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D O S S I Ê

DO MODERNO AO CONTEMPORÂNEO: UMA PERSPECTIVA


SOCIOLÓGICA DA MODERNIDADE NAS ARTES PLÁSTICAS

Introdução MARIA LÚCIA BUENO* tradicionais. Ou seja, todo o


conhecimento novo produzido
RESUMO sobre a estrutura social tende
No futuro, quando Tendo como pano de fundo uma reflexão sobre
olharmos para o século XX, a autonomia da arte e a desorganização das a alterar substancialmente,
fronteiras do mundo da cultura, pretendemos
tenderemos a identificar a traçar uma caracterização da modernidade e de forma imprevisível, a
através de uma reconstrução histórica dos
década de 1960 como um conceitos de arte e artista, do final do século XIX dinâmica dessas estruturas. As
ao contexto globalizado do início do século XXI,
período de importantes que aqui é compreendido como um espaço de contínuas informações sobre
radicalização da modernidade.
transformações na história da Palavras-chave: modernidade; globalização;
Palavras-chave a realidade social em lugar
arte moderna e arte contemporânea; sociologia
cultura e das artes plásticas. da arte. de reforçar os mecanismos
Na ocasião, assistimos à ABSTRACT de controle, como se previa,
Have like backstage a reflexion about autonomy
consolidação e à amplificação of art and the confusion in the bounderies of derivaram num movimento
culture world, we will to design a caracterization
da modernidade em escala of the modernity through a reconstruction of the de instabilidade. “A produção
concepts of art and artist, from the end of the XIX
planetária, com o universo century to the global context of the beguin of the de conhecimento sistemático
XXI century, that we understand here like a space
da cultura e das artes se of radical modernity. sobre a vida social torna-se
Keywords: modernity; globalization; modern art
Keywords
desenvolvendo interligado and contemporary art; sociology of art. integrante da reprodução do
com o da indústria cultural. sistema, deslocando a vida
* Doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de
É o limiar do processo de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade social da fixidez da tradição”
Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP).
globalização, visível a partir Professora do Mestrado em Design da (GIDDENS, 1991: 59).
Universidade Anhembi Morumbi, SP.
dos anos 1980, momento- Outro aspecto do processo
chave na trajetória das artes plásticas, assinalando a de reflexividade é o entrelaçamento de interferências
expansão da arte contemporânea. advindas do cotidiano privado das pessoas com
Essas transformações ocorreram no âmbito outras relacionadas a contextos institucionais mais
da produção, da distribuição e da circulação, sendo amplos. Sendo assim, “uma das características
talvez a primeira ocasião no século em que a lógica distintivas da modernidade é a crescente interligação
de operação dessas esferas distintas começou a entre os dois ‘extremos’ de extensividade e
convergir. Desde então, em maior ou menor grau, o intensividade: influências globalizadas por um lado,
mercado e as instituições – que vinham imprimindo e tendências pessoais, por outro” (GIDDENS, 1994:
o tom no mundo das artes – ajustam-se às constantes 1). Na década de 1960, podemos dizer que ocorre
redefinições de uma produção artística cada vez uma radicalização da reflexividade – não sendo
mais segmentada. por acaso que alguns teóricos da pós-modernidade
Para Anthony Giddens, a situação é (JAMESON, 1996; HUYSSEN, 1991) apontam o
decorrência de uma nova condição – a reflexividade período como um divisor de águas na cultura do
institucional – que desponta nas sociedades pós- século XX.

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Se recuarmos até a Europa de meados do elementos como reflexividade, desterritorialização,
século XIX, encontramos nas ressonâncias daquela latentes e, ainda, velados, na cultura européia do
modernidade emergente os germes da condição século XIX, tornaram-se dominantes e acentuados
artística que se consolidou no final do século XX. no contexto globalizado da década de 1980. Essa
É aí que se anuncia como irreversível a formação de reflexão, respaldada em leituras e investigações, foi
uma sociedade pós-tradicional (GIDDENS, 1997), desenvolvida com o objetivo de servir como suporte
onde as tradições perdem sua eficácia enquanto às pesquisas de campo que venho desenvolvendo,
forças motrizes da vida social, que, por sua vez, se fornecendo novas direções para o processamento
converte em um espaço cada vez mais indefinido. Tal dos dados coletados. As conclusões apresentadas,
indefinição, que reaparece radicalizada na sociedade neste trabalho, passíveis de revisão, não pretendem
contemporânea, é produto de um meio no qual as esgotar o assunto.
Na capital francesa, centro da vida cultural
referências deixam de estar pré-estabelecidas, “em
do século XIX, o colapso da tradição acadêmica
que os elos sociais têm efetivamente que ser feitos e
comprometeu a dinâmica das artes. O mundo da
não herdados do passado” (GIDDENS, 1997: 130).
arte institucionalizado tornou-se obsoleto diante
Uma característica dessa modernidade
do crescimento da população de artistas que a
que surge é o aumento sem precedentes da
Academia, muito restrita, não conseguiu assimilar
população nos centros urbanos industrializados.
(BOURDIEU, 1988). Paralelamente, a maior parte da
Diante dessa expansão, as antigas instituições, que
produção dos emergentes não encontrou um canal
operavam num âmbito muito restrito, tornaram-se
de circulação. A resistência dos núcleos tradicionais
inoperantes. Outra característica é o movimento
hegemônicos, a segmentação da produção e
de desterritorialização generalizado, promovendo
a ausência de parâmetros impossibilitaram a
uma autonomia crescente das esferas e indivíduos, conversão da arte dos independentes em uma nova
em uma atmosfera marcada pela reflexividade, tradição artística.
pelo risco e pela incerteza. O desenvolvimento da Um mérito dos artistas modernos foi terem
economia monetária, da modernização capitalista – se empenhado na reconstrução dos sentidos de arte
como assinalam vários autores da sociologia clássica e de humanidade, pautados por essa nova condição,
–, impondo uma nova dinâmica à vida econômica, terminando por redefinir inteiramente os conceitos
política e social foi responsável pela corrosão das de arte e de artista. Cézanne, Gauguin, Van Gogh
sociedades tradicionais, provocando essa nova e Toulouse Lautrec estiveram mais próximos de
condição (SIMMEL, 1987). artistas como Pollock, Oiticica e Warhol, do que
Nossa proposta, aqui, é realizar uma leitura de muitos de seus companheiros de século, como
da evolução histórica da modernidade, do século Ingres, Courbet e Delacroix. O que diferenciava
XIX ao XX, a partir das transformações operadas ambos os grupos era o fato de o segundo grupo
no interior do mundo da arte1. Tematizamos, em ter exercido sua arte sempre dentro da tradição,
particular, as mudanças nos conceitos de arte e enquanto o primeiro a desenvolveu com base em
de artista nesse processo, compreendidas, assim, outros parâmetros, sem o respaldo de um modelo
como radicalização da modernidade. Ou seja, estético que viabilizasse suas obras.

