Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O ensaio recupera os laços entre arte e The essay retrieves the bonds between art
contexto econômico e político de São and the economic and political context of
Paulo na Primeira República, mostrando São Paulo in the First Republic, showing
uma sinergia única entre elites sociais a unique synergy between social elites
e vanguarda artística, em combate ao and the artistic avant-garde, in combat
soft power carioca. Essa sinergia em against Rio’s soft power. This synergy
seguida cresce pelo trabalho crítico then grows through the critical work
consagrador dos valores modernistas that consecrates the modernist values
pela intelectualidade da USP. Analisa by USP’s intellectuals. The work analyzes
o caráter da vanguarda enquanto tal, the character of the avant-garde as such,
sua celebração da ruptura como ideal, its celebration of rupture as an ideal, and
e comenta o fato de que a vanguarda comments on the fact that the São Paulo
modernista paulista alcançou o poder modernist avant-garde reached power
em poucos anos, vindo a impor uma within a few years, imposing an exclusive
leitura exclusiva das coisas literárias reading of literary and cultural things. It
e culturais. Conclui postulando que concludes by postulating that the many
os muitos modernismos no Brasil só modernisms in Brazil will only be visible if
Domínio público/ Wikimedia Commons
serão visíveis se a lente exclusivista do the exclusive lens of São Paulo Modernism
Modernismo paulista for devidamente is duly called into question.
posta em questão.
Keywords: São Paulo Modernism; São
Palavras-chave: Modernismo paulista; Paulo’s soft power Modernism; the role of
Modernismo soft power de São Paulo; o USP; the paradigm of modernist rupture; the
papel da USP; o paradigma da ruptura many modernisms in the country.
modernista; os muitos modernismos
no país.
A
ZERO Paulo, a capital do estado de mesmo nome,
ele teria sido o novo grito do Ipiranga
para a inteligência nacional. D. Pedro I
palavra “modernismo” havia gritado, diziam os manuais esco-
entre nós, brasileiros deste lares, “Independência ou morte”, frase
tempo, aciona diferentes agora reiterada, por uma turma descolada,
recantos da memória e da com escritores e demais artistas sorrindo
percepção, gerando dife- enquanto anunciavam uma nova rodada da
rentes significados que, mesma imposição de escolha: ou a inde-
porém, convergem para um pendência, significando seguir os rumos
centro perfeitamente iden- que os novos, os modernos, sugeriam, ou
tificável. Na versão talvez a morte, deixar de segui-los, mantendo os
mais imediata, salta um hábitos, modos, estilos já existentes. Em
conteúdo relativo à litera- 1822 ou 1922, quem teria o desplante de
tura, que a gente aprende escolher a segunda alternativa?
na escola e se liga a um Um terceiro nível de sentido naturaliza
momento de revelação, de redenção, de redes- ainda mais os eventos e as disputas, na arte
coberta do Brasil. Já aqui são três vezes o e na sociedade, que se passaram na vida
prefixo re-, sugerindo que estamos diante real deste último século, para associar pura
de fenômeno que se liga a outro anterior. e simplesmente a palavra “modernismo”
Em um ponto do passado o Brasil havia
sido descoberto, visto, compreendido, mas
com o dito Modernismo ele foi revisto. O
Modernismo, uma revolução, enfim. LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de
Outro conteúdo também de matriz Literatura Brasileira da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e autor de, entre outros, Duas
escolar liga a palavra à Semana de Arte formações, uma história – das “ideias fora do lugar”
Moderna de 1922. Evento ocorrido em São ao perspectivismo ameríndio (Arquipélago).
com tudo de bom que rolou na literatura serem patrocinados por essa elite? Ou sua
e mesmo na arte brasileira, desde 1922. O arte nunca soou agressiva ou desafiadora
que de ruim, fraco ou conservador aconte- para essa elite? Mas, se nunca soou agres-
ceu por certo não é designado pela palavra; siva ou desafiadora para essa elite, como
ao contrário, as coisas boas, ousadas, ao essa arte é revolucionária? De que revolu-
mesmo tempo nacionais e cosmopolitas, o ção estamos falando, afinal? Quem eram
melhor daqui e o melhor da Europa no os alvos dessa revolução, então?
