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Editor:
Rízio Macedo Rodrigues
Capa:
Bruno Lemos
Revisão:
Dejair Martins
Diana da Silva Rodrigues
Frederico Cabala
Juliano Machado Meanda
Regina Peixoto Carneiro
Florencia Garramuño
Universidad de San Andrés, Argentina
CONSELHO CONSULTIVO:
Alvaro Santos Simões Junior, UNESP, Assis
André Dias
Professor e Vice-coordenador
PPG em Estudos de Literatura da UFF.
SUMÁRIO
Autores
Pangeia Editora
RESUMO
O presente artigo visa discutir como Carlos Drummond de Andrade, em A rosa do povo – livro
que traz poemas elaborados em uma fase mais madura do escritor modernista –, resiste à
permanência em uma só dicção, construindo uma poética nessa obra que ora se destina à
coletividade, ora se volta para o próprio poeta. Por isso, serão analisados poemas que trazem um
discurso de comunhão alicerçado nas ideologias sociopolíticas de Drummond na década de 1940,
como também composições que exploram única e exclusivamente uma atitude de reclusão do
escritor, que, além de evocarem figuras como Itabira e o passado familiar do poeta, também se
contrapõem ao canto geral de coletividade, criando um aparente paradoxo. A fim de fundamentar a
discussão, recuperaremos o brilhante estudo a respeito de poesia e resistência de Alfredo Bosi (2000)
e a análise dos tensionamentos existentes em A rosa do povo feita por Antonio Carlos Secchin
(2014).
A partir do conceito de literatura expandida, fenômeno que pode ser compreendido como o fato
das narrativas contemporâneas, assim como seus escritores, não se limitarem a transitarem tão
somente nos seus meios e suportes, ou seja, não se enquadrarem numa literatura puramente literária
em que procedimentos, meios e condições de produção não obedecem unicamente a esse campo,
entendemos que os textos autofictícios abrem diversos questionamentos sobre o estatuto da ficção,
sobre a configuração da figura do autor e as delimitações do campo literário, essas narrativas também
possibilitam novas formas contemporâneas da escrita e da literatura. Nesse sentido, a articulação
entre performance e escrita e as nuances da autoficção ao embolar ficção e realidade são questões que
gostaríamos de explorar a fim de ilustrar um caso típico que pode ser compreendido como essa
expansividade do campo da literatura contemporânea latinoamericana. A escrita performática da
autoficção causa um efeito sobre o texto que impossibilita a leitura com base nas categorias de
gêneros definidas pelo campo da literatura, tampouco o comportamento do autor se iguala ao de sua
categoria na literatura autônoma. Portanto, consideramos que este tipo de escritas, atentando seus
efeitos no texto e no leitor e o panorama literário contemporâneo explorado pela crítica, contribui
para que haja uma expansividade do campo literário e consequentemente um não pertencimento
exclusivo a esse campo, tornando uma literatura, cada vez mais, “fora de si”.
Museu de Tudo, livro de João Cabral de Melo Neto publicado em 1975, apresenta uma
contradição logo no título. Há um paradoxo entre a seletividade esperada de um museu e a variedade
temática apresentada nos poemas. Dentre os assuntos, é possível perceber que há uma forte presença
da memória e considerações sobre o tempo. Para Senna (1980), a memória permeia a obra cabralina e
se adensa gradativamente. O século XX, justamente, é marcado pela emergência da memória como
uma preocupação constante na produção artística e literária. Assim, nos interessa revisitar a poética
de João Cabral a partir do novo fôlego proporcionado pela contemporaneidade e investigar como
tempo e memória se fabricam em Museu de Tudo não apenas como temas, mas como forças que
atravessam o livro. Mais do que uma análise temática, procuraremos discernir como o autor mobiliza
a memória como uma força constituinte da sua escrita. Trata-se de um movimento de reconhecer a
memória não por um viés sociológico, mas, antes, estabelecer como a recordação - no sentido de
Assmann (2011) - se fabrica entre poeta e obra. Se João Cabral era publicamente conhecido por sua
racionalidade e cuidado formal, percebemos que na obra em questão emergem potências outras para
configurar o poético.
Este trabalho visa a refletir, no contexto da obra poética de Luís Quintais, poeta português
contemporâneo português, a constituição da subjetividade lírica em relação ao espaço urbano e à sua
antropologia. À vista disso, examino a técnica de observação lírica estabelecida pelo poeta cujo
processo muito se assemelha à técnica fotográfica, por meio da qual ocorre a focalização de um
determinado aspecto da composição fotográfica em função do enquadramento escolhido. Associando
duas textualidades que concernem à produção artística desse autor: a sua poesia e a sua fotografia,
observo que Quintais provoca a contemplação minuciosa de espaços que são marcados por elementos
de tensão os quais levam à percepção da ausência e das ruínas. Por fim, como base para a abordagem
teórico-crítica, vale-se dos estudos de Didi-Huberman, sobre imagem e percepção; de Roland
Barthes, sobre o signo fotográfico e de Sotang, sobre as relações entre fotografia, individualidade e
memória.
Em seu ensaio Genealogia da ferocidade (2017), Silviano Santiago traz à discussão a questão da
ferocidade em âmbito literário (principalmente a partir da obra Grande sertão: veredas, de
Guimarães Rosa) como um espelho para a ferocidade humana. A ferocidade encontrada nos livros (e
nas obras artísticas) seria demonstração de autenticidade, construto que quando observado nessas
obras provoca diversas reações (muitas vezes negativas), pois se relaciona a questões como coragem
e ousadia de se mostrar em um ambiente ou situação (ou meio artístico) diverso do apresentado na
obra. Ferocidade e autenticidade podem ser encontradas nessas obras porque em primeiro lugar
podem ser encontradas na realidade humana, e são consideradas selvagens porque se contrastam com
o que é domesticado ou esperado. Domesticação e ferocidade são dois aspectos trabalhados por
Santiago em vários âmbitos, e sugerem que o desenvolvimento do homem está muitas vezes no
contraste entre essas facetas. A partir dessas considerações este artigo aborda a ferocidade e a
autenticidade desde a perspectiva socioemocional, a partir dos trabalhos de Abed (2016), Sanchez e
Ledesma (2007) e Wood et al. (2008), na qual o olhar para o conhecimento de si permite reconhecer
estes movimentos (de ferocidade e autenticidade) dentro do homem. Perguntamo-nos se podem ser
associadas aos “cinco grandes fatores” da personalidade (conhecidos também como Big five).
No presente artigo busquei estabelecer alguns apontamentos de comparação entre três romances
contemporâneos do Cone Sul que lidam com o passado ditatorial dessa porção da América Latina.
Através de um suporte teórico advindo da filosofia contemporânea, com conceitos de comum,
imunidade, e biopolítica, pretendo ler os romances como formas de figurar o passado como
experiência compartilhada, distante tanto do paradigma público (de propriedade do Estado) quanto da
propriedade privada ou familiar. Acredito que, por jogos ficcionais e narrativos, Patricio Pron em O
Espírito dos Meus Pais Continua a Subir na Chuva e Luiz Ruffato em De Mim Já Nem Se Lembra
exercitam uma espécie de revisão do passado, colocando em tensão a ligação familiar ao aparato
repressivo do Estado e o alcance desse mesmo aparato para todos os indivíduos sob o regime. Por
meio de uma aparição tangencial do passado que ambos constroem um processo de desestabilização
da propriedade do passado para jogá-lo no campo indeterminado do comum e da política. Diamela
Eltit opera uma ficcionalização distinta do passado em seu romance Jamais o Fogo Nunca, colocando
em pauta temas da intimidade, da afetividade e da ética militante na figuração de um casal que é
levado à extrema dissolução de seus corpos pela biopolítica repressiva da ditadura chilena. Pretendo
pensar, portanto, em articulações possíveis entre essas obras contemporâneas e suas figurações do
passado traumático dos regimes de exceção instaurados em Argentina, Brasil e Chile e suas
contribuições para o entendimento da contemporaneidade latino-americana.
Este artigo tem por objetivo construir uma análise do romance português contemporâneo
Desamparo, da escritora Inês Pedrosa, publicado no Brasil em 2016 pela Editora Leya. A obra possui
uma narrativa plural construída através de quatro vozes que se alternam ao longo dos trinta e cinco
capítulos do romance. Pedrosa oferece ao público uma obra que traça um panorama da sociedade
portuguesa entre os séculos XX e XXI e versa sobre múltiplos temas como o desamparo, a solidão, a
culpa, a angústia, a velhice, o abandono familiar e a violência contra a mulher. Consideraremos
alguns tópicos importantes de reflexão, como a alternância dos narradores, a descontinuidade
temporal, o resgate da memória, os espaços que se cruzam (Brasil-Portugal) e a presença do campo
como locus de representação da crise econômica que assolou Portugal entre os anos de 2010 e 2014.
Também buscaremos analisar a dimensão psíquica do desamparo, assim como compreender como e
porquê ele se apresenta nas diferentes vozes que compõem a narrativa. Nos interrogaremos: como
essas figuras comportam-se frente ao desamparo e à sensação de incompletude que assolam a
sociedade contemporânea? Como referencial teórico utilizaremos os estudos de Pierre Bourdieu,
Simone de Beauvoir e outros.
A partir do início dos anos 2000, a poetisa portuguesa Adília Lopes ocupa um lugar de destaque
na cena poética contemporânea no Brasil, seja a partir da Antologia publicada em 2002 pela editora
paulista Cosac & Naify e pela carioca 7Letras, seja pela atenção que recebe na edição da revista
Inimigo Rumor n°10, de 2001, que lhe dedica nada menos que a publicação integral do livro O poeta
de Pondichéry (1986), uma entrevista e dois ensaios críticos. Além disso, a autora e os seus textos
aparecem em poemas de muitos poetas brasileiros contemporâneos: Marília Garcia, Alice Sant’Anna,
Ana Martins Marques, Lucas Viriato, Carlito Azevedo, entre outros. Diante deste cenário receptivo
da autora portuguesa no Brasil, este trabalho buscar estabelecer um diálogo entre a obra poética de
Adília Lopes e a poesia da brasileira Angélica Freitas, que embora não cite ou faça menção à autora
portuguesa, muito se assemelha a ela no desenvolvimento de determinadas temáticas e na dicção,
elementos que explicitaremos no texto. Como aparato teórico, apoiamo-nos, sobretudo, nas teorias de
estética da recepção de Hans Robert Jauss.
Tratarei do romance O céu dos suicidas, de Ricardo Lísias, evidenciando os corpos com
depressão, ou manifestações depressivas, como o lugar distópico. Lísias é um autor paulistano com
muitas narrativas ficcionais publicadas e, a partir da morte do seu amigo suas obras mudam. O autor
começa a jogar com os limites do real e do ficcional, e adquire um tom confessional, mostrando os
bastidores da própria escrita, como é o caso da obra escolhida. Meu objetivo é pensar a questão da
felicidade a partir de O mal-estar na civilização de Freud e a dificuldade de pertencimento a partir
de Sloterdijk, No mesmo barco. E também proponho evidenciar a problemática da doença mental e a
reação da sociedade diante dela, com dois livros da Maria Rita Kehl: Tortura e sintoma social e O
tempo e o Cão: A atualidade das depressões. Assim acredito ser possível pensar o próprio corpo
como lugar distópico.
Este estudo pretende esboçar algumas aproximações entre a trilogia Geografia de Rebeldes, de
Maria Gabriela Llansol, e a escrita de mulheres místicas e beguinas que, no decorrer dos séculos XII
ao XIV, ousaram professar a fé cristã a sua maneira. Entre elas destacam-se Hadewijch e Margarida
Porete, duas importantes escritoras místicas que aparecem como “figuras” nos dois últimos livros da
trilogia. A expressão “o risco da passagem”, utilizada por Llansol em uma reflexão acerca de sua
escrita, será desdobrada nesse texto em três acepções distintas, mas igualmente transgressoras, que
dizem respeito tanto à escrita das mulheres do medievo quanto à escrita contemporânea de Llansol: a
textualidade, a mística e o erotismo. Três paragens que, afinal, fazem parte de uma mesma travessia.
Como referencial teórico, recorremos aos textos de Maurice Blanchot, Georges Bataille e Octavio
Paz. Além da crítica específica sobre a obra de Maria Gabriela Llansol, com os nomes de João
Barrento, Maria Lucia Wiltshire de Oliveira e Silvina Rodrigues Lopes.
