Você está na página 1de 17

Historiando a Arte Brasileira

ARTE CONTEM PORÂNEA NO BRASIL

Maria Amélia Bulhões

V~<X.. ooaü

ORIENTAÇÕES PEDAGÓGICAS

Lucia Gouvêa Pimentel

Belo Horizonte 1 1ª Edição 1 2019

e/.tU·te
' "~·"º""
SUMÁRIO

ARTE CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Apresentação 9

Capítulo 1 De que falamos quando nos referimos 13


a arte contemporânea no Brasil?

Capítulo 2 Algo de novo estava no ar 25

Capítulo 3 O mercado de arte, da Geração 80 41


à atualidade

Capítulo 4 Fortalec imento das instituições 55

Capítulo 5 Do objeto ao processo - idas e vindas 71

Capítulo 6 A arte fora de si 89

Considerações ao final de uma jornada 103

Orientações Pedagógicas - Lucia Golvêa Pimentel 105

Glossário 115

Referências 121
- APRESENTAÇÃO

Oua~ do ~e_!_ala de arte contemporânea, o importante não é cla?-


sifica [QU hierarguizar as_a ções artísticas, _mas deixar.=Se-per:mear- p.or
elas, perceber suas repercussões, - suas- -diferentes
- - - formas de comuni- ---
cação e, principalmente, sua capacidade de surpreender. As práticas
artísticas contemporâneas sempre me atraíram nas experiências com
o meio artístico, despertando uma grande empatia por obras que são
capazes de expor as contradições do nosso mundo. Em uma socie-
dade com inúmeros estímulos que atordoam o olhar, como pode a
arte ainda encantar ou impactar? Podemos oferecer a essa arte nos-
sa adesão e nossa participação, retirando-a de sua difícil posição de
transgressão e isolamento?
Ao aceitar o desafio de escrever este livro, tornou-se necessário
tomar algumas posições, tanto em termos de postura teórica como
de opções metodológicas. Priorizei a análise dos processos e dos
contextos em _.Q.u.e_a _arte _ç_onternP.orânea se desenvolve no Brasil,
tendo como objetivo, uma compreensão que fosse além da figura
_ ,fo_artista_a.da_obra, qu e t radicíooalrnente_s_e encontra na_bibliogra-
fia sgbre essa produção. A seleção dos artistas seguiu a lógica de
suas conexões com as questões apresentadas, buscando exemplos
ae a,terentes regiões Oo País. Não houve intenção de realizar uma
abordagem analítica de obras, mas destacar nelas alguns aspectos
que contribuem para o entendimento deste diversificado fenômeno
que é a arte contemporânea. Essa é uma prática simbólica de nosso
tempo. Ela se expande mais além de seu próe_rio cam po e f_oge ao
cons ênso, ela exige um pensa merrtoaberto. Meu propósito, aqui ,
não_é_ap_r_e.s_entaU1Jod-8lo,s_ne,m_dau esp_ostas_às_muLtas_q.u..e._s.tõe.s_que
se colocam, mas trazê-las à tona para reflexão.
O tema é ex~ nso, complexo e contraditgriQ. Aqueles que se
interessarem em adentrar neste rico e interessante campo de expe-
riências contam hoje em dia com a internet como uma boaíQI1te de
informação . Nela, podem ser encontrados inúmeros sites e blogs de
artistas_ ,
assim- como- de Ínstituições
- ----- e de estudiosos.- Todos eles com
imagens, vídeos e textos que auxiliam na compreensão dos conte-
údo~. Basta navegar çom _çurio_sidade e es_tar aberto a de_scobertas.
Es_s_a arte em fluxo perr:nanente estabelece conexões, desafian-
do-nos a explorar os limites do preestabelecido. Com suas obras,
por vezes ousadas, por vezes bastante simples, os artistas promo-
vem diálogos e expandem suas ações, questionando o campo artís-
tico como uma área de conhecimento de acesso restrito ao grande
público. Eles se comprometem com novas compreensões dâ a rte.-
preservam o lugar do desejo e da utopia e fazem de suas práticas
experiências a serem vividas em conjunto com o espectador. O obje-
tivo principal do texto aqui apresentado é conquistar os leitores para
embarcar nessa aventura, oferecendo, para isso, algumas portas de
entrada. O caminho posterior será de cada um.