mesmo gesto, as obras e eventos que con- São perguntas um tanto desajeitadas,
quistaram o futuro, tudo isso é alcançado que ninguém das ditas elites formularia
pela mesma palavra. desse modo, e que ninguém entre os artis-
O que não é evocado por esse termo tas aceitaria responder lisamente. São per-
milagroso, ou, dizendo de modo envene- guntas que talvez só um olhar externo –
nado, o que se esconde nesses sentidos social e estético, político e ético – pode
correntes da palavra não é pouco. Toda formular: precisa ser não paulista, ou não
a luta travada, no plano dos enunciados paulistano, não modernistófilo, precisa nem
artísticos e no das práticas críticas, assim pertencer nem ter a ilusão de vir a perten-
como no terreno mais mediado das relações cer às elites que adotaram o Modernismo
políticas e sociais implicadas nas artes e paulista. Um olhar não cortesão, se é que
no pensamento, tudo isso desaparece como podemos usar este velho termo, a corte,
se nunca tivesse existido. Parece que as que era no Brasil o Rio de Janeiro, como
coisas anunciadas pela palavra “moder- designação da nova elite brasileira da pri-
nismo” e a própria existência de algo que meira metade do século XX, justamente a
se possa chamar Modernismo nasceram, elite paulista que patrocinou a Semana de
tudo isso, por brotação natural, como as Arte Moderna. Elite que nos anos subse-
manhãs sucedem às noites. quentes acolheu e patrocinou os artistas e
Nem se costuma ligar ao termo toda a as obras modernistas e que depois criou a
decisiva trama social de sustentação obje- primeira universidade moderna brasileira,
tiva da trajetória dos artistas ligados ao dotando-a, com o tempo, de mecanismos
grupo modernista, que por sinal é sempre o sólidos de financiamento do mesmo fundo
paulista – raríssimas vezes alguém levanta estadual. Universidade que viria a produzir
a hipótese de que obras e artistas e pensa- novas interpretações do país, em especial
mentos que floresceram sob o manto mágico de sua cultura letrada, e que entronizou o
da palavra “modernismo” sejam originários mesmíssimo continuum – Semana de Arte
de outro lugar que não São Paulo. Nada se mais as obras e artistas modernistas que
diz sobre o nexo entre a vanguarda estética consagraria – como o ponto insuperável da
e a elite econômica e social – ao menos produção artística e intelectual brasileira.
nada que envolva perguntas diretas entre Exagero? Simplifico? Atropelo?
uma coisa e outra, como, por exemplo: essa Pode ser. Estou concentrando aqui, de
elite paulista, os Prados, Penteados e Ama- modo rápido e meio debochado, um con-
rais, cobrou algum preço aos artistas? Os junto de informações e convicções que con-
artistas venderam parte de sua alma para duz a isso, ou quando menos autoriza isso.
pode ler em seu trabalho mais famoso, o combatido ativamente pelos governos getu-
Retrato do Brasil, do mesmo 1928 que viu listas –, essa posição hegemônica carioca,
nascer Macunaíma, livro de resto dedicado repito, será então o alvo imediato da ação
ao próprio Paulo Prado5. do Modernismo derivado da Semana. No
Uma síntese crítica da posição intelec- primeiro plano, acessível até aos incautos,
tual de Paulo Prado é assim formulada por representava um combate contra o passa-
Carlos Berriel (2013, p. 14): dismo, as fórmulas gastas, o Classicismo
obsoleto, o Parnasianismo, a Academia Bra-
“A análise de seu pensamento permite ver sileira de Letras; num plano de fundo, visível
que com o Modernismo as elites agrárias apenas para estrategistas da qualidade de um
atingiram uma espécie de perfeição da ação Paulo Prado, era a disputa do posto hege-
ideológica: foram críticas de si mesmas, e mônico no campo cultural. A elite econô-
como historiadores estabeleceram o lugar mica paulista, com seu lado culto, moderno
que lhes pareceu adequado no cenário das e cosmopolita, reconhece como importante
ideias nacionais. Condenaram práticas cul- e decisivo esse patamar de luta, e por isso
turais que não lhes serviam e as julgaram financia a Semana, os salões que produziram
supérfluas, e edificaram em seu lugar estru- a carreira dos artistas a ela ligados ou a ela
turas ideológicas eficientes e atualizadas [...]. acrescentados e, a médio prazo, a USP, em
Ao se tornarem críticas de si mesmas, essas cujos gabinetes serão produzidas as novas
elites tornaram homólogas sua trajetória e a interpretações do país.
