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Waleska Rodrigues de Matos Oliveira Martins, UFRB


APRESENTAÇÃO
O MUNDO DAS PALAVRAS E AS PALAVRAS NO MUNDO

Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não


se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa.
O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o
húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem por
sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e
as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão1. (José
Saramago)
1 SARAMAGO, José. “As Palavras” in. Deste Mundo e do Outro. Lisboa: Editorial Caminho, 1997, p. 55 – 56.

Muito já se disse sobre o mundo das palavras e também sobre as


palavras no mundo. Hoje, porém, quero falar sobre o silêncio que precede
os discursos. O silêncio a que me refiro não é o da indiferença, tampouco é
o da cumplicidade amedrontada ou da permissividade pactuada. A ausência
de articulação sonora, de barulho ou ruído aqui está vinculada à necessária
atitude de buscar o recolhimento para refletir sobre si, sobre o mundo, sobre
as ideias que dão forma ao mundo e ao ato de existir. Penetrar no mundo
das palavras faladas requer de nós a capacidade de ponderação. Transpor a
seara das palavras faladas para ir em direção das palavras escritas exige
uma atitude meditativa e reflexiva mais intensa. Semelhante à ação do
monge, que busca no silêncio do afastamento o ambiente necessário para o
encontro com a deidade, aqueles que transitam pelo universo da palavra
escrita precisam também do retiro temporário, para dar forma e consistência
às suas inquietações. Entretanto, a meu ver, cessa aí a semelhança entre
monges e escritores. Enquanto aqueles, pelo menos em tese, concentram
seus esforços na obstinada busca da transcendência espiritual, esses
necessitam manter os pés muito bem fixados no chão e suas sensibilidades
em plena sintonia com as coisas ordinárias da vida.

O poeta Vinicius de Moraes2, que também foi exímio prosador (autor


de peças teatrais, crônicas e críticas de cinema), ao abordar os desafios do
trabalho com a Arte faz uma reflexão muito elaborada sobre o fazer
artístico que, seguramente, ilumina a discussão em andamento.
2 MOARES, Vinicius de. “Arte e Síntese” In. Poesia Completa e Prosa. Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 1998. p. 201.

Arte não é só "fazer": é também esperar. Quando o veio seca,


nada melhor para o artista que oferecer a face aos ventos, e
viver, pois só da vida lhe poderão advir novos motivos para
criar. Nada pode resultar mais esterilizante que o encontro de
uma síntese, se ela não for, como na vida, a conseqüência de
uma análise que se retoma a partir dela. Encontrar uma
fórmula é, sem dúvida, uma forma de realização; mas
comprazer-se nela e ficar a aplicá-la indefinidamente, porque
agradou, ou compensou, constitui a meu ver uma falta de
caráter artístico. Como nas ciências positivas, o encontro de
uma síntese deve ser o ponto de partida para a busca de
outra, e assim por diante, até o encontro dessa grande e única
verdadeira síntese que é a morte. (MORAES, 1998, p. 201)

Na despretensão das coisas corriqueiras que circundam o gênero


crônica, Vinicius de Moraes desenvolve uma ideia que poderia figurar
tranquilamente em qualquer obra teórica sobre os desafios da Arte. A nós,
nos interessa pensar, em particular, os postulados do poeta, a partir da
perspectiva do trabalho com a literatura e, por extensão, com a atividade da
crítica. As formulações do escritor carioca quando confrontadas com os
pontos sobre o silêncio desenvolvidos no início da presente reflexão,
assinalam o caráter dialético das visões expostas.

A apreciação sobre a postura do artista frente ao ato criador ressaltada


na crônica “Arte e síntese”, inicialmente, pode parecer contraditória diante
do elogio do silêncio feito na abertura desta apresentação. A admoestação
do poeta, para que o artista redescubra os motivos para criar a partir de sua
inserção no mundo, parece oposta ao ato de se retirar em busca do silêncio
organizador das ideias. Estaríamos assim, à primeira vista, diante de
posturas contrárias, incompatíveis e irreconciliáveis. Contudo, observadas
com mais vagar as duas posições são complementares e, nesse sentido,
dialéticas. O cerne de cada ideia expressa a preocupação com o ato criador
e, ao contrário do que se pode supor, o ato de se recolher em silêncio não
sugere uma exclusão do mundo ou desligamento da vida que pulsa nas ruas.
O afastamento aqui proposto favorece a uma visão mais nítida do quadro
geral das coisas, ajudando a regular o pensamento e ajustar o ângulo de
observação sobre o abjeto de análise.

A continuidade do excerto de Vinicius de Moraes traz ainda uma


recomendação importante para aqueles que se ocupam da produção dos
discursos literários e críticos. Ao ressaltar o perigo esterilizante de repetir
indefinidamente uma fórmula porque ela funcionou, o escritor propõe uma
atitude ativa frente ao ato de escrever. Embora reconheça a importância de
se alcançar uma síntese, na perspectiva do poeta, ela só teria validade se
fosse o ponto de partida para o encontro de outra síntese, o que
possibilitaria a permanente transformação da visão artística e também da
crítica.

Compreender com mais propriedade o mundo das palavras e as


palavras no mundo requer de nós uma atitude dialética diante da tarefa de
produzir discursos das mais diferentes ordens. Nos campos literário e
crítico, especialmente, é necessário assumir uma posição de permanente
dúvida diante dos enunciados elaborados, a fim de se chegar a resultados
sólidos, porém, construídos sob a égide da constante transformação.
Duvidar analisar e escrever implicam em uma atitude desprendida e de
humildade artística e acadêmica. Mover-se pela desconfiança e pela dúvida
no campo da construção dos discursos é condição incontornável para quem
trabalha com Arte e com pesquisa acadêmica.

O silêncio criativo pode se dar em diferentes ambientes, como por


exemplo, no espaço de um escritório ou no rumor das ruas que fazem do
artista e do crítico seres absolutamente grávidos da vida concreta. Esse
mundo que pulsa nas mais variadas atmosferas humanas servirá de matéria
de memória e será decisivo tanto para a atividade literária, quanto para a
crítica. Nesse sentido, o silêncio meditativo é companhia indispensável para
aqueles que se lançam na empresa da construção dos discursos em suas
diversas modalidades.

José Saramago, no trecho aqui selecionado como epígrafe, além de


destacar a especificidade meditativa e analítica do silêncio, reafirma o
cunho fecundo dessa atitude. Ao chamar a atenção para a fertilidade do
silêncio, Saramago instaura uma posição dissonante em relação a uma
parcela significativa da sociedade contemporânea. Se considerarmos que a
espetacularização do presente trouxe consigo a necessidade do permanente
protagonismo através da enunciação irrefreável de discursos, o elogio do
silêncio feito pelo escritor português assume o aspecto de uma espécie de
desafinação do coro dos contentes. A posição incentivada pelo romancista é
contra hegemônica do ponto de vista social, político e histórico, uma vez
que o status quo referenda a incessante enunciação discursiva, mas quase
sempre sem dar escuta efetiva a esses discursos. Às forças hegemônicas
pouco importam os sucessivos enunciados, especialmente se eles se
converterem em ruídos não perturbadores da ordem. Daí a posição
intelectual de compreender a centralidade do silêncio ser fundamental para
a construção de discursos densos, capazes de lançar luz sobre zonas cinzas
da experiência humana.

Juntamente com o primeiro e o segundo volume da Coleção Literatura


e movimento: pesquisa e investigação, esse terceiro volume que agora
chega aos leitores inaugura uma nova etapa das reflexões discentes no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura, da
Universidade Federal Fluminense. Ao reunir trinta e dois estudos diferentes
entre si, ordenados a partir das linhas de pesquisas: Literatura, Teoria e
Crítica Literária e Literatura Intermidialidade e Tradução, a presente obra
abre espaço para que as reflexões discentes sejam enfeixadas em forma de
livro eletrônico, com a consequente ampliação do horizonte de alcance dos
trabalhos.

A Coleção Literatura e movimento: pesquisa e investigação evidencia


a vitalidade do Programa. As gerações de Mestres e Doutores formadas e
em formação no campo dos Estudos Literários na Universidade Federal
Fluminense têm demonstrado grande empenho e compromisso com a
investigação acadêmica de qualidade. Ao leitor fica o convite para percorrer
as páginas que se seguem, a fim de descobrir de maneira pormenorizada um
pouco do conhecimento que a Universidade pública brasileira, a despeito de
tantos ataques e tentativas de descrédito, vem realizando.
Por fim, é preciso reiterar que a presente reunião de pesquisas traz a
marca imprescindível do exercício do silêncio reflexivo, aquele que José
Saramago nomeou como “o húmus do ser”. Os discursos críticos aqui
enunciados apresentam-se como “a melodia calada sob a luz solar” e este
livro, consequentemente, afigura-se como o solo por onde caem as palavras.
Nossas expectativas e esperanças residem na percepção de que o trabalho
de depuração efetuado pelas autoras e autores desses textos redundaram na
colheita do trigo abundante e produtor do bom pão.

Niterói, 22 de setembro de 2020 – Primavera.

André Dias
Professor e Vice-coordenador
PPG em Estudos de Literatura da UFF.
SUMÁRIO

A rosa do povo ou a rosa de Carlos: Uma poética de comunhão


e reclusão

Autoficção e performance: A expansividade do campo


literário

Tempo e memória no museu de Cabral

Foto-grafia: Capturar imagens pelas palavras

Entre escritas de si e do outro em Llansol: Leitura de "Uma


data em cada mão - Livro de horas I"

A ferocidade que habita o homem: A autenticidade


relacionada com a manifestação literária

Guy de Maupassant: O silêncio fantástico

O passado como experiência comum em Patrício Pron,


Diamela Eltit e Luiz Ruffato

Uma análise do romance Desamparo de Inês Pedrosa

Adília Lopes e Angélica Freitas: Poetisas em diálogo

World literature hoje: Por um diálogo transnacional entre


culturas
Sintomas de uma crise: O corpo como um lugar distópico em
O céu dos suicidas

O risco da passagem: A mística feminina em Geografia de


rebeldes, de Maria Gabriela Llansol

Redescobrindo veredas: Uma abordagem crítica da categoria


do super-regionalismo de Antonio Candido

"Começo a ver o que não é visível": Paisagem e subjetividade


na poética de João Miguel Fernandes Jorge

Citação, alegria do trabalho manual

A paródia, a metaficção e o policial em Luís Fernando


Verissimo e Jô Soares

Crítica e conhecimento em José Cardoso Pires

Narrativas do passado: Paul Ricoeur e a condição histórica

O realismo contemporâneo: A tentativa de retratar a real


sociedade brasileira na ficção em prosa O matador, de Patrícia
Melo

Loucura e AIDS: Questões biopolíticas na obra de Caio


Fernando Abreu

O poema como circunstância: Apontamentos sobre a poesia


de Manuel de Freitas e Carlito Azevedo

O intelectual e a luta política no período ditatorial


Compasso, terra, teoria do poema: Estratigrafias
latinoamericanas

O Flâneur da Belle Époque e o Rio de Janeiro: Lima Barreto e


as turbulências da modernidade

Reflexões preambulares sobre a tradução de ficção científica


estadunidense para o português brasileiro

As representações das nuances emocionais das personagens e


do imaginário rural e urbano no conto "A solução" de Luiz
Ruffato

Os reis em silêncio em Édipo Rei

Dos folhetins ao Wattpad: Um estudo da literatura de massa


no Brasil

A representação homoerótica na literatura brasileira: Um


vazio discursivo do século XIX ao fim do XX

Uma criança na Palestina: Naji Al-Ali e a denúncia vertida


em pena e nanquim

Autores

Pangeia Editora
RESUMO

A rosa do povo ou a rosa de Carlos: Uma poética de comunhão


e reclusão
Ana Carolina Botelho

O presente artigo visa discutir como Carlos Drummond de Andrade, em A rosa do povo – livro
que traz poemas elaborados em uma fase mais madura do escritor modernista –, resiste à
permanência em uma só dicção, construindo uma poética nessa obra que ora se destina à
coletividade, ora se volta para o próprio poeta. Por isso, serão analisados poemas que trazem um
discurso de comunhão alicerçado nas ideologias sociopolíticas de Drummond na década de 1940,
como também composições que exploram única e exclusivamente uma atitude de reclusão do
escritor, que, além de evocarem figuras como Itabira e o passado familiar do poeta, também se
contrapõem ao canto geral de coletividade, criando um aparente paradoxo. A fim de fundamentar a
discussão, recuperaremos o brilhante estudo a respeito de poesia e resistência de Alfredo Bosi (2000)
e a análise dos tensionamentos existentes em A rosa do povo feita por Antonio Carlos Secchin
(2014).

PALAVRAS-CHAVE: poesia, resistência, coletividade.

Autoficção e performance: A expansividade do campo


literário
Anderson Guerreiro

A partir do conceito de literatura expandida, fenômeno que pode ser compreendido como o fato
das narrativas contemporâneas, assim como seus escritores, não se limitarem a transitarem tão
somente nos seus meios e suportes, ou seja, não se enquadrarem numa literatura puramente literária
em que procedimentos, meios e condições de produção não obedecem unicamente a esse campo,
entendemos que os textos autofictícios abrem diversos questionamentos sobre o estatuto da ficção,
sobre a configuração da figura do autor e as delimitações do campo literário, essas narrativas também
possibilitam novas formas contemporâneas da escrita e da literatura. Nesse sentido, a articulação
entre performance e escrita e as nuances da autoficção ao embolar ficção e realidade são questões que
gostaríamos de explorar a fim de ilustrar um caso típico que pode ser compreendido como essa
expansividade do campo da literatura contemporânea latinoamericana. A escrita performática da
autoficção causa um efeito sobre o texto que impossibilita a leitura com base nas categorias de
gêneros definidas pelo campo da literatura, tampouco o comportamento do autor se iguala ao de sua
categoria na literatura autônoma. Portanto, consideramos que este tipo de escritas, atentando seus
efeitos no texto e no leitor e o panorama literário contemporâneo explorado pela crítica, contribui
para que haja uma expansividade do campo literário e consequentemente um não pertencimento
exclusivo a esse campo, tornando uma literatura, cada vez mais, “fora de si”.

PALAVRAS-CHAVE: Autoficção; Performance; Literatura expansiva.


Tempo e memória no museu de Cabral
André França Rocha Borba

Museu de Tudo, livro de João Cabral de Melo Neto publicado em 1975, apresenta uma
contradição logo no título. Há um paradoxo entre a seletividade esperada de um museu e a variedade
temática apresentada nos poemas. Dentre os assuntos, é possível perceber que há uma forte presença
da memória e considerações sobre o tempo. Para Senna (1980), a memória permeia a obra cabralina e
se adensa gradativamente. O século XX, justamente, é marcado pela emergência da memória como
uma preocupação constante na produção artística e literária. Assim, nos interessa revisitar a poética
de João Cabral a partir do novo fôlego proporcionado pela contemporaneidade e investigar como
tempo e memória se fabricam em Museu de Tudo não apenas como temas, mas como forças que
atravessam o livro. Mais do que uma análise temática, procuraremos discernir como o autor mobiliza
a memória como uma força constituinte da sua escrita. Trata-se de um movimento de reconhecer a
memória não por um viés sociológico, mas, antes, estabelecer como a recordação - no sentido de
Assmann (2011) - se fabrica entre poeta e obra. Se João Cabral era publicamente conhecido por sua
racionalidade e cuidado formal, percebemos que na obra em questão emergem potências outras para
configurar o poético.

PALAVRAS-CHAVE: Memória; Poesia; Literatura brasileira; João Cabral de Melo Neto

Foto-grafia: Capturar imagens pelas palavras


Brendo Vasconcellos de Faria

Este trabalho visa a refletir, no contexto da obra poética de Luís Quintais, poeta português
contemporâneo português, a constituição da subjetividade lírica em relação ao espaço urbano e à sua
antropologia. À vista disso, examino a técnica de observação lírica estabelecida pelo poeta cujo
processo muito se assemelha à técnica fotográfica, por meio da qual ocorre a focalização de um
determinado aspecto da composição fotográfica em função do enquadramento escolhido. Associando
duas textualidades que concernem à produção artística desse autor: a sua poesia e a sua fotografia,
observo que Quintais provoca a contemplação minuciosa de espaços que são marcados por elementos
de tensão os quais levam à percepção da ausência e das ruínas. Por fim, como base para a abordagem
teórico-crítica, vale-se dos estudos de Didi-Huberman, sobre imagem e percepção; de Roland
Barthes, sobre o signo fotográfico e de Sotang, sobre as relações entre fotografia, individualidade e
memória.

PALAVRAS-CHAVE: Luís Quintais; imagem poética; fotografia; poesia portuguesa


contemporânea.

Entre escritas de si e do outro em Llansol: Leitura de "Uma


data em cada mão - Livro de horas I"
Claudia Regina do Nascimento
O presente trabalho dialoga com alguns conceitos discutidos na disciplina Poéticas da
Modernidade, no Programa de Mestrado e Doutorado em Literatura Comparada, nesta Universidade.
O curso intitulado “Os limites do literário entre a narrativa e o diário”, que, deparando-se com
situações limítrofes que rompem os paradigmas destes gêneros da prosa – no caso, o romance – e as
formas confessionais, e, retomando as concepções de narrativa (escrita do outro) e diário (escrita de
si), também impulsiona a continuidade dos estudos nele abordados. Nesse sentido, inicialmente,
apresenta-se, aqui, a leitura de “Uma data em cada mão – Livro de horas I” (2009), num movimento
empreendido em torno da hipótese de que o mapeamento da “contaminação genológica” llansoliana
(BARRENTO, 2003) presente, também, nos textos selecionados para compor este “primeiro
caderno”, pode indicar caminhos para a busca de inferências sobre a oficina de escrita de Llansol,
como “prática de um gênero indeciso”, e sua relação no tratamento dado ao cotidiano como elemento
inerente aos textos diarísticos da autora. Com base nos principais interlocutores teóricos: ANTELO
(2008), BLANCHOT (2005) e FOUCAULT (2009), e a partir de uma metodologia que prevê os
modos de pesquisa em Literatura Comparada, esta proposta busca investigar o que as entradas de
“Uma data em cada mão – Livro de horas I”, de Maria Gabriela Llansol podem sublinhar sobre a
representação literária da escrita de si nessa obra.

PALAVRAS-CHAVE: Diário, Llansol, Narrativa.

A ferocidade que habita o homem: A autenticidade


relacionada com a manifestação literária
Esther Zanelli Miranda

Em seu ensaio Genealogia da ferocidade (2017), Silviano Santiago traz à discussão a questão da
ferocidade em âmbito literário (principalmente a partir da obra Grande sertão: veredas, de
Guimarães Rosa) como um espelho para a ferocidade humana. A ferocidade encontrada nos livros (e
nas obras artísticas) seria demonstração de autenticidade, construto que quando observado nessas
obras provoca diversas reações (muitas vezes negativas), pois se relaciona a questões como coragem
e ousadia de se mostrar em um ambiente ou situação (ou meio artístico) diverso do apresentado na
obra. Ferocidade e autenticidade podem ser encontradas nessas obras porque em primeiro lugar
podem ser encontradas na realidade humana, e são consideradas selvagens porque se contrastam com
o que é domesticado ou esperado. Domesticação e ferocidade são dois aspectos trabalhados por
Santiago em vários âmbitos, e sugerem que o desenvolvimento do homem está muitas vezes no
contraste entre essas facetas. A partir dessas considerações este artigo aborda a ferocidade e a
autenticidade desde a perspectiva socioemocional, a partir dos trabalhos de Abed (2016), Sanchez e
Ledesma (2007) e Wood et al. (2008), na qual o olhar para o conhecimento de si permite reconhecer
estes movimentos (de ferocidade e autenticidade) dentro do homem. Perguntamo-nos se podem ser
associadas aos “cinco grandes fatores” da personalidade (conhecidos também como Big five).

PALAVRAS-CHAVE: Ferocidade, Autenticidade, Big Five, Educação socioemocional.

Guy de Maupassant: O silêncio fantástico


Fabiane Alves Martins
A literatura fantástica, em seu cerne, significa a falta. Ela vive da ausência, do não dito, da
dúvida. Porém, as lacunas deixadas pelo gênero não constituem um conjunto de elementos aleatórios,
mas, por outro lado, interligados entre si, em suas mais diferentes formas. Este trabalho pretende,
assim, discutir as diferentes formas nas quais o fantástico se apresenta no obra deixada por Guy de
Maupassant, a partir de duas obras escolhidas para a análise, sendo estas O Horla e A pequena
Roque. O escritor, situado na segunda metade do século XIX, revela com o não-dito uma marca da
ruptura do sujeito com o mundo, em uma busca da verdade absoluta que nunca chega, uma vez que o
gênero se cala diante da impossibilidade de uma só verdade. O silêncio fantástico é, pois, constituído
de razão, na qual as frustrações de seu leitor contribuem significativamente para a construção do
efeito de dúvida do gênero.

PALAVRAS-CHAVE: Fantástico; Silêncio; Maupassant; Identidade.

O passado como experiência comum em Patrício Pron,


Diamela Eltit e Luiz Ruffato
Gabriel Fernandes de Miranda

No presente artigo busquei estabelecer alguns apontamentos de comparação entre três romances
contemporâneos do Cone Sul que lidam com o passado ditatorial dessa porção da América Latina.
Através de um suporte teórico advindo da filosofia contemporânea, com conceitos de comum,
imunidade, e biopolítica, pretendo ler os romances como formas de figurar o passado como
experiência compartilhada, distante tanto do paradigma público (de propriedade do Estado) quanto da
propriedade privada ou familiar. Acredito que, por jogos ficcionais e narrativos, Patricio Pron em O
Espírito dos Meus Pais Continua a Subir na Chuva e Luiz Ruffato em De Mim Já Nem Se Lembra
exercitam uma espécie de revisão do passado, colocando em tensão a ligação familiar ao aparato
repressivo do Estado e o alcance desse mesmo aparato para todos os indivíduos sob o regime. Por
meio de uma aparição tangencial do passado que ambos constroem um processo de desestabilização
da propriedade do passado para jogá-lo no campo indeterminado do comum e da política. Diamela
Eltit opera uma ficcionalização distinta do passado em seu romance Jamais o Fogo Nunca, colocando
em pauta temas da intimidade, da afetividade e da ética militante na figuração de um casal que é
levado à extrema dissolução de seus corpos pela biopolítica repressiva da ditadura chilena. Pretendo
pensar, portanto, em articulações possíveis entre essas obras contemporâneas e suas figurações do
passado traumático dos regimes de exceção instaurados em Argentina, Brasil e Chile e suas
contribuições para o entendimento da contemporaneidade latino-americana.

PALAVRAS-CHAVE: Passado, Comum, América Latina, Contemporâneo, Romance

Uma análise do romance Desamparo de Inês Pedrosa


Giselle Moraes Hache

Este artigo tem por objetivo construir uma análise do romance português contemporâneo
Desamparo, da escritora Inês Pedrosa, publicado no Brasil em 2016 pela Editora Leya. A obra possui
uma narrativa plural construída através de quatro vozes que se alternam ao longo dos trinta e cinco
capítulos do romance. Pedrosa oferece ao público uma obra que traça um panorama da sociedade
portuguesa entre os séculos XX e XXI e versa sobre múltiplos temas como o desamparo, a solidão, a
culpa, a angústia, a velhice, o abandono familiar e a violência contra a mulher. Consideraremos
alguns tópicos importantes de reflexão, como a alternância dos narradores, a descontinuidade
temporal, o resgate da memória, os espaços que se cruzam (Brasil-Portugal) e a presença do campo
como locus de representação da crise econômica que assolou Portugal entre os anos de 2010 e 2014.
Também buscaremos analisar a dimensão psíquica do desamparo, assim como compreender como e
porquê ele se apresenta nas diferentes vozes que compõem a narrativa. Nos interrogaremos: como
essas figuras comportam-se frente ao desamparo e à sensação de incompletude que assolam a
sociedade contemporânea? Como referencial teórico utilizaremos os estudos de Pierre Bourdieu,
Simone de Beauvoir e outros.

PALAVRAS-CHAVE: romance português contemporâneo, Inês Pedrosa, desamparo, escrita.

Adília Lopes e Angélica Freitas: Poetisas em diálogo


Karine Ferreira Maciel

A partir do início dos anos 2000, a poetisa portuguesa Adília Lopes ocupa um lugar de destaque
na cena poética contemporânea no Brasil, seja a partir da Antologia publicada em 2002 pela editora
paulista Cosac & Naify e pela carioca 7Letras, seja pela atenção que recebe na edição da revista
Inimigo Rumor n°10, de 2001, que lhe dedica nada menos que a publicação integral do livro O poeta
de Pondichéry (1986), uma entrevista e dois ensaios críticos. Além disso, a autora e os seus textos
aparecem em poemas de muitos poetas brasileiros contemporâneos: Marília Garcia, Alice Sant’Anna,
Ana Martins Marques, Lucas Viriato, Carlito Azevedo, entre outros. Diante deste cenário receptivo
da autora portuguesa no Brasil, este trabalho buscar estabelecer um diálogo entre a obra poética de
Adília Lopes e a poesia da brasileira Angélica Freitas, que embora não cite ou faça menção à autora
portuguesa, muito se assemelha a ela no desenvolvimento de determinadas temáticas e na dicção,
elementos que explicitaremos no texto. Como aparato teórico, apoiamo-nos, sobretudo, nas teorias de
estética da recepção de Hans Robert Jauss.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia contemporânea, diálogo, Adília Lopes, Angélica Freitas.

World literature hoje: Por um diálogo transnacional entre


culturas
Larissa Moreira Fidalgo

A questão que abordaremos trata-se, sobretudo, de um posicionamento sobre o que significa


fazer um estudo comparado num cenário marcado pela reemergência da world literature. Uma vez
que a perda do centro estável, para trazermos à baila o conceito derridiano, é uma condição inerente
aos trabalhos da world literature, veremos que o debate não é bem sobre o que devemos fazer, mas
sobre como podemos estabelecer uma visão verdadeiramente global e cosmopolita capaz de integrar
diferentes perspectivas literárias e culturais. Acreditamos que a world literature deve corresponder a
um ethos de acolhida da alteridade, uma negociação entre o familiar e o estrangeiro, no sentido em
que Jacques Derrida (2003) usa a ideia de hospitalidade para falar sobre o reconhecimento do Outro
dentro de uma relação interativa e transversal constituída por diferentes possibilidades de trocas.

PALAVRAS-CHAVE: World literature; hospitalidade; David Damrosch.


Sintomas de uma crise: O corpo como um lugar distópico em
O céu dos suicidas
Luisa de Almeida Lírio Pinto

Tratarei do romance O céu dos suicidas, de Ricardo Lísias, evidenciando os corpos com
depressão, ou manifestações depressivas, como o lugar distópico. Lísias é um autor paulistano com
muitas narrativas ficcionais publicadas e, a partir da morte do seu amigo suas obras mudam. O autor
começa a jogar com os limites do real e do ficcional, e adquire um tom confessional, mostrando os
bastidores da própria escrita, como é o caso da obra escolhida. Meu objetivo é pensar a questão da
felicidade a partir de O mal-estar na civilização de Freud e a dificuldade de pertencimento a partir
de Sloterdijk, No mesmo barco. E também proponho evidenciar a problemática da doença mental e a
reação da sociedade diante dela, com dois livros da Maria Rita Kehl: Tortura e sintoma social e O
tempo e o Cão: A atualidade das depressões. Assim acredito ser possível pensar o próprio corpo
como lugar distópico.

PALAVRAS-CHAVE: distopia; felicidade; depressão; O céu dos suicidas; Ricardo Lísias.

O risco da passagem: A mística feminina em Geografia de


rebeldes, de Maria Gabriela Llansol
Luísa Nunes Galvão Caron de Oliveira

Este estudo pretende esboçar algumas aproximações entre a trilogia Geografia de Rebeldes, de
Maria Gabriela Llansol, e a escrita de mulheres místicas e beguinas que, no decorrer dos séculos XII
ao XIV, ousaram professar a fé cristã a sua maneira. Entre elas destacam-se Hadewijch e Margarida
Porete, duas importantes escritoras místicas que aparecem como “figuras” nos dois últimos livros da
trilogia. A expressão “o risco da passagem”, utilizada por Llansol em uma reflexão acerca de sua
escrita, será desdobrada nesse texto em três acepções distintas, mas igualmente transgressoras, que
dizem respeito tanto à escrita das mulheres do medievo quanto à escrita contemporânea de Llansol: a
textualidade, a mística e o erotismo. Três paragens que, afinal, fazem parte de uma mesma travessia.
Como referencial teórico, recorremos aos textos de Maurice Blanchot, Georges Bataille e Octavio
Paz. Além da crítica específica sobre a obra de Maria Gabriela Llansol, com os nomes de João
Barrento, Maria Lucia Wiltshire de Oliveira e Silvina Rodrigues Lopes.

PALAVRAS-CHAVE: Maria Gabriela Llansol, ficção portuguesa contemporânea, mística


medieval, mulheres.

Redescobrindo veredas: Uma abordagem crítica da categoria


do super-regionalismo de Antonio Candido
Marina Maria Campos Brito

Anita Martins Rodrigues de Moraes


O ensaio “Literatura e subdesenvolvimento” (1970), de Antonio Candido, apresenta uma nova
categoria de regionalismo, que, segundo o autor, corresponderia “à consciência dilacerada do
subdesenvolvimento” (CANDIDO, 1989, p.162) e cujo maior expoente seria a obra de Guimarães
Rosa. Com vistas a repensar essa categoria, que parece sugerir uma hierarquização entre o dado
regional e a invenção ao propor que a obra de Rosa resultaria no ultrapassamento do documental,
propomos o estudo detido dos argumentos de Candido. Para os propósitos deste trabalho, tomaremos
como corpus literário Grande sertão veredas (1956), priorizando as leituras que Antonio Candido faz
dessa obra, sobretudo em “O homem dos avessos” (1957) e “Jagunços mineiros de Claudio a
Guimarães Rosa” (1970), considerando que esta crítica foi publicada no mesmo ano do ensaio em
que Candido pensa as condições de produção da literatura na América Latina. Além disso, uma vez
que “Literatura e subdesenvolvimento” é um ensaio mobilizado em torno de um cenário considerado
por Candido como atrasado – situa-se em um momento de efervescência das discussões das
implicações do subdesenvolvimento – pretendemos investigar também a aposta de Candido em uma
função da literatura dentro desse contexto, pensando como Grande sertão veredas lida com o
processo de modernização por que passava o Brasil na década de 1950. A partir dessas investigações,
pretendemos revisitar a categoria de super-regionalismo sugerida por Candido, que acreditamos,
conforme sugere Silviano Santiago (2017) acerca de parte da crítica que se debruça sobre essa obra
de Rosa, “domesticar” o monstro rosiano.

PALAVRAS-CHAVE: Antonio Candido, dialética universal/particular, Grande sertão: Veredas,


de João Guimarães Rosa, literatura e subdesenvolvimento, super-regionalismo.

"Começo a ver o que não é visível": Paisagem e subjetividade


na poética de João Miguel Fernandes Jorge
Nathália Primo

O presente trabalho pretende apresentar o projeto de pesquisa de mestrado que vem sendo
desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura desde o primeiro semestre de
2019. Elabora-se em torno da análise de parte da obra poética de João Miguel Fernandes Jorge, poeta
português contemporâneo que passa a publicar a partir da década de 1970 e que ainda se encontra em
intensa atividade de publicação. Por esse motivo, foi estabelecido um recorte temporal que
compreende algumas obras publicadas nas décadas de 1970 e1980. Amparado pela abordagem
teórica de Michel Collot, pensador da paisagem na literatura moderno-contemporânea, tem-se por
objetivo identificar configurações de paisagens que se constituem nos poemas a partir das
experiências cotidianas do sujeito poético. Busca-se, ainda, traçar reflexões sobre o discurso lírico
considerando a noção de paisagem na construção de um olhar sobre o mundo, tornando-se possível
admitir que “a paisagem provoca o pensar” e “o pensamento se desdobra como paisagem”, como
postula Collot na obra Poética e filosofia da paisagem (2013). Também serão consideradas as
relações de intertextualidade entre literatura e outros campos da arte devido à intensa referencialidade
aos mais diversos objetos artísticos nos poemas. Para tanto, torna-se importante recuperar a relevante
contribuição de Georges Didi-Huberman sobre a visualidade no âmbito da arte e da estética
inicialmente com a obra O que vemos, o que nos olha (2010).

PALAVRAS-CHAVE: Poesia contemporânea, paisagem, diálogo interartes

Citação, alegria do trabalho manual


Paloma Roriz

“A citação repete, faz com que a leitura ressoe na escrita: é que na verdade leitura e escrita são a
mesma coisa, a prática do texto que é prática do papel. A citação é a forma original de todas as
práticas do papel, o recortar-colar, e é um jogo de criança”. A afirmação de Antoine Compagnon, em
seu livro O trabalho da citação, talvez seja um bom ponto de partida para a tentativa deste texto: ler
teoricamente a inscrição controvertida da obra poética do escritor Manuel António Pina na cena
portuguesa a partir de uma articulação crítica em torno da noção de infância como topos literário e
dispositivo problematizador de escrita. Na relação contraditória desta produção com a de outras
surgidas na década de 1970, em Portugal, acionadas, em grande parte, por linhas de renovação na
poesia portuguesa, a voz de Manuel António Pina surge como dicção não afeita a “programas”
poéticos, mas forjada na busca de estratégias próprias de diálogo e embate com a tradição moderna e
as demandas do presente, estratégias inclusive pouco compreendidas por parte da crítica à época de
seu aparecimento.

PALAVRAS-CHAVES: poesia portuguesa contemporânea, citação, infância

A paródia, a metaficção e o policial em Luís Fernando


Verissimo e Jô Soares
Paula Fernanda dos Santos

Este artigo apresenta uma relação entre os romances O jardim do diabo, de Luís Fernando
Verissimo, e O xangô de Baker Street, de Jô Soares, apontando suas características que englobam o
viés paródico e cômico de ambas as obras, com a finalidade tanto de discorrer sobre os elementos de
aspectos intertextuais e metaficcionais, quanto de analisar os pontos que abrangem o gênero policial.

PALAVRAS-CHAVE: paródia, metaficção, literatura policial, Luís Fernando Verissimo, Jô


Soares.

Crítica e conhecimento em José Cardoso Pires


Paulo Alex Souza

Fruto de nossa pesquisa de doutorado em torno de uma teoria literária do conhecimento, e


inserido na tradição que analisa o discurso literário em relação com a realidade social, este trabalho
investiga a construção de conhecimento sobre esta mesma realidade a partir da literatura.
Pretendemos desenvolver uma teorização que aponte meios concretos pelos quais o discurso literário
toma a realidade social como objeto de discussão e foca nas tensões, nas contradições, e,
principalmente, nas relações sociais conflituosas que perpassam a sociedade de classes, sob o modo
capitalista de produção da vida social. Neste movimento, ele produz conhecimento sobre esta
sociedade. Essa produção de conhecimento se dá por meio do que chamamos de vetores literários de
conhecimento, e o conjunto desses vetores teriam o potencial de formar uma teoria literária de
conhecimento. Neste trabalho, apontamos dois desses vetores presentes nos romances O hóspede de
Job e O Delfim, do escritor português José Cardoso Pires.

PALAVRAS-CHAVE: crítica, conhecimento, José Cardoso Pires.


Narrativas do passado: Paul Ricoeur e a condição histórica
Rogério Reis Carvalho Mattos

O artigo busca investigar, a partir do que Paul Ricoeur chama de passeidade (passeité) do
passado, a literatura de testemunho. O tempo passado, por não existir mais, é representado pelo
historiador, sem nunca poder relatar o que de fato aconteceu. Sempre há uma ausência relativa ao
passado que não existe mais e o que é, por um acréscimo de ser ou ficcionalização do relato,
retratado pelo historiador. As categorias de documento, arquivo e testemunha, ao se interrogar o texto
historiográfico, serão novamente colocadas à prova devido ao modo quase literário da escrita sobre o
passado. O testemunho, como alguém que viu o que de fato aconteceu, apesar de não compor uma
narrativa literária, é igualmente alguém capaz de ficcionalização do passado. A visão subjetiva
pertence tanto àqueles que acessam o passado por meios indiretos (o historiador por meio dos
documentos e testemunhos), quanto por aqueles que viram o que ocorreu, ou seja, tiveram um acesso
direto ao fato relatado (as testemunhas). O artigo buscará investigar qual o caráter específico do
relato testemunhal em comparação com a narrativa historiadora e a ficção literária.

PALAVRAS-CHAVE: teoria narrativa, literatura comparada, história da historiografia, giro


linguístico, filosofia contemporânea

O realismo contemporâneo: A tentativa de retratar a real


sociedade brasileira na ficção em prosa O matador, de Patrícia
Melo
Tahiná da Silva Santos Moreira

O presente projeto visa investigar se o real vivenciado no dia a dia da sociedade brasileira das
últimas décadas é retratado na produção literária em prosa O Matador, da autora Patrícia Melo, e a
partir dessa constatação, compreender de que forma a Literatura Contemporânea, ao se apropriar do
real, abre caminhos para que seus leitores concebam o ser humano dessa época. Para tal será preciso
dissertar também sobre conceitos de real, de realismo e de mimesis. Muitos pesquisadores atualmente
se debruçam sobre pesquisas que visam averiguar a presença do real nas obras de autores do fim do
século XX e início do século XXI. É de suma relevância a discussão sobre a estética adotada pelos
autores mais atuais, pois acredita-se que a literatura é uma arte que contribui para a edificação de
uma identidade social. JAGUARIBE (2007, p.15) afirma que há duas maneiras de conceber o
realismo: como uma conexão vital entre realidade e experiência da realidade e como uma convenção
estilística que mascara seus próprios processos de ficcionalização. Assim, podemos conceber que as
obras mais atuais buscam registrar as experiências vividas pelas pessoas reais, mas ao mesmo tempo
existe nessa representação muito do campo imaginário, da ficção. Já SCHOLLHAMMER (2009,
p.54), diz que nas últimas décadas o conceito de realismo vem sendo ampliado quando se leva em
conta a estética. Assim, espera-se que ao fim da pesquisa em andamento, ratifique-se a tentativa de
representação da sociedade brasileira na ficção a partir da estética escolhida pela autora para tal.

PALAVRAS-CHAVE: Real, Realismo, Mimesis, Literatura, Contemporânea, O Matador.


Loucura e AIDS: Questões biopolíticas na obra de Caio
Fernando Abreu
Tamara Medeiros de Andrade

Caio Fernando Abreu foi um autor cuja produção literária se desenvolve imersa às questões do
movimento contracultural dos anos de 1960 e 70. A oposição à normatividade das instituições
sociais, a luta contra a repressão do indivíduo, a defesa da liberdade sexual e a busca por formas de
conhecimento para além da racionalidade científica seriam algumas dessas questões. Um tema
recorrente na literatura de Caio foi o da loucura, tendo a prática médico-psiquiátrica como exercício
de poder e de opressão. Se, por um lado, o autor se debruçou sobre a doença mental, por outro lado,
já nos anos 80 e 90, ele passou a abordar uma nova doença, a recém-descoberta AIDS. O presente
trabalho apresenta parte do desenvolvimento de uma pesquisa de mestrado em andamento, na qual se
analisa o tema da doença na obra de Caio Fernando Abreu. Para tanto, parte-se dos conceitos de
biopolítica (FOUCAULT) e de paradigma imunitário (ESPOSITO), para pensar as relações de poder
envolvidas na identificação e segregação dos doentes na sociedade. A hipótese a ser verificada seria
se, na obra do autor, a doença funcionaria como uma metáfora do paradigma imunitário, ou seja, da
ideia de que a sociedade tenta identificar, combater e proteger-se de elementos que ameaçariam a sua
existência. Além disso, a atitude contracultural de Caio Fernando Abreu será repensada como uma
tentativa de ruptura desse paradigma, por meio da afirmação da vida frente às verdades
institucionalmente construídas sobre as doenças e os doentes.

PALAVRAS-CHAVE: Caio Fernando Abreu, loucura, AIDS, biopolítica, paradigma imunitário.

O poema como circunstância: Apontamentos sobre a poesia


de Manuel de Freitas e Carlito Azevedo
Tamy de Macedo Pimenta

Após a publicação dos Versos de Circunstância de Carlos Drummond de Andrade em 2011 pela
editora 7Letras, a discussão em torno da relação entre poesia e circunstância tem ganhado espaço
dentro dos estudos literários contemporâneos, no sentido não só de resgatar o valor circunstancial de
obras poéticas de autores consagrados, como o próprio Drummond, mas também de ressaltar a
presença dessa característica na poesia contemporânea. Nesse sentido, a própria categoria “versos de
circunstância” – que, embora não possa ser considerada um gênero a parte, foi motivo de estudo
específico de nomes como Paul Eluard, Predrag Matvejevitch e Jean-Michel Maulpoix – foi
revalorizada e afastada do sentido pejorativo que costumava possuir nos séculos passados, quando
era relacionada à poesia de encomenda ou a um tipo de poesia com objetivos puramente ideológicos.
Ainda que carregue duplamente os aspectos íntimo/subjetivo e coletivo/engajado, a noção de “versos
de circunstância” não pode ser detalhadamente definida, cabendo a esta somente algumas
características amplas, tal como o fato desta cantar “frequentemente um acontecimento que se impõe
a um dado momento por sua atualidade” (MATVEJEVITCH, 1971, p. 87) e manter com esse
acontecimento certo grau – maior ou menor, a depender do poema – de dependência. Nesse sentido,
procuraremos brevemente demonstrar, em nossa comunicação, como as poéticas do português
Manuel de Freitas e do carioca Carlito Azevedo simultaneamente se aproximam e se afastam, em
diferentes aspectos, da ideia de “versos de circunstância” conforme estabelecida pelos estudiosos
citados.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia contemporânea, Manuel de Freitas, Carlito Azevedo,
circunstância.

O intelectual e a luta política no período ditatorial


Thaís Sant’Anna Marcondes

Este trabalho tem por objetivo estudar o perfil intelectual dos personagens nos livros “K. Relato
de uma busca”, de Bernardo Kucinski e “O que é isso, companheiro?”, de Fernando Gabeira,
refletindo sobre seus posicionamentos críticos e suas atuações políticas na transformação da
sociedade durante o período ditatorial no Brasil. Através de personagens associados à militância, os
dois escritores desenvolvem em seus romances a imagem do intelectual ora fracassado e alienado,
ora resistente. Em nossa pesquisa, analisaremos as problematizações feitas pelos narradores sobre a
eficácia – por vezes questionável – da postura intelectual perante um regime anti-democrático.
Analisaremos também as formas com que os autores fazem de seus livros espaço da memória sobre a
ditadura, por meio da ficcionalização dos fatos, em dois momentos diferentes da produção literária
brasileira: no período em que os exilados regressaram ao país; e, no presente, momento em que os
herdeiros da dor, os que vieram depois, sentem ainda latente a necessidade de falar sobre o tema.
Para isso, discutiremos as definições propostas para o termo “intelectual” pelos críticos Jean-Paul
Sartre, Edward Said e Lucia Helena. E por fim, pensaremos os estudos sobre o papel da literatura
como voz do passado ditatorial ainda vivo feitos por Eurídice Figueiredo, Regina Dalcastagnè e
Tânia Pellegrini.

PALAVRAS-CHAVE: Ditadura, intelectual, militância, Kucinski, Gabeira.

Compasso, terra, teoria do poema: Estratigrafias


latinoamericanas
Vinícius Ximenes

Traçando uma interseção nos discursos da geologia, da arqueologia e da história (subterrânea)


do continente latinoamericano, tentamos apresentar os primeiros passos de um arranjo para
aproximar quatro livros recentes, compostos de poemas longos ou seriados (Marília Garcia, parque
das ruínas, 2018; Catarina Lins, O Teatro do mundo, 2017; Ana Estaregui; Coração de boi, 2016 e
Pádua Fernandes, Cálcio, 2015). Considerando uma tendência teórica de alargamento formal do
poema, que sugere uma reflexão performativa da medida e do timing, buscamos ver como estes livros
atravessam ruínas contemporâneas, arquiescritas pré-colombianas, arquivos das ditaduras militares e
traumas da economia extrativista, ensaiando procedimentos de aproximação da linguagem ao solo.
Pensamos, então, algumas implicações de seus gestos enunciativos de sutura e reciclagem, que
apontam para impasses territoriais de um ciclo de desenvolvimento desgastado.

PALAVRAS-CHAVE: poesia contemporânea, arqueologia, extrativismo, América Latina

O Flâneur da Belle Époque e o Rio de Janeiro: Lima Barreto e


as turbulências da modernidade
Carolina Lauriano Soares da Costa

Esta pesquisa pretende investigar de que modo a visão da realidade social projeta-se nas
subjetividades do escritor Lima Barreto, considerando o contexto de transformação social, política e
cultural da Belle Époque. A leitura da obra e dos escritos íntimos de Lima Barreto conduz o leitor aos
cenários da Belle Époque, às lutas políticas e populares testemunhadas pelo escritor e o modo como
ele se sentiu ao viver na pele as tiranias cometidas pelo Estado, em nome de uma modernização da
sociedade. Diante dessas turbulências da modernidade e modernização do Rio de Janeiro, observam-
se semelhanças entre a postura intelectual de Lima Barreto e o flâneur de Walter Benjamin e de
Baudelaire. Para este estudo, a pesquisa investigou o contexto histórico da Belle Époque do Rio de
Janeiro, nos primeiros anos do século XX, as revoltas que estouraram na capital em decorrência das
transformações sociais advindas da modernidade e de que modo essas turbulências estão relacionadas
à postura flâneur e melancólica do escritor.

PALAVRAS-CHAVES: Lima Barreto, Belle Époque, flâneur, melancolia, modernidade.

Reflexões preambulares sobre a tradução de ficção científica


estadunidense para o português brasileiro
Eduardo Andrade Barbosa de Castro

O presente trabalho tem como objetivo fazer um levantamento inicial de aspectos concernentes
à tradução de ficção científica (FC) em inglês para o português brasileiro. O gênero de FC apresenta
características linguísticas próprias que requerem atenção especial do profissional de tradução, pois,
por se tratar de um gênero que retrata o futuro e seus avanços sociais e/ou tecnológicos, é comum que
autores e autoras de FC façam uso não apenas de vocabulário técnico especializado, mas também de
neologismos. A tradução, por sua vez, poderá implicar a pesquisa sobre conhecimentos científicos de
ponta que figurem na narrativa. Devido à desigualdade econômica e tecnológica entre os países, esse
trabalho de pesquisa lexical inerente à tradução pode ser dificultado ou até impossibilitado,
dependendo do contexto nacional. O acesso à informação, portanto, é uma necessidade fundamental
na tradução de FC e um fator determinante para a qualidade do texto de chegada. Além disso, é
necessário considerar os fatores editoriais e mercadológicos que influenciam a escolha da estratégia
global de tradução. Utilizando como estudo de caso duas traduções publicadas no Brasil do conto
“Robot Dreams”, do autor russo-americano Isaac Asimov, abordaremos alguns dos desafios da
tradução de FC.

PALAVRAS-CHAVE: estudos de tradução, tradução literária, ficção científica, Isaac Asimov.

As representações das nuances emocionais das personagens e


do imaginário rural e urbano no conto "A solução" de Luiz
Ruffato
Isabelly Cristina Gonçalves Costa

Os objetos e ambientes são partes constituintes de qualquer obra literária. Analisar esses
elementos traz maior compreensão acerca da construção de seus personagens e suas respectivas
histórias. O presente artigo tem por objetivo analisar os ambientes retratados, bem como os objetos
do conto “A Solução”, pertencente à obra O Mundo Inimigo, da coleção Inferno Provisório, do
romancista Luiz Ruffato. Pretende-se salientar os aspectos representativos que permeiam a história
da personagem principal, Hélia, corroborando os aspectos não apenas sociais na qual ela encontra-se
inserida, como também sua camada interior, salientando, assim, como os objetos e ambientes podem
revelar as nuances emocionais das personagens. Outro elemento a ser analisado no presente estudo é
o Rio Pomba, no qual há uma tentativa de suicídio, e as águas, que constantemente são associadas à
ideia de vida, têm significado distinto para a personagem no conto em questão. A ênfase que o autor
confere à classe operária no período de industrialização de Cataguases, cidade já decadente que se vê
inserida em uma modernização desarranjada que obriga as famílias a adaptarem-se para sobreviver
observando o contraponto entre o imaginário Rural e Urbano representado nos sonhos e frustrações
da personagem principal é outro aspecto a ser estudado.

PALAVRAS-CHAVE: Objetos e Coisas, Ambiente, Rural e Urbano, Representação

Os reis em silêncio em Édipo Rei


Luiz Jorge Soares Guimarães

o presente artigo integra parcialmente uma tese de doutorado voltada ao estudo do medo tanto
do sagrado quanto do profano. A análise ora feita da dramaturgia Édipo Rei (2017) volta-se às
questões referentes ao silêncio e à tagarelice na obra, enquanto presenças e ausências discursivas que
por um lado dialogam entre si, mas, por outro, se excluem, dando margem à equívocos
comunicativos. O que se faz, e se pretende fazer, é nada menos do que um estudo acerca das relações
comunicativas entre o mundo profano, o do rei Édipo, e o do mundo dos deuses, de Lóxias Apolo e
de Zeus, para que se possa compreender como, de modo incipiente, o afeto de medo apresentasse no
drama do incestuoso regicida, por meio da linguagem que, ora possibilita, de fato, a comunicação
entre os seres, ora ativa os dispositivos trágicos de origem divina. Sendo assim, tal empresa vale-se
de uma perspectiva psicanalítica e filosófica, pois a abordagem deve dirigir-se tanto para o
entendimento do ser e da relação do afeto de medo com o eu quanto do ser para com os deuses, na
tentativa de por meio da interface sagrado/profano capturar os diversos matizes do temor.

PALAVRAS-CHAVE: Édipo, Laio, rei, silêncio, tagarelice.

Dos folhetins ao Wattpad: Um estudo da literatura de massa


no Brasil
Natália Barbosa Gomes Vago

Do Romantismo à atualidade, os ditos romances de massa estão presentes na literatura


brasileira. Os dias de hoje, apresentam novos meios de publicação e suportes para leitura como e-
readers e o Wattpad. A verdade é que nunca se leu tanto, ao mesmo tempo, a literatura de massa,
denominada por muitos como literatura inferior, destinada a um tipo de leitor que procura literatura
despretensiosa, tem grande importância sociológica e, ainda, serve como objeto de estudo e análise
para mostrar o porquê de ser tão amplamente consumida. A partir disso, pretende-se construir um
panorama da literatura de massa no Brasil desde os folhetins até a atualidade, tendo como recorte
central os folhetins, romances de banca, bestsellers e o Wattpad, refletindo sobre a maneira como o
mercado pode influenciar na qualidade de uma obra literária e na formação do leitor.

PALAVRAS-CHAVE: folhetins, romance de banca, bestseller, Wattpad, leitor.

A representação homoerótica na literatura brasileira: Um


vazio discursivo do século XIX ao fim do XX
Sandro Aragão Rocha

O objetivo desse artigo é traçar um panorama de como houve um vazio discursivo quanto a
representação homoerótica na literatura brasileira, desde o século XIX, com o surgimento da tratada
primeira literatura homoerótica no Brasil (Bom-crioulo, de Adolfo Caminha), até o fim do século
XX, com o surgimento de escritores no cenário literário brasileiro que quebraram a barreira desse
vazio/silêncio discursivo. Para tal, retomaremos de forma breve como o amor entre iguais foi tratado
no Brasil socialmente, tendo em vista que o olhar de coerção construído pelos europeus, pela igreja e
pela ciência quanto a essa forma de amar, influenciou no modo como a literatura passou a abordar
essa temática; para então, a partir de reflexões teóricas, remontarmos o modo como a crítica
literária/cânone literário silenciou e rasurou escritores e obras que tivessem como interesse abordar as
relações homoeróticas de forma não estereotipada, dando protagonismo e aprofundamento para
personagens homossexuais.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira, Literatura Homoerótica, Homoerotismo.

Uma criança na Palestina: Naji Al-Ali e a denúncia vertida


em pena e nanquim
Vanessa da Costa Lamas

Resumo: O acirramento da disputa territorial entre dois ou mais povos constitui uma das
questões mais inquietantes de todos os períodos históricos constituídos. Todavia, quando atentamos
para o antagonismo árabe-israelense, percebemos que os conflitos entre os dois referidos grupos
sociais ultrapassam a cizânia fronteiça. Para além dos assuntos de foro religioso, o interesse de
nações hegemônicas como os Estados Unidos da América nas riquezas existentes - cujo exemplo
mater encontra-se no petróleo - além da corrupção local e a negligência com o estabelecimento de
uma porção territorial para os palestinos ali consolidarem sua determinação enquanto Estado levam a
um quadro de tensão que perdura há décadas a fio com alguns hiatos. A necessidade, então, de se
denunciar tal panorama transpõe os veículos midiáticos e encontra nos quadrinhos - mais
precisamente no traço forte e preciso do cartum - um profícuo instrumento de imputação cujo alcance
acaba por ser mais fluido justamente por apostar mais na questão imagética do que essencialmente
textual. Naji al-Ali, cartunista nascido na Palestina e um dos nomes mais significativos no Universo
dos quadrinhos de origem árabe, lança um verdadeiro “Manifesto Silencioso” por meio do icônico
personagem Handala, símbolo da resistência de todo um povo frente à tirania da influência e dos
interesses escusos, que viria a ser o protagonista da obra Uma criança na Palestina cuja análise nos
propomos a fazer neste artigo.

PALAVRAS-CHAVE: Quadrinhos, Cartuns, Denúncia, Resistência.


A rosa do povo ou a rosa de Carlos:
Uma poética de comunhão e
reclusão
Ana Carolina Botelho
Sumário

“A resistência tem muitas faces”, informa Alfredo Bosi ao leitor no


quinto capítulo de seu livro O ser e o tempo da poesia (2000). Voltando-se à
demonstração das inúmeras maneiras com que contam os autores para usar
a poesia como “arma” de resistência, Bosi apenas ratifica a importância não
só desse gênero, mas também da literatura para seguir na contramão dos
discursos totalitários, dominantes. Na literatura brasileira moderna, seja de
forma “nostálgica, crítica ou utópica” (BOSI, 2000, p. 167), autores como
Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto – para não citar
outros de uma longa lista – tentaram fazer uso de sua poética como forma
de resistir a práticas que lhes pareciam autoritárias, impositivas,
independentemente de suas faces.

Portadora de vários rostos, a resistência trabalhada neste artigo é antes


à exploração de uma única dicção do que a um contexto social e ideológico,
ainda que esta, por vezes, esteja intrínseca às análises que aqui serão feitas.
Não se trata, portanto, da elucidação de como a linguagem consegue se
sobrepor, mostrando-se ainda viva e pungente, a um cenário sociocultural
hostil, no qual o capitalismo passou a ser o chefe da lei dos homens; mas de
como um autor, soberano de uma obra até que esta saia de suas mãos e, por
conseguinte, de seu domínio, atinge, dentro de uma mesma seleção de
poemas, dois grandes extremos significativos – o jogar-se e o reprimir-se.

O ano é o de 1945 e o tempo, de pobres experiências. No Brasil,


chegava ao fim, com a queda da ditadura do Estado Novo, a primeira
passagem de Getúlio Vargas pelo poder do país; no mundo, a humanidade
era atingida, desde 1939, pela Segunda Grande Guerra. No campo da
literatura, a poesia e a prosa modernas passaram a servir, em sua grande
maioria, como espelho das questões que envolviam o próprio homem
moderno, e cada vez mais eram frequentes temas como a solidão, as
guerras, a fragmentação do sujeito, a sujeira dos grandes centros urbanos
que tanto fatigava as retinas dos poetas e o sentimento do mundo, que era
de uma tristeza profunda. O país idealizado pelos modernistas de 1922
parecia, naquele momento, uma realidade extremamente distante. Era,
enfim, “tempo de homens partidos” (ANDRADE, 2012, p. 23).

É desse contexto que data a primeira publicação de A rosa do povo


(2012), de Carlos Drummond de Andrade, lançada em dezembro de 1945
pela renomada editora José Olympio. Considerada a obra de maior cunho
político do autor, o livro traz uma seleção de 55 poemas que refletem as
influências da proximidade de Drummond com a esquerda política do país –
já percebida, ainda que timidamente, em Sentimento do mundo, de 1940 –,
bem como suas percepções a respeito do contexto sociopolítico por que
passavam o país e o mundo. Com muito mais longos e densos poemas do
que o conteúdo de seus livros anteriores, A rosa do povo deixa transparecer
um significativo amadurecimento do poeta; o poema-piada do escritor de
1930 já não encontrava mais espaço na folha de papel e o humour e a
ironia, quando utilizados, serviam à exposição das fissuras ideológicas
adquiridas pela sociedade daquele tempo.

Da maneira que o título pressupõe, Drummond tenta reunir em seus


poemas a figura da “rosa” e a do “povo”, num misto de solidariedade,
esperança e comunhão, em uma obra que, aparentemente, pretendia-se
comunicativa, coletiva. Como as palavras, principalmente nas mãos do
itabirano, têm “mil faces secretas sob a face neutra” (ANDRADE, 2012, p.
12), a ideia de soberania da coletividade, caso o leitor mergulhe fundo nos
poemas, logo abre espaço para a emersão de tantas outras camadas de
significado, demonstrando-se uma obra muito mais heterogênea do que seu
título permite compreender. Daí a presença da figura paterna do autor, da
sua infância no interior de Minas Gerais e, sobretudo, de um canto de
reclusão que se contrapõe ao – também presente na obra – canto geral.

Caminhando lado a lado em A rosa do povo, a marca subjetiva,


individual, e a propensão ao coletivo, à comunicação dos homens, são
figuras recorrentes na obra de Carlos Drummond de Andrade. Da rua que
começa em Itabira, desembocando em várias outras ruas mundo afora,
sempre surgem novos caminhos para que se possa voltar para casa.
Embalados em uma poética de comunhão e reclusão, os poemas que
compõem A rosa do povo compartilham com o leitor os sonhos por vezes
utópicos de um grande Drummond, enquanto nos presenteiam, também,
com as incertezas e os medos de um pequeno Carlos. Em poucas folhas de
papel, transformamo-nos em espectadores de uma dolorosa – e sempre
presente na vida do escritor – tentativa de ser o “poeta do finito e da
matéria” (ANDRADE, 2012, p. 10), mesmo sabendo que inevitavelmente
era “apenas um homem” (ANDRADE, 2012, p. 121).

A resistência, então, começa a se desenhar por vias um tanto


paradoxais: como imergir no discurso voltado para o povo quando há outro
que insiste em retornar o foco para as questões subjetivas do autor? Num
artigo intitulado “A rosa, o povo” (2014), o ensaísta e poeta Antonio Carlos
Secchin afirma que há em A rosa do povo “um tenso regime de contra-
dicções, em que duas vozes poéticas se alternam, prefigurando
desdobramentos de complexa interseção” (SECCHIN, 2014, p. 18). É por
isso que, logo nos dois poemas que abrem o livro de 1945 de Drummond,
“Consideração do poema” e “Procura da poesia”, observam-se discursos
aparentemente contraditórios, mas que definem com clareza a complexa
interseção de que fala Secchin (2014).

Em “Consideração do poema”, Drummond se projeta para o público,


proclamando a ideia de um canto coletivo. Intensificada já na segunda
estrofe, a percepção de uma poesia pública se materializa nos versos em que
o itabirano evoca poetas modernos como Murilo Mendes, Vinicius de
Moraes e Pablo Neruda, praticando o que parece ser a dissolução de sua
autoria não só nesse poema em questão, mas em muitos outros presentes em
A rosa do povo.

Por isso, fica evidente a opção do poeta em tratar o objeto literário


como algo vital aos homens. Indo às ruas procurar seu alimento, o canto
“está na mesa / aberta em livros, cartas e remédios” (ANDRADE, 2012, p.
10) e já se incrustou na vida das pessoas, de maneira que “na parede
infiltrou-se” (ANDRADE, 2012, p. 10). Para o poeta, então, seria
necessário o compartilhamento, “ser explosivo, sem fronteiras”
(ANDRADE, 2012, p. 10). Afinal, sua poesia não podia mais se recusar a
olhar o que estava à sua volta, o que o leva a um decisivo questionamento:
“Como fugir ao mínimo objeto / ou recursar-se ao grande?” (ANDRADE,
2012, p. 10). Unindo sujeito-leitor e objeto, Drummond propõe uma poesia
que, não sabendo se atravessa o povo ou é atravessada por ele, viaje tal
como uma mensagem, chegando a toda parte. Mesmo sabendo que “essa
viagem é mortal” (ANDRADE, 2012, p. 10), insiste em começá-la.

Propenso à concepção de poesia como matéria a ser compartilhada no


poema que abre A rosa do povo, Drummond, em “Procura da poesia” –
composição que sucede “Consideração do poema” –, entretanto, define a
criação de um objeto literário como uma tarefa a ser desenvolvida de
maneira silenciosa e solitária. Nesse metapoema, além de instruir aqueles
que tentarão embarcar nessa viagem, que é a elaboração de uma poesia, o
poeta, ao afirmar que “o canto não é a natureza / nem os homens em
sociedade” (ANDRADE, 2012, p. 11), vai de encontro ao que foi
proclamado no primeiro poema de sua obra. Ora, se a criação literária não
encontra seu alimento no cotidiano dos homens, cabe ao escritor buscar a
introspecção: “Penetra surdamente no reino das palavras” (ANDRADE,
2012, p. 12) é muito mais um convite do que um conselho a uma prática de
escrita que requer, sobretudo, um mergulho profundo e recluso no
misterioso reino das palavras.

A rosa do povo ou a rosa de Carlos? Torna-se extremamente difícil


definir uma resposta quando o poeta parecer residir, simultaneamente, em
dois claros mundos: um grande, que canaliza a perspectiva de uma poesia
que fala de e para os homens, e outro pequeno, que concentra uma poética
de reclusão cujo discurso se volta para o próprio poeta. Nesse “mundo
pequeno”, muitos são os poemas que tratam a criação poética como algo
não-compreensível, enigmático, tal como uma rosa que correspondesse ora
como fardo, ora como dádiva, apenas ao itabirano.

Em “Carrego comigo”, o sujeito poético nos avisa, logo na primeira


estrofe, que há com ele, sem se saber como, talvez durante toda a sua vida,
um “pequeno embrulho” (ANDRADE, 2012, p. 15). Tal qual a flor que
rompeu o asfalto em “A flor e a náusea”, esse embrulho surgiu do nada,
num misto entre mistério, imprevisibilidade e admiração. Dono de uma
poética que costuma trabalhar a dualidade de sensações, Drummond transita
entre pares opostos de vocábulos como “fascinação” e “tristeza” ou
“quente” e “frio” para definir as sensações e os sentimentos causados por
aquele acanhado pacote, o que nos permite estabelecer uma inegável
relação entre esse embrulho misterioso que tanto causa confusão na mente
do poeta e todo o turvo e impreciso campo da criação de um objeto
literário.

Em confidência ao leitor, o poeta diz que consegue ouvir os gritos que


vêm das coisas; afinal, “o mundo te chama: / Carlos! Não respondes?”
(ANDRADE, 2012, p. 16). No entanto, ainda que queira responder a esse
chamado, ainda que queira concretizar seu desejo de ser um homem sem
fronteiras, o “embrulho pesa” (ANDRADE, 2012, p. 16), impedindo-o de ir
às ruas caminhar ao lado de seus irmãos. Fundindo sujeito e objeto, o eu-
lírico já não sabe mais quem carrega e quem é carregado, uma vez que ora
decreta carregar “aquela” coisa, ora admite que é carregado por aquele
pequeno “fardo sutil” (ANDRADE, 2012, p. 17). Para além dessa
indefinição, evidente é a importância desse objeto na vida do poeta. Ao
declarar que “perder-te seria / perder-me a mim próprio” (ANDRADE,
2012, p. 17), o modesto embrulho transfigura-se de uma condição de mera
coisa para a posição de elemento substancial na vida de quem ali nos fala,
isto é, o objeto-coisa nada mais é do que a essência dessa vida que está
sendo jogada na folha de papel.

Nesse sentido, tomando como partida a relação desse embrulho


enigmático com a essência do poeta e, por conseguinte, com o seu próprio
processo de criação poética, não seria errado afirmar que a sua poesia tanto
encontra alimento no convívio em sociedade como o impede, por vezes, de
se projetar mundo afora, de ir à rua, muito por essas palavras serem
definidas como algo que “pesa” e – por que não dizer – por assumirem um
ar de incompreensibilidade. Não é à toa que Secchin (2014), ao trabalhar a
questão da dupla acepção que a figura da “rosa” possui em A rosa do povo,
é categórico ao dizer que, “numa ambígua configuração, ora a rosa é
exposta como símbolo de conexão com os outros, ora é resguardada como
emblema daquilo que de mais recôndito o poeta preservasse” (SECCHIN,
2014, p. 19).
Assim como muitos outros poemas de A rosa do povo caminham pelo
mesmo lado do discurso, voltado para a introspecção, e da afirmação da
poesia como aquilo que é íntimo ao poeta, difícil de ser compartilhada com
os outros, “Assalto”, vigésimo quarto poema da obra, expõe as fraturas
desse homem moderno que é Drummond diante das ruínas que foram se
acumulando em sua própria história. Dessa maneira, o sujeito poético,
dentro de um quarto de hotel, vê-se frente a uma mala que, quando aberta,
deixa transparecer o fato de que o tempo, agora, “dá-se em fragmentos”
(ANDRADE, 2012, p. 57). Tratar as fissuras do homem do século XX –
que acabam sendo as próprias fissuras do poeta – é um tema muito caro a
Drummond, que viu de perto a destruição deixada na sociedade moderna
pelas duas Grandes Guerras. Esse tempo responsável pela redução do
sujeito a fragmentos também recebeu a atenção do crítico literário alemão
Walter Benjamin, que, em seu ensaio “Experiência e pobreza” (1994),
afirma que

Nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas


que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a
experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo
pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma
geração que ainda fora à escola num bonde puxado por
cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem
diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num
campo de forças de correntes e explosões destruidoras,
estava o frágil e minúsculo corpo humano. (BENJAMIN,
1994, p. 115)

Essa fragilidade do corpo humano de que fala Benjamin (1994) é o que


incomoda e faz doer o poeta, que, em “Assalto”, parecendo ser mais
vulnerável que um inseto, triste declara: “Aqui habitei / mas traças
conspiram” (ANDRADE, 2012, p. 57). Assim, embora a pobreza de
experiência na sociedade moderna seja antes coletiva do que particular,
diante do fato de que “é preferível confessar que essa pobreza de
experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade” (BENJAMIN,
1994, p. 115), Drummond mantém o foco no retrato individual que pinta ao
longo dos versos: fragmentos estilhaçados e roídos do homem que fora um
dia, demonstrando serem agora apenas restos que cabem dentro de um
chapéu e que serão jogados fora do nono andar daquele hotel. “Assalto” é,
então, a afirmação de que foram roubadas a vida, em um sentido simbólico,
e a vitalidade desse sujeito poético – sentimento muito comum aos homens
daquela época.

Vale ressaltar que as dicotomias “mundo pequeno” e “mundo grande”,


“público” e “privado” assumem, em toda a obra de Carlos Drummond de
Andrade, uma correlação importantíssima para a construção de alguns
sentidos em sua poética, como a própria ideia de comunhão e convivência,
características nem sempre caras aos indivíduos do século XX, que por
vezes priorizaram o interior de seus apartamentos em detrimento dos
encontros calorosos que vêm das ruas. É por isso que, ao escrever
“Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade”
(2007), o crítico literário e ensaísta Silviano Santiago afirmou ser a solidão
do poeta uma maneira de externar um sentimento não só do próprio
Drummond, mas de todo e qualquer cidadão moderno. Nesse sentido,
exprimindo por meio das palavras a sua condição solitária e colocando em
muitos dos seus poemas o “eu” em primeiro lugar, Drummond poderia
chegar “ao nós da solidariedade” (SANTIAGO, 2007, p. 7). Em tempos de
pobreza de experiência, até mesmo a experiência da solidão torna-se campo
fértil para a possibilidade de (re) conquista da comunhão:

A solidão moderna, e não mais a romântica, é a


incontornável experiência-limite do indivíduo em busca da
cidadania. A partir da experiência dela é que se pode ser
construída – em século marcado pela miséria, a injustiça, a
corrupção e a violência, pela censura, a repressão, a guerra e
o medo – a sociabilidade. [...] A partir da solidão
autorreflexiva, questionadora das sociedades nacionais em
que vive o homem contemporâneo, é que elos e nexos
críticos, insurgentes, coletivos e revolucionários são
fundados na poesia de Carlos Drummond. (SANTIAGO,
2007, p. 6-7)
Daí a facilidade em haver não só em A rosa do povo, mas em toda a
obra de Drummond, uma associação clara entre os vieses do público e do
privado. Ao mesmo tempo em que o poeta reúne composições que ou
exaltam a produção poética como criação introspectiva ou tratam de um eu
poético fragmentado – que sozinho deve recolher seus cacos –, também
produz poemas que bebem do discurso da certeza, da esperança em dias
melhores e da tentativa de aproximação com o outro, como é o caso de “O
elefante”. Nesse poema narrativo, o sujeito poético constrói um animal
teoricamente forte, cuja missão seria levar às ruas o que tanto carecia aos
homens: bondade, doçura e amor. Para carregar dentro de si conteúdos tão
vitais, porém frágeis, é construído para o elefante um corpo de madeira.
Diferentemente dos olhos tão fatigados a que Drummond sempre faz
menção em seus poemas, marca intrínseca aos grandes centros modernos,
essa parte do animal é limpa e pura, alheia a tudo que poderia causar enjoo.

Assim, na esperança do compartilhamento, o elefante fica “pronto para


sair / à procura de amigos / num mundo enfastiado / que já não crê nos
bichos / e duvida das coisas” (ANDRADE, 2012, p. 81). Sua pele, feita de
“flores de pano e nuvens” (ANDRADE, 2012, p. 82), carrega o desejo de
um mundo em que haja mais amor, comunhão e poesia. No entanto, tal
como se apresenta em “A flor e a náusea”, a cidade é um ambiente hostil e,
por isso, não estando preparada, nem querendo estar1, ignora o elefante,
ainda que a rua esteja completamente lotada. Por isso a triste experiência
por que passou o animal, retratada em versos tão dolorosos quanto o
desprezo das pessoas:
1 “mas não o querem ver” (ANDRADE, 2012, p. 82) [grifo meu], diz o poeta.

e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.
(ANDRADE, 2012, p. 82)
Em oposição à insensibilidade do ser humano moderno, seu passo vai,
“sem esmagar as plantas” (ANDRADE, 2012, p. 83), procurando “sítios, /
segredos, episódios / não contados em livro” (ANDRADE, 2012, p. 83),
histórias e sentimentos permitidos pelo homem apenas “sob a paz das
cortinas / à pálpebra cerrada” (ANDRADE, 2012, p. 83). A figura do
elefante, então, parece servir a Drummond como uma maneira não só de
tentar sair da condição de um “eu” solitário, mas também de resistir ao
contexto sociopolítico da época, que reduziu os homens à velocidade, à
individualidade e à frieza modernas. Assim, ao tentar combater as
hostilidades presentes no meio urbano a partir da utilização da figura do
elefante como aquele que carrega dentro de si as necessidades primárias de
todo e qualquer indivíduo, o poeta constrói uma fala mitopoética, que
enxerga, na relembrança desses sentimentos e sensações, a possibilidade de
dias melhores.

A respeito da resistência através do mito, Alfredo Bosi, no capítulo


“Poesia-resistência” de O ser o tempo da poesia (2000), considera a fala
mitopoética como uma tentativa de “reviver a grandeza heroica e sagrada
dos tempos originários, unindo lenda e poema, mythos e epos” (BOSI,
2000, p. 173). Nesse sentido, a poesia que faz uso do mito encontra alicerce
na memória dos tempos áureos – em que prevaleciam sentimentos como
austeridade e amor – para resistir à sociedade de consumo e a tudo de
manipulador e opressor que surge com ela. Ao fazer uso da memória como
modo de defesa, Bosi afirma que

A poesia mítica, recuperando na figura e no som os raros


instantes de plenitude corpórea e espiritual, resgata o sujeito
da abjeção a que sem parar o arrasta a sociedade de
consumo. [...] A poesia que busca dizer a idade de ouro e o
paraíso perdido acaba exercendo um papel humanizador das
carências primárias do corpo: a comida, o calor, o sono, o
amor. [...] Reinventar imagens da unidade perdida, eis o
modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para
resistir à dor das contradições que a consciência vigilante
não pode deixar de ver. (BOSI, 2000, p. 179-181)
O elefante, no entanto, falha, “qual mito desmontado” (ANDRADE,
2012, p. 83), em sua tentativa de levar aos homens aquilo que a
modernidade e, sobretudo, o pós-guerra haviam lhes sugado. Tendo estado
em contato com a rua suja e hostil, volta o animal “já tarde da noite”
(ANDRADE, 2012, p. 83) fatigado, cansado, frustrado. É nessa última
estrofe que temos a confidência de que, na verdade, o elefante é o próprio
poeta e, por conseguinte, a sua própria poesia. Dizendo não ter encontrado
“o de que carecia, / o de que carecemos, / eu e meu elefante, / em que amo
disfarçar-me” (ANDRADE, 2012, p. 83), Drummond funde, mais uma vez,
sujeito e objeto, poeta e criação literária, criador e criatura, fazendo com
que já não se saiba o que é poesia e o que é relato de sua trajetória pessoal.
Sua poesia transforma-se, nesse poema, em tentativa de conexão com o
próximo, rosa a ser compartilhada com aqueles que caminham pelas ruas,
mas ignorada, incompreendida, como talvez toda a obra do poeta. Daí a
atitude constante de Drummond em demonstrar em seus poemas o vão que
sempre existiu entre sua poética e aqueles que ainda não estavam – e talvez
nunca estariam – prontos para recebê-la. A esperança no amanhã como
oportunidade de recomeço é o que move o sujeito poético a enfrentar o
tédio, o nojo, a tristeza, a invisibilidade e, ainda que desmontado o seu
animal, derramada a sua poesia feito água fluida pelo tapete, faz ser mais
forte a sua voz: “Amanhã recomeço” (ANDRADE, 2012, p. 83).

A voz que fala para o povo ou pelo menos tenta chegar às massas
também se faz presente em “Cidade prevista”. Nesse poema, o discurso da
certeza é ainda mais forte do que uma simples esperança no amanhã: o
poeta sabe que chegará o dia em que todo aquele cenário trágico, dramático
e opressor dará lugar à total comunhão dos homens. Essa cidade que é
prevista, no entanto, não será desfrutada pelo próprio poeta, que admite ter
se guardado “para a epopeia / que jamais escreverei” (ANDRADE, 2012, p.
126). Ainda assim, mais importantes que todos os seus escritos foram os
seus anseios: “O que eu escrevi não conta. / O que desejei é tudo”
(ANDRADE, 2012, p. 126).

O discurso categórico nessa composição é alicerçado pelo uso de


verbos no futuro do presente do indicativo; qualquer laivo de dúvida é
abandonado e a certeza num mundo de repleta união e harmonia surge
sempre com mais força a cada verso lido. O retrato pintado pelo poeta é o
de um “território de homens livres / que será nosso país / e será pátria de
todos” (ANDRADE, 2012, p. 126) e sua convicção faz com que surja um
apelo:

Irmãos, cantai esse mundo


que não verei, mas virá
um dia, dentro em mil anos,
talvez mais... não tenho pressa.
Um mundo enfim ordenado,
uma pátria sem fronteiras,
sem leis e regulamentos,
uma terra sem bandeiras,
sem igrejas nem quartéis,
sem dor, sem febre, sem ouro,
um jeito só de viver,
mas nesse jeito a variedade,
a multiplicidade toda
que há dentro de cada um.
(ANDRADE, 2012, p. 126-7)

Nesse tempo utópico previsto por Drummond – em que as diferenças


serão respeitadas, contemplando a multiplicidade cultural brasileira –, as
casas não terão armadilhas e talvez os leiteiros poderão entregar suas
caixinhas sem medo de que, desavisadamente, alguma arma pule da gaveta
de um criado-mudo qualquer2. Escrevendo A rosa do povo ao final da
ditadura varguista e sofrendo ainda as consequências do pós-guerra, o poeta
compreende que esse país previsto não é o dele, nem dos poetas que ali
residem, mas garante que “ele será um dia / o país de todo homem”
(ANDRADE, 2012, p. 127).
2 Referência ao poema “Morte do leiteiro” (ANDRADE, 2012, p. 84-6).

Assim, em A rosa do povo, a voz que tenta o elo com o outro, numa
poética de comunhão, muitas vezes utilizando o discurso da certeza como
maneira de pintar um mundo utópico, mescla-se com a voz introspectiva,
estabelecendo relações complexas entre discurso coletivo e particular. Para
um poeta cuja trajetória pessoal é também sua trajetória literária, resistir à
confluência entre público e privado seria quase impossível. Sua poesia,
então, assume faces distintas, quase contraditórias: se, em um primeiro
momento, ela é tentativa de compartilhamento, edificada como mito, é
também objeto misterioso, que pesa e fere, arde e consome, criação
solitária, flor não compartilhável. Os versos de Drummond, reunidos nos
poemas do livro de 1945, portanto, são rastros de um sujeito que, seja
recolhendo seus cacos, seja recompondo seu mito, tentou fazer chegar a sua
mensagem ao mundo dos homens.

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.

ANDRADE, Carlos Drummond de. O observador no escritório. Rio


de Janeiro: Record, 1985.

BOSI, Alfredo. “Poesia-resistência”. In: ______ ¬¬. O ser e o tempo


da poesia. 8. ed. rev. e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CORREIA, Marlene de Castro. Drummond: jogo e confissão. São


Paulo: IMS, 2015.

MERQUIOR, José Guilherme. Verso Universo em Drummond. 3. ed.


São Paulo: É Realizações, 2012.

SANTIAGO, Silviano. Introdução à leitura dos poemas de Carlos


Drummond de Andrade. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia
Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

SECCHIN, Antonio Carlos. A Rosa, o Povo. In: Papéis de poesia:


Drummond & mais. Goiânia: Martelo, 2014.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte


e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
Autoficção e performance: A
expansividade do campo literário
Anderson Guerreiro
Sumário

A colagem como procedimento estético resultou-se num importante


processo de criação artística desde o começo do século XX, quando
pintores das diversas vanguardas começaram a explorá-la. Desde as
colagens cubistas, passando pelos poemas-colagens de Kurt Schwitters, até
os textos-colagens da internet, este procedimento vem se expandido como
uma experimentação e transformação das técnicas tradicionais das artes.
Embora essa atividade remonte a um período antigo, foi Pablo Picasso, com
o cubismo, quem a incorporou às artes modernistas: Copo e Garrafa de
Suze (1912) é considerada umas das primeiras colagens do pintor. Na obra,
são utilizados pedaços de jornais sobrepostos e o uso de carvão para a
pintura, formando, dessa forma, elementos que se referem diretamente ao
copo e à garrafa da bebida Suze, bem conhecida naquela região.

Desde então, outros movimentos artísticos, como o dadaísmo e o


surrealismo, inseriram a técnica em seu conjunto de obras. Kurt Schwitters,
após sua aproximação e convivência com dadaístas como Tristan Tzara,
passou a incorporar a colagem em suas obras, sobretudo, em suas poesias,
rompendo com alguns métodos tradicionais das artes. A utilização das
colagens era tão intrínseca na obra de Schwitters que o artista passou a
denominá-la Merz, sem, no entanto, distinguir se eram poemas, pinturas,
colagens ou outras expressões de arte.

A partir do advento dessa técnica de colagens foi possível observar


uma tensão, a princípio, no campo das artes plásticas, uma vez que, nesse
campo, esse proceder rompia com uma postura tradicional do uso do pincel
e da tela. Podemos associar a colagem a uma relação semelhante à
montagem, que na época começava a ser incorporada no cinema e também
na literatura. Um exemplo desse último caso trata-se da poesia que
incorpora a montagem como procedimento, com o modernista Oswald de
Andrade e mais tarde os concretistas, através dos poemas-visuais. Oswald
radicalizou a escrita da poesia ao integrar nas suas construções a montagem,
as quais sofreram influência das artes plásticas e do cinema, como aponta
Brito:

Construindo seus poemas-minuto – ou micropoemas, ou


minipoemas – à base de uma técnica de montagem, haurida
de seus contatos com as artes plásticas e o cinema, o poeta
modifica a estrutura da poesia até então utilizada – e
utilizada até mesmo pelos inovadores vindos de 1922.
Oswald impõe forma sintética a um idioma que tende para o
prolixo. Enxuga e emagrece uma língua quase sempre usada
para descabelados desbordamentos. (BRITO, 1971, p. 2)

Tanto no procedimento da colagem quanto na montagem, o artista é


livre para usar a criatividade sem a preocupação de romper divisas ou de
estar preso a um suporte ou meio artístico específico. A partir dessa técnica,
essas artes passam então a ser concebidas como artes além delas, às vezes
não respeitando as fronteiras até então impostas entre si. No caso da
pintura, por exemplo, que se excede a seu território e adentra no campo da
escultura e demais expressões artísticas.

Contemporaneamente, a colagem continua a ser uma expressão


artística bastante valorizada, refletindo bem mais que uma certa indisciplina
ao estabelecimento de uma categoria encaixável nas artes contemporâneas.
Ela dispõe de um arsenal de expressões e ferramentas digitais, saindo, em
alguns casos, do seu tradicional suporte (seja na pintura, escultura ou
literatura) e adentrando no digital. Nesse sentido, se lança a explorar novas
formas e expressões criativas a partir de uma sociedade cada vez mais
informatizada e tecnológica. As colagens digitais, nesse caso, a partir de
ferramentas de design gráfico e das facilidades do copy/paste, têm sido
vistas como uma atualização desse procedimento artístico e propulsoras de
novas expansões artísticas.

Usamos o caso da colagem até aqui para ilustrar e explorar um


fenômeno sobre o qual se debruça a estética contemporânea: a arte como
um campo expansivo e inespecífico. Esse estado da arte contemporânea
remete-nos a uma análise de Rosalind Krauss (1979) acerca,
especificamente, da escultura na arte americana desde o período pós-guerra
de 1945. Essa autora, no final da década de 1970, já havia observado que
alguns campos das artes, como a pintura e a escultura, tornaram-se bastante
maleáveis para a crítica artística, que enxergava tais campos como
elementos elásticos, prestes a se expandirem a outros territórios.

A partir das considerações de Krauss, Garramuño (2014a) considera


também haver no campo das artes, especificamente no da literatura
contemporânea – sobre o qual gostaríamos de nos debruçar neste texto –,
um transbordamento de seus limites, os quais comodamente se
apresentavam bastante sólidos, fechados e delimitados. A partir do conceito
de literatura expandida, a autora busca entender o processo pelo qual passa
a literatura no tempo presente com fenômenos que se desdobram e se inter-
relacionam, como a “arte inespecífica”, o “não pertencimento” e a
“literatura fora de si”.

Partindo desse pressuposto, pensamos em expansividade da literatura


nos textos e também seus autores (sejam os digitais ou não) que, de certa
forma, não se limitam a transitar tão somente nos seus meios, ou seja, não
se enquadram numa literatura puramente literária em que procedimentos,
meios e condições de produção não obedecem unicamente a esse campo.
Dessa forma, a escrita literária rompe suas fronteiras ao se incorporar e se
relacionar com qualquer outra arte, num encadeamento em que os
elementos deixam de ser distintos e convivem harmonicamente dentro da
obra.

Nessa mesma perspectiva crítica do panorama da literatura no tempo


presente, Azevedo (2016) entende que a expansividade da literatura se
desenvolve e toma forma a partir do momento em que os textos literários se
aproximam das tecnologias digitais, uma vez que no panorama cultural
contemporâneo há uma imbricação da literatura com essas novas
tecnologias, tornando o conceito de literatura expandida mais depreendido.

Essa expansividade da literatura a partir de sua imbricação às mídias


digitais e à internet se dá de tal forma que as práticas literárias produzidas
nesses espaços chegam a receber outro nome: a ciberliteratura, numa prática
literária em que os textos são construções multimidiáticas, interativas e
combinatórias. Nesse caso, cabe destacar que essa expansividade vai além
apenas da troca de meios e suportes em que os textos circulam, ou seja, do
papel (livro físico) para o digital (e-books, hiperlinks), ela se concretiza por
meio da integração direta, por exemplo, da paródia, da colagem e do
pastiche aos textos como forma criativa e inovadora de produção. Um
exemplo desse caso são as fanfics, que alteram os modos da
interdiscursividade textual e o próprio conceito de direitos autorais. Por
outro lado, a internet é o ambiente que tem propiciado a construção de uma
imagem de si mesmo e, consequentemente, nesse ambiente há uma alta
exibição do sujeito através de textos presentes nos blogs e fotoblogs1. Além
disso, há a possibilidade de incorporar nesses textos uma série de outros
elementos digitais, como fotografias, sons, músicas e vídeos. Essas novas
formas e práticas textuais reforçam a ideia de uma pluralidade por meio da
qual elementos distintivos, meios e suportes e até mesmo a disposição dos
textos no ambiente digital convergem a uma experiência bastante
contemporânea de literatura.
1 Em trabalho anterior, analisei dois blogs pertencentes a uma única pessoa. O primeiro, como bem dizia o título “Aquilo que penso. Aquilo que sinto. Aquilo que sou”, era usado
para contar as experiências e o cotidiano do blogueiro, enquanto o segundo blog era destinado exclusivamente à escrita de um romance. Após acompanhar seu cotidiano em seu
primeiro blog, observei que era possível perceber marcas da sua realidade em sua narrativa fictícia no segundo blog. Tanto sua vida quanto sua escrita eram colocadas na internet e
seus dois blogs se cruzavam de forma muito explícita. Ver Guerreiro (2017).

Esse pensamento de expansividade no campo das artes, e


especificamente da literatura, remete-nos tão logo às reflexões de Ludmer
(2010) ao que conveio chamar literaturas (ou escrituras) pós-autônomas.
Vale destacar que as escrituras às quais se refere a autora se situam no
tempo presente e caracterizam-se pela extrapolação de suas próprias
fronteiras literárias, de forma que essas escritas não admitem uma leitura
baseada nesses parâmetros, estando-as indiferentes na identificação
literatura e não-literatura, ficção e realidade, literatura e instalações.
Exemplos desse caso podem ser observados nos textos em que memórias e
experiências do autor se manifestam ao seu enredo ficcional, como por
exemplo algumas obras de Gustavo Bernardo2, Jacques Fux3 e Carlos
Henrique Schroeder4, as quais podem ser lidas em um viés autoficcional.
Indo em direção da literatura a outras artes, temos nesse caso a instalação
do artista mexicano Jorge Mández Blake, que, com o objetivo de mostrar o
poder da literatura, criou um muro de tijolos e na sua base plana introduziu
o livro O castelo de Franz Kafka. Com isso foi possível observar que toda a
estrutura do muro se alterou numa metáfora em que um livro pode ter
efeitos maiores do que às vezes se imagina.
2 Nove Noites (2002) e O gosto do Apfelstrudel (2010).

3 Antiterapias (2014) e Brochadas (2015).

4 História da Chuva (2015).

Para Laddaga (2007), escritores como o mexicano Mario Bellatin e o


argentino Cesar Aira ilustram um caso de autores que parecem permanecer
num lugar de transição, numa época de depois do livro, pelo fato de suas
experiências narrativas muito se parecerem e se relacionarem a uma
performance e/ou uma instalação, sendo textos que tendem a romper os
limites da literatura até então imposto pelo paradigma autônomo das artes,
de acordo como esse autor.

Falando especificamente do texto literário, este representa o fim da era


autônoma da literatura em que ela tinha o poder de se definir e ser regida
“pelas suas próprias leis”. De acordo com Ludmer (2010, p. 3), a partir
deste fim, tem-se o fim também das classificações literárias (baixa, alta ou
não-literatura), das oposições e divisões (ficção e realidade, literatura
urbana e rural, canônica ou marginal) e também dos modos de leitura das
obras. Para os pesquisadores Andrade et al. (2018), essas narrativas podem
também ser consideradas como releituras nas quais se levem em
consideração experiências e elementos que durante muito tempo foram
relegados pelo estatuto autônomo da literatura. Para esses autores, tais
escrituras implicam da mesma forma um abandono dos tradicionais
conjuntos de análises e dos valores literários, pondo essas escritas nas
mesmas categorias que outros discursos e deslocando seu foco para a
“imaginação pública”, como havia dito Ludmer.

Nesse caso, a literatura não é mais vista como algo estritamente


delimitado, e sim um campo amplo, inespecífico. O conceito de literatura
como arte inespecífica consequentemente desencadeia seu caráter de não
pertencimento a ela mesma, uma vez que busca uma desconstrução desse
pertencimento, dessa propriedade e apropriação do campo literário.

Por outro lado, no que tange a essa expansividade do campo literário,


alguns textos contemporâneos que não se limitam em um único território
requerem do leitor modos e condições de recepção mais amplas, uma leitura
em que este se defronte com uma heterogeneidade de elementos, como a
exploração de gêneros híbridos e, sobretudo, a diversidade de formas
discursivas presente na obra a partir da incorporação de fotografias,
imagens, documentos e discursos de outras áreas, para citar alguns. Nesse
caso, destacamos a proliferação de textos contemporâneos em que são
embaralhados relatos referenciais e fictícios em seu enredo, tornando as
fronteiras entre eles indissolúveis. Tais elementos fazem com que o leitor
incorpore novos sentidos à leitura.

Garramuño (2014b) acentua que a definição de arte contemporânea


como inespecífica não se caracteriza apenas pela tensão da especificidade
do meio e, dessa forma, a autora descreve algumas das diversas maneiras
como essa inespecificidade se manifesta na literatura. Para ela, a literatura
tem expandido seu meio com intuito de incorporar outras linguagens à sua
e, nesse caso, podemos observar a incorporação do discurso antropológico,
jornalístico e filosófico, da mesma forma que a convivência com outros
discursos literários, como a memória, a historiografia e o ensaio, tornando-
se uma escrita plural.

Destacamos como um aspecto dessa inespecificidade da literatura a


forte relação desta com a realidade, sobretudo com a “realidade cotidiana”,
como observada por Ludmer em suas considerações do conceito de
literatura pós-autônoma. Nesse contexto, a literatura, predominantemente,
foi ligada e entendida institucionalmente ao conceito de criação fictícia e
imaginativa, apesar de em alguns momentos manter vínculo com relatos
referenciais da sociedade ou mesmo do escritor. Miranda (2014), ao
relacionar essa realidade aos clássicos latinoamericanos, observa que havia
uma esfera específica e bem delimitada entre “história” e “literatura”, e
nesse sentido “há fronteiras nítidas entre o histórico como ‘real’ e o literário
‘fábula’, mito, símbolo, alegoria, subjetividade, densidade verbal” (p. 137-
138). Quando os gêneros que incorporavam experiências vividas pelos
autores (ou ainda quando estes eram referenciais para suas escritas)
passaram a emergir, foram considerados pela crítica como gêneros não
literários por não se adequarem aos procedimentos literários que tinham a
ficção como estatuto, e logo após, alguns como a autobiografia foram
considerados gêneros menores à literatura. Para Klinger (2008, p. 17), “a
crítica que sustenta essa acepção da literatura desconfia de qualquer relação
exterior ao texto, marginalizando e considerando ‘gêneros menores’ por
serem gêneros da realidade, ou seja, textos fronteiriços entre o literário e o
não-literário”.

No panorama atual, literatura e realidade se relacionam de uma forma


muito imbricada, de modo que não há distinções destas em algumas
narrativas contemporâneas a nível de América Latina, da mesma forma
como tem-se uma exploração produtiva de ficção com fotografias e
memórias pessoais, uma convivência de ensaios, autobiografias e textos
documentais. Nesse sentido, destacamos que nessa ideia de campo
inespecífico sobressai uma ideia na qual a literatura se configura como parte
do mundo, estando diretamente envolvida e refletida nele, e não mais como
um campo independente e autônomo. Esse fato, de alguma forma, responde
à tendência de narrativas contemporâneas marcadas pela subjetividade e
pela forte presença da figura do autor, frequentemente associado aos
personagens da obra. Além disso, responde da mesma forma ao sucesso
mercadológico dessas escritas, numa literatura que se caracteriza como
integrante da sociedade, de seus traços e manifestações.

