido, salienta-se a importância de sua
atuação sócio-cultural, a maleabilidade da distribuição, as inovações técnicas de seu
sistema de produção, a perspicácia mercadológica dos editores, a dinamicidade da
forma e a pluralidade do conteúdo. Dentre essas propriedades, destaca-se a apurada
sensibilidade de seus editores na compreensão do espírito do tempo e na percepção das
demandas e exigências do período histórico vivenciado pelo país. Conforme a indicação
de Sodré, a época requisitava militância no debate sobre as reformas da nação em
detrimento da sofisticação e embelezamento da apresentação gráfica do periódico:

A época pedia crítica, vibração, combate. Todos queriam reformas. A


imprensa teria de acolher a inquietação generalizada, discutir as
reformas, influir em seu andamento. Não era suficiente o luxo das
gravuras, a apresentação gráfica aprimorada, a adoção de técnicas
mais avançadas. O país vivia uma fase de mudança: uma dessas fases
em que o conteúdo se adianta à forma, até que o conteúdo novo acabe
por exigir a mudança na forma e o aprimoramento exterior se
equilibre com a expressão que se lhe impõe (SODRÉ, 1966, p. 256).

Fundada num momento oportuno, a Gazeta soube, portanto, tirar o máximo proveito
dessa conjuntura, firmando-se como um jornal de efetiva participação nas grandes
campanhas que marcaram o Brasil nessa fase de transição, especialmente nos embates
em torno da proclamação da República e da Abolição do regime escravocrata.

A democratização da informação
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A despeito do aspecto modesto de sua feição gráfica, a Gazeta de Notícias consistiu


numa proposta verdadeiramente inovadora em meio ao jornalismo brasileiro. Um de
seus instrumentos de destaque era a venda avulsa, que permitiu avanços consideráveis
no processo de democratização da informação: “A Gazeta de Notícias distribui-se por
toda a cidade, vendendo-se avulsos nos principais quiosques, estações de bonds, barcas
e em todas as estações da Estrada de Ferro de D. Pedro II” (Gazeta de Notícias, 2 ago.
1875, p. 2). Somando-se à maleabilidade da distribuição, a acessibilidade era favorecida
também pelo preço do exemplar avulso, quarenta réis, o que fazia da Gazeta um jornal
autenticamente popular. Conforme a indicação de Sodré (1966, p. 257), a inusitada
revolução jornalística alcançada pela Gazeta deveu-se essencialmente ao fato de
apresentar-se como um “jornal barato, popular, liberal, vendido a 40 réis o exemplar”.
O próprio sistema tradicional de venda por assinatura, adotado pela Gazeta,
apresentava uma flexibilidade incomum para a época: “Para facilitar a subscrição da
Gazeta de Notícias, as assinaturas serão feitas por qualquer tempo, à vontade do
assinante, vencendo-se sempre em fim de mês” (Gazeta de Notícias, 2 ago. 1875, p. 2).
Essas estratégias de distribuição resultaram em expressivas tiragens para a época e
permitiram que a Gazeta superasse as vendas do Jornal do Comércio, considerado
como o mais sólido representante da imprensa brasileira, desde 1827 (Cf. SODRÉ,
1966, p. 127). Em homenagem ao sexto aniversário do jornal, prestada pela Gazeta da
Tarde, evidencia-se a importância dessa conquista, que concedeu à Gazeta o renome de
jornal ao alcance de toda a sociedade. Essa homenagem, publicada em 2 de agosto de
1881, foi reproduzida, no dia seguinte, na página de abertura da Gazeta de Notícias:

A “Gazeta de Notícias”
“Entrou hoje no sétimo ano de sua existência esse órgão da
imprensa fluminense, que tem procurado corresponder às simpatias
que lhe hão sido constantemente dispensadas pelo público.
Saudamos cordialmente ao nosso colega da manhã pelos triunfos
que tem sabido alcançar na difícil arena em que desenvolve as forças
de sua atividade; tanto mais quando, continuando em sua vida
jornalística o exemplo iniciado por outros jornais anteriores – o de pôr
ao alcance do leitor pobre o conhecimento dos grandes interesses que
sempre se agitam no país – conquistou eminente posição no
jornalismo brasileiro, deixando na retaguarda outros órgãos que,
apesar de erguidos nos antigos alicerces da longevidade e mau grado
os elementos de aristocráticas proteções de que gozam, não puderam,
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entretanto, impedir que uma existência de seis anos apenas tivesse


vencido em prosperidade aos possuidores de velhos títulos heráldicos.
Para prova, basta assinalar o fato bastante conhecido, e jamais
contestado, de atingir a Gazeta de Notícias a uma tiragem de 22 a
24.000 exemplares diários, circulação que o Jornal do Comércio, o
décimo, ainda não pôde conseguir, pois que a sua tiragem é apenas a
metade da da Gazeta.
O próprio Jornal, com o seu inquebrantável silêncio, há
confirmado este fato, que é de domínio público (Gazeta de Notícias,
3 ago. 1881, p. 1).

O depoimento assinala o êxito alcançado pelo jornal a despeito das complicações


inerentes às opções diferenciadas assumidas pela Gazeta de Notícias, dispensando tanto
as proteções aristocráticas quanto as compensações advindas da conivência com o poder
imperial – condições essenciais para a longevidade dos periódicos com efetiva
participação nas causas sociais e políticas do período. Além disso, a árdua tarefa de
proporcionar o acesso ao conhecimento para as classes populares, assumida pelo jornal,
teria de enfrentar as dificuldades decorrentes do reduzido nível de alfabetização da
população brasileira. Conforme os dados do primeiro recenseamento geral do país,
divulgados em 1876, mais de 80% da população não sabiam ler e escrever no período de
criação da Gazeta de Notícias.
Essa dificuldade é registrada também em outra homenagem, prestada pela redação de
A Cidade do Rio, ao 13º. aniversário da Gazeta. Equiparada à democratização operada
por Girardin 1 na imprensa francesa, a transformação efetivada por Ferreira de Araújo é
enaltecida pela atenção devotada à educação das classes populares:

“Para nós outros, que trabalhamos na imprensa, a nota dominante


do dia de hoje não pode ser senão o aniversário da Gazeta de Notícias.
E, bem como na história do jornalismo francês o nome de Girandin
representa a grande revolução democrática popularizando o jornal e
levando-o às baixas camadas sociais – raio de luz nas trevas da
ignorância, assim também na história da nossa imprensa Ferreira de
Araujo há de ser o símbolo da mesma transformação, mas de
transformação muito mais difícil, porque teve de efetuar-se em um
meio diverso do parisiense, aqui onde multidão de gente não sabe ler,
onde os bons pais de família do velho tempo costumam não mandar

1
Publicista e político francês, redator do jornal La Presse, Emile Girardin (1806-1881) introduziu, em
1836, a técnica da publicação seriada (romance em folhetim) no âmbito jornalístico, alcançando um
aumento extraordinário das vendas do jornal.
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ensinar as filhas a ler e a escrever, para que não leiam e para que não
escrevam as cartas de namoro.
No atual momento histórico do Brasil, momento de transição,
período que para o organismo pátrio pode ser considerado eqüipotente
ao dos 21 anos, ao da emancipação e dos dentes de siso, no atual
momento histórico do Brasil, ao bom observador das coisas sociais é
evidente um lento processo de democratização, educando a alma
popular paras as reformas do porvir (Gazeta de Notícias, 3 ago. 1888,
p. 1).

Na sequência, o artigo estabelece uma analogia entre a atuação jornalística da Gazeta


e a função social dos bonds, no sentido de congregar as diferentes classes sociais:

Foi o bond quem acabou com a fidalguia dos carros atrelados a


bestas, sem o luxo das boas parelhas e das boas molas, sem aquilo que
indica a nobreza da raça ou a nobreza do dinheiro; foi ele quem fez
cessar as tais visitas patriarcais, lembrando mudanças ou viagens, e
em cada família levava uma porção de mucamas e quantidade de
cabazes cheios de roupa e de comedorias; foi ele quem aproximou as
distâncias e permitiu a residência nos bairros afastados – lá onde o ar é
puro e a vida é calma; foi ele quem reuniu em um mesmo veículo as
classes as mais diversas da sociedade, quem deu ensejo a que elas se
acotovelassem e se falassem, quem sentou no mesmo banco e cobrou
o mesmo tostão ao barão, todo cheio de preconceitos, e ao capadocio
todo cheio de pomadas.
A Gazeta de Notícias acabou com o doutrinarismo profético dos
homens, que davam sentenças irrevogáveis e sagradas sobre os
destinos da pátria, popularizou as coisas públicas, que tinham até
então o mistério profundo das liturgias egípcias; contou a cada qual os
segredos dos bastidores – lá onde os artistas do nosso palco social
deixam os vestuários reluzentes e as poses estudadas da representação;
unificou a vida fluminense, fazendo com que todos tenham durante o
dia as mesmas sensações, com que sejam atraídos pelo mesmo
espetáculo e discutam os mesmos assuntos.
Foi ela quem criou a nossa imprensa, porque, exceção feita do
Jornal do Comércio, dela dimanam todos os outros jornais. E a
imprensa já derruba ministérios e fala a voz do povo, quando o
parlamento traz a mordaça dos interesses pessoais de cada deputado.
E esses dois fatores, o níquel de tostão e o cobre de quarenta réis,
formaram o caráter generoso, altivo e forte deste Rio de Janeiro, que,
como Paris, é o cérebro de um povo (Gazeta de Notícias, 3 ago. 1888,
p. 1).

Além da confluência dessa honrosa função de aproximar as distâncias sociais, a


Gazeta de Notícias e o bond transparecem como signos da modernidade. Identifica-se,
inclusive, certa cumplicidade entre esses dois setores, uma vez que o desenvolvimento
dos transportes adquiriu uma importância decisiva para a expansão da imprensa
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brasileira. Se os novos métodos de impressão permitiram o aumento expressivo das


tiragens, a melhoria da qualidade e o barateamento dos exemplares, o avanço dos
sistemas de transportes agilizou o processo de distribuição, permitindo que a imprensa
atingisse regiões cada vez mais distantes do país (Cf. LUCA, 2006, p. 136-7).
O fragmento revela também o espírito combatente do jornal, empenhando-se no
questionamento da validade das teorias cientificistas em voga na época, na tendência
republicana de colocar em discussão serena as coisas públicas e na denúncia das
extravagâncias e maquinações do poder público. Sobre esse aspecto, cumpre salientar a
consequente abertura oferecida a autores como Machado de Assis para exercitar sua
pena com total liberdade na representação paródica das contradições políticas e
cientificistas vigentes no período.

Os mecanismos de consagração

Num período em que a profissionalização do trabalho artístico era incipiente e a


publicação em livro constituía uma atividade de alcance praticamente inexpressivo, o
jornal consistia na principal instância de consagração e via mediadora da comunicação
entre o escritor e o público, 2 conforme demonstra a apreciação de Sérgio Miceli:

Não havendo, na República Velha, posições intelectuais relativamente


autônomas em relação ao poder político, o recrutamento, as trajetórias
possíveis, os mecanismos de consagração, bem como as demais
condições necessárias à produção intelectual sob suas diferentes
modalidades, vão depender quase que inteiramente das instituições e
dos grupos que exercem o trabalho de dominação. Em termos
concretos, toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa,
que constituía a principal instância de produção cultural da época e
que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais. Os
escritores profissionais viam-se forçados a ajustar-se aos gêneros que
vinham de ser importados da imprensa francesa: a reportagem, a
entrevista, o inquérito literário e, em especial, a crônica (MICELI,
1977, p. 15).

Se a prática da atividade literária vinculada à imprensa implica uma série de


condicionamentos prévios, como afirma Miceli, “nem por isso [trata-se de] uma
literatura menos válida ou uma subliteratura como se quis no passado” (BAHIA, 1971,

2
“Os homens de letras viviam praticamente da imprensa: ela é que lhes permitia a divulgação de seus
trabalhos e o contato com o público” (SODRÉ, 1966, p. 283).
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p. 49). O fato de ser veiculada por páginas jornalísticas não dissociam dessa literatura
“os componentes de seriedade, criatividade, invenção, plasticidade e ritmo” (Idem, p.
50). Em vez disso, a imprensa, além de consagradora por excelência, afirma-se também
como um espaço privilegiado para o aprendizado e o exercício da criação literária:

Os maiores nomes das letras conheceram intimamente a vida do jornal


e nele assimilaram o melhor estilo com os estímulos do talento e do
poder criador, associando clareza e objetividade, dominantes no
jornalismo. É certo que por muitos anos a imprensa foi apenas uma
possibilidade financeira para romancistas, novelistas e poetas, mas, é
também fora de dúvida que nela cronistas se transformam em mestres
da expressão e do estilo (BAHIA, 1971, p. 51).

A interação entre literatura e imprensa não é, em si, contraproducente. A dificuldade


reside na ausência de profissionalização da atividade literária, que obriga o escritor a
recorrer a outros ofícios ou a desperdiçar tempo e talento com a prática de funções
vulgares oferecidas pela imprensa, conforme registrou Medeiros e Albuquerque:

É certo que a necessidade de ganhar a vida em misteres subalternos de


imprensa (sobretudo o que se chama “cozinha” dos jornais; a
fabricação rápida de notícias vulgares), misteres que tomem muito
tempo, pode impedir que os homens de certo valor deixem obras de
mérito. Mas isto lhes sucederia se adotassem qualquer outro emprego
na administração, no comércio, na indústria. O mal não é do
jornalismo: é do tempo que lhes toma um ofício qualquer, que não os
deixa livres para a meditação e a produção (apud SODRÉ, 1966, p.
335).

Com as vantajosas condições financeiras oferecidas a seus colaboradores e o


reconhecido incentivo dedicado à produção artístico-literária, a Gazeta de Notícias
prestava uma importante contribuição para a mudança desse quadro e para o lento
processo de profissionalização do trabalho intelectual que se iniciava no Brasil. Em
1907, Olavo Bilac e Medeiros e Albuquerque já contavam com ordenados mensais, com
cifras superiores às da imprensa parisiense. No entanto, para o poeta parnasiano
importava fundamentalmente a notoriedade assegurada pela oportunidade de participar
do corpo editorial do renomado jornal carioca:

É que a Gazeta daquele tempo, a Gazeta de Ferreira de Araújo, era a


consagradora por excelência. Não era eu o único mancebo ambicioso
que a namorava: todos os da minha geração tinham a alma inflamada
daquela mesma ânsia. Não era dinheiro o que queríamos: queríamos
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nome e fama, queríamos ver nossos nomes ao lado daqueles nomes


célebres (Gazeta de Notícias, 2 jan. 1903, p. 1, col. 8).

Como se observa, o conjunto de propriedades analisadas – acessibilidade,


neutralidade, autonomia e modernidade – fizeram da Gazeta de Notícias a instância de
consagração mais ambicionada pelos intelectuais brasileiros do final do século XIX.
Estar entre os seus colaboradores era sinônimo de prestígio e de notoriedade para
jornalistas e literatos.

Referências

BAHIA, Juarez. Jornalismo, informação, comunicação. São Paulo: Martins, 1971.

COUTINHO, Afrânio; SOUSA, José Galante de (dir.). Enciclopédia de Literatura


Brasileira. 2. ed. São Paulo: Global Editora; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional; Academia Brasileira de Letras, 2001.

GAZETA DE NOTÍCIAS, Rio de Janeiro, 1875-1897.

GLEDSON, John. Os contos de Machado de Assis: o machete e o violoncelo. In:


ASSIS, Machado de. Contos: uma antologia. São Paulo: Cia das Letras, 1998, v. 1.

HOUAISS, Antônio. Introdução crítico-filológica. In: ASSIS, Joaquim Maria Machado


de. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975
(Edições críticas de obras de Machado de Assis – vol. 5).

LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY,
Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006, pp. 110-153.

MICELI, Sergio. Poder, sexo e letras na República Velha (estudo clínico dos
anatolianos). São Paulo: Perspectiva, 1977.

PONTES, Eloy. A vida exuberante de Olavo Bilac. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.

SIMÕES JR., Alvaro Santos. A sátira do parnaso: Estudo da poesia satírica de Olavo
Bilac publicada em periódicos de 1894 a 1904. São Paulo: Ed.UNESP, 2007.
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SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1966.
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O GÊNERO DA PARÁBOLA E A FORMA DO PARADOXO:


NARRATIVAS DE SUBVERSÃO

Jaison Luís Crestani (PG – UNESP/Assis)

Introdução

O reconhecimento de que a Bíblia afirma-se como um livro que atinge seus efeitos
por meio do trabalho com a linguagem impõe a exigência de uma abordagem literária
capaz de apreender a sutileza de sua arte narrativa e a complexidade de seus recursos
linguístico-literários. Composta por histórias, personagens e situações narrativas
complexas, que não se reduzem a meras alegorias de fundo moralizante, a Bíblia se
apresenta como uma das fontes mais influentes da literatura, da filosofia e do
pensamento intelectual do Ocidente.
Além das incontáveis alusões a imagens e eventos bíblicos, evidencia-se também sua
atuação decisiva enquanto obra de referência tanto para a definição de enfoques
temáticos quanto para a escolha dos gêneros e formas literárias. Diversos autores
utilizaram-se de gêneros discursivos próprios da narrativa bíblica, como é o caso da
parábola, que influenciou decisivamente as produções literárias de autores como Sören
Kierkegaard, Bertolt Brecht e Franz Kafka.
Desse modo, este trabalho pretende demonstrar, a partir da análise de manifestações
do gênero presentes na Bíblia e nas obras dos autores citados, as similaridades que se
evidenciam no modo de configuração das propriedades formais da parábola e na
construção de uma visão de mundo paradoxal e de um efeito subversivo em relação aos
valores do senso comum.