O presente trabalho pretende apresentar o projeto de pesquisa de mestrado que vem sendo
desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura desde o primeiro semestre de
2019. Elabora-se em torno da análise de parte da obra poética de João Miguel Fernandes Jorge, poeta
português contemporâneo que passa a publicar a partir da década de 1970 e que ainda se encontra em
intensa atividade de publicação. Por esse motivo, foi estabelecido um recorte temporal que
compreende algumas obras publicadas nas décadas de 1970 e1980. Amparado pela abordagem
teórica de Michel Collot, pensador da paisagem na literatura moderno-contemporânea, tem-se por
objetivo identificar configurações de paisagens que se constituem nos poemas a partir das
experiências cotidianas do sujeito poético. Busca-se, ainda, traçar reflexões sobre o discurso lírico
considerando a noção de paisagem na construção de um olhar sobre o mundo, tornando-se possível
admitir que “a paisagem provoca o pensar” e “o pensamento se desdobra como paisagem”, como
postula Collot na obra Poética e filosofia da paisagem (2013). Também serão consideradas as
relações de intertextualidade entre literatura e outros campos da arte devido à intensa referencialidade
aos mais diversos objetos artísticos nos poemas. Para tanto, torna-se importante recuperar a relevante
contribuição de Georges Didi-Huberman sobre a visualidade no âmbito da arte e da estética
inicialmente com a obra O que vemos, o que nos olha (2010).
“A citação repete, faz com que a leitura ressoe na escrita: é que na verdade leitura e escrita são a
mesma coisa, a prática do texto que é prática do papel. A citação é a forma original de todas as
práticas do papel, o recortar-colar, e é um jogo de criança”. A afirmação de Antoine Compagnon, em
seu livro O trabalho da citação, talvez seja um bom ponto de partida para a tentativa deste texto: ler
teoricamente a inscrição controvertida da obra poética do escritor Manuel António Pina na cena
portuguesa a partir de uma articulação crítica em torno da noção de infância como topos literário e
dispositivo problematizador de escrita. Na relação contraditória desta produção com a de outras
surgidas na década de 1970, em Portugal, acionadas, em grande parte, por linhas de renovação na
poesia portuguesa, a voz de Manuel António Pina surge como dicção não afeita a “programas”
poéticos, mas forjada na busca de estratégias próprias de diálogo e embate com a tradição moderna e
as demandas do presente, estratégias inclusive pouco compreendidas por parte da crítica à época de
seu aparecimento.
Este artigo apresenta uma relação entre os romances O jardim do diabo, de Luís Fernando
Verissimo, e O xangô de Baker Street, de Jô Soares, apontando suas características que englobam o
viés paródico e cômico de ambas as obras, com a finalidade tanto de discorrer sobre os elementos de
aspectos intertextuais e metaficcionais, quanto de analisar os pontos que abrangem o gênero policial.
O artigo busca investigar, a partir do que Paul Ricoeur chama de passeidade (passeité) do
passado, a literatura de testemunho. O tempo passado, por não existir mais, é representado pelo
historiador, sem nunca poder relatar o que de fato aconteceu. Sempre há uma ausência relativa ao
passado que não existe mais e o que é, por um acréscimo de ser ou ficcionalização do relato,
retratado pelo historiador. As categorias de documento, arquivo e testemunha, ao se interrogar o texto
historiográfico, serão novamente colocadas à prova devido ao modo quase literário da escrita sobre o
passado. O testemunho, como alguém que viu o que de fato aconteceu, apesar de não compor uma
narrativa literária, é igualmente alguém capaz de ficcionalização do passado. A visão subjetiva
pertence tanto àqueles que acessam o passado por meios indiretos (o historiador por meio dos
documentos e testemunhos), quanto por aqueles que viram o que ocorreu, ou seja, tiveram um acesso
direto ao fato relatado (as testemunhas). O artigo buscará investigar qual o caráter específico do
relato testemunhal em comparação com a narrativa historiadora e a ficção literária.
O presente projeto visa investigar se o real vivenciado no dia a dia da sociedade brasileira das
últimas décadas é retratado na produção literária em prosa O Matador, da autora Patrícia Melo, e a
partir dessa constatação, compreender de que forma a Literatura Contemporânea, ao se apropriar do
real, abre caminhos para que seus leitores concebam o ser humano dessa época. Para tal será preciso
dissertar também sobre conceitos de real, de realismo e de mimesis. Muitos pesquisadores atualmente
se debruçam sobre pesquisas que visam averiguar a presença do real nas obras de autores do fim do
século XX e início do século XXI. É de suma relevância a discussão sobre a estética adotada pelos
autores mais atuais, pois acredita-se que a literatura é uma arte que contribui para a edificação de
uma identidade social. JAGUARIBE (2007, p.15) afirma que há duas maneiras de conceber o
realismo: como uma conexão vital entre realidade e experiência da realidade e como uma convenção
estilística que mascara seus próprios processos de ficcionalização. Assim, podemos conceber que as
obras mais atuais buscam registrar as experiências vividas pelas pessoas reais, mas ao mesmo tempo
existe nessa representação muito do campo imaginário, da ficção. Já SCHOLLHAMMER (2009,
p.54), diz que nas últimas décadas o conceito de realismo vem sendo ampliado quando se leva em
conta a estética. Assim, espera-se que ao fim da pesquisa em andamento, ratifique-se a tentativa de
representação da sociedade brasileira na ficção a partir da estética escolhida pela autora para tal.
Caio Fernando Abreu foi um autor cuja produção literária se desenvolve imersa às questões do
movimento contracultural dos anos de 1960 e 70. A oposição à normatividade das instituições
sociais, a luta contra a repressão do indivíduo, a defesa da liberdade sexual e a busca por formas de
conhecimento para além da racionalidade científica seriam algumas dessas questões. Um tema
recorrente na literatura de Caio foi o da loucura, tendo a prática médico-psiquiátrica como exercício
de poder e de opressão. Se, por um lado, o autor se debruçou sobre a doença mental, por outro lado,
já nos anos 80 e 90, ele passou a abordar uma nova doença, a recém-descoberta AIDS. O presente
trabalho apresenta parte do desenvolvimento de uma pesquisa de mestrado em andamento, na qual se
analisa o tema da doença na obra de Caio Fernando Abreu. Para tanto, parte-se dos conceitos de
biopolítica (FOUCAULT) e de paradigma imunitário (ESPOSITO), para pensar as relações de poder
envolvidas na identificação e segregação dos doentes na sociedade. A hipótese a ser verificada seria
se, na obra do autor, a doença funcionaria como uma metáfora do paradigma imunitário, ou seja, da
ideia de que a sociedade tenta identificar, combater e proteger-se de elementos que ameaçariam a sua
existência. Além disso, a atitude contracultural de Caio Fernando Abreu será repensada como uma
tentativa de ruptura desse paradigma, por meio da afirmação da vida frente às verdades
institucionalmente construídas sobre as doenças e os doentes.
Após a publicação dos Versos de Circunstância de Carlos Drummond de Andrade em 2011 pela
editora 7Letras, a discussão em torno da relação entre poesia e circunstância tem ganhado espaço
dentro dos estudos literários contemporâneos, no sentido não só de resgatar o valor circunstancial de
obras poéticas de autores consagrados, como o próprio Drummond, mas também de ressaltar a
presença dessa característica na poesia contemporânea. Nesse sentido, a própria categoria “versos de
circunstância” – que, embora não possa ser considerada um gênero a parte, foi motivo de estudo
específico de nomes como Paul Eluard, Predrag Matvejevitch e Jean-Michel Maulpoix – foi
revalorizada e afastada do sentido pejorativo que costumava possuir nos séculos passados, quando
era relacionada à poesia de encomenda ou a um tipo de poesia com objetivos puramente ideológicos.
Ainda que carregue duplamente os aspectos íntimo/subjetivo e coletivo/engajado, a noção de “versos
de circunstância” não pode ser detalhadamente definida, cabendo a esta somente algumas
características amplas, tal como o fato desta cantar “frequentemente um acontecimento que se impõe
a um dado momento por sua atualidade” (MATVEJEVITCH, 1971, p. 87) e manter com esse
acontecimento certo grau – maior ou menor, a depender do poema – de dependência. Nesse sentido,
procuraremos brevemente demonstrar, em nossa comunicação, como as poéticas do português
Manuel de Freitas e do carioca Carlito Azevedo simultaneamente se aproximam e se afastam, em
diferentes aspectos, da ideia de “versos de circunstância” conforme estabelecida pelos estudiosos
citados.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia contemporânea, Manuel de Freitas, Carlito Azevedo,
circunstância.
Este trabalho tem por objetivo estudar o perfil intelectual dos personagens nos livros “K. Relato
de uma busca”, de Bernardo Kucinski e “O que é isso, companheiro?”, de Fernando Gabeira,
refletindo sobre seus posicionamentos críticos e suas atuações políticas na transformação da
sociedade durante o período ditatorial no Brasil. Através de personagens associados à militância, os
dois escritores desenvolvem em seus romances a imagem do intelectual ora fracassado e alienado,
ora resistente. Em nossa pesquisa, analisaremos as problematizações feitas pelos narradores sobre a
eficácia – por vezes questionável – da postura intelectual perante um regime anti-democrático.
Analisaremos também as formas com que os autores fazem de seus livros espaço da memória sobre a
ditadura, por meio da ficcionalização dos fatos, em dois momentos diferentes da produção literária
brasileira: no período em que os exilados regressaram ao país; e, no presente, momento em que os
herdeiros da dor, os que vieram depois, sentem ainda latente a necessidade de falar sobre o tema.
Para isso, discutiremos as definições propostas para o termo “intelectual” pelos críticos Jean-Paul
Sartre, Edward Said e Lucia Helena. E por fim, pensaremos os estudos sobre o papel da literatura
como voz do passado ditatorial ainda vivo feitos por Eurídice Figueiredo, Regina Dalcastagnè e
Tânia Pellegrini.
Esta pesquisa pretende investigar de que modo a visão da realidade social projeta-se nas
subjetividades do escritor Lima Barreto, considerando o contexto de transformação social, política e
cultural da Belle Époque. A leitura da obra e dos escritos íntimos de Lima Barreto conduz o leitor aos
cenários da Belle Époque, às lutas políticas e populares testemunhadas pelo escritor e o modo como
ele se sentiu ao viver na pele as tiranias cometidas pelo Estado, em nome de uma modernização da
sociedade. Diante dessas turbulências da modernidade e modernização do Rio de Janeiro, observam-
se semelhanças entre a postura intelectual de Lima Barreto e o flâneur de Walter Benjamin e de
Baudelaire. Para este estudo, a pesquisa investigou o contexto histórico da Belle Époque do Rio de
Janeiro, nos primeiros anos do século XX, as revoltas que estouraram na capital em decorrência das
transformações sociais advindas da modernidade e de que modo essas turbulências estão relacionadas
à postura flâneur e melancólica do escritor.
O presente trabalho tem como objetivo fazer um levantamento inicial de aspectos concernentes
à tradução de ficção científica (FC) em inglês para o português brasileiro. O gênero de FC apresenta
características linguísticas próprias que requerem atenção especial do profissional de tradução, pois,
por se tratar de um gênero que retrata o futuro e seus avanços sociais e/ou tecnológicos, é comum que
autores e autoras de FC façam uso não apenas de vocabulário técnico especializado, mas também de
neologismos. A tradução, por sua vez, poderá implicar a pesquisa sobre conhecimentos científicos de
ponta que figurem na narrativa. Devido à desigualdade econômica e tecnológica entre os países, esse
trabalho de pesquisa lexical inerente à tradução pode ser dificultado ou até impossibilitado,
dependendo do contexto nacional. O acesso à informação, portanto, é uma necessidade fundamental
na tradução de FC e um fator determinante para a qualidade do texto de chegada. Além disso, é
necessário considerar os fatores editoriais e mercadológicos que influenciam a escolha da estratégia
global de tradução. Utilizando como estudo de caso duas traduções publicadas no Brasil do conto
“Robot Dreams”, do autor russo-americano Isaac Asimov, abordaremos alguns dos desafios da
tradução de FC.
