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EM PATRIMÔNIO CULTURAL
Introdução
Este artigo convida a entrar pelos portões do palácio Cruz e Souza, prédio onde
se situa o Museu histórico de Santa Catarina (MHSC). Este local já foi moradia de governadores
e sede administrativa da capital catarinense até o ano de 1984. Neste prédio icônico da cidade
de Florianópolis está guardado, em sua reserva técnica e salas expositivas, um rico acervo de
pinturas de cavalete, que abrange de meados do século XIX ao final do XX.
Este diálogo com as pinturas não se esgota nas letras, tampouco estas substituem a
presença das imagens físicas nas retinas do observador. Para tanto propomos, através dos
próximos parágrafos, trazer um olhar introdutório a este acervo de pinturas, pois há de se
salientar que sobre cada obra e autor, há muito ainda por dizer. Dessa forma, um artigo
apenas não seria suficiente para conter tudo o que merece ser escrito a respeito destes. Por
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enquanto, nos basta identificar, ao menos em parte, a natureza destas pinturas, para a partir
disso traçarmos novas conexões e reflexões. Nesta passagem, nos ateremos a estabelecer o
diálogo entre aquelas obras fincadas na tradição, justapostas a outras que em algum grau
expandem seu método construtivo para além da técnica acadêmica.
Mesmo provenientes de tempos distantes dos nossos, estas pinturas ainda mantêm
viva a centelha da memória e conversam conosco neste momento, como velhos amigos que
comungam das mesmas paisagens. São estas obras sábios anciãos que atravessam os séculos
em constante acúmulo de memórias. Somos, para eles, simples e transitórios passageiros,
dependentes deste passado que nos une como sociedade e nos engrandece como indivíduos.
[...] tal como as relações entre memória e história, também as relações entre
passado e presente não devem levar à confusão e ao ceticismo. Sabemos
agora que o passado depende parcialmente do presente. Toda a história é
bem contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no
presente e responde, portanto, a seus interesses, o que não só é inevitável
como legítimo. Pois que a história é duração, o passado é ao mesmo tempo
passado e presente (LE GOOF, 2012, p. 52).
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A grande oposição entre o estilo linear e o pictórico corresponde a interesses
fundamentalmente diferentes em relação ao mundo. O primeiro traz a figura
sólida, o segundo a aparência alternante; lá, a forma permanente,
mensurável, finita, aqui o movimento, a forma desempenhando uma função,
no primeiro, o objeto por si mesmo, no último, o objeto em seu contexto.
(WÖLFFLIN, 2006 p. 37)
Ao longo dos séculos diferentes construções plásticas vêm sobrepujando uma à outra,
e até mesmo criando divisões entre artistas. Uma linguagem linear, tal como identificamos em
grande parte das obras do acervo do MHSC, nos instiga o olhar analítico. Algumas obras
mantêm maior grau de detalhamento, principalmente aquelas que assumem maior
dependência com a realidade. Nestes, os elementos compositivos, principais ou secundários,
se apresentam destacados e colocados dentro da mesma escala de valores. Tudo é digno de
valor e deve ser considerado, não há nada que deva ser desprezado. Do outro lado da mesma
moeda, a abordagem pictórica funde figura e fundo, desfazendo as barreiras que separam os
elementos. Tudo se integra e tudo se mistura, da mesma forma como contaminamos e somos
contaminados.
Estas correntes formais têm se apresentado em constante alternância por toda história
da arte. Isto nos leva a perceber que também no MHSC é possível visualizar o mesmo diálogo
entre obras de épocas e autores distintos. Também somos levados a refletir como neste
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pequeno grupo de pinturas é possível estabelecer conversa com a produção nacional e
mundial, pois compactuamos, dentro das paredes do Palacio Cruz e Souza, das mesmas dores
e prazeres de além-fronteiras. Nestes diálogos, confrontos e tensões, em escala local,
podemos vislumbrar um conflito de gerações, buscando soluções para dar conta das
constantes perturbações artísticas em diferentes cenários.