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Nas culturas tradicionais, na perspectiva Se nas obras de Ingres e Delacroix
trabalhada por Anthony Giddens, as tradições encontramos uma leitura da cultura francesa
atuavam por meio da ritualização de uma verdade no século XIX, as obras de Van Gogh, Gauguin,
fundamental, possuindo caráter normativo, sendo Cezanne e Lautrec, além de muito distintas entre
territorializadas e, por sua vez, dotadas de uma si, caminham em uma outra direção. Embora
história particular. Organizavam relações temporais esses pintores não pautassem mais suas produções
e espaciais, estabelecendo ligação entre o passado pela tradição, recorriam freqüentemente a elas.
e o presente. No sistema acadêmico, as instituições Reencontramos os elementos tradicionais na
eram subordinadas às cortes e os artistas, operando obra dos pós-impressionistas, utilizados de outra
dentro dos limites de modelos pré-estabelecidos, maneira e revestidos de outro sentido, sem o cunho
produziam uma estética oficial, a partir de conteúdos normativo. Van Gogh, por exemplo, abusou em suas
fornecidos pelos historiadores e em conformidade referências às gravuras japonesas; Lautrec apropriou-
se livremente da tradição artística publicitária; e
com as regras da arte institucionalizada.
Gauguin mergulhou de forma visceral na cultura do
No contexto pós-tradicional, ante a
Taiti. A tradição nessas obras não aparece mais como
inoperância dos modelos convencionais, em uma
uma condição pré-estabelecida, mas sim como uma
sociedade em mutação, onde circulam múltiplas
escolha, um jogo. As matrizes estéticas passaram
referências, os artistas retiram dessa instabilidade a
a se desenvolver com base em origens muito
energia para construírem uma poética segmentada,
diversificadas, muitas delas estrangeiras ao universo
elaborada com base no universo da experiência
tradicional do mundo da arte (BUENO, 2000).
pessoal de cada produtor. Ocorrendo o que
Outro aspecto da maneira moderna de
designamos de autonomização do olhar do artista, ou
lidar com tradições – ligado à reorganização
seja, uma nova condição nas artes em que a reflexão
das fronteiras na sociedade moderna – é o fato
passa a fluir da própria experiência do artista, não
delas não emergirem mais de uma forma pura
mais de padrões pré-estabelecidos. Como observou e unitária. Ressurgem mescladas com outras e
Carl Schorske, a “mentalidade moderna tornou-se desterritorializadas numa atmosfera de pluralidade,
cada vez mais indiferente à história porque esta, que Néstor Garcia Canclini designa de hibridismo
concebida como uma tradição nutriz contínua, (CANCLINI, 1995).
revelou-se inútil para ela” (SCHORSKE, 1988:
13). A afirmação da soberania do olhar do artista As hibridações (...) nos levam a
fundou-se na ruptura com as instâncias que, até concluir que hoje todas as culturas
então, haviam fornecido suporte ao seu trabalho. são de fronteira. Todas as artes se
Rompia-se, assim, o compromisso com a função desenvolvem em relação com outras
representativa das artes plásticas, com o modelo artes; o artesanato migra do campo para
estético acadêmico que regia essa representação e a cidade; os filmes, os vídeos e as canções
com a tradição visual européia que determinava esse que narram acontecimentos de um povo
modelo (BUENO, 1995). são intercambiados com outros. Assim,

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as culturas perdem a relação exclusiva Simultaneamente à ruptura absoluta das
com seu território, mas ganham vanguardas, desponta outra face da modernidade
em comunicação e conhecimento desenvolvida em torno do resgate da memória.
(CANCLINI, 1995: 348). Marcel Proust, Henri Bergson, James Joyce e Walter
Benjamin estão entre os que caminharam nessa
O novo modo híbrido de lidar com as vertente, procurando salvaguardar a história e a
tradições, em que elas aparecem como escolhas e experiência do impacto de uma escala temporal
não como determinações, condição que Giddens incrivelmente veloz.
denomina de retradicionalização, irá se constituir Modernidade não é, portanto, sinônimo de
num dos traços característicos da arte do século vanguarda; como assinalou Octávio Paz, ela tem um
XX, que aflora mais acentuadamente no universo duplo sentido que envolve não apenas rupturas, mas
globalizado do final do milênio. também retornos e restaurações, compreendidos não
Uma preocupação recorrente das gerações
somente como uma volta ao passado e sim como um
atuais que operam por intermédio do hibridismo e
recomeço. Paz identifica a Europa do início do século
da retradicionalização é a de trabalhar sobre o tema
como o espaço das vanguardas, compreendidas como
da memória. Andreas Huyssen (1997) observa que
um aspecto da modernidade, que emerge numa
a dialética memória/amnésia é um produto da
circunstância específica de sua consolidação.
primeira hora da modernidade que acompanha a
É a experiência, e não a ruptura, um dos
emergência das vanguardas modernistas. As rupturas
seus traços específicos. Na impossibilidade de se
vanguardistas – voltando-se simultaneamente contra
pautar pelo passado, os modernos conduzem suas
a tradição e o mercado – não impuseram direção a
vidas fundadas na experiência. A experiência é o
nada; foram saltos rumo ao vazio. Para Huyssen, a
fundamento da identidade. Para Zigmunt Bauman,
amnésia foi uma estratégia da qual os modernistas
enquanto o homem tradicional se conduzia pelas
europeus lançaram mão para se liberarem de uma
definições, os modernos são forçados a recorrerem
cultura tradicional ainda atuante. Essa leitura vai de
à experiência para construírem suas identidades.
encontro à de Octávio Paz, para quem
As definições são inatas e informam a pessoa quem
ela é. As identidades são construídas e atraem-nas
(...) as vanguardas não estavam unidas
pelo que ainda não são, pelo que podem se tornar.
por uma estética comum mas por
Os modernos empreendem uma “busca frenética de
uma vontade inovadora que rompia
identidades”. “Eles perseguiam identidades porque,
violentamente com o passado. Esta
desde o princípio, as definições lhes haviam sido
atitude, ainda que herdada do grande
negadas” (BAUMAN, 1997: 94).
movimento romântico e das escolas
A reflexão de Jürgen Habermas (1983)
que o sucederam, se apresentou como
aprofunda o problema das identidades na
uma verdadeira revolução artística e
modernidade. Observa o autor que, na sociedade
espiritual. Ruptura absoluta e começo
mundial contemporânea, as identidades são
absoluto (PAZ, 1995: 17).

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geradas a partir de um referencial interno, Em resposta a tais modalidades de retorno
desenvolvendo-se independente dos territórios ou à ordem, como também reação à lógica do mercado,
de uma organização determinada. cada vez mais presente em todos os domínios da
vida, deve-se considerar a questão da autonomia da
A nova identidade não pode mais ser arte que permeou os principais debates do século
definida pelo fato de se pertencer a ou XX. A palavra autonomia é recorrente na história
ser membro de algo (1983: 98). (...) a da modernidade, e na história da arte em geral,
identidade do Eu é a capacidade de assumindo conotações distintas em construções
construir novas identidades, integrando teóricas e contextos históricos específicos. Nesta
nelas as identidades superadas e reflexão tratamos de três diferentes configurações: a
organizando a si mesmo e as próprias autonomia do artista, a autonomia da arte e o campo
interações numa biografia inconfundível artístico autônomo.
Autonomia do artista é uma condição
(HABERMAS, 1983: 80).
societária nova, produto da vida moderna, que
encontramos de forma mais explícita e acentuada
Um aspecto fundamental da perspectiva de
no universo contemporâneo (BUENO, 1995 e
Habermas é que, muito embora as identidades não
2001). A concepção de autonomia da arte, aqui, está
se manifestem mais através de um pertencimento,
referida a uma reflexão gestada em circunstâncias
ou moldadas por uma tradição (GIDDENS, 1997),
históricas específicas – nos Estados Unidos, dos
elas se constituem ainda dentro da história e, em
anos 30 e 40 do século XX –, estando diretamente
diferentes níveis, dialogando com ela.
associada com a produção dos filósofos da Escola de
A modernidade não é um atributo nem
Frankfurt (MARCUSE, 1981) e às idéias do crítico
uma escolha. Trata-se de uma condição societária,
de arte norte-americano Clement Greenberg (1996).
uma contingência histórica com a qual os
Campo artístico autônomo é um conceito construído
homens são forçados a se deparar. Uma de suas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1996), no
características, até a primeira metade do século final dos anos 60 e início dos 70, a propósito das
XX, é o fato de que os movimentos de ruptura formas de organização do universo artístico em um
vanguardistas, lutando pela destituição das formas ambiente cultural regido pelo mercado.
tradicionais de gestão, foram seguidos por tentativas A fim de sistematizar melhor nossa reflexão,
sucessivas de retorno à ordem, como esforços para optamos por tratar essas questões a partir de uma
restabelecer as formas tradicionais de gestão. Entre periodização. O primeiro período abarca da
os exemplos mais representativos, mencionamos passagem do sistema acadêmico ao moderno, até o
o Nazismo e o Fascismo do período entre guerras final da Segunda Guerra Mundial, constituindo-se
na Europa. No âmbito das artes, apontamos as no que designamos como o espaço clássico da arte
diferentes modalidades de estéticas regressivas que moderna. O segundo, do final da década de 1940 até
despontaram no bojo desses processos, como o a virada do milênio; está identificado com a Era da
Realismo Socialista. arte contemporânea.