1. Propriedades estruturais do gênero tradicional

Em A Parábola (1998), Marco Antônio Domingues Sant’Anna considera que a


parábola se afirma como gênero literário a partir das manifestações bíblicas do Novo
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Testamento. De acordo com a definição de Sant’Anna, a parábola é uma narrativa


breve, amimética e alegórica. O amimetismo referido por Sant’Anna pode ser percebido
nas categorias das personagens, do espaço e do tempo, ou seja, a configuração desses
elementos não mantém vínculos com a realidade empírica, seguindo um princípio de
organização interna que lhe imprime um caráter universal. Com raríssimas exceções que
acabam confirmando a regra, as personagens não apresentam nomes próprios e nem
caracterizações psicológicas individualizantes, os espaços não são definidos
geograficamente e o tempo não é marcado cronologicamente.
Essas particularidades fazem com que a parábola seja onipessoal, onigeográfica e
onitemporal, ou seja, que não se dirija a um grupo específico de pessoas, nem se
restrinja a uma região particular e nem se limite a uma época determinada pelo cronos.
Portanto, graças ao seu caráter universal, a parábola pode ser dirigida a qualquer pessoa
e abordada em qualquer época e lugar, sem perder o seu potencial expressivo.
Em sua forma tradicional, a parábola também se configura como uma
“metanarrativa”, ou seja, uma narrativa passível de ser encaixada no corpo de um
discurso mais amplo. Isso só é possível por ser ela uma narrativa breve, tendo em média
de 150 a 200 palavras; caso contrário, ocorreria uma digressão.
Além dessas especificidades, a parábola apresenta-se como uma narrativa alegórica,
o que permite a transposição do público para um universo ficcional, ilustrando o
princípio a ser transmitido de uma maneira envolvente e agradável. E a exortação, por
mais fulminante que seja, fica amenizada, num primeiro momento, pela estória contada.
Por servir como uma forma de confronto interpessoal, a parábola utiliza-se de uma
estratégia comunicativa em construção, cujos resultados são alcançados com a
participação do interlocutor ou do leitor/ouvinte. Dessa forma, o material empregado em
sua composição textual tende a ser de fácil compreensão, já que o receptor deve fazer
prontamente a reprodução das imagens sugeridas, oferecendo uma resposta imediata ao
estímulo dado. Nesse sentido, a parábola se caracteriza pela capacidade de enredar os
seus leitores/ouvintes; a narrativa ficcional encenada, de uma maneira geral, tem a
intenção de provocar emoções no interlocutor, induzindo-o a tomar um partido
(declarado ou não) diante da situação representada, sem se dar conta de que está
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julgando-se a si próprio. Um dos exemplos mais expressivos dessa forma de confronto


interpessoal se dá na Parábola da ovelhinha do pobre, em que o rei Davi é levado a
declarar a sua própria sentença (Cf. II Samuel 12: 11-17).
A familiaridade dos elementos empregados na composição textual da parábola
trabalha também em função de ela constituir uma forma narrativa destinada à
memorização e à reprodução oral. De um modo geral, a parábola aplica um processo de
comparação a partir do qual os elementos que o leitor/ouvinte conhece e domina são
articulados com os que ele desconhece. Nesse procedimento comparativo, situações
concretas e elementos sensíveis são empregados para ilustrar conceitos abstratos e
verdades espirituais.
Considerando essas propriedades do gênero da parábola em sua forma tradicional,
Marco Antônio Sant’Anna considera que embora a parábola bíblica seja inegavelmente
composta de elementos literários, estruturada através de processos característicos desse
campo e requeira procedimentos hermenêuticos próprios da Teoria da Literatura para
sua interpretação, é sabido que a intenção primeira do autor não foi a de provocar o
prazer estético. Em contrapartida, as manifestações do gênero moderno, desprendendo-
se dos interesses religiosos e firmando propósitos estritamente literários, passam a se
configurar por uma nítida busca pelo prazer estético, conforme apresentaremos nos
tópicos seguintes.

2. Transformações estruturais do gênero moderno

A parábola como gênero literário divide-se, conforme a classificação proposta por


Marco Antônio Domingues Sant’Anna (1998), em duas versões: a antiga e a moderna.
A primeira tem como representante mais expressivo as parábolas bíblicas,
principalmente as narradas por Jesus no Novo Testamento. A versão moderna, por sua
vez, tem suas manifestações disseminadas pela literatura moderna e contemporânea.
Diversos fatores contribuíram para as transformações que se operaram no gênero;
dentre eles destacam-se as alterações sócio-político-econômicas que exigem adaptações
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estéticas capazes de ajustar o discurso artístico às novas orientações e valores do mundo


moderno, – processo que é definido por Anatol Rosenfeld nos seguintes termos:

Uma época com todos os valores em transição e por isso incoerentes,


uma realidade que deixou de ser um mundo explicado, exige
adaptações estéticas capazes de incorporar o estado de fluxo e
insegurança dentro da própria estrutura da obra (ROSENFELD, 1969,
p. 84).

Além disso, faz-se necessário considerar as alterações que ocorreram no contexto de


produção da parábola, ou seja, a transposição da parábola do seu contexto bíblico-
religioso para o campo da literatura, o que desencadeou uma nítida busca pelo prazer
estético nas intenções dos autores e, conseqüentemente, a necessidade de uma recepção
crítica dos textos, orientada estritamente por critérios literários.
Nesse sentido, considerando as transformações técnicas da arte moderna,
acompanhadas pelo gênero da parábola, tomamos como parâmetro de análise as
apreciações traçadas por Umberto Eco, no livro Obra aberta (1971):

Rompendo [os] módulos de ordem, a arte fala do homem de hoje,


através da maneira pela qual se estrutura. Mas, ao afirmar-se isto, faz-
se a afirmação de um princípio estético do qual não mais nos
deveremos afastar se quisermos prosseguir nessa linha de pesquisa: o
discurso primeiro da arte, ela o faz através do modo de formar; a
primeira afirmação que a arte faz do mundo e do homem, aquela que
pode fazer por direito e a única de significação real, ela a faz dispondo
suas formas de uma maneira determinada, e não pronunciando, através
delas, um conjunto de juízos a respeito de determinado assunto (ECO,
1971, p. 255-6).

Portanto, considerando que a parábola moderna apresenta-se como uma modalidade


discursiva que atinge seus efeitos por meio do trabalho com a linguagem e por meio da
disposição dos seus elementos estruturais, firma-se a exigência de uma análise literária
especializada, capaz de apreciar a complexidade de suas estruturas formativas, a
abertura das suas operações discursivas e o alcance de seu potencial estético.

3. A forma do paradoxo
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Utilizando-se de um gênero corrente da tradição bíblica, Sören Kierkegaard (1813-


1855) deixou memoráveis parábolas ao longo de sua obra. Um exemplo expressivo é a
parábola “The happy conflagration” (“O incêndio feliz”) que se destaca pela concisão e
pela linguagem simbólica de alto teor metafórico que a caracteriza:

O incêndio feliz
O que acontece àqueles que tentam prevenir a geração atual?
Aconteceu que um fogo estourou nos bastidores de um teatro. O
palhaço saiu para informar o público. Eles pensaram que era apenas
uma brincadeira e aplaudiram. Ele repetiu seu aviso, eles gritaram
ainda mais alto. Então eu penso que o mundo chegará a um final em
meio a um aplauso geral de todas as testemunhas que acreditam que
ele é uma brincadeira (KIERKEGAARD, 1989, p. 3, tradução minha).

Tendo o teatro como cenário, a situação narrativa representada na parábola “O


incêndio feliz” explora a ambigüidade entre ficção e realidade que permeia a
configuração desse espaço. O teatro se apresenta como um ambiente destinado à
representação, à criação fantasiosa, orientando-se por um pacto de ordem ficcional entre
o público e seus apresentadores. Considerando esse aspecto, a parábola em questão
investe na combinação da natureza fictícia do espaço teatral com o desenvolvimento de
uma ação trágica de cunho realista, instaurando, assim, o paradoxo ou nó dialético que
caracteriza as parábolas de Kierkegaard.
Essa combinação de elementos contrários é intensificada pela caracterização da
personagem central, o palhaço. A análise semântica do termo remete às categorias do
cômico e do grotesco, conforme se observa pela definição da palavra apresentada pelo
Dicionário Houaiss:

Palhaço – ant. 1. vestido ou feito de palha. 2. ator cômico, esp. circo,


que usa maquiagem e trajes bizarros, divertindo o público com
pantomimas e piadas. 3. p. ext. pessoa que provoca o riso ou que não
pode ser levada a sério. 4. p. met. Traje de palhaço. Pessoa pouco séria
que se comporta de modo ridículo e com pouca dignidade.

Desse modo, o palhaço – figura acompanhada de uma carga semântica estritamente


relacionada com o cômico – é destinado a desempenhar uma ação séria: “o palhaço saiu
para informar o público” (grifo nosso). O ato de informar remete à instrução e à
transmissão de conhecimento, exigindo do agente uma seriedade que não condiz com a
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personalidade grotesca do palhaço. Assim, instaura-se uma tensão na própria construção


frasal, em que um sujeito cômico (palhaço) desempenha uma ação séria (informar).
O resultado dessa combinação contraditória do sério e do cômico em torno da figura
do palhaço é a incompreensão do público em relação ao aviso de que “um fogo estourou
nos bastidores de um teatro”. A tensão dialética é reafirmada pela reação do público,
que acredita tratar-se de uma brincadeira do palhaço, aplaudindo a um evento trágico no
qual ele próprio está inserido, devendo sofrer as suas conseqüências.
Observa-se, pois, que a parábola é minimamente estruturada em torno dessa
combinação contraditória, uma vez que os elementos secundários são estrategicamente
dispostos em função da criação desse efeito paradoxal. Como exemplo disso, tem-se o
modo como o incêndio é situado no tempo e no espaço. No que concerne à localização
espacial, nota-se que o fogo estoura nos bastidores, ou seja, num local oculto ao olhar
dos espectadores, favorecendo o descrédito destes em relação ao aviso do palhaço. A
marcação temporal, por sua vez, coincide com o momento do espetáculo, contribuindo
para confundir o alerta com uma representação fantasiosa e suscitando, assim, a reação
jocosa e descontraída manifestada pelo público. Soma-se a isso o espírito de
coletividade do ambiente teatral que propicia o riso.
Cumpre assinalar ainda que a construção do paradoxo pode ser percebida desde o
título da parábola, “O incêndio feliz”, que combina em sua formulação duas ideias
contrastantes: um evento trágico e uma imagem de felicidade, sintetizando, assim, a
tensão dialética que percorre todo o espaço narrativo da parábola.
Verifica-se, portanto, que a configuração ambígua do espaço, vinculada à junção de
signos lingüísticos pertencentes a grupos semânticos divergentes e à combinação de
elementos contrários do trágico e do cômico na caracterização das personagens, assume,
nessa parábola, uma função decisiva para a construção do sentido do texto e da visão de
mundo paradoxal proposta por Kierkegaard em suas narrativas parabólicas.
Na segunda parte do texto, que opera uma transição do universo ficcional para uma
situação comunicativa própria do comentário, percebe-se que a parábola reproduz as
mesmas formulações estruturais da narrativa ficcional, – procedimento que se orienta
por uma relação de ordem alegórica. Desse modo, o comentário final reitera a
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combinação de elementos contrários do sério e do cômico, transferindo o nó dialético


para a situação representada em torno das testemunhas que aplaudem (comicamente) a
um evento trágico (o final do mundo), cujas consequências serão sofridas por elas
próprias.
Nesse plano, o espaço assume igualmente uma função decisiva, em que o mundo, na
sua relação alegórica com o teatro, é marcado por uma tensão dialética entre uma
situação trágica e a reação jocosa das testemunhas. De igual modo, o paradoxo
construído em torno do desacordo da comunicação entre o palhaço e o público mantém
uma relação alegórica com a situação problemática que se estabelece entre o papel sério
desempenhado por “aqueles que tentam prevenir” (epígrafe) e a postura descontraída
das testemunhas da “geração atual”.
Dessa forma, reproduzindo esse paradoxo nos seus dois planos comunicativos, a
parábola encerra-se de maneira aberta e apresenta-se como um desafio ao leitor
individual, ajustando-se plenamente às considerações proferidas por Thomas C. Oden,
na introdução da obra Parables of Kierkegaard (1989), onde a parábola “O incêndio
feliz” foi recolhida: “Isto é exatamente o que as parábolas requerem de seus leitores:
que eles desatem os nós (dialéticos) por eles mesmos; [...] cada uma delas tem por
objetivo desafiar, de sua própria maneira, a consciência subjetiva do leitor individual”
(ODEN, 1989, p. xiii, tradução minha). 1
Verifica-se, portanto, que as parábolas de Kierkegaard apresentam uma nítida
intenção de estimular o exercício lúdico-interpretativo e de despertar o prazer estético,
requerendo do leitor um trabalho hermenêutico de exploração das propriedades do
discurso e dos processos de construção da dinâmica textual. De acordo com as
considerações de Umberto Eco (1971), o discurso aberto se caracteriza pela
ambigüidade e pela possibilidade de interpretações diversas e, principalmente, pelo fato
de ter como “primeiro significado a própria estrutura” e de nos reenviar “antes de tudo
não às coisas de que ele fala, mas ao modo pelo qual ele as diz”, representando, assim,

1
This is exactly what the parables require of readers, that they untie the knot for themselves; […] each
parable aims to challenge the subjective consciousness of the individual reader in its own way (ODEN,
1998, p. xiii).
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um “apelo à responsabilidade, à escolha individual, um desafio e um estímulo para o


gosto, para a imaginação, para a inteligência” (ECO, 1971, p. 280). Nesse sentido, é
enquanto discurso aberto, lúdico e dinâmico que as parábolas de Kierkegaard têm
revelado o potencial expressivo e a sua riqueza estética.

4. Narrativas de subversão

Assim como Kierkegaard, Bertolt Brecht e Franz Kafka apropriaram-se amplamente


das propriedades genéricas da parábola para exprimir suas ideias e desenvolver suas
manifestações artísticas. Além dos empréstimos formais, as obras desses autores
permitem entrever uma expressiva confluência na construção de uma visão de mundo
paradoxal e de um efeito subversivo em relação aos valores do senso comum.
Como exemplo disso, podemos citar a narrativa kafkiana intitulada “Pequena
fábula”, reunida na coletânea de histórias Nas galerias (1989). Embora proposta como
fábula, o texto guarda uma significativa similaridade com as propriedades genéricas da
parábola, distinguindo-se simplesmente pelo uso de animais como personagens,
enquanto a parábola conta sempre com a atuação de figuras humanas. 2 Dotado de uma
impassibilidade narrativa que se compraz em relatar o sentido trágico do destino do
protagonista, a história impressiona exatamente pelo contundente realismo manifestado
na abordagem da ordem natural e lógica que preside as relações entre camundongos e
gatos:

– Ah – disse o camundongo –, cada dia o mundo se torna mais


estreito. No início ele era tão amplo que eu tinha medo, continuei
correndo e fiquei feliz por finalmente avistar, à esquerda e à direita,
muros ao longe, mas esses longos muros correm tão rápido um na
direção do outro que já estou no último quarto e ali, no canto, está
parada a armadilha para dentro da qual vou correndo.
– Você apenas precisa alterar a direção da corrida – disse o gato, e
devorou-o (KAFKA, 1989, p. 56).

Como se observa, as opções do camundongo alternam-se entre possibilidades


inevitavelmente trágicas, que desvelam a situação sem saída de sua condição. Em vez

2
Para um estudo das diferenças entre fábula e parábola, conferir Sant’Anna (1998).
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de indicar alternativas otimistas empenhadas em reverter a ordem natural, a narrativa


prioriza a reafirmação das misérias e desventuras da sorte do camundongo,
contrapondo-se aos valores positivistas do senso comum, relutante em admitir a
aceitabilidade desses infortúnios insolúveis:

A vida dele [do camundongo] se acaba, assim como se aniquila e


finda o texto (e este começa a existir no leitor assim como o
camundongo dentro do gato). A contradição antagônica entre gato e
camundongo acaba aqui – ao contrário do que acontece na narrativa
trivial, em que o ratinho sempre vence o poderoso gatão – de seu
modo mais lógico e natural: com a derrocada da parte mais fraca. Ao
invés de fomentar a ilusão, a ficção aqui é, em seu realismo,
resplendor da verdade (KOTHE, 1989, p. 14).

Dessa forma, ao combinar a naturalidade da situação narrada com o sentimento do


inaceitável que prevalece no senso comum dos leitores, a narrativa de Kafka opera uma
subversão das formas tradicionais de pensamento. Contrapondo-se às soluções positivas
e ingenuamente otimistas do idealismo comum, a visão de mundo desencantada do
autor salienta a dimensão trágica da existência, que pode ser traduzida em metáfora da
própria condição humana.
De maneira similar, Beltolt Brecht revela, no conjunto de narrativas curtas reunidas
em Histórias do Sr. Keuner, uma visão de mundo “surpreendente e desconcertante”.
Adotando uma perspectiva que prioriza a “confusão” em detrimento da “clareza” (Cf.
BRECHT, 2006, p. 91), a personagem-narradora dessas histórias, o sr. Keuner,
manifesta a sua oposição a “juízos conclusivos” (Idem, p. 89). O caráter inusitado
dessas histórias transparece desde a arbitrariedade de sua forma narrativa até o sentido
inquietante, e por vezes obtuso, que fundamenta a sua visão de mundo, conforme
transparece em sentenças aforísticas como: “‘Quando estou em harmonia com as
coisas’, disse o sr. Keuner, ‘eu não compreendo as coisas, elas me compreendem’”
(Idem, p. 107).
Como exemplo de subversão das convenções do senso comum, tem-se a narrativa “O
garoto desamparado”, que guarda certa similaridade com a parábola bíblica “O bom
samaritano” (Lucas, 10: 30-36):
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O sr. K. falou sobre o mau costume de engolir em silêncio a injustiça


sofrida, e começou a seguinte história: “Um passante perguntou a um
menino que chorava qual o motivo do seu sofrimento. ‘Eu estava com
dois vinténs para o cinema’, disse o garoto, ‘aí veio um menino e me
arrancou um da mão’, e mostrou um menino que se via a distância.
‘Mas você não gritou por socorro?’, perguntou o homem. ‘Sim”, disse
o menino, e soluçou um pouco mais forte. ‘Ninguém o ouviu?’,
perguntou ainda o homem, afagando-o carinhosamente. ‘Não’, disse o
garoto, e olhou para ele com esperança, pois o homem sorria. ‘Então
me dê o outro’, disse, e tirou-lhe o último vintém, continuando
tranqüilo o seu caminho” (BRECHT, 2006, p. 26).

Se a narrativa bíblica opera uma inversão das expectativas, uma vez que a ajuda à
vítima dos salteadores não vem das possibilidades mais esperáveis – o sacerdote e o
levita – mas de um samaritano, que mantinha uma rivalidade histórica com o povo
judeu a que pertencia o homem violentado, o texto de Brecht promove uma completa
reversão da probabilidade de uma solução positiva para a injustiça sofrida pela
personagem. O logro do garoto, somado à falta de assistência à impostura vivenciada,
traduz-se em uma ocasião oportuna para o homem, cinicamente compadecido com a
situação, aplicar um novo golpe ao menino ludibriado.
Dotado de um senso de humor peculiar, a narrativa executa uma instigante
combinação entre a simplicidade textual da situação representação e uma visão
penetrante das relações humanas na sociedade moderna.Conforme a apreciação geral
das Histórias do sr. Keuner, traçada por Vilma Botrel Coutinho de Melo no posfácio
que acompanha o volume,

Nesses textos, que variam de uma linha a uma página e meia, Brecht
[…] deixa a história em aberto, terminando, às vezes, com um dito
engraçado ou uma resposta irônica, surpreendente ou desconcertante,
quase um quebra-cabeça para o leitor. Ao acabar de ler, este perceberá
que não há propriamente uma conclusão para a argumentação, mas
que esta consiste num infindável processo dialético (MELO, 2006, p.
130).

Finalmente, para citar um último exemplo de narrativas de subversão, pode-se


mencionar o relato sobre “um campo de batatas e duas tribos famintas”, inserido no
capítulo VI, do romance Quincas Borba, de Machado de Assis, que recupera as
propriedades características do gênero da parábola, tanto no que diz respeito aos seus
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procedimentos formais quanto na maneira de formular as suas proposições temáticas e


de ensaiar a sua visão de mundo.

Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas


apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire
forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas
em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do
campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição.
A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das
tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória,
os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos
das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não
chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e
ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que
nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrei. Ao
vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas (ASSIS, 1975,
p.114).

À maneira das narrativas analisadas anteriormente, a parábola machadiana é


estruturada também em função da proposição de paradoxos, nós dialéticos e inversões
inesperadas, que desafiam a compreensão do leitor. Essa parábola, que poderia receber
como título o axioma final “Ao vencedor as batatas”, apresenta uma visão subversiva
em relação aos valores do senso comum, procurando demonstrar, ironicamente, os
benefícios da guerra para a conservação da humanidade. Assumindo uma perspectiva
dialética, a história propõe uma equivalência entre conceitos díspares – morte/vida,
destruição/conservação:

Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas


formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas,
rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a
condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o
princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da
guerra (ASSIS, 1975, p. 114).