A autoficção como uma manifestação contemporânea da literatura


permite-nos constatar um aspecto dessa expansividade da literatura. Os
textos autoficcionais abrem diversos questionamentos sobre o estatuto da
ficção, sobre a configuração da figura do autor e as delimitações do campo
e de gêneros literários, e essas escritas também possibilitam novas formas
contemporâneas da escrita e da literatura. Klinger assim define a autoficção:

Narrativa híbrida, ambivalente, na qual a ficção de si tem


como referente o autor, mas não como pessoa biográfica, e
sim o autor como personagem construído discursivamente.
Personagem que se exibe “ao vivo” no momento mesmo de
construção do discurso, ao mesmo tempo indagando sobre a
subjetividade e posicionando-se de forma crítica perante os
seus modos de representação. (KLINGER, 2012, p. 57)

O conceito que a autora tem da escrita autofictícia se aproxima


relativamente da atividade performática, a qual foi desempenhada,
predominantemente, no campo das artes cênicas. A articulação entre
performance e escrita (sobretudo da autoficção) e as nuances da autoficção
ao embolar ficção e realidade são questões que gostaríamos de explorar a
fim ilustrar um caso típico que pode ser compreendido no campo expandido
da literatura contemporânea.

É no sentido de arte performática que entendemos a autoficção. Em


sua escrita, o enfoque sempre é o ficcional, e portanto deve ser lida como
romance. No entanto, em seu interior há um trânsito narrativo entre vida e
obra, realidade e ficção, que em certo ponto se tornam indissociáveis,
construindo uma obra ora encenada ora factual e tornando difícil (ou
impossível) determinar as fronteiras a que cada um desses elementos
correspondem. O autor nesses textos é visto como bem mais que um
escritor, um ator, ou melhor, um performer, e tudo na sua obra é uma
espécie de encenação. Nesse caso, a autoficção lhe serve como uma
máscara autoral para a exibição de um personagem que é ele mesmo. Essa
escrita performática da autoficção causa um efeito sobre o texto em que não
é possível lê-lo com base nas categorias de gêneros definidas pelo campo da
literatura, tampouco o comportamento do autor se iguala ao de sua
categoria na literatura autônoma.

Na aposta a uma definição de “arte performática”, Aguilar e Cámara


(2017) propõem a ideia de “máquina performática”. Para eles, a
performance é definida pelo fato de ser uma arte que não se repete, uma arte
posicionada e que toma o corpo (mas não somente) como principal
elemento para sua realização. Nesse ato, o que fica é apenas o registro e não
os atos em si; a partir desses registros, surgem novos signos, os quais são
exteriores à escrita, mas não alheios a ela. Os signos, nesse caso, têm a
capacidade de constituírem uma performance, ou nela qualquer coisa pode
constituir um signo, por exemplo, a voz, o gesto, a maneira de exibição do
corpo, ou até mesmo a grafia e entonação da leitura. Os campos da máquina
performática, o do corpo, a da voz, o do espaço e o do escritor, relacionam o
ato de enunciação e de encenação, mesclando o literário e o espetáculo,
cena e texto, escritor e leitor/público. Portanto, o ato performático é
realizável nas obras a partir da incorporação de práticas da não literatura, ou
seja, não subjugados aos limites da palavra escrita, e o corpo nesse caso
serve como elemento para tal.
Ravetti (2002), a partir do termo “narrativa performática”, alinha um
conjunto de textos específicos em que traços da literatura permeiam a
natureza da performance, sendo essa prática pertencente ao campo das artes
cênicas no âmbito sociopolítico e também pode ser considerada do ponto de
vista do campo antropológico, sendo nele aquelas atividades que são
realizadas sempre na presença de alguém. Comumente, usamos o termo
como sinônimo de desempenho e encenação. Destacamos o conceito de
Ravetti à atividade performática, na qual há

Uma exposição radical de si mesmo, do sujeito enunciador,


assim como do local da enunciação, a exibição dos rituais
íntimos, a encenação de situações autobiográficas, a
representação das identidades como um trabalho de
constante restauração sempre inacabado. (RAVETTI, 2002,
p. 47)

Pensando a autoficção em contato tanto com teoria da “performance de


gênero” quanto com a perspectiva cênica da performance, Klinger (2008)
entende-a com uma das formas que a literatura tem assumido após o
paradigma moderno das letras, o mesmo período que Ludmer denomina
“autonomia literária”.

Além disso, Klinger entende que a proeminência da autoficção não


está na sua relação entre a vida do autor e a escrita, mas sim na atividade de
criação do chamado “mito do escritor”, o que se aproxima da ideia de mito
para Barthes (2003, p. 221), a qual “não é uma mentira, nem confissão: é
uma inflexão”. A figura do autor nesses textos não se comporta nem como
uma ficção nem como uma confissão, mas num entremear dos dois, muito
mais realizando uma performance de si mesmo do que concentrado na
decisão desse limiar paradigmático. É nesse encenar do autor, a partir de
referenciais pessoais e factuais num personagem de si mesmo, que
entendemos a autoficção no seio das narrativas contemporâneas. Portanto, o
autor desses textos se torna um performer, e sua atuação são encenações de
uma vida factual que podem ser estendidas nas suas aparições em público,
entrevistas e palestras.
A incidência da autoficção na produção literária como um reflexo da
expansão da literatura é assunto que foi discutido por Azevedo (2016). A
autora parte da observação de um pensamento pessimista que alguns
críticos veem acerca da condição da literatura neste século XXI. Parte
dessas críticas acusam as escritas de si a uma “desliteraturização da
literatura”, nas palavras da autora, por promover um perigo ao literário.
Nesse caso, a autoficção, pelas suas características essenciais que envolvem
o fictício e o real, é vista como uma escrita que implica um declínio ao
campo da ficção. No entanto, esse pensamento é refutado por Azevedo ao
evidenciar que o ato de estar fora do literário é apenas um desdobramento
da literatura necessário para sua inovação neste século, em que ela tem dado
sinais de uma condição ultrapassada.

A hipótese defendida por Azevedo é que os gêneros que apostam no


biográfico, a partir da ideia de que as fronteiras do campo da literatura
sempre foram porosas, tendem a renovar e expandir o terreno da ficção. É
nesse contexto que evidenciamos que a autoficção, alcançando o gênero
não-literário que descreve a factualidade, direciona o romance a um
itinerário que de maneira alguma é pautado por limites ou fronteiras, uma
vez que até então o terreno da ficção era marcado pela não presença do
documental, da memória, do confessional etc. A ambiguidade da autoficção
é justamente a oscilação entre o campo da literatura e da não-literatura,
trazidos ao texto em “ficção” e “realidade”, e pressionando, conforme
aponta Costa Lima (2006), a literatura sair de si, a invadir territórios
alheios, reinventando-se mais uma vez.

Como ponto de encerramento das reflexões desta análise, concluímos


que, na medida em que a prática da autoficção envolve elementos não
literários em seu texto, altera as formas de categorias literárias como a
escrita romanesca e o comportamento do autor numa escrita performática
que causa novos efeitos sobre o texto. Este tipo de escrita, atentando ao
panorama literário contemporâneo explorado pela crítica, contribui para que
haja uma expansividade do campo literário e consequentemente um não
pertencimento exclusivo a esse campo, tornando uma literatura, como
aponta Garramuño (2014a; 2014b), cada vez mais, “fora de si”.
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Tempo e memória no museu de
Cabral
André França Rocha Borba
Sumário

No ensaio “A máquina de João Cabral”, o poeta e crítico literário


Marcos Siscar (2010) apresenta uma carta do autor pernambucano a Clarice
Lispector. Embora o documento original não registre data e local, as
circunstâncias mencionadas no texto indicam que a correspondência foi
enviada de Barcelona no final da década de 1940, pela época de lançamento
do livro Psicologia da Composição (1947). Siscar reproduz parte da
missiva em seu trabalho:

De certo modo é este o primeiro livro que consigo fazer com


alguma honestidade para com minhas ideias sobre poesia. É
um livro construidíssimo; não só no sentido comum, isto é,
no sentido de que trabalhei muitíssimo nele, como num outro
sentido também, mais importante para mim: é um livro que
nasceu de fora para dentro. (MELO NETO apud SISCAR,
2010, p. 288)

Cabral descreve, assim, sua visão sobre o seu próprio modo de


funcionamento. Crítico e leitor de sua poesia, ele reprova a ideia de que a
literatura se consolida pela expressão de peculiaridades da personalidade do
autor. Ao ressaltar que sua obra tem gênese criativa em algum lugar
denominado “fora”, ele põe em xeque a visão de que o texto literário
precisa diretamente se adequar sob a chave da veracidade da vivência e dos
sentimentos.

A crítica literária, por muitos anos, caracterizou a poesia cabralina


seguindo esses preceitos de uma tal engenharia de versos, em que o cuidado
formal se eleva à preocupação máxima do artista. Os poemas, logo, seriam
construídos como se fossem um projeto de arquitetura, calculado em todos
os detalhes. Como aponta Bosi (2015), o escritor pernambucano era
conhecido por ter uma fabricação poética que almejava “despir o poema de
traços supérfluos e cadências sentimentais” (BOSI, 2015, p. 504). Como é
possível perceber, essa interpretação também foi solidificada a partir dos
comentários e leituras que o próprio Cabral fez de si.

Um século antes, o escritor norte-americano Edgar Allan Poe já


levantara esses questionamentos sobre os mecanismos que conduzem ao
nascimento do objeto artístico. Em 1846, por meio do ensaio “A filosofia da
composição”, sobre seu poema “O Corvo”, Poe desnuda concepções
românticas sobre autoria e originalidade: “É meu propósito deixar claro que
nenhum detalhe de sua composição pode ser atribuído a acidente ou
intuição – que o trabalho foi realizado passo a passo, até o final, com a
precisão e a rígida consequência de um problema matemático.” (POE, 2011,
p. 19)

A partir de suas contribuições teóricas sobre literatura, Poe forneceu


subsídios para os rumos da literatura moderna no Ocidente. A vontade
ordenadora, que resulta em livros “construidíssimos”, aparece anos mais
tarde em Baudelaire, na França. Em Les Fleurs du Mal, essa matemática se
concretiza por meio do cuidado com a divisão dos poemas internamente em
grupos, por exemplo. A ideia de cálculo, assim, penetrava na concepção
poética do artista:

O fato de Baudelaire ter disposto Les Fleurs du Mal como


construção arquitetônica, comprova a distância que o separa
do Romantismo, cujos livros líricos são simples coleções e
repetem, quanto ao aspecto formal, na arbitrariedade da
disposição, a casualidade da inspiração. Comprova, além
disso, a importância que as forças formais têm em sua
poesia. Estas significam muito mais que ornamento ou
cuidado devido. São meios da salvação, buscados ao
máximo num estado espiritual extremamente inquieto.
(FRIEDRICH, 1978, p. 40)
A ênfase desses artistas em questionar o cânone romântico já
estabelecido se baseia na impossibilidade de pensar uma escrita poética que
se desvincula da própria leitura. O poeta é também leitor de si mesmo.
Como observa João Alexandre Barbosa: “Não há história do poema
moderno sem que esteja presente, como elemento às vezes arriscado de
passagem entre poeta e poema, a parábola dessa consciência de leitura.”
(BARBOSA, 2009, p. 14)

Um museu de restos
A obra de Cabral, no entanto, não constitui um todo monolítico. O
livro Museu de Tudo, lançado em 1975, apresenta um método de fabricação
que contraria o que fora utilizado para a elaboração de livros anteriores,
como o que se estabelece em Psicologia da Composição (1947) e A
Educação pela Pedra (1966), por exemplo, em que houve um cuidado e
padronizações formal e estrutural envolvendo os poemas. Dessa vez, a
seleção se deu sem os mesmos critérios – ainda que conserve de um outro
modo um esforço pela coesão interna.

A maioria dos poemas já estava pronta, uma vez que eles teriam sido
excluídos de obras anteriores de Cabral. Como o texto de abertura já
anuncia, trata-se de uma obra feita de restos. O poeta assevera: “é depósito
do que aí está, / se fez sem risca ou risco” (MELO NETO, 2009, p. 25). O
autor juntou esses trabalhos remanescentes e os publicou nesta obra,
marcada por abordar temas diversos:

Cidades, artistas plásticos, futebol, aspirina, escritores,


meditações sobre o tempo, as formas de ser, a função da
poesia e dos poetas, tudo passa a compor a escala universal
do poeta. (BARBOSA, 2001, p. 73)

Dentre esses temas, tempo e memória são os que aparecem no maior


número de poemas no livro. O próprio título da obra já indica previamente
que essas questões a atravessam. Essa constatação converge com o
pensamento de Marta de Senna, que explica ser possível identificar nove
núcleos temáticos em Museu de Tudo: 1) poemas do tempo; 2) poemas de
circunstância; 3) de motivo espanhol; 4) de motivo pernambucano; 5) de
motivo norte-africano; 6) anedótico; 7) sobre futebol; 8) metapoético; e 9)
grupo de cerca de 13 poemas que, pela diversidade de temas, resistem a
qualquer classificação. (SENNA, 1980, p. 180)

Para Senna, é justamente o primeiro grupo que se sobressai no livro.


De acordo com a autora: “Assim como em Quaderna, também feito sem
planejamento, o setor dos poemas (anti)lírico-amorosos domina o conjunto,
em Museu de Tudo o setor do tempo será o dominante, senão em termos
quantitativos, pelo menos qualitativamente.” (SENNA, 1980, p. 180)

Benedito Nunes (2007) também distingue o último ciclo do poeta com


características peculiares. Para o teórico paraense, é detectável a relação
entre um “surto memorialístico” e uma expressão menos econômica de
subjetividade. Para ele, essa conexão fica mais nítida nos livros Escola das
Facas (1980), Agrestes (1985) e Crime na Calle Relator (1987). “O mais
notável recomeço que experimenta nessa sua última fase a obra de João
Cabral é o surto memorialístico”, afirma Nunes (2007, p. 136).

Museu de Tudo antecipa esse “surto” identificado por Nunes (2007).


Tal fenômeno pode ser depreendido a partir de poemas como “O
profissional da memória”:

O profissional da memória

Passeando presente dela


pelas ruas de Sevilha,
imaginou injetar-se
lembranças, como vacina,

para quando fosse dali


poder voltar a habitá-las,
uma e outras, e duplamente,
a mulher, ruas e praças.
Assim, foi entretecendo
entre ela, e Sevilha fios
de memória, para tê-las
num só e ambíguo tecido;

foi-se injetando a presença


a seu lado numa casa,
seu íntimo numa viela,
sua face numa fachada.

Mas desconvivendo delas,


longe da vida e do corpo,
viu que a tela da lembrança
se foi puindo pouco a pouco;

já não lembrava do que


se injetou em tal esquina,
que fonte o lembrava dela,
que gesto dela, qual rima.

A lembrança foi perdendo


a trama exata tecida
até um sépia diluído
de fotografia antiga.

Mas o que perdeu de exato


de outra forma recupera:
que hoje qualquer coisa de uma
traz da outra sua atmosfera. (MELO NETO, 2009, p. 111)

O poema cabralino traz a ideia do esquecimento como elemento


constituinte da memória. Tal perspectiva se aproxima do conceito de
recordação da filósofa alemã Aleida Assmann (2011). Para ela, há dois
caminhos possíveis quando se pretende estudar a memória em articulação
com a literatura. O primeiro trata da mnemotécnica, a memória como ars,
arte. Por essa perspectiva, que possui uma longa tradição e tem suas raízes
na Antiguidade grega e latina, a memória se relaciona a um
armazenamento, um procedimento mecânico que tem como objetivo final a
recuperação de informações:

A mnemotécnica romana foi concebida como um


procedimento adquirível e aplicável a vários fins e que
objetivava o armazenamento confiável e a recuperação
idêntica das informações inseridas na memória. A
mnemotécnica eliminava a dimensão do tempo, ou seja, o
tempo em si não era um agente estruturador no processo, que
por isso mesmo se apresentava como um procedimento
puramente espacial. (ASSMANN, 2011, p. 31)

A historiadora Frances Yates (2007) ressalta que essa arte se inscreve


no terreno da retórica, sendo uma de suas cinco partes, e funciona como
técnica que permitia aos oradores e poetas, gregos e romanos, tecer longos
discursos de cor. O procedimento consistia na impressão, na memória de
uma série de lugares, por isso possuía um caráter espacial. Yates descreve o
processo a partir de Quintiliano, professor de retórica:

Segundo ele, para formar uma série de lugares na memória,


deve-se recordar uma construção a mais ampla e variada
possível, com o pátio, a sala de estar, os quartos, os salões,
sem omitir as estátuas e outros ornamentos que decoram
esses espaços. As imagens por meio das quais o discurso
será lembrado – como um exemplo delas, Quintiliano diz
que se pode utilizar uma âncora ou uma arma – são, então,
colocadas pela imaginação em lugares da construção que
foram memorizados. Isso feito, tão logo a memória dos fatos
precise ser reavivada, percorrem-se todos esses lugares
sucessivamente e pede-se a seus guardiões aquilo que foi
depositado em cada lugar. Devemos pensar no orador antigo,
movendo-se em imaginação, durante seu discurso, através de
sua edificação construída na memória, extraindo dos lugares
memorizados as imagens ali colocadas. (YATES, 2007, p.
19)

Essa memória apresenta, inclusive, uma lenda de fundação. Durante


um jantar, oferecido por um nobre da Tessália, o poeta Simônides de Ceos
declamou um poema lírico em homenagem ao dono da casa. No entanto, o
artista incluiu passagens em honra das divindades Castor e Pólux. O
anfitrião, então, avisou que só daria metade da oferta ao poeta. O restante,
Simônides deveria pedir aos deuses homenageados. Na sequência,
Simônides foi avisado de que dois rapazes o estavam chamando do lado de
fora da casa. Assim que saiu, o teto do cômodo onde ocorria o jantar
desabou. O reconhecimento dos corpos – e seu enterro – só foi possível
porque Simônides havia memorizado onde cada convidado estava sentado.
Dessa forma, nota-se que essa memória valoriza os lugares e a forma
ordenada. (YATES, 2007, 17)

O segundo caminho possível diz respeito à memória enquanto vis,


potência. Nessa compreensão, há uma preponderância do processo de
recordação em contraposição ao procedimento de armazenamento. De
acordo com Assmann, “a palavra ‘potência’ indica, nesse caso, que a
memória não deve ser compreendida como um recipiente protetor, mas
como uma força imanente, como uma energia com leis próprias”
(ASSMANN, 2011, p. 34). Se o armazenamento age contra o tempo e o
esquecimento, a memória como potência age dentro do primeiro e toma o
segundo como cúmplice.

Nas quatro primeiras estrofes de “O profissional da memória”, ainda


há uma tentativa de se produzir um antídoto para se evitar esquecer. Daí até
a sétima, percebe-se que não há remédio: “A lembrança foi perdendo / a
trama exata tecida / até um sépia diluído / de fotografia antiga”. As últimas
linhas, por sua vez, indicam que “o que perdeu de exato / de outra forma
recupera: / que hoje qualquer coisa de uma / traz da outra sua atmosfera”.
Nesse sentido, nem tudo está perdido. É possível perceber uma relação com
uma dimensão virtual que registra os instantes, que podem ser recuperados.
O poeta como esse profissional, referido no título do poema, alude a
uma tradição que percebe a escrita como medium de eternização e suporte
da memória. Essa concepção de escrita já era interpretada dessa forma
desde os egípcios antigos. “Em um lapso temporal de mais de mil anos,
ficava-lhes claro que construções colossais e monumentos jaziam em
ruínas, mas os textos daquela mesma época ainda eram copiados, lidos e
estudados” (ASSMANN, 2011, p. 195). Logo, eles próprios, os egípcios,
constataram que os vestígios de tinta sobre o papiro tinham uma trajetória
mais duradoura do que grandes construções arquitetônicas.

Para a filósofa alemã, todavia, a escrita como um instrumento para a


eternização, e como metáfora do ato, tem um efeito revés:

Embora, no entanto, o gesto de escrever e gravar seja tão


análogo à memória, a ponto de ser considerado a mais
importante metáfora da memória, o medium da escrita
também foi visto como antípoda, como antagonista e
destruidor da memória. Ou será que foi justamente por isso?
Pois dessa forma também surge o perigo de que se transfiram
a operação e função memorativas para a escrita, de modo
que a escrita detenha a responsabilidade pela memória e a
memória, portanto, se externalize. (ASSMANN, 2011, p.
199)

Por esse ângulo, as pessoas já não precisam mais decorar longos


discursos ou vultosos poemas épicos. A escrita acabaria provocando uma
apatia da memória. Essa perspectiva é compartilhada por Platão, no diálogo
Fedro. O filósofo grego se mostra cético quanto ao poder da escrita de
atingir uma memória primeira, do mundo das ideias (anamnesis).

O novo invento não cumpre o que promete, segundo


julgamento do cético. Sua pretensão leva a descaminhos, já
que, no lugar de sabedoria verdadeira, a escrita pode oferecer
apenas um simulacro de sabedoria, e no lugar de verdadeiro
potencial de recordação, apenas um apoio pobre e material.
As promessas da escrita são, portanto, ilusórias: ela pode
apenas fazer recordar aquele que sabe, nunca ensinar a quem
não sabe. (ASSMANN, 2011, p. 200)

No Renascimento, essas ponderações platônicas ficaram em segundo


plano diante do aprimoramento da escrita e das melhores possibilidades
técnicas – ainda que seja um momento anterior à Revolução Industrial. A
escrita, nesse contexto, se vincula a uma força geradora de vida. Se para
Platão a escrita ocupa o lugar da memória, para Shakespeare, por exemplo,
a memória pode ser estimulada por ela.

Ao analisar sonetos do dramaturgo inglês, Assmann verifica que o


objeto que recebe o conteúdo escrito emerge na obra shakespeariana como
uma superfície que mobiliza o autor a dialogar consigo mesmo. Enquanto
para Platão a escrita se configura como um medium para tomar notas, a
escrita para Shakespeare atua como ferramenta para uma autocomunicação:

A escrita não destrói o diálogo, ela possibilita um diálogo


interno que perpassa longos intervalos de tempo. Para
Platão, uma escrita externalizada ocupa o lugar da memória,
e, portanto, a destrói; Para Shakespeare, ao contrário, uma
escrita interativa estimula a memória. Desse modo, do
veneno de Platão voltou-se a compor um medicamento para
a memória. (ASSMANN, 2011, p. 205)

O filósofo e cientista Francis Bacon também faz formulações nessa


linha. Enquanto imagens e estátuas sofrem destruição pelo tempo, os versos
de Homero “destroem o tempo e garantem uma vida eterna” (ASSMANN,
2011, p. 208). Para o nobre inglês, a escrita atua como emanação viva de
um espírito e tem como apontamento sempre o futuro.

Tal com Shakespeare, Bacon também atribui a “vivacidade”


da escrita ao processo interativo: para ele, uma ideia
conservada é necessariamente uma ideia renovada. Assim, os
caracteres não armazenam meros pensamentos, mas voltam a
trazê-los sempre novos para o mundo. Uma dissociação entre
registro e saber, como Platão temia, fica explicitamente
excluída em tais descrições, que partem do potencial
memorativo da escrita e o entendem como um reservador de
energia. (ASSMANN, 2011, p. 209)

Assim como é possível delinear visões diferentes sobre a relação entre


escrita e memória, o poema “Duplicidade do tempo” apresenta
interpretações plausíveis em relação à ação do tempo sobre a matéria. O
poeta manifesta preocupação com o fluxo contínuo do tempo e as suas
consequências. No entanto, os efeitos são diversos dependendo da
substância afetada. Para o grupo dos elementos metálicos, há o resultado de
oxidação, que funciona como veneno. Já para itens que podemos entender
como mais orgânicos, o tempo atua como um mecanismo que “seca”, “com
mil cautérios”.

Duplicidade do tempo

O níquel, o alumínio, o estanho,


e outros assépticos elementos,
ao fim se corrompem: o tempo
injeta em cada um seu veneno.

A merda, o lixo, o corpo podre,


os humores, vivos dejetos,
não se corrompem mais: o tempo
seca-os ao fim, com mil cautérios.
(MELO NETO, 2009, p. 105)

A questão do tempo não aparece aqui apenas como um tema. Há


procedimentos poéticos que indicam um atravessamento do tempo também
no nível expressivo. Por exemplo, o poema apresenta uma quantidade
excessiva de pontuação para uma estrutura de duas estrofes formadas por
quatro versos cada. As vírgulas funcionam como uma ferramenta que freia
o fluxo temporal da própria leitura. Além disso, o uso de dois-pontos, por
sua vez, estabelece uma relação de causa e consequência, algo que o
próprio poema indica e busca demonstrar a partir do correr do tempo.

Museu de Tudo constitui um livro de fronteira na obra cabralina. Por


mais que ele já adiante o “surto memorialístico” (NUNES, 2007) que vai se
consolidar nos livros seguintes, a obra também traz traços do Cabral
engenheiro, matemático. Em resposta ao compositor Aldir Blanc, à época
do lançamento do livro, Cabral deixou nítida sua preocupação com a
possibilidade de titubear perante sua própria pedagogia: “Na minha idade, a
educação ou está feita ou é muito difícil de fazer-se. Depois dos 50 anos,
talvez o esforço de educação, confesse-se ou não, passa a ser um esforço
menos de educar-se do que de impedir que se perca a educação
anteriormente adquirida.”1
1 O Globo, suplemento Domingo, 16 de novembro de 1975.

Referências
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações
da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011.

BARBOSA, João Alexandre. João Cabral de Melo Neto. São Paulo:


Publifolha, 2001.

_________. As ilusões da modernidade. São Paulo: Editora


Perspectiva, 2009.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 50 ed. São


Paulo: Cultrix, 2015.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas


Cidades, 1978.
MELO NETO, João Cabral. Museu de tudo. Rio de Janeiro: Objetiva,
2009.

NUNES, Benedito. João Cabral: a máquina do poema. MÜLLER,


Adalberto (org). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.

POE. Edgar Allan. A filosofia da composição. Tradução de Léa


Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.

SENNA, Marta de. João Cabral: Tempo e memória. Rio de Janeiro:


Antares, 1980.

SISCAR, Marcos. A máquina de João Cabral. In: ______. Poesia e


crise. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 287-304.

YATES, Frances A. A arte da memória. Tradução de Flavia Bancher.


Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
Foto-grafia: Capturar imagens
pelas palavras
Brendo Vasconcellos de Faria

Profª Drª Ida Maria Santos Ferreira Alves

Sumário

No século XIX, a invenção da fotografia provocou intensas


transformações no âmbito artístico. Em oposição ao modelo tradicional de
representação – figurativa ou abstrata – da realidade no campo das artes
plásticas e literárias, a fotografia possibilitou uma maior aproximação entre
o real e o instante à medida que a técnica fotográfica viabilizava uma
produção artística mais mimética. Esse cenário foi possibilitado porque a
técnica fotográfica pode ser entendida como um recorte do real e, nesse
processo, o fotógrafo, por meio do enquadramento e da composição
imagética, promove um corte em relação à ideia de espaço-tempo ao passo
que captura um fragmento do tempo.

Essa característica, no entanto, promoveu um frenesi no cenário


artístico da época: havia aqueles que a compreendiam como arte e quem
negava essa relação. Isso porque a técnica utilizada para captação de
imagens por meio técnico era vista, por alguns intelectuais, como um mero
processo de esvaziamento estético. Para Schaeffer, “Do ponto de vista da
arte dos museus, a fotografia é, sem contestação, uma arte impura no
sentido em que muito freqüentemente sua prática é inscrita em finalidades
pragmáticas[...]”. (SCHAEFFER, 1996, s/p.)1
1 Este texto foi originalmente publicado no periódico francês La recherche photographique nº 18, de maio de 1995 e traduzido por Flávia Cesarino Costa, disponível
em: http://www.uel.br/pos/fotografia/wp-content/uploads/downs-uteis-sobre-a-arte-fotografica.pdf acesso em 25/01/2020

É nesse contexto de crítica à fotografia como expressão artística que se


insere Baudelaire. À época do Salão de Paris de 1859, o artista escreve uma
dura crítica à utilização do daguerreótipo, haja vista que entende esse
processo como um método de representação puramente mimético e de
produção massiva. Isso porque o mecanismo utilizado para a captura de
imagens dependia de um processo mecanizado, já que as imagens eram
produzidas a partir da reflexão da luz solar sobre placas pratas banhadas em
vapor de iodo e iodeto. Nesse cenário, o fotógrafo pouco influía sobre a
produção das imagens – as quais num primeiro momento eram
majoritariamente de paisagens ou construções – e, por isso, elas passaram a
sofrer críticas quanto ao seu valor artístico. Com isso, o demasiado realismo
das fotografias era percebido como um mecanismo de empobrecimento
artístico que retirava, portanto, a aura, tendo em vista que a câmera pode ser
compreendida como uma extensão do campo visual ou da memória do
fotógrafo, mas não de sua expressão imaginativa.

O panorama radical e apocalíptico em que se inseria a fotografia


começa a ser desconstruído com Walter Benjamin e suas reflexões acerca
desse processo. Para o crítico, no ensaio Pequena história da fotografia, as
primeiras fotografias, durante o período de 1839 até cerca de 1850,
possuíam um caráter aurático. Isso se deve à necessidade de o processo ser
feito de modo mais artesanal, com um tempo condensado: as câmaras
escuras dependiam não só de habilidade técnica, como também de
concentração e percepção. Assim, entende-se que no procedimento
fotográfico, durante a sua primeira década, o papel do fotógrafo pode ser
associado à imagem do pintor, que detinha de competências próprias para
além de meras habilidades gerais de representação do real. Benjamin
compreendia, então, que as primeiras produções fotográficas, como as
pinturas, possuíam, sim, um caráter aurático que as inseria no círculo de
obras de arte. Isso, “pois aquela aura não é o simples produto de uma
câmera primitiva. Nos primeiros tempos da fotografia, a convergência entre
o objeto e a técnica era tão completa quanto foi sua dissociação, no período
de declínio” (BENJAMIN, 1994 p. 99).

Em seu discurso dialético, Benjamin também compreende que a


produção fotográfica, após sua mecanização e instantaneidade, entra em um
período de declínio estético e artístico. À medida que ocorreram mudanças
substanciais no processo de criação – que de uma tarefa artesanal, lenta e
tranquila, passa a uma tarefa de domínio industrial, ditada pelo ritmo
acelerado da vida moderna – o fazer artístico fotográfico transforma-se em
uma prática de produção e reprodução técnica em adequação aos princípios
do mercado. Surgem, então, fotos instantâneas, sem preocupação estética ou
criativa, que podem ser feitas por quaisquer pessoas, em quaisquer
contextos e de quaisquer situações. Essa banalização da técnica fotográfica
provocou uma cisão negativa para a fotografia que obrigou os fotógrafos a
repensarem seus procedimentos a fim de transfigurar a imagem obscura
capturada pelo cânone intelectual e difundida às massas consumidoras.

É desenvolvido, nessa conjuntura, um novo estilo fotográfico


denominado fotografia pictorialista. No novo procedimento, os fotógrafos
usavam de técnicas para manipular negativos e conseguir resultados
estéticos semelhantes aos da pintura. Com isso, o fotógrafo pictorialista
conseguia dissociar-se da mera reprodução mecanizada de um ponto de
observação corriqueiro e produzir uma foto que iria conter elementos de sua
percepção e personalidade artística. Ocorre, então, um processo de
emancipação da fotografia que deixa de ter propósitos pragmáticos de
reprodução mimética do real, e passa a configurar-se como um meio de
expressão. Para Leite: "A emancipação da fotografia como linguagem
ocorre no momento em que esta deixa de ser mero instrumento de registro
da verossimilhança e passa a ser um meio para que o fotógrafo ou mesmo o
produtor da imagem técnica exteriorize de maneira clara e objetiva a sua
real visão de mundo e de si mesmo" (LEITE, 2014 s/p.).2
2 Artigo disponível online sem numeração de páginas em: https://focusfoto.com.br/o-advento-da-fotografia-2/ acesso em 20 de outubro de 2019

A fotografia pictorialista, em função disso, foi elemento importante


para a reconfiguração do crítico panorama em que se encontrava essa
expressão artística. Por meio dela, o fotografo foi capaz de estabelecer uma
nova linguagem expressiva que supera a efemeridade das coisas. Uma
característica que, para Benjamin, no entanto, nada mais era do que uma
tentativa de “simular a aura”:

Pouco depois, com efeito, a ótica, mais avançada, passou a


dispor de instrumentos que eliminavam inteiramente as
partes escuras, registrando os objetos como espelhos. Os
fotógrafos posteriores a 1880 viam como sua tarefa criar a
ilusão da aura através de todos os artifícios do retoque,
especialmente pelo chamado off-set; essa mesma aura que
fora expulsa da imagem graças à eliminação da sombra por
meio de objetivas de maior intensidade luminosa, da mesma
forma que ela fora expulsa da realidade, graças à
degenerescência da burguesia imperialista.(BENJAMIN,
1996, p. 99).

Barthes, por sua vez, ao observar a fotografia, irá compreendê-la não


como uma simples cópia do real, mas sim como a sua emanação. Em A
mensagem fotográfica, o autor busca compreender qual elemento da
composição fotográfica constituía sua marca distintiva. Para isso,
estabeleceu uma relação entre a mensagem transmitida pela foto e o método
linguístico utilizado em sua construção, atentando-se, primeiramente, ao seu
conteúdo. Em sua observação, constatou que, no conteúdo fotografado,
surge um paradoxo fotográfico, já que a foto é constituída em si mesma por
duas mensagens: uma sem código e a outra com código.

Em função disso, os procedimentos adotados pelo fotógrafo funcionam


como procedimentos estéticos e artísticos que projetam subjetividade sobre
a imagem capturada. Isso porque, ao representar o real, ainda que de forma
mimética, a fotografia estará submetida a manipulações subjetivas do
fotógrafo. Tal fato confere à mesma seu caráter singular de representação,
ou seja, o caráter mágico da fotografia não está na sua capacidade de
capturar o instante espaço-tempo, mas na sua potência em emanar o
passado real. Segundo o crítico, a fotografia torna “um medium estranho,
uma nova forma de alucinação: falsa no nível de percepção, verdadeira no
nível do tempo: uma alucinação temperada, de certo modo, modesta,
partilhada (de um lado. Não está lá”, do outro, “mas isso realmente
esteve”): imagem louca, com tinturas de real” (BARTHES, 1994 p. 96).

Se, para Barthes, a fotografia pode ser compreendida como uma


emanação do real, uma vez que perpetua, em imagem, um fragmento de
instante real passado, para Sontag, ela é, ainda, capaz de deixar um vestígio,
algo como uma “pegada ou máscara mortuária” (SONTAG, 2004, p. 170).
Isso se torna possível haja vista que no processo fotográfico tem-se a
construção de duas dimensões temporais: uma que irá corresponder ao
exato instante da fotografia, que no mundo real é o momento presente da
composição em que há os aspectos visuais programados dentro de uma
determinada perspectiva adotada pelo artista; e a segunda corresponde à
fotografia como resultado físico da captura dos reflexos e ondas de luz
refletidas no instante que, mundo real, é apenas marca de um momento que
não existe mais. À vista disso, a autora percebe que a arte fotográfica pode
ser também percebida como um ato de aquisição. Quando o fotografo
decide o objeto a ser fotografado, ele toma posse de um fragmento do
tempo-espaço que se torna, então, parte integrante de um novo mecanismo
de comunicação capaz de organizar, classificar e redefinir a natureza de
como percebemos a realidade – passada, presente ou futura.

As fotos fazem mais do que redefinir a natureza da


experiência comum (gente, coisas, fatos, tudo o que vemos –
embora de forma diferentes e, não raro, desatenta – com a
visão natural) e acrescentar uma vasta quantidade de
materiais que nunca chegamos a ver. A realidade como tal é
redefinida – como uma peça para a exposição, como um
registro para ser examinado, como um alvo a ser vigiado.
(SONTAG, 2004, p. 172 - 173)

Sontag entende, nesse contexto, que a técnica fotográfica é um


mecanismo de composição artística que produz uma obra que não só
representa uma realidade tal qual ela foi, mas que também põe em destaque
esse fragmento do tempo-espaço, possibilitando, ao interlocutor dessa
mensagem, um elemento de exposição e exame. Ao propor um recorte do
real, o olhar fotográfico, o enquadramento e a manipulação da imagem
transformam-se, então, num mecanismo linguístico que fragmenta
“continuidade do tempo-espaço e distribui os pedaços em um dossiê
interminável, propiciando dessa forma possibilidades de controle que não
poderiam sequer ser sonhadas sob o anterior sistema de registro de
informações: a escrita.” (SONTAG, 2004, p. 173).

É com base nessa premissa que aqui se pretende uma análise da


produção poética de Luís Quintais como, também, de seu processo
fotográfico que põe em evidência uma marca do real para a análise do
observador. Em seu livro A noite imóvel, pode-se perceber técnicas
semelhantes às da fotografia como método de composição lírica. Isso pode
ser percebido ao observar a posição de observador de que se vale o eu lírico
frente ao espaço em que se encontra. Análogo ao fotógrafo, ele descreve um
enquadramento do cenário que vê, pondo em focalização o objeto sobre o
qual uma reflexão poética. Vemos, com isso, a tentativa de estabelecer
meios de contemplação da efêmera relação entre o homem e o tempo, sendo
aquele agente direto das transformações socioespaciais responsáveis pela
alteração do modo de percepção deste. É por meio da depuração do espaço
que Quintas proporciona ao leitor uma forma de redefinir o modo como
experimenta a relação com os espectros do tempo e do espaço.

A hipótese proposta pode ser observada a partir da leitura crítica do


poema A arte da memória presente no livro A noite imóvel:

A ARTE DA MEMÓRIA

Um mapa está sobre a mesa.


Encontro também aí um livro.

O mapa está semi-apagado, a espaços


largos entre inscrições
encontramos terras sem nome,
incógnitas, sinais de manchar e descuidos.

O livro está queimado,


carbonizado. O livro
é uma sombra de cinza
que se desmancha ao toque.

A mesa era do meu pai, mas o mapa


e o livro são apenas indícios
do que obscuramente fui.
(QUINTAIS, 2016 p. 119)
Na primeira estrofe do poema, nota-se que o eu poético encontra-se em
posição de observador num espaço que pode ser compreendido inicialmente
como um escritório. De seu ponto de observação, o enquadramento
escolhido da cena é composto por uma mesa, um mapa e um livro. Seu
olhar, então, aproxima-se do objeto observado focalizando elementos que
antes passariam despercebidos a um olhar desatento. É nesse processo que
se capturam características da configuração da cena: o mapa está em
processo de degradação, e há, para além de marcas antigas de uso, entre as
palavras, lacunas que são deixadas pela decomposição da matéria de escrita
ao longo do tempo. O livro é outro corpo também em destruição seu
aspecto releva um objeto incinerado, uma matéria arruinada capaz de
desfazer-se a um simples toque.

Sob essa reflexão, é fundamental destacar o papel da imagem


construída pela voz lírica como um mecanismo de análise reflexiva sobre si.
Sobre os objetos que compõem o enquadramento, nota-se que representam
uma espécie de cena de natureza morta. Fragmentada e desgastada, a
matéria, nesse contexto, assemelha-se ao processo de resgate
memorialístico – o qual se realiza mediante a busca de lacunas perdidas na
relação tempo-espaço – da imagem correspondente à identidade passada do
eu lírico. Nota-se, em função disso, ao final do poema, a síntese da dupla
composição imagética produzida no poema: os corpos em ruínas “são
apenas indícios do que obscuramente” (QUINTAIS, 2016 p. 119) foi o eu
poético.

Análoga à Sontag, a voz poética representa o fotógrafo que, por meio


da observação do espaço, captura uma imagem dicotômica: a qual tende a
representar o momento presente da sua produção – cenário e
enquadramento – e outra que representa um recorte subjetivo capaz de pôr
em xeque uma mensagem apta a redefinir o modo como uma realidade é
percebida. Entende-se, com isso, que o poema se torna um modo de
compreender sua identidade perdida e fragmentada, que, tal qual a matéria,
encontra-se em desgaste.

Quadro semelhante aparece em outro poema de A noite imóvel. A voz


poética de Fantasmas parece, num primeiro momento, estar observando
externamente uma rua, enquanto descreve e recorta um fragmento tempo-
espaço:

FANTASMAS

Teremos
de lutar
pela simples
respiração.
De noite nada virá.

Uma figura humana


atravessa a estrada
frente à casa
onde nasci.
Reparo nela,
no seu caminhar
de onde nada
se mede, de onde nada
tem mensuração.

Sou eu, opaco, que atravesso


a rua da infância?

Depois da guerra, fugimos


todos, mobília abandonada,
ficaram-nos as roupas
do corpo, e na alma
fantasmas.

Não voltei a essa casa,


a essa rua,
a essa janela.
(QUINTAIS, 2016 p. 115 – 116)
À primeira estrofe do poema, a voz poética nos apresenta um
conselho: é preciso “lutar pela simples respiração” (QUINTAIS, 2016 p.
115). Essa ponderação denuncia uma importante questão temática presenta
na poesia de Quintais: a imagem da melancolia. Isso porque a melancolia
pode ser compreendida como um processo de observação introspectiva pelo
qual o sujeito é levado a debruçar sobre si em função de uma reação à perda
de um objeto de afeto. Nesse estado, como aponta Freud, ocorre uma
“ruptura do eu” pela qual uma das partes destaca-se e volta-se para a outra,
julgando-a de forma crítica: “[...] detenhamo-nos um pouco no conceito que
a perturbação do melancólico oferece a respeito da constituição do ego
humano. Vemos nele um a parte do ego se coloca contra a outra, julgando-a
criticamente, e, por assim dizer, toma-a como seu objeto.” (FREUD, 2011,
p. 280)

Imagem análoga pode ser vista a partir da segunda estrofe do poema.


O eu lírico, por meio de uma contemplação do espaço, captura uma cena
composta por três elementos: uma estrada, uma figura humana e uma casa
conhecida. Nesse processo, ele destaca uma fissura no espaço-tempo e a
põe em reflexão crítica ao buscar reparar no caminhar desta figura, a
princípio desconhecida, o qual, na verdade, promove uma sensação de vazio
“de onde nada\ se mede, de onde nada\ tem mensuração” (QUINTAIS, 2016
p.115). O enquadramento escolhido, no entanto, revela como plano de
fundo uma reflexão que culmina no destaque de uma parte do ego para
criticá-la de modo corrosivo. A pergunta, na estrofe seguinte, revela que o
objeto de sua perda se encontra na infância e configura-se como a imagem
de si mesmo: “Sou eu, opaco, que atravesso\ a rua da infância?”
(QUINTAIS, 2016 p. 116).

Em função disso, percebe-se que o eu poético se encontra


fragmentado, opaco e em ruínas, buscando no tecido da memória resgatar a
imagem fragmentada que tem de si. Tal processo é decorrente de uma
separação brusca e violenta à qual a voz lírica foi submetida na infância:
“Depois da guerra, fugimos\ todos, mobília abandonada,\ ficaram-nos as
roupas\ do corpo, e na alma\ fantasmas.” (QUINTAIS, 2016 p. 116) Essa
experiência de dor e de perda leva o indivíduo a um estado que, semelhante
ao luto, desencadeia uma sensação de melancolia capaz de fissurar o ego.
Por meio da imagem, então, o eu lírico denuncia a sua própria
fragmentação, tornando-a visível aos seus leitores. Consoante Didi-
Huberman “A imagem é pouca coisa: resto ou fissura (fêlure). Um acidente
do tempo que a torna momentaneamente visível ou legível”. (DIDI-
HUBERMAN, 2011, p. 87)

Ao final do poema, então, tem-se a denúncia final: “Não voltei a essa


casa,\ a essa rua,\ a essa janela” (QUINTAIS, 2016 p. 116). Em função
disso, é possível concluir que a imagem construída pelo poema remonta a
um objeto perdido no tempo de sua infância. O luto promovido, neste caso,
é decorrente da perda da casa, da rua e da janela, objetos de afeto aos quais
o eu poético não tem mais acesso, a não ser pela observação da imagem. A
figura foto-grafada, portanto, tem a potência de resistência capaz de
resgatar, do tempo passado, uma fissura do objeto de afeto perdido. Nos
momentos de crise, como refletido por Didi-Huberman, é a imagem que se
mostra como ferramenta de ampliação e transposição de horizontes:

Nesse nosso mundo histórico - longe, portanto, de todos os


derradeiros fins e de todo Juízo Final -, nesse mundo onde “o
inimigo não para de vencer”" e onde o horizonte parece
ofuscado pelo reino e por sua glória, o primeiro operador
político de protesto, de crise, de crítica ou de emancipação,
deve ser chamado imagem, no que diz respeito a algo que se
revela capaz de transpor o horizonte das construções
totalitárias. (DIDI-HUBERMAN, 2011 p. 117 – 118)

Considerações finais
Com base no exposto, é possível observar que o estatuto de arte da
fotografia historicamente foi marcado por discursos dicotômicos: há
aqueles que rejeitaram fortemente essa classificação e aqueles que a
defendiam. Esse cenário foi possibilitado, sobretudo, devido à associação
das técnicas fotográficas a um “recorte do real” e à mecanização técnica
desse processo. Por isso, o realismo fotográfico foi entendido como uma
ferramenta de empobrecimento artístico que retirava, portanto, a aura das
imagens captadas a partir das câmeras.

No entanto, foi possível notar que, apesar de um panorama radical e


apocalíptico em que se inseria a fotografia, pensadores como Walter
Benjamin, Barthes, Sontag e Didi-Huberman enxergavam as imagens
produzidas por esse mecanismo como uma extensão da visão subjetiva do
olhar fotógrafo. A fotografia, compreendida como uma emanação do real,
que deixa um vestígio do fragmento do instante real passado, que, por sua
vez, tem como função o destaque da cena para que uma análise reflexiva.
Em função dessa potência da imagem, discutimos que essa técnica pode ser
compreendida como um mecanismo de escrita poética, o qual pode ser
evidenciado na obra de Luís Quintais.

Em seu livro A noite imóvel, as técnicas de composição poética muito


se assemelham às suas técnicas de composição fotográfica. Ao ser analisada
a posição de observador que o eu lírico assume frente ao espaço em que se
encontra, ele faz a grafia de uma cena, tal qual o fotógrafo faz a partir do
enquadramento escolhido. Nesse processo, há a descrição imagética do que
se vê, pondo em destaque, como uma espécie de método de focalização, a
matéria sobre a qual se propõe uma reflexão. Vemos, com isso, que a voz
poética, por meio da observação do espaço, captura imagens dicotômicas
que funcionam como representação não só do cenário como também um
fragmento de latente potência de redefinição da percepção.

Nesse quadro, Quintais se propõe a estabelecer mecanismo de análise


da complexa relação entre o homem e o tempo. Isso porque ele busca
proporcionar ao leitor imagens capazes de reconfigurar os modos de
experimentação da sua relação com os espectros do tempo e do espaço.
Com isso, as ruínas, o desgaste e a degradação da matéria funcionam como
técnica de produção de melancolia, esta que tende a funcionar como um
processo de auto-observação que leva o sujeito a debruçar sobre si como
forma de reação a uma experiência de um objeto de afeto. Nesse estado,
segundo Freud, há uma “ruptura do eu”, que, também em ruínas, tem seu
ego dividido em duas partes: uma que se destaca e volta-se para a outra,
julgando-a de forma crítica. Em função disso, as imagens foto-grafadas por
Quintais, representam não só a emanação do fragmento espaço-tempo, mas
também uma fragmentação do eu poético na tentativa de estabelecer
mecanismo de análise crítica e reflexiva acerca da própria condição
humana.

Referências
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SONTAG, Susan (II). Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São


Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Entre escritas de si e do outro em
Llansol: Leitura de "Uma data em
cada mão - Livro de horas I"
Claudia Regina do Nascimento

Sumário

Introdução
Aspectos peculiares da textualidade de Maria Gabriela Llansol, tais
como o fulgor, o figural, o fragmentário, o feminino, entre outros, nos seus
romances e diários, são frequentemente discutidos no meio acadêmico e em
produções monográficas, dissertações e teses. A proposta de estudo ora
apresentada intenta uma leitura da experiência da escrita de si no texto da
escritora portuguesa, na obra “Uma data em cada mão – livro de horas I”
(2009), pontuando momentos em que, entre a narrativa e o diário, a
textualidade llansoliana pode mostrar seu “caráter de escrita diarística
espontânea, mas quase sempre densa, múltipla e rizomática, com seus
registros variados, do reflexivo ao informativo, do introspectivo ao crítico,
do contemplativo ao irônico” (LLANSOL, 2009, p. 11), como registram os
próprios editores, João Barrento e Maria Etelvina Santos, na apresentação
do trabalho em equipe, iniciado sob a orientação da própria Llansol e
mantido após a morte da autora na composição dos próximos “Livros de
Horas” que estariam por vir – a saber, o volume VI, “Herbais foi de
silêncio”, lançado em 2018.

Acrescenta-se a isso o fato de a obra da escritora ser diversificada


quanto aos gêneros, e ainda mais diversificada intratextualmente, o que
Barrento (2003) chamou de “contaminação genológica”, pois, em sua
concepção, o texto de Llansol é “o exemplo maior da prática de um gênero
indeciso”, a obra de Llansol é “um Texto-entre-os-gêneros (ou para além
deles)”. Nesse sentido, concordando, também, com os apontamentos de
Jane Rodrigues Santos (2009), “quando falamos de Maria Gabriela Llansol,
somos impulsionados a deixar para trás as convenções informativas, afinal
elas não são suficientemente significativas à leitura de seus textos.”
(SANTOS, 2009, p. 68)

Por isso, na busca por suas significações, pretende-se discorrer sobre a


hipótese de que na leitura dos escritos de Llansol se revela a experiência de
escrita através dos diários em que a autora vai além de narrar seu
movimento de produção, e, assim, emerge o desejo de discutir o modo
como se dá essa possível “transgressão” (FOUCAULT, 2009) das
convenções entre os dois gêneros, e pensar os “limiares” (ANTELO, 2008)
entre “o diário íntimo e a narrativa” (BLANCHOT, 2005), lançando um
olhar sobre alguns trechos selecionados na obra em estudo.

Para tanto, é relevante uma retomada das definições dos gêneros diário
e narrativa, e, com base nos interlocutores teóricos, a inclusão das ideias
que ajudam a pensar sobre a desconstrução dessas definições no fazer
literário contemporâneo, para uni-las à leitura a que se propõe em “Uma
data em cada mão – Livro de horas I”, de Maria Gabriela Llansol.

Os confins dos conceitos


Na teoria de Blanchot (2005), definem-se algumas diferenças
específicas entre o diário íntimo e a narrativa: o primeiro, a escrita de si,
está preso ao calendário, apesar de parecer “tão livre de forma, tão dócil aos
movimentos da vida e capaz de todas as liberdades, já que pensamentos,
sonhos, ficções, comentários de si mesmo, acontecimentos importantes,
insignificantes, tudo lhe convém, na ordem e na desordem que se quiser”
(BLANCHOT, 2005, p. 270); o segundo, a escrita do outro, “é o lugar da
imantação, que atrai a figura real para os pontos em que ela deve se colocar,
respondendo ao fascínio de sua sombra.” (BLANCHOT, 2005, p. 271)

Tendo em vista essas definições de Blanchot (2005) sobre o diário


íntimo e a narrativa, verifica-se que o texto de Maria Gabriela Llansol, vai
desencadear uma oficina de escrita que mescla ambos os gêneros,
transgredindo as definições, as características e as limitações que os
poderiam classificar. Isso porque,

em cujas obras tudo passa pelo espaço do texto (sem que


nada, ou quase nada, se passe), e em que, por isso, a noção
de topologia é mais importante que a de temporalidade:
aquele espaço transforma-se, assim, numa escrita
genologicamente neutra, num espaço total de liberdade do
trabalho com a linguagem e da fabulação com “figuras”
arrancadas das esferas da história, da experiência, do ser e do
próprio texto, ele mesmo figura, tantas vezes dominante.
(BARRENTO, 2003, p. 139)

Essa observação de Barrento (2003) perpassa por seu olhar sobre os


engessamentos que o contexto cultural, o idioma e a tradição impõem à
escrita literária, e tem suas reflexões correspondidas e, supõe-se, satisfeitas,
na obra da escritora: “a leitura de Maria Gabriela Llansol parece dizer-me,
em resposta a essa tripla pergunta: assim é, de fato, e por isso mesmo a
escrita tem sempre de se afirmar contra uma cultura, uma língua e uma
tradição” (BARRENTO, 2003, p. 139). Neste artigo, “O livro torna o sexo
invisível”, o ensaísta demonstra como a ausência da definição de
sexualidade na escrita literária espelha essa atitude criadora também na
insubordinação aos modelos de gênero textual, como uma experiência de
rompimento positivo das tradições, transgredindo o purismo, através dessa
mescla dos gêneros:

A contaminação genológica (uma quase promiscuidade


textual), que – com antecedentes modernistas [...], resulta
numa amplificação progressiva dos limites do “romance”,
pondo a própria forma em causa através da enxertia de toda
uma panóplia de formas e gêneros “estranhos” a uma
pretensa pureza original (que de facto nunca existiu) do
romanesco – o ensaio, a poesia, o diário, o fragmento, a
carta, essencialmente formas de linguagem expressiva ou
reflexiva, mas não propriamente narrativa. O exemplo maior
desta prática de um gênero indeciso é o de Maria Gabriela
Llansol.” (BARRENTO, 2003, p. 139)

Antecipando essa linha de pensamento, em “Prefácio à transgressão”,


Foucault (2009), ao enfocar a relação entre a sexualidade moderna e a
profanação de discursos e modelos que a experiência contemporânea
libertou, considera que “a linguagem está quase sempre inteiramente por
nascer onde a transgressão encontrará seu espaço” (FOUCAULT, 2009, p.
32), e “a transgressão” como “um gesto relativo ao limite”. Por seu caráter
libertário, tal ideia pode ser associada às classificações que determinam um
ou outro gênero textual, no caso, narrativa e diário, já que não se pretende,
aqui, essencialmente defini-los, mas entrar no mundo dos textos para captar
os sentidos das escolhas que os constroem, pois a transgressão não opõe
nada a nada e não abala a solidez dos fundamentos.

Ela afirma o ser limitado, afirma o ilimitado no qual ela se


lança, abrindo-o pela primeira vez à existência. Mas pode-se
dizer que essa afirmação nada tem de positivo: nenhum
conteúdo pode prendê-la, já que, por definição, nenhum
limite pode retê-la. Talvez ela não passe da afirmação da
divisão. Seria também necessário aliviar essa palavra de tudo
o que pode lembrar o gesto do corte, ou o estabelecimento de
uma separação ou a medida de um afastamento, e lhe deixar
apenas o que nela pode designar o ser da diferença.
(FOUCAULT, 2009, p. 32)

Esta designação do “ser da diferença” pode ser representada nessa


indecisão gênero-textual llansoliana de que fala Barrento (2003), que
conjuga as noções sobre os limiares da tipologia, abrindo, assim, um
diálogo com Antelo (2008) sobre os “lindes, limites e limiares”
demarcadores ou “espiraladores”, e aliviando o peso da palavra “divisão”,
como assinala Foucault (2009, p. 32): “a transgressão está mais ligada ao
limite por uma relação em espiral.”
Em “A literatura e suas fronteiras na América Latina”, Antelo (2008)
considera que esse tema “propõe, no momento de sua enunciação, uma série
de problemas teóricos da maior relevância” (ANTELO, 2008, p. 4): os
significados dos termos que permeiam as noções de limites, em que “linde”
é sinônimo de “fronteira”, linha ou demarcação passível de se afrontar e,
por extensão, ofender, confrontar. Para ele,

uma rede de pesquisas em torno a “La literatura y sus lindes


en América Latina”, ou se preferirmos, a literatura e suas
fronteiras, nos obriga, antes de pensarmos na fronteira ou no
linde, a ponderar, de fato, uma série de esforços
contemporâneos por transgredir os limites. (ANTELO, 2008,
p. 8)

Quanto a isso, nas palavras de Foucault (2009), “o jogo dos limites e


da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples; a
transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que,
atrás dela, imediatamente se fecha de novo (FOUCAULT, 2009, p. 32), o
que corresponde ao que diz Antelo quando explica que “o limen, como
sabemos, é a soleira, o passo – a passagem, diria Walter Benjamim –
através do qual se penetra em um domínio ou se sai dele, de tal sorte que,
através da soleira, somos acolhidos ou eliminados” (ANTELO, 2008, p.
12), mas em que se prevê o retorno no ponto de contato entre os dois
domínios, por isso “não pode existir confim que não seja limen e, ao mesmo
tempo, limes” e “nunca é uma fronteira rígida” (ANTELO, 2008, p. 13); e,
completando essa noção com Foucault (2009), pode-se identificar no
confim “um movimento de tênue memória, recuando então novamente para
o horizonte do instransponível.” (FOUCAULT, 2009, p. 32)

No lugar imaterial em que se encontra de um lado a narrativa e do


outro o diário, o texto de Llansol vai, então, passar por esse confim, “a
essência do lugar [...] onde a coisa faz experiência do seu próprio limes,
dessa linha que a contém e a atravessa, mas que, ao mesmo tempo,
contendo-a, coloca ela em relação com outras coisas” (ANTELO, 2008, p.
14). É onde o texto se transforma, ou é transformado por – “O lugar é onde
a coisa ‘torna-se’ contato e relação”. As palavras de Agamben (2007)
podem ilustrar como isso ocorre:

O gesto do autor é atestado na obra a que também dá vida,


como uma presença incongruente e estranha, exatamente
como, segundo os teóricos da comédia de arte, a trapaça de
Arlequim incessantemente interrompe a história que se
desenrola na cena, desfazendo obstinadamente a sua trama.
No entanto, precisamente como, segundo os mesmos
teóricos, a trapaça deve seu nome ao fato de que, como um
laço, ele volta cada vez a reatar o fio que soltou e
desapertou, assim também o gesto do autor garante a vida da
obra unicamente através da presença irredutível de uma
borda inexpressiva. Assim como o mímico no seu mutismo,
como Arlequim na sua trapaça, ele volta infatigavelmente a
se fechar no aberto que ele mesmo criou. (AGAMBEN,
2007, p. 55)

Diante dessas questões abordadas, pode-se reconhecer que a oficina da


escrita de Llansol menos permite que o leitor se depare com qualquer noção
de finalidade ou metaestética, do que o evoca a reconhecer o tecido
llansoliano permeado em sua construção definida pelo ‘com’: um gênero
com outro, sem intentar parecer um objetivo, mas um acontecimento
textual, uma obstinação simples e trapaceira, “um confim da própria vida.”
(ANTELO, 2008, p. 10)

Leituras de “Uma data em cada mão”


As relações de textualidade sobre as quais se vem refletindo até aqui a
partir dos conceitos teóricos elencados neste estudo, segundo Barrento
(2003), podem ser lidas em Llansol como o que ele chamou de “reverso da
narratividade”. Para ele:
A mudança atinge agora, quer a matéria narrativa (por
exemplo: no recurso a estratégias intertextuais), quer
sobretudo o discurso (a sua materialidade) e o plano da
linguagem, com a recusa do modelo mimético-
representativo, em favor de uma dimensão expressiva e
construtiva dessa linguagem. (BARRENTO, 2003, p. 38)

A leitura dos excertos apresentados a seguir podem indicar, em alguns


momentos, como se dá essa expressividade e essa construção da linguagem
no texto da escritora. Nesse caso, quando será narrativa, quando será diário,
ou quando for um confim, não se constitui como o valor maior, mas sim o
exame disso tudo para a experiência leitora.

14 de fevereiro de 1972
A cena primitiva
A vida eterna não existe.
Sentou-se arranjando as saias, para assistir à produção do
texto.
Este texto é um texto que assiste à produção do texto.
Este texto é a cena primitiva do texto.
A mulher não existe, mas é escrita por _________
(LLANSOL, 2009, p. 23)

Nesse trecho, a narrativa pode ser identificada em marcas que lhe são
características, tais como: um observador em terceira pessoa, a ideia de
ação a ser narrada, sugerida no emprego da palavra “cena” e, ainda, na
indicação da personagem “a mulher” cujo perfil é passivo ao que será
contado na produção do texto – permitindo, ainda a abertura para supor a
presença do leitor nessa produção, através da lacuna, elemento gráfico
presente nos textos da escritora. Todavia, há que se localizar que esta
passagem, “14 de fevereiro de 1972”, é a primeira entrada de um diário que
já se inicia numa experiência “indecisa” do gênero textual, dada a
constatação de que se narra, visualmente com estrutura de poema, numa
proposta que se pretende escrita diarística. Diante dessa primeira inferência,
já é possível reconhecer uma das formas de exemplificar o que Barrento
(2003) chamou de “contaminação genológica”.

É importante ressaltar que esta proposta de leitura não pretende incluir,


no seu desenvolvimento, os exemplos em que o texto de Llansol
apresentará forma poética – recorrente nas suas obras – como ocorrido neste
primeiro exemplo acima comentado, mas manter-se nas formas textuais que
se classificam como narrativa e diário, seguindo a ideia original do trabalho.

O texto a seguir, transcrito integralmente, pode ser classificado como


um exemplo clássico de diário, segundo as definições de Blanchot (2005):

30 de Abril de 1972, domingo

Alheamento da vida de trabalho de todos os dias: atividade


da Escola, compras, preparação da comida. Esqueço-me de
tudo isso, e só vivo conduzida pelas vozes destas páginas.
De fato é uma viagem em que posso olhar as ideias, os
acontecimentos, as pessoas do passado como figuras reais.
Estabelece-se entre todos uma dialética, juntos são uma
presença que me dá um dos maiores prazeres que posso
sentir. Não precisamente no momento em que leio, mas
quando, deixado o livro aberto dobre os joelhos, encontro o
pensamento que produzo: *Não sinto por nenhum ser vivo
(salvo Augusto) um interesse tão pessoal e apaixonado.*

Poderia escrever A cena primitiva em francês e em
português; a ideia de monstro talvez aí pudesse estar
presente; a minha língua materna é a portuguesa, portanto
escrevo em português, ou... se destruíssemos a regra, se
rompêssemos a lei da similitude...
E então, em que país poderia ser publicado esse livro? Ou
seria escrito para não ser publicado? Ou teria uma razão para
ser recusado, ao passo que os outros, publicados numa única
língua, não tinham nenhuma razão? (LLANSOL, 2009, p.
25)

Na mesma entrada, o texto cai na tentação do que Blanchot (2005)


chamou de “arredores do segredo”, pois apresenta perguntas e comentários
sobre a outra obra que está sendo escrita paralelamente ao diário, “O livro
das comunidades”. Como se pode ver, nesse trecho datado a “30 de Abril de
1972, domingo”, aqui não há nenhuma surpresa quanto à estrutura do
gênero, mas, no próximo, sim.

Falar e fazer verificações sobre um romance que esteja sendo escrito,


segundo Blanchot (2005), ainda incide na forma do diário, pois trata-se de
escrita de si. Todavia, inserir uma narrativa, escrita do outro, uma realidade
fictícia, como entrada diarística numa obra que se intitula “Livro de horas”,
pode servir como exemplo da proposta diferenciada de Llansol, pois, nas
palavras do crítico, “Essa ficção não tem, necessariamente, relação com a
obra que se prepara” (BLANCHOT, 2005, p. 277), mas a nota de rodapé
inscreve que os textos desta entrada “s.d. [1974?]” estão “dispersa e
parcialmente presentes n’O Livro das Comunidades.” (LLANSOL, 2009, p.
34)

Texto 1
Tinha chegado o mais belo dia de chuva; nunca até este dia,
descobrira o pensamento latente da chuva, a sua sonoridade,
a sua sombra.
Durante muito tempo não deixou de chover. Ali, era
surpreendente como a chuva caía, de repente ou anunciando-
se por um obscurecimento denso; no lado do cimentado do
jardim, a persistência de toda essa água fizera despontar um
tom esverdeado que não existia em nenhuma parte da casa.
O peixe Suso fora trazido para dentro do rio. Do seu aquário,
pensava na corrente, por que forma inata o homem,
habituado durante milênios à caça e à guerra, não sabia
utilizar o conhecimento senão como vontade de dominar a
sede de acender ao poder que estava interiormente povoado
de estátuas:
Pégaso, São João da Cruz, Tomaz Müzer, Coração do Urso,
A Dama das Rosas, tinham encontrado o seu cemitério.
(LLANSOL, 2009, p. 34)

Na intenção de compor um breve quadro dessa mescla entre a narrativa


e o diário recorrente nos textos lidos no Livro de horas I, de Llansol (2009),
segue abaixo a entrada de “22 de novembro de 1975”, que ilustra bem essa
presença da “contaminação genológica” num texto que se declara e se inicia
diário, mas se transforma em ficção, como se no meio do trajeto desistisse
de ser escrita de si para ser escrita do outro, e volte a sê-la, no final, num
contexto que leva o leitor a duvidar disso em alguns momentos:

*Parar o mundo*

No interior de uma grande sala como esta, sinto que estou


dentro de uma pequena cabana.
*Encontro na casa lugares particulares que me agradam mais
do que outros. Preciso de saber uma imensidade de nomes de
plantas, eles conduzir-me-ão a outros nomes.*

O Livro dos poderes do Livro
Era uma sala com mobiliário do passado, portas amplas,
perspectivas largas pelas janelas; ali se sentou Ana de
Penãlosa, a pensar em seus filhos e fins imaginários; quando
da música se passou ao silêncio, Nietzsche, um dos milhões
de seus filhos, falou-lhe como se ela fosse sua filha.
─ Imagina ─ disse ele ─ que não és Ana de Peñalosa, tens
nove anos e andas a brincar no jardim. Ou és uma mulher de
trinta anos, ou já uma velha. Tens, então, um vago desejo de
maternidade, isto é, desejas dar à luz alguém que seja teu pai
ou tua mãe.
Não sonhava eu, esta noite, que essa mulher ia atrás das
crianças no pomar, sem nada dizer, apenas para lhes
surpreender a maneira _______ de serem ou seu pai ou sua
mãe?
Como estava distante da luz e a escrever, quando a sombra
me fatigava os olhos _______
(LLANSOL, 2009, p. 105)

Pode-se dizer que o “confim” de Antelo (2008) se exemplifica


claramente nessa entrada, já que o movimento do texto leva à leitura uma
experiência do encontro das linhas tênues dos limiares da escrita de si e da
escrita do outro. Concordando com Barrento (2003), encontramos “o lugar
central da textualidade” que,

em Maria Gabriela llansol, levou mais longe do que qualquer


outro autor a recusa da literatura (representativa), resulta
numa paisagem textual “fulgorizada”, totalmente liberta de
referentes, em especial do referente social, mas sem cair em
nenhuma forma de “experimentalismo.” (BARRENTO,
2003, p. 139)

Poder-se-ia trazer aqui outros tantos exemplos e cada um deles, nesta


obra, permeados dessa textualidade liberta de referentes que vai compor
esse “primeiro caderno” com painéis espiralados de confins de si e do
outro; também se poderia seguir lançando mão do que as subjetividades
desta escrita fizessem saltar aos infinitos olhares do legente. Por hora, esta
breve leitura se abre ao que lhe for convocado a pensar neste ensaio, ou,
antes, neste “passeio”.

Considerações sobre a leitura


Assim como no primeiro trecho transcrito da obra de Llansol, este
trabalho foi sendo construído pelo próprio desenvolvimento da leitura que,
nos seus caminhos, encontra-se com uma obra literária cujo caráter de
originalidade e genialidade é reconhecido, por sua forma peculiar de ser
escrita. Por isso, intentando preservar a relação labor e prazer, foi preciso
conduzi-la considerando, inicialmente, o que diz Barthes (2004):

Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, não é apenas


pedir e mostrar que podemos interpretá-lo livremente; é
principalmente, e muito mais radicalmente, levar a
reconhecer que não há verdade objetiva ou subjetiva da
leitura, mas apenas verdade lúdica. (BARTHES, 2004, p. 29)

A cena primitiva é uma mulher que se ajeita para começar a escrever


ou a ser escrita e começar a existir, isto é, a escrita lhe dá a origem, a
existência. Nas palavras de Fenati (2012), que, parafraseando Blanchot,
mobiliza a expressão “a armadilha do diário” contida na ideia controversa
de que se pode, através dele, “salvar os dias”, confiando na “escrita, que
altera o dia” (BLANCHOT, 2005, p. 275), é possível perceber outra leitura
do diário de Llansol:

Escrever os cadernos é aceitar que na cadência dos dias a


língua possa transfigurar-se pela experiência limite da
escrita, e que cada página do diário faz-se como um intervalo
no qual se cruzam à medida do tempo e a desmedida da
escrita, lugar onde a regularidade cotidiana convida à
imprevisibilidade do escrever. Essa é a armadilha que o
diário llansoliano não evita, mas deseja ao compor o caderno
não como o registro espontâneo dos dias, mas desejando as
metamorfoses que atraem aquela que escreve para os
descaminhos pelos quais esta deve mover-se a fim de
responder à escrita como acontecimento – escrita que
interrompe a ordenação dos dias, que pertence ao infinito
devir do texto. (FENATI, 2012, p. 149)

Esse diário deixaria de sê-lo para se tornar narrativa sempre que


apresentasse transformação figural do cotidiano que, em Llansol, parece
igualmente contaminado, uma mescla. Assim, infere-se que a recusa do
modelo pode ser o modo como se apresenta o próprio cotidiano lido nos
textos diarísticos llansolianos. E nisso não há negatividade, mas a diferença
concebida artisticamente, comemorada por Antelo, Barrento e Foucault, na
literatura contemporânea.

Nesta obra, onde o eu e o outro estão misturados, não foi importante


definir quando o texto é diário ou quando se faz como narrativa. O ganho
nisso tudo é o reconhecimento da beleza estética presente na originalidade
dessa escritura e da representatividade desta produção como tesouro da
escrita literária na contemporaneidade: “à margem de qualquer ideia de
escrita social, biológica ou psicologicamente sexuada. Atravessando a
língua, o seu texto acaba por se furtar a qualquer possibilidade de fixação
pelas engrenagens da literatura” (BARRENTO, 2003, p. 143). E neste
atravessamento é onde residem tanto a transgressão dos limiares como os
lugares dos confins.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: Profanações. Tradução
e apresentação Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. Disponível
em: <https://www.cienciassociais.ufg.br/up/106/o/AGAMBEN-Giorgio-
Profanacoes.pdf?1363193976>. Acesso em: 16 jan. 2018.

ANTELO, Raul. Lindes, limites e limiares. Disponível em:


<https://periodicos.ufsc.br/index.php/nelic/article/view/1984-
784x.2008nesp1p4/8117>. Acesso em: 20 jun. 2017.

BARRENTO, João. O livro torna o sexo invisível. In: Metamorfose.


Editorial Caminho e Cátedra Jorge de Sena, v. 4, p. 135-144, set, 2003.

BLANCHOT, Maurice. O diário íntimo e a narrativa. In: O livro por


vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FENATI, Maria Carolina. Algumas folhas – leituras de um caderno de


Maria Gabriela Llansol. In: BARRENTO, João; SANTOS, Maria Etelvina
(org). Llansol: a luminosa vida dos objetos. Lisboa: Mariposa Azual, 1ª
edição, 2012.

FOUCAULT, Michel. Prefácio à transgressão. In: Estética: Literatura


e pintura, música e cinema. Col. Ditos e escritos III. 2ª edição. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2009.

LLANSOL, Maria Gabriela. Uma data em cada mão: livro de horas I.


Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

OLIVEIRA, Maria Lúcia Wiltshire. Uma narratividade em mutação:


recepção e produção de causa amante de Maria Gabriela Llansol. Gragoatá,
Niterói, n. 28, p. 41-62, 1. sem. 2010. Disponível em:
< http://www.gragoata.uff.br/index.php/gragoata/article/view/181/168>.
Acesso em: 16 nov. 2017.

SANTOS, Jane Rodrigues dos. O (neo)barroco no fulgor da escrita de


Contos do Mal Errante. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura
Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n° 3, p. 66-80. Novembro de 2009.
Disponível em:
<http://www.revistaabril.uff.br/index.php/revistaabril/article/view/243/182>
. Acesso em: 01 jun. 2017.
A ferocidade que habita o homem:
A autenticidade relacionada com a
manifestação literária
Esther Zanelli Miranda

Sumário

Introdução
Em seu ensaio Genealogia da ferocidade, Silviano Santiago traz à
discussão a questão da ferocidade em âmbito literário (principalmente a
partir da obra Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa) como um
espelho para a ferocidade humana. A ferocidade encontrada nos livros (e
nas obras artísticas) seria uma demonstração de autenticidade, construto que
quando observado nessas obras provoca diversas reações (muitas vezes
negativas), pois se relaciona a questões como coragem e ousadia de se
mostrar em um ambiente ou situação (ou meio artístico) diverso do
apresentado na obra. Ferocidade e autenticidade podem ser encontradas
nessas obras porque em primeiro lugar podem ser encontradas na realidade
humana, e são consideradas selvagens porque se contrastam com o que é
domesticado ou esperado.

Domesticação e ferocidade são dois aspectos trabalhados por Santiago


em vários âmbitos, e sugerem que o desenvolvimento do homem está
muitas vezes no contraste entre essas facetas.

A partir dessas considerações, este artigo aborda a ferocidade e a


autenticidade desde a perspectiva socioemocional na qual o olhar para o
conhecimento de si permite reconhecer estes movimentos (de ferocidade e
autenticidade) dentro do homem. Perguntamo-nos se podem ser associadas
aos “cinco grandes fatores” da personalidade (conhecidos também como
Big five).
Iremos analisar como esse movimento foi abordado por Santiago e
relacioná-lo a alguns textos de teoria literária; em seguida,
desenvolveremos quais conceitos considerados no campo socioemocional
descrevem os traços da personalidade e por último analisaremos os dois
campos para responder se caberia considerar a ferocidade e a autenticidade
como um traço da personalidade.

A passagem do “eu” para o “mundo” exige reflexão, conhecimento e


expressão de quem se é. Essa reflexão e conhecimento exigem do homem a
ousadia de reconhecer o movimento de ferocidade que habita em cada ser
humano. A educação socioemocional pode auxiliar nesse reconhecimento e
a literatura pode ser um meio por onde essa passagem pode acontecer.

O artigo está dividido em três tópicos e a conclusão. Os tópicos são:


Ferocidade: a expressão do ser humano na literatura; Os cinco grandes
fatores e a personalidade; Contrastes entre ferocidade e os cinco fatores.

Ferocidade: a expressão do ser humano na


literatura
Quando abordamos o sentido de “expressão do ser humano na
literatura”, o que se busca expressar é que há um determinado modo de
sentir-se que permite uma identificação universal dos homens com outros
homens. A arte, sendo uma expressão própria do homem, tem uma peculiar
capacidade de transmitir esse sentimento, permitindo que homens de
diferentes tempos e lugares possam compreender-se em manifestações
plásticas, literárias, musicais, etc. (BIESDORF; WANDSCHEER, 2011, p.
2)

A literatura é uma manifestação artística expressa através de uma


língua, feita principalmente por aqueles homens que melhor conseguiram
dominar a capacidade de expressão e também captaram com profundidade o
sentimento de pertença comum a todos os homens. Quanto mais profunda
essa percepção, quanto melhor expressada, mais enriquecida a literatura
produzida.
Por esse parâmetro, compreende-se que há autores que formam parte
de um cânone universal, enquanto outros são parte de um cânone local.
Estes fazem uma literatura que chega a compreensão de pertença num
âmbito mais reduzido, ainda que importante e revelador para aquela
sociedade em que foi produzida. É o que considera Candido no prefácio à
primeira edição da Formação da literatura brasileira:

Há literaturas de que um homem não precisa sair para


receber cultura e enriquecer a sensibilidade; outras que só
podem ocupar uma parte da sua vida de leitor, sob pena de
que restringirem irremediavelmente o horizonte. Assim,
podemos imaginar um francês, um italiano, um inglês,
mesmo um russo e um espanhol, que só conheçam nomes da
sua terra e, não bastante, encontrem neles o suficiente para
elaborar a visão das coisas, experimentando as mais altas
emoções literárias. (CANDIDO, p. 9, 2000)

Todorov, ao tratar da função da literatura, explicita a necessidade de


que através dela se possa expressar o que chama de “vocação de ser
humano” (TODOROV, p. 24, 2009). Isso se dá porque através da literatura
é possível passar por um processo de “humanização”, como chama
Candido, no qual se

confirma no homem aqueles traços que reputamos


essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do
saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento
das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da
vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do
mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura
desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em
que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza,
a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, p. 184, 2004)
Por ser feita por escritores que detêm provada habilidade com a
expressão humana através das palavras, a literatura contribui também na
capacidade de ordenar certo “caos interior” no qual o ser humano está
inserido (CANDIDO, p. 177, 2004). Dessa forma, não se tratam apenas das
temáticas e situações colocadas em uma obra, mas o modo como são
construídas:

Quando digo que um texto me impressiona, quero dizer que


ele impressiona porque a sua possibilidade de impressionar
foi determinada pela ordenação recebida de quem o
produziu. Em palavras usuais: o conteúdo só atua por causa
da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade
de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que
sugere [...]. Toda obra literária pressupõe esta superação do
caos, determinada por um arranjo especial das palavras e
fazendo uma proposta de sentido. (CANDIDO, p. 178, 2004)

Essas qualidades tornam a literatura uma fonte próxima de


“experiências” de vida, pelas quais um único homem, em uma única vida,
não poderia viver. O pensamento e o conhecimento do mundo psíquico e
social estão ali retratados (TODOROV, p. 77, 2009) desde uma forma mais
concreta, que ao mesmo tempo aproxima e distancia o homem (leitor)
daquela experiência peculiar. Aproxima, pois ao ler as experiências de
outro, vive-se aquilo intensamente; distancia porque a experiência é vivida
de forma “protegida”.

Esta “superação do caos” provocada pela obra literária poderia ser


associada ao enfretamento que se faz necessário entre o homem que lê e a
realidade humana que é descrita. Quando a obra toca no que é mais
autêntico sobre o homem, torna-se uma obra feroz, que traduz ao homem a
sua mais crua realidade e o impede de se colocar máscaras ou disfarces. Há,
portanto, um caos interior que se percebe no homem, que poucos
conseguem enfrentar. Esse “caos”, comum aos homens, pode ser de alguma
forma ordenado e/ou demonstrado pela expressão literária (e artística), o
que nem sempre significa que será completamente superado.
Na epígrafe que abre o ensaio Genealogia da Ferocidade, Silviano
Santiago escolhe dois trechos nos quais seus autores abordam a questão da
“ferocidade”. O primeiro, retirado de Rimbaud, poeta francês do século
XIX, no qual o eu lírico transmite que “J’ai seul la clef de cette parade
sauvage”; o segundo, retirado de Nietzsche, diz “que o conhecimento dos
bons, dos ‘melhores’, é que lhe inspirou a ferocidade perante os homens;
desta aversão, que lhe deu asas para ‘voar em direção ao futuro
longínquo’.” (SANTIAGO, 2017, grifo do autor)

“Selvagem” e “ferocidade” podem ser considerados termos similares


no que diz respeito à falta de domesticação. Ao longo do ensaio, Santiago
discute a significação da ferocidade e sua presença na obra de Guimarães
Rosa, Grande sertão: veredas. No entanto, o que o próprio ensaio permite
que se descubra – e que vai evidenciado pela escolha das epígrafes – é que
não é próprio considerar que a ferocidade está nesta ou naquela obra; antes,
é algo que está presente no homem que fez essa obra e que transmitiu a ela
o que levava dentro.

Para Silviano Santiago, há uma beleza monstruosa (SANTIAGO, p.


29, 2017) que descomprometeria a obra de qualquer artificialidade cultural.
Não há superficialidade, pois não há domesticação, ali (em Grande sertão),
está a ferocidade desnuda em seus aspectos intelectuais, linguísticos,
ideológicos etc.

Esta ferocidade, assim abordada no ensaio, pode ser associada à ideia


da realidade do que é o homem, e que normalmente se apresenta a ele,
indecifrável. A definição dessa ferocidade se torna limitada dentro do
âmbito humano, mas pode ser identificada pelas suas manifestações em seu
modo de ser e agir. De difícil acesso ao homem, por serem olhadas com
desprezo ou descaso desde sua manifestação mais remota, o acesso a essa
ferocidade pode ser dado por uma chave que somente o próprio homem
pode conseguir dar a si mesmo.

A literatura pode, no entanto, desnudar os caminhos pelos quais o


homem pode seguir para chegar a essa chave. Todorov (2009, p. 78)
também o considera: “As verdades desagradáveis [...] têm mais chances de
ganhar voz e ser ouvidas numa obra literária do que numa obra filosófica ou
científica.”; citando Emerson, Bloom (p. 13, 2001) lembra que “Os
melhores livros levam-nos à convicção de que a natureza que escreveu é a
mesma que lê”.

O conhecimento da condição humana passa pela visão do eu-profundo,


que demonstra ser de certo modo a fonte de um desfile selvagem que se
encontra nos homens de todos os tempos e de todos os lugares.

Os cinco grandes fatores e a personalidade


A questão socioemocional tem sido frequentemente estudada como um
dos parâmetros para o desenvolvimento de cada pessoa de modo a que
possa ter um desempenho satisfatório nas habilidades de criar, mediar,
persistir e se motivar no âmbito da afetividade emocional.

Entre os estudos feitos sobre a perspectiva socioemocional, se


desenvolveu a análise da personalidade a partir de cinco grandes fatores,
chamados Big five. Os cinco fatores foram concebidos ao longo de muitos
anos por meio de estudos de diversos psicólogos sobre o desenvolvimento
da personalidade humana. Longe de estabelecer regras para uniformizar o
modo de ser de cada pessoa, a análise desses fatores contribui para perceber
o modo de realização desses cinco aspectos, que colaboram em um pleno
desenvolvimento pessoal:

Os traços de personalidade seriam características


psicológicas que representam tendências relativamente
estáveis na forma de pensar, sentir e atuar com as pessoas,
caracterizando, contudo, possibilidades de mudanças, como
produto das interações das pessoas com seu meio social.
(SISTO; OLIVEIRA, 2007 apud SILVA; NAKANO, 2011,
p. 52)

Cada fator é acompanhado por seis facetas que o compõem ou


descrevem. Alguns consideram que os cinco fatores são elementos básicos
da personalidade (LAAK, 1996, p. 135). Esses fatores são descritos como:
I Apertura a la Experiencia (Cultura, Intelecto,
“Intelectancia”): fantasía, estética, sentimientos, acciones,
ideas, valores.
II Consciencia (Conformidad, Seguridad): competencia,
orden, obediencia, lucha por el logro, autodisciplina,
reflexión.
III Extroversión (Surgencia): afecto, gregarismo, asertividad,
actividad, búsqueda de emociones, emociones positivas.
IV Agradabilidad (Simpatía): confianza, honradez,
altruismo, cumplimiento, modestia, sensibilidad.
V Neuroticismo (Estabilidad Emocional, Inquietud):
Ansiedad, hostilidade colérica, depresión, timidez,
impulsividad, vulnerabilidad. (ibid, p. 136)1
1 A ordem apresentada neste artigo foi modificada para seguir o padrão utilizado na composição do anagrama em língua inglesa.

Em língua inglesa, os fatores são normalmente associados a cinco


letras que formam o anagrama OCEAN (Openness to experience,
Conscientiousness, Extraversion, Agreeableness, Neuroticism), com isso
colaborando para entender a personalidade como algo profundo.

Por serem traços compostos a partir de tendências internas em relação


a aspectos externos, os cinco fatores variam em seus níveis em cada pessoa,
construindo em cada indivíduo uma personalidade única, que pode ser
potencializada e desenvolvida. Esses traços podem ser medidos, a partir de
testes psicológicos, e modificados ao longo da vida, ajudando no
desenvolvimento da personalidade.

A abertura a experiências estaria relacionada a um traço que envolve a


amplitude, profundidade e permeabilidade da consciência, e certa
motivação ativa para ampliar e examinar a experiência. Dessa forma,
pessoas com elevado grau desse traço têm tendências a serem mais
criativas, curiosas e imaginativas, comumente associadas à expressão da
“mentalidade aberta”. Em contraposição, níveis baixos desse traço são
associados à rigidez e ao convencionalismo (SANCHEZ; LEDESMA,
2007, p. 14).
A conscienciosidade estaria associada a fatores como a capacidade de
organização e autonomia, ao controle da impulsividade e responsabilidade
na própria aprendizagem (ABED, 2016, p. 16); ao passo que baixos índices
desse traço estariam associados à negligência e falta de motivação
(SANCHEZ; LEDESMA, 2007, p.14).

O traço responsável pela capacidade de interação interpessoal e


estímulo social seria a extroversão, relacionada também à sociabilidade e ao
otimismo (ibid.) e à orientação dos interesses e energias para o mundo
exterior (ABED, 2016, p. 16). Entre os fatores que demonstrariam níveis
baixos desse traço estariam as tendências à reserva e à solidão, certa
independência e frieza nas relações (SANCHEZ; LEDESMA, 2007, p. 14).

A amabilidade se perceberia por uma atuação cooperativa e


colaborativa em grupo, com tendências à tolerância, ao altruísmo (ABED,
2016, p. 16), que estariam em contraste com as tendências da agressividade,
irritabilidade e individualidade (SANCHEZ; LEDESMA, 2007, p. 14), que
demonstrariam níveis baixos desse fator.

O neuroticismo poderia ser percebido como inquietude ou


instabilidade emocional e manifestado de diversos modos como a
impulsividade, a hostilidade, a timidez, etc. Dentre os cinco aspectos, o
neuroticismo seria o único traço com valor negativo, no qual em uma
análise quantitativa, um menor índice desse aspecto equivaleria a um bom
resultado. Isso porque pesquisas apontam que o neuroticismo tem influência
sobre os níveis de ansiedade e agressividade (SILVA; PÓVOA, 2009, p.
69).

Não se trata de fatores que atuam isolados, mas sob influência de


fatores externos e internos (situações provocadas ou sentimentos podem
desencadear maior ênfase em cada um dos traços). É importante ressaltar
que cada um deles tem maior ou menor alcance na personalidade de acordo
com as taxas mais ou menos elevadas de outros traços-- como amabilidade
e conscienciosidade: quando esses dois aspectos se percebem elevados em
uma pessoa, o traço do neuroticismo é menor (ibid.).

Pesquisas têm analisado esses cinco traços da personalidade à questão


da autenticidade, buscando demonstrar como esses fatores se relacionam
entre si e à formação autêntica da personalidade.

Contrastes entre ferocidade e os cinco fatores


No ensaio de Silviano Santiago, percebe-se um inconformado
questionamento em relação à “domesticação” do livro por parte das críticas
literárias, que foram “enquadrando” e, com isso, tirando toda a beleza da
obra de Guimarães Rosa. Ao longo de seu texto, o autor defende o resgaste
da wilderness do “monstro literário”, anacrônico, insólito, indigesto,
visando trazer de volta a genuína qualidade selvagem do romance. Em
outras palavras, poderíamos considerar que se trata de resgatar a
autenticidade do escrito original. A partir disso, é possível dissertar sobre
uma possível associação negativa entre a ferocidade e o neuroticismo ao
olhá-los sob a ótica da autenticidade.

Analisando a autenticidade e suas correlações com os grandes fatores


da personalidade, verifica-se uma associação negativa entre esta e o
neuroticismo (DE CARVALHO CHINELATO et al., 2015, p. 116), ao
mesmo tempo em que se sugere uma correlação positiva com a
conscienciosidade, abertura a experiências, extroversão e amabilidade
(WOOD et al., 2008, p. 395). Também, Allen e Mellor (2002, p. 914)
encontraram uma relação entre neuroticismo e cinismo, o que pode levar a
uma compreensão mais aprofundada do fenômeno: uma pessoa com uma
autoestima elevada, segura e feliz (negativamente relacionadas com o
neuroticismo) são menos propensas à preocupação com os julgamentos
alheios e, portanto, normalmente mais autênticas. Projetando esse
comportamento sobre aqueles que julgaram a obra de Rosa, se poderia
inferir que o “medo” em relação à ferocidade da obra (ou, em outras
palavras, à sua autenticidade), que levaria a interpretações distorcidas de
seu genuíno conteúdo, esteja relacionado a pessoas com altos graus de
neuroticismo. Em troca, críticos com maiores graus de coragem, podem ter
mais facilidade em aceitar a obra como ela é, apesar do possível sofrimento
causado pela realidade que expressa.
A figura abaixo, apresentada por Wood et al. (2008, p. 386), propicia
um melhor aprofundamento nessa questão. Pode-se considerar que, para
chegar ao entendimento da expressão original manifestada pelo autor de
uma obra, à sua “beleza selvagem”, faz-se necessária uma atitude de
autenticidade de vida por parte do crítico, de modo a não permitir que o
ambiente social no qual está inserido condicione sua forma de ver e
interpretar, o que o levaria a uma alienação em relação à realidade presente
na literatura que tem diante de si.

Nesse sentido, o desenvolvimento da personalidade pode ser um


grande aliado, pois confere força, determinação e outras qualidades
necessárias a uma atitude mais livre diante das diferentes circunstâncias da
vida, sem precisar lançar mão do subterfúgio da “domesticação” ou
alteração de uma realidade que, em essência, permanecerá a mesma.

Conclusão
Podemos perceber a partir das questões analisadas a relação entre
autenticidade e ferocidade, entre ferocidade e os traços da personalidade
presentes na atual discussão sobre a questão socioemocional.

A autenticidade estaria relacionada à capacidade de expressar-se


independentemente de fatores externos que desde certo ponto de vista
estariam buscando “domesticar” os modos de ser de cada homem. Desde
essa perspectiva, as pessoas capazes de reagir contrariamente às tendências
de domesticação seriam aquelas que apresentariam traços de uma
personalidade autêntica e que em um ambiente domesticado seriam
consideradas ferozes.

A manifestação literária autêntica e feroz seria aquela capaz de barrar


as tentativas de domesticação próprias da crítica e do esperado no âmbito
social. Sendo a autenticidade um construto do homem, antes que da obra
literária, é possível dizer que essa manifestação literária seria fruto de uma
personalidade autêntica.

A ferocidade com que uma obra literária impacta estaria relacionada a


essa autenticidade também pela capacidade de expressão da natureza
humana. Dessa forma, a obra literária pode ter a capacidade de demonstrar
ao homem sua própria natureza à qual poucas vezes o homem tem acesso de
forma tão crua como a apresentada por uma literatura feroz.

A análise da autenticidade por meio dos cinco fatores da personalidade


permite uma maior aproximação entre esse construto e traços da
personalidade que podem aproximar-se de uma medição. As pesquisas que
têm relacionado esses fatores permitem compreender desde um olhar mais
científico essa formação.

No entanto, ao olhar científico, muitas vezes falta a capacidade de


expressão que o homem pode encontrar na literatura. Por isso, as
manifestações literárias são tão necessárias ao homem, pois podem fornecer
capacidade de compreensão de sua natureza complexa e pouco acessível.
Além disso, nessas manifestações podemos encontrar a ferocidade própria
do que é autêntico, qualidade necessária para a formação de uma
personalidade que busque escapar do que é domesticamente esperado pela
sociedade.
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<https://www.researchgate.net/publication/42739517_The_Authentic_Perso
nality_A_Theoretical_and_Empirical_Conceptualization_and_the_Develop
ment_of_the_Authenticity_Scale>.
Créditos da imagem:
WOOD, Alex M. et al. The authentic personality: A theoretical and
empirical conceptualization and the development of the Authenticity Scale.
Journal of Counseling Psychology, v. 55, n. 3, p. 385, 2008. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/42739517_The_Authentic_Perso
nality_A_Theoretical_and_Empirical_Conceptualization_and_the_Develop
ment_of_the_Authenticity_Scale>.
Guy de Maupassant: O silêncio
fantástico
Fabiane Alves Martins

Sumário

Introdução
Um personagem nos descreve uma série de eventos que mudam o
rumo de sua vida, porém sem nunca mencionar seu nome; fantasmas e
vampiros que, durante toda a narrativa, não têm nenhum tipo de ação nem
fala que indique sua real existência além da mente deturpada do
protagonista; respostas necessárias para afirmar os acontecimentos que,
mesmo depois da última página, nunca serão dadas; reticências e frases
quebradas que tentam traduzir a falta de palavras dos personagens perante
uma situação de completo terror… Seria possível continuar extensivamente
essa lista de vazios que preenchem as obras analisadas, pois quando as
percorremos, nos damos conta de que certas lacunas que, de início, parecem
não ter ligação entre si, formam, pelo contrário, uma rede de elementos que
trabalham em conjunto para a constituição do silêncio, em suas mais
diversas formas, como cerne da literatura fantástica.