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I. Da academia ao mercado: a emergência do disposição para admirar as manifestações artísticas
artista moderno de todas as épocas e civilizações (HASKELL, 1986).
A desterritorialização da arte e da cultura na Europa
O movimento de autonomia do artista marca deu-se também por meio de museus, como o Louvre
o primeiro período, assinalando a emergência da e a National Gallery (1826) e, ainda, das Exposições
modernidade nas artes plásticas. A modernidade, Universais. As culturas do Oriente, da África e das
aqui, é compreendida como um novo modo de vida Américas entraram na Europa oficialmente, pela
que desponta associado à cultura urbana, a partir primeira vez, pelo espaço das exposições universais.
das transformações introduzidas pela modernização A cultura dos museus abriu um caminho para uma
capitalista. A nosso ver, três aspectos que forjam esse releitura da história, rompendo com o registro da
novo modo de vida emergem nessa circunstância história oficial acadêmica.
histórica e vêm pautando, desde então, a trajetória O prestígio das xilogravuras japonesas
da modernização e da vida moderna, em geral, de no meio artístico parisiense, no século XIX,
uma maneira cada vez mais radicalizada: o princípio é um caso exemplar de reflexividade aliada à
da circulação, a desterritorialização e a reflexividade. desterritorialização. Artistas como Utamaro
As sociedades tradicionais foram refratárias e Hiroshigue realizavam suas gravuras sob a
à presença da diversidade e do elemento estrangeiro. influência de imagens ocidentais que chegaram
Era no isolamento que residia a força dessas ao Japão no século XVIII. Trabalhando no século
culturas, a garantia da perenidade da tradição. XIX, fora da tradição artística japonesa, não foram
Todo esforço era canalizado para a preservação da bem recebidos no país. Suas obras viajaram para
tradição que lhe fornecia sustentação. A cultura a Europa dentro de caixinhas de chá, embalando
capitalista, baseada no princípio da circulação, o seu conteúdo (VARNEDOE, 1990). Foram
rompeu com o isolamento que conduzia a vida descobertas por alguns artistas que circulavam em
no mundo tradicional, levando à corrosão desse Paris, e encontraram nessas imagens a revelação
universo. Portanto, circulação, desterritorialização de um novo olhar, influenciando de forma decisiva
e reflexividade são fenômenos que se desenvolvem muitas das inovações que vieram implementar. Por
associados na sociedade moderna. intermédio de pintores como Edgar Degas e Vincent
Na Europa do século XIX, com a emergência Van Gogh, as xilogravuras japonesas obtiveram
de um mercado de arte antiga – alimentado pelas reconhecimento estético, passando das caixinhas
coleções particulares e, sobretudo, pelos recém- de chá para as paredes dos museus, como matrizes
criados museus nacionais –, temos uma circulação importantes nas obras dos impressionistas e dos pós-
sem precedentes de arte de todos os tempos impressionistas (WICHMANN, 1981). A passagem
e de todas as tradições. Produções, até então, é ilustrativa de uma visualidade desterritorializada,
marginalizadas pela Academia, como a da Europa constituindo-se no século XIX, entre Oriente e
medieval e a egípcia, vieram à tona, promovendo Ocidente, e de como a circulação de imagens,
uma atmosfera de anarquia generalizada no mesmo sem intencionalidade, nunca é inocente,
cenário cultural. Anarquia compreendida como a introduzindo alterações substantivas, não apenas no

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mundo da arte, mas no imaginário das pessoas de contingente. O desenvolvimento do liberalismo
um modo geral. contribuiu também para enfraquecer uma forma de
Tendo ainda como referência o contexto organização tão centralizada e autoritária como a
francês, a modernidade nas artes plásticas efetivou- acadêmica. Enquanto a instituição legislava sobre a
se, sobretudo, por três mudanças fundamentais, produção artística, o mercado passou a exercer um
relacionadas com todas essas transformações controle sobre a distribuição e a circulação das obras.
comentadas acima: uma, a mudança de regimento Numa sociedade com fronteiras bem
no mundo da arte; outra, a mudança perceptiva delimitadas, os muros da Academia preservam a
e, ainda, a mudança da condição do artista. integridade da cultura erudita. Conforme Nathalie
Para construir uma abordagem sociológica da Heinich (1993), a constituição da Academia Real
modernidade contemporânea, no domínio das artes, de Artes, na França, em 1648, surgiu da demanda
de um grupo de artistas plásticos e refletia uma
considerando suas matrizes históricas no século XIX,
série de aspirações da elite que a encaminhou. A
devemos operar na interseção desses três universos:
mais importante delas era a idealização de que o
o universo social da arte, o universo pessoal do
interior da instituição se transformasse no espaço de
artista e as formas de percepção dominantes.
legitimação das artes plásticas, enquanto produção
A história social da arte já vem atuando
erudita e de ordem intelectual, possibilitando, assim,
com sucesso nessa direção, e o trabalho de Michael
ao artista uma ascensão na hierarquia social: deixava
Baxandall (1991) sobre o início do Renascimento
de ser reconhecido como um artesão no exercício de
italiano é um exemplo representativo. No contexto
uma atividade mecânica, para desfrutar do prestígio
sociológico, espelho-me particularmente em três
que lhe concedia sua nova posição de indivíduo no
autores que, ancorados no contexto contemporâneo
exercício de uma atividade liberal.
e dentro de uma perspectiva histórica, por Com o advento das academias de arte, o
caminhos distintos, desenvolveram abordagens artista plástico, embora ainda dependesse, para
contemplando três eixos: Néstor Garcia Canclini realizar sua atividade, de um domínio artesanal,
(Culturas Híbridas, 1997), Howard Becker (Les passou a ser reconhecido e respeitado como um
mondes de l’art, 1988) e Nathalie Heinich (Le triple intelectual (HEINICH, 1993). Uma instituição criada
jeu de l’art contemporain, 1998). pela cultura cortesã, em meio à qual a produção
artística desfrutava de uma autonomia relativa, com
Mudança de regimento no mundo da arte a extinção do universo que lhe fornecia sustentação,
descaracterizou-se, perdendo sua finalidade original.
No século XIX, com o fim da sociedade Na Era clássica, os artistas estavam tão imbuídos
de corte, o universo institucional da arte passou do sentido da tradição que não havia necessidade
a ser regido pelo mercado. Já mencionamos de uma autoridade impelindo-os nessa direção. A
que a ampliação da população de aspirantes à própria tradição encarnava tal autoridade.
profissão artística foi um dos fatores responsáveis A Academia neoclássica do século XIX foi
pela decadência da Academia, uma vez que esta, apenas um espectro da antiga Academia Real de
muito restrita, não conseguiu dar conta desse novo Artes; uma organização moribunda que, na tentativa