Inicialmente deve ser levado em consideração que até o fim do século XIX, os artistas
ainda se viam dentro de uma tradição da pintura. PEREIRA (2016, p. 195) fala que os artistas,
desde o Renascimento até meados do século XIX, interpretavam o legado da arte ocidental
como estando ligados por uma genealogia. Até então não havia uma compreensão como a
atual, de segmentação da história da arte em estilos sucessivos como Renascimento,
Maneirismo, Barroco e Rococó. Ainda no século XIX, o Renascimento era considerado um
grande movimento que se estendia desde o século XIII até o XIX, onde movimentos como o
Neoclássico eram atualizações da tradição que continuava sem rompimento.
Figura 1 – Pinturas de Louis August Moreaux (Montagem) – Da esquerda para a direita: Barão de Cheneburg.
1885. Óleo s/ tela. 114 x 149 cm. / Thamazia da Luz do Vale e menina. 1852. Óleo s/ tela. 118 x 136 cm / João
Pinto da Luz. 1885. Óleo s/ tela. 100 x 118 cm / Jacinto José da Luz. 1885. Óleo s/ tela. 108 x 136 cm / Joaquina
N da Luz. 1852. Óleo s/ tela. 106 x 134 cm. Fotografias: Marco Baptista
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em sua luta diário pela sobrevivência, encontrava-se em uma competição desleal com a
fotografia. Muitos pintores se transformaram em fotógrafos.
Figura 2 – Pinturas de Sebastião Vieira Fernandes (Montagem): Meditação de São Jerônimo. 1884 – 1887. Óleo
s/ tela. 98 x 130 cm / Primeira Missa – Cópia. 1907. Óleo s/ tela. 177 x 142 cm. Fotografias: Marco Baptista
Outro ilustre personagem do século XIX, o segundo Barão de Laguna, Jesuino Lamego
da Costa (1811 – 1886) é retratado por um pintor ainda desconhecido. Pomposo em seus
trajes oficiais, o Barão se apresenta repleto de medalhas e comendas imperiais (Fig 3).
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Figura 3 – Montagem: Da esquerda para a direita - Autor desconhecido, Almirante Lamego (II Barão de Laguna).
1885. Óleo s/ tela. 97 x 140 cm / KRUMHOLZ, Ferdinand. Comendador Duarte da Silva. 1885. Óleo s/ tela. 89 x
116 cm. Fotografias: Marco Baptista
O pintor Joseph Bruggemann (1825 – 1894)carrega uma das mais icônicas pinturas do
Museu, Vista do Desterro (Fig. 4). Essa pintura é uma incrível viagem no tempo e no espaço
urbano da então vila de Desterro. É impossível não a usar de forma comparativa a nossos dias
e perceber as modificações na paisagem ao longo dos séculos.
Figura 4 - BRÜGGEMANN, Joseph. Vista de Desterro. 1866. Óleo s/ tela. 143 x 200 cm. Fotografias: Marco Baptista
Figura 5 – Pinturas de Guttmann Bicho (Montagem) – Da esquerda para a direita: Vidal Ramos. 1919. Óleo s/
tela. 111 x 136 / Felipe Schmidt. 1919. Óleo s/ tela. 90 x 115 cm / Gustavo Richard. 1919. Óleo s/ tela. 90 x 115
cm / Hercílio Luz. 1919. Óleo s/ tela. 89 x 115 cm / Lauro Muller. 1919. Óleo s/ tela. 90 x 115 cm. Fotografias:
Marco Baptista
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Figura 6 - Pinturas de Martinho de Haro (Montagem) - Da esquerda para a direita, de cima a baixo: Gaúcho. 1936.
Óleo s/ tela. 106 x 90 cm / Fulvio Agucci. 1949. Óleo s/ tela. 111 x 136 cm / Aderbal Ramos da Silva. 1949. Óleo
s/ tela. 111 x 136 cm / Ivo Silveira. 1949. Óleo s/ tela. 116 x 138 cm / Adolfo Kunder. 1950. Óleo s/ tela. 111 x
136 cm / Cel. Antonio P. Silva e Oliveira. 1960. Óleo s/ tela. 112 x 135 cm / Celso Ramos. 1966*. Óleo s/ tela.