A partir de duas obras escolhidas de Guy de Maupassant, escritor


francês ativo na segunda metade do século XIX, este artigo vai tratar dos
tipos diferentes de silêncio encontrados em sua escrita. As novelas O Horla
e A pequena Roque são contos que pertencem ao gênero fantástico e
desenvolvem uma intrínseca relação com o não-dito.

Maupassant teve um grande destaque no uso de contos e novelas,


sendo que uma parte desses textos foi dedicada ao fantástico, tornando-se
rapidamente uma referência no gênero. Em uma época que priorizava a
racionalidade dos estudos da ciência, seus textos também evidenciam uma
busca pelos mistérios ocultos da mente e do sobrenatural, perspectiva em
que o homem é tido como um ser dividido entre dois extremos. Na novela
O Horla, o narrador se vê atormentado por males que ele não consegue
explicar. Uma criatura o persegue a cada dia mais e, em sua solidão, ele
inicia um diário que se torna o próprio livro: uma confissão pessoal sobre os
fatos irracionais que ocorrem em sua vida no contato cada vez mais forte
com uma criatura desconhecida e misteriosa, que, aparentemente, entra em
seu quarto durante a noite para sugar seu sangue e forças vitais. Através do
diário, o leitor é absorvido na caracterização deste ser que evolui em ações
a cada dia narrado, até o momento em que criatura e narrador se tornam um.
A partir de seu ponto de vista, somos introduzidos em um ambiente
sombrio, no qual nos deparamos com a figura desconhecida do inumano. Já
na novela A pequena Roque, Maupassant apresenta um crime bárbaro: uma
menina é morta e seu assassino começa a ter visões da vítima, que o
assombram. No processo de construção da ideia do monstro ou do espectro,
é possível perceber um questionamento visível através da inversão de
papéis da obra entre o bem e o mal, o certo e o errado.

Linguagem X Silenciamento
Para a pesquisadora de teoria do discurso Eni Orlandi, em As formas
do silêncio, “há um modo de estar no silêncio que corresponde a um modo
de estar no sentido” (ORLANDI, 2011, p. 11), afirmação que vai marcar o
fio condutor de seu livro. Rosalba Campra, escritora argentina especialista
no gênero fantástico, também vai defender em sua obra Territórios da
ficção fantástica, que “todo enunciado é uma trama formada tanto pelo que
se diz quanto pelo que se cala” (CAMPRA, 2016, p. 118). Dessa forma,
devemos compreender o silêncio como representante de uma razão, como
ocorre com a linguagem. O problema é que, historicamente, ele foi relegado
ao status de falta, pois enquanto a linguagem corresponderia ao domínio do
homem em relação à natureza, uma vez que ele nomeia as coisas para lhes
dar significação, o silêncio é visto de forma negativa, enquanto
insuficiência, retrocesso, dado que é a linguagem consciente que nos difere
do restante dos animais.

Há realmente a função do silêncio como ausência, mas é justamente


nesse ponto que ele se comunica, em que reside a sua significação, não
devendo ser visto como uma deficiência de linguagem, mas, enquanto seu
oposto, pertencente a uma ordem diferente desta, que exige outro tipo de
leitura, afinal, é preciso desvendar aquilo que não é dito no enunciado,
perceber em sua incompletude, um significado escondido. Nas palavras de
Orlandi,

Há uma dimensão do silêncio que remete ao caráter de


incompletude da linguagem: todo dizer tem uma relação
fundamental com o não-dizer. Essa dimensão nos leva a
apreciar a errância dos sentidos (a sua migração), a vontade
do “um” (da unidade, do sentido fixo), o lugar do non sense,
o equívoco, a incompletude (lugar dos muitos sentidos, do
fugaz, do não-apreensível), não como meros acidentes da
linguagem, mas como o cerne mesmo de seu funcionamento.
(ORLANDI, 2011, p. 12)

Barthes, em sua obra O prazer do texto, propõe uma reflexão sobre a


importância da experiência sensorial na leitura do texto literário, trazendo
em diversas passagens a imagem do jogo de sedução entre dois amantes,
que apresentaria uma grande semelhança com a relação entre texto e leitor,
a partir da ideia de prazer que o primeiro desperta no segundo entre seus
dizeres e silêncios. O leitor acaba por despir a obra, seus caminhos
tortuosos de sentido, desvelando a forma das ideias que se delineiam aos
poucos, a cada página. Segundo Barthes (1987, p. 17), “há uma revelação
progressiva: toda a excitação se refugia na esperança de ver o sexo (sonho
de colegial) ou de conhecer o fim da história (satisfação romanesca)”. Para
Barthes, a eroticidade de um texto advém de seus silêncios, mais que de sua
tagarelice, sempre considerando a subjetividade do prazer.

Na linguagem cotidiana, graças à nossa experiência social, estamos


habituados à recorrência de uma série de eventos que pedem uma resposta
imediata, a partir do contato direto entre locutor e interlocutor. Felizmente,
nesses casos, temos à nossa disposição a possibilidade de recorrer ao
interlocutor, no caso da necessidade de elucidação de seu enunciado.
Entretanto, quando se trata do texto escrito, o leitor começa a se deparar
com seu caráter inflexível, que gera, devido à impossibilidade de
esclarecimento dos seus possíveis sentidos, uma situação irremediável. Na
literatura de ficção, essa questão se torna ainda mais complexa, pois
segundo Campra (2016, p. 119), “o ato comunicativo é, mais que um
paradoxo, quase um milagre”. Na medida em que a narrativa se desenvolve,
somos apresentados a possibilidades de leitura que se concretizam ou não.
Na caminhada feita pelo leitor no interior da obra ficcional, ele vai perceber
uma série de desambiguações que, algumas vezes, o levarão a uma
decifração final dos acontecimentos, mas outras vezes, a significação do
texto ficará pendurada indefinidamente, sem a possibilidade de seu leitor se
agarrar a ela por completo.

O fantástico e seu silenciamento


O silêncio desenvolve com a literatura fantástica, desde o cerne de sua
existência, uma relação intrínseca, afinal, segundo Louis Vax (1963, p. 98),
“L’art fantastique idéale sait se maintenir dans l’indécision”. Nesse ponto, o
silêncio se apresenta na forma da falta de uma certeza, da impossibilidade
de afirmação sobre os eventos narrados.

A partir desta citação, é possível iniciar a discussão sobre o fantástico


que, para a teoria de Todorov (1970), é definido como o gênero da dúvida,
uma vez que sua característica fundamental seria a ambiguidade na
interpretação dos fatos narrados, ou, como Campra (2016) vai propor, uma
transgressão do mundo que nos é apresentado. Atualmente, o gênero
apresenta diversas definições, devido, sobretudo, ao espaço que ganha nas
discussões literárias, mas também às suas muitas peculiaridades, que podem
variar de uma obra para outra, sendo muitas vezes um desafio aos críticos
quando confrontados com essa definição. Como revela a pluralidade de
trabalhos nessa área, o fantástico se coloca muito além de um
posicionamento claro e definido, havendo mesmo na proposta de alguns
autores uma impossibilidade de categorização, como é o caso de Harry
Belevan, que nega a existência de um gênero, mas vê no fantástico uma
espécie de essência imutável, com seus temas e formas (BELEVAN1, 1976
apud CAMPRA, 2016, p. 26). Campra, por outro lado, vai aceitar o
fantástico como um gênero, assim como a grande maioria dos teóricos. Tal
impasse desenvolve-se pela própria natureza caótica do fantástico, mas
apesar de toda a dificuldade em torno de uma conceituação única, os
autores concordam com a presença da incessante interrogação dos eventos
narrados como elemento de base para a formação do fantástico, o que é
evidenciado na seguinte citação de Todorov:
1 BELEVAN, Harry. Teoría de lo fantástico. Barcelona: Anagrama, 1976.

Dans un monde qui est bien le nôtre, celui que nous


connaissons, sans diables, sylphides, ni vampires, se produit
un événement qui ne peut s’expliquer par les lois de ce
même monde familier. Celui qui perçoit l’événement doit
opter pour l’une des deux solutions possibles: ou bien il
s’agit d’une illusion des sens, d’un produit de l’imagination
et les lois du monde restent alors ce qu’elles sont; ou bien
l’événement a véritablement eu lieu, il est partie intégrante
de la réalité, mais alors cette réalité est régie par des lois
inconnues de nous. (TODOROV, 1970, p. 29)

Deste modo, o fantástico se manifestaria especificamente durante a


hesitação do personagem entre aceitar que o sobrenatural existe como
componente da realidade ou explicar através de leis naturais os eventos
narrados. A teórica Cristina Batalha (2009, p. 4), por exemplo, também vê
na condição de entre-dois irremediável uma possibilidade de definição do
gênero, quando afirma que “o fantástico [...] encontra sua razão de ser na
impossibilidade de solução, seja ela da ordem do ‘natural’ ou da ordem do
‘sobrenatural’.” É, na verdade, a incompatibilidade contínua entre essas
duas ordens que nos permite identificar um relato como fantástico.

Quando falamos deste gênero, subentende-se, assim, a presença de


uma dúvida, sendo que este jogo textual não prevê uma saída e se cala após
tantas especulações. Durante a leitura de um texto ficcional, desenvolvemos
uma série de suposições na busca de respostas aos problemas que o próprio
texto nos impõe e que, à sua maneira, concede pouco a pouco as pistas para
a sua elucidação, como ocorre na ficção policial, em que o leitor se vê
rodeado de verdadeiros enigmas que são decifrados pelo investigador.
Porém, diferentemente da literatura detetivesca, no fantástico não somos
recompensados por nosso esforço reflexivo, já que, aqui, todas as suspeitas,
em sua vã tentativa de descobrir o que gerou os eventos catastróficos e
transgressores, se traduzem em constantes frustrações, situação que,
paradoxalmente, é buscada pelo seu leitor. O desfecho da história é de
caráter regressivo no fantástico, pois assim como na literatura detetivesca,
permite ao leitor reconstituir a trama somente ao chegar ao final. Mas em
compensação, aqui não há recuperação do equilíbrio inicial, uma vez que
em outros gêneros de enigma temos a descoberta da verdade, e no fantástico
continua a incerteza que instaura finais incompatíveis. Dessa forma, a falta
de um saber oficial quebra as expectativas do leitor, que se vê engendrado
no mecanismo do gênero constituído pelo silenciamento do ato
comunicativo. Segundo Campra,

Esse é o tipo de silêncio que encontramos no conto


fantástico: um silêncio cuja natureza e função consiste,
precisamente, em não poder ser preenchido. O sistema prevê
a interrupção do processo comunicativo como condição de
sua existência: o silêncio na trama do discurso sugere a
presença de vazios na trama da realidade. (CAMPRA, 2016,
p. 120)

Os diferentes tipos de silêncio


Apesar de não ser visualmente observável, o silêncio não chega a ser
uma casa vazia. Para torná-lo visível se faz necessária a observação de
certos métodos históricos, críticos e desconstrutivistas (ORLANDI, 2011, p.
46). Seus efeitos devem ser percebidos não a partir de marcas formais, mas
de pistas sutis de leitura, sendo justamente nas fissuras textuais em que ele
ocorre de forma efêmera. É possível perceber diferentes tipos de silêncio,
na tentativa de obtenção de efeitos os mais variados possíveis. Passemos a
um estudo das suas marcas, que as obras fantásticas acabam evidenciando,
através da análise das novelas de Maupassant.
Primeiramente, é importante ressaltar que o silêncio apresenta um
caráter político, pois em uma situação discursiva, ao escolhermos um termo
da linguagem, excluímos consequentemente diversos outros inadequados na
formulação do sentido desejado. A todo momento, são feitos recortes na
língua, com o objetivo de apagar os sentidos que se quer evitar, na tentativa
de delimitar o discurso, como mostra Orlandi: “O silêncio trabalha os
limites das formações discursivas, determinando consequentemente os
limites do dizer” (ORLANDI, 2011, p. 74). No fantástico, essa
característica da linguagem é bem visível na fala do narrador, que é
responsável pelas informações que compartilha com o seu leitor. Para
Campra (2016, p. 94), “conhecemos a história enquanto o resultado de uma
narração [...]. Da forma e natureza da sua voz pode depender a atitude do
leitor ante a matéria fantástica do conto”. Essa escolha de informações é
imprescindível, uma vez que toda a estrutura do fantástico depende tanto do
nível de conhecimento que o leitor recebe da obra como principalmente da
maneira como vai recebê-lo, pois os fatos que o narrador opta por não
contar podem ser decisivos para a visão que o leitor terá dos personagens e
da situação que se desenrola, guiando-o através da manipulação de seus
sentimentos e sensações. Assim, a verdade do texto dependerá do que o
narrador quer ou pode mostrar. Não possuindo uma visão completa, mas
parcial dos eventos e motivos, o leitor do fantástico deverá procurar no
espaço do não-dito as ferramentas para construção dos sentidos.

Na análise das obras de Maupassant em questão, percebe-se que a


narração de O Horla, em comparação com A pequena Roque, é bem menos
neutra, pois o narrador é o próprio personagem, nos trazendo com detalhes
uma impressão possivelmente deformada de sua realidade. Ele nos dá
certezas a todo momento, porém, ao mesmo tempo, sua fala é
constantemente refutada, tendo sua credibilidade com o leitor abalada
devido às desordens psicológicas pelas quais ele passa. Ou seja, o leitor tem
a ilusão de que está ciente dos acontecimentos que tomam lugar na obra,
quando, na verdade, está sendo enganado pelo próprio jogo narrativo do
fantástico, que finge encontrar respostas para suas perguntas irremediáveis.

Em O Horla, há ainda um silêncio temporal que é indicado pela


própria escrita em diário, uma vez que as escolhas feitas pelo narrador do
que ele quer nos contar, dividir conosco, ficam muito mais em evidência.
Há períodos de um dia ou, por vezes, de um mês, em que o narrador não
escreve, o que causa uma lacuna na história que o leitor não é capaz de
completar. Não se sabe o que ocorreu durante este tempo, além dos
acontecimentos que o narrador elege como mais importantes, para nos
manter no caminho que ele constrói. O próprio gênero textual do diário
esconde essa característica narrativa, não permitindo que o leitor questione
as lacunas do próprio texto, que estão à sua frente, na datação de cada dia,
problema que é ainda mais profundo por se tratar, nesse tipo de obra, de um
narrador em primeira pessoa, que passa claramente por problemas de ordem
psicológica. Sua visão, além de nada confiável pela condição médica na
qual se encontra, desnorteia ainda mais o leitor que espera uma
continuidade na sua escrita.

Se pensarmos nas três entidades narrativas do personagem, narrador e


leitor, veremos que o silêncio imposto pelo gênero e perpetuado pelo
narrador não atinge somente o leitor do gênero, que anseia pela frustração
constante de suas expectativas, mas atinge principalmente o personagem, ao
qual é permitido o conhecimento de tantas ou até menos informações. O
silêncio da obra indica a solidão desse sujeito diante dos sentidos do
mundo, pois ele está em constante disputa com um Outro que, de maneira
ambígua, pode ou não estar presente no universo ficcional. Afinal, nas duas
novelas escolhidas, ambos os personagens podem, por um lado, realmente
estar fazendo contato com seres desconhecidos e sobrenaturais, quanto, por
outro lado, serem vítimas de condições mentais que os fazem imaginar esta
interação como um sintoma psicológico. De todo modo, nas obras, devido
ao rompimento de uma relação estável com seu exterior, o sujeito
experimenta um deslocamento do Eu que propicia o aparecimento de uma
vulnerabilidade na vivência cotidiana, como indica a citação abaixo:

En rupture avec le Moi, fondement de la subjectivité


classique conçue comme un intérieur face à l’extériorité du
monde, le fondement du sujet est ici déplacé, délogé dans un
lieu multiple, fondamentalement hétéronome, où l’extériorité
est à l’intériorité du sujet. (AUTHIER, 1984 apud
ORLANDI, 2011, p. 48)
No caso das novelas de Maupassant, a descontinuidade dos
protagonistas com o seu meio é evidente, uma vez que sua aflição aumenta
em cada página, dando lugar a um desespero que leva à morte, de si ou de
outros. Em A pequena Roque, o personagem pensa diversas vezes em
cometer suicídio, por ser assombrado pelos próprios erros do passado. No
final da obra, sem ver saída após a entrega acidental de uma carta contendo
a confissão de seu crime, ele acaba por tirar a própria vida, evidenciando
seu rompimento irremediável com o meio em que habita. A exploração dos
motivos e emoções que o levaram a cometer o crime tão condenado por ele
mesmo contra uma menina inocente confirmam a fragilidade de um homem
que se viu dominado por um lado primitivo e contido socialmente, como
mostra a citação:

Soudain l’enfant sortit du bain, et, sans le voir, s’en vint vers
lui pour chercher ses hardes et se rhabiller. À mesure qu’elle
approchait à petits pas hésitants, par crainte des cailloux
pointus, il se sentait poussé vers elle par une force
irrésistible, par un emportement bestial qui soulevait toute sa
chair, affolait son âme et le faisait trembler des pieds à la
tête. Elle resta debout, quelques secondes, derrière le saule
qui la cachait. Alors, perdant toute raison, il ouvrit les
branches, se rua sur elle et la saisit dans ses bras. Elle tomba,
trop effarée pour résister, trop épouvantée pour appeler, et il
la posséda sans comprendre ce qu’il faisait. Il se réveilla de
son crime, comme on se réveille d’un cauchemar. L’enfant
commençait à pleurer. (MAUPASSANT, 2002, p. 24)

Em O Horla, apesar de não cometer nenhum ato que o coloque em


desacordo com seu meio, o personagem, solitário desde o início da
narrativa, se vê tomado por um mal que é tanto físico quanto mental. Aos
poucos, o mundo exterior se mostra perigoso, aterrorizante e confuso, com
mistérios que nem a religião nem a ciência conseguem compreender.
Porém, aos poucos, o mal que o assola passa a fazer parte dele, pois a
ameaça que antes era o mundo exterior se torna o próprio Eu interior,
culminando em uma cena na qual o personagem se olha no espelho e, ao
invés de seu reflexo, só encontra a face obscura da criatura tão temida:

Comme j’eus peur! Puis voilà que tout à coup je commençai


à m’apercevoir dans une brume, au fond du miroir, dans une
brume comme à travers une nappe d’eau; et il me semblait
que cette eau glissait de gauche à droite, lentement, rendant
plus précise mon image, de seconde en seconde. C’était
comme la fin d’une éclipse. Ce qui me cachait ne paraissait
point posséder de contours nettement arrêtés, mais une sorte
de transparence opaque, s’éclaircissant peu à peu. Je pus
enfin me distinguer complètement, ainsi que je le fais chaque
jour en me regardant. (MAUPASSANT, 2011, p. 45)

Na tentativa de passar a ideia de fragilidade do sujeito, um dos


procedimentos utilizados por Maupassant é a própria falta de indicação do
nome do narrador. O silêncio em relação à sua identidade sugere que se
trata de um homem comum, banal e burguês, que não sabe exatamente
quem é e no que acredita, se na ciência ou no sobrenatural. Esse não-dizer
também é uma forma de indicar a aleatoriedade dos fatos, que poderiam
acontecer a qualquer indivíduo, uma vez que qualquer um teria em seu
âmago a inclinação tanto para o bem quanto para o mal, como seres
ambíguos que escolhem a cada situação qual lado de nós mesmos devemos
calar.

Ainda em relação à escolha de nomes na obra, que não são de forma


alguma arbitrários, podemos citar a importância do nome da criatura, visto
que, em oposição à falta do mesmo para o narrador, surge em um momento
de extrema tensão na obra, em que o personagem se vê tomado pelo poder
deste ser. Uma das suposições é que o título em francês Le Horla seja um
neologismo inspirado na palavra normanda “horsain”, que significa
“estrangeiro”. O interesse no nome da criatura reside no fato de que, em seu
cerne, ele significaria algo ou alguém de fora, aquele que chega,
simbolismo complementado pela outra possibilidade de leitura que residiria
em um jogo de palavras com a expressão “hors la loi”, ou seja, “fora da
lei”, o que nos leva toda a base do gênero fantástico, pois, se este reside no
equilíbrio constante entre uma explicação coerente com as leis do universo
apresentado e outra explicação que transgride essas mesmas leis, a criatura
anuncia em seu próprio nome a solução à qual se destina, de violador dessa
ordem natural.

A questão do nome na mesma novela tem ainda um significado


importante, uma vez que a criatura consegue física e mentalmente dominar
o narrador, durante o tempo em que este não consegue nomeá-la.
Entretanto, a partir do momento em que o protagonista descobre seu nome,
ele se vê subitamente no controle da situação. Esta mudança repentina de
posição dominante ocorre devido ao fato de que o homem nomeia para
compreender, para dominar, tendo como exemplo o próprio livro de
gênesis, na Bíblia, que mostra a tarefa que Deus teria incumbido ao homem,
de nomear todos os animais, pois ele deveria tomar conta deles, ser o
responsável por eles. O ato de nomear também nos aproxima das coisas e
dos seres, criando relações de afeto, pois temos a tendência de nomear o
que é importante para nós. Já na obra de Maupassant, o Horla sussurra seu
nome, na medida em que o narrador consegue se colocar a ouvi-lo, mas não
importa o quanto essa criatura seja antiga, dominadora e poderosa, pois no
momento em que o personagem se apossa de sua identidade, que ele a
“conhece”, ele passa a saber com quem está lidando, tornando-se capaz de
combatê-la e expurgá-la.

A criatura que Maupassant nos apresenta em O Horla é bastante


misteriosa, pois não é categoricamente classificada. Temos, entretanto,
pistas que nos levam a aceitar algumas possibilidades. Segundo o narrador,
este seria um ser muito antigo na história da humanidade, tendo sido temido
por povos antigos, exorcizado por padres e invocado por feiticeiros, o que
nos dá a ideia de um ser demoníaco, uma entidade do mal. O narrador
também menciona que esta criatura viria com o objetivo de subjugar o ser
humano da mesma forma que este o fez com os animais: “[...] le Horla va
faire de l’homme ce que nous avons fait du cheval et du bœuf : sa chose,
son serviteur et sa nourriture, par la seule puissance de sa volonté.”
(MAUPASSANT, 2011, p. 49). Sua dominação é mental e haveria registros
de pessoas na mesma situação. Apesar de se sentir perseguido em
ambientes exteriores à casa, é durante a noite, em seu quarto, que o
personagem se vê à mercê da criatura, que sem motivo aparente, começa a
sufocá-lo e absorver sua energia durante o sono, trazendo para si, da mesma
forma, um caráter vampiresco. Porém, o fato de conter em seu nome um
poder significativo sobre a criatura se liga ao imaginário relacionado a
possessões demoníacas, nas quais o demônio a ser exorcizado precisa dizer
o próprio nome para que o exorcista seja capaz de mandá-lo embora. Muitas
vezes, esta procura da informação mais valiosa que o demônio possui sobre
si mesmo demora dias ou semanas, até que o nome finalmente seja entregue
e seja possível fazer o ritual indicado, como um veneno que precisa ser
identificado para ser tratado corretamente.

O silêncio aparece também quando percebemos que o ponto de vista


das obras é focado inteiramente nos personagens humanos. Para dar o efeito
de dúvida, os seres sobrenaturais apresentam muito poucas ações nas
novelas, mas entre um pano que quase balança sozinho com a energia de
um fantasma e uma garrafa de água que talvez tenha sido tomada por uma
criatura vampiresca, eles não falam realmente com os personagens, não se
comunicam verbalmente. Sua fala é inexistente, o que nos mostra que o
silenciamento dos seres sobrenaturais é responsável por uma tendência a
acreditar na versão lógica das obras, que indicam se tratar de alucinações,
visões, paranóia, etc. Em A pequena Roque, o fantasma da menina chega a
deixar de aparecer, a partir do momento em que o protagonista escolhe
confessar seu crime em uma carta. A partir desse ponto, não é mais dado
enfoque no elemento fantástico, que dá lugar a uma cena angustiante, na
qual o personagem não consegue recuperar a confissão e entende que sua
vida, como assim a conhecia, chegou ao fim.

O silêncio pode, por fim, ser evidenciado por elementos gramaticais e


sintáticos no texto, como no uso de reticências, frases quebradas, sem
sentido lógico, o que tenta traduzir na escrita a falta de palavras diante de
uma situação de extremo terror. Segundo Campra,

Dormências oportunas. Escuridões. Pontos finais que


abruptamente fecham uma frase que não se fechou
conceitualmente, gramaticalmente. Reticências que deixam
suspensa, no vazio da linha, uma palavra que não sabe para
onde ir… Tematizações e interrupções do discurso são
formas do silêncio com que o texto constrói seu sentido
fantástico. (CAMPRA, 2016, p. 123)

Essa característica pode ser observada em O Horla, em passagens que


mostram o desespero com que o personagem lida com o perigo da presença
de seu perseguidor: “Je traversai ma chambre pour le saisir, pour l’étreindre,
pour le tuer!...” (MAUPASSANT, 2011, p. 51). O uso do ponto de
exclamação ao final dessa citação bruscamente é transformado em
reticências, o que indica que a ação ainda não viu seu resultado, em um
suspense maior para o leitor. O uso do ponto de suspensão juntamente do
ponto de exclamação também é usado no trecho seguinte, pois mesmo
tendo sido descoberta a identidade deste ser, uma conclusão ainda está
escondida, suspensa. O uso das reticências consegue se mostrar suficiente
para evidenciar a falta de palavras do protagonista para nomear este ser, em
frases completamente quebradas, cortadas sintaticamente: “[...] le... le...
comment se nomme-t-il... le... il me semble qu’il me crie son nom, et je ne
l’entends pas... le... oui... il le crie... J’écoute... je ne peux pas... répète... le...
Horla... J’ai entendu... le Horla... c’est lui... le Horla... il est venu!...”
(MAUPASSANT, 2011, p. 47)

Conclusão
Em seu acervo de obras fantásticas, Maupassant apresenta temas
ligados a medos íntimos e primitivos, nos quais o leitor se vê rapidamente
engendrado no decorrer da leitura. Porém, esses medos não aparecem
somente nas descrições de situações e seres misteriosos e sobrenaturais,
mas pelo contrário, suas obras caminham para uma centralização da
perspectiva humana, em que o homem é o pior dos monstros, aquele que
deve ser temido, evidenciando uma crítica social intrínseca que remete a
uma leitura reflexiva no quadro final desenhado. Sutilmente, a explicação
racional se torna ainda mais assustadora do que a possibilidade do
sobrenatural nas suas obras.
Pode-se dizer que os diferentes tipos de silêncio evidenciados ora
jogam com simbolismos que aprofundam suas possíveis leituras ora trazem
para a estrutura uma ferramenta esclarecedora, contribuindo
significativamente, desse modo, para a construção do efeito de dúvida do
gênero. Por esta capacidade criadora indiscutível que joga a todo momento
com os conceitos de real e sociedade, seus textos são tidos até hoje como
alguns dos principais representantes da literatura fantástica mundial.

Referências
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Editora Perspectiva,
1987.

BATALHA, Maria Cristina. A literatura fantástica, encenação do


paradoxo do século das Luzes. In: Anais do SILEL, Uberlândia: EDUFU,
2009, v. 1, n. 1. Disponível em: <http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/wp-
content/uploads/2014/04/silel2009_gt_lt05_artigo_8.pdf >. Acesso em: 25
out. 2018.

CAMPRA, Rosalba. Territórios da ficção fantástica. Rio de Janeiro:


Dialogarts Publicações: 2016.

MAUPASSANT, Guy de. La petite Roque. Edição digital. Paris:


Éditions Flammarion, 2002. Disponível em:
<http://www.leboucher.com/pdf/maupassant/b_mau_pr.pdf> Acesso em: 13
fev. 2019.

______. Le Horla. Paris: Éditions Belin/Gallimard, 2011.

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento os sentidos. 6ª


edição. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

VAX, Louis. L’art et la littérature fantastiques. Paris: Presses


Universitaires de France, 1963.
TODOROV, Tzvetan. Introduction à la littérature fantastique. Paris:
Éditions du Seuil, 1970.
O passado como experiência
comum em Patrício Pron, Diamela
Eltit e Luiz Ruffato
Gabriel Fernandes de Miranda

Sumário

A recente ascensão de discussões acerca do passado ditatorial do


Brasil e da América Latina à esfera pública (inclusive por meio de
negacionismos e revisionismos históricos) tem colocado em pauta as
questões em relação à memória e aos tipos de processos transicionais que as
sociedades desses países passaram. Ao mesmo tempo, parece haver um
movimento nas artes de tematização do passado ditatorial, não como forma
de denúncia, mas como uma espécie de contradiscurso que complementa ou
interpela as frágeis tentativas de política memorial do Brasil e promove
alternativas aos discursos cristalizados acerca da ditadura, especialmente no
caso Argentino. Daí surgiu minha “fantasia”, para usar um termo de Barthes
(2003, p. 8), em elaborar uma pesquisa que girasse em torno das figurações
do passado recente nas artes latino-americanas e suas relações com o
político e a comunidade.

No espaço deste texto me interessa, sobretudo, entender as formas de


figurar o passado em três romances e suas articulações com algumas
tendências da filosofia contemporânea. Nesse aporte estão livros e
pensadores que se debruçaram sobre o conceito de comunidade, comum,
impróprio, etc. As perguntas que trago como motores da pesquisa são: De
que forma essas obras figuram o passado? Como aparecem nelas as tensões
entre público e privado, o próprio e o comum? Que tipo de articulação elas
produzem em torno do passado ditatorial latino-americano? E como se
inserem no panorama das artes contemporâneas no espaço da América
Latina?
Assim, buscarei aqui alguns apontamentos iniciais sobre obras que
estão no corpus de análise da minha tese: O livro da chilena Diamela Eltit,
Jamais o Fogo Nunca, publicado originalmente em 2007, o romance De
Mim Já Nem Se Lembra de Luiz Ruffato e O Espírito de Meus Pais
Continua a Subir na Chuva, do argentino Patrício Pron.

Jamais o Fogo Nunca figura um percurso inventivo: parte de uma


narradora encerrada em um quarto com seu companheiro, aos poucos
percebemos que se trata de militantes de esquerda que se pensam e se
articulam como “célula”, um vocábulo que remete tanto a um mundo
orgânico, quanto ao vocabulário organizacional da política revolucionária
no século XX, ou seja, como uma vida politicamente implicada, como
coloca Diana Klinger (2018, p. 185). Essa dualidade primeira indica uma
boa chave de leitura, apontando para as articulações que o livro propõe
entre vida privada e política, entre intimidade e ética militante e nos permite
pensar o passado ditatorial do Chile pela sobrevivência desse casal.

A rotina do casal está imbuída de um cuidado mútuo que funciona


apenas para a manutenção de seus corpos na ilusão de que possam, ainda,
funcionar como ferramentas na luta política, permeados de uma ética que se
sobrepõe aos corpos:

Mas, embora o tempo não cesse de transcorrer, nunca,


vivemos como militantes, austeros, concentrados nos nossos
princípios. Pensamos como militantes. Estamos convencidos
de que nossa ética é a única pertinente. Sabemos isso, isso é
o que constatamos a cada instante. Entendemos que não
podemos nos deixar avassalar por sentimentos comuns,
sabemos que a história acabará nos dando razão. (ELTIT,
2017, p. 30)

Aqui se verifica uma manutenção da “célula” em um tempo de espera,


no qual sua postura disciplinada e organizada será legitimada pelo tempo
por vir, colocando-os assim em um tempo de expectativa de modificação do
mundo, apesar de sua mera sobrevivência. Como se o ato mesmo de se
manterem vivos fosse um imperativo político inserido nas ambições
revolucionárias de uma esquerda dos anos de 1970.

Destacados de toda a função revolucionária e suspensos no tempo,


esses sujeitos são postos em um duplo processo: tanto de deterioração física
de seus corpos (a tosse recorrente que acomete o homem), quanto de
dissolução de seus limites. O pequeno quarto onde se passa o presente da
narração vai se configurando como espaço de uma fusão corporal que
dissolve as individualidades para a formação de uma “célula” e de um nós
que indistingue os limites entre a narradora e seu companheiro. Assim, essa
sobrevivência ganha sentidos de uma sobrevida, na qual os corpos em jogo
são despidos de suas funções e mantidos em uma espécie de movimento
involuntário de manutenção de uma vida moribunda, corroborando assim
para toda a atmosfera de um tempo em suspensão (KLINGER, 2018, p.
191).

A temática do passado ditatorial aparece no romance de forma


espectral, desde o questionamento de abertura da narradora que remói-se no
esquecimento da morte de Franco e pergunta a seu companheiro “Quando
morreu Franco” (ELTIT, 2017, p. 14) até o uso ostensivo de um léxico
geracional ligado à esquerda revolucionária: o termo célula, a retomada
espaçada de algumas reuniões da célula política anterior, e a aparição
fantasmagórica de ex-companheiros políticos ao pé da cama. Por meio
dessas pequenas franjas que pendem pelo romance, vai se definindo o
quadro da militância anti-ditatorial no Chile e o encerramento do casal no
quarto aparece tanto como um prolongamento da clandestinidade
guerrilheira do passado – e que implica numa expansão da política para o
campo doméstico ou da vida privada – como um delírio diante da derrota do
projeto político da militância revolucionária latino-americana. Entretanto,
em Jamais o Fogo Nunca, o projeto político da esquerda não é jogado fora,
mas sim reafirmado, ainda que precariamente, por meio de uma ética e uma
política que atravessam o processo de sobrevida posto em jogo. Isso se dá
por uma aparição da política em um estado de suspensão, como se
respirasse por aparelhos, entre um anacronismo profundo e uma
impossibilidade de ser abandonada. Há, no isolamento daquela célula, uma
exacerbação do que Agamben chama de “clandestinidade da vida privada”
(AGAMBEN, 2017, p. 11) que dialoga justamente com a quebra que o
filósofo italiano produz ao estender a política para além do campo público,
de forma que Jamais o Fogo Nunca pode ser lido também como uma
investigação do atravessamento da política, ou ainda, de uma localização do
político nos interstícios do público e privado, onde o situa Derrida (1994, p.
74).

A narradora e seu companheiro permanecem sem nome ao longo da


narrativa e os procedimentos formais que encerram a trama em um quarto
fazem lembrar de um espaço em branco reminiscente de O Inominável de
Becket. Esses aspectos produzem uma dissolução não só dos corpos e das
identidades dos personagens, mas um contraponto à narrativas biográficas
de um paradigma testemunhal acerca das ditaduras latino-americanas.
Escapando daquilo que Beatriz Sarlo chama de paradigma realista-
romântico das narrativas sobre a ditadura (SARLO, 2012, p. 95), o livro de
Diamela Eltit relê a experiência ditatorial desde um ponto de partida íntimo
e doméstico, afirmando assim um atravessamento da política nas
experiências mais mundanas, da alimentação ao sono, ocupando as nuances
de uma vida despida de exterioridade.

O uso do tempo em suspensão, em um presente estendido e indistinto


colabora para um efeito geral de repensar as propriedades do passado. Ao se
utilizar de uma prosa truncada e delirante, Diamela Eltit escapa de uma
tentativa de apropriar-se do passado pela via autobiográfica. Ao invés disso,
o romance parece operar um movimento de dissolução da identidade que
abre as portas para uma leitura do passado da biopolítica negativa da
ditadura chilena como uma herança ou uma “experiência do comum”
(GARRAMUÑO, 2016, p.109) que pode ativar, talvez, uma ampliação do
quadro de participantes em um “pacto de não-esquecimento do passado”
(ARFUCH, 2018, p. 71) através de uma narrativa ao redor da ditadura, que
busca nas fendas de uma experiência geracional maneiras de pensar a
política, a vida, a sobrevivência e a despossessão (SAFATLE, 2015, p. 74).

Abro um parêntese: o filósofo italiano Roberto Esposito (2013) faz


uma sistematização da modernidade como aplicação e manutenção de um
paradigma de imunização da vida fundado em Hobbes. A essência dessa
imunização seria o uso do Estado como aparato que imuniza a vida da
comunidade, retirando a possibilidade de viver junto como forma de
proteção do indivíduo (ESPOSITO, 2003, p. 21). Para Esposito, ainda, não
se trata de uma divisão de vida e política – como pensaria Giorgio
Agamben na cisão entre bios e zoé – mas sim de uma mobilização da
política como “proteção negativa da vida” (ESPOSITO, 2017, p. 60) na
qual a liberdade é limitada e informada por um dever de manter-se vivo
(ESPOSITO, 2017, p. 94). Ora, não seria esse tipo de formação que está em
jogo em Jamais o Fogo Nunca? Portanto, não seria o livro de Diamela uma
forma de repensar o atravessamento do paradigma imunitário nas políticas
da esquerda revolucionária, cuja ética e ordem podem servir exatamente a
uma obrigação de sobrevivência? Os corpos da célula do romance não
estariam então impelidos por uma necessidade de manutenção da vida a
despeito de todo bom senso?

A leitura caminha por muitos sentidos e poderia certamente buscar


ainda outras entradas e chaves para a leitura de Jamais o Fogo Nunca, cuja
prosa complexa e narrativa delirante – há uma escalada de delírio na
narração, com as fronteiras entre mortos e vivos, presente e passado se
diluem até sua indefinição, contribuindo para um efeito de dissolução dos
corpos e de toda uma lógica que os atravessa – a faz uma obra ainda
incógnita na minha pesquisa. Os desafios de lê-la são também os desafios
de articular os múltiplos temas que o livro propõe.

Se o paradigma de imunização, a vida e a política são problemáticas de


força no romance de Diamela Eltit, há uma sutileza que desvia a leitura em
De Mim Já Nem se Lembra, de Luiz Ruffato, livro de 2016. Iniciado por um
relato em primeira pessoa, o livro se apresenta como uma coleção de cartas
do irmão do narrador chamado Luiz, encontradas em meio ao espólio da
mãe morta. Retomando, portanto, o procedimento clássico do manuscrito
encontrado – basta lembrar de Fielding, Allan Poe, e do Robinson Crusoé
de Defoe –, Luiz Ruffato constrói um romance epistolar emoldurado por
dois textos no qual se impõe o nome do autor como indício autobiográfico.

As cartas de José Célio à sua mãe se iniciam desde sua estadia em São
Paulo, incorporado à força de trabalho que se formava nas indústrias
paulistas nos anos de 1970. Essas missivas, encadeadas em série
cronológica e sem réplicas da mãe criam um ordenamento lacunar do
tempo, no qual o leitor é convidado ou impelido a uma operação de
inferência do diálogo entre os dois. É, portanto, por uma ótica familiar e
íntima que o livro se compõe, apoiado numa forma de discurso, a carta, que
aponta para uma leitura biográfica, em um impulso bastante evidente de
uma certa “pulsão arquivística” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 13),
característica da ficção brasileira contemporânea que recolhe documentos e
utiliza-os como índices do Real.

Portanto, a reconstrução do passado operada por De Mim Já Nem Se


Lembra se funda não só na perspectiva íntima e familiar que as cartas
encerram, mas sobretudo em uma jogada de ficcionalização documental que
serve para afirmar uma certa autoridade do discurso sobre o passado.
Assim, o uso da missiva como forma aponta para uma saída para falar do
passado por fora do tempo da nação, o tempo linear e progressivo da
modernidade europeia que nos foi imposta (LUDMER, 2010, p. 45),
produzindo, através do íntimo uma outra visão do tempo que responde
diretamente à “cronopolítica” do Estado Nacional. De certa forma, o livro
valoriza o fragmento, apontando a carta como resto da história, em um
esforço bastante benjaminiano de produzir um “alfabeto da sobrevivência”
(RICHARD, 2002, p. 54).

Partindo de um panorama afetivo e cotidiano, enumerando viagens e


encontros com a família em Minas Gerais e o pequeno trato banal entre
amigos e o trabalho de um operário, o livro performa uma reconstrução de
uma experiência geracional dos anos 1970 desde fora do panorama de uma
centralidade das figuras de algoz e vítima da ditadura. Aqui, o ponto de
vista de um operário parece trazer à tona um discurso que se fixa num
“espaço terceiro”, como fala Gagnebin (2006, p. 57) que escapa às posições
duais de vítimas e perpetradores. O passado ditatorial aparece aqui apenas
pela tangente, ou ainda, por um movimento pendular no qual o aparato
repressivo da biopolítica ditatorial atravessa a trama e a vida cotidiana em
pequenas intrusões. A primeira aparição de qualquer menção à essa
dimensão é tardia:

Outro dia, aconteceu um negócio esquisito com um rapaz


que mora comigo na pensão, o Norivaldo, um sujeitinho
falante, desses meio entrão, sabe? Parece que ele estava
andando na rua, o pessoal da cavalaria que tem aqui perto
passou, ele fez pouco caso dos soldados, um deles desceu,
mandou ele beijar o cavalo, ele falou que não ia beijar coisa
nenhuma, eles carregaram ele para a delegacia e deram uma
surra danada nele. Parece que o negócio foi feio, porque ele
apareceu na pensão todo machucado, eu não vi não, me
contaram, pegou a bolsa dele e sumiu. Ninguém mais ouviu
falar dele. A gente tem que tomar cuidado com o que fala
por aqui. Eu tomo.” (RUFFATO, 2016, p. 82)

Os indícios se afirmam por um léxico duvidoso, na repetição da


palavra “parece” em que se funda uma atmosfera repressiva e na qual se
demonstra, sobretudo, o caráter arbitrário da repressão, prisão e torturas
praticadas na ditadura militar. O que sobrevém é o cotidiano da repressão,
em uma jogada que subverte a narrativa que monopoliza a memória da
ditadura como uma memória da militância revolucionária em seu embate
contra o Estado ilegítimo e coloca em pauta o atravessamento da política
repressiva para além dessas figuras, apontando para uma expansão do
campo da memória da ditadura militar.

O procedimento de um atravessamento quase casual da história na


narrativa permanece ao longo do livro e traz também uma figuração das
reivindicações operárias que movimentaram os anos finais da década de
1970, como aparece em uma das cartas ficcionais, datada de 13 de março de
1977:

No dia 4 a gente fez uma assembleia para discutir a pauta de


reivindicações da campanha salarial deste ano. Foi muito
legal, tinha gente pra caramba lá. E agora a gente está
preparando uma grande festa para o Primeiro de Maio. Acho
que este ano a coisa pega fogo. (RUFFATO, 2016, p. 116)

Nessas franjas da história, desde a perspectiva íntima de um jovem


operário nas fábricas do ABC paulista, o passado emerge em pequenos
rompantes, longe da narrativa gloriosa da historiografia e dos topoi do
paradigma testemunhal da memória das ditaduras latino-americanas.
Ruffato propõe uma revisão do passado nacional pelo cotidiano e sob a
égide de um microcosmo mundano, que engloba trabalho, jantares,
amizades em formação mas que também é atravessado pela biopolítica
repressiva da ditadura e pelos movimentos operários que enfrentaram a
ditadura quando a luta armada já havia sido derrotada.

Nesse sentido, a prosa de Ruffato parece realmente trabalhar em


direção a uma reabilitação de “uma experiência do comum”
(GARRAMUÑO, 2016, p. 109) no campo das memórias da ditadura,
percorrendo pela ficção, um caminho não traçado nos textos
memorialísticos. De certa forma, podemos ler De Mim Já Nem Se Lembra
como uma investigação do que significa ser contemporâneo de seu tempo,
não na perspectiva opositiva já tornada célebre por Agamben (2009) – na
qual contemporâneo é poder enxergar as sombras na luz de seu tempo –
mas sim naquela apontada por Bruno Latour em seu Manifesto
Composicionista: “Precisamos ter uma definição do mundo material muito
mais material, muito mais mundana, muito mais imanente, muito mais
realista e muito mais incorporada se nós quisermos compor um mundo
comum”1 (LATOUR, 2010, p. 484 apud RUFFEL, 2014, p. 17. Tradução
minha). O esforço de Ruffato não seria, portanto, de propor o
contemporâneo, nesse sentido mundano e de uma co-presença no tempo,
como chave de leitura para o passado?
1 No original: “We need to have a much more material, much more mundane, much more immanent, much more realistic, much more embodied definition of the material world
if we wish to compose a common world.”

Ainda restam uma série de outros questionamentos a respeito desse


texto que foi tão pouco discutido criticamente. Sua figuração tangencial do
passado em meio a uma trama afetiva pode provocar ainda uma série de
inquietações que permitam repensar as formas de retomada do passado
ditatorial em toda a América Latina.

Resta fazer alguns apontamentos para o livro de Patrício Pron,


publicado em 2011 na Espanha e traduzido ao português em 2018, O
Espírito dos Meus Pais Continua a Subir Na Chuva. Com um narrador
abertamente autobiográfico, o livro performa uma busca quase detetivesca
de um filho no entorno do passado de seus pais, da sua comunidade
imediata de El Trébol, e da ditadura argentina que se inicia com a
internação do pai. Diante dessa precariedade instalada no corpo da família,
o narrador é impelido a voltar à Argentina depois de uma estadia na
Alemanha e buscar uma conexão familiar através de um processo de
“escavação” quase arqueológica dos arquivos e documentos do pai.

O livro de Pron se situa num campo amplo de narrativas de filhos


sobre a atuação de seus pais na militância contra a ditadura argentina. Essa
tendência, que foi chamada por alguns de pós-memória (SARLO, 2012) é
prenhe de problemáticas geracionais, de tensões entre o familiar e o político
e é, talvez, um campo que hoje tornou-se saturado, principalmente no meio
editorial dos vizinhos argentinos. Essa face se apresenta de forma direta em
uma série de passagens do livro. No momento em que o narrador lê uma
frase sublinhada pelo pai, “Combati o bom combate até o fim, terminei
minha carreira: mantive a fé.” (PRON, 2018, p. 31) ele intenta um contato
com o pai, com o desejo de se compartilhar de uma mesma identificação
com essa frase. No entanto, sua tentativa é frustrada:

[...] também gostaria de ter esse epitáfio, mas depois pensei


que eu não tinha realmente lutado, e que ninguém da minha
geração tinha lutado; algo ou alguém já tinha nos infligido
uma derrota [...] Ninguém lutou, todos perdemos e quase
ninguém se manteve fiel ao que acreditava, fosse lá o que
fosse, eu pensei; a geração do meu pai sim foi diferente,
mas, mais uma vez, havia algo nessa diferença que era
também um ponto de encontro, um fio que atravessava as
épocas e nos unia apesar de tudo, e era espantosamente
argentino: a sensação de estarmos unidos na derrota, pais e
filhos. (PRON, 2018, p. 31)

A tentativa de um encontro com a geração anterior é uma temática que


perpassa uma série de obras na literatura Argentina. Na tensão entre a
tentativa e o fracasso desses laços é que se desenha a narrativa de O
Espírito de Meus Pais.

Contudo, se o impulso inicial é o de uma repactuação intergeracional,


a narrativa o transforma em alguma outra coisa, na medida em que a
história familiar dá lugar a uma investigação que se aproxima de um campo
mais para além da família. O narrador passa a desempenhar um esforço
detetivesco para continuar uma investigação iniciada por seu pai em torno
do assassinato de Alberto Burdisso, um conterrâneo de seus pais. É a partir
daí que algo além de uma história íntima e própria se desenha. Através
desse outro para com o qual a relação não é obrigatória, como o é a relação
entre pais e filhos, a narrativa vai retomando as temáticas da ditadura e os
espectros dos mortos e desaparecidos – incorporados principalmente na
figura da irmã de Burdisso, uma antiga companheira de militância dos pais
do narrador.

O romance ainda apresenta uma mesma pulsão documental presente


também no livro já citado de Luiz Ruffato. De fato, toda a segunda parte do
livro é dedicada à análise e à transcrição de trechos de matérias jornalísticas
e documentos guardados pelo pai do narrador acerca de Burdisso. Assim,
em uma espécie de verborragia documental, a narrativa aponta para a
necessidade de embasamento da ficção por meio de indícios do real,
indicando para uma preocupação ética na reconstrução ficcionalizada do
passado que se radicaliza no fim do livro, onde o leitor é convidado a ler os
comentários do pai de Pron acerca dos erros e acertos do livro.

A forma fragmentária que assume o romance é sintomática e


consciente das possibilidades de falar do passado desde a ficção. Sua
estrutura embaralhada e em fragmentos numerados – cuja ordem por vezes
se perde, performando ora a estrutura lacunar do passado, ora uma espiral
delirante do narrador – implica em uma maneira de abordar o passado que
se aproxima daquelas usadas em Jamais o Fogo Nunca e em De Mim Já
Nem Se Lembra, na busca por um dizer justo de uma história recente
marcada pelo signo do trauma e da violência biopolítica. No entanto, a
estrutura fragmentária pode ser vista como uma condição da própria busca
pelo passado, como aponta Beatriz Sarlo:

Pero incluso si se reconoce la necesidad de la noción de


posmemoria para describir la forma en que un passado no
vivido pero muy próximo llega al presente, hay que admitir
también que toda experiencia del pasado es vicaria, porque
implica sujetos que buscan entender algo colocándose, por la
imaginación o el conocimiento, en el lugar de quienes lo
experimentaron realmente. (SARLO, 2012, p. 129. Grifo da
autora.)

Entre as dificuldades de falar do passado e uma tentativa de narrá-lo


desde o presente, a fragmentária prosa de Pron se destaca sobretudo por
extrapolar os limites de uma memória familiar ou testemunhal. Seu salto
para a história da ditadura Argentina se dá não só pela experiência dos pais,
militantes que saíram da militância antes mesmo do golpe de Estado, mas
sim por uma investigação de uma vida quase anônima e precária, aquela de
Alberto Burdisso. Por meio de ligações fracas, distantes e tangenciais, o
passado sob o aparato repressivo da ditadura se expande como uma
experiência que não pode ser apropriada, mas que só pode ser-em-comum
(NANCY, 2016, p. 142).

Cabe pensar, portanto, que cada um desses livros produz à sua maneira
um processo de erosão das categorias de propriedade, de intimidade e da
política, pondo em questão o passado recente da América Latina por meio
de frestas, indícios e fragmentos. Assim, essas são narrativas que marcam
de forma definitiva sua contemporaneidade e a problemática de narrar ou
imaginar o passado desde o presente, fazendo dessa volta às experiências
ditatoriais de nosso continente um dever ético que busca, assim como os
testemunhos, um “laço social de confiança” que “estabelece também uma
cena para o luto, fundando assim comunidade ali onde essa foi destruída.”
(SARLO, 2012, p. 67)

Referências
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Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

_________________. O uso dos corpos. Trad. Selvino J. Assmann.


São Paulo: Boitempo, 2017.
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DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Trad. Anamaria Skinner. Rio


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SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
Uma análise do romance
Desamparo de Inês Pedrosa
Giselle Moraes Hache

Sumário

Introdução
Este artigo tem por objetivo construir uma análise do romance
português contemporâneo Desamparo, da escritora Inês Pedrosa, escrito em
2015 e publicado no Brasil em 2016, pela Editora Leya. Escolhemos
trabalhar com o romance por ser uma narrativa de múltiplos enfoques, que a
partir de quatro narradores, versa sobre a natureza humana e suas angústias
mais latentes. Tentaremos compreender como se dá a construção da obra a
partir da alternância de vozes, da narrativa não linear e fragmentada, do
resgate da memória, dos espaços que se convergem (Brasil e Portugal) e da
crítica social contida na obra. Nesse contexto, também buscaremos analisar
os sujeitos do discurso de Pedrosa, verificando como estes comportam-se
frente ao desamparo inerente ao sujeito.

Através das experiências individuais e coletivas de seus personagens,


Desamparo nos permite observar a um só tempo a história recente do Brasil
e de Portugal e o desamparo nas relações humanas. No decorrer da trama,
as diversas histórias vão se aprofundando e trazem novas questões à tona.
Miguel Real, escritor e ensaísta português, em uma crítica sobre o livro para
o Jornal de Letras (2015), afirma:

A metodologia de escrita, ainda que emotivamente


espontânea, parece residir num conjunto concêntrico de
abordagens, isto é, parte-se de um facto nuclear (morte de
Jacinta de Sousa; fracasso de vida de Raul, seu filho),
ampliado posterior e sucessivamente ao nível local e ao nível
da vida do país (neste caso Portugal e Brasil, já que Jacinta
viveu e casou no Brasil e Raul aí nasceu). Mais do que
tecido labirinticamente, o romance parece assim viver de
sucessivos círculos concêntricos, entre os quais, até as
derradeiras páginas, o capítulo seguinte concentra e supera
os anteriores, arrastando e enlevando a mente do leitor.
(REAL, 2015)

A forma de escrita de Inês Pedrosa em Desamparo dá-se através de um


conjunto concêntrico de histórias que expandem-se no decorrer da
narrativa. O mote inicial, a saga de Jacinta, dá espaço a outras, que a
princípio não nucleares, solidificam-se. A autora se vale também de temas
diversos, como a emigração, para refletir sobre a realidade sociopolítica
lusitana nos séculos XX e XXI, representando assim a pluralidade da
sociedade portuguesa por meio de três gerações. Margarida, Jacinta e Raul
formam o presente e o passado de Portugal.

Pedrosa desenvolve um enredo estruturado em torno de trinta e cinco


capítulos, nos quais quatro vozes se alternam. A obra, marcada pelas
temáticas da dor, do desamparo, do abandono, da solidão e da culpa,
pretende retratar a saga de Jacinta Sousa através de múltiplos personagens,
que de modo direto ou indireto, permeiam sua jornada.

Em Desamparo, a alternância de vozes é um dos pontos-chaves para a


descontinuidade temporal. Inês Pedrosa, ao longo dos capítulos, contrapõe
o tempo através das memórias dos narradores. Estas, aos poucos, são
resgatadas de forma intercalada pelo narrador onisciente, por Jacinta, por
Raul e por Clarisse. Pedrosa constrói os capítulos de modo que a história de
Jacinta trasborde para as outras vozes que também a recontam. A condução
do enredo através das diferentes vozes cria, além de perspectivas diversas,
uma desarticulação no tempo e espaços vários, nos possibilitando conhecer
mais a fundo as histórias dos personagens e suas angústias mais latentes. O
romance expõe a inquietude do homem perante a solidão e o abandono. A
sensação de constante desamparo na sociedade contemporânea, tanto
psíquico quanto social, é o cerne da narrativa: personagens desamparados
pelas famílias, pelos filhos, pelos vizinhos, pelo Estado; vozes à espera de
uma salvação.
O desamparo em sua dimensão social
De frente com a morte, a narradora-personagem Jacinta Sousa, aos 89
anos, resgata a partir de suas recordações, ora tristes, ora felizes, seu
passado conflituoso transcorrido nos dois continentes. A autora elabora um
rico testemunho do Brasil e de Portugal entre os séculos XX e XXI,
entrelaçando distintas histórias de vida que formam um panorama da
realidade sociopolítica nos dois países.

Através destes espaços que se cruzam, Inês Pedrosa versa sobre


emigração e a constante busca por identidade em um mundo globalizado.
Jacinta, a “mulher sem pátria”, aos três anos de idade é retirada dos braços
da mãe e levada por seu pai de Portugal para o Brasil. Regressa ao seu país
de origem depois de meio século para encontrar a mãe: “Larguei a modesta
casinha alugada em Campos, onde vivia perto da minha Rita, para ir viver
na modesta casinha de minha mãe, em Arrifes, a aldeia onde nasci. Um
autêntico regresso ao útero” (PEDROSA, 2016, p.68).

Assim também faz Raul, em um movimento reverso. Um ano após a


partida de Jacinta para além-mar, seu filho, brasileiro, arquiteto
desempregado, a acompanha buscando recuperar um passado ainda
desconhecido: “Portugal é agora o meu colo; a herança suave e formosa que
a minha mãe me ofertará quando morrer” (PEDROSA, 2016, p. 52).

Jacinta se estabelece definitivamente na casa de sua mãe em Arrifes,


aldeia fictícia localizada a 8 quilômetros da cidade medieval Vila de Lagar,
possivelmente na região oeste de Portugal. Raul inicialmente mora em
Lisboa, porém após a morte de Jacinta e devido à crise financeira que
ocorreu em Portugal entre 2010 e 2014, parte para o interior do país: “De
facto, o que estava a fazer em Lisboa? Apenas a sobreviver. Talvez fosse
mais fácil sobreviver em Arrifes” (PEDROSA, 2016, p. 174).

Ao ser questionada sobre a aldeia ser um lugar imaginário no interior


de Portugal, Inês Pedrosa em entrevista ao Jornal de Notícias, em 07 de
março de 2015, afirma:
Sim. É imaginário porque podia ser qualquer aldeia
portuguesa. É uma metáfora do desamparo, e um dos temas
principais do livro é o regresso e a descoberta do campo.
Temos tido notícias ao longo destes quatro anos, sucessivas,
de pessoas que largam a cidade e vão para o campo, e há
uma mudança de vida e o redescobrir de um país e de uma
realidade rural, que não é aquela que também se sonhava. O
campo é um lugar de partilha e de solidariedade, mas
também é um lugar de violência, porque todo ele está
desamparado. Neste livro fala-se de pessoas que estão no seu
limite de sobrevivência, e sobre como é que elas reagem à
mudança que as levou ao limite. As situações limites são
muito fascinantes porque se vê o ser humano sem teatro, sem
máscara, na sua reação mais heroica ou mais desesperada.
(PEDROSA, 2015a)

Como podemos observar, Pedrosa reflete sobre a situação de Portugal


em um momento de crise e como seus habitantes reagem a ela – cidadãos
desamparados redescobrindo o interior do país em face da dura realidade.
Nesse sentido, um dos temas principais do romance é o regresso ao campo:
“Havia um novo êxodo da cidade para o campo; empresários na falência
que entregavam as casas e os carros aos bancos e asseguravam, nas capas
das revistas, que o regresso à terra era a solução da crise” (PEDROSA,
2016, p. 35). O êxodo dos portugueses para o interior do país, devido às
altas taxas de desemprego e ao alto custo de vida nos grandes centros, leva
a um regresso à ruralidade:

Coincidiu de nessa altura Raul resolver viver comigo durante


quase um ano. Muita gente estava a fazer isso, com o
agravamento da crise ficou impossível o custo de vida na
cidade. As pessoas daqui começaram a fazer como os
gregos, deram de voltar ao campo. Longe de Lisboa o meu
filho perdeu muito trabalho, o dinheiro sumiu. (PEDROSA,
2016, p. 30)
Após estourar a crise financeira global em 2007, Portugal viu-se
envolvido em uma grande dívida pública que estabeleceu-se na Zona do
Euro. Não conseguindo arcar com os empréstimos e com a economia
desmoronando, o país adotou medidas de austeridade visando diminuir os
gastos do governo, como redução de salários e pensões no setor público e
cortes na seguridade social.

Esta nova realidade trouxe desafios. O desamparo ocasionado pela


ausência de bem-estar social a ser ofertado pelo Estado português é
retratado em diversas passagens ao longo do romance. Já no primeiro
capítulo, narrado por Jacinta, ela revela:

O Raul. O meu Raul. Se ao menos eu conseguisse abrir os


olhos e encontrar dentro das bocas as palavras para dizer a
essa doutoreca cheia de opiniões que, se não fosse o Raul, eu
já me teria finado há muitos e muitos anos, que é com este
filho e só com ele que tenho contado, que há décadas vivo
todos os meses da ajuda dele, porque com a pensão de
sobrevivência de duzentos e trinta euros mensais eu não
pagava todas as contas da casa. (PEDROSA, 2016, p. 25)

Raul, por sua vez, preocupado com as despesas e cuidados com a mãe,
mais à frente afirma: “Fiz as contas: quarenta euros por semana, é um saco
do Super Barato cheio de comida […] Só assim poderei continuar a dar
cento e cinquenta euros por mês a minha mãe. O mínimo.” (PEDROSA,
2016, p. 47).

O desamparo social é sentido por Raul e Jacinta no sistema público de


saúde português. No hospital, Jacinta se inquieta e mostra preocupação com
seu filho, que mesmo pressionado pelas enfermeiras, vê-se impossibilitado
de abandonar o trabalho no call center em Lisboa para acompanhá-la
diariamente: “A enfermeira diz que estou agitada. Como não hei-de estar
agitada com a indiferença desta gente às dificuldades do meu filho e ao jeito
como buscam carregá-lo de culpa?” (PEDROSA, 2016, p. 26).
Já Raul angustia-se ao saber que Jacinta teve alta do hospital, mesmo
acamada. Porém, logo a seguir, ao sofrer convulsões a alta é retirada.
Aflige-se por não ter condições de arcar com as despesas de clínica
particular para cuidados continuados com a mãe. Ele narra seu desespero:
“Teresa acredita que o Estado Social ainda funciona; eu vejo que ele se
desmorona diante dos meus olhos, ao redor do corpo de minha mãe.”
(PEDROSA, 2016, p. 106). Sem a ajuda emocional e financeira dos irmãos
mais velhos, sem o apoio dos vizinhos de Arrifes e não podendo contar com
o auxílio do serviço social, Raul encontra-se desamparado e sem ver saída.
Em uma conversa com a assistente social do hospital, com Jacinta ainda
acamada, ela lhe sugere: “O senhor tem de ir à internet ver a lista dos
centros de cuidados continuados e escolher um. Não sou eu que vou
assumir essa responsabilidade. No Estado há uma grande lista de espera, e
com a pensão que a sua mãe tem não vai ser fácil.” (PEDROSA, 2016, p.
128).

Pedrosa, comprometida com a verdade e o presente, critica através da


escrita o desmantelamento do Estado português. Por outro lado, o romance
mostra que há esperança apesar dos infortúnios, da ausência de proteção e
auxílio – o desamparo pode ser uma forma de salvação. Os personagens
tecidos pela autora refletem a esperança por dias melhores. Inês Pedrosa,
em entrevista ao Jornal Correio da Manhã, em 14 de setembro de 2015,
reflete:

Mais dos que os noticiários, os anúncios nos jornais que dão


conta de insolvências, leilões e hastas públicas de casas é
impressionante. É a história da desgraça de famílias inteiras.
Comecei a juntar histórias dessas em 2012. Na altura estava
a ler a Clarice Lispector e surgiu-me o título. “Desamparo”.
Por causa dos versos: “Agora eu conheço o grande susto de
estar viva, tendo como único amparo exactamente o
desamparo de estar viva”. O desamparo é um susto, mas
também um choque e um desafio. Puxa-nos para nos
salvarmos. Nada nos ampara e podemos cair, é certo. Mas
também podemos dar a volta. Não se sabe. O que sabemos é
que os modelos antigos já não nos servem. (PEDROSA,
2015b)

O desamparo em sua dimensão psíquica


Jacinta sente-se uma mulher desamparada. Ao cair no sol escaldante,
ela chama por seu filho mais velho, que há anos a ignora: “Rafael, não me
deixe mais aqui sozinha. Eu sei que você vem me salvar, meu filho. Você
não telefonaria se não viesse, não é? Sinto o coração e os pulmões e o
estômago e a pele mirrando debaixo desse sol cruel, não demore, por favor,
meu filho…” (PEDROSA, 2016, p. 19).

Em Portugal, ainda na primeira infância, é rejeitada pela mãe e ao vir


para o Brasil, cresce com um pai ausente. No Rio de Janeiro, é criada pela
mulher de seu avô, a impiedosa Dona Ánxela, que frequentemente a
maltrata, punindo-a rigorosamente. Jacinta cresce solitária, sem prazeres e
permeada por uma sensação de abandono. Ela relembra a insensibilidade de
seu pai ao dizer-lhe que fora rejeitada pela mãe logo após a partida para
além-mar:

O meu pai chamava-me de fraca porque eu vomitava com os


balanços do navio que nos levava para o Brasil. Eu acordava
a meio da noite chamando por minha mãe e ele me dizia que
eu não tinha mãe, que a minha mãe preferia ficar num país
miserável de gente inculta a vir comigo para uma terra rica e
feliz. (PEDROSA, 2016, p. 21)

Para se ver livre do ambiente sufocante em que vivia, aos dezoito anos
casa-se com Álvaro: “Durante dez anos a existência decorreu com
suavidade: uma vivenda ampla, com criados e criadas, um Citroën preto,
móveis em jacarandá […] Depois entrou em cena a comitiva das amantes e
dos maus tratos, até a separação” (PEDROSA, 2016, p. 123). Jacinta perde
um filho de Álvaro, que nasce morto, e logo após é rejeitada por ele, sendo
tratada como uma mulher incapaz de dar à luz. Apesar das tentativas de
engravidar novamente, fracassa. O marido a humilha constantemente e o
casamento chega ao fim. Ela se vê abandonada mais uma vez, desamparada,
agora pelo homem com quem escolheu casar.

Envolve-se com o sedutor Ramiro, por quem apaixona-se


verdadeiramente. Com ele, tem três filhos: Rafael, Rita e Raul. O
companheiro a trai constantemente, o que a deixa em depressão. Por
diversas vezes tenta o suicídio, como ela própria desabafa:

Ramiro me humilhava tanto, exibindo as amantes mesmo


debaixo de meu nariz, chegando ao ponto de levar meus
filhos pequenos para passear de carro com as queridas
dele… Muita lavagem de estômago eu fiz. Já nem lembro
quantas. Tomava comprimidos, ia parar no hospital, as
crianças em pânico. Mãe não tem direito de se matar, eu sei.
Mas eu também não tive mãe, ninguém me deu lições de
maternidade. Se isso nascesse com a gente, minha mãe não
me teria rejeitado duas vezes. (PEDROSA, 2016, p. 64)

Jacinta e Ramiro, por fim, separam-se. Os filhos crescem e vivem suas


vidas. Quando Jacinta está em Portugal, apenas Raul fica ao seu lado e a
ampara nos momentos de dificuldade. É ele, o filho mais novo, quem a
ajuda quando, na velhice, Jacinta passa por problemas financeiros. Declina
física e mentalmente. Rafael a despreza, o que a deixa angustiada. Ela
lamenta:

Queria enxergá-lo só mais uma vez, o meu filho mais velho,


esse que me rejeitou. Faz quinze anos que não tenho essa
alegria. Diz que deprimiu, entrou em crise existencial, foi
parar ao psiquiatra, andou a tomar remédio para a cabeça,
caiu de cama e veio se curar em Portugal, me chamou para
cuidar dele lá em Lisboa, na casa do irmão. […] Ao fim de
três meses estava bom, acabou se empolgando e comprando
casa de férias em Sintra, voltou para o Brasil e nunca mais
quis saber de mim. (PEDROSA, 2016, p. 16)

Jacinta é o retrato da mulher desamparada pelos pais, pelos filhos,


pelos maridos. Na presença da morte, no hospital, rememora seus desafetos,
suas angústias, as traições de seus ex-companheiros, as crises depressivas e
diversas tentativas de suicídio. Simone de Beauvoir, em seu célebre estudo
O segundo sexo, publicado em 1949, reflete:

As restrições que a educação e os costumes impõem à


mulher limitam seu domínio sobre o universo. Quando o
combate para conquistar um lugar nesse mundo é demasiado
rude, não se pode pensar em dele sair, ora é preciso
primeiramente emergir dele numa soberana solidão, se se
quer tentar reaprendê-lo: o que falta primeiramente à mulher
é fazer, na angústia e no orgulho, o aprendizado de seu
desamparo e sua transcendência. (BEAUVOIR, 2016, p.
536)

Jacinta não consegue encontrar-se nesta nova fase de sua vida e sofre
com a solidão. Mesmo após a separação, vive na casa que Ramiro, seu ex-
marido, construiu com a nova esposa em Campos, procurando sentir-se útil
e necessária. Sente-se perdida com este arranjo familiar e busca uma nova
função em sua vida. Sobre a sensação de incompletude na maturidade,
Beauvoir afirma:

Quanto aos filhos, suficientemente grandes para prescindir


dela, casam-se, deixam o lar. Dispensada de seus deveres ela
descobre enfim a liberdade. Infelizmente, na história de cada
mulher repete-se o fato que constatamos durante a história da
mulher: ela descobre essa liberdade no momento em que não
encontra mais o que fazer com ela. Essa repetição nada tem
de um acaso: a sociedade patriarcal deu a todas as funções
femininas a figura de uma servidão; a mulher só escapa da
escravidão no momento em que perde toda a eficiência.
(BEAUVOIR, 2016, p. 394)

Aos 58 anos, Jacinta retorna para Portugal para cuidar de sua mãe,
Margarida e enfim, ter seu amor reconhecido por ela. Sente demasiada falta
dos filhos que não a procuram. O desamparo acentua-se na velhice como
narra Raul: “Os velhos são encarados por muitos filhos como um problema;
se pudessem varriam-nos para debaixo no tapete. […] Esquecermos que os
mais velhos existem é que não os ajuda a eles, nem a nós” (PEDROSA,
2016, p. 184).

Outra personagem desamparada à procura de alento na vida é a ex-


jornalista Clarisse. Após sofrer um severo processo por difamação e ser
condenada a pagar de indenização uma quantia considerável de suas
economias, busca recomeçar sua vida em Arrifes como animadora do
Centro de Dia. Sem contato com o filho, que mora com o pai na América do
Norte, vive uma vida solitária:

É verdade que nessa época eu flutuava à deriva; Vicente o


meu filho de dez anos, escolhera ir viver com o pai nos
Estados Unidos; a minha melhor amiga tinha dormido com o
fotógrafo que eu namorava; vinha do jornal e caía no sofá a
ver televisão até adormecer […] Trinta e cinco anos e sentia
que a minha vida era um falhanço. As saudades do meu filho
destruíam-me as entranhas, quase nem conseguia comer.
(PEDROSA, 2016, p. 148)

Clarisse é uma personagem que busca encontrar no amor a redenção de


sua vida. Sem mais exercer a carreira de jornalista, sentindo-se fracassada,
deprimida e distante de seu filho, enamora-se de Raul, espelhando nele a
sua felicidade. Anseia por construir uma vida ao seu lado: “O meu coração
bate como se descobrisse pela primeira vez sua existência.” (PEDROSA,
2016, p. 150)
Com o desenrolar da narrativa, o leitor é apresentado também à
história de Vanessa. A personagem é vítima de violência doméstica. Sofre
por envolver-se sucessivamente com homens que a agridem verbal e
fisicamente. Após a partida de Sérgio, seu primeiro marido e pai de seus
três filhos, Vanessa conhece Gaspar, que também a espanca. Com ele tem
uma filha, Cátia. Depois conhece Manuel, que trata-lhe como empregada e,
tal qual os outros namorados, também lhe bate. “Parecia sina; Vanessa
pensava que havia nela qualquer coisa que conduzia os homens à violência,
e não percebia o quê. A mãe dizia-lhe que os homens nasciam já com uma
fúria que tinham de descarregar nas mulheres” (PEDROSA, 2016, p. 55).
Ela é uma vítima “consentida”: “Não tinha vergonha de que lhe batessem;
contava as suas histórias de brutalidade repetida como se fizesse desfilar
uma coleção de medalhas” (PEDROSA, 2015, p. 56). Acredita que, por
amor, é agredida por seus companheiros. A violência masculina está
naturalizada em seu inconsciente. A sua própria mãe a ensina que a
violência é inata aos homens.

Através das experiências dessas personagens, vemos ainda a força da


dominação masculina na sociedade. Pierre Bourdieu em seu estudo A
condição masculina e a violência simbólica, reflete:

E as próprias mulheres aplicam a toda a realidade, e


particularmente, às relações de poder em que se veem
envolvidas, esquemas de pensamento que são produto da
incorporação dessas relações de poder e que se expressam
nas oposições, fundadoras da ordem simbólica. Por
conseguinte, seus atos de reconhecimento prático, de adesão
dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar com
tal e que “faz”, de certo modo, a violência simbólica que ela
sofre. (BOURDIEU, 2018, p. 54)

De acordo com o sociólogo, a violência simbólica masculina é


incorporada tanto por homens quanto por mulheres, através de esquemas
inconscientes de percepção e de estruturas históricas que já estão enraizadas
na sociedade. A dominação masculina se centraliza nas diferentes
instituições (o Estado, a Família, a Escola e a Igreja) e se reproduz por meio
de estruturas inconscientes, transmitindo, desta forma, os pressupostos
patriarcais. Em Desamparo, percebemos a visão androcêntrica sendo
passada na esfera privada de mãe para filha, que a incorpora
inconscientemente. Vanessa naturaliza a violência que sofre. São mulheres
socializadas pelo pensamento patriarcal.

Ainda segundo Bourdieu, as mulheres têm a necessidade do olhar do


outro para se constituírem. Medem seu apreço a partir da validação de
outras pessoas, vivendo à espera de reconhecimento. É o que encontramos
nas personagens de Desamparo. Jacinta, Clarisse e Vanessa buscam no
amor do outro (pai, mãe, marido, filhos) o seu reconhecimento enquanto
mulher. A dominação masculina, para o sociólogo, as coloca neste
incessante estado de dependência:

A dominação masculina, que constitui as mulheres como


objetos simbólicos, cujo ser (esse) é um ser percebido
(percipi), tem por efeito colocá-las em permanente estado de
insegurança corporal, ou melhor, de dependência simbólica:
elas existem primeiro, pelo, e para, o olhar dos outros, ou
seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis. […]
Em consequência, a dependência em relação aos outros (e
não só aos homens) tente a se tornar constitutiva de seu ser.
(BOURDIEU, 2018, p. 96)

Segundo Bourdieu, a forma de neutralizar os mecanismos de


dominação masculina é a realização de um trabalho de mudança definitiva
de habitus, ou seja, uma revolução simbólica em toda a estrutura social,
principalmente onde o modelo patriarcal se reproduz: na Igreja, no Estado e
na Escola.

Conclusão
Em Desamparo, as personagens vivem à espera do amor, do
reconhecimento do outro para legitimarem-se. A presença do outro torna-se
essencial para sentirem-se completas e indispensáveis. Mesmo após
encontrar uma ocupação na vida e conseguindo sobreviver financeiramente,
as personagens femininas ainda sentem-se abandonadas, rejeitadas. A
solidão as atormenta. Beauvoir comenta:

Em certo sentido, toda a sua existência é uma espera, pois


está encerrada no limbo da imanência, da contingência e sua
justificação se acha sempre nas mãos de outrem; ela espera
as homenagens, a aprovação masculina; espera o amor, a
gratidão e os elogios do marido, do amante; espera deles
suas razões de existir, seu valor e seu próprio ser.
(BEAUVOIR, 2016, p. 420)

Jacinta, Clarisse e Vanessa amarguram-se com a ausência do outro. De


acordo com Cláudia Garcia e Luciana Coutinho, em seu estudo Os novos
rumos do individualismo e o desamparo de sujeito contemporâneo, o
sujeito moderno vê-se desamparado frente ao individualismo que é marca
da sociedade em que vivemos:

Na falta do outro como próximo, semelhante, e também do


Outro como sustentação simbólica, o sujeito vê-se às voltas
com um aumento excessivo de uma intensidade pulsional,
sentida como angústia, cenário que configura o que
entendemos como desamparo como face subjetiva da
errância típica do individualismo contemporâneo.
(GARCIA; COUTINHO, 2004, p. 134)

Em Desamparo, Jacinta busca, na entrega incondicional ao outro,


sentir-se amparada. No primeiro casamento, entrega-se a Álvaro como um
meio de fuga da realidade em que vive. Com Ramiro, segundo
companheiro, aceita humilhações constantes e mesmo assim, procura sentir-
se necessária, inclusive quando ele já se encontra em outro casamento. A
personagem Vanessa passa por constantes abusos morais e físicos de seus
companheiros, sujeitando-se a eles de forma masoquista. Em seu artigo, o
Feminino e seus destinos, Silvia Alexia Nunes reflete acerca da posição
masoquista da mulher:

Toda vez que o sujeito se encontra diante da força pulsional,


a experiência de desamparo é reeditada, tornando imperiosa
a necessidade de encontrar destinos possíveis, eróticos e
sublimatórios para regular a força das pulsões. Para Freud, é
a impossibilidade do sujeito de aceitar sua condição de
desamparo o motor da assunção de uma posição masoquista
tanto para homens quanto para mulheres, ou seja, diante do
desamparo, a busca desesperada de um outro a quem
oferecer seu corpo e sua alma é uma das saídas possíveis
para o sujeito. O sujeito, ao enganchar-se no outro,
estabelece uma relação de servidão como forma de tentar
evitar a dor do desamparo e afastar a angústia que lhe é
correlata. (NUNES, 2002 p. 55)

Como vemos, Inês Pedrosa em Desamparo, a partir de uma temática


diversificada e uma narrativa com múltiplas vozes, leva o leitor a pensar
sobre a dor, a velhice, o abandono, a culpa e a incansável busca do ser
humano por um rumo que lhe faça sentido. Jacinta, Raul e Clarisse buscam
no Outro um sentido à existência, como forma de escapar à solidão. Este
surge como um possível alento ao sofrimento, no entanto, um dos
narradores revela: “Morremos sempre sozinhos. Mesmo de mão dada com
a pessoa que mais amamos, os nossos dedos tornam-se de repente objetos
em arrefecimento progressivo, deixamos de estar ali” (PEDROSA, 2016,
p.119). Os narradores precisam encarar o desamparo e a finitude inerentes
ao ser humano. Apenas aceitando a sua incompletude e imperfeição, o
sujeito é capaz de transpor a dor do desamparo.

Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida,
volume 2. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a


violência simbólica. Tradução de Maria Helena Kuhner. 6ª ed. Rio de
Janeiro: BestBolso, 2018.

DUTRA, Vera Lúcia. O conceito de sublimação à luz de uma


perspectiva da feminilidade. In: BIRMAN, Joel (Org.). Feminilidades. Rio
de Janeiro: Contra Capa livraria, 2002.

GARCIA, Cláudia; COUTINHO, Luciana. Os novos rumos do


individualismo e o desamparo do sujeito contemporâneo. Psychê Revista de
Psicanálise. São Paulo, Volume 8, N°13, p. 125-140, junho de 2004.
Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psyche/v8n13/v8n13a11.pdf>. Acesso em:
20 abr. 2019.

NUNES, Silvia Alexim. O feminino e seus destinos: maternidade,


enigma e feminilidade. In: BIRMAN, Joel. Feminilidades. Rio de Janeiro:
Contra Capa livraria, 2002.

PEDROSA, Inês. Desamparo. São Paulo: LeYa, 2016.

PEDROSA, Inês. Escrever é destruir a solidão. Entrevista concedida a


Diogo da Costa Leal. Jornal de Notícias: 07 de março de 2015 (2015a).
Disponível em: <https://www.jn.pt/artes/interior/ines-pedrosa-escrever-e-
destruir-a-solidao-4439266.html>. Acesso em: 20 abr. 2019.

PEDROSA, Inês. Com a idade tem-se menos medo de tudo. Entrevista


concedida a Ana Maria Ribeiro. Correio da Manhã: 14 de setembro de
2015 (2015b). Disponível em:
<https://www.cmjornal.pt/cultura/detalhe/ines_pedrosa_com_a_idade_tem
_se_menos_medo_de_tudo>. Acesso em: 21 abr. 2019.

REAL, Miguel. Os dias da prosa. Jornal de Letras: edição de 18 de


fevereiro a 03 de março de 2015. Disponível em:
<http://www.inespedrosa.com/criticas/desamparo_jl.html>. Acesso em: 18
abr. 2019.
Adília Lopes e Angélica Freitas:
Poetisas em diálogo
Karine Ferreira Maciel

Sumário

Adília Lopes e a recepção brasileira


A partir do início dos anos 2000, a poetisa1 portuguesa Adília Lopes
ocupa um lugar de destaque na cena poética contemporânea no Brasil, seja
a partir da Antologia publicada em 2002 pela editora paulista Cosac &
Naify e pela carioca 7Letras, seja pela atenção que recebe na edição da
revista Inimigo Rumor nº 10, de 2001, que lhe dedica nada menos que a
publicação integral do livro O poeta de Pondichéry (1986), uma entrevista e
dois ensaios críticos. Além disso, a autora e os seus textos aparecem em
poemas de muitos poetas brasileiros contemporâneos: Marília Garcia, Alice
Sant’Anna, Ana Martins Marques, Lucas Viriato, Carlito Azevedo, entre
outros. Dentre estes autores, que citam textualmente a poetisa, Angélica
Freitas é a única que não mostra qualquer aspecto que possa ser associado
claramente como uma menção à (obra de) Adília Lopes, sendo estudada
aqui, portanto, por uma extrema semelhança temática, estilística e formal
com a poetisa portuguesa. Tais semelhanças são advindas de uma leitura
articuladora e provocadora desse diálogo.
1 Utilizaremos o termo “poetisa”, tantas vezes encarado como pejorativo, para designar as mulheres autoras de poesia. A eleição aqui leva em conta a superação do possível valor
depreciativo do termo e adota-o como feminino de poeta, sem nenhum juízo de valor. A escolha do termo é uma aproximação com a escrita de Adília Lopes, que o adota nos seus
poemas.

Os recursos de intertextualidade2 que adotaremos para discutir o


diálogo da poetisa portuguesa com Angélica Freitas é a aproximação sui
generis por estilo e conteúdo. Por estilo, entendemos a semelhança
estrutural e com os recursos de composição, tal qual o humor. Dessa forma,
temos a tipologia narrativa, que tanto Adília Lopes como Angélica Freitas
empreendem na sua poesia. Ou ainda a construção do poema-piada e da
escrita que opera através da repetição, seja da estrutura ou do vocábulo. Já o
diálogo através do conteúdo diz respeito às semelhanças temáticas. E aí
incluem-se as memórias, muitas vezes de infância; a alusão a personagens
familiares, principalmente as femininas, como a tia, a mãe, a avó; os
aspectos biográficos e o tema de uma vida sem grandes eventos.
2 Utilizamos esse conceito no seu sentido mais abrangente, tal como ele aparece em The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics: “Intertextuality refers to those
conditions of textuality which affect and describe the relations between texts, and in most respects is synonymous with textuality. It originates in the crisis of representation and the
absent origin that would guarantee meaning, centrality, and reference. Without an ultimate referent that would make possible the self-presence and meaning of a text, texts are by
definition fragments in open and endless relations with all other texts. […]” (THE NEW, 1993, p. 620)

Como aparato teórico da recepção (poética) de Adília Lopes no Brasil,


baseamo-nos nas teorias de estética da recepção de Hans Robert Jauss.
Quando pensamos na poesia de Adília Lopes dentro do cenário da poesia
brasileira, não conseguimos desvinculá-la da mesma vertente cotidiana,
circunstancial e permeada de humor que constitui a poesia contemporânea
feita no Brasil e presente já na poesia modernista e na geração marginal. E é
bem possível que a recepção positiva de Adília no Brasil se dê também por
uma questão de semelhança e reconhecimento. Jauss, teórico precursor da
estética da recepção, afirma que o efeito da recepção é extremamente
subjetivo e indeterminável, seja no plano individual, seja no coletivo. No
entanto, existem parâmetros que podem delinear o tipo de público de cada
obra:

[...] como em toda experiência real, também na experiência


literária que dá a conhecer pela primeira vez uma obra até
então desconhecida há um “saber prévio, ele próprio um
momento dessa experiência, com base no qual o novo de que
tomamos conhecimento faz-se experienciável, ou seja,
legível, por assim dizer, num contexto experiencial”.
Ademais, a obra que surge não se apresenta como novidade
absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos,
sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações
implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma
maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já
lido, enseja logo de início expectativas quanto a “meio e
fim”, conduz o leitor a determinada postura emocional e,
com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão
vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso –,
colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e
do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores.
(JAUSS, 1994, p. 11)

Diante disso, podemos afirmar que a obra de Adília Lopes atende a um


certo “horizonte de expectativa” (JAUSS, 1994, p. 11) dos leitores, críticos
e poetas da poesia contemporânea brasileira, já que vai ao encontro de uma
memória de poesia cotidiana, permeada do discurso popular, mas sem
prescindir da tradição.

Adília Lopes e Angélica Freitas


Angélica Freitas trava diálogo com Adília Lopes através do que
denominamos estilo e conteúdo. A poesia dessa autora se relaciona com a
de Adília na incidência de determinadas temáticas e no que diz respeito a
um estilo prosaico, que por vezes não vai além de uma afirmação objetiva e
quase banal. Em Sete rios entre campos (1999) aparece o poema: “A minha
cara / é uma caraça / que o tempo-traça / traça” (LOPES, 2014, p. 365), que
pode ser visto ao lado de um poema de Rilke Shake (2007), de Angélica
Freitas:

AS BRUXAS de bruxelas
batem panelas
pra espantar as baratas tontas
que vivem nas pontas
dos sapatos delas
(FREITAS, 2007, p. 26)

Os poemas aproximam-se tanto pela brevidade quanto pela maneira


como trabalham a linguagem. Adília a reinventa em um jogo fonético-
morfológico, através da derivação cara / caraça, da ambivalência do termo
traça, ora substantivo, ora verbo. Um trabalho semelhante ao de Angélica
Freitas, que além da rima fácil, emprega aliterações plosivas: bruxa /
bruxelas; batem / baratas; panelas / pontas. Ambas num trabalho muito
objetivo de enunciação, seja através da narração (no presente) ou da
descrição.

A narração que aparece nesse poema de Angélica Freitas é também


uma marca entre as duas autoras. Ambas revelam a predisposição de contar
histórias, tal como afirma Flora Süssekind sobre Adília, no posfácio “Com
outra letra que não a minha”, da Antologia (2002) da poetisa portuguesa:
“Os poemas de Adília Lopes quase invariavelmente contam histórias”
(SÜSSEKIND, 2002, p. 203). E podemos notar, por exemplo, com um
poema tal qual “Memórias das infâncias” de O decote da dama de espadas
(1988):

Gostávamos muito de doce de framboesa


e deram-nos um prato com mais doce de framboesa
do que era costume
mas
a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa
para nosso bem
porque estávamos doentes
esconderam colheres do remédio
que sabia mal
o doce de framboesa não sabia à mesma coisa
e tinha fiapos brancos
isso aconteceu-nos uma vez e chegou
nunca mais demos pulos por ir haver
doce de framboesa à sobremesa
[...]
(LOPES, 2014, p. 96)

É interessante notar como o tom narrativo, marcado pela diferença nos


tempos verbais – pretérito no poema de Adília e presente no de Angélica –,
e a recuperação da infância aparecem também em um outro poema de Rilke
Shake:
FLIPERAMA às margens do tâmisa
Jogo basquete indoors com minhas irmãs

No primeiro arremesso
– não meço bem a distância
entre a mão e a cesta –
a bola some atrás do aparelho

minhas irmãs gargalham


eu também

a bola sumiu atrás do aparelho

e então é a vez delas


e elas jogam e acertam e jogam de novo
e da máquina sai uma tripa de bônus

que depois trocamos por balas


ou um brinquedinho –
não lembro
(FREITAS, 2007, p. 10)

Esses poemas trazem à tona também a questão de uma poesia de


memória da infância e da família, que não necessariamente implica um
pacto biográfico. A forte presença de personagens como as tias, a avó, a
mãe, é ainda uma outra aproximação: “[...] não foi culpa minha / se porém
sempre por desobediência / minha mãe me privou da sobremesa” (LOPES,
2014, p. 100). No mesmo caminho, um poema de Angélica também trata, se
não o castigo, talvez a iminência dele, através de referências a essas
mesmas personagens:

Aos onze anos


atrás da casa da minha avó
na colônia de pescadores z-3
eu fumava um cigarro gol comprado
avulso num boteco
onde a moça conhecia a minha mãe
a moça me olhou atravessado
[...]
(FREITAS, 2007, p. 30)

Esse poema de Angélica invoca Adília, ao trazer a ação secreta


também presente em “No more tears”, de Adília Lopes: “fechada à chave na
casa de banho / da casa da minha avó / onde além de mim só estava eu”
(LOPES, 2014, p. 125). E se a solidão do poema de Adília contrasta com o
segredo coletivo do poema de Angélica Freitas: “eu minha irmã e uma
prima / demos nossas primeiras baforadas” (FREITAS, 2007, p. 30), é ainda
através de outro texto que ele, de novo, dialoga com Angélica.

Dentro do campo da publicidade, da sociedade de mercado e dos


inúmeros slogans e apelos visuais a ela relacionados, temos o poema
intitulado “a mina de ouro de minha mãe & de minha tia”, também do livro
Rilke Shake:

se chamava
ilha da feitoria
ou ilha do meio
onde as duas vendiam
cosmésticos avon
[...]
(FREITAS, 2007, p. 31)

Visualmente, o título do poema de Angélica já funciona como uma


patente comercial, o “minha mãe & minha tia” pode ser colocado ao lado
do “Johnson & Johnson” do poema de Adília. Os poemas se aproximam
pelo mesmo cenário publicitário, os cosméticos avon ao lado do xampu
Johnson & Johnson; pelo mesmo aspecto narrativo; e pela semelhança na
eleição das “personagens”: mãe e avó, mãe e tia.
No segundo livro de Angélica, Um útero é do tamanho de um punho,
além da repetição como recurso e da continuidade de alguns pontos de
encontro do livro anterior, como o dito popular, a narração, as anedotas,
aparecem semelhanças com Adília no que diz respeito a padrões estéticos.

Dessa forma, versos como: “uma mulher gorda / incomoda muita


gente” (FREITAS, 2013, p. 16) poderia ser mote de um outro poema, esse
de Adília Lopes, intitulado “Body art?”, do livro Sete rios entre campos
(1999):

Com os remédios
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
é o menino
nos transportes públicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre
(LOPES, 2014, p. 338-339)

Tanto em Angélica, como em Adília, essa sociedade consumista, em


acelerada busca de padrões de beleza, é cruel com aqueles à sua margem. A
poesia faz-se, portanto, um momento flagrante dessa crueldade: “eu me
sinto tão mal / eu vou lhe dizer eu me sinto tão mal / engordei vinte quilos
depois que voltei do hospital” (FREITAS, 2013, p. 41). Ou nas palavras de
Adília, ainda em “Body art?”: “Detesto / o sofrimento” (LOPES, 2014, p.
338-339)

No entanto, a defesa dos humilhados e sofredores é quase um papel


ético na poesia de Adília. A sua Mariana Alcoforado de O marquês de
Chamilly (1987), eternamente a esperar resposta para suas cartas; aquela
Maria Cristina Martins que não casou com o Guilherme, cansada de “contar
anedotas / ou a sua vida / a si mesma” (LOPES, 2014, p. 177). Esses
personagens adilianos, com a vida suspensa, à espera de um acontecimento,
encontram um equivalente na poesia de Angélica Freitas, que elege como
heroína do seu poema “[...] uma mulher muito feia / extremamente limpa /
que levou por muitos anos / uma vida sem eventos” (FREITAS, 2013, p. 12)

Considerações finais
A partir desse breve trabalho comparativo, é possível perceber
diversos pontos de contato entre as autoras Adília Lopes e Angélica Freitas.
As aproximações entre os seus poemas remetem a artifícios tão semelhantes
no que diz respeito à estrutura, ao ritmo e ao conteúdo que ao longo desse
processo dialógico, muitas vezes os versos das autoras confundem-se em
uma mesclagem advinda das características similares entre elas. O estudo
desse diálogo é um acréscimo, sobretudo, à recepção que é dedicada a
Adília Lopes no Brasil, a partir do momento que elege Angélica Freitas,
uma autora que não cita diretamente a poetisa portuguesa como os outros
poetas contemporâneos brasileiros citados, mas que muito acrescenta no
estudo do trabalho receptivo de Adília Lopes no Brasil.

Referências
FREITAS, Angélica. Rilke Shake. São Paulo, Rio de Janeiro: Cosac
Naify, 7Letras, Col. Ás de Colete, 2007.

_____. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify,


2013.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à


teoria literária. Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
Disponível em:
<https://ufprbrasileiraluis.files.wordpress.com/2015/02/jauss-arquivo-
melhor.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2019.

KLOBUCKA, Anna M. “E vários os caminhos (sobre Adília Lopes e


Ana Luísa Amaral)”. In: O formato mulher: a emergência da autoria
feminina na poesia portuguesa. Coimbra: Angelus Novus, 2009, p. 261-
331.

LOPES, Adília. Dobra. Poesia reunida 1983-2014. Lisboa: Assírio &


Alvim, 2014.

MEENDINHO. “Sedia-m'eu na ermida de Sam Simion”, In: LOPES,


Graça Videira; PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Editora
Nova Aguilar S.A., 2008.

SILVA, Sofia Maria de Sousa. Reparar brechas: a relação entre as artes


poéticas de Sophia de Mello Breyner Andresen e Adília Lopes e a tradição
moderna. 118 p. Tese (Doutorado em Letras). Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007.