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de se manter, recorria a sucessivas estratégias de dos limites da moldura, no caso da pintura; e da
distinção, tornando-se cada vez mais autoritária e base, no caso da escultura. Se a arte acadêmica era
centralizadora (BOURDIEU, 1988). Nesse contexto, uma arte de grandes dimensões, construída para o
despontou a arte moderna em contraposição a um espaço público, o mercado moderno organizou-se
sistema que lutava, inutilmente, para tentar reeditar em torno de obras de porte médio, transportáveis,
uma tradição já do passado. destinadas aos colecionadores particulares.
Reduto da grande arte, em um universo No século XIX, graças ao aparecimento
de fronteiras bem delimitadas, a instituição de telas prontas e tintas vendidas em tubos de
acadêmica detinha o monopólio das definições. metal, os pintores puderam, além de se libertar da
Sua decadência levou a uma desorganização das obrigação de confeccionar seus próprios materiais,
fronteiras entre cultura erudita e culturas populares, sair pela primeira vez do espaço fechado do ateliê
gerando um clima de pluralismo estético, o qual para pintar ao ar livre. O interesse pela experiência
Pierre Bourdieu designou de institucionalização da de produzir ao ar livre, de apresentar um registro
anomia (BOURDIEU, 1987). O mercado classificava direto da realidade, que já estava presente na obra de
e organizava as mercadorias em circulação, mas não artistas como Turner e Goya, somente iria se tornar
tinha autoridade suficiente para construir definições viável com a industrialização do material artístico
perenes. O campo artístico, que se organizou numa que, liberando o pintor do ateliê, transformou a
fase posterior, preencheu essa lacuna, até que a pintura numa atividade móvel. Em decorrência do
ampliação do mundo da arte e a diversificação das hábito de os artistas se deslocarem para pintar, eles
propostas estéticas tornaram a tarefa mais complexa. trabalhavam geralmente com telas de porte médio.
O mercado de arte moderna (MOULIN, O valor de unicidade, da obra única
1967) surgiu na França, no século XIX, a partir da produzida pela mão do artista, é outra invenção
produção dos impressionistas. Afirmando-se como do mercado de arte moderna do século XIX. Uma
uma instituição seleta e diferenciada, organizada em das chaves da passagem de um regime para o outro
torno de uma elite de colecionadores, foi o embrião foi a então decadência econômica do mercado de
do campo artístico “autônomo”, que se consolidou no imitações que fornecia suporte financeiro ao sistema
início do século XX. Legislando sobre a circulação acadêmico. Até o século XIX, as obras célebres eram
das obras, passou a operar a partir de critérios reproduzidas inúmeras vezes, por seus próprios
próprios, dentre os quais destacamos três. autores ou pelo mercado de imitação. As cópias
Enquanto o artista acadêmico tinha que chegavam a alcançar preços mais altos que os das
subordinar sua produção ao modelo e ao tema, o obras originais. O desenvolvimento de técnicas de
artista moderno, que quisesse comercializar sua reprodução – como a fotografia e a litogravura –
obra, deveria respeitar o formato. No caso das comprometeu esse mercado.
artes plásticas, significava que a produção deveria
permanecer ligada ao suporte que a tornava O novo sistema repousou também
identificável no mercado, ou seja, à pintura e à sobre outra convenção de qualidade: a
escultura. Ambas deveriam desenvolver-se dentro originalidade, compreendida nos seus

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dois sentidos usuais de autenticidade e Constituindo-se em um momento de
de inovação. (...) Em vez de enfrentar ampliação da cultura, operando na contramão desse
a concorrência dos procedimentos movimento, o campo de arte moderna, segundo a
fotográficos na produção de imagens, designação de Bourdieu, começou a se organizar
a pintura tem o interesse de afirmar a no início do século XX em torno da produção
sua singularidade e de evidenciar as das vanguardas artísticas européias. O mercado
particularidades que a diferenciam da moderno, que se formou no final do século XIX em
fotografia. Duas características serão torno dos impressionistas, foi uma de suas matrizes.
realçadas: a não reprodutibilidade do Na ocasião, o espaço de circulação e de divulgação
suporte e a liberdade de composição da obra dos independentes era a boêmia, que até o
(MORAUX e SAGOT-DUVAURAUX, final da década de 1870, na França, foi uma forma
de afastamento da vida comum, de oposição ao
1992: 50-51).
modo de ser burguês, em nome da arte. O artista
boêmio, marginalizado socialmente, encarnava
O terceiro critério, associado ao segundo,
o mito da individualidade, que se exprimia pela
tende a valorizar as obras identificadas com o
liberdade artística. A vida boêmia emergiu no início
binômio ruptura-inovação que emergiam como
da construção do mundo burguês, desenvolvendo-
produtos da autoria de um gênio criador. Para os se em áreas onde seus limites e fronteiras não eram
sociólogos Harrison e Cynthia White, são os artistas claros e delimitados (BUENO, 2001).
e não as obras o foco do sistema institucional Com o florescimento de um mercado de
comerciante-crítico de arte, que caracteriza o bens simbólicos, a partir da década de 1880, a
mercado moderno (H e C. WHITE, 1965). O boêmia passou por uma transformação. Deixava
critério de não-reprodução passa a reforçar também de ser um recurso para o isolamento social, para
a valorização do suporte como objeto único, se constituir numa estratégia publicitária (SEIGEL,
criado pelo artista em detrimento da imagem. A 1992); vendia formas artísticas inovadoras,
preponderância da liberdade de criação e das formas vendendo um novo estilo de vida. As formas
artísticas inovadoras passaram a ser associadas com
inovadoras privilegiou os movimentos artísticos
personagens extravagantes, gênios criadores, como
fundados na ruptura com a representação. Essa
Pablo Picasso, artistas malditos, como Vincent
atitude, posteriormente, levou a uma valorização das
van Gogh, confinados na boêmia pela “falta de
expressões abstratas em detrimento das figurativas.
sensibilidade do grande público’. Foi o nascimento
Em suma, unicidade e originalidade passaram a se
do mito da vanguarda, matriz ideológica de uma
constituir em fundamentos econômicos da obra cultura de bens restritos. A passagem do século no
de arte no mercado. Ao contrário do que afirmou cenário artístico francês testemunhou a emergência
Walter Benjamin, sobre a perda da aura e do valor de um duplo fenômeno: o reconhecimento oficial,
de unicidade da obra de arte no mundo moderno com certo atraso, da estética inovadora – na obra
(BENJAMIN, 1983), são critérios recentes, dos impressionistas e pós-impressionistas – e sua
produzidos pelo mercado na modernidade. identificação com a figura do artista-maldito.