Conforme a sugestão de Antonio Candido, a técnica dessa narrativa machadiana,


aplicável igualmente às demais parábolas analisadas, consiste essencialmente em
“sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida […]; ou estabelecer um
contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial; ou
sugerir, sob a aparência do contrário, que o ato excepcional é normal, e anormal seria o
ato corriqueiro” (CANDIDO, 1977, p. 23).
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Considerações finais

Com este trabalho, foi possível analisar os procedimentos formais e temáticos que
atuam em função da construção do paradoxo ou nó dialético visado pelas parábolas
estudadas. Nesse sentido, pode-se considerar que esses textos mantêm um significativo
diálogo intertextual com as parábolas bíblicas do Novo Testamento, contadas por Jesus,
– fonte com a qual esses autores estavam nitidamente familiarizados. De modo similar,
as parábolas de Jesus caracterizam-se também por uma visão paradoxal e por um efeito
subversivo em relação aos valores do senso comum. Nessas narrativas em que os
últimos tornam-se os primeiros (Lucas, 13: 30), em que os publicanos são justificados e
fariseus humilhados (Lucas, 18: 13), em suma, em que a pedra rejeitada torna-se a pedra
angular (Mateus, 21: 42), Jesus revolve as posições estabelecidas, subverte conceitos e
traz os excluídos para o centro do Reino.

Referências

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; Brasília: INL, 1975 (Edições críticas de obras de Machado de Assis, v. 14).

BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1995.

BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Ed.
34, 2006.

CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: ______. Vários escritos. 2.ed.
São Paulo: Duas Cidades, 1977, pp. 13-32.

ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas.


5.ed. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 1971.

HOUAISS, Antônio & VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio


de Janeiro: Objetiva, 2001.

KAFKA, Franz. Nas galerias. Seleção, apresentação e tradução de Flávio R. Kothe. São
Paulo: Estação Liberdade, 1989.
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KIERKEGAARD, Sören. Parables of Kierkegaard. Edição e seleção de Thomas C.


Oden. London: S & C Press, 1989.

KOTHE, Flávio R. Formas da contradição em Kafka. In: KAFKA, Franz. Nas galerias.
Seleção, apresentação e tradução de Flávio R. Kothe. São Paulo: Estação Liberdade,
1989. p. 9-22.

MELO, Vilma Botrel Coutinho de. “A verdade, minha casa e meu carro!”. In:
BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Ed.
34, 2006, pp. 125-135.

ODEN, Thomas C. Introduction. In: KIERKEGAARD, Sören. Parables of


Kierkegaard. London: S & C Press, 1989, pp. vii-xviii.

ROSENFELD, Anatol. Texto e Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1976.

SANT’ANNA, Marco Antônio Domingues. A Parábola. Assis: Faculdade de Ciências e


Letras, 322p. Tese (Doutorado), Universidade Estadual Paulista, 1998.
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UM RETRATO SOCIAL EM CHUVA PASMADA, DE MIA COUTO

Jennifer Rangel de França Souza (G-USP)


Lyrian Lee Strieder (PG-USP)
Maria Zilda Cunha (USP)

Introdução

Chuva Pasmada, de Mia Couto, conta a estória de uma chuva que está suspensa no
ar. Mas mais que isso, trata-se da história de vidas pasmadas. O narrador-personagem,
um garoto tido por seus pais como “lento no fazer, demorado no pensar” (COUTO,
2004, p. 07), irmana-se com essa chuva, já no primeiro capítulo, o que aproxima o
fenômeno natural às vidas das pessoas, insinuando o “intercâmbio privilegiado entre
natureza e sociedade” de que fala Fábio Leite (LEITE, 1995, p. 1).
No prefácio do livro, verifica-se a importância da tradição oral, do repassar da
experiência pelos mais velhos:

Ante o frio, faz com o coração o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o. Quanto mais nu, mais ele encontrará o único agasalho
possível – um outro coração. (COUTO, 2004)

O avô aconselha, indica uma direção dada por sua experiência, “de forma concisa,
com a autoridade da velhice, em provérbios” (BENJAMIN, 1995, p. 114). Uma chave
de interpretação para esse dizer do avô seria a pasmaceira. Não a da chuva, para entre
céu e terra, negando sua natureza de cair, mas a das pessoas, a dos corações.
Esses dois pontos assinalados no provérbio do avô (o aconselhamento – a
transmissão da experiência – e principalmente a ligação natureza-comunidade) podem
ser vistos em outras partes do texto; um deles, torna-se o fio condutor.
O estado de pasmaceira realiza-se na chuva assim como no garoto. Mas está também
sobre o pai do narrador-personagem, que não cumpre sua função de homem, não
trabalha mais, apenas dorme: “O fundo da terra levara o meu pai de mim, sem o levar da
vida” (COUTO, 2004, p. 14); está no avô, que já deveria ter se deixado levar ao mundo
dos mortos, mas não tinha coragem de morrer: “Quando eu era menino, cheio de vida,
eu sabia morrer. Agora, que já vou pra despedida, esqueci como se morre” (COUTO,
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2004, p. 49); está na tia, que permaneceu solteira e sem filhos para muito além do tempo
conveniente às mulheres da aldeia: “A tia amadurecera sem o calor de homem, noivo,
marido. Não se contemplam tais adiamentos nestes nossos lugares” (COUTO, 2004, p.
17).
Assim, podemos encontrar toda uma família em estado pasmado, contrariando o que
seria de bom senso para comunidade a que pertence, desnaturando-se, como a chuva
que se suspendeu no ar. Cada integrante da família tem uma questão específica a
resolver, alguma questão que se arrasta e que depende de alguma ação para se desfazer.

1. Avô: a tradição - os antepassados e a natureza

O romance é aberto com a citação de um provérbio do avô. Mais adiante, “o avô se


apoiava na palavra para ganhar força” (COUTO, 2004, p. 50). Reforça-se a importância
do repassar a experiência, da transmissão oral da sabedoria. Conforme afirma Lourenço
Joaquim da Costa Rosário:

a tradição oral é o veículo fundamental de todos os valores, quer


educacionais, quer sociais, quer político-religiosos, quer econômicos,
quer culturais, apercebe-se mais facilmente que as narrativas são a
mais importante engrenagem na transmissão desses valores. A sua
importância advém do seu caracter exemplar. (ROSÁRIO, 1989)

Podemos então pensar nesse avô como um homem muito fiel às tradições de seu
povo. No primeiro capítulo, pede aos que falam em seu redor que não falem alto para
não atrapalhar o sono da chuva (COUTO, 2004, p. 6).
Há grande respeito pela natureza em seu conselho, o que mais uma vez nos indica
sua reverência com as tradições locais. Segundo Fábio Leite, natureza e homem estão
intimamente ligados pela mesma força vital que estrutura todos os seres vivos (LEITE,
1995, p. 1). O narrador indica-nos a sacralização dos elementos da natureza: “Na nossa
terra, toda água é benta” (COUTO, 2004, p. 9). Com tal força em vista, torna-se fácil
compreender toda a reverência do avô pela natureza.
O prisma da tradição norteia as visões de mundo do avô para todos os seus assuntos.
Quando não encontrou explicação para o fenômeno da chuva parada, a tradição o acode
novamente. O que haveria com a chuva? “Deve ser feitiço, sugeriu o avô” (COUTO,
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2004, p. 9). A força desses costumes chega a tornar o avô até mesmo cruel em certos
momentos: sua filha mais nova, a tia do narrador, já avançava em idade e permanecia
solteira, sem filhos, o que vai de encontro com os costumes locais. O avô não se furta de
zombar, incomodando-a, humilhando-a (vide capítulo: O fluir no rio seco).
Sabe-se que, de acordo com os estudos de Armando Martins Tavares, na tradição
africana há uma grande importância para o casamento e para o gerar filhos. Aquele que
não casa e, conseqüentemente, não gera filhos legítimos não cumpre seu papel na
sociedade. Ter filhos, na sociedade africana, significa de estar bem com os ancestrais e
garante a imortalidade.
Outro fator que demonstra o olhar tradicional do avô e dessa sociedade está presente
quando pergunta ao menino se ele conheceu “essa sua avó legítima” (COUTO, 2004, p.
13) e o menino responde “– Nunca, avô. Desencontrámo-nos. E como era ela?”
(COUTO, 2004, p. 13). Na sociedade africana existe a família estendida e o respeito aos
mais velhos é tamanho, que todas as crianças se dirigem a eles como avós. Além disso,
há aqui mais uma demonstração de que a morte não é um fim, mas sim um estar em um
mundo, onde os seres podem encontrar-se ou desencontrar-se. O avô não se poupa da
força da tradição.
Nessa lógica irredutível em que a vida se faz em respeito à natureza e seus ciclos, há
o momento de nascer, crescer, reproduzir e morrer.
Habita o mundo dos mortos Ntowene, esposa e grande amor do avô. Em
consideração a ela, a cadeira em que ela costumava se sentar nunca mais fora usada por
ninguém. Não se trata apenas de respeito à memória de um ente falecido, pois nessa
tradição o falecimento não é uma morte definitiva, mas uma mudança do mundo dos
vivos para o dos ancestrais. (LEITE, 1995, p. 5). O avô, com idade avançada em
demasia, sabe que já deveria ter partido para tornar-se também ancestral, junto de sua
amada Ntowene e sente que ela quer levá-lo.
Em verdade, é “um homem à espera de ser terra” (COUTO, 2004, p. 46). Sabe que
deve deixar a vida, mas teme – o que não deveria ocorrer – já que a morte é um ciclo e
não o fim. Ele teria desaprendido a morrer. Ntowene, enterrada na beira do rio seco, o
rio em que sua ancestral – também chamada Ntowene – se tornou, estaria chamando o
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marido para junto de si, enquanto este, seco de magreza, se mantinha amarrada ao pé de
sua cadeira.
Quando as águas do rio das Ntowenes tornam a ser corrente, o avô finalmente toma
coragem a fazer sua derradeira viagem e se solta na correnteza. Seu estado pasmado é o
seu medo de abandonar a vida, sabendo que sua hora de morrer já havia chegado.

2. Pai: a negação dos costumes da comunidade

O pai do narrador-personagem também encontra-se pasmado. Trabalhou por muito


tempo em minas que, ao desmoronarem, matavam muitos companheiros. Cada vez que
retornava à família estava mais ausente e apático. Apesar disso, o trabalho do pai nas
minas de ouro durou muito tempo e, quando esse retornou definitivamente a sua casa, já
não tinha mais uma alma viva, como se essa tivesse permanecido enterrada: “Saíra jovem,
voltara envelhecido. Os que ficam órfãos vêem seus pais serem engolidos pelo chão. O
fundo da terra roubara de mim o meu pai sem o levar da vida” (COUTO, 2004, p. 14).
O desmoronamento da mina em que o homem trabalhava acabou com as esperanças
e, ao retornar para sua casa, não era o mesmo homem. Já não possuía qualquer ânimo.
Não por isso a vida cessou na aldeia em que vivia e, ao retornar ao lar, encontrou uma
família que, como qualquer outra, demandava as atitudes que lhe cabiam: que
trabalhasse, que auxiliasse no que fosse preciso. Contudo, o homem não conseguia fazer
nada além de dormir, ignorando os apelos de sua mulher: “Sua mãe que eu faça dessas
coisas que criam alma na pessoa. Só que ela não entende: se estou vivo é porque não
tenho alma nenhuma”. A gravidade dessa pasmaceira se evidencia se nos lembrarmos
da importância do trabalho:
dentro dessa proposta comunitária que orienta a existência social, o
trabalho transparece como outro grande instrumento da produção,
encontrando-se vitalmente associado a ele segundo as normas de
interdependência estabelecidas por outros fatores que não os
meramente econômicos. É bem verdade que nessas sociedades o
trabalho se traduz como ação comunitária por excelência (LEITE,
1995).

Entendemos então que o trabalho não é simplesmente uma relevante questão prática
ou econômica, mas é também a interação do homem com a natureza e com a sua
comunidade. Dentro dessa estrutura, cabe ao homem o trabalho. Mas a alma do pai
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estava tão morta que não pôde nem mesmo ajudar sua mulher no que ela mais
necessitava: falar aos brancos, donos da fábrica que poluía o ar, que parassem de emitir
fumaça:
– E então, homem? Não vai falar? Não vai lá à fábrica?
– Nem pensar.
– E por que não quer ir?
– Não é que não quero, não tenho é vontade. (COUTO, 2004)

Por esse motivo, a mãe teve de ir sem seu homem até a fábrica, o que causou
confusões dentro de seu próprio casamento. A pasmaceira do homem começa a findar
quando esse decide tomar as providências que julga mais justa para que a chuva volte a
cair – “Vou falar é com o rio” (COUTO, 2004, p. 32) – busca a resposta que a tradição
lhe ensinou, comungando com a sagrada natureza para que essa lhe atenda as
necessidades. Já no fim da estória, o pai retoma sua posição de homem forte e vai ajudar
o filho a empurrar a pesada canoa em que se realizaria a última viagem do avô: “Deixa
que eu lhe ajudo, meu filho” (COUTO, 2004, p. 68). Tal oferecimento é a marca de que
ele estava pronto a retomar sua original condição de pai de família.

3. Tia: negação da tradição, comunidade, identidade

A tia do narrador-personagem encontra-se também em estado pasmado. Até a idade


em que se encontrava não havia ainda se casado ou tido filhos, situação descabida a uma
mulher de sua comunidade:

A tia amadurecera sem calor de homem, noivo, marido. Não se


contemplam tais adiantamentos, nesses nossos lugares. A mulher tem
seus tempos, como o fruto. Por falta de cumprimento das estações,
minha tia estava proibida de pilar e entrar na cozinha. Os alimentos
não aceitam mãos de mulher nessa condição, aquecida por seus
interiores martírios. (COUTO, 2004)

Pode-se perceber o quão grave é a situação. Por não se casar e não ter gerado filhos,
a mulher estaria negando os preceitos da natureza. E, como já dissemos, em numa
comunidade tão harmonizada à natureza – considerada a sagrada fonte da vida e de toda
ordem de fenômenos – tal desrespeito não haveria de ser digno de perdão. A tia, no
entanto, busca sua solução, seu perdão. Já que as crenças de sua comunidade não foram
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capazes de acolhê-la, ela vai em busca de amparo onde esse lhe pareceu possível: a fé
cristã, a religião trazida pelo colonizador. Nessa religião, ser solteira não seria uma falta
e mesmo que o fosse, seus pecados estariam perdoados contanto que tivesse fé.
Segundo sua visão, se a chuva estava suspensa, era por pecados dos homens contra
Deus e assim, a solução que encontra é orar no santo solo da igreja, o verdadeiro espaço
para os milagres:
Eu que não emprestasse ouvido aos restantes, crédulos em espíritos e
mezinhas. Que isso não era civilizado. Sobretudo, eu não desse crédito
ao avô, que ele era o mais dado aos ancestrais.
– A gente cimenta a casa, não pode mais ficar de alma ao relento,
fazendo altar em ramos de árvore. (COUTO, 2004)

Com o progredir da narrativa, sabe-se que os pecados que atormentam a alma dessa
mulher não se restringem à sua condição de solteira. Ela teria supostamente matado um
homem numa festa – sufocou-o na força de seu abraço (COUTO, 2004, p. 22). Mas ao
que parece, sua pior falta foi de fato a traição à irmã. A tia teve envolvimento com o pai
do garoto, e tal envolvimento não passou despercebido, como podemos constatar no
capítulo A confissão na ponte morta. A traição foi descoberta pela mãe, por meio de um
costume tradicional. A tia tem pleno conhecimento disso e, julgando que a pasmaceira
da chuva se deve aos seus pecados, quando se retira da comunidade, vai se instalar no
mesmo lugar em que a irmã descobriu o que se passava. Seu estado de pasmaceira é a
culpa que carrega, culpa essa que seu pai trata de lembrá-la sempre que pode. Tal
pasmaceira acaba quando o avô lhe concede perdão: “Ela que volte pra casa. Sua tia não
tem culpa nenhuma. E lhe diga assim: que pedra contra pedra só pode dar fogo.”
(COUTO, 2004, p. 53). A tia possui, portanto, um desapego à tradição e uma
identificação com a religião do colonizador, apesar de demonstrar não compreender tal
cultura, como pode ser observado na reza dela: “– Pai nosso, cristais no Céu, santo e
ficado seja o vosso nome”. Esse distanciamento da tia de sua cultura e a aceitação
desmedida de uma outra, do colonizador, que nem se conhece, é mais um motivo para a
chuva pasmar.

4. Mãe: a política
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Lutar com as armas que tem contra a intervenção do colonizador e, num forte
processo de afirmação identitária, realiza uma releitura da tradição para a resolução de
um problema atual. A mãe, de todas as personagens, é a que tem postura mais decisiva
na estória. Diferente das demais, ela é quem toma iniciativas concretas para solucionar o
problema da chuva. Para ela, a chuva esta pasmada por causa da interferência do colono
no meio africano.
– Não – disse a mãe. - São fumos que vêm da nova fábrica.
– Fumos? Pode ser, sim, isto só aconteceu depois dessa maldita
fumaça...
– São esses fumos que estão a atrapalhar a chuva. A água fica pesada,
já não agüenta ser nuvem... (COUTO, 2004)

É também a mãe quem tem o senso de luta e de convocação da união. Quando pede
ao marido que vá falar com os donos da fábrica e o mesmo nega-se alegando que
ninguém ouviria um pobre, ela argumenta: “– Pobre é estar sozinho. Você se junte com
os vizinhos, fale com eles...” (COUTO, 2004, p. 10). Assim como sua ancestral, ela é
quem vai até fábrica tentar resolver o problema, já que seu marido estava
impossibilitado pela pasmaceira. Ela, aliás, é a única que aparenta não estar
completamente nesse estado. Na resolução do conflito, entretanto, há um diferencial
entre ela e a ancestral Ntowene. Há uma utilização da tradição, entretanto adaptado à
situação presente. Ou seja, a sua ancestral é quem vai solucionar o problema, porém ela
se rende ao dominante, que apesar de ser de outra tribo, é um homem comum a sua raça.
A mãe do narrador, por sua vez, não cede ao seu dominado europeu, afirmando a sua
identidade africana. “– Desde o primeiro dia, ele me desejou sim. Mas o homem não era
capaz. Disse-me que eu cheirava à minha raça”. O branco ordenou a ela perfumar-se. E
quisera lhe oferecer um frasco de perfume, que a mulher recusa. Tinha em casa um
frasco de cheiro que sobrara de sua festa de noivado, foi esse vidro “que ela quebrara de
encontro à parede do quarto”.

