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Outros modernismos – uma questão


de mérito, não de ritmo
Luís Augusto Fischer
resumo abstract

O ensaio recupera os laços entre arte e The essay retrieves the bonds between art
contexto econômico e político de São and the economic and political context of
Paulo na Primeira República, mostrando São Paulo in the First Republic, showing
uma sinergia única entre elites sociais a unique synergy between social elites
e vanguarda artística, em combate ao and the artistic avant-garde, in combat
soft power carioca. Essa sinergia em against Rio’s soft power. This synergy
seguida cresce pelo trabalho crítico then grows through the critical work
consagrador dos valores modernistas that consecrates the modernist values
pela intelectualidade da USP. Analisa by USP’s intellectuals. The work analyzes
o caráter da vanguarda enquanto tal, the character of the avant-garde as such,
sua celebração da ruptura como ideal, its celebration of rupture as an ideal, and
e comenta o fato de que a vanguarda comments on the fact that the São Paulo
modernista paulista alcançou o poder modernist avant-garde reached power
em poucos anos, vindo a impor uma within a few years, imposing an exclusive
leitura exclusiva das coisas literárias reading of literary and cultural things. It
e culturais. Conclui postulando que concludes by postulating that the many
os muitos modernismos no Brasil só modernisms in Brazil will only be visible if
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serão visíveis se a lente exclusivista do the exclusive lens of São Paulo Modernism
Modernismo paulista for devidamente is duly called into question.
posta em questão.
Keywords: São Paulo Modernism; São
Palavras-chave: Modernismo paulista; Paulo’s soft power Modernism; the role of
Modernismo soft power de São Paulo; o USP; the paradigm of modernist rupture; the
papel da USP; o paradigma da ruptura many modernisms in the country.
modernista; os muitos modernismos
no país.
A
ZERO Paulo, a capital do estado de mesmo nome,
ele teria sido o novo grito do Ipiranga
para a inteligência nacional. D. Pedro I
palavra “modernismo” havia gritado, diziam os manuais esco-
entre nós, brasileiros deste lares, “Independência ou morte”, frase
tempo, aciona diferentes agora reiterada, por uma turma descolada,
recantos da memória e da com escritores e demais artistas sorrindo
percepção, gerando dife- enquanto anunciavam uma nova rodada da
rentes significados que, mesma imposição de escolha: ou a inde-
porém, convergem para um pendência, significando seguir os rumos
centro perfeitamente iden- que os novos, os modernos, sugeriam, ou
tificável. Na versão talvez a morte, deixar de segui-los, mantendo os
mais imediata, salta um hábitos, modos, estilos já existentes. Em
conteúdo relativo à litera- 1822 ou 1922, quem teria o desplante de
tura, que a gente aprende escolher a segunda alternativa?
na escola e se liga a um Um terceiro nível de sentido naturaliza
momento de revelação, de redenção, de redes- ainda mais os eventos e as disputas, na arte
coberta do Brasil. Já aqui são três vezes o e na sociedade, que se passaram na vida
prefixo re-, sugerindo que estamos diante real deste último século, para associar pura
de fenômeno que se liga a outro anterior. e simplesmente a palavra “modernismo”
Em um ponto do passado o Brasil havia
sido descoberto, visto, compreendido, mas
com o dito Modernismo ele foi revisto. O
Modernismo, uma revolução, enfim. LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de
Outro conteúdo também de matriz Literatura Brasileira da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e autor de, entre outros, Duas
escolar liga a palavra à Semana de Arte formações, uma história – das “ideias fora do lugar”
Moderna de 1922. Evento ocorrido em São ao perspectivismo ameríndio (Arquipélago).