Os objetos e ambientes são partes constituintes de qualquer obra literária. Analisar esses
elementos traz maior compreensão acerca da construção de seus personagens e suas respectivas
histórias. O presente artigo tem por objetivo analisar os ambientes retratados, bem como os objetos
do conto “A Solução”, pertencente à obra O Mundo Inimigo, da coleção Inferno Provisório, do
romancista Luiz Ruffato. Pretende-se salientar os aspectos representativos que permeiam a história
da personagem principal, Hélia, corroborando os aspectos não apenas sociais na qual ela encontra-se
inserida, como também sua camada interior, salientando, assim, como os objetos e ambientes podem
revelar as nuances emocionais das personagens. Outro elemento a ser analisado no presente estudo é
o Rio Pomba, no qual há uma tentativa de suicídio, e as águas, que constantemente são associadas à
ideia de vida, têm significado distinto para a personagem no conto em questão. A ênfase que o autor
confere à classe operária no período de industrialização de Cataguases, cidade já decadente que se vê
inserida em uma modernização desarranjada que obriga as famílias a adaptarem-se para sobreviver
observando o contraponto entre o imaginário Rural e Urbano representado nos sonhos e frustrações
da personagem principal é outro aspecto a ser estudado.
o presente artigo integra parcialmente uma tese de doutorado voltada ao estudo do medo tanto
do sagrado quanto do profano. A análise ora feita da dramaturgia Édipo Rei (2017) volta-se às
questões referentes ao silêncio e à tagarelice na obra, enquanto presenças e ausências discursivas que
por um lado dialogam entre si, mas, por outro, se excluem, dando margem à equívocos
comunicativos. O que se faz, e se pretende fazer, é nada menos do que um estudo acerca das relações
comunicativas entre o mundo profano, o do rei Édipo, e o do mundo dos deuses, de Lóxias Apolo e
de Zeus, para que se possa compreender como, de modo incipiente, o afeto de medo apresentasse no
drama do incestuoso regicida, por meio da linguagem que, ora possibilita, de fato, a comunicação
entre os seres, ora ativa os dispositivos trágicos de origem divina. Sendo assim, tal empresa vale-se
de uma perspectiva psicanalítica e filosófica, pois a abordagem deve dirigir-se tanto para o
entendimento do ser e da relação do afeto de medo com o eu quanto do ser para com os deuses, na
tentativa de por meio da interface sagrado/profano capturar os diversos matizes do temor.
O objetivo desse artigo é traçar um panorama de como houve um vazio discursivo quanto a
representação homoerótica na literatura brasileira, desde o século XIX, com o surgimento da tratada
primeira literatura homoerótica no Brasil (Bom-crioulo, de Adolfo Caminha), até o fim do século
XX, com o surgimento de escritores no cenário literário brasileiro que quebraram a barreira desse
vazio/silêncio discursivo. Para tal, retomaremos de forma breve como o amor entre iguais foi tratado
no Brasil socialmente, tendo em vista que o olhar de coerção construído pelos europeus, pela igreja e
pela ciência quanto a essa forma de amar, influenciou no modo como a literatura passou a abordar
essa temática; para então, a partir de reflexões teóricas, remontarmos o modo como a crítica
literária/cânone literário silenciou e rasurou escritores e obras que tivessem como interesse abordar as
relações homoeróticas de forma não estereotipada, dando protagonismo e aprofundamento para
personagens homossexuais.
Resumo: O acirramento da disputa territorial entre dois ou mais povos constitui uma das
questões mais inquietantes de todos os períodos históricos constituídos. Todavia, quando atentamos
para o antagonismo árabe-israelense, percebemos que os conflitos entre os dois referidos grupos
sociais ultrapassam a cizânia fronteiça. Para além dos assuntos de foro religioso, o interesse de
nações hegemônicas como os Estados Unidos da América nas riquezas existentes - cujo exemplo
mater encontra-se no petróleo - além da corrupção local e a negligência com o estabelecimento de
uma porção territorial para os palestinos ali consolidarem sua determinação enquanto Estado levam a
um quadro de tensão que perdura há décadas a fio com alguns hiatos. A necessidade, então, de se
denunciar tal panorama transpõe os veículos midiáticos e encontra nos quadrinhos - mais
precisamente no traço forte e preciso do cartum - um profícuo instrumento de imputação cujo alcance
acaba por ser mais fluido justamente por apostar mais na questão imagética do que essencialmente
textual. Naji al-Ali, cartunista nascido na Palestina e um dos nomes mais significativos no Universo
dos quadrinhos de origem árabe, lança um verdadeiro “Manifesto Silencioso” por meio do icônico
personagem Handala, símbolo da resistência de todo um povo frente à tirania da influência e dos
interesses escusos, que viria a ser o protagonista da obra Uma criança na Palestina cuja análise nos
propomos a fazer neste artigo.
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.
(ANDRADE, 2012, p. 82)
Em oposição à insensibilidade do ser humano moderno, seu passo vai,
“sem esmagar as plantas” (ANDRADE, 2012, p. 83), procurando “sítios, /
segredos, episódios / não contados em livro” (ANDRADE, 2012, p. 83),
histórias e sentimentos permitidos pelo homem apenas “sob a paz das
cortinas / à pálpebra cerrada” (ANDRADE, 2012, p. 83). A figura do
elefante, então, parece servir a Drummond como uma maneira não só de
tentar sair da condição de um “eu” solitário, mas também de resistir ao
contexto sociopolítico da época, que reduziu os homens à velocidade, à
individualidade e à frieza modernas. Assim, ao tentar combater as
hostilidades presentes no meio urbano a partir da utilização da figura do
elefante como aquele que carrega dentro de si as necessidades primárias de
todo e qualquer indivíduo, o poeta constrói uma fala mitopoética, que
enxerga, na relembrança desses sentimentos e sensações, a possibilidade de
dias melhores.
A voz que fala para o povo ou pelo menos tenta chegar às massas
também se faz presente em “Cidade prevista”. Nesse poema, o discurso da
certeza é ainda mais forte do que uma simples esperança no amanhã: o
poeta sabe que chegará o dia em que todo aquele cenário trágico, dramático
e opressor dará lugar à total comunhão dos homens. Essa cidade que é
prevista, no entanto, não será desfrutada pelo próprio poeta, que admite ter
se guardado “para a epopeia / que jamais escreverei” (ANDRADE, 2012, p.
126). Ainda assim, mais importantes que todos os seus escritos foram os
seus anseios: “O que eu escrevi não conta. / O que desejei é tudo”
(ANDRADE, 2012, p. 126).
Assim, em A rosa do povo, a voz que tenta o elo com o outro, numa
poética de comunhão, muitas vezes utilizando o discurso da certeza como
maneira de pintar um mundo utópico, mescla-se com a voz introspectiva,
estabelecendo relações complexas entre discurso coletivo e particular. Para
um poeta cuja trajetória pessoal é também sua trajetória literária, resistir à
confluência entre público e privado seria quase impossível. Sua poesia,
então, assume faces distintas, quase contraditórias: se, em um primeiro
momento, ela é tentativa de compartilhamento, edificada como mito, é
também objeto misterioso, que pesa e fere, arde e consome, criação
solitária, flor não compartilhável. Os versos de Drummond, reunidos nos
poemas do livro de 1945, portanto, são rastros de um sujeito que, seja
recolhendo seus cacos, seja recompondo seu mito, tentou fazer chegar a sua
mensagem ao mundo dos homens.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
Um museu de restos
A obra de Cabral, no entanto, não constitui um todo monolítico. O
livro Museu de Tudo, lançado em 1975, apresenta um método de fabricação
que contraria o que fora utilizado para a elaboração de livros anteriores,
como o que se estabelece em Psicologia da Composição (1947) e A
Educação pela Pedra (1966), por exemplo, em que houve um cuidado e
padronizações formal e estrutural envolvendo os poemas. Dessa vez, a
seleção se deu sem os mesmos critérios – ainda que conserve de um outro
modo um esforço pela coesão interna.
A maioria dos poemas já estava pronta, uma vez que eles teriam sido
excluídos de obras anteriores de Cabral. Como o texto de abertura já
anuncia, trata-se de uma obra feita de restos. O poeta assevera: “é depósito
do que aí está, / se fez sem risca ou risco” (MELO NETO, 2009, p. 25). O
autor juntou esses trabalhos remanescentes e os publicou nesta obra,
marcada por abordar temas diversos:
O profissional da memória
Duplicidade do tempo
Referências
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações
da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011.
Sumário
A ARTE DA MEMÓRIA
FANTASMAS
Teremos
de lutar
pela simples
respiração.
De noite nada virá.
Considerações finais
Com base no exposto, é possível observar que o estatuto de arte da
fotografia historicamente foi marcado por discursos dicotômicos: há
aqueles que rejeitaram fortemente essa classificação e aqueles que a
defendiam. Esse cenário foi possibilitado, sobretudo, devido à associação
das técnicas fotográficas a um “recorte do real” e à mecanização técnica
desse processo. Por isso, o realismo fotográfico foi entendido como uma
ferramenta de empobrecimento artístico que retirava, portanto, a aura das
imagens captadas a partir das câmeras.
Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 1980.
Sumário
Introdução
Aspectos peculiares da textualidade de Maria Gabriela Llansol, tais
como o fulgor, o figural, o fragmentário, o feminino, entre outros, nos seus
romances e diários, são frequentemente discutidos no meio acadêmico e em
produções monográficas, dissertações e teses. A proposta de estudo ora
apresentada intenta uma leitura da experiência da escrita de si no texto da
escritora portuguesa, na obra “Uma data em cada mão – livro de horas I”
(2009), pontuando momentos em que, entre a narrativa e o diário, a
textualidade llansoliana pode mostrar seu “caráter de escrita diarística
espontânea, mas quase sempre densa, múltipla e rizomática, com seus
registros variados, do reflexivo ao informativo, do introspectivo ao crítico,
do contemplativo ao irônico” (LLANSOL, 2009, p. 11), como registram os
próprios editores, João Barrento e Maria Etelvina Santos, na apresentação
do trabalho em equipe, iniciado sob a orientação da própria Llansol e
mantido após a morte da autora na composição dos próximos “Livros de
Horas” que estariam por vir – a saber, o volume VI, “Herbais foi de
silêncio”, lançado em 2018.
Para tanto, é relevante uma retomada das definições dos gêneros diário
e narrativa, e, com base nos interlocutores teóricos, a inclusão das ideias
que ajudam a pensar sobre a desconstrução dessas definições no fazer
literário contemporâneo, para uni-las à leitura a que se propõe em “Uma
data em cada mão – Livro de horas I”, de Maria Gabriela Llansol.
14 de fevereiro de 1972
A cena primitiva
A vida eterna não existe.
Sentou-se arranjando as saias, para assistir à produção do
texto.
Este texto é um texto que assiste à produção do texto.
Este texto é a cena primitiva do texto.
A mulher não existe, mas é escrita por _________
(LLANSOL, 2009, p. 23)
Nesse trecho, a narrativa pode ser identificada em marcas que lhe são
características, tais como: um observador em terceira pessoa, a ideia de
ação a ser narrada, sugerida no emprego da palavra “cena” e, ainda, na
indicação da personagem “a mulher” cujo perfil é passivo ao que será
contado na produção do texto – permitindo, ainda a abertura para supor a
presença do leitor nessa produção, através da lacuna, elemento gráfico
presente nos textos da escritora. Todavia, há que se localizar que esta
passagem, “14 de fevereiro de 1972”, é a primeira entrada de um diário que
já se inicia numa experiência “indecisa” do gênero textual, dada a
constatação de que se narra, visualmente com estrutura de poema, numa
proposta que se pretende escrita diarística. Diante dessa primeira inferência,
já é possível reconhecer uma das formas de exemplificar o que Barrento
(2003) chamou de “contaminação genológica”.
Texto 1
Tinha chegado o mais belo dia de chuva; nunca até este dia,
descobrira o pensamento latente da chuva, a sua sonoridade,
a sua sombra.
Durante muito tempo não deixou de chover. Ali, era
surpreendente como a chuva caía, de repente ou anunciando-
se por um obscurecimento denso; no lado do cimentado do
jardim, a persistência de toda essa água fizera despontar um
tom esverdeado que não existia em nenhuma parte da casa.
O peixe Suso fora trazido para dentro do rio. Do seu aquário,
pensava na corrente, por que forma inata o homem,
habituado durante milênios à caça e à guerra, não sabia
utilizar o conhecimento senão como vontade de dominar a
sede de acender ao poder que estava interiormente povoado
de estátuas:
Pégaso, São João da Cruz, Tomaz Müzer, Coração do Urso,
A Dama das Rosas, tinham encontrado o seu cemitério.
(LLANSOL, 2009, p. 34)
*Parar o mundo*
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: Profanações. Tradução
e apresentação Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. Disponível
em: <https://www.cienciassociais.ufg.br/up/106/o/AGAMBEN-Giorgio-
Profanacoes.pdf?1363193976>. Acesso em: 16 jan. 2018.
Sumário
Introdução
Em seu ensaio Genealogia da ferocidade, Silviano Santiago traz à
discussão a questão da ferocidade em âmbito literário (principalmente a
partir da obra Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa) como um
espelho para a ferocidade humana. A ferocidade encontrada nos livros (e
nas obras artísticas) seria uma demonstração de autenticidade, construto que
quando observado nessas obras provoca diversas reações (muitas vezes
negativas), pois se relaciona a questões como coragem e ousadia de se
mostrar em um ambiente ou situação (ou meio artístico) diverso do
apresentado na obra. Ferocidade e autenticidade podem ser encontradas
nessas obras porque em primeiro lugar podem ser encontradas na realidade
humana, e são consideradas selvagens porque se contrastam com o que é
domesticado ou esperado.