5. O Garoto (narrador): o social

O garoto é o narrador da história e, como anteriormente comentou-se, identifica-se


com a chuva que, assim como ele, era “pasmadinha”. O menino sente que essa
identificação vem do fato de ele não ter nenhum tipo de habilidade ou, como ele
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mesmo, diz: “talvez não tivesse mesmo vocação para ser” (COUTO, 2004, p. 7). O
menino é quem está em meio a todos os conflitos, e isso lhe dá certa possibilidade de
transitar pelos diferentes núcleos do romance, garantindo ao narrador a onisciência
seletiva. É por meio de seus olhos que sabemos o que se passa com seu pai, sua mãe,
seu avô, sua tia, seu amiguinho branco.
Esse narrador personagem traz um reflexo das diversas tensões que ocorrem em uma
comunidade moçambicana: como a tensão entre a tradição e o novo, o confronto com o
outro, o colonizador. Com o avô, o garoto vai aprendendo sobre a valorização do
ancestral e a importância da transmissão da experiência. Ouve as histórias sobre
Ntowene e vem contá-las a nós, leitores. Aprende a ligação do ancestral com a natureza
não apenas pelas palavras do avô, mas também pelas atitudes de seu pai que, como
dissemos anteriormente, busca os rituais tradicionais para a resolução da situação
incomum das chuvas que não caem. Assim, com o decorrer da ação, as questões do pai
e do avô vão sendo incorporadas por ele, a repassadas a nós. Da mesma forma, ao
acompanhar a mãe em suas questões – suas tentativas de resolver as questões da chuva
junto ao branco, dono da fábrica – o garoto tem contato com a tensão entre o
colonizador e o colonizado. Tal questão se desenvolve pela relação da mãe com o dono
da fábrica: a quem ela deve se sujeitar, por ser negra, mulher e pobre, para conseguir o
favor do homem branco e rico.
A partir disso, o garoto parece experimentar o que são relações de dominação
embasadas em uma situação sócio-política, o preconceito propriamente dito e o choque
com a cultura em que foi criado. A primeira situação verifica-se quando o garoto
acompanha sua mãe nas visitas à fábrica, ao ver a mãe se arrumar para encontrar o
homem branco, sentindo sua indignação, sua ira contra a situação a que deve se
submeter. A segunda está no contato com menino branco que o convida para uma
brincadeira. O pequeno parece inocente e afirma a impossibilidade da brincadeira com
vocês – não consegue falar a palavra preto e embora demonstre vontade de brincar,
afirma que o pai não deixa, também porque que as terras da África trariam doenças.
(COUTO, 2004, p. 29).
O preconceito torna-se mais evidente quando, numa divergência, o menino afirma
que não gosta de ver uma preta junto ao pai. Em sua fala, como o próprio narrador
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afirma, há um duplo preconceito: contra negros e mulheres: “Meus pais não querem que
eu brinque convosco. Eu também não posso pensar que meu pai ande metido com...
com uma preta.” (COUTO, 2004, p. 58). A terceira questão nasce da cumplicidade do
garoto com a mãe. O garoto desconfia da fidelidade de sua mãe e sabe que nesses casos,
pelo costume de sua comunidade, deve dizer ao pai o que acontece. Quando a mãe
chega, arruma sua roupa, sua saia, responde a pergunta do menino (se o dono ouviu suas
reclamações) fincando suas unhas nos braços dele e pede segredo (que ele nunca conte
ao pai). O segredo gera um conflito interno no garoto, que deveria ser fiel “a sua
masculina condição” e ter segredos com o pai, não com a mãe. Com a tia, o garoto tem
contato com o que é um africano que se rende à cultura do colonizador. Pelo já exposto,
sabemos que a tia se deixou encantar pela religião cristã por razão de, em sua própria
cultura, ela ser marginalizada. Ao acompanhar a tia, nos põe em contato com o lado
mais duro de sua própria cultura, muito expresso pelo tratamento que o avô dá à filha
mais nova. O avô é uma das únicas pessoas que conhece a traição da filha, pela qual a
mulher sente culpa terrivelmente. Mas o velho homem só é capaz de perdoá-la ao se
aproximar da morte. A traição não parece estar bem clara ao garoto, mas sim a nós,
leitores:
– Ela que volte pra casa. Sua tia não tem culpa nenhuma. E diga-lhe
assim: que pedra contra pedra só pode dar fogo.
– Não estou a perceber, avô.
– Ela há-de saber. Diga só assim: pedra contra pedra...
– ... só pode dar fogo, já entendi. (COUTO, 2004)

Em todos os casos, ou seja, em todos os personagens há algum tipo de pasmaceira


que se deve resolver para que tudo volte ao devido curso. Com nosso narrador-
personagem não é diferente. Entendemos que a pasmaceira de que sofre, confessa por
ele logo no início da narrativa, vai um pouco além da falta de habilidade. No decorrer da
ação há uma tomada de consciência do garoto com relação ao meio em que vive: as
relações interpessoais dos integrantes de sua família, a posição de cada um na
comunidade, os costumes e a tradição, a identidade, o preconceito e a situação colonial.

6. Proposta de análise
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Como se pode observar, o próprio título do livro já anuncia o conflito estabelecido.
Desde o princípio o leitor já encontra pistas que irão identificar o quão pasmadas estão
não só a vida das pessoas, mas da comunidade em geral. A primeira explicação dada
para esse fenômeno é que a comunidade poderia estar sofrendo uma maldição, já que,
na sociedade africana, há uma tendência a usar a tradição para explicar tudo aquilo que
não é entendido. Eles acreditam que quando algo não está em equilíbrio na comunidade,
a natureza responde de alguma forma, punindo-os. Diferente da sociedade ocidental, em
que apenas o indivíduo paga por seu erro, na africana a comunidade inteira paga, dando
assim a importância para o convívio de todos em harmonia. Existe, porém, uma
dificuldade em identificar os motivos para tal desequilíbrio, uma vez que há muitos
fatos desarmonizantes na sociedade que irão aparecendo ao longo da narrativa. Todos os
fatos, porém estão ligados à cultura / tradição.
Poderíamos dizer que, essa família pasmada representa a sociedade africana nos dias
de hoje. Após diversas lutas e toda a utopia da guerra de libertação, após as guerras pós-
coloniais, resta saber do que valeu a luta, resgatar os princípios e direcionar um caminho
para a sociedade. O menino, que se identifica com a chuva, representa a nova geração e
mostra que o que as gerações anteriores fizeram não pode ser deixado na pasmaceira.
Após a independência, a presença do colonizador em terras africanas continua a
representar um desequilíbrio, já que a terra possui a força vital daquela sociedade e ter
outro interferindo na mesma, é o mesmo que interferir nas suas vidas. Quando a mãe
luta pela expulsão desse colonizador, desperta no filho um direcionamento de
identidade. Essa sociedade que surge, entretanto, já não pode apenas contar com a
tradição para resolver os conflitos atuais. Há que utilizá-la, mas sempre a adaptando ao
presente. Isso é o que a mãe faz. O tradicional seria que os “samvuras” resolvessem os
problemas da chuva. Já que eles não conseguem, a mãe toma de sua tradição para
resolver o conflito de hoje. Há ainda, mesmo em figuras tão tradicionais quanto o avô, a
concepção de que algo mudou e que, agora não é apenas o colonizador que deve ser
considerado como inimigo.

– Diga, meu sogro, acha que é obra dos nossos inimigos?


– Inimigos? Com a idade fui descobrindo que acabamos fazendo
coisas bem piores que os nossos inimigos. (COUTO, 2004)
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A fala do avô refere-se aos africanos que consideravam apenas o colono como
inimigo, tendo o sonho utópico que com a libertação, com o poder na mão dos próprios
africanos, tudo estaria solucionado. E, realmente, a história mostra que não foi isso que
ocorreu. Após a libertação há uma série de guerras civis, políticos corruptos que se
corrompem com o poder. A guerra de libertação traz um sentimento de que o socialismo
é a solução dos problemas. Uma vez instaurado esse socialismo, vê-se que não é tão
igualitário. “– O chão encharcado de poeira, tudo tão sedento: aquilo era a moeda e sua
outra face. Enchente e seca, escassez e excesso, tudo num mesmo regaço.” (COUTO,
2004, p. 17). Existe ainda o próprio africano que se rendeu ao pensamento de que o
colono é superior e tenta igualar-se a ele, menosprezando muitas vezes o seu igual
(negro assimilado que trabalhava para o branco dono da fábrica). A inserção da lenda da
Ntoweni no meio do livro restaura a tradição e estabelece a relação entre mundo visível
e invisível. Apenas nessa parte a narração passa do menino para o avô. No restante da
obra é o menino quem narra a história. Tradicionalmente os mais velhos são quem
passam o conhecimento, mas pode-se observar que a proposta aqui é que a nova geração
também possa ser ativa, ainda que bebendo da tradição (vide que quem conta a lenda é o
avô e não o menino), propondo uma ressignificação da cultura.

Conclusão

Em Chuva Pasmada, Mia Couto, descreve uma realidade vivida hoje em África de
língua portuguesa, onde a sociedade encontra-se em pleno estado de pasmaceira. A
narrativa aponta diversos motivos: a perda da identidade, a valorização da cultura do
colono e, principalmente, a desistência da luta. O conflito se resolve com o equilíbrio de
toda a família, na tia que é perdoada, no avô que se deixa partir, no pai que abandona o
seu estado vegetativo, na mãe que recupera sua família, mas principalmente no menino,
essa nova geração que tem resgatada a cultura, sua identidade.

Referências

COUTO, Mia. A Chuva Pasmada. Lisboa: Caminho, 2004.


BENJAMIN, Walter. Magia e técnica. Arte e política. Ensaios sobre literatura e a
história da cultura. 7ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
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LEITE, Fábio. Valores Civilizatórios em Sociedades Negro-Africanas. In: “África:
Revista do Centro de Estudos Africanos”. São Paulo: USP, 1995/1996. pp. 18-19.
ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A Narrativa Africana de Expressão Oral.
Luanda: Angolê, 1989.
TAVARES, Armando Martins. Reflexões sobre problemas da infância africana.
Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola, 1973.
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HARRY POTTER E A SUA INTERTEXTUALIDADE

Jhony Adelio Skeika (PG - UEPG)

Introdução

Em 1997 a escritora, até então desconhecida, Joanne Rowling 1 publica um livro


intitulado Harry Potter e a Pedra Filosofal 2, o qual apresenta a história de um
adolescente chamado Harry Potter3, que descobre, no dia do seu décimo primeiro
aniversário, que é um bruxo e que possui uma vaga para estudar magia em Hogwarts,
uma escola para jovens como ele. A narrativa, à primeira vista destinada ao público
juvenil, logo se tornou muito famosa em todo o mundo e foi continuada pela autora em
mais seis livros 4, os quais, assim como o primeiro, ganharam adaptações
cinematográficas e venderam juntos cerca de 490 milhões de cópias 5.
O que chama a atenção na série é a riqueza do enredo composto de criações próprias
da autora, mas também de vários outros elementos não inéditos, reproduzidos fielmente
ou remontados sob o estilo de Rowling. É justamente sobre esses intertextos que este
artigo se propõe a refletir, pois a quantidade de citações a contos de fadas, mitos, lendas
e outros textos é tão grande que poderíamos até ousar classificar a série como uma
espécie de rapsódia.
Segundo Jöel Thomas (apud GODINHO, 2003, p. 141), o imaginário de uma obra
não é definido como uma coleção de imagens que são adicionadas pelo autor, mas um
sistema de textos interligados, uma rede, onde o sentido é gerado pela relação. Assim,
os intertextos constituem um corpus único com o texto onde estão inseridos, deixam de

1
O nome verdadeiro da autora é Joanne Rowling. Por sugestão da editora, apenas a letra inicial do seu
primeiro nome foi utilizada (J., ao invés de Joanne) juntamente com a inicial de “Katheleen”, nome da
avó favorita da escritora.
2
Harry Potter and the Philosopher’s stone
3
Usaremos ‘Harry Potter’, sem formatação, sempre que nos referirmos ao nome da personagem; em
itálico – Harry Potter – sempre que nos referirmos ao nome da série. Porém, nas citações usaremos
apenas suas iniciais, por exemplo: HP e a Pedra Filosofal, 2000, p. 1.
4
HP e a Câmara Secreta (HP and the Chamber of Secrets), 1998; HP e o Prisioneiro de Azkaban (HP and
the Prisoner of Azkaban), 1999; HP e o Cálice de Fogo (HP and the Goblet of Fire), 2000; HP e a Ordem
da Fênix (HP and the Order of the Phoenix), 2003; HP e o Enigma do Príncipe (HP and the half-blood
Prince), 2005; HP e as Relíquias da Morte (HP and the Deathly Hallows), 2007
5
http://www.abril.com.br/noticia/diversao/no_292574.shtml. Acesso em 20/04/2010
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significar tudo o que inicialmente expressavam para readequar novos sentidos no novo
conjunto. A isso, como os textos adicionados em uma obra se particularizam, Hélder
Godinho (2003, p. 142) deu o nome de mitoestilo.
Com base nisso, esse estudo busca encontrar alguns intertextos presentes na série a
fim de verificar até que ponto Rowling se manteve na tradição e/ou fez uso de rupturas,
readequando as imagens e textos ao seu estilo próprio. Porém, esse artigo não visa levar
a cabo tal trabalho de identificação e análise, já que pela leitura do texto pode ser muito
difícil identificar a natureza de todos os elementos que compõem a série.

Animais mágicos: tradição e ruptura

As mitologias grega, nórdica 6 e céltica podem ser vistas na série através do


empréstimo de alguns seres mágicos e por fazer menção a textos clássicos. O
aparecimento de animais fantásticos é a marca mais visível da ligação de Harry Potter
às mitologias clássicas, já que outros intertextos só são perceptíveis aos olhos de um
leitor mais crítico.
Relevante para a nossa análise é o fato do imaginário céltico estar clara e
abundantemente presente na série. Os celtas são a base da história sócio-cultural da
Inglaterra, já que viveram na Grã-Bretanha e na Europa Ocidental entre 2000 a.C. e 400
d.C. Assim, Rowling, que é inglesa, faz uso da tradição cultural do seu país para a
criação da sua série.
Para nossa análise nos basearemos em Tony Diterlizzi e Holly Black, (2005),
Catherine Ragache e Claude Ragache (1998), Claude Pouzadoux (2001), Georges
Hacquard (1996), Pedro Pablo García May (2002) e em A. S. Franchini e Carmen
Seganfredo (2006). Vejamos:
Duendes. Essas criaturas são citadas pela mitologia europeia em geral (céltica,
nórdica, etc.) e são seres ligados à natureza. Alguns mitos dizem que há duendes no
final do arco-íris tomando conta de um pote de ouro. Na mitologia irlandesa, esses seres
enganam os seres humanos produzindo uma substancia parecida com o ouro, mas que
desaparece pouco tempo depois (DITERLIZZI; BLACK, 2005, p. 55). Rowling

6
Mitologia nórdica refere-se também à mitologia germânica, mitologia viking e mitologia escandinava.
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manteve a tradição. Gringotes, o banco dos bruxos, é administrado por duendes e na


Copa Mundial de Quadribol (HP e o Cálice de Fogo, 2001), as mascotes do time da
Irlanda são os Leprechauns, duendes que lançam moedas de ouro falso sobre as
torcidas.
Fadas. Esses seres representam a grande ruptura de Harry Potter com o tradicional.
Oriundas da mitologia céltica, as fadas ou sprites são um dos seres mágicos mais
conhecidos na literatura (MAY, 2002, p. 7). Os contos de fadas abordam essas criaturas
como aquelas capazes de mudar a vida das personagens (do latim fatum: destino). Na
série de Rowling a fada é um animal pequeno e decorativo, mas de pouca inteligência.
Apesar de sua aparência humana, elas não falam e são dotadas de fraco poder mágico,
que usam para deter predadores. Em outra variedade, esses seres podem ser pragas
domésticas, as doxies ou fadas mordentes. De peça central de contos infantis a meros
adereços ou pestes, a fada é totalmente reinventada ao estilo de Rowling, o que é uma
grande ruptura!
Troll (ou trasgo, como é chamado na série). São criaturas antropomórficas não muito
inteligentes do folclore escandinavo. Podem aparecer como gigantes horrendos – ogros
– ou pequenos como duendes. A primeira citação sobre um troll pode ser a do poema
épico da literatura anglo-saxã, Beowulf. Nela, Grendel é um verdadeiro símbolo do mal
encarnado, que devora homens inteiros (DITERLIZZI; BLACK, 2005, p. 72). Em
Harry Potter, a figura do trasgo é tradicional: humanoide, pouco inteligente e bem
agressivo.
Gnomos. Essas criaturas do folclore escandinavo também aparecem na série de
forma inovada. Na mitologia nórdica, os gnomos são seres protetores da natureza; em
Harry Potter são pragas de jardim nada inteligentes. Diferentes da cultura norte-
americana, onde são chamados de Brownies, esses seres são os responsáveis pela
limpeza e organização das casas (DITERLIZZI; BLACK, 2005, p. 3). Na série de
Rowling essa tarefa cabe aos elfos.
Os elfos são seres oriundos da mitologia nórdica, belos e luminosos, ou ainda seres
semi-divinos, mágicos, semelhantes à imagem literária das fadas ou das ninfas; vivem
em florestas, sob a terra, em fontes e outros lugares naturais e simbolizam o ar, a terra, o
fogo, etc. (DITERLIZZI; BLACK, 2005, p. 31; MAY, 2002, p. 7). Na série de Rowling,
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porém, os elfos são criaturas baixas, com orelhas de morcego e olhos esbugalhados,
vestem trapos7 e têm como missão de suas vidas servir famílias de bruxos no que diz se
refere às tarefas domésticas. Isso é ruptura.
Na floresta proibida, presente nas terras de Hogwarts, vive uma gama de seres
mágicos e dentre eles estão os centauros – seres fantásticos com cabeça e tronco de
homem e corpo de cavalo, oriundos da mitologia grega. Na série, a abordagem desses
seres é feita de forma tradicional, embora Rowling acrescente algumas coisas próprias
no comportamento de seus centauros: personalidade misteriosa, mística, são peritos em
astronomia e técnicas medicinais. Como na mitologia grega, em Harry Potter os
centauros não são submissos aos humanos (bruxos), o que pode ser um forte elemento
causador de guerras.
Na floresta também vivem os unicórnios – que têm a forma de um cavalo,
geralmente branco, com um único chifre em espiral. Esses seres, sempre associados à
pureza e força têm sua origem incerta, embora haja citações sobre unicórnios na cultura
oriental e grega centenas de anos antes de Cristo. Um unicórnio apenas deixa-se tocar
por mulheres e quem o toca fica curada de qualquer doença (DITERLIZZI; BLACK,
2005, p. 48). Rowling traz inovações a essa figura mitológica: o unicórnio em Harry
Potter possui sangue capaz de manter alguém vivo mesmo à beira da morte e o animal
adulto é extremamente branco, prateado enquanto adolescente e dourado ao nascer.
Gigantes. Da mitologia grega e nórdica, essas criaturas antropomórficas têm um
comportamento que varia de lenda para lenda. São extremamente fortes devido a sua
estatura corporal avantajada, algumas vezes são retratados como burros e ignorantes e
outras como inteligentes e até amigáveis (DITERLIZZI; BLACK, 2005, p. 78; MAY,
2002, p. 7). Rowling mantém a tradição do gigante agressivo e antisocial, pois vivem
em colônias isoladas longe dos bruxos, que têm medo deles.
Os gigantes em Harry Potter, assim como na mitologia grega e escandinava,
representam o caos primitivo (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p. 42). Entretanto, a
autora faz uma ruptura com a figura de Rúbeo Hagrid, o guarda-caça de Hogwarts, que