1O · Maria Amélia Bulhões


-
CAPÍTULO 1
DE QUE FALAMOS QUANDO NOS REFERIMOS A
ARTE CONTEMPORÂNEA NO BRASIL?

1.1 Sistema da arte e arte contemporânea


Os_grandes relatos que conhecemos como estética, história da
arte e crítica de arte se consolidaram , na Europa, na segunda metade
do século XVIII. Eles se fundaram como disciplinas e ~~abeleceram
a maioria dos valores e dos padrões que sustentaram a autonomia
do cam po artístico a partir da ênfase na apreciação visual. É a partir
deles que um grande número de indivíduos identifica se algo é arte.
Esse paradigma se estabeleceu a partir do Renascimento, sustenta-
do pelo poderio econômico e político europeu. Sua hegemonia se im-
pôs sobre as produções de diferentes regiões do mundo, designadas
sob nomenclaturas sy9altemas, tais como artesanato, arte popular,
indígena etc.
As representaÇ__ões sirn bóiicas _fazem parte da existência do ser
humano, e suas _rT"!an ifestações se de_t_erIY1 inam historicamente so_p
diferentes condiçq_e~. Essas manifestações podem ser tanto a Rintu-
ra corporal utiliza_d_? pelos índios, os d~senhos infantis, como escul-
turas, quadros ou vídeos expostos e~ museus e galerias. Do imenso
universo de Rráticas siroQólLc-ªs_L~q_rnente uma pequena fatia é social-
O que define essa classificação e diferencia
esse segmento é sua inserção em um sistema de arte, que é:

[.. .] conjunto de indivíduos e instituições responsáveis pela


produção, difusão e consumo de objetos e eventos, por eles
mesmos rotulados como artísticos, e, também, pela definição dos
padrões e limites da Arte para uma sociedade, ao longo de um
1
período histórico.

Q~ ist__errrn da arte surgl u Europ_§ ~ oi ~e~ struturando ao longo


QQ.S últimos 500 anos, por atores s_ociais (artistas, críticos, filósofos
e historiadores
- --- da arte, marchands,
- -- - diretores --de- instituições, -cura-
- - - - --

BULHÕES, 1990, p. 17.