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Embora a arte moderna mantivesse um centro O campo de arte moderna se fortaleceu
geográfico – a Europa Ocidental, particularmente a no início do século com a expansão do mercado,
França – , a história da sua produção, do mercado e em torno das vanguardas modernistas européias e
do campo artístico liga-se à internacionalização e à dos salões dos milionários intelectualizados norte-
desterritorialização. Com o sucesso internacional do americanos, consolidando-se e autonomizando-se
impressionismo, Paris converteu-se numa espécie na década de 1930, nos Estados Unidos. Para que
de Meca da modernidade artística, atraindo artistas um campo se consolide e se autonomize, de acordo
de diferentes partes da Europa, transformando o que com a perspectiva de Bourdieu (1982 e 1996), faz-se
designamos como modernismo francês, ou vanguardas necessário cumprir algumas etapas e reunir alguns
européias, num imenso caldeirão cultural. pré-requisitos básicos.
Inicialmente, é vital que o espaço se
O campo artístico moderno desenvolva a partir de instituições e agentes
específicos, conduzidos por regras próprias e livres
Se o mercado de arte moderna nasceu da gestão de instâncias externas, como o Estado, a
na França, em torno da galeria de Paul Durand Igreja e as Cortes que, em outros tempos, legislaram
Ruel e da obra dos impressionistas, viabilizou-se o mundo da arte. Nos Estados Unidos a partir de
economicamente graças ao capital dos milionários 1929, desenvolveu-se uma rede de instituições
norte-americanos. As formas inovadoras, associadas modernas. Seguindo a tendência imposta pelas
a um novo estilo de vida, ameaçavam a estabilidade galerias de arte de Nova York, a produção
da cultura tradicional européia, já abalada. Pela européia foi priorizada. O MoMA era a primeira
mediação de alguns artistas norte-americanos, base sólida na construção de um campo artístico
como Mary Cassat, o impressionismo foi descoberto moderno: institucionalizou, divulgou e, sobretudo,
pela América do Norte – primeiro, por meio dos passou a elaborar uma definição do que seria arte
turistas, e, mais tarde, pelas exposições organizadas moderna. O primeiro passo foi a delimitação do
por Durand-Ruel, em Nova York e Chicago. conceito: “Moderno não é sinônimo para corrente,
No início do século XX, milionários contemporâneo ou novo” (Alfred Barr, diretor do
intelectuais, como Gertrud e Leo Stein, trocavam MoMA). Continuou delimitando através da seleção
os Estados Unidos por Paris. Nos salões parisienses de exposições. Na seqüência, formou-se uma crítica
desses norte-americanos desenvolveu-se um especializada, com intelectuais como Clement
mercado para a vanguarda européia. Nas décadas de Greenberg, e historiadores da arte, como Meyer
1910 e 1920, a arte européia já vendia muito bem Schapiro, que construíram, a partir desse espaço,
nas galerias especializadas em Nova York. No final uma teoria da arte moderna e uma ideologia estética
da década de 1920, as corporações americanas, que do modernismo (BUENO, 2001).
investiam em arte antiga, passaram a investir em A iniciativa de fundar o MoMA e de divulgar
arte moderna. Em 1929, foi fundado o Museu de sua programação de exposições trouxe projeção
Arte Moderna de Nova York (MoMA), em torno da internacional para a arte européia e o mundo
obra dos modernos europeus (BUENO, 2001). artístico nova-iorquino. A legitimação da produção

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norte-americana, desenvolvida fora dos padrões Ao mesmo tempo, temos uma mudança na
modernistas, seria construída em um segundo própria condição de artista. O acadêmico, formado
momento, em meados da década de 1940. na imitação dos grandes mestres, operava com
O segundo movimento em direção à modelos pré-estabelecidos, na construção de uma
autonomização do campo deu-se em torno da representação oficial da sociedade, onde o tema
definição dos objetos de disputa em seu interior, com imprimia o tom à linguagem. Numa cultura artística
base nos debates sobre a autonomia da arte. O início, fundamentada nas obras, eram elas que faziam a
ironicamente, foram os congressos organizados reputação de seus criadores. No novo mundo que se
pelo Partido Comunista Internacional. Ali, sob constitui – com a implosão dos modelos e a ausência
o clima tenso da disputa entre Trotsky e Stalin, de novos critérios –, a partir de uma produção cada
foi colocada em pauta a questão da arte engajada vez mais segmentada, funda-se uma política de
(GUILBAUT, 1992; BUENO, 2001). Esse debate, autores. Os autores, reconhecidos socialmente pelo
produto da atmosfera política e social da época, mercado associado ao campo artístico, atuam como
estava associado à emergência de uma sociedade uma marca que imprime legitimidade ao conjunto
de cultura de massa, desenvolvendo-se em escala de suas obras.
transnacional, no momento em que essa assumia Apesar de a Academia imprimir uma
formas – com o nazismo, o fascismo, o stalinismo, dimensão intelectual ao trabalho do artista, ele
a indústria cultural – que a transformavam numa permanecia atrelado ao artesanato e ao domínio da
experiência assustadora. No campo das artes técnica, que lhe respaldavam o padrão estético vigente.
plásticas foi Clement Greenberg (1996: 22-39) o A despeito de sua vontade, o acadêmico ainda estava
principal artífice de uma concepção formalista de preso ao domínio do metier. Foi apenas no século
arte, pensada como uma estratégia de contraposição XIX que conseguiu superar tal constrangimento.
da vanguarda à cultura de massa, via para preservar Com a industrialização, surgiu um novo universo
a autonomia da arte. de coisas prontas – não apenas telas e tintas, mas
Podemos afirmar que, em torno dos anos 30 toda sorte de materiais –, liberando o artista da
– momento em que se unia vanguarda e teoria crítica atividade artesanal. Se ela permanece – e passa até a
à autonomia da arte –, verificou-se, historicamente, ser valorizada –, será em decorrência de uma opção,
o processo de autonomização do campo artístico, uma escolha, ou mesmo uma determinação social,
assinalando a consolidação desse espaço (BUENO, e não mais de uma determinação material. Sendo
2001). Em outras palavras, o campo passou, a assim, o artista moderno, como observou Nobert
partir de então, a ser movido por uma dinâmica Elias, em sua reflexão sobre Mozart, autonomiza-
própria, como uma espécie de sociedade dentro da se simultaneamente ao controle ideológico da
sociedade, operando por meio de regras gestadas instituição e da submissão ao métier. “A passagem
em seu interior (BOURDIEU, 1982 e 1996). Uma da arte artesanal à arte independente é o sintoma de
condição necessária para se poder atuar nesse um novo avanço do processo civilizatório: o artista
espaço é o domínio do habitus que lhe é próprio, ou está mais amplamente remetido à regra que impôs
seja, da internalização do quadro de regras a partir a si próprio para o controle e a canalização de sua
do qual ele passa a se dar. imaginação” (ELIAS, 1997: 226).

BUENO, Maria Lúcia – Do moderno ao contemporâneo: uma perspectiva ... – p. 27 - 47 37


Muito se enfatizou o aspecto de A sociedade moderna, pautada por tantas
emancipação do movimento de autonomização transformações, e em constante mutação, promove,
do artista, mencionado com freqüência como uma como já observou Walter Benjamin, alterações na
conquista. Mas, é preciso atentarmos para outro percepção, na sensibilidade das pessoas, forjando
lado desse processo: ele não veio em resposta a uma um estilo cognitivo particular. Uma das marcas
demanda – como a Academia do século XVII –, foi desse estilo cognitivo é a descontinuidade das
produto de uma condição histórica nova, diante
referências modernas em relação às referências dos
da qual os artistas, sem escolha, foram forçados a
períodos anteriores. Para Giddens,
se submeter. Por um lado, a autonomia é liberação
e, ao mesmo tempo, desamparo – “a tirania das
(...) uma das características mais óbvias
possibilidades”, como frisou Hanna Arendt –, a
solidão e o fim dos parâmetros. Por outro lado, a que separam a Era moderna de qualquer
autonomia da representação, dos modelos acadêmicos outro período precedente é o extremo
e da artesania não significou a liberação de todos os dinamismo da modernidade. O mundo
constrangimentos, mas apenas que eles mudaram. moderno é um ‘mundo desenfreado’:
não só o ritmo da mudança social é
Mudanças perceptivas muito mais rápido do que em qualquer
outro sistema anterior, como também
Os modelos perceptivos, isto é, a o é o seu âmbito ou a profundidade
sensibilidade das pessoas, são fenômenos históricos. com que afeta as práticas sociais e os
Cada sociedade, cada cultura desenvolve, conforme modos de comportamento pré-existentes
Michael Baxandall (1991 a, b), um estilo cognitivo (GIDDENS, 1994: 14).
próprio, partilhado pelos que dela fazem parte,
deixando também sua marca na produção artística. Os habitantes dessa nova realidade social,
O estilo cognitivo é informado tanto pelo repertório indistintamente, são afetados por tais alterações. A
cultural da sociedade – as convenções comuns –, subversão da concepção tradicional de tempo e de
quanto pelo modo como elas experimentam as espaço está entre as principais mudanças perceptivas
mais diversas experiências cotidianas. As pinturas do século XIX.
do Quatrocentto italiano, analisadas por Baxandall Até o século XVIII, tempo e espaço eram
(1991, a), por exemplo, são documentos materiais indissociáveis e percebidos como uma materialidade
da sensibilidade daquela sociedade, trazendo- concreta. Sob o impacto acelerado da modernização
nos informações variadas sobre ela. Falam sobre desvincularam-se, tornando-se cada vez mais
o seu conhecimento de geometria, como também abstratos. Em nosso universo, move-se, num
processo de alteração constante, revelador
da maneira como contavam barris, dançavam
da instabilidade que se instala na vida. Temos
e rezavam. Nesse sentido, o conceito de estilo
um tempo social, globalizado de um lado, e
cognitivo é mais amplo que o de habitus forjado por temos a sobrevivência de percepções temporais
Bourdieu, uma vez que suas matrizes extrapolam muito diferenciadas de outro. Tempo e espaço
as fronteiras da comunidade de iniciados, onde o se transformaram em tema da obra de muitos
habitus se constitui. artistas modernos e em obsessão, matéria-prima