7
Um elfo doméstico só é libertado quando seu dono lhe presenteia com peças de roupa. No segundo livro
da série (HP e a Câmara Secreta, 2000, p. 284), Harry liberta Dobby, o empregado da família Malfoy,
quando o herói induz Lúcio Malfoy a dar uma meia ao elfo.
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é mestiço, filho de mãe gigante e pai bruxo. O meio-gigante é um dos melhores amigos
adultos de Harry e caracteriza-se por sua personalidade atrapalhada e bondosa.
No segundo volume da série (HP e a Câmara Secreta, 2000), a fênix ganha destaque.
Esse animal aparece em diversas culturas, dentre elas a egípcia, grega e árabe e hindu, e
é sempre associado à imortalidade e ao renascimento devido ao seu poder de renascer
das cinzas após pegar fogo no momento da sua morte (RAGACHE; RAGACHE, 1998,
p. 20). Em Harry Potter, a fênix tem um poder singular: suas lágrimas têm força
curativa, o que salva o herói do veneno de um basilisco. Este, por sua vez, que também
aparece no segundo volume da série, é uma enorme serpente que surge quando uma rã
choca um ovo de galinha. O basilisco não pertence a uma cultura específica e já foi
citado nos estudos de Leonardo Da Vinci e Voltaire (DITERLIZZI; BLACK, 2005, p.
26).
Os dragões também aparecem na série. Segundo a própria Rowling (SCAMANDER
[J. K. Rowling], 2001, p. 31), eles são os animais mágicos mais famosos do mundo.
Citados em diversas mitologias, os dragões são criaturas aladas que na maioria dos
casos cospem fogo e são cobertos de escamas. Em Harry Potter, os dragões são animais
perigosíssimos, os quais são escondidos pelo Departamento para Regulação e Controle
de Criaturas Mágicas 8.
No Campeonato Tribruxo 9, quatro dragões são utilizados: um Meteoro-Chinês, um
Verde-Galês, um Focinho-Curto sueco e um Rabo-Córneo húngaro, o qual Harry
enfrenta satisfatoriamente 10. A luta de Potter, montado em sua Firebolt 11, com o dragão
assemelha-se com a luta do herói grego Belerofonte, montado no lendário Pégaso, com
a Quimera, “monstro grego cujas três cabeças – de leão, de cabra e de dragão –
vomitavam fogo” (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p. 21). Como Belerofonte, Harry
descreve círculos sobre a cabeça do Rabo-Córneo, fugindo das labaredas de fogo que o
monstro soltava (HP e o Cálice de Fogo, 2001, p. 283).
Há mais dois episódios em que dragões aparecem: o primeiro está presente em
HP e a Pedra Filosofal (2000 p. 201), quando Hagrid ganha um ovo de dragão
norueguês, e o segundo encontra-se no sétimo livro, HP e as Relíquias da Morte (2007,

8
Departamento do Ministério da Magia, órgão estatal dos bruxos.
9
Campeonato de magia entre escolas de bruxos.
10
Raças de dragões criadas por Rowling.
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p. 417), quando Harry, Rony e Hermione pegam carona em um dragão albino para fugir
do banco Gringotes.
Outra figura alada que merece destaque é o Grifo, animal com com cabeça e asas de
águia e corpo de leão. Suspeita-se que esse animal surgiu no Oriente Médio onde
babilônios, assírios e persas representaram a criatura em pinturas e esculturas. Os grifos
também são excelentes em guardar tesouros. Na mitologia grega, conta-se uma lenda
que Apolo, o deus da luz, armazenou um grande tesouro em um misterioso país nórdico,
confiando-o à guarda de dois grifos (DITERLIZZI; BLACK, 2005, p. 98). Entretanto,
na série de Rowling é o Hipogrifo que ganha cena. Este animal é o resultado da união
de um grifo e um cavalo, o qual substitui as características do leão pelas suas, ou seja, o
hipogrifo tem cabeça e asas de águia e corpo de cavalo 12.
Ainda abordando animais alados, no quarto livro da série (HP e o Cálice de Fogo,
2001, p. 195) a carruagem da escola francesa de magia Beauxbatons é “puxada por doze
cavalos alados, todos baios, cada um parecendo um elefante de tão grande”; os cavalos
eram dourados e tinham olhos cor de fogo. Esses animais remetem-nos diretamente à
figura de Pégaso, o cavalo alado da mitologia grega (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p.
20).
Também oriundas dessa cultura, as Sereias, Sirenes ou Sirenas, eram as mulheres-
pássaros. Segunda a lenda, elas seduzem os navegadores com seus cantos hipnóticos e
os levavam para armadilhas mortais. Na idade média, as mulheres-pássaros se
transformaram em mulheres-peixe, mas continuaram a alimentar os boatos dos
marinheiros (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p. 44).
Em Harry Potter, os ‘sereianos’ não são apenas do sexo feminino e constituem
comunidades extremamente organizadas no fundo de mares e águas como as do Lago
Negro situado nas terras de Hogwarts. Eles são seres individualistas, falam uma língua
própria e em alguns casos mostram hostilidade com suas lanças 13. Ainda no lago negro,
vive uma simpática 14 lula gigante, que, fora do texto de Rowling, já fora citada na

11
Uma marca de vassoura que os bruxos e bruxas montam para voar; a mais veloz de todas.
12
Em Harry Potter, os Hipogrifos são utilizados como meio de transporte, mas seu dono precisa lançar
sobre o animal, periodicamente, um Feitiço Desilusório – feitiço de camuflagem ou invisibilidade
(SCAMANDER [J. K. Rowling], 2001, p. 63).
13
HP e o Cálice de Fogo, 2001, p. 396.
14
Simpática porque em nenhum momento da série ela é apresentada como um monstro hostil, pois
sempre está a nadar, “sonhadora, sobre a superfície do lago” (HP e o Prisioneiro de Azkaban, 2000, 254).
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mitologia indígena norte-americana como monstros marinhos capazes de trazerem boa


sorte (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p. 23).
Deixando de lado um pouco os animais mágicos vivos, vamos adentrar na cultura
indígena norte-americana, a qual aborda um tipo específico de mago responsável pela
aldeia em que vive. Segundo Tim Dedopulos (2003, p. 18), o xamã, como assim é
chamado, baseia-se na força da natureza e age em função da sociedade onde mora. Ele
ou ela é dotado de poderes provenientes de espíritos chamados totens, que assumem
formas de animais e refletem a personalidade do seu xamã. Um exemplo acessível dessa
crença é a animação “Irmão Urso”, da Disney, onde há a associação dos totens aos
membros do clã. No desenho lançado em 2003, Kenai, o protagonista, descobre que o
seu toten é um urso, o qual revela sua personalidade: corajoso e carinhoso 15.
Na série de Rowling, existe um feitiço avançado que é capaz de produzir um escudo
protetor em forma de animal. O Patrono é criado pelas lembranças boas do bruxo e o
animal assume a forma condizente com a personalidade de cada sujeito. Esses animais
prateados remontam a ideia dos totens da mitologia indígena norte-americana, o que
mostra que Rowling pode ter se baseado em algo para criá-los.

Intertextos na nomeação de algumas personagens

A escolha de alguns nomes de personagens também dialoga, de certa forma, com


outros textos. O primeiro caso é o da professora Minerva McGonagall cujo primeiro
nome remete-nos a deusa Minerva, a deusa da sabedoria da mitologia romana (Atena na
cultura grega) e o sobrenome pode ter sido tirado do poeta escocês Dundee William
McGonagall.
Ainda temos Narcisa Malfoy, cujo nome remonta a personagem trágica de Narciso,
que morreu pela sua vaidade e a professora de adivinhação Sibila Trelawney cujo
primeiro nome provém das sacerdotisas gregas, Sibilas, as quais tinham o poder da
clarividência. Da mesma maneira, temos o nome do filho de Narcisa, Draco Malfoy,
que faz menção à famosa personagem de Drácula (do romeno: diabo – draku-ul), de
Bram Stoker (2005).

15
Brother Bear, em inglês. Direção: Aaron Blaise e Robert Walker.
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O lobisomem Fenrir Lobo Greyback, também é nomeado com base em outro texto.
Fenrir vem da mitologia nórdica: o lobo gigante Fenris, cujo propósito era destruir os
deuses, pondo fim ao seu domínio sobre o céu e a terra (FRANCHINI; SEGANFREDO,
2006, p. 117). Os dois lobos agem de forma parecida, pois Greyback quer infectar o
maior número de pessoas para que os lobisomens possam superar os bruxos; Rowling
mantém a tradição dessa personagem mitológica. Outro lobisomem, que, ao contrário de
Greyback, ganha a simpatia dos leitores, é Remo João Lupin. Remo era o nome de um
dos fundadores do Império Romano e Lupin vem da palavra romana para lobo
(MALONE, 2007, p. 124).
Outros nomes também podem ter tido alguma inspiração em outros textos. Hermione
Jane Granger, melhor amiga do herói, tem o mesmo primeiro nome da esposa do rei da
Sicília, do ‘Conto de Inverno’, de Shakespeare. Simas Finnigan, aluno da Grifinória,
tem seu nome talvez inspirado em um livro de James Joyce: Finnigans Wake. O
fundador da casa da Sonserina 16, Salazar Slytherin, possui o mesmo primeiro nome do
ditador português Antônio de Oliveira Salazar. Slytherin é elitista e também um tipo de
ditador, pois quer erradicar os trouxas 17 do mundo bruxo e ensinar magia apenas aos
sangues-puros. Rowling mantém a tradição dessa personagem europeia.
O padrinho de Harry, Sirius Black, também é nomeado intertextualmente. “Na
China, o Grande Lobo celeste guarda o palácio do Senhor do Alto, que vive na grande
Ursa. Esse lobo tem olhos verticais que brilham no escuro e se materializa na estrela
Sírius” (RAGACHE; RAGACHE, 1998, p. 41. Grifo meu). Para atestar e ir além da
semelhança dos nomes dessas duas personagens, Sirius Black pode se transformar em
uma espécie de lobo, ele é um animago 18: Rowling mantém a tradição.

Outros intertextos

16
Os alunos de Hogwarts são dividos em quatro casas, as quais receberam os nomes dos quatro
fundadores da escola: Godrico Gryffindor, Helga Hufflepuff, Rowena Ravenclaw e Salazar Slyntherin. Na
tradução para o português, os nomes das casas são Grifinória, Lufa-lufa, Corvinal e Sonserina,
respectivamente.
17
Trouxas são as pessoas sem poderes mágicos, os seres humanos do “mundo real” (nosso mundo). Em
inglês o termo é muggles.
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Além da questão dos animais mágicos e sua influência nas criações de Rowling,
podemos encontrar ligações da narrativa de Harry Potter com outros escritos do gênero
fantástico. Vejamos:
Na Ilíada e na Odisséia há a presença do imaginário escatológico da sociedade da
época, mitos que abordam a realidade além-túmulo do ser humano. Para eles, após
morrer o eidolon, espécie de alma, saía do corpo do morto por uma ferida ou pela boca
(ideia aproveitada na adaptação cinematográfica do terceiro livro na “quase morte” de
Sirius Black). O que restava do morto seguia até Hades, local final para onde se
dirigiam as almas. Para isso, deveriam atravessar o rio Estige e finalmente passar por
Cérbero, o cão de três cabeças que guardava a entrada para os planos inferiores
(ULSON apud BOECHAT, 1995, p.46)
Em Harry Potter, todos os alunos do primeiro ano após desembarcarem do Expresso
Hogwarts são levados ao castelo de barco atravessando o lago negro. É uma tradição,
todos o fizeram, inclusive Harry. No fim do primeiro ano, o herói precisa salvar a pedra
filosofal de Voldemort (o vilão da série) e, para chegar à câmara inferior onde a pedra
se encontrava, passa pelo cão de três cabeças Fofo.
É possível também relermos na série um mito muito conhecido da cultura grega: o
mito de Édipo. Dentre as várias versões existentes, vamos nos basear na peça de teatro
trágico de Sófocles (2007), Édipo Rei. A história começa com a figura de Édipo sendo
rei de Tebas. Em vista aos horríveis acontecimentos que assolam a região, um oráculo
diz que a causa do sofrimento da cidade é que esta abriga o assassino do antigo rei,
Laio, e para a remissão da pena sobre o local, seria preciso punir o culpado pelo
assassinato.
Édipo desencadeia uma investigação e descobre que o causador do pesar de Tebas
era ele mesmo; fora ele quem matara Laio e, o pior, o antigo rei era seu pai. O herói
descobre também que a mulher que desposa é sua mãe e sobre a sua causa recai a ruína:
Jocasta, sua mãe/esposa, suicida-se, ele fura os próprios olhos como castigo por não ter
visto a verdade e decreta a si mesmo uma pena de exílio.

18
Animagos são bruxos que com a ajuda de magia conseguem se transformar completamente em um
animal. O pai de Harry era um animago (se transformava em um veado), a professora Minerva
McGonagall (gato), entre outros.
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A peça é narrada, como diz Eco (2006, p. 39), in media res, ou seja, o início da
narrativa está no meio da história, quando Édipo já é o rei de Tebas. A trama
cronologicamente começa quando seu pai biológico, Laio, consulta um oráculo, após o
nascimento do filho, para saber qual seria seu futuro. O vidente prediz que o menino
mataria o pai e casaria-se com a mãe. Isso apavora Laio, que decide mandar furar os pés
da criança e deixá-lo numa montanha para que morra sozinho. Édipo foi salvo e criado
como filho por Políbio, rei de Corinto.
Quando jovem, o herói visita um oráculo e fica sabendo que seu futuro seria matar o
pai e casar-se com a mãe. Apavorado, foge erroneamente para longe de Políbio e sua
família para evitar que a desgraça acontecesse. Na estrada, Édipo se envolve em uma
briga e mata Laio, sem saber que este era seu legítimo pai e rei de Tebas. Então se
dirige àquela que seria sua cidade natal e, resolvendo o enigma da Esfinge, liberta o
lugar da repressão do monstro. Édipo é proclamado rei de Tebas e casa-se, sem saber,
com sua mãe Jocasta.
As histórias de Rowling e Sófocles possuem algumas ligações. Em ambas, as tramas
são desencadeadas por profecias, que decretam a Édipo e a Harry a existência de um
antagonista. Há uma união de sangue entre as personagens adversas e os heróis: Édipo é
filho de Laio e Voldemort, como se não bastasse ter os mesmos antepassados de Harry,
os Irmãos Peverell, usa o sangue do menino-que-sobreviveu 19 para voltar à vida.
As duas profecias são cumpridas, embora não da mesma forma. A de Édipo é
cumprida por ele mesmo quando mata o pai e se casa com a mãe, já a de Harry é levada
ao cabo pelo vilão, que sem saber cria para si o seu pior inimigo. As personagens que
levam a sério as previsões são o herói, em Édipo Rei, e o vilão, em Harry Potter.
Entretanto, esta informação pode ser revista se pensarmos que Édipo torna-se inimigo
de si mesmo quando descobre que seu povo, e até mesmo ele, sofre as consequências
dos seus atos (assassinato do pai). Assim, em ambas as narrativas temos o antagonista
fazendo com que a palavra do oráculo vire realidade.
Os heróis de Sófocles e Rowling enfrentam uma Esfinge, o que se configura uma
tarefa difícil, mas decisiva em seus destinos. Harry deveria passar pelo monstro para se
tornar o novo campeão do campeonato Tribruxo e Édipo para tornar-se o novo rei de
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Tebas. Nas duas narrativas, o monstro egípcio é um marco que separa os protagonistas
do seu destino final: Édipo iria tornar-se rei e cair em desgraça; Harry, ao passar pela
criatura, iria fazer parte do ritual que traria o vilão novamente à vida e no fim da série
deveria enfrentar esse antagonista. A figura da Esfinge representa o monstro guardião
que separa a vida “normal” da vida de herói; embora Édipo enfrente o monstro por
vontade própria e Harry não, ambos passam pela prova que os preparam para a vida
heroica.
Vladimir Propp (1928, p. 28) defende que todo o texto fantástico segue uma linha de
funcionamento universal, tradicional; ele define trinta e uma funções, as quais
organizam o andamento da narrativa maravilhosa. Com base nessa teoria estruturalista,
é possível identificar a função de número vinte e cinco – É dada ao herói uma tarefa
difícil – nos dois textos. Édipo (herói) deve punir o assassino de Laio (objeto de
procura); Harry (herói) deve eliminar todas as Horcruxes (objeto de procura).
De forma semelhante, temos nos dois enredos os heróis buscando a si mesmos:
Édipo é o assassino de Laio e Harry é uma das Horcruxes20. Por isso, recai sobre os dois
o dever de cumprir as missões que lhe são dadas mesmo após conhecerem a triste
verdade. Harry se entrega a Voldemort em sacrifício para que o mal seja extinto, já que
ao matar o menino o vilão estaria extinguindo parte da sua própria alma, e Édipo fura os
próprios olhos e se exila para se auto-punir, pois Tebas só comungaria da prosperidade
se o assassino do antigo rei fosse penitenciado; os protagonistas são movidos pelo dever
da justiça e é isso que faz de ambos autênticos heróis.
As duas narrativas são in media res, pois, embora Harry Potter comece quando o
herói ainda é bebê, é só muitos anos depois que o protagonista vem a saber, na íntegra,
o que lhe aconteceu; é o seu passado mostrando o seu futuro, como em Édipo. A grande
diferença entre o texto de Sófocles e de Rowling é que no fim do primeiro o herói tem
um final trágico conforme a justiça que deveria ser feita (Édipo é um herói trágico,
porque ele é mocinho e vilão da história, ao mesmo tempo). Em Harry Potter, o

19
Um dos epítetos do herói. Harry sobrevive quando era bebê à maldição imperdoável da morte – Avada
Kadavra. Ele seria o único na história dos bruxos a sobreviver.
20
Horcrux é um receptáculo (objeto, animal, etc.) que abriga um pedaço da alma de alguém e tal divisão
só pode ser feita através de um assassinato (HP e o Enigma do Príncipe, 2005, p. 390). Na série, o vilão,
Lorde Voldemort, cria sete Horcruxes, ou seja, divide sua alma em sete partes na tentativa de adquirir a
imortalidade.
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protagonista cumpre sua tarefa entregando-se à morte, mas não morre. Harry sobrevive,
mais uma vez, à maldição de Voldemort e re-enfrenta o vilão, que pelo próprio veneno
decai.

Algumas considerações

O que se propôs fazer esse estudo foi tentar destacar de maneira sucinta alguns
elementos que J. K. Rowling usou para criar uma das séries mais lidas da história. Seria,
é claro, uma tarefa extremamente árdua e quase impossível dissecar os sete livros em
busca de todos intertextos presentes. Entendamos, portanto, que na obra há inúmeras
ligações com o externo, empréstimos que se mantém na tradição ou partem para a
ruptura, o que faz do mitoestilo de Harry Potter um elemento de grande significado.

Referências

BOECHAT, Walter (org.). Mitos e Arquétipos do Homem Contemporâneo. 2. ed.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

DEDOPULOS, T. Livro dos Magos: de Merlin a Harry Potter. Tradução de Marcelo


Bastos. São Paulo: Larousse do Brasil, 2003.

ECO, H. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.

FRANCHINI, A. S.; SAGANFREDO, C. As melhores histórias da mitologia nórdica.


5. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2006. Disponível em: http://www.4shared.com/file/
14021389/18201e08/A_S_Franchini_-_As_Melhores_Histrias_ da_ Mitologia_Nrdica.
html?s=1. Acesso em: 10 jul. 2008, às 15h18min.

MALONE, A. Harry Potter de A a Z: o guia não-oficial definitivo de toda a série.


Tradução de Daniel Queiroz de Souza Lima e Maria Inês Duque Estrada. Rio de
Janeiro: Prestígio, 2007.

MAY, P. P. G. Os mitos celtas. Tradução de Elisabete F. Abreu. [S.l]: [s.n], 2002.


(Coleção: A Chave Azul). Disponível em: <http://www.4shared.com/
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em 08 set. 2008, às 16h23min.
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POUZADOUX, C. Contos e lendas da mitologia grega. Tradução de Eduardo Brandão.


São Paulo: Companhia das Leiras, 2001. Disponível em: <http://www.4shared.com/
document/3v4TGJX3/Pouzadoux_Claude_-_Mitologia_G.htm>. Acesso em 10 set.
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PROPP, W. Morfologia do Conto Maravilhoso. Trad. Jaime Ferreira e Vitor Oliveira.