-
dores, professores de arte, colecionadores), por instituiçõ_es_(_a_cada-
- - -----
7
mias, museus, galerias, escolas de ªrte, revistas_de arte ... ) e por dis-
- - -- --- - -
cursos legitimadore~ (bi_gória, estética_e crítica de arte).
A autonomia da arte foi sustentada por esse sistema tendo como
base um conjunto de crenças, aceitas de forma incondicional pela
sociedade. Elas dificultam que se percebam as disputas sociais que
estão ali inseridas e as determinações institucionais de seu funciona-
mento . As crenças mais persistentes são: o artista é um gênio ins-
pirado, responsável único pelos produtos de sua criatividade; a obra
de arte se revela espontaneamente ao espectador; a arte tem uma
essência válida para todos os tempos e lugares. Essas crenças, que
passaram por vários a partir da arte moderna, che-
garam até os nossos dias, quando estão sendo mais frontalmente
enfrentadas pela arte contemporânea.
A maioria dessas crenças não funciona para as produções artís-
ticas contemporâneas; seus princípios não se adéquam a práticas
que se misturam na vida cotidiana e desaparecem deixando somente
vestígiq_s_J;J o que se passou. Elas não explicam como, em museus e
bienais, pinturas e esculturas dividem a cena com obras 9_rtfsticas _
menos convencionais, tais com.9 o_ato críticº e irânico de distribuir
pkolés para o público, que Cildo Meireles realizou, na Documenta de
Kassel, em 1997. Ou é3 pr9posta de NunÕRamos, gu~ CQIOCOU urubus
~m uma m9_ilum~ntal gaio_la no centro âo !)avilhã_o_da_ 29-ª Bienal de
SãQ E_a_~lo.~m 2009.
Segundo a maioria do~~utores, a arte conte f!1J?9r_ânea emergi~
mu.odialmenté a partir da segunda metade dos_9JloS l950 , por meio
de.1JTTJª- _Qrodução de narrativas fragmentadas, que abordavan"J a poli-
tica a alteridade e outros aspectos da vida cotidian_ª• em experim~n-
tos é!_rtísticos q_!.Je_promove@_m a construção de uma_visu alidade foca-
Ç@__em imagens da in~ústria cultural. Marcando a emergên cia da arte
contemporânea, a Pop art se desenvolveu em oposição às correntes
ab~tratas da arte moderna,_incorp_orando icones da cultura de massa,
estabelecendo com eles discursos ambíguos e questionadores, que
inãuguraram umaposturâ marginal/rntêgrada, típica da sociedad~ de
consumo. Vários movimentos seguiram nessa posição q_orderline,
criando novas categorias artísticas, como os happeninê._(ação artís-
tica momentânea, envolvendo o artista ou outras pessoas que atuam
segundo suas proposições), a~ i_nstalações (construções espaciais
com objetos que fogem à classificação de escultura) ou a videoarte
(propostas com imagens em movimento que não se enquadram na

14 · Maria Amélia Bulhões


linguagem do cinema nem da televisão). Com essas práticas, os artis-
t_as busca'{_am _r:_9 mp_erJ2_om os limij:es im po_stos pelo mercado de arte
e_pelas institui_ç_õ_es.. ----- -- -
No_!:~ r_§~ il.!. diferentemente _da Europa, a produção plástica durante
o _período Colonial (séculos XVI a XLX) estevei nserida em uJJJlLO.J_ciem
d_o_minac1ª._ por artesãos e artífices, em q ue Qr:_ep9 nder9 m obras reli-
giosas, sob a tutela d_é!_j graja Católica. Pode-cSe_dl zeL qu e._o _s is_te ma
cia_a rt.e_d__e_o ri g.e_rn euro p_cia_q_u.e_c_o_ob_e_cem _os_ío i i m p Iem.entad o, aqui,
somente no século XIX, C(2 m a vinda da Família Real Portuguesa, tra-
zend~ a Missão A ~ í~tica Francesa, que apoiÕu a criação da Aca de~ia
lmperia! _de Belas Artes.- A pa-rtir d~ pau(atinamente f oi- se d-e~ en-
volvendo um sistema artístico que seguia o
modelo europeu ~ e
ga rant ia a legil 1m1dade e o reconh8cime nto_da sociedad e -par a-as pro-
__g uçõe~-âc e1tãs por ele. Afirmando-se como um- ca mpo particulard a
cultura - do conhecimento estético visual -, a arte construiu sua au-
tonomia, liberando-se da tutela da Igreja.Católica que vigorara no Pe-
ríodo Colonial. Inicialmente seguindo os cânones da arte acadêmica,
a partir da primeira metade do século XX o sistema foi se atualizando
com as va_!] guardas_eur.9 peias. Dessa forma , o modernismo passou a
se.L o _gr_an de_parâm..atr.P---ªJJÍsticQ, permanecendo . ainda hoj~, como a f
matriz mais consa_gradi3_da arte ng !:?ís. Em antagonismo a essa he-
gemonia, na seg u._n d~ -~ ~!ª9.? dq_ s__ anos 1960 em~rgi~~m_§_ _produção i"-
orientada pelas y§_cten tes da arte _ç_ontemQorânea, questionado_ra e
subversiva.,.
A .su.bv..e.r:.são_.é uma c_a racterJs..t ica fundamental das p ráticas ar:-
tísticas cont.ê_rl}Q Orânea~, que realizam deslocamentos de sentido
dos objetos, utilizam materiais corriqueiros e banais e se esparra-
mam mais além dos espaços consagrados do museu e da galeria,
colocando em crise o sistema da arte e sua autonomia. Evidencia-
se, por parte de alguns artistas, o desejo e o esforço de sair do sis-
tema, por considerá-lo restritivo e asfixiante para sua criatividade.
Porém, ao romper com as tradições da história da arte e da esté-
tica, ao abandonar o abrigo das categorias artísticas e derrubar os
limites de um campo próprio, eles ·transitam entre a transgressão
e a assimilação. Dese ovo lvem ,_p or um lado , ações q ue cóloc ~m
em xeq ue a autonomia do sistema da arte, mas, por outro, tem
necessidade de estar dentro d_ele, para serem recon hec1 aos ~ orno
artistas. Estabelecem , assim, um jogo com o sist~~a da arte_ que
transita entre a defesa e a manutenção dos seus l1m1te~ e o esga~-
çamento destes para cooptar as transgressões dos artistas, real1-