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com tudo de bom que rolou na literatura serem patrocinados por essa elite? Ou sua
e mesmo na arte brasileira, desde 1922. O arte nunca soou agressiva ou desafiadora
que de ruim, fraco ou conservador aconte- para essa elite? Mas, se nunca soou agres-
ceu por certo não é designado pela palavra; siva ou desafiadora para essa elite, como
ao contrário, as coisas boas, ousadas, ao essa arte é revolucionária? De que revolu-
mesmo tempo nacionais e cosmopolitas, o ção estamos falando, afinal? Quem eram
melhor daqui e o melhor da Europa no os alvos dessa revolução, então?
mesmo gesto, as obras e eventos que con- São perguntas um tanto desajeitadas,
quistaram o futuro, tudo isso é alcançado que ninguém das ditas elites formularia
pela mesma palavra. desse modo, e que ninguém entre os artis-
O que não é evocado por esse termo tas aceitaria responder lisamente. São per-
milagroso, ou, dizendo de modo envene- guntas que talvez só um olhar externo –
nado, o que se esconde nesses sentidos social e estético, político e ético – pode
correntes da palavra não é pouco. Toda formular: precisa ser não paulista, ou não
a luta travada, no plano dos enunciados paulistano, não modernistófilo, precisa nem
artísticos e no das práticas críticas, assim pertencer nem ter a ilusão de vir a perten-
como no terreno mais mediado das relações cer às elites que adotaram o Modernismo
políticas e sociais implicadas nas artes e paulista. Um olhar não cortesão, se é que
no pensamento, tudo isso desaparece como podemos usar este velho termo, a corte,
se nunca tivesse existido. Parece que as que era no Brasil o Rio de Janeiro, como
coisas anunciadas pela palavra “moder- designação da nova elite brasileira da pri-
nismo” e a própria existência de algo que meira metade do século XX, justamente a
se possa chamar Modernismo nasceram, elite paulista que patrocinou a Semana de
tudo isso, por brotação natural, como as Arte Moderna. Elite que nos anos subse-
manhãs sucedem às noites. quentes acolheu e patrocinou os artistas e
Nem se costuma ligar ao termo toda a as obras modernistas e que depois criou a
decisiva trama social de sustentação obje- primeira universidade moderna brasileira,
tiva da trajetória dos artistas ligados ao dotando-a, com o tempo, de mecanismos
grupo modernista, que por sinal é sempre o sólidos de financiamento do mesmo fundo
paulista – raríssimas vezes alguém levanta estadual. Universidade que viria a produzir
a hipótese de que obras e artistas e pensa- novas interpretações do país, em especial
mentos que floresceram sob o manto mágico de sua cultura letrada, e que entronizou o
da palavra “modernismo” sejam originários mesmíssimo continuum – Semana de Arte
de outro lugar que não São Paulo. Nada se mais as obras e artistas modernistas que
diz sobre o nexo entre a vanguarda estética consagraria – como o ponto insuperável da
e a elite econômica e social – ao menos produção artística e intelectual brasileira.
nada que envolva perguntas diretas entre Exagero? Simplifico? Atropelo?
uma coisa e outra, como, por exemplo: essa Pode ser. Estou concentrando aqui, de
elite paulista, os Prados, Penteados e Ama- modo rápido e meio debochado, um con-
rais, cobrou algum preço aos artistas? Os junto de informações e convicções que con-
artistas venderam parte de sua alma para duz a isso, ou quando menos autoriza isso.

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Espero argumentar, na sequência, a favor Brasil se chamam Parnasianismo e Simbo-
de uma tese límpida e, espero, razoável, lismo. Por aí se percebe que o problema
que escrevo aqui de modo escalonado: não é da palavra, mas do significado que
ela acolhe e resume, no contexto em que é
1) São Paulo – a cidade, o aparelho do usada. Com o mesmo termo “modernista”
estado paulista, as elites paulistas, as serão designados muitos escritores, artistas
econômicas e as intelectuais – construiu plásticos, cineastas etc., já a partir de Bau-
um modelo de Modernismo simplesmente delaire, em meados do século XIX. Nesse
irrepetível em qualquer outro contexto sentido, “modernismo” é simplesmente um
geográfico, social e intelectual no Brasil; termo para designar experimentação formal,
2) e mesmo assim, São Paulo – que se anticonvencionalismo, ousadia moral, anti-
impôs como centro nervoso da econo- nacionalismo e uma série de outros itens.
mia e da inteligência acadêmica brasi- Voltaremos a esse ponto mais adiante, para
leira – usa a métrica que criou, na ação discutir o preço que no Brasil pagamos
sintética da criação e na ação analítica pela privatização do mesmo termo “moder-
da crítica, para avaliar tudo que se pro- nismo” para designar apenas e tão somente
duziu na literatura (e em outros campos a arte praticada a partir da Semana de Arte
da cultura) brasileira; Moderna de São Paulo em 1922 e a partir
3) o efeito dessa desproporção, desse desa- das diretrizes derivadas da interpretação
juste – uma espécie particular de ideia canônica dessa mesma e estrita arte.)
fora do lugar, permitida a referência Mas é claro que, desnaturalizadas essas
deslocada –, se impôs como vitorioso variáveis, a mesma palavra “modernismo”
no longo processo de décadas de afir- poderia abarcar um conjunto muito mais
mação da economia paulista e da visão variado, mais interessante, mais plural de
universitária paulista (na área de letras e feitos estéticos, nomeadamente no campo
humanidades) sobre o conjunto do país, da produção literária.
cuja produção estética e atividade crítica
têm sido submetidas, ao menos desde UM
os anos 1970, a um paradigma único,
este definido no termo “modernismo” tal Voltemos duas ou três casinhas nesse
como apontado no começo deste ensaio. jogo: como explicar os fundamentos do
modo de ser do Modernismo dominante,
(Vá quase sem dizer que a palavra este que nasce com a semana famosa em
“modernismo”, em si, pode se referir a mui- 1922 e se impõe ao conjunto do país?
tas e diferentes experiências históricas. Sem Uma primeira resposta, necessária mas
ir muito longe, na América hispânica em insuficiente, aponta para a força econômica
geral são chamados de modernistas não os da província paulista, que sai de uma condi-
escritores de vanguarda, como Jorge Luis ção bastante secundária para uma trajetória
Borges, e sim a geração anterior, os escrito- ascensional na altura das décadas de 1870
res pós-românticos, especialmente os poetas, e 80. O café, que passou a empregar mão
que praticaram formas e temas que aqui no de obra não escravizada na medida em que