SÜSSEKIND, Flora, “Posfácio”, In: LOPES, Adília. Antologia. São


Paulo, Rio de Janeiro: Cosac e Naify, 7 Letras, 2002, p. 201- 224.

THE NEW Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. Princeton,


New Jersey: Princeton University Press, 1993.
World literature hoje: Por um
diálogo transnacional entre
culturas
Larissa Moreira Fidalgo

Sumário

Considerando que toda teorização constitui-se como um modo de ser


histórico, uma reescrita em que aparecem relações entre as formações
discursivas e domínios não discursivos, o estudo que desenvolveremos
caracteriza-se, sobretudo, como um posicionamento sobre o que significa
fazer um estudo comparado em um cenário marcado pela reemergência da
world literature dentro dos processos de transnacionalização da cultura e da
literatura. Se levarmos a sério o aparente consenso entre aqueles que, na
herança de um close reading americano, transferiram seu escritório para as
salas de controle alfandegário, ansiosos pela descoberta dos novos textos a
circularem em seu território, poderíamos dizer, na esteira de Franco Moretti
(2000) e de Zhang Longxi (2015), que o debate não é bem sobre o que
devemos fazer, mas como.

Ao direcionarmos nossa atenção para a Longman Anthology of World


Literature e para a Norton Anthology of World Literature, tomadas como
ponto de partida de nossas indagações, veremos como ambas ainda
descrevem um sistema desigual de legitimação e de configuração estética
calcado numa divisão eurocêntrica entre o “dentro” e o “fora”. Primeiro,
pensemos na já conhecida dificuldade que enfrentamos na definição do que
poderia ser a literatura latino-americana. Fora do ambiente acadêmico, esse
rótulo é utilizado na maioria das vezes para fazer referência à literatura
hispano-americana, ficando a produção do Brasil praticamente ausente
desse quadro. Entretanto, basta lembrarmo-nos da literatura “chicana”, das
produções em língua francesa do Caribe e do Canadá e da literatura
“indígena”, para ficarmos com poucos exemplos. Se indagássemos qual
espaço foi reservado para tais produções literárias, provavelmente
receberíamos inúmeras respostas ainda situadas na ideia de um limite
totalizante.

A segunda observação é o resultado de uma análise quantitativa.


Consideremos as duas principais antologias de world literature, a Longman
Anthology of World Literature, publicada em 2004 e editada por Damrosch,
e a Norton Anthology of World Literature. Ao listarmos os escritores da
“literatura latino-americana” que compõem tais volumes, obtivemos os
seguintes dados: na Longman, apenas quinze nomes conseguiram entrar
para o seleto rol da world literature, tais como Jorge Luis Borges, Octavio
Paz, Alejo Carpentier, Pablo Neruda, Gabriel García Marques, Domingo
Sarmiento, Esteban Echeverría, Rubén Dario, Julio Cortázar, César Vallejo,
Oswald de Andrade, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade,
Clarice Lispector e Derek Walcott; na Norton, tivemos Machado de Assis,
Clarice Lispector, Aimé Césaire e Derek Walcott. Indo um pouco além, é
interessante recuperarmos o prefácio do Instructor’s manual to accompany
The Longman Anthology of World Literature1 (2009), escrito por Damrosch
e disponível online:
1 Disponível em: <http://wps.ablongman.com/wps/media/objects/7082/7252683/LAWL_V1_IM.pdf>. Acesso em: 22 mai. 2018.

A distinctive feature of our Anthology is the grouping of


works in Perspectives section, and as Resonances between
texts. Together, these groupings are intended both to set
works in cultural context and to link them across time and
space. These groupings have a strategic pedagogical function
as well. We have observed that in other anthologies, brief
author listings rarely seem to get taught. Added with the
laudable goal of increasing an anthology’s range and
inclusiveness, the new materials too often get lost in the
shuffle. Our groupings of works cluster shorter selections in
ways that make them more likely to be taught, creating a
critical mass of readings around a compelling literary or
social issue and economically providing cultural context for
the major works around them. (DAMROSCH, 2009, p. xi-
xii)
Nessa lógica hierarquizante de “Ressonances between texts” ou de
“fontes e influências”, o que vimos foi basicamente Aimé Césaire como
parte de uma resonance de Shakespeare. Na Norton, por outro lado, a
maioria do material relacionado à América Hispânica encontra-se agrupada
em subseções como “The encounter of Europe and the New Word” ou
“Church and Self”. Assim, mergulhando no cenário contemporâneo
marcado por intensos debates em torno do multiculturalismo e da
globalização, gostaremos de pensar sobre como podemos interpretar essas
escolhas e abordagens. Talvez Edward Said já tenha nos oferecido um
possível ângulo de observação quando disse que:

os discursos universalizantes da Europa e Estados Unidos


modernos, sem nenhuma exceção significativa, pressupõem
o silêncio, voluntário ou não, do mundo não-europeu. Há
incorporação; há inclusão; há domínio direto; há coerção.
Mas muito raramente admite-se que o povo colonizado deve
ser ouvido e suas ideias conhecidas. (SAID, 2005, p. 86)

Se as teorias também viajam, como diria Edward Said (2000),


podemos dizer, então, que nosso estudo acerca da world literature se
constituirá como viagens teóricas cuja rota de navegação não será mais
traçada em torno da oposição entre transnacionalidade e nacionalidade ou
entre nacionalismo e globalização, mas sim em termos de uma
planetaridade compartilhada, como bem definiu Gayatri Spivak (2003). É
dentro desse quadro representativo que a proposta de abordagem de
Damrsoch (2003), para quem a world literature pode ser considerada como
uma janela que nos possibilita ver as mais diversas paisagens literárias
disponíveis, encontra seus limites e alcances. Lembrando-nos de que nas
duas Antologias mencionadas a visão que tivemos foi de uma imagem
estancada da geopolítica latino-americana, podemos dizer que todo
processo de abertura para o mundo envolve seleção, organização e
combinação dos elementos segundo critérios subjetivos.

Obviamente, não se trata de negarmos as possibilidades transnacionais


de trocas e intercâmbios culturais que, de uma forma ou de outra, são
construídas pela world literature, mais especificamente no seu contexto
atual. Trata-se, sobretudo, de olharmos com desconfiança para o mundo que
é representado por essa disciplina, questionando o modo como tal re-a-
presentação é construída. Num contexto de intensas articulações entre os
Estados-nação e as estruturas transnacionais, a pergunta principal é: what is
world literature? Afinal, como um texto se insere efetivamente no contexto
da world literature? Como podemos caracterizar as relações estabelecidas
entre os trabalhos da world literature e as literaturas nacionais, que
continuam em voga mesmo depois de Goethe ter anunciado sua
obsolescência? Estaríamos negociando um novo espaço de legitimação ou
apenas identificando algumas das funções de uma economia textual
existente?

Compreendendo o fenômeno da globalização como uma rede de


estruturas e territórios em que o par local-global é “desconstruído”,
Damrosch defende que a world literature constitui-se, sobretudo, como um
modo de circulação e de leitura, um modo que é aplicável tanto a obras
individuais quanto a conjuntos de textos mais amplos temporal e
geograficamente:

I take world literature to encompass all literary works that


circulate beyond their culture of origin, either in translation
or in their original language [...] In its most expansive sense,
world literature could include any work that has ever reached
beyond its home base [...] a work only has an effective life as
world literature whenever, and wherever, it is actively
present within a literary system beyond that of its original
culture. (DAMROSCH, 2003, p. 4)

Para Damrosch (2003), a teorização sobre tal dinâmica implica, antes


de mais nada, a consideração de dois aspectos fundamentais, que serão a
base a partir da qual os pilares da (sua) world literature serão erigidos.
Segundo o pesquisador, esse conjunto de forças é resultado de um duplo
processo: primeiro, um texto precisa ser lido como literatura; em segundo
lugar, ele precisa circular em um mundo linguístico e cultural além do seu
ponto de origem. Nessas condições de mobilidade, que são constituídas por
interpretações simbólicas mediadas pelo paradigma da globalização e do
cosmopolitismo − e de seus sistemas de trocas e transferências desiguais −,
observamos que a participação de uma obra na esfera da world literature
será determinada pelo seu deslocamento ao longo de um ponto limiar ao
outro ao longo de um dos seguintes eixos: literário ou mundano. Como
sugerido por Damrosch:

Over the centuries, an unusually shifty work can come in and


out of the sphere of world literature several different times;
and any given point, a work may function as world literature
for some readers but not others, and for some kinds of
reading but not others. (DAMROSCH, 2003, p. 6)

Como essas viagens são, portanto, condicionadas historicamente, as


sempre novas relações que as obras estabelecem com o mundo ao seu redor
(leitor, crítica, etc.) não são determinadas pelo desdobramento de alguma
lógica interna em si, mas surgem através das complexas dinâmicas de
contestação e revisão cultural. Assim, considerando que um texto da
literatura mundial articula-se de maneira diferente ao ser recebido em um
novo contexto cultural e que, portanto, longe de sofrer uma perda de
autenticidade, ele pode ganhar de muitas maneiras2, Damrosch defende que
o estudo desse movimento deve ser pautado em abordagens
fenomenológicas do objeto artístico, que evidenciem os processos de
circulação e tradução circunscritos nesses deslocamentos:
2 “As it moves into the sphere of world literature, far from inevitably suffering a loss of authenticy or essence, a work can gain in many ways.” (DAMROSCH, 2003, p. 6)

works of world literature take on new life as they move into


the world at large, and to understand this new life we need to
look closely at the ways the work becomes reframed in its
translations an in its new cultural contexts. (DAMROSCH,
2003, p. 24)
Desse modo, se para Jacques Rancière (2009) há na base da política
uma estética primeira, poderíamos inverter sua pressuposição e dizer que na
base de toda estética há uma política primeira que não pode ser
negligenciada. Isso significa dizer que no mundo da world literature não é
apenas o corpo social que fala, mas o próprio discurso literário que,
enquanto ser-histórico se constrói e reconstrói nessa dinâmica ininterrupta.
Como bem observou Emily Apter:

World Literature paradigms in general, either reinforces old


national, regional, and ethnic literary alignments or projects
a denationalized planetary screen that ignores the deep
structures of national belonging and economic interest
contouring the international culture industry. World
Literature remains oblivious to the systematic critique of
globalized literary studies contained in Gayatri Chakravorty
Spivak’s concept of “planetarity”. (APTER, 2013, local do
Kindle: 3402-3406)

Recuperando a definição de Peter Osborne (apud APTER, 2013, local


do Kindle 595), para quem a intradutibilidade pode ser definida como “the
conceptual differences carried by the differences between languages, not in
a pure form, but via the fractured histories of translation”, Apter aponta que
o reconhecimento dos limites da referencialidade pode nos conduzir ao
necessário questionamento dos sistemas logocêntricos de representação. Na
contramão de Damrosch (2003), para quem a métrica da circulação é
determinada pelas compensações tradutórias das diferenças culturais, Apter
(2013) nos mostra que o plurilinguismo pode e deve ser aceito como um ato
de resistência à ideia de uma universalidade que apenas dissimula a
pertença de determinados grupos a espaços distintos em uma rede global
homogeneizante.

Assim como não há “singular ‘world’ per se but only a changing


assemblage of localities that coalesce into globalities of many kinds, each
situated by the transverse networks of languages, region, area, and moment
that simultaneously shape a single text and like other” (COOPPAN, 2012,
local do Kindle: 5371), podemos dizer que não existe world literature fora
da Literatura Comparada. Longe de ser apenas um conjunto de textos
provenientes de sistemas literários distintos, ou que circulam para além das
suas fronteiras nacionais, acreditamos que a world literature deve
corresponder a um ethos de acolhida da alteridade, no sentido em que
Jacques Derrida (2003) usa a ideia de “hospitalidade” para falar sobre o
reconhecimento do Outro dentro de uma relação interativa.

E é justamente nas implicações éticas e políticas desse processo de


“abertura” para o mundo que reside a presente proposta de estudo da world
literature. Ao invés de ser apenas um conjunto de textos provenientes de
sistemas literários distintos – ou que circulam para além das suas fronteiras
nacionais –, acreditamos que a world literature deve corresponder a um
ethos de acolhida da alteridade, uma negociação entre o familiar e o
estrangeiro, no sentido em que Jacques Derrida (2003) usa a ideia de
“hospitalidade” para falar sobre o reconhecimento do Outro dentro de uma
relação interativa e transversal.

A partir desse posicionamento traremos à baila o tema da


hospitalidade, como desenvolvido em Anne Dufourmantelle convida
Jacques Derrida a falar da hospitalidade (DERRIDA, 2003). Dessa obra,
selecionaremos as ideias que julgamos serem mais relevantes para o
objetivo desse trabalho. Dessa forma, nossas reflexões mais pontuais
aparecerão como interferências ao longo da apresentação do texto de
Derrida. Uma vez que a relação entre os textos se dá através do
questionamento de uma ordem estética logocêntrica, a crítica que chega não
deve reduzir as obras à clausura da origem. Diante da perda de centro
estável e das referências intertextuais agora ligeiramente borradas, as obras
devem ser compreendidas a partir da multiplicidade de conceitos que
evocam. Se o estrangeiro ao direcionar sua atenção para o hóspede também
oferece uma possibilidade de compreensão do outro pelo outro, aquilo que
antes fazia parte da especificidade de cada texto isoladamente agora impõe-
se como marca de legibilidade:

To become readable it has to be divided, to participate and


belong. Then, it is divided and takes its part in the genre, the
type, the context, meaning, etc. It loses itself to offer itself.
Singularity is never one-off [ponctuelle], never closed like a
point or a fist [poing]. It is a mark [trait], a differential mark
and different from itself: different with itself. Singularity
differs from itself, it is differed [se diffère] so as to be what it
is and to be repeated in its very singularity. (DERRIDA,
1992, p. 68)

Considerando que o regresso ao passado somente é assegurado pelos


rastros da escrita e que a língua dos textos sofre constantes modificações
conforme eles alcançam novos espaços, abordar comparativamente os
textos da world literature é, antes de tudo, estabelecer um jogo conceitual
que elimine a ideia de “origem” absoluta e que se estabeleça
historicamente. Da mesma forma que o estrangeiro observa de longe o lugar
de imobilidade em que estão “enterrados seus mortos”, e aqui pensamos no
Anjo da História de Walter Benjamin (2011), acreditamos que ler world
literature é ler anacronicamente. Ao invés de buscar um sentido único e
duradouramente possível, é fazer com que

cada movimento da significação não seja possível a não ser


que cada elemento dito “presente”, que aparece sobre a cena
da presença, se relacione com outra coisa que não ele
mesmo, guardando em si a marca do elemento passado e
deixando-se já moldar pela marca da sua relação com o
elemento futuro, relacionando-se o rastro menos com aquilo
a que se chama presente do que aquilo que se chama
passado, e constituindo aquilo a que chamamos presente por
intermédio dessa relação mesma com o que não é ele
próprio: absolutamente não ele próprio, ou seja, nem mesmo
um passado ou um futuro como presente modificados.
(DERRIDA, 1991, p. 45)

Desse modo, objetivaremos perceber que a relação que deve ser


estabelecida entre os textos da world literature é, antes de mais nada, aquela
que envolve a suspensão de dualismos hierárquicos e a descentralização das
ideologias tradicionais da noção de sujeito.

Referências
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Jersey: Princeton University Press, 2006. Edição do Kindle.

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2012. Edição do Kindle.

DAMROSCH, David. What is world literature? New Jersey: Princeton


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______. How to read world literature. UK: Wiley-Blackwell, 2009.

______. “General Editor’s Preface”. In: Instructor’s Manual to


accompany The Longman Anhology of World Literature. Second edition.
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______. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da


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D’HAEN, Theo; DAMROSCH, David; KADIR, Djelal. The Routledge


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JOBIM, José Luís. Literatura e cultura: do nacional ao transnacional.


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MORETTI, Franco. “Conjectures on World Literature”. In: New Left


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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34,


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______. Traveling Theory. In: The Edward Said Reader. New York:
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SPIVAK, Gayatri. Death of a Discipline. New York: Columbia


University Press, 2003.
Sintomas de uma crise: O corpo
como um lugar distópico em O céu
dos suicidas
Luisa de Almeida Lírio Pinto

Sumário

“Os depressivos, cujo número parece aumentar na


proporção direta dos imperativos de felicidade, são
incômodos na medida em que questionam esse projeto”
(Maria Rita Kehl)

Introdução
Ricardo Lísias (1975-) é autor paulistano de diversas narrativas
ficcionais. Ainda novo, estreia com O cobertor de estrelas (1999), um
romance em terceira pessoa. Com Anna O. e outras novelas (2007), o autor
reúne duas publicações antigas, Capuz (2001) e Dos nervos (2004), e mais
três narrativas até então inéditas, que o leva à final do Prêmio Jabuti em
2008. No entanto, após a morte de seu amigo de faculdade, André, sua obra
muda, e ele começa a incluir dados referenciais, como seu nome próprio, os
nomes das pessoas que ele conhece, agora usando a primeira pessoa do
singular. Dessa forma, cria-se, em sua literatura, uma narrativa de tom mais
confessional, que joga com os limites entre o real e a ficção. O presente
trabalho trata de uma de suas obras com tais características, O céu dos
suicidas (2012), e o faz em uma abordagem que discute os elementos
distópicos presentes nessa obra como sintoma de uma crise social,
focalizando a depressão, as manifestações depressivas, o isolamento das
personagens, etc.

A distopia é um gênero discursivo que faz sucesso nos dispositivos


culturais contemporâneos. Para Jill Lepore (2012) estamos na “era de ouro
para a ficção distópica”, um tipo de ficção marcado pelo pessimismo
radical, na qual as narrativas são uma especulação do que pode acontecer no
futuro. Elas são uma resposta à utopia, uma anti-utopia. Os clássicos
distópicos como Nós (1924) de Zamyatin e 1984 (1949) de Orwell são
construídos geralmente a partir da experiência em regimes totalitários, ou
em situações de polarização política, de crises econômicas, de sistemas de
vigilância e controle, de problemas ambientais graves gerados pelo
capitalismo tardio, de fundamentalismos religiosos, entre outros – situações
essas que estão em alta ultimamente na contemporaneidade. Ou seja,
estamos em uma época com tantos graves problemas que se torna difícil
pensar e, até mesmo, acreditar no futuro.

Embora não se enquadre totalmente no gênero da ficção distópica


tradicional, o romance autoficcional O céu dos suicidas (2012) apresenta
um personagem-narrador inconsequente, que não parece ter em vista o
futuro, marcado pelo isolamento advindo da doença mental. É uma obra que
aborda o tema do trauma, da depressão, do suicídio e também, de maneira
discreta, a invisibilização desses problemas mentais.

Resumidamente, a trama está centrada em Ricardo, que, ao perder seu


amigo de faculdade, André, sente o peso da culpa por não o ter ajudado e,
assim, mudado o destino trágico do amigo. A partir daí, ele entra em uma
jornada a lugares do passado, como sua antiga faculdade, e até mesmo ao
Líbano (país no qual sua família se origina), a fim de dar sentido à (sua)
história. Essa busca de sentido vem acompanhada, também, tanto de uma
inquietação quanto da crença religiosa de um suicida não poder ir para o
céu. Ele, como denota o título, está também em busca de redenção para o
amigo.

Considerando-se que os grandes avanços tecnológicos do homem


levaram o mundo global a criar utopias sobre melhorias na qualidade de
vida, principalmente com o advento das mídias de massa, que transformam
a felicidade em um modelo de vida ou em um estado natural do homem –
faz-se necessário pensar o outro lado da moeda. Pois a realidade que se
apresenta parece ser o contrário da utopia capitalista de viver uma vida
inteiramente feliz, devido ao aumento da expectativa e da qualidade de
vida. O diagnóstico contemporâneo indica que essa utopia não apenas
falhou, mas revela-se impossível. Vive-se hoje em um contexto de
infelicidade e de epidemia de doenças mentais, tal como a depressão, cujo
efeitos são o isolamento (espontâneo ou forçoso) desses corpos adoentados.

É nesse sentido que pretendo investigar a obra de Ricardo Lísias, a fim


de observar o corpo enquanto local (social) para a depressão, em
contraponto a uma sociedade que cultua a felicidade como um ideal. Dessa
forma, focalizo o personagem Ricardo e seus comportamentos, e o que se
sabe sobre a tia eremita e seu amigo falecido. Vou tratar dos seus corpos
como sintoma de uma época e questionar se, na forma distópica abordada,
se trata de uma estética de resistência ou de submissão aos problemas do
mundo contemporâneo.

Os objetivos do presente artigo são, portanto: 1) Discutir a obra de


Lísias, relacionando-a à crise da felicidade; 2) Considerar quais são os
corpos em crise na obra, evidenciando os elementos distópicos, a depressão,
em oposição ao que se considera ser a felicidade; 3) Tratar da distopia no
plano do corpo.

Assim, como método de análise, discuto a depressão na obra de Lísias


a partir das reflexões de Maria Rita Kehl, especialmente em seus livros
Tortura e sintoma social e O tempo e o cão: a atualidade das depressões.
Com isso, proponho que a distopia aparece nesses corpos depressivos, esses
atuando como sintoma de uma época de crise. Essa análise será feita através
dos personagens Ricardo, André e sua tia. Também irei abordar a questão
da felicidade, em contraponto, a partir de O mal-estar na civilização de
Freud e No mesmo Barco de Sloterdijk.

Da Utopia ao Suicídio
Ao considerar distopia como um lugar distorcido, isto é, sendo um
lugar de dor, um lugar ruim, em oposição à utopia, não se pode ignorar que
o personagem principal de O céu dos suicidas, Ricardo, está exatamente
nesse lugar. Ou melhor: seu corpo, enquanto sua morada, isto é, enquanto
local, é o que machuca, o que oprime. O lugar em questão é o do doente.
Maria Rita Kehl, ao falar da ditadura militar, tortura e uma cultura de
violência, afirma que

Por vezes a doença, sobretudo a chamada doença mental,


não passa de um fragmento do real, um pedaço excluído da
cultura – e o doente é seu “cavalo”, como se diz no
candomblé. O doente é o lugar (social) onde a doença
encontrou uma brecha para se manifestar. (KEHL, 2019, pos.
109)

Levando em consideração essa tese, pode-se pensar a doença mental e


sua relação com a sociedade de mercado, visto que com o aparecimento das
mídias de massa e da publicidade, há uma exposição maior de certos
valores, como sucesso, riqueza, e principalmente a felicidade como modelo
de vida. Há, porém, uma contradição. Essa promessa de vida feliz é
impossível devido às circunstâncias do nosso próprio funcionamento. Freud
já observara que os homens comuns “querem ser felizes e assim
permanecer” (FREUD, 2019, pos. 219). Só que esse desejo, como ele
aponta, é improvável de se realizar, uma vez que a felicidade por uma
questão da nossa constituição psíquica é “possível apenas como
manifestação episódica” (FREUD, 2019, pos. 222). E, considerando-se que
a constituição psíquica é indissociável do Estado e da sociedade, pode-se
pensar se o sistema socioeconômico vigente produz frustrações e
infelicidade para vender o que se considera uma vida feliz. Isso nos inclina
a problematizar uma cultura que incentiva, a partir do consumismo e do
capitalismo, a criar ilusões falsas a respeito da felicidade.

Segundo Berardi (2019), todas as utopias em que a sociedade moderna


acreditou permaneceram sendo sonhos distantes e, em certa medida,
pesadelos. Ele nos lembra que toda a felicidade prometida que viria com o
futuro e o progresso não foi cumprida. Então o que nos restou de toda a
técnica e avanços advindos da civilização? A conexão global, as crises, a
descrença, a depressão. Mesmo os grandes feitos do homem na ciência, nas
artes, na técnica, em geral, não foram capazes de nos deixar completamente
felizes, como nos lembrou Freud. As utopias propositivas a partir desses
feitos foram questionadas, distorcendo-se em uma perspectiva obscura. Não
é à toa que esses feitos também contribuíram para o contexto de descrença
no futuro em que estamos vivendo no mundo globalizado. Talvez porque a
felicidade seja mais complexa do que aquilo em que o senso comum
acredita, por grande influência da mídia e da propaganda.

Ainda remetendo a uma ideia de Freud, pode-se dizer que todo homem
nasce com a existência prévia de um Estado, que determina um conjunto de
regras e valores. Também se pode dizer que o homem tem aspirações e
desejos a partir desse sistema, em que está inserido. A utopia aparece a
partir disso. É um desejo, um sonho de mundo possível. Porém, ela não é
meramente um sonho. “É um lugar que não existe” (BERARDI, 2019, p.
10.) Mais que isso, é uma força que propõe possibilidades de um lugar
melhor, que ainda não existe. “A imaginação utópica trata de encontrar os
meios através dos quais aquilo que é interior ao homem venha para o
exterior, fazendo com que este se assemelhe a aquele” (BERARDI, 2019, p.
11). Mas isso não quer dizer que aquilo que é interior ao homem seja
apenas uma mera subjetivação individual, pois a utopia “se nutre dos
fatores objetivos produzidos pela tendência social da época, guia-se pelas
possibilidades objetivas e reais do instante” (BERARDI, 2019, p. 9). Então,
se a utopia é esse lugar que não existe, essa “proposição de mundo melhor”,
a distopia é justamente a distorção disso. A distopia não propõe: ela avisa
(ou recria) as consequências possíveis da utopia.

Pode-se considerar, então, que a obra de Ricardo Lísias é como um


sintoma. Há três personagens nessa obra que têm dificuldades de
pertencimento ao Grande, como diria Sloterdijk (1991). Primeiro a tia, que,
até onde sabemos, não soube lidar com uma desilusão amorosa, virou
eremita, isto é, isolou-se em uma comunidade de monges. Ela se afasta
completamente da família e, portanto, dos valores político-sociais do
mundo ocidental:

Jamais esqueci o olhar de desolação da minha mãe ao me


contar que a irmã, naquele momento ela própria uma monja,
tinha avisado que o mundo sofreria uma grande catástrofe, e
talvez acabasse na entrada do século XXI. (LÍSIAS, 2012, p.
17)

Ela também não volta para o Brasil e já não liga mais no Natal, como
conta Ricardo. “Fazendo as contas agora, acho que a última vez que minha
tia esteve no Brasil foi há uns dez anos. Até onde sei, atualmente ela mal
telefona no Natal.” (LÍSIAS, 2012, p.14). Apesar de não sabermos muito
sobre a personagem, sabemos que ela se afastou, que não mantém muito
contato, que está, de certa forma, isolada, e que talvez esteja buscando um
sentido para a própria vida. Ricardo não lembra dela à toa, não se trata
apenas de um parente de quem ele gosta; antes, as atitudes dela lembram
um pouco as dele. E, mesmo Ricardo afirmando não ser como a tia, não
estar em busca de um sentido, suas ações dizem o contrário. Ele diz, ao
viajar para a cidade onde tivera aulas junto com seu amigo: “Também não
vim atrás da minha própria história. Não sou minha tia desiludida. Mas
andei pelo campus.” (LÍSIAS, 2012, p. 43). A conjunção adversativa “mas”
esclarece a contradição. Ricardo viaja, assim como a tia, à procura de algo,
ele também se afasta da família no início do romance, com suas crises e seu
humor ácido, e torna-se um ser solitário.

Outra personagem que conhecemos pouco, através de Ricardo, é


André, um indivíduo em depressão que cometeu suicídio. Ele foi o motor
de todo o processo de escrita, de todo o relato da memória dessa época por
Ricardo. André passa, até onde sabemos, por duas clínicas para tratar dos
problemas de saúde mental, e se trata com auxílio de remédios. Ele também
tenta morar um tempo junto a Ricardo, mas seus hábitos acabam
atrapalhando a estadia.

Não consegui dormir direito. O André fez barulho a noite


inteira. Como os remédios davam muita sede, ele ia toda
hora à cozinha e aproveitava para ligar a máquina de café.
Tomou banho duas vezes e, a certa altura, assistiu televisão e
depois mexeu nas estantes. Bem cedo, arrastou alguns
móveis da sala e depois saiu. (LÍSIAS, 2012, p. 91)
É assim que vamos conhecendo Ricardo, o personagem narrador que
está em um momento de depressão após o trauma de perder André, seu
amigo. Ricardo se apresenta como alguém que está com “saudades de tudo”
depois do trauma. Não é à toa que mesmo ele não admite estar em busca de
um sentido, em busca de um conforto para o seu amigo (o céu). Ele quer
apenas retornar à cidade onde estudavam juntos, assim como à
universidade, à biblioteca e até às instituições de saúde que o amigo
frequentou.

Estou passando um bom tempo na biblioteca da universidade


e outro dia fui conferir se o cineclube ainda funciona. Por
outro lado, não voltei à república onde passei boa parte do
meu curso. Do mesmo jeito, não vou conferir se os
restaurantes baratos que frequentávamos ainda existem.
Mas confesso que tenho medo de não aguentar. Estou
incomodado com os acessos de ansiedade que começaram
desde que vim para cá. Quando surgem, sinto o impulso de
voltar a todos esses lugares. (LÍSIAS, 2012, p. 44)

Esse retorno a lugares do passado que remetem ao André somado à


falta de memória, que ocorre durante e depois de suas crises, demonstra o
trauma não superado. “Nunca tinha gritado tanto. Trato meus problemas em
silêncio. Eu os organizo e reorganizo na cabeça como se fossem uma
coleção, até solucioná-los.” (LÍSIAS, 2012, p. 23)

Há outra incongruência: o grito e o silêncio na personagem. Ricardo


não consegue se lembrar direito e, portanto, tem dificuldade de organizar
suas memórias. A expressão dessa dificuldade que ele tenta manter em
silêncio é o grito nos seus episódios de crise. Pode-se dizer também que
outra quebra com o silêncio é a própria escrita do livro. E, uma vez que O
céu dos suicidas mostra também os bastidores da escrita, ou seja, mostra o
relato dos eventos ligados a uma perda afetiva junto ao processo de escrita,
há uma possibilidade de retomar parte do controle através do registro:
De algo jamais vou esquecer: no meio da semana, ele me
ligou — Ricardo, vou me internar de novo. Fica de olho em
tudo.
Não suportei. Fica de olho em quê, pensei em gritar. Fica de
olho em quê, meu Deus? Ele repetiu: — Vou me internar de
novo, Ricardo. Cuida para não acontecer nada.
Disso tenho certeza.
Então repeti, com a vista escura e cheio de medo de não
conseguir ficar em pé (minhas pernas enfraqueceram), que
não aguentava mais.
Um dos dois bateu o telefone. Tirei o fio da tomada. Não vou
conseguir terminar esse capítulo. (LÍSIAS, 2012, p. 100)

Consciente da expressão, Lísias relata não só a própria perda e os


eventos anteriores e posteriores a ela, mas evidencia a problemática da
depressão no nível individual e social. Em O tempo e o cão, Maria Rita
Kehl discorre sobre esta questão, a colocando como sintoma político-social:

Uma civilização que valoriza a competitividade e a


conquista, mesmo se em última análise esta se limite à
conquista do mercado, uma tal civilização não amar seus
deprimidos, mesmo que ela os produza cada vez mais, a
título de doença do discurso capitalista. (KEHL, 2009, pos.
179)

Ou seja, a sociedade de mercado cria esses corpos doentes a partir


mesmo do seu discurso. Com o neoliberalismo, que retoma a ideia do
indivíduo como empreendedor de si mesmo, tal como Kehl pontua, a
responsabilidade de e por tudo passa a ser de cada um. Além disso, com a
propaganda, e com a mercantilização gradativa de tudo, até mesmo dos
afetos – como lembra Bauman (2005) em Amor Líquido – a felicidade
também pode ser mercantilizada, principalmente se se observar a relação
entre mídia e afetos. Então, pode-se deduzir que a obra de Lísias trata de
um assunto difícil, um tabu ainda. Assim, ao tratar de depressão, ou
episódios depressivos, “ela desafina o coro dos contentes; nisso consiste seu
caráter de sintoma social” (KEHL, 2009, pos. 184)

Além disso, André foi internado em uma dessas “clínicas chiques”,


como diz o narrador, “onde todo mundo é sozinho”. Isso, e a questão
religiosa abordada na obra, comprova que a sociedade, além de produzir
esses corpos doentes, também os isola. Em uma cena em que Ricardo está
andando por um cemitério, ele narra a forma como a sociedade lida com
esses indivíduos, e ao notar que não havia muita gente e nenhuma
manifestação religiosa, ele se dá conta que se tratava de um suicídio.

Resolvo ir embora e no portão do cemitério dou-me conta de


que não havia nenhum tipo de trabalho religioso no enterro.
Foi um suicídio. Minha irritação aumenta, não consigo me
controlar e de novo começo a gritar na rua. Os suicidas
sofrem.
Deus desgraçado. (LÍSIAS, 2012, p. 68)

Essa cena mostra ao leitor a rejeição, ou a ignorância acerca do tema


da saúde mental, principalmente com relação ao suicídio. Até mesmo
Ricardo demonstra rejeição pelo estado de André, ao expulsá-lo da sua
casa:

O André estava no quarto, sentado no colchão, cortando a


pele com um canivete. Lembro-me perfeitamente a lâmina
acinzentada entrando na pele da mão esquerda dele. Fiquei
perplexo por alguns segundos e depois gritei que ele não
faria aquilo na minha casa.
Fui até o interfone, pronto para pedir que o porteiro
chamasse a polícia. (LÍSIAS, 2012, p. 97)

É necessário apontar que enquanto o presente artigo foi feito, o livro O


céu dos suicidas sofreu censura no Colégio Sesi de Santo André, unidade
Jaçatuba, em São Paulo. Em um comunicado oficial ao Ministério Público,
publicado pelo autor no Facebook1, Lísias pede esclarecimento sobre o
ocorrido, uma vez que o professor que trabalharia com o romance foi
demitido e o livro proibido. Sabe-se que o Brasil vive um clima político de
censura e perseguição a pensamentos divergentes. E pode-se dizer também
que há um problema maior quando o assunto se conecta a temas e
concepções religiosas, como no caso do livro, que trata da vida, da morte e
da redenção de alguém que se matou. Isso inviabiliza a discussão sobre
saúde mental no Brasil, e para além, demonstra uma recusa em inserir os
indivíduos com problemas mentais. Ou seja, é mais um passo na
invisibilização desses sujeitos e na legitimação do afastamento, do
abandono, da violência contra eles.
1 Disponível em: <https://www.facebook.com/ricardo.lisias/posts/2459070864146363>.

É importante também pensar a contribuição da religião para essa


cultura da felicidade, tendo em vista que essa cultura afasta quem é
considerado desviante, doente. Freud (2019), ao discorrer sobre o mal-estar
na nossa civilização, trata do tema da religião. Com essa discussão ele
elucida que o sistema religioso faz da felicidade uma promessa, e mais: um
propósito de vida.

O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A


resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter
felicidade; querem ser felizes e assim permanecerem. Essa
empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma
meta negativa. Por um lado, visa à ausência de sofrimento e
desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos
de prazer. (FREUD, 2019, pos. 218)

Ou seja, os indivíduos desejam a felicidade duradoura e intensa e


rejeitam o desprazer. Esse desejo de viver em completa felicidade parece
irreal, considerando a sociedade de mercado e a produção de infelicidade
vinda dela. Dessa forma, os indivíduos sentem a frustração do desequilíbrio
entre o que desejam e o que vivem, o que pode levar à doença.
Ainda sobre a questão da felicidade, Sloterdijk (1991) nota um outro
empecilho: o pertencer no mundo. Sloterdijk retoma Nietzsche com a frase
“Deus está morto”, usando-se do seu valor secundário, segundo o próprio
autor, para evidenciar que existe um abalo nos referenciais da sociedade
Ocidental na era da hiperpolítica2. Ou seja, na pós-modernidade, com a
negação de um nome em comum (Deus) e uma dissolução das noções
artificiais de nação, estados, e portanto, identidades, com a planetarização,
há uma dificuldade de pertencimento àquilo que Sloterdijk chama de o
“Grande”. Com efeito, os indivíduos da hiperpolítica vivem um desamparo,
uma individualização extrema, como ilhas, isolados. A pós-modernidade
não é mais capaz da arte do pertencimento, pois não há mais nada que une
e, isso implica em um afastamento, uma exclusão, e também como resposta,
os problemas sociais aparecem, tais como a depressão, assunto tratado
nessa obra.
2 A hiperpolítica é era a partir do industrialismo, da desfronteirização e do mundo global, ou seja, uma era em que o mundo é uma esfera conectada e que portanto, as formas de
pertencimento ao Grande são abaladas.

A produção estética de Lísias aborda o sintoma de uma crise social, a


doença mental, de uma forma que levanta questões urgentes. Ela vem como
resposta distópica a uma cultura que incentiva a felicidade em um nível
artificial e irreal. Nota-se também que essa cultura sofre influência direta do
sistema econômico, de mercado e, por último, da religião, que faz da
felicidade uma promessa e rejeita qualquer tipo de desprazer originado no
mundo. Lísias apresenta personagens em estado de sofrimento extremo, o
que pode ser considerado sintoma de uma dificuldade de pertencimento,
recriando o presente a partir da perspectiva da crise da felicidade. Desse
modo, ele traz à tona uma temática tabu e, por isso, Lísias incomoda tanto,
com seu romance O céu dos suicidas.

Referências
BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos.
Trad. Carlos Augusto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BERARDI, Franco. Depois do futuro. Trad. Regina Silva. São Paulo:
Ubu editora, 2019.

COELHO, Teixeira. O que é Utopia. Coleção Primeiros Passos. São


Paulo: Editora Brasiliense, 1980.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. 1ª ed. São Paulo:


LeBooks, 2019.

LEPORE, Jill. “A golden age for dystopian fiction.” In: The New
Yorker Disponível em:
<https://www.newyorker.com/magazine/2017/06/05/a-golden-age-for-
dystopian-fiction>.

LÍSIAS, Ricardo. O céu dos suicidas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São


Paulo: Boitempo editora, 2009.

_______________. Tortura e sintoma social. São Paulo: Boitempo


editora, 2010.

SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco. Trad. Claudia Calvalcante.


São Paulo: Estação Liberdade, 1999.
O risco da passagem: A mística
feminina em Geografia de rebeldes,
de Maria Gabriela Llansol
Luísa Nunes Galvão Caron de Oliveira

Sumário

sem fascínio não há credibilidade, não há tronco


perceptível que atraia os corpos para o risco da passagem.
(LLANSOL, 2001, p. 30)

Em Geografia de Rebeldes, primeira trilogia de Maria Gabriela


Llansol (1931-2008), proliferam-se os deslocamentos. Composta,
respectivamente, pelos livros O livro das comunidades, A restante vida e Na
casa de Julho e Agosto, a trilogia abandona os caminhos da narrativa
tradicional para afirmar um discurso fragmentário que desfia as fronteiras
entre ficção e autobiografia e transgride os parâmetros que demarcam os
gêneros literários. Em lugar de um enredo linear, seus livros apresentam o
que a autora portuguesa nomeia de “cenas fulgor”, núcleos refulgentes
através dos quais o texto caminha e que nascem a partir do encontro afetivo
entre as mais diversas figuras1.
1 “Figura” é um termo criado por Llansol para denominar os vivos que a acompanham e se movem em seus textos, sendo estes humanos, plantas e animais. Diferenciando-se da
ideia de personagem, as “figuras” muitas vezes não deixam de existir assim que um livro termina.

Nas figuras que Llansol acolhe em sua casa de escrita, encontram-se


homens e mulheres que existiram historicamente, mas passaram ao largo da
tradição urdida pelo Poder. Vindas de diferentes lugares e tempos da
história europeia, se encontram no texto para constituírem o que a autora
chama de Restante Vida. Assim, poetas, filósofos e místicos que
“pertencem ao tronco de uma mesma vibração, têm a mesma espiral
luminosa interior” (LLANSOL, 2011, p. 29), compartilham seus “textos
escritos em aberto”, criando uma comunidade que não se funda na
identidade, mas na diferença. Esta só pode existir num texto que faz delirar
a narratividade, deslizando para o que Llansol denomina “textualidade”.
Em seu discurso de aceitação do Prémio da Associação Portuguesa de
escritores (APE), intitulado Para que o romance não morra, a autora
explica que, entre “narratividade” e “textualidade”, apenas a última
permite-nos acessar o “dom poético”, quer dizer, “a imaginação criadora
própria do corpo de afetos” (LLANSOL, 1994, p. 120). Na leitura de João
Barrento, um de seus mais renomados críticos, essa expressão se refere à
“capacidade de olhar o mundo desinteressadamente e de o transformar em
substância de beleza e afeto, que o mesmo é dizer, de justeza e justiça”
(BARRENTO, 2011, p. 112). Nesse mesmo discurso, Llansol reconhece
que um exemplo longínquo de “dom poético” pode ser encontrado na
escrita mística. Não é estranho, então, que muitas das figuras acolhidas em
seus textos, como São João da Cruz, Mestre Eckhart, Suso, Teresa D’Ávila,
Ana de Jesus, Hadewijch e as beguinas, partam desse universo plural que
atravessa, de oriente a ocidente, muitos séculos de história.

Seus livros são povoados de signos e referências a essa tradição. Em O


livro das comunidades, São João da Cruz é figura central para a
constituição da comunidade, ao lado da narradora – Ana de Peñalosa –, e
diversas referências a sua biografia e textos povoam a narrativa. Também
n’O livro das comunidades, as figuras abandonam a casa numa
peregrinação ao deserto, movimento conhecido como anacorese na filosofia
mística. O nomadismo, a escrita da Regra e a meditação da chama da vela,
Na casa de Julho e Agosto, são outros traços que relacionam Geografia de
Rebeldes ao modos de vida e aos textos escritos pelos místicos.

Além das figuras e referências a esse universo na trilogia, ele se faz


presente nas ficções e diários de Llansol por toda sua trajetória de escrita.
Em ensaio intitulado “Diálogo com Llull”, que integra o livro Lisboaleipzig
1, a autora reflete teoricamente sobre a mística, o eremitismo e os legados
dos poetas sufi para a tradição ocidental, principalmente no que se refere a
sua dimensão ética, aspecto mais caro à ela. Nesse diálogo a cisão entre o
Mundo (do Poder) e a Restante Vida reaparece. Mais uma vez, a
importância dos místicos é ressaltada, pois Llansol sugere que, se Ibn’Arabi
e All Hallaj tivessem chegado ao ocidente assim como Avicena e Averróis -
tradutores de Platão e Aristóteles -, talvez o problema da dualidade dos
mundos pudesse ter sido evitado.
As mulheres místicas, figuras muitas vezes historicamente ignoradas,
também possuem um papel importante nos textos de Llansol. Na trilogia,
surgem entre as beguinas, grupo de mulheres que, entre os séculos XII e
XIV nos Países Baixos, viviam em irmandade e ousavam dar voz às suas
ideias sobre o divino, mesmo correndo o risco da condenação por heresia.
Sob tutela de uma mestra, viviam em comunidades livres onde não
professavam votos, dividindo-se entre uma vida contemplativa e ativa que
se baseava no cultivo de uma vida de orações, trabalhos manuais e cuidados
com os doentes.

As beguinas entram na vida da autora quando esta deixa para trás


Portugal e vai viver em exílio com seu marido na Bélgica. Ali, em visita a
um béguinage, narra uma experiência muito próxima à descrição de um
êxtase místico, ainda que se ausente o elemento sacro ou divino:

Estava eu de visita ao béguinage de Bruges quando, de


súbito, tive a sensação estranha de que vários níveis de
realidade ali aprofundavam sua raiz, coexistindo sem
nenhuma intervenção do tempo. Havia as mulheres beguinas,
ao lado dos portugueses descobridores de novos mundos,
tornados oportunistas e comerciantes de especiarias; havia
rebeldes ocultos mas já no rasto da liberdade de consciência,
havia místicos com um pensamento; havia o mundo anónimo
que, sem parança, não deixava de fluir. Estas paragens
atraíam o tenro; o novo; o audacioso; o potente. Como uma
morada do que está de passagem. (LLANSOL, 1994, p.
126)

Não por acaso, nesse mesmo período, a autora inicia a escrita da


trilogia, na qual as beguinas serão “pontos de vista que determinam o
acolhimento das outras figuras” (LOPES, 1988, p. 19). É relevante notar
que os béguinage abrigavam mulheres de todas as classes sociais, assim,
não eram todas as mulheres que procediam de uma cultura letrada, podendo
se dedicar a leituras e comentários de textos sagrados. Contudo, é essa
linhagem a qual se filia Llansol. Nela, alguns nomes se destacam e dois são
especialmente relevantes em Geografia de Rebeldes: Hadewijch e
Margarida Porete.

Ainda que as beguinas só surjam a partir do segundo livro, em O Livro


das Comunidades, a narradora, Ana de Peñalosa, pode ser considerada uma
“beguina extemporânea” (WILTSHIRE, 2012, p. 85), tornando-se mestra da
comunidade Na Casa de Julho e Agosto. Nesse último livro, a presença das
beguinas, central para a narrativa, é já revelada ao início do texto:

Começou por algumas mulheres partilharem a mesma casa


que pertencia à mais rica; reduzimos as nossas necessidades
e trocamos os meios de as satisfazer; abrimos nossas portas e
constituímos nove pequenas habitações, com uma, duas, três
beguinas. Eu vivo com Eleanora, Branca, Marta, Maria,
Hadewijch. É já um grande número mas todas somos
silenciosas e eu, com elas e sem elas, ordeno regradamente
minha vida. Todas temos um amor comum – a aspiração à
chama da vela; todas temos uma diferença comum – a
verdadeira diferença; quando suspeitaram quem nós éramos,
pouco falamos, embora nossa Grande Drama nos
defendesse; não invejo nossa Grande Dama – Ana de
Peñalosa – porque todas somos grandes. (LLANSOL, 2014c,
p. 26-27)

Em A restante vida, surge pela primeira vez a figura de Hadewijch,


considerada a primeira poetisa holandesa e uma das mais famosas místicas
medievais. É no corpo de amante da beguina, que acompanha Ana de
Peñalosa como um invisível fluxo de energia, onde atravessa a batalha já
perdida entre os Pobres - as mutantes figuras da Restante Vida -, e os
Príncipes, responsáveis por manter e alimentar os acontecimentos do Poder.
Nesse livro, seu corpo sofre múltiplos devires e mutações, e Hadewijch, que
nasce como amante, será também cão, rio e Pobre.

Historicamente, a beguina, também conhecida como Dama do Amor,


expressou a experiência mística de união com o divino em uma vasta obra
que inclui cartas, visões e poemas religiosos. Para isso, conciliou a teologia
e a poesia trovadoresca. Como também vemos na poesia de São João da
Cruz, os textos de Hadewijch são carregados de linguagem simbólica para
expressar a fusão entre as experiências física e espiritual. Neles, a união
mística com a divindade é revelada a partir de imagens que aludem ao
encontro erótico entre dois amantes, como fica claro nesse excerto de uma
de suas cartas:

En lo más profundo de sua Sabiduría aprenderás lo que es él


y qué maravillosa suavidad es para los amantes habitar en el
otro: cada uno habita en el otro de tal manera que ninguno
de ellos saberia distinguirse. Pero gozan reciprocamente uno
del otro, boca con boca, corazón con corazón, cuerpo con
cuerpo, alma con alma, y una misma naturaleza divina fluye
y traspassa a ambos. (HADEWIJCH, 2009, p. 19)

Para Bataille, o erotismo dos corpos e a experiência mística de união


com o divino tem um fundamento comum, pois ambos levam à
descontinuidade dos seres a nostalgia de uma continuidade profunda e
perdida:

O ser amado, para o amante, é a transparência do mundo. O


que transparece no ser amado é aquilo que falarei em
seguida à propósito do erotismo divino ou sagrado. É o ser
pleno, ilimitado, que a descontinuidade pessoal não mais
limita. É, numa palava, a continuidade do ser percebida
como uma liberação a partir do ser do amante. (BATAILLE,
2017, p. 44)

Enquanto Hadewijch se vale de uma linguagem mais simbólica,


Margarida Porete possui uma linguagem mais intelectual, ainda que em
seus textos, como em Hadewijch, a cultura filosófica e teológica se
entrecruze com a literatura profana. Assim como algumas proposições de
Eckhart, a quem a beguina influenciará, e textos de muitos outros filósofos
e místicos medievais, sua obra O espelho das almas simples e aniquiladas é
considerada herética pela Inquisição. Por recusar-se a negar seu conteúdo,
Porete é sentenciada à morte e seu corpo é queimado vivo junto de seu
livro.

No texto de Margarida Porete, o encontro da alma humana com Deus


só é possível para aqueles que são regidos pelo Amor Cortês. Através dos
personagens Alma, Amor e a anatagonista Razão, Porete constrói um longo
diálogo em que ensina aos leitores os sete degraus pelos quais a Alma tem
de passar para encontrar o seu Amado. Assim, o texto é fundado por
alegorias semelhantes às expostas por Hadewijch:

Essa dominação única pelo amor, diz Amor, lher dá a flor do


ardor amoroso, como o próprio Amor testemunha.

Essa é a verdade, diz Amor. Esse amor do qual falamos é a


união dos amantes e o fogo abrasador que arde sem sufocar.
(PORETE, 2008, p. 120)

O uso do discurso poético para expressar a fusão com o divino revela a


proximidade entre a literatura e o erotismo. Segundo Octavio Paz, “a
relação da poesia com a linguagem é semelhante à do erotismo com a
sexualidade”, já que “no poema, a linguagem se desvia do seu fim natural: a
comunicação” (PAZ, 1995, p. 10). Assim, percebe-se que mística, erotismo
e poesia compartilham o abandono à regularidade da vida cotidiana, numa
abertura à “dissolução das formas constituídas” (BATAILLE, 2017, p. 42).

Dentre os inúmeros deslocamentos e aspectos transgressores que


podem ser observados na escrita de Llansol, a união entre a mística e o
erotismo vai aparecer relacionada muitas vezes à quebra da regra, como
nesse trecho em que a beguina Margarida – uma das principais vozes do
texto – fala à Eleanora, Na casa de Julho e Agosto:

Eleanora fogo,
foi sob o império do saber que, com grande escândalo,
derrubaste a chama da vela; foi um momento tão importante
que nunca deixo de nele pensar, seja qual for a hora do dia
em que me ocupe. Nossas irmãs, as beguinas, soltaram uma
exclamação, parecia, Eleanora, que a sua virgindade, ou a
sua viuvez, tinha sido violada; mais tarde, abriu-se uma
chaga no teu pé, eu dizia que o fogo se incrustara ardendo
eternamente e
quebrando a regra do permitido e do não permitido, mordo
teu artelho, fora da Comunidade, já na casa de Plantin-
Moretus, onde nada, a não ser o saber dos sonhos, nos guia.
(LLANSOL, 2014c, p. 45)

Sejam movidas por amor a Deus ou pela busca em ampliar nosso


entendimento do real, as escritas místicas e a escrita de Llansol são guiadas
por uma paixão que vincula corpo e texto. No caso das beguinas, é com o
amor cortês que fundem sua escrita para descrever o êxtase místico,
experiência da dissolução do eu ao encontro com o Amado (Deus). Em
Llansol, isso é perceptível na própria forma de seus textos, que se
constroem a partir da abertura e fechamento de imagens, bem como pelo
choque entre imagens aparentemente díspares. Além disso, essa atmosfera
se evidencia graças ao uso de algumas expressões criadas pela autora, tais
como “sexo de ler” e “luar libidinal”.

Entretanto, apesar de ser possível esboçar algumas semelhanças, há


muitas diferenças entre o que foram essas figuras historicamente e o que
elas passam a ser no espaço do texto. A principal dissemelhança reside no
fato de que a autora portuguesa se coloca num lugar de deslocamento em
relação ao religioso e ao sagrado quando, por exemplo, resolve desmembrar
o Absoluto: “Decido, nessa altura natalícia, tirar o d de deus, e chamar eus
ao que for a diferença que o prive de ser sua vontade” (LLANSOL, 1985, p.
17) ou quando, referindo-se ao exercício da “textualidade”, afirma:

Na verdade, proponho uma emigração para um


LOCUS/LOGOS, paisagem onde não há poder sobre os
corpos, como, longinquamente, nos deve lembrar a
experiência de Deus, fora de todo o contexto religioso ou até
sagrado. (LLANSOL, 1994, p. 121)

Ademais, no lugar em que quebrar “a regra do permitido e do não


permitido é possível”, lugar da escrita por excelência, o texto convoca a
expandir o erotismo dos corpos e o erotismo sagrado para uma relação com
a leitura e com a escrita. Em “O espaço libidinal da leitura e da escrita em
Llansol”, Sônia Piteri observa a não separação entre escrita, pensamento e
corpo. Para a crítica, é o próprio exercício da escrita e da leitura que se
envolvem de libido e desejo. Este, entretanto, não aparece como falta de um
objeto amado, mas como pura pulsão e movimento.

Ainda assim, sua escrita convoca seus leitores, ou legentes, como


prefere chamar a autora, a experimentarem o fascínio quando, atentos aos
silêncios e aos núcleos de força para os quais convocam as cenas fulgor,
enfrentam as imbricações do texto como os místicos enfrentavam a
linguagem para falar de Deus, e os poetas, para cantar o amor. Segundo
Blanchot, “quem quer que esteja fascinado, pode-se dizer dele que não
enxerga nenhum objeto real, nenhuma figura real, pois o que vê não
pertence ao mundo da realidade mas ao meio indeterminado da fascinação.”
(BLANCHOT, 2011, p. 24)

Em Geografia de Rebeldes, o fascínio que leva os corpos a serem


atraídos para o risco da passagem deixa de ser a imagem do corpo amante,
ou do contato com o divino, para transfigurar-se no fascínio do encontro
com as figuras, ou os existentes-não-reais, a que nos convida a conhecer
Maria Gabriela Llansol.

Referências
BARRENTO, J. Europa em sobreimpressão, Llansol e as dobras da
história. Org. João Barrento. Lisboa: Assírio&Alvim, 2011.

BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007.


BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BATAILLE, G. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

BLANCHOT, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

FENATI, M. C. (org.). Partilha do incomum: leituras de Maria


Gabriela Llansol. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014.

FENATI, M. C. Três Vazios – Leitura de Geografia de Rebeldes de


Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Edições Vendaval, 2009.

HADEWIJCH. El lenguage del deseo: poemas de Hadewijch de


Amberes/ edición y traducción de María Tabuyo. Madrid: Editorial Trotta,
2009.

LLANSOL, M. G. A restante vida/ Geografia de Rebeldes II. Rio de


Janeiro: 7Letras, 2014b.

LLANSOL, M. G. Entrevistas. Belo Horizonte: Autêntica Editora,


2011.

LLANSOL, M. G. Finita/ (com fotografias de Duarte Belo). Porto:


Assírio&Alvim, 2005.

LLANSOL, M. G. Lisboaleipzig 1: O encontro inesperado do diverso.


Lisboa: Assírio&Alvim, 1994.

LLANSOL, M. G. Livro das comunidades/ Geografia de Rebeldes I.


Rio de Janeiro: 7Letras, 2014a.

LLANSOL, M. G. Na casa de Julho e Agosto/ Geografia de Rebeldes


III. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014c.

LLANSOL, M. G. Um falcão no punho. Lisboa: Rolim, 1985.

LOPES, S R. Teoria da Des-possessão: Ensaio sobre textos de Maria


Gabriela Llansol. Lisboa: Averno, 2013.
MARINHO, M. S. Mística Feminina: Escrita e transgressão. Revista
Graphos, UFPB/PPGL, Paraíba, vol. 17, n° 2, p. 91-102, 2015.

PAZ, O. A chama dupla: amor e erotismo. Lisboa: Assírio&Alvim,


1995.

PITERI, S. O espaço libidinal da leitura e da escrita em Llansol. In.


MOTTA, SV. e BUSATO, S., orgs. Figurações contemporâneas do espaço
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Acadêmica, 2010, p. 27-35.

PORETE, M. O Espelho das Almas Simples e aniquiladas e que


permanecem somente na vontade e no desejo do Amor. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2008.

WILTSHIRE, M L. Um nome de fulgor: Maria Gabriela Llansol


(1931-2008)/ Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira... et al. Niterói: Editora da
UFF, 2012.

WILTSHIRE, M. L. Mulheres beguinas: da história para o texto


llansoliano. In: Marginalidades femininas: a mulher na literatura e na
cultura brasileira e portuguesa. Montes Claros: Ed. Unimonte, 2017, p. 83-
96.
Redescobrindo veredas: Uma
abordagem crítica da categoria do
super-regionalismo de Antonio
Candido
Marina Maria Campos Brito

Anita Martins Rodrigues de Moraes

Sumário

O leitor que envereda Grande sertão: veredas1 (1956) encontra em


suas páginas um sertão de excessos, nas quais paisagem e linguagem se
mostram em fartura, de modo que é preciso coragem para navegar pelas
águas caudalosas do Alto São Francisco – para essa travessia, o leitor deve
se valer de canoa talhada em peroba, canoa pesada e de madeira nobre, que,
se virar no percurso, afunda, levando junto o leitor despreparado, como nos
alerta Riobaldo:
1 Rosa, J. G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Primeira edição: 1956. Todas as passagens desta obra serão indicadas pelas iniciais “GSV” do título,
seguidas da página em que se encontra na edição supra.

Tinha ouvido dizer que, quando canoa vira, fica boiando, e é


bastante a gente se apoiar nela, encostar um dedo que seja,
para se ter tenência, a constância de não afundar, e aí ir
seguindo, até sobre se sair no seco. Eu disse isso. E o
canoeiro me contradisse: – ‘Esta é das que afundam inteiras.
É canoa de peroba. Canoa de peroba e de pau-d’óleo não
sobrenadam...’ (GSV, p.144).

Antonio Candido, um dos primeiros críticos a se voltar ao romance de


Rosa, escreveu que “na extraordinária obra-prima Grande sertão: veredas
há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente
realizado” (CANDIDO, 1964, p. 294). Se há no romance, como afirma o
crítico, “de tudo para quem souber ler”, a chave de leitura proposta por
Candido parece apontar, ao contrário, para certa domesticação da obra,
conforme sugere Silviano Santiago em Genealogia da ferocidade (2017).
Anos após o contato inicial de Antonio Candido com o romance de
Guimarães Rosa, em 1970, o crítico, em um ensaio acerca das produções
literárias dos países latino-americanos, marcados pelo subdesenvolvimento,
classifica Grande sertão: veredas como obra “super-regionalista” –
categoria criada por ele e que corresponde “à consciência dilacerada do
subdesenvolvimento e opera uma explosão do tipo de naturalismo que se
baseia na referência a uma visão empírica do mundo” (CANDIDO, 1987, p.
162) – a fim de marcar um tipo de regionalismo diverso daquele visto em
momentos anteriores. Candido pensa em um primeiro regionalismo, durante
o Romantismo, a que corresponderia o “regionalismo pitoresco”, com um
tratamento exotizante do sertanejo e da região, e em uma segunda fase,
entre os anos 1930 e 1940, que corresponderia ao “regionalismo
problemático”, dotada de um maior engajamento político-social
(CANDIDO, 1987). Este artigo se organiza, dessa forma, a fim de pensar o
que subjaz à categoria de “super-regionalismo”, uma vez que ela parece
sugerir, sobretudo, a hierarquização entre a “experiência documentária” e a
“expressão universal” (CANDIDO, 1964) – ou, se retomarmos o proposto
pela Formação da literatura brasileira (1959), entre o particular e o
universal.

Quando elabora sua tese de doutoramento em Ciências Sociais


apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de
São Paulo, intitulada Os parceiros do Rio Bonito (1964), Candido estuda o
caipira paulista a partir da análise de sua dieta. Para o crítico, o caipira
estaria sujeito à regressão, marcada pela herança indígena, devido a um
meio de vida que favoreceria a “simbiose estreita com a natureza”
(CANDIDO, 2010, p. 140), uma vez que baseado em “mínimos vitais” e
“mínimos sociais”.

Dir-se-á, então, que um grupo ou camada vive segundo


mínimos vitais e sociais quando se pode, verossimilmente,
supor que com menos recursos de subsistência a vida
orgânica não seria possível, e com menor organização das
relações não seria viável a vida social: teríamos fome no
primeiro caso, anomia no segundo. (CANDIDO, 2010, p. 33)

O modo de vida dos caipiras a partir dos mínimos, parece nos sugerir
Antonio Candido, estaria associado à pobreza, pois pressupõe uma vida
restrita às necessidades básicas – o caipira não vive, ele sobrevive. Essa
condição de regressão do caipira estaria alinhada, assim, à forma como lida
com a natureza, pois o crítico reconhece “dietas incompatíveis com as
necessidades orgânicas, correlacionadas geralmente a técnica pobre”
(CANDIDO, 2010, p. 32). Ou seja, a ancestralidade indígena do caipira –
ressaltemos que os indígenas são considerados por Candido como
primitivos, numa perspectiva evolucionista, devido à sua proximidade com
a natureza – favoreceria um modo de vida baseado em mínimos, já que o
caipira, assim como seu ancestral indígena, não dominaria a natureza por
meio de técnicas adequadas – como o homem civilizado faz – mas estaria
subordinado a ela.

Por outro lado, a civilização estaria articulada ao meio artificial,


elaborado pela cultura, o que equivaleria a dizer que o civilizado é
civilizado porque se afastou do antepassado indígena – e da natureza. Mais
do que isso, o crítico considera que o meio artificial, “elaborado pela
cultura, cumulativo por excelência, destrói as afinidades entre homem e
animal, homem e vegetal. Em compensação, dá lugar à iniciativa criadora e
a formas associativas mais ricas, abrindo caminho à civilização, que é
humanização” (CANDIDO, 2010, p. 202). Cabe ao homem, dessa forma,
utilizar os recursos técnicos de que dispõe como mediadores de sua relação
com a natureza, de modo que esta possa servir ao seu projeto,
subordinando-se a ele. Essa condição afasta o homem de um cenário de
adaptação integral ao meio – que significaria o regresso ao primitivismo – e
o aproxima da civilização – ou humanização. Essa articulação entre
civilização e humanização é especialmente relevante para compreendermos
a crítica de Candido a Grande sertão: veredas, já que a ideia de
humanização proposta por ele atravessa sua crítica literária, que passa a
advogar em defesa da função humanizadora da literatura.
Quase duas décadas após o lançamento de Os parceiros do Rio Bonito,
por ocasião da XXIV Reunião Anual da SBPC, Antonio Candido profere a
palestra “A literatura e a formação do homem” (1972) a fim de “apresentar
algumas variações sobre a função humanizadora da literatura, isto é, sobre a
capacidade que ela tem de confirmar a humanidade do homem”
(CANDIDO, 2012, p. 81), de maneira a retomar a noção de humanização
que esboçava em sua tese sobre os caipiras. Inicialmente, Candido parte de
uma “necessidade universal de fantasia” (CANDIDO, 2012, p. 82), de sorte
que tudo parece confirmar essa necessidade humana: anedotas, narrativas
populares, cantos folclóricos, lendas, poemas, contos, romances. Não é, no
entanto, toda literatura que humaniza. Mais especificamente, somente
aquela literatura que possui uma visão humana é capaz de humanizar, e,
como vimos que civilização e humanização são equivalentes, podemos
inferir que a humanização será um conceito mais voltado à literatura do
homem civilizado do que àquela produzida pelo primitivo ou pelo rústico.
Isso porque a humanização pressupõe civilização, e esta se encontra no
homem culto, que se volta à Europa em busca de modelos universais (desde
que, é certo, saiba adaptá-los para o tratamento de uma realidade nova, não
se imaginando igual ao europeu e, assim, abandonando sua missão
humanizadora/civilizadora própria de um homem culto dos trópicos).
Assim, Candido pretende “abordar o problema da literatura como
representação de uma dada realidade social e humana, que faculta maior
inteligibilidade com relação a esta realidade” (CANDIDO, 2012, p. 86).
Para isso, recorre a “um único exemplo de relação das obras literárias com a
realidade concreta: o regionalismo brasileiro, que por definição é cheio de
realidade documentária” (CANDIDO, 2012, p. 86). Candido considera o
regionalismo brasileiro “cheio de realidade documentária”, o que é um
recurso necessário, segundo o crítico, em países sujeitos à condição de
subdesenvolvimento (CANDIDO, 1995). É também por considerar o
caráter ultrapassado dessa “realidade documentária” que o autor classifica a
obra de Guimarães Rosa como super-regionalista (CANDIDO, 1964).
Vejamos as considerações do crítico:

Ele [regionalismo] existiu, existe e existirá enquanto houver


condições como as do subdesenvolvimento, que forçam o
escritor a focalizar como tema as culturas rústicas mais ou
menos à margem da cultura urbana. O que acontece é que ele
se vai modificando e adaptando, superando as formas mais
grosseiras até dar a impressão de que se dissolveu na
generalidade dos temas universais, como é normal em toda
obra bem feita. E pode mesmo chegar à etapa onde os temas
rurais são tratados com um requinte que em geral só é
dispensado aos temas urbanos, como é o caso de Guimarães
Rosa, a cujo propósito seria cabível falar num super-
regionalismo. (CANDIDO, 2012, p. 86)

O regionalismo está atrelado à condição de subdesenvolvimento, pois,


para Candido, ele é uma “etapa necessária, que fez a literatura, sobretudo o
romance e o conto, focalizar a realidade local” (CANDIDO, 1987, p. 159),
como já esboça em “Literatura e subdesenvolvimento”. Notemos que o
regionalismo é uma etapa necessária em países como o Brasil, marcados
pelo subdesenvolvimento, de maneira que o foco na realidade local das
regiões é necessário para colocar em relevo a “situação de atraso”
(CANDIDO, 1987, p. 158), principalmente nesse momento de consciência
em relação à condição de país subdesenvolvido. Além disso, vemos
esboçado um modelo teleológico de literatura, visto que o regionalismo
deve superar – vocábulo caro ao crítico – “as formas mais grosseiras até dar
a impressão de que se dissolveu na generalidade dos temas universais” e,
assim, “chegar à etapa onde os temas rurais são tratados com um requinte
que em geral só é dispensado aos temas urbanos”. Ou seja, Candido
considera o regionalismo uma etapa necessária em países
subdesenvolvidos porque faz o escritor se voltar à realidade local, tratando
como tema “as culturas rústicas mais ou menos à margem da cultura
urbana”, de maneira que essa etapa deve, paulatinamente, superar o
documental para se dissolver em temas considerados pelo crítico como
universais. A categoria do super-regionalismo é apontada como modelo
dessa superação e Guimarães Rosa seu maior expoente.

A partir dessa necessidade que Candido enxerga de países latino-


americanos passarem pela etapa do regionalismo, o crítico apresenta fases
desse regionalismo na literatura brasileira, de maneira que considera ter
havido um primeiro regionalismo que principia com o Romantismo, “na
fase de consciência eufórica de país novo, caracterizada pela ideia de
atraso” (CANDIDO, 1987, p. 159); um segundo, já com uma consciência
maior de “atraso”, que foi “um precursor da consciência de
subdesenvolvimento” (CANDIDO, 1987, p. 160) e uma terceira fase, que
constituiria um momento de “consciência dilacerada do atraso”, a que
Candido chama “super-regionalismo”, cujo maior expoente seria Guimarães
Rosa. Interessa-nos a classificação da obra rosiana dentro do espectro de
“super-regionalista”, porque isso parece supor a superação do regionalismo
em favor da universalidade que o crítico valoriza em Rosa, principalmente
em Grande sertão veredas (1956).

Antonio Candido foi um dos primeiros críticos a elogiar a forma como


Guimarães Rosa traz o sertão em Grande sertão: veredas, ressaltando,
sobretudo, a universalidade que a região alcança a partir do olhar de Rosa.
Assim, ao nos voltarmos à crítica que Candido dirige ao romance em “O
homem dos avessos” (1957), vemos o crítico sugerir que:

A experiência documentária de Guimarães Rosa, a


observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e pelo
nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do
rústico, - tudo se transformou em significado universal
graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para
fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais a
arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, – para cuja
órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco
é acessório e que na verdade o Sertão é o Mundo”
(CANDIDO, 1964, p. 295).

“O Sertão é o Mundo”, aponta-nos Antonio Candido. Esse trecho


mostra que a “invenção” é o grande salto de Rosa notado por Candido,
marcando a diferença entre seu regionalismo de caráter universal e o
regionalismo de “imaginação vasqueira” (CANDIDO, 1964, p. 294). O
crítico também sugere que a topografia do romance de Rosa não é só
geográfica, mas imaginária, porque carregada do “sentido mágico-
simbólico” (CANDIDO, 1964, p. 297), que o jagunço de Rosa não é o
jagunço mesmo, mas a criação de um tipo literário que passa a “representar
os problemas comuns da nossa humanidade” (CANDIDO, 1970, p. 120),
por isso a obra transcende a realidade sertaneja na visão de Candido.

A realidade local, o particular da dialética com o universal, que vemos


na Formação da literatura brasileira, é transfigurada pelo trabalho artístico
de Rosa – por meio da invenção – e, dessa forma, alçada a um novo estatuto
– universal. Parece, no entanto, que subjaz a essa superação da realidade
documental uma desqualificação do documental, que estaria associado à
realidade mesma e, por isso, seu interesse seria restrito, posto que atado a
uma realidade – neste caso, a regional – considerada atrasada,
subdesenvolvida, sujeita às determinações do meio natural, uma vez que,
conforme vimos em “Literatura e subdesenvolvimento”, as regiões
afastadas do meio urbano representam bolsões de atraso e, por isso, são
associadas ao subdesenvolvimento.

Rosa, entretanto, parece seguir outra vereda, pois traz para a cena
literária uma parte do Brasil que o espírito de modernização em
efervescência no decênio de 1950 pretendia soterrar sob suas grandiosas
construções em concreto: o sertão. O sertão de Rosa, por meio de uma
linguagem trabalhada na minúcia, ressalta ao leitor as riquezas da região – o
jagunço, as veredas, os buritis – que não são colocados diante do leitor
como objetos da simples observação, mas como seres que são tratados
também com minúcia, exigindo o olhar atento do leitor para o mundo do
sertão.

De que serve eu lhe contar minuciado – o senhor não


padeceu feliz comigo – ? Saber as revezadas do capim? Ah,
então, que foram: mimoso, sempre verde, marmelada,
agrestes e grama de-burro... A caminhada é assim, é ser:
despesa grossa, o abalo. Contra a mera vontade, que meio
me lembro, aquelas ladeiras de chapadas. Subindo para
terreno concertado, cada tabuleiro que o fim dele é
dificultoso, pior do que batoqueira de caatingal. Os muitos
campos, com tristeza agora bota valesse menos que
alpercata. O vento endureceu. Aí passa gavião, apanha
guincho, de todas as estirpes deles – o que gaviãozinho
quiriquitou! E lá era que o senhor podia estudar o juízo dos
bandos de papagaios (GSV, 1994, p. 526-527)

As obras arquitetônicas que prometiam modernização ao país não


foram capazes de cimentar o sertão de Rosa, Grande sertão: veredas
transborda em excessos, revelando um sertão verde e, ao mesmo tempo,
caudaloso, de linguagem também transbordante. Conforme ressalta Silviano
Santiago:

Apesar de obrigar o cidadão brasileiro citadino a pisar


também e de modo inesperado o áspero interior do país,
Grande sertão: veredas é – ao contrário da nova capital
federal – ribeirinho e verde, barrento e encardido, anárquico
e selvagem. É acrimoniosa e destemperadamente varonil.
Pela soma dessas características, o romance nada tem a ver
com a artificialidade do lago Paranoá, cujas águas banham as
belas obras arquitetônicas femininas sem jamais tê-las
fertilizado (SANTIAGO, 2017, p. 21)

Assim, vemos no romance um sertão que se afasta do projeto


modernizador prometido pela nova capital federal. Nesse sertão que se
descortina em veredas, emaranhado pelo ir e vir de reminiscências de quem
o conta, onde o diabo vige na rua, no meio do redemunho, as águas são
muitas, e é preciso cuidado na travessia.

Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor surja:


é de repentemente, aquela terrível água de largura:
imensidade. Medo maior que se tem, é de vir canoando num
ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande.
Até pelo mudar. A feiúra com que o São Francisco puxa, se
moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de-janeiro,
quase só um rego verde só. (GSV, p.140)
O canoeiro, sem seguir resolução, varejava ali, na barra,
entre duas águas, menos fundas, brincando de rodar
mansinho, com a canoa passeada. Depois, foi entrando no
do-Chico, na beirada, para o rumo de acima. Eu me apeguei
de olhar o mato da margem. Beiras sem praia, tristes, tudo
parecendo meio podre, a deixa, lameada ainda da cheia
derradeira, o senhor sabe: quando o do-Chico sobe os seis ou
os onze metros. E se deu que o remador encostou quase a
canoa nas canaranas, e se curvou, queria quebrar um galho
de maracujá-do-mato. Com o mau jeito, a canoa
desconversou, o menino também tinha se levantado. Eu disse
um grito. – “Tem nada não...” – ele falou, até meigo muito. –
“Mas, então, vocês fiquem sentados...” – eu me queixei. Ele
se sentou. Mas, sério naquela sua formosa simpatia, deu
ordem ao canoeiro, com uma palavra só, firme mas sem
vexame: – “Atravessa!” O canoeiro obedeceu. (GSV, p. 143-
145)

Riobaldo atravessa o sertão e suas memórias, revelando ao leitor que o


real “se dispõe para a gente é no meio da travessia” (GSV, p. 85) e que, para
realizar essa travessia, “carece de ter coragem” (GSV, p. 145). Grande
sertão: veredas, antes de confirmar o homem em sua humanidade, como
sugere Candido acerca da função humanizadora da literatura, parece
perturbar as certezas, inclusive em relação à própria
humanização/civilização do homem; “uma literatura super-inclusiva, anti-
hierárquica, com a força e o propósito de subverter cosmologias e teologias
graças à desordenação que a ordem formal, aglutinadora de mundos, coloca
em jogo” (RATTES, 2016, p. 32). A força perturbadora do romance coloca
em tensão as certezas dentro de um mundo muito misturado.

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu


careço de que o bom seja bom e o rúim ruim, que dum lado
esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem
apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os
todos pastos demarcados...Como é que posso com este
mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a
esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este
mundo é muito misturado... (GSV, p. 306-307)

Como bem ressalta Silviano Santiago, “o romance é, antes de mais,


uma bofetada no Homem” (SANTIAGO, 2017, p. 13). Homem que tenta
domar a natureza, embora não consiga domar nem a sua própria natureza. O
homem humano, que em Candido carrega ares de civilização/humanização
e está associado ao universal, a um modelo europeu, integrado à cultura
ocidental, em Rosa “é sentimento que existe em-diferença e em travessia”
(SANTIAGO, 2017, p. 32). Se o super-regionalismo de Antonio Candido
propõe a transcendência do dado particular para incorporá-lo a valores
universais de humanidade, que resulta na saída do pitoresco regional para
adentrar na preocupação moral e metafísica da qual partilha o homem
ocidental civilizado, Grande sertão: veredas nos coloca diante da
perturbação de certezas que regem esse homem. A realidade local, parece
nos sugerir Candido, é reconstruída – melhor dizer “reinventada” – para
caber dentro de uma forma ocidental de ver o mundo.

Percebemos, desse modo, que os valores universais encontrados por


Candido em Grande sertão: veredas respondem a um certo pressuposto do
que seria o universal e, principalmente, a quem corresponderia esse
universal. Se o pitoresco, o regional e o exótico correspondem ao homem
rústico, já que “o nosso regionalismo nasceu ligado à descrição da tropelia,
da violência grupal e individual, normais de certo modo nas sociedades
rústicas do passado” (CANDIDO, 1970, p. 135), podemos supor que o
universal, como está associado à Europa e à cultura do Ocidente, diz
respeito ao homem culto, que se considera civilizado. Ao recuperarmos “A
literatura e a formação do homem”, percebemos que a proposta de uma
“literatura como força humanizadora” (CANDIDO, 2012, p. 82) está
articulada à inteligibilidade do homem civilizado em relação ao “universo
do homem rústico”, que deve ser “trazido para a esfera do civilizado”
(CANDIDO, 2012, p. 89).

Seguindo essa esteira, não seria inválido pensarmos que quando


Candido mobiliza um repertório voltado à superação do dado local pelo
universal, alçando o romance de Rosa a um super-regionalismo que não se
prende ao pitoresco da realidade sertaneja, mas que fala ao homem em sua
humanidade, em sua universalidade, o crítico sugere também que aquilo
que torna o romance universal está associado à sua força de
humanização/civilização. Isso freia o caráter perturbador do romance, sua
força de desmonte, domestica o monstro de Rosa, pois pressupõe nele um
poder de ordenação, além de partir da hierarquização entre o particular e o
universal. Na tentativa de fazer o romance rosiano ecoar a tradição
europeia, Candido retoma a associação proposta antes por Cavalcanti
Proença (1959) entre o jagunço de Rosa e o romance de Cavalaria: “Sobre o
fato concreto e verificável da jagunçagem, elabora-se um romance de
Cavalaria, e a unidade profunda do livro se realiza quando a ação lendária
se articula com o espaço mágico” (CANDIDO, 1964, p. 301). Na crítica de
Silviano Santiago, essa aproximação é vista como “adestramento”
(SANTIAGO, 2017, p. 48).

(...) procura-se domesticar os conflitos heroicos e bárbaros


determinantes do jaguncismo político no sertão mineiro pela
alusão às relações interpessoais entre líder e súditos no modo
como elas são mapeadas no universo das cruzadas medievais
e dos romances de cavalaria. Quando a irascibilidade se
afirma por movimento de flash-back na História do
Ocidente, o monstro de Guimarães Rosa perde o chão natal e
o solo regional e, por gestual largo e amplo do crítico, se
europeíza pela visão religioso-cristã da relação entre
suserano e vassalo. (SANTIAGO, 2017, p. 48-49, grifos do
autor)

O gesto reposto por Candido que visa à “ocidentalização do


universozinho sertão” (SANTIAGO, 2017, p. 49) por meio do alinhamento
de Grande sertão à História universal eurocêntrica ressoa a função
humanizadora da literatura, pois sugere um correspondente na cultura
europeia ocidental – universal – para uma obra que se desenrola no
“universozinho sertão”. Parece, dessa forma, que o que Candido valoriza no
romance de Rosa é seu descolamento de uma realidade local marcada pelo
atraso, pela pobreza – já que, para o crítico, a literatura regionalista somente
tem vez em áreas marcadas pelo subdesenvolvimento – e seu alinhamento à
cultura do Ocidente, ainda que essa atitude desemboque no rebaixamento
do dado particular. No entanto, a travessia conduzida pelas memórias de
Riobaldo vai revelando um sertão de consistência própria, que é, ao mesmo
tempo, “nonada” (GSV, p. 3) e “está em toda parte” (GSV, p. 4).

O sertão de Rosa é ferocidade, por isso, não pode ser domesticado por
uma crítica literária de caráter teleológico por meio de uma categoria que se
pretende universalizante, pois considera que o autor de Grande sertão:
veredas superou “por milagre o poderoso lastro de realidade” para lhe
conferir “expressão universal” (CANDIDO, 1964, p. 295). Para fugir a uma
crítica domesticadora do romance de Rosa, é preciso pensar possibilidades
de leitura alternativas à fortuna crítica herdada de Antonio Candido
(BELLEI; SOARES, 2011).

Referências
BELLEI, S. L.; SOARES, C. C. Candido, leitor de Rosa: crítica e
crítica (do) por vir. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 18, p.
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_____. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In:


CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades,1970.

_____. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, A. A


educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1987.

_____. Estímulos da criação literária. In: CANDIDO, A. Literatura e


sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000.

_____. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo


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_____. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul,
2010.

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2012.

HANSEN, J. A. O ó: a ficção da literatura em Grande sertão: veredas.


São Paulo: Editora Hedra, 2000.

LORENZ, G. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Obras completas de


João Guimarães Rosa V.I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

MORAES, A. M. R. Para além das palavras: representação e


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______. A função da literatura nos trópicos: notas sobre as premissas


evolucionistas de Antonio Candido. In: Revista Cerrados, Brasília, n. 45,
ano 26, p. 41-54, 1 dez. 2017.

PEIXOTO, M. C. D. O Sertão para além do Sertão: antropologia do


homem itinerante. Uma leitura do Grande Sertão: Veredas de João
Guimarães Rosa. In: CORNELLI, G.; FIALHO, M.C.; LEÃO, C. (Orgs.)
Cosmópolis: mobilidades culturais às origens do pensamento antigo.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra/Annablume, 2016.

RATTES, K. O mel que outros faveiam: Guimarães Rosa e a


Antropologia. 2009. 271p. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)
– UFRJ, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, 2009.

ROSA, J.G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,


1994.

SANTIAGO, S. Genealogia da ferocidade. Recife: Cepe, 2017.


"Começo a ver o que não é visível":
Paisagem e subjetividade na
poética de João Miguel Fernandes
Jorge
Nathália Primo

Sumário

No século XX, mais precisamente a partir da década de 1970, percebe-


se no cenário europeu certa intensificação sobre os estudos acerca da
paisagem em diversos campos do conhecimento, como história, geografia,
arte, filosofia, entre outros. Este movimento também eclode na literatura e a
discussão sobre a paisagem nessa área do conhecimento, em especial, passa
a se apresentar, no contexto cultural contemporâneo, como parte
significativa na composição literária e, por sua vez, poética.

É justamente a partir da década de 1970 que João Miguel Fernandes


Jorge inicia sua produção poética e publica seu primeiro livro de poesia,
Sob sobre voz (1971), instaurando-se numa linha de viragem na poesia
portuguesa dessa época que, dentre outros aspectos que vão caracterizar
uma certa mudança de rumo da cena poética em Portugal, assinala a
intensificação do “eu” em obras de diversos poetas. Na obra de JMFJ,
verificou-se a possibilidade de observar as configurações de paisagens
provenientes de experiências de uma subjetividade poética que se encontra
em constante movimento e que apresenta uma sensibilidade fascinante ao
resgatar inúmeras referências a elementos culturais, sendo os diversos
segmentos da arte, principalmente das artes plásticas, um ponto de grande
interesse por se tratar de um eixo potencial nesta poesia.

Em uma recensão crítica a respeito da obra Mirleos (2015), de JMFJ,


denominada “Por que é que não andamos todos a ler furiosamente João
Miguel Fernandes Jorge?”, disponível no jornal português online
Observador, Joana Emídio Marques comenta que esta poética

toda ela assente nos fragmentos, nas memórias, nos pedaços


de experiências que cruzam tempos antiquíssimos com
existências contemporâneas, onde o corpo é um lugar
constante de perda mas também de metamorfose, onde os
milénios, as diferentes épocas históricas e culturais, se
cruzam para construir uma paisagem de maravilhosas
ruínas, de vestígios de coisas incertas que é também uma
das mais belas paisagens da poesia portuguesa
contemporânea. (MARQUES, 2015: s/n, grifo nosso)

Embora seja um texto elaborado a partir de uma parcela mais recente


da produção poética do autor, essa breve consideração a respeito da poética
de JMFJ sintetiza parte relevante das linhas temáticas que se apresentam
nesta obra tão extensa e que carecem de ser estudados, atualmente, tendo
em vista os poucos trabalhos que se encontram publicados em revistas
científicas online e em materiais de estudos específicos da área de poesia
portuguesa contemporânea no Brasil e em Portugal.

Sob essa ótica, surge a proposta de avaliar uma parte da obra poética
do poeta, cujo recorte temporal foi, em um primeiro momento, fixado nas
décadas de 1970 e 1980 como uma forma de traçar uma linha de
continuidade nos meus estudos também sobre a paisagem na poesia
portuguesa contemporânea, iniciados anteriormente enquanto bolsista
CNPq (2016-2017) do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (PIBIC), com o poeta Ruy Belo, que começa a publicar na
década de 1960, mas falece em 1978, deixando uma obra poética muito
reverenciada no circuito da poesia portuguesa contemporânea, porém não
tão extensa quanto a de Fernandes Jorge. Ruy Belo é um lugar de leitura
necessário nesta pesquisa, pois apresenta em sua poesia eixos temáticos
muito aproximados da poesia de Fernandes Jorge, além de ser uma presença
consolidada nos estudos sobre poesia portuguesa desta época, resultando na
disposição de uma ampla fortuna crítica.
No que tange as teorias da paisagem, sobretudo por meio das reflexões
propostas por Michel Collot, filósofo francês, pensador da poesia moderno-
contemporânea e da paisagem na contemporaneidade, busca-se
compreender os desdobramentos que a noção de paisagem pode implicar no
contexto de produção do discurso literário, tensionando as relações entre
sujeito e espaço, visto que

Neste debate contemporâneo sobre a paisagem, a literatura


tem sua palavra a dizer, pois nos fornece, frequentemente, a
mais forte expressão deste ‘espaço vivido’ (...). Eis porque
darei a palavra aos escritores e aos poetas que, desde o
Romantismo, fizeram da paisagem um de seus temas
privilegiados. Suas obras ensinam-nos que a paisagem não é
apenas um procedimento social, econômico e político, mas
que nela podem ser investidos significações e valores tanto
coletivos como individuais, todo um imaginário ao qual a
ficção e a poesia podem dar sua plena expressão. (COLLOT,
2013, p. 15)

Dessa forma, a partir de um viés analítico e crítico em torno de sujeito


lírico, espaço circundante e o seu encontro com a e através da linguagem,
examinam-se as possibilidades de se traçar reflexões sobre o discurso lírico
considerando a noção de paisagem na construção de um olhar sobre o
mundo, tornando possível admitir que “a paisagem provoca o pensar” e “o
pensamento se desdobra como paisagem” (COLLOT, 2013, p. 12). Essas
configurações paisagísticas seriam, portanto, uma parte significante da
estrutura do discurso poético, as quais, ao mesmo tempo, sofrem diversas
interferências imanentes ao conjunto de técnicas e meios que acabam por
alterar constantemente a relação entre sujeito e espaço geográfico.

Ademais, para esta investigação, é interessante pensar o espaço de


forma que se estabeleça uma relação interdisciplinar também entre a
literatura e a história da arte, além de voltar atenção aos diálogos com
outros autores e poetas modernos e contemporâneos de João Miguel
Fernandes Jorge na cena poética portuguesa. Considerando-se os diálogos
mencionados, tencionando o âmbito das relações com as artes plásticas, por
exemplo, o poeta Jorge de Sena surgirá como um lugar de leitura
incontornável para este estudo, tendo em vista que é ele quem sedimenta,
em Portugal, essa estreita relação entre poesia e arte com a obra
Metamorfoses, publicada em 1963.

Nesse domínio das artes plásticas, o aporte teórico que vem sendo
avaliado é, principalmente, de autoria do filósofo contemporâneo Georges
Didi-Huberman. Nesse primeiro momento, verifica-se a obra O que vemos,
o que nos olha (2010), que nos instiga a ler a poesia a partir de um viés que
pode nos dar a ver as impossibilidades e de forma que a escrita poética seja
uma abertura ao não visível. O autor explora a lógica do olhar de maneira
muito pertinente para os estudos que abordam os diálogos entre outras artes
e poesia, principalmente no que diz respeito a essa forma de ver a imagem
de um objeto artístico, neste caso, por meio das palavras expressas nos
versos dos poemas.

Olhar seria compreender que a imagem é estruturada como


um diante-dentro: inacessível e impondo sua distância, por
próxima que seja – pois é a distância de um contato
suspenso, de uma impossível relação de carne a carne. Isso
quer dizer exatamente – e de uma maneira que não é apenas
alegórica – que a imagem é estruturada como um limiar. Um
quadro de porta aberta, por exemplo. Uma trama singular de
espaço aberto e fechado ao mesmo tempo. Uma brecha num
muro, ou uma rasgadura, mas trabalhada, construída, como
se fosse preciso um arquiteto ou um escultor para dar forma
nossas feridas mais íntimas. Para dar, à cisão do que nos olha
no que vemos, uma espécie de geometria fundamental.
(DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 243.)

Em diversas obras de JMFJ, encontram-se poemas que abordam a


questão do que não é visível quando sujeito poético tem uma recordação de
um lugar ou objeto artístico ou se apresenta diante de uma paisagem ou de
uma obra de arte. Isto é, quando em um poema o sujeito poético se propõe a
versar sobre uma imagem, ele não tende a descrevê-la simplesmente de
forma unilateral, mas atribui a essa imagem outros aspectos decorrentes de
sua própria experiência colocando em evidência esta abertura ao que não é
visível.

Esse traço é bem marcado em alguns poemas de O Regresso dos


remadores (1982), livro que apresenta uma intensa relação com outros
elementos artísticos, principalmente provenientes da esfera das artes
plásticas e da fotografia. Subdividido por sessões que tendem a agrupar
poemas que permitem uma leitura contínua ou correlacionada, uma breve
análise dos títulos das sessões pode revelar a inclinação aos elementos
externos ao campo da arte literária, como é o caso das divisões
denominadas “Olcott Hotel, seguido de uma exposição” e “Coisas de
província e alguns retratos”.

No referido livro, há um poema denominado “No túmulo de João de


Noronha uma canção de embalar” que indica o monumento erguido em
homenagem ao falecido, como bem antecipa o título do poema. Para tanto,
propomos uma leitura que considere o referido monumento sob a
perspectiva de um olhar atento à representação estética moldada na pedra,
mas que também se dispõe a dizer o que está além do visível:

Os anjos estão sobre o teu leito


e cantam algum amor de ocasião.
Por toda a vila até ao amanhecer
o grito rouco das aves.

milhafre pelas ruelas de Óbidos


pelas margens da pequena laguna
os mortos cânticos entre os ciprestes
na orla do cemitério

junto das muralhas responde


ao longínquo fugitivo
dos olhos o momento sem limite,
lágrimas, ouvidas, vozes,
o rosto oculto,
o amplo vestido branco bordado a ouro
ecoa pelas sombrias torres
pelas margens do paraíso

nos bosques de castanheiros


nos canaviais iluminados, as vozes
e cantam o sono do róseo mármore
os milenários lábios ardentes.
(JORGE, 1996, p. 47)
Se reconhecermos o elemento escultural como o túmulo do alcaide-
mor D. João de Noronha e de sua mulher D. Isabel de Sousa,
identificaremos um monumento nacional que faz parte do patrimônio
material de Portugal, registrado e amplamente documentado. Localizado na
Igreja de Santa Maria, no distrito de Leiria, concelho de Óbidos, o objeto
artístico de arquitetura religiosa possui grande valor histórico e data
aproximadamente do século XVI. No poema, o sujeito lírico menciona
alguns aspectos sobre os quais se pode inferir que este túmulo do antigo
governante português é o monumento de que se fala, entretanto, percebe-se
que não se trata unicamente de um exercício ecfrástico, que pretende
representar um elemento visual a partir da representação verbal, mas sim de
uma meditação que surge a partir da imagem observada.

Prosseguindo com o entendimento acerca do diálogo interartes que


essa análise proporciona, é válido olhar para ambas as obras tomando como
ponto de partida elementos mencionados no texto poético, uma vez que é
este o corpus principal desta investigação. Na escultura, além das figuras
dos dois anjos que seguram os brasões (dos Sousas e dos Noronhas) na
frente do túmulo, em cada extremidade das colunas laterais, também
repousam anjos. Para o sujeito poético que está diante da imagem, esses
anjos não estão apenas posicionados sobre o monumento, mas estão sobre
este “leito” e cantam uma canção, a "canção de embalar" a que se refere o
título. São aspectos que estão muito além do que é visível, ou melhor, eles
somente serão visíveis por intermédio da voz lírica que propõe esta íntima
relação entre a poesia e a escultura.

A vila surge no poema através da presença das aves, identificadas no


local pelos sons que emitem. O milhafre segue pelas “ruelas de Óbidos”,
contornando as “margens da pequena laguna”, pairando sobre outros
caminhos por esse espaço. Essa ave é constantemente recuperada nos versos
de JMFJ e suas aparições nos poemas costumam dar uma característica
local dos cenários portugueses. Desse modo, a paisagem começa a ser
descortinada aos poucos, percorrendo todas as estrofes desde a primeira até
a última, sendo assinalada de acordo com a experiência dessa voz que nos
fala e, simultaneamente, oferece suas percepções sobre espaço e tempo. Sob
esse prisma, “a enunciação lírica, em primeira pessoa, corresponde à
focalização da paisagem no ponto de vista de um sujeito” (COLLOT, 2013,
p. 52).