Arte Contemporânea no Brasil · 15


mentando-se da criatividade destes.
~ 9 Bra §U, --ª situqǪ-º - da --ªrte ç_onte_mporânea é problemática e
complexa, uma vez que o sistema local é rarefeito, nã_o_tem_umaJ_octe·
pr_e_seoça so_çial, nem _um sólido mercado, e carece de instituiçõ_e__s_
CQ.nsolidadas_que apoiem os artistas. Sua estrutura não tem mu[ta
sustentação na sociedade, pois a arte é considerada por m_uitos um
sig oo de status ~_1.le não alcança o imaginário da maioriã das pessoas .
E_!TI decorrência _disso, cria-se gra~de amb iguidade nas relações
dq_s artis_tas contemporâneos com as diferentes instâncias do siste-
ma da arte . Como criticar e subverter esse frágil sistema local sem
derrubá-lo completamente e assim deixar de ser reconhecido como
artista?
Incorporando diferentes estratégias e utilizando os mais inusita-
dos materiais, essa produção expande os limites do sistema e ques-
tiona o próprio conceito de arte até então reconhecido. A variedade
de produções e a inexistência de critérios que possam ser aceitas
de forma unânime para avaliação dificultam o seu reconhecimento .
G~ra-se assim uma falta de identificação das práticas artísticas con-:- _
tem porâneas com ª- tra qjção da arte. Em decorrência disso, alguns
autores apontam Q_"fLm da arte" . Eles percebem o abandono de um
model9 t r_adicional, com padrões e valores da forma visual (beleza,
harmonia, visualidade ... ) estabelecidos a partir do Renascimento. A
arte usualmente aceita ev alorizada pela maioría das pessoas está
sendo substituída por práticas que se desenvolvem dentro de novos
paradigmas artísticos .

1.2 Um novo paradigma?


Para o senso comum, contemporânea é toda a arte desse 1..0rn po;
_o que se produz aqui e agora, essa mescla de estilos, valores e mo-
delos que convivem no mundo globalizado . No campo artístico, não
funciona assim, esse é um conceito bem específico a que vários__au-
tores se dedicam a estudar e definir. Muitos falam em uma revolução
artística , que invalida concepções anteriores de aceitação , substitui
critérios de valores e modos de produção e circulação das obras,
exigindo novos discursos legitimadores. Muitos, inclusive, afirmam
a necessidade de adotar um novo paradigma de arte para dar conta
dessa produção pautada pela constante ruptura com os padrões es-
tabelecidos. Uma arte dominada pela pluralidade de possibili~ades e
de novos artistas, na qual não é mais possível estabelecer movimen-
tos ou tendências, nem categorias dominantes . Todos os meios se