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RAGACHE, C.; RAGACHE, C. Animais fantásticos: Mitos e Lendas. Tradução de Ana


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___________. Harry Potter e o Cálice de Fogo. Tradução de Lia Wyler. Rio de


Janeiro: Rocco, 2001.

___________. Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Tradução de Lia Wyler. Rio de


Janeiro: Rocco, 2005.

___________. Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Tradução de Lia Wyler. Rio


de Janeiro: Rocco, 2000.

SCAMANDER, N. [J. K. Rowling]. Animais fantásticos & onde habitam. Tradução de


Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

SÓFOCLES. Édipo Rei / Antígona. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin
Claret, 2007.
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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QUANDO O REAL SE TORNA FICÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O


FILHO ETERNO DE CRISTÓVÃO TEZZA.

João Amalio Ribas (PG-UFPR)

Os limites frequentemente sutis entre o real e o ficcional constituem desde


há muito, o tema dos mais variados estudos literários. Nestes estudos, termos dos
mais diversos foram cunhados para refletir sobre essa questão das fronteiras entre o
mundo da ficção e o mundo da realidade, fronteiras essas que sempre se mostraram
tão incontornáveis quanto atraentes.
Exemplos de reflexões, estudos e debates sobre as muitas vezes nebulosas
relações entre o acontecido e o inventado há em profusão: desde ficcionistas como
Guimarães Rosa, que opôs as palavras “história” e “estória”, preferindo a segunda
para designar seus contos, justamente para a eles dar o devido teor de invenção;
passando por críticos como Antonio Candido (1999) que, ao escrever sobre outro
romancista brasileiro, Graciliano Ramos usou, em oposição, os termos “ficção e
confissão” para distinguir as obras ficcionais das autobiográficas daquele autor.
A lista se estende por outros críticos como Walter Benjamim (1975), que
sugeria ser o melhor “historiador” o velho que contava “estórias”; passando ainda
por Umberto Eco (1994) que, usando termos de Theun van Dijk, distinguiu
“narrativa natural” de “narrativa artificial”. Para refletir sobre essa mesma dualidade
Wolfgang Iser (1996) propôs estudá-la através da tríade: “o real, o fictício e o
imaginário” e Terry Eagleton (2003) mencionou a oposição entre “verdade histórica”
e “verdade artística”.
O tema ainda norteia trabalhos de estudiosos como Phillipe Lejeune (2008)
que, ao analisar os enlaçamentos entre a ficção e a biografia, usou os termos “pacto
autobiográfico” e “pacto ficcional”, para estabelecer certas diferenças entre projetos
literários romanescos e projetos de auto-relatos biográficos.
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Tendo em vista, portanto, a amplitude e complexidade do tema, quer-se neste


artigo analisar de maneira sucinta uma estratégia narrativa específica: a de se dar
contornos ficcionais a relatos autobiográficos, estratégia que convencionamos
chamar de ficcionalização biográfica.
Na literatura brasileira, inúmeros autores usaram e usam de estratégias para
(con)fundir ficção e realidade. Desde José de Alencar, com sua “editora” G.M em
Lucíola (1862); passando pelo Machado de Assis “editor” dos escritos do
Conselheiro Aires nos romances Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908);
passando ainda por personagens de inegáveis traços autobiográficos como o Sérgio
d’O Ateneu (1888) de Raul Pompéia, o Isaías de Recordações do Escrivão Isaías
Caminha (1909) de Lima Barreto, o Carlinhos do Menino de Engenho (1932) - e
outros - de José Lins do Rego, a menina ruiva dos contos de Felicidade Clandestina
(1971) de Clarice Lispector, isto só para ficarmos em exemplos mais conhecidos.
Todavia, este estudo não pretende enveredar pela análise da técnica ficcional de auto-
representação por meio de personagens ficcionais com traços autobiográficos, como
já mencionado, de tão numerosos exemplos em nossa literatura e tão numerosamente
estudados por nossa crítica. Tenho o intuito de, neste artigo, olhar para
procedimentos de mão contrária, por assim dizer, ou seja, é de meu interesse não o
caminho de se injetar biografia na ficção, mas a via de se transformar o biográfico
em ficcional.
Tal procedimento de ficcionalização biográfica é o ponto central de minha
atenção, algo que contemporaneamente encontramos como fator de fundamento das
obras de escritores como Carlos Heitor Cony - Quase Memória Quase Romance
(1995), e mais recentemente Miguel Sanches Neto - Chove sobre minha infância
(2000), Silviano Santiago - O falso mentiroso (2004) e Cristóvão Tezza - O filho
eterno (2007), sendo esta última obra, o objeto de estudo central deste artigo.
Ultrapassando os limites do meramente autobiográfico, Cristóvão Tezza em
O filho eterno, usa como substância de ficção a sua própria biografia, mais
especificamente a relação do escritor com o filho, portador da síndrome de down.
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Os episódios do romance tangenciam a vida real do autor: a paixão


adolescente pela poesia, a predestinação à literatura, o envolvimento com um grupo
teatral alternativo nos anos 70, o curso de letras e o mestrado na mesma área, o
trabalho de professor universitário, o início da carreira literária com obras como O
terrorista lírico e Ensaio da paixão, o casamento e o primeiro filho que nasce com
problemas congênitos.
Certo é que todos esses episódios descritos no livro coincidem com a
biografia de Cristóvão Tezza, porém pela maneira como toda essa trajetória é
narrada, diferente de um romance autobiográfico, na definição de Lejeune: “relato
retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, com ênfase
em sua vida individual e, em particular, na história de sua personalidade”
(LEJEUNE, 2008, p. 14), encontramos em O filho eterno uma proximidade maior
com aquilo que Antônio Cândido disse sobre o livro Infância de Graciliano Ramos,
ou seja, uma “autobiografia tratada literariamente” em que a “técnica expositiva, a
própria língua parecem indicar o desejo de lhe dar consistência de ficção”
(CANDIDO, 1999, p.64); ou ainda com o que o escritor Silviano Santiago, o crítico
literário francês Serge Doubrovsky e o crítico e historiador da literatura Vincent
Colonna chamaram de “autoficção”; nas palavras de Santiago: “o texto híbrido,
constituído pela contaminação da autobiografia pela ficção – e da ficção pela
autobiografia – “ (SANTIAGO, 2009). Entretanto, mais do que rotular a obra de
Tezza como “autobiografia”, “autoficção” ou outro termo afim, interessa-me mais o
estudo das técnicas narrativas usadas na transição do terreno referencial-biográfico
para o universo ficcional-romanesco, ou seja, atrai-me mais o processo do que o
produto. E é este caminho de passagem, este conjunto de técnicas literárias que
convenciono denominar de ficcionalização biográfica.
O filho eterno é, sem dúvida, uma dessas obras em que a narrativa escapa
aos limites do relato autobiográfico ou da literatura confessional; e o romance de
Cristóvão Tezza transcende estas classificações, em grande medida, justamente pelas
técnicas estilísticas e estratégias narrativas adotadas pelo autor. O que move este
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artigo é, portanto, o intuito de analisar tais estratégias adotadas no romance de Tezza


para compor este universo híbrido apresentado na obra.
A seguir, elenco pontos destas estratégias que, num estudo mais amplo,
podem e devem ser esmiuçados, aprofundados e alargados.
A primeira e mais evidente estratégia que contribui para o que chamo de
ficcionalização biográfica em O filho eterno é a escolha de um narrador em terceira
pessoa. Ao desviar o foco narrativo da primeira para a terceira pessoa, cria-se uma
instabilidade favorável a não lermos simplesmente os episódios narrados como fatos
acontecidos, mas sim como um substrato real filtrado pela lente literária. Adotando
tal estratégia, Tezza conseguirá, por exemplo, facilitar a via de acesso a algo que se
torna uma das pedras de toque da obra: a crueldade que o narrador endereça ao filho
e, principalmente, a si mesmo, ou melhor, à personagem do filho e à personagem do
escritor e pai:

...e o que ele tem? Nada. Vive às custas da mulher, jamais escreveu
um texto verdadeiramente bom, sofre de uma insegurança doentia e,
agora, tem um filho que, se sobreviver, o que é pouco provável, será
uma pedra inútil que ele terá de arrastar todas as manhãs... (TEZZA,
2007, p.53).

Entretanto esta opção por um narrador em terceira pessoa não se concretiza


de maneira inteiramente convencional. Como temos um narrador que relata episódios
acontecidos com o autor empírico, para usarmos um termo de Umberto Eco (1994),
ou seja, um alguém falando de si em terceira pessoa, tal estreitamento se realiza no
livro por meio de uma constante alternância, ou mais que uma alternância, uma
interpenetração entre o discurso do narrador em terceira pessoa e do discurso do
personagem escritor em primeira.

Há um descompasso nesse projeto supostamente pessoal, mas isso ele


ainda não sabe, ao acaso de uma vida renitentemente provisória; a
minha vida não começou ainda, ele gostava de dizer, como quem se
defende da própria incompetência (TEZZA, 2007, p. 15, grifos meus).
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Esta interpenetração sem marcações textuais explícitas dos discursos do


narrador (o ente ficcional) e do personagem-escritor (o ente biográfico) evidencia o
transpassamento que se dá na obra entre o real (os episódios da vida do escritor) e o
literário (a linguagem que reelabora ficcionalmente estes acontecimentos), num
processo que poderíamos dizer semelhante ao que Michel Foucault (FOUCAULT
apud SANTIAGO, 2009) chamou de “ressemantização do sujeito pelo sujeito”.
Vale lembrar que algo parecido Tezza já havia esboçado no romance O
fantasma da infância (1994) quando o nome André Devinne é usado para designar
dois personagens-narradores de duas histórias que se intercalam e se tangenciam;
sendo um André Devinne o escritor que, no cárcere, produz uma narrativa relatando
a história de outro André Devinne – identidade, por sinal, assumida por Juliano
Pavolline (1994), personagem de outro romance de Tezza.
Estes desdobramentos de vozes e de ações narrativas, que podem ser
aproximadas ao conceito de “polifonia” de Mikhail Bakhtin (BAKHTIN, 1997), e
observadas em obras de Tezza de teor mais ficcional, por assim dizer, reaparecem em
O filho eterno para reforçar o tratamento ficcional dado ao substrato biográfico;
dando forma a um tipo de texto híbrido a exemplo do que se encontra em muitas
obras contemporâneas as quais compõem, segundo Vincent Colorna, não um gênero,
mas uma nebulosa de práticas textuais:

Desiguais em sua riqueza, as obras (...) são também diferentes pela


forma e pela amplidão dos processos de hibridização, mas todas elas
marcam uma época, um momento da história literária, em que a ficção
do eu [la fiction de soi] ocupa os mais diferentes escritores, para
constituir não tanto um gênero, mas talvez uma nebulosa de práticas
aparentadas. (COLONNA apud SANTIAGO, 2009).

Parte integrante desta “nebulosa”, a obra O filho eterno traz em si, além das
já citadas, outras técnicas narrativas que conferem maior grau de ficcionalidade ao
romance, como é o caso da confecção do tempo da narrativa. Assim como as vozes
de narrador e personagem central se entrelaçam, também os episódios narrados são
marcados por um constante emaranhamento temporal. Durante a narrativa, o
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presente, o passado e o futuro apresentam-se de maneira concomitante, sendo que o


presente da narração é costurado incessantemente por flashbacks e flashforwards,
como se observa no trecho a seguir:

... nada mais será normal na sua vida até o fim dos tempos
(flashforward). Começa a viver pela primeira vez, na alma a angústia
da normalidade. (presente da narrativa). Desde que o pai morreu,
muitos anos antes, seu padrão de normalidade se quebrou. (flashback).
(TEZZA, 2007, p.40, grifos meus).

Ou ainda em outro momento:

Ele divaga (presente da narrativa), criando ele mesmo uma síndrome


que será cada vez mais intensa em sua vida. (flashforward) a crescente
incapacidade de concentração para ouvir alguém mais demoradamente
(...) Apenas seis anos atrás estava na biblioteca da Universidade de
Coimbra, em Portugal, (flashback) lendo O homem revoltado, de
Alberto Camus, e A origem da tragédia, de Nietzsche. Ele calcula o
mês, olhando o teto, lâmpadas de luz fria: (presente da narrativa) sim,
foi nessa mesma época. Os anos de formação (flashback). Ele imagina
(presente da narrativa), antecipando rapidamente a própria velhice
(flashforward) (TEZZA, 2007, p. 90, grifos meus).

É importante ressaltar que este recurso narrativo, além de conferir maior


teor de ficcionalidade à obra, também funciona como metáfora da condição do filho
com síndrome de down, para quem a vida é um eterno tempo presente.
Outro aspecto de ficcionalização da obra se verifica na construção das
personagens, como é o caso da personagem supostamente real chamada no livro
apenas de Guru, mentor espiritual e intelectual do escritor nos anos de adolescência e
início de juventude. Este personagem, inclusive, de certa forma, já aparecera no
romance Ensaio da Paixão (1999) – outra obra que encontra ecos na biografia do
autor, remetendo aos seus anos de experiência com um grupo de teatro amador nos
anos 70.
E assim como o Isaías de Ensaio, o Guru de O filho apresenta fortes traços
de ficcionalização. A personagem, que desempenha papel importante dentro da
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narrativa, não se constrói a partir de numerosas informações, visões e nuances que


dele se apresenta, mas pela ausência delas. Guru paira sobre toda narrativa como seu
próprio nome ou codinome sugere: uma espécie de ser mítico, alguém que mesmo na
distancia física e temporal influenciava e influenciou a vida do escritor-protagonista.
A sombra deste mentor intelecto-espiritual se faz presente toda vez que a narrativa se
desloca para a adolescência do personagem-escritor.
Mais um sinal de ficcionalização de O filho eterno, inclusive, se dá na
bifurcação narrativa, pois temos duas linhas ou tempos da narração, o tempo da
história do personagem-escritor anterior ao nascimento do filho, sua adolescência e
início de juventude; e o tempo posterior ao nascimento do filho com a entrada tardia,
aos 28 anos, na vida madura. Porém, estas duas narrativas da vida (antes e depois do
filho) se intercalam; e tal alternância reforça as estratégias ficcionais do romance.
Vale ainda lembrar que o próprio Cristóvão Tezza também rejeita as leituras
meramente confessionais de seu livro. Mesmo sabendo que a intenção e a leitura do
autor em relação à sua própria obra não seja algo definitivo para sua recepção e
interpretação por outrem, não custa conferir a resposta que Tezza dá quando
perguntado sobre o retorno de pais em relação ao tema de O filho eterno:

Muitos pais me falaram da empatia que sentiram pela trajetória do


narrador. Mas é uma apreensão literária, não exatamente prática, isto
é, a percepção da ambigüidade e da complexidade da vida que a
literatura consegue criar ao “competir” com a realidade, e não
simplesmente copiá-la ou retratá-la. Um bom livro cria realidade e
enriquece nossa percepção das relações humanas (TEZZA apud
PELLANDA, 2009).

Fica notório, portanto, que o autor não aceita o rótulo de autobiográfico ou


confessional, pois usa da estratégia narrativa de entrelaçamento do real e do
imaginário para criar um mundo difuso, mas preponderantemente ficcional. E o peso
que faz pender o fiel para a ficção e não para o simples retrato biográfico é a
linguagem, ou seu uso literário. A linguagem é para o próprio autor Cristóvão Tezza
o delimitador desta fronteira entre realidade e ficção:
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A linguagem é a fronteira, em vários sentidos. O fundamental é a


intencionalidade ficcional, isto é, de fazer um recorte de fatos reais e
imaginários (que entram no texto com força idêntica) e dar a eles uma
unidade temática e estrutural, um sentido particular, que a biografia
jamais terá (TEZZA apud SILVA, 2009).

E assim quando duvidamos de que certos personagens foram ou agiram


exatamente da maneira escrita no romance, ou de que certos fatos aconteceram
rigorosamente como encontramos no livro, estamos corroborando, acredito, com este
projeto literário de instauração da dúvida e com a finalidade das estratégias usadas na
confecção das (con)ficções de Tezza.
Digo aqui conficções no plural por julgar a temática da vida X arte algo que
permeia toda a produção do autor. Se em O filho eterno há uma tensão entre a vida e
a obra, em outros livros de Tezza este diálogo também se verifica, ainda que restrito
ao plano ficcional. Vejamos o caso de Trapo (1995), romance em que um jovem
poeta suicida deixa manuscritos que serão publicados por um professor de Língua
Portuguesa aposentado. O professor Manuel acabará por editar dentro do universo
ficcional da narrativa, uma espécie de autobiografia do jovem Trapo. O professor diz
em determinado momento: “para mim, Trapo é um péssimo escritor. Se há alguma
coisa interessante nele é a vida...” (TEZZA, 1995, p. 97). O mesmo tema se repete no
romance Uma noite em Curitiba (1995) em que o filho do Professor Frederico
Rennon, publica em forma de livro as cartas do pai, que relatam seu amor por uma
atriz, amor este que o conduz à ruptura com a sociedade, o trabalho, a família,
levando-o também ao suicídio. Diz o filho a respeito do pai “biografado”: “a vida de
meu pai, muito mais do que a obra acadêmica que ele deixou (...) tem alguns toques
instigantes de beleza, de valor literário mesmo” (TEZZA, 1995, p. 171).
Esta tensão entre a realidade e as suas possibilidades de representação
também retorna no romance O fotógrafo (2005) em que a lente da câmera fotográfica
metaforiza um dos muitos filtros que o artista pode lançar mão para a
apreensão/substituição/reorganização/subversão do real. Neste caso, o mundo
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retratado pela lente da câmera fotográfica não deixa de ser uma representação, uma
particularização, um recorte do mundo, que, na verdade, pode ser visto como a
constituição de uma alteridade, como a criação de um outro mundo. E é neste
exercício de re-criação, neste entremeio entre mundos real e ficcional, nesta fronteira
muitas vezes estreita e nebulosa entre o acontecido e o inventado que estaria,
segundo o crítico Wilson Martins, uma das principais virtudes do escritor Cristóvão
Tezza que “se caracterizaria, antes, como romancista do olhar ou da visão, vendo a
realidade através das lentes imaginárias da literatura”. (MARTINS, 2009,
PÁGINA???)
Assim como em O fotógrafo, o tema da ficcionalização também aparece no
romance Juliano Pavolline (1994), neste caso não pela simbologia da lente
fotográfica, mas sob a roupagem da mentira, clássico traço ficcional que constitui
característica marcante da personagem que dá nome ao livro. Juliano diz a respeito
de si:

“desfiei mentiras de mentirinha, em que o prazer de me tornar outra


coisa que não eu mesmo era incontrolável e doce. Nada de histórias
grosseiras, mas pinceladas sutis aqui e ali que me faziam um
personagem de mim mesmo, mentiras que me davam sentido, me
lapidavam a alma, quebravam arestas, defeitos e resistências, mentiras
que, afinal de contas, melhoravam a espécie humana pelo menos em
um exemplar: eu mesmo. (TEZZA, 1994, p. 22)

Retornando ao objeto central de nosso estudo, esta imagem de se fazer


personagem de si mesmo também aparece em O filho eterno, obviamente na
personagem do escritor, mas também na figura do filho Felipe, que além de se tornar
um personagem do romance, também se faz personagem de si mesmo em suas
atitudes que mimetizam o mundo exterior: “o rosto se ilumina como o rosto de
Dexter, um dos seus desenhos favoritos, e se ele estala os dedos, franzindo a testa,
personagem de si mesmo: - Hum! Boa Ideia! (TEZZA, 2007, p. 217, grifo meu).
O filho Felipe é outra figura que oferece farto leque de possibilidades para a
exploração da temática: biográfico X ficcional. Um dos aspectos interessantes a se
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refletir é o de que nesta oposição entre vida e literatura, como vimos em outras obras
do autor, na visão do personagem-escritor a segunda também prepondera sobre a
primeira. A exemplo da afirmação de Umberto Eco (1994) de que a verdade ficcional
pode ser as vezes superior à verdade histórica, o personagem-escritor percebe a
ausência da síndrome de down na literatura romanesca:

“...não há mongolóides na história, relato nenhum (...). Leia os


diálogos de Platão, as narrativas medievais, Dom Quixote, avance para
a Comédia Humana de Balzac, chegue a Dostoiéviski, nem este
comenta, sempre atento aos humilhados e ofendidos, os mongolóides
não existem. (...) Em todo o Ulisses, James Joyce não fez Leopold
Bloom esbarrar em nenhuma criança Down, ao longo daquelas 24
horas absolutas. Thomas Mann os ignora rotundamente.(...) (TEZZA,
2007, p. 36).