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expandia os cafezais para o Oeste (pouca paulista, antes da República. Os empresários


coisa tem a ver isso com a produção de paulistas contaram, para seu futuro, com a
café no Vale do Paraíba do Sul, mesmo no relativa vantagem de não estarem à disposi-
estado paulista, escravagista, como se pode ção imediata para os achaques que o Estado
ler na obra de Monteiro Lobato), propor- mercantilista brasileiro fazia regularmente
cionou riqueza incomparável nas décadas ao setor produtivo ao longo do Império,
seguintes, ao longo da Primeira República. convertendo o que era circunstancial em
Para dar um marco legal: no tempo da definitivo, como “crédito privilegiado, o
Primeira República, as províncias taxavam crédito tomado sem prazo de devolução”3.
as exportações, ficando as importações para Tal situação permitiu uma forte capitaliza-
o imposto federal. Em números amplos: ção de comerciantes paulistas por ocasião
esse poder econômico paulista se impôs da Guerra do Paraguai, em que eles atua-
sobre uns 70% da produção mundial de ram como fornecedores. Com a República,
café, que eram produzidos no estado e eram as províncias aumentaram muito seu poder
exportados pelo porto de Santos, tudo sob de fogo, podendo legislar para atender a
gerência de firmas de comércio, bancos e suas particularidades, assim como podendo
burocracia sediados na capital do estado1. armar exército estadual.
(Se o café era um produto importante na Nem dinheiro, nem autonomia faltaram
época, com mercado favorável? Sim, favo- a São Paulo, no momento em que brotou o
rável e crescente.) Modernismo. Muito dinheiro, muita auto-
Acrescentando detalhes: verifica-se uma nomia, gerando um padrão já aqui clara-
explosão de atividade produtiva e finan- mente único em sua proporção: nenhuma
ceira no período. Em São Paulo, passa-se outra província brasileira poderia nem de
de cinco bancos em 1889 para 22 em 1890, longe emparelhar sua força com a de São
e de quatro para 64 sociedades anônimas Paulo. Vamos a algum número, para ver
no mesmo intervalo. A população de São algo da pauta de exportações no tempo e
Paulo passa de 47 mil habitantes em 1887 verificar o tamanho do café relativamente
para 240 mil em 1900, um crescimento de a produtos de outras províncias4. No ponto
500%. Passa-se de 105 milhões de cafeei- máximo, o café representou por volta de
ros em 1890 para 220 milhões em 1900. 70% do total de exportações brasileiras
E o café é comprado no exterior, pago entre 1924 e 1933, e nunca esteve abaixo
em libras, estando o governo estadual sem de uns 50% em toda a Primeira República.
dívidas significativas e com grande capa- Nenhum outro produto de exportação brasi-
cidade de investimento2 . leiro pesou mais de 7%, com uma exceção,
Para dar um marco político: pode-se evo- a borracha entre 1889 e 1918 (vai de 12%
car também a condição inicial da província a 25% e depois baixa a menos de 3%).

3 Ver Caldeira (2009, p. 108).


1 Ver Sevcenko (1992, p. 180 e segs.).
4 A fonte é Boris Fausto (1997, p. 292), citando Annibal
2 Ver Caldeira (2017, pp. 321-2 e 338-54). Villela e Wilson Suzigan.