Conclusão
Podemos perceber a partir das questões analisadas a relação entre
autenticidade e ferocidade, entre ferocidade e os traços da personalidade
presentes na atual discussão sobre a questão socioemocional.
Sumário
Introdução
Um personagem nos descreve uma série de eventos que mudam o
rumo de sua vida, porém sem nunca mencionar seu nome; fantasmas e
vampiros que, durante toda a narrativa, não têm nenhum tipo de ação nem
fala que indique sua real existência além da mente deturpada do
protagonista; respostas necessárias para afirmar os acontecimentos que,
mesmo depois da última página, nunca serão dadas; reticências e frases
quebradas que tentam traduzir a falta de palavras dos personagens perante
uma situação de completo terror… Seria possível continuar extensivamente
essa lista de vazios que preenchem as obras analisadas, pois quando as
percorremos, nos damos conta de que certas lacunas que, de início, parecem
não ter ligação entre si, formam, pelo contrário, uma rede de elementos que
trabalham em conjunto para a constituição do silêncio, em suas mais
diversas formas, como cerne da literatura fantástica.
Linguagem X Silenciamento
Para a pesquisadora de teoria do discurso Eni Orlandi, em As formas
do silêncio, “há um modo de estar no silêncio que corresponde a um modo
de estar no sentido” (ORLANDI, 2011, p. 11), afirmação que vai marcar o
fio condutor de seu livro. Rosalba Campra, escritora argentina especialista
no gênero fantástico, também vai defender em sua obra Territórios da
ficção fantástica, que “todo enunciado é uma trama formada tanto pelo que
se diz quanto pelo que se cala” (CAMPRA, 2016, p. 118). Dessa forma,
devemos compreender o silêncio como representante de uma razão, como
ocorre com a linguagem. O problema é que, historicamente, ele foi relegado
ao status de falta, pois enquanto a linguagem corresponderia ao domínio do
homem em relação à natureza, uma vez que ele nomeia as coisas para lhes
dar significação, o silêncio é visto de forma negativa, enquanto
insuficiência, retrocesso, dado que é a linguagem consciente que nos difere
do restante dos animais.
Soudain l’enfant sortit du bain, et, sans le voir, s’en vint vers
lui pour chercher ses hardes et se rhabiller. À mesure qu’elle
approchait à petits pas hésitants, par crainte des cailloux
pointus, il se sentait poussé vers elle par une force
irrésistible, par un emportement bestial qui soulevait toute sa
chair, affolait son âme et le faisait trembler des pieds à la
tête. Elle resta debout, quelques secondes, derrière le saule
qui la cachait. Alors, perdant toute raison, il ouvrit les
branches, se rua sur elle et la saisit dans ses bras. Elle tomba,
trop effarée pour résister, trop épouvantée pour appeler, et il
la posséda sans comprendre ce qu’il faisait. Il se réveilla de
son crime, comme on se réveille d’un cauchemar. L’enfant
commençait à pleurer. (MAUPASSANT, 2002, p. 24)
Conclusão
Em seu acervo de obras fantásticas, Maupassant apresenta temas
ligados a medos íntimos e primitivos, nos quais o leitor se vê rapidamente
engendrado no decorrer da leitura. Porém, esses medos não aparecem
somente nas descrições de situações e seres misteriosos e sobrenaturais,
mas pelo contrário, suas obras caminham para uma centralização da
perspectiva humana, em que o homem é o pior dos monstros, aquele que
deve ser temido, evidenciando uma crítica social intrínseca que remete a
uma leitura reflexiva no quadro final desenhado. Sutilmente, a explicação
racional se torna ainda mais assustadora do que a possibilidade do
sobrenatural nas suas obras.
Pode-se dizer que os diferentes tipos de silêncio evidenciados ora
jogam com simbolismos que aprofundam suas possíveis leituras ora trazem
para a estrutura uma ferramenta esclarecedora, contribuindo
significativamente, desse modo, para a construção do efeito de dúvida do
gênero. Por esta capacidade criadora indiscutível que joga a todo momento
com os conceitos de real e sociedade, seus textos são tidos até hoje como
alguns dos principais representantes da literatura fantástica mundial.
Referências
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Editora Perspectiva,
1987.
Sumário
As cartas de José Célio à sua mãe se iniciam desde sua estadia em São
Paulo, incorporado à força de trabalho que se formava nas indústrias
paulistas nos anos de 1970. Essas missivas, encadeadas em série
cronológica e sem réplicas da mãe criam um ordenamento lacunar do
tempo, no qual o leitor é convidado ou impelido a uma operação de
inferência do diálogo entre os dois. É, portanto, por uma ótica familiar e
íntima que o livro se compõe, apoiado numa forma de discurso, a carta, que
aponta para uma leitura biográfica, em um impulso bastante evidente de
uma certa “pulsão arquivística” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 13),
característica da ficção brasileira contemporânea que recolhe documentos e
utiliza-os como índices do Real.
Cabe pensar, portanto, que cada um desses livros produz à sua maneira
um processo de erosão das categorias de propriedade, de intimidade e da
política, pondo em questão o passado recente da América Latina por meio
de frestas, indícios e fragmentos. Assim, essas são narrativas que marcam
de forma definitiva sua contemporaneidade e a problemática de narrar ou
imaginar o passado desde o presente, fazendo dessa volta às experiências
ditatoriais de nosso continente um dever ético que busca, assim como os
testemunhos, um “laço social de confiança” que “estabelece também uma
cena para o luto, fundando assim comunidade ali onde essa foi destruída.”
(SARLO, 2012, p. 67)
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios.
Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
Sumário
Introdução
Este artigo tem por objetivo construir uma análise do romance
português contemporâneo Desamparo, da escritora Inês Pedrosa, escrito em
2015 e publicado no Brasil em 2016, pela Editora Leya. Escolhemos
trabalhar com o romance por ser uma narrativa de múltiplos enfoques, que a
partir de quatro narradores, versa sobre a natureza humana e suas angústias
mais latentes. Tentaremos compreender como se dá a construção da obra a
partir da alternância de vozes, da narrativa não linear e fragmentada, do
resgate da memória, dos espaços que se convergem (Brasil e Portugal) e da
crítica social contida na obra. Nesse contexto, também buscaremos analisar
os sujeitos do discurso de Pedrosa, verificando como estes comportam-se
frente ao desamparo inerente ao sujeito.
Raul, por sua vez, preocupado com as despesas e cuidados com a mãe,
mais à frente afirma: “Fiz as contas: quarenta euros por semana, é um saco
do Super Barato cheio de comida […] Só assim poderei continuar a dar
cento e cinquenta euros por mês a minha mãe. O mínimo.” (PEDROSA,
2016, p. 47).
Para se ver livre do ambiente sufocante em que vivia, aos dezoito anos
casa-se com Álvaro: “Durante dez anos a existência decorreu com
suavidade: uma vivenda ampla, com criados e criadas, um Citroën preto,
móveis em jacarandá […] Depois entrou em cena a comitiva das amantes e
dos maus tratos, até a separação” (PEDROSA, 2016, p. 123). Jacinta perde
um filho de Álvaro, que nasce morto, e logo após é rejeitada por ele, sendo
tratada como uma mulher incapaz de dar à luz. Apesar das tentativas de
engravidar novamente, fracassa. O marido a humilha constantemente e o
casamento chega ao fim. Ela se vê abandonada mais uma vez, desamparada,
agora pelo homem com quem escolheu casar.
Jacinta não consegue encontrar-se nesta nova fase de sua vida e sofre
com a solidão. Mesmo após a separação, vive na casa que Ramiro, seu ex-
marido, construiu com a nova esposa em Campos, procurando sentir-se útil
e necessária. Sente-se perdida com este arranjo familiar e busca uma nova
função em sua vida. Sobre a sensação de incompletude na maturidade,
Beauvoir afirma:
Aos 58 anos, Jacinta retorna para Portugal para cuidar de sua mãe,
Margarida e enfim, ter seu amor reconhecido por ela. Sente demasiada falta
dos filhos que não a procuram. O desamparo acentua-se na velhice como
narra Raul: “Os velhos são encarados por muitos filhos como um problema;
se pudessem varriam-nos para debaixo no tapete. […] Esquecermos que os
mais velhos existem é que não os ajuda a eles, nem a nós” (PEDROSA,
2016, p. 184).
Conclusão
Em Desamparo, as personagens vivem à espera do amor, do
reconhecimento do outro para legitimarem-se. A presença do outro torna-se
essencial para sentirem-se completas e indispensáveis. Mesmo após
encontrar uma ocupação na vida e conseguindo sobreviver financeiramente,
as personagens femininas ainda sentem-se abandonadas, rejeitadas. A
solidão as atormenta. Beauvoir comenta:
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida,
volume 2. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016.
Sumário
AS BRUXAS de bruxelas
batem panelas
pra espantar as baratas tontas
que vivem nas pontas
dos sapatos delas
(FREITAS, 2007, p. 26)
No primeiro arremesso
– não meço bem a distância
entre a mão e a cesta –
a bola some atrás do aparelho
se chamava
ilha da feitoria
ou ilha do meio
onde as duas vendiam
cosmésticos avon
[...]
(FREITAS, 2007, p. 31)
Com os remédios
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
é o menino
nos transportes públicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre
(LOPES, 2014, p. 338-339)
Considerações finais
A partir desse breve trabalho comparativo, é possível perceber
diversos pontos de contato entre as autoras Adília Lopes e Angélica Freitas.
As aproximações entre os seus poemas remetem a artifícios tão semelhantes
no que diz respeito à estrutura, ao ritmo e ao conteúdo que ao longo desse
processo dialógico, muitas vezes os versos das autoras confundem-se em
uma mesclagem advinda das características similares entre elas. O estudo
desse diálogo é um acréscimo, sobretudo, à recepção que é dedicada a
Adília Lopes no Brasil, a partir do momento que elege Angélica Freitas,
uma autora que não cita diretamente a poetisa portuguesa como os outros
poetas contemporâneos brasileiros citados, mas que muito acrescenta no
estudo do trabalho receptivo de Adília Lopes no Brasil.
Referências
FREITAS, Angélica. Rilke Shake. São Paulo, Rio de Janeiro: Cosac
Naify, 7Letras, Col. Ás de Colete, 2007.
Sumário
Referências
APTER, Emily. Against world literature: on the politics of
untranslatability. Verso, 2013. Edição do Kindle.
______. Traveling Theory. In: The Edward Said Reader. New York:
Vintage Books, 2000.
Sumário
Introdução
Ricardo Lísias (1975-) é autor paulistano de diversas narrativas
ficcionais. Ainda novo, estreia com O cobertor de estrelas (1999), um
romance em terceira pessoa. Com Anna O. e outras novelas (2007), o autor
reúne duas publicações antigas, Capuz (2001) e Dos nervos (2004), e mais
três narrativas até então inéditas, que o leva à final do Prêmio Jabuti em
2008. No entanto, após a morte de seu amigo de faculdade, André, sua obra
muda, e ele começa a incluir dados referenciais, como seu nome próprio, os
nomes das pessoas que ele conhece, agora usando a primeira pessoa do
singular. Dessa forma, cria-se, em sua literatura, uma narrativa de tom mais
confessional, que joga com os limites entre o real e a ficção. O presente
trabalho trata de uma de suas obras com tais características, O céu dos
suicidas (2012), e o faz em uma abordagem que discute os elementos
distópicos presentes nessa obra como sintoma de uma crise social,
focalizando a depressão, as manifestações depressivas, o isolamento das
personagens, etc.
Da Utopia ao Suicídio
Ao considerar distopia como um lugar distorcido, isto é, sendo um
lugar de dor, um lugar ruim, em oposição à utopia, não se pode ignorar que
o personagem principal de O céu dos suicidas, Ricardo, está exatamente
nesse lugar. Ou melhor: seu corpo, enquanto sua morada, isto é, enquanto
local, é o que machuca, o que oprime. O lugar em questão é o do doente.
Maria Rita Kehl, ao falar da ditadura militar, tortura e uma cultura de
violência, afirma que
Ainda remetendo a uma ideia de Freud, pode-se dizer que todo homem
nasce com a existência prévia de um Estado, que determina um conjunto de
regras e valores. Também se pode dizer que o homem tem aspirações e
desejos a partir desse sistema, em que está inserido. A utopia aparece a
partir disso. É um desejo, um sonho de mundo possível. Porém, ela não é
meramente um sonho. “É um lugar que não existe” (BERARDI, 2019, p.