112 x 136 cm / Celso Ramos. Óleo s/ tela. 60 x 72 cm / Celso Ramos. Óleo s/ tela. 62 x 72 cm / Celso Ramos. Óleo
s/ tela. 48 x 54 cm / Colombo Salles. Óleo s/ tela. 48 x 54 cm / Celso Ramos. Óleo s/ tela. 63 x 70 cm / Sec.
Fernando Ferreira de Mello. Óleo s/ tela. 60 x 72 cm / Heriberdo Hulsen. Óleo s/ tela. 48 x 54 cm / Irineu
Bonhausen. Óleo s/ tela. 48 x 54 cm / Irineu Bonhausen. Óleo s/ tela. 65 x 77 cm / Ivo Silveira. Óleo s/ tela. 48 x
54 cm / Jorge Lacerda. Óleo s/ tela. 48 x 54 cm / Jorge Lacerda. Óleo s/ tela. 60 x 68 cm / Nereu Ramos. Óleo s/
tela. 112 x 136 cm. Fotografias: Marco Baptista
Agostinho Malinverne Filho (1913 – 1971) foi outro pintor e escultor de grande
projeção nacional e internacional. De Malinverne Filho, o MHSC conta com apenas duas
pinturas, os retratos de Heriberto Hulse e Irineu Bonhausen (Fig. 7). A existência de tão poucas
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obras desse artista, no acervo do museu, não se deve ao fato de baixa produção, mas muito
pelo contrário, a procura por seus trabalhos era tanta que dedicou-se quase exclusivamente
a produção por encomenda, não restando muitas obras para criação de acervo.
Figura 7 – Pinturas de Agostinho Malinverni Filho (Montagem) – Da esquerda para a direita: Irineu Bonhausen.
1952. Óleo s/ tela. 111 x 136 cm. Fotografia: Marco Baptista /Heriberto Hulse. 1960. Óleo s/ tela. 111 x 136 cm.
Fotografia do acervo do MHSC.
O pintor Willy Zumblick (1913 – 2008), embora não tenha formação tradicional, retoma
a importância da linearidade em suas pinturas. O poeta Cruz e Souza, Antonio Konder dos
Reis, Espiridião Amin, Pedro Ivo Campos e Cassildo Maldaner são os retratos realizados pelas
mãos do artista.
Figura 8 – Pinturas de Willy Zumblick (Montagem) – Da esquerda para a direita: Cruz e Souza. 1960. Óleo s/ tela.
74 x 94 cm / Antonio Carlos Konder Reis. 1978. Óleo s/ tela. 107 x 134 cm / Espiridião Amin. 1986. Óleo s/ tela.
120 x 158 cm / Pedro Ivo. 1991. Óleo s/ tela. 110 x 151 cm / Cassildo Maldaner. 1997. Óleo s/ tela. 112 x 151
cm. Fotografias: Marco Baptista
A fim de não estender ainda mais, cito resumidamente os pintores, José Maria, Acary
Margarida (1907 – 1981), Luiz Canabrava (1926 – 2000), Isidoro Neuher e Tibielli, com os
respectivos retratos abaixo.
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Figura 9 – (Montagem): MARIA, José. Jorge Lacerda. 1958. Óleo s/ tela. 67 x 78 cm / MARIA, José. Jorge Lacerda.
1958. Óleo s/ tela. 115 x 141 cm / MARGARIDA, Acary. Cruz e Souza. Óleo s/ Eucatex. 43 x 54 cm / MARGARIDA,
Acary. Aderbal R Silva. 1948. Óleo s/ tela. 49 x 59 cm / CANABRAVA, Luiz. Colombo Salles. 1974. Óleo s/ tela. 90
x 115 / NEUHER, Isidoro. Hercílio Luz. Óleo s/ tela. 49 x 60 cm / TIBIELLI. Cruz e Souza. 1990. Óleo s/ tela. 74 x 75
cm. Fotografias: Marco Baptista
Figura 10 – Pinturas de Dakir Parreiras (Montagem) – Da esquerda para a direita: Anita e Garibaldi. 1921. Óleo
s/ tela. 180 x 235 cm / Dias Velho. 1927. Óleo s/ tela. 180 x 231 cm. Fotografias: Marco Baptista
Figura 11 - DE MELLO, Haroldo Knesse – Afonso d'Escragnolle Taunay, 1976. Óleo s/ tela. 72 x 90 cm.