Se não existe na literatura, talvez não exista na realidade, ou melhor


dizendo, se não foi importante para entrar no mundo ficcional talvez deva ser porque
não tenha importância no mundo real. Por isso o desespero do pai-escritor em não
deixar publicar em uma revista o poema que havia feito para o filho prestes a vir ao
mundo. Ao vê-lo nascer com síndrome de down, o escritor renega o poema chamado
O filho da primavera que fizera para a criança. Deixar publicar o poema seria pior
que inscrevê-lo na vida, seria inscrevê-lo na literatura.
Claro é que o desenvolvimento das histórias (a vivida e a contada) trará o
movimento contrário dessa visão, já que o menino chamado inicialmente de
mongolóide, passa no decorrer do livro a ser chamado de Felipe num processo lento,
mas gradativo e imperioso de aquisição de uma identidade. E essa identidade o leva a
se inscrever na história do pai e, com o livro por ele escrito, na história da literatura.
Todos estes pontos aqui brevemente elencados justificariam, em meu
entender, uma análise de maior amplitude e profundidade, que transcende os limites
de um artigo. Contudo, acredito que estas considerações sobre O filho eterno podem
ratificar a relevância de se estudar o que convenciono chamar de ficcionalização
biográfica que nada mais é do que o percurso seguido para se produzir uma obra
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autobiográfica ou de autoficção, ou ainda, os caminhos que um autor percorre para


plasmar em (auto)ficção a (auto)biografia.
Recorro às palavras de Silviano Santiago para encerrar este artigo:

Por fim, inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra


diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os
limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de
trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do
objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido. Não contam
mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da
ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo
ficcional, e vice-versa, que contam. Ou melhor, são as margens em
constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do
escritor e de resolução dos problemas da escrita criativa (SANTIAGO,
2009).

Mesmo assim sabemos que a distinção entre ficção e realidade pode ser
considerada por correntes teóricas como assunto periférico, esgotado ou que ainda
possa ser visto como algo perigoso e até mesmo desnecessário para se estabelecer o
que seja um texto literário, como já defendeu Eagleton: “a distinção entre ‘fato’ e
‘ficção’(...) não nos parece ser muito útil, e uma das razões para isto é a de que a
própria distinção é muitas vezes questionável” (EAGLETON, 2003, p.1). Em lado
oposto, todavia, podemos encontrar teóricos como Humberto Eco que, parafraseando
a famosa gravura de Goya, defende que “refletir sobre essas complexas relações
entre leitor e história, ficção e vida, pode constituir uma forma de terapia contra o
sono da razão que gera monstros” (ECO, 1994, p. 145). Mais propenso a discordar de
Eagleton e a concordar com Eco, creio que exercícios imaginativos sobre as relações
entre o biográfico e o ficcional (e como um se torna o outro) são pressupostos
importantes para a recepção, fruição, entendimento e estudo do texto literário.

Referências

ALENCAR, José. Lucíola. São Paulo: FTD, 1997.


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ASSIS, Machado. Esaú e Jacó. São Paulo: Globo, 1997.


ASSIS, Machado. Memorial de Aires. São Paulo: Globo, 1997.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1997.
BENJAMIM, Walter. O narrador. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975,
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CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
ISER, A. Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia
literária. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2008.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MARTINS, Wilson. Estante de romances. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/wilsonmartins015.html>. Acesso em: 10 out. 2009.
PELLANDA, Luís Henrique. Tema poderoso. In: Ler & Cia, edição 21, p. 49, jul. –
ago, 2009.
POMPÉIA, Raul. O Ateneu. São Paulo: Martin Claret, 2001.
REGO, José Lins do. Menino de Engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. Disponível em:
<http://jornalsidarta.blogspot.com/2009/05/silviano-premiado-fala-da-sua-ficcao.html>.
Acesso em: 17 out. 2009.
TEZZA, Cristóvão. Ensaio da paixão. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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_________. Juliano Pavollini. Rio de Janeiro: Record, 1994.


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_________. O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2007.
_________. O fotógrafo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
_________. Trapo. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
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DA REALIDADE, DEBUXOS: A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA EM O


CONQUISTADOR, DE ALMEIDA FARIA

João Felipe Barbosa Borges (PG – UFV)

É no mínimo curioso pensar que uma sociedade como a nossa, marcada


insistentemente pela inserção do futuro nos meios tecnológicos e culturais 1, seja ainda e
com tamanha intensidade apegada ao passado e à conseqüente memória que dele
fabricamos. A criação de canais dedicados exclusivamente à História (como History
Channel), o boom dos museus e das modas-retrô, o sucesso das metaficções
historiográficas e de filmes como Titanic (1996), Tróia (2004) e, mais recentemente, o
ganhador do óscar, Guerra ao terror (2009), não são, senão, sinais do sucesso que essa
obsessiva automusealização (HUYSSEN, 2004) do presente logra em nós mesmos.
Porque, com efeito, a memória é também nossa construção identitária, e se hoje ela é
este verdadeiro best seller, o é também pelo princípio de identificação – que,
lembremos, desde Homero, é critério de atribuição de valor.
Fato é que à disseminação obsessiva da memória, acompanha a disseminação
de seu uso político, evidenciando seu caráter eminentemente construcional, isto é, sua
materialidade escrita (linguística ou imageticamente), que a faz, necessariamente,
produto de visões muito singulares, de sujeitos que estão inseridos, quer queiram, quer
não, em uma dada sociedade, com a qual partilham ideologias, valores, e posições
políticas diante do fato relembrado. Isso faz com que a elucidação de determinados
acontecimentos seja não uma descrição fidedigna, mas uma interpretação seletiva e
parcelar, uma possibilidade de leitura reivindicante de passados legitimadores das
crenças e dos objetivos de quem se propõe um memorial.
E talvez esteja justamente aí, a razão atual pela qual nunca antes em nossa
História Cultural, houveram tamanhas aproximações entre História e Arte, porque é
quando a História deixa de se arrogar àquela confiança epistemológica na representação

1
Veja-se, a exemplo, a rapidez da evolução computacional, da robótica e da própria arte, às vezes
duplamente virtual (tanto pelo caráter de ficção, como pela realidade que ocupa, passando do impresso à
tela do computador).
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fiel do fato, tão cara ao Postivismo oitocentista, que a Arte se sente à vontade para
explorar os interstícios da memória – objeto antes por excelência histórico –, colocando
em evidência não só as pretensões de representação autêntica da realidade histórica,
como também a própria condição de que a escrita do passado, na Arte ou na História, é
em ambos os casos uma reescrita do presente, impedindo, por isso mesmo, que a
memória se revele conclusiva ou teleológica. Isso não quer dizer, é claro, que não tenha
existido um passado real, mas apenas que o nosso conhecimento sobre este passado é
condicionado por representações que embora sejam aparentemente inteiriças, só o são
na medida em que preenchem as lacunas de um tempo que a nós só se pode recompor
por relíquias e vestígios. E mesmo aí permanece a dúvida: Será que estamos diante de
vestígios totais ou parciais? Qual a extensão do que foi eliminado?
Assim é, que pensando no caso específico da Literatura dentro desta instância
de interlocução, o romance das últimas décadas será guiado pela necessidade
transgressora não só de questionar os limites entre a memória oficial – respaldada de
autoridade –, e a, digamos, oficiosa, como também de desestabilizar uma identidade
firmada no recalque de ser o que nem outrora se foi2, algo tão natural, quanto
explicável, pelo nacionalismo infundido em nossa própria condição humana. A obra do
escritor português Almeida Faria não foge a esta visão. Sua obra, desconstrutora de toda
visão monolítica do real, desde o precoce Rumor branco (1962) ao desconcertante O
conquistador (1990), se erige como espaço de indagação, de busca da própria
identidade, em que a memória, como elemento estruturante, é redimensionada e
atualizada em um conjunto ficcional diferente do universo de onde fora extraída. É algo
como se a memória adquirisse a função redentora de que nos fala Benjamin (1994), e
como lugar de liberdade, ecoasse como uma espécie de grito contra a ordem
estabelecida.
O romance O conquistador, publicado pelo autor em 1990, configura-se como
mais uma possibilidade de leitura desse ataque incidido contra a memória oficial e sua
conseqüente mitificação do passado – mitificação esta, que, no romance, aparece em sua
forma maior e mais difundida em Portugal, que é através do mito sebastianista. Nesse

2
Vide, a exemplo, os favores das representações românticas.
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livro, o resgate da História se dá em dois tempos: num primeiro momento, através do


narrador-personagem Sebastião de Castro, autor fictício do livro que temos em mãos, é
resgatado, pelo intertexto que a personagem realiza com o rei homônimo, um passado
longínquo: o reinado e a vida de D. Sebastião, rei português entre os anos de 1557 e
1578; num segundo momento, é resgatado um passado recente, que é o tempo presente
da narrativa, isto é, o tempo de Sebastião enquanto narrador-personagem que durante
sete meses escreve sua história, tempo que ironicamente é também o presente do
período pós-Revolução dos Cravos. E a interpretação que, diríamos, esta profusão de
tempos, personagens e fenômenos implica é a

reversibilidade temporal e a crescente importância de um passado tão


incompleto como o presente, [que] legitima e favorece a emergência
da memória como fator determinante para a recriação, reconstrução,
manipulação e descodificação de dados só parcialmente conhecidos,
mesmo se aparentemente, já todos os condicionalismos foram
estudados. (MARINHO, 2008, p. 139)

Dessa forma, igualmente duplas – e por que não múltiplas? – são as incursões
que o romance faz no terreno da memória, não para reiterar os fatos, mas para propor
perspectivas para a História. Assim é que se pelo título, O conquistador, somos
transplantados para uma realidade outra, onde o conquistador é a figura mítica do rei D.
Sebastião, depositário de todas as esperanças de salvação de uma quase inevitável união
de Portugal com Castela, no presente da narrativa será outra sua função: não a de salvar
a nação contra os mouros na traumática batalha de Alcácer-Quibir, episódio de seu
desaparecimento; mas a de, retornando da batalha em que desapareceu, recuperar o
ímpeto guerreiro e desbravador que caracterizava (e caracteriza) a (H ou h?)istória do
povo português desde pelo menos a expansão marítima, e pôr fim a uma ameaça maior:
a situação anárquica sob a qual vivia Portugal – em termos econômicos, sociais e
culturais, ainda mais latino-americano, que de fato europeu.
Mas se a ficção, primeiramente, nos conduz a participar do mito, fantasiando a
reencarnação do rei pelo reforço das semelhanças que o personagem Sebastião traz com
o oficial; depois ela nos arrebata, chamando-nos ao questionamento duma verdade
patética e mitificada. Tanto é que, se inicialmente a situação das semelhanças faz com
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que nos preparemos para a luta, para a batalha do presente em que se insere o Sebastião
das letras, que é a Revolução dos Cravos – até porque é unânime na historiografia
portuguesa apontar as violentas práticas desportivas do rei como uma característica de
seu empenho em preparar-se para a arte da guerra –; em seguida, a ficção dessacraliza
magistralmente a História por um reforço na diferença. Porque se o rei D. Sebastião era
dedicado às artes bélicas, tão naturais da brava gente portuguesa, e havia seguido à risca
a recomendação das Cortes para “que El- Rey Nosso Senhor, tanto que for de nove
annos, se tire dantre mulheres e se entregue aos homens” 3 (decerto uma tentativa
mascarada de afastá-lo das influências da avó, D. Catarina, que lembremos, era tia de
Felipe II de Espanha, rei de Castela), o Sebastião da ficção era dedicado aos “fluidos e
eflúvios, calores e tremores” (FARIA, 1993, p. 47) do corpo feminino. Seus interesses
incidiam menos sobre conquistas de terras que de mulheres. E estas são as únicas
conquistas que poderemos encontrar no romance: as sexuais.
Mas, ora, o amor aqui constitui um conflito quase que insolúvel, pois ao
mesmo tempo em que destrona a personagem de qualquer atitude heróica, uma vez que
este abdica dos interesses da nação em favor dos interesses individuais, por se tratar, no
romance, de uma experiência que se concretiza pela descoberta do sexo e do próprio
corpo, como aparato de erotismo, pode ser interpretado como um lugar de descoberta do
ser e de luta contra a repressão, que não se restringe apenas àquela exercida pelo
governo salazarista 4, mas a todas as instituições autoritárias e repressoras, inclusive a
família (das quais o gênio patriarcal salazarista era apenas representante):

Aí passei o resto das férias, engatando, brincando, propondo os meus


serviços, arranjando pretextos para mexer nos esquivos pudores das
meninas, colegas de escola e respectivas amigas, num harém em
potência se não fossem as instituições colectivistas do “grupo” e da
família, as omnívoras víboras dos parentes, directos, colaterais e por
afinidade em vários graus. Dificílimo iludir esses atentos irmãos e
pais e primos, tios, avós e outros mais, sem esquecer eventuais
madrinhas e padrinhos, sequiosos de indícios de imoralidade
(FARIA, 1993, p. 51).

3
FRANÇA, Eduardo d’Oliveira. Portugal na época da restauração. São Paulo: Hucitec, 1997 apud
HERMANN, Jaqueline. No reino do Desejado. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 82.
4
Correspondente ao período ditatorial do Estado Novo em Portugal, regido por António Salazar entre os
anos de 1932 e 1968.
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Como endossa Santiago (1989, p. 28), “o erotismo é a energia que impele o


corpo a um comportamento não-racional e não-reprimido, de onde sai o grito do
indivíduo contra as sociedades repressivas”. Assim, as experiências sexuais de
Sebastião, deslocadas de seu sentido puramente carnal, afinal é ele mesmo quem diz não
querer ser “o simples gozador, o engatatão preocupado com a satisfação da sua vaidade,
o sedutor de lábia fácil” (FARIA, 1993, p. 126), são relidas como uma espécie de
combate contra o órgão repressor de Salazar, simbolicamente representado pelas
instituições sociais.
Se atentarmos bem, veremos que é este o fantasma e o alvo de combate que se
insere em todas as relações que nos são narradas, da anã Dora Bela à misteriosa Helena,
seja através do olhar repressor do outro, ou da própria consciência de imoralidade
social. Talvez as únicas que escapem a essa ótica de opressões sejam Julieta e Clara. A
primeira, porque decerto não amava, e porque usada, pois, para chamar atenção a um
marido historiador, que notadamente marcado pelo instinto nacionalista, para quem a
memória portuguesa transformava-se em floreadas conquistas, além de “fanático”,
“paquidérmico” e “autoritário”, era “corno”, o que viria a exagerar ainda mais o tom
caricato e depreciativo que lhe é atribuído. A segunda, porque, como a que Sebastião
nunca tirara da memória, fez parte de um processo de auto-descoberta conjunta (lembre-
se que o próprio objetivo da jovem americana ao ir para Portugal, era descobrir suas
origens), em que o prazer libertou-os das amarras repressivas das instituições. Mas há
de se notar que, mesmo aí, embora não seja motivo da separação entre Sebastião e
Clara, o olhar repressor aparece, e vem dos caseiros – diga-se de passagem, portugueses
– da casa onde Clara se hospedava, “receosos de que a filha seguisse os maus
exemplos” da estrangeira, que “não tinha vergonha alguma” (FARIA, 1993, p. 69).
É a insatisfação e a inquietude de Sebastião perante às instituições
colectivistas, aos atentos irmãos e pais e primos, tios, avós e outros mais, aos caseiros,
ou até à própria consciência social repressora implantada na consciência individual das
personagens, que possibilita o resgate de um país dominado pelo falo salazarista mesmo
após sua queda, o resgate de um tempo e de um espaço que muito embora, escritural e
historicamente, se pretendessem indefinidos, sem sujeito, eram marcados,
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conscientemente ou não, pelo falo ditador de Salazar. Dessa sorte, é no plano sexual que
a procura do Graal é insinuada e vivenciada pela personagem, que busca o seu próprio
caminho, o auto-conhecimento, pois o sexo e o amor podem ensinar, como aprendera
com Clara, muito mais que todas as reflexões metafísicas. Mas como o mito do Graal é
retomado, atualizado e redimensionado relativamente à realidade político-social
contemporânea, ao mesmo tempo em que é cavaleiro andante – pela luta contra a
repressão que empreende através do sexo –, Sebastião se nega a sê-lo, na medida em
que sua busca é em favor próprio e não da nação.
Assim, no plano intertextual que a linguagem realiza, sua ficção acaba
promovendo uma desconfiança aguda em relação ao que diz e o que fala, afastando,
pela tensão entre o discurso ficcional e o histórico, qualquer convicção que se possa ter
a respeito da História. E, ora, isto também se dá no plano formal, por meio de uma
consciência que afasta os narradores de Faria daqueles de outrora, tanto da História,
quanto da Literatura, de Flaubert a Balzac, de Coulanges a Ranke, tão cientes de que a
linguagem poderia dar conta da verdade dos fatos. Claro que, poderia se advogar aqui,
que no memorialismo difuso instaurado pelo protagonista (cindido entre uma
componente individual – a de sua história – e uma componente coletiva – a História da
nação), poderíamos ver em Sebastião aquele mesmo narrador unívoco do positivismo
do século XIX, que embora não marcado pelo il y a do discurso – pretenso apagamento
do sujeito da enunciação –, não deixa de transmitir uma visão parcial da realidade, uma
vez que é ele quem narra. E de fato assim o seria se esse Sebastião, enquanto narrador,
não revelasse a plena consciência do caráter parcelar e da propensão seletiva da
memória. Mas ele a revela, não tentando gerar quaisquer ilusões de real, porque sabe
que “o notado procede do notável, mas o notável não é – desde Heródoto, quando a
palavra perdeu sua acepção mítica – senão aquilo que é digno de memória, isto é, digno
de ser notado” (BARTHES, 1988, p. 155), ou, nas suas próprias palavras, sabe que na
rememoração é apenas “por palpites” que distingue “quem é quem, sob o sol e a poeira
que não” lhe “deixam ver e” o “fazem vacilar de tonturas e vómitos” (passim FARIA,
1993, p. 31).
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É válido ressaltar que, como memória, o narrador pode agregar àquilo que
conta novos elementos, focando determinados aspectos que estão em consonância com a
sua visão do acontecimento, pois qualquer discurso que busque relembrar os
acontecimentos do passado tem em si uma considerável subjetividade, pois a memória
“cumpre a função operatória de espaçamento no tempo, por meio da marcação de
intervalos, pausas ou suspensões” (MIRANDA, 1995, p. 102) , isto é, a memória conta
com brechas e lacunas que só podem ser preenchidas pela imaginação. E Sebastião,
disso bem o sabia, e logo de início já deixa entrever que muito do que se passara não lhe
ficara bem na memória: “A cronologia de minha infância nem sempre me surge nítida”
(FARIA, 1993, p. 31). Por isso, fica a seu cargo reorganizar o rememorado, de acordo
com suas percepções individuais e com as suas intenções ao comunicar um fato a
outrem, pois como ele mesmo o diz, “onde falta bagagem o sexto sentido tapa buracos”
(FARIA, 1993, p. 106).
Sebastião, ao contar fatos de sua vida que já se passaram, tem tempo para
reelaborar o que foi vivido por meio de sua subjetividade, pois o eu inicial que os
presenciou, já envelheceu: tem vinte e quatro anos e escreve, na ermida da Peninha,
suas memórias. Com isso, cria-se um transitar permanente entre o eu inicial do passado
e o narrador do presente durante a rememoração, assim presentificando angústias e
inquietações próprias do momento em que a história é contada. Isso faz com que
acordemos para o fato de que, embora narre a sua própria história – do que se pressupõe
um narrador que sabe o que realmente aconteceu, uma vez que depõe sobre si mesmo –,
Sebastião é um narrador em cujo grau de incertezas reverbera tão forte que nem mesmo
acerca de si pode traçar qualquer afirmação universalmente válida: não sabe “se” foi
“quem hoje” julga “ser”, “se nunca será mais que não saber quem” é “ou quem” será
(passim FARIA, 1993, p. 126). Não lhe cabe mais, como outrora coube em Balzac,
Zola, Eça, a onisciência e a onipresença de um narrador que tudo sabe, tudo vê e em
tudo guia os rumos de suas criaturas. É algo como se o narrador fariano tomasse
consciência do pouco de realidade da realidade criada, “colocando-se a si próprio como
quem duvida, interroga e procura, como se a verdade acerca de sua personagem [e até
de si mesmo] não lhe fosse mais bem conhecida que as próprias personagens ao leitor”
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(AUERBACH, 2004, p. 482). É nessa ótica que o “eu que poderia ter sido” não será,
uma vez que Sebastião continuará ignorando quem é: “Continuo ignorando quem sou”
(FARIA, 1993, p. 126). E por isso mesmo, o passado, trazido pela memória afetiva,
acaba funcionando como uma forma de trazer à tona de um espaço de entrecruzamento
entre o eu inicial e o eu do presente, o eu insatisfatório e inerte que é, ao qual é negado
até mesmo o direito de conhecer a si próprio.
Ora, sabemos que o passado é algo por natureza ambíguo, sendo igualmente o
tempo que se consumou para o eu inicial e o pensamento sobre esse tempo estabelecido
pelo eu do presente, algo que permite pensar numa perspectiva de futuro mais plena;
mas como não há perspectiva de futuro preferível em tempos de revolução, este eu,
simultaneamente marcado pela profusão de passado, presente e futuro, continua
ignorando quem é, representando a inércia coletiva da nação. Contudo, é somente a
partir da profusão destes três tempos que o narrador pode nos oferecer uma visão muito
mais coesa, porque mais plural – por abarcar três e não apenas uma dimensão temporal
–, da realidade criada, que embora mais plena, não deixa de ser apenas uma realidade
maravilhosamente criada por alguém que apesar de instaurar a dúvida da epígrafe de
Manganelli a um de seus capítulos: “Lo sai, dunque, che questa è la descrizione del
nostro amore, che io non sai mai dove sei tu, e tu non sai mai dove sono io?” 5 (FARIA,
1993, p. 79), já sabe a resposta: sabe que nunca pode estar onde o outro está, e que a
recíproca é verdadeira, pois o pensamento do outro é algo do qual não se pode ter
certeza.
Se tomarmos como exemplo os atuais romances que se utilizam da História,
sobretudo os polifônicos, veremos que seguem a mesma lógica de desconstrução da
memória e multifacetação da realidade. Contudo, se nos romances polifônicos atuais, a
univocidade histórica é desconstruída pelo freqüentar de múltiplas consciências, n’O
conquistador, é a fragmentação de uma mesma consciência e de uma mesma memória
em várias, que faz com que duvidemos da matéria narrada. E não nos referimos só à
memória de um eu inicial, um eu presente e um eu (sem) futuro, mas também às
memórias advindas do entrecruzamento que a intertextualidade cria entre o Sebastião