10.) Mais que isso, é uma força que propõe possibilidades de um lugar
melhor, que ainda não existe. “A imaginação utópica trata de encontrar os
meios através dos quais aquilo que é interior ao homem venha para o
exterior, fazendo com que este se assemelhe a aquele” (BERARDI, 2019, p.
11). Mas isso não quer dizer que aquilo que é interior ao homem seja
apenas uma mera subjetivação individual, pois a utopia “se nutre dos
fatores objetivos produzidos pela tendência social da época, guia-se pelas
possibilidades objetivas e reais do instante” (BERARDI, 2019, p. 9). Então,
se a utopia é esse lugar que não existe, essa “proposição de mundo melhor”,
a distopia é justamente a distorção disso. A distopia não propõe: ela avisa
(ou recria) as consequências possíveis da utopia.
Ela também não volta para o Brasil e já não liga mais no Natal, como
conta Ricardo. “Fazendo as contas agora, acho que a última vez que minha
tia esteve no Brasil foi há uns dez anos. Até onde sei, atualmente ela mal
telefona no Natal.” (LÍSIAS, 2012, p.14). Apesar de não sabermos muito
sobre a personagem, sabemos que ela se afastou, que não mantém muito
contato, que está, de certa forma, isolada, e que talvez esteja buscando um
sentido para a própria vida. Ricardo não lembra dela à toa, não se trata
apenas de um parente de quem ele gosta; antes, as atitudes dela lembram
um pouco as dele. E, mesmo Ricardo afirmando não ser como a tia, não
estar em busca de um sentido, suas ações dizem o contrário. Ele diz, ao
viajar para a cidade onde tivera aulas junto com seu amigo: “Também não
vim atrás da minha própria história. Não sou minha tia desiludida. Mas
andei pelo campus.” (LÍSIAS, 2012, p. 43). A conjunção adversativa “mas”
esclarece a contradição. Ricardo viaja, assim como a tia, à procura de algo,
ele também se afasta da família no início do romance, com suas crises e seu
humor ácido, e torna-se um ser solitário.
Referências
BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos.
Trad. Carlos Augusto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BERARDI, Franco. Depois do futuro. Trad. Regina Silva. São Paulo:
Ubu editora, 2019.
LEPORE, Jill. “A golden age for dystopian fiction.” In: The New
Yorker Disponível em:
<https://www.newyorker.com/magazine/2017/06/05/a-golden-age-for-
dystopian-fiction>.
Sumário
Eleanora fogo,
foi sob o império do saber que, com grande escândalo,
derrubaste a chama da vela; foi um momento tão importante
que nunca deixo de nele pensar, seja qual for a hora do dia
em que me ocupe. Nossas irmãs, as beguinas, soltaram uma
exclamação, parecia, Eleanora, que a sua virgindade, ou a
sua viuvez, tinha sido violada; mais tarde, abriu-se uma
chaga no teu pé, eu dizia que o fogo se incrustara ardendo
eternamente e
quebrando a regra do permitido e do não permitido, mordo
teu artelho, fora da Comunidade, já na casa de Plantin-
Moretus, onde nada, a não ser o saber dos sonhos, nos guia.
(LLANSOL, 2014c, p. 45)
Referências
BARRENTO, J. Europa em sobreimpressão, Llansol e as dobras da
história. Org. João Barrento. Lisboa: Assírio&Alvim, 2011.
Sumário
O modo de vida dos caipiras a partir dos mínimos, parece nos sugerir
Antonio Candido, estaria associado à pobreza, pois pressupõe uma vida
restrita às necessidades básicas – o caipira não vive, ele sobrevive. Essa
condição de regressão do caipira estaria alinhada, assim, à forma como lida
com a natureza, pois o crítico reconhece “dietas incompatíveis com as
necessidades orgânicas, correlacionadas geralmente a técnica pobre”
(CANDIDO, 2010, p. 32). Ou seja, a ancestralidade indígena do caipira –
ressaltemos que os indígenas são considerados por Candido como
primitivos, numa perspectiva evolucionista, devido à sua proximidade com
a natureza – favoreceria um modo de vida baseado em mínimos, já que o
caipira, assim como seu ancestral indígena, não dominaria a natureza por
meio de técnicas adequadas – como o homem civilizado faz – mas estaria
subordinado a ela.
Rosa, entretanto, parece seguir outra vereda, pois traz para a cena
literária uma parte do Brasil que o espírito de modernização em
efervescência no decênio de 1950 pretendia soterrar sob suas grandiosas
construções em concreto: o sertão. O sertão de Rosa, por meio de uma
linguagem trabalhada na minúcia, ressalta ao leitor as riquezas da região – o
jagunço, as veredas, os buritis – que não são colocados diante do leitor
como objetos da simples observação, mas como seres que são tratados
também com minúcia, exigindo o olhar atento do leitor para o mundo do
sertão.
O sertão de Rosa é ferocidade, por isso, não pode ser domesticado por
uma crítica literária de caráter teleológico por meio de uma categoria que se
pretende universalizante, pois considera que o autor de Grande sertão:
veredas superou “por milagre o poderoso lastro de realidade” para lhe
conferir “expressão universal” (CANDIDO, 1964, p. 295). Para fugir a uma
crítica domesticadora do romance de Rosa, é preciso pensar possibilidades
de leitura alternativas à fortuna crítica herdada de Antonio Candido
(BELLEI; SOARES, 2011).
Referências
BELLEI, S. L.; SOARES, C. C. Candido, leitor de Rosa: crítica e
crítica (do) por vir. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 18, p.
97-114, 2011.
Sumário
Sob essa ótica, surge a proposta de avaliar uma parte da obra poética
do poeta, cujo recorte temporal foi, em um primeiro momento, fixado nas
décadas de 1970 e 1980 como uma forma de traçar uma linha de
continuidade nos meus estudos também sobre a paisagem na poesia
portuguesa contemporânea, iniciados anteriormente enquanto bolsista
CNPq (2016-2017) do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (PIBIC), com o poeta Ruy Belo, que começa a publicar na
década de 1960, mas falece em 1978, deixando uma obra poética muito
reverenciada no circuito da poesia portuguesa contemporânea, porém não
tão extensa quanto a de Fernandes Jorge. Ruy Belo é um lugar de leitura
necessário nesta pesquisa, pois apresenta em sua poesia eixos temáticos
muito aproximados da poesia de Fernandes Jorge, além de ser uma presença
consolidada nos estudos sobre poesia portuguesa desta época, resultando na
disposição de uma ampla fortuna crítica.
No que tange as teorias da paisagem, sobretudo por meio das reflexões
propostas por Michel Collot, filósofo francês, pensador da poesia moderno-
contemporânea e da paisagem na contemporaneidade, busca-se
compreender os desdobramentos que a noção de paisagem pode implicar no
contexto de produção do discurso literário, tensionando as relações entre
sujeito e espaço, visto que
Nesse domínio das artes plásticas, o aporte teórico que vem sendo
avaliado é, principalmente, de autoria do filósofo contemporâneo Georges
Didi-Huberman. Nesse primeiro momento, verifica-se a obra O que vemos,
o que nos olha (2010), que nos instiga a ler a poesia a partir de um viés que
pode nos dar a ver as impossibilidades e de forma que a escrita poética seja
uma abertura ao não visível. O autor explora a lógica do olhar de maneira
muito pertinente para os estudos que abordam os diálogos entre outras artes
e poesia, principalmente no que diz respeito a essa forma de ver a imagem
de um objeto artístico, neste caso, por meio das palavras expressas nos
versos dos poemas.
Referências
ALVES, Ida Ferreira; FEITOSA, Marcia Manir Miguel (Orgs.).
Literatura e paisagem perspectivas e diálogos. Niterói: Editora da UFF,
2010.
______. Obra poética. v. 1 [Sob Sobre Voz, 1971/ Porto Batel, 1972].
2. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1987.
Sumário
1.
Discorrendo sobre aspectos que caracterizariam um certo ponto de
viragem ocorrido na produção de poetas nas décadas de 1960 e 1970, a fim
de compreender com mais acuidade a diversidade e estratégias presentes na
poesia portuguesa mais recente, Rosa Maria Martelo assinala duas inflexões
materializadas nestas poéticas – e configuradas, em sua perspectiva, antes
como deslocamentos do que propriamente como rupturas –, diante de uma
tradição de modernidade: por um lado, uma “revalorização da textualidade
poética enfatizadas pelos poetas de 60” (MARTELO, 2007, p. 29), com o
poema vinculado claramente a uma espessura discursiva, e por outro, uma
poesia que, em meados de 70, irá evoluir “num sentido diferente”:
2.
A imagem de um “forasteiro” como Billy the Kid, um pistoleiro, fora
da lei, ladrão de gado e de cavalos, tomado como metáfora, como sugere
Basílio, para o caráter contraditório e desordenado da relação dessa
produção com sua própria época parece ser interessante ainda pelo que
indiretamente indica de algo que, tomado mais a fundo, permeia toda uma
dinâmica interna da poética de Manuel António Pina: a ideia de infância,
pensada, contudo, não apenas como figuração temática, quer em poemas,
quer na sua produção infantojuvenil, mas sobretudo uma infância entendida
como certa operação discursiva, o que significa ler a infância através de
uma retradução desse topos literário. Rosa Maria Martelo dirá que a poesia
de Pina se apresenta como uma escrita que desde sempre “chega tarde”
(MARTELO, 2015), justamente em seu desejo de um contato – em 1970,
em Portugal – já tardio com a tradição moderna, algo que parece fazer
sentido no posicionamento não tanto extemporâneo, como quase
anticontemporâneo assumido pelo autor. Como certa operação discursiva,
tal infância se imprimiria portanto sob o signo de uma anacronia excessiva,
repartida e multiplicada no caráter acumulativo e proliferante da biblioteca
como uso, desmontagem, escrita e reescrita, literatura interminável, cansaço
de isto, ato de leitura, de escrita, do trabalho da citação, para pensarmos
aqui com Antoine Compagnon, quando citar surge como prática arcaica de
linguagem:
Referências
ALMEIDA, Pedro Dias. Entrevista a Manuel António Pina. Revista
Praça Velha, Câmara Municipal da Guarda, 2009. In: Cultura da Visão,
2012. Disponível em: [http://visao.sapo.pt/actualidade/cultura/entrevista-a-
manuel-antonio-pina=f692243]. Acesso em: 12 de mar. 2019.
_____. Dito em voz alta – entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo
(2000-2012). Sousa Dias (Org.). Lisboa: Documenta, 2016.
Sumário
Introdução
Para Gennete, intertextualidade significa uma “relação de co-presença
entre dois ou mais textos” (2010, p. 14). Umberto Eco afirma que toda obra
fala de outras obras, o que faz com que a intertextualidade seja a própria
condição da textualidade (HUTCHEON, 1991, p. 167). A intertextualidade,
portanto, é um mecanismo comum nas obras literárias. Deste modo, pode-se
dizer que a paródia é um recurso intertextual, que assimila um texto já
conhecido e dá a ele uma nova significação e interpretação.
Os romances
O romance de Luís Fernando Verissimo é construído em forma de
narrativa em abismo, ou mise en abyme. O conceito foi descrito por
Todorov como encaixe: a interrupção de uma “história precedente, para que
uma nova história, a que explica o ‘eu estou aqui agora’ da nova
personagem, nos seja contada” (TODOROV, 2013, p. 123). Ou seja,
aparece quando uma história é narrada por dentro de outra história, em
camadas, “falando de si mesma ou contendo a si mesma” (BERNARDO,
2010, p. 09).
Você talvez tenha visto alguns dos meus livros nas bancas.
São aqueles livros mal impressos em papel jornal, com capas
coloridas em que uma mulher com grandes peitos de fora
está sempre prestes a sofrer uma desgraça. Escrevo um livro
por mês, com vários pseudônimos americanos, embora meu
herói – não sei se você notou – sempre se chame Conrad.
Conrad James. Herman Conrad. Um ex-marinheiro de
poucas palavras. Um peixe pequeno, mas mais de uma
cidade foi salva da catástrofe pela sua ação decisiva entre as
páginas 90 e 95. Tenho uma fórmula: a grande trepada por
volta da página 40, o encontro final com o vilão, e o
desenlace, a partir da página 90. Sobrevivo. (VERISSIMO,
2005, p. 09)
Conclusão
Em O jardim do diabo, a metaficção e a estrutura de mise en abyme
acarretaram uma confusão espaço-temporal entre as histórias de Estevão e
de Conrad. Vida e ficção passam a competir por mais alguns parágrafos e
pela atenção do leitor. Ao longo do romance, ao fazer comentários sobre
seu próprio processo de escrita, Estevão nos mostra os anseios de um
escritor de livros de quinta categoria, como ele mesmo diz. “A editora não
vai gostar”, sobre a quantidade de diálogos engenhosos e de mistérios mais
complexos.