Fotografias: Marco Baptista
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Do nascimento de Nicolas Taunay à morte de Afonso Taunay, passaram-se pouco mais
de 200 anos. Neste período, muitas mudanças políticas e artísticas marcaram gerações.
Mesmo em meio a tantas reviravoltas, ainda é possível identificar a forte influência do passado
e de seus conhecimentos acumulados, mesmo que sutilmente.
Se a condição desse retrato tem algo a dizer, certamente é que, talvez tenhamos
esquecido que Santa Catarina tem fortes ligações com os grandes mestres do passado e o
início do ensino formal das artes no Brasil. Em algum tempo atrás, essa memória pode ter se
rompido. Para muitos, o único legado da antiga tradição em Santa Catarina, passa apenas
pelas mãos do ilustre Victor Meirelles (1832 – 1903). Contudo, a memória do passado, deve
ser considerada como um acúmulo de saberes que não deve ser sobreposto, mas agregado.
Considerações finais
Como vimos, este artigo não propõe análises detalhadas, mas apresenta um olhar
geral, um olhar de turista que caminha sem parar entre as obras de uma exposição. Contudo
essa abordagem macro nos ajuda a perceber melhor a floresta que nos cerca para, a partir de
então, ajustar nosso foco aos elementos isolados. Mesmo apresentado em poucas páginas e
imagens, temos o vislumbre das potências criativas de Santa Catarina nos dois últimos séculos.
Do mesmo modo, é perceptível o desenrolar de um processo semelhante ao arqueológico, em
que escavações trazem à tona aquilo que fora soterrado pelas areias do tempo. Neste caso,
escavamos memórias, lembranças daquilo que nunca será como em sua época, mas
constituem parte importante de nossa formação artística e cultural.
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Para um último olhar aponto as pinturas, aparentemente destoantes, de Vera Sabino
(1949 - ), Meyer Filho (1919 – 1991) e Semy Braga (1947 - ) (Fig. 12). Estas pinturas reforçam,
mais enfaticamente, o diálogo entre tradição e modernidade, rompendo com o modelo
estrutural das demais imagens e empurrando ainda mais as fronteiras do conhecido para
campos não explorados.
Figura 12 – (Montagem): SABINO, Vera. Abstrato. 1976. 80 x 110 cm / FILHO, Meyer. Paisagem. Óleo s/ tela.
1973. 81 x 74 cm / BRAGA, Semy. Igreja Ribeirão da Ilha. 1987. Óleo s/ tela colado em Eucatex. 76 x 86 cm.
Fotografias: Marco Baptista
Referências
BIELINSKI, Alba Carneiro. Liceu de Artes e Ofícios 150 anos. Ed. Especial. Revista da
Fabes. RJ. Nov. 2006.
BOITEUX, Henrique. Santa Catarina nas Belas Artes: o pintor Sebastião Vieira
Fernandes. Rio de Janeiro: Zelo Valverde. 1944.
DE HARO, Líbia Palma. Os protegidos de José Boiteux: Tecendo o campo das artes visuais
em Santa Catarina nas décadas de 1920 e 1930 na Primeira República. Dissertação
(Mestrado) Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas.
Programa de pós-graduação em História. Florianópolis. 2019. 2013 p.
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LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. 5. ed. Campinas:
Editora da UNICAMP, 2012. p. 52.
PEREIRA, Sonia Gomes. Arte, ensino e academia: Estudos e ensaios sobre a Academia de
Belas Artes do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Mauad: Faperj, 2016.
Webgrafia
LOUIS Auguste Moreaux. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú
Cultural, 2021. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa23775/louis-auguste-
moreaux>. Acesso em: 08 de nov. 2021.
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