5
“Você sabe, então, que essa é a descrição do nosso amor, que nunca sei onde você está, e você nunca
sabe onde estou?” (Tradução nossa)
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ficcional e o histórico (que faz da fala do narrador, desde o início, um concerto a duas
vozes), e, sobretudo, à memória transcodificada que se efetua do Sebastião de papel,
sujeito individual, para o sujeito coletivo, representante da nação que busca o seu Graal.
Podemos assim reconhecer em sua aparente egografia historiográfica, uma alterografia
que compõe um concerto discursivo semelhante ao criado pela polifonia romanesca
mencionada acima, mas muito mais complexo, pois trata-se de uma alterografia
composta a partir de uma egografia – que o é, fique claro, apenas no plano denotacional
do discurso. E não é só de vozes que esta é composta, mas também por uma profusão de
tempos, inclusive o de irrealidade, tudo simulando e ao mesmo tempo desconstruindo
inteligentemente a inteireza de uma verdade objetiva-fatual. Diferencia-se nisto,
fundamentalmente, do subjetivismo unipessoal daquele positivismo histórico-literário,
que só permite que fale um único ser, geralmente muito peculiar e que só considera
válida a sua visão da realidade.
E a esta alterografia, compõe também uma série de vozes com as quais o
romance dialoga, seja com poetas e escritores como Goethe, Camões, Pessoa, Joyce,
Cervantes, seja com pintores como Cristóvão de Moraes, Mário Botas, seja ainda com
adágios populares, discursos da mentalidade coletiva portuguesa, textos de cordel,
textos históricos, religiosos, mitos, enfim, tudo desmascarando a aparente univocidade e
trazendo à tona a liquidez de uma memória dita oficial, mas que nunca refletiu a sério,
por exemplo, sobre a manipulação da imprensa do governo salazarista, as invenções de
falsos documentos pelos monges de Alcobaça, e várias outras mitologias que se
arraigaram na consciência coletiva da nação e foram sendo transmitidas como verdades
sem quaisquer questionamentos.
Ora, e esta desarticulação objetiva-factual já é entrevista desde o princípio pela
própria linguagem, porque ao tom confessional do relato em primeira pessoa,
sobrepõem-se na ambigüidade estabelecida entre a História oficial e a sexual, uma série
de rimas, aliterações, jogos de palavras, adágios e provérbios populares, de que nos
valem exemplos os “Kama-sutras” e “camas- supras” (FARIA, 1993, p. 65); “Se assim
é à mesa, à cama deve ser tesa” (FARIA, 1993, p. 107); “A mulher muito doce, não a
comer logo toda” (FARIA, 1993, p. 107), enfim, uma série de recursos que, aliados ao
rebaixamento que o sexo, por si só, enquanto marcação estereotipada produz, só tendem
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a reforçar o rebaixamento à matéria narrada. E como a história encontra de forma


magistral à História neste romance, as expressões tais como “Deus vê tudo, até as
minhas mãos na coxa da mestra” (FARIA, 1993, p. 46) ou “Clara enfim deixou de
murmurar: ‘Sebastião, tira a mão’” (FARIA, 1993, p. 64), agem como muito mais do
que sutis marcas da ironia e do riso, pois são vistas como atos infratores do discurso
oficial com o qual se dialoga. Assim, o processo de introdução da ironia e do riso ao
tom confessional do relato implica numa alteração do sentido veiculado pela sentença
textual, transformando a estrutura discursiva em uma entidade combatente, no interior
de si mesma, da validade do discurso histórico.
À medida que a estrutura discursiva torna-se esta entidade combatente, fica
clara a infração desintegradora da História. E é esta infração a responsável por uma
refiguração da memória coletiva portuguesa, que ao ser levada ao tribunal, propõe um
novo devir para a História passada. Almeida Faria rasura a tradição monumentalista e o
discurso unívoco e certeiro tão caro àquela História Positivista, instalando no lugar da
identidade, a alteridade, numa atitude crítica que dialetiza a tradição, e revelando, ao
mesmo tempo, a consciência de que o conhecimento sobre um dado acontecimento só se
pode dar na multiplicidade e na alteridade de uma memória que, se outrora una, hoje só
pode ser múltipla. E a partir disso, Almeida Faria realiza muito mais do que um simples
resgate do passado, pois a narrativa não corrobora na visão exclusiva do acesso de um
indivíduo à História, mas sim a uma visão privilegiada de convivência – e por que não
convergência? – de discursos, de vozes e de referências sobre o passado, os quais
deixam entrever a pluralidade discursiva que fundamenta a sua visão da História.
E é essa nova visão que faz com que, pelo questionamento, percebamos o quão
de “bestice seria que um herói conceituado”, após quatro séculos de batalhas vivas na
memória nacional, “se fartasse de menos trabalhosos feitos eróticos” (passim FARIA,
1993, p. 65) para salvar a nação. E é nesta mesma infração – promovida pela nova visão
instaurada por Faria –, que o discurso do narrador, outrora pensado como uno – uma vez
que, denotacionalmente, é apenas Sebastião que fala –, articula-se com o seu avesso, o
seu reverso, que não é aqui um outro discurso, mas o discurso do outro, ou dos outros:
dos poetas, dos pintores, dos adágios, da religião, da História, enfim, com todas as
vozes que intertextualmente resgata, reconhecendo-se que em toda fala, “sob nossas
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palavras, outras palavras se dizem, que atrás da linearidade conforme emissão por uma
só voz se faz ouvir uma polifonia” (BRANDÃO, 1998, p. 55). E é justamente nesse
sentido, que o romance estabelece, pelo resgate da memória, uma interlocução entre
História e Literatura, de modo que ambas são identificadas como “construtos
lingüísticos, altamente convencionalizadas em suas formas narrativas, e nada têm de
transparentes em termos de linguagem ou de estrutura; sendo igualmente intertextuais”
(HUTCHEON, 1991, p. 141).
E como se a intertextualidade com a História já não conduzisse à dissolução
das fronteiras intergêneros, toda a polifonia a que nos referimos acima só faz por
contribuir para a dissolução do modelo causal-linear de romance. Ademais, o próprio
fato da personagem central d’O conquistador se colocar como a escritora do livro que
temos em mãos corrobora, incisiva e profundamente, não só para o exercício crítico e
auto-reflexivo acerca das escrituras que se empreendem na narrativa: a sua própria, no
plano textual, e a da História, no plano intertextual, como também e sobretudo, para a
confusão que se estabelece entre as entidades de escrita: enquanto narrativa de primeira
pessoa, cujo cerne é uma personagem escritora, o romance acaba por criar dificuldades
na percepção dos limites entre a figura ficcional do narrador e a figura real do autor. E
essa confusão acaba sendo refletida na forma: que é o livro que temos em mãos?
Memórias? Autobiografia ficcional? Romance? De fato, sabemos que é um romance,
mas não enquanto um gênero fechado, estável, pois revela em sua estrutura, “em
contraposição à existência em repouso da forma consumada dos demais gêneros, um
gênero em devir, como um processo” (LUKÁCS, 2000, p. 72), isto é, um gênero
desdobrado, aberto e polifônico, onde se misturam falas populares, literatura erudita,
dísticos religiosos, pinturas, textos históricos, formas de conto, poesia, autobiografias,
incorporando técnicas e linguagens que deixariam-nos de cabelo em pé se tivéssemos
como instrumento de análise a forma mimética aristotélica (que, lembremos, não têm
como base o estudo do romance).
Desta indecisão, o tema, de certo modo, passa a segundo plano e a escrita a
primeiro. Isso porque a própria escrita, no momento em que Sebastião se assume
enquanto narrador-escritor, é elevada a tema da produção ficcional de Almeida Faria.
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Nas palavras de Candido (2003, p. 206), não se trata mais de ver o texto como algo que
“se esgota ao conduzir a este ou àquele aspecto do mundo e do ser; mas de lhe pedir que
crie para nós o mundo, ou um mundo que existe e atua apenas na medida em que é
discurso literário”.
Dessa forma, pelas peculiaridades aqui constatadas, mesmo que breves, nota-se
que este romance, muito embora possa se aproximar dos romances e teses
realistas/naturalistas/positivistas de outrora, é apenas aparentemente que o faz. Pois ao
contrário daquele narrador, à semelhança de Flaubert e Ranke, que compendia de forma
fechada o destino de suas personagens (seja da História, seja da Literatura), com a
segurança e a objetividade de quem se acredita capaz de descrever a realidade, este
narrador fariano não é de confiança – adeus tranqüilidade! –; não estamos diante de
alguém que sabe verdadeiramente o que se passou. É algo como se a palavra começasse
a revelar traços de sua opacidade, mostrando que o mundo é composto por e em
fraturas, as quais o ser humano preenche ao longo de sua existência com representações
do real, mas que não são e nem pretendem ser, de nenhuma maneira, unívocas,
verdadeiras ou mesmo objetivas, pois não passam de construções narrativas que existem
e atuam, como sugeriu Candido, somente na medida em que criam para nós um mundo
que, por sua vez, existe apenas como discurso. Ou em outras palavras, o romance aqui
analisado sabe-se ficção e não têm pretensões de ser o real. É como as maçãs de
Cézanne, os girassóis de Van Gogh, as mulheres de Picasso: não chama a atenção para a
tela-texto enquanto janela do mundo real; chama a atenção para os debuxos, para as
pinceladas com que se matizam essa ficção que chamamos e acreditamos realidade.

Referências

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na literatura ocidental. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 471-498.

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Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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CANDIDO, A. A nova narrativa. In: ____. A educação pela noite e outros ensaios. São
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HERMANN, Jaqueline. No reino do Desejado. São Paulo: Cia. das Letras, 1998

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo – história, teoria e ficção. Rio de


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HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de


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MARINHO, Maria de Fátima. A construção da memória. Veredas, Santiago de


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LITERATURA TESTEMUNHAL NA DITADURA MILITAR: CONEXÕES


ENTRE HISTÓRIA E LITERATURA

João Sinhori (G-UNICENTRO)


Cerize Aparecida Nascimento Gomes (UNICENTRO)

Introdução

Este artigo é fruto de inquietações e reflexões sobre as possíveis relações que a


História pode ter com a Literatura, pois tais posturas teóricas e metodológicas já
garantiram seu lugar diante da pesquisa histórica. Trata-se de dar continuidade aos
trabalhos que tentam ampliar os desafios interdisciplinares e incentivar o estudo da
cultura nas suas ilimitadas variações. Servindo-se da obra literária como forma de
expressão cultural, adquirimos contato com as forças simbólicas que nos levam a pensar
a “realidade” de determinada época em seu determinado espaço, pois se acredita, acima
de tudo, que esse “real” que angustia os historiadores, além de empírico e objetivo, é
simbólico e subjetivo.
Defino minhas fontes históricas fazendo uso das obras literárias O que é isso
companheiro?, do atual deputado federal Fernando Gabeira, publicada em 1979, e de
1968 - o ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura, publicada em 1988. Estes
dois livros foram incorporados a esta pesquisa pois ela tem como objetivo pensar a
constituição de um imaginário histórico coletivo no final da década de 1960 no Brasil,
principalmente no ano de 1968, que é historicamente conhecido como um ano
conturbado, de repressão e rebeldia, direita e esquerda, cultura e contra-cultura.
O livro de Fernando Gabeira narra em primeira pessoa os primeiros contatos do autor
com as manifestações de 1968, sua vida de jornalista de “esquerda” até a infiltração em
grupos revolucionários que tinham como bandeira a luta armada; sua participação no
sequestro do embaixador americano em 1969, a fuga, a clandestinidade, a prisão e as
torturas. O autor termina a narração dentro de um avião saindo do Brasil para o exílio,
que perdurou por 10 anos.
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Estruturado de forma diferente, o livro de Zuenir Ventura limita seu texto ao fatídico
ano de 1968. Através de um trabalho de reconstituição histórica a partir de entrevistas,
jornais, documentos e livros, ele remonta o cenário político e comportamental da
juventude revolucionária da época. As duas obras destacam acontecimentos importantes
e decisivos daquele ano como a morte do estudante Edson Luis Lima Souto, a passeata
dos 100 mil e o decreto do Ato Institucional número 5. O cenário destes acontecimentos
é o Rio de Janeiro, embora Gabeira mencione São Paulo algumas vezes, portanto
podemos concluir que pensamos em um imaginário urbano que se contextualiza com a
ditadura militar que tem início em 1964.
Inicialmente, o artigo aborda as relações entre História e Literatura partindo dos
pressupostos da Nova História Cultural, assim, são analisados os diálogos que se
constituíram entre História e Literatura, a partir dos anos 1960, buscando perceber a
interligação desses saberes. A escolha predominante por autores brasileiros foi feita para
delinear os avanços de tais pesquisas em território nacional, são eles Antonio Celso
Ferreira e Nicolau Sevcenko; o único estrangeiro é o inglês Hyden White, precursor
destas ideias. No segundo momento, em “A(s) Testemunha(s)”, adentramos no território
da Literatura Testemunhal, tal reflexão se torna essencial se considerarmos os objetos
de estudo como tal. O cunho testemunhal das fontes e suas funções são analisados
juntamente com o autor Marcio Seligmann-Silva, que ajuda a compreender as
características adquiridas pelo autor-testemunha, caso das duas obras literárias
analisadas aqui e que conduzem o estudo do imaginário social. Estas são as propostas
para o desenvolvimento deste artigo, que parte do pressuposto de que a Literatura pode
ser muito útil aos estudos históricos pois “[...] as duas coisas operam
concomitantemente, como fossem sistemas de ondas, uma delas sendo do gênero
literário que a escrita da história pode adotar (tragédia, comédia, tragicomédia etc.) e a
outra da evidência. (...)” (Davis In: PALLARES-BURKE, 2000, p. 107)

1 História e Literatura

Mesmo que a história sempre tenha se utilizado de clássicos literários para a


compreensão do passado, e apesar de Lucien Febvre ter se dedicado aos estudos
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literários já nos anos 1940, analisando a obra de Rabelais e dando prosseguimento ao


estudo das mentalidades, os debates que levantaram questões essenciais à historiografia,
tendo como foco o peso da Literatura diante da pesquisa histórica se iniciam nos anos
1960, em um contexto historiográfico em que as análises macro-estruturais, coletivas e
consequentemente generalizantes estavam perdendo força. Mesmo se comunicando com
outras áreas de pensamento, como a economia e a sociologia, a História se deixava levar
por caminhos duvidosos, estranhos àqueles que a pensavam de maneira mais complexa,
incoerente, contraditória, de certa forma mais individual que coletiva, mais simbólica e
cultural.
O embate teórico interdisciplinar torna-se fundamental para que os estudos
comparativos entre escrita da história e escrita literária sejam realizados questionando as
fronteiras entre arte e ciência; ficção e verdade; gêneros literários; narrativa histórica e
narrativa literária. Talvez o maior expoente dessas ideias seja o historiador Hyden
White, irônico e muitas vezes discriminado, o autor contesta a cientificidade
historiográfica de várias formas, afirma ser a História inimiga tanto da arte como da
ciência, mesmo que inescrupulosamente reivindique os privilégios artísticos e
científicos. A distinção entre um e outro nes

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