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principal na produção de grande parte dos artistas está mergulhado a partir de um discurso afinado com
contemporâneos. o seu tempo. É necessário que cada qual, apoiado
O movimento de desterritorialização, de em sua experiência, construa a sua linguagem. Esse
desenraizamento, acentuando a instabilidade das é o desafio. Nessa razão, nessa nova condição – do
referências, é outra matriz da sensibilidade moder- artista moderno ao contemporâneo –, temos um
na. No turbilhão da vida moderna, um segmento predomínio da linguagem sobre o tema.
de novos artistas passa a utilizar o próprio corpo
Num contexto em que afloram muitas
– única referência material tangível – como veí-
modalidades de artes e de segmentos diferentes
culo de percepção e matéria-prima de suas obras.
autodenominando-se artistas, sem o amparo de uma
Visto que habitam o espaço onde exercem essa
instituição que detenha o controle da nomeação, o
percepção, o artista não o apreende mais de fora,
vive-o em seu interior – é impregnado por ele. Para moderno emerge como uma categoria entre muitas
Merleau-Ponty passa a ser ”... um espaço contado outras. A Academia estabelecia limites para as
a partir de mim como ponto ou grau zero da es- artes, fixando parâmetros que determinavam quem
pacialidade. Eu não o vejo segundo seu invólucro era artista e o que era obra de arte. Já num outro
exterior, vivo-o por dentro, estou englobado nele. contexto em que o mundo das artes é regulado
Afinal de contas, o mundo está em torno de mim” pelo mercado, os artistas, sem parâmetros, ficam
(MERLEAU-PONTY, 1980: 100). O poeta francês compelidos a dialogar eternamente com seus
Charles Baudelaire, um dos primeiros a exprimir contemporâneos, apresentando-lhes argumentos
essa nova sensibilidade, identificou na experiência que confirmem sua identidade.
de um passeio na multidão um sentido de dester-
Se no universo acadêmico a definição
ritorialização, de aceleração e de solidão. A nova
precedia a produção, no contexto moderno as
sensibilidade é tão mutante, plebéia e heterogênea
classificações despontam posteriormente, quando a
quanto o modo de vida que a forjou, diante da os
produção começa a circular. Enquanto a instituição
modelos acadêmicos tornaram-se inoperantes.
acadêmica se debruçou sobre a produção, o mercado
orienta a distribuição e a circulação.
Mudança na condição de artista
Mudou a dinâmica do processo social de

O artista moderno, numa condição de construção da condição de artista, mudou também


desamparo permanente, confinado em seu universo o papel social da arte. Como diria Howard Becker,
estético pessoal, está fadado a construir o alfabeto os mundos da arte nascem e morrem (BECKER,
de uma nova arte. Criado na tradição visual 1988). Temos um mundo da arte que desaparece e
européia, imbuído de modelos que se tornaram vemos um novo mundo da arte se constituindo. No
inoperantes, não conta com outro que o substitua. mundo da arte ultrassegmentado da modernidade,
A representação – tarefa do acadêmico – tornou-se vai ser o campo da arte moderna – que se consolida
inviável. A crise da representação derivou numa crise na primeira metade do século XX – que estabelece
da linguagem. O moderno se debruça sobre outra critérios temporários utilizados para distinguir os
proposta – interpretar a sociedade mutante na qual artistas modernos dos demais no mercado.

BUENO, Maria Lúcia – Do moderno ao contemporâneo: uma perspectiva ... – p. 27 - 47 39


Refletindo sobre essa condição, no início entre os primeiros produtos desse sistema, que se
do terceiro milênio, beneficiados pela perspectiva fortaleceram nos anos 1970. O número de masters
histórica, podemos começar a traçar um perfil of fine arts graduados pelas escolas e universidades
desse artista moderno e, por extensão, do artista americanas cresceu de 525 por ano, em 1950, para
contemporâneo, compreendido como sua versão 8.708 em 1980 (CRANE, 1987). Se, nos anos 50 e
radical e consolidada. Fixamos o impressionismo início dos 60, a formação universitária era rara, nos
como um momento de passagem, bem como o anos 70 era quase um pré-requisito, quando entre 41 a
surgimento dos primeiros modernos a partir dos 51 % dos artistas das tendências dominantes possuíam
pós-impressionistas. Uma das características desse PhD em Artes. A partir de então, as universidades
artista moderno é o fato de ele trabalhar, baseando- substituíram a boêmia como esfera de debates e lugar
se na sua condição de desamparo. Evita o caminho de reunião dos artistas. Nesse contexto, as mesas dos
da produção de gênero, busca constantemente bares foram trocadas pelas cantinas das escolas.
reinventar seu ofício, uma vez que a modernidade
– como observou Octavio Paz – nunca é a mesma, é II. O mundo da arte contemporânea
sempre outra (PAZ, 1984).
Outro traço que une esses artistas é a postura Várias abordagens recentes têm se detido na
assumida ante a arte clássica: contrapondo-se a caracterização do universo da arte contemporânea,
ela ou tentando resgatá-la, ou mesmo procurando relacionando-o com o universo da arte moderna e,
reescrevê-la, buscam quase sempre uma via portanto, compreendendo ambas as expressões a
alternativa fora dela. A arte antiga é com frequência partir de uma mesma tradição. Uma vez que estamos
um referencial para a construção das identidades dialogando com algumas dessas reflexões, faz-se
subsequentes. É somente através dessa relação que necessário mencioná-las, mesmo que de passagem.
podemos compreender tanto as rupturas modernas, Em Arte Contemporânea, Anne Cauquelin
quanto os surtos historicistas contemporâneos. (s/d) afirma que o que separa a arte contemporânea
A partir dos anos 1960, os principais da moderna não é tanto uma mudança estética,
veículos de circulação e de divulgação das novas mas sim a forma de organização social do mundo
produções foram as universidades, redutos da da arte. O mundo da arte moderna seria regido
alta-cultura, com as quais o campo artístico se pelo mercado, enquanto o da arte contemporânea
desenvolveu articulado. Tudo começou com viria a operar com base no regime da comunicação.
os artistas – os expressionistas abstratos e os A fronteira é a década de 1960. O regimento do
professores da Bauhaus –, assimilados pelo sistema mercado numa cultura de iniciados, em torno
acadêmico. Consequentemente, um dos canais para da comunidade do gosto, liga-se ao universo que
os aspirantes se introduzirem no campo passou a ser Bourdieu designa como campo artístico autônomo.
as escolas, como a Black Mountain, onde se podia O mundo da arte contemporânea, fundado numa
conviver com artistas, como Mark Rothko, Robert ampliação da esfera artística, atua, assim, no
Motherwell; e com historiadores, como Meyer sistema de redes e depende da divulgação, levando
Shapiro. Robert Raushenberg e Jasper Johns estão a um comprometimento inevitável da autonomia