A respeito de suas primeiras publicações Sob sobre voz (1971) e Porto


Batel (1972), reunidos no volume 1 da Obra Poética publicado em 1987,
Fernandes Jorge em nota do autor se manifestou a respeito de sua própria
escrita, comentando que os poemas publicados “são o lugar onde moram
sensações, sinais tomados pela memória”(JORGE, 1987, p. 107). A
declaração instiga a leitura dos poemas sob essa abordagem que percebe
uma tendência na constituição das subjetividades poéticas como resultado
de uma construção cultural que também tende “a tornar imagem a
imaginação” (JORGE, 1987, p. 107).

Passemos, portanto, a leitura de outro poema, desta vez, do livro Sob


Sobre Voz. Note-se que a expressão lírica novamente se dá em primeira em
primeira pessoa do singular. Essa dicção será uma marca bem recorrente na
poesia de Fernandes Jorge e, por se tratar de um poema publicado em seu
primeiro livro de poemas, é interessante colocá-la em destaque, pois
decorre de uma intensificação das marcas do sujeito lírico no texto poético
que ressurgirá com mais força a partir de meados do século XX.

Penso na catedral de Évora,


nas muralhas dos arredores de longe,
no forte filipino de Paimogo.
Trago suas verdades no meu corpo.

Reconheço o próprio caminho


destas coisas, seus antigos
autores voltando para deus
uma nova pureza, o

sono. Os astrólogos, os poetas,


talvez saibam o local das
suas pedras, porque

é da palavra errante que


devemos falar, da distância
das coisas ou da cor do mar. (JORGE, 1987, p. 34)

As andanças por Évora e por Lourinhã, onde se pode achar a Igreja da


Sé ou o Forte Paimogo, ficaram internalizadas nesse sujeito que reconhece
a errância como um ponto em comum entre poetas e astrólogos, atribuindo
ao poeta a incumbência de versar sobre a palavra que vaga sem destino,
assim como os astrólogos falam dos astros não fixos. É o “estar no mundo”
de que fala António Ramos Rosa, em que é possível “ter a experiência de
uma participação e ao mesmo tempo de uma separação irredutível” (ROSA,
1991, p. 13). Quando essas experiências são transpostas para o poema por
meio da palavra, ocorre “o sinal de convivência entre o pensamento, o
espaço e a linguagem” em que se pode afirmar que um dos lugares em que
se dá esse encontro é a linguagem (COLLOT, 2013, p. 13). Assim, é
totalmente admissível que as ideias expostas nas duas últimas estrofes
sejam um reflexo de um pensamento despertado pela paisagem das estrofes
anteriores.

O debate contemporâneo de Michel Collot acerca da filosofia da


paisagem coincide, de certa maneira, com o que Didi-Huberman aciona no
que diz respeito às obras de arte, por serem voltados para a linha de
pensamento da fenomenologia. Quando Collot propõe o estudo sobre
“Paisagem e literatura” na obra Poética e Filosofia da Paisagem (2013),
pontua que a paisagem não é somente uma dada região, mas sim uma “certa
maneira figurá-la como ‘conjunto’ perspectiva e/ ou esteticamente
organizado”, pois ela se dá de modo que seja estabelecida uma relação com
o “sujeito inteiro, corpo e alma” (COLLOT, 2013, p. 51),
consequentemente, a paisagem é vista a partir de uma percepção.

A experiência da paisagem não é, portanto, unicamente


visual, e o próprio panorama comporta uma parte de
invisibilidade cujo limite é marcado pelo horizonte, e que
convida a preencher as lacunas do olhar pelo trabalho da
imaginação ou pelo impulso do movimento. Longe de ficar
estática como uma imagem, a paisagem é um espaço a
percorrer (...). (COLLOT, 2013, p. 51-52)

Todo esse panorama é composto a partir de observações de um sujeito


poético que, em seus versos, nos dá a ver a partir de uma perspectiva
inerente, possibilitando que o leitor desta poesia mergulhe em um outro
universo desconhecido, de fato nunca antes percorrido, mesmo que alguns
elementos sejam identificáveis, pois é a inserção de observações outras que
irão conferir a originalidade daquele momento. A respeito dessa
perspectiva, relacionamos, novamente, ao texto poético o que escreve Didi-
Huberman sobre o ato de ver:

Ora, o objeto, o sujeito e o ato de ver jamais se detêm no que


é visível, tal como o faria um termo discernível e
adequadamente nomeável (...). O ato de dar a ver não é o ato
de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam
unilateralmente do ‘dom visual’ para se satisfazer
unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver,
em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de
sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada,
aberta. Entre aquele que olha e aquilo que é olhado (DIDI-
HUBERMAN, 2010, p. 76-77).

O primeiro poema lido foi previamente escolhido porque marca os


dois vieses de análise que nos interessam mais na obra de Fernandes Jorge
ao unir um objeto artístico e uma paisagem em um mesmo lugar,
possibilitando uma leitura completa do que se pretende colocar em análise
nesta pesquisa. Entretanto, considerar os dois elementos em conjunto não é
uma rigorosidade e não será algo obrigatoriamente frequente nesta poética,
visto que é perceptível a recorrência desses eixos de maneira isolada nos
poemas dos demais livros que serão examinados, como é possível observar
com a leitura do segundo poema aqui elencado.

Ler a porção selecionada da obra de João Miguel Fernandes Jorge sob


as perspectivas desses dois filósofos dedicados a elementos distintos fará
com que surja uma aproximação favorável aos estudos literários, pois
permitem possibilidades de alargamento de sentidos que promovem
constantes deslocamentos e levam os leitores que acompanham as
subjetividades poéticas de cada poema, em sua singularidade, ao encontro
de lugares e objetos artísticos de diferentes naturezas e sob diversos olhares
por meio da palavra poética.

Dessa forma, os estudos sobre a paisagem e sobre as obras de arte se


encontram com os estudos literários mediados pelo olhar, colocando em
evidência a relação cultural e estética entre homem, objeto e espaço. Por
isso nos dedicamos, no âmbito da literatura, a discutir a percepção da
paisagem como percepção sobre o estar no mundo e o estar na escrita a
partir de experiências dos sujeitos, em conformidade com o pensamento de
Michel Collot, que reflete sobre a paisagem como uma questão
contemporânea, unindo uma imagem do mundo, uma imagem do eu e uma
construção de palavras. Consoante ao que propõe Didi-Huberman, para
realizar a leitura desta obra poética, estaremos atentos a sua sugestão
quando nos convida a abrir “os olhos para experimentar o que não vemos”
(DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 34).

Referências
ALVES, Ida Ferreira; FEITOSA, Marcia Manir Miguel (Orgs.).
Literatura e paisagem perspectivas e diálogos. Niterói: Editora da UFF,
2010.

ALVES, Ida, et al. Literatura e Paisagem em Diálogo. Rio de Janeiro:


Edições Macunaíma, 2011.

COLLOT, Michel. Poética e Filosofia da Paisagem. Rio de Janeiro:


Oficina Raquel, 2013.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução


por Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Editora. 34, 2010.
ERTHAL, Aline Duque. Ruy Belo: Um corpo que se escreve com a
paisagem. 2012. 105f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de
Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói.

GRIMM, Denise. “Olhos que viram: visualidade e paisagem na poesia


de Ruy Belo e Álvaro de Campos”. In: Revista Abril, v. 2, n. 2. Niterói:
Universidade Federal Fluminense, 2009.

JORGE, João Miguel Fernandes. O Roubador de Água. Lisboa:


Assírio e Alvim, 1981.

______. Obra poética. v. 1 [Sob Sobre Voz, 1971/ Porto Batel, 1972].
2. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1987.

______. Obra poética. v. 2 [Turvos Dizeres, 1973/Alguns Círculos,


1975.] 2. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1987.

______. Obra poética. v. 5 [O Regresso Dos Remadores, 1982/ À


Beira Do Mar De Junho, 1982]. 1.ed. Lisboa: Editorial Presença, 1996.PAZ,
Octavio. O arco e alira; São Paulo: Cosac Naify, 2012

MARQUES, Joana Emídio. “Porque é que não andamos todos a ler


furiosamente João Miguel Fernandes Jorge”, 2015. Disponível em:
<http://observador.pt/2015/05/07/porque-e-que-nao-andamos-todos-a-ler-
furiosamente-joao-miguel-fernandes-jorge/>. Acesso em 20/08/2018.

PEDROSA, Celia; ALVES, Ida.; JÚDICE, Nuno (org.) Crítica de


poesia tendências e questões Brasil – Portugal. Rio de Janeiro: 7Letras,
2014.

______. e ALVES, Ida (org) Subjetividades em devir: estudos de


poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

POESIA e viagem. Revista Relâmpago, Lisboa: Fundação Luís Miguel


Nava, n. 35, 2014.

ROSA, António Ramos. A Parede Azul: Estudos sobre poesia e artes


plásticas. Lisboa: Caminho, 1991.
Créditos das imagens
VILLAFRUELA, Daniel. Tombeau de D. João de Noronha. 01 de
agosto de 1967. Disponível em:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Óbidos-
Tombeau_de_D._João_de_Noronha-1967_08_01.jpg>. Acesso em
15/10/2019.
Citação, alegria do trabalho
manual
Paloma Roriz

Sumário

1.
Discorrendo sobre aspectos que caracterizariam um certo ponto de
viragem ocorrido na produção de poetas nas décadas de 1960 e 1970, a fim
de compreender com mais acuidade a diversidade e estratégias presentes na
poesia portuguesa mais recente, Rosa Maria Martelo assinala duas inflexões
materializadas nestas poéticas – e configuradas, em sua perspectiva, antes
como deslocamentos do que propriamente como rupturas –, diante de uma
tradição de modernidade: por um lado, uma “revalorização da textualidade
poética enfatizadas pelos poetas de 60” (MARTELO, 2007, p. 29), com o
poema vinculado claramente a uma espessura discursiva, e por outro, uma
poesia que, em meados de 70, irá evoluir “num sentido diferente”:

Reassumindo uma maior proximidade com o leitor,


propondo contratos de leitura que admitem efeitos
autobiográficos e/ou de realismo, evitando o risco de
hermetismo e mimetizando a linguagem quotidiana,
recorrendo a estruturas sintácticas muito mais lineares e
convencionais, recusando o apoio sistemático na metáfora ou
na imagem, optando por uma formulação mais narrativa e
pelo verso longo – o que a conduz a registos de
contaminação com a prosa –, esta poesia caracteriza-se por
operar, de diversas formas uma sobrecodificação que admite
uma leitura mais imediatista, embora sem excluir a
possibilidade de ser lida a um nível mais elaborado, até pelo
facto de frequentemente desenvolver relações intertextuais
de grande complexidade. (MARTELO, 2007, p. 29)
Martelo frisa, entre tais poetas, as “atitudes reactivas” perante valores
atribuídos ao pensamento poético dos autores de 60, recobrando a
conhecida colocação de Joaquim Manuel Magalhães, no início da década de
1980, a respeito da ideia de uma volta ao “real”, quando então podemos
perceber em certa poesia uma gradativa transparência em seu manejo mais
realista do discurso poético, com as “visões textualistas” da década anterior
sendo “profundamente postas em causa” (MARTELO, 2007, p. 43). E é em
meio ao contexto do surgimento deste “outro entendimento da poesia”, e
não sem atentar para as idiossincrasias de tais respostas, que a poética de
Manuel António Pina é brevemente situada, ao lado de António Franco
Alexandre e Nuno Júdice, entre a tentativa de conciliação da “evidenciação
da textualidade da poesia com a renovação de um lirismo mais figurativo e
com retorno a uma maior linearidade do ponto de vista sintáctico”
(MARTELO, 2007, p. 44). Com isso, o que Martelo sinaliza, no contexto
delimitado aqui em linhas muito gerais, é sobretudo a relação contraditória
que a produção de Manuel António Pina irá estabelecer com as tendências
das poéticas de então.

A dissonância da poesia de Pina já seria apreendida por Arnaldo


Saraiva num dos primeiros textos escritos sobre a sua produção que, para o
crítico, se desviava de qualquer tipo de ligação às correntes da época. Rita
Basílio, referindo-se à leitura de Saraiva, afirma: “Num certo sentido, é
como se MAP chegasse à poesia portuguesa dos finais dos anos 60 e
princípios de 70 na situação de um forasteiro: com outras referências, outras
preferências e inquietações, guiado por outras lições e outras leituras”
(BASÍLIO, 2017, p. 29). Já Rui Lage, referindo-se a uma expressão de
Saraiva em mesmo ensaio, ao descrever traços de uma “metafísica do
cotidiano” (SARAIVA, 1993, p. 15) presente na poética de Pina, pontua
aspectos que divergiam das manifestações poéticas de então:

Nos anos 70, década de estreia em livro de Pina, a poesia


dita do ‘regresso ao real’ e da experiência do desencanto
alheou-se das velhas indagações metafísicas para, em recusa
do ‘grande estilo’ e da Obra no que tinha de orgânica e total,
reclamar-se da ‘experiência’ e de uma eticidade da descrição
do cotidiano. Tais poéticas não colheram em Manuel
António Pina, de compleição demasiado irónica para
coabitar com um desencanto literal, demasiado cético quanto
à linguagem para pretender ressemantizá-la, demasiado
consciente do carácter tardio da poesia para se contentar com
anunciar o sempre extemporâneo fim do mundo (salvo se
irônico), em suma, demasiado culto para alinhar numa
desintelectualização do discurso e demasiado cerebral para
se dispersar em fragmentos contingenciais, antes tudo isso
em simultâneo e a sua superação tardia e, por tardia, irônica
e anêmica. Dito isto, aquilo que singulariza a obra de
Manuel António Pina é o encontro, no mesmo poema, da
densidade metafísica com o quotidiano doméstico. (LAGE,
2016, p. 44-45)

E é numa entrevista a Luís Miguel Queirós, que Manuel António Pina


parece deixar claro que, ao ser questionado acerca de prováveis alusões em
seus poemas a alguma poesia mais recente, de sua parte não haveria
qualquer movimento deliberado de “contra-ciclo”, quando afirma:

Mas não escrevo em função dessa contemporaneidade,


escrevo em função de muitas coisas mas dessa certamente
que não, e muito menos para alinhar ou desalinhar
deliberadamente o passo com ela. Nunca tive estratégia
alguma desse gênero, de conformidade ou de
desconformidade. Para falar a verdade, estou-me nas tintas
para a contemporaneidade poética; quero dizer: uma poesia,
ou um processo poético, não me interessam pelo facto de
serem ou não meus contemporâneos mas por razões decerto
menos objectivas e mais obscuras. (PINA, 2016, p. 188)

Na mesma entrevista, Queirós refere-se ao ano da publicação do seu


primeiro livro de poemas, 1974, citando alguns autores que naquele
momento também publicavam, como Gastão Cruz, Joaquim Manuel
Magalhães, António Franco Alexandre, por exemplo, ressaltando algo do
programático de seus títulos, enquanto possíveis respostas para as
“encruzilhadas” da poesia da época, para enfim perguntar como Pina se
situava naquilo, como a questão se lhe “punha”? Ao que responde, “A
questão não se me punha” (PINA, 2016, p. 181). Questionado ainda se não
lia outros poetas: “Nessa altura, as minhas leituras de poesia portuguesa
contemporânea eram fundamentalmente o O’Neill e o Ruy Belo” (ibidem).

Sem procurar problematizar mais detidamente as implicações e


especificidades referentes ao quadro literário, histórico e político da época,
assim como os problemas necessariamente implicados em demarcações
geracionais, as respostas dadas pelo autor parecem confirmar o que, de um
modo ou de outro, é argumentado pelos críticos acima citados: o diálogo
controvertido e nada evidente de uma poética em seu momento de aparição
com a cena contextual em que surge. Se Lage parece reconhecer na
produção de Pina peculiaridades com pouca margem de contato com a
produção de seus contemporâneos, vale, contudo, ressaltar o caráter
contraditório e não tão claro, nem delimitado, desta margem. Neste sentido,
retomo Martelo quando se refere ao desenvolvimento de “relações
intertextuais de grande complexidade” presente na nova direção tomada por
poetas em meados de 70, o que efetivamente diz respeito também, embora
de maneira particular, a algo que norteia a produção poética de Manuel
António Pina. Basílio, lembrando também que Fernando Guimarães e
Osvaldo Silvestre apontam certo isolamento do autor diante de sua época,
emprega uma imagem para pensar a excentricidade de sua figura: “Como
uma espécie de ‘Billy the Kid’ da poesia portuguesa, MAP entra no
panorama literário dos anos 70 como alguém que se estranha, que é
estranho e é estranhado, porquanto escapa à ordem (à língua) comum e
dominante” (BASÍLIO, 2017, p. 30).

2.
A imagem de um “forasteiro” como Billy the Kid, um pistoleiro, fora
da lei, ladrão de gado e de cavalos, tomado como metáfora, como sugere
Basílio, para o caráter contraditório e desordenado da relação dessa
produção com sua própria época parece ser interessante ainda pelo que
indiretamente indica de algo que, tomado mais a fundo, permeia toda uma
dinâmica interna da poética de Manuel António Pina: a ideia de infância,
pensada, contudo, não apenas como figuração temática, quer em poemas,
quer na sua produção infantojuvenil, mas sobretudo uma infância entendida
como certa operação discursiva, o que significa ler a infância através de
uma retradução desse topos literário. Rosa Maria Martelo dirá que a poesia
de Pina se apresenta como uma escrita que desde sempre “chega tarde”
(MARTELO, 2015), justamente em seu desejo de um contato – em 1970,
em Portugal – já tardio com a tradição moderna, algo que parece fazer
sentido no posicionamento não tanto extemporâneo, como quase
anticontemporâneo assumido pelo autor. Como certa operação discursiva,
tal infância se imprimiria portanto sob o signo de uma anacronia excessiva,
repartida e multiplicada no caráter acumulativo e proliferante da biblioteca
como uso, desmontagem, escrita e reescrita, literatura interminável, cansaço
de isto, ato de leitura, de escrita, do trabalho da citação, para pensarmos
aqui com Antoine Compagnon, quando citar surge como prática arcaica de
linguagem:

Recorte e colagem são o modelo do jogo infantil, uma forma


um pouco mais elaborada que a brincadeira com o carretel,
em cuja alternância de presença e de ausência Freud via a
origem do signo; uma forma primitiva do jogo da porrinha –
papel, tesoura, calhau – e mais poderosa se nada, no fundo,
resiste à minha cola. [...]
Recorte e colagem são as experiências fundamentais com o
papel, das quais a leitura e a escrita não são senão formas
derivadas, transitórias, efêmeras. Entre a infância e a
senilidade, que terei feito? Terei aprendido a ler e a escrever.
(COMPAGNON, 1996, p. 11)

É interessante pensar em que medida o desejo de contato da obra de


Pina com a tradição moderna – numa dicção elaborada quase sempre nos
interstícios entre pensamento e poesia, em seu caráter intermitentemente
autorreflexivo, na valorização da dimensão metadiscursiva do poema e em
toda a sua malha citacional – talvez seja atravessado por certa consciência
controvertida da impossibilidade da ultrapassagem desta modernidade
enquanto tradição mesma, se tomarmos aqui a perspectiva de uma
modernidade, entre as modernidades, como pensada por Henri Meschonnic
– na sua releitura de contrassensos presentes nas incontáveis invocações já
feitas a Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, assim como no entendimento de
que “não há sentido único da modernidade, porque a modernidade é, ela
mesma, uma busca de sentido” (MESCHONNIC, 2017, p. 51), e sobretudo
se apostamos, como Meschonnic propõe, numa teoria da linguagem para a
compreensão do que podemos entender por modernidade –, modernidade
tomada portanto como aquilo que excede o esquema, e que é ritmo, jogo
inscrito na faculdade do presente:

A teoria não é esse lugar sério que se crê. É Guignol. Os


metidos a disputam de maneira compungida. Personagens.
Máscaras. Entrem, entrem, e vocês verão. Vejam como eles
mexem, e agitem-nos vocês mesmos, aí está o prazer. A peça
está apenas começando. De qualquer ponto que alguém a
pega, chega-se sempre no começo. A peça não tem fim, é
claro. Nem moral. Já é uma moral, talvez, não ter final. Nós
somos todos, ao mesmo tempo, espectadores e atores.
(MESCHONNIC, 2017, p. 15)

A perspectiva de Meschonnic parte da busca de um sentido para a


modernidade na qual a arte e a literatura e “o poema particularmente, terão
posto a nu que a poética do sujeito é uma política do ritmo”
(MESCHONNIC, 2017, p. 14): o que praticamos através das práticas e
noções, na encenação da teoria que empregamos, revela o que fazemos do
sentido através dos “conceitos-máscaras”. Neste sentido, pensar infância na
escrita de Pina, significa também uma tentativa de olhar por trás das
máscaras do conceito e da categoria, pensando o que ela pode trazer
enquanto possibilidade de abertura de/na linguagem, o que nos aproxima,
por exemplo, daquilo que se articula e se opera – dimensão explosiva,
inversão dos sentidos, os contrários, o nonsense – na sua produção
infantojuvenil, não a partir de um viés de gênero e mero compartimento
literário, mas antes a partir de um pensamento de literatura “de um avesso
obscuro e silencioso da língua” (RANCIÈRE, 2017, p. 29), o que abre
espaço para o seu entrecruzamento e contato com o restante da produção
poética do autor, e o que faz sobretudo com que possamos lançar a infância
em Pina como um problema de linguagem.

Mas para olhar por trás do conceito-máscara, cabe lembrar de início


que a noção de infância como a entendemos hoje, em seu sentido
contemporâneo, surge como desdobramento de uma invenção elaborada ao
longo do século XVIII, como afirma René Schérer: “De Locke às
Réflexions sur l’éducation de Kant, e depois do impulso decisivo dado por
Rousseau com seu livro Emílio, instala-se um ‘sistema de infância’ que a
institui, ou melhor, a constitui literalmente, com suas prerrogativas”
(SCHÉRER, 2009, p. 18). A construção do questionamento acerca da
criança provocará o surgimento de uma nova sensibilidade apreendida, por
exemplo, no contorno que a ideia da infância tomará entre os primeiros
românticos alemães, em obras como a de Schiller em Sobre poesia ingênua
e sentimental, de 1795, orientado pela ideia desta “nova virtude”, como
aponta ainda Schérer:

A criança, objeto da solicitude das Luzes, receptáculo de seu


saber, instrumento do progresso, torna-se fonte de uma
iluminação de outra espécie. Por sua ‘ingenuidade’, ela
escapa da limitação; por sua natureza, ela reúne em si o
começo e o fim; ela desborda o tempo histórico no que diz
respeito à meta a atingir e ao ideal. (SCHÉRER, 2009, p. 22)

Orientação que de algum modo se direciona no sentido de uma “escrita


mais que escrita”, conforme Rancière, quando a idade romântica ligará a
uma “teoria da natureza cifrada” uma atenção “às formas mais elementares
da matéria e da vida” (RANCIÈRE, 2017, p. 13). Mais adiante, com
Baudelaire, a criança, que vê tudo como novidade – ao lado do artista, do
homem do mundo, do homem das multidões, “termina por colocar em seu
devido lugar as condições da modernidade” (MESCHONNIC, 2017, p.
124), as condições que “definem a percepção da modernidade”, infância
que também oferecerá, pelas mãos de Walter Benjamin, “a expressão
adequada para caracterizar a consciência quase visionária que formará uma
das dimensões de nossa modernidade: a ‘iluminação profana’, conservação
e metamorfose do sagrado” (SCHÉRER, 2009, p. 23).

Retomando a aproximação sugerida por Compagnon, no trabalho da


citação, entre a figura do escritor e a da criança, a ideia da manipulação do
recorte e da colagem – citação – como brinquedo, jogo infantil, passa pela
ideia do desenraizamento, da mutilação: “Quando cito, extraio, mutilo,
desenraízo. [...] Porque minha leitura não é monótona nem unificadora; ela
faz explodir o texto, desmonta-o, dispersa-o” (COMPAGNON, 1996, p.
13). Recorte e colagem são experiências com o papel, sendo a leitura e a
escrita apenas formas “derivadas, transitórias, efêmeras”, como sublinha.
Importa o papel, os instrumentos de colagem, o brinquedo, não o que é lido
ou escrito. Se pensarmos num dos subtítulos usados por Pina em seu
primeiro livro, Ainda não é fim nem o princípio do mundo calma é apenas
um pouco tarde, de 1974 (1969): “Billy the Kid de Mota de Pina, vida
aventurosa e obra ou Tudo o que acabou ainda nem começou” (PINA, 2012,
p. 15) – em Billy the Kid com o acréscimo de “de Mota de Pina”, vemos
como a assinatura, assim como o título, num duplo gesto citacional,
referência simultânea tanto ao filme Vício de matar, de 1958, de Arthur
Penn, como a um poema de Ruy Belo de mesmo título, “Vício de matar”,
de seu livro Homem de palavra[s], de 1969, parecem comparecer
justamente como montagem, forma derivada, embaralhada e quebrável, e
quase ironicamente avessa a qualquer tipo de conotação programática.
Personagens, nomes, jogo de papel. Guignol. Já Manuel António Pina conta
em uma de suas entrevistas:

E não havia brinquedos, tinha poucos brinquedos em casa. A


maior parte dos brinquedos era eu que os fazia, carrinhos,
barcos... Eu tenho muito jeito manual, estas estantes aqui fui
eu que fiz. Cá em casa sou eu que faço as reparações todas,
gosto imenso do trabalho manual. A alegria do trabalho
manual [...]. Fazia os brinquedos com a casca dos pinheiros,
é muito fácil esculpir aquilo. E outros brinquedos que eu
tinha, de facto, eram as palavras. (ALMEIDA, 2009, s/p)

Referências
ALMEIDA, Pedro Dias. Entrevista a Manuel António Pina. Revista
Praça Velha, Câmara Municipal da Guarda, 2009. In: Cultura da Visão,
2012. Disponível em: [http://visao.sapo.pt/actualidade/cultura/entrevista-a-
manuel-antonio-pina=f692243]. Acesso em: 12 de mar. 2019.

BASÍLIO, Rita. Manuel António Pina – Uma antologia do literário.


Lisboa: Documenta, 2017.

COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 1996.

LAGE, Rui. Manuel António Pina. Coimbra: Impressa da


Universidade de Coimbra, 2016.

MARTELO, Rosa Maria. Vidro do mesmo vidro: tensões e


deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961. Porto: Campo das
Letras, 2007.

MESCHONNIC, Henri. Modernidade, modernidade. Tradução por


Lucius Provase. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017.

PINA, Manuel António. Todas as palavras – Poesia reunida. Lisboa:


Assírio & Alvim, 2012.

_____. Dito em voz alta – entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo
(2000-2012). Sousa Dias (Org.). Lisboa: Documenta, 2016.

RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete,


Laís Eleonora Vilanova, Ligia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo:
Editora 34, 2017.
SCHÉRER, René. Infantis: Charles Fourier e a infância para além das
crianças. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2009.
A paródia, a metaficção e o policial
em Luís Fernando Verissimo e Jô
Soares
Paula Fernanda dos Santos

Sumário

Introdução
Para Gennete, intertextualidade significa uma “relação de co-presença
entre dois ou mais textos” (2010, p. 14). Umberto Eco afirma que toda obra
fala de outras obras, o que faz com que a intertextualidade seja a própria
condição da textualidade (HUTCHEON, 1991, p. 167). A intertextualidade,
portanto, é um mecanismo comum nas obras literárias. Deste modo, pode-se
dizer que a paródia é um recurso intertextual, que assimila um texto já
conhecido e dá a ele uma nova significação e interpretação.

Linda Hutcheon faz uma aproximação entre os conceitos de


paródia e metaficção que estão presentes na literatura pós-moderna. Ela
descreve a paródia como uma técnica de autorreferencialidade que “consiste
em substituir elementos dentro de uma dimensão de um dado texto de
maneira que o texto resultante fique numa relação inversa ou incongruente
com o texto que nela se inspira” (1985, p. 53), sendo que essa relação pode
ser feita de maneira satírica, irônica e/ou metaficcional.

Assim como a paródia, a metaficção é um fenômeno estético,


também, autorreferencial e, além disso, autoconsciente. Ela debruça sobre si
mesma e sobre seu processo de construção: metaficção é “fiction that
includes within itself a commentary on its own narrative and/or linguistic
identity1” (HUTCHEON, 1980, p. 12). Na metaficção, a linguagem de
representação do romance é tornada evidente, e o leitor é compelido a
admitir aquele mundo como ficcional. Linda Hutcheon defende que a
linguagem metaficcional é tipicamente pós-moderna, particularmente no
que se refere à historiográfica.
1 Tradução livre: “ficção que inclui em si mesma um comentário sobre sua própria identidade narrativa e/ou linguística”.

Por metaficção historiográfica, entende-se que “ela designa obras de


ficção que refletem conscientemente sobre sua própria condição de ficção,
acentuando a figura do autor e o ato de escrever, e até interrompendo
violentamente as convenções do romance, mas sem recair na mera
autoabsorção técnica.” (CONNOR, 1996, p. 106) Hutcheon tenta denunciar
a própria condição ficcional da história e sua conjuntura como narrativa.
Dessa maneira, a introdução de personagens e eventos históricos em
romances fictícios assume a intenção de distorção, falsificação e
ficcionalização dos mesmos, corroborando com a proposição de que “toda a
história é uma espécie de literatura” (CONNOR, 1996, p. 106).

Os romances
O romance de Luís Fernando Verissimo é construído em forma de
narrativa em abismo, ou mise en abyme. O conceito foi descrito por
Todorov como encaixe: a interrupção de uma “história precedente, para que
uma nova história, a que explica o ‘eu estou aqui agora’ da nova
personagem, nos seja contada” (TODOROV, 2013, p. 123). Ou seja,
aparece quando uma história é narrada por dentro de outra história, em
camadas, “falando de si mesma ou contendo a si mesma” (BERNARDO,
2010, p. 09).

A história principal é narrada em primeira pessoa por Estevão,


personagem principal, escritor de livros de literatura policial com baixo
valor estético, que mensalmente saíam nas bancas de jornais. As histórias
eram narrativas populares, sem crítica social, que serviam ao leitor apenas
seu prazer momentâneo. O herói favorito do narrador era o destemido
marinheiro Conrad, que entre o Velho e o Novo Mundo, fazia sua fama de
justiceiro e mulherengo.
O momento da narrativa é construído dentro do apartamento de
Estevão, no qual morava sozinho e quase nunca recebia visitas. O primeiro
conflito acontece quando essa rotina de escritor solitário se quebra, ao
receber, em sua residência, a presença do Inspetor Macieira. Crimes
idênticos ao descritos nos seus livros estavam ocorrendo na cidade, e não
podia ser apenas uma mera coincidência.

No entanto, não é somente a história da investigação desses crimes que


é descrita em O jardim do diabo. Paralelamente, as peripécias do
marinheiro Conrad eram contadas pelo narrador principal, em terceira
pessoa não-onisciente, como se o narrador estivesse “lendo” a história que
estava escrevendo para seus leitores. Oscilando por parágrafos diferentes –
e até no mesmo parágrafo –, as histórias se confundem, tanto pelo estilo
rápido e fluido da narração, quanto por suas similaridades.

A metaficção, além da forma em mise en abyme, é apresentada como


uma narrativa entre o jogo das histórias principal (Estevão) e secundária
(Conrad). As duas histórias são construídas utilizando os verbos,
majoritariamente, no pretérito, em primeira e em terceira pessoa,
respectivamente. Porém, há uma outra voz, na qual Estevão reconhece que
está escrevendo sobre suas memórias, fazendo adendos e comentários
autorreflexivos sobre o processo de escrita e elaboração de suas duas
histórias.

Você talvez tenha visto alguns dos meus livros nas bancas.
São aqueles livros mal impressos em papel jornal, com capas
coloridas em que uma mulher com grandes peitos de fora
está sempre prestes a sofrer uma desgraça. Escrevo um livro
por mês, com vários pseudônimos americanos, embora meu
herói – não sei se você notou – sempre se chame Conrad.
Conrad James. Herman Conrad. Um ex-marinheiro de
poucas palavras. Um peixe pequeno, mas mais de uma
cidade foi salva da catástrofe pela sua ação decisiva entre as
páginas 90 e 95. Tenho uma fórmula: a grande trepada por
volta da página 40, o encontro final com o vilão, e o
desenlace, a partir da página 90. Sobrevivo. (VERISSIMO,
2005, p. 09)

Com narrativa rápida, as frases curtas são utilizadas como estratégia


para manter a fluidez e a agressividade do texto, característicos da literatura
policial de estilo noir, tão presente no mundo Ocidental pós-Segunda
Guerra. De acordo com Sandra Reimão (1983), o estilo noir (“negro” em
francês), não mantém o mesmo modelo de narração do clássico de Sherlock
Holmes: o(s) crime(s) pode(m) ocorrer em qualquer momento da narrativa,
simultaneamente à fase da investigação, e a resolução do crime, quando
ocorre, não é feita por um detetive “máquina de pensar”, mas sim por
alguém falível que busca a justiça e a captura do criminoso.

A ficção policial é uma forma em que a tensão é totalmente


gerada pela apresentação do mistério e elevada pelo
retardamento da solução correta. Até mesmo os personagens,
em sua maior parte, são apenas funções do enredo. Como a
metaficção, ela coloca em primeiro plano as questões de
identidade. O leitor é mantido em suspense sobre a
identidade do criminoso até o final, quando as operações
racionais triunfam completamente sobre a desordem.
(WAUGH apud SANTOS, 2016, p. 74)

Segundo Paulo Medeiros de Albuquerque (1972), o romance policial é


marcado pela oposição entre o bem e o mal, e tem suas origens nos
romances de aventura. No romance policial noir, tipos como o
investigador/detetive, o crime, a violência, a provocação do leitor e o
conteúdo sexual, permeiam a narrativa. Em O jardim do diabo,
mensalmente – para seguir os padrões e a demanda da indústria editorial –,
Estevão lança um novo livro, cada um com um pseudônimo americano
diferente, como uma provocação parodística aos escritores estadunidenses,
que popularizaram o estilo.

O xangô de Baker Street segue, no entanto, uma outra vertente do


estilo policial: o enigma. A clássica narrativa de enigma é definida por
alguns padrões: a presença de um detetive extremamente racional, perspicaz
e frio, uma “máquina de pensar” e deduzir; o ponto de vista, geralmente, é
de um amigo do detetive, que usa o foco narrativo em primeira pessoa para
contar sobre o processo investigativo do detetive; a narrativa, de modo
usual, inicia-se já depois do crime cometido, descrevendo, portanto,
somente o período do inquérito.

Porém, a narrativa de Jô Soares ironiza esses parâmetros todos,


quebrando a expectativa de uma leitura mais próxima às regras do estilo de
enigma. A personagem principal do romance é uma conhecida da literatura
policial: Sherlock Holmes. Criado em 1887, o Holmes de Arthur Conan
Doyle segue todos os preceitos de um detetive de enigma: analítico,
excêntrico, máquina de pensar, capaz de fazer incríveis deduções e de se
entediar facilmente.

Todavia, o Sherlock que aparece em O xangô de Baker Street é uma


figura satirizada, uma máquina falha e bastante humana. Ademais, duas das
regras mais emblemáticas do estilo enigma são desafiadas: o narrador não é
um amigo do detetive – no caso, Dr. John Watson – e o foco do narrador-
memorialista se perde; além disso, o crime não é resolvido, nem por
Sherlock nem pela polícia do Rio de Janeiro, e o criminoso foge, impune.

O xangô é, também, um romance histórico, ambientado no Rio de


Janeiro da Belle Époque, no final do século XIX, e explora fatos históricos
que aconteceram nessa época. Selma Ferraz defende que “além de fatos
históricos, o narrador, ao fazer um retrato fiel dos costumes da época”
(1996, p. 303).

O autor, ao pintar os costumes do século passado, aproxima-


se de um historiador detalhista, que não mostra apenas fiapos
da história. Pelo contrário, viaja no tempo e, como um
verdadeiro arqueólogo, desnuda detalhes da vida das
pessoas, os costumes da época, os padrões de
comportamento, carregando suas cores com uma boa dose de
humor (...). (FERRAZ, 1996, p. 304)
A intensão do autor de descrever, com minúcia, os costumes do século
XX no Brasil, pode ser vista nessa passagem, que descreve uma placa posta
na entrada do Passeio Público:

É VEDADA A ENTRADA DO PASSEIO A ANIMAIS


DANINHOS DE QUALQUER NATUREZA, A PESSOAS
ÉBRIAS E LOUCAS, DESCALÇAS, VESTIDAS
INDECENTEMENTE, ARMADAS, E A ESCRAVOS,
AINDA QUE COM TRAJES DECENTES, A NÃO SER AS
AIAS OU AMAS CONDUZINDO CRIANÇAS. (SOARES,
2011, p. 288)

O texto tem início com a vinda da atriz francesa Sarah Bernhardt ao


Brasil, em 1886, e terminada com um irônico surgimento do psicopata Jack,
o Estripador. Várias personagens históricas são mencionadas ao longo do
livro: o Imperador D. Pedro II, Joaquim Nabuco, Olavo Bilac, Aluízio
Azevedo, Chiquinha Gonzaga, entre muitos outros. Até mesmo Machado de
Assis foi rapidamente citado.

No entanto, foram as personagens fictícias, Sherlock Holmes e o Dr.


John Watson, que ganharam destaque no romance. Após o roubo de um
violino Stradivarius e o assassinato de uma jovem prostituta, a pedido do
imperador e por recomendação da atriz francesa, o detetive inglês chega ao
Brasil para resolver esses crimes. Entretanto, o Sherlock de Jô não é um
típico inglês: apatetado e satirizado, ele não consegue acertar dedução
alguma:

– [...] Vejo que, contrariando as ordens do seu médico, a


senhora continua comendo ovos, às escondidas, no café da
manhã.
A pobre mulher assustou-se e gaguejou envergonhada:
– É verdade, senhor Holmes. Não consigo resistir...
Como descobriu?
– Simples, senhora Hudson. Na pressa de engoli-los, a
senhora deixou cair um pouco de gema na blusa, causando
uma mancha amarela. Logo, deduzi que a senhora
desobedeceu às ordens do doutor.
A governanta olhou acanhada para a gola da blusa:
– Bem, senhor Holmes, na verdade isso que o senhor
chama de mancha amarela é um broche de ouro que
pertenceu a minha mãe. Mas o engraçado é que realmente
comi uma omelete hoje cedo.
– É evidente. Minhas deduções estão sempre certas. O
broche é que está errado. Pode ir. (SOARES, 2011, p. 32)

A parodização da personagem está ligada ao tom irônico do texto: um


detetive inglês abrasileirado numa Rio de Janeiro que se pretendia
europeia. Há crítica, também, ao Estado brasileiro, principalmente, quanto à
sua ineficácia, representado pelo delegado Mello Pimenta e pelo médico-
legista Saraiva, que muito pouco conseguiram auxiliar Holmes na
investigação. Por conta de um sistema incompetente e de um detetive que
deixava muito à desejar, o ladrão e assassino sai impune. Sua identidade é
revelada para o leitor, pelo narrador-onisciente – e não por Holmes, como
manda o gênero –, no final do romance. “A paródia não é a destruição do
passado; na verdade, parodiar é sacralizar o passado e questioná-lo ao
mesmo tempo” (HUTCHEON, 1991, p. 165).

A metaficção no livro O xangô de Baker Street não mostra o processo


narrativo de maneira visível, como acontece em O jardim do diabo, mas
problematiza a construção de uma narrativa que foge de estereótipos de
gênero. Usando de acontecimentos históricos e personagens fictícias, Jô
Soares elabora uma obra nos moldes descritos por Linda Hutcheon, como
metaficção historiográfica, “intensamente autorreflexivos” (1991, p. 21),
aproximando e se apropriando dos fatos históricos e dos discursos
ficcionais: “na metaficção historiográfica, o autor não se sente obrigado a
refletir ou copiar o mundo exterior para criar seu mundo ficcional; ao
contrário, ele se volta para o discurso histórico e o põe em questão”
(SANTOS, 2016, p. 14).

Em O xangô de Baker Street, a metaficção fica por conta da


intertextualidade de personalidades e eventos históricos com personagens
fictícias, reconstruindo e contestando discursos sobre o passado, registrado
de maneira tão textual quanto a literatura (HUTCHEON, 1991, p. 152), e da
autorreferencialidade resultada da paródia de obras do gênero policial,
chamando atenção para sua estrutura. É possível, então, classificar esse
romance como sendo uma paródia intertextual de metaficção
historiográfica.

Conclusão
Em O jardim do diabo, a metaficção e a estrutura de mise en abyme
acarretaram uma confusão espaço-temporal entre as histórias de Estevão e
de Conrad. Vida e ficção passam a competir por mais alguns parágrafos e
pela atenção do leitor. Ao longo do romance, ao fazer comentários sobre
seu próprio processo de escrita, Estevão nos mostra os anseios de um
escritor de livros de quinta categoria, como ele mesmo diz. “A editora não
vai gostar”, sobre a quantidade de diálogos engenhosos e de mistérios mais
complexos.

A metaficção aparece de outra maneira em O xangô de Baker Street,


na forma de metaficção historiográfica. Esse recurso faz com que o
romance enfatize a ligação entre a literatura e a história, orientando
acontecimentos históricos para novas direções, sem, necessariamente,
reproduzi-los com veracidade. O autor, dessa maneira, traz ao texto uma
“sensação de presença do passado” (HUTCHEON, 1991, p. 165).

O recurso intertextual e paródico utilizado em O xangô serviu como


alicerce ao gênero policial de enigma, que aparece no romance de maneira
bastante caricata e até mesmo desrespeitando regras básicas do estilo, como
a própria resolução do crime e a descoberta do criminoso. Representada no
romance pelo detetive Sherlock Holmes e seu amigo Dr. Watson, a temática
policial ganha destaque pela sua capacidade elástica de ser parodiada e
reinventada.
Referências
ALBUQUERQUE, Paulo de Medeiros e. O mundo emocionante do
romance policial. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

BERNARDO, Gustavo. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta


Negra Bazar Editorial, 2010.

CONNOR, Steven. Cultura Pós-moderna: introdução às teorias do


contemporâneo. Tradução por Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela
Gonçalves. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

FERRAZ, S. O Xangô do Jô. Semina: Londrina, Ci. Sociais/Humanas,


Londrina, v.17, n.3, p.302-312, set. 1996.

GENNETE, Gerárd. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo


Horizonte: Edições Viva Voz, 2010.

HUTCHEON, Linda. Narcissistic narrative: the metafictional paradox.


Waterloo, Ontario: Wilfrid Laurier University Press, 1980.

______. Uma Teoria da Paródia: ensinamentos das formas de arte do


século XX. Tradução por Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1985.

______. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção.


Tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.

REIMÃO, Sandra. O que é romance policial. 2. ed. São Paulo: Editora


Brasiliense, 1983.

SANTOS, Evaldo Gondim dos. O Processo Tornado Visível:


metaficção paródica e narrativa policial em O Xangô de Baker Street, 2016,
145 p. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem/PPgEL), Universidade
Federal do Rio Grande do Norte/UFRN, Natal.

SOARES, Jô. O Xangô de Baker Street. 41. reimp. São Paulo:


Companhia das Letras, 2011.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução por Leyla
Perrone-Moisés. 2. reimpr. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.

VERISSIMO, Luís Fernando. O Jardim do Diabo. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2005.
Crítica e conhecimento em José
Cardoso Pires
Paulo Alex Souza

Sumário

Introdução
Dentro do amplíssimo debate sobre a relação entre literatura e
realidade social, ganham destaque as questões referentes à atuação da
literatura como denúncia, testemunho, conhecimento, ou até como
intervenção político-social, para além da sua constituição como objeto de
arte. Tal atuação é tradicionalmente alvo de críticas, principalmente por
parte dos que veem a arte literária como exclusivamente uma estrutura de
linguagem carregada de sentidos que gira em torno de si mesma. Neste
trabalho, fruto de nossa pesquisa de doutorado em torno de uma teoria
literária do conhecimento, não desprezamos, em hipóteses alguma, o teor
imanente de artefato de e da linguagem da literatura, ao contrário, queremos
saber como, para além de ser estrutura de linguagem, a literatura pode ser
também estrutura para o conhecimento da realidade social.

Que a literatura é ou pode ser fonte de conhecimento não é novidade,


da mesma forma que é lugar-comum dizer que a literatura é crítica porque
ela suscita a reflexão. Concordamos com estas considerações, contudo, as
consideramos vagas e generalizantes. Por isto, queremos investigar a
potencialidade epistemológica do fenômeno literário, a fim de fornecer uma
base real concreta que sistematize essa potencialidade em uma teoria
literária do conhecimento. Em um texto seminal, Antonio Candido (2012, p.
85) indaga: “teria a literatura uma função de conhecimento do mundo e do
ser?”. Sua resposta é afirmativa, e ele se dispõe a “abordar o problema da
função da literatura como representação de uma dada realidade social e
humana, que faculta maior inteligibilidade com relação a esta realidade”
(CANDIDO, 2012, p. 85-86), apontando “um exemplo de relação das obras
literárias com a realidade concreta” (CANDIDO, 2012, p. 86). Veremos
rapidamente este procedimento analítico do autor.

Seguindo neste caminho de pesquisa, o autor português José Cardoso


Pires (1925- 1998) surgiu à nossa frente como uma feliz surpresa, em
virtude de sua visão de mundo, do contexto histórico em que viveu, e claro,
dado às características de sua escrita literária, das quais, neste trabalho,
apenas teremos um vislumbre.

Vetor literário de conhecimento


Para dar corpo à teorização acerca da produção (que é também
veiculação) de conhecimento por meio da literatura, devemos apontar como
tais atos são feitos, ou seja, devemos apontar os vetores pelos quais o autor
faz com que o universo ficcional criado por ele se relacione criticamente
com a realidade social. Chamamos de vetor aquilo que consideramos ser
um meio pelo qual o autor, no seu fazer literário, produz conhecimento. Um
vetor é um condutor, ou um portador. Um condutor conduz algo a algum
lugar, assim como um portador porta algo próprio ou de outrem, e ambos
fazem o que fazem com uma finalidade. O que pretendemos, então, é
elencar vetores literários de conhecimento, condutores que liguem
representação ficcional, conhecimento da realidade e consciência do leitor,
portadores de conhecimento que se manifestam seja mais no conteúdo, seja
mais na forma, ou ainda numa simbiose destes dois, resultando em
conhecimento concreto e crítico da realidade social.

Recuperando a contribuição de Antonio Candido no texto citado


acima, podemos extrair, de sua análise comparativa entre os autores Coelho
Neto e Simões Lopes Neto, um vetor ao modo como definimos aqui.
Ambos os autores pertencem ao chamado Regionalismo, contudo, o crítico
aponta como cada um representou, diferente e qualitativamente, a
personagem e a fala de um homem rural pobre e rústico. O primeiro, diz
Candido (2012, p. 87-88), criou uma “espécie de estilo esquizofrênico,
puxando o texto para dois lados e mostrando em grau máximo o
distanciamento em que se situava o homem da cidade”, uma “injustificável
dualidade de notação da fala, que não pode ser explicada senão por motivos
de ideologia”, consequência de uma “técnica ideológica inconsciente para
aumentar a distância erudita do autor”, que resultou em “confinar o
personagem rústico, por meio de um ridículo patuá pseudo-realista, no nível
infra-humano dos objetos pitorescos, exóticos para o homem culto da
cidade”. Já o segundo, Simões Lopes Neto, assegurou uma “uma
identificação máxima com o universo da cultura rústica, adotando como
enfoque narrativo a primeira pessoa de um narrador rústico”, e ao adotar
“um estilo castiço registrado segundo as convenções da norma culta”.
Como consequência, “o universo do homem rústico é trazido para a esfera
do civilizado” e o leitor “se sente participante de uma humanidade que é a
sua, e deste modo, pronto para incorporar à sua experiência humana mais
profunda o que o escritor lhe oferece como visão da realidade”
(CANDIDO, 2012, p. 88-89).

Em face dessa lição de análise literária, acreditamos que Antonio


Candido forneceu base para um vetor literário, o qual, podemos chamar de
“Adequação crítica entre tema e linguagem”. Estas palavras não foram
fortuitamente escolhidas, nem são de nossa inteira lavra (apenas o termo
crítica é nosso), porém, vêm do próprio crítico, que, ao apontar que “o
Regionalismo estabelece uma curiosa tensão entre tema e linguagem” (ibid.,
p. 86), adverte que isso o torna “um instrumento poderoso de transformação
da língua e de revelação e autoconsciência do País; mas pode ser também
fator de artificialidade na língua e de alienação no plano do conhecimento
do País” (CANDIDO, 2012, p. 87, grifos nossos). Neste trabalho,
apontamos dois vetores presentes em duas obras de José Cardoso Pires, a
saber, o vetor “Representação crítica de processos sociais”, e o vetor
“Crítica das relações sociais”.

José Cardoso Pires e o Neorrealismo português


De modo geral, a literatura deste autor mantém íntima relação com a
realidade social, com as amplas questões que dizem respeito não a um
indivíduo ou grupo isolado, mas afetam, por exemplo, uma classe, como a
classe trabalhadora. Daí serem recorrentes em seus escritos temas ligados
ao universo do trabalho. Essa íntima relação de sua literatura com a
realidade vem, de certo, de duas causas fundamentais e interligadas: 1)
Cardoso Pires nasceu e viveu a maior parte de sua vida durante o regime
político iniciado com o golpe de Estado de 1926, consolidado como
governo ditatorial de Antonio Salazar (o Estado Novo) em 1933, e
estendido até Abril de 1974, quando se deu a Revolução dos Cravos; 2) sua
literatura filia-se ao chamado Neorrealismo português (usaremos aqui a
grafia contemporânea).

O neorrealismo português foi a resposta artística – como movimento, a


partir de 1937 – ao regime político de Salazar. Para esse momento histórico
e os artistas que o viveram, “a literatura constituiu um momento de
afirmação doutrinária e política da consciência intelectual portuguesa
modelada pelo marxismo” (PITA, 2015, p. 58). Com a consciência crítica
aguçada pelo regime de exceção, influenciados pelo marxismo e por toda a
agitação política pela qual passava a Europa desde a Revolução Russa de
1917, os autores neorrealistas colocaram na ordem do dia a “necessidade de
realidade” (a expressão é de Joaquim Namorado, segundo Antônio Pedro
Pita). Esse regresso à realidade consistiu em “valorizar a realidade presente
como ponto de partida e mediação (sobretudo mediação) para o
conhecimento, que é transformação, de uma realidade histórica” (PITA,
2015, p. 60-61). Pelo exposto, os autores partiam do pressuposto de que a
literatura pode promover o conhecimento de uma dada realidade social, e os
escritos de Cardoso Pires são exemplos concretos disso, seja num romance
longo como O Delfim, seja num romance curto como O hóspede de Job.
Vejamos isto de perto.

Vetor 1: Representação crítica de processos


sociais
O romance se consolidou como gênero literário na história da cultura
(ocidental) como narrativa biográfica sobre um indivíduo, centro de
gravidade em torno do qual se desenrolam os fatos. Ainda que haja obras
que relativizem o peso dessa configuração estética, a biografia individual
permanece como o paradigma do gênero. Uma maneira de relativizar o peso
desse paradigma consiste na representação ficcional de processos sociais,
sejam estes de ordem conjuntural, sejam de ordem estrutural. O que vem a
ser isto? É trazer à narrativa questões, temas, problemas relacionados à
sociedade como um todo, cujo movimento e suas consequências atingem,
não o indivíduo isoladamente, mas sim a comunidade.

A representação ficcional de processos sociais pode ser um vetor


literário de conhecimento; mas, por quê? Porque ao fazer isto, o autor
multidireciona propositalmente a atenção do leitor também para, por
exemplo, o fundo histórico-social da trama narrativa, que, por
consequência, tem o seu status tradicional deslocado. O seu papel
tradicional como moldura temporal histórica é inflado, sua significação
própria cresce, enriquecendo a narrativa de novos sentidos por meio das
relações novas que estabelece com as personagens ao longo da trama.
Também porque é uma maneira privilegiada de desvendar as imposturas
decorrentes de uma sociedade dividida em classe, com inúmeras injustiças,
com desigualdade social em maior ou menor grau, com a manipulação
midiática, repressão militar, etc.

A literatura de Cardoso Pires pratica esse multidirecionamento da


atenção do leitor para o processo social, que, então, passa a figurar em
primeiro plano, isto é, as questões ou os problemas sociais são postos em
evidência, até mesmo à luz da consciência dos personagens, para além da
consciência do narrador. Vejamos agora como o autor retrata um processo
social que mescla elementos de cunho estrutural, ou seja, relacionado a
estrutura organizativa da sociedade, com elementos de cunho conjuntural,
relacionado a situação política do país.

Nos quatro primeiros capítulos de O hóspede de Job, vemos um


movimento que vai, progressivamente, de uma microrrealidade a uma
macrorrealidade: de três militares bebendo e conversando em uma venda na
vila militar de Cercal Novo, para um protesto das mulheres da comunidade
de Cimadas, cujas ruas são agora patrulhadas pela polícia: “Na véspera, as
mulheres tinham marchado sobre a Vila e, todas em coro, apresentaram-se
na Câmara. Pediam pão para casa, trabalho para os maridos” (PIRES, 1998,
p. 27). A partir deste ponto, o narrador apresenta uma situação
problemática, um problema social, em linguagem sociológica: o conflito
entre trabalhadores por trabalho. A sociedade dividida em classes, e regida
pelo modo de produção capitalista, esconde as suas determinações
fundamentais, e o indivíduo (o trabalhador, por exemplo) nem sempre tem
compreensão das causas de sua situação (o desemprego, por exemplo), acha
que a culpa ou a causa de sua situação é um outro indivíduo igual a ele, na
mesma situação que ele. O narrador expõe de modo irônico o caráter
estrutural do desemprego, ao falar do resultado da procura por trabalho
pelos viajantes João Portela e tio Aníbal: “No Lavre, conforme fora previsto
pelo vento, não havia trabalho para ninguém, e desse modo os viajantes de
Cimadas dirigiram-se a Cercal Novo” (PIRES, 1998, p. 113, grifo nosso).

Um problema estrutural está na base do protesto e do conflito entre os


trabalhadores, bem como na base do desemprego e da fome que assola os
camponeses: a estrutura latifundiária de Portugal, a concentração de terras
cultiváveis nas mãos de um punhado de grandes proprietários rurais. Aliás,
este tema é alvo da preocupação do autor, e está presente também na obra O
Delfim, do qual extraímos um belo exemplo de representação de um
processo social relativo a essa mesma estrutura latifundiária: a apropriação
e exploração de um recurso natural (uma lagoa), por parte dos moradores da
vila da Gafeira. A tal lagoa pertencia a muitas gerações à tradicional e
abastada família Palma Bravo, exemplo da concentração de terras do país.
Porém, ao tempo da volta do escritor à vila, o descendente da família,
também chamado de Engenheiro, perdeu a posse da lagoa, que fora
arrematada por noventa e oito moradores da Gafeira. Ao longo do romance,
são inúmeras as referências à lagoa e a sua importância para os moradores,
visto que Cardoso Pires pulverizou a explicação da apropriação da lagoa
pelos moradores, com apontamentos aqui e ali, em geral, pelas bocas do
narrador (o escritor) e do Regedor: “No largo temos o Regedor, que está à
frente dos arrendatários da lagoa. Agora é dele que depende a licença de
caça, não de Tomás Manuel” (PIRES, 2008, p. 78).

O tempo passou, a história se moveu, a mudança social se deu e está


materializada na licença de caça passada por ordem dos habitantes, nas
mãos do escritor-narrador, que logo em seguida destaca a fala orgulhosa do
Regedor: “‘Fomos à praça em nome de noventa e oito homens’” (PIRES,
2008, p. 78). E mais à frente: “Em tom de vossa excelência, descreveu-me
as muitas dificuldades que vencera, ele e os noventa e oito, para se reunirem
em cooperativa à face da lei. Os olhos luziam-lhe” (PIRES, 2008, p. 81). O
orgulho do Regedor se casa com uma preocupação, afinal de contas, ele está
“representando no momento atual a lagoa e os noventa e oito camponeses,
estava investido de novos poderes” (PIRES, 2008, p. 81). À propósito desta
citação, o comentário crítico de Teresa Cerdeira se encaixa como uma luva
justa: “O que a narrativa deste romance de Cardoso Pires põe em evidência
é a questão do poder, tomando como metáfora o último líder do clã dos
Palma Bravo, Tomás Manuel, o Delfim” (CERDEIRA, 2008, p. 23).

Do ponto de vista que nos interessa aqui – a da representação ficcional


de processos sociais que possibilite ao leitor a construção de conhecimento
sobre a realidade social –, a representação da ascensão desses novos
poderes é um ponto fulcral, pois é, ao mesmo tempo, a denúncia de um
problema social de cunho estrutural – o latifúndio – que se arrasta como um
fardo do tempo passado, e a solução deste problema, no caso, a socialização
da lagoa como recurso natural a fornecer renda aos moradores.

Apontemos agora um exemplo de como Cardoso Pires representa


ficcionalmente um problema social de cunho conjuntural, que em O
hóspede de Job está representado, entre outros assuntos, na presença dos
militares na narrativa, especificamente, na ação repressiva dos militares
durante e depois do protesto das mulheres de Cimadas: i) intimidação:
“ladrava o sargento Leandro por ordem, ordem e mais ordem. A linguagem
dos animais com medo” (PIRES, 1998, p. 28); ii) dispersão: “Com palavras
de toda a espécie e principalmente com os seus soldados, Leandro
conseguiu afastar as mulheres para a estrada de Cimadas” (PIRES, 1998, p.
28); iii) prisão e interrogatório de manifestantes: “E o sargento Leandro, da
G.N.R., caçou a mais nova das Sota e trancou-se com ela no posto: ‘Ora
conta, mocinha. Que maluqueira deu agora nos de Cimadas?’” (PIRES,
1998, p. 27).

Essa presença refere-se à conjuntura política de Portugal à época de


escrita do romance. Escrito entre Março de 1953 e Maio de 1954, O
hóspede de Job cria um certo “retrato” da sua época, recriando a repressão
política e policial da época, praticada pela Guarda Nacional Republicana (a
GNR referida acima) e pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do
Estado), durante a ditadura salazarista. Embora o Estado Novo tenha
perdurado por quatro décadas e seja também produto de fatores estruturais,
aqui, para fins de nossa argumentação, destacamos o seu componente
conjuntural, isto é, o fato de ser o regime político resultante das disputas
políticas travadas, especialmente, na década de 1920. Os militares, como
uma das questões problemáticas presente neste romance, também estão
ligados a outro processo político conjuntural: a ligação do governo
português com o governo dos Estados Unidos, fruto da cooperação militar
entre os dois países, concretizada na obra pela presença dos militares
estadunidenses, representados na figura do capitão Eustace H. Gallagher, de
Michigan, que está em Portugal para treinamento das forças nacionais:
“esse alguém era Gallagher, o capitão americano, que, entre uma garrafa de
whisky e um cinzeiro a fumegar, compunha o seu relatório sobre as armas e
os soldados de Cercal Novo” (PIRES, 1998, p. 167).

Construída a significação das obras – no dizer de Maria Lúcia Lepecki


– e dentro do projeto ideológico delas – no dizer de Teresa Cerdeira – , o
protesto dos moradores de Cimadas e o arrendamento da lagoa pelos
moradores da Gafeira são “acontecimentos importantes em si mesmos, mas
que são importantes também para as relações inter-humanas dos
personagens que os protagonizam e importantes para a significação social
do variado desenvolvimento assumido pela vida humana de tais
personagens” (LUKÁCS, 2010, p. 154). Os processos sociais vividos e
engendrados pelos indivíduos podem, e devem, funcionar como obstáculos
às relações sociais que os oprimem e exploram, e, ao mesmo tempo, como
alavancas sociais para que novas relações sociais, relações humanas de
novo matiz, brotem e sejam estabelecidas. Compreender as relações sociais
são de suma importância para compreender a sociedade como um todo, sua
organização, seu funcionamento, seus valores e interesses dominantes, as
forças para a conservação e as forças para mudança social. Em virtude
disso, tratemos agora do segundo vetor literário de conhecimento, referente
às relações sociais.

Vetor 2: Crítica das relações sociais


Toda e qualquer narrativa de ficção é a recriação figurativa
(imaginativa) das relações sociais vigentes na sociedade da qual ela, a obra
ficcional, é um produto cultural. Entendido assim, os autores e autoras
reproduzem, de modo geral, o complexo da relações humanas recebido de
suas comunidades, desde o começo de suas vidas. Para fins de nossa
pesquisa, interessa-nos investigar autores e obras que mostrem uma postura
crítica frente a esse complexo de relações, desmascarando suas imposturas e
injustiças, desnaturalizando estruturas de pensamento e de valores que
reforçam o status quo e o establishment. Para analisar como se dá a crítica
das relações sociais, especificamente, relações conflitantes, retomemos a
ponta do fio deixado pela parte anterior: a relação entre os militares e os
civis. O tema do militarismo no romance é tratado sempre na sua relação
opositiva à vida civil, à vida comum dos trabalhadores camponeses e
operários. A vida militar é tratada como uma vida paralela e estranha ao
restante da sociedade, em decorrência disto, como dissemos, os militares
comparecem negativamente em O hóspede de Job. Isso é resultado da visão
crítica do autor, que, por sua vez, não decorre da conjuntura política da
época, mas é consequência do ideário político pessoal de Cardoso Pires, um
indivíduo francamente à esquerda do espectro político. Esta observação,
esperamos, ficará clara com o apontamento que faremos aqui.

Vamos começar por apontar a relação opositiva mais gritante no


romance, transformada em símbolo, e que funciona como um ponto
culminante da tensão entre civis e militares, explorada ao longo da
narrativa: a oposição entre o trabalhador João Portela e o capitão Gallagher.
No fundo, esta oposição concentra simbolicamente um cipoal de relações
igualmente opositivas, tais como, explorador x explorado, dominador x
dominado, forte x fraco, local x estrangeiro, etc. O seu caráter simbólico
advém dos fatos de que João é o Job do romance, e o capitão é o hóspede de
Job. Tais definições são estabelecidas às claras pelo narrador, quando a
narrativa se encaminha para o seu final, ao chamar o capitão de hóspede de
honra.

João do Rosário Portela, como já apontamos, é um camponês à procura


de trabalho. No caminho, ele é atingido na perna por estilhaços de uma
bomba lançada por militares em treinamento de tiro. É levado para a
enfermaria da vila militar, depois para um hospital, e tem a perna amputada.
Durante a recuperação, João repousa no jardim da sede militar de Cercal
Novo, e o capitão Gallagher chega à varanda do segundo andar do prédio:
“A páginas tantas, bebeu uma golada de whisky e veio à janela tomar
alento. Lá em baixo, pregado num muro de cicatrizes, Job contemplava,
com olhos mudos, o cair da tarde e os pássaros que saltitavam à sua volta”
(PIRES, 1998, p. 168). Por que começamos com esta oposição tão
explícita? Por que, sendo ela o ponto culminante como dissemos, não a
expomos como ponto culminante também de nossa análise? Justamente,
porque ela é o ápice, e como tal, está na superfície da trama, na superfície
do texto, e se refere diretamente ao próprio título do romance. Ao contrário
do desenvolvimento tradicional das análises críticas, que partem do comum
para o ápice, escolhemos partir do ápice para descer aos exemplos menos
significativos (em comparação com o ápice).

João Portela, preste a ser alçado à categoria de personagem simbólico


(o João-Job), reúne em torno de si mais exemplos da relação social
conflitante entre militares e sociedade civil. É significativa a imagem dos
militares-enfermeiros que cuidam desse personagem, depois que ele tem a
perna cortada: “eram manchas sem rosto, chacais de bata branca, parceiros
da morte a cobiçarem-lhe a carne” (PIRES, 1998, p. 153-154). Na natureza,
os chacais são animais carniceiros que, via de regra, colhem as sobras de
caça de outros animais. Nesse ponto da narrativa, Cardoso Pires clarifica
ainda mais a posição abjeta na qual os militares são postos dentro da
significação geral da obra.

Agora, desçamos um degrau na análise para vermos que a crítica ao


militarismo não se dá somente em virtude da conjuntura política, à época
em que o romance foi elaborado. Logo após os três capítulos iniciais, o
narrador alarga o campo de visão ao focar, não em um problema ou aspecto
específico do militarismo, porém, na própria vida militar: “No Cercal
castiga-se muito e come-se mal...” É com esta lição bem assente que os
soldados deixam amigos, enxada e família para se entregarem à triste vida
da caserna” (PIRES, 1998, p. 25). Além de apontar a vida ruim que se leva
no quartel, este trecho explicita que em Portugal, como em qualquer país, a
massa que compõe as Forças Armadas é proveniente da classe trabalhadora.
Contudo, o que o trecho expõe de mais importante é a alienação que a vida
militar impõe aos indivíduos. Por alienação, entendemos, num sentido
amplo, um fenômeno social que atinge tanto a consciência quanto o corpo
dos indivíduos, e que se caracteriza por simultaneamente distanciar e
moldar corpo e consciência, a fim de obter um comportamento
determinado. Trata-se de uma segregação físico-espacial (“os soldados
deixam amigos, enxada e família”), de uma modelação imposta (“cobertos
com uma farda que cobriu antes deles outros operários”), de um
ordenamento sistematizado e hierarquizado (“essa roupa, esse simples
número de regimento”). Todo esse processo leva a um resultado: a
alienação (“alheiam-nos da terra, da planície que se abre a dois passos
dali”). Tal resultado se verifica também no plano da consciência, e, nesse
caso, o verbo escolhido por Cardoso Pires é cristalino: alhear significa
alienar, afastar-se de, distrair-se, não tomar consciência de algo. Uma vez
submetidos à vida militar, os agora ex-operários, ex-camponeses ou ex-
pescadores, não possuem mais a mesma consciência de antes, visto que
estão socialmente distantes da realidade que fora a deles, ainda que ela
esteja “a dois passos”.

O tema da alienação percorre a história do marxismo, sendo um dos


seus temas mais divulgados, e o marxismo foi uma das fontes – talvez a
principal – do neorrealismo português. É claro que Cardoso Pires entrou em
contato, em algum grau, com discussões e questões de teor marxista. A
crítica à vida militar mostra que a visão do autor em relação aos militares
não se dá pelo plano da imediaticidade da conjuntura política, mas, tem
raízes, e desce até as consequências profundas na consciência dos sujeitos.
A presença dessa critica na obra não é fortuita, mas parte diretamente da
posição política de Cardoso Pires, que, ligado ao neorrealismo, soube, de
modo engenhoso, dar vazão ao seu posicionamento político-crítico.

Cardoso Pires investe na crítica das relações sociais também no


patamar da sociedade civil estrita, desvendando conflitos resultantes da
desigualdade de classes. Em O Delfim, desde o início, é posta uma
diferença social bem tradicional, entre a aristocrática família Palma Bravo,
representada por Tomás Manuel, e todos os demais personagens – inclusa aí
a própria esposa dele! Aqui se aplica a mesma citação de Teresa Cerdeira
sobre a questão do poder nessa obra, aliás, a analista aponta os conflitos
essenciais que envolvem essa questão, e que giram em torno de Tomás e das
personagens a sua volta imediata (esposa e criado). Com um e outro, o
Engenheiro mantinha uma relação de hierarquia e de opressão: “O circuito
que se desagrega – Tomás, Maria das Mercês e Domingos – era constituído
por um dominador e dois oprimidos” (CERDEIRA, 2008, p. 26). Os dois
oprimidos são mortos e o Tomás desaparece da Gafeira, se desfazendo,
assim, a estrutura tradicional de poder pela morte simbólica (o
desaparecimento) do último herdeiro da família, que não possui filhos e já
havia perdido a propriedade da lagoa.

O exposto acima sobre as personagens é um dos dois polos nucleares


da relação de poder no romance; o outro polo é justamente a transferência
de propriedade da lagoa. Apontemos uma passagem significativa de como
Cardoso Pires perscruta a teia de relações sociais problemáticas: o caso de
uma surra que Tomás Manuel dá em Domingos. Porém, o motivo da surra,
do ponto de vista de Tomás, é o mais interessante no episódio: “Vinha de
ajustar contas com o emigrante, agora era a vez do criado. Filando-o pelo
pescoço (...), esbofeteia-o, cospe-lhe insultos em cima de insultos” (PIRES,
2008, p. 229).

Um emigrante vindo da América e motivado pelo racismo contra


pessoas negras, insultava constantemente o Domingos, indo contra “uma lei
de família”. E, como expõe o narrador em um dos seus apontamentos feitos
no passado: “Tocar-lhe só o Engenheiro, e, para que não se duvide, a
sentença está lavrada a páginas tantas do meu caderno: ‘Quem me trata mal
os criados é porque não me pode tratar mal a mim’” (PIRES, 2008, p. 227-
228). Este é um dos vários provérbios de autoria do Delfim e expressam a
sua visão de mundo. Cardoso Pires, para desfraldar a teia de relações
conflitantes, dispersa o processo pela consciência dos próprios
participantes, formando uma outra teia, polifônica, pois feita de várias
vozes e registros.

As agressões do Engenheiro ao Domingos e ao emigrante, embora


relacionadas e, na essência, oriundas de uma fonte comum (a posição social
superior e autoritária de Tomás), superficialmente obedecem a motivações
diferentes, na perspectiva do Tomás: o emigrante foi agredido porque
ultrapassou uma fronteira socialmente estabelecida, oriunda de relações
sociais de propriedade e de servidão (ofender ao criado, servo ou escravo, é
ofender ao senhor); já o criado apanhou por não se impor e não se opor à
atitude do emigrante, e, assim, deixar que o patrão fosse indiretamente
ofendido, sem oferecer uma resistência minimamente digna (o Tomás, é
lógico, ignora se o criado tem ou não condições pessoais e sociais para
tanto). A reação do Engenheiro depois da agressão surpreende o leitor, pois
ele ficou perturbado com o evento. A nosso ver, isso é mais uma prova de
que a atitude do Engenheiro foi motivada por uma “obrigação moral”, e
como sabemos, toda moral é socialmente construída: sendo o Domingos o
criado, como uma propriedade, cabe ao senhor cobrar qualquer ofensa
imposta a ele por outro qualquer. O exposto mostra que Cardoso Pires,
conscientemente, desnuda e critica as relações sociais problemáticas, sem
deixar que seu texto descambe para o discurso panfletário ou para o
didatismo de ar superior.

Considerações finais
No tocante ao primeiro vetor literário de conhecimento, Cardoso Pires
vai além da representação de um pano de fundo histórico, em O hóspede de
Job, é o próprio processo social que funciona como motor narrativo da
trama. Neste romance, acreditamos não errar ao afirmarmos que o processo
social assume o primeiro plano, pois dele é que emergem as personagens
com seus dramas individuais: do protesto da comunidade de Cimadas,
brotam as figuras da jovem Floripes e de sua vó. A primeira é presa e
interrogada pelos militares; já a segunda, vive o drama do familiar de um
preso político. Do mesmo problema social, surgem João Portela e Aníbal,
emigrantes em busca de condições melhores de vida, e ao longo da jornada
deles, seguem-se referências ao tema do trabalho e afins.

Já em O Delfim, o processo social de tomada da lagoa por parte dos


moradores já se deu quando da chegada do personagem-narrador à Gafeira,
ainda assim, também é daquele processo que emergem os personagens
secundários, pois, como salienta Lepecki (1977, p. 28-29), “construída a
significação d’O Delfim, camponeses-operários ascendem a personagens
principais, pois com eles, por eles e neles se faz o texto e ainda porque,
embora não pareça, contracenam todo o tempo com Escritor e Engenheiro”.
O narrador apresenta, digamos, as consequências do processo social já
realizado, e Cardoso Pires espelha essas consequências, por exemplo, na
própria construção narrativa, no próprio processo de criação do texto, ao dar
voz a vários personagens pertencentes à classe trabalhadora da Gafeira,
fazendo do texto deste romance uma polifonia de falas populares. Cardoso
Pires, num verdadeiro movimento dialético, parte do todo para a parte, e
desta para aquele: do problema social irradiam vidas individuais, que, com
seus dramas pessoais, remetem ao problema social. Isso parece mostrar que
com o marxismo ele aprendeu a olhar a totalidade, com a tradição ficcional
ele aprendeu a destacar a vida individual, pois é aqui que se manifestam as
consequências dos problemas sociais.

Quanto ao segundo vetor literário de conhecimento, faremos um


comentário englobando as duas obras, a saber, que tanto n’O hóspede de
Job, quanto n’O Delfim, as relações sociais, conflituosas por si só na
realidade, ganham foco numa perspectiva crítica – ainda que sob elas paira
um manto social ideológico de coesão e de neutralização da tensão
imanente. Assim é o caso da relação dos militares com a sociedade civil na
primeira obra: como órgão integrante do Estado, as Forças Armadas são
vistas como naturalmente necessárias à sociedade, como se desta
emergissem via parto natural. Por meio de sua “ficção crítica”, Cardoso
Pires desnaturaliza tal absurdo, mostrando a vida militar – não os
indivíduos tornados militares – como algo estranho à sociedade como um
todo. O mesmo se dá na segunda obra – essa narrativa do fim dos delfins e
início de uma nova era para a comunidade. Nela, o autor mostra que as
relações de propriedade e de dominação de uns sobre outros são tão naturais
quanto as mortes do Domingos e da Maria das Mercês. Como a ação
humana, isto é, histórica, pode dar e pode tirar a vida, também ela pode
alterar o curso social. Para isto, Cardoso Pires instaura um “permanente
processo de conhecimento e de criação de consciência” (ibid., 1977, p. 49,
grifos da autora). Também para isso, ele deixou uma imensa contribuição na
forma de histórias inventadas que podem nos ajudar a fazer a nossa própria
história no mundo.

Referências
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In.: Remate
de Males. Campinas: 2012. p. 81-90. Disponível em:
[https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/
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CERDEIRA, Teresa Cristina. O Delfim: bispo em xeque, golfinho


devorado, herdeiro sem poder. p. 5-26. In.: PIRES, José Cardoso. O Delfim.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

GUELFI, Maria Lúcia Fernandes. Ficção e História: um jogo de


espelhos. In.: Gragoatá – Revista do Programa de Pós-Graduação em
Letras, nº 6, Niterói: EdUFF, 1999, p.25-41.

LEPECKI, Maria Lúcia. Ideologia e imaginário: ensaio sobre José


Cardoso Pires. Lisboa: Moraes Editores, 1977.

LUKÁCS, Gyorgy. Narrar ou descrever?. In.:______. Marxismo e


teoria da literatura. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2010. p.149-
185.

PIRES, José Cardoso. O Delfim. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

______. O hóspede de Job. 9. ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote,


1998.

PITA, Antônio Pedro. A arte como experiência de mundos possíveis.


In.: GOMES, Renato Cordeiro; MARGATO, Izabel (orgs.). Políticas da
ficção. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2015. p. 51-87.
Narrativas do passado: Paul
Ricoeur e a condição histórica
Rogério Reis Carvalho Mattos

Sumário

Em A memória, a história e o esquecimento, Paul Ricoeur distinguiu


os três períodos da escrita da história no século XX através de um recuo
metodológico que o leva a questionar os atributos de verdade e objetividade
que esta historiografia se impõe. Como, desde o período de sua emergência
e consolidação até seu amadurecimento, ela se tornou ou passou ser vista
como uma escrita literária? Ou, “mais precisamente: como a história, em
sua escrita literária, consegue distinguir-se da ficção (RICOEUR, 2007, p.
200)?” Ao final de nosso texto, veremos como a resposta é buscada no
entrelaçamento dos termos em alemão darstellen (retratar ou colocar algo
no lugar) e vertreten (atuar como agente para alguém) (PITKIN, 2006),
numa fuga ao conceito comum de “representação”, em direção ao conceito
criado por ele de “representância historiadora”. No entanto, para iniciar a
resposta ao seu questionamento, Paul Ricoeur teve de retomar a história da
historiografia contemporânea e lançar as interrogações pertinentes.

Em seu primeiro momento, o objeto predileto da crítica da Escola dos


Annales, até o surgimento do chamado “eclipse da narrativa”, a história se
ocuparia com os acontecimentos, ou seja, as batalhas campais e políticas.
Igualmente, as antigas pretensões de cientificidade preditas pela Escola
Metódica, de Seignobos e Langlois, quanto à abordagem dos objetos da
História, sejam eles o documento ou a testemunha, deveriam se assemelhar
ao máximo ao método utilizado pelas ciências naturais, a partir de uma
busca de objetividade, neutralidade e, portanto, cientificidade, que, com o
surgimento das novas abordagens historiográficas, de Marc Bloch a
Fernand Braudel, forçosamente caíram em desuso ou em descrédito. Nesse
momento, “a singularidade, a do acontecimento e a dos indivíduos, a
cronologia escandida pela narração, o político enquanto lugar privilegiado
de inteligibilidade são todos recusados” (RICOEUR, 2007, p. 201). Do
período de emergência até o período o de sua consolidação com Fernand
Braudel, a historiografia busca traçar uma linha de fuga diante do que se
considerava a necessidade inescapável de uma concepção científica cada
vez mais vista como antiquada, cujo correlato era a forma narrativa no
momento da escrita do relato historiador. Assim, os historiadores
procuravam a todo o custo elidir as formas narrativas em sua produção
científica em favor não de dados à moda dos das ciências naturais ou do
documento-totem rankiano, mas em favor dos dados fornecidos pelas
ciências sociais e do questionamento das fontes.

Se um documento foi produzido por alguém dotado de inteligência e


livre-arbítrio, por mais este estivesse no contexto da suposta neutralidade do
registro cartorial ou na fabricação de documentos oficiais, o documento,
manipulado pelo ser humano, não pode mais ser visto como um objeto
neutro ou, talvez, neutralizado pela ação do homem de ciência. Duplo
impedimento para uma nova história: documentos e testemunhas
naturalizados ou homogeneizados por uma crítica histórica considerada
ingênua, e o impedimento do olhar, incapaz de entrever nas fontes primárias
os usos da propaganda e da censura. Foi da experiência no front de guerra
que Marc Bloch aprimorou seu método crítico, talvez ainda mais do que nos
bancos da universidade ou no refúgio na erudição. Como ele relata no livro
produzido em pleno campo de batalha, quando voluntariamente engrossou
as fileiras da Resistência francesa contra a ocupação nazista em seu país, ao
lembrar de sua vivência nas trincheiras da Primeira Guerra: “ninguém
acreditava nos jornais; tampouco nas cartas; pois, além de chegarem
irregularmente, eram consideradas muito vigiadas. Daí uma renovação
prodigiosa da tradição oral, mãe antiga das lendas e dos mitos” (BLOCH,
2001, p. 107). Com a experiência da guerra, os soldados foram devolvidos
subitamente ao estado de espírito dos tempos antigos, antes do advento de
toda e qualquer forma de comunicação impressa moderna, sejam jornais,
livros ou revistas. A inovação do método historiográfico em Marc Bloch é
ver os documentos com a mesma desconfiança com que se vê o testemunho.
Ambos são imperfeitos e, portanto, passíveis de crítica (BLOCH, 2001, p.
142).

Somente décadas mais tarde, com o fim do regime inaugurado pelo


“imperador Braudel”1, abrindo o espaço que permitiu à história se tornar
migalhas, concomitante ao aumento da reflexão dos historiadores acerca de
seu próprio ofício, questionamentos mais maduros puderam surgir para dar
conta dos desafios que se avolumavam na prática de escrita da história,
como também trabalhos novos foram apresentados que passaram a tornar
mais evidente o caráter narrativo dos textos produzidos pelos historiadores.
A mudança se dá com os diferentes jogos de escala que tornaram propício o
tipo de análise feito pela micro-história. As mentalidades e as grandes
estruturas passam por um jogo que revela seu exato oposto, as
microestruturas realçadas no meticuloso trabalho de recomposição da
intriga operado em livros como O queijo e os vermes e A herança imaterial,
de Carlo Ginsburg e Giovanne Levi, respectivamente. De acordo com
Ricoeur, nem a macro ou a micro história trabalham ininterruptamente com
uma só escala. Existe uma imbricação narrativa que atrela a pequena
história na grande história e inversamente. O moleiro Menocchio conta a
história da Inquisição na Itália e os impulsos talvez ainda confusos em
direção a uma visão mais moderna do funcionamento físico do universo,
diretamente relacionados ao cenário renascentista outrora relatado, com a
história-acontecimento, sob os grandes nomes de Galileu ou Copérnico.
1 A expressão é retirada de François Dosse, que o chama de “rei do império do meio” (DOSSE, 2003, p 236), ou seja, o nome inconteste, praticamente único em seu período, e
elo de ligação entre a geração da década de 1930, a dos “pais fundadores” Bloch e Febvre, e a geração seguinte, a da Nova História.

A morte de Felipe II contada por Braudel marca a desproporção entre


um vasto sistema-mundo que desmorona e a morte quase silenciosa daquele
que poderia figurar com os poderes de um antigo imperador romano. Felipe
II não chega a se vestir com as galas dos antigos césares porque o solo
histórico onde reside passa por um abalo geológico de grande magnitude. É
uma morte trágica não só pelo olvido em que o monarca desaparece, mas
porque, como líder máximo de um espaço histórico milenar, não sentiu as
fendas que se abriam em todas as partes neste mesmo espaço. O profundo
enraizamento do rei neste solo foi antes motivo de cegueira do que de
claridade diante do abrupto movimento de mudança histórica, ou melhor, de
rápida aceleração do tempo que movia o centro do mundo do Mediterrâneo
para o Atlântico.

Como diz Paul Ricoeur, “o alcance de um acontecimento diz a


persistência de seus efeitos longe de sua fonte. Ele é correlativo do alcance
da própria narrativa, cuja unidade de sentido perdura” (RICOEUR, 2007, p.
257). Os três níveis de análise propostos por Fernand Braudel em seu
Mediterrâneo, o tempo longo da geografia mediterrânica e da ocupação do
solo, o tempo médio das cidades e das trocas comerciais, e o tempo curto
dos acontecimentos políticos, servem como um poderoso sismógrafo para
detectar no longo prazo um deslocamento geológico de sólida repercussão
sentida até os dias de hoje. Essas camadas mais profundas afetam a vida de
um rei, provavelmente o mais poderoso naquele momento, a ponto de sua
vida ser narrada num eclipse que o iguala ao cidadão mais comum, ambos
homogeneizados frente à indiferença da rápida aceleração do tempo
histórico que ocorre. No jogo de escalas proposto por Ricoeur, inspirado no
trabalho de Jacques Revel (1998), a micro e a macro história não se
excluem: o reles moleiro tem pretensões de cientificidade que desafiam os
saberes de sua época, enquanto as vãs aspirações do grande monarca –
avançar sobre o Oriente, estabelecer um império europeu – o conduzem à
ignorância atribuída ao mais comum dos cidadãos. Nesse sentido, pode ser
imprecisa a afirmação de Ricoeur segundo a qual “a morte de Felipe II não
é o acontecimento à altura do Mediterrâneo” (RICOEUR, 2007, p. 256). A
morte do rei, por ela mesma, narrada à moda da história acontecimental, de
fato não está à altura do Mediterrâneo, ou seja, do “quase-personagem da
quase-intriga da ascensão e declínio do que foi ‘nosso mar’ na época de
Felipe II” (RICOEUR, 2007, p. 256). Talvez pelo modo quase-ficcional da
escrita de Braudel, o desaparecimento do monarca o anula como
personagem da história-acontecimento, enquanto que, frente ao quase-
personagem Mediterrâneo, ou seja, em medida comparativa, sua morte se
torna ainda mais dramática pela amplitude que ganha, no terceiro nível de
análise braudeliano, frente às escolhas erradas que fez, até ser finalmente
esquecido pelo grande mar.

A obra de Nobert Elias pode ilustrar a passagem do macro ao micro de


maneira mais explícita, ainda que não de maneira tão trágica como a do mar
diante aquele que foi quase imperador. O autocontrole psíquico
gradativamente requerido aos indivíduos com o desenvolvimento da
sociedade de corte é um efeito de seu sistema de poder, onde o conceito de
habitus é o operador da descida de uma macroestrutura produtora de valores
até o domínio das realizações concretas, conversão somente possível
“graças ao esquecimento das causas dissimuladas em seus efeitos”
(RICOEUR, 2007, p. 257). Num segundo exemplo, um ensaio de Reinhart
Koselleck, “Representação, acontecimento, estrutura”, publicado em Futuro
passado, indica a Paul Ricoeur como a narrativa se torna o objeto de
permuta entre a estrutura e o acontecimento. Estes dois, integrados pela
narrativa, explicitam as correspondências entre os diferentes jogos de
escala, os fenômenos com diferentes níveis de duração e de eficiência:
“Toda estratificação pode, assim, ser mediatizada narrativamente”
(RICOEUR, 2007, p. 259).

A partir do jogo de escalas, operador conceitual que permite ver em


conjunto as micro e as macro análises e suas permutas, Ricoeur pretende
superar o “estado de perplexidade” em que se encontrava Louis O. Mink
quando a morte veio interromper sua obra, resumido em seu último ensaio
publicado, Narrative form as a cognitive instrument. Mink considerava
catastrófico se o senso comum viesse eventualmente a compreender como
indiscernível o contraste entre história e ficção. Perderiam sua marca
específica a suspensão voluntária da desconfiança por parte do leitor de
obras ficcionais, como também a pretensão à verdade da história. Porém o
autor não fornece subsídios para que a distinção permanecesse. “Desistindo
da resolução do dilema, Mink preferiu mantê-lo como parte do próprio
empreendimento histórico” (RICOEUR, 2007, p. 254). Para resolver o
problema, Ricoeur acredita dever ultrapassar as aporias que paralisaram
Mink. Um ponto bem estabelecido nas reflexões de Ricoeur em Tempo e
narrativa acaba por ser ultrapassado ou superado na tentativa de responder
a esta demanda. A cláusula restritiva “quase” então imposta por ele às
noções de personagem, intriga e acontecimento é derrubada em favor de
uma elevação da narrativa historiográfica como operador de pleno direito
responsável pela articulação entre a “coerência narrativa” a “conexidade
explicativa”. Os receios de Louis O. Mink parecem não ter fundamento,
porque “procura-se em vão uma ligação direta entre forma narrativa e os
acontecimentos tais como se produziram de fato; a ligação só pode ser
indireta através da explicação e, aquém desta, através da fase documental,
que remete, por usa vez, ao testemunho e ao crédito dado à palavra alheia”
(RICOEUR, 2007, p. 256).

O jogo de escalas permitiu ampliar o campo explicativo da


historiografia e levá-lo novamente à primeira fase da operação
historiográfica, da consulta aos documentos até o tratamento dado aos
testemunhos. Estes, que talvez sejam os únicos que tenham visto a história
“tal como aconteceu” e que, por mais que possam ser questionados em suas
afirmativas, não deixam de se apresentarem como presenças vivas do fato
ocorrido, são o último limiar que impede da história se confundir com a
ficção. É bom lembrar que Marc Bloch diz serem os testemunhos, tais como
os documentos, imperfeitos, passíveis de crítica. Sua veracidade pode ser
questionada e não sua realidade. O estatuto do real na história ainda será
questionado por Paul Ricoeur, porém ele coloca este elemento como uma
baliza para se proteger da perplexidade em que ficou Mink. Não age
irrefletidamente. Para se questionar o real no relato historiográfico, novos
problemas devem ser trazidos e as interrogações realizadas sobre novas
bases. Se o jogo entre as macro e micro escalas amplia a
explicação/compreensão de Mimeses II ou a configuração narrativa e afasta
posicionamentos mais ingênuos como o de Mink, será no âmbito da
Mimeses III, a refiguração, que a questão do real será devidamente
colocada.

Antes de chegar a isso, contudo, o problema da retórica é o primeiro a


aparecer a Ricoeur. O personagem eminente neste campo é Hayden White,
que colhe por sua vez contribuições de diferentes autores, entre eles Mink e
sua concepção de que a narrativa histórica não é mera crônica, porém
relatos sobredeterminados através de efeitos explicativos acrescentados à
cronologia, ao fio narrativo ou storyline. Para White, além disso, existe uma
forma de argumentação específica dos historiadores, com uma tipologia
própria. O modelo explicativo por excelência em que White se inspira são
os quatro tipos literários como expostos por Northrop Frye, em A anatomia
da crítica – o romanesco, o trágico, o cômico e o satírico –, o que teria
aproximado White da retórica de Vico. Segundo Ricoeur, para se falar da
obra do historiador americano deveria ser considerada uma teoria do estilo.
Dois pontos talvez devessem ser retidos aqui: a aproximação de Hayden
White de uma “tipologia das intrigas” à moda de Vico só é válida enquanto
considerada num plano formal. A tipologia de Vico pressupõe um
entrelaçamento de diferentes eras da história, enquanto White expõe seus
quatro tipos retóricos como desenvolvidos a partir do século XIX. A
evolução histórica para ele está no desenvolvimento de uma prosa irônica,
cujo precursor seria Hegel. Considerando não só os problemas das formas
do discurso, mas o de sua inserção temporal, os quatro tipos da Meta-
História vivem conjuntamente e expressam de maneiras diversas um
mesmo ambiente histórico. Apesar de em seus escritos procurar se
aproximar da filosofia de Giambattista Vico, o horizonte mais provável de
influência em seu trabalho talvez seja a do fenomenólogo alemão, como
também uma transposição para a teoria da história, através de Frye, de
categorias da teoria literária. O segundo ponto a ser considerado é a
afirmativa de Ricoeur segundo a qual “à maneira dos retóricos, a noção de
argumento é considerada mais em sua capacidade persuasiva do que
demonstrativa propriamente dita” (RICOEUR, 2007, p. 256). Se Ricoeur
supera a hermenêutica tradicional herdada de Dilthey, para quem a
explicação cabe às ciências naturais e a compreensão às ciências humanas,
e opõe um par antitético não assimétrico explicação/compreensão para a
abordagem dos trabalhos historiográficos, o filósofo francês, com a
afirmativa acima, indica uma assimetria na abordagem de White onde o
modelo explicativo ou persuasivo acaba por valer mais do que a
compreensão ou demonstração.

A crítica frequente dirigida a ele, de que entre história e ficção não


existe uma mudança na natureza do entendimento de cada um dos
diferentes fenômenos, porque ambos pertencem ao saber de um modo geral
e partilham de abordagens livremente intercambiáveis, parece reverter o
sinal de onde Louis O. Mink parou. Se este estancou diante de uma possível
falta de discernimento que poderia abalar ou desfazer a crença das pessoas
na história e levar a uma incompreensão frente ao papel específico da
literatura como artefato ficcional, Hayden White afirma sem medo e
reiteradamente o que deixou seu colega de ofício norte-americano perplexo
à beira da morte, como exposto acima. A posição de Paul Ricoeur sobre
este dilema, para ele um verdadeiro category mistake, foi expressa desta
maneira:

Na mesma medida em que é legítimo tratar as categorias


profundas do imaginário como matrizes comuns à criação de
intrigas romanescas e à intriga historiadoras, como atesta seu
entrecruzamento na história dos gêneros no século XIX,
torna-se urgente especificar o momento referencial que
distingue a história da ficção. Ora, esta discriminação não
pode ser feita sem sair do âmbito das formas literárias. De
nada adianta então esboçar uma saída desesperada
recorrendo simplesmente ao bom senso e aos enunciados
mais tradicionais a respeito da verdade em história. É preciso
articular pacientemente os modos da representação com os
da explicação/compreensão e, através desses, com o
momento documental e sua matriz de verdade presumida, a
saber, o testemunho daqueles que declaram ter se encontrado
no local onde as coisas aconteceram. Nunca acharemos na
forma narrativa enquanto tal a razão dessa busca de
referencialidade. Esse trabalho de reunificação do discurso
histórico considerado na complexidade de suas fases
operatórias está totalmente ausente das preocupações de H.
White. (RICOEUR, 2007, p. 266-267)

Em sua crítica, Ricoeur põe em relevo novamente o papel do


testemunho, mais do que do documento, como baliza para afastar qualquer
percepção ingênua que levaria à indiscernibilidade entre história e ficção.
Alude igualmente para sua postura de superação da hermenêutica
tradicional, o par explicação/compreensão organizado ao redor da intriga,
também chamada de síntese do heterogêneo. Precisamente, Ricoeur
transpõe os termos de Dilthey “coesão de uma vida”, associada ao tempo
pré-figurativo, e a “conexão causal ou teleológica”, ligada à exposição
hermenêutica, para o termo “coerência narrativa”, que tem raízes em uma e
se articula com a outra. A narrativa pode encontrar sua coerência não
apenas por sua armadura lógica ou formal, mas quando humaniza a
existência através do contato com a matriz de verdade do documento, ou
seja, o testemunho. Para se falar com as palavras de Tempo e narrativa, “o
tempo torna-se humano na medida em que está articulado de modo
narrativo, e a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna
uma condição da existência temporal” (RICOEUR, 2010, t. 1, p. 93). Para
confrontar a problemática posição de Hayden White quando confrontado
com os quadros da experiência humana, Ricoeur propõe um exercício
exemplar, para além de qualquer debate entre dois “mestres-escolas”: a
“solução final” ou o embate com os negadores do Holocausto.
Roger Chartier anteriormente expôs o mesmo problema, iniciado após
o surgimento dos historiadores chamados de “revisionistas” ou
“negacionistas”, cujo marco de reação foi o livro de Pierre Vidal-Naquet,
Os assassinos da memória. Como compatibilizar a existência concreta das
câmaras de gás com a frase de Barthes que serve de epígrafe ao livro The
Content of the Form: “O fato não tem jamais senão uma existência
linguística”? Chartier responde que White ignora sistematicamente os
procedimentos próprios da história, logo, não está qualificado para
responder a questão. Ainda mais, “estabelecer a verdade referencial dos
discursos históricos não é tarefa fácil, mas considerar a tentativa como vã e
inútil é anular toda possibilidade de atribuir qualquer especificidade à
história, já que não lhe são próprias nem suas prefigurações tropológicas,
nem suas modalidades narrativas, nem mesmo o fato de que seu discurso é
sobre o passado” (CHARTIER, 2002, p. 116). Em A memória, a história e o
esquecimento, Paul Ricoeur também menciona uma grande querela ocorrida
na Alemanha entre 1986 e 1988 conhecida como Historikerstreit
(controvérsia dos historiadores), que colocou em lados opostos tanto
Habemas quanto respeitados historiadores do período nazista diante de
questionamentos sobre a singularidade do nazismo, seus possíveis laços
com o stalinismo, e a própria continuidade do sentido de comunidade alemã
após a catástrofe, fato que colocou à prova o conceito de totalitarismo de
Hannah Arendt. No mesmo contexto, porém em colóquio ocorrido em solo
americano, chamado History, Event and Discourse, teve início a
controvérsia entre Hayden White e Carlo Ginzburg que, segundo Ricoeur,
colocou à prova os “limites do próprio projeto de representar um
acontecimento de tal magnitude” (RICOEUR, 2007, p. 268).