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Nenhum outro quer dizer: açúcar, cacau, tante cidade brasileira. Era lá que viviam
mate, algodão, a dita borracha, mais couros os escritores e pintores; era lá que fun-
e peles, estes os únicos produtos relevantes cionavam as maiores editoras, os jornais
na exportação brasileira do período. Isso mais tradicionais, a Academia Brasileira
traduz no concreto a condição incompará- de Letras; era lá que se concentravam os
vel da riqueza paulista entre 1889 e 1930. cargos federais preenchidos por intelectuais,
Esses dados apresentam parte substan- porque era a sede do governo do país. Era
tiva da riqueza que se acumulou no estado então o Rio de Janeiro que encarnava a
paulista, no período. Com eles, é possível dominação cultural – contra o domínio eco-
imaginar a posição isolada de São Paulo, nômico de São Paulo, recente mas notório.
como uma liderança econômica absoluta Ao Rio faltavam alguns elementos moder-
na capacidade de produção econômica e nos desse campo, como uma universidade
de arrecadação de impostos, os quais de digna do nome, dotada de forte agregação
algum modo vão reverter em políticas e de cursos em volta de uma Faculdade de
estruturas tendentes a reiterar e aprofun- Filosofia, para todas as ciências naturais
dar a liderança econômica, ao menos até e humanas, e com capacidade de produzir
1929, com a crise da Bolsa de Nova York alguma ciência, alguma tecnologia, alguma
e a quebra do pacto até então vigente no interpretação nova.
mando nacional, representada na vitória de Pois aqui vamos encontrar o sentido
Vargas em 1930. profundo do apoio das elites econômicas
Aqui entra um segundo plano de inte- e políticas de São Paulo ao movimento sim-
resse para nosso assunto: sendo o estado bolizado e gerado pela Semana de Arte
paulista líder disparado no campo econô- Moderna de 1922. É que a Semana, e depois
mico (e no arranjo político) da Primeira dela as carreiras dos artistas a ela ligados
República, ele porém não distribui as cartas ou por ela sancionados, e depois disso a
no jogo cultural, aquele plano sutil, com Universidade de São Paulo, esse continuum
ligações poderosas mas não lineares com representa o avanço de São Paulo, desde
o domínio econômico e político. Entenda- uma posição de dominação econômica,
mos aqui o jogo cultural envolvendo desde em direção a uma posição de dominação
dimensões evidentes, como a produção artís- cultural. Assim, em breves palavras, não
tica, as artes todas, passando por dimensões há nada, absolutamente nada a estranhar
fortes e perceptíveis mas não totalmente que a Semana tenha sido inventada, patro-
evidentes, como as instituições do campo, cinada e sustentada conceitualmente por
o jornalismo e organizações sociais, e che- Paulo Prado, representante direto de uma
gando até dimensões quase invisíveis, como das famílias mais poderosas no mundo
a produção intelectual e científica. cafeicultor do estado, ele mesmo um inte-
Ora, esse jogo cultural (podemos cha- lectual sofisticado, capaz de formular por
má-lo de soft power, acompanhando uma escrito uma teoria inteira para o que ele
expressão corrente) era dominado pelo Rio via como destino inevitável de São Paulo,
de Janeiro, a capital, que desde a segunda o único estado capaz de ter e sustentar um
metade do século XVIII era a mais impor- projeto para o país como um todo, como se

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pode ler em seu trabalho mais famoso, o combatido ativamente pelos governos getu-
Retrato do Brasil, do mesmo 1928 que viu listas –, essa posição hegemônica carioca,
nascer Macunaíma, livro de resto dedicado repito, será então o alvo imediato da ação
ao próprio Paulo Prado5. do Modernismo derivado da Semana. No
Uma síntese crítica da posição intelec- primeiro plano, acessível até aos incautos,
tual de Paulo Prado é assim formulada por representava um combate contra o passa-
Carlos Berriel (2013, p. 14): dismo, as fórmulas gastas, o Classicismo
obsoleto, o Parnasianismo, a Academia Bra-
“A análise de seu pensamento permite ver sileira de Letras; num plano de fundo, visível
que com o Modernismo as elites agrárias apenas para estrategistas da qualidade de um
atingiram uma espécie de perfeição da ação Paulo Prado, era a disputa do posto hege-
ideológica: foram críticas de si mesmas, e mônico no campo cultural. A elite econô-
como historiadores estabeleceram o lugar mica paulista, com seu lado culto, moderno
que lhes pareceu adequado no cenário das e cosmopolita, reconhece como importante
ideias nacionais. Condenaram práticas cul- e decisivo esse patamar de luta, e por isso
turais que não lhes serviam e as julgaram financia a Semana, os salões que produziram
supérfluas, e edificaram em seu lugar estru- a carreira dos artistas a ela ligados ou a ela
turas ideológicas eficientes e atualizadas [...]. acrescentados e, a médio prazo, a USP, em
Ao se tornarem críticas de si mesmas, essas cujos gabinetes serão produzidas as novas
elites tornaram homólogas sua trajetória e a interpretações do país.
do país, seus projetos de classe e o projeto Esse o sentido histórico do patrocínio
de nação”. das mais ricas e tradicionais elites para as
moderadas diabruras modernistas. Não quer
A posição hegemônica da cultura esta- dizer que se tratasse de um cálculo completo
belecida no Rio de Janeiro – no contexto por parte de cada um dos participantes, é
de um estado nacional como o nosso, mar- claro, nem quer dizer que não fosse sincero
cado por uma tradição centralizadora her- o apreço dos indivíduos da elite econômica
deira do Império Romano, que na nossa Pri- pelas novidades estéticas; quer dizer, sim,
meira República conheceu breve momento de que se trata de um processo que beneficiará
afrouxamento, o qual no entanto logo será o lado paulista da equação brasileira. Por
outro lado, que aqui fica apenas mencio-
nado, sem aprofundamento, não estamos
falando de um movimento, o Modernismo
5 Aqui vale a evocação do estudo de Carlos Berriel paulista, que tivesse procurado quebrar o
sobre a obra de Paulo Prado, Tietê, Tejo, Sena, que
vínculo com a superior dominação francesa e
demonstra o teor da operação ideológica que Paulo
Prado consuma em sua obra, ao dar como certo que mais genericamente europeia sobre a cultura
o destino dos paulistas é o do comando do país, eis
que só eles têm o valor herdado dos colonizadores letrada brasileira. Salvo pequenas e secun-
portugueses anteriores a 1580 (a União Ibérica), que se dárias exceções, os modernistas paulistas
reforçou com a miscigenação com os indígenas, com a
vantagem, sugere ele, de não ter havido em seu esta- combateram a hegemonia cultural carioca
do a miscigenação com africanos e descendentes. Os
postulando que eles, sim, é que estavam
bandeirantes mamelucos são o futuro, não os mulatos
indolentes. interpretando adequadamente as novidades...