Sumário
Introdução
Dentro do amplíssimo debate sobre a relação entre literatura e
realidade social, ganham destaque as questões referentes à atuação da
literatura como denúncia, testemunho, conhecimento, ou até como
intervenção político-social, para além da sua constituição como objeto de
arte. Tal atuação é tradicionalmente alvo de críticas, principalmente por
parte dos que veem a arte literária como exclusivamente uma estrutura de
linguagem carregada de sentidos que gira em torno de si mesma. Neste
trabalho, fruto de nossa pesquisa de doutorado em torno de uma teoria
literária do conhecimento, não desprezamos, em hipóteses alguma, o teor
imanente de artefato de e da linguagem da literatura, ao contrário, queremos
saber como, para além de ser estrutura de linguagem, a literatura pode ser
também estrutura para o conhecimento da realidade social.
Considerações finais
No tocante ao primeiro vetor literário de conhecimento, Cardoso Pires
vai além da representação de um pano de fundo histórico, em O hóspede de
Job, é o próprio processo social que funciona como motor narrativo da
trama. Neste romance, acreditamos não errar ao afirmarmos que o processo
social assume o primeiro plano, pois dele é que emergem as personagens
com seus dramas individuais: do protesto da comunidade de Cimadas,
brotam as figuras da jovem Floripes e de sua vó. A primeira é presa e
interrogada pelos militares; já a segunda, vive o drama do familiar de um
preso político. Do mesmo problema social, surgem João Portela e Aníbal,
emigrantes em busca de condições melhores de vida, e ao longo da jornada
deles, seguem-se referências ao tema do trabalho e afins.
Referências
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In.: Remate
de Males. Campinas: 2012. p. 81-90. Disponível em:
[https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/
article/view/8635992/3701]. Acesso em: 06 set. 2019.
Sumário
Referências
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio
de Janeiro: Zahar, 2001.
Sumário
Introdução
A tentativa de abordar o “real” nas narrativas contemporâneas vem sendo
alvo de muitos estudos e despertado o interesse de muitos estudiosos da literatura
por motivos “bastante evidentes” (SHOLLHAMMER, 2013, p. 155):
Focando nas narrativas brasileiras em prosa desde o final do século XX, até
as mais atuais, no século XXI, percebemos que parte expressiva delas vem se
destacando ao buscar apresentar a realidade social e cultural vivenciada pelas
pessoas reais numa ligação estreita com a literatura como força transformadora
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 54). O autor ainda afirma que:
A obra em análise
Um homem da periferia que ao perder uma aposta se vê obrigado a mudar a
cor dos cabelos. Mas essa mudança não ocorre somente na aparência. Máiquel
vai modificar todo o seu destino a partir dessa coloração. Ele que antes era
apenas mais um em meio a multidão, vai passar a criminoso violento, porém será
aquele que “salva” toda uma sociedade de seus “problemas”.
Através dessa narrativa frenética com pitadas de ironia que nos leva ao
pavor e ao riso, em determinados momentos, perpassamos por uma sociedade
comandada por um grupo social abastado que corrompe todo o sistema. E é nela
que nosso narrador personagem está inserido e sem perceber que não escolheu,
mas foi escolhido, irá nos guiar.
Temos aqui uma voz narrativa em primeira pessoa, que atua na camada mais
desfavorecida da sociedade e que nos revela também ações de outras
personagens que pertencem a outras classes mais abastadas. Com isso, podemos
conhecer duas possíveis realidades, dois posicionamentos, mesmo que através do
ponto de vista de Máiquel, o narrador-personagem, que segue uma tendência
documental, na qual ele e as outras personagens demonstram um esforço
testemunhal diante do que experimentam.
À primeira vista, avaliamos que tanto Cledir quanto Érica são submissas ao
narrador, ou seja, aceitam a dominação de Máiquel. Porém há um traço
antagônico em Érica que nos revela uma mulher com um comportamento
diferente, posto que ela irá em várias passagens da narrativa tentar dominar em
vez de ser dominada.
Enfim, esse trabalho aborda um tema, que já vem sendo discutido, mas que
ainda tem muito a ser estudado, porque não se pode deixar de questionar o olhar,
a voz, as ações das personagens, do narrador e também da autoria, construídos
nessa ficção contemporânea, que podem estar buscando presentificar o “real”,
evidenciando a realidade e tudo que está atrelado a ela. “Uma faceta crucial no
ser moderno é o questionamento da própria modernidade” (JAGUARIBE, 2007,
P. 25).
Referências
ARISTÓTELES. Tradução, textos complementares e notas Edson Bini. São
Paulo: Edipro, 2011.
Sumário
Ficamos assim por muito tempo até que, sem querer, apanhei
uma das negras e começamos a brigar. Mordi-o muitas
vezes, tirando sangue da carne, enquanto ele cravava as
unhas no meu rosto. Então vieram os homens, quatro desta
vez. Dois deles puseram os joelhos sobre os nossos peitos,
enquanto os outros dois enfiavam agulhas em nossas veias.
Antes de cairmos outra vez no poço acolchoado de branco,
ainda conseguimos sorrir um para o outro, estender os dedos
para nossos cabelos e, com os indicadores e polegares
unidos, ao mesmo tempo, com muito cuidado, apanhar cada
um uma borboleta. Essa era tão vermelha que parecia
sangrar. (ABREU, 2014b, p. 145)
A loucura e a AIDS
Em uma série de três crônicas publicadas no Estadão entre 21 de
agosto e 18 de setembro de 1994 – as famosas “Cartas para além dos
muros”, o escritor revelou ao público estar com AIDS. No início da
primeira carta, ele declara: “Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa
tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela”
(ABREU, 2014c, p. 124). Nas duas primeiras cartas, o assunto é tratado de
forma enigmática; já na terceira, ele explicitamente relata como recebeu o
diagnóstico após voltar doente de uma viagem à Europa. Em um primeiro
momento, reagiu com muita naturalidade. No entanto, “Na terceira noite,
amigos em casa, me sentindo seguro — enlouqueci. Não sei detalhes. Por
autoproteção, talvez, não lembro” (ABREU, 2014c, p. 130). Seu estado de
confusão mental e alucinações o levou ao hospital onde se investigou um
possível tumor no cérebro. Assim, essas crônicas/cartas teriam sido escritas
durante essa internação de Caio no hospital.
Por outro lado, uma outra tecnologia de poder surge, não substituindo,
mas utilizando-se das técnicas disciplinares (ou a também chamada
anátomo-política do corpo). Essa tecnologia seria a biopolítica, que não se
dirige ao homem como indivíduo, mas ao homem como espécie, à
multiplicidade de homens pensada como “uma massa global, afetada por
processos de conjuntos que são próprios da vida, que são processos como o
nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.” (FOUCAULT, 1999, p.
289). A biopolítica vai lidar com questões biológicas na medida em que
essas têm efeito na gestão da população. A política na modernidade, para
Foucault, passa a se basear cada vez mais no “poder de ‘fazer’ viver e de
‘deixar’ morrer”, lógica inversa ao poder soberano de “fazer morrer ou
deixar viver” (FOUCAULT, 1999, p. 287). A tecnologia biopolítica é
previdenciária, pois tem como objetivo o “equilíbrio global, algo como uma
homeóstase: a segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos”
(FOUCAULT, 1999, p. 297).
AIDS e o clima de perseguição: o paradigma
imunitário
O filósofo italiano Roberto Esposito vai contribuir para a discussão
sobre biopolítica, entre outras maneiras, com o conceito de paradigma
imunitário. Ele nos lembra de que imunidade é um vocábulo presente tanto
na linguagem biomédica (a proteção em relação a uma doença infecciosa)
quanto na linguagem jurídica (a proteção em relação aos efeitos de uma lei
comum) e conclui: “a imunização alude a uma situação particular que põe
alguém a salvo dos riscos aos quais está exposta toda a comunidade”
(ESPOSITO, 2017, p. 140). O “fazer viver” da biopolítica, ou seja, a
promoção da vida como objetivo da política moderna, também engloba
proteger o indivíduo do que possa ameaçar a sua vida biológica, seja a
violência, sejam as doenças. Esposito considera a imunidade uma espécie
de “proteção negativa da vida” (ESPOSITO, 2010, p. 74), justamente por
negar ou reduzir sua força expansiva.
Nas crônicas “Duas ou três coisas sobre os anos 80” (1985) e “A mais
justa das saias” (publicada pela primeira vez em O Estado de S. Paulo em
1987), Caio Fernando Abreu compara o clima de desconfiança aos
homossexuais em meio à epidemia de HIV com o regime nazista:
E pouco importa também não saber ao certo de onde veio o
vírus maldito. As hipóteses não atenuam o fato: a coisa
existe. E mata. Pior ainda: estimula a níveis dementes o
preconceito contra a mais castigada das minorias. Há
qualquer coisa de nazismo no ar. Qualquer coisa de fogueiras
medievais para queimar os feiticeiros. Lenha é que não falta.
(ABREU, 1985, p. 30)
Considerações finais
O que Susan Sontag debate em Doença como metáfora e em AIDS e
suas metáforas seriam, em linhas gerais, os problemas em torno do uso da
palavra doença como sinônimo de coisas ruins em geral. Isso tem como
consequência a criação de um imaginário do doente como sendo um agente
do mal – pelo menos em relação àquele que sofre de alguma doença
estigmatizada. Se o doente é considerado um elemento perigoso, ou
indesejado, a reação da sociedade acaba sendo isolar esse indivíduo,
estratégia de proteção que pode ser compreendida por meio da ideia de
paradigma imunitário.
Referências
ABREU, Caio Fernando. Caio Fernando Abreu: o essencial da década
de 1970. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014a.
ABREU, Caio Fernando. Duas ou três coisas sobre os anos 80. Jornal
do Brasil, Rio de Janeiro, 2 de junho de 1985. Revista Domingo, p. 30.
Sumário
Desse modo, todos esses estudos nos ajudam a formar uma noção mais
clara – porém nunca fechada – de circunstância e, assim, podemos observar
suas aproximações e distanciamentos das poéticas de Manuel de Freitas e
Carlito Azevedo que, como veremos, estabelecem relações com os versos
de circunstâncias – principalmente Carlito, que chegou a nomear um de
seus livros, de 2001, Versos de circunstância – sem, entretanto, aderirem
por completo a esse tipo de trabalho poético como fizeram, dentre outros
poetas, Carlos Drummond de Andrade. Embora não tenha incorporado seus
Versos de circunstância a suas antologias nem os tenha publicado
integralmente em vida, Drummond preencheu três cadernos intitulados
“Versos de circunstância”, que foram publicados recentemente em conjunto
no ano de 2011 pela editora 7 Letras. Nesses poemas, podemos observar de
maneira mais latente os versos de circunstância stricto sensu, caracterizados
por Pregrad Matvejevitch como poemas “indissociáveis dos eventos que os
fizeram nascer” (MATVEJEVITCH, 1979, p. 68), conforme percebemos no
exemplo a seguir:
XVI
Eliéser Magalhães, o bom avô, caduca
por Francisco, seu neto. Eu sou avô, e entendo.
De Paris a Bangkok, ou do Polo à Tijuca,
ser avô é da vida o melhor dividendo.
(A pedido de José Olympio)
(ANDRADE, 2011, p. 202)
XVII
A lição das coisas ao poeta
é de humilde sabedoria:
Pondo de lado a busca inquieta,
amar sua filha Maria.
E ter para Manolo e Toto
para Abiça e para Pedrinho
(três barcos, o mesmo piloto)
um só e quádruplo carinho.
(ANDRADE, 2011, p. 202)
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Versos de Circunstância. Org.
Eucanaã Ferraz. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011.
Sumário
Entre os anos 1964 e 1985, o Brasil viveu sob uma ditadura militar.
Durante esse tempo, a presidência da República foi ocupada
sucessivamente por generais do exército – Castelo Branco, Costa e Silva,
Médici, Geisel e Figueiredo – que insistiam em enfatizar o caráter
temporário do período, pois, diziam os militares, o movimento por eles
chamado de “revolução” previa apenas reestabelecer a ordem no Brasil e
salvá-lo do comunismo, pois, no início da década de 60, havia boatos de
que os comunistas dariam um golpe para fazer o Brasil se aliar à URSS. O
movimento de março de 1964 modificou as instituições do país através dos
atos institucionais (AI), suspendendo direitos políticos, punindo
responsáveis por crimes contra o Estado ou contra a ordem política e social,
perseguindo adversários do governo, instaurando a censura, dando fim ao
habeas corpus, implementando uma nova Constituição no Brasil. O regime
militar teve fim, mas deixou seus vestígios.
Referências
BOSI, Alfredo. Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34,
2015.