A Shoah, segundo Ricoeur, estaria na fronteira entre a experiência e o


discurso, onde se apresentam os limites internos sobre as representações do
acontecido e os limites externos, isto é, a emergência de um acontecimento
que não pode não ser dito, relatado, narrado. “A tropologia de H. White não
poderia deixar de ser arrastada pelo vendaval” (RICOEUR, 2007, p. 267).
Paul Ricoeur discorre sobre o livro de Saul Friedlander, Probing the Limits
of Representation, que diz que tal acontecimento “nos limites” traz seu
caráter moralmente inaceitável, mesmo de uma “ofensa pessoal”. A crítica a
um suposto realismo ingênuo feita pelo chamado “pós-modernismo” está
em seu apogeu no período “em nome da polissemia en abîme do discurso,
da auto-referencialidade das construções linguísticas, que tornam
impossível a identificação de toda e qualquer realidade estável”
(RICOEUR, 2007, p. 268). Como este pós-modernismo poderia responder
às seduções do negacionismo? Isso obriga a um recuo de Hayden White,
aonde ele chega a admitir as aporias de seu pensamento, como a indistinção
entre enunciados factuais e relatórios narrativos, porém para introduzir a
noção de competitive narratives, segundo a qual nenhum dado factual pode
arbitrar sobre a linguagem, já que esta é quem determinaria os fatos: “os
fatos já são fatos de linguagem” (RICOEUR, 2007, p. 267). White parece
acusar o golpe, porém retorna afirmando com ainda mais veemência suas
antigas ideias. Rompem-se todas as distinções entre verdadeiro e falso,
factual e imaginário, figurativo e literal. Contra isso, Ricoeur diz que
Auschwitz se encontra tanto na memória individual quanto na coletiva.
Mesmo sem tê-lo visto, um fato quase irrepresentável nos coloca com a
obrigação moral de também sermos testemunhas de sua história. Contudo,
não se trata de um “realismo ingênuo”, este o de Ricoeur. Auschwitz é a
oportunidade da obrigação moral, portanto crítica, de se retomar o passado,
por mais que este esteja estilhaçado entre as vozes de vítimas e algozes,
sobreviventes e espectadores. É a oportunidade de se reatar, apesar de tudo,
o vínculo da história com a realidade.

Podemos agora retomar à distinção mostrada logo no primeiro


parágrafo deste texto, entre os termos em alemão darstellen (retratar ou
colocar algo no lugar) e vertreten (atuar como agente para alguém). A
passeidade (passeité) do passado, ou “pretérito do passado” (na tradução da
edição mais recente de Tempo e narrativa), vista sob a ótica dessas últimas
conclusões de Paul Ricoeur, adquire o estatuto de condição histórica, isto é,
o fato de ter sido e não ser mais e, contudo, insistir em continuar a existir. O
indicador da continuidade do que não é mais é o testemunho. Para este a
história também não existe mais, mas ele é seu agente, vertreten. Quem
preenche de significado ou traz talvez um excesso de significância aos
rastros do passado é o historiador, responsável por retratar ou colocar algo
no lugar (darstellen) onde o testemunho é lacunar. No nível de análise que
Paul Ricoeur opera aqui, não se quer compreender o trabalho de um
historiador em particular, mas a epistemologia da operação historiográfica.
Esta, portanto, acontece no entrelaçamento do trabalho do historiador com
sua escrita e em sua consulta às fontes primárias. A representância se
constitui como o entrelaçamento entre darstellen e vertreten, como indicado
na última nota da segunda parte do livro. Nela, Ricoeur remete à filosofia
de Gadamer, onde este entrelaçamento teria como resultado um “acréscimo
de ser”. Mas para o filósofo francês o “acréscimo de ser” acaba por resultar
num artificialismo, em algo que traria o enigma do passado num
conhecimento sem reconhecimento. Este acréscimo de resultado tão nefasto
seria produto da totalidade da operação historiográfica, da dimensão crítica
da historiografia. É um modelo reconstrutivo e, portanto, limitado. Como é
o único disponível a favor da verdade em história, deve ser homenageado,
Ricoeur conclui.

Claramente o filósofo francês demonstra uma preocupação (desde o


início, porém aqui de maneira mais aguda) com a dimensão ética da escrita
historiográfica. Mesmo se utilizando da totalidade dos procedimentos
disponíveis, a história seria sempre, de alguma maneira, lacunar. Dessa
maneira, como dar conta da verdade em sua totalidade? A própria ideia de
“acréscimo de ser” é retirada, com Gadamer, da obra de arte. De forma
alguma, por via estética, seria possível se resgatar “em sua totalidade” a
realidade do passado histórico? Quando ele diz, no trecho acima citado, que
a representância ocorre na positividade do ter-sido visto negativamente
através do não ser mais, Ricoeur aponta para um limite insuperável, um
entrelaçamento entre epistemologia e ontologia dificilmente resolvível
metodicamente. Contudo, por que não se pode pensar que, se eticamente é
apontado um limite para todo e qualquer saber histórico (vemos aqui mais
uma vez como ele se afasta de Hayden White, que totaliza com seus
tropos), esteticamente ou pelo “acréscimo de ser”, a história adquire um
estatuto novo, ético e estético ao mesmo tempo? Ricoeur tanto
sobrevaloriza os aspectos éticos quanto, como mostra a continuidade de sua
obra, os aspectos positivos ou científicos da narrativa, em embate com o
ficcional. A dívida do historiador, a de dar conta do real, não pode ser paga
se não com o recurso à elaboração estética de sua narrativa. Comprometeria
de alguma maneira este “acréscimo de ser” a verdade historiográfica?
Ainda mais: por que ética e estética não podem andar juntas? Afinal, uma
bela forma só pode ser considerada como tal se não é mera exterioridade e
toda boa ética, por mais modesto e autocentrado que seja quem a pratica,
acaba por exceder, dar um acréscimo de beleza à armadura que tão
dignamente sustenta.
Se as narrativas do passado trazem em si esta limitação ontológica
fundamental, a de serem o pretérito do passado ou a representação do
passado tal como se passou, ou seja, de alguma maneira trazem um
conhecimento sem reconhecimento, sem a vivência original da experiência
passada, seu componente estético, plasmado em torno das diferentes
configurações narrativas, olhar para a constante epistemológica da teoria
estética ou a reconsideração do ficcional pode trazer o reconhecimento
ontológico que Ricoeur em vão buscou. O que essa última fase da
representação historiadora nos mostra é que as imagens da narrativa
historiográfica e da narrativa ficcional são heautônomas, mas por isso
mesmo estabelecem uma relação ainda mais estreita entre si,
ficcionalizando o historiográfico e historicizando o ficcional. Seria a busca
de uma relação epistemológica de outra ordem, que não conduz a uma
“totalidade” ou a um fechamento, pois nunca irão se fundir, mas que, pelo
mesmo motivo, estabelecem entre si relações múltiplas, éticas e estéticas.
Apontam menos para um fechamento ou finalização da dúvida com a
dedução de uma “condição histórica”, ou seja, para um “aberto” de corte
fenomenológico (e que por isso “se fecha”), do que para um “fora” que
aponta para relações de força no embate entre campos heterogêneos,
historiográficos e ficcionais, éticos e estéticos, legíveis e visíveis. A
ausência de ser não seria a condição do passado. Muito pelo contrário, este
é criado a todo instante. O próprio embate entre testemunhos diferentes nos
diz que não há uma “experiência original”: há coalescência, convivência de
diferentes ordens enunciativas. Talvez refém de uma bandeira única, a da
ética, o conhecimento, em determinado ponto, já não consiga mais se
reconhecer.

Referências
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de Janeiro: Zahar, 2001.

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e


inquietude. Porto Alegre: EdUfrgs, 2002.
DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova
História. São Paulo: EDUSC, 2003.

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São


Paulo: Companhia das Letras, 2007.

HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores


veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

________________. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a


representação do outro. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.

PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e


ideias, Lua nova, São Paulo, n.67, p.15-47, 2006.

REVEL, Jacques. Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio


de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas:


Editora da Unicamp, 2007.

______________. Tempo e narrativa. 3 T. São Paulo: Martins Fontes,


2010.

VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a


história. Brasília: Ed. UNB, 2014.

WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica da Europa no


século XIX. São Paulo: Edusp, 1992.

_______________. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a crítica da


cultura. São Paulo: Edusp, 1994.
O realismo contemporâneo: A
tentativa de retratar a real sociedade
brasileira na ficção em prosa O
matador, de Patrícia Melo
Tahiná da Silva Santos Moreira

Sumário

Introdução
A tentativa de abordar o “real” nas narrativas contemporâneas vem sendo
alvo de muitos estudos e despertado o interesse de muitos estudiosos da literatura
por motivos “bastante evidentes” (SHOLLHAMMER, 2013, p. 155):

Existe uma popularidade no mercado literário mais abrangente de


gêneros que dão continuidade ao realismo histórico como os
romances históricos, biografias, não ficção, relatos de viagem
entre outros. Entre os escritores contemporâneos percebemos a
mesma reciclagem de formas literárias com uma aproximação
determinada à “realidade” da experiência comum como crônicas
da vida como ela é, depoimentos testemunhais de experiências
singulares e exóticas, diários, ensaios ficcionais, relatos de viagem
e uso de outras formas híbridas entre ficção e não ficção.

O diferencial desta dissertação está na abordagem do tema a partir da


análise da obra ficcional em prosa O Matador, da autora Patricia Melo, com a
finalidade de identificar a verossimilhança com a sociedade brasileira e com seus
problemas sociais, como por exemplo, a banalização da violência, as relações
entre as classes sociais e a participação da mulher no sistema social.

Regressando ao século XIX, temos a escola Realista, que buscou em suma


representar o mundo de maneira fiel, real, objetiva, científica, literal, racional em
oposição à escola que vigorou anteriormente, o Romantismo, já que essa pregava
a idealização, o amor, a subjetividade. De acordo com Jaguaribe (2007, p.23) “a
arte realista no século XIX, se insurge como crítica aos fantasmas românticos
popularizados, ao devaneio escapista e ao imaginário fantasioso”.

Ainda conforme Jaguaribe (2007, p.15), há duas maneiras de conceber o


realismo: como uma “conexão vital entre realidade e experiência da realidade” e
como “uma convenção estilística que mascara seus próprios processos de
ficcionalização”. Assim, podemos entender que as obras mais atuais buscam
registrar as experiências vividas pelas pessoas “reais”, mas ao mesmo tempo, é
perceptível que existe nessa representação muito do campo imaginário, da ficção.

Focando nas narrativas brasileiras em prosa desde o final do século XX, até
as mais atuais, no século XXI, percebemos que parte expressiva delas vem se
destacando ao buscar apresentar a realidade social e cultural vivenciada pelas
pessoas reais numa ligação estreita com a literatura como força transformadora
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 54). O autor ainda afirma que:

o conceito de realismo se ampliou nas últimas décadas ao


considerar com mais atenção a dimensão estética, isto é, os efeitos
e afetos deixados pela representação. Assim, foi possível
considerar efeitos de realismo que acompanhavam a representação
literária e visual sem necessariamente estar em contraste com elas;
uma inspiração inicial forte nesta abertura do conceito de realismo
para aspectos de vivência da representação que se confundem com
a experiência real. (SCHOLLHAMMER, 2013, p.02)

Autores já consagrados como Rubem Fonseca e Patricia Melo apresentam


enredos intrigantes que dialogam com fatos corriqueiros veiculados a todo
momento através das mídias como o crime e a corrupção, que são temáticas
abordadas no enredo de O Matador. O crime e a corrupção são abordados nessa
obra literária de uma forma naturalizada, extrapolando as mais diversas camadas
sociais como estratégia de refletir o social, de representar o “real” neste mundo
contemporâneo, que em geral, está cada dia mais violento.

Para denunciar a humanidade e sua “imperfeição”, é essa tentativa de


representação da realidade e do “real" que importa, porque atrela significados ao
mundo em que vivemos, porque não provém do acaso, mas é construída com
muito esforço (JAGUARIBE, 2007, p. 41).
Portanto é de suma relevância a discussão sobre a estética adotada pelos
autores mais atuais e também o porquê de suas escolhas, pois acreditamos que a
literatura é uma arte capaz de contribuir para a construção de uma identidade
social.

Pretendemos, assim, gerar um olhar sobre essa sociedade construída na


ficção e os problemas que nela existem, contrapondo-a ao que chamamos de
sociedade real, sob a luz das referências bibliográficas escolhidas, a fim de
averiguarmos de que maneira essa autora e esse narrador a veem, pois: “Não se
trata apenas de que o cotidiano seja valorizado como experiência significativa,
mas sim a noção extraída do pensamento científico de que o artista pode atuar
como um observador imparcial e objetivo da vida tal como ela é”.
(JAGUARIBE, 2007, p.24)

A obra em análise e sua autora: Quem é Patrícia


Melo? O que afirma sobre sua escrita? De onde vem
sua inspiração?

Autora, romancista, roteirista, dramaturga, contista, nasceu na cidade de


Assis, no interior de São Paulo, em 1962. Com a função de roteirista, trabalhou
em grandes emissoras brasileiras como a Rede Globo e a Bandeirantes. e realizou
ainda trabalho semelhante em um canal estatal português, RTP, quando roteirizou
uma novela intitulada A Banqueira do povo, em 1993. Além dos trabalhos na TV,
Patrícia escreveu roteiros para o cinema.
E não parou por aí. Influenciada pelas obras do autor brasileiro Rubem
Fonseca, que contribuíram e muito na edificação da sua escrita, partiu na busca
por textos autorais, traçando um caminho na literatura iniciado pela criação de
duas novelas, situadas no livro Acqua Toffana, publicado em 1994, pela editora
Companhia das Letras. E foi por essa mesma editora que Melo publicou a obra
que este trabalho irá se debruçar, O Matador, lançado pela primeira vez em 1995
e com duas posteriores edições, sendo a última publicada em 2009. O livro
rendeu à autora alguns prêmios na França e na Alemanha, bem como uma crítica
e uma recepção positiva no Brasil. Para além, o livro foi adaptado para o cinema
com o título de O homem do Ano, pelo escritor Rubem Fonseca.

Outras obras de sucesso da autora são: o romance Inferno, publicado em


2000, o texto dramático Duas mulheres e um Cadáver, Valsa Negra, em 2003,
Mundo Perdido, em 2006, Jonas, o Copromanta, em 2008, Ladrão de
Cadáveres, em 2010, Fogo- Fáctuo, em 2014, Gog Magog, em 2017.

Apesar de beber na fonte de Rubem Fonseca, Patrícia Melo engenhou um


estilo próprio e atualizado com o seu tempo e com o seu lugar de fala, como
mulher, numa sociedade urbana, patriarcal e cercada pelas diversas roupagens da
violência que afeta a vida de toda a população brasileira retratada talentosamente
em seus escritos. Seus livros foram reeditados pela editora Rocco e traduzidos
em diversas línguas em países como Inglaterra, Alemanha, França, Itália,
Espanha, Holanda, Grécia, Finlândia, China, entre outros. Assim, Patrícia Melo
vem conquistando espaço e visibilidade no campo literário e deixando seu nome
inscrito nas listas dos mais importantes escritores da contemporaneidade.

É de fato relevante que apontemos aqui a importância de lermos não só


Patrícia Melo, mas obras de autoria feminina, já que essas vem sendo alvo de
esquecimento devido a desvalorização da própria mulher em nossa sociedade. Ao
entrar em contato com a escrita delas, temos uma relação com o olhar de uma
mulher sobre os mais diversos assuntos. Em O Matador, mais especificamente,
temos diversos temas que dialogam com nosso tempo e que são descritos por
esse ponto de vista feminino.

A obra em análise
Um homem da periferia que ao perder uma aposta se vê obrigado a mudar a
cor dos cabelos. Mas essa mudança não ocorre somente na aparência. Máiquel
vai modificar todo o seu destino a partir dessa coloração. Ele que antes era
apenas mais um em meio a multidão, vai passar a criminoso violento, porém será
aquele que “salva” toda uma sociedade de seus “problemas”.

Através dessa narrativa frenética com pitadas de ironia que nos leva ao
pavor e ao riso, em determinados momentos, perpassamos por uma sociedade
comandada por um grupo social abastado que corrompe todo o sistema. E é nela
que nosso narrador personagem está inserido e sem perceber que não escolheu,
mas foi escolhido, irá nos guiar.

Karl Erik faz referência ao livro em análise e diz:

que é uma espécie de romance de formação ao avesso, mostrando


o processo de embrutecimento de um homem que começa a matar
por acaso para em seguida tornar-se cúmplice da alta sociedade
como carrasco informal com direito a vida fácil e a proteção da
polícia, mas incorporado no processo de banalização da violência
que finalmente o leva à autodestruição. (SCHOLLHAMMER ,
2013, p. 69)

Temos aqui uma voz narrativa em primeira pessoa, que atua na camada mais
desfavorecida da sociedade e que nos revela também ações de outras
personagens que pertencem a outras classes mais abastadas. Com isso, podemos
conhecer duas possíveis realidades, dois posicionamentos, mesmo que através do
ponto de vista de Máiquel, o narrador-personagem, que segue uma tendência
documental, na qual ele e as outras personagens demonstram um esforço
testemunhal diante do que experimentam.

Além disso, é de suma importância destacarmos aqui que sendo a autoria de


O Matador feminina, fator que aumenta o nosso interesse enquanto estudiosos da
literatura, temos uma forma de olhar essa sociedade diferenciada, um olhar da
Mulher que por muito tempo foi silenciado e que por agora ganha espaço para
fazê-lo.

mais de 70% dos livros publicados por grandes editoras


brasileiras entre 1965 e 2014 foram escritos por homens. Esse é
o resultado de pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Estudos em
Literatura Brasileira Contemporânea, coletivo de pesquisadores
vinculado a Universidade. (UNB, Blogs. o povo, 2017 – grifos
nossos)

É de fato relevante que apontemos aqui a importância de lermos não só


Patrícia Melo, mas outras obras de autoria feminina. Ao entrar em contato com a
escrita delas, temos um outro ponto de vista sobre as mais diversas temáticas,
posto que devido a sociedade em que vivemos ainda seguir padrões patriarcais,
podemos ter uma visão daquela que sempre foi dominada.

O feminino por ele mesmo em O Matador


O patriarcado arraigado em nossa sociedade ainda é forte e está presente nos
discursos do dia a dia e, também, nos literários.

Desde o início da colonização brasileira fomos submetidos a preconceitos


estabelecidos pelos europeus colonizadores. Em grande parte do século XX,
escritoras brasileiras tentaram impor seus escritos sem muito sucesso. Com
exceção de Clarice Lispector, Cecília Meireles, Raquel de Queiróz e umas
poucas outras que alcançaram visibilidade acadêmica e se sustentam até os dias
de hoje, várias outras escritoras foram silenciadas e até banidas desse espaço.

No final do século XX e início do século XXI, surgem outras mulheres


escritoras que assim como outrora tentam se colocar nesse espaço literário para
apresentarem a(o) leitor(a) uma escrita feminina sobre temáticas, geralmente,
abordadas por homens. Assim, para nós, faz Patrícia Melo.

A autora em estudo nos apresenta em sua obra O Matador, bem como em


outras como O Inferno, uma escrita feminina diferenciada daquela de outrora.
Patrícia não nos traz narrativas com uma voz feminina sobre o lugar da mulher
na sociedade em fatores ligados ou relacionados socialmente à mulher como
gravidez, casamento, aborto etc.; todavia nos apresenta enredos em primeira
pessoa, com vozes masculinas que nos contam suas experiências ficcionais.

Nessas narrativas nos são apresentadas, por esses narradores homens,


personagens femininas diversas, cujas trajetórias na história se cruzam com as
histórias de mulheres reais, assim como as ações do narrador-personagem
também estão imbuídas de um machismo socialmente construído.

Em O Matador, temos a bela e recatada Cledir, vista pelo narrador Máiquel


como a mulher perfeita para o casamento, para ter filhos, para dar paz a um
homem em seu lar. Em contrapartida, Máiquel irá se deparar com Érica, mulher
de sua primeira vítima, que é o oposto de Cledir, esperta e descolada, fará de
tudo para tê-lo ao seu lado e se beneficiar com isso, visto que para ela o narrador
teria lhe tirado todas as possibilidades ao matar seu namorado.

À primeira vista, avaliamos que tanto Cledir quanto Érica são submissas ao
narrador, ou seja, aceitam a dominação de Máiquel. Porém há um traço
antagônico em Érica que nos revela uma mulher com um comportamento
diferente, posto que ela irá em várias passagens da narrativa tentar dominar em
vez de ser dominada.

Não há na escrita da obra, a nosso ver, qualquer pretensão de trabalhar a


questão de gênero diretamente, contudo ao analisarmos minuciosamente a ação
dessas personagens femininas não podemos deixar escapar os vestígios do
patriarcalismo presentes.

Pierre Bourdieu (2017, p. 50) denomina “dominação simbólica” aquela em


que as mulheres não se veem como vítimas do sistema e por isso contribuem
para fortalecê-lo, reforçando a submissão feminina e sua exclusão. Ele afirma,
ainda, que:

O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua


contrapartida na tensão e contensão permanentes, levadas por
vezes ao absurdo, que impõe a todo homem o dever de afirmar,
em toda e qualquer circunstância, sua virilidade. Na medida em
que ele tem como sujeito, de fato, um coletivo - a linhagem ou a
casa-, que está, por sua vez, submetido às exigências imanentes à
ordem simbólica, o ponto de honra se mostra, na realidade como
um ideal[...] (BOURDIEU, 2017, p. 64)

E é a partir desse olhar que voltamos em Máiquel, que ao se deparar com a


situação que culmina em seu primeiro homicídio, se vê como um sujeito que está
submetido às ordens expressas por seu coletivo e mata.
Considerações finais
Faz-se importante destacar que esse artigo tem como tema o projeto de
Mestrado que estamos desenvolvendo e em processo de pesquisa e levantamento
de dados e em fase anterior ao exame de qualificação.

Acreditamos que a literatura é uma arte capaz de contribuir para a


construção de uma identidade social. Sendo assim, analisaremos o(s) ponto(s) de
vista acerca dessa sociedade ficcional e as problemáticas que a circundam, as
quais, na maioria das vezes, as pessoas não querem ver. Contudo quando esses
conflitos são expostos através da literatura, de uma tela, de uma música, entre
outras manifestações artísticas, por exemplo, ficam aparentemente distanciados
ou ainda num suposto controle do leitor, que se sente seguro diante do que é
exposto, podendo assim observar e refleti-lo.

Enfim, esse trabalho aborda um tema, que já vem sendo discutido, mas que
ainda tem muito a ser estudado, porque não se pode deixar de questionar o olhar,
a voz, as ações das personagens, do narrador e também da autoria, construídos
nessa ficção contemporânea, que podem estar buscando presentificar o “real”,
evidenciando a realidade e tudo que está atrelado a ela. “Uma faceta crucial no
ser moderno é o questionamento da própria modernidade” (JAGUARIBE, 2007,
P. 25).

Assim sendo é de suma importância para a pesquisa literária que se possa


esclarecer como as obras contemporâneas, em específico nessa análise, O
Matador, tentam representar a sociedade brasileira e de que elementos estéticos
lançam mão para tal.

Referências
ARISTÓTELES. Tradução, textos complementares e notas Edson Bini. São
Paulo: Edipro, 2011.

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na Literatura


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Kühner. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017.

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Tradução por Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

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LUKÁCS, George. Realismo crítico hoje. Brasília: Coordenada editora,


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REZENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no


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SHOLLHAMMER, Karl Erik. Cena do Crime: violência e realismo no


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SHOLLHAMMER, Karl Erik. Do realismo ao pós-realismo. Belo


Horizonte: SCRIPTA, v.20, n.39, p.14-21, 2º sem. 2016.

COMO escreve Patrícia Melo. In: Como eu escrevo. Publicado em 18 jul


2018. Disponível em [https://comoeuescrevo.com/patricia-melo/]. Acesso em: 18
ago. 2019.
COSTA, Isabel. Mais de 70% dos livros publicados por grandes editoras
brasileiras entre 1965 e 2014 foram escritos por homens. O Povo, 2017.
Disponível em [http://blogs.opovo.com.br/leiturasdabel/2017/11/30/homens-e-
brancos-tem-maior-fatia-no-mercado-editorial-desde-1965/]. Acesso em: 01 set.
2019.
Loucura e AIDS: Questões
biopolíticas na obra de Caio
Fernando Abreu
Tamara Medeiros de Andrade

Sumário

Caio Fernando Abreu viveu o sonho e o viu morrer. Abraçou a utopia


de mudar o mundo pela revolução comportamental. Depositou sua fé no
flower power. Abandonou dois cursos de graduação (Letras e Artes
Cênicas). Transitou entre empregos formais e o estilo de vida nômade e
hippie. Embarcou em viagens lisérgicas e em viagens pelo Brasil e mundo
afora. Toda essa experiência contracultural permeia sua produção literária.
Um tema recorrente não somente na ficção de Caio, mas também em
diversas produções contraculturais é a loucura. A doença mental se torna
tema constante por simbolizar uma forma alternativa de percepção da
realidade (algo buscado dentro do projeto contracultural). Mas também
porque, entre os diversos movimentos contestatórios das décadas de 60 e
70, está a luta contra a violência psiquiátrica e o movimento
antimanicomial. Já nos anos 80, uma outra doença entra no rol temático do
autor: a recém-descoberta síndrome da imunodeficiência adquirida, que
estará presente em sua escrita desde os primeiros rumores sobre uma
doença que ataca especialmente homens gays até sua morte em decorrência
da AIDS. Neste trabalho, analisaremos algumas maneiras pelas quais a
doença mental e a AIDS foram metaforizadas na obra de Caio Fernando
Abreu.

Contracultura, doença e loucura


Luiz Carlos Maciel, um dos principais pensadores da contracultura no
Brasil, afirma ser ela a oposição à cultura vigente, das instituições oficiais
da sociedade. Pode ser entendida como fenômeno cuja origem data os anos
60, ou como uma atitude de crítica radical. A contracultura questiona a
naturalização do discurso racional científico como verdade absoluta e nos
lembra de que há outras formas de interpretar a realidade. Maciel compara a
cultura da sociedade ocidental a uma doença: “O pensamento do século
XIX tentou diagnosticar essa doença de diferentes maneiras. Chama-se
‘alienação’ de Marx e ‘neurose’, em Freud”. Para ele, essa doença seriam as
formas mórbidas das maneiras pelas quais “os homens organizaram sua
sobrevivência material ou suas relações familiares (...) – dinheiro,
exploração, repressão, autoritarismo etc.” (MACIEL apud PEREIRA, 1992,
p. 16-17).

É possível perceber que doença, no discurso de Maciel, é um


vocábulo utilizado como metáfora para os males da sociedade. Associar
problemas a doenças não é de maneira alguma uma construção metafórica
extraordinária. Afinal, adoecer deve ser o mal mais comum a todos os seres
humanos. Mesmo não gostando, somos todos obrigados em algum
momento de nossas vidas a utilizar o passaporte do reino dos doentes, como
afirma Susan Sontag em Doença como metáfora (1978). O objetivo de
Sontag nesse livro seria o de destrinchar o uso metafórico do campo
semântico relacionado a patologias e desmitificar o imaginário que foi e
tem sido construído em torno de algumas doenças, como a lepra, a
tuberculose, a loucura, o câncer e, posteriormente, a síndrome da
imunodeficiência adquirida, em AIDS e suas metáforas (1988). Em relação
à loucura, a filósofa acredita que ela tenha herdado parte das fantasias
românticas criadas em torno da tuberculose, indicando sensibilidade
superior e espiritualidade:

As fantasias associadas à tuberculose e à loucura guardam


muitos paralelos. Em ambas as enfermidades, existe o
isolamento. Os doentes são enviados a um “sanatório” (a
palavra comum para uma clínica de tuberculosos e o
eufemismo mais comum para um asilo de loucos). Uma vez
isolado, o paciente ingressa num mundo duplicado, com
regras especiais. A exemplo da tuberculose, a loucura é uma
espécie de exílio. A metáfora da viagem psíquica é um
prolongamento da ideia romântica de viagem associada à
tuberculose. Para curar-se, o paciente tem de ser levado para
fora de sua rotina diária. Não por acaso a metáfora mais
comum para uma experiência psicológica radical vista de
maneira positiva — produzida por drogas ou por psicose —
é a de uma viagem. (SONTAG, 2007, l. 400)

Antônio Cicero, em um artigo intitulado “Encontros e desencontros


com a cultura”, aponta que tanto a experiência com drogas quanto a loucura
passaram a ser tomadas “como um estado de consciência expandida”, em
contraposição ao estado normal e sóbrio, que seria limitado e estéril. “No
Brasil, a mesma palavra, ‘louco’, passou a ser usada para designar ambos [o
louco e o usuário de drogas], em oposição aos ‘caretas’. Passou-se
igualmente a considerar como similares a repressão à loucura e a repressão
às drogas” (CICERO, 2007, p. 62). Para Heloísa Buarque de Hollanda, no
pós-tropicalismo “a loucura passa a ser vista como uma perspectiva capaz
de romper com a lógica racionalizante da direita e da esquerda”
(HOLLANDA, 2004, p. 78).

O tema da loucura foi recorrente na obra de Caio Fernando


Abreu. Um exemplo é o conto “Os cavalos brancos de Napoleão”,
publicado em 1970 no Inventário do Irremediável1. Nesse conto, o
protagonista chamado Napoleão é um advogado competente, pertencente a
uma família tradicional, um pai de família. Um dia, em suas férias na praia,
começou a ver cavalos que ninguém mais via. E foi ficando cada vez mais
feliz em vê-los:
1 Por ocasião de sua segunda edição em 1995, o autor revisa os contos, elimina alguns deles e muda o título para Inventário do ir-remediável “passando da fatalidade daquele
irremediável (algo melancólico e sem saída) para ir-remediável (um trajeto que pode ser consertado?)” (ABREU, 2014a, p. 19).

Afagava-os como afagaria uma rosa, vivesse metido em


jardins ao invés de tribunais. Como antigos vasos de
porcelana, tapetes persas, preciosidades às quais apenas se
ama, na tranquilidade de nada exigir em troca. Tranquilo,
então, ele os(as) amava. Voltava banhado em paz, rosto
descontraído, sorrindo para os animais alojados no fundo de
suas próprias pupilas. (ABREU, 2014a, p. 25)
Mas as visões não permaneceram sempre doces:

[Os cavalos] Entraram pela janela aberta do tribunal num dia


em que ele estava especialmente inflamado na defesa de um
matricida. A princípio ainda tentou prosseguir, fingiu não vê-
los, traição, opção terrível entre o amor e a justiça, como na
telenovela a que sua mulher assistia. Eles não estavam doces.
Depois de entrarem pela janela, instalaram-se ríspidos entre
os jurados. De onde observavam, secos, inquisidores.
(ABREU, 2014a, p. 26)

A indiferença dos cavalos causou acessos de ira em Napoleão e o


levaram, por fim, à internação psiquiátrica. O desfecho da história se dá
com a sua morte:

Sete palmos, Napoleão foi enterrado. Tivessem aberto o


caixão, talvez notassem qualquer coisa como um vago
sorriso transcendendo a dureza dos maxilares para sempre
cerrados. Ninguém abriu. Tempos depois o zelador espalhou
pelas redondezas que vira um homem estranho, nu em pelo,
cabelos ao vento, galopando em direção ao crepúsculo
montado em amáveis cavalos. Brancos, naturalmente.
(ABREU, 2014a, p. 29)

Outro exemplo do tema da loucura em Caio Fernando Abreu está em


“Uma história de borboletas”, publicado no livro Pedras de Calcutá em
1977. Nesse conto, o narrador-personagem conta como seu companheiro,
André, enlouqueceu. Ele teria passado a tirar borboletas de dentro de sua
cabeça, borboletas de todas as cores. “De vez em quando aparecia uma
borboleta negra. Então tinha violentas crises, assustava-se, chorava,
quebrava coisas, acusava-me. Foi na última borboleta negra que resolvi
levá-lo para o tal lugar verde e, mais tarde, para o hospício mesmo”
(ABREU, 2014b, p. 139-140). No entanto, ao voltar para casa, o
protagonista passa a apresentar os mesmos sintomas de André e, em uma
crise violenta após retirar uma borboleta negra de sua cabeça, ele também é
internado no mesmo hospício. Os dois ficaram felizes e calmos durante um
tempo, partilhando de suas borboletas.

Ficamos assim por muito tempo até que, sem querer, apanhei
uma das negras e começamos a brigar. Mordi-o muitas
vezes, tirando sangue da carne, enquanto ele cravava as
unhas no meu rosto. Então vieram os homens, quatro desta
vez. Dois deles puseram os joelhos sobre os nossos peitos,
enquanto os outros dois enfiavam agulhas em nossas veias.
Antes de cairmos outra vez no poço acolchoado de branco,
ainda conseguimos sorrir um para o outro, estender os dedos
para nossos cabelos e, com os indicadores e polegares
unidos, ao mesmo tempo, com muito cuidado, apanhar cada
um uma borboleta. Essa era tão vermelha que parecia
sangrar. (ABREU, 2014b, p. 145)

Em ambos os contos, os delírios dos personagens nos remetem a


imagens de liberdade: cavalos selvagens e borboletas. Em comum, também,
a inadequação desses indivíduos considerados insanos à sociedade dita
normal, sendo eles afastados do convívio social por meio do internamento
em instituições psiquiátricas. Além disso, os desfechos desses contos são,
por um lado, trágicos (a morte no primeiro, e a violência no segundo), mas
ao mesmo tempo mostram felicidade. Os loucos, nesses contos, são também
aqueles que enxergam o que ninguém mais vê, com uma sabedoria não-
racional.

Em “Uma história de borboletas”, tanto André quanto seu


companheiro, ao serem internados, reproduzem um provérbio do Tao Te
Ching: “Só se pode encher um vaso até a borda. Nem uma gota a mais”
(ABREU, 2014b, p. 136 e 144). Em uma carta a Maria Lídia Magliani de
10/09/1991, Caio declara: “Loucura, eu penso, é sempre um extremo de
lucidez. Um limite insuportável. Você compreende, compreende,
compreende e compreende cada vez mais, e o que você vai compreendendo
é cada vez mais aterrorizante — então você ‘pira’. Para não ter que lidar
com o horror” (MORICONI, 2016, p. 2865-2867). Assim, podemos
observar nesses contos a loucura como forma de uma consciência
expandida, o louco como um crítico da sociedade dita normal na qual não
se tem liberdade nem felicidade.

A loucura e a AIDS
Em uma série de três crônicas publicadas no Estadão entre 21 de
agosto e 18 de setembro de 1994 – as famosas “Cartas para além dos
muros”, o escritor revelou ao público estar com AIDS. No início da
primeira carta, ele declara: “Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa
tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela”
(ABREU, 2014c, p. 124). Nas duas primeiras cartas, o assunto é tratado de
forma enigmática; já na terceira, ele explicitamente relata como recebeu o
diagnóstico após voltar doente de uma viagem à Europa. Em um primeiro
momento, reagiu com muita naturalidade. No entanto, “Na terceira noite,
amigos em casa, me sentindo seguro — enlouqueci. Não sei detalhes. Por
autoproteção, talvez, não lembro” (ABREU, 2014c, p. 130). Seu estado de
confusão mental e alucinações o levou ao hospital onde se investigou um
possível tumor no cérebro. Assim, essas crônicas/cartas teriam sido escritas
durante essa internação de Caio no hospital.

É interessante observar que os títulos dos textos pelos quais o autor


“saiu do armário” em relação à doença nos remetem a um conto de sua
autoria publicado pela primeira vez no Suplemento Literário de Minas
Gerais em 1971: “Carta para além do muro”. Nesse conto, o muro para
além do qual o narrador-personagem tenta enviar suas palavras também é o
de um hospital, só que, no caso, trata-se de um hospital psiquiátrico. Tanto
no conto quanto nas crônicas, os missivistas se esforçam para conseguir
escrever em um espaço que se destina à cura do paciente, mas que é ao
mesmo tempo hostil a ele por propiciar tratamentos invasivos, impor regras
e limites e separá-lo do mundo exterior. Esses textos, portanto, têm em
comum os muros. Muros de construções físicas que são os hospitais, mas
também muros como limites sociais entre normais e anormais, entre
saudáveis e doentes.

Para pensar essas questões relativas à proteção da vida como objetivo


das políticas de saúde, mas que envolvem, por outro lado, algum tipo de
segregação, é importante nos voltarmos ao conceito de biopolítica na obra
de Michel Foucault. De acordo com o filósofo, o corpo foi, a partir do
século XVII, se tornando cada vez mais o objeto sobre o qual as ações
políticas são exercidas. Por um lado, nos séculos XVII e XVIII
desenvolvem-se técnicas disciplinares para a domesticação dos corpos
individuais por meio de sua organização no espaço e por sua colocação em
vigilância. Além disso, essas técnicas visavam ao aumento da força útil dos
corpos com exercícios e treinamento. Por fim, tal poder sobre os corpos
poderia ser exercido “mediante todo um sistema de vigilância, de
hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios, toda essa
tecnologia que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho”
(FOUCAULT, 1999, p. 288).

Por outro lado, uma outra tecnologia de poder surge, não substituindo,
mas utilizando-se das técnicas disciplinares (ou a também chamada
anátomo-política do corpo). Essa tecnologia seria a biopolítica, que não se
dirige ao homem como indivíduo, mas ao homem como espécie, à
multiplicidade de homens pensada como “uma massa global, afetada por
processos de conjuntos que são próprios da vida, que são processos como o
nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.” (FOUCAULT, 1999, p.
289). A biopolítica vai lidar com questões biológicas na medida em que
essas têm efeito na gestão da população. A política na modernidade, para
Foucault, passa a se basear cada vez mais no “poder de ‘fazer’ viver e de
‘deixar’ morrer”, lógica inversa ao poder soberano de “fazer morrer ou
deixar viver” (FOUCAULT, 1999, p. 287). A tecnologia biopolítica é
previdenciária, pois tem como objetivo o “equilíbrio global, algo como uma
homeóstase: a segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos”
(FOUCAULT, 1999, p. 297).
AIDS e o clima de perseguição: o paradigma
imunitário
O filósofo italiano Roberto Esposito vai contribuir para a discussão
sobre biopolítica, entre outras maneiras, com o conceito de paradigma
imunitário. Ele nos lembra de que imunidade é um vocábulo presente tanto
na linguagem biomédica (a proteção em relação a uma doença infecciosa)
quanto na linguagem jurídica (a proteção em relação aos efeitos de uma lei
comum) e conclui: “a imunização alude a uma situação particular que põe
alguém a salvo dos riscos aos quais está exposta toda a comunidade”
(ESPOSITO, 2017, p. 140). O “fazer viver” da biopolítica, ou seja, a
promoção da vida como objetivo da política moderna, também engloba
proteger o indivíduo do que possa ameaçar a sua vida biológica, seja a
violência, sejam as doenças. Esposito considera a imunidade uma espécie
de “proteção negativa da vida” (ESPOSITO, 2010, p. 74), justamente por
negar ou reduzir sua força expansiva.

A lógica imunitária de proteção da vida foi, segundo Roberto Esposito,


levada ao extremo no regime nazista. Isso porque pensou-se a nação alemã
como um organismo que estava sendo ameaçado por existências
“degeneradas” – judeus, homossexuais, deficientes, entre outros. A
promoção da forma de vida “superior” da raça ariana vai se convertendo em
destruição da vida, como em uma doença autoimune. O nazismo teria
levado a biopolítica moderna a uma espécie de tanatopolítica. E pode ser
considerada um extremo da biopolítica uma vez que “a transcendência do
nazismo é a vida, o sujeito é a raça e o léxico o da biologia” (ESPOSITO,
2010, p. 161). Não só a política se orientou pelas pesquisas biomédicas
como os próprios médicos participaram ativamente de práticas tanto de
promoção da vida considerada superior quanto da eliminação das
existências consideradas inferiores, ou não-vidas.

Nas crônicas “Duas ou três coisas sobre os anos 80” (1985) e “A mais
justa das saias” (publicada pela primeira vez em O Estado de S. Paulo em
1987), Caio Fernando Abreu compara o clima de desconfiança aos
homossexuais em meio à epidemia de HIV com o regime nazista:
E pouco importa também não saber ao certo de onde veio o
vírus maldito. As hipóteses não atenuam o fato: a coisa
existe. E mata. Pior ainda: estimula a níveis dementes o
preconceito contra a mais castigada das minorias. Há
qualquer coisa de nazismo no ar. Qualquer coisa de fogueiras
medievais para queimar os feiticeiros. Lenha é que não falta.
(ABREU, 1985, p. 30)

A pseudotolerância conquistada nos últimos anos pelos


movimentos de liberação homossexual desabou num
instantinho. Eu já ouvi — e você certamente também —
dezenas de vezes frases tipo “bicha tem mesmo é que morrer
de aids”. Ou propostas para afastar homossexuais da
“sociedade sadia” — em campos de concentração, suponho.
Como nos velhos e bons tempos de Auschwitz? Tudo para o
“bem da família”, porque afinal — e eles adoram esse
argumento — “o que será do futuro de nossas pobres
criancinhas?” (ABREU, 2014c, p. 66)

Na formação de tal atmosfera de medo em torno da AIDS, o discurso


jornalístico exerceu um grande papel. Marcelo Bessa aponta que as notícias
sobre a doença chegaram antes ao Brasil do que o diagnóstico dos primeiros
casos no país: o Jornal do Brasil publicou “a primeira reportagem
jornalística brasileira sobre o ‘câncer homossexual’” (BESSA, 2002, p. 22)
em 3 de agosto de 1981, um mês após a primeira reportagem norte-
americana publicada no New York Times em 3 de julho de 1981. Se por um
lado as reportagens eram carregadas de preconceitos e julgamentos morais,
por outro lado contribuíram para a rápida divulgação do que estava sendo
feito ao redor do mundo em relação a pesquisas e tratamentos, servindo
“como uma paraliteratura médica” (BESSA, 2002, p. 54).

Misturados a relevantes informações científicas, vinham elementos


folhetinescos e carregadas tintas de sensacionalismo. Além disso, as
reportagens sobre a AIDS eram publicadas em seções relacionadas a
ciência, saúde e medicina, mesmo quando o conteúdo estava mais próximo
de comportamento ou sociedade, como se isso “desse mais credibilidade ao
texto, conferindo-lhes uma aura, digamos, mais científica, e, assim, mais
neutra e analítica” (BESSA, 2002, p. 31). Dessa forma, o preconceito aos
homossexuais acabava sendo naturalizado e até mesmo cientificizado.
Processo não completamente diverso daquele pelo qual se justificou
cientificamente a inferioridade biológica de alguns grupos no discurso
nazista.

Em reportagem da revista Veja de 14 de julho de 1982, é colocada


como possível causa da então chamada praga gay “a ‘promiscuidade’ dos
homossexuais que levaria a um desgaste imunológico” (BESSA, 2002, p.
30). É possível observar como o discurso mescla aspectos comportamentais
e biológicos de forma parecida com o discurso nazista de degeneração da
raça. Em outra reportagem, agora da revista IstoÉ de 6 de abril de 1983, a
AIDS é caracterizada “como algo estritamente do estrangeiro e de
homossexuais, embora acene com a possibilidade de, em um futuro
próximo, ‘produzir vítimas’ entre os heterossexuais” (BESSA, 2002, p. 30).
No discurso jornalístico sobre o HIV ao longo dos anos 80, segue-se
alimentando a ideia do outro como perigoso e da necessidade de imunizar-
se ao se afastar desse outro e desse comportamento “degenerado”.

Em AIDS e suas metáforas, Susan Sontag defende a ideia de que a


AIDS estaria sendo compreendida por meio da metáfora da peste: uma
epidemia vista como uma espécie de castigo divino pelos “pecados da
carne”. A peste foi comumente considerada como uma doença do
estrangeiro, que vem de outro lugar: “há uma ligação entre o imaginário da
doença e o imaginário do estrangeiro. Suas raízes se encontram talvez no
próprio conceito de errado, sempre identificado com o não-nós, o estranho”
(SONTAG, 2007, l. 1607). No caso da AIDS, o outro entra no imaginário
popular como o homossexual promíscuo, que é preciso identificar e isolar
para que a sociedade possa se proteger. Por isso a concepção do chamado
“‘grupo de risco’ – essa categoria burocrática, aparentemente neutra, que
também ressuscita a ideia arcaica de uma comunidade poluída para a qual a
doença representa uma condenação” (SONTAG, 2007, l. 1591).

Considerações finais
O que Susan Sontag debate em Doença como metáfora e em AIDS e
suas metáforas seriam, em linhas gerais, os problemas em torno do uso da
palavra doença como sinônimo de coisas ruins em geral. Isso tem como
consequência a criação de um imaginário do doente como sendo um agente
do mal – pelo menos em relação àquele que sofre de alguma doença
estigmatizada. Se o doente é considerado um elemento perigoso, ou
indesejado, a reação da sociedade acaba sendo isolar esse indivíduo,
estratégia de proteção que pode ser compreendida por meio da ideia de
paradigma imunitário.

Em “Os cavalos brancos de Napoleão”, durante o processo de


diagnóstico do protagonista, este recebe uma lista de rótulos:
“sadomasoquista, pederasta, esquizofrênico, paranoico, comunista, ateu,
hippie, narcisista, psicodélico, maconheiro, anarquista, catatônico,
traficante de brancas (ou brancos?) foram-lhe impostos sucessivamente
pelos psicanalistas” (ABREU, 2014a, p. 28). É possível observar que,
misturados às patologias de fato estão outros elementos como
posicionamentos políticos, por exemplo. Como se muitos dos considerados
diferentes pela sociedade fossem passíveis de diagnóstico, ou seja, doentes.
Mas a ironia é que os considerados sãos pela sociedade são aqueles que o
submetem a tratamentos agressivos como o eletrochoque, e o levam a
perder o ânimo, a saúde e, por fim, a vida. Assim, fica o questionamento:
quem estaria mais doente, aquele que delira e morre feliz ou aqueles que
isolam e maltratam o outro, o diferente?

Em relação à AIDS, Caio Fernando Abreu vai levantar a questão de


que o doente não seria somente o contaminado pelo vírus HIV. O mal
também estaria no que ele chamou de “AIDS psicológica”:

Heteros ou homos (?) a médio prazo iremos todos


enlouquecer, se passarmos a ver no outro uma possibilidade
de morte. Tem muita gente contaminada pela mais grave
manifestação do vírus — a aids psicológica. Do corpo, você
sabe, tomados certos cuidados, o vírus pode ser mantido a
distância. E da mente? Porque uma vez instalado lá, o
HTLV-32 não vai acabar com as suas defesas imunológicas,
mas com suas emoções, seu gosto de viver, seu sorriso, sua
capacidade de encantar-se. Sem isso, não tem graça viver,
concorda? (ABREU, 2014c, p. 67)
2 HTLV-3 foi uma das denominações que o vírus causador da AIDS recebeu antes de ser chamado HIV.

Caio se refere a esse mundo de isolamento paranoico utilizando a


metáfora “mundo de zumbis” (ABREU, 2014c, p. 67). Para o autor,
portanto, um sujeito que abre mão de explorar as potencialidades da vida se
isolando com o intuito de se proteger dos perigos acaba por se tornar uma
existência não-viva. O escritor acaba por inverter a lógica do paradigma
imunitário ao pensar que o zumbi seria não o infectado – aquele mais
comumente considerado um não-vivo, sofrendo uma espécie de “morte
civil, ou seja, a morte ainda em vida, pelo preconceito e discriminação”
(BESSA, 2002, p. 75) – mas sim o sujeito que tem medo de viver. Inversão
semelhante à que ocorre com a valorização da sabedoria e felicidade do
louco como aquele que de alguma maneira afirma a vida como potência, ao
contrário da vida ordinária dos ditos normais.

Referências
ABREU, Caio Fernando. Caio Fernando Abreu: o essencial da década
de 1970. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014a.

ABREU, Caio Fernando. Duas ou três coisas sobre os anos 80. Jornal
do Brasil, Rio de Janeiro, 2 de junho de 1985. Revista Domingo, p. 30.

ABREU, Caio Fernando. Pedras de Calcutá. 4 ed. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 2014b.

ABREU, Caio Fernando. Pequenas epifanias. 4 ed. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 2014c.

BESSA, Marcelo Secron. Os perigosos: autobiografias e AIDS. Rio de


Janeiro: Aeroplano, 2002.
CICERO, Antonio. Encontros e desencontros com a cultura. In:
ALMEIDA, Maria Isabel Mendes; NAVES, Santuza Cambraia. “Por que
não?”: rupturas e continuidades da contracultura. Rio de Janeiro: 7Letras,
2007. p. 54-63.

ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Tradução por M.


Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010.

ESPOSITO, Roberto. Termos da política: comunidade, imunidade,


biopolítica. Tradução por Angela Couto Machado Fonseca, João Paulo
Arrosi, Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Curitiba: UFPR,
2017.

FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976. In:


FOULCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução por Maria
Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC,


vanguardas e desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.

MORICONI, Ítalo (Org.). Caio Fernando Abreu: Cartas. 2. ed. [s.l.] E-


galáxia, 2016. Livro digital, edição Kindle.

PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é contracultura? 8. ed. São


Paulo: Brasiliense, 1992.

SONTAG, Susan. Doença como metáfora / AIDS e suas metáforas.


Tradução por Rubens Figueiredo e Paulo Henriques Britto. São Paulo:
Companhia de Bolso, 2007. Livro digital, edição Kindle.
O poema como circunstância:
Apontamentos sobre a poesia de
Manuel de Freitas e Carlito
Azevedo
Tamy de Macedo Pimenta

Sumário

Nossa pesquisa dentro do programa de Pós-graduação de Literatura


Comparada na Universidade Federal Fluminense tem se desenvolvido,
sobretudo após o Exame de Qualificação, realizado em março de 2019, em
torno da noção de circunstância e em como ela pode ser compreendida
através do estudo das obras poéticas do português Manuel de Freitas e do
carioca Carlito Azevedo.

Nesse sentido, embora tenha sido a relação estabelecida entre vida e


poesia pelas duas obras o impulsionador de nosso trabalho de investigação,
buscamos um aparato teórico-crítico que nos auxiliasse no entendimento
desse vínculo entre experiência íntima/social e poesia para aprofundarmos
nossas análises. Em um primeiro momento, o livro Literatura e Sociedade,
de Antonio Candido, nos ofereceu uma visão mais geral sobre o tema ao
argumentar, dentre outros assuntos, que a literatura goza de uma liberdade,
que:

[...] mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão


da fantasia, que às vezes precisa modificar a ordem do
mundo justamente para torná-la mais expressiva; de tal
maneira que o sentimento da verdade se constitui no leitor
graças a esta traição metódica. Tal paradoxo está no cerne do
trabalho literário e garante a sua eficácia como representação
do mundo. Achar, pois, que basta aferir a obra com a
realidade exterior para entendê-la é correr o risco de uma
perigosa simplificação causal. (CANDIDO, 2014, p. 22)

Longe de terem uma “orientação documentária”, as poéticas de Freitas


e Carlito experimentam, justamente, o paradoxo afirmado pelo crítico
brasileiro, já que, embora façam referências constantes a elementos do
mundo exterior e “real” e, até mesmo, a situações banais do cotidiano,
muitas vezes propositalmente aproximando o sujeito poético do sujeito-
poeta, os dois não abrem mão – e, seguindo a lógica de Candido, não o
poderiam – do “quinhão da fantasia”, do trabalho poético, que distingue a
literatura de outros textos. As relações entre poesia e vida, poesia e
sociedade, poesia e intimidade aproximam esses polos sem, entretanto, cair
em uma coincidência apaziguante. Pelo contrário, é como tensão que eles
são trabalhados nos poemas e é assim que temos buscado lê-los. Para isso, a
noção de circunstância, que nos foi apresentada primeiramente através de
textos críticos de Luciana di Leone sobre versos de circunstância1, tem sido
bastante proveitosa, uma vez que, como salienta Leone, sua própria
definição desse tipo de poesia oferece um agente problematizador:
1 Os textos “O convívio da poesia”, publicado no número 19 da revista Outra Travessia em 2015, e “O mínimo e o monumento. Os Versos de Circunstância de Carlos
Drummond de Andrade”, publicado em Ler Drummond Hoje em 2014.

essa categoria [versos de circunstância] está longe de ser


aplicada a objetos de características homogêneas e longe de
ter uma definição estável – e talvez esteja na sua própria
constituição não chegar a tê-la –, mas ela (me) interessa
menos pela problemática que apresenta a sua definição, ou
pela falta de estudos, e mais pelo fato de tornar
incontornável a pergunta por uma relação, nela evidente e
inegável, entre poesia e mundo, entre escrita e história além
ou aquém de uma separação autonomista” (LEONE, 2015, p.
111).

De fato, os versos de circunstância, além de não possuírem uma


definição exata e fechada, não constituem um gênero ou subgênero à parte,
sendo mais referenciados como um tipo de poesia aos quais poucos estudos
foram dedicados. Dentre esses estudos – além dos textos de Luciana di
Leone – encontramos o livro do romeno Predrag Matvejevitch, Pour une
poétique de l’événement: la poésie de circonstance; o texto do poeta francês
Paul Eluard, “Sobre a poesia de circunstâncias”, oriundo de uma
conferência proferida por Eluard em 1952 e publicado no Brasil pela
Revista Princípios em 1985; e o texto “Vers de Circonstance”, publicado no
livro Adieux au Poème do poeta-crítico francês Jean-Michel Maulpoix.
Trataremos brevemente das principais contribuições de cada um desses
textos para nossa pesquisa.

Em seu livro, o estudioso romeno tenta definir, em contornos gerais,


alguns aspectos da poesia de circunstância. Para ele, “toda obra poética que
se relaciona de maneira próxima a qualquer acontecimento privado ou
pessoal (...) pode ser dita de circunstância” (MATVEJEVITCH, 1971, p. 8)
e “a característica mais comum da poesia de circunstância é indicar de
forma suficientemente nítida um à ocasião de. O grau de relatividade ou de
dependência que esse à ocasião de implica varia de um caso a outro”
(MATVEJEVITCH, 1971, p. 89). Além disso, Matvejevitch ressalta o
caráter duplamente íntimo/subjetivo e engajado/coletivo desse tipo de
poesia.

Já Paul Eluard, dissocia a poesia de circunstância da poesia de


encomenda, observando que:

A verdadeira poesia de circunstância deve brotar do poeta


com a precisão de um espelho fiel aos outros homens.
Responde então ao que Maiakóvski chamava de ‘encomenda
social’, por oposição à encomenda casual, sem valor, não
transmissível. A circunstância exterior deve coincidir com a
circunstância interior, como se o próprio poeta a houvesse
produzido. (ELUARD, 1985, s/p).

Segundo o poeta, isso permitiria que “um poema passe do particular ao


geral e adquira assim um sentido válido, durável, eterno”. (Ibidem). Jean-
Michel Maulpoix, porém, faz o movimento contrário ao aproximar os
versos de circunstância da poesia de encomenda. Citando a Art poétique do
sociólogo francês Roger Caillois, o autor nos lembra que, durante os tempos
mais antigos, era a circunstância que ditava a forma dos poemas e ecoa a
famosa frase de Goethe ao afirmar que: “a poesia está então implicada nos
movimentos mais importantes da vida coletiva ou individual. Toda poesia
pode sem pesar ser chamada ‘de circunstância’, a partir do momento em
que ela encontra sua razão de ser nas ocasiões as quais ela se refere”
(MAULPOIX, 2005, p. 266).

Desse modo, todos esses estudos nos ajudam a formar uma noção mais
clara – porém nunca fechada – de circunstância e, assim, podemos observar
suas aproximações e distanciamentos das poéticas de Manuel de Freitas e
Carlito Azevedo que, como veremos, estabelecem relações com os versos
de circunstâncias – principalmente Carlito, que chegou a nomear um de
seus livros, de 2001, Versos de circunstância – sem, entretanto, aderirem
por completo a esse tipo de trabalho poético como fizeram, dentre outros
poetas, Carlos Drummond de Andrade. Embora não tenha incorporado seus
Versos de circunstância a suas antologias nem os tenha publicado
integralmente em vida, Drummond preencheu três cadernos intitulados
“Versos de circunstância”, que foram publicados recentemente em conjunto
no ano de 2011 pela editora 7 Letras. Nesses poemas, podemos observar de
maneira mais latente os versos de circunstância stricto sensu, caracterizados
por Pregrad Matvejevitch como poemas “indissociáveis dos eventos que os
fizeram nascer” (MATVEJEVITCH, 1979, p. 68), conforme percebemos no
exemplo a seguir:

XVI
Eliéser Magalhães, o bom avô, caduca
por Francisco, seu neto. Eu sou avô, e entendo.
De Paris a Bangkok, ou do Polo à Tijuca,
ser avô é da vida o melhor dividendo.
(A pedido de José Olympio)
(ANDRADE, 2011, p. 202)

Nesse curto poema, o verso final – “ (A pedido de José Olympio) ” –


nos remete à poesia de encomenda, ao afirmar que o poema foi feito a
pedido de alguém. A presença de nomes próprios de pessoas (José
Olympio, Eliéser Magalhães) e lugares (Paris, Bangkok, Polo, Tijuca)
também são indicadores das circunstâncias originais às quais o poema se
liga, porém, embora essa ligação seja bastante evidente e os versos se
mantenham atrelados a suas circunstâncias, não se pode esquecer, como
comenta Luciana di Leone que nos Versos de circunstância de Drummond
“não há um vínculo positivo com o referente, não existe um trabalho sobre
uma matéria bruta histórica (porém, sim, um trabalho técnico, um exercício
de perícia, com a linguagem – que nem por isso pode ser considerado uma
matéria bruta ou virgem, trabalhada pacificamente)” (LEONE, 2014, p. 70).
O “exercício de perícia com a linguagem” drummondiano não é
abandonado em seus versos de circunstância, por mais que esses se
relacionem a situações banais e referenciem a pessoas específicas. Em outro
poema, ainda que novamente tenhamos a presença maciça de nomes
próprios, a passagem do individual ao geral, aclamada por Paul Eluard,
pode ser percebida no momento em que a circunstância íntima do ser avô de
Drummond se transforma em poesia:

XVII
A lição das coisas ao poeta
é de humilde sabedoria:
Pondo de lado a busca inquieta,
amar sua filha Maria.
E ter para Manolo e Toto
para Abiça e para Pedrinho
(três barcos, o mesmo piloto)
um só e quádruplo carinho.
(ANDRADE, 2011, p. 202)

Carlito Azevedo, poeta que carrega a herança drummondiana, parece


incorporar o tom circunstancial em seus poemas – mesmo os fora de seu
livro Versos de circunstância – e dar preferência, assim como o poeta de
Itabira, a uma maior presença do aspecto intimista/subjetivo da poesia de
circunstância do que ao engajado/coletivo, embora este último não esteja
ausente e seja trabalhado em conjunção com o primeiro em vários pontos da
obra poética do carioca. Talvez seja em Monodrama, de 2009, que isso
fique mais claro, já que as diferentes seções do livro trabalham desde
configurações político-sociais da recente história brasileira (e carioca, mais
especificamente) à vivências bastante pessoais experienciadas por Carlito
Azevedo, como a morte de sua mãe Hilda, trabalhada na seção “H.”, da
qual retiramos o primeiro poema da subseção “Beijo”:

Depois de encaminhar “H.” por e-mail para alguns amigos,


no intuito de avisá-los da morte de minha mãe e consciente
de que não conseguiria escrever outra coisa qualquer sobre o
assunto, descobri que na pressa de escrever para não
enlouquecer, acabei revelando o que até o pequeno Stephen
Dedalus quando ainda vestia calças curtas já se
envergonhava se der levado a admitir frente aos colegas de
internato. Quando eu me encontrava em casa à noite, mais
precisamente no horário em que minha mãe era posta por
suas acompanhantes para dormir, lá pelas 20 horas, eu
costumava dar-lhe um beijo de boa noite, no qual ela parecia
encontrar agora mens a continuidade de um costume antigo
do que certa doçura narcótica que eu não lhe sabia recusar.
Dirigia-me ao seu quarto e costumava encontra-la já quase
adormecida. À luz reduzida do abajur, beijava a testa daquele
imenso inseto preso no âmbar. (AZEVEDO, 2009, p. 141)

Neste poema, assim como outros do livro, a própria forma do poema,


ao se aproximar da prosa, encena um movimento em direção à fala e escrita
cotidianos – até mesmo o “e-mail” é, de certa forma, incorporado ao poema,
já que o sujeito diz ter escrito no e-mail para alguns amigos um relato que é
retomado no poema. Há, novamente, a presença de amigos e familiares,
ainda que estes não sejam nomeados claramente como nos Versos de
circunstância de Drummond, e uma forte aproximação entre o sujeito
poético e o sujeito-poeta. A imagem final do poema, “imenso inseto preso
no âmbar”, metáfora para o corpo materno atrelado à cama e aos cuidados
médicos, talvez seja a mais poética de todo o poema e, por isso, uma das
responsáveis por fazer a passagem do individual ao geral defendida por
Eluard.

Já Manuel de Freitas, poeta português que começa a publicar no início


de nosso século, afirmou, em diversos momentos, a relação entre poesia e
circunstância, como podemos perceber em sua resposta ao Inquérito Poesia
e Resistência, feito pelo website da rede E-Lyra:

A poesia resiste porque não pode ser adiada – para outro


tempo, lugar ou voz. Nesse exacto sentido, e como já Goethe
afirmou, a poesia é circunstancial. E resiste/responde, muitas
vezes, a circunstâncias tão exactas quanto reconhecíveis: um
luto, um encontro, um concerto de música, uma viagem.
(FREITAS In: Inquérito Poesia e Resistência)

Tal comentário parece ir ao encontro do poema de Carlito supracitado


e, de fato, a poética dos dois se aproxima bastante quanto ao caráter
circunstancial que ambas possuem, ao aproximarem vida e poesia, como
Freitas faz, por exemplo, neste poema de seu livro mais recente, Boal:

<<À Rambóia não vou>> - começava


a canção na guitarra com que outro tio
celebrava bodas, enterros e aniversários.
Um laborioso roteiro da morte.

À Rambóia, de facto, ninguém voltará


a ir. Partiu-se o espelho baço
que nos Piornais avisava o trânsito
e a taberna, princesa junto ao mar,
acabou demolida para deixar
progredir o betão inglês e o asfalto.

Também as mãos do tio perderam


a memória. Aguarda na velha cadeira
de vime o último sono, o fim da música.
(FREITAS, 2019, p. 37)

Aqui é interessante notar, logo na primeira estrofe, um outro modo de


trabalhar poeticamente circunstâncias banais como “bodas, enterros e
aniversários”. Diferentemente de Carlos Drummond de Andrade, que em
grande parte de seus Versos de Circunstância, cria rimas para homenagear e
elogiar essas ocasiões corriqueiras, no poema de Freitas não há espaço
senão para a percepção de ruína. Assim, ainda que conte com as lembranças
de eventos pontuais e de familiares – “outro tio” –, esses elementos são
observados pelo sujeito poético através de um olhar alegórico, que vê o fim
do que antes se experimentara: “À Rambóia, de facto, ninguém voltará/ a
ir”. Olhar próximo ao olhar do sujeito de “Beijo”, de Carlito Azevedo, que,
ao ver na mãe “imenso inseto preso no âmbar”, transporta o poema para
outras camadas de sentido, afastadas do “real concreto”.

Desse modo, nossa pesquisa tem sido orientada de modo a perceber


como a noção de circunstância é trabalhada por esses dois poetas, pensando
em como eles se aproximam e se afastam entre si e também o fazem a
outras obras, tais como a de Drummond, que se debruçaram sobre o que
Carlito Azevedo chamou de “fimbriazinha subtil” que existe entre o viver e
o escrever: “Se a gente fala de poesia está falando de vida, essa porosidade
neles é muito interessante. Não entre a verdade e o escrever, mas entre viver
e escrever, o que é uma fimbriazinha subtil. ” (AZEVEDO, 2009, s/p).

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Versos de Circunstância. Org.
Eucanaã Ferraz. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011.

AZEVEDO, Carlito. Monodrama. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro


Sobre Azul, 1995.
COELHO, Alexandra Lucas. “Para entender o mundo, vou ler os
poetas novos” (Entrevista com Carlito Azevedo). Jornal Público, Lisboa,
2009.

ELUARD, Paul. Sobre a poesia de circunstância (1952). Princípios.


Revista teórica, política e de informação, n.10, abril 1985. Resumo
disponível em [http://revistaprincipios.com.br/artigos/10/cat/2092/sobre-a-
poesia-de circunst%C3%A2ncias-.html]. Acesso em 26 de agosto de 2018.

FREITAS, Manuel de. Boal. Lisboa: Alambique, 2019.

LEONE, Luciana di. “O mínimo e o monumento. Os Versos de


Circunstância de Carlos Drummond de Andrade”. In: Ler Drummond Hoje.
São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2014.

______. “O convívio da poesia”. Outra Travessia, n. 19. Universidade


Federal de Santa Catarina - 1º Semestre de 2015. p. 105.

MATVEJEVITCH, Predrag. Pour une poétique de l’événement: la


poésie de circonstance. Paris: Union Générale d’Éditions, 1979.

MAULPOIX, Jean-Michel. “Vers de circonstance”. MAULPOIX,


Jean-Michel. In: Adieux au poème. Paris: Librairie José Corti, 2005, pp.
263-283.

Inquérito Poesia e Resistência (Portugal). Disponível em:


[http://ilcml.com/inquerito-poesia-e-resistencia-portugal/].
O intelectual e a luta política no
período ditatorial
Thaís Sant’Anna Marcondes

Sumário

Entre os anos 1964 e 1985, o Brasil viveu sob uma ditadura militar.
Durante esse tempo, a presidência da República foi ocupada
sucessivamente por generais do exército – Castelo Branco, Costa e Silva,
Médici, Geisel e Figueiredo – que insistiam em enfatizar o caráter
temporário do período, pois, diziam os militares, o movimento por eles
chamado de “revolução” previa apenas reestabelecer a ordem no Brasil e
salvá-lo do comunismo, pois, no início da década de 60, havia boatos de
que os comunistas dariam um golpe para fazer o Brasil se aliar à URSS. O
movimento de março de 1964 modificou as instituições do país através dos
atos institucionais (AI), suspendendo direitos políticos, punindo
responsáveis por crimes contra o Estado ou contra a ordem política e social,
perseguindo adversários do governo, instaurando a censura, dando fim ao
habeas corpus, implementando uma nova Constituição no Brasil. O regime
militar teve fim, mas deixou seus vestígios.

A prova disso é que, mesmo distante alguns anos do final da ditadura,


o cenário político social na atualidade segue caótico. Em julho deste ano, o
Brasil pôde ouvir da boca do presidente Jair Bolsonaro, em ataque ao
presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, que um dia ele pode contar a
verdade sobre como o pai de Felipe desapareceu na ditadura. Negar
informações sobre o paradeiro de pessoas desaparecidas integra a prática do
crime de desaparecimento forçado e atinge a esfera subjetiva dos familiares
da vítima, a quem ainda hoje é negada a verdade, a prestação de contas.
Este panorama aponta para os silêncios deixados pelo regime militar em
seus porões mais sombrios.

A ditadura no Brasil se impôs como um esquecimento compulsório. A


omissão, por parte dos militares, de documentos importantes; o
silenciamento das vítimas de práticas de tortura; os desaparecimentos sem
explicação; a impunidade dos que cometeram crimes terríveis e outros
tantos fatores traumáticos justificam o fato de esse momento histórico ter se
transformado em uma gaveta de relatos secretos trancada a sete chaves.
Enquanto comissões da verdade foram criadas em muitos países – para
resolver seus conflitos internos; fazer com que os fatos ocorridos em meio
às ditaduras fossem conhecidos por suas populações; criar políticas de
reparação –, a situação da ditadura militar brasileira ainda requer
resistência, estudo e memória, para que se possa, de fato, aprender com o
que foi vivido. Dessa forma, a literatura se mostra como expressão de um
sofrimento irremediável, transmissora de um período da história que chega
até nós através de estilhaços do passado. De acordo com Alfredo Bosi:

Já há alguns anos sobreveio à cultura brasileira um tempo de


lembrar, intenso e polifônico, cujas melodias se cruzam em
nossos ouvidos mesclando tons e passagens e impondo à
percepção do ouvinte a forma de uma História bem mais rica
e contraditória do que suspeitavam as nossas vãs ideologias.
(2015, p. 335)

A literatura brasileira que traz como contexto a ditadura militar é um


veículo propício para desenvolver um trabalho ativo de memória, para fazer
ouvir a voz desse passado que se mantém vivo como trauma1. Sem ceder ao
panfletarismo, os livros que se apoiam em uma complexa relação com a
memória dessa época mostram a urgência que ainda existe em apontar as
incoerências do sistema repressivo e o diálogo que esse tempo obscuro
impõe ao presente e ao futuro.
1 Trauma, na concepção de Seligmann-Silva, é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa. Mostra-se, portanto, como o fato psicanalítico prototípico no
que concerne à sua estrutura temporal (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 69).

Sem pretensões de dar conta de uma totalidade ou de uma síntese, a


literatura teve e continua tendo a capacidade de tocar na memória sobre a
ditadura militar através dos lapsos. É um grito que transmite a experiência
dos que não tiveram voz. Os livros que possuem como tema o regime
ditatorial usam como matéria os documentos e as ausências de documentos,
sem abrir mão de certo requinte artístico. Para Dalcastagnè, a análise que se
impõe sobre essas obras pode ser “um bom exercício para a memória –
mesmo para aqueles que não estiveram lá, aqueles que só vieram depois,
herdeiros da dor”. (DALCASTAGNÈ, 1996, p. 15).

Em seu recente estudo, Figueiredo (2017, pp 47-48) divide a produção


literária sobre a ditadura militar em três momentos: o primeiro período
abrange os livros publicados entre 1964 e 1979, cuja tônica é em alguns
momentos prospectiva e utópica, em outros é distópica diante do fracasso
de projetos revolucionários; o segundo período abrange os livros publicados
entre 1979 e 2000 e são caracterizados por relatos autobiográficos de ex-
presos políticos exilados que voltaram ao Brasil graças à lei da anistia; e o
terceiro período abrange os livros publicados dos anos 2000 aos dias atuais
e apresenta obras cujos autores optam por abordar o passado utilizando o
romance para transmitir o vivido através de um trato mais literário.

Os livros do primeiro período da divisão conseguiram vencer a


censura, mas essas primeiras publicações, de acordo com Pellegrini (1996),
tiveram a experimentação linguística cerceada, tolhida, porque o objetivo
era resistir, documentando. A divulgação de informações foi uma prioridade
tática em relação às preocupações com a linguagem.

O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira (1982), se insere no


segundo grupo de livros de acordo com a divisão feita por Figueiredo
(2017). É um relato autobiográfico que reconstitui a trajetória do jornalista
que se engajou na luta política, participou do sequestro do embaixador
norte-americano Charles Burcke Elbrick, foi perseguido, torturado e
exilado. Em seu texto, o narrador retoma a democracia que morreu sem
lutar, enquanto intelectuais de esquerda acreditavam na revolução,
esperando por armas que nunca chegaram. É a fala de um sobrevivente que
retorna para rememorar e revisar uma história vivida, avaliando
experiências e colocando em discussão a realidade brasileira.

O narrador-personagem que a princípio observa a multidão nas ruas


protestando de uma sacada do Jornal do Brasil, onde trabalhava como
redator, se desloca e vai para a militância, se empenha em produzir um
jornal revolucionário (Capital) e se coloca como intelectual em um grupo
clandestino de estudantes e operários em prol da luta armada. No decorrer
do relato, o personagem acaba preso e, enquanto narra suas experiências
com o grupo e nas prisões, traça uma reflexão sobre seu papel como
intelectual na resistência que acaba culminando em seu exílio.

K. – Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski (2014), se insere no


terceiro grupo de livros segundo a mesma divisão. É uma narrativa por
vezes narrada em terceira pessoa, em que o personagem K., escritor e
estudioso da literatura iídiche, é, com suas idas e vindas na busca por sua
filha desaparecida, uma metáfora do labirinto da repressão ditatorial. Outras
vezes, a narrativa está em primeira pessoa e a voz é cedida aos narradores-
personagens que expõem os meandros do aparato repressor e sua influência
na vida cotidiana em diversos setores.

O livro de Kucinski constrói como ficcional a história das lacunas da


trajetória do poder no Brasil. Pensando no que poderia ter acontecido à
moça desaparecida, pensa-se também no que deve ter acontecido em um
plano de fundo mais geral, a nível nacional, tendo em vista que foi uma
época marcada pelo silêncio violentamente forçado. Assim, no livro,
realidade não se opõe à ficção. Esta serve para preencher os vazios deixados
pela ditadura.

Os dois autores têm suas vidas marcadas pelo jornalismo e pela


literatura, ambos vão passar a limpo fatos históricos nas páginas de seus
livros. Nos dois casos, os autores transpõem as barreiras do campo
jornalístico para apontar na literatura uma revisão memorialística do que foi
a ditadura. Uma leitura que pretendemos propor das duas obras permite
repensar a atuação do intelectual na resistência durante o regime militar,
período que exigia uma postura ativa, resistente e não alienada.

De acordo com o pensamento de Sartre (1994), o intelectual é aquele


que se aproveita da notoriedade que adquiriu por trabalhos que dependem
da inteligência para ser “alguém que se mete no que não é da sua conta e
que pretende contestar o conjunto de verdades recebidas, e das condutas
que nelas se inspiram, em nome de uma concepção global de homem e da
sociedade” (SARTRE, 1994, p. 14-15). O intelectual, então, deve usar o
reconhecimento de seu nome público para transpor os limites de seu campo
de atuação no trabalho, em sua especialidade, e assim interferir na
sociedade em que vive partindo de suas reflexões críticas, em favor da
moral, da ética e do respeito à vida.
Said (2005), em Representações do intelectual, aponta o intelectual
como o indivíduo que é do contra e até mesmo desagradável, que tem como
função social “levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar
ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los); isto é, alguém que não pode
ser facilmente cooptado por governos ou corporações, e cuja raison d’être é
representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente
esquecidos ou varridos para debaixo do tapete” (SAID, 2005, p. 26).

O que é isso, companheiro?, na edição de 1982 pela editora Nova


Fronteira, traz em sua capa o desenho de um homem vestido de terno e
gravata, com a cabeça aberta e saindo dela diversos raios e fitas, e, ao
fundo, um enorme ponto de interrogação. Esta capa traz a referência a um
intelectual com seus pensamentos e o ponto central da obra: a dúvida. Esta
é endossada em seu título, o incômodo questionamento-chave para a
interpretação crítica da figura do intelectual presente no tecido narrativo:
houve um embasamento real, uma diretriz, na atuação da esquerda no
quadro político da época? Para Pellegrini, a fala de Gabeira “pôs a nu a
contradição existente entre o racionalismo do discurso militante e a
perplexidade latente (e reprimida) no âmago de cada um” (PELLEGRINI,
1996, p. 37).
O narrador, representado pelo desenho do intelectual na capa, tinha
dois empregos em 1964: como redator do Jornal do Brasil onde engolia
sapos para ganhar dinheiro e como subsecretário de oficinas no Panfleto
(semanário da ala esquerda do PTB) onde trabalhava de acordo com suas
ideias. Como intelectual, o personagem tentava levar adiante seus dois
trabalhos, mas sabia que alcançava uma parte maior da sociedade no Jornal
do Brasil. Então, veremos que ele toma algumas pequenas atitudes para
tentar resistir dentro dos limites que lhe cabia como repórter daquele jornal,
acrescentando argumentos a algum texto ou pensando em alguma ironia
para ridicularizar as posições da extrema direita. Porém, nos deparamos
também com algumas cenas em que o narrador observa inerte da janela do
JB movimentos contra a ditadura enquanto outras mil coisas aconteciam
nos telegramas empilhados em sua mesa.
Assim, podemos observar no tecido textual de O que é isso,
companheiro?, em meio a narração das diversas fugas, dos planos, das
organizações, dos relatos de tortura, algumas reflexões feitas pelo narrador
sobre seu papel dentro da sociedade em meio a um momento histórico tão
doloroso e desesperador. Como observa Helena (2010), há uma dificuldade
de os intelectuais implementarem medidas que efetivamente ajudem a
transformar a sociedade como um todo (HELENA, 2010, p. 75). O que
observamos no livro de Gabeira são inúmeras buscas feitas pelo narrador
para encontrar saídas como redator do jornal de grande circulação. Quando
ele nota que tudo que estava fazendo era quase inexpressivo diante do
cenário devastador, o personagem parte para tentativas de resistência corpo
a corpo, da luta armada e vai até participar do sequestro do embaixador
norte-americano. Entretanto, retomando a pergunta-chave do livro, a todo
momento na narração, a eficácia dessas ações será questionada por um
narrador astuto que pensa o tempo todo sobre as consequências das medidas
tomadas pelos grupos da esquerda dos quais fez parte. Dentro dos
movimentos de oposição, pode ser que a função intelectual do narrador não
tenha sido cumprida de fato, mas o livro que temos em mãos traz um
intelectual que vem do exílio tentar pensar sua condição de resistente
durante o regime militar, apontando críticas para diversos setores da
sociedade, se metendo no que não era de sua conta.

K. – Relato de uma busca apresenta em seus primeiros capítulos o


personagem principal, pai da moça desaparecida, como um intelectual, um
estudioso da literatura iídiche, resistente judeu polonês, que veio para o
Brasil fugido durante a Segunda Guerra Mundial. É o seu papel de
intelectual marcado pela intensa dedicação ao iídiche que o impede de notar
as mudanças políticas no Brasil e o envolvimento da própria filha com o
movimento de resistência ao regime ditatorial no país. K. nem tentou usar
seu reconhecimento no âmbito literário para pensar criticamente o que
estava acontecendo na sociedade e lutar contra o governo. Quando se deu
conta do que estava acontecendo no país, a filha já estava desaparecida.
Nesse sentido, para surpresa de K., sua filha Ana simboliza a função
intelectual na concepção aqui traçada anteriormente. Ana, além de se meter
no que não era da sua conta – participando, inclusive, de uma organização
clandestina – tenta, de fato, transformar a sociedade em que está inserida.
Ela confrontou o regime militar e desapareceu numa rede sem fim, num
sistema silencioso e impiedoso que não deixava rastros, vestígios, nem
registros.

Passadas três décadas da abertura política, a memória sobre a ditadura


militar continua servindo como tema para a literatura brasileira,
contribuindo para a superação de muitos traumas que ainda rondam nossa
sociedade ameaçada a todo momento pelo fantasma da opressão. Relatos,
rememorações e revisões críticas sobre a luta engajada estão registrados em
livros que apresentam a saga dos que sofreram na própria pele os horrores
da ditadura ou dos que buscaram em vão parentes e amigos desaparecidos
pelos porões dos quartéis no país.

Como resultado, temos narrativas em que a história não oficial da


época está registrada em estilhaços e nos permitem ter acesso a um
panorama da violência física e psicológica sofrida por muitas pessoas, do
medo que se respirava em todos os lugares e do caos vivido pelos que
tentaram de alguma forma resistir.

Neste breve estudo, ao observar os livros O que é isso, companheiro?,


de Fernando Gabeira e K. –Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski,
contextualizados no ambiente opressor da ditadura militar no Brasil, notou-
se uma forte reflexão sobre a importância da ação do intelectual em um
momento tão delicado. Ambos promovem uma ampla discussão sobre a
escrita de um trauma que permanece atual e expõem ao olhar do leitor
contemporâneo as buscas de quem entende que ainda hoje é preciso resistir
contra o controle da memória e a impunidade de crimes terríveis.

Referências
BOSI, Alfredo. Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34,
2015.

DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: O regime de 64 no


romance brasileiro. Brasília: Editora UnB, 1996.
FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura
brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.

GABEIRA, Fernando. O Que é isso, companheiro?. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 1982.

HELENA, Lucia. Ficções do desassossego: fragmentos da solidão


contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2010

KUCINSKI, Bernardo. K. – Relato de uma busca. São Paulo: Cosac


Naify, 2014.

PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70.


São Paulo: Mercado de Letras, 1996.

SAID, Edward. Representações do intelectual: As conferências Reith


de 1993. Tradução por Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.

SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. Tradução por Sérgio


Góes de Paula. São Paulo: Ática, 1994.

SELIGMANN-SILVA Márcio (org.). História, memória, literatura: o


Testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, Ed. da UNICAMP, 2003.

Créditos das imagens


VICTOR BURTON. [Sem título]. 1982. Capa do livro O que é isso
companheiro?, de Fernando Gabeira, publicado pela editora Nova
Fronteira. Disponível em:
[https://www.skoob.com.br/livro/edicoes/4593/edicao:5667]. Acesso em: 15
out. 2019.
Compasso, terra, teoria do poema:
Estratigrafias latinoamericanas
Vinícius Ximenes

Sumário

Não fosse Josefina Ludmer nos deixar com essa opção em seu
derradeiro livro - Aqui América Latina: uma especulação - e dificilmente
teríamos essa abertura. Ali ela sugere usar a literatura como um mazo de
tarot; ou como borra de café; ou como lentes: dispositivos para mover
neurônios e tentar ver algo da incessante fábrica da realidade (2013, p. 9).
Pensar o continente latino-americano fazendo uso da literatura, usar os
livros como se fossem cartas; cartas náuticas?; bússolas éticas? É assim,
sem grande cerimônia - e com quanta liberdade -, que Ludmer apresenta seu
diagnóstico da pós-autonomia. E se é certo que sua abertura pressupõe o
abandono dos valores de literariedade, vertendo um pragmatismo da
imaginação literária quase tão descartável quanto a descida da tela de um
smartphone, o caminho não é automático: todavia nos solicita a atividade
artesanal de ensaiar um arranjo de leituras e abrir a mão: um após outro,
dispor os livros lado a lado na mesa, dar as cartas, reembaralhar, buscar
ajustar o foco. Os modos de ler são também formas de ação - ela ensinava
em seus seminários na Universidad de Buenos Aires da década de 80, após
a abertura democrática de uma brutal ditadura. Anos passados, estamos já
totalmente dentro dos dispositivos extrativistas que capturam, configuram e
regulam nossa experiência do mundo - era o que nos dizia há pouco a
última Ludmer.1 Não há retorno. E as saídas estratégicas ainda estão por
inventar.
1 LUDMER, 2013. Valemo-nos também das reflexões de Serge Margel (2017).

Se nos interessa uma ficção de começo, o ponto de partida deste


projeto de pesquisa poderia ser demarcado no notar da constância de uma
escala geológica em diversos poemas publicados nos últimos anos.2 Diante
de termos como ‘eras geológicas’, ‘estruturas geológicas’, ‘desastre
geológico’, a pergunta que me fiz - tateando o porquê de isto me ter
chamado atenção enquanto leitor - buscava identificar se havia aí alguma
relação direta com a emergência do debate sobre o Antropoceno e a crise de
um modelo de desenvolvimento; ou se me interessava antes uma sensação
de temporalidade expandida que essas expressões de medida traziam ao
poema. Comecei então a pensar em diferentes modos de relação do poema
com a terra: Terra como planeta; terra como solo latino-americano.
Observei, também, que se o marco geológico implica um alargamento da
historiografia para além do humano3, nestes poemas ele vem acompanhado
de discursos científicos, de achados arqueológicos, do trabalho da
antropologia forense, de denúncias do extrativismo, de gestos de reciclagem
- abrindo a reflexão para uma série de questões relacionadas aos usos da
terra e à história do continente. Tendo isso em vista, interessava começar a
pensar possíveis relações entre os poemas e uma teoria social latino-
americana que tem enfatizado o problema do extrativismo como um
impasse de imaginação territorial.4 A pergunta-guia, de início, seria a de
como pensar uma série composta de poemas que se misturam à terra. Nesse
sentido, poderíamos vincular nossa ficção de começo a Josefina Ludmer:
em sua especulação final sobre a literatura e o continente, ela escreveu que
“[p]ensar territorialmente hoje, com os afetos (especular em território-
afeto), é ver alguns conflitos centrais na América latina.” (LUDMER, 2013,
p. 112)
2 Poemas de Priscilla Menezes, Priscilla Campos, Rita Isadora Pessoa e Marcelo Reis de Mello, entre outros.

3 Cf. o artigo de Gabriel Giorgi (2018) sobre Nuno Ramos.

4 Cf. SVAMPA, 2013.

Compasso, terra, teoria do poema


Estando em início de pesquisa, considerei usar o tempo para uma
interrogação prolongada do método - e tendencialmente, penso que esta
abertura pode ocupar um espaço significativo no estudo: o método é uma
questão teórica - reflexiva e performativa - para os poemas aqui escolhidos,
que expõem traços de metapoema em meio a seu alargamento formal e
seriado. Como percorrer o poema?; como o poema lida com outros
discursos?; “como você espera atravessar///// a) um poema// b) uma ponte//
c) o maravilhoso pastel/ da existência?”, pergunta Catarina Lins no fim d’O
Teatro do mundo (2017, p. 119).

Ao colocar o “poema no tubo de ensaio”, Marília Garcia diz:

há alguns anos li uma entrevista


com o escritor emmanuel hocquard
a certa altura o entrevistador pergunta
por que hocquard não escreve um ensaio
sobre determinado assunto
hocquard responde que para ele
um poema podia ser tão teórico
quanto um ensaio
um poema podia partir de uma experiência
e produzir pensamento
talvez ele até já tivesse “ensaiado”
aquele assunto num poema
eu passei anos pensando nessa resposta
e aos poucos a transformei em perguntas:
em que medida o poema pode formular um pensamento?
quais questões levanta? como faz isso?
qual forma utiliza qual dispositivo?

se escrever ensaisticamente é escrever experimentando


será que um poema pode ser tão crítico como o ensaio?
(GARCIA, 2018, p. 66)

Também em Coração de boi Ana Estaregui pergunta, como num


ensaio de compostagem,

o que aconteceria aos poemas/ se neles acrescentássemos


matéria sólida/ se, como nas canções,/ onde há som voz
cordas de metal/ depositássemos/ alguma seiva e um pouco
de ar?/ se lançássemos sobre eles/ um punhado de sementes/
e então nos sentássemos para esperar/ por muito tempo/
algum movimento sutil/ alguma oscilação inaudível/ uma
dobra só que fosse/ sobre a página um pequeno rumor/ de
qualquer tipo, capaz de levantar/ do chão branco alguma
voz/ o que aconteceria aos poemas/ se pudéssemos esperar
um pouco (ESTAREGUI, 2016, p. 65)

; e Pádua Fernandes, em meio aos poemas de Cálcio (2015, p. 99), fala


da literatura “como míssil sobre outros discursos, a saber, da economia, do
direito, da propaganda, simplesmente retomando-os e lambendo-os com
saliva ácida até que se dissolvam”.

Para Josefina Ludmer, a noção de uso é tática: ao longo de seus livros,


ela lê a ficção latino-americana com o olhar direcionado às interseções entre
os usos das vozes (na escrita) e os usos dos corpos (explorados nos regimes
genderizados de trabalho precário) – ao que acrescentamos uma
interrogação geral sobre os usos da terra. Leitura sintomal, portanto, que
sem o menor traço de reverência põe o discurso literário em meio a um
ensaio de alianças políticas. Aqui América Latina começa com esta sugestão
de um modo de ler em que a literatura pode ser usada como item cotidiano,
sem valor distintivo, mas que nos permite ver algo da realidade se fazendo
– e nesse horizonte, nos interessa especialmente a sugestão que perturba o
materialismo da matéria morta para introduzir um elemento místico e
divinatório: usar a literatura como baralho de tarot; colocar os livros lado a
lado como se fossem cartas, testar hipóteses de sentido; montar uma cena
de leituras.

Coloco lado a lado, então, De um teatro de papel e O Teatro do


mundo.

O primeiro, de Pierre Alferi – pequena conferência sobre Mallarmé,


ditada em 1993 -, interessa nesta consideração de método por retomar as
sugestões de Igitur e Un coup de dés para pensar o procedimento
tipográfico do poema como uma partitura a ser executada, em meio a
reflexões sobre a espacialização do pensamento na superfície da página:
Alferi ressalta que essa partition é também partição, divisão dramática do
sujeito, da voz, da visibilidade e das escalas.5 Acredito ser possível reter a
observação para pensar essa divisão enquanto compasso, unidade de
medida, segmentação: desse modo, em paralelo às considerações sobre a
inespecificidade das formas, relações entre Poesia e Teatro ou Poesia e
Música, tratamos também de uma perspectiva afim à que Marília Garcia
propõe em seu “Poema no tubo de ensaio”, onde sugere que o que faz o
poema acontecer é o timing (GARCIA, 2018, p. 80) - e que cada poema
traz a medida de uma época (ibid. p. 71).
5 Ver também o destaque a esta interpretação especulativa no posfácio de Marcos Siscar (em Alferi, 2019).

“O poema no tubo de ensaio” estava já publicado no livro Sobre


poesia: outras vozes, organizado por Célia Pedrosa e Ida Alves (7Letras,
2016), e foi retomado com alterações no livro parque das ruínas, impresso
em 2018 pela Luna Parque - editora da própria Marília, e responsável pela
publicação do ensaio de Alferi (2019). No parque das ruínas, o poema é
acompanhado de outro homônimo ao livro, que narra - em perspectiva,
entre imagens de ruínas - pensamentos do dia em que a poeta recebeu um
convite para falar na UERJ:

naquela época julho de 2016


a UERJ estava no meio da maior crise de sua história
sem repasses do governo não tinha como funcionar
e momentaneamente a universidade estava
com as atividades suspensas
já passaram 26 meses daquele dia
e não só a universidade continua em crise
como o rio de janeiro anda mergulhado em ruína

eu estudei na UERJ
e durante muitos anos da minha vida fiquei andando
por aquelas rampas
vendo o mundo de dentro daqueles quadrados.