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francesas e ocidental-europeias. Não se vê e passou a ser ensinado, nas universidades
inquietação que buscasse criticar a força e nas escolas, como verdade autoevidente e
dessa dominação, por exemplo, escolhendo como parâmetro único de medição do que
algum parâmetro (sul ou norte) americano seria considerado moderno. Não importa
para a novidade. Nem nos anos 1920, nem que para isso tenha sido necessário operar
depois que a USP passou a produzir suas umas quantas barbaridades, como a entro-
interpretações inovadoras. nização de uma categoria bastarda como
(Acessoriamente, valeria assinalar que “Pré-Modernismo”, que subordina escritores
entre as diabruras modernistas serão selecio- de força inegável como Euclides da Cunha,
nadas, com o tempo e a ação de intérpretes Lima Barreto, Simões Lopes Neto, João do
do peso de um Sérgio Buarque de Holanda Rio, Júlia Lopes de Almeida, Augusto dos
ou de um Antonio Candido, algumas como Anjos e outros a um julgamento totalmente
realmente modelares – no centro dessa cano- injusto, eis que eles são avaliados por seu
nização estará a visão de Mário de Andrade, futuro, não por seu horizonte histórico con-
e na margem dela está um enfant terrible, creto. Ou como o crime, para nossa sorte mal
tão ao gosto de boas elites, como Oswald perpetrado e inviável, de ignorar, silenciar
de Andrade. Serão expurgados desse pan- ou menoscabar o imenso vetor de moderni-
teão, com o tempo, tanto os não paulistas dade evidente na obra de Machado de Assis6.
que protagonizaram a Semana, como Graça
Aranha e Ronald de Carvalho, quanto os DOIS
direitistas, de Menotti del Picchia, mode-
rado, a Plínio Salgado.)
Um passo ligeiramente desviante do racio-
Bem: depois desse recuo histórico, pode-
cínio, agora. Trata-se de indagar algo sobre
mos retornar ao ponto mencionado na pri-
o caráter de vanguarda do Modernismo pau-
meira parte do ensaio para reforçar o que foi
lista. Que ele se apresenta como vanguarda,
dito, agora com mais tutano – foi apenas e
não há dúvida; a questão aqui é avaliar algu-
tão somente em São Paulo que houve aquele
mas consequências dessa condição.
padrão de força econômica, incomparável,
Qualquer vanguarda se coloca no mundo
capaz de gerar uma elite cosmopolita interes-
como à frente de seu tempo, de suas cir-
sada em agudas novidades estéticas que na
cunstâncias, já a partir da metáfora militar
França se recobriam de outros significados,
emprestada. A vanguarda só pode ser o que
elite capaz de financiar eventos, carreiras
é se postular essa distância para a frente –
e instituições que com o tempo reposicio-
na direção do que considera ser o futuro,
nariam todo o passado – e todo o futuro.
o que virá, a utopia projetada, que é sem-
Essa sinergia pró-modernização entre elite
econômica, artistas, imprensa e universidade
é única – pode medir com qualquer outra
parte da geografia brasileira.
6 Apresento uma hipótese de interpretação do empe-
Tal foi o poder dessa irrepetível sinergia, nho modernista em impor-se como marco zero da
modernização brasileira em meu livro Duas formações,
que em poucas décadas aquilo que era expe-
uma história – das “ideias fora do lugar” ao perspectivis-
riência singular de São Paulo foi canonizado mo ameríndio.