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do campo. Um dos aspectos importantes da obra Em um texto posterior, Heinich vai mais
de Cauquelin é o papel preponderante que atribui à adiante:
mídia na ordem contemporânea.
Para Nathalie Heinich, é na análise Em relação às querelas do século
das formas de recepção e de distribuição da passado, a especificidade da situação
produção artística que encontramos a chave da atual reside no fato de que não
mudança de registro que separa a arte moderna da existe mais um único mundo da arte
contemporânea. Socióloga, pesquisadora do CNRS, (manifestado nos salões de então) nem
Heinich, que iniciou sua trajetória acadêmica no uma definição do que são ou devem
grupo de Pierre Bourdieu, vem trabalhando em ser as artes plásticas, mas várias. As
torno desse tema desde o final da década de 1980, diferentes maneiras de fazer arte não
com uma bibliografia considerável de trabalhos estão mais dispostas gradativamente
publicados, dos quais destacamos Le Triple Jeu de num único eixo, entre pólo inferior e
L’Art Contemporain – Sociologie des arts plastiques superior, mas em vários eixos. Assim,
(1998). Em sua tese principal, postula que a arte as querelas não dizem mais respeito
contemporânea não é um critério temporal, é uma somente a questões estéticas de
categoria estética, análoga ao que se denomina no avaliação (“É mais ou menos bonito ou
tempo da pintura histórica de “gênero”. Nas palavras bem feito”) e de gosto (“Gostamos mais
da autora, ou menos”), mas a questões ontológicas
ou cognitivas de classificação (“É ou
O gênero arte contemporânea consiste não é arte”) e de integração ou exclusão
apenas numa parte, num segmento da (“Aceito ou não aceito tal proposição
produção artística. Ele é sustentado enquanto obra de arte”). Para tomar
mais pelas instituições públicas do que
um exemplo paradigmático: o problema
pelo mercado privado, ele se encontra
não é que Duchamp fizesse uma
no topo da hierarquia em termos de
pintura ruim (como foram acusados os
prestígio e de preço e estabelece relações
estreitas com a cultura culta e o preço impressionistas), mas que o que ele fez
(...). Arte contemporânea aquilo que não é pintura, nem escultura, embora
é designado como tal pelos atores, pretendendo ser arte (HEINICH,
mas vamos nos dar conta que este uso 2008: 180).
corresponde também a uma realidade
estética: se a arte contemporânea é O norte-americano Howard Becker (1988),
um gênero da arte atual, não é apenas trabalhando dentro da tradição da Escola de Chicago
pelas características sociológicas que
e do interacionismo simbólico, trata a sociologia da
enumeramos, mas também por suas
arte como uma vertente da sociologia do trabalho.
propriedades artísticas (HEINICH,
Preocupado com a organização social do trabalho
1998: 12).
artístico, seu conceito de mundo da arte é abrangente

BUENO, Maria Lúcia – Do moderno ao contemporâneo: uma perspectiva ... – p. 27 - 47 41


o suficiente para abarcar obras de arte de diferentes desteritorializar a análise da arte do espaço da alta-
reputações, como as pinturas de Ticciano e as tiras de cultura e da tradição artística norte-americana e
quadrinhos, as músicas dos filmes de Hollywood, as européia para uma esfera mais ampla, que pode
canções de rock e a obra de Mozart. Com referência abarcar a indústria cultural e a produção realizada
à produção artística no espaço contemporâneo, na Ásia e na América Latina.
mostra-se particularmente interessado em A obra de Néstor Garcia Canclini avança
compreender a perenidade das convenções e das com base nessa reflexão, na medida em que alarga
tradições em uma sociedade em permanente as fronteiras do mundo da arte contemporânea,
transformação. Observa que é evidente que a cultura construindo uma leitura a partir da América Latina.
moderna se pauta pela mudança, e que se existe alguma Propõe uma análise a respeito da sensibilidade
coisa que necessita de explicação é a estabilidade. estética do final do século XX, que é extremamente
elucidativa, sobretudo quando se debruça sobre a
Sendo assim, a interpretação das transformações
produção latino-americana, evitando a armadilha
artísticas repousa paradoxalmente sobre a noção
dos rótulos e da adjetivação pouco explicativa,
de convenção. Somente numa cultura em que
de grande parte das teorias vigentes sobre a pós-
coexista uma multiplicidade tão extensa de tradições
modernidade. Imprime uma densidade e uma
e convenções, como a contemporânea, pode-se
qualidade à produção contemporânea sem deslizar
permitir um ritmo tão acelerado de transformações.
para o ufanismo multiculturalista. Nem pós-
As culturas primitivas, com um repertório muito
modernismo nem multiculturalismo, ele recorre ao
limitado de tradições, tendem a uma dinâmica social
conceito de culturas híbridas para enfocar a cultura
extremamente conservadora. A teoria de Becker,
de fronteira globalizada – entre a modernidade e a
elaborada na virada da década de 1970 para a de
tradição; entre o culto, o popular e o massivo; entre
1980, já traz uma perspectiva da sociedade globalizada o centro e a periferia. Um fenômeno cultural novo
– mesmo sem trazer à tona tal discussão em que se que se desenvolve em decorrência da expansão
acentua tanto o escopo das transformações, quanto a da desterritorialização, da reterritorialização e
multiplicação das convenções. do descolecionamento, um processo histórico
Os mundos da arte que vão processar essa desencadeado pela modernidade globalizada.
produção – através do mercado e da indústria A formação de coleções e o descoleciona-
cultural – estão preparados para se adequarem ao mento são duas modalidades de desterritorialização,
ritmo das transformações. Becker observa que na ambas ligadas a momentos históricos distintos da
sociedade do final do século XX, na qual o mercado modernidade, respectivamente a Era internacional
se alimenta da inovação, os formatos se tornam cada e a Era globalizada (a partir da década de 1960). Na
vez mais flexíveis, assimilando rapidamente todas Era internacional, a modernidade tem um centro
as eventuais rupturas. Portanto, com relação ao irradiador, a Europa Ocidental, que procura orga-
binômio ruptura/inovação, não podemos mais falar nizar hierarquicamente as diferenças. É uma forma
de marginalidade artística. Um dos pontos fortes de estabelecer hierarquias, desterritorializando-as e,
da obra de Becker, que a distingue das abordagens ao mesmo tempo, reterritorializando-as, de acordo
anteriores, deve-se ao fato de o autor conseguir com uma nova lógica. Para Canclini,