é difícil olhar as coisas diretamente


ainda mais quando estão destruídas.
naquele momento no parque das ruínas
percebi que temos falado muito
essa palavra ultimamente: ruína

não só na UERJ ou no rio


mas em todo canto

não sabemos o que fazer


quando tudo parece a ponto de desabar

[*definir: ruína]
(GARCIA, 2018, p. 16-7)

A medida, aqui, é a de pensar o presente como um “estrato


arqueológico do qual extraímos os vestígios do que somos”, como propõe
Raúl Antelo (2016) em seu texto sobre a ruinologia. E o que se apresenta
neste parque das ruínas é também a escavação dos arquivos de Debret,
numa atualização que culmina – no colofão – com sua gravura do Museu
Nacional montada junto à imagem contemporânea deste mesmo Museu
queimado pelas chamas, no ano de 2018. Poucos meses após o incêndio,
uma exposição intitulada Arqueologia do resgate mostrava ao público essa
meta-escavação (dos restos) em ato: arqueologia da arqueologia.

É interessante observar como esta imagem do “presente como estrato


arqueológico” aparece também na última série de Cálcio, livro de Pádua
Fernandes do qual falaremos adiante, retomando o movimento entre a
arqueologia e a montagem:

vivemos o tempo presente


como se fora um fóssil do passado
e o passado assumisse
toda a tarefa da atualidade;
e nem a atualidade da gangrena ficará
no cálcio e na saliva
irmanados no informe
que torna toda a estrutura
e devolve ao inumerável
o que tinha dois pés e poucos passos
dois olhos e toda a cegueira
os órgãos roubados ao júbilo
o corpo ou a cicatriz
que se abre
para abranger todos os números possíveis?

(ou desmontar, que é o que resta)

- mas é a terra que respira em nós.


(FERNANDES, 2015, p. 101-102)

A imagem aparece ainda n’O Teatro do mundo, de Catarina Lins, um


“enorme poema/ de amor”; “um poema/ ou uma carta/ ou então um canto/
de todo o mundo”, que diz a quem lê: “você/ é um arqueólogo/ do futuro
(..)” (LINS, 2017, p. 110).

Se queremos pensar com Marília Garcia, buscamos inicialmente


algumas características da medida d’O Teatro do mundo, que colocamos ao
lado de De um teatro de papel: alargamento formal, serialidade, uma
investigação dos procedimentos de estratificação do pensamento e das
sobreposições de camadas de discurso, uma atenção à disposição. E há a
operação, na montagem, de passagens e choques entre imagens que
permitem pensar a longa duração da vida terrestre. Não é irrelevante que o
texto de orelha do livro tenha sido escrito por Carlito Azevedo: se
quisermos ensaiar uma breve arqueologia dos espaços de circulação deste
conjunto de questões teóricas e reflexivas acerca do poema e do significante
gráfico, sem grande dificuldade retornamos a uma cena de leituras da
poesia contemporânea que remete ao arquivo da revista Inimigo Rumor,
fundada por este poeta - arquivo do qual destacamos o número 16, de 2004,
quando Marília Garcia passou a fazer parte do grupo de editoras. Ali
publicava-se um texto de Jean-Marie Gleize, “Para onde vão os cães?”, que
propunha um panorama de diferentes tendências no debate sobre a poesia
contemporânea na França - um debate amparado taticamente em releituras
divergentes de Baudelaire a partir da relação entre poesia e prosa; passando
também por Mallarmé.6 Conforme Masé Lemos apontaria tempos depois,
tornaram-se notáveis na poesia daqui as “ressonâncias” deste debate, que
atualiza questões centrais da poesia moderna (LEMOS, 2012). No caso dos
poemas que comentamos ao longo deste texto, podemos ver o que Gleize
chama de ‘tentativas literais’: as de um pensamento que flerta com o
prosaico e com a narrativa enquanto resiste à metáfora e afasta o lírico.7
6 Para uma discussão de dois polos dessas tendências a partir de releituras de Baudelaire, ver MILANEZE, 2016.

7 GLEIZE, 2004; ver também GARCIA, 2017.

Passados 15 anos daquela edição de Inimigo Rumor, lidamos com


algumas poetas leitoras de um panorama da poesia contemporânea em que
Marília Garcia comparece já como um “lugar de leitura”, tendo contribuído
para a formação desta cena reflexiva através da sua atuação como editora e
tradutora de outras/os poetas alinhadas/os a esta perspectiva - p. ex.,
Nathalie Quintane, Emmanuel Hocquard (estudado em sua tese de
doutorado) e o próprio Alferi -, todos publicados na posterior (e derivada)
Modo de Usar & Co., que embora tenha tido apenas quatro números
impressos, manteve-se ativa enquanto revista eletrônica. O que nos importa
frisar, em suma, é que pensamos Marília como poeta não menos que como
teórica da poesia e editora: como índice de uma cena. Foi através de uma
resenha sua que chegamos a Coração de boi (2016), segundo livro de Ana
Estaregui: ela nos conta ali que esta poeta tinha já em seu livro de estréia
um diálogo com o ‘Partido das coisas’ de Francis Ponge - escritor de grande
importância na reflexão de Gleize sobre o literal e o objetivo8 -, e via a
continuidade deste projeto de escrita em Coração de boi, aproximando-o
também das micro-narrativas de Quintane. De nossa parte, entretanto,
notamos que Marília não enfatiza a relação com a terra ao longo da série de
poemas do livro - e é isso o que nos interessa ressaltar neste texto.
8 Marcos Siscar (2015) fala inclusive de uma “matriz pongiana” como “momento decisivo para se compreenderem as atuais poéticas francesas da ‘literalidade’, como a de Gleize
(autor de vários estudos sobre Ponge), de Alferi, ou, ainda, de Nathalie Quintane, Christophe Tarkos, Olivier Cadiot, Christophe Hanna, Emmanuel Hocquard, entre outros - todas,
ainda que de modo distinto, interessadas pela prosa, hostis ao assim denominado ‘novo lirismo’ (repensado como ‘lirismo crítico’ por Jean-Michel Maulpoix), naquilo que tem
constituído um dos debates mais intensos e relevantes das últimas décadas na França”.
Como ver a terra? No parque das ruínas, ela se coloca uma proposição
metodológica análoga à de Ludmer: usar a literatura como lente para poder
ver algo da fábrica de realidade: “para tentar ver alguma coisa/ ele precisa
olhar de muito perto” (GARCIA, 2018, p. 31). É também o que diz Catarina
Lins, que nos colocava como futuros arqueólogos, do agora:

(no parque temático do mundo


o olho
é um músculo)
(LINS, 2017, p. 40)

Tentamos ver algo, então, num dos poemas do livro de Estaregui:

alguns cavam buracos monumentais


e neles persistem como retroescavadeiras
buscando o ponto preciso
de onde jorra o petróleo
o concentrado puro, outros
estudam modos de conquistar o espaço
achar locais amplíssimos de outra lógica
para, quem sabe, reconfigurar tudo
outros insistem em ficar olhando
as mesmas palavras de sempre
e esperando que surjam delas
barcos, vozes, ou outras coisas que flutuem
(ESTAREGUI, 2016, p. 40)

Parece possível dizer que a enunciação marca seu ponto numa


encruzilhada entre o extrativismo, a utopia e o poema - e isso nos leva a
pensar em modos de contornar uma prática extrativista de leitura: como não
esgotar as energias do poema? Novamente, estamos diante de uma questão
de uso: saber que há ali - como em qualquer espaço - algo talvez
capitalizável; mas “esperar” (num alargamento da temporalidade, em uma
série à qual se junta o outro poema já citado) pela compostagem de um solo
fértil de pensamento. Mais um poema de Coração retomará a imagem da
superfície do poema como solo saturado, ‘terra insuficiente’:

misturam-se areias/ coisas indissolúveis/ matéria metal


líquido em repouso/ substâncias gasosas limalha de aço/
feltro violino cerveja tangerinas/ tudo pode caber num
poema/ nem tudo pode continuar dentro dele/ dessa terra
insuficiente/ de órgãos e penugem fina/ colada ao mesmo
horizonte escaldado/ sem asas ou encostas (...)
(ESTAREGUI, 2016, p. 70)

E ao fim, haverá um outro que vê a Terra em perspectiva - e nos vê


enquanto matéria de arquiescrita, aproximando geoglifos pré-colombianos a
gestos que ensaiam vínculos:

temos nossas linhas de nazca/ do avião brilhamos/ lá


embaixo/ como se fôssemos uma coisa só/ um mapa aceso
sob as estrelas/ do organismo, as sinapses/ temos nossos
caminhos escavados/ no deserto/ funcionamos por
intersecção/ por difusão por contato/ alguém inventou a
lâmpada/ hoje todos temos lâmpadas/ lanternas piscas
refletores/ temos como passar de um cômodo/ a outro/ sem
derrubar nada/ nem mesmo os abajures/ podemos enxergar
nossos braços à noite/ enquanto nos erguemos para apanhar/
alguma coisa na estante (ESTAREGUI, 81).

Estratigrafias latinoamericanas
Seguimos com alguma coisa na estante:

- Abro o livro. Ele dói, eu grito.


- Não são gritos, mas reações dos mecanismos à resistência
da carne.
Arquivos fechados guardam sangue
inédito. O sangue aprisionado,
mas o derramamento prossegue
enquanto a identidade seca do vermelho
permanece arquivada entre a mordaça da toga
e o chorume da farda.

Investigar antes que os livros denunciem


a paz da pele sobre os órgãos dilacerados?

- Tenho que fechá-lo, ou suas palavras serão minhas.


- Quando a palavra é para nenhum, o cadeado é para todos.

Abrimos um continente e um silêncio,


os prédios sob o solo
erguidos pelo exílio.

- Descobrimos que as palavras eram corpos.


- Por isso queimaram os arquivos?
- Mas a ordem de queimá-los também foi queimada.
- Até o último dente?

Se temos o livro, temos o escombro.


(FERNANDES, 2015, p. 33)

Mudamos de estrato e passamos agora ao Cálcio, de Pádua Fernandes,


escrito a partir de um trabalho institucional na Comissão da Verdade e
primeiro publicado em Portugal e na Argentina - nesta, em coleção
intitulada los detectives salvajes (homônima do livro de Roberto Bolaño),
dedicada a escritos relacionados aos desaparecimentos políticos e à
crítica/clínica dos crimes de Estado nas últimas ditaduras militares.
Notemos, inicialmente, que emerge aqui uma imagem de América Latina
suturada em exílio e profundamente vinculada ao trabalho da antropologia
forense. Nisso, a relação com Bolaño é significativa, pois também dele é
uma das epígrafes do livro (p. 9):
os que não morreram na Bolívia foram mortos na Argentina
ou no Peru, e aqueles que sobreviveram foram morrer no
Chile ou no México, e aos que não mataram lá, mataram
depois na Nicarágua, na Colômbia, em El Salvador. Toda a
América Latina está semeada com os ossos destes jovens
esquecidos.

Em poucas palavras, o que me interessa colocar em relevo neste


momento é que - para além do testemunho e do memorial – o livro expõe a
complexa imbricação entre o arquivo oculto pelas ditaduras e as
biopolíticas do extrativismo contemporâneo. O uso (negativo) de corpos e
signos pelos regimes militares é remontado até a máquina transnacional que
distribui suas coordenadas, e daí até a matéria intensiva que essa máquina
(produtiva) captura. Isso se faz através de poemas deliberadamente cínicos,
misturando discursos acadêmicos e de marketing, questionando a
comercialização do ensino universitário (ironizando a aquisição de Diploma
em um curso de “Memória e Sustentabilidade”) e do direito trabalhista
(“agrobusiness e trabalho escravo”), sugerindo links entre “sistema eleitoral
e agrotóxicos”, “devires contratuais e novas formas de vida empresarial/
plano da imanência e desterritorialização dos juros”; “genocídio e emendas
parlamentares;/ downsizing e uso de valas comuns”, “exumação de gritos/
em louvor do desmatamento globalizado” (p. 63-64). O objetivo - declarado
no ‘Projeto para Cálcio’, espécie de epílogo-poema ao fim do livro -, um
desejo de dissolver com saliva ácida os discursos da economia, do direito e
da propaganda, faz lembrar a formulação de Gleize (2010) sobre um meta-
uso das linguagens dominantes.

Como no livro de Estaregui, há aqui uma busca de ar, entre o gesto fóssil e
a reciclagem. Desde o título, a mineralidade indica a extrapolação da
historiografia em um compasso que dilata a temporalidade; e logo somos
levados a admitir que a circularidade dos acontecimentos rastreáveis no
solo desautoriza a narrativa dos currículos: na sala de História do
capitalismo no Brasil, aprendemos o ter sido colônia de exploração,
primeiro a seiva do pau-brasil, depois cana de açúcar, enfim a descoberta
das Minas Gerais e a extração de metais; vinha então o ciclo do café, a crise
de 29, a substituição das importações, a inserção periférica na economia
industrial, os esforços desenvolvimentistas, a interiorização integradora e a
pulsão automobilística, a globalização financeira, o agronegócio hi-tech; no
2020 próximo, no refluxo (esgotamento? fim de ciclo?) dos governos
progressistas à esquerda - recém ameaçado o bloco histórico responsável
pela redemocratização e pela constituição de 88 - estamos de volta ao
garimpo e às Minas Gerais: a Vale, o sucessivo rompimento das barragens
em Mariana, Brumadinho, evasão em Barão de Cocais: “A lama tomou o
lugar dos olhos - agora sim, pode-se ver o mundo”, diz um dos poemas,
anterior a todo este desenrolar da tormenta. Ruínas da megamineração.
Exemplares se fossem apenas aqui; porém, como diz Maristella Svampa
(2013), é antes um consenso das Commodities que move a
governamentalidade latino-americana, agora engajada no fraturamento
hidráulico. Para especularmos no compasso geológico dessa infrarrealidade
literal, seria preciso imaginar uma ‘teoria do subsolo’ - dizia Ludmer (2013,
p. 125) – que vinculasse a todos com a água e o petróleo; e é também para
isso que aponta um poema de Cálcio (p. 55), contra a imagem de uma
América latina sorridente: “(Veja a terra aberta: não outro é o sorriso deste
continente)”.

Iniciada a escavação, se há “no campo/ o código da floresta/ semeada


por corpos”, se há uma “república/ acesa na terra ancestral/ onde os mortos
viviam/ e estão sendo mortos novamente”, se “o abismo é uma terra/ sobre
a qual pisamos/ todos os dias/ e que pode ser escavado/ da mesmas forma
que o tutano/ dentro dos ossos”, o arquivo revirado em Cálcio, apesar de
tudo, não é feito de matéria morta: a estratigrafia que deriva de seu
compasso problematiza a arché das narrativas de formação e coloca em
jogo uma disputa entre temporalidades, cosmologias, concepções espaciais
e de linguagem. Assim, projeta uma historiografia remontada, atravessada
por outros modos (espi)rituais de ocupação. O procedimento de revirar a
terra excede a memória da ditadura e se mistura à arqueologia de um
continente ameríndio ao narrar os rastros de um povo que “escrevia com
pegadas”: “eram obrigados a caminhar para escrever e a escrever ao
caminhar, errância celebrada do sentido” (p. 23). A remissão às maiores
vítimas escamoteadas na estatística da ditadura militar brasileira - "Nas
celas não há espaço para se movimentarem, não mais confundirão a palavra
com o solo, é o fim da terra como alfabeto (...)” (Ibid.) - nos leva enfim a
pensar em outra teoria da escrita (outra gramatografia?); uma que não se
estratifique, como ensaiava Estaregui para a leitura: contra os que buscam
garimpar a pérola jorrando de dentro do poema.

Por contingência, paramos enfim no excerto prosaico e distópico do


parágrafo seguinte, que parece corroer compassivamente o vocabulário da
antropologia evolucionista - trecho que bem poderíamos rasurar;
propositalmente, mas apenas para ressaltar uma dimensão profética anterior,
sua extrema pontualidade (seu timing) no contraído tempo do fim que nos
quer capturar e que nos cabe viver em conflito: “os professores/ sob
cassetete”, “as faculdades/ sob a gestão/ da Segurança”, as agências de
pesquisa sob desmonte nos contingenciamentos orçamentários, os corpos
das palavras sob a desmedida do extrativismo biopolítico:

Os antigos etnólogos (pesquisavam etnias, o curso deles foi


fechado depois que todas as bolsas foram direcionadas à
pesquisa de água transgênica e de extração aérea de cinzas
para combustível) recolheram uma história dos primitivos de
que a fome originou-se de um erro de grafia, de uma trilha
errada na floresta. Em vez de caminharem para o sol-peixe,
foram para o sol-poente, e não acharam o caminho de volta
por causa de um problema de pontuação, não lembro bem,
acho que essa lenda surgiu porque, antes do contato com os
civilizados, a língua deles não conhecia o ponto final.
(FERNANDES, 2015, p. 23)

Nesta interseção da medida da época, dos usos da terra e do


alargamento do poema, a enunciação do Cálcio – estratégica – escreve
nossa estafa quase sem energia, como se tentasse nos fazer ver que uma
reescrita dos estratos se impõe. Na superfície, o discurso latino-americano
começa a se reciclar sem retorno, com a irrupção constituinte de um outro
arco de imaginação pública e geopolítica – uma em que o plurinacional
circunscreve o transnacional enquanto método materialista9, aliando
matrizes de subjetivação vinculadas aos territórios, entre as aparições dos
rituais forenses e as de um sorriso por vir, incontinente.
9 Ver, por exemplo, as recentes observações de Luci Cavallero e Verónica Gago em texto para a Página12, disponível em: [http://pagina12.com.ar/224385-quienes-son-los-
nuevos-conquistadores?fbclid=IwAR0YUkrK4oeirhu4VLKdLXSHpc6muH4ljfvstKfs9RI9BMesaxbifkeiR60]. Acesso em: 18 out. 2019.

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Boletim de Pesquisa – NELIC V. 8, Nº 12 / 13, 2008.
O Flâneur da Belle Époque e o Rio
de Janeiro: Lima Barreto e as
turbulências da modernidade
Carolina Lauriano Soares da Costa

Sumário

Introdução
Os estudos e a crítica dos escritos de Lima Barreto entrecruzam-se
com a história do Rio de Janeiro no limiar do século XX. Nascido e criado
no Rio de Janeiro em 1881, Afonso Henriques de Lima Barreto, negro e
pobre, sofreu na pele as transformações sociais, o preconceito e a exclusão
que circundavam o raiar da modernidade na capital do Brasil. Suas obras e
escritos elucidaram as tensões culturais e históricas que surgiam dessa nova
sociedade brasileira que se inseria na Belle Époque.

A leitura da obra de Lima Barreto remete à importância de refletir


sobre os problemas do país no início do século XX, principalmente, no Rio
de Janeiro, baseando-se nos conflitos e nas subjetividades do homem
atrelados à conturbada realidade brasileira. Nesse sentido, em oposição às
questões de aceleração do espaço urbano, as novas tecnologias de
mobilidade, imprensa e industrialização, Lima Barreto e outros escritores
desse período pensavam em ideais de nação, bem, verdade e justiça, como
meio de tornar mais humana aquela sociedade que teria como alicerce a
exclusão das camadas mais pobres. Esse desejo por justiça social e
igualdade representou a crise de consciência desses escritores
(SEVCENKO, 2003, p. 31). A obra e os escritos íntimos de Lima Barreto
conduzem o leitor aos cenários da Belle Époque, às lutas políticas e
populares testemunhadas pelo escritor e o modo como ele se sentiu ao viver
na pele as tiranias cometidas pelo Estado, em nome de uma modernização
da sociedade.
O recorte histórico é importante para compreender em que contexto
social e político estava inserido Lima Barreto e de que maneira a
modernidade da Belle Époque irá se consolidar e transformar não somente a
cena urbana do Rio de Janeiro, mas também as vivências e experiências dos
seus habitantes.

A modernidade da Belle Époque e suas


turbulências
Ao final do século XIX, o país deixava seu passado colonial e
escravocrata para ir em direção à República. Isso resultou em um processo
de reajustamento social e crises políticas. Segundo Sevcenko (2003), a
República no período intenso de 1889 a 1904 foi marcada por exílios e
deportações que “atingiram principalmente e em primeiro lugar as elites
tradicionais do Império e o seu vasto círculo de clientes” e em segundo
lugar “os grupos comprometidos com os anseios populares mais latentes e
envolvidos nas correntes mais férvidas do republicanismo.” Significa dizer
que aqueles que pecavam pela carência e pelo excesso de ideais
republicanos foram cortados do cenário da nova República. Inicia-se o
progresso urbano e econômico, advindo do capital estrangeiro, que
arrebatou outros setores da sociedade

A cidade do Rio de Janeiro abre o século XX defrontando-se


com perspectivas extremamente promissoras. Aproveitando-
se de papel privilegiado na intermediação dos recursos da
economia cafeeira e de sua condição de centro político do
país, a sociedade carioca viu acumular-se no seu interior
vastos recursos enraizados principalmente no comércio e nas
finanças, mas derivando já também para as aplicações
industriais. Núcleo da maior rede ferroviária nacional, que o
colocava diretamente em contato com o Vale do Paraíba, em
São Paulo, os estados do Sul, o Espírito Santo e o Hinterland
de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, o Rio de Janeiro
completava sua cadeia de comunicações nacionais com o
comércio de cabotagem para o Nordeste e o Norte até
Manaus. Essas condições prodigiosas fizeram da cidade o
maior centro comercial do país. (SEVCENKO, 2003, p. 39)

Em Belle Époque: a cidade e as experiências da modernidade,


Carmen Negreiros destaca a ambiguidade que surge nesse período de
transformação para a vida moderna

A dramática e ambígua vida moderna carrega uma nova


percepção temporal, evidenciada no contato com diversas
inovações tecnológicas presentes na experiência urbana. Esta
lança o pedestre no turbilhão do tráfego e da multidão, que
tornam porosas as fronteiras de espaço e tempo, impondo ao
indivíduo um novo ritmo e transformando as cidades em
locais geradores de grande riqueza e tensão intelectual e
artística. Elas exercem um poder de repulsão e atração sobre
as sensibilidades e alargam as fronteiras da experiência,
tornando intercambiáveis e controversos termos como
multidão e solidão, conforme registrou a poesia de
Baudelaire (NEGREIROS, 2019, p. 7).

A ambiguidade e incoerência nesse processo de urbanização e de


cosmopolitismo se devem à falta de planejamento e ao arrivismo que
assombravam o desenvolvimento da metrópole. Se de um lado havia um
progresso industrial, de outro a cidade estava cheia de doenças, distantes do
centro, havia pântanos repletos de febre tifoide, varíola e febre amarela. A
imagem de uma cidade insalubre e perigosa não era compatível com os
desejos de torná-la uma segunda Paris, receptiva, elegante e suntuosa. A
cidade abrigava uma enorme população analfabeta, vivendo em cortiços e
insatisfeita com o descaso do governo. É nesse momento que as autoridades
decidem que para reerguer a capital com novos modelos de urbanização
equivalente aos modelos europeus era necessário uma “regeneração” que
destruiu construções que representassem o passado colonial da cidade:
Assistia-se à transformação do espaço público, do modo de
vida e da mentalidade carioca, segundo padrões totalmente
originais; e não havia quem pudesse se opor a ela. Quatro
princípios fundamentais regeram o transcurso dessa
metamorfose, conforme veremos adiante: a condenação dos
hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade
tradicional, a negação de todo e qualquer elemento de
cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da
sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos
grupos populares da área central da cidade, que será
praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas
aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo,
profundamente identificado com a vida parisiense.
(SEVCENKO, 2003, p. 43)

A inauguração da Avenida Central marca a inicial transfiguração


urbana da cidade do Rio de Janeiro. Para se equiparar a uma Paris, era
necessário ter uma cidade com estruturas robustas e luxuosas, que
representassem todo o esplendor e progresso da nova civilização moderna
que se erguia da demolição dos velhos casarões, as ruelas do passado
colonial e a retirada forçada da população que ali vivia:

A reforma Pereira Passos, com novos modelos


arquitetônicos que incluíam calçadas pavimentadas, ruas
arborizadas e até esculturas no espaço público, objetivava
homogeneizar os espaços segundo um padrão de
embelezamento cujo perfil era cosmopolita e o viés
autoritário (NEGREIROS, 2016, p. 268).

Esse embelezamento e a modernização que se expandiam pela cidade


do Rio de Janeiro do início do século aumentaram o abismo da
desigualdade entre aqueles que faziam parte de um restrito grupo de ricos e
a maior parte da população, que se via obrigada a ir para os subúrbios e
para os morros ao redor da cidade. É importante ressaltar que esse processo
de transfiguração urbana da cidade do Rio de Janeiro foi marcado pelo
autoritarismo e pela violência. Como Beatriz Resende afirma em Lima
Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos (2017), o Prefeito Pereira Passos
foi incumbido não apenas de transformar a infraestrutura da cidade mas
também “domesticá-la”, o que significava apagar do novo cenário moderno
a imagem de um “ Brasil pobre, negro e mulato”.

Segundo Sevcenko (2003), a reforma de Pereira Passos também


significou uma perseguição aos moradores de rua, “pedintes, indigentes,
ébrios, prostitutas e quaisquer outros grupos marginais das áreas centrais da
cidade,” isolando da cidade que se reinaugurava soberana e ilustre a outra
cidade que revelava a miséria, as doenças e a população afro-brasileira. A
opressão e tirania do governo geraram um caos na vida de grande parte da
população que além dos problemas de moradia, ainda convivia com as
moléstias de saúde e da falta de higiene.

Pereira Passos, na ânsia de fazer da cidade suja, pobre e


caótica réplica tropical da Paris reformada por Haussmann,
baixara várias posturas que também interferiram no
cotidiano dos cariocas, particularmente nos dos ambulantes e
mendigos. Proibiu cães vadios e vacas leiteiras pelas ruas;
mandou recolher a asilos os mendigos; proibiu a cultura de
hortas e capinzais; a criação de suínos, a venda ambulante de
bilhetes de loteria. Mandou também que não se cuspisse nas
ruas e dentro dos veículos, que não se urinasse fora dos
mictórios, que não se soltassem pipas. (CARVALHO, 1987,
p. 95)

Nesse mesmo período estoura a Revolta da Vacina. Os habitantes da


cidade não aceitavam mais a intromissão do estado no espaço privado.
Desde 1903, o sanitarista Oswaldo Cruz já vinha combatendo a febre
amarela e a peste bulbônica, através da extinção dos mosquitos e o
isolamento de doentes. Segundo Carvalho (1987), os operários de limpeza
pública “percorriam ruas e visitavam casas, desinfetando, limpando,
exigindo reformas, interditando prédios, removendo doentes.” Além da
febre amarela e a peste, a varíola somava-se ao quadro de doenças
epidêmicas no Rio de Janeiro e fez com que o governo tomasse medidas
mais rigorosas a respeito da vacinação obrigatória. A vacina passa a ser
exigência para “matrícula em escolas, emprego público, emprego
doméstico, emprego nas fábricas, hospedagem em hotéis e casas de
cômodos, viagem, casamento, voto etc.” (CARVALHO, 1987, p. 99).

O incômodo da população juntou-se com a opinião de jornais


positivistas como o Correio da Manhã e o Commercio do Brazil que se
opunham às medidas do governo que obrigavam a vacinação. Esses jornais
afirmavam que:

a intromissão do governo não passava de um ‘despotismo


sanitário, expressão que passou a ser largamente utilizada
pelos inimigos da vacina e do governo. Em 1904, na
iminência da passagem da nova lei, recorreram a verdadeiro
terrorismo ideológico, apontando na vacina inúmeros perigos
para saúde. (CARVALHO, 1987, p. 98)

Segundo Sevcenko em A Revolta da Vacina: Mentes insanas em


corpos rebeldes (2018), no dia 10 de novembro de 1904, as rebeliões de rua
começam enfurecidas com o decreto de 09 de novembro que tornava a
vacina obrigatória entre recém-nascidos até idosos e passou a ser um
critério de demissão e de aplicação de multas. A polícia estava autorizada a
prender e a agir com violência para suprimir àqueles que se opunham e que
fossem contra o governo

A polícia, informada e com determinações expressas de


proibir e dispersar quaisquer reuniões públicas, tratou de
prender os oradores improvisados, sofrendo a resistência da
população, que a atacava a pedradas. Naquele momento,
toda a Brigada Policial é posta de prontidão, e é enviado um
contingente de grandes proporções para patrulhar
ostensivamente a área central do Rio de Janeiro. As
autoridades civis são alertadas e a força policial é orientada
para agir prontamente e com desembaraço contra quaisquer
ameaças à ordem pública e à rotina da cidade. A noite do dia
10 caiu sob uma atmosfera de tensão e insegurança,
prenúncio dos horrores que estavam por vir. (SEVCENKO,
2018, p. 26)

É fundada a Liga Contra a Vacina Obrigatória, sob a presidência de


Lauro Sodré, Vicente de Souza e Jansen Tavares, com o objetivo de levar a
fúria da população até as últimas consequências. A Liga posicionava-se
contra o governo acusando-o de corrupto e autoritário, exigindo que
“construíssem casas higiênicas para os operários para substituir os cortiços
e estalagens, focos de endemias.” (CAVALHO, 1987, p. 100) Ainda,
segundo Carvalho (1987) , Vicente de Souza afirma em seu discurso às duas
mil pessoas que estavam presentes, que as famílias se encontravam em
perigo já que havia um desconhecido violando as casas dos trabalhadores
“amparado pela proclamação da lei da violação do lar e da brutalização aos
corpos de suas filhas e de sua esposa.” Dessa forma, a Liga Contra a Vacina
Obrigatória incitou a população a se revoltar com violência contra a polícia
com gritos de “Morra a polícia! Abaixo a vacina!” (CARVALHO, 1987, p.
101). A revolta durou seis dias, com tiroteios, ataques aos bondes, cortes
nos fios de iluminação elétrica da Avenida Central, surgimento de
barricadas e ataques às delegacias de polícia. Cerca de 3000 pessoas
ocuparam as ruas e, segundo Sevcenko, a polícia não tinha mais controle
sob a população; a Revolta havia tomado conta da cidade:

O combate era intenso, em nenhum lugar a polícia conseguia


assumir o controle da situação. Aproveitando-se das
reformas então em curso para a abertura da avenida Passos e
da avenida Central (atual avenida Rio Branco), os populares
se armaram de pedras, paus, ferros, instrumentos e
ferramentas contundentes e se atracaram com os guardas da
polícia. Esta, por sua vez, se utilizava sobretudo de tropas de
infantaria, armadas de carabinas curtas, e de piquetes de
lanceiros da cavalaria. A população acuada se refugiava nas
casas vazias que cercavam os locais em obras e se metia
pelos becos estreitos, onde uma ação militar coordenada se
tornava impossível. O barulho do combate era ensurdecedor,
tiros, gritos, tropel de cavalos, vidros estilhaçados, correrias,
vaias e gemidos. O número de feridos crescia de ambos os
lados, e a cada momento chegavam novos contingentes de
policiais e de amotinados ao cenário disperso da escaramuça.
(SEVCENKO, 2018, p. 28).

Após seis dias de violência, a cidade voltava ao seu cotidiano. No


entanto, a revolta evidenciava o autoritarismo do governo para com a
população. Em suas cenas finais, o governo decretou estado de sítio,
prendeu mais de 700 pessoas e fez grandes batidas nos morros. Segundo
Lilia Schwarcz (2017), embora a varíola tenha sido erradicada, foram 30
mortos e 110 registros de feridos. A Revolta da Vacina mostrou que não
havia uma comunicação entre o Estado e sequer a população se sentia
representada pelo atual governo.

Lima Barreto, em uma das páginas de seu Diário íntimo, defende os


revoltosos contra a vacina e uma das vantagens da Revolta a que o escritor
aponta é o papel do cidadão carioca e sua relação com os assuntos do estado
e da política.

Durante as mazorcas de novembro de 1904, eu vi a seguinte


e curiosa coisa: um grupo de agentes fazia parar os cidadãos
e os revistava. O governo diz que os oposicionistas à vacina,
com armas na mão, são vagabundos, gatunos, assassinos,
entretanto ele se esquece que o fundo dos seus batalhões, dos
seus secretas e inspetores, que mantêm a opinião dele, é da
mesma gente. Essa mazorca teve grandes vantagens: 1 )
demonstrar que o Rio de Janeiro pode ter opinião e defendê-
la com armas na mão; 2 ) diminuir um pouco o fetichismo da
farda; 3 ) desmoralizar a Escola Militar. (BARRETO, 2018,
p. 465)
Ao enfatizar que o Rio de Janeiro “pode ter opinião”, Lima elucida a
relação do povo com a política e o sentimento de cidadão. Como se vê,
grande parte da população não participava da política e não fazia parte do
eleitorado. Assim, a apatia à qual alguns intelectuais da época se referiram,
era reflexo do perfil de cidadãos presentes na capital e de sua exclusão
devido à pouca instrução da maioria da população. A Revolta da Vacina
caracterizou-se como um estopim, uma reação à intromissão na vida do
povo que desejava que o Estado o deixasse em paz.

A inabilidade do Estado de dialogar com a população e a o seu


autoritarismo deixaram profundas marcas na organização da cidade carioca
no início da República e no conceito de cidadão. A repressão do Estado, a
falta de acesso à instrução e a marginalização da maior parte da população
pobre resultaram em uma sociedade da exclusão. Acreditava-se que com a
República, o governo se tornaria mais democrático, no entanto, o que
ocorreu foi uma mobilização ágil para modernizar a cidade e civilizá-la e
para isso era preciso excluir a maioria da população, por meios autoritários
e tirânicos. Assim, nota-se que a República não fomentava o
desenvolvimento de uma sociedade com cidadãos participativos, pelo
contrário, a República se consolidou antidemocrática e resistente à inserção
de direitos sociais e civis. Como Lima Barreto deixa registrado em seu
Diário íntimo:

Eis a narrativa do que se fez no sítio de 1904. A polícia


arrepanhava a torto e a direito pessoas que encontrava na
rua. Recolhia-as às delegacias, depois juntavam na Polícia
Central. Aí, violentamente, humilhantemente, arrebatava-lhe
os cós das calças e as empurrava num grande pátio. Juntadas
que fossem algumas dezenas, remetia-as à ilha das Cobras,
onde eram surradas desapiedadamente. (BARRETO, 2018,
p. 466)

Em outro momento, sem data no seu Diário Íntimo, Lima registra sua
indignação diante das medidas de violência e de exílio do governo
brasileiro e ressalta que o país continua a tratar o povo desafortunado e
humilde como escravos:

Trinta dias depois, o sítio é a mesma coisa. Toda a violência


do governo se demonstra na ilha das Cobras. Inocentes
vagabundos são aí recolhidos, surrados e mandados para o
Acre. Um progresso! Até aqui se fazia isso sem ser preciso
estado de sítio; o Brasil já estava habituado a essa história.
Durante quatrocentos anos não se fez outra coisa pelo Brasil.
Creio que se modificará o nome: estado de sítio passará a ser
estado de fazenda. De sítio para fazenda, há sempre um
aumento, pelo menos no número de escravos. (BARRETO,
2018, p. 466-467)

Os suspeitos de participação na Revolta da Vacina foram recolhidos à


força e sem nenhum tipo de direito à defesa e expedidos para o Acre. Os
extraditados, em sua imensa maioria pobres, moradores de rua e miseráveis,
forneceriam mão de obra para a produção de borracha na região norte. A
exclusão e a violência fizeram parte da inserção da Primeira República e de
modernização da cidade do Rio de Janeiro.

A natureza excludente da política modernizadora que se vê a partir de


1889 revela “uma atitude de protecionismo classista”, “efetivando uma
modernização de casta”. ( SILVA, 2018). Refletir as transformações sociais
da virada do século XIX e as turbulências do início do século XX,
especialmente no Rio de Janeiro, que por consequência, tem como estopim
a Revolta da Vacina, possibilita compreender o papel da literatura e a
complexidade das obras de Lima Barreto que vai discutir o espaço público e
a nova ordem política que, em nome do progresso, aboliu direitos,
discriminou os menos favorecidos e usou a violência para alcançar uma
imagem de cidade moderna, a fim de “produzir homens social, cultura e
politicamente modernos.” (GORELIK, 1999):

No primeiro momento das modernizações “liberal


conservadoras” de finais de século, o novíssimo Estado
coloca na cidade o objeto por excelência da reforma: a
cidade real que se expande deve ser reconduzida a seu ideal
civilizador, porque seu desenvolvimento sem limites leva ao
caos e à destruição dos laços sociais. Há uma ideia de
“cidade moderna” que repele a desordem profunda que
introduz a modernização urbana que preside os objetivos de
reforma pública depois de “outra” modernização
(GORELIK, 1999, p. 39)

O que ocorre no início dos anos 1900 é a tentativa de ordenar a cidade,


eliminando as diferenças entre os indivíduos e buscando estabelecer um
padrão de cidadão e de moral. Nesse sentido, na tentativa de consolidar a
ordem, o próprio estado provoca o caos entre os seus cidadãos, que no caso
da cidade do Rio de Janeiro, teve como resposta ao processo modernizador
a Revolta da Vacina.

Essa radical ambiguidade do Estado “liberal” se manifesta


especialmente em seu modo de considerar a cidade: o
fundamento de toda a regra de intervenção urbana
desenvolvida no século XIX é que a cidade, liberada a seus
próprios impulsos (isto é, à sua “modernização” pelo
mercado), leva à confusão e à enfermidade.(...) À pergunta
sobre como ordenar a sociedade, como regulá-la, como
legitimá-la racionalmente uma vez que os fundamentos
externos caíram, o pensamento político respondeu muitas
vezes como metáforas de cidade; mas, ao mesmo tempo,
colocou na cidade, através da tradicional metáfora
organicista, a manifestação material da “enfermidade”
moderna, de cuja cura depende a saúde da sociedade que a
habita (...) (GORELIK, 1999, p .40).

Em nome da modernização da cidade, o Estado sufocou a população


humilde, oprimiu-a e privou-a de todos os seus direitos. Essa população, em
resposta, reagiu com luta e revolta em busca de dignidade. No entanto, mais
uma vez, o Estado reage com mais violência e barbárie sob todos aqueles
que poderiam ser considerados ameaças para o aburguesamento e
cosmopolitização da capital.

A postura flâneur e melancolia de Lima Barreto:


reflexos da Belle Époque
A partir dessas análises do momento histórico de transformações
sociais e de tensão no início do século XX, é possível contextualizar e
repensar a importância de Lima Barreto como um intelectual que
questionou as injustiças sociais de seu tempo e as subjetividades da
constituição do sujeito fruto do caos e das contradições da sociedade
moderna. Lima sempre deixou evidente sua preocupação com os
injustiçados e os mais humildes, talvez, por enxergar a si mesmo e sua
condição na trajetória de tantos outros como ele, negro, pobre, descendente
de escravos e que por vezes, em seus desatinos e delírios causados pelo
alcoolismo, se viu fazendo parte dos considerados “doentes” e “ loucos”
pelo estado opressor. Lima inicia seu diário com a seguinte epígrafe: “Bem-
aventurados os que têm fome e sede de justiça; porque serão satisfeitos.
Evangelho de São Mateus. Cap.5, v.6.” Depois, revela a escrita como seu
lugar de repouso e paz: “1900, 2 de julho. Quando comecei a escrever este,
uma ‘esperança’ (grifo do autor) pousou.” (BARRETO, 2018, p. 445).

A preocupação com o problema da realidade e o sentimento de revolta


surgem na obra de Lima Barreto atrelados às vivências e subjetividades do
autor que vão desde as dificuldades com a doença de ordem mental do pai,
o Encilhamento que acarretou um aumento no custo de vida na cidade até
os problemas decorrentes do alcoolismo

Os seus livros trazem estampados os momentos dramáticos


desse processo de degradação. A angústia de que uma
“catástrofe” inesperada o lançasse, e à família, na rua e na
mais profunda miséria e aviltamento, o levou à bebida. A
pobreza de recursos o obrigou então a passar “da cerveja à
parati”. Somado a isso o pavor onipresente de que sua irmã
se pervertesse ou que sua família se nivelasse às outras “de
educação, instrução e inteligência inferior”, contribuíram
para leva-los aos excessos da dipsomania, aos delírios e ao
hospício. (SEVCENKO, 2003, p. 233-234)

A subjetividade do autor e as transformações sociais da época estão


fortemente interligadas na obra do escritor. As particularidades do escritor
passam para a “generalidade da elaboração romanesca”, por isso a
necessidade de produzir uma “literatura íntima: diários, correspondência,
até os desabafos frequentes dos escritos circunstanciais.” (CANDIDO,
2017, p. 59). A obra de Lima Barreto, marcada por uma consciência crítica
e renovadora, que se rebela contra o sistema vigente e contra ao que é ser
um intelectual na época “surge num instante de reação decisiva à ameaça de
aniquilamento: a condição de mulato e toda sorte de humilhações a que era
exposto, a miséria no lar e a loucura paterna (...)” (PRADO, 1976, p. 26).

A “crise do mundo” e a “crise da linguagem” (PRADO,1976) fazem


parte do universo de Lima Barreto e revelam as subjetividades de um
sujeito descontente e revoltado que prefere os “companheiros de bar ou de
desfortuna” e sente “a repressão e o isolamento dos insociáveis como
vítima.” (SEVCENKO, 2003).

Nesse sentido, nota-se uma semelhança com o tipo flâneur criado pelo
processo de modernidade segundo Walter Benjamin e Baudelaire. No
ensaio “O pintor da vida moderna”, Baudelaire cria o termo modernidade
para caracterizar o novo, o belo e os costumes de uma época: “A
modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte,
sendo a outra metade o eterno e o imutável.” (BAUDELAIRE, 2006, p.
859). O homem que é fruto dessa modernidade, “solitário dotado de uma
imaginação ativa” (2006, p. 859) busca para si extrair o “poético no
histórico” e “o eterno do transitório”. Baulelaire utilizará o termo flâneur
referindo-se ao “homem da multidão”.

A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como


a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a
multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador
apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no
numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no
infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde
quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo
e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos
prazeres desses espíritos independentes, apaixonados,
imparciais (...). Assim o apaixonado pela vida universal
entra na multidão como se num reservatório de eletricidade.
Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso
quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de
consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa
a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos
da vida. (BAUDELAIRE, 2006, p. 857)

Walter Benjamin, em seus estudos sobre a obra de Baudelaire, a partir


de uma visão marxista, analisa o flâneur de Baudelaire como um “homem
abandonado no meio da multidão” (BENJAMIN, 2019, p. 57) sente empatia
pelos perambulantes da cidade e torna a rua a sua casa. Analisando esses
conceitos de Baudelaire e Benjamin, pode-se afirmar que Lima Barreto
caracteriza-se como um flâneur, um “detetive das cidades” (BENJAMIN,
2019, p. 71) ao observar e buscar nas ruas a matéria de sua arte. As ruas, a
História e o povo eram os temas que motivavam o escritor a consolidar sua
função como escritor e sua obra literária. Importava para Lima Barreto
explorar as camadas da realidade e captar e compreender o “poético” e o
“eterno” do seu tempo. As imagens que Lima Barreto constrói em sua obra
retratam o “rude” e o “turbulento” quadro urbano da modernidade da Belle
Époque carioca.

Considerações finais
Nota-se que é sob a visão da realidade que as subjetividades de Lima
Barreto se configuram: o autor e sua obra se tornam um imenso espelho,
atentos aos movimentos e a fugacidade das multidões. Lima retratou
personagens dos mais variados tipos, do burocrata ao militar, dos subúrbios
aos artistas de teatros, vadios, prostitutas, ébrios policiais, intelectuais,
políticos, loucos, criminosos, leprosos, ex-escravos, mulheres arrimos de
família e praticamente todo o Rio de Janeiro do seu tempo. (SEVCENKO,
2003, p. 192). Os ambientes da narrativa são os mais diversos: bares,
bordéis, favelas, prisões, hospício, cortiços, trens, zonas rurais, ruas, praias,
jardins, cinemas, teatros, tribunas e oficinas (SEVCENKO, 2003).

Lima Barreto também agiu como um observador apaixonado da


realidade circundante. Em seu anseio de narrar a experiência da
modernidade, Lima Barreto colocou-se como um observador das ruas
cariocas e registrou em seus romances e em seus escritos íntimos as tensões
e as subjetividades resultantes do “intenso processo de modernização da
percepção, e também os paradoxos do incremento da vida urbana”
(NEGREIROS, 2016, p. 269).

O flâneur observador, como se vê na postura de Lima Barreto ao


produzir seu diário íntimo e o Diário do Hospício, age como um “espelho”
que, nas palavras de Baudelaire, “pode-se igualmente compará-lo a um
espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de
consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla
e o encanto cambiante de todos os elementos da vida” (BAUDELAIRE,
2006, p. 857). Assim, como um sujeito moderno que é “ incapaz de deixar
de se observar ao mesmo tempo em que observa o mundo”
(GUMBRECHT, 2008, p. 13) é que Lima Barreto, em um exercício de
empatia e de solidariedade para com o outro, enxerga a si: como um eu,
fragmentado, tomado pela melancolia e pela revolta dos excluídos pelas
incongruências da modernidade.

Referências
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11. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
BARRETO, Lima. Diário do hospício; O cemitério dos vivos / Lima
Barreto. Prefácio de Alfredo Bosi. Organização e notas de Augusto Massi e
Murilo Marcondes de Moura. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2017.

______________. Impressões de leitura e outros textos críticos. Org.


de Beatriz Resende. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras,
2017.

______________. Lima Barreto: obra reunida. vol.1,2 e 3. 1. ed. Rio


de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. São Paulo: Martin Claret,


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___________________. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,


2006.

BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. 1. ed. Belo


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CARVALHO. José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a


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FIGUEIREDO, Carmen Lúcia Negreiros de. “Vivência urbana e


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GORELIK, Adrián. “O moderno em debate: cidade, modernidade,


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HIDALGO, Luciana. Literatura da urgência: Lima Barreto no


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NEGREIROS, Carmen; OLIVEIRA, Fátima; GENS, Rosa. (orgs.).


Belle Époque: a cidade e as experiências da modernidade. Belo Horizonte,
MG: Relicário, 2019.

OLIVEIRA, Fátima. “Notas íntimas, obras públicas: “O ‘diário’ de


Lima Barreto e a Grande Reforma Urbana do Rio de Janeiro (1903 –
1905)”. In: NEGREIROS, Carmen; OLIVEIRA, Fátima; GENS, Rosa.
(ORGS.). Belle Époque: crítica, arte e cultura. Rio de Janeiro: LABELLE;
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OLIVEIRA, Fátima; GENS, Rosa. (ORGS.). Belle Époque: a cidade e


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PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. Rio de


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RESENDE, Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos.


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SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo:


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SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e


criação cultural na Primeira República. 2. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.

__________________. A Revolta da Vacina: mentes insanas em


corpos rebeldes. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
Reflexões preambulares sobre a
tradução de ficção científica
estadunidense para o português
brasileiro
Eduardo Andrade Barbosa de Castro

Sumário

A julgar pelo número de publicações nas estantes das livrarias físicas e


virtuais, podemos dizer que a literatura da ficção científica (FC) goza de um
momento frutífero. No Brasil, temos presenciado um reconhecimento cada
vez maior do gênero por meio da publicação de edições caprichadas de
grandes nomes para além da tríade hegemônica Arthur C. Clarke, Robert
Heinlein e Isaac Asimov, nomes como Ursula K. Le Guin e Octavia E.
Butler, autoras respeitadas e premiadas dentro e fora do nicho da FC cujas
obras expandem os horizontes que o público brasileiro tem da FC
estadunidense. Para o campo da tradução, é um momento propício para
refletirmos sobre algumas especificidades do gênero que afetarão o
processo tradutório. Neste pequeno espaço, dedicar-nos-emos a tecer
comentários introdutórios sobre a tradução da FC dos Estados Unidos para
o português brasileiro, tomando como referência duas traduções de “Robot
Dreams”, conto do russo-americano Asimov que manifesta algumas das
características primordiais desse tipo de narrativa. Primeiramente,
abordaremos algumas definições e conceitos da ficção científica, para em
seguida nos debruçarmos sobre sua tradução.

Estranhando a ciência: definições e conceitos da


ficção científica
Definir a ficção científica não é uma tarefa simples: há inúmeras
definições, originadas tanto de autores quanto da crítica especializada.
Damon Knight (1977), que produz nos dois campos, argumenta que autores
e críticos tentaram definir a FC sem sucesso porque se limitaram às suas
próprias ideias do que o gênero deve ser, e não ao que ele de fato é; com
isso, cada definição falha por não dar conta de uma ou outra obra de FC.
Considerando o termo “ficção científica”, podemos inferir que se trata de
uma ficção que aborda ou contém aspectos relativos à ciência, mas,
segundo Roberts (2018), é o aspecto especificamente tecnológico que tende
a receber maior destaque. Tracemos brevemente o desenvolvimento do
gênero nos Estados Unidos do século XX para entendê-lo melhor.

Quando a FC começa a se estabelecer como gênero próprio nos EUA


com a era das revistas, inaugurada pelo editor Hugo Gernsback e sua
Amazing Stories, lançada em 1926, já havia a tradição do romance
científico (scientific romance) de H.G. Wells, na Inglaterra, e a chamada
protoficção científica de Júlio Verne, na França, e de Edgar Allan Poe nos
Estados Unidos, para citarmos as três referências principais dessa revista1.
Segundo Gernsback (apud STABLEFORD; CLUTE; NICHOLLS, 1993),
que propôs, no primeiro número da revista, o termo scientifiction, o foco era
instruir e impressionar os leitores com histórias que, como as desses
autores, envolvessem algum fato científico ou visão profética. Contudo, o
método científico ainda não era um fator essencial para essas narrativas
mais aventurescas.
1 Na capa da primeira edição, publicada em abril de 1926, consta a chamada “Stories by Jules Verne / H.G. Wells / Edgar Allan Poe”.

Uma ficção científica mais próxima de como a conhecemos hoje


nasceu no período seguinte, a chamada era de ouro, que, segundo Asimov
(1977), foi alavancada quando o editor John W. Campbell assumiu a revista
Astounding Stories, em 1937, que passa a chamar-se Astounding Science
Fiction a partir de 1938, refletindo a mudança de direção. Durante esse
período, que coincide mais ou menos com a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), as narrativas que Campbell (apud STABLEFORD; CLUTE;
NICHOLLS, 1993) publicava e ajudava a moldar prezavam por uma maior
precisão: segundo o editor, apresentavam uma ideia científica bem
estruturada e minimamente plausível, explorando suas consequências para a
tecnologia e a sociedade. Asimov (1977) ressalta que Campbell trouxe um
rigor científico até então negligenciado pela primeira fase do gênero,
composta majoritariamente de histórias aventurescas que abordavam a
ciência de forma incorreta e até risível. Apesar da certa elasticidade com
que os autores da era de ouro poderiam interpretar a verossimilhança, era
uma produção preocupada em expor conceitos e personagens mais realistas
e embasados, daí o foco predominante nas ciências exatas. A já citada tríade
Clarke – Heinlein – Asimov, um físico e matemático, um engenheiro e um
bioquímico, não por acaso sintetizam essa fase.

O lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima, em 1945, marca


não apenas o fim da Segunda Guerra Mundial, mas também, segundo
Asimov (1977), o início de uma nova era da FC, pois o ocorrido – saído
diretamente de uma narrativa futurista pós-apocalíptica – chama a atenção
de novos leitores para o gênero, que ganha mais respeitabilidade: editoras
começam a lançar livros do gênero, outras revistas começam a aderir à
política mais rigorosa de Campbell e novas revistas surgem no mercado.
Nas décadas seguintes, há uma ampliação do escopo do gênero: a adoção,
por partes de alguns praticantes, do termo “ficção especulativa” – que,
segundo Judith Merrill (apud STABLEFORD; CLUTE; NICHOLLS,
1993), abarca histórias que tenham o objetivo de explorar, descobrir e
aprender sobre a natureza do universo e da humanidade por meio de
projeções, extrapolações, experimentações – indica não o abandono do
método científico, mas a inclusão de uma maior gama de áreas do
conhecimento. Além das ciências naturais e tecnológicas, já amplamente
incorporadas, as ciências humanas passam a figurar cada vez mais nas
narrativas de FC, dando vazão a experimentos sociais, antropológicos,
linguísticos etc.

A partir da década de 1960, há um crescente interesse acadêmico sobre


a FC (LATHAM, 2017), e novas definições são desenvolvidas. Uma das
mais utilizadas é a do crítico e acadêmico iugoslavo Darko Suvin (1972, p.
375), que caracteriza a FC como uma literatura de “estranhamento
cognitivo”, aplicando o conceito de “estranhamento” elaborado pelo
formalismo russo à FC, “um gênero literário cujas condições necessárias e
suficientes são a presença e a interação do estranhamento e da cognição, e
cujo dispositivo formal primordial é uma moldura imaginária alternativa ao
ambiente empírico do autor.”
Esse dispositivo formal, que Suvin (1972) chama de novum, implicará
um novo sistema de normas e conhecimento para acompanhar esse mundo
aparentemente desconhecido, mas de aspectos reconhecíveis. Alguns
exemplos são a viagem no tempo, a viagem interplanetária, a invasão
alienígena, um desastre natural, a vida em outros planetas ou galáxias, um
avanço tecnológico-científico, como robôs ou inteligência artificial, e
inúmeras outras possibilidades. A partir desse deslocamento para um novo
mundo, sutil ou completamente diferente do nosso, surge todo um suporte
linguístico para representar essa realidade ficcional: são inventadas novas
línguas, novas palavras, novas formas de pensar.

Um outro aspecto relevante do gênero é o que a autora de ficção


científica Joanna Russ (1975) chama de seu caráter didático, não por ser um
gênero educacional necessariamente, mas por precisar frequentemente
situar o leitor dentro desse novo universo ficcional. Assim, é comum a
narrativa encaixar explicações, definições, descrições referentes a uma
ciência ou tecnologia – já existente e central no enredo ou criada
exclusivamente para a história.

Traduzindo ficção científica


Após essa breve exposição sobre a FC, podemos notar a recorrência,
pelo menos a partir da chamada era de ouro mencionada acima, de uma
preocupação com o embasamento das extrapolações científicas. A tradução,
por sua vez, também deverá apresentar esse zelo com o vocabulário
técnico-científico, já que traduzir inadequadamente certos itens lexicais
pode colocar em risco o entendimento da premissa narrativa.

O trabalho do tradutor de ficção científica nos dias de hoje é


muito diferente daquele nos estágios iniciais do gênero. De certa forma, é
uma tarefa que se aglutinou ao seu objeto, visto que a tecnologia tem um
papel preponderante na sua execução. Não nos referimos à tradução
automática, embora seu uso seja justificado para traduzir outros tipos
textuais. Referimo-nos principalmente ao advento da rede mundial de
computadores, vulgo internet, que coloca nas pontas de nossos dedos a
capacidade de buscar quase todo o conhecimento científico-tecnológico
contemporâneo. O acesso à informação é, assim, fundamental não apenas
para a tradução em geral, mas em especial para a de ficção científica, já que
frequentemente essa literatura baseia-se em conceitos científicos – às vezes
de ponta ou menos conhecidos – para desenvolver suas premissas
narrativas.

A tradução de ficção científica, como o termo já revela, requer


desenvoltura para transitar entre a tradução literária e a tradução técnica.
Heather MacLean (1997 apud KALLIOMÄKI, 2007) levanta alguns
aspectos que concordamos serem primordiais para a tradução de FC: em
primeiro lugar, problemas específicos como palavras, línguas e lugares
inventados devem receber um cuidado particular, visto que essa nova
realidade ficcional deverá ser transmitida de forma plausível para a língua
de chegada. Em segundo lugar, a autora ressalta que a FC frequentemente
emprega vocabulário técnico referente a tecnologias de ponta, ou até
inexistentes, para o qual não existem obras de referência que o tradutor
possa consultar. No entanto, veremos adiante que alguns casos de
neologismo podem revelar-se menos complicados para a tradução,
principalmente aqueles formados por derivação.

Assim, tendo em vista que a nova realidade proposta pela narrativa


implica um novo conjunto de normas, como propôs Suvin (1972),
acompanhando de um novo suporte linguístico, o tradutor ou a tradutora
precisa saber discriminar o conhecimento técnico ficcional do
conhecimento técnico existente no mundo real. Portanto, o acesso à
informação tecnológica e científica é imprescindível para que o profissional
respeite o uso já estabelecido do vocabulário técnico em vigor na cultura de
chegada ou crie neologismos de forma coerente com um campo lexical já
existente.

Asimov e os neologismos
No conto “Robot Dreams”, podemos dizer que o novum que Asimov
introduz é a robótica: no mundo ficcional da narrativa, robôs humanoides
fazem parte do cotidiano. Para fundamentar essa nova visão de mundo, o
autor cria o termo positronic (em positronic brain – cérebro positrônico) –
com base na descoberta do pósitron, a antipartícula do elétron, alguns anos
antes –, além do termo robotics (robótica), também cunhado por ele,
embora tal ciência ainda não existisse (PILKINGTON, 2017a, 2017b).
Como discutimos acima, o neologismo é uma característica comum nos
textos de ficção científica, e um dos possíveis desafios para o tradutor. Por
isso, algum conhecimento tecnológico-científico é desejável, além de
familiaridade com o gênero, já que, não raro, autores pegam emprestados de
outros autores conceitos científicos ou tecnologias ficcionais para empregar
em suas próprias narrativas. O próprio vocábulo robot (robô), que originou
robotics, é um exemplo disso, tendo sido originado na peça do autor tcheco
Karel Tchápek A Fábrica de Robôs, de 1920.

Os neologismos positronic (positrônico) e robotics (robótica) foram


introduzidos em 1941 e 1942, nos contos “Reason” e “Runaround”
(ASIMOV, 1990), parte da primeira leva das histórias de Asimov sobre
robôs. Publicado mais de 40 anos depois, em 1986, o conto “Robot
Dreams” aborda a capacidade de sonhar dos robôs. A Dra. Linda Rash é
uma robopsicóloga (outro neologismo) que, ao buscar programar um
cérebro positrônico para que se assemelhe mais a um humano, utiliza uma
fórmula geométrica diferente da protocolarmente usada e, por acidente,
destrava uma camada desconhecida do cérebro robótico, proporcionando
que o seu robô sonhe. A narrativa se desenrola a partir do encontro de Rash,
uma profissional jovem em início de carreira, com a notória Dra. Susan
Calvin, a idosa robopsicóloga-chefe do programa. Calvin recebe Rash e seu
robô para analisar a anomalia deste. Entre perguntas da Dra. Calvin para o
robô sobre os sonhos e para a Dra. Rash sobre o seu comportamento
considerado irresponsável, descobrimos que Elvex, o robô, pode se tornar
uma ameaça aos seres humanos e fugir ao cumprimento das Três Leis da
Robótica.

As Três Leis da Robótica, recurso narrativo criado por Asimov e seu


editor John W. Campbell para fundamentar a programação dos cérebros
positrônicos dos robôs, foram usadas para explicar seus comportamentos
desviantes e para desenvolver os enredos das várias histórias de robô de
Asimov (STABLEFORD, 1993). No editorial do número 3 da Isaac Asimov
Magazine, Asimov (1990) afirma que supunha já existirem as palavras
positronic, derivada de uma analogia que ele fizera entre positron e
electronic, e robotics, derivada de robot. Enfatiza ainda a hospitalidade do
inglês em receber novas palavras e que se não fosse ele, seria uma questão
de tempo até que outro as criasse.

Embora não tenhamos informação sobre como terá sido para a


primeira pessoa que as traduziu, hoje em dia esses vocábulos não trazem
mais muita dificuldade, mas nem sempre esse será o caso. Segundo Pereira
e Santos (2017), outro aspecto da tradução de FC que é preciso considerar
são as disparidades de desenvolvimento tecnocientífico entre a cultura de
partida e a cultura de chegada. Na era pré-internet, essa disparidade poderia
parecer ainda maior, quando acessar fontes confiáveis de informação não
era tão fácil ou mesmo possível. No caso do Brasil, durante o período da
ditadura militar, a censura mantinha os profissionais de tradução imersos
num obscurantismo científico, apesar dos avanços tecnológicos que o país
conquistava, segundo as autoras. Essas circunstâncias restritas
evidentemente afetavam a qualidade da tradução de ficção científica, visto
que os tradutores não conseguiam acessar livremente o conhecimento
tecnológico produzido no país.

Hoje, por outro lado, não vivenciemos essa mesma situação: embora a
internet pareça ser uma fonte inesgotável de informação, é possível
argumentar que muitas barreiras ainda existem, principalmente para os
tradutores, que via de regra necessitam consultar domínios fora de seu país
de moradia. Nossa pesquisa, por exemplo, por um lado foi facilitada pela
digitalização de obras para consulta on-line realizada por plataformas como
o Google Livros; por outro, encontrou obstáculos ou na mesma plataforma,
que costuma disponibilizar apenas visualização parcial das obras com
direitos autorais, ou por ter acesso bloqueado a certos domínios devido ao
país de localização. Essa questão merece uma reflexão maior do que a que
podemos oferecer agora, mas que vale ser mencionada no contexto da
tradução de FC.

Uma análise inicial das traduções


Antes de comentarmos as traduções de “Robot Dreams”, é importante
considerarmos alguns aspectos editoriais que, segundo Paulo Henriques
Britto (2012), afetam a estratégia de tradução adotada. Segundo o tradutor e
poeta, três fatores modulam uma tradução: o público-alvo, o meio de
publicação e o prestígio do autor. Consideraremos aqui apenas os dois
primeiros.

A primeira tradução, de Bráulio Tavares, foi publicada em 1991 na


Isaac Asimov Magazine, a versão brasileira da Isaac Asimov’s Science
Fiction, que teve vida curta no mercado brasileiro, com apenas 25 volumes
publicados pela editora Record. A publicação oferece contos, noveletas e
novelas de autores contemporâneos estrangeiros e brasileiros, além de um
editorial do próprio Isaac Asimov e artigos e resenhas escritos por autores
brasileiros do gênero. Nota-se o foco na produção contemporânea de
grandes nomes e de novos talentos da ficção científica. Podemos concluir
que seu público-alvo são leitores minimamente iniciados no gênero, dando
ao tradutor a liberdade de não precisar explicar certos conceitos
tecnológico-científicos presentes na obra – percebe-se a ausência de notas
explicativas ao longo da narrativa. O conto vem acompanhado de uma
ilustração e uma inscrição elucidando que a história sairá numa coleção de
contos de Asimov a ser publicada futuramente.

Já a segunda tradução, de Roberto de Sousa Causo, foi publicada em


2005 em Histórias de Ficção Científica, da coleção Para Gostar de Ler, da
editora Ática. O livro é uma introdução ao gênero, apresentando autores de
diferentes nacionalidades desde o século XIX até o final do XX. Além dos
esperados H.G. Wells, Edgar Allan Poe, Arthur C. Clarke e Isaac Asimov,
participam também autores brasileiros de destaque como André Carneiro e
Jorge Luiz Calife, entre outros. Antes de cada conto consta um parágrafo
introdutório sobre a narrativa e ao final uma breve biografia do autor; ao
final da publicação consta um artigo (também de Roberto de Sousa Causo,
organizador do livro) recapitulando a história do gênero no Ocidente e no
Brasil.

O propósito didático do livro evidencia que seu público-alvo são leigos


ou jovens em idade escolar – afinal, trata-se de uma editora de livros
didáticos. O meio de publicação, como descrevemos, também difere da
Isaac Asimov Magazine, oferecendo um bom suporte para o leitor iniciante
na ficção científica. Não é surpreendente, portanto, a presença frequente de
notas explicativas ao longo da publicação, elucidando referências literárias,
conceitos científicos, vocábulos de difícil tradução etc. Britto (2012, p. 64)
afirma que quanto mais jovens forem os leitores, mais “o tradutor tenderá a
lançar mão de estratégias domesticadoras, com o objetivo de não afastar o
leitor, que talvez deixasse o livro de lado se encontrasse uma dificuldade
excessiva na leitura”. Quanto ao meio de publicação, o autor argumenta que
quanto maior for o espaço na publicação para textos de apoio, maiores serão
as chances de o tradutor optar por uma tradução mais estrangeirizadora, ou
seja, que mantenha mais traços da língua de partida.

No entanto, outro fator entra nessa equação, pois estamos referindo-


nos a uma tradução de ficção científica, cuja adoção de neologismos e itens
lexicais provenientes do campo da ciência e tecnologia é vasta, então
poderíamos levantar a hipótese de que haverá uma tendência
estrangeirizadora no gênero, embora uma investigação mais abrangente seja
necessária para testá-la. Quanto aos dois tradutores do conto “Robot
Dreams” – “Sonhos de robô” em ambas as edições –, verificamos que
traduziram uniformemente os neologismos de Asimov, “robótica”,
“positrônico”, “robopsicóloga”, que não devem ter apresentado grandes
problemas por serem neologismos criados por derivação ou aglutinação.

Na tradução de Roberto Causo, publicada pela Ática, vale comentar


duas das três notas de rodapé: a que explica o sobrenome da personagem
Linda Rash e a que explica “cérebro positrônico”. A primeira nota elucida
um jogo de palavras que o tradutor optou por não traduzir: “Você não tinha
o direito. Rash é o seu nome; rash é a sua natureza”3 – na nota: “Rash em
inglês significa ‘precipitado’, ‘irrefletido’.” (ASIMOV, 2005, p. 84).
Levando em conta as palavras de Britto (2012) sobre como o público-alvo e
o meio de divulgação afetam as opções da tradução, podemos inferir que a
presença das notas explicativas, geralmente evitadas a todo custo em
publicações literárias, influenciaram a tarefa do tradutor nesse caso, assim
como os demais paratextos já citados. O mesmo é válido para a Isaac
Asimov Magazine, que, por suas limitações editoriais, não pode incluir
tantas notas, embora haja uma ou outra em outros contos. No caso do
sobrenome, o tradutor Bráulio Tavares solucionou o problema no próprio
corpo do texto: “Você não tinha esse direito. Seu nome é Rash, hem?
Imprudente... Um nome muito adequado.” (ASIMOV, 1991, p. 28).
3 No original: “You had no right. Rash your name; rash your nature.” (ASIMOV, 1986, p. 40)

A segunda nota que nos chamou a atenção na tradução de Roberto


Causo foi a que explica o conceito de “cérebro positrônico”. Referindo-se à
jovem robopsicóloga, o seguinte trecho utiliza a nota para esclarecer essa
tecnologia: “Tornou-se subitamente ciente de que a [dra. Calvin] tinha uma
arma de elétrons no bolso de seu guarda-pó. A dra. Calvin viera preparada
para fazer exatamente isso [desativar o robô].” (ASIMOV, 2005, p. 86). Na
nota, cuja numeração é sobrescrita ao termo “arma de elétrons”, consta: “O
‘cérebro positrônico’, ao contrário do eletrônico, tem pósitrons, que são
elétrons de carga invertida. Em contato com elétrons normais, as duas
partículas se anulam, daí a ‘arma de elétrons’ da dra. Calvin.”.

A presença desta nota é justificada pelo público-alvo e pelo meio de


publicação. Apesar de a narrativa de Asimov já ser bastante objetiva e
didática, no sentido usado por Russ (1975), e deixar implícito o significado
do termo, vale ressaltar que muitos leitores podem ainda estar em idade de
formação e não terem sido expostos à disciplina da física ou ao conceito do
átomo. Vale lembrar também que a publicação data de 2005, antes do
surgimento dos smartphones, que possibilitou a inclusão digital de
inúmeros leitores.

Considerações finais
Neste breve texto, fizemos algumas reflexões preambulares sobre a
tradução de ficção científica para o português brasileiro. Abordamos
algumas das propriedades singulares desse gênero literário que exigem uma
atenção redobrada do profissional de tradução, como a presença de uma
novidade científica, um novum (SUVIN, 1972), que gera uma nova
realidade ficcional e um suporte linguístico correspondente, em geral com
emprego de neologismos e vocabulário técnico-especializado, que deverão
ser trasladados de forma plausível, levando em conta o conhecimento já
produzido na cultura de chegada (MACLEAN apud KALLIOMÄKI, 2007).
Por se tratar de um gênero que demanda proficiência não apenas na
tradução literária, como também na técnica, a tradução poderá implicar a
pesquisa sobre conhecimentos científicos de ponta que figurem na
narrativa. Devido à desigualdade econômica e tecnológica entre os países,
esse trabalho de pesquisa lexical inerente à tradução pode ser dificultado ou
até impossibilitado, dependendo do contexto de cada país. O acesso à
informação, portanto, é uma necessidade da tradução de FC e um fator
determinante para a qualidade do texto de chegada.

O caráter didático da FC (RUSS, 1975) é outro fator importante, visto


que a ciência ou tecnologia presente na narrativa deverá ser traduzida com
precisão para não pôr em risco a coerência da história. Para além da FC,
alguns fatores editoriais e mercadológicos a serem considerados são o
público-alvo, o meio de publicação e o prestígio do autor (BRITTO, 2012),
que afetarão as escolhas feitas durante a tradução. Dependendo de cada
publicação, recursos como imagens, notas explicativas, introdução,
minibiografia etc. poderão ser empregados, oferecendo maior suporte ao
texto de chegada.

De modo a ilustrarmos esses pontos levantados, realizamos uma


análise inicial de duas traduções de contos do autor russo-americano Isaac
Asimov. Também conhecido por sua vasta produção de divulgação
científica, o polímata adota também em sua prosa um estilo simples e
direto, sem ousadias formais, pois alegava que queria ser entendido pelos
mais diversos leitores. Se por um lado esse aspecto facilita o trabalho dos
tradutores, por outro, a inserção de vocabulário técnico-científico, incluindo
neologismos, pode potencializar os desafios tradutórios. Nos exemplos
analisados, observamos que os neologismos criados por Asimov, por
derivação ou aglutinação, não parecem ter causado maiores transtornos, o
que não significa dizer que os tradutores não enfrentaram desafios em
outros campos.

Ao embarcarmos na tarefa de traduzir a ficção científica, devemos nos


perguntar: qual disciplina do conhecimento, ciência ou tecnologia alicerça a
narrativa? É existente ou inventada? Quais suportes linguísticos a autora
emprega para verbalizar sua realidade ficcional? Há obras prévias do
mesmo autor que sejam ambientadas nesse mesmo universo ficcional?
Foram traduzidas? Qual é o estilo do autor? Essas são algumas primeiras
indagações para levarmos em consideração e darmos início à pesquisa
aprofundada cuja meta será traduzir a obra literária, e a disciplina científica
ou tecnológica em que sua narrativa se baseia, de forma plausível e
coerente.

Referências
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Janeiro, n.3, 1990, p.5-9.

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points: essays on the art of science fiction. Gateway, 2014. Edição para
Kindle. Publicação original: 1977.

ASIMOV, Isaac. Sonhos de robô. In: CAUSO, Roberto de Sousa


(Org.). Histórias de ficção científica. Tradução de Roberto de Sousa Causo.
São Paulo: Ática, 2005, p.83-91.

ASIMOV, Isaac. Sonhos de robô. Isaac Asimov Magazine, Rio de


Janeiro, n.17, 1991, p.27-33. Tradução por Bráulio Tavares.

BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2012. 157 p.

KALLIOMÄKI, Heini. Translating fictitious science: a case study on


the translation process of two short stories by Isaac Asimov. 2007. 68 f.
Dissertação. Department of Languages, University of Jyväskylä, Finland,
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SUVIN, Darko. On the poetics of the science fiction genre. College


English, v.34, n.3, dez. 1972, p.372-382.
As representações das nuances
emocionais das personagens e do
imaginário rural e urbano no conto
"A solução" de Luiz Ruffato
Isabelly Cristina Gonçalves Costa

Sumário

O presente artigo tem por objetivo refletir acerca do papel dos objetos
e dos ambientes e seu caráter simbólico na literatura e no cinema, mais
especificamente no conto “A Solução” presente na obra O Mundo Inimigo,
do escritor contemporâneo Luiz Ruffato. Observaremos como a
personagem principal se relaciona com sua cidade natal e o quanto esse
ambiente afetou sua vida, influenciando os âmbitos pessoal e profissional, e
a representatividade dos objetos como forma de reflexo da camada interior
dos personagens, bem como os demais elementos que compõem os
ambientes.

Há muito mais nesses elementos que estão muito além da aparência


superficial. O ambiente não é apenas um espaço e um objeto não é apenas
artefato, há neles profundidade psíquica, alma (HILLMAN, 2010). As
representações que esses elementos contêm são profundas, pois refletem a
profundidade dos personagens, são significativos pois estão além de si
mesmos, além do material com que são feitos, pois estão unidos a quem os
transforma de objetos – o objeto em si, genérico – para coisas – objetos nos
quais há significação afetiva. (BODEI, 2013).

Não sendo apenas um recurso com fins técnicos, os objetos são os


elementos que constituem o cenário compondo também sua aura, sendo de
grande valia na compreensão da construção da narrativa, e como maneira de
nos conectarmos a ela. Por conseguinte, da mesma forma que nos
relacionamos com os lugares e os ambientes, somos capazes de desenvolver
conexão emocional com objetos que podem de diversas formas vir a ter
significação afetiva para nós. Nos livros, nos atentarmos para as possíveis
representações desses objetos e a relação deles com os personagens no
âmbito artístico é conhecer mais profundamente o interior dos mesmos e a
forma como eles podem estar refletidos no ambiente.

O conto “A Solução” faz parte de O Mundo Inimigo, obra essa que


compõe a pentalogia Inferno Provisório, do autor Luiz Ruffato. Essa saga
tem como pano de fundo a mudança do cenário rural para o cenário urbano
ocorrido na segunda metade do século XX, bem como o impacto dessa
transição desestruturada na vida dos trabalhadores da classe operária.

A cidade de Cataguases, localizada na Zona da Mata mineira, é o palco


no qual acontece boa parte das histórias de Luiz Ruffato. O autor relata uma
Cataguases sem atrativos, escassa e essencialmente industrial, haja vista que
não dispunha de alternativas que oferecessem oportunidades mais
vantajosas de crescimento profissional e, por esta razão, era considerada,
como retrata algumas passagens de seus livros, como o melhor que se
poderia conseguir ali.

A dicotomia rural X urbano - e dizemos “rural”, pois pode-se dizer que


“o urbanismo ainda é campesino. O mundo operário é fisicamente
campesino” (PASOLINI, 1990, p.134) – está presente ao longo da narrativa
na qual a personagem romantiza e idealiza uma vida nesse cenário urbano
da alta sociedade e revela seu desprezo pela zona rural da cidade de
Cataguases que se pretende industrial.

Narra-se no conto ambientado entre a década de 1960 e 1970, a


história da personagem Hélia quando ela ainda tinha quinze anos de idade e
Luzimar, seu irmão caçula, não passava de uma criança. Hélia, ao contrário
de Luzimar, ao crescer não possui nenhum conformismo em relação à sua
vida nem ao lugar onde mora. A personagem almeja um futuro sem fábrica,
ônibus, restrições e pobreza. Hélia sonha sair de Cataguases e ter uma vida
de luxo e conforto longe do cortiço em que mora e das pessoas que estão à
sua volta.

Nessa personagem, encontra-se representado aquele que deseja


melhores condições e qualidade de vida, mas, devido à completa falta de
recursos, apoio e perspectivas, permanece estagnado sendo consumido pela
rotina exaustiva do trabalho operário na fábrica de tecidos que abarca a
classe proletária da cidade. Nas falas da personagem percebe-se a raiva e
desdém com os quais ela retrata sua rotina e situação social:

Bateu o cartão-de-ponto e droga!, lá vem aquela vontade de


chorar, manteiga derretida! O cata-níquel já passara e agora
nem carona de bicicleta conseguiria mais. O negócio era ir
andando até em casa, lençóis de nuvens brancas quarando ao
sol das dez e vinte, fevereiro, ah! o clube do remo deve de
estar lotado ai meu deus quem me dera! mas quem sou eu?
bem que podia parecer um moço loiro bem forte olhos azuis
montado numa vespa prateada [...]que besteira vou ter é que
gastar a sola do tamanco novinho nesse paralelepípedo
pegando fogo ai meu deus como estou cheia disso tudo!
como estou cheia! (RUFFATO, 2005, p.63-64)

A personagem busca viver o típico sonho do conto de fadas,


enxergando em um homem com poder aquisitivo sua saída da pobreza e
garantia de uma potencial felicidade, que consistiria em uma vida de
consumo e acúmulo de bens materiais bem como de experiências típicas da
elite da classe média alta, como clubes privados e transporte próprio, como
se vê no trecho acima, sem as mazelas às quais é submetida diariamente.

Hélia nutre uma fantasia baseada nos clichês das histórias românticas
difundidas no imaginário de tantas meninas e que, para a personagem, seria
uma espécie de solução. O estereótipo de beleza no qual ela se apoia revela
o perfil de uma pessoa que geralmente é retratada como o galã possuidor de
alguma fortuna e que arranca a mocinha de uma vida de miséria e
infelicidade, exatamente como Hélia espera que lhe aconteça.

Para a adolescente de quinze anos andar em uma motocicleta com um


bom partido é o ponto alto de sua fantasia, como nos momentos em que as
protagonistas femininas de contos de fadas sobem um cavalo branco. Essa
distinção entre a motocicleta e o cavalo branco poderia apontar “inclusive,
para a tensão entre os ambientes rural e industrial, que é parte da
composição literária de Ruffato” (HAUCK, 2013, p.30).

Hélia enxerga no matrimônio sua única esperança de ver-se fora do


Beco do Zé Pinto, o beco que a deixa sem saída. A personagem despreza o
beco que revela a camada social na qual está forçosamente inserida,
despreza a falta de estudos dos pais e as profissões de pipoqueiro e
lavadeira que eles exercem para prover o mínimo de condições que
possibilitam a precária sobrevivência da família:

Queria esquecer que tinha família, pais bocós, ah, se pudesse


enterrar o passado! Não, minha mãe morreu no parto,
coitada, e meu pai quando eu tinha uns seis anos… Fui
criada por uma parenta distante, muito rica. Sim, era
vergonha que sentia, vergonha… Por isso quando vinha da
rua dava um jeito de despedir antes de se aproximarem do
beco do Zé Pinto [...] Se sonhassem que morava naquele
correio de casas de parede-meia, tristes, perto do rio… E se
caísse a cortinha e descobrissem que a mãe era uma
lavadeira… e ainda por cima analfabeta… e que o pai não
passava de um… biscateiro… Deus me livre e guarde.
(RUFFATO, 2005, p.67)

O ressentimento que Hélia possui pela própria vida estende-se aos


pais. Ela é frustrada por não poder ser uma adolescente como as outras que
podem desfrutar dessa fase da vida sem responsabilidades com as contas da
casa.

Vê-se, então, que Hélia nutre profundo desdém em relação a tudo o


que não corresponde a seus ideais de pessoas dignas, bem relacionadas e
despreza os namorados, terminando com todos os que não apenas não tem
dinheiro, mas que também não se portam conforme o padrão pré-
estabelecido por ela – o qual consiste nos moldes de comportamento da
classe média alta - ridicularizando seus vícios de fala e linguagem simples.
Hélia concebe suas roupas, maquiagem e a forma como se exibe nas
ruas procurando não se parecer como alguém que mora num beco pobre e
não em um ponto mais valorizado de Cataguases. A adolescente valoriza
todos os objetos de adorno e vestuário que julga pertencentes a alguém
digno da alta sociedade e, uma vez que, “qualquer objeto é suscetível de
receber investimentos e desinvestimentos de sentido, positivos e negativos,
de circundar-se de uma aura ou dela ser privado [...} Nós investimos
intelectualmente e afetivamente os objetos, damos a eles sentido e
qualidades de sentido” (Bodei apud FARINACCIO, 2019, p. 71), a
personagem dá significação pessoal à cada elemento que colabora para a
criação de um mundo no qual ela não faz parte do proletariado e a periferia
não constituem sua realidade. Esses objetos para Hélia, tornam-se coisas,
pois o objeto que se torna uma coisa de valor está refletindo aquilo que
projetamos nele, conforme concepção de Bodei (2013, p.35-36).

As atitudes de Hélia evidenciam seu esforço em criar uma imagem de


alguém que não pertence à periferia de Cataguases, o cenário rural não faz
parte da persona que a adolescente construiu para si. Pode-se observar
quando a personagem fala do medo que tem em ser descoberta como filha
de pais humildes e pobres o quanto valoriza a imagem que as pessoas
podem fazer dela e o quanto teme em ser prejudicada na busca das chances
de mudar de vida.

Ao longo da narrativa fica cada vez mais evidente a espiral na qual a


personagem afunda ao dar-se conta da vida que nunca terá e a realidade que
se apodera de seus sonhos. Ao envolver-se com um rapaz mais velho e
pobre, Hélia termina o relacionamento por não corresponder ao seu padrão
pré-estabelecido de riqueza e estética. Ao conversar com duas amigas, após
desdenhar do rapaz que dispensara, Hélia ouve novamente que suas
expectativas são altas demais e não condizem com sua situação, o que abala
seu estado emocional.

A narrativa da personagem passa por uma mescla de fluxos de


consciências, fantasias e a realidade circundante. Hélia imagina novamente
o matrimônio que a resgatará de sua vida e transformará seus sonhos em
realidade, possibilitando, assim, que ela entre efetivamente no urbanismo,
deixe para trás o proletariado, o assédio sofrido pelo patrão casado, ao qual,
submete-se para garantir seu emprego, livrando-se, assim, da espera no sol
quente, dos ônibus e do Beco do Zé Pinto:

A escuridão alojou-se pé-ante-pé em seu quarto. Girou o


bocal da lâmpada e explodiu luz em seu rosto. Caminhou até
o guarda-roupa, repassou os cabides (...) deteve-se no
tubinho vermelho de popelina, laço na frente, quase um
palmo acima do joelho, que tinha feito no curso de corte-e-
costura da dona Marta, e que quase nunca usava (…)
Colocou a sandália preta, o brinco-de-pressão de florzinhas
vermelhas, passou batom, pó-de-arroz, com a mão em
concha espalhou Sândalus pela nuca, subacos, braços,
pernas, cabelos. Tirou da caixinha preta o anel folheado com
uma solitária pérola, presente de um dos namorados, e o
cordão com um crucifixo de ouro, que o pai encontrara no
chão, perto da Prefeitura. Apagou a luz. Hélia está numa
festa de debutantes no Clube Social. Caminha devagar,
polinizando as mesas com sua graça e simpatia, deixando
para trás olhares prenhes de inveja e de cobiça. Sussurros.
Quem é essa moça? Nossa, como é linda! Flutua, dos pés à
cabeça coberta de admiração. Um rapaz alto, louro, olhos
azuis levanta-se, puxa uma cadeira, convida-a para sentar-se.
Obrigada. Meu Deus, quem é você? De que reino você
fugiu? (RUFFATO, 2005, p.70-71)

Hélia sonha acordada devaneando que sua aparência possa atrair a


atenção daquele que poderia ser seu príncipe encantado, pensa frequentar o
Clube de Remo da elite de Cataguases, no qual nunca poderia entrar por
pertencer à sua classe socioeconômica. Nesse momento “a casa abriga o
devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os
pensamentos e as experiências humanas sancionam os valores humanos. Ao
devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade.”
(BACHELARD, 2005, p.26).
Os devaneios de Hélia evidenciam uma vez mais a insatisfação da
personagem com sua própria vida, adolescente se refugia nas fantasias para
negar não apenas seu passado e seu presente, como projeta uma fuga de si
mesma (HAUCK, 2013, p.30) reinventando-se de acordo com o que julga
ser uma aparência superior à da pobreza e vulgaridade. Não há nos sonhos
de Hélia qualquer indício do Beco, da fábrica, das amigas ou qualquer outro
elemento que constitua o cenário de sua realidade.

Os adereços que ela descreve denunciam a humildade de sua condição,


a pobreza de sua vida. O vestido que ela julga mais elegante foi feito em
uma aula de corte e costura, o anel não é uma bijuteria dada por um dos ex-
namorados desprezados, e o colar, única joia que a personagem possui, só
está em seu poder porque foi encontrado em uma rua. Todos esses adereços
que a personagem usa com orgulho, imaginando, assim, que não seria vista
como alguém do Beco do Zé Pinto, mas que poderia passar por alguém
digno do Clube Central, são os mesmos elementos que a denunciariam
perante os olhos dos que lá estão. A precariedade de sua vestimenta e
adereços representa esteticamente o que a personagem é e o que tenta ser a
todo custo, ilusoriamente.

Entretanto, assim como qualquer sonho e ao contrário da afirmação


acima de Bachelard, a casa de Hélia não permite o sonho em sua plenitude e
tranquilidade, o devaneio é interrompido pela realidade do ambiente e
espaço no qual está inserida. A violência do Beco a arranca de suas
fantasias e a traz de volta para o lugar do qual ela tanto quer sair:

Enlevada, ouve um berro, Vou te matar, desgraçada! e gritos,


gritos, histéricos, e barulho de vasilhas desabando no chão,
um tapa, outro tapa, a mulher se desvencilha, corre para fora,
as crianças choram, Larga a mãe, pai! Larga, É o Zé
Bundinha, minha nossa senhora!, o coração disparado, as
pernas bambas, ele a alcança, Acudam, Acudam, que ele está
me matando! Larga a mãe, pai, larga ela! Para, Zé Bundinha!
Chama a polícia!, ele vai matar a dona Fátima! Hélia espia
pela janela-veneziana. O Zito Pereira consegue imobilizar o
Zé Bundinha numa chave-de-braço, ambos caem contra a
cerca de bambu, o Zé Pinto aparece, revólver na mão, Quê
que houve, aí, quê que houve?, as mulheres espantam-se,
recomeçam os gritos e o choro, Pelo amor de deus, seu Zé
Pinto, não carece disso não, Eu já falei que não quero
bagunça por aqui, não falei? Hélia desliza o corpo sobre o
sofá de vinil vermelho. Quieta, encolhe as pernas, abraça-as
e encaixa o queixo no vão dos joelhos. Aos poucos, as vozes
se dissipam, o silêncio reconquista cada saliência do beco.
Levanta-se, acende a luz do quarto, com os pés lança a
sandália preta na parede, arranca com raiva o brinco-de-
pressão de florzinhas vermelhas, o anel folheado com uma
solitária pérola, e o cordão com um crucifixo de ouro e atira
tudo, de qualquer jeito, dentro do guarda-roupa, puxa com
fúria o tubinho vermelho, de popelina, e joga-o sobre a cama
do irmão. veste a camisola branca, deita-se de bruços, o
travesseiro cobrindo a cabeça. E então um tremor abala seu
peito, uma enchente, há muito contida, espalha-se selvagem
explodindo numa convulsão em seu corpo macerado.
(RUFFATO, 2005, p.71).

O espaço que a adolescente habita é um dos principais motivos do seu


desejo de mudança. O Beco do Zé Pinto é o local das pessoas de classes
mais baixas, lugar no qual ela jamais encontraria seu tipo de homem ideal.
A relação da personagem com o ambiente no qual está forçosamente
inserida impacta negativamente seu estado emocional e contribui para o
aumento de frustrações, pois ainda que despreze o Beco no qual mora,
Hélia não fala como “um observador independente do lugar onde se
encontra: ‘toda reflexão, todo sentimento, toda intenção advém no interior
de um lugar (Hillman, 2005, p. 150)’.” (FARINACCIO, 2019, p.121).

Dessa forma, ainda que o ambiente desperte emoções negativas na


personagem, o lugar e o indivíduo estão atrelados “porque a psique inclui o
mundo – há alma em todas as coisas. Cada coisa de nossa vida [...]
construída tem importância psicológica” (HILLMAN, 2010, p.81). Os
objetos e os ambientes não se limitam apenas ao espaço geográfico, pois
estão atrelados à alma do homem.
O rompante de fúria que a possui fazendo-a atirar contra a parede
todas as suas coisas é como uma renúncia muda e frustrada de suas vãs
esperanças. O choro desesperado que ela não pode mais conter evidencia a
conclusão à qual aos poucos chega: de que ela jamais será como uma das
garotas que tomam sol na piscina. O choro de Hélia é a manifestação, agora
irrefreável, da dor, da frustração e da desilusão.

Após a noite de tormento, Hélia ainda assiste na saída da fábrica ao


cotidiano inalterado, observando as ruas da cidade, estabelecimentos e
sentindo os fortes odores das ruas quando “cruza com um grupo de meninas
vindas do Colégio das Irmãs [...] ostentando uma agressiva felicidade,
invejou-as, nem a viram, piranhas, horrorosas! E veio de novo aquele
ameaço de choro, apertou o passo, queria chegar logo, mas… aonde? Não,
não queria ir para casa, descer as escadas do beco” (RUFFATO, 2005,
p.69). Hélia dá-se conta do ambiente pobre que encontraria e as ações
rotineiras que se seguiriam não apenas nos momentos seguintes, mas “todos
os dias, todos os meses, todos os anos, até o fim dos tempos” (RUFFATO,
2005, p.70) no destino traçado na fábrica de tecidos.

Hélia tem diante de si dois mundos distintos que alimentam sua raiva e
sua esperança. Hélia tem plena consciência do que poderia ser sua vida
porque o caminho da fábrica e o trajeto da volta para casa evidenciam a
separação desses dois mundos, Helia transita pelas fronteiras e é ferida por
elas. Nas palavras de Pasolini, referindo-se a um contexto bastante
semelhante:

o que aquela periferia me dizia, ‘no seu latim’, era: aqui


moram os pobres, e a vida que se leva é pobre. Mas os
pobres são operários. E os operários são diferentes de vocês,
burgueses. Mas o futuro demora a chegar. Por isso o futuro
deles - vivido nesta periferia por eles e contemplado por
vocês - se parece imensamente com o hoje. É um hoje que se
repete. Os filhos têm assegurada uma existência semelhante
a dos pais. Ou melhor, se destinam a repetir e a reencarnar os
pais. (PASOLINI. 1990, p.134)
A personagem tem, então, diante de si essas duas realidades opostas
que a massacram de duas formas diferentes. A primeira é a sua própria:
pobre, filha de pais analfabetos, trabalha para ajudar nas despesas
domésticas e mora no beco com pessoas igualmente pobres. A segunda
realidade: a elite de Cataguases com seu Clube de Remo com piscina,
meninas bem vestidas e estudantes de um bom colégio particular e que não
precisam se expor ao assédio sexual na fábrica para colocar comida na
mesa.

O confronto constante entre essas duas realidades aumenta o conflito


interno que a personagem tem durante toda a narrativa e é o extremo oposto
da posição de seu irmão Luzimar, que em nenhum momento expressa
qualquer desejo de ter outra vida que não a que ele já tem. Hélia, entretanto,
a todo instante fantasia uma saída de conto de fadas para dar fim à realidade
que ela despreza. Hélia é a cinderela sem magia alguma que a faça viver
como princesa, sempre presa num porão, ou, nesse caso, num beco.

A personagem segue para a ponte sob a qual passa o Rio Pomba. Lá,
deixa seus pensamentos fluírem e constata que seu futuro já fora traçado.
Hélia não cogita ir embora sozinha, não tem força nem iniciativa de tentar a
vida fora da cidade sem alguém que a ampare. Seu destino na fábrica está
acontecendo. Não há príncipes, não há mesas no Clube Central reservadas
para ela, não há casamento promissor, não há uma casa em uma cidade
distante, não há esperanças:

No meio da Ponte Nova, parou. Debruçou-se na amureta e


ficou observando as águas barrentas do Rio Pomba que, lá na
frente, quase na curva a Vila Teresa, recebem a soda e a tinta
do Rio Meia-Pataca. Na margem esquerda, o fundo dos
quintais das casas da Rua do Pomba, imundos de pé-de-
galinha, marmelada-de-cachorro, assa-peixe, capim-gordura,
vassoura, capim-angola, que rastejam entre as mangueiras,
abacateiros, ingazeiros, abieiros, goiabeiras, amoreiras, pés-
de-carambola. Na margem direita, mato, mato, mato. A Casa
de Saúde. Ao fundo, a Pedreira, CASAS PERNAMBUCANAS
no alto pichado. As águas barrentas. Dois barcos cheios de
areia. E as águas barrentas. Se olhasse para trás, não tinha
coragem, veria moças e rapazes queimando nas piscinas do
Clube do Remo. O sol quente torrando sua cabeça, não
nunca vai aparecer um príncipe encantado... Os olhos fixos
nos redemunhos que se formam no meio do rio. O barulho
líquido. Os redemunhos. A água barrenta. O sol na cabeça,
não nunca vou conseguir sair desse inferno... Os carros
passam. Os ônibus. As bicicletas. Os redemunhos. A água. O
sol, melhor melhor talvez quem sabe morrer acaba tudo
acaba Vem, Hélia, vem... descansar o fim Vem, Hélia... Vem
comigo... Vem... E ela então sentiu-se zonza, zonza, e uma
mão grande e calejada pousou em seu ombro, Vem comigo,
vem, você está passando mal?, Heim? E Hélia ouviu longe-
longe a voz do Maripá e ele, amuletando-a, amparou-a e
foram andando devagar, bem devagar, em direção ao beco.
(RUFFATO, 2005, p.72)

Sozinha na ponte Hélia pensa na vida que nunca terá: o Clube Central,
roupas boas, festas, bebidas, dinheiro, poder e o conforto e felicidade que
esse estilo de vida pode trazer. Hélia não olha, mas sabe que aquela imagem
está atrás dela se ela se atrever a olhar; entretanto, não é essa a última coisa
que ela quer ver antes de morrer. À sua frente está o curso do Rio Pomba:
casas à beira, sujeira, resíduos das fábricas, pedras, lama. Ainda que Hélia
se jogasse seu corpo ele iria parar em outro cortiço, afundaria na lama, nos
restos e na pobreza circundante. Nem mesmo na morte Hélia se distanciaria
da realidade que teve em vida.