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pre tida como algo melhor do que o que significativo de incompreensão ou rechaço,
existe, algo pelo que vale a pena lutar. Não enfim, o que ocorre? Se ela impuser sua
se pode conceber o contrário, um grupo que tábua de valores como o centro do para-
se queira vanguarda desejando um retorno digma de julgamento, o que acontece? Ela
ao passado, nem igualmente uma fuga para pode continuar se pensando como vanguarda,
o lado, que será irrelevante ou será apenas se estiver no poder? Mas, se ela estiver no
igual ao que já é conhecido. poder, o futuro não estará mais à frente, e
A vanguarda, então, só existe quando sim nas mãos – ainda assim a vanguarda
se descola do movimento realmente exis- pode pretender-se vanguarda? A que custo?
tente, quando se desobriga dos compromis- Antes de fechar o raciocínio dizendo que
sos vigentes – suas ideias não se medem o que ocorreu com o Modernismo paulista
pelo presente, não se deixam avaliar pelo foi exatamente isso, ter apoio forte e che-
já conhecido. Para o presente, a vanguarda gar logo ao poder, fixemo-nos no pequeno
olha com desconforto, com crítica, talvez abismo que a vanguarda abre em sua relação
até com desprezo, porque tem certeza de com a sociedade em torno. Dito de modo
que quem está envolvido no presente é mais dramático, a arte de vanguarda, na
presa do horizonte já conhecido e, assim, opinião que tem de si mesma, é melhor que
não sabe nada que realmente interesse. A a sociedade. “Um dia a massa ainda comerá
vanguarda é, em última análise, inimiga o biscoito fino que eu fabrico”, disse Oswald
do presente, do existente, do já aceito. Ela de Andrade, reconhecendo que tinha paladar
precisa discrepar do presente, sob pena de vanguardista e produzia no presente uma
não ser vanguarda nenhuma. A sociedade comida que o povo ainda não sabia apre-
do presente pratica alguma forma estética ciar. É no futuro que a vanguarda ancora
que é julgada, pela vanguarda, como parte sua tábua de valores, que se volta contra o
do passado a ser enfrentado e superado. Não presente para julgar o que existe segundo
há muita chance de conciliação. o que jura ser o futuro.
Tanto mais haverá bloqueio para a con- Faço aqui uma evocação que poderá
ciliação, quanto mais forte for a vanguarda, parecer estranha. Como se sabe, a For-
é claro. Se a vanguarda for constituída por mação da literatura brasileira, de Antonio
um ou dois elementos esparsos, que não pro- Candido, livro seminal para a crítica e a
duzem eco, é certo que ela correrá riscos história da literatura no Brasil, a primeira
de incompreensão ou de rechaço. Mas – história da literatura produzida segundo uma
aqui um ponto decisivo – o que ocorre se trama conceitual nítida – a ideia de sistema,
a vanguarda for muito apoiada, tiver grande o conceito de formação etc., marcos den-
força, dispuser de elementos suficientes para tro dos quais o autor vai exercitar sua alta
se estabelecer e divulgar sua tábua de valo- qualidade analítica de varejo –, descreve
res e suas práticas? E se ela tiver apoio um arco entre uma premissa e uma con-
de setores de elite, se tiver financiamento clusão. A premissa: só há literatura quando
certo, se com pouco tempo chegar ao poder há sistema literário, “um triângulo ‘autor-o-
político? Se ela chegar ao poder, em qual- bra-público’, em interação dinâmica”, com
quer dimensão, se ela não correr mais risco uma “certa continuidade da tradição”, como

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se lê no Prefácio da segunda edição, de a precariedade de uma perna essencial do
1962. A conclusão, no derradeiro parágrafo tripé que Candido mesmo estabeleceu.
do capítulo VIII, “A consciência literária”, Será que também aqui podemos dizer,
seção 5: as palavras de Machado de Assis então, que com Machado, pensador e criador
no famoso artigo de 1873, conhecido como evidentemente destacado, à frente de sua
“Instinto de nacionalidade”, representam a circunstância, a literatura era melhor que a
tomada de consciência do processo de for- sociedade? Se quisermos divisar o que era
mação, “o ponto de maturidade da crítica efetivamente lido (pelos escassos leitores) em
romântica”, e são adequadas, por isso, para 1873, deveremos voltar os olhos para Alen-
encerrar o livro, que estudou “o processo car; se olharmos para o futuro, este nosso
por meio do qual os brasileiros tomaram tempo aqui, porém, diremos que Machado
consciência de sua existência espiritual e é que se preparava para o voo certo, em
social através da literatura”. direção ao futuro – depois do famoso artigo
Essa conclusão já deu pano para muitas evocado por Candido, Machado apresenta-
mangas. Em regra, se costuma dizer que, ria seus inesperados romances e contos, a
para Candido, com Machado está completa começar das Memórias póstumas de Brás
a formação do sistema – significando que já Cubas, de 1881.
tínhamos o dito triângulo em interação dinâ- Ainda sem esclarecer totalmente esta
mica, e estava dada a continuidade na tradi- pergunta crucial, acrescentemos outro dado.
ção, coisa esta de que o texto de Machado dá Machado parece estar à frente de seu tempo,
notícia suficiente. Discussões mais recentes como o Modernismo paulista se considerava
apontam limites para tal equação, que é ele- relativamente a seu contexto – e como depois
gante, por certo, mas deixa de fora elemen- ocorrerá com a Bossa Nova tal como vista
tos significativos, como a linguagem e os por outro vanguardista, Caetano Veloso. Em
meios editoriais, também necessários para 1993, numa conferência no MAM, no Rio
a configuração do sistema literário, de um de Janeiro, ele menciona ideia que já apre-
lado, e de outro, mais importante, deixando sentara em outros momentos e que lembra
de fora também a premissa que exige a pre- a estrutura do que estamos aqui abordando.
sença de leitores em proporção significativa. Diz: “O Tropicalismo sempre procurou estar
Sem querer simplificar demasiadamente a à altura da Bossa Nova: eu vivo dizendo que
coisa, veja-se que em 1873 não apenas não o Brasil precisa chegar a merecer a Bossa
tínhamos leitores em massa, como ainda era Nova” (Veloso, 2004, p. 313). Aqui expli-
lei a propriedade de pessoas. citamente vamos encontrar, de um lado, a
Em forma simples e direta, a pergunta arte, a Bossa Nova (de que o Tropicalismo
contra a conclusão de Candido, medida con- procurou estar à altura) e, de outro, nada
tra a premissa que ele mesmo estabelece, menos que “o Brasil”. Outra vez, na visão
fica assim: como se pode dizer que está vanguardista de Caetano, a arte estava à
formada a literatura no Brasil se literatura frente da sociedade.
depende de leitores, que não existem ainda A pergunta perplexa que faço aqui é
em 1873? Não ocorrerá a ninguém duvidar simples: por que foi feita essa equação?
da excelência de Machado; mas é inegável Essa equação, reiterada para três diferen-