Sumário
Não fosse Josefina Ludmer nos deixar com essa opção em seu
derradeiro livro - Aqui América Latina: uma especulação - e dificilmente
teríamos essa abertura. Ali ela sugere usar a literatura como um mazo de
tarot; ou como borra de café; ou como lentes: dispositivos para mover
neurônios e tentar ver algo da incessante fábrica da realidade (2013, p. 9).
Pensar o continente latino-americano fazendo uso da literatura, usar os
livros como se fossem cartas; cartas náuticas?; bússolas éticas? É assim,
sem grande cerimônia - e com quanta liberdade -, que Ludmer apresenta seu
diagnóstico da pós-autonomia. E se é certo que sua abertura pressupõe o
abandono dos valores de literariedade, vertendo um pragmatismo da
imaginação literária quase tão descartável quanto a descida da tela de um
smartphone, o caminho não é automático: todavia nos solicita a atividade
artesanal de ensaiar um arranjo de leituras e abrir a mão: um após outro,
dispor os livros lado a lado na mesa, dar as cartas, reembaralhar, buscar
ajustar o foco. Os modos de ler são também formas de ação - ela ensinava
em seus seminários na Universidad de Buenos Aires da década de 80, após
a abertura democrática de uma brutal ditadura. Anos passados, estamos já
totalmente dentro dos dispositivos extrativistas que capturam, configuram e
regulam nossa experiência do mundo - era o que nos dizia há pouco a
última Ludmer.1 Não há retorno. E as saídas estratégicas ainda estão por
inventar.
1 LUDMER, 2013. Valemo-nos também das reflexões de Serge Margel (2017).
eu estudei na UERJ
e durante muitos anos da minha vida fiquei andando
por aquelas rampas
vendo o mundo de dentro daqueles quadrados.
[*definir: ruína]
(GARCIA, 2018, p. 16-7)
Estratigrafias latinoamericanas
Seguimos com alguma coisa na estante:
Como no livro de Estaregui, há aqui uma busca de ar, entre o gesto fóssil e
a reciclagem. Desde o título, a mineralidade indica a extrapolação da
historiografia em um compasso que dilata a temporalidade; e logo somos
levados a admitir que a circularidade dos acontecimentos rastreáveis no
solo desautoriza a narrativa dos currículos: na sala de História do
capitalismo no Brasil, aprendemos o ter sido colônia de exploração,
primeiro a seiva do pau-brasil, depois cana de açúcar, enfim a descoberta
das Minas Gerais e a extração de metais; vinha então o ciclo do café, a crise
de 29, a substituição das importações, a inserção periférica na economia
industrial, os esforços desenvolvimentistas, a interiorização integradora e a
pulsão automobilística, a globalização financeira, o agronegócio hi-tech; no
2020 próximo, no refluxo (esgotamento? fim de ciclo?) dos governos
progressistas à esquerda - recém ameaçado o bloco histórico responsável
pela redemocratização e pela constituição de 88 - estamos de volta ao
garimpo e às Minas Gerais: a Vale, o sucessivo rompimento das barragens
em Mariana, Brumadinho, evasão em Barão de Cocais: “A lama tomou o
lugar dos olhos - agora sim, pode-se ver o mundo”, diz um dos poemas,
anterior a todo este desenrolar da tormenta. Ruínas da megamineração.
Exemplares se fossem apenas aqui; porém, como diz Maristella Svampa
(2013), é antes um consenso das Commodities que move a
governamentalidade latino-americana, agora engajada no fraturamento
hidráulico. Para especularmos no compasso geológico dessa infrarrealidade
literal, seria preciso imaginar uma ‘teoria do subsolo’ - dizia Ludmer (2013,
p. 125) – que vinculasse a todos com a água e o petróleo; e é também para
isso que aponta um poema de Cálcio (p. 55), contra a imagem de uma
América latina sorridente: “(Veja a terra aberta: não outro é o sorriso deste
continente)”.
Referências
ANTELO, Raúl. A ruinologia. Desterro [Florianópolis]: Cultura e
Barbárie, 2016.
______. Para onde vão os cães?. Trad. Masé Lemos. Inimigo Rumor
16. Rio de Janeiro: 7 Letras; Cosac Naify, p. 38-49, 2004.
Sumário
Introdução
Os estudos e a crítica dos escritos de Lima Barreto entrecruzam-se
com a história do Rio de Janeiro no limiar do século XX. Nascido e criado
no Rio de Janeiro em 1881, Afonso Henriques de Lima Barreto, negro e
pobre, sofreu na pele as transformações sociais, o preconceito e a exclusão
que circundavam o raiar da modernidade na capital do Brasil. Suas obras e
escritos elucidaram as tensões culturais e históricas que surgiam dessa nova
sociedade brasileira que se inseria na Belle Époque.
Em outro momento, sem data no seu Diário Íntimo, Lima registra sua
indignação diante das medidas de violência e de exílio do governo
brasileiro e ressalta que o país continua a tratar o povo desafortunado e
humilde como escravos:
Nesse sentido, nota-se uma semelhança com o tipo flâneur criado pelo
processo de modernidade segundo Walter Benjamin e Baudelaire. No
ensaio “O pintor da vida moderna”, Baudelaire cria o termo modernidade
para caracterizar o novo, o belo e os costumes de uma época: “A
modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte,
sendo a outra metade o eterno e o imutável.” (BAUDELAIRE, 2006, p.
859). O homem que é fruto dessa modernidade, “solitário dotado de uma
imaginação ativa” (2006, p. 859) busca para si extrair o “poético no
histórico” e “o eterno do transitório”. Baulelaire utilizará o termo flâneur
referindo-se ao “homem da multidão”.
Considerações finais
Nota-se que é sob a visão da realidade que as subjetividades de Lima
Barreto se configuram: o autor e sua obra se tornam um imenso espelho,
atentos aos movimentos e a fugacidade das multidões. Lima retratou
personagens dos mais variados tipos, do burocrata ao militar, dos subúrbios
aos artistas de teatros, vadios, prostitutas, ébrios policiais, intelectuais,
políticos, loucos, criminosos, leprosos, ex-escravos, mulheres arrimos de
família e praticamente todo o Rio de Janeiro do seu tempo. (SEVCENKO,
2003, p. 192). Os ambientes da narrativa são os mais diversos: bares,
bordéis, favelas, prisões, hospício, cortiços, trens, zonas rurais, ruas, praias,
jardins, cinemas, teatros, tribunas e oficinas (SEVCENKO, 2003).
Referências
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922.
11. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
BARRETO, Lima. Diário do hospício; O cemitério dos vivos / Lima
Barreto. Prefácio de Alfredo Bosi. Organização e notas de Augusto Massi e
Murilo Marcondes de Moura. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2017.
Sumário
Asimov e os neologismos
No conto “Robot Dreams”, podemos dizer que o novum que Asimov
introduz é a robótica: no mundo ficcional da narrativa, robôs humanoides
fazem parte do cotidiano. Para fundamentar essa nova visão de mundo, o
autor cria o termo positronic (em positronic brain – cérebro positrônico) –
com base na descoberta do pósitron, a antipartícula do elétron, alguns anos
antes –, além do termo robotics (robótica), também cunhado por ele,
embora tal ciência ainda não existisse (PILKINGTON, 2017a, 2017b).
Como discutimos acima, o neologismo é uma característica comum nos
textos de ficção científica, e um dos possíveis desafios para o tradutor. Por
isso, algum conhecimento tecnológico-científico é desejável, além de
familiaridade com o gênero, já que, não raro, autores pegam emprestados de
outros autores conceitos científicos ou tecnologias ficcionais para empregar
em suas próprias narrativas. O próprio vocábulo robot (robô), que originou
robotics, é um exemplo disso, tendo sido originado na peça do autor tcheco
Karel Tchápek A Fábrica de Robôs, de 1920.
Hoje, por outro lado, não vivenciemos essa mesma situação: embora a
internet pareça ser uma fonte inesgotável de informação, é possível
argumentar que muitas barreiras ainda existem, principalmente para os
tradutores, que via de regra necessitam consultar domínios fora de seu país
de moradia. Nossa pesquisa, por exemplo, por um lado foi facilitada pela
digitalização de obras para consulta on-line realizada por plataformas como
o Google Livros; por outro, encontrou obstáculos ou na mesma plataforma,
que costuma disponibilizar apenas visualização parcial das obras com
direitos autorais, ou por ter acesso bloqueado a certos domínios devido ao
país de localização. Essa questão merece uma reflexão maior do que a que
podemos oferecer agora, mas que vale ser mencionada no contexto da
tradução de FC.
Considerações finais
Neste breve texto, fizemos algumas reflexões preambulares sobre a
tradução de ficção científica para o português brasileiro. Abordamos
algumas das propriedades singulares desse gênero literário que exigem uma
atenção redobrada do profissional de tradução, como a presença de uma
novidade científica, um novum (SUVIN, 1972), que gera uma nova
realidade ficcional e um suporte linguístico correspondente, em geral com
emprego de neologismos e vocabulário técnico-especializado, que deverão
ser trasladados de forma plausível, levando em conta o conhecimento já
produzido na cultura de chegada (MACLEAN apud KALLIOMÄKI, 2007).
Por se tratar de um gênero que demanda proficiência não apenas na
tradução literária, como também na técnica, a tradução poderá implicar a
pesquisa sobre conhecimentos científicos de ponta que figurem na
narrativa. Devido à desigualdade econômica e tecnológica entre os países,
esse trabalho de pesquisa lexical inerente à tradução pode ser dificultado ou
até impossibilitado, dependendo do contexto de cada país. O acesso à
informação, portanto, é uma necessidade da tradução de FC e um fator
determinante para a qualidade do texto de chegada.
Referências
ASIMOV, Isaac. Psico-história. Isaac Asimov Magazine, Rio de
Janeiro, n.3, 1990, p.5-9.
Sumário
O presente artigo tem por objetivo refletir acerca do papel dos objetos
e dos ambientes e seu caráter simbólico na literatura e no cinema, mais
especificamente no conto “A Solução” presente na obra O Mundo Inimigo,
do escritor contemporâneo Luiz Ruffato. Observaremos como a
personagem principal se relaciona com sua cidade natal e o quanto esse
ambiente afetou sua vida, influenciando os âmbitos pessoal e profissional, e
a representatividade dos objetos como forma de reflexo da camada interior
dos personagens, bem como os demais elementos que compõem os
ambientes.
Hélia nutre uma fantasia baseada nos clichês das histórias românticas
difundidas no imaginário de tantas meninas e que, para a personagem, seria
uma espécie de solução. O estereótipo de beleza no qual ela se apoia revela
o perfil de uma pessoa que geralmente é retratada como o galã possuidor de
alguma fortuna e que arranca a mocinha de uma vida de miséria e
infelicidade, exatamente como Hélia espera que lhe aconteça.
Hélia tem diante de si dois mundos distintos que alimentam sua raiva e
sua esperança. Hélia tem plena consciência do que poderia ser sua vida
porque o caminho da fábrica e o trajeto da volta para casa evidenciam a
separação desses dois mundos, Helia transita pelas fronteiras e é ferida por
elas. Nas palavras de Pasolini, referindo-se a um contexto bastante
semelhante:
A personagem segue para a ponte sob a qual passa o Rio Pomba. Lá,
deixa seus pensamentos fluírem e constata que seu futuro já fora traçado.
Hélia não cogita ir embora sozinha, não tem força nem iniciativa de tentar a
vida fora da cidade sem alguém que a ampare. Seu destino na fábrica está
acontecendo. Não há príncipes, não há mesas no Clube Central reservadas
para ela, não há casamento promissor, não há uma casa em uma cidade
distante, não há esperanças:
Sozinha na ponte Hélia pensa na vida que nunca terá: o Clube Central,
roupas boas, festas, bebidas, dinheiro, poder e o conforto e felicidade que
esse estilo de vida pode trazer. Hélia não olha, mas sabe que aquela imagem
está atrás dela se ela se atrever a olhar; entretanto, não é essa a última coisa
que ela quer ver antes de morrer. À sua frente está o curso do Rio Pomba:
casas à beira, sujeira, resíduos das fábricas, pedras, lama. Ainda que Hélia
se jogasse seu corpo ele iria parar em outro cortiço, afundaria na lama, nos
restos e na pobreza circundante. Nem mesmo na morte Hélia se distanciaria
da realidade que teve em vida.
Por mais que Hélia lute para manter as esperanças de um futuro longe
do beco no qual mora e constantemente alimente suas fantasias de menina
com um príncipe que nunca virá, ela acaba por estar sempre no mesmo
lugar, girando em círculos, num redemoinho que a puxa para as profundezas
de uma vida infeliz. Hélia é sufocada pela rotina, trabalho, pela vergonha,
pobreza e pela ilusão quebrada de um final feliz que jamais chegaria.