A ponte separa dois mundos diferentes, riqueza e pobreza, sonho e


realidade, morte e vida. Durante todo o conto Hélia esteve dividida entre o
que era e o que queria ser, o que tinha o que fantasiava alcançar, sem
conseguir aceitar sua vida e sem conseguir mudá-la, estagnada. A
personagem, já zonza e tomada pela multidão de pensamentos que passam
pela sua cabeça, aceitando que todo o seu sonho jamais passará disso, quase
se deixa cair no Rio Pomba para que as águas levem não apenas seu corpo,
mas sua dor e sofrimento, sua pobreza e frustração, seus sonhos não
realizados.
Seu ato de desespero é interrompido pelo ex-namorado que a vendo
debruçada sobre a ponte a aborda e a tira da ponte levando-a direto para
casa. Novamente, a realidade de Hélia a arranca de seus devaneios e a faz
retornar para o lugar do qual deseja sair. A personagem está sempre, ainda
que imaginariamente, buscando uma saída, para que logo em seguida algum
choque de realidade, quer esteja representado em uma briga ou em uma
pessoa, a traga de volta, lembrando-a que nada que ela deseja pertence a
ela, impedindo-a de fugir. As águas não serão mais seu escape e Hélia volta
para o beco no qual está sua vida.

Em “A Solução”, a passagem da tentativa de suicídio de Hélia reflete o


desespero e desesperança que a personagem sofre ao constatar a mesmice à
qual sua vida está fadada. Ao deslocar-se para a ponte, a adolescente tem
“os olhos fixos nos redemunhos que se formam no meio do rio. O barulho
líquido. Os redemunhos.” (RUFFATO, 2005, p.72). Esses “redemunhos”
espelham a espiral decadente da vida de Hélia. As ansiedades, angústias,
sonhos, raiva, esperança e todos os sentimentos e aspirações de Hélia
redemoinham incessantemente trazendo à tona a certeza indesejada de que
nenhuma transformação ocorreria.

Por mais que Hélia lute para manter as esperanças de um futuro longe
do beco no qual mora e constantemente alimente suas fantasias de menina
com um príncipe que nunca virá, ela acaba por estar sempre no mesmo
lugar, girando em círculos, num redemoinho que a puxa para as profundezas
de uma vida infeliz. Hélia é sufocada pela rotina, trabalho, pela vergonha,
pobreza e pela ilusão quebrada de um final feliz que jamais chegaria.

As águas que a adolescente almeja são as águas limpas e claras da


piscina do Clube Central. Hélia quer ser uma adolescente que não precisa
trabalhar para auxiliar nas despesas domésticas, deseja uma vida
confortável quando adulta sem precisar se sujeitar aos assédios de um
patrão, caminhadas longas debaixo do sol e ter um lugar só seu. A
personagem não suporta ir para o beco e não é aceita no Clube, não faz
parte da elite que compõe a alta sociedade. As únicas águas que aceitam
Hélia são as águas barrentas do Rio Pomba.

Debruçada na ponte, o rio à frente de Hélia é sujo, é local de despejo


das sujeiras das casas que ficam em sua margem e onde se encontra outro
rio também sujo. Olhar para o rio e ver que mesmo jogando-se ali a
correnteza a levaria para as casas pobres, para o matagal, para a água
barrenta, e que mesmo na morte ela não seria levada para as águas que
passavam pelo Clube Central, lugar no qual ela jamais poderia entrar
devido à sua classe social.

Dessa forma, nem em vida nem em morte Hélia conseguiria sair da


miséria, o corpo se juntaria aos restos jogados no Rio Pomba, aos resíduos
da fábrica da qual ela não quer lembrar, às casas pobres. O destino de Hélia
estaria traçado, assim, na vida e na morte. As águas, que são sinônimo de
vida, na vida de Hélia são símbolo de dor e morte. As águas representam a
possível saída de uma vida que ela rejeita, da vida da qual ela não consegue
sair. As águas tragam as forças de Hélia antes mesmo dela se jogar. As
águas levam tudo e a personagem deseja também ser levada, se não do jeito
sonhado, incluindo seu ideal de felicidade e matrimônio, então levada pela
morte.

Todavia, o desejo não se concretiza. Hélia é salva do suicídio, ainda


que não seja salva de sua vida, e nessa permanece. As águas do Rio Pomba
não recebem seu corpo cansado e seus sonhos frustrados e nenhuma fada
madrinha ou marido rico surgem de repente, resgatando-a num último
instante, como nas histórias de final feliz. Hélia não anda apenas para o
beco cheio de casas, mas para um beco sem saída que a mantém refém de
uma vida nada promissora. Assim,

quando ouvimos a voz desesperada da Hélia, em “A


solução”, dizendo “Não, nunca vou conseguir sair desse
inferno,” a qual inferno ela se refere? Na busca do seu
príncipe encantado, o Beco do Zé Pinto simboliza, com
certeza, um beco sem saída para ela. Mas há vários infernos
que coabitam esse Mundo inimigo. Ao contemplar o suicídio
no meio da Ponte Nova, Hélia também personifica o
sofrimento universal do ser humano desamparado. A
solução, eco do título da narrativa, surge inesperadamente de
uma forma outra e ordinária, que se manifesta através da
solidariedade e do amparo compassivo que a salva.
(ITAMAR HARRISON, 2005, p.172)

Hélia apenas sobrevive, assim como tantas outras Hélias, tantas outras
pessoas que vivem o “inferno provisório” que nomeia a saga. A obra de
Luiz Ruffato expõe uma personagem estagnada dentro de um país
decadente, evidencia o proletariado e o destino de pessoas presas a um
sistema que não luta por elas, mas as encurrala em uma rotina de exaustão
em prol da própria subsistência e por não conhecerem ou não julgarem ser
possível uma transformação nessa vida de frustração, acabam por perpetuar
o ciclo de geração em geração.

Posto isso, as nuances podem ser encaradas como pequenas peças que
nos auxiliam a entender o que não está explícito ou que ratifica algo que já
vem sendo demonstrado pelos personagens e construído ao longo da
história narrada. Perceber as entrelinhas de uma narrativa consiste em
decifrar a representatividade dos elementos que integram e acompanham o
enredo, pois ainda que pareçam triviais, podem ser de grande relevância e
significação no contexto no qual se encontram os personagens, o que pode
nos proporcionar maior alcance acerca do âmago dos personagens.

Tanto os objetos quanto os lugares e o ambiente em si possuem


ligações diretas com o sujeito em uma troca de profundidade psíquica
(HILLMANN, 2010, p.82), ou, em outras palavras, nós não apenas
influenciamos e enxergamos um ambiente a partir de nós mesmos, mas
somos também influenciados por ele, duas almas - a do indivíduo e a do
mundo - se tocando e moldando.

Referências
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Trad. Antônio de Pádua
Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2005.

BODEI, Remo. La vida de las cosas. Buenos Aires/Madrid, Amorrortu


Editores, 2013.
BODEI, Remo. La Vita delle Cose. In: FARINACCIO, Pascoal. A
casa, a nostalgia e o pó: A significação dos ambientes e das coisas nas
imagens da literatura e do cinema: Lampedusa, Visconti e Cornélio Penna.
2019.

FARINACCIO, Pascoal. A casa, a nostalgia e o pó: A significação dos


ambientes e das coisas nas imagens da literatura e do cinema: Lampedusa,
Visconti e Cornélio Penna. 2019.

HAUCK, Marcelo Antonio Ribas. Migrações geográficas e textuais


em Inferno Provisório, de Luiz Ruffato. 2013. 150f. Tese (Doutorado em
Literaturas de Língua Portuguesa) Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Minas Gerais.

HILLMAN, James. Anima Mundi: O Retorno da Alma ao Mundo. In:


O Pensamento do Coração e a Alma do Mundo. Trad. Gustavo Barcellos.
Campinas, Versus, 2010.

ITAMAR HARRISON, M. Luiz Ruffato - O mundo inimigo Rio de


Janeiro: Record, 2005. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea].
n.25, 2005. Disponível em: [https://www.redalyc.org/articulo.oa?
id=323127088011]. Acesso em: 16 de out. 2019.

PASOLINI, Pier Paolo. Os Jovens Infelizes. Antologia De Ensaios


Corsários. Org. Michel Lahud. Trad. Michel Lahud e Maria Betânia
Amoroso. Editora Brasiliense, 1990.

RUFFATO, Luiz. O Mundo Inimigo. Rio de Janeiro: Editora Record,


2005. Volume II (Inferno Provisório).

SANTIAGO, Silviano. O Cosmopolitismo Do Pobre. Belo Horizonte:


UFMG, 2004.
Os reis em silêncio em Édipo Rei
Luiz Jorge Soares Guimarães

Sumário

Introdução
Édipo Rei (2017) é uma das peças mais lidas e estudadas na história do
teatro ocidental. A partir dela, o filósofo grego Aristóteles cria a sua
Poética (2005), uma obra que, embora fosse apenas um parâmetro daquilo
que o filósofo entendia por características de uma tragédia – seu
funcionamento e sua função –, ao longo da história do teatro, ela foi tomada
como um princípio, muitas vezes, ortodoxo, que serviria como um
protocolo dogmático para os dramaturgos, amiúde, em épocas de
prevalentes classicismos. Entretanto, não se pretende aqui fazer uma análise
do drama de Sófocles voltada para o seu caráter basilar, ou mesmo
“fundacional”, como se as definições aristotélicas fossem princípios
inalienáveis que determinassem o texto. Definitivamente, não. O que se irá
propor é uma reflexão sobre as características verbais da obra que,
decisivamente, revelam sua dramaticidade, conforme o silêncio é rompido
pela tagarelice do Rei, mesmo que esse, o silêncio, já possua, de modo
latente, toda a potencialidade catártica do devir trágico e, ao mesmo tempo,
a anulação desse, num movimento de ambivalência, que faz das
impossibilidades da peça possíveis encruzilhadas de elucidação.

Com isso, buscar-se-á a vitalidade silenciosa da obra, do que não é dito


e de seu oposto, daquela fala trágica que, quando dita, impossibilita o
retorno, assim como a ação precipitada faz com que o imprudente não possa
revogar sua atuação e revele-se um péssimo intérprete de si mesmo,
conformando suas atitudes com a ingenuidade da pressa. Para tal, far-se-ão
análises de alguns diálogos entre as personagens, visto que este drama
clássico é oriundo, e uma das bases, do teatro mimético; das interações
metafísicas representadas – os diálogos entre o divino e o humano –, e da
verbalização fatídica do Rei Édipo que, quanto mais busca contar uma
história, recontando a sua própria e traduzindo-a para si mesmo e para
todos, mais se perde entre as palavras que lhe imputam, reconditamente,
uma sentença: o medo de não poder controlar seu próprio interior por ser
governado por forças exteriores.

Sendo o medo tanto uma constante na obra Édipo Rei (2017) quanto
no teatro trágico, como já anunciara Aristóteles:

É a tragédia a representação duma ação grave, de alguma


extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte
com o seu atavio adequado, com atores agindo, não
narrando, a qual, inspirando pena ou temor, opera a catarse
própria dessas emoções. (ARISTÓTELES, 2005, p.24)

Este conceito servirá de eixo convergente para forças tão distintas


como as do silêncio e as da tagarelice, ou fala constante, que, ainda que
sejam distintas, não se excluem e, sim, abastecem-se em diálogos
constantes entre o dito e o não dito. Desse modo, faz-se relevante expor o
medo, ou os medos, de modo elucidativo tal como observou o pai da
psicanálise Sigmund Freud:

A ‘ansiedade’ descreve um estado particular de esperar o


perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser
desconhecido. O ‘medo’ exige um objeto definido de que se
tenha temor. ‘Susto’, contudo, é o nome que damos ao estado
em que alguém fica, quando entrou em perigo sem estar
preparado para ele, dando-se ênfase ao fator surpresa.
(FREUD, 1996, p.22)

Para que se possa, ao longo destas páginas, ter um medidor das


categorias do medo, mas não como um princípio e, sim, apenas como um
guia, afim de que o silêncio possa seguir entre as estradas que tantas
palavras constroem, encerrando as outras possibilidades num rumor de
realizações a vir, quando o desmoronar de tais construtos verbais, com o
passar do tempo, der vez às ruínas que o silêncio acolherá genuinamente.
Os reis no silêncio
A princípio, e contrariando o título deste ensaio, a personagem
dramática, o rei Édipo, não se vale do silêncio como uma prerrogativa para
sua própria salvaguarda em seu percurso fatídico, mas, ao contrário, fala,
indaga, julga, questiona, insiste e persiste nas palavras que o destronarão,
ainda que esse detetive da ruína não o saiba, pois as constantes necessidades
de respostas, que carrega consigo, e de palavras, que moldam as primícias
do infortúnio, são as mesmas que comungarão com o silenciamento futuro,
para que uma outra possibilidade se apresente ao lado da fala: a ausência
dessa. Entretanto, a tagarelice do Rei faz parte tanto de sua necessidade de
(re)inventar uma história, deslocando a culpa latente para um outro, neste
caso, Creonte, irmão de sua esposa Jocasta, quanto do teatro mimético, que
mostra as personagens agindo e não narrando assim como Aristóteles já
observara (2005), dando, deste modo, o tom da representação e da negação.
E, mesmo assim, a peça Édipo Rei (2017), com tamanha comunicação – que
promove o desenrolar da história –, é um drama completamente atravessado
pelo silêncio: o inicial, cronologicamente, que surge com a ordem de morte
ao primogênito, e aquele após, que abre o drama, a constante necessidade
que Édipo tem de descobrir sua história para recobri-la de modo que as
intempéries certeiras sejam deslocadas de si de maneira sempre duvidosa.
Assim, o silêncio se torna ostensivo em um primeiro momento – não na
ordem como os fatos se apresentam, mas seguindo a cronologia total –, com
o silenciamento da origem de Édipo, quando esse é entregue à morte, após o
prognóstico de um oráculo de que o recém-nascido mataria o pai e casaria
com a mãe:

Não direi que Febo, mas um de seus intérpretes, há muito


tempo comunicou a Laio, por meio de oráculos, que um filho
meu e dele o assassinaria; pois apesar desses oráculos
notórios todos afirmam que assaltantes de outras terras
mataram Laio há anos numa encruzilhada. Vivia o nosso
filho seu terceiro dia, quando rei Laio lhe amarrou os
tornozelos e o pôs em mãos de estranhos, que o lançaram
logo em precipícios da montanha inacessível. (SÓFOCLES,
2017, p.54)

Havia uma previsão, terrível por sinal, de que o recém-nascido iria


contrariar todas as expectativas dos pais de modo irreversível, matando o
progenitor e casando com a mãe. Laio, com medo da consolidação dos
prognósticos divinos, manda assassinar o próprio filho, eximindo-se, assim,
de toda a responsabilidade para com o seu destino e com o de todos os
envolvidos – aparentemente, é mais fácil afastar um problema do que
aceitá-lo –, pois, se ele se prestasse a encarar a sentença divina, poderia,
talvez, evitar os acontecimentos que se sucedem na peça, mas, nem a
intenção de Sófocles, e muito menos a da tragédia, é ter um final feliz; nem
interromper a orquestração do declínio, e muito pelo contrário, o objetivo é
a queda perfeita, para que haja a catarse do espectador por meio dos
sentimentos de temor, quando esse se compadece com a vítimas, temendo
que um destino incontornável recaia sobre si, e de horror, quando se
percebe a desgraça infinita que se choca contra a personagem
involuntariamente desprezível, provocando o medo pungente de um poder
superior e inelutável, tanto dos deuses quanto do autor:

Como a estrutura da tragédia mais bela tem de ser complexa


e não simples e ela deve consistir na imitação de fatos
inspiradores de temor e pena – característica própria de tal
imitação – em primeiro lugar é claro que não cabe mostrar
homens honestos passando de felizes a infortunados (isso
não inspira temor nem pena, senão indignação); nem os
refeces, do infortúnio à felicidade (isso é o que há de menos
trágico; falta-lhe todo o necessário, pois não inspira nem
simpatia humana, nem pena, nem temor) tampouco o
indivíduo perverso em extremo tombando da felicidade no
infortúnio; semelhante composição, embora pudesse
despertar simpatia humana, não inspiraria pena, nem temor;
de tais sentimentos, um experimentamos com o infortúnio
não merecido; o outro, com relação a alguém semelhante a
nós; a pena, com relação a quem não merece o seu
infortúnio; o temor, com relação ao nosso semelhante; assim,
o resultado não será pena nem temor. (ARISTÓTELES,
2005, pp.31-32)

Desse modo, o silêncio revela-se como o regente da consolidação do


destino trágico do futuro rei, por meio não só da imprudência imediata de
Laio, que designa um de seus servos para matar o filho, ausência do fazer, o
que faz com que o deslocamento da ação, do rei ao servo, possibilite o não
assassinato; como também da marca vitalícia na criança, ausência de poder
– Édipo é aquele que só pode evitar infortúnios alheios, nunca o seu –, feita
pelo pai, os pés inchados, maltratados pelas cordas que o prendem e que
impedem e impedirão o infante de caminhar livremente, fadando-o a uma
vida cambiante e de resoluções tortuosas como um caçador de todas as
presas que, por excesso de fome e medo, põe muitas armadilhas ao redor e,
embora ceife as vidas que se aproximam, progressivamente, morre de
inanição antes mesmo de poder tocá-las, pois, não podendo desarmar a
expectativa do dano, é obrigado a esperar, sempre, a morte se aproximar,
sem poder satisfazer-se daquilo que apodrece aos seus olhos enquanto sua
sede, de alimento e de horror, aumenta.

O silêncio do primeiro rei e o imposto ao futuro podem ser percebidos


a partir do caráter violento e apressado de Laio, que, ao invés de tentar
resolver seu problema, interagindo com o divino de modo mais amplo,
resolve de súbito dar cabo da prole, sem ao menos avaliar possibilidades
outras, que não a excludente que, como o prólogo de uma vingança certeira,
retornará mais tarde, e desta vez decisivamente, para dar fim a uma vida, à
sua, quando Édipo o reencontrar em uma encruzilhada e pela hybris de Laio
e o não acovardamento de Édipo, também um tipo de hybris, os dois
entrarem em contenda e o rei ser assassinado pelas mãos do filho que,
outrora, fora lançado à morte pelo pai. Tal vingança silenciosa é o marco
que iniciará a previsão divina, ratificando a soberania dos deuses sobre os
humanos e a sublimação dos sentimentos pelo temor, ou pela intensificação
catártica do irrevogável cumprimento extraterreno.

Com isso, duas serão as grandes disputas da peça e três, os dispositivos


trágicos: de um lado, o pai manda matar o filho por causa de um oráculo,
primeiro dispositivo trágico e disputa (movimento exterior de expulsão); de
outro, o filho, não assassinado, reencontra o pai e se vinga, ainda que não o
saiba e acredite apenas estar lutando contra uma comitiva de insolentes,
segundo dispositivo e disputa (movimento interior de retorno); e, como
último dispositivo, a resolução do enigma da Esfinge, que promove a
salvação terrena do povo de Tebas e a ascensão régia de Édipo, a véspera de
sua derrocada, ou seja, da concretização da danação de origem metafísica: o
homem – a resolução do enigma – e o novo rei encontrar-se homem são a
conjugação de todas as profecias que outrora evitável não mais o é agora,
porque o animal de duas patas e de pés deformados só conseguirá lograr o
próprio infortúnio, e mesmo que se torne o salvador de um povo, ele será
sempre o destruidor de si mesmo, já que a linguagem que possui está atada,
pois a cisão entre a língua dos homens e a dos deuses, na peça, gera
conflitos incontornáveis e tal impasse pode ser elucidado em uma passagem
do filósofo alemão Walter Benjamin, quando ele atenta para as
especificidades das línguas no ensaio Sobre a linguagem em geral e a
linguagem dos homens (2011), de 1916:

O que comunica a língua? Ela comunica a essência espiritual


que lhe corresponde. É fundamental saber que essa essência
espiritual se comunica na língua e não através da língua.
Portanto, não há um falante das línguas, se se entender por
falante aquele que se comunica através dessas línguas. A
essência espiritual comunica-se em uma língua e não através
de uma língua, isto quer dizer que, vista do exterior, ela, a
essência espiritual, não é idêntica à essência linguística. A
essência espiritual só é idêntica à essência linguística na
medida em que é comunicável. O que é comunicável em
uma essência espiritual é sua essência linguística. Portanto, a
linguagem comunica, a cada vez, a respectiva essência
linguística das coisas; mas sua essência espiritual só é
comunicada na medida em que se encontra imediatamente
encerrada em sua essência linguística, na medida em que ela
seja comunicável. (BENJAMIN, 2011, p.52)
Em silêncio, Laio governava e era maior, assim como, em silêncio,
Édipo, também não menor, é o grande guerreiro capaz tanto de vencer uma
comitiva sozinho como de enfrentar a figura mitológica aparentemente
indevassável e superá-la: a Esfinge. Mas e quanto à linguagem e sua
inteligibilidade? Pode Édipo rei superá-la? Aquilo que Benjamin percebe, a
comunicabilidade na língua e não através dela, serve como fundamental
chave de leitura para o drama incestuoso e parricida: a comunicação
imediata só é inteligível dentro dos limites possíveis da língua, ou de uma
língua, mas a sua distensão essencial continua inacessível ao imediato,
sendo, desse modo, acessível apenas de modo mediato, parcial, e
indecifrável para os anseios humanos do agora. É porque a linguagem dos
homens não compete à dos deuses e vice e versa. Elas são protagonistas
que, em busca de conciliação, digladiam-se cada vez mais, ainda que os
sofredores sejam sempre aqueles cuja sentença evidencia-se tal qual uma
guilhotina sobre suas cabeças, delimitando-lhes o livre arbítrio, ou o
domínio da cognição, que achavam ter. Laio e Édipo são régios apenas em
silêncio, pois, quando a fala lhes toma, é apenas para lhes destronar, ainda
que se tente reverter os prognósticos por meio de deslocamentos, a
princípio, do fazer, Laio delega a outrem a atitude funesta ao invés de
consumá-la, e, após, do poder traçar o próprio caminho, Édipo, marionete
dos deuses, ou da linguagem, recursivamente inventa culpados para se
eximir de si mesmo, pois o outro é tudo o que se tem, mas que não se quer.

A intangibilidade da fala
Tagarelice e seu reverso andam juntos durante toda a trama, pois, se
por um lado há a história declarada de um herói “imbatível”, de outro há
uma outra história, frequentemente alterada, ou melhor, que se quer
contornada, a daquele que declinará independentemente de suas vontade e
força. Por esse motivo, a concomitância de “verdades”, faz-se necessário
atentar para a linguagem na peça, e não se diz em questões de tradução,
mas, sim, no que tange ao que é contado e quais são as relações entre o dito
e, principalmente, o não dito, o que se percebe na constante falta de
negociação entre a linguagem dos deuses e a linguagem dos homens, que
promove recursivamente a catástrofe, visto que, sempre que ocorre um
diálogo (in)direto entre tais polaridades, há algum tipo de desencontro
semântico entre as personagens, que parecem se perder quanto mais buscam
sentido nas palavras que lhes são ofertadas, ratificando, assim, a
(in)acessibilidade da linguagem dos deuses como reflexo daquela dos
homens, que, embora seja imediata (no plano físico), quando do contato
com os oráculos, é também mediata (no plano metafísico), pois o seu
sentido só será conformado em um tempo a vir e que não poderá ser
revogado, porque a profecia já terá sido cumprida, como na fala veemente
do Sacerdote que implora a Édipo que liberte novamente o povo de Tebas:

Tebas, de fato, como podes ver tu mesmo, hoje se encontra


totalmente transtornada e nem consegue erguer do abismo
ingente de ondas sanguinolentas a desalentada fronte; ela se
extingue nos germes antes fecundos da terra, morre nos
rebanhos antes múltiplos e nos abortos das mulheres, tudo
estéril. A divindade portadora do flagelo da febre flamejante
ataca esta cidade; é a pavorosa peste que dizima e gente e a
terra de Cadmo antigo, e o Hades lúgubre transborda de
nossos gemidos e soluços. Não te igualamos certamente à
divindade, nem eu nem os teus filhos que cercamos hoje teu
lar, mas te julgamos o melhor dos homens tanto nas fases de
existência boa e plácida como nos tempos de incomum
dificuldade em que somente os deuses podem socorrer-nos.
Outrora libertaste a terra do rei Cadmo do bárbaro tributo
que nos era imposto pela cruel cantora, sem qualquer ajuda e
sem ensinamento algum de nossa parte; auxiliado por um
deus, como dizemos e cremos todos, devolveste-nos a vida.
E agora, Édipo, senhor onipotente, viemos implorar-te,
suplicar-te: busca, descobre, indica-nos a salvação, seja por
meio de mensagem de algum deus, seja mediante a ajuda de
um simples mortal, pois vejo que os conselhos de homens
mais vividos são muitas vezes oportunos e eficazes.
(SÓFOCLES, 2017, p.20)
Agora, num segundo momento, o silêncio se apresenta como o
silenciamento necessário do rei, pois Édipo conta uma história, tentando
tanto inventá-la, enquanto (des)diz, quanto sobrepô-la ao verdadeiro drama
de sua vida. E, a partir desta passagem acima, pode-se perceber o momento
em que Édipo é apresentado como o herói salvador que ainda encontra-se
em silêncio. Mas com o pedido do sacerdote, a tagarelice se instaurará e a
salvação terrena de Tebas, de outrora, o desvendamento do enigma da
esfinge, será o início da desgraça de origem metafísica que se revelará à
medida em que as indagações começarem a aparecer e o medo do que fora
escrito pelo destino poderá ser percebido conforme as questões, dúvidas e a
constante, e exigente, necessidade de resposta surgirem, para que se possa
tentar desviar dos fatos e recriar os acontecimentos. Aí está o negativo de
Édipo, em termos daquilo que não se revela espontaneamente, mas, apenas,
de modo mediato, como se fosse o seu contrário: o ponto positivo do rei, a
salvação terrena pela resolução do enigma, que liberta o povo, ao mesmo
tempo aprisiona Édipo ao seu destino trágico, e negativo (ao que concerne a
uma verdade oculta ou que se quer ocultada), o cumprimento da profecia de
que ele se casaria com a mãe e assassinaria o pai e da sentença que ele
mesmo estabelecerá para o criminoso: o exílio:

O culpado é um devedor que não só não paga as vantagens


obtidas, as suas dívidas, como também ofende o credor: a
partir desse momento não só se priva de todos estes bens e
vantagens, como também será lembrada a importância
desses bens. A cólera do credor, isto é, da comunidade
ofendida, constitui-o outra vez ao estado selvagem, põe-no
fora da lei, recusa-lhe a proteção e contra ele pode já
cometer-se qualquer ato de hostilidade. O “castigo” é
simplesmente a imagem, a mímica da conduta normal a
respeito do inimigo detestado, desarmado e abatido, que
perdeu todo o direito não só à proteção, mas também à
piedade; é o grito de guerra o triunfo do vae victis em toda a
sua inexorável crueldade. Isto explica como a própria guerra
e os sacrifícios guerreiros revestiram todas as formas sob as
quais aparece o castigo na história. (NIETZSCHE, 2013,
p.70)
Desse modo, pode-se perceber que há uma soma de desgraças,
intervaladas apenas para que haja um acréscimo do dano (ou da dívida),
porque as vitórias de Édipo são sempre o seu contrário, são as vitórias deste
credor que se apõe ao devedor: se ele mata o adversário que lhe afronta,
esse não deveria morrer por ser seu pai, e se ele derrota a besta invencível,
essa não deveria ser vencida, ao menos não por ele, pois a glória que lhe
chega pelo ventre da “nova” mulher, Jocasta, é apenas um dos disfarces do
destino fatídico e inelutável: incesto e morte. Tais afrontas não podem ser
entendidas como o enaltecimento da crueldade, pois o novo rei não sabe
que suas conquistas são às avessas e, como aponta o filósofo francês René
Girard, Édipo não é culpado, ainda que o seja, dos infortúnios que trouxe
para o povo de Tebas, mesmo porque a arbitrariedade da divindade, nesta
história, é tamanha ao ponto de fazer com que os receptores temam
demasiadamente a palavra divina e o medo instaure-se em suas almas como
uma marca que não se quis, nem se pode escolher, tal qual o nome próprio
que lhe é dado ao nascer, neste caso, Oedipus, e que lhe define o caráter de
prisioneiro das forças metafísicas:

No mito, é um oráculo que precipita a crise entre os pais e o


seu filho recém-nascido. A voz divina anuncia que Édipo,
algum dia, matará seu pai e casará com sua mãe. Laio e
Jocasta decidem mandar matar o filho. Édipo escapa por um
triz da morte, mas é expulso pela própria família. (GIRARD,
2012, pp.160-161)

E:

Mas o objetivo da tragédia é o mesmo que o dos sacrifícios.


Trata-se sempre de produzir, entre os membros da
comunidade, uma purificação ritual, a catharsis aristotélica,
que não passa de uma versão intelectualizada ou sublimada,
como diria Freud, do efeito sacrificial original. (GIRARD,
2012, p.120)
Em dois polos distintos, o do drama de Édipo e o do mito em si, o
diálogo entre o que se apresenta como tal, de modo imediato, e o que vem
depois, de modo mediato, traduz a dupla negatividade, que se encontra no
drama, a decifração dolorosa do enigma trágico, a verdade mais pungente
que se poderia alcançar, e a violência mimética do mito em si, que não
propõe outro caminho a não ser o do medo absoluto de ser vítima perpétua,
condenada antes mesmo do nascimento e auxiliada divinamente à ruína,
pois entre o exprimível e o inexprimível a única certeza é o fundamento no
temor e o crescimento do horror por meio da revelação que porta a verdade
inalienável de um plano extraterreno, o das ideias, ou o dos deuses:

No interior de toda configuração linguística reina o conflito


do expresso e do exprimível com o inexprimível e
inexpresso. Ao considerar esse conflito, vislumbra-se na
perspectiva do inexprimível, simultaneamente, a última
essência espiritual. Ora, é claro que comparar a essência
espiritual à essência linguística implica contestar essa
relação de proporcionalidade inversa entre ambas. Pois a tese
aqui é a de que quanto mais profundo, isto é, quanto mais
existente e real for o espírito, tanto mais exprimível e
expresso; nesse sentido, é próprio dessa equiparação tornar
absolutamente unívoca a relação entre espírito e linguagem,
de modo que aquilo que existe com mais força na linguagem,
aquilo que está melhor estabelecido, aquilo que é, em termos
de linguagem, mais pregnante e inarredável, em suma, o que
mais se exprime, é ao mesmo tempo espiritual em sua forma
pura. É exatamente isso que significa o conceito de
revelação, quando toma a intangibilidade da palavra como
condição única e suficiente – e a característica – do caráter
divino da essência espiritual que nela se exprime.
(BENJAMIN, 2011, p.59)
A língua dominante sendo a divina é superior a qualquer tipo de
ordenação linguística que vise à reconstrução da trama. E isso ocorre
porque, como já fora demonstrado por Benjamin, a expressão do plano
divino na língua dos homens é cerceada pelos limites dessa, o que,
provavelmente, produz o impasse da comunicação entre o exterior
metafísico e o interior físico, conformando, assim, os dispositivos trágicos
que servem de gatilho, progressivamente, para a condenação final do herói
trágico por meio dessa intangibilidade da palavra que se revela, a saber, tal
como quando Laio e Jocasta travam comunicação com o oráculo e – ainda
que a verdade “superior” lhes seja ofertada – ela, a comunicação, se
desvanece na intangibilidade reveladora que não se faz entender de modo
assertivo; e como quando Édipo descobre o seu destino e foge,
inelutavelmente, para traçar um outro caminho no qual, a cada passo, ele
pretende afastar-se de sua “origem”, embora não saiba que seus pés
demarcam a trilha para a estrada inicial: deuses, arbitrariedade e mortes.

Conclusão
O que se quis mostrar neste capítulo foi o encontro entre elementos
completamente distintos, mas ao mesmo tempo interligados, tais como o
silêncio e a fala, os planos metafísico e físico, e os desencontros da
comunicação entre esses; o silêncio e o som que são atravessados pela
intangibilidade da fala, ao passo que o caráter revelador da palavra, da
forma, torna-se, muitas vezes, inatingível, gerando, desse modo,
dispositivos trágicos, a saber, gatilhos para a fundação da constelação de
caráter mortal: a inalterável ruína da casa do Rei, parricida, de Tebas, no
drama de Édipo Rei (2017). Tentou-se desse modo expor, ainda que
brevemente, alguns oximoros que, demais e paradoxalmente, se
aproximam, como o casamento eterno entre divorciados contínuos: forças
que competem por um lugar ausente, enquanto negociam suas presenças,
que serão intervaladas pela falta preenchida apenas com os possíveis
fragmentos de compreensão que, ademais, promovem de modo certeiro o
avesso daquilo que se busca quanto mais se busca, assim como a
orquestração prévia e o treino indicam a ordem que subjaz ao espetáculo,
mesmo que a sinfonia não agrade a todos ou a ninguém. O efeito catártico
será produzido independentemente da vilania opcional ou irracional das
personagens. Mas o que se quer refletir adiante é para que serve o medo
nesta teoria das emoções? O medo do intangível e inelutável, que faz da
personagem uma marionete dos deuses, ou da verdade? e que produz uma
constante vontade de fugir de si mesma? Esse refúgio que faz de Édipo o
(re)inventor de si e que constrói a história, sempre, de um Outro culpado,
como ocorre quando o rei projeta no irmão de sua esposa, Creonte, todas as
fúrias que procura repudiar em si, sem querer assumi-las, delimitando o
Outro à finitude estereotipada do ganancioso. Por conseguinte, e no
próximo ensaio, serão analisadas questões como o medo metafísico,
enquanto um medo de ser incontestavelmente marionete dos deuses, e a
necessidade das personagens de construir refúgios de salvaguarda, para que
elas não se autodestruam nem entrem em colapso com a domesticação
inescrutável de seus inconscientes, ao passo que tentam forjar um Outro,
reconstruindo as próprias existências, alterando as de Outros.

Referências
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética clássica. São
Paulo: Cultrix, 2005.

BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921).


Trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Ed. 34, 2011.

BLANCHOT, Maurice. Conversa infinita 1. Trad. Aurélio Guerra


Neto. São Paulo: Ed. Escuta, 2010.

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e


outros trabalhos. Trad. José Abreu e Christiano Oiticica. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.

GIRARD, René. Eu via Satanás cair como um relâmpago. Trad.


Martha Gambini. São Paulo: Paz & Terra, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Trad. Mário Ferreira


dos Santos. Petrópolis: Ed. Vozes, 2013.
SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono,
Antígona. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2017.
Dos folhetins ao Wattpad: Um
estudo da literatura de massa no
Brasil
Natália Barbosa Gomes Vago

Sumário

Introdução
Literatura de massa pode ser definida como:

A expressão literatura de massa designará na totalidade do


discurso romanesco tradicionalmente considerado como
diferente e opositivo ao discurso literário culto, consagrado
pela instituição escolar e suas expansões acadêmicas.
Incluem-se, assim, no universo da literatura de massa, o
romance policial, de ficção científica, de aventuras,
sentimental, de terror, a história em quadrinhos, o teledrama
etc. (SODRÉ, 1978, p.15)

A literatura de massa, no presente artigo, será dividida em quatro


categorias: folhetim, romance de banca, bestseller e Wattpad. Os folhetins
eram focados em histórias de amor açucaradas que seguiam o mesmo fio
narrativo: casais que se conhecem e passam por alguns percalços até
ficarem juntos com o famoso felizes para sempre, mesma fórmula seguida
por romances de banca, bestsellers e muitas histórias publicadas no
Wattpad, fórmula essa que parece fazer sucesso. Seria essa fórmula ditada
pelos leitores ou seriam os leitores a influenciar o mercado editorial?

Adorno já deixa uma pista:


O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de
fazer crer, ele não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto
(...). A indústria cultural abusa da consideração com relação
às massas para reiterar, firmar e reforçar a mentalidade
destas que ela toma como dada a priori e imutável. É
excluído tudo pelo que essa atitude poderia ser transformada.
As massas não são a medida, mas a ideologia da indústria
cultural, ainda que esta última não possa existir sem a elas se
adaptar. (1986, p.93)

Baseando-se nessa premissa, chega-se às seguintes questões: a


literatura de massa é guiada pelo mercado editorial? Será possível que o
mercado seja influenciado pelo gosto dos leitores? Os leitores podem ser
influenciados pelos livros que leem?

A literatura de massa, o mercado editorial e o


leitor
Segundo Santaella (2004, p.19), existem três tipos de leitores: o
contemplativo, o movente e o imersivo, sendo o primeiro pertencente ao
período Pré-revolução Industrial, nascido no Renascimento e na era do livro
impresso; o segundo é o leitor do período pós-Revolução Industrial, nascido
junto com o surgimento das grandes cidades, dos jornais
(consequentemente, dos folhetins), do cinema e da fotografia, da televisão e
da revolução eletrônica e o terceiro começa a emergir dos novos espaços
incorpóreos da virtualidade, em que se localizam os leitores do Wattpad.
Entretanto, embora haja uma mudança no tipo de leitor, o presente artigo
pretende se concentrar em um ponto específico: a literatura de massa, o
mercado editorial e a sua relação com o leitor.

Se houve um movimento de alteração nos tipos de leitores,


consequentemente, tem-se a modificação nos meios de publicação e escrita.
Houve no período romântico o desenvolvimento da imprensa e da indústria
do livro, criando um novo público que necessitava de um tipo acessível de
literatura, levando a criação dos folhetins, publicados nos jornais, de fácil
leitura e com preço acessível a uma grande parte da população. Na esteira
dos folhetins, já na segunda metade do século XX, surgem os romances de
banca, também acessíveis. O final do século XX trouxe à tona os
bestsellers. A atualidade fornece um novo suporte para leitura e à criação de
um novo tipo de público leitor, que consome, avidamente, uma literatura
rápida, com histórias superficiais e personagens pouco desenvolvidos.
Mesmo que seja objeto de crítica, não cabe questionar a qualidade estética
da literatura de massa, mas é fato que o ato de ler precisa partir de algum
lugar.

E essa cultura de se publicar romances considerados menores já surge


em meados do século XIX. Sodré assim descreve o folhetim:

Folhetim é, desde o início, o romance publicado no rodapé


dos jornais, por sua vez vendidos a preços baixos e com
grande tiragem. A expressão (roman-feuilleton) origina-se
no jornal La Presse, de Émile de Girardin, por volta de 1836.
O La Presse simboliza a imprensa industrializada francesa
do século XIX, pelo uso mais racional da publicidade e de
técnicas avançadas de impressão. A essa imprensa de grande
tiragem, germe da moderna indústria cultural, nasce atrelado
o folhetim – aquilo que Flaubert chamaria (em Bouvard et
Pécuchet) de “literatura industrial”. Trata-se, na verdade –
vale acentuar – de uma literatura não legitimada pela escola
ou por instituições acadêmicas, mas pelo próprio jogo do
mercado. (SODRÉ, 1988, p.10-11)

A partir desse momento, o termo folhetim passa a marcar também o


novo modo de publicação de romances. E, praticamente, toda a ficção em
prosa da época passa a ser publicada em folhetim para, depois, conforme o
sucesso alcançado, ser lançada em livro. Processo semelhante ao que
acontece no Wattpad: as histórias que alcançam sucesso dentro da
plataforma ganham formato físico por parte de editoras, sejam as mesmas
de pequeno, médio ou grande porte.

Os romances de bancas e bestsellers são considerados literatura de


massa diretamente derivadas do folhetim, o primeiro modelo de literatura
popular. Embora ambos sejam considerados literatura de entretenimento, o
romance de banca ainda é considerado inferior ao bestseller, não só pelo
local onde é vendido, mas também pelo número de páginas, qualidade do
material e enredo.

O modelo açucarado dos romances de banca e bestsellers inclui


também traços dos folhetins na produção em massa, na preocupação de
arrebatar um grande público e na padronização, além da ideia de uma
produção em série de modelos tão semelhantes que fazem o leitor aguardar
e procurar outro do mesmo estilo.

Entre as décadas de 1950 e 1970, no universo da literatura de massa


brasileira, reinavam absolutas as fotonovelas. O decaimento das vendas
acontece com o aparecimento e popularização de novas séries sentimentais.
Os anos 70 trazem as séries da Editora Nova Cultural Sabrina, Julia e
Bianca, que galgam grande sucesso. Grande parte das compras são
realizadas por leitoras, à semelhança dos folhetins.

A inovação dos suportes de leitura traz à tona o leitor imersivo,


nascido na era da internet e leitor não apenas de livros físicos, mas também,
de digitais. E aqui, encontrar-se-ão incluídos os livros do Wattpad,
plataforma de leitura online, definida como:

O Wattpad é, em muitos sentidos, a materialização de


componentes próprios da vida na pós-modernidade – é
abundante, líquido, fluido. Ao criar um perfil com
informações básicas, o usuário pode tanto explorar a escrita
quanto a leitura. A publicação na plataforma não passa por
nenhum tipo de seleção ou edição de conteúdo externo,
sendo editada apenas pelo criador da história, as narrativas
podem ser compartilhadas de forma serializada e toda a
edição do texto, até mesmo da capa, podem ser feitas na
própria plataforma em um modelo muito simples. Uma vez
no ar, esta história está disponível para qualquer usuário da
plataforma, sem nenhum custo envolvido. Como leitor, é
possível encontrar histórias através das tags e dos rankings
da plataforma, assim como votar e comentar nas histórias
que você está lendo. O Wattpad é um universo literário em
franca expansão. (SANTOS, 2015, p.16-17)

A universalização dos meios de ler levou à popularização da


plataforma entre a comunidade leitora, como ocorreu com as histórias
publicadas nos folhetins. Seguindo a fórmula da história de amor, com
muitas idas e vindas e um final feliz (fórmula utilizada à exaustão desde os
romances folhetinescos), a qualidade dessas obras é constantemente
questionada.

Bourdieu afirma:

Quem será o verdadeiro produtor do valor da obra: o pintor


ou o marchand, o escritor ou o editor ou o diretor de teatro?
A ideologia da criação, que transforma o autor em princípio
primeiro e último do valor da obra, dissimula que o
comerciante de arte (marchand de quadros, editor etc.) é
aquele que explora o trabalho do criador fazendo comércio
do sagrado e, inseparavelmente, aquele que, colocando-o no
mercado, pela exposição, publicação ou encenação, consagra
o produto – caso contrário, este estaria votado a permanecer
no estado de recurso natural – que ele soube descobrir e
tanto mais fortemente quanto ele mesmo é mais consagrado.
(2006, p.22)

Na atualidade, seguindo o sucesso da trilogia Cinquenta Tons de


Cinza, houve, não só no Wattpad, mas no mundo editorial, um boom dos
romances eróticos e muitos autores (nacionais ou não), na esteira do
sucesso do primeiro, começaram a escrever sobre o gênero, seguindo a
fórmula do CEO possessivo e da mocinha ingênua. Alguns lograram
sucesso, sendo lançados por grandes editoras, outros se autopublicaram na
Amazon ou em plataformas como Wattpad, mostrando que há vários
caminhos para se chegar ao leitor e publicar um livro, conforme afirma
Schollhammer:

(...) a geração de escritores para os quais as editoras


deixaram de ser a única e principal fonte empregadora e a
literatura apenas uma entre um leque de atividades de
escritor, que agora atua em todos os campos possíveis, da
imprensa aos meios de comunicação passando pelo cinema,
pela televisão, pelo teatro e pela produção de textos para os
sites virtuais. (2009, p.62)

Ao que Bourdieu complementa:

[...] a constituição da obra de arte como mercadoria e a


aparição, devido aos progressos da divisão do trabalho, de
uma categoria particular de produtores de bens simbólicos
especificamente destinados ao mercado, propiciarem
condições favoráveis a uma teoria pura da arte – da arte
enquanto tal -, instaurando uma dissociação entre a arte
como simples mercadoria e a arte como pura significação,
cisão produzida por uma intenção meramente simbólica e
destinada à apropriação simbólica, isto é, a fruição
desinteressada e irredutível à mera posse material. Demais, é
preciso acrescentar que a ruptura dos vínculos de
dependência em relação a um patrão ou a um mecenas e, de
modo geral, em relação às encomendas diretas – processo
correlato ao desenvolvimento de um mercado impessoal e à
aparição de um público numeroso de compradores anônimos
de ingressos de teatro ou de concerto, de livros ou quadros,
propicia ao escritor e ao artista uma liberdade que logo se
lhes revela formal, sendo apenas a condição de sua
submissão às leis do mercado de bens simbólicos, vale dizer,
a uma demanda que, feita sempre com atraso em relação à
oferta, surge através dos índices de venda e das pressões,
explícitas ou difusas, dos detentores dos instrumentos de
difusão, editores, diretores de teatro, marchands de quadros
(1974, p.103-104).

Ou seja, desde os folhetins romanescos do século XIX, passando pelos


romances de banca e chegando aos autores da internet, nunca se escreveu
tanto e foi tão fácil publicar. O que determina se uma obra é boa ou não no
mercado editorial não é a sua qualidade, mas, sim, as suas vendas. E basta
um pequeno tour virtual pelo Wattpad para perceber que a literatura de
massa é a que alcança maior sucesso. Sobre o folhetim, Candido (1993,
p.98) afirma que o Romantismo encontrou no folhetim o veículo ideal para
o gênero, pois tem a emoção fácil, pressa das visões e do amor,
simplificação das palavras, originando histórias que eram fáceis de serem
lidas e angariava um novo público leitor para os jornais: o feminino.

Segundo Aranha e Batista:

O folhetim se tornou, então, uma das principais formas de


entretenimento textual das camadas populares na época da
Revolução Industrial. Velozmente, este modelo penetrou e
marcou toda a produção literária voltada para o consumo em
massa, revelando-se um dos maiores motores da indústria
editorial contemporânea. (ARANHA; BATISTA, 2016)

À maneira dos folhetins, em que os capítulos eram publicados um por


um, gerando expectativas e levando os leitores a comprar o jornal
diariamente, os capítulos no Wattpad seguem à risca essa receita, criando no
público a necessidade de acompanhar o livro ao longo de toda a sua
publicação e permitindo, também, que os leitores interajam com os autores,
comentando os textos e mantendo um contato muito mais próximo. Talvez
seja isso, também, que crie um vínculo mais forte com autores que
produzem literatura de massa e a leve a ser mais consumida. Sendo assim,
a exemplo dos romances eróticos, muitas vezes, o mercado editorial dita o
que vai ser lido e escrito. Deve-se, também, levar-se em consideração a
maneira como a literatura de massa influencia na formação do leitor.

Para Paulino:

A formação de um leitor literário significa a formação de um


leitor que saiba escolher suas leituras, que aprecie
construções e significações verbais de cunho artístico, que
faça disso parte de seus afazeres e prazeres. Esse leitor tem
de saber usar estratégias de leitura adequadas aos textos
literários, aceitando o pacto ficcional proposto, com
reconhecimento de marcas linguísticas de subjetividade,
intertextualidade, interdiscursividade, recuperando a criação
de linguagem realizada, em aspectos fonológicos, sintáticos,
semânticos e situando adequadamente o texto em seu
momento histórico de produção. (2004, p.56)

É notório que todo leitor se inicia no mundo da leitura a partir de um


gênero específico, assim sendo, até que ponto a literatura de massa pode
ajudar na formação de um leitor crítico e reflexivo conforme o citado por
Paulino? Por que o público se sente tão atraído por um tipo de literatura que
é considerada menor?

Há a necessidade de se discutir a literatura de massa, não pela


qualidade literária que possa apresentar, mas sim pelo que representa e
significa para o leitor médio brasileiro, ou seja, aquele que não é o
consumidor de literatura clássica, já que, muitas vezes, exige
conhecimentos específicos, um vocabulário mais culto e tem uma
linguagem menos acessível e que, consequentemente, atrai menos. Assim, o
leitor opta pela literatura de massa, que, geralmente, entende sem nenhuma
dificuldade e nada mais lhe exigirá senão a leitura por entretenimento.

Segundo Paes:
Numa cultura de literatos como a nossa, todos sonham ser
Gustave Flaubert ou James Joyce, ninguém se contentaria
em ser Alexandre Dumas ou Agatha Christie. Trata-se
obviamente de um erro de perspectiva: da massa de leitores
destes últimos autores é que surge a elite dos leitores
daqueles, e nenhuma cultura realmente integrada pode se
dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literatura de
proposta, uma não menos vigorosa literatura de
entretenimento. (1990, p.37)

Ou seja, todo leitor parte de algum lugar. Ninguém nasce lendo Tolstói
ou Kafka. E a literatura de entretenimento não impede que, futuramente,
esse leitor passe a desfrutar de uma literatura de proposta. Estudar o
impacto da literatura de massa na formação do leitor ajuda no
entendimento da sociedade, conforme afirma Culler:

(...) a razão para estudar a cultura popular é entrar em


contato com o que é importante para as vidas das pessoas
comuns — sua cultura — em oposição àquela dos estetas e
professores. Por outro lado, há um forte ímpeto de mostrar
como as pessoas são conformadas ou manipuladas, por
forças culturais. Em que medida as pessoas são construídas
como sujeitos pelas formas e práticas culturais que as
"interpelam" ou se dirigem a elas como pessoas com desejos
e valores específicos? (1997, p.51)

Ler uma literatura considerada inferior não impede que, mais tarde,
esse leitor passe a consumir uma literatura mais rebuscada, entretanto, a
busca constante por histórias de amor com um final feliz pode servir como
base para uma pesquisa mais aprofundada do perfil desses leitores que, na
sua maioria, é formado por mulheres. Estariam os leitores sendo
influenciados por aquilo leem ou buscam na leitura aquilo que falta em suas
vidas?

Sobre isso, Eagleton diz:


Afinal, sabemos que as pessoas não acreditam em tudo o que
veem ou leem, mas precisamos também saber muito mais
sobre o papel que esses efeitos têm em sua consciência geral,
muito embora tal estudo crítico fosse considerado,
politicamente, apenas uma operação secundária. (1997,
p.296)

Jauss afirma que para que a literatura chegue a sua plenitude é


necessário que a experiência literária do leitor penetre o horizonte de
expectativa de sua vida prática, pré-formando seu entendimento do mundo
e, assim, retroagindo sobre seu comportamento social, ou seja, deve
impactar o leitor de tal forma que isso modifique o seu comportamento
(1994, p.50). A procura de finais felizes na literatura de massa pode refletir
a própria busca do leitor.

Considerações finais
Mais que fazer da leitura apenas o caminho do lúdico, os leitores
interatuam com os textos, envolvem-se e muitas vezes buscam estabelecer
relações entre as suas experiências pessoais e as formulações ficcionais.
Quando inicia a leitura, o leitor prova uma sensação: envolve-se com a vida
do outro, tornando a relação entre os dois sujeitos, o leitor e o texto,
dialógica, já que, durante a leitura, o leitor troca a própria subjetividade por
outra, deixando, momentaneamente, suas necessidades e é tomado pelo
desconhecido, trazendo para perto de si algo estranho, instante em que
prova a alteridade como se fosse ele mesmo, colocando-se no lugar do
outro, mas sem nunca deixar o mundo real, que a leitura toma como pano
de fundo para que o texto tenha sentido.

O leitor tem consciência de que a literatura de massa traz situações e


modelos de personagens praticamente impossíveis de serem encontrados
realidade. Nem sempre o final vai ser feliz ou vai se encontrar o amor de
sua vida, mas, geralmente, essas situações servem como pontapé para uma
transformação de cotidiano. Tem pessoas que leem para escapar da
realidade, mas também há pessoas leem simplesmente porque gostam. Ao
fantasiar através dos livros, o leitor encontra no campo da imaginação o que
a realidade não proporciona.

Há uma dicotomia que permeia esse artigo: de um lado estão os


objetos, a literatura de massa e toda a sua carga de manipulação
mercadológica; do outro, os usos que os leitores fazem dela. É preciso
ressaltar que a literatura de massa é fruto de um cuidadoso e meticuloso
trabalho de marketing, em que os textos são devidamente encomendados a
escritores (muitas vezes há o trabalho de ghost writers) e orientados para
seguir uma determinada linha de produção, com um enredo já batido e final
previsível, cujo objetivo é alcançar um grande número de exemplares
vendidos e dar aos leitores exatamente o que procuram: o felizes para
sempre em forma de livro.

Apesar dos fatores que levam a uma visão da literatura de massa


como produto de entretenimento sem possibilidade de valorização, essas
histórias não podem ser pensadas de maneira unilateral. O fascínio que
exercem sobre os leitores juntam vários aspectos que escapam de uma
explicação simplista e percorrem caminhos reveladores. Mais que o produto
em si, a forma como o leitor se relaciona com o livro faz com que o exame
da literatura de massa assuma novas perspectivas. O processo de ler produz
significados e sentidos que podem interferir na vida dos leitores. E esses
sentidos são ressignificados de forma a refletir os valores dos leitores. Não
serve apenas como entretenimento, encontra-se nela também o contato com
a palavra escrita. Para alguns leitores, a diversão encontrada na leitura, mais
que escapismo, é o início para pequenas mudanças: ler e recomendar os
livros pode ser o começo de uma cultura letrada no Brasil.

Estudar a literatura de massa pode ajudar a entender a complexidade


das relações criadas entre leitores e obras, procurando compreender como
lidam com esses textos e levar a abertura para um trânsito maior de obras
literárias entre um público mais extenso. Talvez assim, o leitor de romances
de massa passe a se interessar por outros gêneros, fazendo com que a
cultura letrada conquiste novos adeptos e deixe pertencer, exclusivamente, à
elite intelectual.
É difícil chegar a uma conclusão sobre a literatura de massa, como a
crítica deve recebê-la e a maneira como a literatura de entretenimento e a
sua oposição à chamada alta literatura não se encerram em um artigo. O
que se pode fazer é tentar percorrer esse sinuoso e acidentado caminho,
tropeçando em obstáculos que mostram que a dicotomia do presente artigo
nada mais é que a conclusão de que não há felizes para sempre quando se
trata de analisar as relações entre a literatura de massa, o mercado editorial
e a formação do leitor.

Referências
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Disponível em: [http://www.redalyc.org/pdf/374/37417104.pdf]. Acesso
em: 02 ago. 2018.
A representação homoerótica na
literatura brasileira: Um vazio
discursivo do século XIX ao fim do
XX
Sandro Aragão Rocha

Sumário

Com a chegada dos europeus nas terras que posteriormente ficariam


conhecidas como Brasil, houve, como já sabemos, um choque cultural entre
os portugueses e os povos que já viviam aqui. Pero Vaz de Caminha falou
sobre a beleza paradisíaca dessas terras tratadas como novas, assim como
da “pureza” dos indígenas por conta da falta de pudor, sob a ótica cristã,
com a sua nudez. Aparentemente, para os europeus, o primeiro desconforto
com a diferença cultural foi sobre a forma como os índios lidavam com seu
corpo e com sua própria sexualidade. João Silvério Trevisan, em seu livro
Devassos no Paraíso, traz diversos registros de como algumas tribos
indígenas lidavam bem com o que chamamos hoje de transexualidade, ou
até mesmo com mulheres assumindo papeis tidos como masculinos e
homens assumindo papéis tidos como femininos, sem que essas ações se
configurassem como um problema social (TREVISAN, 2018, p.62).

A partir de então foi criada no Brasil diversas ferramentas para que a


prática homoerótica sofresse coerção. Era necessário, a todo custo, que a
sodomia, tratada como um dos piores pecados na época, fosse extinta. Para
isso, a Inquisição visitou o Brasil diversas vezes, tendo em vista que no
período um dos “pecados” mais praticado aqui eram os relacionados ao
desvio sexual.

O tempo passou e, no século XIX, o discurso para combater a prática


homoerótica mudou: deixou de ser religioso e passou a ser científico. Foi
nesse momento que a nomenclatura “homossexualismo” foi criada,
trazendo consigo uma carga patológica para aqueles que desejavam pessoas
do mesmo sexo. Apesar de deixar de ser tratado como um crime, essa forma
de desejo ainda carregava um grande peso negativo na sociedade, sendo
muitas vezes tratada como doentio e imoral.

Para João Silvério Trevisan, “a ideologia higienista deu um passo


adiante em reação aos métodos da Inquisição, que praticava um controle
relativo. Agora, pretendia-se o exercício de um controle através e em nome
da ciência, que a tudo presidia com uma suposta aura de neutralidade”
(TREVISAN, 2018, p.170). Ou seja, a ciência, ao contrário da religião,
como uma verdade que buscava a neutralidade, a imparcialidade dos fatos,
tinha ainda mais força para colocar a prática homoerótica em um lugar de
“não naturalidade”, como se amar iguais fosse um erro genético, cognitivo
ou um desvio da natureza com a possibilidade de “cura/conserto”.

Ironicamente, ou não, foi nesse mesmo período de ascensão da ciência,


com a entrada da escola literária Naturalismo, que foi lançado Bom-crioulo
(1985), de Adolfo Caminha, obra tratada como o primeiro romance
homoerótico no Brasil.

Esse romance conta a história do marinheiro negro Amaro, que, no


desenvolver da narrativa, se apaixona pelo jovem branco marinheiro
Aleixo. O protagonista, tomado pelo sentimento, inicia o menino
sexualmente, o forçando a ter relações sexuais. O livro, apesar de muito
transgressor para sua época, trata a questão como algo não natural, tanto
que no fim do romance, Aleixo, após conhecer uma senhora apresentada
por Amaro, acaba “desenvolvendo” seus instintos naturais de homem e
passando a ter relações com a mulher, culminando no fim do livro: Amaro
mata os dois movido pelo ciúme.

Para João Silvério Trevisan, durante o fim do século XIX,

nossos escritores incorporaram-se à luta pela ‘renovação das


estruturas sócias e pelo reforço da identidade nacional’. Tal
‘missão civilizatória’ acabou aproximando o discurso
literário do discurso médico, na tentativa de trazer à tona os
desvãos mais escuros da sociedade, para assim reabilitar
(leia-se: controlar) o desviante. Correspondendo a esse
esforço de codificação da marginalidade social por parte da
medicina, surgiram na literatura naturalista (tão obediente
aos ditames científicos) os primeiros personagens claramente
caracterizados dentro de uma relação homossexual. (2018,
p.242)

Duas obras que confirmam a afirmação de Trevisan são O Ateneu


(1888), de Raul Pompéia, e O cortiço, de Aluísio Azevedo. O primeiro traz
de forma mais clara uma relação homoerótica entre dois personagens:
Sanches e Sérgio. A forma como retrata o desejo dos dois perpassa sempre
pelo olhar do desvio, da fraqueza, como algo que atenta à natureza,
compactuando com o discurso médico sobre a relação entre pares na época.
O segundo dá um passo à frente, se comparado com O ateneu, pois traz três
personagens que demonstram ter esse desejo: um rapaz, uma menina e uma
senhora. O primeiro, cujo nome é Albino, é um garoto que é sempre
caçoado pelos outros por conta do seu jeito feminino, além de ser
estereotipado pela narrativa como se ser homossexual ocupasse sempre essa
esfera do homem com trejeitos femininos. As outras duas personagens se
trata de Léonie, uma senhora que busca ensinar a menina Pombinha sobre a
vida sexual na prática. A questão das duas durante a história é que os
adjetivos utilizados para narrar a relação das duas paira a ideia de desejo
selvagem, instintivo, descontrolado e/ou animalizado.

Voltando para Bom-Crioulo, apesar de ser considerada a primeira obra


homoerótica no Brasil, Antônio de Pádua Dias Silva1 (2012) aponta que
ainda não há um consenso sobre esse fato, já que alguns pesquisadores
expõem que no romantismo brasileiro já havia textos que narravam sobre as
relações homoeróticas. Um exemplo é o poeta Junqueira Freire, que
escreveu alguns poemas que abordavam essa temática. Para ilustrar o que
estamos dizendo, confiramos o poema “A um moiçolo” do poeta citado:
1 Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual da Paraíba e pesquisador dos Estudos Homoeróticos.

Eu que te amo tão deveras,


A quem tu, louro moçoilo,
Me fazes chiar e amolas,
Qual canivete em rebolo;
Eu que, qual anjo, te adoro,
Então, menino, eu sou tolo?

Quem te venera e te serve,


Te serve de coração;
Quem a nada mais atende,
Senão à sua paixão;
Quem sustém por ti a vida,
Tolo não pode ser, não.

Apesar de nossas pesquisas, não encontramos nenhuma fonte que


informasse o ano de publicação do poema. Porém, sabendo que Junqueira
Freire viveu entre 1832 e 1855, tomemos como referência esse recorte
temporal. Quanto ao poema, percebe-se logo de início que o texto é
endereçado a um rapaz. O eu lírico se diz apaixonado, apesar do “moçoilo”
o achar um tolo. O que denuncia no poema a relação de desejo,
aparentemente, não correspondido de um homem por um rapaz é
exatamente a palavra “tolo”, marcada pela flexão de gênero masculina. No
poema não fica explícito, mas tomaremos como chave de leitura a
possibilidade de “tolo” está sendo usado como referência negativa ao desejo
do eu lírico por uma pessoa do mesmo sexo, já que o escritor se utiliza da
repetição dessa palavra, pondo-a em contraponto a aspectos positivos do
seu amor pelo rapaz — te amo, te adoro, te venero, te sirvo — para mostrar
que tolo ele não pode ser. Ou seja, o “moiçolo”, que é objeto do desejo do
eu lírico, o vê como tolo exatamente por ser um homem desejando outro,
apontando para o sentido de que essa forma de desejo é inconcebível.

Após criar esse contraponto, Antônio de Pádua Dias Silva defende que
o título de obra fundadora da literatura homoerótica no Brasil ser Bom-
Crioulo se dá por algumas especificidades, como podemos ver no seguinte
fragmento:
As estórias de Bom-Crioulo e “O menino do Gouveia” são
fundamentais para se pensar a literatura brasileira de
temática gay, porque não só despertam no leitor o aspecto
político para o qual apontamos, mas, sobretudo, expõem o
universo da subcultura gay: a forma como a sociedade pensa
essa subcultura, sem deixar de exibir o sujeito gay na sua
particularidade, sendo descrito/narrado através de recursos
técnicos próprios de uma arte que se centra na sua gramática,
na sua sintaxe, no seu código, como é a literatura de ficção,
encerrando na ficcionalização do discurso aspectos de
desejos filtrados pelo olhar gay, não como afronta a uma
norma, a uma prática, a um dado cultural, mas como
mecanismo de visibilização de aspectos até então não
representados (e rechaçados), seja no contexto material-
empírico da sociedade, seja na representação literária.
(SILVA, 2012, p.88)2
2 Em 1914, na revista Rio Nu, foi publicado “O menino do Gouveia”, de autor anônimo, cujo pseudônimo era Capadócio Maluco. James N. Green e Ronald Polito (2006)
colocam esse conto como o primeiro texto a retratar o homoerotismo de forma pornográfica no Brasil, inclusive, narrando as relações homoeróticas sem trazer toda a carga moralista
do período em que foi escrito.

Em seu romance, Adolfo Caminha traz de forma direta a relação entre


dois homens, o que causou bastante espanto e rebuliço na época para os
leitores. Inclusive, anos mais tarde, a marinha solicitou que fosse proibida a
reedição do livro. No caso, essa obra se difere das que trataram
anteriormente do tema porque “a representação da homossexualidade
adquire um elemento central na narrativa, não sendo um dado circunstancial
ou estereotipado, como vamos ver em tantas outras obras da literatura
brasileira pelo século XX adentro” (LOPES, 2002, p.36). Para dar base a
afirmação de Denilson Lopes, podemos voltar aos dois romances que já
comentamos aqui: O ateneu e O cortiço. As duas trazem em suas linhas
relações homoeróticas, porém os personagens são diluídos dentro do
enredo, sem ganhar espaço, protagonismo ou aprofundamento dentro da
obra.

Com a entrada do modernismo, se passou a ter mais textos com


abordagem homoerótica, apesar de, segundo Denilson Lopes, haver o
predomínio de homotextos curtos, em sua maioria contos, escritos de forma
isolada nas obras dos escritores. Além disso, predominava “o silêncio sobre
a problemática e, quando visível, persistia a afirmação de estereótipos
risíveis ou de imagens do desejo homoerótico como algo impossível,
destinado ao fracasso, com poucas exceções de qualidade” (LOPES, 2002,
p.32). Nesse sentido, mesmo com as experimentações dos modernistas de
1922 e 1930, as estruturas do que era tratado como literatura pouco se
modificaram, tendo sido apenas problematizada e alargada a constituição da
identidade nacional (LUGARINHO, 2008, p.10). Com isso, é possível
afirmar que no modernismo, apesar de ter havido um alargamento das
representações homoeróticas, havia um problema: existia um vazio
discursivo constante nesse tipo de produção, pois, assim como afirma Mario
Cesar Lugarinho, “não se encontrava obra, dentro e fora do cânone, em que
o homossexual não fosse uma mera representação, um simples tipo, uma
caricatura. Naquela altura, distinguimos uma ‘literatura de ‘representação
homossexual’ de uma ‘literatura de subjetivação gay’3 (2008, p.16)”.
3 “Literatura de representação homossexual” seria referente a literaturas em narram as relações homoeróticas de forma estereotipada e sem grandes aprofundamentos, enquanto a
“literatura de subjetivação gay” se refere a literaturas que retratam essas mesmas relações de forma não estigmatizante ou estereotipada, dando vasão para o aprofundamento dos
personagens homossexuais e de suas relações de desejo/afeto homoerótico.

Horácio Costa (2010), em seu artigo “O cânone impermeável:


Homoerotismo nas Poesias Brasileiras, Portuguesas e Mexicanas do
Modernismo”, compara a recepção de poesias homoeróticas no período do
modernismo em Portugal e no México com o Brasil. No artigo, Horácio
Costa mostra como em Portugal e no México os escritores que abordaram
em seus textos as relações homoeróticas, apesar de não terem sido bem
recebidos pela crítica e pelos leitores da época, tiveram a
possibilidade/liberdade de retratarem o amor entre iguais. No Brasil, ao
contrário, pairou o silêncio e a censura sobre os escritores que decidiram
abordar esse tema.

Para exemplificar esse silêncio no modernismo brasileiro quanto a


conteúdos homoeróticos, Horácio Costa se utilizou de dois fatos ocorridos
com Mario de Andrade. O primeiro se refere a uma publicação de Oswald
de Andrade diminuindo Mario de Andrade por seu jeito feminino e por sua
suposta homossexualidade, o que culminou no corte de relação entre os
dois. O segundo tem a ver com o que motivou Mario de Andrade a suprimir
um verso de caráter homoerótico do seu poema “Girassol da Madrugada”,
influenciado por Manoel Bandeira. Os dois poetas trocaram algumas
correspondências para dialogar sobre o poema de Mario, e em uma das
cartas Bandeira dizia que o verso, antes da substituição, era impublicável.

Para exemplificar rapidamente o ocorrido quanto a substituição do


verso, leiamos o fragmento do poema de Mario de Andrade:

Tive quatro amores eternos…


O primeiro era uma donzela,
O segundo… eclipse, boi que fala, cataclisma,
O terceiro era a rica senhora,
O quarto és tu… e eu afinal me repousei dos meus
[cuidados.
(ANDRADE, 2017, p.205)

Para Horário Costa, o poema tem um tom confessional, permitindo que


seja lido sob a chave de um texto autobiográfico, nos levando a crer que
Mario de Andrade estava falando de experiências que realmente
perpassaram sua vida. Com a forma em que Mario substituiu o terceiro
verso, “eclipse, boi que fala, cataclisma”, cria-se a impossibilidade de ler o
segundo “amor eterno” do poeta, que supostamente é um homem, causando
na leitura uma sensação de texto cifrado, e camuflando parte da sua vida
que, na opinião de Bandeira, era melhor se manter oculta. Esse verso é,
inclusive, como se o poeta dissesse:

não revelo (antes eclipso) o meu segundo amor eterno, mas


indico, pelo contraste entre este verso e os que enquadram,
que ele provém de outra área da experiência, do insólito ou
do interdito (um boi que falasse... afinal, seria a «revolução
dos bichos», el mundo al revés). (COSTA, 2009, p.288)

Infelizmente Mario de Andrade teve que esconder seus versos


“confessionais” para consentir com “os bons costumes” de sua época, bem
como se silenciar diante da censura de seus colegas de geração, mesmo que,
contraditoriamente, estes estivessem imbuídos com um discurso de
subversão que, como bem disse Mario Cesar Lugarinho, só repensou e
alargou a constituição da identidade nacional.

Saindo da primeira fase do modernismo e seguindo para década de


1960/1970, os personagens homoeróticos ganharam mais representatividade
na literatura. Foi nesse período em que o amor entre iguais passou a ser
narrado, de fato, como amor. Foi também nesses anos que eclodiu o
movimento homossexual e que houve a chegada, de acordo com Emerson
Inácio (2002), dos Estudos Gays e Lésbicos no Brasil, o que proporcionou
que o olhar negativo sobre a homossexualidade, que permeou o século XIX
e parte do século XX, começasse a ser desconstruída de forma mais
significativa; e permitindo também recorrência maior do assunto em
trabalhos dentro da academia. Isso proporcionou que uma revisão do
substantivo homossexual/gay fosse proposta, indicando a substituição por
outros termos que não trouxessem historicamente os significados e as
ideologias pejorativas da palavra em questão, como, por exemplo, o termo
homoerotismo4.
4 “o homoerotismo [...] é um conceito abrangente que procura dar conta das diferentes formas de relacionamento erótico entre homens (ou mulheres, claro), independentemente
das configurações histórico-culturais que assumem e das percepções pessoais e sociais que geram, bem como da presença ou ausência de elementos genitais, emocionais ou
identitários específicos. Trata-se, pois, de um conceito capaz de abarcar tanto a pederastia grega quanto as identidades gays contemporâneas, ou ainda tanto relações fortemente
sublimadas quanto aquelas baseadas na conjugalidade ou na prostituição, por exemplo.” (BARCELLOS, 2006, p.20)

Uma década depois eclode a epidemia do HIV/Aids. Marcelo Secron


Bessa (2002), em seu famoso livro Os perigosos: autobiografias e aids, diz
que nesse mesmo ano, como uma resposta a epidemia, surgiu um
movimento literário chamado “literatura da AIDS”. “Sob essa alcunha,
observa-se, em diversos países e culturas, toda uma variedade de textos,
estilos, gêneros, propósitos e resultados, muitas vezes diferentes e
desiguais, mas que têm algo em comum: a Aids como tema” (BESSA,
2002, p.9). A questão do HIV teve tanta repercussão, que outros escritores,
que não necessariamente fizeram parte desse movimento literário, também
abordaram sobre a doença.

Um desses escritores, e um dos mais conhecidos, foi Caio Fernando


Abreu. Em seus livro Os dragões não conhecem o paraíso (1988) e
Pequenas epifanias (1986) — neste último, inclusive, encontramos crônicas
em que Caio expõe ser soropositivo no jornal O Estado de São Paulo —
têm diversos contos/crônicas que narram relações homoeróticas, além de
tematizar personagens com HIV. Em uma entrevista concedida ao Marcelo
Secron Bessa (1985), Caio deixa claro, por trás de suas palavras, como a
epidemia do HIV/Aids o influenciou em sua vida pessoal e,
consequentemente, em sua obra: “o que é que se faz quando aquilo que era
possibilidade de prazer – o toque, o beijo, o mergulho no corpo alheio capaz
de nos aliviar da sensação de finitude e incomunicabilidade – começa a se
tornar possibilidade de horror? Quando amor vira risco de contaminação”
(BESSA apud ABREU, 1985, p. 30). Essa afirmação de Caio, cabe dizer,
dialoga diretamente com Susan Sontag, em Doença como metáfora, Aids e
suas metáforas, em que ela discorre sobre como o HIV acaba sendo uma
doença que mata o indivíduo socialmente, o desumanizando para a
sociedade (SONTAG, 2007, p.108).

Por Caio sempre ter tocado em temas que não eram considerados
literários, como homossexualidade, drogas, sexo, entre outros, o escritor foi
mantido à margem da crítica. Porém, em 1994, após levar a público sobre
sua sorologia, a mídia acabou o colocando em evidência. “A Aids foi além
da literatura de Caio, mas, principalmente, pela mistura e, às vezes,
superposição da vida sobre a obra que a Aids propiciou” (BESSA, 2002,
p.30), e isso porque, após saber ser positivo, sua vida se tornou mais
importante do que sua obra para os meios de comunicação.

Dessa forma, após termos feito esse panorama sobre como o cânone
literário lidou com obras que abordassem a temática homoerótica, tendo em
mente que houve um silenciamento discursivo até o fim do século XX, fica
em evidência o fato de que até meados da década de 1970/1980 não
tínhamos muitos escritores que abordassem em sua literatura relações
homoeróticas que permitissem o aprofundamento da subjetividade desses
personagens. Esse cenário só começa a mudar com o surgimento de
escritores como Silviano Santiago, o próprio Caio Fernando Abreu, João
Gilberto Noll, Lucio Cardoso, entre outros, que ganharam espaço dentro do
cenário literário nacional, rompendo, de certa forma, a barreira que havia no
cânone com escritores/obras que tematizassem a relação entre pessoas do
mesmo sexo sem transformá-las em uma mera caricatura/representação.

Com isso, voltamos para o conceito de “literatura de representação” e


“literatura de subjetivação” de Mario Cesar Lugarinho, onde o primeiro
reproduz os estereótipos quanto ao olhar para o desejo homoeróticos
disseminados pelas estruturas sociais, enquanto o segundo transpassa esse
estigma, levando para a narrativa uma pluralidade quanto a essa forma de
desejo, não singularizando o personagem homossexual a uma identidade
fixa. Os escritores que citamos anteriormente se encaixam exatamente
dentro do que Lugarinho trata como “literatura de subjetivação”, pois eles
quebram o silêncio discursivo que havia em sua época quanto a temática
homoerótica na literatura brasileira. Esses escritores não só representam a
relação entre pares em seus textos, como também problematizam o olhar da
sociedade para esse tipo de desejo/amor, impedindo que a
homossexualidade seja fixada a uma única identidade, representados por
uma única caricatura que ficou ecoando em nossa literatura durante séculos,
transpassando, como bem diz Horácio Costa (2010), a impermeabilidade do
cânone.

Referências
ABREU, Caio Fernando de. Os dragões não conhecem o paraíso. In:
Contos completos. São Paulo: Campainha das Letras, p.421-528, 2010.

ABREU, Caio Fernando de. Pequenas Epifanias. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira,1985.

BARCELLOS, José Carlos. Literatura e homoerotismo em questão.


Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006.

BESSA, Marcelo Secron. Os perigosos: autobiografias e aids. Rio de


Janeiro Aeroplano, 2002.

BESSA, Marcelo Secron. Retrovírus, zidovudina e Rá! Aids,


Literatura e Caio Fernando Abreu. In: SANTOS, Rick; GARCIA, Wilton
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CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. São Paulo: Ática, 2013.


COSTA, O cânone impermeável: Homoerotismo nas Poesias
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Horário (Org.). Retratos do Brasil. São Paulo: Editora Universidade de São
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INÁCIO, Emerson da Cruz. Homossexualidade, homoerotismo e


homossociabilidade: em torno de três conceitos e um exemplo. In:
SANTOS, Rick; GARCIA, Wilton (Orgs.). A escrita de Adé: perspectivas
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LOPES, Denilson. Bichas e letras: uma estória brasileira. In:


SANTOS, Rick; GARCIA, Wilton (Orgs.). A escrita de Adé: perspectivas
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LUGARINHO, M. C. Nasce a Literatura Gay no Brasil. In: SILVA,


Antonio de Pádua Dias da (org.). Aspectos da literatura gay. 1. ed. João
Pessoa: Editora Universitária/UFPB, pp.09-24, 2008.

ANDRADE, Mario. Girassol da Madrugada. In: MACHADO,


Amanda; MOURA, Marina (Org.). Poesia gay brasileira: antologia. Belo
Horizonte: Editora Machado; São Paulo: Amarelo Grão Editorial, 2017.

SILVA, Antonio de Pádua Dias. A história da literatura brasileira e a


literatura gay: aspectos estéticos e políticos. Alagoas: Leitura Maceió, n.49,
pp.83-108, jan/jun. 2012.

SILVA, Antonio de Pádua Dias. A literatura brasileira de temática


homoerótica e a escrita de si. Maringá (PB): Acta Scientiarum, v.36, n.1,
pp.61-71, Jan.-Mar. 2014.
SONTAG, Susan. Doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade


no Brasil da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.
Uma criança na Palestina: Naji Al-
Ali e a denúncia vertida em pena e
nanquim
Vanessa da Costa Lamas

Sumário

Vocês que passam com palavras efêmeras, como a poeira


amarga, passem onde quiserem, mas não passem entre nós
como insetos com asas
temos o que fazer na nossa terra
temos trigo a criar e regar com o orvalho do nosso
corpo
temos o que a vocês aqui não agrada:
temos pedra... E perdiz!

Mahmud Darwish1
1 O referido poema representa um dos escritos de resistência mais marcantes para o povo palestino e, assim como Handala, também é considerado um símbolo.

O propósito deste artigo é abordar, de forma objetiva e sem omitir


informações que são relevantes, o Controle enquanto instrumento de
afirmação e de consolidação do poder em sociedades do Oriente Médio –
mais precisamente na Palestina, um dos mais significativos territórios em
toda a região especialmente por encontrar-se numa área de interesse comum
com o reconhecico Estado de Israel (tornado uma nação no ano de 1948).

A partir da análise do cartum Uma criança na Palestina e sua posterior


identificação com as leituras de observamos que a estruturação política pós-
1948 foi marcada por uma série de tensões entre israelenses e palestinos -
que já existiam desde o final do Século XIX mas que se agravaram com o
advento da consolidação de Israel enquanto país.
Uma forte religiosidade associada à Política não é uma característica
exclusiva da estruturação governamental israelense - lembremos do
princípio judaico da “Terra Prometida”. Há muito observa-se, pois, que tal
fusão costuma lograr êxito no processo de transformação das sociedades ao
redor do globo sobretudo em períodos de crise econômica e instabilidade
coletiva.

Observamos, inclusive, que o referido fenômeno não se atém a


questões de foro continental ou religioso. Seja no continente asiático,
europeu ou africano, a ocorrência de governos sustentados por ações
corruptas se faz valer e, ainda que não pareça num primeiro momento, essas
mesmas instituições governamentais se formam graças à soma dos seus
interesses - muitas vezes contrários ao que defendem em suas campanhas e
propostas – ao clamor da própria sociedade de onde emergem.

Os quadros de tensão e crise sociais muitas vezes são utilizados como


a justificativa mater para o ressurgimento de novos “velhos” governos onde
o obscurantismo é a força motriz de todas as ações. A exaltação aos valores
de outrora, já tão controversos desde o seu estabelecimento, elencam o teor
dos discursos e a defesa, muitas vezes apaixonada, por parte de seus
adeptos.

O exercício de adequar-se ao que entendemos por Civilização não foi


capaz, como visto, de impedir que as pessoas deixassem de salvaguardar –
ainda que no mais íntimo dos seus seres – a essência que as conduz mesmo
que em um quadro situacional paralelo (isto é, uma espécie de “universo
particular”, já que ninguém é capaz de monitorar os pensamentos de
outrem). As transformações sociais bruscas acabam por representar,
indubitavelmente, uma possibilidade tangível de efusão de tal âmago ainda
que as consequências das ações, normalmente de ordem efêmera resultem
em adversidades e possíveis dissabores.

A Literatura, para além da sua função como uma das mais


significativas manifestações de foro cultural, representa uma dos mais
profícuos meios de resistência nos campos social e político sobretudo
diante de estruturas governamentais baseadas no autoritarismo ou na
instauração do Terror por meio da violência armada e da massificação
ideológica - que tanto pode ocorrer pelo viés religioso como pelo
propagandístico.

Naji al-Ali, autor de Uma Criança na Palestina, nasceu no ano de


1937 na aldeia palestina de Al-Shajara, Tiberias. Considerado um dos mais
importantes cartunistas do Oriente Médio foi o criador de Handala, o
menino que, em meio às mazelas do conflito árabe-israelense, não se deixou
esmorecer e, justamente por isso, virou um verdadeiro ícone da identidade e
da resistência do povo palestino. Foi assassinado no dia 29 de agosto de
1987 por um agente duplo de nome Ismail Sowan (também palestino).
Sowan trabalhava tanto para a OLP (Liga dos Países Árabes) quanto para o
Mossad (Israel).

A primeira aparição de Handala se deu no ano de 1969. O menino


refugiado, de roupas remendadas, costumava aparecer sempre numa
posição de observador mas, não raro, também apresentava seu punho em
riste. Era uma criança cuja inocência perdeu-se em meio à brutalidade da
ocupação por parte de Israel e frente à venalidade dos regimes locais.

A criticidade de Naji al-Ali, tão bem fundamentada por meio do


personagem Handala, apontava para as relações entre EUA e Israel
sobretudo pelo interesse estadunidense nas reservas petrolíferas da região e
pelo controle exercido pelos israelenses especialmente no período pós-
independência (e que acirrou ainda mais o antagonismo entre os dois
povos).
A literatura em quadrinhos com o tom de denúncia se faz presente em
outras regiões de conflito, especialmente no Oriente Médio. Um dos
exemplos mais válidos pode ser encontrado na publicação Uma criança na
Palestina, onde Naji al-Ali, de forma enfática, ilustra os horrores vividos
pela população palestina localizada na chamada Faixa de Gaza a partir dos
testemunhos de Handala, a personagem (criança) que observa os eventos e
neles se encontra tristemente inserida. Edward W. Said, um dos nomes mais
importantes da crítica literária do século XX, apontou no seu indispensável
A questão da Palestina a complexidade das questões políticas que cerceiam
todo o Oriente Médio, numa verdadeira trama que, não raro, se entrelaça e
abre espaço para eventos remotamente imaginados.

As manifestações de cariz cultural são a forma mais abrangente de


posicionamento frente à uma situação que se converta em ato de análise
crítica ou de denúncia - seja essa social, política ou ideológica. E a
Literatura, como a mais excelsa das expressões presentes, não só possibilita
o fato da materialização de vozes muitas vezes silenciadas como o
estabelecimento de obras que contribuem tanto para o conhecimento de
uma situação vigente quanto para a construção do saber na gênese da práxis
acadêmica – especialmente quando essa construção se dá no campo da
interdisciplinaridade.

Por ser um dos artistas mais contundentes na crítica aos eventos na


região que compreende a o Estado da Palestina, Naji al-Ali tornou-se
“incômodo demais” e, por essa razão, foi assassinado com um tiro a
queima-roupa no ano de 1987. Ao contrário do que se podia imaginar, o
cartunista tornou-se ainda mais popular mesmo que postumamente e
Handala foi transformado num dos mais emblemáticos símbolos da
resistência palestina.

O clamor de uma considerável parcela da população - associada a


manifestações nem sempre pacíficas - é um dos mais profícuos artifícios
para que um novo estrato político surja e se mantenha o quão possível for
sob a justificativa de trazer a “prosperidade”, o “crescimento” e a “ordem”.
No caso de Israel, o respaldo religioso, além dos interesses externos,
corroborou para a sua insurgência como nação e o consequente
estabelecimento de uma política hostil e nada conciliadora com a população
palestina.
Quando os contextos social e político do Oriente Médio e as suas
peculiaridades são analisados de forma mais específica, observa-se que há,
por parte das populações ali inseridas, uma necessidade premente de ilustrar
os eventos cotidianos e, muitas vezes, de realizar verdadeiras delações
acerca do que vivenciam pelo fato de se encontrarem subjugadas a forças
governamentais e a interesses exteriores. Diante do quadro delineado é
possível analisar o significativo papel que manifestações como a Literatura
- especialmente a que se converte no estilo da graphic novel – possuem na
abordagem de uma temática tão cara e de suma importância no tempo
presente por constituírem verdadeiros mecanismos de denúncia que
possibilitam às demais nações do globo tomarem conhecimento de forma
efetiva acerca do que ocorre na região citada e que, por vezes, é veiculada
sob um viés primário dotado de superficialidade.

Realizar um estudo aprofundado sobre a abrangência das obras em


quadrinhos num escopo bem heterogêneo do seu entendimento comum -
isto é, o da literatura essencialmente voltada para o entretenimento – a partir
das ocorrências políticas que envolvem as nações constituintes do Médio
Oriente –, identificar a sua inserção nos grupos sociais díspares aos
constituintes da região evidenciada e a sua consequente absorção numa
esfera que se sobrepõe à mercadológica (em termos de aquisição de obras
literárias) além de compreender o papel transformador que as graphic
novels podem desempenhar quando corporificam uma abordagem crítica
diante de um quadro político de grande significância constituem a busca
pelas novas possibilidades de pesquisa acerca da temática apresentada.

Todavia esse mesmo estado de coisas, por mais que perdure por um
certo período, acaba por trazer questionamentos por parte daqueles que a
ele se encontram ligados sobretudo se os valores outrora enaltecidos
durante campanhas ou manifestações se mostram diametralmente opostos à
realidade circundante.

O cartum a que nos dedicamos nesse artigo constitui o que entendemos


por mecanismo de resistência por apresentar alto teor de criticidade e uma
clara (e real) visão da realidade na qual foi elaborado. Para além de uma
linguagem por vezes acre e traços fortes absorvidos em nanquim
encontramos reflexões interdisciplinares que nos possibilitam compreender
as ações humanas de forma mais abrangente além de nos comprovar que
não só por meio do uso de artefatos bélicos se pode combater injustiças e
arbitrariedades.

Considerações Finais
O objetivo deste artigo é propor a observância acerca das mazelas
enquanto catalisador de poder e efetivador do Medo nas sociedades que se
encontram sob a égide de governos aparentemente “democráticos” mas que,
em verdade, buscam a dominância não só no tocante à questão territorial
como, sem dúvida alguma, por meio da Cultura e também da Economia.

A partir da leitura realizada nos foi possibilitado ilustrar como as


relações entre os indivíduos ocorrem partindo-se da premissa da
identificação destes com o que, num primeiro momento, pode representar
atitudes reprováveis ou passivas de críticas - como o enaltecimento da
brutalidade e a defesa de ações drásticas frente àquele que é visto como
opositor ou responsável por quadros de crise ou de incerteza - como o que
comumente costuma acontecer quando nos inclinamos para a Política
independente da porção continental em questão.

Naji al-Ali, cartunista palestino de personalidade forte e criticidade


contumaz, não só ilustrou como foi testemunha ocular de parte dos
conflitos entre seu povo e o Estado de Israel (que passou a ser assim
chamado a partir do ano de 1948). Há quem acredite, aliás, que o
personagem Handala possa ser, grosso modo, uma representação de al-Ali
quando criança enquanto habitante dos campos de refugiados onde sua
família, como tantas outras de origem palestina, se encontrava.

O controle israelense se traduz tanto por meio de um poder constituído


- como é o caso das instituição governamental em si – quanto na tentativa
de causar intimidação e estabelecimento de uma vontade tida como “maior”
– aqui podemos encontrar tal vontade no movimento denominado Sionismo.
O fascínio despertado pela ânsia de poder (não somente o de ordem
monetária) é, sem dúvida alguma, um dos elementos aglutinadores que
justifica (embora não absolva, obviamente) a predileção por controlar.

Por meio da assimilação do exposto anteriormente nos é permitido


observar que em Uma criança na Palestina os mecanismos de controle se
fazem presentes desde a consolidação do Estado de Israel em 1948 e suas
associações com governos vizinhos e nações hegemônicas do globo até o
tempo presente (Século XXI) sem uma clara previsão de Paz.

Mais do que um território, o povo palestino busca,


incansavelmente, ter sua identidade não só preservada como legitimada
para além dos campos onde se encontra inserido. E foi na intenção de
denunciar todos os eventos decorrentes - sobretudo da década de 1940 até o
tempo presente - que Naji al-Ali fez de Handala mais do que um
personagem de cartum: transformou-o num símbolo de luta e de resistência
com suas roupas rotas, seus pés descalços e seu punho em riste.

Em suma, mais do que obras de teor gráfico, o cartum analisado


durante a concepção deste artigo nos proporcionou uma leitura cuja
amplitude permitiu encontrar a razão primordial dos mecanismos voltados
ao controle – tanto nos âmbitos político quanto social – apontando que,
independente de encontrar-se disposto em um grupo de vultosas proporções
ou imerso no mais íntimo do seu ser, o indivíduo conserva em si o instinto
que acaba por mover (seja no campo material ou no das ideias) tudo o que o
cerca.

Referências
AL-ALI, Naji. Uma criança na Palestina. Trad. Rogério Bettoni. São
Paulo: Martins Fontes, 2011.

ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus – O Fundamentalismo no


Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.

EISNER, Will. Comics and Sequential Art. United States: Poorhouse


Press, 1985.

McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo:


MBOOKS, 2004.

SAID, Edward W. A questão da Palestina. Trad. Sonia Midori. São


Paulo: Editora Unesp, 2012.

SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das


Letras, 1995.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do


Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Revoluções Conservadoras,


Terror e Fundamentalismo: regressões do indivíduo na Modernidade. In: O
Século Sombrio: uma história geral do século XX. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004.

Créditos das imagens


Figura 1. Blog literário “O Espanador”. Disponível em:
[http://oespanador.com.br/wp-content/uploads/2015/03/6bb8c-naji91_.gif].
Acesso em: 18 de outubro de 2019.

Figura 2. Blog literário “O Espanador”. Disponível em:


[http://oespanador.com.br/wp-content/uploads/2015/03/e0684-naji-
alali1.jpg]. Acesso em: 18 de outubro de 2019.

Figura 3. Blog literário “O Espanador”. Disponível em:


[http://oespanador.com.br/wp-content/uploads/2015/03/4aaee-naji66.jpg].
Acesso em: 18 de outubro de 2019.
AUTORES:
Sumário

Ana Carolina Botelho


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Anderson Guerreiro
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

André França Rocha Borba


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Brendo Vasconcellos de Faria


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Ida Maria Santos Ferreira Alves


Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade
Federal Fluminense

Claudia Regina do Nascimento


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Esther Zanelli Miranda


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Fabiane Alves Martins


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense
Gabriel Fernandes de Miranda
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Giselle Moraes Hache


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Karine Ferreira Maciel


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Larissa Moreira Fidalgo


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Luisa de Almeida Lírio Pinto


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Luísa Nunes Galvão Caron de Oliveira


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Marina Maria Campos Brito


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Anita Martins Rodrigues de Moraes


Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade
Federal Fluminense

Nathália Primo
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense
Paloma Roriz
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Paula Fernanda dos Santos


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Paulo Alex Souza


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Rogério Reis Carvalho Mattos


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Tahiná da Silva Santos Moreira


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Tamara Medeiros de Andrade


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Tamy de Macedo Pimenta


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Thaís Sant’Anna Marcondes


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Vinícius Ximenes
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense
Carolina Lauriano Soares da Costa
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Eduardo Andrade Barbosa de Castro


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Isabelly Cristina Gonçalves Costa


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Luiz Jorge Soares Guimarães


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Natália Barbosa Gomes Vago


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Sandro Aragão Rocha


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense

Vanessa da Costa Lamas


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal
Fluminense
PANGEIA EDITORA
Sumário

A Editora Pangeia se volta, em especial, para a publicação de obras do


Colégio das Ciências Humanas, com ênfase na grande área de Letras e foco
nos Estudos Literários e na publicação de obras literárias.

Atua principalmente com edições sob demanda para autores


independentes e profissionais da educação.

E ainda publica obras nacionais de autores iniciantes e consagrados e


também tradução de clássicos universais.

www.editorapangeia.com.br
Rua da Carioca, 1357 - Morada da Colina
38411-151 - Uberlândia, MG

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