16 · Maria Amélia Bulhões


equivalem em uma híbrida convivência, possibilitando que objetos
oriundos de diferentes campos sejam integrados ao circuito artís-
tico por meio de diversificadas estratégias. As categorias artísticas
que estiveram durante longo tempo restritas à pintura, à escultura
e à arquitetura foram ampliadas na modernidade, com a incorpora-
ção do desenho, da gravura e da fotografia. Entretanto, na arte con-
temporânea , esse panorama se tornou muito mais complexo, com
o cruzamento de várias delas em objetos difíceis de classificar. Ao
cultivar aproximações com o banal, ao substituir a obra acabada pela
evidência dos processos de trabalho e ao adotar o hibridismo como
proposta estética, os artistas estabelecem um novo paradigma. Ado-
tam uma estrutura geral de concepções e um outro modelo para o
entendimento da arte que passaram a ser aceitas neste momento.
Exe_m plos de cruzamentos e hibridismos podem ser vistos na obra
de Mabe Betb.9.ni_ç_Q_{l3e! o_H_orizonte/MG, _1960), que se organiza a par-
tir de arguivos instituciQ119 is e -coleções de documentos. O resultando
d,e seu trabalho se efetiva em uma diversidade de apresentações, tais
como instalações, publicações, ensaios fotográficos, vídeos , textos
ou mesmo palestras. Retrabalhando diferentes arquivos, suas propo-
sições poéticas permitem ao espectador construir leituras pessoais
desses documentos. Várias alternativas são oferecidas para que o
público articule uma memória que é, ao mesmo tempo , individual
e coletiva. Sua obra, mesclada de apropriações, permeia diferentes
categorias artísticas, o que dificulta qualq_ uer classificação.

Mabe Bethônico -Módulo itinerante do Museu do Sabão , 2006. Acervo


Museu de Arte da Pampulha. Fotógrafo: Marcelo Rosa.

Arte Contemporânea no Brasil · 17


Também lidando com cruzamentos e hibridismo temos a obra de
Nelson Leirner (São Paulo/SP. 1932}, A Grande Parad9 , apresentada na
Bienal de Veneza, em 1999. Ela é composta por uma série de 2.500
imagens populares em gesso, tais como Brancas de Neve, anõezi-
nhos, sereias e sacis-pererês, São Jor__g ~, Vênus, ~atma~, bem como
animais: el~Jantes,_z~p ras, bs>is, les:,es, gat~s, ~ ac_hq__rr os, J9_ga[1:ixas,
sª-pos e muitos outros. Ao deslocar esses objetos de seus lugªre-~~
artista -ti~a-del~s seus significados or(ginais. Na nova co-mposição, os
obtetos que eram oriundos de diferentes fontes culturais se equiva-
lem enquanto integrantes de um grande e complexo cortejQ._Coloca-
dos no chão, de maneira classificada e formalmente organizada, eles
passam a constituir uma instalação que surpreende por sua hetero-
geneidade e ambiguidades. Além disso, ao incorporar em sua obra,
de forma tão explicita, ícones da cultura popular tradicionalmente
desprezados pela elite, o artista ironiza a própria arte.
Outro as o a destacar na arte contemporânea é o valor dado ao
processo criativo e aos conceitos envolvi os na ormu açao as pro-
postas artísticas, em detrimento da obra como produto final. Em mui-
tos casos não são apresentados resultados na forma de objetos, e
sim proposições que se desenvolvem sob orientação do artista com
sua presença ou não. A concepção criativa original e singular do artis-
ta, sua ideia, passou a ser mais importante que a execu ão de obras,
de ega a muitas vezes a outros profissionais. Um bom exemplo é
o trabalho Você gostaria de participar de uma experiência artística?
(NBP- Novas Bases para a Personalidade), de Ricardo Basbaum _(Sã.o
PaLilo/S P.1-961).- Basbaum desenvolveu um objeto escultQIJÇQ_Q.!J e
envia a pessoas (artistas ou não) _Rar-ª.._ql.Je realize m ativ idi:l d_li,ls_c.QID
ele, e o registro dessas deve ser encaminhado ao arti:it<'! ,J\ ssí r:n ,_gela
ação dos colaboradores/usuários, o projeto se expan cte, com o um
dispositivo de relações e significados que fogem ao contro ie inicial
do artista. Os documentos que o artista recebe constitu~m o corpo
do trabalho, sendo expostos como parte do processo cº_D_<::eitual, que
envolve experiência estética. sociabilidade e redes de comunicação.
O gru po Poro (Belo Horizonte/MG, 2002) também explora o proces-
so em detrimento do objeto como arte. Esta dupla de artistas, forma-
da por Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada!, atua principalmente
na realização de intervenções urbanas e ações efêmeras, que bus-
cam envolver o público e levantar questões sobre os pro blemas das
cidades através de uma ocupação poética e crítica. AzulejQs de _QaQel
é um projeto em que disponibilizam desenhos em forma de azulejos