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tes momentos – o Modernismo visto por Certo, não se pode negar que há sentido
seu próprio discurso, Machado visto por na crítica vanguardista (bem assim na van-
Candido e a Bossa Nova vista por Caetano guarda estética como tal, é óbvio), mas meu
–, faz sentido? Qual sentido? Ou será que ponto é outro: quero indagar por que é este
os três casos são assim vistos apenas por o ângulo triunfante na percepção, a partir da
causa da lente que os leu, lente que se tem visada modernista, seja a dos militantes da
na conta de vanguardista também ela? primeira hora, seja em Candido, militante
O ponto aqui é chamar a atenção para a da segunda, ou em Caetano, militante da
lente: é por causa da afinidade vanguardista terceira hora. Só assim seria possível fazer
entre o discurso crítico do Modernismo pau- o elogio da obra de vanguarda? Não haverá
lista (o vencedor, tanto o de Mário quanto o também um certo gosto por tripudiar sobre a
de Oswald, não o de Graça Aranha, Ronald sociedade brasileira? Um vezo de reforço da
de Carvalho, Menotti del Picchia ou Plínio nossa autoestima negativa, o brasileiro como
Salgado, defenestrados do panteão, no curso um Narciso às avessas, que cospe na pró-
do tempo) e os objetos tomados em consi- pria imagem, como gostava de dizer Nelson
deração (a obra modernista, Machado de Rodrigues? Uma constante autodepreciação
Assis e a Bossa Nova), é por causa dessa que tomamos como quase obrigatória para
afinidade, repito, que a lente vanguardista afirmar a superioridade dos artistas rela-
destaca o abismo entre arte e sociedade, em tivamente à sociedade e para reiterar que
desfavor da sociedade. somos um país inaceitável? Uma espécie de
Poderia fazer diferente? Sim, poderia. identificação sempre negada, sempre rene-
Poderia esforçar-se para identificar nos obje- gada, um prazer espiritual, estético, emo-
tos estéticos – repito, a obra de Machado cional sempre interrompido?
de Assis, a obra literária ou pictórica do (E quanto dessa atitude nos impede de
Modernismo paulista e a Bossa Nova – não fazer o país possível? Quanto dessa atitude
(apenas) a distância, mas a proximidade com é apenas um trivial consolo para a cons-
a sociedade, pondo luz não (apenas) sobre as ciência de intelectuais e artistas que, ao
rupturas, mas sobre as permanências. Que reiterarem a maravilha da vanguarda e o
há relações de continuidade entre Machado e horror da sociedade, no fundo se recom-
a sociedade brasileira do Segundo Império, pensam por sua própria irrelevância, ou
entre o Modernismo paulista e a vida de São num viés judaico-cristão culposo, ou num
Paulo, entre a Bossa Nova e o samba e o Rio viés adorniano arrogante?)
de Janeiro, é certo e demonstrável. Então, Rápidas comparações: ocorre a algum
conclusão possível, é o investimento crítico espanhol dizer que Cervantes era melhor
numa ideia de ruptura, de descontinuidade, que a sociedade espanhola de seu tempo? É
de oposição, em prejuízo de perceber as afi- por essa suposta superioridade que ele deve-
nidades, as ligações, a organicidade – é esse ria ser visto como válido? Ocorre a algum
investimento crítico nascido da percepção inglês dizer que Shakespeare ou, em outro
vanguardista que faz esses objetos parecerem contexto, Virginia Woolf são melhores que
habitar o outro lado da lua, em dissonância seu respectivo contexto? Que a Inglaterra
com a sociedade. precisaria se esforçar para merecer Shakes-