do país, seus projetos de classe e o projeto Esse o sentido histórico do patrocínio
de nação”. das mais ricas e tradicionais elites para as
moderadas diabruras modernistas. Não quer
A posição hegemônica da cultura esta- dizer que se tratasse de um cálculo completo
belecida no Rio de Janeiro – no contexto por parte de cada um dos participantes, é
de um estado nacional como o nosso, mar- claro, nem quer dizer que não fosse sincero
cado por uma tradição centralizadora her- o apreço dos indivíduos da elite econômica
deira do Império Romano, que na nossa Pri- pelas novidades estéticas; quer dizer, sim,
meira República conheceu breve momento de que se trata de um processo que beneficiará
afrouxamento, o qual no entanto logo será o lado paulista da equação brasileira. Por
outro lado, que aqui fica apenas mencio-
nado, sem aprofundamento, não estamos
falando de um movimento, o Modernismo
5 Aqui vale a evocação do estudo de Carlos Berriel paulista, que tivesse procurado quebrar o
sobre a obra de Paulo Prado, Tietê, Tejo, Sena, que
vínculo com a superior dominação francesa e
demonstra o teor da operação ideológica que Paulo
Prado consuma em sua obra, ao dar como certo que mais genericamente europeia sobre a cultura
o destino dos paulistas é o do comando do país, eis
que só eles têm o valor herdado dos colonizadores letrada brasileira. Salvo pequenas e secun-
portugueses anteriores a 1580 (a União Ibérica), que se dárias exceções, os modernistas paulistas
reforçou com a miscigenação com os indígenas, com a
vantagem, sugere ele, de não ter havido em seu esta- combateram a hegemonia cultural carioca
do a miscigenação com africanos e descendentes. Os
postulando que eles, sim, é que estavam
bandeirantes mamelucos são o futuro, não os mulatos
indolentes. interpretando adequadamente as novidades...
pre tida como algo melhor do que o que significativo de incompreensão ou rechaço,
existe, algo pelo que vale a pena lutar. Não enfim, o que ocorre? Se ela impuser sua
se pode conceber o contrário, um grupo que tábua de valores como o centro do para-
se queira vanguarda desejando um retorno digma de julgamento, o que acontece? Ela
ao passado, nem igualmente uma fuga para pode continuar se pensando como vanguarda,
o lado, que será irrelevante ou será apenas se estiver no poder? Mas, se ela estiver no
igual ao que já é conhecido. poder, o futuro não estará mais à frente, e
A vanguarda, então, só existe quando sim nas mãos – ainda assim a vanguarda
se descola do movimento realmente exis- pode pretender-se vanguarda? A que custo?
tente, quando se desobriga dos compromis- Antes de fechar o raciocínio dizendo que
sos vigentes – suas ideias não se medem o que ocorreu com o Modernismo paulista
pelo presente, não se deixam avaliar pelo foi exatamente isso, ter apoio forte e che-
já conhecido. Para o presente, a vanguarda gar logo ao poder, fixemo-nos no pequeno
olha com desconforto, com crítica, talvez abismo que a vanguarda abre em sua relação
até com desprezo, porque tem certeza de com a sociedade em torno. Dito de modo
que quem está envolvido no presente é mais dramático, a arte de vanguarda, na
presa do horizonte já conhecido e, assim, opinião que tem de si mesma, é melhor que
não sabe nada que realmente interesse. A a sociedade. “Um dia a massa ainda comerá
vanguarda é, em última análise, inimiga o biscoito fino que eu fabrico”, disse Oswald
do presente, do existente, do já aceito. Ela de Andrade, reconhecendo que tinha paladar
precisa discrepar do presente, sob pena de vanguardista e produzia no presente uma
não ser vanguarda nenhuma. A sociedade comida que o povo ainda não sabia apre-
do presente pratica alguma forma estética ciar. É no futuro que a vanguarda ancora
que é julgada, pela vanguarda, como parte sua tábua de valores, que se volta contra o
do passado a ser enfrentado e superado. Não presente para julgar o que existe segundo
há muita chance de conciliação. o que jura ser o futuro.