18 · Maria Amélia Bulhões


Ricardo Basbaum - Você gostaria de participar de uma experiência artística? -
Trabalho em progresso desde 1994. Objeto de ferro pintado , experiência .
125 x 80 x 18 cm (objeto). Participação de Brígida Saltar.
Verão Vermelho, Brasil, 1997.
Foto: cortesia projeto e participante.

Grupo Poro - Brígida Campbell


e Marcelo Terça-Nada - Projeto
Azulejos de Papel, bairro Floresta ,
Belo Horizonte, 2007-2011 .

Arte Contemporânea no Brasil· 19


Rara download no seu site , a fim de que as pessoas as im primam e
façam suas pró prias interferências no espaço urbano, resultando~
uma série de fotografias de azulejos , em tamanho natural, im pressas
e coladas em muros, casas e lotes abandonados. Os usuários são
_c_oovidados a enviar fotos dessas suas ações, que eles disponibiliza !])
no seu site , expandindo o projeto por meio de seus colaboradores.
Alguns trabalhos de arte contemporânea colocam a questão visual
como secundária em suas propostas. Isso ocorre em propostas pre-
ponderantemente sonoras apresentadas em eventos de artes visuais.
Como é o caso do grupo Chelpa Ferro, criado em 1995 pelos artistas
Luiz Zerbini (São Paulo/SP, 1959), Barrão (Rio de Janeiro/RJ, 1959) e
Sergio Mekler (Rio de Janeiro/RJ, 1963). Eles realizam performances
de improviso, com vídeos abstratos dotados de texturas, formas e
cores, usando instrumentos musica is ·de maneira não convencional
ou inventados a partir de eletrodomésticos e objetos de uso cotidia-
no . São trabalhos que misturam música eletrônica, esculturas e ins-
talações tecnológicas, apresentando-se ao vivo nas exposições, que
exploram as articulações e os limites entre som e visualidade.
Outro caso em que a visualidade é colocada em questão é o de
obras em que um texto, com a descrição de determinado iu gar, fato
ou circunstância , é emoldurado e colocado na exposição . .!:\ descrição,
muitas vezes ligada com a literatura, conduz o observa dt)r a imaginar
a cena, estabelecendo suas próprias imagens mentaís. Uma gama
diversificada de projetos nessa linha de substituição da imagem por
relatos tem sido desenvolvida.
A negação do visual que se percebe na arte contemporânea pode
vir da rejeição ao decorativo e ao publicitádo, nesta era de visualiza-
ção extrema em que vivemos. O abandono das imagens pelos ar-
tistas pode ser uma tentativa de apontar a contaminação destas no
mundo atual, mas também uma forma de dizer de sua impotência
frente a um mundo no qual há uma saturação de estímulos visuais.
Ao abandonarem as imagens, os artistas reivindicam para a arte uma
ausência que responda à sua incapacidade de criar sentidos, no mun-
do atual, utilizando esse recurso tão desgastado. Muitos autores con-
cordam que construir imagens, dando sentido ao mundo por meio
delas, é uma capacidade e uma necessidade humanas , uma reação
frente ao inevitável vazio da morte, com que o homem se debate ao
longo dos tempos. Talvez por isso o ambiente artístico, em geral,
está impregnado pela necessidade de dar respostas ao desejo de ver
do espectador, assim como a necessidade dos artistas de criarem