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peare? Ocorre a algum estadunidense pensar naturalmente conhece o caminho. Então, o
que Poe é melhor que sua época, ou a algum crítico acadêmico faz breve silêncio, ergue a
argentino postular que Borges é melhor que fronte, olha para o horizonte e corre para o
a sociedade de sua época? Que a sociedade abraço confortável da plateia de convertidos.)
estadunidense deveria se esforçar para mere- O que importa no presente raciocínio,
cer o cool jazz? Se não ocorrem perguntas finalmente, é a constatação de que a van-
assim, por que não ocorrem? E por que a guarda modernista paulista está no poder
nós, brasileiros do século modernista, ocor- – no poder analítico, mais até do que no
rem, quase como obrigação? poder estético. Está mas não é visível que
Repito que é respeitável a lente crítica ali esteja: justamente por estar no poder
que privilegia a ruptura como excelência, analítico (na USP, na obra de comentaristas
mesmo porque ela permite ver coisas que não da excelência de Candido ou na percep-
se mostram para outros ângulos de visada, ção sofisticada de um artista genial como
assim como nada tenho contra a percepção Caetano, no caso citado) é que a ideologia
das carências e dos horrores que a sociedade modernista paulista se tornou, como dizem
brasileira vive, mesmo porque é contra eles os sociólogos a partir de Marx, invisível, se
e elas que vale a pena lutar. Mas tomar converteu numa segunda natureza, fazendo
como parâmetro apenas a ruptura obscu- parecer que apenas o viés da ruptura, da
rece também, porque impede a percepção da tensão, da distinção, é capaz de falar sobre
proximidade. Para considerar o tanto que se Machado, a obra modernista ou a Bossa
perde ao bloquear a visada das continuida- Nova, só ele é digno deles.
des, bastaria pensar em produtivas interpre-
tações da literatura ocidental como as que TRÊS
fazem Erich Auerbach, Leo Spitzer, Mikhail
Bakhtin, Edmund Wilson, Jorge Luis Borges, E é por isso, por essa entronização, que
Umberto Eco, George Steiner, Ángel Rama, chega a soar estranho o pleito que este ensaio
para citar apenas gente falecida. apresenta. Dito em forma negativa: não é
(Um ganho talvez secundário, mas impor- verdade que apenas o Modernismo paulista
tante, do uso dessa lente de ruptura pode é renovador, que apenas ele produziu obras
ser apreciado num viés autocongratulatório inventivas, que valem a pena. Dito em forma
com que a crítica acadêmica se enfeita, sem positiva: há muito mais renovação, moder-
dizer o nome: o acadêmico rupturista, em nização, invenção na literatura brasileira do
cujas veias corre o sangue modernista pau- que aquilo que é detectável pelo radar do
lista, aponta as fragilidades da arte que não Modernismo paulista. Mas, regra geral, este
rompe, ou que não rompe o suficiente, volta radar é que tem poder de consagração ou
a enfatizar que ele mesmo, acadêmico, sabe de reprovação, no longo curso de um século
perfeitamente qual é o futuro, onde ele está e desde a Semana de 22.
quão sublime é a utopia que regula sua lente, Nem cabe aqui uma longa listagem de
e finalmente se declara cansado de tanto repe- casos. Nem se trataria de pensar em algo
tir que nada é tão bom no presente quanto como “expressões regionais do Moder-
aquilo que será bom no futuro, de que ele nismo”, porque uma tal ideia implicaria a

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admissão liminar de um só Modernismo gens em movimento, pela invasão da energia


como paradigmático (e seria o paulista, elétrica em todos os recantos do cotidiano,
naturalmente), que se espalharia, a partir pela Grande Guerra ou pela Revolução Sovié-
de si mesmo – quer dizer, de um centro tica, pela grande voga feminista de cem anos
inquestionável, localizado na Semana de atrás, pelo florescente movimento operário,
Arte Moderna de 1922 –, generosamente pela voga de urbanização, por tudo isso e
sobre as partes do Brasil, tidas liminar- por muito mais que compõe o pano de fundo
mente como atrasadas e merecedoras tão relevante para pensar a voga de modernização
somente do benefício da iluminação, a qual do período, essa que no Brasil foi reduzida
só poderia provir do centro iluminado por para caber sob o rótulo de “Modernismo”,
si mesmo, a saber, o Modernismo paulista. o paulista. Tais casos serão muitos e a lista
Nada disso seria razoável, porque tudo isso será pródiga, seja no Rio de Janeiro, a grande
seria ideologia, pura e simples. metrópole brasileira até pelo menos a década
Certo que pode haver um recenseamento de 1950, seja em cidades grandes e mesmo
abrangente, para localizar formas, obras, con- médias Brasil afora.
textos, autores renovadores, capazes de ofe- Trabalho para muita conversa, muita pes-
recer visões interessantes sobre o tanto de quisa. Mas que depende de uma operação
novidades trazido pela segunda Revolução analítica fina que nos livre do monopólio
Industrial, desde os anos 1870, pela impressão crítico nascido e desenvolvido no berço do
em rotativas, pela gravação de sons e ima- Modernismo paulista.

REFERÊNCIAS

BERRIEL, C. Tietê, Tejo, Sena. 2ª ed. Campinas, Editora da Unicamp, 2013.


CALDEIRA, J. História do Brasil com empreendedores. São Paulo, Mameluco, 2009.
CALDEIRA, J. História da riqueza no Brasil – cinco séculos de pessoas, costumes e governos.
São Paulo, Estação Brasil, 2017.
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira – momentos decisivos. 5ª ed. Belo
Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975.
FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo, Edusp, 1997.
FISCHER, L. A. Duas formações, uma história – das “ideias fora do lugar” ao perspectivismo
ameríndio. Porto Alegre, Arquipélago, 2021.
SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
VELOSO, C. “Conferência no MAM”. Teresa – Revista de Literatura Brasileira, 4-5. São Paulo,
USP, 2004, pp. 307-29.

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