Tanto mais haverá bloqueio para a con- Faço aqui uma evocação que poderá
ciliação, quanto mais forte for a vanguarda, parecer estranha. Como se sabe, a For-
é claro. Se a vanguarda for constituída por mação da literatura brasileira, de Antonio
um ou dois elementos esparsos, que não pro- Candido, livro seminal para a crítica e a
duzem eco, é certo que ela correrá riscos história da literatura no Brasil, a primeira
de incompreensão ou de rechaço. Mas – história da literatura produzida segundo uma
aqui um ponto decisivo – o que ocorre se trama conceitual nítida – a ideia de sistema,
a vanguarda for muito apoiada, tiver grande o conceito de formação etc., marcos den-
força, dispuser de elementos suficientes para tro dos quais o autor vai exercitar sua alta
se estabelecer e divulgar sua tábua de valo- qualidade analítica de varejo –, descreve
res e suas práticas? E se ela tiver apoio um arco entre uma premissa e uma con-
de setores de elite, se tiver financiamento clusão. A premissa: só há literatura quando
certo, se com pouco tempo chegar ao poder há sistema literário, “um triângulo ‘autor-o-
político? Se ela chegar ao poder, em qual- bra-público’, em interação dinâmica”, com
quer dimensão, se ela não correr mais risco uma “certa continuidade da tradição”, como
tes momentos – o Modernismo visto por Certo, não se pode negar que há sentido
seu próprio discurso, Machado visto por na crítica vanguardista (bem assim na van-
Candido e a Bossa Nova vista por Caetano guarda estética como tal, é óbvio), mas meu
–, faz sentido? Qual sentido? Ou será que ponto é outro: quero indagar por que é este
os três casos são assim vistos apenas por o ângulo triunfante na percepção, a partir da
causa da lente que os leu, lente que se tem visada modernista, seja a dos militantes da
na conta de vanguardista também ela? primeira hora, seja em Candido, militante
O ponto aqui é chamar a atenção para a da segunda, ou em Caetano, militante da
lente: é por causa da afinidade vanguardista terceira hora. Só assim seria possível fazer
entre o discurso crítico do Modernismo pau- o elogio da obra de vanguarda? Não haverá
lista (o vencedor, tanto o de Mário quanto o também um certo gosto por tripudiar sobre a
de Oswald, não o de Graça Aranha, Ronald sociedade brasileira? Um vezo de reforço da
de Carvalho, Menotti del Picchia ou Plínio nossa autoestima negativa, o brasileiro como
Salgado, defenestrados do panteão, no curso um Narciso às avessas, que cospe na pró-
do tempo) e os objetos tomados em consi- pria imagem, como gostava de dizer Nelson
deração (a obra modernista, Machado de Rodrigues? Uma constante autodepreciação
Assis e a Bossa Nova), é por causa dessa que tomamos como quase obrigatória para
afinidade, repito, que a lente vanguardista afirmar a superioridade dos artistas rela-
destaca o abismo entre arte e sociedade, em tivamente à sociedade e para reiterar que
desfavor da sociedade. somos um país inaceitável? Uma espécie de
Poderia fazer diferente? Sim, poderia. identificação sempre negada, sempre rene-
Poderia esforçar-se para identificar nos obje- gada, um prazer espiritual, estético, emo-
tos estéticos – repito, a obra de Machado cional sempre interrompido?
de Assis, a obra literária ou pictórica do (E quanto dessa atitude nos impede de
Modernismo paulista e a Bossa Nova – não fazer o país possível? Quanto dessa atitude
(apenas) a distância, mas a proximidade com é apenas um trivial consolo para a cons-
a sociedade, pondo luz não (apenas) sobre as ciência de intelectuais e artistas que, ao
rupturas, mas sobre as permanências. Que reiterarem a maravilha da vanguarda e o
há relações de continuidade entre Machado e horror da sociedade, no fundo se recom-
a sociedade brasileira do Segundo Império, pensam por sua própria irrelevância, ou
entre o Modernismo paulista e a vida de São num viés judaico-cristão culposo, ou num
Paulo, entre a Bossa Nova e o samba e o Rio viés adorniano arrogante?)
de Janeiro, é certo e demonstrável. Então, Rápidas comparações: ocorre a algum
conclusão possível, é o investimento crítico espanhol dizer que Cervantes era melhor
numa ideia de ruptura, de descontinuidade, que a sociedade espanhola de seu tempo? É
de oposição, em prejuízo de perceber as afi- por essa suposta superioridade que ele deve-
nidades, as ligações, a organicidade – é esse ria ser visto como válido? Ocorre a algum
investimento crítico nascido da percepção inglês dizer que Shakespeare ou, em outro
vanguardista que faz esses objetos parecerem contexto, Virginia Woolf são melhores que
habitar o outro lado da lua, em dissonância seu respectivo contexto? Que a Inglaterra
com a sociedade. precisaria se esforçar para merecer Shakes-
REFERÊNCIAS