20 • Maria Amélia Bulhões


r
imagens . Assim, a negação de uma tradição de uso de imagens que
em alguns casos se observa na arte contemporânea é problemática e
gera debates dentro do campo artístico.
Os artistas contemporâneos buscam formas mais diretas de re-
lacionamento com o público, com o uso de objetos e temas cotidia-
nos. Contraditoriamente, no entanto, mesmo voltada ao envolvimen-
to com o espectador, a arte contem porânea necessita da_pJ:.as_enç.a
de dispositivos (ou instrumentos) de mediação, tais como a a_ção de
monitores, textos nas paredes ou livros sobre o artista que são co-
locados nos espaços expositivos. Isso porque a grande maioria das
pessoas reconhece apenas os paradigmas tradicionais da arte, tendo
dificuldade para compreender o que está sendo proposto no con-
texto contemporâneo. Não percebem que essas práticas artísticas
funcionam dentro de um nóvo paradigma, que diz das condições
complexas e contraditórias que se vive hoje e da descrença nos valo-
res do Iluminismo que organizaram o mundo moderno. Assim, des-
conectadas dos grandes relatos da história da arte e da estética, a
arte contemporânea se afasta do grande público. Ainda que voltada
para temas do cotidiano e bastante próximas ao mundo real, essas
práticas desafiam a reflexão e colocam muitos problemas para os
mediadores e para o espectador.

1.3 Crise dos grandes relatos no mundo globalizado


As narrativas hegemônicas da arte que todos conhecemos não
vigoram mais, mas a hegemonia dos grandes circuitos internacionais
do mercado e das inst_ttui çõe~ definidoras de padrões e valores per-
siste. No enfrentamento das diferentes formas de dominação geo-
poFtica da arte, a pro_e_osta de alguns autores é privilegiar a_análi.se
dos processos de inclusão e exclusão resultantes das disputas nes-
ta complexa e diversificada rede de pod~r. Assim se torna possível
escrever não urpa, mas muitas histórias da arte. de forma crítica e
polifônica, em um processo que vem se desenvolvendo por meio de
estudos e pesquisas que resultam em exposições _e publicações. o
fato de diversos circuitos locais fazerem ouvir e falar sobre sua pro-
dução e de reescreverem suas histórias da arte particulares ocorre no
bojo de novas contradições, com diálogos e confrontos.
A arte contemporânea é, cada vez mais, internacional em seus
circuitos de feiras e bienais, e grandes instituições, e mais local na
construção de relações com as realidades e as sociedades particu-

Arte Contemporânea no Brasil • 21


lares . A crise dos grandes relatos 2 abre possibilidades para que os


, .
artistas criem micronarrativas voltadas aos seus propnos universos
e a suas histórias . que deem conta das múltiplas subjetividades
diferentes mundos dispersos pelo globo terrestre .
Esse é o caso de Virginia Medeiros (Feira de Santana/ê___A, 1962),
que montou uma pequena sala no centro de Salvador, construída a
partir de imagens de quartos de travestis. Ali ela os recebia para con-
versar, pedindo que trouxessem fotos e contassem suas histórias de
vida. Esses depoimentos foram documentados em vídeo gela artista,
que oferecia como retribuição um book fotográfico a cada uma delas.
O resultado final do trabalho Studio Butterfly, que durou um ao_a_ e
meJo, foi apresentado sob a forma de uma videoinstalação. A ênfase
está colocada no processo das narrativas que se desenvolveram em
sua produçao. A artista expande as potenc1al1dades comunicacionais
de micronarrativas, articulando estéticas populares com os meios
tecnológicos. Trabalhando entre o documentário e a tabulação, ela
penetra mundos que não são seus em busca de alteridades.