Hélia apenas sobrevive, assim como tantas outras Hélias, tantas outras
pessoas que vivem o “inferno provisório” que nomeia a saga. A obra de
Luiz Ruffato expõe uma personagem estagnada dentro de um país
decadente, evidencia o proletariado e o destino de pessoas presas a um
sistema que não luta por elas, mas as encurrala em uma rotina de exaustão
em prol da própria subsistência e por não conhecerem ou não julgarem ser
possível uma transformação nessa vida de frustração, acabam por perpetuar
o ciclo de geração em geração.
Posto isso, as nuances podem ser encaradas como pequenas peças que
nos auxiliam a entender o que não está explícito ou que ratifica algo que já
vem sendo demonstrado pelos personagens e construído ao longo da
história narrada. Perceber as entrelinhas de uma narrativa consiste em
decifrar a representatividade dos elementos que integram e acompanham o
enredo, pois ainda que pareçam triviais, podem ser de grande relevância e
significação no contexto no qual se encontram os personagens, o que pode
nos proporcionar maior alcance acerca do âmago dos personagens.
Referências
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Trad. Antônio de Pádua
Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2005.
Sumário
Introdução
Édipo Rei (2017) é uma das peças mais lidas e estudadas na história do
teatro ocidental. A partir dela, o filósofo grego Aristóteles cria a sua
Poética (2005), uma obra que, embora fosse apenas um parâmetro daquilo
que o filósofo entendia por características de uma tragédia – seu
funcionamento e sua função –, ao longo da história do teatro, ela foi tomada
como um princípio, muitas vezes, ortodoxo, que serviria como um
protocolo dogmático para os dramaturgos, amiúde, em épocas de
prevalentes classicismos. Entretanto, não se pretende aqui fazer uma análise
do drama de Sófocles voltada para o seu caráter basilar, ou mesmo
“fundacional”, como se as definições aristotélicas fossem princípios
inalienáveis que determinassem o texto. Definitivamente, não. O que se irá
propor é uma reflexão sobre as características verbais da obra que,
decisivamente, revelam sua dramaticidade, conforme o silêncio é rompido
pela tagarelice do Rei, mesmo que esse, o silêncio, já possua, de modo
latente, toda a potencialidade catártica do devir trágico e, ao mesmo tempo,
a anulação desse, num movimento de ambivalência, que faz das
impossibilidades da peça possíveis encruzilhadas de elucidação.
Sendo o medo tanto uma constante na obra Édipo Rei (2017) quanto
no teatro trágico, como já anunciara Aristóteles:
A intangibilidade da fala
Tagarelice e seu reverso andam juntos durante toda a trama, pois, se
por um lado há a história declarada de um herói “imbatível”, de outro há
uma outra história, frequentemente alterada, ou melhor, que se quer
contornada, a daquele que declinará independentemente de suas vontade e
força. Por esse motivo, a concomitância de “verdades”, faz-se necessário
atentar para a linguagem na peça, e não se diz em questões de tradução,
mas, sim, no que tange ao que é contado e quais são as relações entre o dito
e, principalmente, o não dito, o que se percebe na constante falta de
negociação entre a linguagem dos deuses e a linguagem dos homens, que
promove recursivamente a catástrofe, visto que, sempre que ocorre um
diálogo (in)direto entre tais polaridades, há algum tipo de desencontro
semântico entre as personagens, que parecem se perder quanto mais buscam
sentido nas palavras que lhes são ofertadas, ratificando, assim, a
(in)acessibilidade da linguagem dos deuses como reflexo daquela dos
homens, que, embora seja imediata (no plano físico), quando do contato
com os oráculos, é também mediata (no plano metafísico), pois o seu
sentido só será conformado em um tempo a vir e que não poderá ser
revogado, porque a profecia já terá sido cumprida, como na fala veemente
do Sacerdote que implora a Édipo que liberte novamente o povo de Tebas:
E:
Conclusão
O que se quis mostrar neste capítulo foi o encontro entre elementos
completamente distintos, mas ao mesmo tempo interligados, tais como o
silêncio e a fala, os planos metafísico e físico, e os desencontros da
comunicação entre esses; o silêncio e o som que são atravessados pela
intangibilidade da fala, ao passo que o caráter revelador da palavra, da
forma, torna-se, muitas vezes, inatingível, gerando, desse modo,
dispositivos trágicos, a saber, gatilhos para a fundação da constelação de
caráter mortal: a inalterável ruína da casa do Rei, parricida, de Tebas, no
drama de Édipo Rei (2017). Tentou-se desse modo expor, ainda que
brevemente, alguns oximoros que, demais e paradoxalmente, se
aproximam, como o casamento eterno entre divorciados contínuos: forças
que competem por um lugar ausente, enquanto negociam suas presenças,
que serão intervaladas pela falta preenchida apenas com os possíveis
fragmentos de compreensão que, ademais, promovem de modo certeiro o
avesso daquilo que se busca quanto mais se busca, assim como a
orquestração prévia e o treino indicam a ordem que subjaz ao espetáculo,
mesmo que a sinfonia não agrade a todos ou a ninguém. O efeito catártico
será produzido independentemente da vilania opcional ou irracional das
personagens. Mas o que se quer refletir adiante é para que serve o medo
nesta teoria das emoções? O medo do intangível e inelutável, que faz da
personagem uma marionete dos deuses, ou da verdade? e que produz uma
constante vontade de fugir de si mesma? Esse refúgio que faz de Édipo o
(re)inventor de si e que constrói a história, sempre, de um Outro culpado,
como ocorre quando o rei projeta no irmão de sua esposa, Creonte, todas as
fúrias que procura repudiar em si, sem querer assumi-las, delimitando o
Outro à finitude estereotipada do ganancioso. Por conseguinte, e no
próximo ensaio, serão analisadas questões como o medo metafísico,
enquanto um medo de ser incontestavelmente marionete dos deuses, e a
necessidade das personagens de construir refúgios de salvaguarda, para que
elas não se autodestruam nem entrem em colapso com a domesticação
inescrutável de seus inconscientes, ao passo que tentam forjar um Outro,
reconstruindo as próprias existências, alterando as de Outros.
Referências
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética clássica. São
Paulo: Cultrix, 2005.
Sumário
Introdução
Literatura de massa pode ser definida como:
Bourdieu afirma:
Para Paulino:
Segundo Paes:
Numa cultura de literatos como a nossa, todos sonham ser
Gustave Flaubert ou James Joyce, ninguém se contentaria
em ser Alexandre Dumas ou Agatha Christie. Trata-se
obviamente de um erro de perspectiva: da massa de leitores
destes últimos autores é que surge a elite dos leitores
daqueles, e nenhuma cultura realmente integrada pode se
dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literatura de
proposta, uma não menos vigorosa literatura de
entretenimento. (1990, p.37)
Ou seja, todo leitor parte de algum lugar. Ninguém nasce lendo Tolstói
ou Kafka. E a literatura de entretenimento não impede que, futuramente,
esse leitor passe a desfrutar de uma literatura de proposta. Estudar o
impacto da literatura de massa na formação do leitor ajuda no
entendimento da sociedade, conforme afirma Culler:
Ler uma literatura considerada inferior não impede que, mais tarde,
esse leitor passe a consumir uma literatura mais rebuscada, entretanto, a
busca constante por histórias de amor com um final feliz pode servir como
base para uma pesquisa mais aprofundada do perfil desses leitores que, na
sua maioria, é formado por mulheres. Estariam os leitores sendo
influenciados por aquilo leem ou buscam na leitura aquilo que falta em suas
vidas?
Considerações finais
Mais que fazer da leitura apenas o caminho do lúdico, os leitores
interatuam com os textos, envolvem-se e muitas vezes buscam estabelecer
relações entre as suas experiências pessoais e as formulações ficcionais.
Quando inicia a leitura, o leitor prova uma sensação: envolve-se com a vida
do outro, tornando a relação entre os dois sujeitos, o leitor e o texto,
dialógica, já que, durante a leitura, o leitor troca a própria subjetividade por
outra, deixando, momentaneamente, suas necessidades e é tomado pelo
desconhecido, trazendo para perto de si algo estranho, instante em que
prova a alteridade como se fosse ele mesmo, colocando-se no lugar do
outro, mas sem nunca deixar o mundo real, que a leitura toma como pano
de fundo para que o texto tenha sentido.
Referências
ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. São Paulo, Ática: 1986.
PAES, José Paulo. A Aventura Literária. São Paulo, Cia. das Letras,
1990.
Sumário
Após criar esse contraponto, Antônio de Pádua Dias Silva defende que
o título de obra fundadora da literatura homoerótica no Brasil ser Bom-
Crioulo se dá por algumas especificidades, como podemos ver no seguinte
fragmento:
As estórias de Bom-Crioulo e “O menino do Gouveia” são
fundamentais para se pensar a literatura brasileira de
temática gay, porque não só despertam no leitor o aspecto
político para o qual apontamos, mas, sobretudo, expõem o
universo da subcultura gay: a forma como a sociedade pensa
essa subcultura, sem deixar de exibir o sujeito gay na sua
particularidade, sendo descrito/narrado através de recursos
técnicos próprios de uma arte que se centra na sua gramática,
na sua sintaxe, no seu código, como é a literatura de ficção,
encerrando na ficcionalização do discurso aspectos de
desejos filtrados pelo olhar gay, não como afronta a uma
norma, a uma prática, a um dado cultural, mas como
mecanismo de visibilização de aspectos até então não
representados (e rechaçados), seja no contexto material-
empírico da sociedade, seja na representação literária.
(SILVA, 2012, p.88)2
2 Em 1914, na revista Rio Nu, foi publicado “O menino do Gouveia”, de autor anônimo, cujo pseudônimo era Capadócio Maluco. James N. Green e Ronald Polito (2006)
colocam esse conto como o primeiro texto a retratar o homoerotismo de forma pornográfica no Brasil, inclusive, narrando as relações homoeróticas sem trazer toda a carga moralista
do período em que foi escrito.
Por Caio sempre ter tocado em temas que não eram considerados
literários, como homossexualidade, drogas, sexo, entre outros, o escritor foi
mantido à margem da crítica. Porém, em 1994, após levar a público sobre
sua sorologia, a mídia acabou o colocando em evidência. “A Aids foi além
da literatura de Caio, mas, principalmente, pela mistura e, às vezes,
superposição da vida sobre a obra que a Aids propiciou” (BESSA, 2002,
p.30), e isso porque, após saber ser positivo, sua vida se tornou mais
importante do que sua obra para os meios de comunicação.
Dessa forma, após termos feito esse panorama sobre como o cânone
literário lidou com obras que abordassem a temática homoerótica, tendo em
mente que houve um silenciamento discursivo até o fim do século XX, fica
em evidência o fato de que até meados da década de 1970/1980 não
tínhamos muitos escritores que abordassem em sua literatura relações
homoeróticas que permitissem o aprofundamento da subjetividade desses
personagens. Esse cenário só começa a mudar com o surgimento de
escritores como Silviano Santiago, o próprio Caio Fernando Abreu, João
Gilberto Noll, Lucio Cardoso, entre outros, que ganharam espaço dentro do
cenário literário nacional, rompendo, de certa forma, a barreira que havia no
cânone com escritores/obras que tematizassem a relação entre pessoas do
mesmo sexo sem transformá-las em uma mera caricatura/representação.
Referências
ABREU, Caio Fernando de. Os dragões não conhecem o paraíso. In:
Contos completos. São Paulo: Campainha das Letras, p.421-528, 2010.
Sumário
Mahmud Darwish1
1 O referido poema representa um dos escritos de resistência mais marcantes para o povo palestino e, assim como Handala, também é considerado um símbolo.
Todavia esse mesmo estado de coisas, por mais que perdure por um
certo período, acaba por trazer questionamentos por parte daqueles que a
ele se encontram ligados sobretudo se os valores outrora enaltecidos
durante campanhas ou manifestações se mostram diametralmente opostos à
realidade circundante.
Considerações Finais
O objetivo deste artigo é propor a observância acerca das mazelas
enquanto catalisador de poder e efetivador do Medo nas sociedades que se
encontram sob a égide de governos aparentemente “democráticos” mas que,
em verdade, buscam a dominância não só no tocante à questão territorial
como, sem dúvida alguma, por meio da Cultura e também da Economia.
Referências
AL-ALI, Naji. Uma criança na Palestina. Trad. Rogério Bettoni. São
Paulo: Martins Fontes, 2011.
Anderson Guerreiro
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense
Nathália Primo
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense
Paloma Roriz
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense
Vinícius Ximenes
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense
Carolina Lauriano Soares da Costa
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense
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