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A formação de coleções especializadas o repertório das grandes obras, ou ser
de arte culta e folclore foi na Europa popular porque se domina o sentido
moderna, e mais tarde na América dos objetos e mensagens produzidos
Latina, um dispositivo para organizar por uma comunidade mais ou menos
os bens simbólicos em grupos separados fechada (uma etnia, um bairro, uma
e hierarquizados. Aos que eram cultos classe). Agora essas coleções renovam
pertenciam um certo tipo de quadros, sua composição e sua hierarquia com as
de músicas e de livros, mesmo que não modas, entrecruzam-se o tempo todo, e,
os tivessem em sua casa, mesmo que ainda por cima, cada usuário pode fazer
fosse mediante o acesso a museus, salas a sua própria coleção. As tecnologias
de concerto e bibliotecas. Conhecer de reprodução permitem a cada um
sua organização já era uma forma montar em sua casa um repertório de
de possuí-los, que distinguia daqueles discos e fitas que combinam o culto
que não sabiam relacionar-se com elas com o popular, incluindo aqueles que
(CANCLINI, 1997: 302). já fazem isto na estrutura de suas obras
(CANCLINI, 1997: 304).
As coleções são a base do que Bourdieu
chamou de autonomização dos campos. Na Era das Além dos processos tratados por estes au-
coleções, as fronteiras ainda estão bem demarcadas tores citados, podemos apontar duas características
e a circulação é controlada. sobre a arte contemporânea; ambas decorrentes da
A globalização (IANNI, 1995; ORTIZ, 1994) evolução de processos já presentes na arte moderna
instala-se quando as fronteiras se desorganizam. e que tornam a sua dinâmica diferenciada da arte
Com a desterritorilização do mercado de trabalho e o anterior: o aprofundamento da indeterminação ma-
desenvolvimento da indústria cultural, a reflexividade terial e tecnológica e a ampliação da influência da
acentua-se com o aparecimento de uma nova atmosfera mídia no interior dessa esfera.
cultural em que circulam, desencaixados, conteúdos
simbólicos e tradições gestados em diferentes regiões Indefinição material do mundo da arte
do planeta. Esse é o contexto do processo que Canclini
denomina de descolecionamento: O universo da arte contemporânea não
pode mais ser identificado a partir de uma base
A agonia das coleções é o sintoma material específica, nem mesmo pelo exercício de
mais claro de como se desvanecem as determinadas práticas. Pesquisas anteriores que
classificações que distinguiam o culto realizamos sobre o processo de trabalho e o ateliê do
do popular e ambos do massivo. As artista contemporâneo apontaram a presença de uma
culturas já não se agrupam em grupos grande diversidade material, envolvendo o exercício
fixos e estáveis e portanto desaparece a de competências muito distintas. Essa expansão
possibilidade de ser culto conhecendo do repertório técnico e da base material ampliou

BUENO, Maria Lúcia – Do moderno ao contemporâneo: uma perspectiva ... – p. 27 - 47 43


as fronteiras das artes plásticas, circunscritas até desafio é a mídia de massa. Essa uma das principais
cem anos atrás ao meio da pintura e da escultura, mudanças que assinalam a passagem do mundo da
aproximando-as de outros domínios e linguagens. arte moderna para o mundo da arte contemporânea.
Em um primeiro momento, registramos um A contraposição das trajetórias de Vincent van
diálogo intenso com a fotografia, o cinema e as artes Gogh, Marcel Duchamp / Jackson Pollock, Andy
cênicas. A seguir, essa relação extrapolou o âmbito Warhol, Joseph Beuys / Jean-Michael Basquiat,
das artes, enveredando por outros territórios, como Julian Schnabel e Jeff Koons é ilustrativa em direção
o vídeo, a internet, a alta tecnologia de um modo da construção do prestígio artístico: da legitimidade
geral, a moda, e assim por diante, indefinidamente. adquirida no interior de um mercado associado ao
As conseqüências dessa amplificação campo artístico à consagração na mídia de massa.
alcançam noções de espaço e de tempo, afetando Jackson Pollock – um personagem
as linguagens e a forma de construir problemas. de passagem entre o modernismo histórico
A pintura também é atingida, devendo estar se e a modernidade consolidada – lançou mão,
redimensionando constantemente, em função de conscientemente, dos dois recursos de promoção.
mudanças profundas geradas nas estruturas de De um lado, a reputação garantida no interior
percepção dominantes. do campo – mas, que não lhe fornecia retorno
Os artistas contemporâneos estão econômico –, através de uma estratégia articulada,
ligados por uma história e um repertório em Nova York, em meados da década de 1940, por
conceitual comum. Cabe às novas instituições, às alguns dos mais importantes agentes do campo2. Por
universidades, às publicações, aos intelectuais e aos outro lado, um sucesso comercial momentâneo, mas
agentes do mundo da arte contemporânea a tarefa estrondoso, em agosto de 1949, quando a revista
fundamental de se redefinirem constantemente, Time publicou matéria de capa com o artista, sob
para assegurarem um equilíbrio mínimo nessa o título irônico: “Seria Jackson Pollock o maior
atmosfera de instabilidade, possibilitando, assim, a pintor vivo americano?”. Era a imprensa popular
manutenção de elos de articulação que garantam, ridicularizando a vanguarda, apresentando o artista
desse modo, a integração de um universo, em que como um gênio ensandecido e incompreendido
as fronteiras encontram-se esgarçadas. pelo público. Graças a essa matéria, Pollock vendeu
toda a sua produção a preços astronômicos para a
Arte e mídia época (GUILBAUT, 1992). Foi um curto período
de sucesso econômico, com a carreira do artista,
No espaço altamente segmentado da arte voltando a correr nos trilhos da esfera restrita do
contemporânea, marcado pela pluralidade, um campo. A morte violenta de Polllock3, em 1957,
dos maiores constrangimentos com o qual o artista trouxe novamente seu nome para grande mídia,
se defronta é a preponderância da mídia. Se, na revestindo-o de uma aura de maldito que o aproxima
anomia moderna, os artistas se defrontam com atualmente de Vincent van Gogh.
os colecionadores e os marchands, enfim, com o O campo vende o autor e a mídia mistura-o
mercado, na entropia contemporânea, o grande com o personagem. Na década de 1960, Andy Warhol

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construiu um personagem como parte da estratégia Notas
para obter seu reconhecimento como autor. Uma
conduta herética, que desagradou os integrantes do 1 Para Howard Becker, toda produção artística é resulta-
do de uma rede de operações coletivas, os mundos da
campo artístico, mas que funcionou. A ironia maior, arte. Um mundo da arte é formado por todas as pes-
e que traz à tona a ambiguidade desse processo, soas cujas atividades, artísticas ou não, são necessárias
para a produção de obras muito particulares que nes-
é o fato do foco principal da obra de Warhol te espaço (e em outros, eventualmente) são definidas
girar em torno dos efeitos da mídia na sociedade como obras de arte. Os mundos da arte produzem as
obras e lhes conferem também um valor estético. São
contemporânea. Joseph Beuys foi outro artista, configurações históricas, que mudam constantemen-
consagrado no interior do campo, que recorreu à te, à medida que se modificam o recrutamento de seus
membros, o volume de recursos disponíveis e os tipos
mídia para fazer a crítica da institucionalização da de público. “Os mundos da arte nascem, crescem, se
arte e para divulgar sua obra, que colocou a serviço transformam e morrem. Os artistas que dele partici-
pam devem se defrontar com problemas diferentes
de várias causas, entre as quais, a defesa da ecologia. segundo o estado do seu mundo da arte” (BECKER,
Uso da mídia de massa, arte a serviço de causas 1988: 347).

políticas e sociais, autores-personagens, e assim, 2 O diretor do Museu de Arte Moderna, a dona da prin-
cipal galeria de arte e o crítico de arte mais influente,
gradativamente, a autonomia do campo artístico
Clement Greenberg. Ver Crow, 1996 e Bueno, 1999.
foi ficando cada vez mais comprometida, à medida
3 Jackson Pollock morreu em acidente de automóvel: diri-
que a autonomia da arte se revelava como uma gindo embriagado, espatifou seu carro contra uma árvore.
impossibilidade na sociedade moderna e que os
artistas não tinham interesse em preservá-la. Referências Bibliográficas
Até a consolidação da globalização,
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