Virginia Medeiros : Studio Butterfly, vídeo-instalação, Mostra no ltaú Cultural


São Paulo . 2005/2006:

2 Co_nsideram-se como grandes relat?s as explicações de cunho iluminista que


bu_scam explicar os processos de forma evolutiva. fechados em visões parciais do mund
ocidental. 0

22 · Maria Amélia Bulhões


Fazendo de seu processo uma vivência cotidiana prolongada, ela
vai mais além da superfície, trazendo para o campo da arte a voz e a
imagem de segmentos marginalizados.
O processo de estetização generalizada das imagens perpassa vá-
rias instâncias da sociedade, sendo mais evidentes na publicidade.
Esta é capaz de transformar qualquer tipo de produto em um pro-
tótipo de beleza e signo de uma forma de vida ideal. Na publicidade
há uma busca permanente do belo e desejável, não existe doença,
pobreza ou sujeira, pois ela recobre o mundo com figuras agradáveis
ao olhar. Tudo se torna visualmente homogêneo sob o domínio dos
meios de comunicação de massa, e a própria guerra passou a seres-
tetizada em suas formas televisivas. As imagens desenvolvidas sob a
estética da fotopublicidade, do fotojornalismo e do fotodocumentá-
rio, que juntos realizam a construção hegemônica dos modos de ver
o mundo, não chocam mais os indivíduos. As experiências da arte
contemporânea, ao questionarem as narrativas da história da arte e
da estética, construídas a partir da Europa iluminista, abrem espaço
para novos e diversificados relatos. Nas fendas dessa hegemonia, as
disputas se estabelecem.
Em reação a isso, alguns artistas colocam em evidência aspectos
mais torpes e baixos da realidade, trazendo de volta uma humanidade
perdida. Esses artistas estabelecem rupturas na perfeição ilusória e
remetem o espectador a um mundo menos ideal, bem mais realista
e humano. Rompem radicalmente com os padrões de beleza idealiza-
dos, expondo o feio, o tosco e o abjeto. Tarefa difícil, em um mundo
de superficialidades promovidas pela sociedade do espetáculo e da
propaganda. Esse é o caso de Miguel Rio Branco (Las Palmas de Gran
Canaria, 1946), que aborda a realidade sem esteticismos, com a ob-
jetividade de uma navalha que corta as superfícies e expõe as entra-
nhas. A fisicalidade dos corpos apresentados é tratada com imagens
fortes e, algumas vezes, chocantes. O artista passa por diferentes
meios, desde a fotografia, sua mais conhecida produção, até a pin-
tura, a instalação e o vídeo. Em sua obra, ele não tenta dar respostas
nem afastar os medos ou negá-los pelo recalcamento, mas, ao con-
trário, dar a eles evidência.

Arte Contemporânea no Brasil · 23


Miguel Rio Branco - Bola Cega, 2005. Mostra Santander Cultural.

Nesse momento em que a globalização dissemina a lógica de uma


cultura planetária, as respostas oferecidas pela tradição narrativa da
estética e da história da arte não mais satisfazem as inquietações
humanas . Faz-se necessário pensar sobre a condição das práticas
artísticas contemporâneas com os olhos e o coração abertos. Não
para aceitar tudo sem nenhuma ordem de valor, mas para lidar com o
pluralismo e a extrapolação de limites do sentir e do pensar o mundo
em uma era de visualização extrema. É preciso romper com os tra-
dicionais consensos e dar lugar ao dissenso para abordar essa arte
complexa e contraditória que expõe os sintomas, os problemas e as
convulsões de nosso tempo.

24 · Maria Améli a Bulhões

Você também pode gostar